Revista Crítica de Ciências Sociais

109 | 2016 Culturas musicais contemporâneas

Paula Guerra e Paula Abreu (dir.)

Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/rccs/6181 DOI: 10.4000/rccs.6181 ISSN: 2182-7435

Editora Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Edição impressa Data de publição: 1 maio 2016 ISSN: 0254-1106

Refêrencia eletrónica Paula Guerra e Paula Abreu (dir.), Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016, « Culturas musicais contemporâneas » [Online], posto online no dia 18 maio 2016, consultado o 29 setembro 2020. URL : http://journals.openedition.org/rccs/6181 ; DOI : https://doi.org/10.4000/rccs.6181

Este documento foi criado de forma automática no dia 29 setembro 2020. 1

SUMÁRIO

Introdução

Culturas musicais contemporâneas Paula Guerra e Paula Abreu

Artigos

¿El declive del significado social de la música? Ion Andoni del Amo, Arkaitz Letamendia e Jason Diaux

Estigma, experimentação e risco: A questão do álcool e das drogas na cena punk Paula Guerra, Tânia Moreira e Augusto Santos Silva

Fedeli alla linea: CCCP and the Italian Way to Punk Vincenzo Romania

Daughters of Rock and Moms Who Rock: as a Medium for Family Relationships in Rita Grácio

Barulho nas ruas escuras: Estilo de vida e redes sociais nos agrupamentos roqueiros Irapuan Peixoto Lima Filho

Dinâmicas coletivas em cenas musicais: A experiência do grupo #acenavive no Rio de Janeiro Luiza Bittencourt e Daniel Domingues

Rumo a uma etnografia da música contemporânea. Prólogo para um projeto de investigação Gil Fesch

Novas configurações do álbum de música na cultura digital: O caso do aplicativo “Biophilia” Lucas Waltenberg

Os novos modelos de negócio da música digital e a economia da atenção Leonardo Ribeiro da Cruz

Spotify e os piratas: Em busca de uma “jukebox celestial” para a diversidade cultural Miguel Afonso Caetano

Recensões

Zembylas, Tasos (org.) (2014), Artistic Practices. Social Interactions and Cultural Dynamics Paula Guerra

Campbell, Miranda (2013), Out of the Basement. Youth Cultural Production in Practice and in Policy Pedro Quintela

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 2

Bártolo, José (coord.) (2015), Design Português Pedro Quintela

Espaço Virtual

Título da página eletrónica: Keep It Simple, Make It Fast! URL: http://www.punk.pt/pt/ Ana Sofia Oliveira

Título da página eletrónica: PROFestival URL: http://profestival.net/ Pedro Quintela

Título da página eletrónica: Dangerous Minds URL: http://dangerousminds.net/ Paula Guerra

Título da página eletrónica: The Past is Unwritten URL: https://thepastisunwritten.wordpress.com/ Paula Guerra

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 3

Introdução

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 4

Culturas musicais contemporâneas

Paula Guerra e Paula Abreu

1 A música é uma expressão cultural contemporânea que desde muito cedo foi associada ao universo da produção, difusão e consumo cultural de carácter industrial. Alguns dos textos ilustrativos da teoria crítica de Adorno sobre a indústria cultural debruçam‑se exatamente sobre formas industriais e populares de música. No entanto, desde os finais da década de 60 do século xx que os estudos culturais centrados no Birmingham Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) têm dado conta de reconhecidas expressões musicais populares que resistem ou subvertem não apenas o mainstream da cultura musical veiculada pela indústria da música e pelos grandes meios de comunicação, mas também os universos simbólicos associados à sua produção, distribuição e consumo. Tais trabalhos apontaram a importância da música nas manifestações subculturais, mostrando a sua força agregadora e simbolizante.

2 Mais tarde, a partir dos anos 90 do século xx, as reações aos cultural studies, designadas como post subcultural studies ou pós‑estruturalistas, têm vindo a fomentar pesquisas em torno de manifestações, produções e vivências musicais associadas a espaços específicos, a grupos geracionais e a filiações de gostos particulares. Destes advém um manancial de questões em torno da pluralidade das cenas musicais e das neotribos no mundo contemporâneo. A atual profusão de paradigmas interpretativos é bem sintomática da contínua importância da música na modelação das identidades e das memórias grupais e coletivas. A fragmentação e erosão dos géneros e subgéneros musicais, a diluição das fronteiras artísticas canónicas, a multiplicação de consumos associados à música, a ambivalência dos estatutos da produção e do consumo musical, assim como a profusão de canais de difusão e acesso à música são tendências que continuam a colocar a música, sobretudo a de carácter popular, no cerne das controvérsias culturais.

3 Este número temático1 da Revista Crítica de Ciências Sociais abre um espaço de discussão sobre alguns dos novos desafios colocados às culturas musicais contemporâneas e à forma como estes ameaçam ou estimulam o seu potencial de resistência, diferenciação e inovação face às tendências e movimentos culturais populares dominantes, continuadamente atravessados pelos efeitos da tecnologia e do (novo) espírito do capitalismo.

4 O conjunto de artigos que o número congrega é ilustrativo da diversidade destas mesmas questões. Neles encontramos abordagens sobre a ambivalência do potencial simbólico e identitário da música, colocando‑a não apenas em relação com subculturas específicas, mas também na mediação e associação a estilos de vida partilhados e na gestão das identidades

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 5

individuais; ou ainda como ingrediente fundamental na definição da singularidade de projetos específicos, sejam eles de carácter mais popular ou mais erudito. O efeito catalisador de resistência ou dissidência destas culturas é ainda ilustrado pela abordagem da associação entre culturas musicais e consumos transgressivos e práticas de resistência de género. A dualidade underground/mainstream marca – como dentro de toda a esfera pop – os debates a este nível. Também encontramos reflexões e análises centradas sobre a relação entre a transformação das práticas musicais, as tecnologias digitais e virtuais e os novos modelos de negócio, discutindo as múltiplas faces das formas de imbricação contemporânea de processos culturais/musicais, técnicos e tecnológicos, económicos e mercantis.

5 Estamos, assim, perante um conjunto diversificado de artigos que conjugam teoria e empiria, demonstrando a vivacidade que estes debates e questões têm alcançado na Europa do Sul e na América Latina, incluindo contributos focados em Portugal, em Espanha, em Itália e no Brasil. E esta questão é tão mais importante quanto estas são sociedades marcadas por transições e sobretudo, em tempos recentes, pela crise económica e societal, no âmbito das quais as manifestações artísticas e musicais parecem cada vez mais assumir‑se como plataformas de refundação e revivificação identitárias.

6 Os artigos estão organizados de forma a interligar temas, desafios, abordagens e metodologias decorrentes das cenas musicais contemporâneas. No primeiro texto, justamente intitulado de “¿El declive del significado social de la música?” de Ion Andoni del Amo, Arkaitz Letamendia e Jason Diaux, problematiza‑se a decadência da música fruto do avanço societal e das tecnologias e, particularmente, a capacidade da música como ritual e matriz de reestruturação identitária. Esta reflexão crucial encontra‑se plasmada neste artigo através de três caminhos: uma abordagem teórica centrada nas teorias pós‑subculturais; uma análise do contexto de estetização da cultura contemporânea num quadro pós‑moderno; uma ilustração empírica situada na Euskal Herria e centrada na forma como os diversos agentes da música alternativa percebem o significado social da música e a sua perda de importância como matriz de socialidade comunicativa juvenil.

7 O artigo “Estigma, experimentação e risco: A questão do álcool e das drogas na cena punk” de Paula Guerra, Tânia Moreira e Augusto Santos Silva aborda as drogas como eixos referenciais do rock ‘n’ roll, em geral, e do , em particular. Assim, não será casual a reiterada presença do álcool e das drogas nos discursos dos protagonistas e nas canções do punk português. O texto não aborda o ponto de vista das práticas e contextos de consumo, mas o dos discursos elaborados, dentro da cena, sobre o sentido do uso e o risco da dependência, quer por atores punk diretamente entrevistados, quer nas letras das canções que eles consideraram como mais influentes na cena. O artigo aborda três tópicos centrais: a representação da natureza da relação com o álcool e as drogas; a sua centralidade como questão identitária, isto é, respeitante ao nome, à coesão e ao posicionamento da cena; e a diversidade das atitudes e dos discursos que nela circulam.

8 O texto de Vincenzo Romania não sai do punk rock e mantém‑se “Fedeli alla linea: CCCP and the Italian way to punk”. A exemplo do que acontece com muitas cenas e subcenas musicais fora do espectro anglo‑saxónico, o punk em Itália não tem sido objeto de uma larga investigação. Este artigo pretende colmatar essa questão através da análise da banda – e das letras das suas canções – CCCP – Fedeli alla linea – a mais famosa e polémica banda de punk italiano. O texto encontra fundamento na metodologia das semióticas narrativas de Greimas (1983), destacando alguns aspetos de resistência e ironia nas canções da banda e, simultaneamente, lançando sementes para uma comparação do punk italiano com o português e o inglês.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 6

9 No artigo “Daughters of Rock and Moms Who Rock: Rock Music as a Medium for Family Relationships in Portugal”, Rita Grácio discute como os processos de criação musical do rock são muitas vezes palco de prolongamento de relações familiares, designadamente assumindo os papéis das mulheres enquanto mães e filhas. Com base em dados empíricos resultantes de uma investigação em espaço português, Rita Grácio demonstra através das relações pai‑filha, mãe‑ criança que a família e os espaços domésticos são relevantes na produção quotidiana de rock, levando a que este seja uma espécie de “family soundscape”.

10 Irapuan Peixoto Lima Filho centra‑se no rock e no “Barulho nas ruas escuras: Estilo de vida e redes sociais nos agrupamentos roqueiros”. Este texto propõe‑se analisar a formação de uma movimentação social de roqueiros na cidade de Fortaleza, capital do estado do Ceará, no Brasil. Esta movimentação vai configurar uma “rede roqueira” caracterizada por estilos e modo de vida particulares, reconfigurando – novamente – identidades.

11 De forma muito interessante, porque interrelacionada, Luiza Bittencourt e Daniel Domingues abordam as “Dinâmicas coletivas em cenas musicais: A experiência do Grupo #acenavive no Rio de Janeiro”. Este texto analisa as articulações do grupo de artistas que se organiza, no Rio de Janeiro, em torno da #acenavive, utilizando o conceito de cena musical a três níveis: evidenciando o histórico de organização conjunta promovida por esses jovens músicos, compreendendo as suas motivações e objetivos; cartografando os espaços urbanos frequentados por esses artistas e utilizados para a realização de concertos; e identificando as principais práticas culturais e de sociabilidade presentes na articulação desses jovens na sua cena.

12 Gil Fesch apresenta um “Rumo a uma etnografia da música contemporânea. Prólogo para um projeto de investigação”. Neste artigo, o autor avança com a discussão preliminar acerca dos fundamentos teóricos que servem de base a um projeto de investigação em curso junto do Remix Ensemble Casa da Música. De âmbito teórico‑metodológico, o texto oferece um quadro de análise que procura dar passos rumo a um retrato do subcampo da música contemporânea portuguesa e possibilitar uma leitura crítica da tão propalada crise da nova música.

13 No seguimento da crise da música mas focando‑se nos seus suportes, Lucas Waltenberg desvela as “Novas configurações do álbum de música na cultura digital: O caso do aplicativo ‘Biophilia’”. Este artigo aborda o processo de reestruturação da indústria fonográfica, argumentando que o formato álbum – supostamente ameaçado pelas novas práticas de consumo nas tecnologias digitais – mostra sinais de que pode ser repensado para acompanhar o processo de reestruturação da indústria musical, incentivando novas maneiras de os consumidores e os próprios artistas lidarem com a música.

14 No artigo intitulado “Os novos modelos de negócio da música digital e a economia da atenção”, Leonardo Ribeiro da Cruz identifica e problematiza as estratégias de inserção do mercado fonográfico no ambiente digital, em especial os novos serviços gratuitos de streaming, demonstrando como estes serviços coadjuvam a ampliação da hegemonia da economia da atenção online e da vigilância ubíqua e subsidiam a expansão dos espaços fechados na rede, virados para a valorização, em detrimento de espaços livres e abertos.

15 Finalmente, ainda no escopo das mudanças das formas de relação e artefactos musicais, Miguel Afonso Caetano apresenta o texto “Spotify e os piratas: Em busca de uma ‘jukebox celestial’ para a diversidade cultural”. Ora está aqui em discussão a plataforma Spotify como “novo” veículo de acesso à música, mas sobretudo a demonstração dos principais obstáculos colocados pelos serviços comerciais de streaming apoiados pelas indústrias culturais a uma oferta centrada na diversidade cultural e na democratização do acesso à cultura.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 7

NOTAS

1. Este número foi organizado em articulação com o projeto de investigação KISMIF – Keep it Simple, Make it Fast!, cofinanciado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/CS‑SOC/118830/2010) e por fundos FEDER (através do programa operacional COMPETE). O KISMIF está a ser desenvolvido no Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do (IS‑UP) sob a coordenação de Paula Guerra, em parceria com o Griffith Centre for Cultural Research (GCCR), a Universitat de Lleida (UdL), a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) e as Bibliotecas Municipais de Lisboa (BLX). Deste projeto e seu correlato – a KISMIF Conference – fazem parte as duas organizadoras deste número. Mais informações em www.punk.pt e http://www.kismifconference.com/pt/. Um agradecimento profundo a todos/as os/as que participaram nos vários eventos académicos associados a este projeto e cujos textos apresentaram a este número temático.

AUTORES

PAULA GUERRA

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150‑564 Porto, Portugal [email protected]

PAULA ABREU

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000‑995 Coimbra, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 8

Artigos

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 9

¿El declive del significado social de la música? The Decline in the Social Significance of Music? Le déclin de la signification sociale de la musique?

Ion Andoni del Amo, Arkaitz Letamendia y Jason Diaux

NOTA DEL EDITOR

Revisión de Elena Gamazo Artigo recebido a 20.07.2015 Aprovado para publicação a 14.12.2015

Introducción

1 En este artículo abordamos la cuestión de si en la actualidad el significado social de la música se encuentra en decadencia; es decir, si con la irrupción de las redes telemáticas la capacidad de articular identidades sociales alrededor de la música se ha debilitado. Nuestra hipótesis apunta a que, en un contexto de intrusión de las redes sociales y de la lógica del mercado del capitalismo tardío en diversos campos culturales semiautónomos como el musical (Bourdieu, 2001), efectivamente la música pierde parte de su capacidad de construir identidades a su alrededor. Sin embargo, en la otra cara de la moneda, mediante Internet y el conjunto de redes telemáticas, nos encontramos con un mayor potencial de difusión masiva de la producción musical y un énfasis en la socialidad comunicativa de la misma, si bien en torno a los productos más mainstream.

2 Para dar a conocer estas ideas, dividimos el artículo en tres partes. En una primera parte desarrollamos el marco teórico y presentamos los debates académicos existentes respecto a la música y su papel social. En este punto, tras realizar un breve repaso a los principales autores y posiciones existentes –especialmente las subculturalistas y

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 10

postsubculturalistas–, tratamos de determinar cuál es la idea del significado social de la música en el que nos apoyamos. En una segunda parte planteamos un análisis del contexto, y para ello profundizamos en los potenciales procesos de vaciado y estetización de la cultura contemporánea, que varios autores críticos con las consecuencias sociales del posmodernismo plantean (Harvey, 1998; Jameson, 1998).

3 Una vez establecidas estas bases teóricas, en una tercera parte propone‑ mos un análisis empírico, basado en técnicas cualitativas. La investigación etnográfica que aquí plateamos se centra en músicas populares urbanas en el contexto de Euskal Herria (Pais Vasco), donde la música ha jugado un papel significativo en las últimas décadas a la hora de movilizar afectos y emociones (Amezaga, 1995; Gabilondo, 2009; Larrinaga, 2014). En todo caso, consideramos que sus implicaciones teóricas podrían aplicarse igualmente a otros contextos, al menos a otros países del mundo occidental.

4 En concreto, en este estudio analizamos extractos de entrevistas que consideramos representativas, seleccionadas de una muestra total de 43. Distinguimos tres tipologías básicas de entrevistados, que no son sino los actores principales en la escena musical y cultural: músicos (22 entrevistas), programadores (10) y expertos, principalmente periodistas musicales o pensadores y activistas culturales (11). Con respecto a la periodización, las entrevistas se han realizado entre septiembre de 2013 y septiembre de 2014.

5 Finalmente, exponemos las conclusiones del trabajo. Así, a partir de las bases teóricas establecidas y las entrevistas realizadas, interpretamos la hipótesis sobre el declive del significado social de la música contemporánea, como elemento de construcción de identidad, y su paso hacia la socialidad comunicativa.

1. El significado de la música y el estilo

6 Un largo y fructífero debate teórico, sobre todo anglosajón, ha deliberado en las últimas décadas acerca del significado social de la música y el estilo. Su origen son los trabajos clásicos del Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) de Birmingham (Hall, Cohen, Clarke, Willis o Hebdige).

7 El CCCS reinsertó la clase social en el corazón del análisis cultural. Politizó el estilo de la juventud de clase trabajadora británica (principalmente blanca, masculina y heterosexual), situando la clase social, antes que la edad o generación, en el centro de la teoría. Trataba así de entender cómo la juventud de clase trabajadora reproduce, negocia y transforma sus condiciones materiales a través de prácticas culturales. Lo hacían a través de las lentes de las subculturas, analizadas como “doble articulación”, de un lado con la cultura de clase trabajadora de sus padres y, de otro, con la cultura dominante de la cambiante sociedad británica después de la guerra (Hall y Jefferson, 2006; Hebdige, 2004; Hesmondhalgh, 2005).

8 El concepto de subcultura desarrollado en los trabajos del CCCS fue objeto en los 90 de una crítica sostenida desde otros marcos teóricos, agrupados bajo la etiqueta de postsubculturalistas y situados en la ola del postmodernismo, que frente a la primacía otorgada a la clase social, apuntaban la emergencia de nuevas formas culturales como la “cultura de club” o las ciberculturas (Bennett, 2011; Bennett y Kahn-Harris, 2004; Muggleton, 2010; Thornton, 1995). El punto de vista general es que la creciente importancia del consumo (frente a la producción) ha llevado a una situación donde

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 11

jóvenes de diferentes antecedentes sociales pueden sostener similares valores que encuentran su expresión en la pertenencia compartida a una subcultura particular. Aún más, las identidades juveniles – y por extensión las identidades sociales per se – se habrían vuelto más reflexivas, fluidas y fragmentadas debido a un creciente flujo de mercancías culturales, imágenes y textos a través de los cuales proyectos de identidad individualizados podrían ser ‘fashionados’.

9 La crítica más extendida hacia la teoría postsubcultural apunta que ésta adopta una ingenua, y esencialmente celebratoria posición con respecto al papel de las industrias culturales en la formación de las identidades y los estilos de vida. La teoría postsubcultural, con su énfasis en el consumo como práctica cultural clave, adoptaría una postura esencialmente complaciente que dibuja una juventud que se deja llevar en un supermercado del estilo, reduciendo la sensibilidad estilística de los jóvenes a poco más que un juego de picar y mezclar, a una suerte de dandismo postmoderno (Blackmann, 2005; Griffin, 2010; Hall y Jefferson, 2006; Hesmondhalgh, 2005; Shildrick y MacDonald, 2006).

10 Al ámbito anglosajón se suman también importantes aportaciones como los estudios culturales y de la comunicación latinoamericanos (García Canclini et al., 2012; Martín- Barbero, 1993), las del catalán Carles Feixa (Feixa, 1998; Feixa y Nofre, 2012), o recientes trabajos en lengua portuguesa (Guerra, 2010, 2014). En todo caso, el debate en torno al concepto de subcultura y las propuestas de superación de éste resulta central, porque en él se condensan varios conceptos: juventud, música, identidad, postmodernidad, política, hegemonía, (contra)cultura, resistencias, clase, género, espacio público...

11 Griffin (2010), recogiendo las reflexiones de Hall y Jefferson (2006) con motivo de la reedición de Resistance Through Rituals, defiende lo que considera el principal legado del proyecto subcultural: el desarrollo de una lectura sintomática, situada en el marco de un análisis coyuntural, que permite interpretar no sólo las culturas juveniles y sus consumos culturales (y musicales) asociados, sino a través de ellas leer también los cambios sociales en curso, el papel actual de la cultura, y el significado político de determinadas prácticas culturales.

2. Estetización y vaciado de la cultura

12 Fruto del tiempo de las batallas culturales y la politización de las identidades, especialmente en los 60, y de los cambios del capitalismo, el modo en el que la lógica cultural hegemónica construye su mediación va a mutar con los cambios de la década de los 70. Aparecen las formas culturales posmodernistas, en paralelo a modos más flexibles de acumulación del capital (Harvey, 1998; Jameson, 1998). El marco cultural dominante ahora cubre las diferencias en base a su exhibición y aceptación plural, incluso en la potenciación de lo extraño, y en su realización mercantil en una pretendida construcción “libre” y cambiante de las identidades en una suerte de supermercado cultural global.

13 Existe en esa formulación de construcción identitaria una interpelación ideológica de fondo, denunciada desde los estudios críticos del consumo (Alonso y Conde, 1994) y la identidad (Azkarraga, 2011), cuya aceptación acrítica será una de las líneas principales de crítica a los trabajos de los postsubculturalis‑ tas, que reflejan estas transformaciones (Guerra, 2010; Hesmondhalgh, 2005). La figura del supermercado cultural postmoderno ignora que no todos los individuos están en condiciones de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 12

comprar en él –las estructuras sociales– y que la experiencia local, los conflictos y las redes de relaciones tienen un peso importante en el proceso de construcción identitaria, que no resulta ni tan “libre” ni tan personalizable.

14 Es necesario, por tanto, relativizar esas descripciones. Pero, si bien puede que nunca tuvieran tanta como algunas teorizaciones pretendían, quizás además estén perdiendo importancia en los procesos identitarios. Bourdieu (2001), ya alertaba de forma crítica sobre la intrusión en la era neoliberal de la lógica comercial en todos los estadios de la producción cultural, amenazando la independencia y semiautonomía de los diferentes campos culturales. La propia lógica del mercado cultural global, de picar y mezclar, usar y tirar, y el relativismo absoluto del discurso postmoderno, acaba por convertir en insulsos los productos culturales, incapaces de proporcionar sentido e identidad, por líquida que sea.

15 El pinchazo de la infraestructura económica del capitalismo tardío deja tambaleándose definitivamente a su lógica cultural, y con ella al ejercicio mediador de la cultura. La cultura deja de ser el campo privilegiado de acción política, comunicativa e identitaria.

3. The Times They Are A‑Changin’

16 Los trabajos de los postsubculturalistas incorporaban muchos de los cambios en relación a la música(s), identidad(es) y culturas juveniles: el creciente papel de las industrias culturales, la importancia de los procesos de consumo, la igualación de los valores más allá de las condiciones sociales, la agudización de las tendencias de individualización, una creciente fluidez y fragmentación, el declive económico y social de la clase trabajadora frente a la clase media como particular‑universal...

17 Éstos y otros cambios sociales, económicos, culturales y tecnológicos más recientes que apuntamos inciden también, en función de las condiciones estructurales y coyunturas particulares, en Euskal Herria.

3.1. Los cambios tecnológicos: Internet, posibilidades y desigualdades

18 Sin caer en la concepción funcionalista del vector tecnológico como agencia de cambio, no puede dejarse de señalar la importancia determinante de desarrollos como Internet. Las nuevas tecnologías de la información y comunicación (TIC) han contribuido a cambiar muchas relaciones sociales, en muchos casos acentuando procesos que venían de antes. En el campo de la música su efecto ha supuesto profundas transformaciones (Yúdice, 2002), ya apuntadas tempranamente por Simon Frith (1999). Así ha sido ampliamente reseñado en multitud de entrevistas.

19 Músicos de distintas escenas, programadores o cronistas coinciden en señalar las posibilidades que ha abierto Internet, especialmente a la hora de difundir distintos trabajos, permitiendo un acceso global (o casi, si tenemos en cuenta la brecha digital): Los que no somos conocidos, podemos sonar en todo el planeta solo con mandar los temas a emisoras on line, casi todo el mundo (salvo raras excepciones) te pone tus temas, la repercusión es más o menos importante pero puedes sonar, cosa que hace unos años era imposible con emisoras como los 40... (Javi de House, músico Dj, entrevista personal, 08.11.2013)

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 13

20 Un aumento espectacular de posibilidades de lo que Castells (2009) denomina autocomunicación de masas: las posibilidades individuales de transmitir de forma masiva las creaciones propias, musicales o de otro tipo. Es cierto que los filtros siguen existiendo, como el propio Castells recuerda, pero son mucho más laxos, o percibidos como tales, que los que imponían los grandes medios de comunicación o la industria discográfica, incluso la independiente.

21 La música y periodista Elena López Aguirre (entrevista personal, 24.02.2014) nos relata que en el movimiento punk de los 80 “la célula básica de la que nació un cuerpo vestido habitualmente con chupa de cuero claveteada fue la maketa”. La maketa, y todos los espacios de comunicación social (fanzines, revistas, pegatinas, pintadas, cómics, radios libres, la propia música, las tiendas de discos, la circulación de casetes grabadas, los conciertos, el estilo...) tienen bastante de autocomunicación de masas, previamente al salto tecnológico de las TIC. Éstas propician que pueda ser más autónoma, individualizada y más masiva, más global.

22 Ello en teoría facilitaría desarrollar nuevos gustos. Sin embargo, el periodista musical Iker Barandiaran nos advierte de la cara oscura: Paralelamente, al unir Internet y las plataformas digitales, es fácil grabar un disco, así como difundirlo e intentar darlo a conocer. Pero como eso hace aumentar la oferta, es más difícil destacar entre los demás. Esa criba que antes hacían las discográficas ha desaparecido, para bien y para mal.1 (Iker Barandiaran, periodista musical, entrevista personal, 02.03.2014)

23 Las facilidades para llegar a todo el mundo, para autocomunicar, se diluyen en un mar de sobreinformación (Zallo, 2011). Y aquí surge la paradoja que reconocen muchos de los entrevistados y que constata nuestra obser‑ vación directa: con muchas más posibilidades de difundir, conocer y desar‑ rollar nuevos gustos, parece producirse el efecto contrario, en casi todos los lugares se escucha cada vez más la misma música.

3.1.1. ¿Pero es que siguen sonando los mismos?

24 Combativo rapero y Dj de electrónica, Maisha apunta que no todos están en condiciones de igualdad. Aunque la red multiplica y mucho las posibilidades de autocomunicar, y bien el acceso puede resultar más o menos libre, la criba sigue existiendo en cuanto a posibilidades de incidencia. Javier Piñango también ratifica que, aunque la producción y difusión resulta más fácil, el poder de determinadas redes sociales (MySpace, Facebook...) mantiene vigentes los filtros; continúan los viejos poderes.2 La desigualdad en los medios de promoción persiste, incluso quizás más acentuada; y las grandes discográficas parecen conservar en esa dimensión un renovado control sobre la promoción de lo que se escucha masivamente, al menos en los locales de ocio y las emisoras de radio tradicional: son sus productos los que inundan cada vez de forma más masiva los locales nocturnos.

25 Casi todos los programadores y los propios músicos coinciden en señalar que el público demanda especialmente “canciones conocidas”, “las famosas”. Y en la definición de cuáles son: las clásicas y, especialmente, las que salen en la radiofórmula, donde la presencia de los productos comerciales de la gran industria musical es dominante. Otros estudios, como el de Álvarez Monzonzillo y Calvi (2015), o el realizado desde la Universidad de La Rioja, coinciden: “no todo el mundo escucha lo mismo, pero hay una

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 14

parte muy significativa que está muy condicionada por lo que se le ofrece, sin implicarse en la búsqueda de alternativas” (Andrés, 2013: 34).

26 En suma, las TIC refuerzan las posibilidades de autocomunicar, pero la apertura de los filtros de acceso no suprime totalmente el papel dominante de la gran industria musical. Antes bien, lo que parece es transformar sus estrategias y las formas de escucha del público.

3.2. La explosión de la burbuja discográfica: Del disco al festival, pasando por muchos conciertos

27 Elena López Aguirre (entrevista personal, 24.02.2014) recordaba también cómo “ante la falta de respuesta de los sellos discográficos, atrincherados en una posición muy conservadora ante la crisis, los jóvenes de los años 80 comenzaron a crear su propia infraestructura, una escena, alrededor de pequeños grupos de garaje, hardcore o punk‑ rock, principalmente”. Ante los cambios que produjo el desarrollo de las TIC y especialmente Internet, la industria discográfica pareció de nuevo atrincherarse en similares posiciones. Cuando no directamente avariciosas, como acusa Iker Barandiaran a propósito del precio de los CDs.

28 Así, el Observatorio Vasco de la Cultura (2015), registra una disminución de la dimensión económica de la industria discográfica, entre 2009 y 2013, que pasa de casi 9,7 millones de en ingresos a poco más de 5,1. También disminuyen las copias realizadas (de 322 835 a 228 925) y el número de discos vendidos (de 469 502 a 299 085).

29 Norton, con una dilatada trayectoria musical, desde sus inicios en los 90 con el grupo de punk‑rock en euskara EH Sukarra, un salto posterior al pop‑rock con Lorelei o Norton Club, y el reciente retorno de EH Sukarra, señala que hoy en día resulta más complicado conseguir grabar un disco. Mikel, del grupo Sexty Sexers, apunta que aunque las posibilidades se han ampliado gracias a las TIC, el músico pequeño se encuentra hoy en día más sólo. Con todo, como señala el periodista musical Julen Azpitarte, la crisis de las discográficas coincidente con la expansión de Internet abre oportunidades para desarrollar pequeños proyectos y para la autogestión. La estrategia comercial –la burbuja, apunta el periodista musical Álvaro Heras– se desplazó de la batalla perdida de los discos a la promoción de los conciertos (Álvarez Monzonzillo y Calvi, 2015; Fouce, 2009).

3.2.1. Auge y pinchazo del concierto

30 El cambio de milenio registra un sobresaliente auge del formato de con‑ cierto, una suerte de “burbuja”. La facilidad de acceso a la producción musical en Internet, de forma gratuita aunque perseguida en muchos casos, es un factor a menudo utilizado para explicar el boom de los conciertos. No obstante, como bien sugieren algunos entrevistados, muchas de las veces los conciertos han recurrido a la movilización de grupos de renombre asentados antes que a apuestas nuevas o arriesgadas: el grupo mítico y la motivación del “yo estuve allí”.

31 La estrategia de la industria musical, pues, parece que se reorientó hacia la promoción de los conciertos, aunque al tiempo atrincherándose también en posiciones conservadoras. Un conservadurismo que también parece darse, quizás por saturación, entre el público asistente:

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 15

Entre la gente que acude a conciertos solo un pequeño porcentaje se arriesga a descubrir nuevas bandas. Y eso es curioso, ahora que con Internet podemos saber de antemano lo que nos vamos a encontrar (eligiendo mejor dentro de la amplia oferta). No como antes, que sin Internet, íbamos a conciertos a ciegas sin saber muy bien lo que nos íbamos a encontrar. (Iker Barandiaran, periodista musical, entrevista personal, 02.03.2014)3

32 Los responsables de la sala Fever subrayan el fabuloso despliegue de salas de conciertos y programación en Bilbao durante la primera década del siglo XXI, en contraste con el desierto que era la capital anteriormente: “En el año 93 estaba el gaztetxe4 y nada más”. “Las bandas empiezan a pasar por aquí” (Programadores musicales Sala Fever, entrevista personal, 08.10.2013).

33 Con todo, Julen Azpitarte señala el progresivo encarecimiento del formato concierto: a la propia entrada hay que sumar el precio nada desdeñable de las bebidas en los locales. Muchos conciertos llegan a adquirir cierto carácter elitista. Aunque en locales pequeños o gaztetxes los precios aún se mantienen en torno a los 5‑10 euros, como recuerda el músico Fermin Muguruza o los miembros del gaztetxe de Basauri.

34 El estallido de la burbuja financiera e inmobiliaria parece encadenar la explosión al fenómeno de los conciertos. Prácticamente todos los entrevistados ratifican el desplome del formato concierto en los últimos 3‑4 años, aludiendo en muchos casos a la crisis económica.

35 Programadores de salas como Fever o Plateruena, el Kafe Antzokia5 de Durango, coinciden estupefactos en que les resulta extremadamente complicado calcular cuándo un concierto va a resultar mínimamente exitoso, pues cada vez depende más de factores ajenos al mismo: si llueve, hay exámenes, alguna fiesta, que la policía municipal eche a los que están haciendo botellón en alguna plaza... Ha habido un momento en el que podíamos pagarlas y hay otro momento en el que no. […] Sigue habiendo cosas que se pagan, más que hace 20 años, pero no hay tanto como hace cinco. Hay un momento de subida y ahora estamos en un momento de bajada... Los chavales es que lo que sí creo que han perdido es un poco el... Hombre, a ver, tampoco es que nuestra generación estuviéramos todo el día de conciertos... Pero no van a muchos conciertos. Tampoco tienen mucha tela, claro, son conciertos de 20 euros... Nosotros yo recuerdo que íbamos a conciertos de 200 pelas... (Programadores musicales Sala Fever, entrevista personal, 08.10.2013)

36 Pero el fenómeno no sólo concierne a las grandes giras internacionales o a los locales más grandes (y más caros). Iker Barandiaran lo refleja también en relación a los locales más pequeños o los gaztetxes, reflexión compartida con algunos otros entrevistados vinculados al gaztetxe de Basauri, como los integrantes del grupo punk Krimen y Kastigo. La idea señalada anteriormente en torno a la pérdida de interés en los grupos nuevos o pequeños se reitera, lo que acaba por producir cierta frustración entre los programadores de los locales más pequeños y autogestionarios.

37 La edad de los que acuden a los conciertos también ha sido otro aspecto ampliamente señalado: por encima de los 30 años. Incluso en el caso de grupos con componentes muy jóvenes como Belako. Los más jóvenes, coinciden casi todos, se mueven por otras motivaciones y en otros formatos.

38 Y el formato al alza que todos apuntan es el de los festivales: combina fiesta con música, y a públicos atraídos por distintos grupos, clásicos o mediáticos en muchos casos, lo

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 16

que permite acumular masa crítica. Muchas veces subvencionados y con mucho público que viene de fuera.

39 Referencia de la música vasca desde los 80, Fermin Muguruza subraya el plus que proporciona el formato festivalero: permite escuchar varios grupos casi por el mismo precio. Pero sobre todo, señala, constituyen “escaparates sociales”, espacios privilegiados para las relaciones sociales directas, especialmente aquellos de varios días de duración y con zona de acampada. Aunque es un formato eminentemente veraniego, hay algunos que se atreven con la complicada climatología invernal vasca, como los reivindicativos Hatortxu Rock o Kalera Rock, en favor de los derechos de los presos políticos vascos.

40 No obstante, no deja de ser un formato también con altibajos y complicado: “Te la juegas a una” recuerdan desde la sala Fever. Algunos han ido desa‑ pareciendo. En el 2014 festivales como Azken ikasle dantza, organizado por la agrupación estudiantil de izquierda independentista Ikasle Abertzaleak, tuvo que ser suspendido; los organizadores del Kalera Rock reconocían un descenso de asistentes; al tiempo, el festival comercial Bilbao BBK Live batía todos sus registros agotando los bonos y entradas de todos los días. El tipo de festival al alza, puntualizan desde el grupo Audience, parece clónico. Iker Barandiaran subraya que, al igual que en la economía, parece que la tendencia se polariza entre eventos multitudinarios y pequeños conciertos. Todos estos cambios, del concierto al festival, o la edad y actitud ante los conciertos, en locales grandes o autogestionarios, pone de manifiesto que junto al cambio de formato hay un cambio también en las actitudes e intereses del público.

3.3. Las transformaciones del público: del disco a la canción (conocida)

41 Otra transformación es ampliamente reseñada: el paso del disco a la canción como unidad musical de escucha referencial. La gente ahora escucha canciones sueltas, se ha perdido el concepto del disco como narración completa y significativa. Los cambios tecnológicos son aducidos en muchos casos como una de las causas destacadas: el formato MP3 o Spotify se han implantado socialmente como modo de escucha predominante. En este proceso, la variable edad resulta fundamental: tal y como plantea Fouce (2009), las personas más jóvenes reclaman canciones sueltas y actuales, mientras los adultos recurren a discos completos. Se rompe el discurso integral que construía el álbum, que incluía elementos adicionales como portada, fotos, texto, y que propiciaba ir más allá, incluyendo el grupo y su contexto; en su lugar encontramos fragmentos musicales aislados y heterogéneos. Lo registrado coincide con el estudio cualitativo de la Universidad de La Rioja (Andrés, 2013).

42 Y programadores y músicos señalan algo más al respecto, que ya hemos apuntado anteriormente: se escuchan canciones, y se demandan especial‑ mente canciones “conocidas”, famosas, que se puedan cantar. A la gente les gusta le gusta cantar juntos/ as, y para eso tienen que ser canciones conocidas, nos apuntaba Zuriñe, militante independentista que regenta un pequeño bar en Bilbao: es lo más fácil. Se trata de la primacía de lo que Megías y Rodriguez (2003) denominan elementos indiferenciadores. Y si lo importante es que sean conocidas, independientemente del estilo, esto parece apuntar otro cambio en las formas de escucha: cuestiona la vigencia de las tribus, de los elementos diferenciadores, de la música como forma de identidad.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 17

3.3.1. La disolución de las tribus

– Y que la gente joven ha perdido el gusto. – Bueno, eso es una... También realmente nunca lo tuvieron... – Ha habido momentos en que tenía mejor gusto, más bagaje cultural, a nivel musical digamos. Ahora la gente consume rápido. Y mucho motivado por las redes sociales... – Ahora lo que hay, yo creo que la gran diferencia, es mucho acceso a la información, y una pérdida de algo que a la gente que le gustaba la música siempre ha sido, pues una de las razones, que era el investigar, conocer, compartir. Ahora todo está al alcance de todo el mundo, entonces... Y realmente las mezclas de estilos, tanto a nivel de producción, porque se han hecho así, porque la gente ya mezcla rap con electrónica, electrónica con hardcore, lo que sea. Pero a nivel de tribus urbanas sí que existe una especie de... – ¡Vacío! – No, existe una tribu urbana que escucha todo tipo de música. Entonces, ya no están delimitados. Por lo tanto, hay alguien que te puede pedir Nirvana y Paquirrín, en la misma sesión, y se quedan tan contentos... Cosa que antes era posiblemente, pues, impensable, ¿no? Pero posiblemente también lo es porque ahora todo el mundo tiene acceso a todas las canciones, y realmente, bueno, de Nirvana pues solamente conocen una y de David Guetta tres y ya está. O sea, no necesitan conocer más. Posiblemente ni sepan cómo son los Nirvana, ni les hayan visto en una foto, ni sepan quién les ha producido el disco, porque nunca han tenido un disco en sus manos. Es otra fórmula, yo no creo que, que el bagaje cultural, sinceramente... (Programadores musicales Sala Fever, entrevista personal, 08.10.2013)

43 Este fragmento del diálogo entre dos de los gestores de la sala Fever ilustra muy bien las transformaciones en el público que venimos relatando. Dos son las ideas principales que podemos extraer, y que han aparecido también en multitud de entrevistas.

44 La primera es lo que podríamos denominar el cambio en la norma social de consumo musical. La disponibilidad de la música en Internet, sumado a los errores estratégicos y “avaricia” de la propia industria discográfica, han permitido una amplísima disponibilidad de acceso a la música. Y ésta se organiza con las canciones como unidad, fragmentando y diluyendo el concepto de disco y su narrativa. E incluso la propia contextualización del grupo. La canción es la unidad básica y se agota en sí misma, conociendo poco más allá del nombre del grupo.

45 Pero lo que ocurre con la música no es, o era, un mero acto de consumo. El etnomusicólogo y antropólogo Blacking (2006) planteaba cómo ésta expresa solidaridad grupal, al tiempo que Pablo Vila (1996) señalaba su importancia y complejidad como interpeladora de identidades. Los subculturalistas, así mismo, mostraban cómo la música podía servir a los jóvenes para construir sus identidades de forma individual y colectiva, dando expresión –resolviendo mágicamente en el plano simbólico– las contradicciones estructurales. Los postsubculturalistas no negaban esta dimensión de construcción identitaria, sino que afirmaban que ésta tenía lugar principalmente mediante procesos de consumo más individualizados, en un “supermercado” cultural global, permitiendo trascender incluso las condiciones estructurales de origen.

46 Lo apuntado por nuestros entrevistados va un paso más allá, y cuestiona directamente la dimensión identitaria fuerte de los procesos de consumo musical. Porque la accesibilidad a la música, en formato canción, transforma de un modo profundo los modos sociales de relación con la música. En los 80 el acceso a la música era más

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 18

limitado, pero no dejaba de haberlo. Hemos mencionado esos espacios de comunicación social por los que tenía lugar una circulación e intercambios intensos: fanzines, revistas, pegatinas, pintadas, cómics, radios libres, las tiendas de discos, la circulación de casetes grabadas, los conciertos, el estilo... Elena López Aguirre nos hablaba de esa célula básica que era la maketa, alrededor de la cual se articulaban otros muchos agentes: La maketa tuvo muchos padrinos: las emisoras querían emitirlas, los pintores querían diseñarlas, los pocos estudios de grabación que había rejuvenecieron con ellas, los bares las vendían, la gente las comentaba, los nuevos sellos soñaban convertirlas en disco, los promotores organizaban conciertos al aire libre y llamaban a los técnicos de sonido que empezaban a comprarse equipo, mientras las tiendas de instrumentos florecían, las distribuidoras se gestaban en torno a una mesa, un coche desvencijado y mucha determinación. (Elena López Aguirre, música y escritora, entrevista personal, 24.02.2014)

47 “Compartir”. El acceso a la música estaba mediado e implicaba una red de relaciones sociales personales. En el mismo proceso se desarrollaba esa identidad, afectos, y gusto, conocimiento e interés musical. Un proceso rico en torno al soporte material del disco, maketa o casete grabada.

48 “Ahora todo está al alcance de todo el mundo”, apuntan en el diálogo los programadores de la Fever. La facilidad de acceso a la música a través de Internet ha individualizado la relación con la misma. En efecto, nunca es individual, y las propias redes sociales permiten foros y grupos de afinidad. Pero el acceso a la música se ha disociado de toda una serie de relaciones sociales que antes resultaban necesarias, y que en el proceso construían afectos, identidades, estilos, relaciones sociales, personales y simbólicas: con el bar, la tienda, el soporte material, la gente que sabía o tenía discos...

49 El lote se ha abierto, y con ello las identidades fuertes construidas en torno a la música se diluyen. En el acceso a la música, construcciones identitarias y socialidad no pasan necesariamente por el mismo proceso social, se han autonomizado. Y ello descarga a la música de las connotaciones afectivas o identitarias con las que se revertía en tal proceso social.

50 La pérdida de fuerza de las tribus y la mezcla e hibridación entre estilos y estéticas son argumentos muy recurrentes en los entrevistados. El estudio de Sergio Andrés (2013) habla de eclecticismo. El vacío o una tribu híbrida y generalizada, que no deja de ser lo mismo. Y en el mismo sentido puede interpretarse también el paso del concierto al festival: del grupo en exclusiva al formato que mezcla gente y grupos, de la identificación con el grupo a una fórmula que añade más ingredientes paralelos que la música.

3.3.2. Música de usar y tirar

51 El cambio y disociación en las formas sociales de acceso a la música la autonomiza, por tanto, de esas otras dimensiones. En gran manera, pues, la desvaloriza. Una formulación aparece de forma recurrente: la música como producto de usar y tirar, como producto más intrascendente, sin ese valor de identidad tribal anterior. Y ello facilita una mezcla, referida por casi todos, que ya no resulta dramática. Dentro de lo que es una sesión Gramola, que nosotros le llamamos, no hay un estilo definido. Aquí se pinchan las famosas, las que vosotros queráis. Pero se pincha Nirvana también... Y los Foo Fighters... Se pincha Kiss... Y luego reggaeton... […] Escuchan tantas cosas, y les parece todo tan bien... Lo que sí que ha muerto es el

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 19

sentimiento de pertenencia a una banda, o por gustos musicales. […] No lo viven como algo, como algo que crea su personalidad, y que esos artistas son un reflejo de lo que ellos realmente quieren ser, o por lo menos lo que ellos respetan en el mundo. Sino que les da igual.... Me gusta la canción ésta... Si no saben ni como son, no saben cómo es Kurt Cobain... Igual han visto un video... Yo creo que tienen una lista de reproducción en el Ipod y se acabó. Una lista de reproducción en la que van de una cosa a otra... […] No ven la música como algo con lo que combatir, y a lo que pertenecer. O no lo ven, yo creo que no lo ven tan así. O ya no tanto. O hay menos de los que lo ven así. O sea, ahora mismo es mucho más desinhibido todo. O sea, para nosotros antes la música era una seña de identidad; si te gustaba una cosa o te gustaba otra pues ya presuponías que alguien era de una manera o de otra, o por lo menos tenía unas virtudes u otras. Que es algo que cuando eres teenager marca. […] Éstos yo creo que pasan de esa movida, o sea, lo disfrutan, pero lo disfrutan como algo de usar y tirar. (Programadores musicales Sala Fever, entrevista personal, 08.10.2013)

52 Adrián, uno de los responsables de la sala Fever, que es sociólogo, expresa una reflexión presente en numerosas entrevistas, desde las distintas escenas y perspectivas: la pérdida de peso, el carácter postmoderno de la relación actual con la música. Como David Hesmondhalgh (2005) ya advertía, la juventud mainstream estaría más inclinada a entrar y salir en la piscina de la música popular, que a sumergirse en ella.

53 Habremos de volver sobre estas reflexiones, que apuntan fenómenos de fondo. Pero nos queda por recoger otra de las ideas, que en este caso parecía generar discrepancia entre los responsables de la sala Fever, y que también ha aparecido entre muchos de los entrevistados: la pérdida de bagaje musical.

3.3.3. ¡Vacío! ¿Pérdida de cultura musical?

54 “La gente joven ha perdido el gusto”, sentenciaba contundente uno de los responsables de la sala Fever, y pionero de las sesiones de música electrónica en distintos clubs del entorno de Bilbao. Su compañero Adrián, más joven, en la treintena, y uno de los precursores en este caso de las sesiones de música alternativa en el club Bullit de Bilbao La Vieja, matizaba que quizás realmente tampoco antes lo tenían tanto. Lo que habría cambiado, como hemos desarrollado anteriormente, serían las formas sociales de acceso a la música, con lo que ello implicaba.

55 Con todo, la queja acerca de la falta de cultura musical ha sido recurrente entre los entrevistados. La acusación se extiende en algunos casos hacia los grandes locales, que no enseñan, y “dan a la gente lo que quiere” (Dj Mister, entrevista personal, 22.09.2013). Algo que los jóvenes del grupo Belako matizan: ¿lo que la gente quiere, o lo que la industria musical quiere? En todo caso, el papel de la industria musical en la conformación de los gustos de la audiencia ha dado pie a una larga discusión, que ha oscilado entre la perspectiva de la masa pasiva estupidizada de Adorno, o por el contrario, la de una audiencia activa productora de significados (Negus, 1996). La sala Fever ha resultado en algunos casos referenciada como ejemplo de hacer las cosas bien por algunos, y también de ir a peor, hacia formatos más comerciales. Ellos mismos lo asumen sin grandes tapujos: Nosotros hemos hecho una labor, que a veces no sé si ha servido para algo, pero bueno, ahí está. Nosotros nos hemos divertido mucho... Yo lo digo últimamente, nosotros hemos machacado al público a base de poner la música que se nos ponía en los cojones... La gente venía, y disfrutaba y se lo pasaba muy bien, y éramos un club mítico. […] Nosotros éramos muy alternativos, éramos tan alternativos que nos

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 20

permitíamos unos lujos que quizás no estaban adaptados realmente al gusto general. Pero claro, llega un momento en que eso se acaba. Osea, sobre todo llega la crisis y tienes.. y encima surge mucha más competencia... Y ya ni tienes la capacidad económica para seguir apostando, hay otra competencia que le da a la gente lo que quiere en bandeja. Por lo tanto tú, que hacías una labor te quedas fuera… Osea, porque aunque tu quieras hacerla es que no puedes hacerla, porque no puedes pagarla. (Programadores musicales Sala Fever, entrevista personal, 08.10.2013)

56 Pero también hay una importante reflexión, principalmente en boca de quienes superan los 30, que apunta a que no se ha producido una transmisión del patrimonio musical anterior, especialmente en el caso del rock. También incluso desde el mundo de la electrónica, por parte del veterano Dj Javi de House: Cuando era adolescente, teníamos unas ganas de conocer estilos musicales que era digno de mención, y en estos tiempos creo que eso no existe, en parte... la culpa de las emisoras tradicionales... en parte los que somos un poco mayores que no comunicamos con la generación que viene detrás... (Javi de House, músico Dj, entrevista personal, 08.11.2013)

57 Xabi Erkizia introduce un factor que considera importante en la falta de transmisión y formación: la desaparición de la labor de la crítica musical.

58 La gente está aprendiendo, matizan especialmente desde el mundo de la electrónica. El joven Dj Iker Undersound reconoce que en su trayectoria ellos mismos también han ido aprendiendo desde una electrónica más simplista y comercial inicial; pero que tal evolución les ha acarreado críticas entre sus seguidores.

59 Pero las críticas, y las apelaciones a la formación, apuntan sobre todo a otro agente: los medios y en especial las emisoras musicales públicas. El aumento en influencia de los media es un fenómeno general que recogían los postsubculturalistas. Pero tal influencia no es la dominación absoluta de Adorno, como de forma perspicaz mostraban los subulturalistas o los trabajos sobre la cultura popular. La influencia está modulada por la existencia de procesos comunitarios de comunicación social, que la relativizan y modulan, permitiendo leer de forma ‘oblicua’ y compartida lo que viene de ellos y de lo hegemónico. Y en ese terreno, especialmente en el espacio social, también parecen registrarse cambios.

3.4. El cierre espacial

60 Las crecientes dificultades para realizar conciertos son ampliamente seña‑ ladas, especialmente en locales pequeños como bares. Había sido ésta en los 80 una escena potente, implicando la resignificación y apropiación de pequeñas tabernas de los centros urbanos. Siempre en precario equilibrio frente al endurecimiento de las normativas municipales en cuanto a limitaciones de horarios y ruidos.

61 A día de hoy, los entrevistados reconocen que los conciertos en los bares prácticamente han desaparecido. En algunos casos han sido sustituidos por Djs; pero son los menos, la lista de reproducción –a menudo reflejando la radio‑fórmula– es lo que se habría generalizado. El_Txef_A, que además de Dj participa en la organización de eventos – usualmente en la calle– con la promotora Fiakun, señala que el “exceso” normativo dificulta sobremanera la realización de sesiones tanto en bares como en la calle.

62 El cierre espacial afectaría en algunos casos incluso a los gaztetxes, apuntan los raveros de More Jaia, también condicionados por las restricciones municipales. En estos casos,

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 21

se sumaría otra dimensión: la progresiva diver‑ sificación en la actividad de los gaztetxes, incluyendo en su programación otros eventos como talleres orientados a diferentes edades y colectivos, había reducido el disponible para programar conciertos.

63 Desde el grupo Oliba Gorriak señalan otras dos dimensiones de cierre espacial: las dificultades de los grupos pequeños para acceder a espacios culturales como los Kafe Antzokia (y su política de cobro de entradas en algunos casos), así como las restricciones presupuestarias que comienzan a aplicar los Ayuntamientos en la situación de crisis económica.

64 Pero el espacio social tiene una dimensión más allá del espacio puramente físico al que se aplican las restricciones normativas. Posee también una dimensión simbólica y relacional. Ese conjunto que Manuel Delgado (2011) denomina “la calle” en contraposición con el concepto, a su juicio ideológicamente neoliberal, de “espacio público”. La “pérdida de la vida en la calle” ha aparecido reiteradamente en varias entrevistas. Esta dimensión de debilitamiento de los espacios sociales y comunitarios de comunicación social, de avance en la individualización y privatización de los comportamientos sociales, afecta también directamente a los cambios en las formas de acceso y relación con la música y los media, más allá de la indudable influencia de los cambios tecnológicos.

4. Closing Time: The decline of the social significance of music?

65 Los cambios tecnológicos, especialmente Internet, han modificado los modos sociales de acceso a la música, basculando hacia aquellos más individuales que no requieren de redes personales de relaciones sociales. Esto es, anteriormente el acceso a la música suponía al tiempo el establecimiento de relaciones personales: con la gente de la tienda de discos, de los bares, los grupos de pares que intercambiaban discos o grabaciones... En el caso extremo, la construcción identitaria de grupos sociales en torno a la música, de las subculturas a las neotribus.

66 Con las nuevas tecnologías, es cierto, el intercambio sigue teniendo lugar en ellas. Pero no se trata de una relación con la misma intensidad ni dimensión afectiva que las redes de relaciones personales anteriores, cuando no resulta una exploración individual por la red. Es, en muchos casos, ese juego de picar y probar que describen los postsubculturalistas, pero cuyas consecuencias van incluso más allá.

67 Si las subculturas salieron tambaleándose de los 80, cuando una de las fuentes de su “doble articulación”, la cultura obrera autónoma, se desvanecía tras las derrotas políticas y los cambios estructurales del capitalismo, las (neo)tribus ahora se diluyen por la individualización y devaluación derivada de la lógica capitalista de los productos culturales. Y con ellas la música como elemento fuerte de construcción de identidad. Es lo que los entrevistados plantean de forma explícita como “disolución de las tribus”, o de modo secundario como “pérdida de la cultura de la calle”.

68 Una segunda idea aparece también reiteradamente: el declive del disco, y la narrativa que constituye, como célula musical básica en favor de la canción aislada, enlazada en la lista de reproducción del iPod. Los Djs del hip‑hop y la electrónica trituran además, al tiempo que amplían, la propias canciones enlazándolas en el conjunto de una sesión.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 22

69 Y una tercera idea adicional es apuntada: lo importante, además, es que la canción sea conocida. Así, paradójicamente, a pesar del inmenso archivo colectivo que es Internet, las facilidades para la difusión de las creaciones no revierte necesariamente en incidencia. Pareciera que siguen sonando los mismos. Y los mismos son incluso los de hace 20, 30 o 40 años, o sus recreaciones actuales. La queja amarga de Simon Reynolds (2013) acerca de la “retromanía”, la adicción del pop a su propio pasado, parece confirmar la desvalorización de la música. Los programadores, desde locales de ocio a contraculturales, subrayaban que para los jóvenes importa sobre todo que la canción sea conocida, no tanto el género, y que se ha “perdido” la curiosidad por explorar. Y “conocida” significa bien un clásico, bien un producto de moda en los media.

70 Una cuarta idea final hemos registrado: “lo importante es la juerga” (Joseba, organizador del festival reivindicativo Kalera Rock, entrevista personal, 26.03.2014). De la compra del disco, el movimiento –y la industria– se desplaza a los conciertos, y de éstos a los festivales, que permiten pasar por distintos grupos al modo de una lista de reproducción, y que constituyen espacios privilegiados de las relaciones sociales y personales. Las fiestas que ofrecen algo más que música, son también un formato claramente al alza frente a los conciertos. En los festivales, fiestas y discotecas, la música es el complemento de la juerga antes que elemento principal. Incluso parece estar sucediendo en los festivales reivindicativos.

71 En tal sentido, no importa tanto el género, o que la música (la canción) sea mala o buena, sino que sea conocida: su función es la de compartir, o en una formulación repetida en varias entrevistas, de usar y tirar. La socialidad ya no constituye un requisito de entrada, o un elemento de diferenciación como ocurría con las identidades subculturales o las neotribus. Ahora es el resultado buscado, con la música como elemento secundario, es decir, como elemento indiferenciador, que permite participar en común.

72 Consecuencia de estas observaciones, ésta es la tesis interpretativa que proponemos: el ‘declive’ lo que indicaría es un cambio en el significado social de la música, desde su carácter de elemento de construcción identitaria hacia una socialidad comunicativa. Para bailar y pasarlo bien, o para cantar juntos. O como un elemento más del collage comunicativo que se construye a través de las nuevas tecnologías, en la que un fragmento de canción puede ir junto a, y al mismo nivel, que cualquier otro fragmento de frase de político o personaje público. Sin una trascendencia especial. Y para todo ello lo importante es que el elemento sea conocido; no se trata de diferenciación, distinción y construcción de identidades grupales, sino de un lenguaje compartido. Así, los temas clásicos constituyen un recurso perfecto, lo mismo da que sean los Ramones o Abba. También las canciones de moda en las emisoras musicales.

73 Se trata de una forma de consumo musical eminentemente postmoderna y coincide parcialmente con los cambios y procesos apuntados por los postsubculturalistas: ese juego fluido de picar y mezclar, usar y tirar, con un peso importante de los media y las mercancías culturales translocales. Pero con una importante diferencia respecto a éstos/estos: la música ya no es un elemento tan importante en la construcción de proyectos de identidad, incluso aunque sean individualizados y fragmentados. Ahora la finalidad principal es simplemente la socialidad y la comunicación: un medio para compartir, cantar, bailar y divertirse juntos.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 23

BIBLIOGRAFÍA

Alonso, Luis Enrique; Conde, Fernando (1994), La Historia del consumo en España. Una aproximación a sus orígenes y primer desarrollo. Madrid: Debate.

Álvarez Monzoncillo, José María; Calvi, Juan (2015), “Music Consumption in Spain: From Analogue to Digital in the Shaping of Music”, International Journal of Music Business Research, 4(2), 27‑46.

Amezaga, Josu (1995), Herri kultura: Euskal Kultura eta Kultura popularrak. Leioa: UPV‑EHU.

Andrés, Sergio (2013), Del cassette al Spotify: universitarios, hábitos e identidades musicales. Universidad de La Rioja.

Azkarraga, Joseba (2011), “Identitatea aro globalean. Euskal begiratu bat”, in Pedro Ibarra; Mercè Cortina i Oriol (comps.), Recuperando la radicalidad: un encuentro en torno al análisis político crítico. Barcelona: Betiko Fundazioa, 113‑145.

Bennett, Andy (2011), “The Post‑subcultural Turn: Some Reflections 10 years on”, Journal of Youth Studies, 14(5), 493‑506.

Bennett, Andy; Kahn‑Harris, Keith (comps.) (2004), After Subculture. Critical Studies in Contemporary Youth Culture. London: Palgrave.

Blacking, John (2006), ¿Hay música en el hombre? Madrid: Alianza.

Blackmann, Shane (2005), “Youth Subcultural Theory: A Critical Engagement with the Concept, its Origins and Politics, from the Chicago School to Postmodernism”, Journal of Youth Studies, 8(1), 1‑20.

Bourdieu, Pierre (2001), Contrafuegos 2. Por un movimiento social europeo. Barcelona: Anagrama.

Castells, Manuel (2009), Comunicación y poder. Madrid: Alianza.

Delgado, Manuel (2011), El espacio público como ideología. Madrid: La Catarata.

Feixa, Carles (1998), De jóvenes, bandas y tribus. Barcelona: Ariel.

Feixa, Carles; Nofre, Jordi (2012), “Culturas juveniles”, Sociopedia.isa, DOI:10.1177/205 684601291.

Fouce, Héctor (2009), Prácticas emergentes y nuevas tecnologías: el caso de la música digital en España. S.l.: Fundación Alternativas.

Frith, Simon (1999), “La constitución de la música rock como industria transnacional”, in Luis Puig; Jenaro Talens (comps.), Las culturas del rock. Valencia: Pre‑textos, 12‑30.

Gabilondo, Joseba (2009), “Towards a Postmodern History of Basque Poetry: On Orality and Performance (From bertsopaperak of the Carlist Wars to Radical Rock and the Poetry of K. Uribe)”, EGAN, 1‑47.

García Canclini, Néstor; Cruces, Francisco; Urteaga, Maritza (comps.) (2012), Jóvenes, culturas urbanas y redes digitales. Barcelona: Editorial Ariel/ Fundación Telefónica.

Griffin, Christine Elizabeth (2010), “The Trouble with Class: Researching Youth, Class and Culture beyond the ‘Birmingham School’”, Journal of Youth Studies, 14(3), 245‑259.

Guerra, Paula (2010), A instável leveza do rock. Génese, dinâmica e consolidação do rock alternativo em Portugal. Volumes: 1, 2 e 3. Tesis doctoral en Socíologia presentada a la Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 24

Guerra, Paula (2013), “Punk, ação e contradição em Portugal. Uma aproximação às culturas juvenis contemporâneas”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 102, 111‑134.

Hall, Stuart; Jefferson, Tony (comps.) (2006), Resistance through Rituals: Youth Subcultures in Post‑War Britain. London/New York: Routledge.

Harvey, David (1998), La condición de la posmodernidad. Investigación sobre los orígenes del cambio cultural. Buenos Aires: Amorrortu Editores.

Hebdige, Dick (2004), Subcultura. El significado del estilo. Barcelona: Paidós.

Hesmondhalgh, David (2005), “Subcultures, Scens or Tribes? None of the Above”, Journal of Youth Studies, 8(1), 21‑40.

Jameson, Fredric (1998), Teoría de la postmodernidad. Madrid: Trotta.

Larrinaga, Josu (2014), Ttakun eta scratch: Euskal pop musikaren hotsak. Tesis doctoral presentada a la Universidad del País Vasco/ Euskal Herriko Unibertsitatea (UPV‑EHU).

Martín‑Barbero, Jesús (1993), De los medios a las mediaciones. Comunicación, cultura y hegemonía. México: GG Mass media.

Megías, Ignacio; Rodríguez, Elena (2003), Jóvenes entre sonidos. Hábitos, gustos y refe‑ rentes musicales. Madrid: INJUVE.

Muggleton, David (2010), “From Classlessness to Clubculture. A Geneaology of Post‑War British Youth Cultural Analysis”, Young, 12(2), 205‑19.

Negus, Keith (1996), Popular Music in Theory: An Introduction. Cambridge: Polity Press.

Observatorio Vasco de la Cultura (2015), Informe sectorial. Industria del disco. Artes e industrial culturales 2013. Vitoria‑Gasteiz: Servicio Central de Publicaciones del Gobierno Vasco.

Reynolds, Simon (2013), Retromanía. La adicción del pop a su propio pasado. Buenos Aires: Caja Negra.

Shildrick, Tracy; MacDonald, Robert (2006), “In Defence of Subculture: Young People, Leisure and Social Divisions”, Journal of Youth Studies, 9(2), 125‑40.

Thornton, Sarah (1995), Club Cultures: Music, Media and Subcultural Capital. Cambridge: Polity.

Vila, Pablo (1996), Identidades narrativas y música. Una primera propuesta para entender sus relaciones. Revista Transcultural de Música, 2. Consultado a 25.11.2015, em http:// www.sibetrans.com/trans/articulo/288/identidades‑narrativas‑y‑musica‑una‑primera‑ propuesta‑para‑entender‑sus‑relaciones.

Yúdice, George (2002), El recurso de la cultura. Usos de la cultura en la era global. Barcelona: Gedisa.

Zallo, Ramón (2011), “Civilización y vida social. Paradojas de la cultura digital”, Revista TELOS (Cuadernos de Comunicación e Innovación), 88, Julio‑Septiembre.

NOTAS

1. “Paraleloki, Interneten eta plataforma digitalen gailuak batuta, erraza da disko bat grabatu eta disko bat egitea, baita zabaldu eta ezagutzera emateko ahalegina ere. Baina horrek eskaintza handitzen duenez, zailagoa da dagoen guztiaren artean nabarmentzea. Lehen diskoetxeek egiten zuten kriba hori desagertu da, onerako eta txarrerako.”

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 25

2. Conferencia “Producción y difusión de músicas no convencionales: estrategias para la segunda década del siglo XXI”. Jornadas de gestión y producción cultural ArtBITE. UPV/EHU, Leioa, octubre de 2011. 3. “Kontzertuetara joaten direnen portzentai txiki batek arriskatzen du talde berriak deskubritzeko. Eta hori bitxia da, batez ere, orain Internet bidez aurrez zer aurkituko dugun egiaztatzeko (eta horren arabera, eskaintza zabalaren barruan hobeto aukeratzeko) aukera anitzak ditugulako. Ez, lehen bezala. Lehen Internet gabe, ia itsu‑itsuan joaten ginen kontzertuak ikustera zer aurkituko genuen jakin gabe.” 4. Squat, espacios okupados desde los 80, autogestionados por las asambleas de jóvenes de pueblos o barrios. Algunos legalizados, e incluso reconvertidos en potentes centros culturales con acuerdo municipal. Unos más recientes, otros con una dilatada trayectoria. 5. Locales surgidos desde iniciativas populares vinculadas a la lengua vasca, combinando actividades como espacios de fiesta, gastronómicos y de conciertos, lo que facilita su viabilidad económica (no exenta de subvenciones públicas).

RESÚMENES

¿Nos encontramos ante un declive del significado social de la música? Por un lado las innovaciones tecnológicas, especialmente la digitalización, modifican las formas sociales de acceso a la música, con un progresivo aumento de disposiciones más individuales que no requieren redes personales cara a cara –las cuales potenciaban la construcción identitaria alrededor de la música. Por otra parte, la lógica del mercado cultural global, del usar y tirar, impacta en la música, disminuyendo su capacidad de proveer significado social e identidad. Como resultado, planteamos que el “declive” se refiere a un cambio en el significado social de la música, pasando de ser un elemento de construcción identitaria hacia uno de socialidad comunicativa. Hoy en día su principal función es la de compartir, proveyendo un lenguaje común para la socialidad, donde las neotribus se disuelven.

Are we witnessing a decline in the social significance of music? On one hand, technological innovations, especially digitalization, have changed social forms of accessing music, with the increasing importance of individual modes that do not require the face‑to‑face personal networks that had previously enabled social groups to construct their identities around music. On the other hand, the global cultural market logic of pick and mix and use and discard has had an impact on music, making it difficult to provide social meaning and identity. Based on these observations, this article proposes that the ‘decline’ is, in fact, a change in the social meaning of music, from an element involved in the construction of identity to an element of communicative sociality. Its main function today is that of sharing, providing a common language for sociality where neo‑tribes are dissolving.

Sommes‑nous confrontés à un déclin de la signification sociale de la musique? D’une part les innovations technologiques, en particulier la digitalisation, ont modifié les habitudes sociales d’accès à la musique, par le truchement d’une croissance progressive d’attitudes plus individualistes qui ne requièrent pas de réseaux person‑ nels “face à face” – qui potentialisaient la construction identitaire autour de la musique. D’autre part, la logique du marché culturel mondial, d’utiliser et de jeter, a un impact sur la musique en diminuant sa capacité de générer

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 26

une signification sociale et identitaire. En conclusion, nous avançons que le “déclin” est dû à un changement de la signification sociale de la musique, qui cesse d’être un élément de construction identitaire pour devenir un élément de socialité communicative. De nos jours, sa principale fonction est celle de partager, en fournissant un langage commun à la société, dans laquelle les néo‑tribus se dissolvent.

ÍNDICE

Keywords: globalization, music and identity, music consumption, sociology of music, technological evolution Mots-clés: consommation musical, évolution technologique, globalisation, musique et identité, sociologie de la musique Palavras-chave: consumo musical, evolução tecnológica, globalização, música e identidade, sociologia da música

AUTORES

ION ANDONI DEL AMO

Universidad del País Vasco (UPV/EHU) Grupo de investigación NOR Kalebarria 7, 3.º C, 48200 Durango (Bizkaia), Espanha [email protected]

ARKAITZ LETAMENDIA

Universidad del País Vasco (UPV/EHU) Grupo de investigación Parte Hartuz Ibarrangoa 5, 48993 Getxo (Bizkaia), Espanha [email protected]

JASON DIAUX

Universidad del País Vasco (UPV/EHU) Departamento de Sociologia II C/Badaia 29, Esc. Izq. 4.º B, 010012 Vitoria‑Gasteiz (Araba), Espanha Contacto: [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 27

Estigma, experimentação e risco: A questão do álcool e das drogas na cena punk Stigma, Experimentation and Risk: Alcohol and Drugs in the Punk Scene Stigmate, essai et risque: La question de l’alcool et des drogues dans la scène punk

Paula Guerra, Tânia Moreira e Augusto Santos Silva

NOTA DO EDITOR

Artigo recebido a 30.03.2015 Aprovado para publicação a 17.01.2016

Introdução

1 Este artigo decorre de uma investigação levada a cabo nos últimos três anos em torno das manifestações punk na sociedade portuguesa entre 1977 e 20151 e no quadro da discussão alargada das culturas juvenis na modernidade tardia ocidental. A partir do seu surgimento mediático nos finais dos anos 1970, o punk transformou‑se num fenómeno global com traduções locais mais ou menos expressivas: o punk não é só inglês ou americano, mas é também português – e é disso que trata o referido projeto de investigação (Guerra, 2014). Ele recorreu a três abordagens fundamentais (Silva e Guerra, 2015). A primeira foi a recolha tão sistemática quanto possível das fontes documentais do punk e suas manifestações: os discos e outros registos fonográficos (quer o seu conteúdo musical, quer a sua forma gráfica), os cartazes, programas e outros instrumentos de divulgação, os fanzines e outros boletins e meios impressos, as notícias e relatos, e mais recentemente, os registos vídeo. A segunda abordagem baseia‑se nos testemunhos, recolhidos através de entrevistas em profundidade (num

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 28

total de 214 e algumas revestindo a forma de histórias de vida) a pessoas de algum modo envolvidas na cena punk, atualmente ou em fases anteriores de percurso. Pessoas que são ou foram músicos, a título amador, semiprofissional ou profissional, promotores, editores, agentes, divulgadores, críticos, consumidores, fãs, colecionadores, e que trazem com os seus relatos uma reflexão sobre a própria experiência, assim como a interpretação da cena ou do mundo a partir dela. A terceira abordagem, finalmente, consubstancia‑se na observação de contextos e acontecimentos contemporâneos que possam ser relacionados com o punk, com destaque para os festivais e outros eventos musicais de menor dimensão, e através da sua observação direta, de registos visuais e de inquéritos por questionário aos respetivos espectadores.

2 O objetivo, neste artigo, é a consideração das representações veiculadas por atores e canções2 em torno das drogas e do álcool, e a partir de três temas fundamentais: experimentação, risco e estigma. Experimentação de novos consumos numa sociedade fechada à diferença por parte de um conjunto de jovens que queriam a diferença; riscos como consequências físicas e psicológicas negativas sobre o próprio e os seus semelhantes (Beck, 1992; Giddens, 1991); e estigma como risco de exclusão, de etiquetagem com um rótulo socialmente desvalorizado, excludente e marginal (Becker, 1985). É das escolhas de risco dos atores estudados que tratam estes discursos sobre droga e álcool no punk português. Tal não equivale a associar as drogas ou o álcool ao punk, poderia ser outra (sub)cultura, outra cena, mas tão‑só a mostrar a sua importância nas perceções acerca desta cena. Daqui advém ainda o conceito de drogas utilizado ao longo deste artigo: trata‑se não de um conceito farmacológico ou derivado do seu uso, mas de uma concetualização focada nas dimensões social e culturalmente construídas das drogas e do álcool, bem como das reações societais que suscitam.

3 Assim, para a abordagem das representações acerca das drogas (e álcool), relevamos as 214 entrevistas em profundidade3 realizadas aos atores que consideram pertencer ou ter pertencido, sob diversos papéis, à cena punk; e as 264 canções que eles assumiram como mais significativas de tal cena. Mais de dois terços dos entrevistados pertencem à cena como músicos: 45% como músicos em atividade, 24% como músicos retirados. Quase metade tem experiência de intermediação, por via sobretudo da edição fonográfica: 34% ativos, 13% retirados. 24% afirmam-se fãs, consumidores informados e fiéis. A combinação de papéis é a norma para dois quintos, com destaque para os que são, ao mesmo tempo, músicos e mediadores (20%) e ex‑músicos e fãs (10%). O conjunto é marcadamente masculino, só 14% sendo mulheres; adulto, com a idade média de 40 anos; urbano, residindo 44% na Grande Lisboa, 16% no Grande Porto e 9% na Península de Setúbal; escolarizado, tendo 41% instrução superior e 40% instrução secundária; oriundo preferencialmente das classes médias e superiores, com 24% de profissionais intelectuais e científicos, 22% de profissionais liberais e 13% de profissionais técnicos e de enquadramento intermédio (Abreu et al., 2016).

4 O conceito de cena cultural desenvolve‑se a partir dos conceitos de campo, tal como proposto por Pierre Bourdieu, e de mundo da arte, tal como proposto por Howard S. Becker (cf. Bennett e Peterson, 2004: 3). De acordo com vários autores, este conceito permite uma boa articulação entre as dimensões local e global das dinâmicas contemporâneas. Ele surge no âmbito das teorias apelidadas de post subcultural studies, para designar determinados clusters de atividades socioculturais, as quais se agregam pela sua localização (normalmente um bairro, uma cidade ou área urbana) e/ou pelo tipo de produção cultural (por exemplo, um estilo de música) (Bennett e Peterson, 2004:

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 29

223; Straw, 1991). O trabalho de Straw, em 1991, foi seminal. Ele construiu uma análise sofisticada da interação da música com o gosto e a identidade, explorando a ideia de translocalismo, isto é, que clusters de agentes musicais geograficamente dispersos podem envolver-se em práticas culturais coletivas graças à capacidade que a música tem de transcender as barreiras físicas. A partir de então, o conceito tem vindo a ser cada vez mais utilizado em análises sobre a produção, performance e receção da música popular, envolvendo coordenadas de tempo e espaço. É neste âmbito, e como alternativa ao mecanicismo do conceito de subcultura e ao anacronismo do conceito de movimento, que designamos o nosso objeto como a cena punk portuguesa (Guerra e Quintela, 2015; Guerra e Silva, 2015; Guerra e Bennett, 2015; Guerra, 2014).

1. Rock, punk e “drogas”

5 O álcool e as substâncias psicotrópicas de venda ilegal (às quais reservaremos, para aproveitar sociologicamente o uso comum, o termo de drogas), constituem eixos referenciais da cultura punk, tal como acontece com outras culturas musicais no pós‑guerra (Brake, 1985; Savage, 2002). A investigação que serve de base a este artigo rapidamente constatou este facto, qualquer que fosse o ponto de observação privilegiado.

6 Dos 214 protagonistas da cena punk nacional entrevistados para o projeto, entre dezembro de 2012 e outubro de 2014, 168, ou seja, 79%, abordam o tema. Fazem‑no mulheres e homens, de qualquer nível de instrução. E a circunstância de ser entre os mais novos que a abordagem é proporcionalmente menos generalizada indica que este é um aspeto crítico da experiência de vida, sendo mais fácil falar dele quando pode ser recolocado na perspetiva de uma história pessoal e/ou geracional já em parte transcorrida. Indicia, ainda, uma grande permeabilidade das histórias individuais aos contextos vivenciais (Quadro 1).

QUADRO 1 – Presença do tema do álcool e das drogas nos depoimentos dos entrevistados do projeto KISMIF, segundo o género, a idade e o nível de instrução (em %)

Feminino 80,0 Género Masculino 78,3

15-30 anos 65,8

Idade 31-45 anos 83,5

>45 anos 77,6

Ensino básico 83,3

Nível de instrução Ensino secundário 74,4

Ensino superior 80,9

Total 78,5

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 30

7 Quando consideramos as canções das bandas punk, também notamos logo a presença regular do tema. Tendo solicitado a cada um/a dos 214 entrevistados a indicação de até 10 canções que considerasse serem influentes na cena, e obtendo assim um conjunto de 143 canções assinaladas por mais de 1% dos entrevistados, encontrámos referências diretas e explícitas a álcool e/ou drogas em mais de um quinto (22,3%) das 130 canções cujas letras foi possível transcrever. E, se fizermos um exercício semelhante para os álbuns, verificaremos que 6% das 113 capas e contracapas dos álbuns mais citados incluem símbolos conotando consumo de álcool com drogas (Silva e Guerra, 2015: 151).

8 Sem surpresa. É sabida a associação da cultura rock à experimentação e consumo de tais substâncias. O que se inscreve na mais longa tradição dita boémia dos círculos artísticos (que remonta, na versão moderna, ao século XIX), mas apresenta também caraterísticas novas. Entre estas encontra-se a sua integração num mais amplo posicionamento anticonvencional por parte de juventudes urbanas, desafiando explicitamente normas sociais; assim como a orientação para o experimentalismo, forçando os limites do conhecimento consciente e desbravando novos caminhos de experiência sensorial, fundando o sentido da vida numa aceleração do tempo, na vivência intensa, rápida e tanto quanto possível sem barreiras de si próprio e do mundo. O elevado consumo de tabaco e álcool, o contacto com alucinogénios e outros facilitadores de “paraísos artificiais”, a banalização do recurso às chamadas drogas leves, em particular o haxixe, e a experimentação mais ou menos continuada de “drogas duras”, como a cocaína e a heroína, bem como de substâncias sintéticas, não começam nos meios juvenis dos anos 1960 e estão longe de ser exclusivos da beat generation, dos hippies ou do e seus derivados. Mas assumem, desde então, uma expressão própria, quer em dimensão, quer em significado ideológico e cultural.

9 Por um lado, fazem parte do estilo de vida “subcultural”, nos termos de Dick Hebdige (2002 [1979]): a definição de uma identidade grupal e de uma diferenciação face à envolvente social com base na exibição mais ou menos ostensiva de comportamentos, disposições corporais, roupas, adereços e consumos que essa envolvente tende a julgar como problemáticos; e justificando essa exibição por referência a valores ao mesmo tempo hedonistas e subversivos (Hodkinson e Deicke, 2009). Por outro lado, acentuam a dimensão contracultural das representações e práticas juvenis: questionando as formas estabelecidas de conhecer, falar e agir (contrapondo‑lhes o potencial heurístico e poiético do uso de substâncias psicoativas, juntamente com outros quadros normativos, como a vida em comunidade ou a liberdade sexual); e revertendo os termos e efeitos da classificação social do desvio comportamental (Becker, 1985), afirmando‑o positivamente, como um desafio. Finalmente, são um dos eixos narrativos de autorrepresentação do universo cultural do rock, ligando o fulgor e a autenticidade artística às vidas sem limites nem duração, transformando as histórias trágicas de Jimmy Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Sid Vicious e tantos outros em “lendas urbanas” (Inglis, 2007), a que os devotados seguidores podiam ir buscar, senão exemplo, inspiração.

10 O punk, tal como emergiu no Reino Unido e nos Estados Unidos da segunda metade da década de 1970, em contraponto ao rock então mainstream, e que rapidamente irradiou como grande movimento internacional, filia‑se nesta inscrição subcultural e contracultural. Mas acrescenta traços específicos. Primeiro, radicaliza‑a, quer na rutura com a indústria musical estabelecida, quer na insistência no lado marginal e subterrâneo, na autoprodução (do‑it‑yourself) e no viver rápida e intensamente.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 31

Segundo, é contemporâneo das duas grandes problematizações do fim do século sobre o sentido das “drogas”: a consciencialização dos riscos contidos no consumo descontrolado (postos em evidência pela sucessão de mortes por overdose, desde os anos 70); e a irrupção, nos anos 80, da sida. Terceiro, é um dos terrenos culturais e artísticos onde mais longe se levará a reflexão coletiva sobre aquele sentido, dando origem, nos anos 90, a uma subcorrente, o straight edge, cujo programa é exatamente a libertação pessoal dos abusos, seja do álcool, da droga, do sexo ou, eventualmente, do consumo de carne (cf. Haenfler, 2006).

11 A situação portuguesa apresenta uma coloração parcialmente própria: a afirmação do punk, nos últimos anos de 70 e sobretudo ao longo da década de 80, coincide com a sucessão temporal de duas importantes mudanças.

12 Uma é, na sequência da Revolução de 1974, a escalada no contacto com o mundo das substâncias psicoativas, de um lado mais amplo (sobretudo por causa da chegada de muitos milhares que haviam vivido em África, como colonos ou soldados, mais habituados à presença forte e tolerada de coisas como a marijuana); e, do outro lado, menos subterrâneo (por causa do novo “clima”, mais liberal, face a comportamentos anteriormente tidos como desviantes e perigosos). O discurso público tende a substituir a atitude catastrofista adotada pelo por uma abordagem dita mais social, atualizando a estratégia de ação por referência à Europa comunitária e alicerçando‑a duplamente, com uma intervenção médico‑psicológica orientada para a redução da procura e uma intervenção repressivo‑criminal orientada para a redução da oferta (Poiares, 1995; Costa, 1998; Valentim, 2000; Cunha, 2002; Marques, 2008; Agra, 2009).

13 A outra mudança ocorre nos circuitos de comercialização e na representação social da economia dos consumos. Ali, com a integração de Portugal nas rotas internacionais e o peso crescente da heroína: algo que poderíamos designar, caricaturando um pouco, como a “chegada” das “drogas duras”. Aqui, com a progressiva associação do contacto com as drogas à desestruturação socioterritorial, como produto e indicador de destruição e marginalização de vidas: o foco desloca‑se para as realidades da toxicodependência e a figura do junkie, e para o tráfico e a figura do dealer. A “droga” é menos associada a usos recreativos, correntes em meios sociais relativamente favorecidos em capital económico e escolar, e cada vez mais vinculada à experiência subjetiva e às caraterísticas sociais de grupos marginais, famílias desestruturadas, bairros degradados e “problemáticos”, em suma, da periferia urbana. A “questão da droga” estabiliza, portanto, quer nas representações sociais, quer no discurso e na intervenção política, institucional e profissional, sobre um tripé: questão social, ligada às margens, à erosão dos laços sociais e à degradação dos territórios; questão de saúde pública, ligada diretamente aos riscos de consumo excessivo e/ou desprotegido e, indiretamente, à propagação de doenças como as hepatites, a tuberculose ou a sida; e questão policial e legal, então enunciada como uma dupla delinquência convergente, do consumidor e do traficante (Chaves, 1999; Cunha, 2002; Dias, 2007; Fernandes e Silva, 2009; Fernandes e Ramos, 2010).

14 Assim, nos anos 80 do século XX, o punk aparece muito associado a um novo contexto de circulação, consumo e enfrentamento da droga como questão social. Existiu, assim, uma coincidência temporal importante entre fortalecimento das manifestações punk (bandas, concertos, locais de paragem, seguidores, cidades) e adensamento das práticas e representações sociais em torno das drogas, nomeadamente da heroína. E isso foi particularmente evidente nas metrópoles de Lisboa e do Porto, onde as práticas de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 32

experimentação e risco das substâncias psicoativas se viram acompanhadas e reforçadas pela omnipresença cultural tradicional do álcool.

2. Uma questão “da cena”

15 Ora, os protagonistas da cena punk portuguesa que entrevistámos para o nosso projeto, ativos nela agora ou nas várias décadas que já a marcaram, de 1977 à atualidade, tematizam a questão do álcool e das drogas como um elemento relevante dessa cena e do seu envolvimento nela. Já vimos que 79% falam do assunto nos seus depoimentos. Pois centremo‑nos neles, que significam 168 dos 214 entrevistados. Primeira pergunta: de quem falam? Quem convocam como sujeitos, quando delimitam os consumos?

16 O Quadro 2 mostra como se distribuem as quatro possibilidades: o consumo de álcool e drogas é um assunto de outros definidos em geral, relativamente afastados do sujeito que fala; é assunto de outros que estão próximos, que são da zona, do bairro, da esfera de conhecimento pessoal; é assunto do grupo a que se pertence; ou é mesmo um assunto pessoal, que toca ou tocou diretamente o sujeito como tal.

QUADRO 2 – Consumidores de álcool e drogas, segundo os entrevistados que abordam o tema (em %)4

Eu: o/a entrevistado/a 37,5

Nós: o grupo de pares e amigos 30,4

Os outros da esfera mais próxima, da zona de ação ou conhecimento 41,7

Os outros da esfera mais afastada, remetidos para o conjunto da cena 45,8

Sem referência 1,8

17 Sobressai a proximidade do tema. Para mais de um terço, o álcool e as drogas são ou foram um assunto seu, pessoal e direto. Para quase um terço, um assunto seu porque do seu grupo. Para dois quintos, um assunto seu porque da sua zona, do seu conhecimento. E, quando procuramos caraterizar o tom geral de abordagem do tema, o que coerentemente predomina é a atitude compreensiva, de quem aceita ou entende o recurso, mais ou menos duradouro, mais ou menos controlado, às substâncias. Tema próximo, “nosso”, que há de ter tocado imediata ou obliquamente muitos, senão todos; e em relação ao qual poucos poderão reclamar inocência, o que quer que isso signifique neste caso. Por contraste, é residual a condenação formal de tal prática; e mesmo o lamento pelas consequências negativas (que, como veremos mais à frente, pode ser muito agudo) é estatisticamente pouco frequente. A compreensão é proporcionalmente mais frequente entre os homens, os mais novos e os menos escolarizados (Quadro 3).

18 A assunção do uso de substâncias psicoativas como questão crítica da cena, assim como a predominância do registo compreensivo na sua abordagem estabelecem bem a diferença com a “droga” como estereótipo e estigma social. Isto é, com um dos elementos, senão o elemento essencial da opinião pública sobre o punk e os punks e da generalidade das reações à sua emergência, nas cidades, ao longo dos anos 80.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 33

QUADRO 3 – Tom prevalecente nos depoimentos sobre o consumo de álcool e drogas dos entrevistados que abordam o tema, segundo o género, a idade e o nível de instrução (% em linha)

Compreensão Condenação Lamento Não identificável Total

Feminino 50,0 4,2 20,8 25,0 100 Género Masculino 60,4 9,7 16,0 13,9 100

15-30 88,0 - - 12,0 100

Idade 31-45 57,1 12,1 15,4 15,4 100

>45 48,1 7,7 26,9 17,3 100

Básica 66,7 6,7 20,0 6,7 100

Instrução Secundária 64,1 4,7 15,6 15,6 100

Superior 53,9 12,4 16,9 16,9 100

Total 58,9 8,9 16,7 15,5 100

19 Referindo-se a essa década, o entrevistado a que daremos, como a todos os outros, um nome fictício – Leopoldo, com 45 anos feitos no momento da entrevista, morador em Lisboa e programador informático, tendo como habilitações o ensino secundário – sintetiza o que muitos outros assinalaram: Na altura, eu acho que aquilo era visto como ‘éramos os drogados’, ‘isto é pessoal da droga’. Eu acho que a grande maioria das pessoas era assim que via. Quando via o pessoal, assim todo junto, a passar na rua, ou qualquer coisa, acho que a generalidade das pessoas tinha é ‘isto é droga, estão perdidos. Filhos de Satanás’ e coisas do género.

20 Como todos os estereótipos, este vivia da caricatura, sobrepunha o preconceito ao conhecimento, extrapolava imediatamente do particular para o geral e estendia o atributo, como estigma, a uma classe inteira de indivíduos. A “droga” seria o traço definidor de uma difusa massa de pessoas e formas, como os jovens consumidores de música moderna, as “estrelas” que seguiam e alimentavam, o tempo (a noite) e o espaço (a discoteca, o bar, o festival) que faziam seus. “Droga” e “drogados”. Como todos os processos de classificação social, operava por dispositivos de diferenciação e aproximação, o mais forte dos quais foi, por muito tempo (com efeitos ainda hoje), a exclusão e até valorização do tabaco e do álcool face às “drogas” propriamente ditas (Carvalho, 2007). A sociologia já descreveu a mecânica social da estigmatização, que, atribuindo e nomeando, constrói e impõe uma categoria negativa e nela reproduz os sujeitos, assim criando a realidade que ostraciza, o desvio que deplora, os outsiders que marginaliza e o pânico moral que gera (Goffman, 1963; Becker, 1985; Cohen, 2002).

21 Alberto, hoje5 com 46 anos, programador musical no Porto e com o ensino secundário, era, na década de 80, um jovem punk de Torre de Moncorvo. Explica assim porque saiu: Aquilo começou a ficar muito limitativo para mim. Por outro lado, há sempre a sensação de vingança perante Moncorvo porque era sempre o drogado, era isto e

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 34

era aquilo. Chegou a hora, viajei muito, nunca me droguei muito e nessa altura não me drogava sequer… Drogo‑me mais agora do que me drogava nessa altura. E foi uma chapada de luva branca para muita gente porque eu era um gajo que… Sei lá, uma filha namorar comigo era um terror… Era um gajo considerado maluco.

22 Outras ilustrações claras da lógica do estereótipo e do estigma podem ser encontradas na elisão do que, na oposição do punk à cultura hippie e rock mainstream, levou ao próprio questionamento dos psicotrópicos, ou do surgimento, nos anos 90, no seu interior, da bandeira straight edge de uma vida livre de dependências.

23 Seria, todavia, um erro grosseiro reduzir a “droga” à esfera das representações e classificações sociais. O uso para experimentação, recreio ou reforço energético de substâncias psicoativas, assim como a sua celebração como atributo e sinal de liberdade e provocação, e o correlativo risco da dependência, de ficar “agarrado” ao álcool ou à droga, fazem parte integrante do universo artístico, cultural e comportamental do punk, como de outras variantes e decorrências da música pop, rock e eletrónica (cf. Carvalho, 2007).6

24 Várias canções assinaladas pelos entrevistados como referenciais na cena punk portuguesa exprimem‑no bem. Podem fazê‑lo no registo satírico, de que é ilustração bastante, mas longe de única, o hino ao álcool concebido na forma de um credo pelos Peste & Sida:7 Creio no álcool, poderoso criador da formidável carraspana Creio na aguardente, sua filha concebida por graça do alambique

Nasceu da puríssima cana derramada e sedimentada sobre um casco E surgiu ao terceiro dia graciosa e triunfante na garrafa Garrafas destas hão-de vir a nossas casas alegrar farras sem fim E dar descanso a pobres, ricos, novos, velhos, sejam santos ou diabos

25 Ou podem fazê‑lo no registo proclamatório, do desafio assumido e enunciado, de quem vê nesse uso do que a ordem social teme e repudia como ilícito e perigoso mais um recurso para fugir à norma e passar os limites. Uma banda próxima da cena punk, e cuja influência sobre esta é reconhecida por alguns dos nossos entrevistados, os Stratus, di- lo com clareza, na canção Um chuto no quarto, de 1982: Caveiras, drogas e correntes Fica tudo na maior Vive a vida diferente Não queiras ganhar bolor

Fumando o teu cachimbo preto Vai tudo às nuvens e tu também Estás num mundo obsoleto Também és um filho da mãe

Um chuto no quarto Parto logo o penico Subo para o palco Bem speedado.

26 O consumo partilhado de substâncias psicoativas, capazes de provocar alterações de perceção, consciência, humor e energia, suspendendo ou invertendo temporariamente a ordem das coisas e sacudindo as convenções, pode ser praticado e representado como componente essencial da sociabilidade grupal de natureza hedonista – pela “curtição”. Na sua canção de 1999, Festa tribal, os Mata‑Ratos evocam bem a atmosfera:

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 35

Ouve-se ao longe O rufar dos tambores A noite chama‑nos Para a festa selvagem

Acendem as chamas Aparecem calores A dança do sexo No rufar dos tambores

Sou um animal Na festa tribal

Ouve-se ao longe O rufar dos tambores A noite chama-nos Para a festa selvagem

Escorre o álcool Esquecem-se os dias Nas veias no sangue Elevam-se as iras

Sou um animal Na festa tribal

27 Esta presença do álcool e das drogas no centro da cena punk é corroborada pelos depoimentos dos entrevistados a propósito da sua própria experiência de consumo. A cerveja e o vinho, no que toca ao álcool, a heroína e o cannabis, os speeds e a cocaína, no que respeita às drogas, são as substâncias mais correntes, pelo menos a avaliar pelas referências feitas pelos 168 entrevistados que abordam o assunto (Quadro 4).

28 Não se apresenta sem problemas a indagação sobre o consumo de álcool e drogas. Os investigadores devem estar atentos a duas situações que podem alterar significativamente a qualidade da informação recolhida por entrevista: o respondente considera embaraçosa uma pergunta direta sobre consumos de substâncias que são objeto de censura moral ou proibição legal e evita‑a, ou esconde ou relativiza um comportamento “desviante”; ou, pelo contrário, exagera, por afirmação pessoal, provocação ou conformidade com um certo papel “marginal” ou disruptivo associado à cena a que se sente vinculado. O guião da entrevista não continha nenhuma pergunta pessoal e direta, mas incentivava à reflexão sobre a questão, procurando depois os investigadores identificar, nessa reflexão, possíveis informações sobre consumos.

QUADRO 4 – Tipos de álcool e drogas referidos pelos entrevistados que abordam o tema (em %)8

Tipos de % de entrevistados que % de entrevistados que Tipos de drogas álcool os referem os referem

Cerveja 13,1 Heroína (“cavalo”) 28,6

Cannabis (“haxixe”/”ganza”, Vinho 6,6 25,0 “marijuana”/”erva”)

Aguardente 1,8 Speeds (dinintel) 18,5

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 36

Whiskey 1,8 Cocaína 10,1

Cachaça 1,2 Cola 4,8

Gin 1,2 Calmantes (“drunfos”, rohypnol) 3,6

Misturas 1,2 Ácidos 3,0

Ecstasy (MDMA) 1,8 Vodka 1,2 Cristal (MA) 1,2

29 Tendo isto em mente, vale a pena olhar para os Quadros 5 e 6, que sistematizam essas informações. A partir do primeiro, verificar-se-á que, em 55% dos 168 entrevistados que abordam o tema do álcool e das drogas, é possível sondar a existência ou não de consumo de álcool; o mesmo se passa, em relação às drogas, com 58%. Ora, em cada um dos subgrupos assim constituídos, a larguíssima maioria dos respondentes assume o consumo (presente e/ou passado) de ambos os tipos, em proporções que chegam quase aos quatros quintos para o álcool e quase aos dois terços para as drogas.

QUADRO 5 – Assunção do consumo de álcool e drogas pelos entrevistados que abordam o tema

Consumo de álcool Consumo de drogas

N.º % sobre 168 % sobre 92 N.º % sobre 168 % sobre 97

Consome/iu 72 42,9 78,3 63 37,5 64,9

Não consome/iu 20 11,9 21,7 34 20,2 35,1

Sem informação 76 45,2 71 42,3 100 100 Total 168 100 168 100

30 Por sua vez, o Quadro 6 apresenta as combinações de consumos, mostrando que o padrão mais habitual é a acumulação de álcool e drogas – um padrão que, aliás, carateriza 43 do total de 168 respondentes, quer dizer, um em cada quatro.

QUADRO 6 – Assunção de combinações de consumo de álcool e drogas pelos entrevistados que abordam o tema (% em coluna)

Drogas

Álcool Consome/iu Não consome/iu Sem dados Total (N)

Consome/iu 68,3 32,4 25,4 42,9 (72)

Não consome/iu - 47,1 5,6 11,9 (20)

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 37

Sem dados 31,8 20,6 69,0 45,2 (76)

Total 100 100 100 100 (168) (N) (63) (34) (71) (168)

31 Outro dado assinalável é a frequência com que os entrevistados assumem a regularidade do consumo. 40 dos 97 entrevistados sobre os quais dispomos de informação quanto ao consumo de drogas assumem que o fazem ou fizeram regularmente, o que representa 41%, mais de dois quintos (17% dizem que o consumo é ou era ocasional, e os restantes ou não se referem ao consumo ou não se referem à sua frequência). 40 dos 92 entrevistados sobre os quais dispomos de informação quanto ao consumo de álcool assumem que o fazem ou fizeram regularmente, o que representa 43%, 13% dizendo que o fazem ou fizeram só ocasionalmente. E, finalmente, quando ventilámos os depoimentos sobre consumos por género, idade e nível de instrução, o dado que mais sobressaiu foram os 100% de maiores de 45 anos acerca dos quais dispomos de informação que declararam consumir ou ter consumido drogas e/ou álcool.

3. Consumos

32 Sumariemos: a) as drogas não são um elemento exclusivo da cena punk, nem sequer é a intensidade da sua presença que distingue estas de outras (sub)culturas juvenis contemporâneas; b) não obstante, constituem um ingrediente básico da constituição e da representação da cena, aos olhos dos seus protagonistas; e portanto c) a “droga”, reenviando certamente para um estereótipo social, conota também uma prática efetiva de consumo e uma abordagem crítica, quer no plano criativo, quer no estilo de vida.

33 As entrevistas, realizadas no quadro de uma investigação sociológica, foram motivo para que muitos protagonistas, ativos ou retirados, procedessem, em interação com um/a estranho/a à escuta, à reconstrução e reapreciação reflexiva do seu próprio percurso, pessoal, geracional e grupal e da sua própria experiência, passada e presente. Os discursos dos atores do punk português são, aliás, incontornáveis para a plena compreensão da sua emergência, dinâmica e impacto.

34 Os consumos de substâncias psicoativas foram logicamente um dos tópicos dessa reflexão e reinterpretação que fizeram cruzar histórias pessoais e coletivas. Porque é que o recurso a álcool e drogas se tornou tão banal e foi vivido com tanta paixão pelos geralmente jovens cultores do punk e, em muitos casos, acabou por acompanhar o seu crescimento e definir um traço persistente da sua visão e comportamento no mundo? Porque se tornou, não só um motivo artístico e cultural – um tópico de que falar, na música, nos concertos, nos fanzines, nos grupos – como também um ingrediente, às vezes indispensável, dos modos de ser e agir?

35 Os entrevistados falam abundantemente sobre isto e seria fastidioso reproduzir aqui todas as falas. Mas podemos identificar os argumentos principais, que rodam em torno de um ou vários eixos.

36 O primeiro é o contexto de socialização, primária, na família, mas sobretudo secundária, no grupo de pares e, em particular, no ambiente de diversão urbana e

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 38

noturna. Teresa, uma designer de Lisboa agora com 49 anos, enfatiza muito aquele aspeto: “A minha mãe tinha amigos que davam na erva, amigos!”. Eurico, comprador de moda, 42 anos, lembra: “Toda a gente sabia que a droga fazia parte da noite”. Podia ser o preço da integração no grupo, como diz Samuel, 47 anos, cameraman: “se não consumisses drogas os grupos não se abriam; havia um grupo de pessoas, se querias entrar no grupo ou davas nela ou não entravas”.

37 O segundo eixo acentua a acessibilidade das drogas: primeiro, das drogas ditas leves, em particular nos anos 70 e com destaque, como já vimos, para o período subsequente à revolução democrática; depois, com a progressiva integração de Portugal nos circuitos internacionais de tráfico, o acesso à heroína. A conjuntura de emergência do punk é marcada por estas duas novas acessibilidades, assim como pela transformação, que também ficou atrás descrita, da economia moral das “drogas”. Vários entrevistados ligam esta “facilidade de acesso” à inconsciência dos efeitos nocivos do abuso, ou a sua romantização com as “lendas urbanas” de que fala Inglis (2007), as histórias heroicas e trágicas de ícones como Morrison ou Sid Vicious. Note-se a propósito que, quando aqueles que tematizam a centralidade do álcool e das drogas na cena punk nacional procuram situar temporalmente a conjuntura em que ela foi mais intensa ou visível, distribuem equilibradamente a influência do álcool pelas décadas de 1980 a 2000, mas tendem a concentrar as drogas sobretudo nos anos 80 (Quadro 7).

QUADRO 7 – As conjunturas em que foi mais determinante o consumo de álcool e drogas na cena punk portuguesa, segundo os entrevistados que abordam o tema (em %)9

CONJUNTURAS CONSUMO DE ÁLCOOL CONSUMO DE DROGAS

Anos 70 4,8 5,7

Anos 80 32,7 39,6

Anos 90 33,9 32,8

Anos 2000 28,6 21,9

38 O já citado Eurico, agora com 42 anos, sintetiza bem o argumento da acessibilidade: Quer dizer, está ao virar da esquina não é? E num grupo de amigos é muito fácil o comportamento ser idêntico para todos, passar de uns para outros por fazer parte de círculos. […] Em Portugal muito antes do que as pessoas querem admitir, no contexto da Guerra Colonial já existia e de que maneira, a partir dos anos 60 e dos anos 70 sempre teve uma presença de alguma maneira evidente nas discotecas e nas boîtes. Quem frequentava as discotecas – e a parte violenta e dura da noite – acabava por conviver com ela de alguma forma. Era uma questão de oferecer ou de querer experimentar sem saber muito bem que consequências é que mais tarde poderiam aparecer. A informação era quase nenhuma. Para quem apanhou esse início logo a seguir à Revolução e um contexto muito duro – muito deprimido socialmente – com um país muito a braços com uma crise económica. […] E essa ausência de informação era propícia a tudo porque ninguém imaginava que o amigo do lado pudesse morrer de uma overdose com a mesma facilidade que, enfim, acontecia lá fora.

39 O terceiro eixo de argumentação salienta os efeitos das substâncias psicoativas sobre a energia das pessoas. O “subo para o palco/ bem speedado”, da canção dos Stratus que já

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 39

citámos, quer dizer, o uso de estimulantes da atenção, da vigília e da resistência física, não só para as performances das bandas como para a ação dos públicos nos concertos – e que também pode ter que ver, como está bem documentado, com períodos de maior exigência, nos estudos ou no trabalho. Estímulo, incentivo: recreação, energia, performance, estudo e trabalho. “Não se faz festa [quer dizer, animação, ruído e movimento] com garrafas de água nem com saladas”, diz o jovem Gonçalo, de Viana do Castelo, um web designer de 26 anos. E a lisboeta Verónica, agora com 55 anos, licenciada, filósofa, astróloga e música, vai buscar o exemplo dos Romanos, que “tomavam o veneno aos bocadinhos para o caso de serem envenenados não morrerem”, para fazer a defesa do uso controlado de psicotrópicos, porque potenciam a liberdade e a autonomia pessoal. Nos anos 80, concede, muitos não conseguiram “ir ao submundo e voltar”. Mas: Quem dá a volta e vive é porque tem uma capacidade de transmutar os efeitos secundários dos venenos. E isso significa que são lombas, no sentido benéfico, mobilizadoras da evolução das pessoas, dos seres e das coisas. Não é à toa que algumas pessoas, nas quais eu me incluo sem pudor absolutamente algum, que vêm desde aí, são altíssimos mobilizadores da liberdade de espírito e da assunção do poder pessoal, da abertura de horizontes, da utilização de alternativas e etc. para outras gerações que, se calhar, não tendo sido sujeitas a esse grau tão intenso de contraste, não tiveram se calhar a tarimba do que é que são os grandes saltos. Digamos, nós somos peritos em grandes saltos. E altas centrais de transmutação das trevas em luz, e essas coisas todas. Portanto, sim, foi uma enorme escola, como as escolas iniciáticas.

40 O quarto eixo de argumentação, estando próximo deste terceiro, coloca porém o foco na cultura da experimentação. As drogas deveriam ser enquadradas no processo de descoberta, assimilação da novidade, pulsão do risco, e também desafio às regras convencionais e às gerações mais velhas. Um processo relativamente comum na adolescência e na transição para a vida adulta, inscrevendo-se na lógica de moratória social, suspensão do destino e adiamento das escolhas, inerente à juventude nas sociedades modernas – e que o rock teria levado a um grau superior de expressão. “Sim, experimentámos”, sentencia Damásio, 39 anos, agora chefe de cozinha em Londres. “O punk rock é liberdade, liberdade total”, recorda Emanuel, 41 anos, motorista; “é para quebrar regras, estás a ver?”, proclama Alberto, 46 anos. “Um gajo quando é novo sente-se um bocado indestrutível” – e quase conseguimos sentir a nostalgia destas palavras de Samuel, 47 anos, como nas do mesmo Alberto: “Vivia-se muito no sonho”.

41 Finalmente, o quinto eixo de argumentação é o que lida com a dependência, distinguindo‑a explícita ou implicitamente do uso recreativo e/ou esporádico, ou do contacto experimental e mais ou menos ritual, iniciático, para o crescimento pessoal, a integração tribal e o conhecimento do mundo. Nos seus termos, o álcool e as drogas tornam‑se parte de uma encruzilhada existencial (que é um dos temas fundamentais da criação punk, cf. Silva e Guerra, 2015), a condição sine qua non para manter um nível mínimo de contacto social (“não consigo lidar com as pessoas sóbrio a partir de uma certa hora da noite”, confessa Alberto), ou para gerir consigo próprio ou no seu grupo um estado de desesperança, descrença, desespero. Não surpreenderá que esse seja tópico recorrente nas canções, várias das quais fazem da dependência do álcool e das “drogas” um epítome das encruzilhadas existenciais em que os sujeitos se encontram.

42 A canção Já estou farto, dos Kú de Judas, que um em cada nove dos entrevistados do projeto KISMIF considera uma das 10 mais influentes na cena punk portuguesa, di‑lo cristalinamente:

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 40

Já estou farto Com um copo de vinho E um charro na mão Ainda tem um bocadinho Ainda tem a solução Já estou farto

43 O mesmo álbum As vozes da raiva, de 1996, inclui outra canção de impasse e desespero. E mais uma vez aparece a “droga”, como ingrediente básico de tal estado: Passo os dias desesperado Nesta terra imunda e porca Quero sair por qualquer lado Mas ninguém me abre a porta

Sniff, sniff bostik

Sinto o corpo todo a ferver Tudo explode dentro de mim Sinto a cabeça a derreter Tenho que ir até ao fim

Toda a noite a flashar à toa Sem saber para onde ir Pelas ruas de Lisboa Todo roto e a cair.

44 11 anos depois, em 2007, os Motornoise lançam a canção Podre de bêbedo. O tema é o mesmo: a dependência é um círculo vicioso, causa e efeito, assim como sintoma, de uma condição problemática, que será preciso, mas tão difícil, romper: “Mais uma noite, igual a tantas outras/ Perdi-me, droguei-me, embebedei-me outra vez […]”.

4. Drogas e drogas

45 A história que o punk português conta acerca de si próprio – nas canções, nos fanzines, nos depoimentos dos protagonistas – é de uma cena “fora dos trilhos” (Silva e Guerra, 2015), nas margens da sociedade e da indústria musical e contrapondo‑lhes uma ética e um fazer artístico baseados na autoprodução (do‑it‑yourself) e no constante desafio às instituições. O “excesso” cabe bem nessa história. A linguagem direta, grosseira, a excentricidade ostensivamente afirmada no espaço público, pelas roupas, adereços, cabelos e incisões corporais, a mensagem radical, particularmente dura com políticos, militares e polícias, além de religiosos e patrões, e a promessa de convulsões e anarquias, tudo isso faz valer, ideológica e artisticamente, o excesso, o que transborda, porque o mainstream social e musical não consegue domesticálo. A “droga”, como estereótipo estruturante da representação deste potencial de “desvio” encarnado nos jovens punks, como estigma social transformado pelo punk em seu recurso identitário, contracultural; e as “drogas”, o álcool e as substâncias psicoativas ilegais, como componentes e indutores de experiências de superação dos limites, como fautores de “universos paralelos” e “paraísos artificiais”, como estimulantes energéticos, cognitivos e poiéticos e emblemas tribais e geracionais – encaixam logicamente nesse “excesso”, que potenciam. Como resume Camila, agora com 44 anos, dona de uma loja de roupa em Lisboa e com o ensino secundário, “a droga, o álcool, o excesso, acho que o excesso faz parte de tudo isso”.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 41

46 “Faz parte” por causa desse seu quadro normativo e ideológico; mas também em virtude da configuração propriamente artística e cultural – pela aceleração e a intensificação que esta exige, “tocar alto e viver depressa”, comprimindo o tempo, numa vertigem de música e consumos. O circuito underground – a formação da banda, a gravação das demos, os concertos dados ou assistidos, os círculos de fãs, as lojas de roupas, discos e adereços, etc. – multiplica a escala em que o acesso se torna mais fácil e necessário, até para combater o cansaço e aumentar episodicamente a capacidade física.

47 Por conseguinte, o ponto crítico não é bem o uso de drogas, mas sim de que drogas e de que forma, com que intensidade. Norberto, que, acabada a licenciatura, trabalha no Porto em conservação e restauro, enuncia, aos 45 anos, com clareza a questão, a partir da perspetiva dominante na cena, aquela que, como já vimos, prefere compreender a condenar o envolvimento maciço nas drogas: A heroína é anti punk. Completamente. Agora, tudo o resto… Agora, acho que a droga faz parte destes movimentos… Punk sem speed não tinha sido o que é… Não só não lhes chegava a energia toda que eles tinham, ainda tinham que mamar mais um bocado… Mas acho que faz parte, e acho que faz parte da natureza do homem procurar coisas que te retirem um bocado da realidade. Todas as sociedades o têm e vão ter. Por isso, uma sociedade sem substâncias psicotrópicas não existe.

48 No universo dos nossos entrevistados, esta é a verdadeira questão. Não o álcool, não o tabaco, não o haxixe ou a marijuana, mas sim a heroína, o “cavalo” que “agarra”, que leva à dependência e destrói. Neste ponto reproduzem – como acontece noutras cenas juvenis, por exemplo no transe psicadélico (Carvalho, 2007) – o estereótipo social que faz do tipo de substância consumida o ponto crítico do consumo. “Drogas para uso recreacional [sic] até ok; toxicodependência não”, resume Miguel, o editor de música lisboeta, com 37 anos de idade.

49 Para muitos, a história da década de 1980 é a da progressão da heroína e dos seus efeitos devastadores. E vários dos que, estando hoje nos 40‑50 anos, conheceram por dentro essa década, não poupam nas palavras. “Depois entrou a coisa da heroína, começou a haver problemas com droga, os punks começaram a agarrar‑se todos à droga, como costuma ser” (Frederico, 49 anos, tradutor); “na altura não sabiam, passavam de uns para os outros, passado um tempo um grupinho já estava perdido […]; foi tipo tábua rasa” (Joana, 49 anos, artista plástica); “começaram a acontecer coisas más, começaram a desaparecer amigos nossos, começaram a falecer e as coisas começaram a correr mesmo mal” (Virgínia, 48 anos, atriz e professora); “em meados dos anos 80, finais… começa‑se a ver mais desgraça nesse aspeto, muitos a perderem‑se, overdoses, muitos com problemas devido à droga, como roubarem, entrarem por esses caminhos, a serem presos, a apanharem SIDA” (Gabriel, 42 anos, professor); “montes dos nossos melhores foram‑se com a heroína” (Gusmão, 50 anos, pequeno empresário); “a partir de meados dos anos 80 até aos 90, tive amigos a morrer todas as semanas com drogas duras” (Álvaro, 56 anos, músico e compositor).

50 A penetração das tais drogas duras, o percurso que, começando nas drogas ditas leves e no uso recreativo pode conduzir ao consumo incontrolado e desprotegido e à dependência, os múltiplos efeitos possíveis, desde as debilidades físicas permanentes e a vulnerabilidade à hepatite ou à sida até à morte por overdose, suicídio ou doença, desde a desintegração grupal e o isolamento pessoal até aos comportamentos antissociais e à delinquência, tudo isso coloca radicalmente em questão a coesão e

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 42

sobrevivência da cena punk. Alguns testemunhos autobiográficos são bastante impressionantes. Ouça‑se, por exemplo, Fausto, o web designer que tem agora 43 anos: Começa‑se sempre pelos charros. No meu caso, foi muito rápido para a drunfaria [sic], depois snifar cola, e depois vêm as drogas todas, especialmente a heroína. E aí há um fascínio, quando se é muito puto. Os pais enchem‑nos a cabeça com aquelas histórias do terror, que as pessoas morrem e isso tudo e há o fascínio pelo perigo. E o punk tem muitas histórias, a começar por aquele puto estúpido, o Sid Vicious. Muitos deles estão mortos, muitos deles estão com SIDA… Em 1990, um ano marcante para mim, morreram 20 e tal amigos de overdose. […] As pessoas até olham e dizem ‘ah, estás porreiro, mais ou menos funcional’ mas estamos todos lixados! Eu incluo‑me nesse grupo, estamos todos lixados da cabeça! Não é nada fácil, estamos com muitas brancas, cheios de paranoias e frustrações. Perdemos anos e anos da nossa vida!

51 E Valentino, de 45 anos, vivendo agora, como tradutor, na Alemanha: Chegou uma altura em que eu me tornei num criminoso. Tornei‑me exatamente naquilo que nunca queria ser. Mas pronto, já paguei a minha divida à sociedade. Até assaltos à mão armada fiz, chavalo. Mas andava completamente perdido. Já não era eu, já era outra pessoa transformada. Só que depois não era só o cavalo. Era cavalo, eram drunfos, era álcool, eram misturas. Tu estavas completamente noutro mundo, estás a ver? Completamente perdido, até a minha família roubei. Tu imagina, se até à tua própria família perdes o respeito e roubas, imagina o que é que não fazes aos outros. Só na Portela roubei meio mundo. […]. Mais tarde, depois, passei‑me completamente, o meu velho sendo militar tinha uma coleção de armas grande, peguei numa das armas […]. Usei a arma muitas vezes mas nunca meti balas na arma porque mais ou menos sabia de antemão que se tu usas uma arma é muito simples acabares com a vida de alguém. E isso eu nunca estive preparado para fazer. […] Portanto ainda havia um resíduo cá, no subconsciente de, vá lá, sabes que andavas a fazer mal mas não querias o mal total.

52 Logo em 1979, na canção Jorge morreu (que cinco dos nossos entrevistados considerarão ser das mais influentes na cena punk nacional), os UHF cantam o fim trágico de um amigo, que, “como tu e eu”, “andava por aí, queimando o cigarro, queimando os nervos”. A referência era indireta, mas suficientemente explícita, como se pode ver pela sequência dos versos (e como nos confirmou, em entrevista, um dos membros da banda): Ele andava por aí Como tu e eu andamos Queimando o cigarro Queimando os nervos

Nevoeiro no cérebro Num bailado de fantasmas Entre o frio e zelo E a importância dos notáveis

Jorge morreu Jorge morreu

Ele tinha a tua cara Ele tinha a minha cara Ele era ninguém Que a vida desafiava

Jorge um dia passou À frente da ventania

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 43

Entoando o refrão E uma velha melodia Jorge morreu Jorge morreu

Onde estás, onde estás? Quem te matou, quem te matou?

Deixou a cidade Subiu à montanha Entrando na paisagem Onde um homem se amanha

Jorge parou Os ponteiros da vida Mergulhando os olhos No mar de água fria

Jorge morreu Jorge morreu

53 Várias bandas darão subsequentemente o passo lógico de incorporar a “droga” e o seu tráfico como um dos alvos críticos. Os Vómito veem aí os mecanismos de reprodução da exclusão social (Putos da rua, 1988): Vivem em bairros bastante degradados Só miúdos pobres e mal alimentados Que futuro será o da nossa sociedade? Há putos com fome vagueando pela cidade

Putos da rua que vendem cola Putos da rua que não vão à escola

Quando crescem tornam‑se Vagabundos e ladrões Passam as suas vidas Dentro e fora das prisões

Todos os tratam Com agressividade Nunca mais vão ter Um dia de liberdade

Putos da rua que vendem cola Putos da rua que não vão à escola.

54 Um ano depois, no seu registo desconstrutivista, os Peste & Sida cantarão Chuta cavalo, uma história de vida típica de bairro problemático, que acaba mal: Está de volta ao bairro No meio da loucura Já anda nas ruas à procura de aventura Vestiu-se de lavadinho e foi a casa da avó Porque tinha saudades, saudades do pó.

Já tentou matá‑la, afogá‑la numa pinga Empenhou as pratas e comprou uma seringa Já tem o panfleto, custou‑lhe uma milena

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 44

Foi para casa dar um caldo mais a sua pequena.

Chuta cavalo, chuta cavalo, chuta cavalo, chuta! Chuta cavalo, chuta cavalo, chuta cavalo e morrerás Oé, oé, oé, oó.

Esta é uma história do bairro onde vivo Há não sei quantos anos era divertido Agora partiram cada um para seu lado Foram à procura daquele pó danado Uns foram na Famel às partes [?] para o estica Roubaram duas velhas lá para as portas de Benfica Com o horror no rosto no WC deitados Mesmo à beira da morte para mal dos seus pecados.

Chuta cavalo, chuta cavalo, chuta cavalo, chuta! Chuta cavalo, chuta cavalo, chuta cavalo e morrerás Oé, oé, oé, oó.

55 E, em 1999, os Trinta e Um lançam o álbum O cavalo mata (um dos 10 mais influentes na cena, para um décimo dos nossos entrevistados), cuja canção homónima lamenta uma overdose fatal: Uma gringa espetada na veia Numa escada à chuva deitado no chão Foi assim que te encontraram Morto na rua pela droga, irmão.

O cavalo roubou‑te a vida E a mim um grande amigo E não há nada que eu possa fazer Para voltar a estar contigo.

Uma overdose foi o teu fim Sempre disseste que ia ser assim Julgava que falavas da boca para fora Até chegar essa maldita hora

O cavalo mata!

5. Múltiplas narrativas

56 O sentido, a intensidade e os efeitos do recurso a substâncias psicoativas constituem um tópico maior das representações que os protagonistas da cena punk portuguesa fazem sobre ela e os seus percursos nela. Este tópico aproxima‑os uns dos outros, por várias razões: o estereótipo que os associa à droga porque suspeitos de comportamentos “desviantes” e assim os estigmatiza; a centralidade do tema na história da música moderna e, em particular, no grande tronco do rock e suas ramificações; a aura projetada sobre o meio artístico, a desenvoltura boémia que ele cultiva e a experimentação transgressiva que ostenta; o simbolismo disruptivo, como um dos mais radicais desafios ao consenso normativo; e a ligação emblemática à fisicalidade da criação e do estilo de vida apreciados na cena punk, com o seu caraterístico enfoque no corpo, na performance e no encontro multitudinário e festivo dos corpos.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 45

57 Entretanto, a história das drogas na cultura musical juvenil é isso mesmo, uma história. Ela começou por questionar classificações longamente estabelecidas, designadamente as que remetiam para a esfera lícita e até grandiosa do tabaco e do álcool, e excluíam como perigosas e interditas outras substâncias de efeitos não muito diversos, como o haxixe, ou toleravam em certos meios e tempos específicos (como as diversões ocasionais em círculos abastados) o que execravam no espaço público, nos jovens e nas classes e territórios “problemáticos”. Ela celebrou poeticamente as promessas de libertação e realização pessoal, de novas experiências sensoriais e cognitivas, de superação do real através de “paraísos artificiais”, associadas à experimentação de drogas. Ela avançou por interseções crescentes com a expansão do tráfico internacional de drogas ilícitas muito lucrativas e a intensificação do consumo de substâncias como a heroína e dos padrões de habituação e dependência. Ela viu‑se confrontada com os factos pesados da degradação física e relacional, dos excessos e suas consequências, das overdoses, das tuberculoses, hepatites e sida, ao mesmo tempo que sujeita a uma reação política, judicial e médica oscilando entre a estigmatização e a perseguição, de um lado, e o tratamento e redução de danos, do outro.

58 Os protagonistas da cena punk participam nesta história. Contam a sua própria história, de que um dos eixos narrativos principais é a diferenciação geracional. Os anos 80 teriam sido marcados pela desestruturação causada pela heroína e as misturas, e os anos 90 pela travagem dos consumos mais perigosos e até pela generalização do medo (“a minha geração, diz Vasco, agora com 37 anos, tinha medo das drogas, de ver a heroína e íamos ver os exemplos dos anos 80”). Atualmente, a cena combinaria os habituais e, mais do que tolerados, celebrados excessos alcoólicos e estaria consciente do próximo desenvolvimento legislativo – depois da descriminalização do consumo e da posse para consumo de drogas ilícitas, ocorrida em 2001, a futura legalização do comércio de haxixe e substâncias afins. Mas manifestaria maior distância do que no passado perante os consumos “pesados”; como sumaria Luís, estudante, com 32 anos, “há menos toxicómanos de drogas pesadas nos movimentos juvenis do que havia antigamente, mas há mais álcool e drogas leves”.

59 Outro poderoso eixo narrativo contrapõe, para lá de gerações, correntes ou subcenas, quer dizer, diferentes maneiras de interpretar e praticar o punk. A partir dos anos 90, o straight edge desenvolverá um discurso e estilo de vida radicalmente contraposto aos abusos (de álcool, droga e sexo ocasional), precisamente em nome dos valores de autonomia e liberdade pessoal do punk. Esta posição foi e continua a ser alvo de enorme controvérsia no interior da cena. Mas, mesmo sem chegar a tão drástica atitude, vários outros protagonistas fazem ponto de honra em não deixar reduzir o rock ao seu próprio estereótipo (“Se o lema é ‘sexo, drogas e rock ‘n’ roll’, então o hardcore não é para ti”, diz Raquel, 32 anos) e em criticar, em nome do punk, essoutra forma de alienação e resignação que é a dependência (como conclui Damásio, 39 anos, “se te tornares um junkie tornas‑te mais um que caiu no sistema”).

60 A história das “drogas” no punk não está, pois, concluída. A presença passada e presente, a influência da presença passada sobre o presente e os modos de relação que, seguindo, modulando ou rompendo com o passado, se cruzam neste presente, constituem uma dinâmica social em curso, que não pode ser dada por adquirida nem pode ser descrita a um só traço ou cor. É um problema, no sentido de uma questão por resolver, que existe e que interpela. Com o ângulo de observação que privilegiámos neste artigo, e a informação que ele permitiu obter, não tivemos a pretensão de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 46

contribuir para o inventário analítico das práticas de consumo de álcool e drogas, na cena portuguesa. Não era esse o objetivo, não se orientava para aí o dispositivo metodológico. Mas julgamos ter ajudado a compreender três pontos críticos: a) a natureza problemática da relação com as drogas nessa cena, seja do ponto de vista dos seus valores, normas e crenças, seja do ponto de vista dos seus estilos de vida, seja do ponto de vista da sua criação artística; b) a centralidade da enunciação e abordagem desta questão, como questão identitária, isto é, respeitante ao nome, à coesão e ao posicionamento da cena; e c) a diversidade das atitudes e discursos que nela circulam e se confrontam, confrontando‑se todos ao mesmo tempo com a envolvente societal, a seu propósito.

61 Se o presente artigo pudesse afastar representações demasiado ligeiras e uniformes, próximas por aí dos estereótipos correntes mesmo quando produzidas em campos disciplinares especializados, e pudesse incentivar abordagens mais atentas às experiências dos atores, às palavras reflexivas dos atores sobre a suas experiências e à diversidade de atores, experiências e discursos, então teria o seu lugar na necessária revisitação do tema das drogas nas culturas juvenis.

BIBLIOGRAFIA

Abreu, Paula; Silva, Augusto Santos; Guerra, Paula; Moreira, Tânia; Oliveira, Ana (2016), “The Social Place of Portuguese Punk Scene: An Itinerary of the Social Profiles of its Protagonists”, Volume! (no prelo).

Agra, Cândido da (2009), “Requiem pour la guerre à la drogue”, Déviance et société, 33, 27‑49.

Beck, Ulrich (1992), Risk Society: Towards a New Modernity. New Delhi: Sage.

Becker, Howard S. (1985), Outsiders: Études de la sociologie de la déviance. Paris: Métailié.

Bennett, Andy; Peterson, Richard A. (orgs.) (2004), Music Scenes: Local, Translocal and Virtual. Nashville: Vanderbilt University Press.

Brake, Mike (1985), Comparative Youth Culture: The Sociology of Youth Cultures and Youth Subcultures in America, Britain, and Canada. London: Routledge.

Carvalho, Maria do Carmo (2007), Culturas juvenis e novos usos de drogas em meio festivo: o trance psicadélico como analisador. Porto: Campo das Letras.

Chaves, Miguel (1999), Casal Ventoso: da gandaia ao narcotráfico. Marginalidade económica e dominação simbólica em Lisboa. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais.

Cohen, Stanley (2002), Folk Devils and Moral Panics: The Creation of the Mods and Rockers. London: Routledge.

Costa, Eduardo (1998), “Direito Penal da droga: breve história de um fracasso”, Revista do Ministério Público, 74, 103‑120.

Cunha, Ivone (2002), Entre o bairro e a prisão: Tráfico e trajectos. Lisboa: Fim de Século.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 47

Dias, Lúcia Nunes (2007), As drogas em Portugal: o fenómeno e os factos jurídicopolíticos de 1970 a 2004. Coimbra: Pé de Página.

Fernandes, Luís; Silva, Rosário (2009), O que a droga fez à prisão – um percurso a partir das terapias de substituição opiácea. Lisboa: Instituto da Droga e da Toxicodependência.

Fernandes, Luís; Ramos, Alexandra (2010), “Exclusão social e violências quotidianas em ‘bairros degradados’: etnografia das drogas numa periferia urbana”, Toxicodependências, 16, 15‑29.

Giddens, Anthony (1991), Modernity and Self‑identity. Self and Society in the Late Modern Age. Cambridge: Polity Press.

Guerra, Paula (2014), “Punk, Expectations, Breaches and Metamorphoses: Portugal, 1977-2012”, Critical Arts, 28(1), 111‑122.

Guerra, Paula; Quintela, Pedro (2015), “Spreading the Message! Fanzines and the Punk Scene in Portugal”, Punk & Post Punk, 3(3), 203‑224.

Guerra, Paula; Silva, Augusto Santos (2015), “Music and More than Music: The Approach to Difference and Identity in the Portuguese Punk”, European Journal of Cultural Studies, 18(2), 207‑223.

Guerra, Paula; Bennett, Andy (2015), “Never Mind the Pistols? The Legacy and Authenticity of the Sex Pistols in Portugal”, Popular Music and Society, 38(4), 500‑521.

Goffman, Erving (1963), Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. London: Penguin.

Haenfler, Ross (2006), Straight Edge: Clean‑living youth, , and Social Change. New Brunswick, New Jersey/London: Rutgers University Press.

Hebdige, Dick (2002), Subculture: The Meaning of Style. London: Routledge [ed. orig.: 1979].

Hodkinson, Paul; Deicke, Wolfgang (2009), Youth Cultures: Scenes, Subcultures and Tribes. London: Routledge.

Inglis, Ian (2007), “‘Sex and Drugs and Rock ‘n’ roll’: Urban Legends and Popular Music”, Popular Music and Society, 30(5), 591‑603.

Marques, Ana Rita (2008), A(s) droga(s) e a(s) toxicodependência(s): representações sociais e políticas em Portugal. Porto: Faculdade de Economia da Universidade do Porto.

Poiares, Carlos Alberto (1995), “A legislação penal da droga: contribuição para uma análise do discurso do legislador”, Toxicodependências, 3, 17‑29.

Savage, Jon (2002), England’s Dreaming: Les Sex Pistols et le punk. Paris: Éditions Allia.

Silva, Augusto Santos; Guerra, Paula (2015), As palavras do punk. Lisboa: Alêtheia.

Straw, Will (1991), “Systems of Articulation, Logics of Change: Communities and Scenes in Popular Music”, Cultural Studies, 5(3), 368‑388.

Valentim, Artur (2000), “O campo da droga em Portugal: medicalização e legitimação na construção do interdito”, Análise Social, 153, 1007‑1042.

ANEXOS

Discografia

Kú de Judas (1996), As histórias da minha avó, V. A., Vozes da Raiva vol. 3. Lisboa:

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 48

Fast‘n’Loud. Compilação (CD). Kú de Judas (1996), Já estou farto, Vozes da Raiva vol. 3. Lisboa: Fast‘n’Loud. Compilação (CD). Kú de Judas (1996), Sniff Bostik, Vozes da Raiva vol. 3. Lisboa: Fast‘n’Loud. Compilação (CD). Mata‑Ratos (1999), Festa tribal, Sente o ódio. Lisboa: Alarm! Records. Álbum (CD). Motornoise (2007), Podre de bêbedo, Motornoise. Álbum (CD). Peste & Sida (1987), Carraspana, Veneno. Lisboa: Schiu! Álbum (Vinil). Peste & Sida (1989), Chuta cavalo, Portem‑se bem. Lisboa: Polygram. Álbum (Vinil). Stratus (1982), Um chuto no quarto, Um chuto no quarto. Lisboa: Vimúsica. Single (Vinil). Trinta e Um (1999), O cavalo mata. Lisboa: Rastilho Records. Álbum (CD). UHF (1979), Jorge Morreu, Jorge Morreu. Lisboa: Metro‑Som. Single (Vinil). Vómito (1988), Putos da rua, 30 minutos com…. Demo (Cassete).

NOTAS

1. O projeto Keep It Simple, Make It Fast! (doravante, KISMIF), cofinanciado por fundos nacio‑ nais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e por fundos FEDER (através do programa operacional COMPETE), desenvolvido no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, em parceria com o Griffith Centre for Cultural Research da Universidade de Griffith e a Universitat de Lleida. O KISMIF conta ainda com a participação das Faculdades de Economia e de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto, da Faculdade de Economia e do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e das Bibliotecas Municipais de Lisboa. 2. Não analisámos todas as canções, mas as que foram identificadas pelo conjunto dos 214 entrevistados como as mais relevantes do punk português. Portanto, no caso particular deste artigo, relevamos o segundo eixo de abordagem, as entrevistas em profundidade realizadas e os seus conteúdos. 3. A amostra foi construída pelo método da bola de neve, seguindo as redes de contactos entre os atores, a partir de uma base inicial referenciada pela equipa de investigação. Procurou ser o mais abrangente possível em termos de geração de vida, de género, de espaço, de papéis e de subgéneros punk (cf. Abreu et al., 2016). Os 214 entrevistados do projeto KISMIF têm em comum a participação, presente e/ou passada, na cena punk portuguesa: ou como músicos, ou como promotores, editores, críticos e outros intermediários, ou como consumidores. As entrevistas foram orientadas por um guião com mais de 50 entradas categoriais, sendo uma delas referente à representação das drogas e álcool na cena punk portuguesa. As entrevistas foram transcritas e objeto de análise clássica de conteúdo e/ou de outros tratamentos de discurso de pendor quantitativo e/ou qualitativo. 4. A soma das percentagens é superior a 100, porque vários entrevistados indicaram mais do que um tipo de sujeitos. 5. Por facilidade de expressão, usaremos os advérbios “hoje” ou “agora” para referir as idades que os entrevistados tinham no momento em que foram entrevistados. 6. Em 1997, um fanzine significativamente intitulado Kannabizine colocava sistematicamente uma questão aos seus entrevistados, sobre o consumo das drogas e a sua liberalização. O tema é também recorrente noutros fanzines. Retirados os que se filiam na corrente straight edge, o tom geral é de simpatia para com a liberalização das “drogas leves” e a inscrição do seu consumo no quadro das opções individuais de vida. 7. Da canção Carraspana, de 1987. Ver também, sobre as drogas e no mesmo registo, As histórias da minha avó, de 1996, dos Kú de Judas.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 49

8. O/a entrevistado/a poderia referir mais do que um tipo. 9. Os entrevistados poderiam indicar mais do que uma conjuntura.

RESUMOS

As drogas constituem eixos referenciais do rock ‘n’ roll em geral e do punk rock em particular. Assim, não será casual a reiterada presença do álcool e das drogas nos discursos dos protagonistas e nas canções do punk português. Este artigo considera-a menos do ponto de vista das práticas e contextos de consumo, e mais do ponto de vista dos discursos produzidos, dentro da cena, sobre o sentido do uso e o risco da dependência. O material empírico com que trabalha é constituído pelos depoimentos de 214 atores punk entrevistados entre 2012 e 2014 e pelas letras das canções que eles consideraram como mais influentes na cena. O artigo aborda três tópicos centrais: 1) a representação da natureza da relação com o álcool e as drogas; 2) a sua centralidade como questão identitária, isto é, respeitante ao nome, à coesão e ao posicionamento da cena; e 3) a diversidade das atitudes e discursos que nela circulam.

Drugs are essential references in rock ‘n’ roll in general and punk in particular. The recurring presence of alcohol and drugs in the songs and discourse of key figures from Portuguese punk is not, therefore, accidental. This article considers the issue less from the point of view of practices and contexts associated with their consumption and more from the perspective of the discourses produced within the scene that explore the meaning of their use and the risk of addiction. It draws on empirical material comprising statements from 214 punk actors interviewed between 2012 and 2014 and the lyrics of what they consider to be the most influential songs. It addresses three main issues: 1) the representation of the nature of the relationship with alcohol and drugs; 2) its central position as an identity issue, i.e. regarding name, cohesion and position within the scene; 3) the diverse attitudes and discourses circulating within it.

Les drogues constituent des axes référentiels du rock ‘n’ roll en général et du punk rock en particulier. Dès lors, la présence réitérée de l’alcool et des drogues dans les discours des protagonistes et dans les chansons du punk portugais n’est pas casuelle. Cet article s’y penche moins du point de vue des pratiques et des contextes de consommation que du point de vue des discours produits, dans le cadre de la scène, sur le sens de l’usage et de la dépendance. Le matériel empirique sur lequel il repose est constitué par les déclarations de 214 acteurs punk interviewés entre 2012 e 2014; et par les paroles des chansons qu’ils tiennent comme les plus influentes de la scène. L’article aborde trois sujets centraux: 1) la représentation de la nature de la relation avec l’alcool et les drogues; 2) sa centralité comme question identitaire, c’est‑à‑dire, se rapportant au nom, à la cohésion et au positionnement de la scène; et 3) la diversité des attitudes et des discours qui y circulent.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 50

ÍNDICE

Palavras-chave: culturas juvenis, música portuguesa, música punk rock, música rock, sociologia da música Keywords: Portuguese music, punk rock music, rock music, sociology of music, youth cultures Mots-clés: cultures juvéniles, musique portugaise, musique punk rock, musique rock, sociologie de la musique

AUTORES

PAULA GUERRA

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150‑564 Porto, Portugal [email protected]

TÂNIA MOREIRA

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150‑564 Porto, Portugal [email protected]

AUGUSTO SANTOS SILVA

Faculdade de Economia da Universidade do Porto Rua Roberto Frias, s/n, 4200‑464 Porto, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 51

Fedeli alla linea: CCCP and the Italian Way to Punk Fedeli alla linea: CCCP e o percurso italiano do punk Fedeli alla Linea: CCCP et le parcours italien du punk

Vincenzo Romania

EDITOR'S NOTE

Revised by Sheena Caldwell Received on 23.07.2015 Accepted for publication on 24.03.2016

Introduction

1 Punk has always been an expression of rebellion against capitalism, imperialism, the exploitation of the working class, materialism and the patriarchal society.

2 This artistic and cultural rebellion emerged in very different forms, and in different temporal and geographical contexts (Dunn, 2008). Its moral, subcultural and existential flexibility opened up an almost infinite process of differentiation\identification (Simmel, 1905), i.e. it allowed very different and unique punk identities to be created, representing different feelings and personal experiences. As a consequence, punk developed as a very individualistic movement (Guerra, 2014: 114), but at the same time also promoted the self‑valorisation of individuals, or what Dunn has described as the disalienation of subjects living in the age of neoliberalism2 (2008).

3 As Georg Simmel has pointed out (2004: 155ff.), art provides individuals with a framework for representing every element of their lives, trans‑ forming and revolutionising their reality through stylization. In this sense, punk emerged as a demystification of mainstream culture, giving rise to alternative lifestyles and the rediscovery of subjectivity.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 52

4 As a consequence, the birth of punk in can be contextualised as part of the larger historical reaction to the turbulent transformation that was taking place in society. At the time, Italy was emerging from a long period of terror‑ ism and experiencing the significant growth of youth movements (Melucci, 1984) together with the transformation of its traditional political cultures, namely Catholicism, which inspired the conservative Democrazia Cristiana movement (DC), and communism, represented by the Partito Comunista Italiano (PCI). Italian punk can be contextualised as part of the global transition from a period of disruption to a postmodern search for authenticity. The following section explains how the cultural movement which began in 1977 played a crucial role in this transition.

1. The Historical and Cultural Background to Italian Punk

5 The first Italian punk bands were formed in 1977, in the medium‑sized to large northern cities of , Milan, Bologna and Pordenone. However, as was the case in other southern European nations (Guerra, 2014), punk did not become a visible subculture until the 1980s.

6 Between the 1970s and 1980s, Italy was undergoing a period of economic development and political transformation. Traditional political parties – such as the Democrazia Cristiana (Christian Democrats) and Partito Comunista Italiano (the strongest communist party in the Western world) – were losing support, while a new liberal‑socialist party (PSI) had come to power (and was to govern for a decade), heralding the start of a short but intense period of economic growth and political corruption. Lifestyles were transformed: consumer‑orientated subcultures, such as the yuppie culture, spread throughout the richer regions of the country, large areas of traditional agricultural land were transformed into modern industrial factories and, in 1979, commercial television was introduced.

7 In contrast with Great Britain during the ‘classic’ punk period of 1974‑1978, Italy was experiencing a period of post‑economic crisis, characterised by its emergence from a dark age of political terrorism and the gradual cultural acceptance of a neo‑liberal way of life.

8 The music scene was mainly characterised by two completely opposite types of music: a mainstream pop genre called canzone leggera (‘pop songs’), and a counter‑cultural genre called canzone di denuncia (‘protest songs’). The former had played a significant role in the development of the Italian music industry since the 1950s, having been heavily promoted by the major record labels (RCA and Ricordi), national television (Rai), and famous national festivals (Festival di Sanremo, Canzonissima). The latter emerged in the 1960s, together with the 1968 movement, and was inspired by Italian folk traditions including anarchist folk and protest songs from the fascist period.

9 This musical rivalry largely coincided with the political rivalry between the DC and the PCI. In contrast with these two strong musical genres, the rock scene was rather weak, featuring only a small number of bands. Its most significant groups were prog rock bands such as PFM and Area, who were in fact more popular abroad, and a few new wave bands, such as and Diaframma who would become more successful in the

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 53

1980s and 1990s. In brief, the birth of punk in Italy took place within the context of the pluralisation of the musical landscape.

10 The early Italian punk scene was influenced by sub‑genres (anarcho‑punk, straight edge, and hardcore punk) which had been imported from around the world. Nevertheless, in its early days, Italian punk was strongly connected to a specific domestic movement: the Movimento del ‘77 (M77). As Milburn suggested, “1977 was a year in which sections of youth in both England and Italy enjoyed explosions of creativity” (Milburn, 2001).

11 M77 came about in Italy as a product of the dissolution of certain left‑wing extra‑ parliamentary groups, who formed a new political subject called Autonomia. Autonomia was a highly theorised political movement which proposed a new social paradigm as an alternative to Marxism. It countered the appeal to transcend ideas, contextualising its action in the concrete struggles of everyday life and stressing the autonomy of culture and politics in relation to the economy. Its cultural roots can be found in the philosophy of Antonio Gramsci, who also influenced the school of cultural studies.

12 M77 supported the early diffusion of underground culture in Italy and the first examples of counter‑information, and encouraged the importation of punk into Italy, in particular Bologna, where the first punkzines and record labels were formed with the help of anarchists (Philopat, 2006). Like British punk, M77 was influenced by avant‑ gardism, situationism and a political interpretation of the philosophy of Michel Foucault and Roland Barthes.

13 In the same period, the newly opened Faculty of Performance Studies (DAMS) at the University of Bologna played a growing role in the formation of the punk scene;3 in fact, a number of DAMS students went on to form punk bands, such as Skiantos, CCCP, and Gaznevada.

14 It were also influenced by the intellectual circle associated with Radio Alice (Berardi, 1997), one of the richest expressions of the movement. Radio Alice was an independent radio station where many intellectuals, such as the semiologist Franco Berardi, created innovative forms of semiotic revolution. The aim of its cultural collective was to produce subversive communication with innovative language and forms of interaction, and the regular transmission of Italian punk songs contributed to the diffusion of a deterritorialised, translocal punk subculture in Italy.4

15 Another important contribution to the establishment of punk in Italy were the two squats, Traumfabrik in Bologna and Virus in Milan. They led to other occupations, and also to the establishment of centri sociali (“social centres”). Whereas squats were temporary occupations, centri sociali gradually gained public recognition and played a part in the diffusion of alternative subcultures in Italy.5

16 Punk subculture in Bologna emerged at the crossroads with the M77 subculture and produced the most interesting Italian example of the integration of global and local punk.

17 CCCP Fedeli alla linea was founded in this cultural background and their artistic production contains elements of subversive communication, situationism and avant‑ gardism. Lead singer was, in his youth, a member of Lotta Continua, one of the most important extra‑parliamentary movements, but the band did not declare any affiliations with them; in fact, the first time they met was in

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 54

where they were escaping the deteriorating Italian youth culture: “Crushed between the violence of the state and the violence of the Red Brigades, the space the movement had created was closed amidst a legacy of detention, mental illness and heroin addiction” (Milburn, 2001).

18 This is the first reason for focussing on their punk production. The second is their commercial success and cultural influence: CCCP are the only Italian punk band to have achieved substantial commercial success and significantly influenced the Italian scene which emerged later. Thirdly, their lengthy music experience places them in the transitional phase between classic punk and the postmodern search for authenticity that characterised punk in the 80s.

19 The following section provides some basic biographical information and discusses the construction of their punk identity.

2. CCCP: Biography and Punk Identity

20 Punk encourages the appropriation and detachment of both visual and linguistic symbols and icons (Hebdige, 1979) from their original ideological, political and religious contexts in order to re‑frame them in a different, transgressive sense. This was clearly the case with CCCP Fedeli alla linea in English “USSR Faithful to the Line”: the name is derived from the Italian mistranslation of the USSR acronym “Союз Советских Социалистических Республик”, due to the incorrect transliteration of the Cyrillic letter C in the Latin alphabet.

21 The choice of name therefore expresses the phenomenon of translating Soviet aesthetics into popular folk culture, representing the appropriation of Sovietism in the daily life of the Italian working class (Hoggart, 1957). One well‑known example of the symbolic dislocation of Soviet symbols comes from the early 1970s, when Malcom McLaren persuaded the New York Dolls to dress in red vinyl for their live performances and play under a Russian flag, using the situ‑inspired slogan: “What are the politics of boredom, better red than dead!”.

22 Unlike the USA and other areas where the redskin punk scene was to be found, communism was not strongly stigmatised in Italy at that time; in fact, at the end of 1970s Italy had the most powerful communist party in the Western world. In some areas, such as Reggio , the PCI had more than 75% of the vote at national and local level (Colarizi, 1988). In this cultural context, Sovietism represented three things: nostalgia for the USSR for the small, declining groups on the extra‑parliamentary left; the quintessence of military discipline and oppression, which was considered the enemy for Autonomia; and an artistic utopian and ironic alternative to neoliberalism.

23 CCCP’s choice of name did not therefore conform to the typical punk transformation of the negative and the profane into a positive force (Nehring, 1993: 232); instead it signalled a constitutive ambivalence. At the same time, Sovietism represented a voluntary ‘conviction’ – “Faithful to the line, even when there is no line” (a line from the song CCCP) – which was both a source of salvation from capitalism and a source of voluntary oppression. This authentic inauthenticity (Grossberg, 1992) led CCCP to use irony in citing and reframing communist symbols. For instance, the title of their second , Socialism and Barbarity, is a parody of Rose Luxembourg’s dictum ‘socialism or barbarity’, introduced in her classic essay Juniusbroschüre (1915).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 55

24 CCCP was formed in 1981‑82 following an encounter between Matteo Zamboni (guitarist) and Giovanni Lindo Ferretti (lead singer and lyricist). The band was completed by Umberto Negri (bass) and two other artists, Annarella and Fatur. The founding members (Ferretti, Zamboni and Negri) came from , a medium‑ sized city near Bologna, but first met in Berlin where they were influenced by , punk and new wave. In the period 1982‑84 their live work was divided between Berlin and their birthplace, Emilia‑Romagna – two polar opposites in the pivotal hybrid of genres and topics, reflecting an ambivalence between metropolitan cosmopolitanism and anti‑materialistic provincial life.

25 Their live performances may simultaneously be considered counter‑rituals, rituals of opposition and avant‑garde performances. As with classic punk, CCCP’s concerts were situationist performances designed to create confusion (Henry, 1984), disruption and audience denial. Situationist performance, rooted in the culture of M77, provided CCCP with the “necessary link in the avant‑garde chain... between the original avant‑garde and punk” (Nehring, 1993: 224) and provided a means of creating a new form of audience awareness (Johnson, 2014: 67). They defined their concerts as acts of collective therapy, “a sort of voluntary therapy invented and undertaken by an ‘unwanted’ generation” (Reddington, 2007: 12).

26 In 1984‑1985 they released their first records (three EPs and their first full album) on the independent Attack Punk label.6 The first two EPs were entitled (Orthodoxy) and Ortodossia II (1984), recalling the Soviet military and ideological orthodoxy, while the third was called Compagni, cittadini, fratelli, partigiani. [Comrades, citizens, brothers, partisans] – a title inspired by the first verse of the song Per i morti di Reggio Emilia by Fausto Amodei, dedicated to five workers killed by the Italian police during a rally in July 1960. This celebration of Sovietism is often connected with a nostalgic (but still parodic) celebration of old‑fashioned Italian left‑wing politics.

27 Their first full album was entitled 1964‑1985 Affinità e divergenze fra il compagno Togliatti e Noi, del conseguimento della maggiore età [Affinities and divergences between Comrade Togliatti and Us, on reaching the age of consent], referring to the title of a letter sent from the Chinese Communist Party to the PCI.

28 The idea of parodying ideology was completely new in Italy. The Italian Communist Party, with its leftist associations, partisans, trade unions, and all the other sociopolitical subjects associated with the left had a very orthodox view of political songs, which were performed at parties, festivals and conventions. Yet CCCP even dared to ridicule the sacred status of the partisan in an ironic song (Battagliero). This is fundamental to understanding the semiotic difference in CCCP’s use of Sovietism: for the Italian punk band, it was positioned in a precise historical and cultural context in which it already had the important everyday function of differentiation, both from communism and neoliberalism.

29 In addition to their ideology, even their sound and style of performance were completely new for the Italian music scene, and they were an immediate success. They played at festivals and their performances received some coverage on national television. This success led to them signing with Virgin Music in 1985 to release their next three studio : (1987), Canzoni preghiere danze del II millennio ‑ Sezione Europa (1989) and Epica Etica Etnica Pathos (1990).7

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 56

30 Although their first album was purely punk, the Virgin albums mix punk sounds with industrial hardcore, Italian , world music, chamber music, and disco, producing a kind of Zappa‑esque mix of genres and poetry. In 1991 the band renamed itself C.S.I. (Consorzio Suonatori Indipendenti – Union of Independent Musicians). It was a way of signalling the end of

31 the influence of the , which had collapsed, and marking their musical transformation into a less punk, more alternative rock sound, as well as introducing their new members.8

3. Methodological Approach

32 This study involved a socio-semiotic textual analysis of CCCP lyrics, using Algirdas Greimas’ methodology of narrative semiotics (1983). Narrative semiotics is a textual approach that enables the implicit structures of meaning in large and fragmented corpora such as punk songs to be analysed.

33 The corpus was composed of 52 song lyrics – CCCP’s entire studio output.9 On a technical level, the texts were first divided into “elements of sense”, applying an en‑vivo coding to the lyrics.

34 This was followed by a search for textual isotopies (semantic units), i.e., in Greimasian terms, recurrences of semantic categories in the text. The isotopies were constructed by looking at the different discursive levels of dialectic differentiation.

35 The following axes of differentiation were categorised: a. The meta-discursive level, featuring 11 times in the lyrics, which consists of the following sub-dimensions: discourse on punk in terms of differentiation (6); discourse on punk in terms of identization (5); b. The socio-political level – representing the largest isotopy, coded 81 times in the 52 sets of lyrics.10 It consists of the following sub-dimensions: the objectification of social relationships (19); the celebration of Sovietism (14) and religion (23) as alternative sources of meaning, in opposition to the dystopian vision of present capitalism; the philosophy of history and politics (35); c. The existential level, an isotopy which appears 37 times in the lyrics. It consists of the following sub-dimensions: the anomie of modern society (13); the psychological and psychiatric disorders of individuals (12); fatalism and boredom (10 poems); love and sexuality (7).

36 For reasons of space, I will only consider the most important examples in any given isotopy, synthesising the different forms of enunciation and subcodes.

4. Metadiscursive Level

37 In the CCCP lyrics the metadiscourse on punk enables them to differentiate themselves from what they consider to be spurious, insincere or outdated punk icons (e.g. the Sex Pistols) and to propose a proper, authentic form of punk. In a metadiscursive sense, CCCP’s search for punk authenticity is driven by the need to construct a cultural autonomy for Italian punk, in contrast to the commercialisation of canzone leggera.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 57

38 The most relevant example of this metadiscourse can be found in the song Tu menti (You Lie), which is a direct attack on the iconic Sex Pistols through an imagined conversation between the author and Johnny Rotten (who is not actually named in the song, but is nonetheless clearly identifiable). The leader of the Sex Pistols is described as a liar who is being used by the music industry for commercial purposes: “You lie, lie, lie, lie\ I know who you know\ I know where you go\ They’ve taken the piss out of you\ You’ve destroyed yourself\ You’ve been fucking cheated” (Tu menti – You Lie).

39 In this song, as in many others, CCCP use a particular figure of speech: the parodic citation, i.e. the erudite inversion, transformation or confusion of the original meaning of a citation. It is a form of cynical irony (Bewes, 1997) used to denigrate enemies and affirm individual identity through differentiation. This parody references the Sex Pistols’ song Liar and the lines: “Lie lie lie\ liar you lie”; “I know where you go\ everybody you know”. On a metadiscursive level, verses which had been originally composed by the Sex Pistols, such as those dissing the New York Dolls, became a means of deriding them in turn. Rotten is described as an empty icon; he does not represent sincere or authentic punk but instead is represented as a stereotypical member of a boy band acting out a persona in a show, without any ideological involvement: “They always say stuff like: \I am the Anarchy\Here’s another Anti-Christ\ But you were just pretty\ Oh so pretty\ Lazy and well-dressed\ Without blue jeans’ (Tu menti)”.

40 The last part of the lyrics is also a parodic citation of the Sex Pistols’ song Pretty Vacant (“We’re so pretty, oh so pretty”). In their continual defiance of conformity, CCCP also rejected the conformism of classic punk.

41 This attack on a symbol of punk purity coexists alongside an ongoing claim for authentic inauthenticity: “The world is rotten by the wish of purity. We are not pure. We never wanted to be pure” (Ferretti at Leoncavallo, Milan, 1st of May, 1985). One episode in particular reveals their problematic relationship with “anti-commercial authenticity”: in 1985, on signing with Virgin Records, the band was strongly criticised by their fans, who saw this as a betrayal of their authentic anti-capitalistic and punk stance. The band responded by writing a song ironically entitled Fedeli alla lira? [Faithful to the Lira?].11 Their semantic refusal of any punk authenticity was expressed in three ways: firstly, by the ironic replacement of the world linea (orthodoxy) with the world lira (money); secondly, by arranging the song as a liscio, a type of Italian folk music which was popular in Emilia-Romagna and the complete opposite of punk in terms of tempo and musical aesthetics; thirdly, by directly challenging the audience and inverting the giver\receiver relationship: “And then you want me to be faithful\ to your new cutting edge\ Adoring progress, fashion, modernity\ I have already grown enough, I can’t take it any more\ I have grown even more, too much\ But what do you give me?” (Fedeli alla lira?).

42 In short, they made it clear that it was possible to be authentic despite commercial involvement in the music industry (Hebdige, 1979).

5. Sociopolitical Level

43 CCCP’s criticism of the objectification of society and culture was strongly influenced by the sociopolitical situation in Emilia Romagna during the transition from the period of

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 58

terrorism in the 70s to the consumerism of the 80s, and also by the 1977 social movement, with its emphasis on the rejection of compulsory labour.

44 This isotopy includes different subcodes: • a discourse on the ‘moral awakening’ from false consciousness; a nostalgic search for the Original Land; • a series of hetero-definitions of the self, expressed through the language of advertisements, common sense, politics and science; • a sociological discourse on the effects of socio-economic development; • ironic\critical use of the language of bureaucracy and marketing; • a look back to Sovietism and Catholicism as sources of meaning; • a discourse on war and peace.

45 The synthesis of these subcodes leads to one main distinction: desubjectification vs. grand narratives (Sovietism, Catholicism, peace) that can be interpreted as a typical feature of postmodernism (Lyotard, 1979).

5.1. Desubjectification

46 The CCCP songs address themes such as standardization, desubjectification, loss of creativity and false consciousness and call for creative revolt as the shared output of the different expressions of M77. The movement theorised the possibility of self- valorisation out of the logic of capitalism in a different way from both neoliberalism and the political activity of the Italian Communist Party. CCCP used punk music to create an ironic play on the two fundamental sources of meaning for Italian politics and civil culture in the early 1980s, i.e. communism and religion, in order to produce a moral discourse on subjectivity and disalienation (Dunn, 2008).

47 In the lyrics, the two symbolic universes have the same semantic functions: they are sources of identity, security, stability, and psychological relief, as well as a means of human aggregation and sociability, helping individuals to resist the human condition of loneliness, objectification and oppression.

48 One interesting form of linguistic revolt against desubjectivisation is the frequent use of utterances of state12 (Greimas, 1983), whose rhetoric is more descriptive and poetic than narrative. Their lyrics seldom develop into a complex plot; on the contrary, through their songs CCCP defined a discourse on existence, the present day, and past and present models of development using general descriptions and presenting moral judgements.

49 In particular, they use hetero-attribution as the semantic anchorage for cultural objectification: the use of ‘I am so’ and ‘I am not so’ assertions aim to express the ambivalence between hetero-definitions of individual identity and the auto- determination of the self-valorised subject, reaching towards a postmodern interpretation of punk as the expression of an authentic inauthenticity (Grossberg, 1992).

50 The song Sono come tu mi vuoi,13 which includes a series of slogans in the language of advertising, politics and common sense, is a perfect example of this is: “I’m not a throw-away bottle\ Nor an impossible stain\ Nor a registered trademark\ Nor a product on the market\ I’m not a point of reference \ Nor a basic reality\ Nor a fact\ Nor a concluded dispute\ Nor a completed file”.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 59

51 Other textual examples can be found in their nihilist indifference to self-attribution – “I may be a happy fool\ A pre-political man, or a drug addict” (Emilia Paranoica) – or the use of geological metaphors, associating the flatlands of the Pianura Padana (the Po Valley) with the moral flatness of the present: “sated and desperate land\ with or without TV\ flat and monotonous\ modern and well-equipped” (Rozzemilia).

5.2. Celebration and Parody of Sovietism

52 CCCP use different forms of enunciation to refer to Sovietism: autobiographical, Dadaist\surrealist, epic, sarcastic, emancipatory, and nostalgic. They celebrate the USSR’s military, institutional, national and social aesthetics, but at the same time criticize the censorship, social control, political weakness and cognitive rigidity of the Soviet empire. They use a particular linguistic register even for Sovietism: parodic imitation or celebration of slogans and political discourse. Parody is often expressed through the mispronunciation\misspelling\distortion of classic Soviet references. One example of this can be found in a couple of lines from the song Manifesto: “The Soviets plus electricity\ do not make communism”, an ironic inversion of Lenin’s famous slogan “Communism is the Soviet power, plus the electrification of the whole country” (1920). Another example is the song CCCP: “Pravda Rude Pravo\ Tribuna Ludu KGB KGB KGB\ Much more than a new man: a new man\ Faithful to the line, even when there is no line”. The first part uses the rhetorical device of accumulation to ridicule Soviet efforts to control information through intelligence, the secret services and censorship. The second contains a parody of Soviet manifestos and an accusation of unaware and inauthentic discipline and conviction.

53 The celebration of Sovietism is contextualised in a historical discourse on the Cold War. The song Live in Punkow presents a semantic opposition between the two sides of the Iron Curtain: instability and loneliness on the Western side, and stability and socialism in the East. It uses a variety of toponyms to express this concept and connects the geopolitical division of the world to the existential malaise of the citizens of Western countries: “I wanna take refuge under the Warsaw Pact\ I want a five-year plan\ I want stability!” (Live in Punkow). In a different way, A ja lublju SSSR (I love the USSR) is a freely-inspired version of the USSR’s national anthem which includes a poetic celebration of the socialist practice of collective labour: “Honour the arm moving the loom\ Honour the force moving the steel\ It exists, I know\ A ja lublju SSSR” (A ja lublju SSSR).

54 The Berlin wall, the quintessential symbol of the Cold War, is described without any moral judgement, almost with a sense of indifference and anomie: “I run near the Wall\ I don’t know, I don’t wanna know\ What difference does it make?” (Punk Islam). This is probably the summa of their aesthetic but not moral celebration of the USSR. In 1990, when the separation of the USSR was clearly imminent, the band wrote a song using metaphors to express the parallel between the withdrawal of the ex-Soviet states from the Soviet Union and the tendency of individuals to withdraw into their own private space: “One declares independence and leaves\ One takes refuge in his intimacy\ The last proclaims total alienation” (Depressione Caspica [Caspian Depression]).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 60

5.3. Celebration of Religion

55 This isotopy is one of the most common in the lyrics analysed. Again, it is presented through various forms of enunciation and narrative registers: liturgical, evocative, mythological, ascetic, emancipatory (religion as a force for change), conflicting, and ironic-surrealist.

56 Religion is not always criticised, as in classic post-Crass punk, but is often celebrated, like Sovietism, as a grand narrative (Lyotard, 1979) that saves ‘lost souls’ from neoliberalism. One key point in understanding CCCP’s punk is as a Freudian account of modernity as a relational void that can only be filled through motherhood, discipline and repetition.

57 With regard to linguistic register, CCCP draws a parallel between punk and religion on the basis of the repetition and reiteration of verses (Rossi, 2014). CCCP’s punk as a religious chant uses recursive forms of poetry to induce a trance, a form of emotional and spiritual transport. For this reason, some of their songs contain parts of the Latin Mass or entire stanzas of Gregorian chants, assembling and using them as patchwork. The introduction to Militanz, for instance, includes a series of verses from the requiem mass. This celebration of psalmody is also associated with Islam: “Don’t think, just repeat your psalms\ Islam punk, Islam punk, Islam punk und punk Islam” (Punk Islam).

58 In ascetic terms, religion represents a means of ascendance through mundane askesis (Sloterdijk, 2013), i.e. discipline, repetition and conviction: “Do not fear the terror of night\ You can ascend through a force that is descending” (Tien An Men).

59 The evocative terms are the best expression of the aforementioned relationship between religion and motherhood. The song Madre, in particular, extended CCCP’s punk to the religious ode. Sacred maternity is denoted in Madre as a supreme source of motherhood and relief of the soul: “Mother of God and of his son\ mother of the fathers and of the mothers\ Mother, oh mother,\ my soul turns to you” (Madre ‑Mother).

60 In nostalgic terms, an idealized version of Catholicism is linked to a nostalgia for the Original Land. CCCP lyrics suggest an escape from industrialism and consumerism and a return to simplicity and traditional society, as exemplified in the following lines: “An emotion to travel through time\ To find my destination\ In the midst of too many men but no God\ Or an excess of gods but few men” (E’ vero – It’s true). The Catholic city is claimed to be the spiritually authentic utopian city – as in Moore and Campanella – while the modern metropolis is seen as the realm of industry, precariousness and inauthenticity.

61 Although CCCP fans saw Ferretti’s religious conversion as a betrayal of the original philo-sovietic philosophy, in the elements considered here both symbolic universes have the same semantic function: they represent aesthetic repertoires, as well as frameworks for the re-signification of life and, once again, are a means of subjective authenticity.

5.4. Peace, War and the Philosophy of History

62 As depicted in Mayakovsky’s Mystery-Bouffe (1918), war is fundamentally represented as a clash between two factions: the pure versus the impure, the proletariat versus the bourgeoisie, the Soviets against the Americans. It is also used as a trope for developing

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 61

a more general philosophy of history. Old and new conflicts are explored, highlighting analogies according to an implicit cyclic vision of history. The rhetoric of Sovietism and Catholicism allowed CCCP to draw a semantic distinction between authenticity and inauthenticity and to place themselves in the peace punk context.

63 The most frequent subcodes are: definition of the present, through its wars (Trafitto, Tien An Men, Huligani Dangereux, Inch’allah ca va); wars in historical cycles (Aghia Sophia, Militanz, L’andazzo generale); analysis of current conflicts (Paxo de Jerusalem, Palestina 11/15/1988, Radio Kabul, Emilia Paranoica, Hong Kong and Manifesto); the philosophy of history (Guerra e Pace, U.N., Militanz); and a surrealistic and baroque discourse on different but overlapping historical conflicts. One example of this last category is the song L’andazzo generale: “I long for the Augustan ruins and for the airy collapses\ I love the guilt, the failures and the weakness\ I hate the bore of Hotel Clodio14\ And the young offspring”. In these verses, as in many others, there is a clear opposition between a utopian representation of the past and a dystopian representation of the present. Wars have psychological effects on the individual, and the condition of individuals is metaphorically related to foreign affairs: “Europe has become lost in a trance, recently\ My friends too, my friends too” (Live in Pankow).

6. Existential Level

64 This discursive level focuses on the author’s biography, self, emotions and psychological disorders. Unlike the preceding sociopolitical discourse, it entails a narrower view of subjectivity and the author’s experience, and is expressed linguistically in an informal style. It includes five main dimensions: anomie, psychopathology, boredom, love and sexuality, and fatalism. For reasons of space, the main focus is on the first two.

6.1. Anomie and Alienation

65 The theme of the anomie and alienation of the modern citizen occurs frequently in the lyrics analysed. It is presented through the following forms of enunciation: lack of awareness of personal purpose, personal emotions, and the individual and collective meaning of life (5); the rejection of mainstream ideologies, values, political forms of participation and history (3); loss\confusion (3); impotence (2); voluntary isolation from social obligations and the labour market; media misinformation and an excess of available options (1). CCCP’s discourse is consistent with Merton’s theory of anomie (1938) and Simmel’s theory of the condition of the blasé urban individual (Simmel, 1972) who reacts with detachment to an overload of stimuli.

66 The following lines provide a good example of this: “Do you know, what luck to be free, \ To be subjected to freedom, which seems infinite\ And not ever know what to wear\ Where to go dancing, who to telephone” (Narko’s).

67 Concerning the issue of objectification, CCCP affirms a form of resistance to anomie, flaunting an attitude of voluntary non-participation that today would be defined as NEET (not in education, employment or training) or hikkikomori, as exemplified in the following verse: “I do not study\ do not work\ do not watch TV\ do not go to the cinema\ do not play any sport” (Io sto bene). Finally, in many of their songs there is a reminder of the individual inability to define emotions: “I feel good\ I feel bad\ I don’t

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 62

know how to feel” (ivi). Again, this can be read as a sign of objectification in Simmelian terms: the individual loses the agency to define himself and experience the tension between the personal and social expression of emotions in a world of commercialised feelings (Hochshild, 1983). Authenticity is implicitly theorised as liberation from this emotional objectification, which leads to a withdrawal from society and devotion to one’s private life. This ‘escape’ corresponds to a phenomenon which was common in Italy after the end of the period of terrorism in the 1970s, labelled by the Italian press as riflusso (resignation). It has been defined as “an attitude and behaviour, produced by a climate of falling and disappointed expectations, and characterized by the return to values considered outdated and to a resignation to the private sphere, with a concomitant political and social disengagement.” (Treccani, 2015: Riflusso).

68 Riflusso is a product of the Movement of ’77 and a political outcome of the failure of Autonomia: the refusal to recognise their experience in the grand narratives of communism and neoliberalism led young people to focus on their own experiences and return to private life. It meant both the failure of political participation and a space for artistic creation.

6.2. Punk as Psychotherapy

69 Giovanni Lindo Ferretti’s experience of working with psychiatric patients deeply influenced CCCP lyrics: their style of punk represents psychopathology as a central issue in the condition of the modern citizen. They often presented their performances and songs as psychotherapy sessions for mentally disturbed audiences, both in an individual and in a collective sense, and one of their songs is, in fact, entitled Svegliami (perizia psichiatrica nazionalpopolare) [Wake me up (national-popular psychiatric report)].

70 The most common subcode is a reference to a permanent state of agitation and despair that can be found in at least six songs. One of their songs is entitled Valium Tavor Serenase, the names of the three most widely used sedatives. The names of drugs are often mentioned in their lyrics, as a symbol of the commercialisation of psychotherapy. Psychiatric medication is seen as a commercial means of normalization (Goffman, 1961), while human care is seen as the authentic cure for modernity. Therefore, “medication vs. love and care” represents a new semantic axis for the polarity of authenticity vs. inauthenticity, which overlaps with the fundamental opposition of capitalism vs. humanism.

71 One example of this is found in the song Curami, in which the lover is expected to take care of the subject, to alleviate his suffering. The plays with the polysemic similarity between the Italian form curami (“take care of me”) and prendimi in cura di te, which can also mean “take me into your care\ look after me”. Love replaces medicine and psychologists: “I am lost and confused\ Hold me in your arms\ hold me tight\ Give me your days\ Your nights\ Today, tomorrow, again” (Svegliami: perizia psichiatrica nazionalpopolare). Again, CCCP’s artistic production is a search for a new humanism, through which human potential can be realised (Marx, 1972 [1818]), in contrast to the alienation and objectification of social life.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 63

6.3. Boredom, Love and Sexuality, and Fatalism

72 These three subcodes have an ambivalent relationship to the topics confronted by classic British punk. With regard to boredom, for instance, punk is seen as an alternative to the boredom of modern living: “Is it better being inert\ or having green hair?” (VST). Seven songs are devoted to the topic of love and sexuality. The earlier ones are consistent with the celebration of raw sexuality found in classic punk, while the later songs are more consistent with the humanistic philosophy that characterises CCCP’s punk. One example is the song Annarella: “Leave me here, leave me now, leave me this way\ Don’t say a word except words of love”. The final existential component is fatalism, i.e. lyrics devoted to the meaning of life or death. The invitation to self‑destruct and commit suicide, typical of classic punk, coexists contradictorily with the incitement to live a full, rich and free life, which is, in fact, closer to M77’s manifesto: “Oddly enough, there is only one life” (BBB); “Death is unbearable for those who cannot live” (Morire).

Final Remarks

73 During the second half of the 1970s different Western countries encountered a similar cultural and economic crisis and punk was one of the most successful artistic reactions to this situation. It represented a disruptive form of disalienation, as well as a source of self-valorisation for a growing community of people in different countries who situated themselves outside the mainstream culture.

74 In the case of Italy, punk emerged almost simultaneously with the United Kingdom, United States and other southern European countries, such as Portugal. At the time, some classic British punk themes (Worley, 2012), such as boredom, alienation and anti- materialism, were imported by Italian punk bands and interpreted from the perspective of a domestic critique of the conservatism of the Christian democrats, the reification of social life by the Communist Party, and the growing neoliberalism. Compared to Portuguese punk (Guerra and Silva, 2015), the feelings of denunciation, protest and demarcation were weaker in Italy, whereas an existential and philosophical revolt against the social order was more evident. This difference can be explained by the different political situations in the two countries. Whereas in the late 70s Portugal was experiencing the spread of the recent democratization and a “new sense of openness and empowerment” of youth (ibidem: 208), Italy was living through a time of cultural transformation and economic expansion which produced a growing sense of anomie.

75 The cultural reaction to this anomie gave life to the social movement called Movimento del ’77. It deeply influenced the topics and poetry of CCCP lyrics. Its emphasis on autonomy and self-valorisation was interpreted by the band through its ironic celebration of Sovietism and religion. The mix of disruption and the search for authenticity places CCCP in the aesthetic transition from classic punk (1974 to 1978) to postmodern punk (1980 to the present). Their search for authenticity involved adopting a fluid political and aesthetic stance in which ‘conviction’ was valued in and for itself, regardless of the specific stance adopted. For these reasons, their artistic production reflected subsequent developments in DIY(do-it-yourself)/punk ethics.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 64

76 As different scholars have suggested (see Guerra and Moreira, 2015 and Lewin and Williams, 2009), the search for authenticity, together with cultural hybridisation, were stimulating factors that favoured the development, global diffusion and longevity of punk. The success of CCCP can only be understood from the perspective of inauthentic authenticity (Grossberg, 1992), in terms of contradiction and irony. Moreover, the partial misunderstanding or misinterpretation of CCCP’s portrayal of religion and Sovietism is, in fact, a reason for their enduring success. They spoke directly to an audience of young people who identified with the values of M77, but also to a larger audience of communist or leftist Italians who found a connection between CCCP’s celebration of the USSR and their own values and paid little attention to the contradictory aspects of their style of punk. This contradiction has emerged many times, from the 1980s to the present, whenever Ferretti has openly rejected his original leftist beliefs and embraced a traditional, righteous and conservative ideology. All these conflicts were caused by the same search for an authentic version and an authentic memory of CCCP. Nevertheless, punk cannot be authentic in any essentialist sense.

BIBLIOGRAPHY

Berardi, Franco (1997), Dell’innocenza. 1977: l’anno della premonizione. Verona: Ombre corte.

Bewes, Timothy (1997), Cynicism and Postmodernity. London: Verso.

Colarizi, Simona (1998), Storia dei partiti nell’Italia republicana. Roma: Laterza.

Dunn, Kevin C. (2008), “Never Mind the Bollocks: The Punk Rock Politics of Global Communication”, Review of International Studies, 34(S1), 193-210.

Frith, Simon; Horne, Howard (1987), Art into Pop. London: Meuthen.

Goffman, Erving (1961), Asylums. Essays on the Situation of Mental Patients and Other Inmates. New York: Anchor.

Greimas, Algirdas J. (1983), Structural Semantics: An Attempt at a Method. Lincoln: University of Nebraska Press [orig. ed.: 1966].

Grossberg, Lawrence (1992), We Gotta Get Out of This Place. London: Routledge.

Guerra, Paula (2014), “Punk, Expectations, Breaches and Metamorphoses: Portugal, 1977-2012”, Critical Arts, 28(1), 109-120.

Guerra, Paula; Moreira, Tânia (eds.) (2015), Keep it Simple, Make it Fast! An Approach to Underground Music Scenes (vol. 1). Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Guerra, Paula; Silva, Augusto (2015), “Music and More than Music: The Approach to Difference and Identity in the Portuguese Punk”, European Journal of Cultural Studies, 18(2), 1-17.

Harvey, David (2005), A Brief History of Neoliberalism. Oxford: Oxford University Press.

Hebdige, Dick (1979), Subculture: The Meaning of Style. London: Routledge.

Henry, Tricia (1984), “Punk and Avant Garde”, Journal of Popular Culture, 17(4), 30-36.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 65

Hochshild, Arlie R. (1983), The Managed Heart: The Commercialization of Human Feeling. Berkeley: California UP.

Hoggart, Robert (1957), The Uses of Literacy. Aspects of Working Class Life. London: Transaction.

Johnson, Mark (2014), Seditious Theology: Punk and the Ministry of Jesus. London: Routledge.

Kruse, Holly (1983), Site and Sound. Understanding Independent Music Scene. New York: Peter Lang.

Lewin, Philip; Williams, J. Patrick (2009), “The Ideology and Practice of Authenticity in Punk Subculture”, in Phillip Vannini; J. Patrick Williams (eds.), Authenticity in Self, Culture and Society. London: Ashgate, 65-83.

Lyotard, Jean-François (1979), La condition postmoderne: rapport sur le savoir. Paris: Minuit.

Marx, Karl (1972), “The German Ideology”, in Robert C. Tucker (ed.), The Marx / Engels Reader. New York: Norton, 146-200 [orig. ed.: 1818].

Magaudda, Paolo (2007), “Sottoculture e creatività urbana in Pieri”, in Piero Pieri; Chiara Chiarella (eds.), Arti, Comunicazione, Controcultura. Bologna: CLUEB, 43-59.

Melucci, Alberto (1984), Altri Codici. Bologna: il Mulino.

Merton, Robert K. (1938), “Social Structure and Anomie”, American Sociological Review, 3(5), 672-682.

Milburn, Keirn (2001), “When Two Sevens Clash: Punk and Autonomia”, contribution to No Future conference, held in September 2001 at University of Wolverhampton, United Kingdom.

Mitchell, Tony (1996), Popular Music and the Local State. London: Leicester University Press.

Nehring, Neil (1993), Flowers in the Dustbin: Culture, Anarchy and Postwar England. Ann Arbor: University of Michigan Press.

Philopat, Marco (2006), Lumi di punk. Milano: Agenzia X.

Reddington, Helen (2007), The Lost Women of Rock Music. Aldershot: Ashgate.

Rossi, Marco (2014), Quello che deve accadere, accade. Storia di Giovanni Lindo Ferretti e Massimo Zamboni. Firenze: Giunti.

Simmel, George (1905), Philosophie der Mode. Berlin: Pan Verlag.

Simmel, George (1972), “The Metropolis and Mental Life”, in Donald Levine (ed.), Simmel: On Individuality and social forms. Chicago: Chicago University Press, 324.

Simmel, George (2004), The Philosophy of Money. Chicago: Psychology Press [orig. ed.: 1900].

Sloterdijk, Peter (2013), You Must Change Your Life. London: Polity.

Treccani (2015), Enciclopedia della lingua italiana. Roma: Treccani.

Worley, Matthew (2012), “Shot by Both Sides: Punk, Politics and the End of ‘Consensus’”, Contemporary British History, 26(3), 333-354.

Wright, Steve (2000), “A Love Born Hate. Autonomist Rap in Italy”, Theory, Culture & Society, XVII(3), 117-135.

NOTES

1. For reasons of space, they will often be referred to in this article as CCCP.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 66

2. The concept of neoliberalism used in this article refers to the definition by Harvey: “Neoliberalism is in the first instance a theory of political economic practices that proposes that human well‑being can best be advanced by liberating individual entrepreneurial freedoms and skills within an institutional framework characterized by strong private property rights, free markets and free trade. […] State interventions in markets (once created) must be kept to a bare minimum” (Harvey, 2005: 2). 3. Art schools played an important role in the development of subcultures (See Frith and Horne, 1987). 4. Even college radio had an important role in the formation of subcultures (see Kruse, 2003). 5. On the peculiarity of centri sociali in the history of subcultures in Italy, see Mitchell, 1996; Wright, 2000; Magaudda, 2007. 6. The label was created during the 1977 movement by Helena Velena, the transgender singer of a famous Italian anarcho‑punk band called RAF (Rebel Anarchist Fraction). In the 1980s, Attack punk was the most important label for Italian anarchopunk. 7. Eng.: Socialism and Barbarity (1987); Songs, prayers and dance of the II millennium – Section Europe (1989); Epic Ethic Ethnic Pathos (1990). 8. This article only focuses on CCCP lyrics and does not consider the CSI albums. 9. With reference to all the records mentioned before. 10. The number of dimensions and sub-dimensions may be greater than the number of lyrics, for the obvious reason that a lyric can contain more isotopies and sub-isotopies. 11. The lira was the official currency in Italy before the . 12. Greimas defined utterances of state as enunciates which define a state or a property (for example ‘the pen is blue’). On the contrary, utterances of doing include the transformation of objects and subjects (for example ‘I gave you a blue pen’). The former are more descriptive and poetic, while the second are more appropriate in narrative and prosaic texts. 13. Eng.: I am who you want to me to be. 14. A hotel in Rome which hosted important political meetings.

ABSTRACTS

Punk in Italy has largely been overlooked as a research topic in the past, focussing instead on the scene in other nations. This article examines the Italian punk scene and its transition from classic to post-punk, focussing on its most famous and significant band: CCCP – Fedeli alla linea.1 After a short introduction to the historical and cultural background, the results of a qualitative textual analysis of CCCP lyrics using algirdas Greimas’ methodology for narrative semiotics (1983) will be presented. as the results show, CCCP’s artistic production can be interpreted as a subversive and ironic parody of the collectivist traditions that were dominant in Italian politics and culture at the time (communism and Catholicism), and as a creative critical reaction to neoliberalism. The conclusion briefly discusses certain theoretical issues such as the relationship between punk and authenticity, and compares Italian punk with british and Portuguese punk.

O punk em Itália foi amplamente ignorado enquanto objeto de estudo no passado, sendo que a atenção se centrou antes sobre a cena em outros países. O artigo examina a cena punk italiana e a sua transição do punk clássico para o pós-punk, tendo por referência o seu grupo mais famoso e representativo: CCCP Fedeli alla linea.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 67

Após uma breve introdução do contexto histórico e cultural do grupo, apresentamos os resultados da análise qualitativa textual das suas músicas, usando a metodologia da semiótica narrativa de Algirdas Greimas (1983). Os resultados mostram que a produção artística do grupo CCCP pode ser interpretada como uma paródia subversiva e irónica das tradições coletivistas dominantes na política e cultura italianas da época (comunismo e catolicismo) e como uma reação criativa crítica ao neoliberalismo. Na conclusão debatemos brevemente algumas questões teóricas, como a relação entre o punk e a autenticidade e comparamos ainda o punk italiano com o punk britânico e português.

Le punk en Italie a largement été omis en tant qu’objet de recherche par le passé, l’attention s’étant plutôt centrée sur la scène d’autres pays. Cet article se penche sur la scène punk italienne et sur son passage du punk classique au post-punk, prenant pour référence son groupe le plus fameux et représentatif: CCCP Fedeli alla Linea. Après une brève introduction de leur background historique et culturel, nous présenterons les résultats de l’analyse qualitative textuelle des chansons du groupe CCCP en utilisant la méthodologie de narrative sémiotique d’Algirdas Greimas (1983). Les résultats montrent que la production artistique de CCCP peut être interprétée comme une parodie subversive et ironique de la tradition collectiviste dominante de la politique et de la culture italiennes de l’époque (communisme et catholicisme), tout autant que comme une réaction créative au néolibéralisme. En termes de conclusion, nous nous penchons brièvement sur quelques questions quant au rapport entre le punk et l’authenticité, et nous comparons le punk italien au punk britannique et portugais.

INDEX

Palavras-chave: Fedeli alla Linea: CCP, música italiana, música punk, produção artística, sociologia da música Mots-clés: Fedeli alla Linea: CCP, musique italienne, musique punk, production artistique, sociologie de la musique Keywords: artistic production, Fedeli alla linea: CCP, Italian music, punk music, sociology of music

AUTHOR

VINCENZO ROMANIA

Associate Professor of Cultural Studies Department of Philosophy, Sociology, Social Psychology and Education Università Degli Studi di Padova, Via Cesarotti 12, 35123 Padova, Itália [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 68

Daughters of Rock and Moms Who Rock: Rock Music as a Medium for Family Relationships in Portugal Filhas e mães do rock: A música rock como mediador de relações familiares em Portugal Filles et mères du rock : La musique rock comme médiateur de relations familiales au Portugal

Rita Grácio

EDITOR'S NOTE

Revised by Sheena Caldwell Received on 22.07.2015 Accepted for publication on 18.01.2016

Introduction

1 The family is a key site for children’s musical worlds, as several studies in the fields of music education, infant psychology, ethnomusicology, sociology and anthropology have shown (Campbell, 2011; Reeves, 2015; Sloboda, 2005; Young, 2012).

2 This article addresses the role of rock musicking (Small, 1998) in family relationships, from the perspective of women rockers, via their roles as daughters and mothers (whether they overlap or not). Based on research conducted in Portugal and drawing on in-depth interviews with women, this paper explores the role of rock musicking in two dyadic family relationships (father-daughter; mother-children).

3 Section I analyses memories from the childhood and youth1 of women who define their love of rock music as part of a family tradition. Self‑identifying as rock music fans and/

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 69

or musicians and DJs, their interest in rock music was acquired from their fathers, through everyday musicking practices. As these women grow older, a whole set of musical items – songs, records, – is appropriated as part of the family legacy. Music is used to perform nostalgia and “memory work”, as well as to strengthen intergenerational ties in adult years.

4 In Section II the mother‑child relationship is the main unit of analysis, from the perspective of women rockers who become mothers – whether they were brought up by rock‑loving fathers or not. Music becomes part of their mothering ‘toolkit’ (Swidler, 1986), at the intersection between personal musical maps and family ecologies. Mothers enact different musical mothering styles and use rock music as a resource for specific reconfigurations of mothering. The mundane setting of car journeys is an example of a “music asylum” (DeNora, 2013), a physical space where through music, mothers can, at different times, gain respite from their role as child‑centered caregivers and also restyle their relationship with their children.

5 These two sections offer two complementary perspectives on the intergenerational musicking processes of enculturation, family bonding, memory work, informal music education and musical (e)valuation within families, in domestic spaces. More broadly, this paper aims to contribute to the literature on the uses of musicking as an “active ingredient” in family relationships. In other words, it explores how socio‑material practices configure and consolidate ways of being together, in this case within a family relationship.

6 Before moving onto the empirical sections I and II, I would like to detail the methodology and clarify the theoretical focus of the study.

Methodology

7 This paper is based on qualitative data collected from the fieldwork for the PhD research project “Woman and ”.2 From 2012 to 2014, I conducted 59 in‑depth interviews with white Portuguese women3 who self‑identified as rock music fans and/or musicians and DJs. The participants were mainly recruited using snowball sampling and by identifying DJ and musician pages online.

8 The oldest interviewee was 50 years old and the youngest 18, but the majority interviewees were aged between the late twenties and forties. They all live in urban areas of Portugal. The majority had at least one degree (only 10 did not attend university, 8 of whom had completed secondary education).4 Most of the participants were currently musicians (3 were professional musicians, living exclusively from music), and/or DJs. Only 12 interviewees were fans i.e. had no current or former musical experience as instrumentalists and/or singers and/or DJs. This paper focuses initially on the interviewees5 who link their interest in rock to their fathers’ tastes, as detailed in Table 1:

TABLE 1 – List of interviewees who stated they had inherited their interest in rock music from their fathers

INTERVIEWEE DATE OF BIRTH MUSICAL ROLE

Ana 1985 Fan

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 70

Aurora 1980 Musician and DJ

Catarina 1980 Musician and DJ

Diana 1984 Musician

Filipa 1985 Musician

Joana 1983 Fan

Liliana 1982 Musician

Mónica 1985 DJ

Rosa 1982 Fan

Sílvia 1979 Musician

Teresa 1984 Musician

Zélia 1984 Musician

9 Of these women, only Catarina also appears in Section II, which focuses on the experiences of mothers6 (cf. Table 2).

TABLE 2 – List of rock mothers interviewed

INTERVIEWEE MUSICAL ROLE MARITAL STATUS NUMBER OF CHILDREN & SEX

Carla Musician Divorced 2 sons

Catarina Musician, DJ Divorced 2 sons, 1 daughter

Clarice Fan Divorced 1 son, 1 daughter

Elizabete Fan Single mother 1 daughter

Elvira Musician, DJ Married 2 daughters

Fátima Former musician Married 2 sons

Hilda Musician Divorced 1 son, 1 daughter

Laurinda Musician Married 3 daughters, 1 son

Lúcia Fan Married 2 sons

10 Nine mothers whose ages ranged from the early thirties to early fifties, were interviewed. They are all educated (with exception of Fátima, they all have degrees), middle‑class (salaried) working mothers. With regard to marital status, four women were divorced, four were married and one was a single mother.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 71

Musicking in Everyday Family Life: Reclaiming the Domestic Musical Praxis

11 The domestic musical praxis and family music traditions play a crucial role in how children construct meaning from music, as well as in family bonding, and identities.

12 Music education studies have popularized the concept of “music enculturation” (Batt‑Rawden and DeNora, 2005; Campbell, 2011) to refer to the role of music as a socializing medium, acknowledging the processes of musical immersion by listening, watching, and/or imitating the surrounding auditory ecosystems of families, neighborhoods, schools and communities.

13 However, socio‑music studies, particularly rock music scholarship, tend to overlook the role of family and everyday musical practices in the home at the expense of friends and peers within “subcultures”, “neo‑tribes”, and “scenes”, with the exception of its role in musicianship. Socio‑music ethnographies show how parental encouragement and (financial) support play a crucial role in children’s and young people’s musical development and later musical success (Cohen, 1991; Green, 2001; Finnegan, 2007). Another strand of enquiry into families fostering cultural and musical engagement has focused on these processes as forms of “cultural capital” and reflections of class‑based inequalities (Bennett et al., 2009).

14 Susan Young’s (2012: 114‑115) thorough literature review of everyday musical experiences among children and young people supports this claim. Young contends that studies have overlooked home and school, focusing on musical experiences taking place among peer groups in non‑home and non‑school (physical or virtual) spaces (e.g. the ‘garage’ for amateur band rehearsals and after‑school clubs, as well as new media and mobile technologies). The domestic environment has mostly been studied as the setting for (musical) “bedroom cultures” (McRobbie and Garber, 1991), where girls can escape to pursue their own media interests and leisure activities (Lincoln, 2014), including their own musical preferences apart from (and in opposition to) other family members (Baker, 2004), overlooking the media (and musical) ecologies in the home.

15 Studies on family musical relationships, specifically musical parenting, have tended to focus on preschool children and their first musical learning experiences (Custodero and Johnson‑Green, 2003; Ilari et al., 2011). The lullaby is the paradigmatic example of how the relationship between the caregiver and the infant constitutes a “communicative musicality” event (Trevarthen, 2002). Two studies on musical parenting that develop this focus are worth mentioning. One constitutes a “theoretically grounded conversation” between a feminist mother (the author) and her teenage daughter (the co‑author) on the place and role of popular music in their everyday shared experience (Valdivia and Bettivia, 1999). The other focuses more broadly on the family (rather than peer) legacy of subcultural capital in the northern soul scene in the UK. Smith (2012) ethnographically examines how parents share their cultural spaces with their offspring and how the scene is appropriated by the soul child.

16 These studies are important as they reveal other forms of musical experiences that sociology traditionally leaves out when considering “cultural practices”. If we accept DeNora’s claim (2013: 57) that “we need to conceptualize cultural participation in ways that do not predefine what is and is not cultural”, a whole set of musical experiences

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 72

open up for analysis, such as humming, clapping, dancing, listening to others singing, singing along, or shared listening to recorded music. Music here is understood in its relational, collective and performative sense as musicking (Small, 1998:9). These micro‑attunements to music and musical practices are forms of mutual tuning‑in and mutual enjoyment (Schutz, 1951) and part of informal home activities that constitute situated learning situations7 (Sloboda, 2005).

17 This article documents the range of everyday domestic musical practices within family life, from the perspective of women, via their roles as daughters and mothers. A taste for rock music is considered a collective, situated, pragmatic activity (Hennion, 2007), intersubjectively accomplished by specific amateurs. Music, together with other activities, aesthetic materials, technologies and narratives, is an essential element in family relationships and part of the parenting “cultural toolkit” (Swidler, 1986), whether for fathers, as these women describe them (Section I), or mothers, as described in their own words (Section II).

Section I: “I’ve Always Loved Rock Music, I Get it from My Father”. Rock Musicking as Family Tradition and Nostalgia

18 Many interviewees referred to belonging to a “musical family”. When the interviewees talked about their musical preferences in terms of musical genre, it was located in their personal musical maps as something inherited from a specific member of the family – the rock music father8 – if not the outcome of a friendship group.

19 This section focuses on twelve interviewees who define their love of rock music as inherited from their family. These women were born in the 1980s and there is a correlation between this age group and the reproduction of rock music tastes in Portuguese families, since they are the daughters of the first generation of rock music fans in Portugal.9 This is very similar to the situation in Japan, as described by Koizumiâ (2011: 36), who highlights the importance of vertical networks in Japanese families and how “the construction of the musical identity of children through repeated listening to their parents’ favorite songs in the family car and living room began in Japan in the mid‑1980s”. These musical practices reconfigured the meaning of popular music in Japan, “from a symbol of youth rebellion to a communication tool between young people and their parents” (ibidem: 34). In the same way, these Portuguese women proudly described rock music as “inborn” or “genetic” and part of their “upbringing”, as illustrated in these extracts from the interviews: I don’t have that prejudice of seeing rock as aggressive, because my father is a rocker and I always grew up with rock. Márcia [her DJ partner] also learned to listen to rock, but in a different way, which is even more valuable, because she had to search for it, it is not inborn for her, as it is for me. (Mónica, DJ) I’m the daughter of a journalist, and I grew up surrounded by books, records, cameras… There was always lots of music in my life! At weekends my father used to read the newspaper and listen to music, Bruce Springsteen, The Pogues… we would travel… music was always in my life. (Diana, former bass‑player)

20 For Mónica, rock is part of her family tradition and belonging to a “rocker family” is used as a marker of differentiation from other types of (non‑musical, non‑rocker) families, therefore establishing differences between families.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 73

21 Diana describes rock music not just as part of the home environment assembled by her “cultural guide” – as she calls her father – but also part of her broader cultural home education.

Musical Objects at Home: Records, Turntables and Musical Instruments

22 The “rock father” type is presented by the daughters as an “audiophile” who owns records (an audio library) and sound technologies (stereo, turntables, etc.). Joana, for example, says: “My father had a vinyl collection, he loved music. He mostly listened to rock, old rock, like… Led Zeppelin, The Doors…”.

23 It is no surprise that all these interviewees highlighted shared listening practices involving recorded music. Joana described how this musical activity happened in a specific way: sitting on the living room couch in silence, with the music played loud, (no conversation allowed), sometimes with the lights switched off. Joana’s father was an electronic technician who made the effort to buy the components and assemble a high quality stereo with speakers. For Joana, this embodies her father’s love of music. On the other hand, Diana describes how she and her father would discuss lyrics.

24 Rosa stated: “there’s no musical talent in the family, but we’re all good listeners”. “Musical talent” for Rosa is equated with music‑making, highlighting the idea that listening to music has a lower status than making music. However, the importance of being a “good” listener is reframed as an equally relevant musical skill.

25 Due to the importance of recorded music, the interviewees described how their parents would enable them to build up their own audio libraries and have their own musical equipment – from providing the commercial children’s tapes of early childhood to financially supporting their own first CD purchases.

26 The musical items kept at home also included instruments – acoustic and electric guitars10 and bass guitars – in addition to records and stereos.

27 Liliana is a musician in her early thirties whose first music‑making experiences as a child were mediated by her father, an amateur acoustic player. When Liliana’s father passed way, she kept his guitar, which she started playing. Teresa, now a bass‑player, explains how she appropriated her father’s guitar – which he played for her as a child – as her first musical instrument: when I was 12, I looked at my father’s guitar… when I was little he used to play it for me, some songs from José Barata Moura, Zeca Afonso… he stopped playing, but the guitar was there, at home. So I looked at the guitar and I thought: “if I practice I can do it”. So I started trying on my own. I thought of a song and I was able to play it. Then, I asked my father to write down the chords and he did it, and I could play by ear. (Teresa, bass‑player)

28 Filipa’s father would play rhythm games with her, to which she attributes the rhythmic skills that encouraged her to take up drum lessons later on: “my father always encouraged me to have a notion of rhythm and tempo. He would go: can you do that? [clap his hands on his knees] and I would have to repeat it.”

29 For the current musicians, the easy access to musical instruments (in these cases, already available at home, but also bought for them whenever requested), combined with their father’s musical expertise, music games, and/or the family links with

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 74

instrumental playing, played an important role in their first steps to musicianship. This also developed in adult years, as the musicians reported how their parents still encourage them and sometimes attend their concerts. Both fans and musicians describe going to concerts with their fathers and/or sharing their record collections and playlists, thus building up shared audio memories. All these “daughters of rock” report actively maintaining a musical bond with their parents, with the exception of those who had passed away, as described in the following section.

Memory, Artefacts and Nostalgia

30 For the five women whose fathers had died, the narrativisation (Woodward, 2007: 152) of musical objects transforms the meaning of songs, records and guitars into devices associated with intergenerational aesthetic memories and nostalgia.

31 The artefact that embodies Joana’s memory of her father is a song by Led Zeppelin, her father’s favorite group. It is a romantic love song that she reframes as a daughter‑father love song: “the lyrics have nothing to do with it, except the chorus, because it says “since I’ve been loving you”, and my father is the person I’ve loved the most”. Therefore one specific element of this song – the lyrics of the chorus – not only recalls her relationship with her father, but is also an aesthetic item used to construct the emotional content and aesthetic form of her father’s memory.

32 Music offers a temporal structure so that the feeling of loss and nostalgia can be described musically (Frith, 2007), as the embodiment as well as the expression of this feeling, constituting it in the process (DeNora, 2000). When Diana’s father passed away, the songs, books and cameras she grew up with become important artefacts that heightened her sense of being in “the family nest”. She started listening to the “” that her father used to listen to: when I’m alone. When I’m nostalgic. When I’m going through troubled times I need to feel that... that sense of being in the nest, the sense of family. I lost my mom when I was 15 and my father last year, so for me it is important to search for that, to feel as if I’m inside the nest. To be in touch with what I know… (Diana, former bass‑player)

33 Nostalgia is therefore a form of consciousness, musically mediated by the active self‑reflexive agent. Songs and bands become re‑classified (e.g. as “classic rock”), at the crossroads of biographical associations and collective memory, mediating between past and present rather than simply yearning for the “good old days” (cf. Pinch and Reinecke, 2009).

34 This section has documented the intergenerational musical practices passed on from fathers to daughters. Based on the childhood memories of daughters, rock music fathers become “cultural guides” through the use of specific musical materials and technologies (rock bands and songs, records, musical instruments) and informal musicking practices at home. Rock music “genetics” is, in fact, an interactional achievement, temporally and spatially situated, which draws people, objects and technologies together.

35 So far, the outcomes of musical parenting practices on children has been traced from the perspective of daughters. The following section examines musical mothering from the perspective of the mothers.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 75

Section II: “I’m a Rock Mom”. Musical Maternal Subjectivities and Practices

36 Women rockers who become mothers use rock music as an “active ingredient” (DeNora, 2000) in mothering. The mothers11 described how they either intuitively or consciously use music on specific occasions, times or life stages, to bond, care for, interact with and teach their children and for being together – in other words, music is used as a child‑rearing technique and a “technology of” mothering – in the Foucauldian sense. Different elements configure these methods and the ways in which music is used in the mother‑child relationship, namely the age of the children (since a toddler is not a teenager), the number of children, the mother’s musical role (fan, musician or DJ), and the personal musical maps of each family member, as well as the intergenerational family culture.

37 In western societies motherhood is represented as a child‑centered experience performed by selfless mothers who, guided by experts, are the central caregivers, and invest emotionally and financially in their children – in what Hayes (1996) has termed “intensive mothering” grounded in an ethos of “sacrificial motherhood” (O’Reilly, 2004). Rosa Monteiro’s (2005) study of Portuguese (salaried) working mothers analyzed the ways in which these mothers negotiate this model. Monteiro found that the work‑family dualism does not have to be mutually exclusive, as women value both work and family life, refusing strategies that confine them exclusively to the traditional roles of (house)wives and mothers. A difference was also found between working‑class and middle‑class mothers: the former tend to identify with a discourse of good mothering as being a “caring mother” who provides total care for her children and the latter with a “mentoring mother” discourse that posits motherhood as crucial, but just one of the realms in which women must be successful. This caring/mentoring dynamic pervades different musical mothering styles and practices in nuanced ways, reflecting the different “attitudes, values, beliefs, and behaviors that parents [mothers] bring to [musical] settings in which they interact [musically] with their child or children” (Alwin, 2004: 152). Musical mothering styles and practices are forms of active engagement with children’s education, and social boundary‑making practices.

Musical Mothering Styles and Practices

38 The mothers are fully supportive in promoting music‑making practices – they expressed a desire for their children to learn musical skills and actively try to engage their children in formal musical learning. However, they have different ideas about what a child should be ‘allowed to’ listen to. Attentiveness and mediation in children’s (shifting) musical tastes is part of the mother’s care work and determining what constitutes child‑appropriate music genres is also part of musical mothering. They are more concerned about (and exercise greater control over) musical genres than ways of listening to music and the technologies associated with this – e.g. music played too loud, the use of earbuds. Mothering styles range from encouraging musical (self‑)exploration associated with promoting the child’s autonomy, to controlling children’s musical tastes and practices, and from influence and interference to banning (restrictive mediation).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 76

39 Most of the mothers follow an ‘exposing/showing, not imposing/forcing’ ethos as a practical mothering guideline to deal with children’s musical preferences, which starts at an early age. The music in the domestic environment for newborns and toddlers is something mothers can control. Moreover, the mothers who had rock music at the core of their personal musical maps all refused to play “children’s music”. Instead, they played “their music” for “their children”, renegotiating the dominant discourses on “appropriate” music‑for‑children and reformulating the rock and heavy metal genres as (their) “children’s music” genre. Catarina highlights her musical choices as part of her family rock music tradition: her father never played “children’s music” for her, so she had no intention of doing so either.

40 As the children grow up, there is a growing concern to provide them with the space for (musical) exploration, in which colleagues and friends are also acknowledged as potential musical peers. Although exposure is important, the mothers also believe they should not hold their children back and confine them to their own musical tastes. They expressed a concern for the child’s individuality and autonomy that can be articulated musically and recognized that children need to establish themselves as autonomous (musical) subjects.

41 Lúcia adopts the strategy of giving her children the chance to “taste a bit of everything” – promoting “omnivorous” cultural practices (cf. Peterson and Kern, 1996). Providing her children with a wide range of musical genres and styles – from classical music and opera to Iron Maiden – is seen as part of their broader cultural education, intellectual and cognitive development and a way of enriching their lives. This is a mothering style in which her professional role as a teacher merges with her role as a mother.

42 Musical self‑exploration (usually with friends and peers) might result in a child’s own musical preferences clashing with those of their parents and tensions may arise over musical differences.

43 Elvira, a 48‑year old married mother of two girls (aged 18 and 15), illustrates this tension, and how she deals with it: I think the more you antagonize them, the worse it becomes… They have to be the ones to discover things, to judge those things, otherwise they can’t tell the good from the bad. And don’t forbid anything: “you’re not listening to this!”. I wouldn’t do that. Of course… there are those periods when they’re really influenced by their friends… but it’s also a part of their world, because it’s theirs and their friends’… (Elvira, musician and DJ)

44 When her children’s tastes clash with hers, Elvira adopts ‘guidance’ as a musical mothering style – “But then, we guide them!” In order to guide, mothers have to monitor their children’s tastes, so they can respond to them: the youngest likes the band “One Direction”, what can I do? [shrugs her shoulders and laughs]. And I had to explain to them: ‘Are you listening to this song? This is a cover of a Blondie song!’ And she goes: ‘Ahhh! I thought I knew it… Now I remember, we used to listen to it in the car’. Of course! We used to listen to Blondie! (Elvira, musician and DJ)

45 Musical guidance in this case is accomplished through conversation. “Talking about music” in informal settings has been studied as part of musical communication and as a tool for social action, both among musicians and music fans (MacDonald et al., 2005) but

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 77

it is equally important for mothers, who use it as a form of musical mothering and an educational tool.

46 Lúcia explained how she teaches her children to pay attention to music, namely to the lyrics: “I always tell them it is very important to listen to what’s being said!”. Lúcia is an Iron Maiden fan and tries to teach her children that listening to songs also involves learning about history, English and life: I try to pass on that message. And every time I find out something new, I talk to them. Well… I don’t have many people to talk to about this, so I talk to them, I pour it out to my children [laughs]. And they get used to that and listen to me, and listen to the songs. (Lúcia, fan)

47 Here children are also reframed as musical peers: the mother‑child relationship is reconfigured in terms of musical fandom. Talking about music and sharing music involves interaction between one music lover and another. It is a dynamic, dialogic relationship in which they learn from each other. Catarina explained how her children’s musical remarks opened up new aspects of music for her that she had never thought of – even though she has been a long‑time rock music fan.

48 The apprentice becomes an expert too, as Clarice also experienced. Clarice is a divorced 40‑year old mother of a 13‑year old boy and an 8‑year old daughter. She tells me that she and her older son shared the same musical tastes, but then he evolved into “heavier stuff”, and because of that she become the “softer” one: He started off listening those Disney Channel songs. Then he started listening to System of a Down, and from there he rushed into heavier stuff, he ran faster than I did! Now he listens to things that I can’t, and he can tell the screams from the growls, all those different types of sounds. And I stick to the softer stuff. (Clarice, fan)

49 The “heavy vs. soft” opposition is relational. Clarice’s musical preferences – such as mathcore – might be considered heavy by some, but within her family musical maps she has become the “soft(er)” one.

50 Having seen how mothers view talking about music as important, there are also other ways of providing musical guidance. Sometimes it may materialize as an unforeseen outcome of the most mundane of actions, as Elizabete, a punk rock fan and 30‑year old single mother of a 12‑year old daughter, describes: I started noticing that my daughter liked Regina Spektor, because I would play it as my alarm clock song. Then I was surprised when I checked the browsing history and found searches on Regina Spketor: it was my daughter! And then she asked me the name of the song on the alarm clock because she liked it. And I really liked that she was liking it! So I think it’s bit by bit…we can’t impose things on our children. That thing about the alarm clock: I didn’t do it on purpose, but it worked: I made her like an artist I love. (Elizabete, fan)

51 However, this “bit by bit” exposure ethos can change into a ban when it comes to pop music, for example the male pop idol Justin Bieber: Q: Why don’t you want your daughter to listen to Justin Bieber? Is it the lyrics, the music itself…? A: The songs are stupid, and people who like those songs are not very smart, and I want my daughter to be smart. I always associate rock music with good lyrics, rock is something that not everyone can understand. And I have never met anyone who likes rock and is dumb. So, I would like my daughter to like rock, because that increases the chances that she won’t turn out dumb. Q: Yes. I’m asking what it is about rock that makes people like this so

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 78

much. A: It’s the lyrics because it has to do with a kind of philosophy of life, with political things that you have to understand. It’s not just about having a pretty face and boobs, or whatever. And also because of the sound, the sound is strong, especially combined with the lyrics. It makes you think and take action. (Elizabete, fan)

52 These narratives about rock are common among rock fans – the construction of pop and its fans as the inauthentic, trivial, feminine ‘Other’, and the stigma of “teenyboppers” as a derided type of fandom (Duffett, 2013). Due to these “delineated” musical meanings (Green, 2001), Elizabete contrasts the content of pop and rock music (pop’s lightness and stupid lyrics as opposed to rock’s profound lyrics and strong sound), through which she establishes classed social types (dumb, shallow vs. critical mind) and femininities (criticism of hypersexualized “girlie” femininity, body vs mind). Classed gender inequalities are reproduced and transmitted by enacting gendered and classed musical stereotypes. The mainstream vision of the child as not‑yet‑adult and therefore the desire and authority to shape children’s pathways through life – within the boundaries of white middle class respectability (cf. Skeggs, 1997) by renegotiating the “good girl” ideal (cf. Walkerdine, 1997) – and the belief that music provides templates for (un)desirable ways of being and lifestyles, leads this mother to resort to extreme parental control.

53 Clarice deals with her daughter’s taste for pop music in a different way. She contrasts her two children’s music tastes: her older son started by listening to ‘Disney Channel music’, but evolved to rock and heavy metal, while her daughter “is still in the Disney Channel stage”. This means her daughter listens to Miley Cyrus,12 Shakira, and all the “light pop, with dancing chicks”. Although Clarice states she would prefer her daughter to listen to music she identifies with, she is resigned to this and adopts a different mothering style. Instead of forbidding, she tries to be flexible and considers musically “downgrading” to pop and/or electronic.

54 Having examined how mothers build up their relationship with their children and provide musical care – not without some tensions – configuring classed and gendered musical identities for their children, we turn next to how mothers reconfigure maternal subjectivity – transforming it from a sacrificial ethos into a more empowering one.

From “Sacrificial Motherhood” to Other Forms of Maternal Subjectivity: Moms Who Rock

55 Lúcia and Catarina voiced the experience of a radical shift in the way they experienced being a mother, which was articulated in and through music. Both Lúcia and Catarina explained that when their children were born they dedicated themselves to child care and domestic issues and were confined to the space within the house. It was aesthetic material – rock music and heavy metal – that provided the temporal and cultural workspace for the transition from an ethos of sacrificial motherhood to more empowering versions of maternal subjectivity. Conceptualizing music as a “cultural workspace” highlights the ways in which people render music habitable as a space and place for the work – in the ethnomethodological sense – of world‑making (DeNora, 2011).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 79

56 The two following excerpts describe this transition to a woman‑centered experience, constituted in and through musical identities and practices: Five years ago I was just going home, I had the kids, I wouldn’t leave the house and I was confined to one idea… then, it hit me, boom! “I don’t want to do this!”… And to be a bit more specific, I can tell you that at the age of 28, after a long period without DJing, I started DJing again. And I decided at the age of 28 that I wanted to have a band and to make music… and maybe that’s the greatest inspiration that came from rock… It awakened me to the kind of life I wanted to live. (Catarina, musician and DJ) The most important thing that music gave me was learning how to be by myself. […] I can spend an entire day on my own. I don’t rely on someone else’s opinion or how they feel, in order to feel good. Which gave me a new balance. And that balance came through music, from everything that music enabled… and from the way I experience music. (Lúcia, fan)

57 We can see that the transition between these two experiences of mothering was mediated by music and its socio‑material practices, but also the way in which it was experienced – music lovers are self‑reflexive individuals. Going back to a positive self in the past, for instance – “I used to be a very active and lively person” (Lúcia) – and bringing it forward was a strategy used in both interviews.

58 These women know they are shaping their mothering practices in ways that conflict with images, representations and discourses of the child‑centered caregiver – and they report being criticized by family and friends. In order to counteract the dangers of being stigmatized as ‘bad mothers’ these women establish new criteria for good mothering – criteria which they fit – by reaffirming their unconditional love for their children, claiming that they are responsible mothers (no maternal responsibilities and duties are neglected), that they have achieved a balance between motherhood and womanhood, and that being a ‘happy person’ and having time for oneself means being a better mother, which benefits both the mother and her children: I realized I can do everything [work‑life balance], I can keep an optimal balance, I can pay attention to my children, they deserve all my attention, but I can also pay attention to myself, because I also deserve it. And I found out that when you’re doing things that make you happy, that influences your children’s happiness, because you can be more patient with them, you’re much happier, self‑fulfilled… (Catarina) Nowadays, please don’t get me wrong, I love my children! They’re the most important thing in my life. But I learned to have moments for myself. (Lúcia)

59 Time to oneself is a vital when moving on from sacrificial motherhood. It is then that socio‑musical practices – DJing, listening to music at home and in the car, and going to concerts – provide a time and a cultural workspace for ‘removal’ from their role as mothers‑only.

60 DeNora uses the concept of ‘asylum’ to describe both phenomenological experiences and environmental constructs: “asylum can be defined as a space, either physical or conceptual, that either offers protection from hostility (a refuge) or, more positively, a space within which to play on/with one’s environment, whether alone or in a concert with others” (DeNora, 2013: 47). In other words, music asylums can be workspaces for “removal” (individual, private) or “refurnishing” (public, collective) activities and experiences, and the two forms are not mutually exclusive. These mothers use rock as a “music asylum” in the sense it offers a respite from sacrificial motherhood, but also helps them to bond with their children. Music becomes a resource for self‑care and

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 80

care work. Through creative re‑arrangements of social scenarios and places, rock music asylums are musically crafted for (temporary) ‘removal’ from the normative expectations, discourses and practices associated with motherhood. These women become rock moms and moms who rock, a valued musical identity beyond the family circle.

The In-car Musicking Asylum

61 The way in which mothers and children listen to music together in the car configures it as a music asylum. Michael Bull (2004) identified the automobile as a “listening chamber”, as a mobile existential space where mobile sound technologies (radio, sound systems, mobile phones) combine, given that “car habitation” is part of an ecology of media uses and everyday routines. Bull points out that drivers use the car as a free space and a refuge. For the mothers who feature in these interviews, a car journey can be both a solitary and a family moment (taking kids to school, picking them up), and this continuous movement is part of their everyday routine. In the confined space of the vehicle, parents are responsible both for their children’s safety and their wellbeing, which includes managing the musical environment in the car.

62 For Clarice and her children, the car is the place where they all listen to music together (as opposed to the privatized home space). The car becomes more than a listening chamber, as the practice of listening to music in the car includes singing along. In‑car singing can also be a way of controlling both the sonic environment and disruptive behavior, as Laurinda, a mother of three preschool children, vividly describes: “It is a way of stabilizing the environment. Sometimes things are about to go wrong (tantrums, fights…) and you start: ‘ok kids, let’s sing a song! All together now’!”

63 For Lúcia, when driving alone, the car and the soundtrack she carefully chooses become the privileged ‘listening chamber’ for removal. When accompanied by her children, the mother’s car is a space for “mom’s music”. Although Lúcia plays the music she likes, she opens up a space for negotiation and uses music to teach her children to respect different musical tastes. In‑car musicking becomes a template for modelling cooperative, prosocial musical and extra‑musical behavior, as Lúcia explains: At first, when they asked me to change the song, I would. But then… they have to understand that even if they don’t like a song, someone else might! And if we’re in the car, if we’re 3 or 4 people in the car, we must reach an agreement. Sometimes we have to give up what we want to play or listen to. But that was easy to change. Now, before they ask me to change the song, they first ask me ‘do you like this song?’ If I say “yes”, they won’t say anything. If I say “I don’t like it that much”, then they ask “could you please change it?”, and I do.

64 When mothers give up listening to their music, it is common practice to use the radio as the car soundtrack to create a neutral musical atmosphere.

65 Carla is a heavy metal singer and guitarist. Since she wants her two teen and pre‑teen boys to find their own musical tastes, she listens to the radio in the car and/or plays her children’s musical choices – which she finds beneficial as she can expand her musical knowledge as a musician. However, there are exceptions to the music routine in the car that are related to Carla’s role as a musician. When the new album by Carla’s band came out, they all listened to it in the car and the children would comment on it: “I like this song better” or “play the other one”. On another occasion Carla was unexpectedly invited to play in a band. As she had very little time to rehearse, she

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 81

listened repeatedly to the songs in the car to memorize them. The car became her rehearsal space and her children the spectators – although not passively, as Carla reported, since they would express their discontent with the situation. When Carla’s role as a mother overlaps with her role as a musician, the former is relegated to the background, and the latter comes to the fore.

Conclusion: Rock Music as a Family Soundscape

66 Musical taste is a pragmatic achievement, actively mediated by parents using specific technologies for listening in real‑time social settings (at home, in the car). Rock music scholarship has shown the relevance of social agents such as friends, schoolmates, peers and partners musicking together in scenes, subcultures and neo‑tribes. In addition to these actors and realms, drawing on ethnographic examples of two specific dyadic family relationships (father‑daughter; mother‑children), I have documented how family and domestic spaces are relevant when analyzing everyday rock musicking. Music is the medium which constitutes the domestic and affective soundscapes of the home, family life and family relationships.

67 Socio‑music studies on women’s trajectories in rock music have acknowledged the role of male networks – mainly friends and boyfriends. The empirical data presented here shows that fathers also play a role in these trajectories. In fact, the role of the family has been studied as the catalyst for musicianship. The interviews confirmed the importance of the family in female (rock) musicianship, whilst also demonstrating its relevance to other forms of musicking.

68 The intergenerational transmission of musicking practices configures the ways in which people listen to music, make music, and re‑transmit music. Attachments to rock are situated within the broader scheme of family continuity, in which a whole array of musical items – from songs to guitars or records to stereos – gain special meanings as they are narrated as family artefacts.

69 For women rock fans who became mothers, rock musicking practices are integrated into their everyday lives and mundane child‑rearing and childcare practices. As music stages an “object lesson” (DeNora, 2011) not just about aesthetics, but also about morality, competences and social types, these mothers negotiate how children listen to music and which genres they explore, thus configuring specific musical childhoods, crafting classed and gendered subjectivities for their children. They also use rock music to negotiate their own roles as mothers, musically staging more empowering ways of being mothers – as rock moms.

70 Rock musicking becomes an “active ingredient” in the making of family life and relationships, creating memories and nostalgia, supporting mundane interactions and offering musical opportunities for family members. In fact, it becomes a socio‑material practice that “holds together” rock families.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 82

BIBLIOGRAPHY

Alwin, Duane (2004), “Parenting Practices”, in Jacqueline Scott; Judith Treas; Martin Richards (eds.), The Blackwell Companion to the Sociology of Families. Oxford: Blackwell, 142‑157.

Baker, Sarah (2004), “Pop in(to) the Bedroom: Popular Music in Pre‑Teen Girls’ Bedroom Culture”, European Journal of Cultural Studies, 7(1), 75‑93.

Batt‑Rawden, Kari; DeNora, Tia (2005), “Music and Informal Learning in Everyday Life”, Music Education Research, 7 (3), 289‑304.

Bennett, Tony; Savage, Mike; Silva, Elizabeth; Warde, Alan; Gayo‑Cal, Modesto; Wright, David (2009), Culture, Class, Distinction. London: Routledge.

Bull, Michael (2004), “Automobility and the Power of Sound”, Theory, Culture and Society, 21(4‑5), 243‑259.

Campbell, Patricia (2011), “Musical Enculturation: Sociocultural Influences and Meanings of Children’s Experiences in and through Music”, in Margaret Barrett (ed.), A Cultural Psychology of Music Education. Oxford, UK: Oxford University Press, 61‑81.

Cohen, Sarah (1991), Rock Culture in Liverpool: Popular Music in the Making. Oxford: Oxford University Press.

Custodero, Lori; Johnson‑Green, Elissa (2003), “Passing the Cultural Torch: Musical Experience and Musical Parenting of Infants”, Journal of Research in Music Education, 51(2), 102‑114.

DeNora, Tia (2000), Music in Everyday Life. Cambridge: Cambridge University Press.

DeNora, Tia (2011), Music‑in‑action: Selected Essays in Sonic Ecology. Farnham: Ashgate.

DeNora, Tia (2013), Music Asylums: Wellbeing through Music in Everyday Life. Farnham, Surrey/ Burlington, VT: Ashgate.

Duffett, Mark (2013), Understanding Fandom: An Introduction to the Study of Media Fan Culture. New York: Bloomsbury.

Finnegan, Ruth (2007), The Hidden Musicians: Music‑making in an English Town. Middletown, Conn.: Wesleyan University Press.

Frith, Simon (2007), “Reflections on the History of Popular Music”, Musicology (Serbia), 7, 247‑257.

Green, Lucy (2001), How Popular Musicians Learn: A Way Ahead for Music Education. London: Ashgate Press.

Guerra, Paula (2010), A instável leveza do rock: génese, dinâmica e consolidação do rock alternativo em Portugal (1980‑2010). Tese de Doutoramento apresentada à Universidade do Porto, Porto, Portugal.

Hayes, Sharon (1996), The Cultural Contradictions of Motherhood. New Haven: Yale UP.

Hennion, Antoine (2007), “The Things That Hold Us Together: Taste and Sociology”, Cultural Sociology, 1(1), 97‑114.

Ilari, Beatriz; Moura, Auro; Bourscheidt, Luis (2011), “Between Interactions and Commodities: Musical Parenting of Infants and Toddlers in Brazil”, Music Education Research, 13(1), 51‑68.

Koizumiâ, Kyoko (2011), “Popular Music Listening as ‘Non‑Resistance’: The Cultural Reproduction of Musical Identity in Japanese Families”, in Lucy Green (ed.), Learning, Teaching, and Musical Identity. Bloomington: Indiana University Press, 33‑46.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 83

Lincoln, Siân (2014), “‘I’ve Stamped My Personality All Over It’: The Meaning of Objects in Teenage Bedroom Space”, Space and Culture, 17(3), 266‑279.

MacDonald, Raymond; Miell, Dorothy; Wilson, Graeme (2005), “Talking About Music: A Vehicle for Identity Development”, in David Hargreaves; Raymond MacDonald; Dorothy Miell (eds.), Musical Communication. Oxford: Oxford University Press, 321-338.

McRobbie, Angela; Garber, Jenny (1991), “Girls and Subcultures”, in Angela McRobbie (ed.), Feminism and Youth Culture: From Jackie to Just Seventeen. Boston: Unwin Hyman, 1‑15.

Monteiro, Rosa (2005), O que dizem as mães: mulheres trabalhadoras e suas experiências. Coimbra: Quarteto.

O’Reilly, Andrea (ed.) (2004), From Motherhood to Mothering: The Legacy of Adrienne Rich’s of Woman Born. Albany: State University of New York Press.

Peterson, Richard; Kern, Roger (1996), “Changing Highbrow Taste: From Snob to Omnivore”, American Sociological Review, 61, 900‑907.

Pinch, Trever; Reinecke, David (2009), “Technostalgia: How Old Gear Lives on in New Music”, in Karin Bijsterfeld; José van Dijck (eds.), Sound Souvenirs: Audio Technologies, Memory and Cultural Practices. Amsterdam: Amsterdam University Press, 152‑166.

Reeves, Aaron (2015), “‘Music’s a Family Thing’: Cultural Socialisation and Parental Transference”, Cultural Sociology, 9(4), 493‑514.

Schutz, Alfred (1951), “Making Music Together: A Study in Social Relationship”, Social Research, 18(1), 76‑97.

Skeggs, Beverley (1997), Formations of Class and Gender. London: Sage.

Sloboda, John (2005), Exploring the Musical Mind: Cognition, Emotion, Ability, Function. Oxford: Oxford University Press.

Small, Christopher (1998), Musicking: The Meanings of Performing and Listening. Hanover: University Press of New England.

Smith, Nicola (2012), “Parenthood and the Transfer of Capital in the Northern Soul Scene”, in Andy Bennett; Paul Hodkinson (eds.), Ageing and Youth Culture Music, Style and Identity. London: Bloomsbury Academic, 159‑172.

Swidler, Ann (1986), “Culture in Action: Symbols and Strategies”, American Sociological Review, 51(2), 273‑286.

Trevarthen, Colin (2002), “Origins of Musical Identity: Evidence from Infancy for Music Social Awareness”, in Raymond MacDonald; David Hargreaves; Dorothy Miell (eds.), Musical Identities. Oxford: Oxford University Press, 21‑38.

Valdivia, Angharad; Bettivia, Rhiannon (1999), “Gender, Generation, Space and Popular Music”, in Cameron McCarthy; Glenn Hudak; Shawn Miklaucic; Paula Saukko (eds.), Sound Identities: Popular Music and the Cultural Politics of Education. New York: Peter Lang, 429‑445.

Waksman, Steve (1999), Instruments of Desire: The Electric Guitar and the Shaping of Musical Experience. Cambridge, Mass./London: Harvard University Press.

Walkerdine, Valerie (1997), Daddy’s Girl: Young Girls and Popular Culture. Basingstoke: Macmillan.

Woodward, Ian (2007), Understanding Material Culture. London: Sage.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 84

Young, Susan (2012), “Theorizing Musical Childhoods with Illustrations from a Study of Girls’ Karaoke Use at Home”, Research Studies in Music Education 34(2), 113‑127.

NOTES

1. My position here is that memory not only reflects, but also constructs experience. 2. This PhD research is financed by the Fundação para a Ciência e a Tecnologia – reference SFRH/BD/77073/2011. 3. With the exception of one immigrant woman living in Portugal. 4. The socio‑demographic features of the participants in my sample, namely their age and qualifications, match those of the (mostly) male participants in Guerra’s (2010) sociological research on the Portuguese alternative rock scene (1980-2010). The creators and producers of Portuguese rock music in Guerra’s study were mostly men in their thirties (followed closely by those in their twenties and forties), with a high level of high educational skills and correspondingly high social positions. As Guerra points out, the profile of these rockers contrasts with the average Portuguese population, but is similar to profiles of other artists. 5. All the interviewees’ names have been changed to ensure anonymity and confidentiality. 6. It should be noted that all the interviewees mentioned in Section I, with the exception of Catarina, are not mothers. 7. Although parents themselves might sometimes underestimate its potential to provide learning opportunities (cf. Papousek apud Sloboda, 2005: 298). 8. Only Ana reported listening to rock at home with her mother. 9. The first Portuguese rock/pop music bands appeared in Portugal in the 1960s. However, due to the political dictatorship in Portugal (1933‑1974) it was not until the 1980s that rock/pop and other international music genres flourished within a solid production, distribution and consumption circuit (cf. Guerra, 2010). 10. The presence of the acoustic guitar in Portuguese homes confirms its existence as a mass‑manufactured product which became available and affordable for regular consumers. Social histories of the guitar in the USA have documented how guitar companies designed, marketed and sold guitars, which become one of their bestselling and most coveted items (cf. Waksman, 1999). 11. Here I take the participants’ view, i.e. the perspectives of the mothers (which may conflict with the children’s perspective). I do not wish to claim that children are passive recipients of adult child‑rearing practices or deny their own agency, but the aim is to focus on the mother’s experiences. 12. The interview with Clarisse took place in 2012, before the 2013 controversy concerning Miley Cyrus’s (sexualized) musical performance – twerking – at the MTV Video Music Awards.

ABSTRACTS

This article discusses the role of rock musicking as a medium for family relationships. Drawing on qualitative data from interviews with women who self-identify as rock music lovers, it analyses intergenerational rock musicking processes and informal learning. Music, together with

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 85

other activities, aesthetic materials, technologies and narratives, is an essential element in family relationships and part of the parenting cultural toolkit, both for fathers, as the daughters remember and describe them, and for the mothers themselves. For women rock fans who become mothers, rock music articulates more empowering versions of maternal subjectivities, and specific settings – such as car journeys – can constitute “music asylums”. Taking two dyadic family relationships (father-daughter; mother-children), I argue that family and domestic spaces are relevant when analyzing everyday rock musicking.

Este artigo analisa o papel do “musicar” rock como mediador de relações familiares. A partir de entrevistas com mulheres que se identificam como amantes de rock, analisam‑se processos intergeracionais deste “musicar” e a sua aprendizagem informal. A música, em combinação com outras atividades e materiais estéticos, tecnologias e narrativas, é constitutiva de relações familiares; bem como parte integrante da “caixa de ferramentas culturais” de pais – tal como estas filhas os descrevem e relembram – e mães. Para as fãs de rock que se tornam mães, a música rock articula versões de subjetividade maternal que são mais capacitantes (empoderadoras); e contextos específicos – viagens de carro – constituem-se como “asilos musicais”. A partir de duas díades familiares (pai‑filha; mãe‑filhos/as) demonstro como a família e o espaço doméstico são fundamentais na análise do musicar rock quotidiano.

Cet article se penche sur le rôle du “musiquer” rock comme médiateur de relations familiales. À partir d’interviews avec des femmes qui s’identifient comme fans de rock, nous analysons des processus intergénérationnels de ce “musiquer” et son apprentissage informel. La musique, alliée à d’autres activités et matières esthétiques, technologiques et narratives, est constitutive de relations familiales; tout autant que partie intégrante de la “boîte à outils culturels” de pères – comme ces filles les décrivent et se souviennent d’eux – et de mères. Pour les fans de rock qui deviennent mères, la musique rock articule des versions de subjectivité maternelle qui sont plus capacitances (autonomisantes); et des contextes spécifiques – voyages en voiture – se constituent comme “asiles musicaux”. À partir de deux dyades familiales (père‑fille; mère‑fils/filles) nous démontrons combien la famille et l’espace domestique sont fondamentaux dans l’analyse du “musiquer” rock quotidien.

INDEX

Palavras-chave: mães e filhas, música rock, relações de família, relações intergeracionais, sociologia da música Mots-clés: mères et filles, musique rock, relations familiales, relations intergénérationnelles, sociologie de la musique Keywords: family relations, intergenerational relations, moms and daughters, rock music, sociology of music

AUTHOR

RITA GRÁCIO

University of Exeter Department of Sociology, Philosophy and Anthropology Amory Building, Rennes Drive, Exeter, EX4 4RJ, Reino Unido [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 86

Barulho nas ruas escuras: Estilo de vida e redes sociais nos agrupamentos roqueiros Noise in Dark Streets: Lifestyle and Social Networks in Rocker Groups Tapage dans les rues sombres: Style de vie et réseaux sociaux de bandes de rockers

Irapuan Peixoto Lima Filho

NOTA DO EDITOR

Artigo recebido a 21.07.2015 Aprovado para publicação a 21.12.2015

1 O presente artigo visa analisar a formação de uma movimentação social de roqueiros, ou seja, apreciadores do gênero musical chamado rock, na cidade de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, no Brasil, percebendo como a ação dos sujeitos configura uma rede social que chamamos de rede roqueira. Isto possibilita uma série de articulações de grande impacto cultural e social, mesmo que o “ser roqueiro” naquela cidade represente uma condição outsider, conforme será explicado adiante.

2 A partir da pesquisa empírica, percebe-se que a citada rede é alimentada por um estilo de vida roqueiro e que o mesmo é mobilizado através dos agrupamentos: coletivos distintos nos quais se vivencia o estilo de vida roqueiro na prática. A partir dessa realidade, neste artigo pretendemos construir uma reflexão sociológica sobre a adesão aos grupos sociais e às maneiras como são articulados internamente para a expressão de um estilo de vida dado.

3 Esta pesquisa iniciou-se como um projeto de doutorado em 2006, intitulado “A cena alternativa em Fortaleza: juventude e música naconstrução de sociabilidades, com financiamento da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) por meio de uma bolsa de estudos, e resultou em uma tese publicada como

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 87

livro (Lima Filho, 2013), embora continue de modo intermitente desde então. Foram realizados visitas a eventos, shows e festas; entrevistas, conversas informais; pesquisa documental; análise de CD e vídeos; e uso de redes sociais virtuais.

1. A rede roqueira em Fortaleza

4 Fortaleza está no Nordeste brasileiro, sendo a quinta maior cidade do país, com uma população de 2 571 896 habitantes e densidade demográfica de 7786,44 hab/km2, a maior dentre as capitais do país (IBGE, 2015). A cidade é polo da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), que reúne 19 municípios e uma população total de 3 949 974 habitantes.

5 Embora não goze da força econômica de outras capitais de porte semelhante,1 Fortaleza é uma metrópole regional, com grande importância e influência em estados vizinhos, concentrando ampla malha de serviços, indústria e comércio (Costa e Pequeno, 2015; Bernal, 2004). Quando afirmamos isso, falamos do tipo de cidade que aparece na fronteira entre a metrópole global (mais comum à teorização sociológica) e o mundo “estritamente” local das pequenas comunidades. Algo que nos remete à reflexão de Bhabha (1998) quando afirma que a relação entre o “global” e o “local”, chamada de “fronteira”, deveria ser a principal preocupação da sociologia.

6 Neste sentido, mesmo com destaque na região Nordeste do país, Fortaleza está distante do eixo de poder (econômico e cultural) do Brasil “do sul”, mais famoso internacionalmente, como Rio de Janeiro e São Paulo. Entretanto, por meio de sua grandeza populacional e situação socioeconômica, Fortaleza pode ser pensada como uma metrópole e, por isso, conecta-se às problemáticas globais.

7 Isto pode ser percebido também no âmbito cultural. Um movimento de rock (global) em uma realidade (local) como a de Fortaleza enseja grandes reflexões sociológicas. Ainda mais quando tal musicalidade cumpre função “marginalizada” dentro do sistema de produçãocultural e de entretenimento na cidade, onde o forró,2 domina o entretenimento musical local. Algumas das bandas de forró de Fortaleza fazem sucesso nacional.3 Por isso, a cidade comporta circuito expressivo de bandas, festas, shows, casas de espetáculos, programas de rádio e TV, estúdios de gravação e lançamento de CD envolvendo o forró. Tal tipo de música é consumida à profusão e é traço cultural fortíssimo do fortalezense médio.

8 Por isso, soa estranho, mesmo ao morador de Fortaleza, pensar em um “grande” movimento de rock na cidade. Ele existe, mas ocupa posição marginal nos meios de comunicação de massa locais e mais ainda no imaginário do fortalezense.

9 Em vista da hegemonia cultural do forró, os roqueiros de Fortaleza são percebidos e se percebem como outsiders, “fora do sistema”, marginalizados e estigmatizados. Ainda assim, por meio da rede roqueira, articulam considerável movimentação que resulta não somente na formação de bandas e das festas nas quais tocam; mas um circuito maior, com festivais, lojas, promotoras de eventos, produtoras culturais, estúdios musicais, gravações de discos e vídeos.

10 Equacionar o tamanho do que chamo de rede roqueira é difícil.4 Por isso, foi necessário criar uma maneira de dimensioná-la por meio de um levantamento exaustivo de bandas na cidade. Escolheram-se os conjuntos musicais porque necessitam de espaços para ensaiar e se apresentar, o que serve de catalisador de festas e shows.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 88

11 Tal levantamento se deu por vários meios: cartazes de festas, panfletos, reportagens de jornal, sites na internet, blogues, portais de distribuição de arquivos digitais, menções em conversas e entrevistas, etc. Mesmo ciente dos limites de tal método,5 foi possível aferir a existência do expressivo número de 411 bandas de rock ativas em Fortaleza entre os anos de 2000 e 2010.6

12 Se existem bandas são necessários locais para que as mesmas se apresentem e que os sujeitos que gostem desse tipo de musicalidade se encontrem. Com isso, usando mais ou menos as mesmas fontes elencadas, foi possível fazer levantamento de 73 espaços da cidade utilizados com alguma frequência pela rede roqueira no mesmo período de tempo. Estes espaços incluem não somente abrigos de festas e shows (em bares, boates e casas de concerto), mas especialmente, locais de encontro nos quais se criam laços de sociabilidade, como praças públicas e lojas de discos e produtos relacionados.

13 É importante frisar que pensamos tais lugares dentro da concepção sintetizada por Certeau (1996) de que um espaço é um lugar cujo sentido é construído por seus frequentadores, de modo que passam a ter significação diferenciada. Por isso os chamamos de espaços roqueiros. O curioso acerca desse levantamento é que tais espaços se espalham por várias zonas da cidade e não se restringem a bairros de classe média ou de melhor infraestrutura, ocorrendo também, mesmo de modo limitado, em bairros das periferias.

14 Este detalhe é importante porque, conforme se verificou nas entrevistas e conversas ao longo da pesquisa, ainda existe a noção nativa de que a maior parte da movimentação roqueira ocorre na região leste da cidade, ou seja, os bairros “nobres” próximos ao mar. Contudo, o levantamento aqui empreendido demonstra que, pelo menos nos últimos anos, há expansão da rede roqueira em direção ao oeste e ao sul, atingindo de maneira expressiva as periferias.

15 Esse pensamento exigiu a comparação dos espaços roqueiros de 2000-2015 com um período anterior. A pesquisa demonstra que as movimentações de rock que vão resultar na rede roqueira aqui descrita originam-se entre as décadas de 1980 e 1990.7 Quando se observa a distribuição territorial nos momentos citados, percebe-se a descentralização dos espaços roqueiros do leste para as periferias, conforme se pode verificar na Figura 1.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 89

FIGURA 1 – Espaços roqueiros em Fortaleza – comparação entre os anos 1980-90 e 2015

Fonte: Elaborado pelo autor.

16 A movimentação nesses espaços se intensifica porque há um alto grau de articulação gerado pelos atores sociais envolvidos. Desse modo, além dos sujeitos “tradicionais” de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 90

público e artistas, aparecem outros atores que tornam tal processo possível, mais bem organizado e amplificado.

17 Como o rock é um gênero musical “não consensual” em Fortaleza, não é historicamente alvo de investimentos do setor empresarial responsável pelo fomento do lazer da cidade. O capital financeiro movimentado para as festas de forró não migra para o rock. Assim, os roqueiros cedo tomaram para si a responsabilidade de viabilizar o próprio lazer, o que os levou a considerável grau de articulação e organização, mesmo com carência de capital econômico envolvido. Essa disposição é parte mesma do ideário do rock, do qual um dos lemas mais famosos é o do-it-yourself.8

18 Nas entrevistas com músicos das bandas e promotores de eventos, a ausência de capital econômico em torno das festas de rock era uma constante, e a maneira como os próprios roqueiros tomaram para si a responsabilidade de prover a infraestrutura necessária manifestou-se na formação de empresas de produção,lojas de discos e associações.A título de exemplo, o líder da banda Switch Stance, Maurílio Fernandes, montou a empresa Empire Records, em 2001, que de uma gravadora de discos evoluiu para promotora de eventos e proprietária de bares e casas de shows, como o Let’s Go Bar.

19 Outras formas de associação estão presentes, além da empresa capitalista: em 1998, os membros de várias bandas de heavy metal formaram a Associação Cearense Cultural de Rock (ACR), que atua como promotora de eventos (como o Festival Forcaos, que teve 16 edições até agora) e também produtora, promovendo parcerias com o Estado por meio da concorrência em editais de financiamento cultural que resultam em shows, discos e vídeos. De modo similar à ACR, existem outros coletivos organizados a partir das bandas, como o Movimento Independente Rock e Cultura (MIRC), fundado em 2006; e a Cooperativa Underground do Bom Jardim (CUNDER), fundada em 2005, que se articulou por meio da Panela Rock, que capitaneou gravadora, produtora e casa de shows e hoje é ativa por meio da Toca Good Garden.

20 Na ausência de capital econômico, os roqueiros recorrem a diversas estratégias, seja realizando festas autofinanciadas por meio da cobrança de ingressos (e na qual assumem os riscos), seja usando das políticas públicas de financiamento cultural do Governo do Estado do Ceará ou da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Neste caso, a ação de coletivos como ACR, MIRC e CUNDER terminaram por profissionalizar a participação nessas concorrências, permitindo maior acesso ao financiamento público e, em consequência, a realização de um número maior de ações.9

21 Chamamos essa movimentação de rede porque consideramos a articulação existente entre atores sociais específicos que, por meio de ações complementares, formam um todo não coeso, mas articulado, cujas ligações potencializam o alcance das ações e suas consequências. Existe o pensamento de que o incremento da tecnologia nas últimas décadas, especialmente a computacional, impulsionou a análise social para também entender a própria sociedade como uma rede integrada, como se percebe em Castells (2009) e Duarte e Frey (2008).

22 Souza e Quandt (2008) percebem que as redes culturais são mais coesas do que as econômicas, principalmente aquelas que se organizam em espaço físico próximo, pois garantem maior conectividade entre seus atores, uma reflexão que também se encontra em Castells (2009), que ressalta o aspecto da identidade operacionalizado por essas redes. Para este autor, o que mobiliza os agentes sociais na contemporaneidade são as

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 91

representações que têm de si mesmos, fortalecendo, portanto, o aspecto de autoidentificação e o sentimento de pertença gerado pela vinculação a grupos que partilham dos mesmos signos.

23 Em Fortaleza, a movimentação em torno do rock gera produto similar, com a organização se distribuindo por tipos distintos de atores que promovem ações complementares e articuladas, formando uma rede com o público, artistas, articuladores, responsáveis por infraestruturas de apoio e sedes de eventos e alimentadores de conteúdo.

24 Os articuladoressão responsáveis por colocar as bandas em movimento, por meio da promoção de shows e festas, quase sempre organizadas através de empresas e produtoras culturais, mas também por entidades associativas. Fazem a ponte entre os artistas e outros dois atores fundamentais da rede: os responsáveis pelas sedes de eventos e festas, como bares, restaurantes, boates, clubes e casas de shows; e os fornecedores da infraestrutura de apoio, aqueles envolvidos com estúdios de ensaio e gravação, que fazem manutenção de instrumentos e que disponibilizam equipamentos para aluguel ou uso. Também estão nesta categoria os envolvidos nas lojas que comercializam os produtos relacionados ao rock (roupas, acessórios, CD, DVD, etc.), pois como será mencionado adiante, o aspecto visual e de adereços é fundamental à figura do roqueiro.

25 Tendo em vista a amplitude da rede mundial de computadores, os alimentadores de conteúdo da internet também são pensados como atores à parte, com os sujeitos ativos em mídias que dão espaço ao rock (rádio, TV, jornais impressos, sites). Neste caso, temos também sites de trocas de arquivos e as redes virtuais de relacionamento, como o Facebook.10

26 Trabalhando em conjunto, público, bandas, articuladores, responsáveis por sedes de eventos e infraestruturas de apoio e alimentadores de conteúdo na internet terminam formando a rede roqueira de Fortaleza, que promove a sociabilidade de milhares de jovens por meio de seus desdobramentos. Uma visualização da rede encontra-se representada na Figura 2.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 92

FIGURA 2 – A rede roqueira e suas articulações

Fonte: Elaborado pelo autor.

27 O aspecto endógeno da rede, com a maior parte de seus atores formada quase exclusivamente por roqueiros, é algo que se destaca. Mesmo a articulação financeira, por meio das empresas, é realizada por eles próprios. Além de alguns pequenos investidores (na figura de donos de bares, por exemplo), praticamente o único parceiro externo à rede é o Estado.

28 Também é importante frisar, como já escrito, que tal movimentação não se faz somente em festas ou eventos. Parte significativa do público que os frequenta também mantém relações de sociabilidade mais corriqueiras, orientadas em torno do rock em momentos não festivos, como reuniões em espaços públicos para discutir sobre suas músicas e bandas favoritas, trocar material e experiências, namorar ou apenas ocupar o tempo. As turmas servem como orientadores de sociabilidades dos jovens e são elementos primordiais do sentimento de pertença ao ser roqueiro, algo que será aprofundado adiante.

29 A rede roqueira assume tal feição em meio à década de 2000, quando as condições objetivas permitem à articulação atingir esse nível. A existência desse esquema geral nãosignifica que os atores ou as estruturas sejam fixos, já que a inconstância é parte essencial de uma rede na qual o capital financeiro não é abundante.

30 Assim, bares, lojas e promotoras de eventos não raro têm vida curta, já que não conseguem sobreviver às intempéries do mercado capitalista. Isto explica o fato de espaços fundamentais à rede em algum momento de tempo – como Noise3D Club, Hey! Ho! Rock Bar, Casarão do Rock, Canto das Tribos, etc.11 – não durem mais do que alguns anos. Existem exceções, também, como a loja Opus, que comercializa produtos relacionados ao rock (CD, roupas, acessórios) desde 1984.

31 A articulação da rede gera “produtos”, sejam festivais e festas, sejam composições, CD, DVD, videoclipes, documentários, etc. Essa produção alimenta o chamado mercado

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 93

independente, que existe para além das grandes gravadoras ou da grande mídia. Os eventos podem ser classificados no tipo cotidiano (apresentações musicais corriqueiras nos fins de semana em bares e boates), mas também de um tipo mais específico, como os festivais de música: Forcaos, Ponto.CE, Rock Cordel, Ceará In Rock e outros.

32 Entendendo a dimensão geral da rede e quais seus atores principais, passemos à análise dos aspectos que embasam sua formação.

2. A movimentação da rede roqueira e seus espaços

33 A Figura 1 demonstrou a expansão da rede roqueira e sua movimentação pelas periferias de Fortaleza. A ocupação desses espaços demonstra ação de resistência, já que manter a recorrência de festas e shows em bairros de baixa renda e com poucas infraestruturas requer muita habilidade por parte dos agentes essenciais dessa articulação. O discurso do roqueiro, tomado nas entrevistas e na observação do campo, realça um aspecto de “rebeldia” vinculado ao rock, que se associa à ideia de que éum sujeito outsider dentro de um sistema repressor.

34 A maneira como os roqueiros elaboram esse discurso está relacionada a muitos fatores, que incluem o fato de viverem numa situação social desfavorável economicamente, ao mesmo tempo em que se envolvem com um gênero musical estranho ao ambiente em que habitam, seja as periferias ou as cidades do interior do Ceará. [Meus amigos] Eram pessoas que curtiam um estilo de música [diferente] na periferia, que andavam de preto em uma periferia, que tinham um estilo de cabelo diferente numa periferia... Então, essa característica, pelo local, isso já era muita coisa, já era transgressão, sabe? O simples fato de você ouvir coisas como [a banda] Offspring já era muito, já perturbava a cabeça de muita gente.12 (Daniel Valentim, grifos do autor)13 [Meu envolvimento inicial com o rock foi] no interior. Detalhe! [...] [A cidade de] Iguatu14 nãotem, praticamente, roqueiro lá.Se tem é[tido como] marginal! ( risos) Era rotulado lá, se tinha era marginal mesmo! (Adjacy Farias)

35 Dessa forma, o discurso do “ser roqueiro” épautado pela condição deoutsider, e encontra eco forte no fato de a rede roqueira se disseminar pelas periferias da cidade. A linguagem nativa traz a expressão “émuito rock and roll”, delimitando o rock como um jeito de ser rebelde e marginal, pelo que se adequava organizar festas e shows em ruelas escuras, semipavimentadas e de pouca infraestrutura.

36 Portanto, é fundamental entender em que bases está assolada essa capilaridade da rede e qual o contexto social desses bairros. Em primeiro lugar, é preciso notar que Fortaleza é uma cidade de extremos e internacionalmente conhecida por sua desigualdade social. Uma metrópole que se construiu muito rapidamente, sem o devido planejamento ou preparo para tal: passando de 12 mil habitantes no início do século XIX (Lima, 2006) para 90 mil no fim daquele século; e aumentando a população 42,5 vezes ao longo do século XX, com crescimento populacional de 62,5% na década de 1970 (Costa e Pequeno, 2015). Apesar da taxa de crescimento ter se reduzido significativamente nas últimas décadas – o último Censo registrou apenas 14,51% (ibidem) – os problemas gerados por tal aumento desenfreado no passado recente, notadamente a desigualdade social e a falta de infraestrutura básica, continuam a assombrar a cidade nos dias atuais.

37 De um total de 119 bairros, apenas oito têm renda média mensal superior a R$ 2000,00, enquanto 91 estão com média abaixo de R$ 500,00. Chama a atenção a discrepância

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 94

entre o bairro com maior renda (R$ 3659,54) e aquele com menor (R$ 239,25), numa diferença de 15 vezes15 (IPLANFOR, 2015: 93 e 94). Quanto ao Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), há bairros da cidade com índice de 0,953 (próximos aos dos países mais ricos da Europa), enquanto outros apresentam um IDH de 0,136 (abaixo de países como a Etiópia).16

38 Tais características permitem visualizar duas “Fortalezas”: a Zona Leste, mais rica e com melhor infraestrutura; e a Oeste, mais pobre e com infraestrutura bastante inferior. Por isso, é interessante perceber a expansão das ações da rede roqueira justamente para esta segunda região nas últimas décadas.

39 O que chamamos de Zona Leste é a região mais rica economicamente17 e abriga os principais equipamentos turísticos da cidade, como praias e hotéis. Foi nesta região que se desenvolveram os primeiros espaços roqueiros e outros importantes (Hey!Ho!, Canto das Tribos). Ainda hoje se encontram lá espaços de grande significação para a rede roqueira, como bares ou pubs (All Green, At Home, Boozer, Let’s Go, Rota 66, Sherlock, Zug), restaurantes (Floresta, Maria Bonita), centros culturais (Dragão do Mar, Centro Cultural Banco do Nordeste), boates (Órbita), estúdios musicais (MV, Top, Agnes) e praças públicas (Praça do Dragão, Praça Portugal). Esses espaços estão em bairros como Meireles, Aldeota e Praia de Iracema, que estão entre aqueles com maior renda familiar média, com o 1.º, 5.º e9.ºlugares, respectivamente (IPLANFOR, 2015).

40 Se antes a movimentação era quase exclusiva nessa região da cidade, desde o início da década de 2000 percebe-se um movimento da rede espalhando-se em direção a oeste, onde se situam bairros com índices sociais bem mais negativos. Por um lado,há uma regiãonoroeste intermediária que, por oferecer melhor infraestrutura,18 tem condições de abrigar alguns equipamentos que servem à rede, tanto bares (Rock 80) quanto estúdios (Espinha de Peixe) e praças (Pracinha do North Shopping, Praça da Gentilândia). Mas por outro, a rede se desenvolve de modo intenso em bairros que estão entre os que apresentam renda familiar média mais baixa na cidade, como Henrique Jorge e Bom Sucesso (71.ºe 95.ºdoranking), que são a base territorial do MIRC; ou Bom Jardim e Canindezinho (110.ºe 117.º)área de ação da CUNDER e Panela Rock. Esta última região, inclusive, oferecendo espaços para as bandas se apresentarem, seja por meio de parcerias com o Estado (Centro Cultural Bom Jardim e Shopping Solidário Bom Mix), seja executado diretamente pelo movimento, como o extinto Espaço Panela Rock e o atual Toca Good Garden.

41 Também não podemos deixar de notar a ampliação da rede em uma região sudeste da cidade, em bairros que, apesar de fracos índices sociais, vêm passando por um processo de “enobrecimento” causado pela ação da especulação imobiliária. Todavia, é na Zona Oeste mais periférica que se encontra parte da movimentação mais intensa da rede nos dias atuais.19

42 O uso dos espaços roqueiros não é aleatório nem irrefletido: os próprios roqueiros estabelecem diretrizes e hierarquias. Assim, restaurantes na Zona Leste que tenham programação constante de bandas de rock, como o Floresta, no bairro Aldeota, são frequentados por público abrangente que pode ouvir esse gênero musical de vez em quando; por isso, tem uma classificação de baixo valor simbólico por parte daqueles mais relacionados ao estilo de vida roqueiro, àqueles que se dizem “muito rock and roll”. O mesmo vale para a casa de shows Siará Hall (que abriga qualquer tipo de música) na Zona Sudeste.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 95

43 De modo oposto, o bar Rock 80 na Parquelândia (Zona Noroeste), eventos do MIRC e shows na Toca Good Garden, na Zona Oeste, têm“aprovação” no sistema de classificação próprio dos roqueiros. Existem, portanto, os lugares “mais rock and roll”, que são aqueles espalhados pelas periferias e que promovem o barulho nas ruas escuras.

3. O ser roqueiro, rebeldia e transgressão

44 Ser roqueiro envolve a vivência de uma série de signos. As andanças de pesquisador em meio à movimentação da rede roqueira em Fortaleza permitem perceber que esses sujeitos desenvolvem forte adesão ao código de símbolos, valores e normas de comportamento construídos pelo que chamamos de estilo de vida roqueiro. A compreensão do rock como “mais do que música” não é nova e envolve extensa bibliografia (Frith, 1981, 1988; Muggiati, 1983; Friedlander, 2002; Miles, 2009), mas também é algo incorporado no discurso dos próprios roqueiros. “Ser roqueiro” é uma autoafirmação e não uma classificação do pesquisador. Além disso, são os próprios interlocutores quem constroem uma significação especial em torno do que são: Acho que o reggaenãotem aquela imposição que orock impõe: se você é roqueiro, você tem que ter um ideal. [...] O rock meio que impõe essa ideologia [...]. Não tem como não ter posição, tem que ter ideologia política. [...] Todas as coisas que eu faço, eu procuro ser muito rock and roll. (Donizete Araújo, grifos do autor)

45 É interessante notar a vinculação que os próprios agentes fazem de sua atitude roqueira com a noção de ideologia política, entendendo a participação política num sentido aristotélico, mais amplo: ser roqueiro por si só já é afrontar a sociedade, pois a cosmologia desse gênero musical traz em si símbolos de contestação social que vão desde o discurso crítico direto (em letras de músicas ou em depoimentos e ações de artistas) e passam também pelo modo de vestir, de usar os cortes de cabelo etc. O rock é a música de protesto por excelência. [...] Aí, junta a música com a ideologia e aí vai.[...] Ideologia, assim, mais no modo de pensar em geral. [...] Eu acho que o rockjáérebelde por natureza, né? (risos) Você formar uma banda de rockjáéuma rebeldia. Éuma loucura pros pais: “esse menino não quer nada!” (risos). (Adjacy Farias, grifos do autor)

46 Neste caso, “ser muito rock and roll” é não apenas um lema, mas a expressão de um modo de ser. É procurar expressar um conjunto de códigos amarrados por meio de valores morais e normas de comportamento baseados no imaginário que o rock, enquanto movimento cultural, e a mídia construíram em torno do ser roqueiro. Discos, filmes, jornais, revistas e, especialmente, transmissão oral construíram ao longo de décadas uma série de códigos muito específicos em torno da figura esperada de um roqueiro.

47 A ideia de transgressão social passada por ídolos do passado, como Jim Morrison (vocalista da banda The Doors), do guitarrista Jimi Hendrix, de John Lennon (ex- membro dos Beatles), de Keith Richards (guitarrista dos Rolling Stones), dentre tantos outros, ecoa por meio das gerações seguintes, dentro de um processo constante de reconstrução, ressignificação, reimaginação. Tais artistas ficaram famosos por usarem drogas, serem presos por comportamento julgado inadequado, fizeram canções de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 96

cunho crítico e transformaram suas próprias biografias em performances artísticas representantes de um movimento de ruptura com o status quo. Frith (1988) relaciona Jim Morrison como figura-chave do rock por causa de sua performance, de sua visão como poeta perdido, boêmio, mas fundamentalmente, por sua autoindulgência e pelo facto de o artista ter consciência da sua própria importância e ter promovido sua carreira e sua arte a partir da noção de que “estava fazendo a diferença”. Um tipo de sensação que pode ser percebida em vários outros.

48 Desse modo, Frith (1981) relaciona a movimentação roqueira da década de 1960 como um gesto político de ruptura cultural, baseada em grandes mudanças sociais nas sociedades ocidentais, marcadas pela emergência de novos meios de comunicação de massa (e aperfeiçoamento dos antigos), de novos movimentos políticos e da eclosão da juventude como um ator protagonista dentro do panorama social, fenômeno também percebido por Hobsbawm (1997) e Morin (1999).

49 Para Frith (1981), essa juventude representa uma ruptura e novo olhar, e o rock foi um dos principais meios de expressão e autoafirmação dessa concepção. Segundo o autor, ao romper com os padrões morais das gerações anteriores, essa juventude foi vinculada à delinquência, porém, ela tem que ser entendida como um tipo de concepção ideológica, na qual se vê o fenômeno (especialmente nos EUA e Grã-Bretanha) através do qual os jovens de classe média adquirem valores geralmente associados às classes mais baixas, como busca de excitação, rupturas, indulgência, autonomia, etc. (ibidem: 190). Essa juventude estava associada à noção de contracultura e, também, do movimento estudantil, consolidando, segundo o autor, Novos estilos de consumo (consumo de drogas, em particular), novas noções de liberdade pessoal (particularmente, liberdade sexual) e uma compreensão mais crítica do “sistema”. Com isso, houve experiências que marcaram uma consciência geracional, experiências que não podem ser separadas do significado de rock ‘n’roll. (idem, 1981: 193-194)20

50 Para Roszak (1972), parcela significativa dessa juventude parecia negar o sistema técnico-burocrático de suas sociedades em prol de alternativas oriundas das manifestações culturais, artísticas e espirituais, daí o termo contracultura que se consolidou para designar movimentos como a literatura beatnick, a nouvelle vague do cinema francês, o cinema de autor nos Estados Unidos (ou Nova Hollywood), a pop art, o psicodelismo, o cinema novo, a tropicália; da qual o rock foi um dos protagonistas.

51 Pensando nos termos de Bourdieu (1992), esses movimentos questionavam as hierarquias dos campos simbólicos em que atuavam e se posicionavam contra eles. O rock surgiu dentro da indústria cultural voltada à massificação e à padronização, como conceituaram Horkheimer e Adorno (2002). Entretanto, mesmo mantendo parte dessa lógica, aquele gênero musical buscava romper com um sistema de classificação fortemente orientado pela noção de belo, consolidada ainda pela música clássica.

52 Como percebem autores como Friedlander (2002) e MacDonald (2008), o rock subverteu esse campo por meio da instituição da distorção (especialmente do som da guitarra) – algo tido como “defeito”, “saturação”, algo inapropriado – como um de seus elementos fundamentais. O discurso explícito de ruptura com o que veio antes,21 também confere esse elemento de desconstrução da hierarquia dos capitais simbólicos que regiam o campo musical e que, vistos em retrospectiva, foram bem-sucedidos, quando o rock se torna o principal mercado musical mundial, já no início dos anos 1970, como diz Hobsbawm (1996).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 97

53 Para além dos aspectos estéticos, não é menos importante a construção de um tipo de “nova moral” que acompanhava os produtores e consumidores de rock, sintetizadas no apelo simbólico aos lemas do amor livre e suas variantes: “paz e amor” ou “faça amor, não faça a guerra”. No contexto da década de sessenta, o rock deixa de ser somente um gênero da música popular que [...] expressava simbolicamente os conflitos entre as gerações, sobretudo, aqueles relativos à renúncia dos jovens de adentrar no “mundo adulto”. [...] De fato, a década de sessenta, principalmente em sua segunda metade, ficou marcada na história do século XX como um momento no qual a possibilidade de uma “revolução juvenil” obteve seu maior êxito, apesar de não ter realmente acontecido. (Sarlo, 1997: 28)

54 Com isso, o roqueiro enquanto tipo ideal é um sujeito rebelde que contesta os valores do “sistema”, ou seja, da ordem instituída, do status quo, do establishment. O imaginário do roqueiro reproduzido pela sociedade e por eles mesmos é próximo ao outsider de Elias e Scotson (2000): parte de um grupo social que compartilha valores diferenciados dos estabelecidos de modo geral na sociedade e se opõem a eles; embora neste caso, não tanto num desejo de ascender aos valores dos dominantes, como na obra da dupla, mas muito mais interessados em fundar uma nova ordem.

55 Os roqueiros prosseguiram mimetizando essa atitude e transformando sua ação cotidiana em uma performance que os vincula a toda essa cosmologia roqueira. Eles consolidaram algo como a visão de mundo da qual fala Weber (1991). O que quer que seja essa postura “rebelde” na prática é algo menos nítido, porém constitui um discurso muito forte por parte de seus agentes. Os roqueiros com quem travei contato na pesquisa esperam – de si e de seus pares – uma postura “rebelde” diante da vida, que pode se refletir particularmente nas relações contra a autoridade, figura abstrata que em geral representa a ordem estabelecida, o “sistema” como eles dizem, e vão desde as relações familiares àquelas travadas com a escola, a igreja e até a política num sentido mais amplo.

56 Assim, seus relatos estão marcados pela afirmação de suas práticas particulares de rebeldia, que envolvem, não raro, “coisas pequenas” como não se submeter às ordens dos pais; ser aluno transgressor na escola; ser militante de movimentos de esquerda.

57 Os relatos dos interlocutores citados neste trabalho estão permeados desse tipo de narrativa “rebelde” como forma de justificar ao pesquisador porque estão “adequados” à classificação de roqueiros. Falam em ser roqueiros numa periferia (ou numa cidade do interior) que cultua gêneros musicais como forró ou RAP, no qual o rock (e o roqueiro) é um ente estranho, até certo ponto perturbador (Daniel Valentim, Amaudson Ximenes, Adjacy Farias); de ser um agente transgressor dentro do “sistema” (Donizete Araújo);22 de praticar algumas ações de rebelião (Franzé Bezerra);23 além de carregarem o discurso (Amanda Silva e nos citados Valentim e Araújo) de uma sensação de inadequação dentro da maneira como a sociedade está organizada, particularmente no que se refere a algumas instituições sociais elementares (Estado, família, escola e religião), relatando angústia, sofrimento, melancolia, depressão e raiva por esses motivos. Um deles tenta elaborar esse sentimento: O engraçado é que essas pessoas [os roqueiros, seus amigos], elas sempre têm uma... têm uma coisa que as deixa desconectadas do mundo. É,mesmo, ooutsider, né? Esses grupos, elas quase todas, essas pessoas, elas tinham essa característica. Então, são pessoas que, mesmo jovens, tinham uma experiência de vida bem peculiar, principalmente, alguns mais... geralmente mais marcado em relação à família,

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 98

perdeu alguém da família de forma trágica, entendeu? Ou então, era aquela pessoa que tinha problemas em casa, tinha problemas com os pais, isso era uma coisa que eu percebo que era muito marcante, que fazia... muita gente com problema com a escola... (Daniel Valentim, grifos do autor)

58 O roqueiro se afirma rebelde, mas, ao mesmo tempo, se sente marginalizado e até mesmo estigmatizado, pensando na categorização de Goffman (1988). Porém, seu discurso regurgita tal informação, transformando a percepção do outro como “estranho” em mais um componente de sua própria identificação. Também é possível notar que muito desse “conteúdo” que os roqueiros utilizam para justificar a si mesmos como dignos de serem chamados de tal estão fortemente relacionados às biografias pessoais, no que nos lembramos de Giddens (2002), quando discute que os agentes constroem seus “calendários pessoais” que os localizam dentro de processos sociais maiores e mais complexos e norteiam suas biografias narradas e construídas.

59 Neste sentido, os roqueiros precisam exibir aos outros que carregam consigo os signos fundamentais que os vinculam a esta identificação. Os valores morais e regras de comportamento que compõem o universo roqueiro precisam não somente ser incorporados, mas comprovados por meio de práticas e vivências.

60 Énecessária, então, uma série de estratégias para exibir os signos dessa rebeldia. Isso ocorre pela indumentária, por exemplo, já que orock tem apelo visual forte, expresso por meio de roupas, acessórios, maquiagens, intervenções (piercings, tatuagens), corte de cabelo, etc.,24 que geram a identificação do roqueiro como alguém vestido de cor preta, com adornos de metal (correntes, rebites, pulseiras) e cabelos longos. Toda essa significação visual busca reforçar o elemento de desconexão e dissidência em relação ao “sistema” ou ao status quo e marcam o rock como fenômeno cultural desde o início. Como já percebera José Machado Pais: Todas as correntes do rock [...] procuraram, no entanto, algum tipo de singularização, por simbólica que fosse. Com efeitos, jovens desses grupos actuavam como bricoleurs, apropriando-se de características que integravam num universo simbólico que lhes permitia subverter sua significação original [...]. Esses movimentos podem ser olhados como dissidentes – ao oporem-se, continuamente, ao que os nivelava e uniformizava –, mas nessas dissidências encontramos permanentes convergências. (2006: 30)

61 Essa dissidência do rock é encontrada em sua própria história enquanto gênero musical, criando uma rede de significados que liga os roqueiros de Fortaleza com o movimento dos anos 1950 e 60, prosseguindo até os dias de hoje. Não faz sentido falar dos roqueiros sem descrevê-los e discutir como se organizam, por isso iremos analisar os agrupamentos sociais que formam para vivenciar na prática a vinculação com a visão de mundo ao qual se sentem pertencentes.

4. Os agrupamentos roqueiros

62 Apesar de servir como eixo fundamental da visão de mundo roqueira, a rebeldia celebrada em seus discursos édeveras diversa, subjetiva e, por vezes, imprecisa. Parte disso está associada ao fato de o rock ser diversificado por natureza. Ao contrário de outros gêneros musicais, este é identificado menos por ritmo-cadência ou características melódicas-harmônicas, e muito mais pela maneira como é executado:

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 99

elementos como distorção e intensidade são mais importantes do que ritmo e velocidade.

63 Os historiadores do rock25 costumam definir um tronco principal do gênero – o rock em si – e subdividi-lo em subgêneros. Todavia, a grande diversidade e a passagem do tempo terminaram por também subdividir os subgêneros. Exemplo é o heavy metal, subgênero do rock que surgiu nos anos 1970 e, além de ser um dos principais “galhos” da árvore genealógica do rock, o metal se subdivide em literalmente dezenas de “subsubgêneros”.26

64 Os subgêneros e suas subdivisões se distinguem tanto – talvez menos aos ouvidos “leigos” e mais aos “especialistas” – que terminam por diferenciar, também, seus ouvintes. A diversidade, portanto, permite ao roqueiro vivenciar a prática dos valores morais e regras de comportamento vinculadas a eles de maneiras diferentes.

65 Normalmente, a literatura sociológica classifica essa vivência prática por meio da nomenclatura de “tribos urbanas”. No entanto, este termo não é satisfatório para descrevê-los. Da maneira como aqui exposto, é preciso compreendê‑los dentro de uma significação própria, por isso construímos a nomenclatura de agrupamento para explicá- los.

66 A noção de agrupamento diz respeito, fundamentalmente, à vivência prática de um determinado estilo de vida no cotidiano. Tem um efeito de sociabilidade, pois está envolvida à convivência em um coletivo social, reconhecível não somente por si, mas por outros. O agrupamento é uma expressão praticada da visão de mundo que sustenta um estilo de vida particular, que é o ser roqueiro. Iremos inverter a explicação e demonstrar como funciona essa prática para somente em seguida detalhar porque se configura como um estilo de vida.

67 A vivência prática nos agrupamentos se dá por meio da expressão de pensamentos e comportamentos muito específicos que agregam seus sujeitos dentro de uma unidade reconhecível que, por sua vez, faz parte de um todo maior, neste caso, o próprio ser roqueiro. Ou seja, um dado estilo de vida pode agregar maneiras de vivências diferentes que, praticadas, estão vinculadas, mas se distinguem.

68 Usamos agrupamento porque tal condição não é satisfeita por outras categorias que existem, como a comunidade de Weber (1991), por exemplo, mesmo que deva ligações à mesma. Similarmente, usar grupo social também não é adequado, já que este é um termo muito amplo e, na maioria das vezes, usado de modo indiscriminado.

69 Desse modo, as considerações de Simmel (1977) sobre os grupos sociais – sua formação e manutenção – são muito úteis para pensar os agrupamentos. A categoria “tribos urbanas” pode se referir a qualquer prática unificadora ou de sociabilidade a que jovens ou outros se manifestem no tecido das grandes cidades. Ainda assim, aproveitando-se da força da palavra “tribo”, pelo menos em seu sentido indígena, tal categorização é muito útil para descrever determinados fenômenos sociais, dentre os quais o da formação de gangues e galeras nas metrópoles, vide, por exemplo, Diógenes (1998). Ao fenômeno de vivência e pertença do/ao ser roqueiro, pensamos que a categorização de agrupamentos é mais adequada. Vamos descrevê-los para maior compreensão.

70 No âmbito da rede roqueira de Fortaleza enxergamos metaleiros, alternativos, punks, hardcores, emos, bluseiros, skinheads e alguns outros tipos diferenciados de experimenta ção do estilo de vida roqueiro. Cada um deles se diferencia porque exaltam características distintas, não apenas na musicalidade específica que os identifica, mas

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 100

em valores e comportamentos também específicos que se expressam por meios visuais em indumentárias e cortes de cabelo.

71 Assim, o agrupamento traz algo de categoria nativa, no sentido de que esse sentimento de pertença vinculado a uma nomenclatura específica é vivenciada, expressada e defendida pelos próprios sujeitos. Os metaleiros se identificam como tal, mesmo que, como em qualquer coletivo social amplo e complexo, a própria terminologia também possa ser alvo de disputas.27 Portanto, os nomes aqui usados são a síntese possível entre as autoclassificações e a nomeação construída pela própria pesquisa.

72 Para sistematizar o que seja um agrupamento, o melhor é descrevê-lo. Como é preciso restringir, iremos analisar dois casos para compará-los rapidamente. Na Fortaleza dos anos 2000, dois agrupamentos roqueiros eram mais nítidos: os metaleiros e os alternativos. Os primeiros são fãs de heavy metal e expressam valores muito específicos relacionados àquela musicalidade, como afeição a temas sombrios e violentos, que remetem à imagem de anjos, demônios, monstros e outras criaturas; enquanto os alternativossão menos homogêneos e se distinguem mais por uma caracterização visual e a postura de defesa de um mercado “independente”da grande mídia.

73 Embora não haja uma sonoridade facilmente identificável com os alternativos, pagam determinado tributo a uma linhagem específica dentro da história do rock que advém das manifestações egressas do movimento punk.28

74 Em termos visuais, os metaleiros costumam apresentar um visual básico formado por jeans e camisetas pretas. Estas geralmente são estampadas com logomarcas de bandas, imagens das mesmas ou das capas de álbuns. Alguns adornos também se somam, como pulseiras, braceletes, tarraxas, cintos e rebites. Contudo, a experiência das festas ou shows permitem caracterizações mais extremas, nas quais alguns membros tentam mimetizar o vestuário que os artistas consagrados usam em videoclipes ou imagens publicitárias, o que os leva a usarem sobretudos, batas de padres, botas, coturnos, capas e maquiagem que remete a filmes de terror, com pó branco, sombras pretas nos olhos, esmaltes e batom também escuros, etc. Os cortes de cabelo geralmente estão voltados aos fios longos tanto para elementos do sexo masculino como feminino. Embora os cabelos longos lisos sejam os mais valorizados, o uso de grandes cachos também é permitido.

75 Os alternativos, por sua vez, apresentavam-se nas festas com caracterizações bem distintas: usavam um tipo de vestuário de grande influência da moda britânica, destacando jaquetas, casacos, echarpes, chapéus, estampas em xadrez, pulôveres, camurça, tênis da marca All Star, calças justas, sobreposição de peças, etc. Alguns adornos como lenços e óculos de armações grandes e grossas também eram muito bem- vindos. Distintos dos outros, os alternativos valorizavam o uso de cores, especialmente as berrantes, o que demarca ruptura com a sobriedade escura do rock no geral. A performance visual também tinha seus casos extremos, medidos pela quantidade desses itens utilizados, que podiam variar de alguns dos citados à maioria. O uso exagerado da vestimenta é o que demarca os extremos. Quanto aos cortes de cabelo, a valorização éa repetição dos cortes em franja e volume dos anos 1960, embora agora um pouco mais estilizados. O uso detintura nos fios também demarca certo diferencial.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 101

76 Em termos de valores, a grande marca dos alternativos é a oposição ao mercado tradicional, aos grandes sucessos, ao consumo de massa. Preferir os nichos de mercado, as linhas alternativas de mercado, o consumo independente, lhes garante outra marca de distinção. Também têm predisposição a buscarem sonoridades “diferentes” ou “exóticas”, não raro dando espaço para regionalismos.29 Apesar disso, há preferência pela sonoridade tipicamente inglesa do rock.30 Parte considerável dessa sonoridade de referência traz a expressão de melancolia, o que é outra postura notável entre aqueles que aderem a tal agrupamento. O “desencaixe” do mundo já narrado por alguns roqueiros é particularmente forte aqui, de modo que é comum no discurso (e nas letras das canções!) a referência ao uso de medicamentos fortes e controlados (antidepressivos em especial).

77 Essa tipologia de metaleiros e alternativos foi construída em campo, através da visita sistematizada aos eventos e à organização das observações por meio de um caderno de campo, bem como de conversas e entrevistas. Colocar um metaleiro ao lado de um alternativo expõe diferenças muito demarcadas, o que se reflete não apenas em duas vivências bem diferenciadas do estilo de vida roqueiro, mas também numa fronteira que não raro chega à rivalidade.

78 Antes de abordamos tal rivalidade, vamos analisar como se dá o envolvimento do sujeito com o agrupamento. É preciso entender, antes de tudo, que o tornar-se roqueiro é um processo de adesão. Vivemos em uma sociedade midiática, na qual os bens culturais (música incluso) são consumidos de diversas maneiras. De que maneira é ativada a vinculação por “gosto”? Este é um grande desafio ao sociólogo.

79 Não temos condições de, no momento, precisar este elemento primeiro, no entanto, há possibilidades mais concretas de análise ao que vem depois. Em outro trabalho (Lima Filho, 2013) refletimos de modo mais detalhado sobre o que podemos chamar de meios de entrada ao estilo de vida roqueiro. Iremos agora apenas rapidamente explicar tal relação.

80 Primeiramente, há a “descoberta” do elemento agregador, no caso a música rock, por parte do sujeito. Nas entrevistas com os interlocutores da pesquisa, foi possível perceber que, cada um deles, é capaz de afirmar com muita precisão o “exato momento” em que criaram uma vinculação com o rock. Não deve ser coincidência o fato dessa “descoberta” ocorrer sempre em uma faixa etária muito específica, como mostra a Tabela 1:

TABELA 1 – Idades da “descoberta” do rock

ROQUEIRO IDADE

Rafael Bandeira 07

Jolson Ximenes 09

Amaudson Ximenes 11

Amanda Silva 12

Adjacy Farias 14

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 102

Antonio Arruda 15

Donizete Araújo 15

Daniel Valentim 16

Franze Bezerra 16

Fonte: Entrevistas realizadas pelo autor.

81 A “descoberta” está associada ao que chamamos de audição consciente, ou seja, um processo social na qual o agente passa a elaborar significados mais efetivos à música que ouve. Isto leva à criação de vínculos emocionais com a música em geral e, mais precisamente, com um gênero musical em particular. O rock... Eu posso dizer até o ano e a música, a primeira música que [me] “tocou”, assim, né? O ano foi, assim, 1999: eu fazia a 8ª série, aí eles [a família] colocaram MTV, colocaram TV a cabo em casa. [...] A MTV não significava muito até o dia em que eu vi um clipe da Cássia Eller31, O Segundo Sol, aquela música... Eu coloco aquela música como o ponto inicial, o pontapé de tudo. [...] Quando você começa a escutar essas coisas [o rock], você começa a prestar atenção e a ver o mundo de outra... [forma] [...]. Bom, aí veio o que mudou a minha vida completamente! (Daniel Valentim, grifos do autor)

82 O fenômeno que ocorre é um consumo num sentido amplo, tal qual discutido por Certeau (1996) quando conceitua que “consumir” não significa apenas comprar, mas também apreender, apurar e reelaborar. Quer dizer, não importa somente a música “chegar” aos ouvidos do sujeito: é mais importante o processo pelo qual aquela cria um sentido para ele. O agente reelabora o conteúdo do objeto consumido, lhe dá sentido e cria vínculos com ele. É um tipo de bricolage.

83 Uma vez que o sujeito é “capturado” pela vinculação àquele elemento cultural específico, parte para o que chamamos de consumo afetivo, um consumo orientado, que pode se dar no campo do consumo mercadológico, mas é movido por uma carga emocional. Este elemento é importante porque, uma vez que está vinculado ao mercado capitalista, este consumo pode ser impulsionado por estratégias de marketinge até dado grau de alienação; porém, o processo inteiro não pode ser reduzido a isso. Uma vez que o consumo afetivo começa a se desenvolver, o sujeito inicia o processo de identificação com a música e começa a localizar outros indivíduos que partilham da mesma vinculação, levando-o aos agrupamentos.

84 O agrupamento, pelo menos nos casos aqui estudados, não aparece como uma entidade física. Não é um coletivo nitidamente delimitado. É a expressão prática do ser roqueiro orientada dentre uma das possibilidades possíveis (metaleiros, alternativos). É um processo de adesão, mediado por uma “turma” menor.

85 Pelo que pudemos apurar nas conversas com os interlocutores e entrevistas, essa adesão quase sempre é realizada por meio da associação entre um iniciado (cicerone) e um novato. A adesão ocorre em nível microssocial, por meio da pequena turma de amigos em espaços privilegiados de sociabilidades, como escola e vizinhança. Eu tinha um amigo – [eu] era mais novo, tava lá pela minha 8ª série – que gostava de rock e eu era muito pivete pra saber do que eu gostava, mas comecei a andar, a ouvir rock, com esse meu amigo. [Ele] começou a mostrar o som dele e eu comecei a ver o que eu gostava. (Donizete Araújo)

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 103

Eu sempre tive amigos assim [roqueiros] e na escola eu sempre procurava amigos que gostassem mais de rock. Questão de se enturmar. (Amanda Silva)

86 Geralmente, os ciceronesjátêm incorporado os valores morais e as regras de comportamento do agrupamento em questão e passam, àsvezes sutilmente, outras agressivamente, a apresenta- las aos iniciantes, de modo que este vãoaprendendo e as incorporando também.

87 Como em Fortaleza temos uma rede roqueira articulada, percebemos que essa pequena turma inicial se vincula a dezenas de outras que também professam o agrupamento e se encontram nos espaços roqueiros, sejam festas, shows e festivais ou em pontos de encontros em espaços públicos, como praças.

88 Dá-se ênfase ao aspecto visual dos roqueiros porque esses signos parecem ativar os sistemas de classificação e facilitam os processos de vínculo do sujeito entre turmas (regionais, comunitárias) e agrupamentos (grupo maior). Conseguia olhar pra uma pessoa e identificá‑la sem você nem ao menos conhecê‑la. Então, existia esse respeito por essa representação e por elas estarem simplesmente ali [no clube Canto das Tribos]. [...] Isso era algo assim impulsionador de muita coisa, um criador mesmo de relações, pra criar laços de sociabilidade. (Daniel Valentim, grifos do autor)

89 A vestimenta, assim, serve não apenas como “identificador” de pares, mas também como forma de adesão e exibição, conferindo um tipo de permissão a fazer parte do agrupamento em si e do ser roqueiro como um todo. É nestes momentos de encontro em que as práticas que orientam o agrupamento são vivenciadas de modo mais nítido, sendo também um grande momento de “prova” na qual são medidas e vigiadas os graus de vinculação do sujeito ao agrupamento de modo mais específico e ao estilo de vida de modo mais geral. Você ta no grupo, ele não pede, mas se tiver [no grupo], você vai querer estar parecido. Ninguém te pede, mas você vai querer. Os teus amigos vão te chamar, se tu tiver vestido tal [ou seja, diferente] vão tirar onda contigo, o próprio meio. Se você anda com aquele estilo, você tem que vestir parecido, onde for. [...]. Se tu ta no meio que leva [isso] mais a sério, é natural que você leve mais a sério. [...] Você vai querer andar com as roupas, com alguma coisa parecida, pra mostrar que você se identifica alguma coisa com eles. Então, é uma coisa natural [...]. Não há um grupo, eu não conheço um grupo, em que não tem essa particularidade de as pessoas não quererem usar. [...] É assim que funciona. Roupa é uma coisa que tem a ver, sabe? (Donizete Araújo, grifos do autor)

90 Claro, os interlocutores naturalizam tal processo em seus discursos, mas é preciso perceber que há algo de opressor em se adequar ao intenso conjunto de códigos relacionados aoser roqueiro. Éneste ponto que aparecem os conflitos já mencionados. A convivência em um agrupamento nãoénecessariamente pacífica. Oser roqueiro é pautado por valores e regras muito fortes. Neste sentido, guarda elementos do que Simmel (1977) chamou de grupos sociais fechados, ou seja, que impõem regras de conduta mais severas a seus membros e nas quais novos membros podem até ser bem-vindos, desde que cumpram satisfatoriamente uma série de pré-requisitos.

91 Existem agrupamentos mais fechados do que outros. Metaleiros e punks-hardcores, por exemplo, são bem mais ferrenhos do que outros como alternativos e bluseiros.32 Esse “fechamento” não é de modo algum despercebido pelos sujeitos, que relatam tal

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 104

característica constantemente em suas falas. Vejamos o exemplo de um metaleiro veterano quando pensa em sua própria trajetória: Teve um período que eu me fechei muito, sabe? [...] Escutava só “podreira”, mesmo, só coisa underground, de fita [K7]. [...] A gente não queria saber daquilo ali [outras manifestações],não. Só escutava “porrada” mesmo. Só “porrada”, gravação tosca mesmo, underground. (Amaudson Ximenes)

92 Simmel (1977) também reparou como os grupos sociais em geral se constituem ou são autopercebidos a partir da distinção de outros. A existência de “outro” a quem se opor fortalece a própria identificação do grupo e isso, definitivamente, ocorre dentro dos agrupamentos. Isso dá início a amplo processo de coerção de seus membros acerca dos valores e regras que compõem as identificações principais que o formam. Estas vão desde partes da visão de mundo mais “adequadas” ao coletivo específico, passando pelo repertório de bandas e artistas cultuados, chegando até ao visual usado.

93 Essa mediação é operacionalizada por meio dos modos de inclusão e exclusão. Os modos de inclusão são formas de averiguação quanto ao sujeito estar ou não de acordo com os preceitos do agrupamento. São verificados cotidianamente pelos outros membros, num processo no qual o sujeito vai demonstrando as senhas de acesso e mantém-se bem- vindo, como nas falas sobre vestimenta já citadas.

94 Por outro lado, a observação na pesquisa permite dizer que qualquer deslize é punido, ativando os modos de exclusão, sejam leves (o que gera brincadeiras e chacota), sejam graves (pode gerar represálias, agressões e até a proibição).

95 Outro entrevistado conta como era “fechado” em determinado momento e como, após passar a tocar outros subgêneros (é baterista), foi excluído dos metaleiros: Realmente tinha aquela coisa do radicalismo, de que se você não fizesse o som “porrada”, você não entrava naquela tribo [os metaleiros]. Se você não fizesse o som , você também não entrava na tribo. [...] E eu também era um cara radical. Quando eu tava tocando no [conjunto] Procriation, eu só ouvia som “porrada”. [...] Nósfomos protagonistas de algumas cenas dessas de radicalismo. [...] A gente [banda Kamerata, heavy metal melódico] fez um show no Teatro do Ibeu, [com outras bandas de metal] [...] e o fato foi que jogaram um saco de merda no vocalista da gente, porque a gente não fazia um som “pesadão”, como o dos [outros] caras. (Franzé Bezerra, grifos do autor)

96 Em torno desses conflitos são construídas as categorias negativas que ativam os modos de exclusão, nos quais os modistas e os playboyssãoos casos mais representativos. Os primeiros sãoaqueles acusados de“gostar de rock por moda”, ou seja, sujeitos que ouvem (e/ou tocam) rock, mas não cumprem as exigências explícitas da visão de mundo, por isso, são combatidos. É através dessa ferramenta que espaços roqueiros que flertam com o “grande público” (que não seriam roqueiros “de verdade” neste sistema de classificação), como o citado Floresta Bar e Restaurante, perdem credibilidade nos setores mais aguerridos da rede.

97 Já os playboyssãoaqueles identificados como“tendo grana”,quer dizer, advindosda Zona Leste. Como o ser roqueiro está pautado em signos de rebeldia e marginalização, advir das classes altas é desprestígio dentro dos códigos de significação. Desse modo, para se contrapor aos modistas e playboys, surge a categoria dos roqueiros de verdade.

98 A ideia de uma “defesa” dos códigos típicos do ser roqueiro percebida nos fortalezenses é também comum à história do gênero musical. É nítida a tendência de rupturas (estéticas, valorativas) dentro dorock, da qual o movimento punk, no fim da década de 1970, foi o primeiro e mais célebre exemplo.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 105

Como exibem Mcneil e Mcgain (1997), este movimento explicitamente queria romper com o rock mainstream como maneira de se reconectar com suas raízes, suas origens proletárias. Não é por acaso, o forte apelo que o punk teve em contextos muito díspares àquele dos EUA ou Grã‑Bretanha, como mostra a pesquisa de Guerra (2013). Os ciclos de rupturas, inspirados pelo punk, continuaram ao longo do tempo, como o hardcore nos anos 1980, o no início dos anos 1990, o nos anos 2000, etc.

Notas finais: ser roqueiro como estilo de vida

99 A partir da discussão apresentada, podemos dizer que ser roqueiro assume a caracterização maior do que “gosto pela arte”, sendo a expressão de um estilo de vida, marcado por forte sentimento de pertença, valores morais consolidados e até certo ponto rígidos, normas de conduta específicas e códigos de avaliação do que é permitido e do que não é, manifestado em modos de inclusão e de exclusão.

100 No mundo contemporâneo, os sujeitos sociais criam uma série de associações dentro dos círculos de sociabilidade ao qual têm acesso. Isso ativa os processos de identificação que nos vinculam a todo o tipo de associação, da qual destacamos os estilos de vida. Giddens (2002) considera como estilo de vida as práticas cotidianas que se rotinizam e passam a orientar a existência social dos indivíduos. Essas práticas “dão forma material a uma narrativa particular da autoidentidade” (ibidem: 79), mas de um modo que conectam aspectos locais a processos sociais mais complexos, de âmbito global. É exatamente isso que orock realiza enquanto prática, como pudemos perceber. Tais práticas consolidam um conjunto de valores morais e regras de comportamento que precisam ser professados por seus seguidores.

101 Entender o processo de sociabilidade que leva o sujeito a aderir ao ser roqueiro por meio de um agrupamento diz muito sobre como os agentes sociais desenvolvem as relações entre si mesmos e as estruturas sociais mais amplas. Ou seja, é uma boa aplicação prática da tradicional discussão sociológica sobre a interação entre indivíduo e sociedade.

102 Neste sentido, tal vinculação nos leva a pensar naquilo que Giddens (2009) afirma acerca da agência e da autonomia dos agentes perante o mundo social: o indivíduo não é uma “marionete” das estruturas sociais, mas alguém que reage a elas, processando seu conteúdo e adaptando-o à sua realidade concreta, desejos e possibilidades.

103 Este artigo procurou analisar a movimentação da rede roqueira em Fortaleza e mostrar a complexidade que envolve o fenômeno social do “gosto” dos jovens por um dado gênero musical. Assim, percebemos o enlace de relações sociais construídas para resultar na expressão prática de um estilo de vida que, apesar de globalizante (já que o rock tem seguidores em todo o mundo), guarda especificidades muito locais.

104 Estas especificidades mostram como os sujeitos da cidade precisam de algum modo de ultrapassar os desafios impostos pela dinâmica social e articular movimentação de caráter profundo e amplo, mesmo permanecendo no grau da “marginalidade” quanto à visibilidade que tem na própria cidade.

105 Também procuramos contribuir com elementos de discussão sociológica mais ampla, pensando a maneira como os sujeitos estão interligados ao estilo de vida (de caráter mais global) por meio de sua operacionalização prática através do conceito de agrupamentos e as dinâmicas próprias de inclusão e exclusão desses coletivos sociais.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 106

BIBLIOGRAFIA

Bhabha, Homi K. (1998), O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG.

Bernal, Cleide (2004), A metrópole emergente: a ação do capital imobiliário na estruturação urbana. Fortaleza: Editora UFC/ Banco do Nordeste.

Bourdieu, Pierre (1992), “O mercado de bens simbólicos”, in A economia das trocas simbólicas, Coleção Estudos v.20, São Paulo: Perspectiva.

Castells, Manuel (2009), A sociedade em rede, vol. 1. A Era da Informação: economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra [12.ª ed.].

Castro, Wagner (2008), No tom da canção cearense: do rádio e TV, dos lares e bares na era dos festivais (1963-1979). Fortaleza: UFC.

Certeau, Michel de (1996), A invenção do cotidiano: as artes de fazer, vol. 1. Petrópolis: Vozes.

Christe, Ian (2010), Heavy metal: a história completa. São Paulo: Arx/Saraiva.

Costa, M. Clélia L.; Pequeno, Renato (orgs.) (2015), Fortaleza: Transformações na ordem urbana. Série Estudos Comparativos. Rio de Janeiro: Letra Capital/ Observatório das Metrópoles.

Dimery, Robert (org). (2007), 1001 discos para ouvir antes de morrer: selecionados e comentados por 90 críticos de renome internacional. Rio de Janeiro: Sextante.

Diógenes, Glória (1998), Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip hop. São Paulo: Annablume/ Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto.

Duarte, Fábio; Frey, Klaus (2008), “Redes urbanas”, inFábio Duarte; Carlos Quandt; Queila Souza (orgs.), O tempo das redes. Coleção Big Bang. São Paulo: Perspectiva.

Elias, Norbert; Scotson, John L. (2000), Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar.

Friedlander, Paul (2002), Rock and roll: uma história social. Rio de Janeiro: Record.

Frith, Simon (1981), Sound Effects: Youth, Leisure and the Politics of Rock’n’Roll. New York: Pantheon.

Frith, Simon (1988), “Rock and the politics of memory”, in Sohnya Sayres; Anders Stephanson; Stanley Aronowitz; Fredric Jameson (orgs.), The 60’s Without Apology. Minneapolis: University of Minesota Press/Social Text, 59-69.

Giddens, Anthony (2002), Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar.

Giddens, Anthony (2009), A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes [3.ª ed.].

Goffman, Erwing (1988), Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara [4.ª ed.].

Guerra, Paula (2013), A instável leveza do rock: gênese, dinâmica e consolidação do rock alternativo em Portugal. Coleção Biblioteca de Ciências Sociais, vol. 88. Porto: Afrontamento.

Hobsbawm, Eric J. (1996), História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Hobsbawm, Eric J. (1997), A era dos extremos: o breve século XX.SãoPaulo: Companhia dasLetras.

Horkheimer, Max; Adorno, Theodor W. (2002), “A indústria cultural: o Iluminismo como mistificação das massas”, in Theodor W. Adorno, Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 07‑74 [2.ª edição].

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 107

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - Cidades@ (2015), “Fortaleza”. Consultado a 01.11.2015, em http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php? lang=&codmun=230440&search=ceara|fortaleza.

IPLANFOR (2015), Fortaleza 2040: Iniciando o diálogo por uma Fortaleza de oportunidades, mais justa, bem cuidada e acolhedora, vol. 2, n.º 1. Fortaleza: Instituto de Planejamento de Fortaleza.

Lima, Cláudio Ferreira (2006), “Cidades do Ceará: origens transformações e perspectivas”, in Fábio Campos (org.), Anuário do Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 395-452.

Lima Filho, Irapuan Peixoto (2013), Em tudo o que faço, eu procuro ser muito rock and roll: Rock, estilo de vida e rebeldia. Fortaleza: UFC/ Imprensa Universitária.

MacDonald, Ian (2008), Revolution in the Head: The Beatles’ Records and the Sixties. London: Vintage Books [3.ª ed. revista].

McNeil, Legs; McGain, Gillian (1997), Mate-me por favor: uma história sem censura do punk. Porto Alegre: L&PM.

Miles, Barry (2009), The : The Music, the Times, the Era. London/New York: Sterling.

Morin, Edgar (1999), Cultura de massas no século XX. Vol. 1 e 2. Rio de Janeiro: Forense.

Muggiati, Roberto (1983), Rock – O grito e o mito: a música pop como forma de comunicação e contracultura. Petrópolis: Vozes.

Pais, José Machado (2006), “Bandas de garagem e identidades juvenis”, in Márcia R. da Costa; Elizabeth M. da Silva (orgs.), Sociabilidade juvenil e cultura urbana. São Paulo: Educ/PUC, 29-53.

Roszak, Theodore (1972), A Contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis-RJ: Vozes [2.ªed.].

Sarlo, Beatriz (1997), Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: UFRJ.

Simmel, Georg (1977), Sociología II. Madrid: Biblioteca de la Revista de Occidente.

Souza, Queila; Quandt, Carlos (2008), “Metodologia de análise de redes sociais”, in Fábio Duarte; Carlos Quandt; Queila Souza (orgs.), O tempo das redes. Coleção Big Bang. São Paulo: Perspectiva, 31-63.

Weber, Max (1991), Economia e sociedade. Vol. 1. Brasília: UNB.

Wenner, Jann S.; Levy, Joe (orgs.) (2008), Rolling Stone: As melhores entrevistas da revista Rolling Stone. São Paulo: Larousse.

NOTAS

1. Nãoapenas em“tamanho”,Fortaleza destaca-se como a cidade mais rica da região Nordeste do Brasil, com Produto Interno Bruno (PIB) de R$ 43,4 biliões.O Nordeste compõe nove estados brasileiros, dentre os quais Bahia e Pernambuco (IBGE, 2015). 2. O forró é um gênero musical popular nascido na região Nordeste (especialmente no ambiente rural) pautado por ritmo cadenciado e forte swing, o que o torna dançante. Por isso, forró pode ser tanto a música, quanto a festa decorrente. A instrumentação básica do gênero é realizada com o trio de sanfona (acordeão), zabumba e triângulo (dois instrumentos rústicos de percussão). Desde a década de 1990, o gênero foi “modernizado” com instrumentos elétricos, como guitarra,

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 108

baixo, bateria, teclados e saxofone, dando origem ao chamado forró eletrônico, que é a vertente mais popular nas áreas urbanas. 3. Sãoexemplos dessas bandas: Aviões do Forró,Forró Moral, Garota Safada e o cantor Wesley Safadão,atualmente um dos mais populares do Brasil. 4. A contagem precisa envolveria uma pesquisa de porte muito maior do que o permitido pelas condições atuais, como realizar um senso com os participantes. 5. Sabe-se que esse número pode ser ainda maior, tendo em vista que essa é a lista de bandas às quais foi possível o pesquisador ter acesso. Também é preciso levar em consideração que algumas dessas bandas têm existências paralelas a outras, como projetos paralelos ou temporais, por exemplo. Devido à instabilidade da carreira de músico em termos financeiros, muitos tocam em mais de uma banda ao mesmo tempo e até algumas bandas se apresentam com mais de um nome para direcionar sua musicalidade a fins pragmáticos. 6. Para exercício meramente ilustrativo e com escolha subjetiva, vão alguns dos exemplos dessas bandas: 2Fuzz, 69% Love, A Trigger to Forget, Alegoria da Caverna, Blues Label, Bonecas da Barra, Born Suffer and Die, Caco de Vidro, Café Colômbia, Cidadão Instigado, Darkside, Dead Leaves, Drive Sex, Enverso, Falacia, George Belasco & o Cão Andaluz, Insanity, Jonata Doll e os Garotos Solventes, Joseph K?, Moço Velho, Obskure, Quarto das Cinzas, Rubber Soul, Scatalogic Madness Possesion, Selvagens à Procura de Lei, The Good Garden, Transacionais, Vulcani, dentre outras. Lembramos que os nomes das bandas são afirmações e que estão carregadas de sentidos, tal qual analisado por Pais (2006). A lista completa das bandas está em Lima Filho (2013). 7. Apesar de existirem evidências de movimentação roqueira em Fortaleza desde a década de 1960 (Castro, 2008), nossa pesquisa demonstrou que a articulação se intensifica nas décadas de 1980 e 90, quando são lançadas as bases fundamentais do que chamamos de rede roqueira. Há uma descrição sintética desse movimento em Lima Filho (2013). 8. “Faça você mesmo”: lema do movimento punk, que se originou do rock, especialmente, no fim dos anos 1970, vide McNeil e McGain (1997). 9. Estamos cientes de que essa percepção nos leva a uma reflexão sobre capital social, entretanto, este não é objetivo de nosso estudo por hora. 10. Na época de expansão da rede Orkut, principalmente entre os anos de 2004 e 2007, as “comunidades” daquela rede virtual foram fundamentais para aglutinação de vários grupos roqueiros, por exemplo o reagrupamento de metaleiros oriundos dos anos 1980. Mais detalhes em Lima Filho (2013). 11. Como exemplo de persistência, mesmo quando alguns estabelecimentos se encerram, podem ter sobrevida por causa das articulações da rede. Após o Noise 3D fechar as portas em 2007, seus proprietários permaneceram realizando festas em locais itinerantes, principalmente, outras boates da cidade. O Hey!Ho! encerrou suas atividades em 2011, porém alguns de seus sócios continuaram a promover eventos por meio de uma produtora e, em 2015, abriram uma nova casa de shows chamada Let’s Go, na mesma vizinhança do antigo clube. 12. A presença maciça de roqueiros em Fortaleza ainda causa estranheza à população em geral. Foi emblemático, durante a pesquisa, o momento da fila da bilheteria do Festival Forcaos, em 22 de julho de 2007, no Centro Cultural Dragão do Mar, o maior e mais importante da cidade. Enquanto centenas de jovens vestidos de preto se aglomeravam à espera de seus ingressos, um casal de “adultos” chegou trazendo o filho para comprar suas entradas e o pai comentou em tom de piada: “Parecem um bando de coadjuvantes de um filme de terror”. 13. Esta fala e as seguintes são de entrevistas realizadas ao longo da pesquisa com frequentadores das festas roqueiras de Fortaleza e com membros de bandas e donos de estabelecimentos comerciais. 14. Cidade a 384 km de Fortaleza e com população de 101 386 mil habitantes, segundo o IBGE (2015). 15. Respectivamente, os bairros Meireles e Conjunto Palmeiras.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 109

16. Dados correspondentes aos bairros Meireles e Canidezinho, respectivamente. 17. Segundo o IPLANFOR (2015), todos os 10 bairros com maior renda familiar média estão na Zona Leste: Meireles, Guararapes, Cocó, N.S. de Lourdes, Aldeota, Mucuripe, Dionísio Torres, Varjota, Praia de Iracema e Bairro de Fátima. Quanto ao IDH, repete-se a mesma situação, apenas invertendo a ordem de alguns dos bairros citados (ibidem). 18. Esta região se desenvolve no entorno da Av. Bezerra de Menezes, que é um corredor comercial, bancário e de serviços de grande importância na cidade. 19. Existem, claro, outras movimentações roqueiras além destas citadas, como se pode notar na Figura 1. Destaque para o movimento Ensaio Rock, que ocupa a Praça da Cruz Grande no bairro Serrinha e promove shows e festivais, algumas vezes em parceria com o Estado, outras por conta própria. 20. Tradução do autor. 21. É possível ver o discurso dos próprios artistas roqueiros em meios como as entrevistas à revista Rolling Stone, copiladas por Wenner e Levy (2008). 22. Este interlocutor trabalhou como produtor na TV Diário, emissora local famosa por ter uma programação voltada ao forró como trilha sonora em programas de auditório e apresentação de bandas. Araújo diz que trabalhou na TV como maneira de forçar para que o rock aparecesse na programação local, relatando alguns ganhos à sua causa, como o episódio do momento em que a banda Jumenta Parida, muito popular entre os roqueiros da cidade, fez sua primeira aparição na TV. 23. Este interlocutor afirma que, junto a alguns amigos que eram metaleiros como ele e, portanto, brincam com os símbolos religiosos pagãos, picharam as paredes da Igreja de N. S. de Fátima, templo que recebe uma grande peregrinação religiosa em Fortaleza, com cruzes invertidas e coisas do tipo. 24. Então, faz-se necessária a existência de fornecedores desses produtos, o que cria um mercado específico de consumidores desses artigos, que o fazem por meio de lojas especializadas, mantidas em sua maioria também por roqueiros. 25. Vide, por exemplo, Christe (2010), Dimery (2007), Miles (2009) e Muggiati (1983). 26. Alguns exemplos: heavy metal melódico, black metal, death metal, thrash metal, prog metal, grindcore, etc. 27. No Brasil, a primeira terminologia associada àqueles que “gostam” de heavy metal foi headbangers, uma palavra inglesa (“batedores de cabeça”) usada em países anglo-saxônicos. Ao longo dos anos 1980, o termo metaleiros se popularizou; contudo, uma parcela dos roqueiros mais antigos sempre teve reservas a este nome, preferindo o primeiro. Além dos dois nomes também são usados outros, como “galera do metal” ou mesmo “galera do rock metal”. 28. O movimento punk é um corte epistemológico na história do rock. Com a ascensão do rock como o gênero musical de maior sucesso no planeta, os principais artistas transformaram-se em multimilionários nos anos 1970, o que causou descontentamento das “bases” do movimento: os fãs advindos das classes trabalhadoras começaram a não se sentir representados por aqueles. Assim, eclodiu o punk. 29. Na verdade, identificamos quatro subdivisões entre os alternativos de Fortaleza. Os indies (mais ligados ao indie rock e, em alguns sentidos, apresentando uma radicalização das descrições apresentadas), os góticos (que ressaltam aspectos “sombrios”, como a morte, tal qual os metaleiros, mas vinculados à sonoridade mais melancólica e flertes com música eletrônica e eletro-rock), os glams (que buscam visualização mais andrógena, rompendo as delimitações de gênero, e também vinculados à eletrônica) e os rock-regionalistas (que introduzem elementos sonoros típicos do Nordeste brasileiro, como forró e maracatu, além de indumentária que destaca cores pasteis e adereços também regionais, das populações de baixa renda dos sertões, como sandálias e chapéus de couro).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 110

30. Referendada por bandas e artistas como Beatles, Pink Floyd, David Bowie, Eric Clapton, Dire Straits, Stone Roses, Radiohead, Oasis, Belle & Sebastian, Franz Ferdinand, dentre outros. 31. Cássia Eller, cantora brasileira, lançou o primeiro álbum em 1990 e se tornou uma das cantoras mais populares do país .Morreu em 2001.O segundo sol é uma canção de autoria de Nando Reis, gravada por ela no álbum Com você... Meu mundo ficaria completo, lançado pela Sony Music em 1999. 32. Os punks-hardcoressãoaqueles roqueiros mais ligados àtradição do movimentopunk e seus desdobramentos. Em Fortaleza há expressões punks propriamente ditas (que são carregadas de mais radicalismo e de posicionamento político crítico) e hardcores (que seria menos extremo, mais calcado na sonoridade e num visual urbano, relacionado, por exemplo, aos skatistas). Uma observação superficial parece sugerir um corte de classe entre punks e hardcores, com os primeiros mais ligados às periferias e os segundos mais embasados nos bairros da Zona Leste. Já os bluseirossãoaqueles roqueiros que se vinculam fortemente aoblues, um dos gêneros musicais que deu origem ao rock. Este é um agrupamento menos nítido e que está em processo de formação na cidade.

RESUMOS

Esta pesquisa procurou investigar a formação de agrupamentos de roqueiros, fãs do gênero musical rock, na cidade de Fortaleza, Ceará, Brasil, ao longo dos anos 2000. Constatou-se que estes professam um estilo de vida próprio, que se expressa por formas de pensar, valores morais e normas de comportamento. Movimentam mais do que cenas musicais: constroem uma rede social, chamada de rede roqueira, que se capilariza por bairros “ricos” e periferias. A organização em rede permite, ainda, a formação do que chamamos de agrupamentos, coletivos que subdividem os adeptos em várias vertentes musicais, como metaleiros, alternativos, punks, hardcores, emos, bluseiros, etc. Estes não exibem relação necessariamente pacífica uns com os outros, abrindo o palco de disputas simbólicas por legitimidade.

This research aimed to investigate the formation of roqueiro (rocker or rock fan) groups in the city of Fortaleza, Ceara State, Brazil in the 2000s. It found that they have established their own lifestyle, expressed in their ways of thinking, moral values and behavior patterns, which extends beyond the various music scenes: they have built up a social network, known as the rocker network which has spread throughout the “rich” neighborhoods and “poor” outskirts. This network also allows for the formation of what is termed groupings, i.e. collectives that subdivide the fans into various social groups based on musical styles, such as metaleiros (headbangers), alternativos (alternatives), punks, hardcores, emos, blueseiros (blues fans), etc. Relationships between these groups are not necessarily peaceful, thus paving the way for symbolic disputes to establish status.

L’ objectif de cette recherche a été de se pencher sur la formation de bandes de rockers, fans du genre musical rock, dans la ville de Fortaleza, Ceará, Brésil, tout au long des années 2000. Nous avons constaté qu’ils professent un style de vie qui leur est propre, qui s’exprime à travers de façons de penser, de valeurs morales et de normes de comportement. Ils meuvent bien plus que des scènes musicales: ils bâtissent un réseau social, dénommé réseau rocker, qui se propage dans

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 111

les quartiers “riches” et les périphéries. L’organisation en réseau permet aussi la formation de ce que nous appelons de bandes, de collectifs qui fragmentent les adeptes en diverses tendances musicales comme les métalleux, les alternatifs, les punks, les hardcores, les emos, les blueseurs, etc. Leurs rapports ne sont pas forcément pacifiques – des disputes symboliques de légitimité éclatant fréquemment.

ÍNDICE

Palavras-chave: estilo de vida, música e juventude, redes sociais, rock brasileiro, sociologia da música Mots-clés: mode de vie, musique et jeunesse, réseaux sociaux, rock brésilien, sociologie de la musique Keywords: , lifestyle, music and youth, social networks

AUTOR

IRAPUAN PEIXOTO LIMA FILHO

Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará Av. da Universidade, 2995, CEP. 60.020‑180, Fortaleza, Ceará, Brasil [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 112

Dinâmicas coletivas em cenas musicais: A experiência do grupo #acenavive no Rio de Janeiro Collective Dynamics in Musical Scenes: The Experience of the #acenavive Group in Rio de Janeiro Dynamiques collectives de scènes musicales: l’expérience du groupe #acenavive à Rio de Janeiro

Luiza Bittencourt e Daniel Domingues

NOTA DO EDITOR

Artigo recebido a 21.07.2015 Aprovado para publicação a 02.02.2016

Introdução

1 Com a dinamização das relações humanas e dos fluxos de informação favorecidos pela consolidação da cultura digital, a indústria musical passou por diversas reconfigurações nos modos de produzir, divulgar, distribuir e consumir música (Pereira de Sá, 2006; De Marchi, 2005, 2012; Herschmann, 2010; Vicente, 2006).

2 Frente a esse novo ambiente repleto de constantes mudanças, ocorreu a entrada de novos atores na cadeia produtiva da música e, consequentemente, o surgimento de modelos de negócios inovadores para divulgação e distribuição musical. Com isso, o que se verifica atualmente é a emergência de uma nova indústria da música (Herschmann, 2012), na qual houve uma progressiva valorização de apresentações de música ao vivo e interação virtual, tanto para acessar o artista através de redes sociais, como também

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 113

para buscar conteúdo musical por meio de plataformas de audição (como Spotify e Deezer) e de vídeo (Youtube).1

3 Diante dessas perspectivas, no Brasil, diversos músicos, produtores e demais agentes do setor começaram a se organizar em grupos denonimados “coletivos culturais” de modo a construir novas formas de gestão cultural, a fim de buscar o fortalecimento das cenas musicais de suas cidades.

4 Existem mais de 40 coletivos culturais espalhados pelo estado do Rio de Janeiro que atuam sob uma perspectiva colaborativa em variados segmentos. Dentre esses grupos existem os que focam mais na área de capacitação e de educação musical; aqueles que direcionam seus esforços na criação e produção de eventos; alguns que trabalham com diferentes linguagens (não só a música); muitos que realizam uma intensa produção de conteúdo (site, vídeo, entrevistas, etc.); enquanto outros se concentram na promoção e no fortalecimento de um gênero musical específico. O coletivo objeto desta pesquisa enquadra-se nessa última perspectiva.

5 Na cidade do Rio de Janeiro, inspirados por esses modelos de arranjo cultural grupal que estavam ocorrendo por todo o país, jovens músicos integrantes de 5 bandas de rock começaram a se articular pela internet reunindo forças em torno da hashtag #acenavive para planejar estratégias de ocupação de espaços, bem como a divulgação e distribuição de músicas por meio de plataformas digitais, buscando formar público para seus shows. A partir daí, o vínculo coletivo estabelecido tem sido ampliado com participações em apresentações, troca de experiências e somado outras bandas no grupo, que se relacionam tanto no ambiente virtual, quanto presencialmente, em concertos ao vivo e encontros para debater o mercado musical e traçar metas conjuntas.

6 O presente artigo pretende utilizar a noção de cena musical sob a ótica de autores como Straw (1991; 2006a; 2006b), Pereira de Sá (2011; 2013), Herschmann (2011, 2013) e Jannoti Jr. (2012a; 2012b; 2013) para (i) analisar o histórico de organização conjunta promovida por esses jovens músicos em torno da hashtag #acenavive no Rio de Janeiro e compreender suas motivações e objetivos; (ii) cartografar os espaços urbanos frequentados por esses jovens e utilizados para a realização de shows; e (iii) identificar as principais práticas culturais e de sociabilidade presentes na articulação desses jovens.

7 A metodologia aplicada incluiu: revisão teórica; realização de entrevistas e aplicação de questionários com integrantes do coletivo; acompanhamento de algumas ações presenciais (eventos e reuniões) e atividades virtuais do grupo (publicações em redes sociais);2 e a análise de matérias publicadas na mídia impressa 3 e on-line, de modo a investigar as particularidades que envolvem a atuação do grupo no setor musical do Rio de Janeiro.

8 No que diz respeito ao ambiente virtual, utilizou-se um rastreamento digital que envolve a hashtag #acenavive através do monitoramento de postagens em redes sociais e utilização das ferramentas on-line TweetReach, Hashtracking e Hashtagify para mapeamento e avaliação de dados.

9 Além disso, o presente estudo leva em consideração os dados obtidos por meio da cartografia realizada pelo Mapa Musical RJ,4 um site e aplicativo de mapeamento colaborativo da cadeia produtiva da música do estado do Rio de Janeiro desenvolvido em parceria pela Ponte Plural5 e o LabCult – Laboratório de Pesquisa em Cultura e

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 114

Tecnologias da Comunicação,6 que reúne dados compilados nos últimos cinco anos sobre o setor musical da região.

10 Desta forma, o presente artigo dedica-se, inicialmente, a apresentar um retrato da influência das dinâmicas da cultura digital no mercado musical a fim de apresentar o ambiente que possibilitou o surgimento do coletivo. Numa segunda etapa pretende-se retratar as principais características do grupo a fim de compreender o funcionamento das dinâmicas envolvidas e as ações voltadas para o gênero rock que são organizadas pelo #acenavive. Ao final, propõe-se analisar como as dinâmicas desse grupo se relacionam com a cidade, a partir das discussões em torno da noção de cena musical.

1. Nada será como antes: As reconfigurações da indústria musical e a perspectiva do ambiente digital

11 Como mencionado anteriormente, o mercado musical encontra-se em um constante processo de reconfiguração em virtude da profusão da cultura digital. Por conta dessas mudanças estruturais, houve um acentuado declínio da indústria da música tradicional, que sustentava suas principais fontes de receitas na comercialização de músicas em diferentes tipos de suportes físicos e nos direitos econômicos relacionados ao fonograma.

12 Nesse contexto, Herschmann (2010: 62) identifica que essa “crise” está relacionada aos seguintes três fatores: um crescimento da competição entre os produtos culturais, entre as empresas que oferecem no mercado globalizado bens e serviços culturais; os limites impostos pelo poder aquisitivo da população (especialmente em países periféricos como o Brasil); e o crescimento da chamada “pirataria” (virtual e também fora da rede). Quer dizer, o mercado musical perdeu o que era, até então, sua principal base de monetização, ao mesmo tempo em que houve um considerável aumento da oferta por conta da disseminação das músicas por meio digital.

13 Logo, a partir da repercussão causada pelo desenvolvimento dessas tecnologias, verifica-se um processo no funcionamento do mercado musical que passou de um sistema baseado na venda de fonogramas, centralizado pelas grandes gravadoras no qual artistas já lançavam álbuns que saíam como discos de ouro, comemorando milhões de cópias vendidas; para um segundo modelo onde passou a ser necessário buscar novos caminhos para superar os obstáculos advindos dessas reconfigurações e se adaptarem a uma nova economia, que “emerge do interior da velha, como resultado da utilização da Internet pelas empresas para os seus próprios fins e em contextos específicos”, conforme aponta Castells (1999: 20).

14 Demonstrando todo esse processo pelo qual o setor musical passou, o portal de notícias americano Huffington Post7 publicou, em agosto de 2014, uma matéria em que analisou uma animação produzida pelo Digital Music News8 ilustrando as mudanças na indústria da música entre 1983 e 2013. Através dela é possível perceber como o mercado musical se encontra em um contínuo processo de reconfiguração decorrente da consolidação da cultura digital.

15 Afinal, se em 2003 a venda de CD teve seu ápice, sendo responsável por 95,5% das vendas de música, dez anos depois, em 2013, esse número reduziu para apenas 30,4%, enquanto passaram a comandar essa lista os singles baixados (22,4%), seguidos da

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 115

quantidade de álbuns baixados (17,6%). Dessa forma, verifica-se o significativo avanço de comercialização das mídias digitais, ao passo que ocorre o declínio das mídias físicas.

16 Ainda no âmbito digital, em 2014, conforme relatórios do IFPI (Federação Internacional da Indústria Fonográfica) e da ABPD (Associação Brasileira dos Produtores de Discos), as plataformas de streaming já representam 23% do mercado digital global. Com esse movimento positivo, as receitas da área digital cresceram 6,9%, chegando a 46% das vendas mundiais de música, alavancadas exatamente pelo bom desempenho desse setor. E vale lembrar que a Apple9 entrou nesse mercado apenas em 2015, ao lançar o seu próprio serviço de streaming.

17 No Brasil, o impacto digital também foi positivo: pela segunda vez em cinco anos, o recuo do mercado físico de música (‑15%) foi compensado pelo crescimento nas receitas digitais (+30%).10

18 Essa conjuntura incentivou a proliferação pelas redes digitais de artistas que atendem a um tipo de perfil de consumo segmentado (em oposição aos músicos alinhados ao consumo de massa). O alcance desses artistas encontra-se relacionado à atuação dentro de nichos de mercado proposta por Chris Anderson (2007), em seu estudo sobre o conceito da “Cauda longa”, em que realizou uma comparação entre a venda de poucos produtos para milhões de pessoas com a venda de milhões de produtos para poucas pessoas.

19 De acordo com esse entendimento, temos 2 situações: o mercado de massa (mainstream), com vultuosos investimentos de marketing de gravadoras em poucos artistas, mas que possuem um alcance de público enorme; e o mercado de nicho, onde diversos artistas lançam mão de estratégias inovadoras para se destacar e comercializar seus produtos.

20 Em seu estudo sobre a Cauda longa, Anderson (2007) identifica três forças que estimulam a emergência de novos modelos de negócio fortalecidos por esses mercados digitais: a democratização das ferramentas de produção; a democratização das ferramentas de distribuição; e a aproximação entre a oferta e a demanda.

21 No que diz respeito ao primeiro item, houve um aumento na produção de conteúdos em decorrência do acesso às ferramentas de produção (tecnologias de gravação e edição). Com isso, na etapa de pré-produção, o destaque são os instrumentos musicais que estão cada vez mais integrados a aparatos tecnológicos. Já diretamente no setor de produção musical, beneficiados pelas novas tecnologias, muitos artistas começaram a montar pequenos estúdios e até mesmo a realizar gravações caseiras com um resultado tão profissional, que houve gravadoras que passaram a optar por distribuir esse material do artista, ao invés de efetuar uma nova gravação.

22 Levando em conta a democratização das ferramentas de distribuição, o que se vê é que com o aumento na produção de músicas com gravações de qualidade, os artistas começaram a utilizar a internet de maneira maciça para a divulgação e distribuição de seus trabalhos. Através de páginas e perfis em redes sociais os músicos deram início a um contato mais direto com o seu público, passando informações sobre a agenda de shows, comercializando produtos e também dando mais detalhes sobre o cotidiano da banda e seus integrantes. Além disso, surgiram vários sites que funcionam como bancos de dados para disponibilização de arquivos de música para download; vídeos (principalmente o Youtube) e também plataformas digitais como a brasileira Pleimo11 e as internacionais Spotify12 e Deezer,13 que permitem a audição por streaming, ampliando

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 116

o acesso do público e efetuando o pagamento com base no número de assinaturas dos artistas, ou de execuções de música.

23 Sobre o terceiro ponto que trata da aproximação entre a oferta e a demanda, vale destacar que as citadas plataformas digitais somadas às redes sociais (tais como Facebook, Twitter e Google Plus) permitem que esses artistas de consumo segmentado atinjam seu público-alvo.

24 E mais: com os dados obtidos durante o monitoramento dessas redes e plataformas o artista consegue calcular as cidades em que as músicas são mais tocadas; bem como a faixa etária, o gênero e outras características dessa plateia virtual, que podem ser usados para a confecção de produtos de merchandising e o agendamento de shows, a fim de transformar esse público em presencial, estabelecendo laços e fidelizando-o através das apresentações.

25 Dessa forma, a distância entre o artista e o fã estreitou-se, dando início a uma relação mais direta que facilita a difusão da produção do músico (Teixeira Junior, 2002), bem como o acesso do público a artistas independentemente da sua localização geográfica.

26 Sobre esse tópico, vale destacar que Ryan Holmes, CEO do Hootsuite, defendeu, em 2013, em artigo publicado pela Forbes, que o futuro das redes sociais está no Brasil e não nos EUA.14 Atualmente, existem cerca de 85 milhões de usuários brasileiros no Facebook e o país perde apenas para os americanos no Twitter e no Youtube. Além de postagens, os brasileiros têm uma alta taxa de engajamento nessas redes, pois compartilham, favoritam e curtem as postagens de forma massiva, ampliando significativamente o alcance dos conteúdos produzidos.

27 Outro ponto importante relacionado ao atual mercado musical é que, diante desse cenário, a realização de shows destacou-se como pilar estrutural por ser um espaço onde o artista mostra seu trabalho, conquista e estreita o relacionamento com o seu público (para além do relacionamento virtual), além de realizar a venda de CD e produtos promocionais para aumentar a sua arrecadação (Herschmann, 2013).

28 Frente a tais circunstâncias, a indústria da música tem sido renovada em todos os seus estágios. No mercado musical brasileiro destacamos a emergência de duas novas formas de atuação: a construção e fortalecimento de redes culturais e a busca de soluções empreendedoras para gestão de carreiras.

29 Nesse contexto, começaram a surgir movimentos culturais baseados nos conceitos do associativismo, da cultura digital e da economia solidária como o Fora do Eixo,15 o Festival Grito Rock16 e a Rede Brasil de Festivais,17 que conectaram milhares de agentes culturais – principalmente produtores de eventos – em prol de objetivos coletivos. Da mesma forma, tem sido possível verificar o crescimento do número de artistas brasileiros que pode ser considerado como “Músico-Empreendedor” (tais como Móveis Coloniais de Acaju,18 Emicida19 e O Teatro Mágico),20 ou seja, uma geração que lança mão de estratégias inovadoras para enfrentar diversos obstáculos, através de uma grande capacidade gestora em um meio de tantas reconfigurações na indústria da música.

30 Inclusive, no entendimento de Simon Frith é exatamente em um ambiente de disputas que surge a necessidade de empreender para destacar-se: Não é mais a música enquanto mercadoria [...], mas a música enquanto mercadoria oligopolista. O mundo musical ideal seria aquele em que as necessidades de músicos e de consumidores fossem supridas pela pura expressão da oferta‑e‑demanda, guiada pela Mão Invisível da perfeita competição. A criatividade é destruída não pela procura do lucro, mas pela procura do grande lucro, pela concentração em

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 117

algumas poucas mãos dos meios de expressão musical. O problema não é a arte versus comércio, mas grandes empresas versus pequenas empresas: e os heróis desta versão da história musical não são os músicos, mas os empreendedores. (1981: 90)

31 E vale ressaltar que essa vontade de empreender está relacionada com o perfil do jovem, que anseia por mudanças em seu status quo permitindo-se sair de sua zona de conforto para ousar de forma criativa em busca de soluções para suas demandas, como corroboram Pereira e Borelli: A criatividade e o empreendedorismo são colocados nesta era do Capitalismo informacional como moedas de troca importantes nas relações sociais e econômicas; mais ainda, isso se torna um imperativo quando se trata das culturas juvenis. Se a juventude pode ser problematizada como um conjunto de respostas às consequências da Globalização e às novas formas de vida por ela trazidas – ou seja, um lugar de experimentação das mudanças socioculturais, econômicas, subjetivas –, então é nas culturas juvenis que vemos mais explicitamente as questões que se acham em jogo na atualidade. (2015: 286)

32 Em meio a esse panorama, é possível observar a emergência de novas práticas sociais aplicadas por grupos que reúnem músicos, produtores e outros agentes da cadeia produtiva para atuar em conjunto, de forma empreendedora, para buscar soluções que fortaleçam circuitos e cenas musicais. O coletivo cultural objeto do presente estudo contempla o grupo de jovens artistas do Rio de Janeiro identificados pelo uso da hashtag #acenavive que vêm trabalhando de forma coletiva e colaborativa na formação de público em prol do gênero rock e que tem conquistado espaço nos jornais, sites especializados, festivais, rádios e até no exterior.

2. #acenavive: Histórico e atuação

Sonho que se sonha só É só um sonho que se sonha só Mas sonho que se sonha junto é realidade21 RAUL SEIXAS

33 Essa organização coletiva teve início em 2012, quando as bandas Folks, Nove Zero Nove e Canto Cego se reuniram para fazer um evento na Lapa, chamado Rock Bandido. “Na época não havia nenhuma boa oportunidade pras bandas independentes da cidade, então essas 3 bandas resolveram criar sua própria oportunidade”, explica o músico Kauan Calazans,22 vocalista da Folks. Como foi bem-sucedido, tornou-se um evento mensal e a partir daí os integrantes de outras bandas passaram a querer participar do evento. “As 3 bandas que estavam produzindo tinham a filosofia de só chamar pra tocar bandas que iam prestigiar o evento e as bandas da cena, assim fortalecendo uns aos outros”, esclarece Calazans.

34 Associado a isso, através do projeto Rubber Tracks Experience23 realizado pela Converse, o produtor musical Felipe Rodarte do Estúdio Toca do Bandido24 entrou em contato com diversas bandas formadas por jovens músicos em busca de posicionamento e percebeu que existiam algumas dificuldades em comum: falta de incentivo, pouco lugar para tocar, ausência de união e começou a apresentar uns aos outros, aconselhando-os a compartilhar espaços e contatos, permutar serviços, enfim, unirem

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 118

forças e mudar a forma de atuar. Como na época ele estava trabalhando com a Folks, Rodarte solicitou a Calazans para agendar um primeiro encontro no estúdio Soma25 com as bandas cariocas que estivessem integradas nessa filosofia. Essas bandas na ocasião eram: Folks, Stereophant, Nove Zero Nove, Drenna e Canto Cego. A partir daí surgiu o movimento #acenavive e outros artistas foram convidados para as reuniões, ocorrendo um processo de expansão, inclusivamente com outras bandas aderindo à articulação como por exemplo a niteroiense Facção Caipira.

35 Em entrevista com seu vocalista, Jan Santoro26 esclarece que o “Do It Together” 27 começou a ser vislumbrado como a melhor alternativa no final de 2013, quando começaram a fomentar a hashtag #acenavive, que representa um símbolo dessa união.

36 Conforme relata Felipe Rodarte,28 #acenavive teve inspiração no modelo de gestão cultural coletiva disseminado pelo Circuito Fora do Eixo29 na última década e foi motivada a partir da percepção de uma busca de mudança da realidade em que se vivia: “foi a necessidade de melhoria das relações das bandas e criação de novas possibilidades de circulação e fomento de uma nova cena de rock, a princípio na cidade do Rio de Janeiro”, esclarece o produtor musical.

37 Atualmente, as práticas que envolvem a organização desse grupo incluem ações presenciais como reuniões periódicas de planejamento (Figuras 1 e 2) e envolvimento nos shows das bandas integrantes do grupo, colaborando com a divulgação, realizando participações em determinadas músicas (dando origem a uma performance diferenciada), ou como público do evento, acompanhando a apresentação e muitas vezes cantando e interagindo junto da plateia.

FIGURAS 1 e 2 – Reuniões da #acenavive

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 119

Fonte: Imagens de Felipe Rodarte publicadas no Facebook.

38 Nesse sentido, nota-se o fortalecimento de uma comunidade de afeto, por meio da qual são criados vínculos entre os músicos envolvidos, proporcionando uma sensação de bem-estar comum e de pertencimento a um grupo social, como aponta Santoro: “estamos sempre em contato uns com os outros seja para ajuda profissional em shows, produção de eventos, produção musical, intervenções artísticas, filmagem de clipes ou até mesmo para tomar uma cerveja de vez em quando.”

39 Seguindo o mesmo posicionamento sobre a união do grupo, Calazans30 destaca: O mais importante é que a rapaziada que está junto com a gente se ligou que o mais importante de tudo é deixar o ego de lado, abraçar e deixar ser abraçado. Começou com 3 bandas, depois 5, hoje conseguimos ver mais de 100 bandas no Rio de Janeiro com esta ideologia, de fazer o bem, pra colher o bem. É muito bom, porque a cada dia que passa acontece algo muito bom pra uma banda da galera e o sentimento de vitória é coletivo, como se fosse uma maratona, cada hora um corre com o bastão até passar pro outro, assim todos conseguem manter a tendência de conquistas.

40 Atualmente #acenavive possui cerca de 30 pessoas organizando diretamente as ações e conta com mais de 100 bandas adeptas à ideologia e usufruindo das melhorias. A forma de associação ao coletivo é livre, como salienta Rodarte: “incentivamos a apropriação e utilização do conceito de trabalho colaborativo que criamos”. Na mesma linha, reforça Calazans: “Não existe segregação ou pré-seleção. Quem quiser agregar na cena, está dentro!”. O coletivo não possui normas pré-definidas de organização, mas há um manifesto que funciona como um direcionamento ideológico do grupo, do qual se destaca o seguinte trecho: A cena vive pois vivemos a cena. Conectados, estamos nas ruas e nas redes buscando afinar essa conexão com o objetivo de renovarmo-nos e ressignificarmo-nos. Deixamos Macunaíma para nossos ancestrais para propor e exercer ação inspirada e organizada, encontros, não só virtuais mas presenciais, confrontando e realizando

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 120

novos sonhos. Vivemos o mundo de todas as possibilidades, acreditando e trabalhando nossas potências.31

41 As decisões são tomadas pelo grupo através de consenso. As reuniões presenciais começaram como mensais e atualmente são mais esporádicas, sendo realizadas quando os membros consideram necessário. A principal forma de comunicação entre seus integrantes é mediada através de um grupo na rede social Facebook.

42 E também é no ambiente digital que as ações desses artistas ganham maior alcance e reconhecimento, por meio do uso da #acenavive em postagens nas redes sociais (principalmente Twitter e Facebook), a hashtag funciona como uma marca de identificação do grupo que confere a seus trabalhos poder de distinção (Bourdieu, 2007). Indagado sobre as principais atividades que envolvem o coletivo, Rodarte esclareceu: Estimulamos o desenvolvimento artístico e profissional das bandas e de suas equipes. Utilizamos a rede para divulgação em rede dos lançamentos e dos shows das bandas que criam seus eventos e abrem espaços para outras bandas não só do Rio e de São Paulo, mas também de outras cidades.

43 A primeira ação comandada pelos integrantes do coletivo #acenavive envolveu uma campanha de engajamento para o retorno da Rádio Cidade (FM 102.9) ao dial carioca. Por ser focada no gênero rock, seu retorno foi considerado uma grande vitória:32 “fizemos uma ação intensa, que até grandes nomes do mainstream aderiram, e conseguimos cumprir a missão”, orgulha-se Calazans, que explica todo o trâmite da articulação: Pensamos que no primeiro momento que estávamos nos movimentando pra fazer eventos e criar espaços pras bandas independentes de rock da cidade, que precisávamos de uma rádio de rock rolando ali. No primeiro momento, não pensamos nem em usufruir da rádio pra tocar nossas músicas, queríamos somente uma rádio de rock na nossa cidade e que o público voltasse a ter confiança na cena. E claro, porque nós também somos fãs da rádio e estávamos órfãos de uma estação que tocasse as músicas do nosso agrado. Depois que a rádio voltou, naturalmente as coisas foram acontecendo, o Folks por exemplo já tocou pelo menos umas 3 vezes no programa “A Vez do Brasil” da Rádio Cidade e semana que vem estaremos gravando a entrevista do programa falando do lançamento do nosso disco e tocando 2 músicas no programa. Apesar de termos iniciado a campanha da volta da Rádio, não nos colocamos como “donos do jogo”, a gente acredita que o rumo natural do que vem acontecendo é que a própria rádio precisa se renovar, o público pede por essa renovação e nós estamos aqui nos preparando pra este grande momento.

44 Sobre a relevância desse retorno, Santoro pontua que “significou uma grande conquista para o movimento e para os artistas, sendo uma das grandes mídias mais importantes para nós músicos de rock, de rap, indie e outros”.

45 Outra ação de destaque do coletivo foi a confraternização realizada em 2015, quando reuniram 72 bandas, 12 coletivos e diversos produtores de shows e vídeos na Toca do Bandido e lançaram o seu manifesto (Figura 3). Nessa ocasião, foi possível também ter noção da dimensão de agentes e parceiros envolvidos com o projeto e interessados na dinamização e fortalecimento da cena musical carioca.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 121

FIGURA 3 – Confraternização na Toca do Bandido

Fonte: Fotografia por Luiz Eduardo Guida Valmont.

46 Um aspecto que cabe destacar é que não há um retorno financeiro direto para o coletivo, como expõe Rodarte: “não temos lucro, nem movimentamos coletivamente dinheiro”. Isto é: a recompensa pela colaboração é afetiva e inclui a satisfação pessoal e o sentimento de pertencimento a um grupo (Pereira de Sá, Bittencourt e Domingues, 2016).

47 No último ano esse coletivo conseguiu promover uma significativa expansão territorial de sua ideologia e hoje existem grupos parceiros que atuam sob a mesma lógica, tais como o Seattle Imperial (Petrópolis), #niteróinacena (Niterói) e #acenavivesp (São Paulo).

3. “Occupy” musical: Espalhando hashtags pelas redes sociais

48 Pelo exposto anteriormente, é possível verificar que as ações do coletivo #acenavive podem ser analisadas sob a ótica de dois eixos: a) práticas de associativismo e atuação colaborativa e b) a articulação de ações por meio do ciberespaço (Lévy, 2000), baseadas na inteligência coletiva (Lévy, 2000; Jenkins, 2006).

49 O primeiro relaciona-se com a estrutura do coletivo, as dinâmicas que envolvem a interação entre seus participantes, práticas culturais e de sociabilidade, que já foram descritos acima. O segundo tópico envolve o uso de aparatos tecnológicos (como redes sociais e plataformas digitais) para disseminar nas redes sociais o posicionamento ideológico do grupo (resumido no Manifesto) e divulgar shows e outras ações da #acenavive e de bandas que a compõe.

50 Nessa perspectiva cabe ressaltar que a principal estratégia de divulgação do grupo é o compartilhamento de publicações com menção à hashtag que dá nome ao coletivo. Através do uso dessa hashtag é

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 122

possível saber se a postagem envolve algum artista participante do coletivo e facilita a localização das mensagens, já que tanto o Facebook, quanto o Twitter possuem ferramentas que permitem a listagem de todas.

51 A utilização dessa hashtag para fins de disseminação de informações coaduna-se com o que Jenkins conceitua como “mídia espalhável” (spreadable media): Esse novo modelo “espalhável” permite evitar o uso das metáforas como “infecção” e “contaminação”, que superestimam o poder das empresas de mídia e subestimam o dos consumidores. [...] nesse modelo emergente, os consumidores exercem um papel ativo em “espalhar” conteúdo ao invés de serem hospedeiros passivos de mídia viral: suas escolhas, seus investimentos, suas ações determinam o que gera valor no novo espaço midiático. (Jenkins, 2009)

52 Por meio das interações sociais entre esses músicos e produtores no ciberespaço33 (Lévy, 2000: 92 e 93), verifica-se a formação de uma comunidade virtual dedicada à divulgação e consolidação do grupo que utiliza o poder da inteligência coletiva evidenciado por Jenkins em sua Cultura da convergência: Na internet, argumenta Pierre Lévy, as pessoas subordinam sua expertise individual a objetivos e fins comuns. ‘Ninguém sabe de tudo. Todo o conhecimento reside na humanidade’. A inteligência coletiva refere‑se a essa capacidade das comunidades virtuais de alavancar a expertise combinada de seus membros. O que não podemos fazer sozinhos, agora podemos fazer coletivamente. (Jenkins, 2006: 56)

53 Esse tipo de atitude dialoga diretamente com os apontamentos de Pierre Lévy, ao passo que em seu entendimento o ciberespaço “tem a vocação de colocar em sinergia e interfacear todos os dispositivos de criação de informação, de gravação, de comunicação e de simulação. A perspectiva da digitalização geral das informações provavelmente tornará o ciberespaço o principal canal de comunicação e suporte de memória da humanidade a partir do próximo século.” (Lévy, 2000: 93).

54 Sobre esse contexto de banco de dados a hashtag funciona como um excelente instrumento para organização e localização de conteúdo, além de permitir determinar números relativos ao seu alcance por meio de ferramentas associadas às redes sociais.

55 Nesse sentido, ao efetuar uma pesquisa pelas redes sociais é possível notar que a maioria das postagens envolvendo a mencionada hashtag é de músicos das bandas envolvidas, compartilhando datas de eventos próprios e dos demais artistas do grupo; espalhando notícias sobre as articulações coletivas desenvolvidas e exaltando a importância da atuação conjunta e colaborativa.

56 Para fundamentar esse tópico, buscou-se analisar os dados obtidos através de uma pesquisa pela hashtag #acenavive, ao longo do mês de maio de 2015, nas 3 principais ferramentas on-line utilizadas para diagnóstico de informações do Twitter: Hashtracking, Hashtagify e TweetReach.

57 Pelos rastros digitais verificou-se, durante o período em que as ferramentas foram aplicadas, uma alta adesão do uso da hashtag pelos integrantes das seguintes bandas Drenna, Folks, Montanha Russa, Cândido, Canto Cego, Nove Zero Nove, Pessoal da Nasa, Stereophant, Kapitu e Facção Caipira.

58 No tocante ao potencial de análise de dados on-line, foi possível obter informações que demonstram que durante a última semana de maio de 2015 foram publicados 68 tweets com alcance de cerca de 240 000 pessoas e mais de 500 000 impressões; os principais influenciadores foram Tico Santa Cruz, Carlos Casagrande e a banda Drenna; e que

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 123

dentre as palavras correlacionadas à hashtag aparecem “underground”, “correria” e “união”.

59 Outro ponto interessante revelou-se por meio de mapeamento da hashtag e está ligado à expansão territorial. Como citado anteriormente, com o crescimento do uso da hashtag #acenavive, diversos músicos de outras regiões tiveram contato com a proposta e começaram a replicá-la em suas cidades, levando a uma ampliação dessa comunidade virtual “construída sobre as afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca, tudo isso independentemente das proximidades geográficas” (Lévy, 1999: 127). Dessa forma, foi possível identificar a utilização da hashtag em outros estados brasileiros, como a Bahia 34 e São Paulo. Vale destacar que nesse segundo estado já existe uma organização dos músicos, que realizam reuniões, divulgam novidades sobre as bandas participantes em uma página oficial e no qual, um de seus articuladores – Carlos Casagrande – apareceu como um dos principais influenciadores.

60 No estado do Rio de Janeiro, também foi possível observar através desses rastros digitais que os avanços territoriais ocorreram: o Bar do Blues em São Gonçalo tem utilizado a hashtag de forma recorrente nas redes sociais para anunciar os eventos que ocorrem na casa, bem como grupos de Niterói e Petrópolis,35 que têm se articulado de forma associativa em torno da #acenavive.

61 Tendo em vista o exposto acima, é possível concluir que os membros do grupo #acenavive utilizam novas práticas sociais originando um novo “modo de fazer com”, através do qual se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural (Certeau, 2002) e a partir do momento que a força coletiva desse grupo propaga dentro de uma cena musical gerando visibilidade para os atores envolvidos, estes adquirem uma posição que gera um capital social para estes integrantes (Putnam, 1993) e marca a transição de um status social para outro (Zempléni, 2000).

4. A cena musical do Rio de Janeiro e uma cartografia dos espaços ocupados

62 Will Straw, professor da Universidade McGill no Canadá, foi o primeiro pesquisador a propor uma sistematização acadêmica acerca das cenas musicais (1991, 1997, 2006a), diferenciando-as de comunidades musicais. Para uma noção de cena, o autor leva em conta “as esferas circunscritas de sociabilidade, criatividade, e conexão que tomam forma em torno de certos tipos de objetos culturais no transcurso da vida social desses objetos” (Straw in Janotti Jr., 2012a: 9).

63 A partir dessa primeira definição traçada, outros estudiosos passaram também a debater e questionar temas relacionados ao conceito de cena musical e seu uso na esfera comunicacional.

64 Nesse tocante, Pereira de Sá, ao analisar os apontamentos de Straw, associou a identificação de uma cena musical aos seguintes requisitos: a) Um ambiente local ou global; b) Marcado pelo compartilhamento de referências estético-comportamentais; c) Que supõe o processamento de referências de um ou mais gêneros musicais, podendo ou não dar origem a um novo gênero; d) Apontando para as fronteiras móveis, fluidas e metamórficas dos grupamentos juvenis; e) Que supõem uma demarcação territorial a partir de circuitos urbanos que deixam rastros concretos na vida da cidade e de circuitos imateriais da

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 124

cibercultura, que também deixam rastros e produzem efeitos de sociabilidade; f) Marcadas fortemente pela dimensão midiática. (Pereira de Sá, 2011: 157)

65 Sobre essa questão, Janotti Jr. e Pires (2011: 12) apontam que para compreender a formação de uma cena é necessário reconhecer a participação dos atores sociais envolvidos na cadeia produtiva da música, desde a sua composição e gravação até ao seu consumo final, analisando uma série de implicações. A principal delas é o desenvolvimento social e econômico do espaço urbano, através da formação de um grupo que se “identifica” com a cena e atua na disseminação da informação e conhecimento dentro da cena, forjando redes sociais, afetivas e mercadológicas ao redor de certas práticas musicais (ibidem). E é exatamente isso que o coletivo #acenavive realiza.

66 Diante dessas características e tendo em vista as práticas descritas anteriormente sobre a articulação gerada em torno da #acenavive carioca, é possível notar que se relaciona a uma cena musical, no Rio de Janeiro, cujo gênero musical preponderante é o rock e que engloba a coexistência de diferentes práticas interagindo entre si em um ambiente cultural.

67 E os resultados positivos que esse grupo tem obtido com o posicionamento dos principais artistas envolvidos na mídia e nos circuitos de show está diretamente relacionada com a força que as dinâmicas de união de uma cena musical promovem

68 Vale lembrar que a cena musical inclui também outros atores, como por exemplo os espaços por onde esses artistas circulam: casas de shows e bares que não só recebem as apresentações musicais, mas também funcionam como uma base territorial para promover encontros e onde as interações se tornam afetivas.

69 Nesse sentido, mapeamos os diversos locais onde esses artistas costumam se apresentar na cidade do Rio de Janeiro por meio de uma metodologia que envolveu observação participante, acompanhamento de matérias na mídia impressa e virtual, monitoramento das redes sociais das bandas, bem como análise dos dados existentes no Mapa Musical RJ.36 Dessa forma, foi possível identificar como os principais elementos nessa cartografia musical os seguintes espaços: a) Zona Norte: Imperator no Méier (tradicional casa de shows carioca que abraçou essa nova geração de músicos, principalmente por conta da realização do evento Rio Novo Rock, na primeira quinta-feira de cada mês e que completou um ano em junho de 2015), Arena Carioca Dicró na Penha (onde são realizadas as edições do Fomusic: Fórum da Música Independente Carioca e os eventos do Noz Coletivo), além de Planet Music – em Cascadura – e Porto Pirata, na Praça da Bandeira, que recebem diversos shows e festivais. b) Zona Sul: Em Botafogo destacam-se a Casa da Matriz (que realiza o evento Matriz Live Sessions voltado para atender a essa demanda), Saloon 79 (que realiza shows com produção própria, ou por aluguel do espaço), Durangos (principal espaço de confraternização dos artistas e que possui bebidas com nomes das bandas integrantes do grupo) e, em Laranjeiras, o Bar do B (onde é realizado o Indie Jam pela Cinnamon Produções e também outros eventos organizados por produtores do grupo #acenavive). c) Zona Oeste: Maverick, casa em Jacarepaguá que realiza diversos eventos em que circulam esses artistas. d) Centro: Teatro Odisseia, na Lapa (com o evento mensal Odisseia para Todos e alguns shows desses jovens músicos).

70 Dessa forma, a partir da compreensão de cena musical como “grupo demarcado por um espaço cultural onde coexiste uma diversidade de práticas musicais que interagem de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 125

formas múltiplas” (Pereira de Sá, 2011: 151), é possível notar que existe uma conexão entre a atuação do coletivo #acenavive e o território em que atua, conforme se aponta nas observações feitas pelos entrevistados sobre a contribuição das ações do grupo na cidade: Acredito que fomos fundamentais no retorno do rock ao Rio, através de campanhas que criamos como a da volta da Rádio Cidade e a divulgação maciça de todos os shows do evento Rio Novo Rock no Imperator. (Felipe Rodarte) Geramos melhores eventos para o público e o nível das bandas aumentou. (Kauan Calazans) Hoje não somos UM coletivo, somos muitos, com autonomia e organização – isso reflete na qualidade dos eventos que produzimos, na quantidade de público. A maioria dos eventos da cena independente do RJ tem enchido as casas de show, é um fato muito bonito de se admirar, é fruto de uma postura de apoio e de divulgação em conjunto. (Jan Santoro)

71 Sendo assim, uma vez que motivação para a organização coletiva está relacionada com a necessidade de melhoria das relações das bandas e criação de novas possibilidades de circulação e fomento de uma nova cena de rock na cidade do Rio de Janeiro (como evidenciado pelas falas dos entrevistados), é possível concluir que o grupo #acenavive vem atuando como uma prática “de resistência a essas imposições do gosto hegemônico” (Enne, 2012: 10) para colaborar na construção e fortalecimento de uma cena musical favorável no Rio de Janeiro, buscando ocupar cada vez mais espaços na cidade.

72 Além disso, percebe-se também que a configuração dessa conexão coletiva contribui para um impulso da produção musical e a intensificação da circulação de artistas na cidade do Rio de Janeiro enquanto esse grupo de jovens compartilha uma intensa experiência sensível e estética. Neste sentido, através das articulações coletivas #acenavive consegue dar destaque e criar um capital social em torno dos espaços que frequenta e também dos seus membros, que ficam em evidência. Dessa forma, as conquistas coletivas atingem também uma abrangência particular, ao passo que as bandas integrantes sobressaem-se, recebendo convites para shows. Essa distintividade também dá força ao coletivo para o estabelecimento de cooperações que visam, principalmente, estimular a circulação de apresentações musicais, como através de parcerias com casas de shows e com artistas de outras cidades de modo a criar uma rota de intercâmbio.

Considerações finais

73 De janeiro de 2014 até hoje, o grupo articulado ao redor da #acenavive tem conquistado diversos espaços tanto para circulação, quanto na mídia, com participação em programas de rádio e matérias em revistas, sites especializados e também jornais de grande circulação. Mesmo com esses avanços significativos, durante a pesquisa foram identificados dois desafios com os quais os seus integrantes estão lidando para expandir tanto o desempenho de suas ações, quanto o contato com outros agentes e coletivos.

74 O primeiro está relacionado com a sua conceituação. Logo que começaram, o grupo se identificava como um movimento “encabeçado pela força das bandas de rock autoral da cena carioca”,37 porém esse termo é objeto de inúmeras controvérsias – principalmente no ambiente das redes sociais – por conta de questionamento sobre a abrangência do grupo. Nesse contexto, as principais críticas começaram a partir da publicação de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 126

matéria sobre #acenavive no jornal O Globo,38 onde havia a citação de que a hashtag agrupava mais de 100 artistas, mas apenas representantes de 10 bandas constavam na foto de capa.

75 Em suma, de acordo com o olhar do grupo, este funcionava como um movimento, sendo aberto e com ações que beneficiavam a todos, enquanto sob a ótica dos artistas “de fora” o funcionamento deste era fechado e seguindo as demandas apenas de seus integrantes. Ou, nos termos dos músicos envolvidos, enquanto uns viam a existência de uma “Panela”, outros entendiam que eram um “Caldeirão” com a tampa aberta para quem quisesse somar.

76 De modo a tentar promover essa união, foi realizada a já citada confraternização no dia 12 de abril de 2015, no estúdio Toca do Bandido, por onde passaram 72 grupos, 12 coletivos, produtoras de shows e vídeos. Ainda em busca de uma nomenclatura que considerasse ideal, no final de maio o grupo da #acenavive passou a se identificar como um manifesto, com as linhas gerais produzidas durante esse evento e publicadas no blog Amplificador do jornal O Globo em 27.05.2015. Esse é um assunto que ainda desperta muitos questionamentos no meio musical carioca e, por isso, segue sendo acompanhado para pesquisas futuras.

77 O segundo desafio que o grupo enfrenta está ligado à formação de público para os artistas envolvidos. Nesse tocante, foram localizados nas redes sociais alguns posicionamentos em oposição às práticas do grupo por considerarem que os frequentadores dos shows destas bandas são, em maioria, músicos de outras bandas envolvidas na articulação da #acenavive e que por isso não haveria uma efetiva formação de público, apenas uma camaradagem.

78 Todavia, através da observação realizada durante diversos eventos foi possível notar que existem sim diversos consumidores dessas apresentações musicais que não possuem qualquer relação direta com a organização da hashtag. Isso inclusive resta claro quando acessamos as páginas nas redes sociais dessas bandas. Existem diversas fotos de shows e comentários de fãs que não têm qualquer vínculo com o grupo. Ainda no que diz respeito a essa crítica, pelo exposto neste artigo e tendo em vista a experiência de quase uma década dos autores no acompanhamento do cenário independente, não é razoável concordar com o posicionamento de que músicos não possam ser considerados como plateia de um evento. Afinal, se estão pagando o ingresso, participando ativamente do show e têm interesse na música, por que não deveriam ser considerados como público?

79 De todo o modo, mesmo restando evidente durante os eventos que as bandas ainda possuem um caminho a percorrer para angariar novos fãs a fim de consolidar uma carreira sustentável economicamente, é coerente apostar no fortalecimento dos atores envolvidos em torno da hashtag #acenavive nos próximos anos, uma vez que possuem alguns dos aspectos apontados por Herschmann e Fernandes (2012) como os mais importantes para que uma cena musical tenha capacidade de se reproduzir, isto é: a) espaços significativos para os gêneros musicais e os atores envolvidos na mídia tradicional; b) existência de blogosfera e redes sociais dando visibilidade às iniciativas da cena; c) realização de concertos na rua e/ou em casas de espetáculo; d) para além dos concertos, a existência de espaços para trocas interpessoais onde manifestam sociabilidades e afetos; e) presença de uma produção

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 127

fonográfica regular; f) interesse da crítica e do jornalismo cultural na sua divulgação; g) e a estruturação de circuitos de festivais e eventos.

BIBLIOGRAFIA

Anderson, Chris (2007), A cauda longa. São Paulo: Campus.

Bittencourt, Luiza; Domingues, Daniel (2014), “Do It Together: Gestión Colectiva en la Formación de Redes Culturales”, Anais do Encuentro Sudamericano de Gestión Cultural, em Valparaíso, 09-11 de outubro, Chile.

Bittencourt, Luiza; Domingues, Daniel (2015), “Público virtual e as contribuições do Youtube para a indústria Musical”, Anais do VIII Seminário de Investigación de La Asociación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación, Universidad Metropolitana, 25-27 de maio, Porto Rico.

Bourdieu, Pierre (2007), A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk/São Paulo: EDUSP.

Castells, Manuel (1999), “Introdução” e “Paraísos comunais: identidade e significado na sociedade em rede”, O poder da identidade. Vol. 2 – A era da informação: Economia, sociedade e cultura. São Paulo: Paz e Terra, 17-92.

Certeau, Michel (2002), A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes.

De Marchi, Leonardo (2005), “A angústia do formato: uma história dos formatos fonográficos”, E- Compós, 2.

De Marchi, Leonardo (2012), “Transformações estruturais da indústria fonográfica no Brasil 1999-2009: desestruturação do mercado de discos, novas mediações do comércio de fonogramas digitais e consequências para a diversidade cultural no mercado da música”. Tese de Doutorado em Comunicação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

Domingues, Daniel (2015), Festival Grito Rock: Articulações, disputas e construções territoriais na música independente do Estado do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense, Brasil.

Enne, Ana (2012), “O uso dos termos ‘favelização’, ‘orkutização’ e outros similares nas disputas por consumo e identidades na cultura da Internet”. São Paulo: Artigo apresentado no COMUNICON.

Frith, Simon (1981), Sound Effects, Youth, Leisure, and the Politics of Rock and Roll. New York: Pantheon Books.

Herschmann, Micael (2010), Indústria da música em transição. São Paulo: Ed. Estação das Letras e das Cores.

Herschmann, Micael (2012), Comunicações e territorialidades: Rio de Janeiro em cena. São Paulo: Anadarco.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 128

Herschmann, Micael (2013), Balanço das dificuldades e perspectivas para a construção de uma cena musical independente em Niterói no início do século XXI. Manaus: Texto apresentado no INTERCOM.

Herschmann, Micael; Fernandes, Cíntia (2012), “Nova Orleans não é aqui?”, E‑Compós, 15(2), 1‑17.

Jannoti Jr., Jeder (2012a), “Entrevista - Will Straw e a importância da ideia de cenas musicais nos estudos de música e comunicação”, E-compós, 15(2), 1-10.

Jannoti Jr., Jeder (2012b), “Partilhas do comum: cenas musicais e identidades culturais”, in Ana Paula Ribeiro; João Freire Filho; Micael Herschmann (orgs.), Entretenimento, felicidade e memória: forças moventes do contemporâneo. São Paulo: Anadarco, 1-13.

Jannoti Jr., Jeder (2013), “Rock With The Devil: notas sobre gêneros e cenas musicais a partir da performatização do feminino”, in Jeder Janotti Jr.; Simone Pereira de Sá (orgs.), Cenas Musicais. São Paulo: Anadarco.

Jannoti Jr., Jeder; Pires, Victor de Almeida Nobre (2011), “Entre os afetos e os mercados culturais: as cenas musicais como formas de mediatização dos consumos musicais”, in Jeder Jannoti Jr.; Tatiana Rodrigues Lima; Victor de Almeida Nobre Pires (orgs.), Dez anos a mil: Mídia e música popular massiva em tempos de internet. Porto Alegre: Simplíssimo, 8-22.

Jenkins, Henry (2006), Cultura da convergência. São Paulo: Aleph.

Jenkins, Henry (2009), “If it Doesn’t Spread, It’s Dead (Part One): Media Viruses and Memes”, The official weblog of Henry Jenkins, 11 de fevereiro. Consultado a 30.05.2015, em http:// henryjenkins.org/2019/02/if_it_doesnt_spread_its_dead_p.html.

Lévy, Pierre (1999), Cibercultura. São Paulo: Ed. 34.

Lévy, Pierre (2000), A inteligência coletiva. São Paulo: ed. Loyola.

Martini, Paula (2007), “Enxugando gelo para não molhar mão”, Overmundo, 14 de março. Consultado a 25.05.2015, em http://www.overmundo.com.br/overblog/enxugando-gelo-para- nao-molhar-a-mao.

Pereira, Simone Luci; Borelli, Silvia Helena (2015), “Música ‘alternativa’ na Vila Madalena: práticas musicais juvenis na cidade”, Revista Fronteiras – Estudos midiáticos, 17(3), 281-289.

Pereira de Sá, Simone (2006), A nova ordem musical: notas sobre a noção de “crise” da indústria fonográfica e a reconfiguração dos padrões de consumo. Niterói: UFF - PPGCOM.

Pereira de Sá, Simone (2011), “Will Straw: cenas musicais, sensibilidades, afetos e a cidade”, in Jeder Janotti Jr.; Itânia Gomes (orgs.), Comunicação e estudos culturais. Salvador: EDUFBA, 147-162.

Pereira de Sá, Simone (2013), “As cenas, as redes, e o ciberespaço: sobre a (in)validade da utilização da cena musical virtual”, in Jeder Janotti Jr.; Simone Pereira de Sá (orgs.), Cenas musicais. São Paulo: Anadarco, 25-39.

Pereira de Sá, Simone; Bittencourt, Luiza; Domingues, Daniel (2016), ROCK RJ: Articulações entre cenas musicais e dinâmicas de coletivos culturais do estado do Rio de Janeiro. Coletânea de dez anos do LabCult - Laboratório de Pesquisa em Cultura e Tecnologias da Comunicação. Editora E-Papers (no prelo).

Putnam, Robert (1993), “The Prosperous Community: Social Capital and Public Life”, The American Prospect. Consultado a 25.04.2016, em http://prospect.org/article/prosperous-community-social- capital-and-public-life.

Straw, Will (1991), “Systems of Articulation, Logics of Change: Scenes and Communication in Popular Music”, Cultural Studies, 5(3), 368-388.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 129

Straw, Will (1997), “Communities and Scenes in Popular Music”, in Ken Gelder; Sarah Thorton (orgs.), The Subculture Reader. London: Routledge, 21‑249.

Straw, Will (2006), “Scenes and Sensibilities”, E-Compós, 6, 1-16.

Straw, Will (2013), “Cenas culturais e as consequências imprevistas das políticas públicas”, in Jeder Janotti Jr; Simone Pereira deSá(orgs.), Cenas musicais. São Paulo: Anadarco, 09-23.

Teixeira Junior, Sérgio (2002), MP3: A revolução da músicadigital. São Paulo: Editora Abril.

Vicente, Eduardo (2006), “A vez dos independentes: um olhar sobre a produção musical independente do país”, E-compós. Consultado a 25.04.2016, em http://compos.org.br/seer/ index.php/e-compos/article/viewFile/100/99.

Zempléni, Andràs, (2000), “Iniciação”, in Pierre Bonte; Michel Onte-Izard (orgs.), Dictionnaire de l’ethnologie et de anthropologie. Paris: Quadrige/Presses Universitaires de France, 233-247.

NOTAS

1. Para mais informações sobre a influência do Youtube na indústria musical, ver Bittencourt e Domingues (2015). 2. O monitoramento envolveu as páginas do coletivo #acenavive, das bandas que participam do grupo e também perfis dos músicos envolvidos. 3. A pesquisa compreendeu matérias em dois jornais de grande circulação: O Globo e O Dia. 4. O Mapa Musical RJ (www.mapamusicalrj.com.br) possui os seguintes patrocínios: Claro, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura, Lei Estadual de Incentivo à Cultura do Rio de Janeiro, Ministério da Cultura, CNPQ e Faperj, bem como o apoio do Instituto Embratel Claro. 5. A Ponte Plural (www.ponteplural.com.br) é uma iniciativa cultural que atua desde 2010 no fomento ao empreendedorismo no setor musical e na articulação de redes no estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de criar novos arranjos criativos locais. 6. Grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e ao Curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense (http://www.labcult.uff.br/) sob a coordenação da Professora Doutora Simone Pereira de Sá. 7. Consultado a 25.05.2015, em http://www.huffingtonpost.com/2014/08/18/30-years-music- sales_n_5687546.html. 8. Consultado a 25.05.2015, em http://www.digitalmusicnews.com/permalink/2014/08/15/30- years-music-industry-change-30-seconds-less. 9. Consultado a 25.05.2015, em http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/ 2015/06/04/apple-deve-lancar-servico-de-streaming-de-musica-na-proxima- semana-184291.php. 10. Consultado a 25.05.2015, em http://oglobo.globo.com/cultura/musica/assinaturas-de- streaming- de-musica-crescem-39-ja-representam-23-do-mercado-digital-global-15866702. 11. Consultado a 04.01.2016, em www.pleimo.com/. 12. Consultado a 04.01.2016, em www.spotify.com/. 13. Consultado a 04.01.2016, em www.deezer.com/. 14. Consultado a 30.05.2015, em http://www.forbes.com/sites/ciocentral/2013/09/12/the- future-of-social-media-forget-about-the-u-s-look-to-brazil/. 15. Para uma análise sobre o modelo de gestão cultural coletiva do Circuito Fora do Eixo ver Bittencourt e Domingues, 2014.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 130

16. Para uma análise sobre o Festival Grito Rock no estado do Rio de Janeiro ver Domingues, 2015. 17. Consultado a 05.01.2016, em https://www.facebook.com/RedeBrasildeFestivais/?fref=ts. 18. Consultado a 05.01.2016, em http://www.moveiscoloniaisdeacaju.com.br/. 19. Consultado a 05.01.2016, em http://emicida.com.br/. 20. Consultado a 05.01.2016, em http://oteatromagico.mus.br/. 21. Esse trecho da música “Prelúdio” é utilizado pelos membros do coletivo #acenavive para reforçar sua união em shows e apresentações. 22. Informações obtidas através de entrevista com aplicação de questionário para essa pesquisa em janeiro de 2016. 23. O projeto Converse Rubber Tracks é realizado pela Converse com o objetivo de funcionar como uma plataforma para artistas iniciantes realizarem gravações de qualidade. Assim, desde julho de 2011, mais de 600 bandas já tiveram a oportunidade de gravar – sem nenhum custo – no estúdio da Converse em Brooklyn, Nova Iorque. No início de 2014 esse projeto passou a ser desenvolvido também no Brasil, em parceria com os estúdios Toca do Bandido, no Rio de Janeiro e Family Mob, em São Paulo. A primeira edição no Rio de Janeiro ocorreu em janeiro de 2014, quando também foi observado o início o uso da hashtag #acenavive em postagens sobre a gravação de faixas (em 24.01.2014) e em reunião celebrando o projeto, em 06.02.2014, conforme mapeamento baseado nos rastros das redes sociais. 24. Estúdio de gravação e mixagem de áudio, em 2.0 e 5.1, idealizado e concebido pelo produtor musical Tom Capone (vencedor de inúmeros prêmios “Grammy”), que é considerado um dos mais bem equipados e melhores espaços de produção de música do Brasil. 25. Estúdio no Rio de Janeiro comandado por Felipe Rodarte. 26. Informações obtidas através de entrevista com Jan Santoro realizada pelos autores em 05.10.2015, que foi publicada no site Ponte Plural. Consultado a 20.01.2016, em http:// ponteplural.com.br/ponte-plural-entrevista-faccao-caipira/. 27. Conceito criado com base na noção do “Do It Yourself”, que estimula que, ao invés de “fazer você mesmo” de forma isolada, os agentes optem por um “fazer junto”. 28. Informações obtidas durante a apresentação de Felipe Rodarte realizada durante o eMIC – Encontro de Música Independente Contemporânea – em 12 de maio de 2015, complementadas por uma entrevista com aplicação de questionário para essa pesquisa e também matéria publicada no jornal O Globo em 01.03.2015 e 27.05.2015, revista noize de 22.03.2015 e portal R7 em 01.06.2015. 29. Felipe Rodarte é músico, compositor e produtor musical nos estúdios Soma e Toca do Bandido e teve contato com o Circuito Fora do Eixo como parceiro, tendo participado inclusive do Congresso Fora do Eixo, que era a principal ação anual para reunião dos membros da rede. 30. Informações obtidas através de entrevista com Kauan Calazans realizada pelos autores em 12.06.2015, que foi publicada no site Ponte Plural. Consultado a 20.01.2016, em http:// ponteplural.com.br/ponte-plural-entrevista-folks/. 31. Consultado a 20.01.2016, em http://blogs.oglobo.globo.com/amplificador/post/manisfesto- cena-vive-567354.html. 32. As bandas envolvidas na #acenavive articularam uma mobilização pela volta da Rádio Cidade (FM 102.9), que foi a principal rádio de rock do Rio de Janeiro, mas estava fora do dial há alguns anos. O movimento acabou recebendo apoio de artistas consagrados e a Cidade foi retomada. Atualmente, a Cidade mantém o programa “A Vez do Brasil”, transmitido aos domingos, que é voltado para dar destaque aos artistas da nova geração. 33. Na concepção de Pierre Lévy (2000: 92 e 93), o ciberespaço “é o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. […] Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de rede hertzianas e telefônicas clássicas), na medida em que transmitem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização. Insisto na codificação digital, pois ela condiciona

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 131

o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que é, parece-me, a marca distintiva do ciberespaço.” 34. Postagens da banda Efeito Manada. 35. Consultado a 25.05.2015, em https://www.facebook.com/SeattleImperial?fref=ts. 36. Consultado a 20.01.2016, em http://mapamusicalrj.com.br/. 37. Consultado a 25.05.2015, em https://www.facebook.com/acenaviveoficial?fref=ts. 38. Consultado a 25.05.2015, em http://oglobo.globo.com/cultura/musica/bandas-de-rock- conquistam-espacos-publico-no-rio-15468488.

RESUMOS

O presente artigo visa analisar as articulações do grupo de artistas que se organiza, no Rio de Janeiro, em torno da #acenavive. Para tanto, utiliza a noção de cena musical para i) analisar o histórico de organização conjunta promovida por esses jovens músicos e compreender os seus objetivos e motivações; ii) cartografar os espaços urbanos frequentados por esses artistas e utilizados para a realização de shows; e iii) identificar as principais práticas culturais e de sociabilidade presentes na articulação desses jovens.

This article aims to analyse the links between the group of artists organised around #acenavive in Rio de Janeiro. It therefore uses the notion of the music scene to (i) analyse the history of the collective form of organisation developed by these young musicians and understand their objectives and motives; (ii) map the urban spaces frequented by the artists and used to present shows (iii) identify the main cultural and social practices that feature in the links between these young artists.

Le présent article a pour but d’analyser les articulations du groupe d’artistes qui s’est organisé, à Rio de Janeiro, autour du groupe #acenavive. Pour ce faire, nous partons de la notion de scène musicale pour (i) analyser l’historique de l’organisation conjointe promue par ces jeunes musiciens et comprendre leurs objectifs et motivations; (ii) cartographier les espaces urbains fréquentés par ces artistes et utilisés pour y réaliser des shows; et (iii) identifier les principales pratiques culturelles et de sociabilité présentes dans l’articulation de ces jeunes.

ÍNDICE

Keywords: cultural practices, digital culture, entrepreneurship, phonographic industry, sociology of music Palavras-chave: cultura digital, empreendedorismo, indústria fonográfica, práticas culturais, sociologia da música Mots-clés: culture digitale, entrepreneuriat, industrie phonographique, pratiques culturelles, sociologie de la musique

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 132

AUTORES

LUIZA BITTENCOURT

Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense Rua Tiradentes, 148 - Ingá - Niterói/RJ, CEP: 24210-510, Brasil [email protected]

DANIEL DOMINGUES

Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Cultura e Territorialidades da Universidade Federal Fluminense Rua Tiradentes, 148 - Ingá - Niterói/RJ, CEP: 24210-510, Brasil [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 133

Rumo a uma etnografia da música contemporânea. Prólogo para um projeto de investigação* Towards an Ethnography of New Music: Prologue to a Research Project Vers une ethnographie de la musique contemporaine. Prologue pour un projet de recherche

Gil Fesch

NOTA DO EDITOR

Artigo recebido a 21.07.2015 Aprovado para publicação a 11.01.2016

Introdução: a evolução paradigmática da sociologia da música

1 Outrora terreno baldio, malpropício à empresa sociológica, a música é hoje tomada como espaço privilegiado para pensar fenómenos coletivos.1 E os motivos para que tal aconteça são fortes. Senão, veja‑se: sabemos do potencial que o estudo da esfera simbólica, das manifestações culturais e da densa cadeia do sentido tem para nos reenviar – de maneira mais ou menos clara, mas invariavelmente rica – para a (co)produção da subjetividade, para a intimidade mediada dos sujeitos, e, como tal, para o domínio das práticas sociais. E que outra forma tão particularmente expressiva, afetiva e inclusiva, que não a música, para cumprir o propósito?

2 Adianta Lahire (2003: 21) que toda a teoria sociológica da ação e do ator tem subjacente, independentemente da sua natureza, a busca pela “fórmula geradora das suas práticas” – ou fórmulas (as “molas da ação”). É pois precisamente na questão de número que a

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 134

contenda se processa: fórmula ou fórmulas? Sujeito enquanto ente reflexivo e industrioso, ou mero recetáculo de influências, verticalmente dúctil? Também na música, por isso, a discussão é delimitada por dois grandes polos: o da “unicidade do ator e o da sua fragmentação interna”. E é neste equilíbrio de forças, delicado, entre tradições teóricas, que se joga o desenvolvimento teórico‑metodológico da sociologia da música, articulado num processo sucessório que levou a mudanças substanciais em termos de abordagem e objeto.

3 Tornou‑se, então, habitual pensar a evolução paradigmática da sociologia da música de forma bietápica (e.g., Martin, 2006; Hennion, 2002). À tal metanarrativa totalizante, projeto de teoria estética que carrega a indelével assinatura de Adorno, reagiam modernas perspetivas sociológicas, relativamente indiferentes perante a obra artística ensimesmada (music itself), e apostadas em situar a experiência estética no seu contexto social mais vasto. Não mais passavam a ser tolerados discursos teleológicos (ou proselíticos sequer) acerca da passividade dos públicos – amparados, até então, pela análise textual –, abandonava‑se o apadrinhamento teórico da musicologia, e rumava‑se a uma plena consagração sociológica da música, agora considerada na sua multidimensionalidade.

4 Mais do que um simples panegírico à subjetividade, este afastamento sistemático do “foco estruturalista” – que entendia a música como uma “espécie de espelho da estrutura social” (Guerra, 2015a: 5) – tem, assim, por base uma abertura do espectro da análise à música popular2 (sobretudo pela via etnográfica e histórico‑etnográfica), num reconhecimento cabal do seu potencial “constitutivo e relacional, conflitual e performativo” (Prior, 2008: 302).3 Alijada do compromisso ascético – forte pressuposto do projeto modernista –, esta ‘nova’ sociologia da música passava a debruçar‑se sobre questões tão diversas como as complexas redes colaborativas que sustentam os meios artísticos (Becker, 1982), putativas homologias entre géneros musicais e estilos de vida de grupos sociais específicos (Willis, 1978), o papel das instâncias de legitimação, mercados de trabalho e carreiras artísticas (Menger, 1999), os processos de mediação tecnológica (Hennion, 2002) ou as experiências e usos quotidianos da música (DeNora, 2000).

5 Muitos foram, portanto, os contributos desta nova vaga de abordagens contextuais que, desvinculadas esteticamente, propunham formas alternativas de conceptualizar as coletividades musicais. Novas e evanescentes práticas artísticas colocavam desafios teóricos que exigiam, por sua vez, flexibilidade e dinamismo metodológicos. À rigidez das propostas dos subculturalistas (e.g., Hebdige, 1979) – naquela que era uma primeira tentativa de renovação teórica, ainda que de inspiração marxista, assente num léxico estruturalista e classista, que superestima a coerência dos grupos (Hesmondhalgh, 2005) –, sobrevinham novas terminologias. DiMaggio (1987) insistia no conceito de género, cuja polissemia permitia apresentar sistemas de classificação artística como construções multidimensionais e dinâmicas; Bennett (1999) avançava com o conceito de tribo, num esforço sustentado para repensar a relação entre juventude, estilo e gosto musical; Straw (2006) contrapunha a ideia de cena, enriquecendo o estudo da música popular com o aporte teórico da geografia cultural.4

6 Se os méritos destas propostas são hoje amplamente reconhecidos (Guerra, 2015b), acompanhando a efervescência das manifestações culturais e desierarquizando saberes, é também facto que substituíram uma forma de soberania teórica por outra. A música popular vê‑se justamente valorizada, tida como área de indiscutível interesse teórico,

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 135

mas consegue‑o, em parte, às custas do seu eterno émulo. Não surpreende, assim, que escasseiem, entre os recentes avanços conceptuais, soluções analíticas que conduzam a um modelo teórico aplicável à música ‘erudita’ (em especial à criação ‘contemporânea’) – i.e., alternativas que permitam dar resposta epistemológica aos conhecidos impasses da tradição sociológica. Como ultrapassar, então, antinomias clássicas entre perspetivas estruturalistas e individualistas da música? Como conciliar níveis de análise? E como responder aos sucessivos apelos à interdisciplinaridade (e.g., Born, 2010a; Boia, 2015)? Que papel reservar à abordagem contextual? Será possível (ou até pertinente) reintegrar o objeto estético na abordagem contextual, evitando assim novas formas de ortodoxia? Começaremos agora por reconsiderar criticamente a genealogia da disciplina.

De regresso às fundações

7 A cristalização de linhas mutuamente exclusivas, ter‑se‑á tornado claro, fazia‑se na oposição crispada entre texto e contexto, da teoria para a empiria, oscilando entre objeto e sujeito. Como nos diz Born (2010b: 173), é hoje dado assumido que “a sociologia da arte se definiu, em grande medida, por oposição à estética, quer desconstruindo pretensões autonómicas da arte, quer analisando as determinações sociais e históricas da experiência estética”. Constituíam‑se, então, as vias teórica, “desenhando homologias entre a arte e as suas condições sócio‑históricas”, e empirista, atenta às “práticas, tecnologias, convenções e divisão do trabalho”, numa contenda que encorajava, em idêntica medida, progressos e imprecisões. Firmada ao eixo aristotélico episteme‑tékhne, a disputa desmontava distopias clássicas, enquanto se encobriam nuances e ligações.

8 Por esse motivo se argumentou, em parte outra,5 que a visão panorâmica agora esboçada (correspondente ao posicionamento generalizado de teóricos recentes face à literatura clássica), embora de inquestionável utilidade analítica, assenta frequentemente em leituras parciais destes contributos. Aí se propunha um modelo de leitura alternativo, de confrontação dialética, em que se reconheciam, a reboque de Teixeira Lopes (2000), tanto a ambiguidade conceptual da sua produção teórica (nas suas titubeações, apostas e retrocessos), como a complexidade, abrangência e atualidade do seu pensamento.

9 Weber, a título de exemplo, precipita o desenvolvimento de correntes teóricas como o interacionismo simbólico ou o individualismo metodológico, através da noção de ‘ação social’, mas é igualmente acusado, no que à música diz respeito (Weber, 1998), de propor uma abstração despessoalizante. Glorifica‑se‑lhe o princípio de ‘neutralidade sociológica’ – pedra basilar do moderno pensamento teórico –, à medida que se ataca o compromisso estético e a ocidentalidade da sua visão.6 A sua obra funde‑se, assim, com a de Simmel, ambas influenciadas pela teoria marxista, kantianas na sua essência, mas diverge epistemologicamente, no método e sistematicidade. Junta‑se a Adorno na perspetiva macro: partilham um modelo analítico em que sociedade e música surgem espelhadas.

10 Já Simmel, uma vez reconhecido o desalinho do seu programa, espanta pela atualidade do pensamento: o duplo olhar que convoca perante os fenómenos sociais, pressuposto metodológico decisivo da sua proposta, funda uma postura de relativismo analítico que hoje assume centralidade nas ciências sociais. Insiste, com Adorno, que a música cria os seus próprios universos de sentido (Simmel, 1968), acessíveis apenas aos culturalmente

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 136

iniciados, e possibilita, simultaneamente, a sensibilidade benjaminiana. Antecipa Hennion na mediação tecnológica, permite Becker, pela atenção prestada à interação social.

11 Em Benjamin (2010), por sua vez, honra‑se a experiência sensório‑corporal, abrindo alas a um discurso teórico dignificador de formas culturais ‘menores’ e, por conseguinte, a correntes teóricas como a dos cultural studies. Apesar do tom pessimista, encontramos aqui um importante entreabrir de porta, deambulando entre espaço intelectual e emocional, estética e anestética entrecruzadas num enobrecimento hegeliano da subjetividade, das respostas sentimentais, da nostalgia e da melancolia. Nas suas páginas encontramos, por isso, locução fronteiriça a outras tradições, arrojada no recurso à figura de estilo, ao jogo de palavras, ou a uma certa ambiguidade de registo que tanta largura permite à sociologia.

12 Adorno (1991), esse, marca a agenda teórica ao não hesitar na necessidade de considerar sociologicamente o texto (que é musical). Mas é talvez o seu método dialético – recorrentemente tomado como algo absoluto e, por isso mesmo, incompreendido – o seu contributo mais relevante: incita‑nos a proceder por contradição, exagerando os termos e iluminando implicações. Torna‑se, assim, explícita a tensão entre opostos, e o todo inteligível (Paddison, 1982). Devidamente controlada nos seus excessos, expurgada do nojo trágico em face do anunciado destino da cultura ocidental, a dialética adorniana (Adorno, 1994) constitui, assim, um importante apoio teórico – justapondo sociologia, musicologia e filosofia – e (questão mais sensível, porventura) metodológico também.

13 Mas consideremos novamente a plataforma teórica estabelecida entre Weber e Simmel. Os respetivos projetos constituíam‑se em frutuoso diálogo, ainda que mais ou menos implícito, em complementar antonímia – eis a chave. Reconhecendo tratar‑se de uma micro‑oposição – se considerarmos a totalidade do espaço teórico –, o anseio literário (senão lírico) de Simmel, um quase pontilhismo teórico, encontra o seu reverso epistemológico na sistematicidade weberiana; a formulação metafísica da individualidade, do primeiro, contrastando com a proposta, defendida pelo segundo, de integração do sujeito num processo histórico mais vasto, de racionalização da sociedade ocidental. Vislumbram‑se, neste primeiro confronto dialético, no choque entre análise sistemática e ensaísmo ou forma aberta, entre macro‑história e psicossociologia, as bases de contendas vindouras.

14 Se Simmel reconhece validade aos discursos dos atores sociais, ao sentido que atribuem às próprias ações, Weber entende que a motivação interna é parte ínfima de uma constelação ampla de fenómenos, acessível apenas pela interseção de causalidades múltiplas, evitando, assim, equívocos metodológicos e possíveis parcelamentos da realidade social. A análise não se propõe, evidentemente, exaustiva,7 mas importa salientar que é neste subtil (se bem que expressivo) desentendimento epistemológico que se circunscrevem as condições de debates futuros – não uma genealogia em sentido literal, mas tímidas germinações, os alicerces teóricos que possibilitam a moderna abordagem científica dos fenómenos simbólicos.

Da (im)possibilidade de articulação conceptual

15 Supra abraçávamos a discussão matricial da disciplina – unicidade versus fragmentação. Posto de outra forma, duas grandes tendências: uma que atribui peso excessivo ao

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 137

passado (de que são exemplo a teoria crítica, ou a teoria psicanalítica) e outra que tudo explica com base no momento da ação (pensemos no individualismo metodológico, interacionismo simbólico, etnometodologia, grounded theory, etc.). As mesmas implicações subjazem às propostas teóricas de Bourdieu e Becker, que aqui prolongam o debate. Nomos interior, “disposição incorporada”, ou “acontecimento desencadeador” como determinante das práticas? Em ambos os casos – e este é o aspeto relevante –, trata‑se de uma escolha a priori, postulado e não hipótese, i.e., falamos de posturas analíticas baseadas “mais em pressupostos éticos do que em constatações empíricas” (Lahire, 2003: 21). A denúncia é de Lahire, a quem nos juntamos na recusa, que é dupla, da “fórmula”, “sistema”, ou “princípio unificadores, mas também [d]a fragmentação generalizada ou [d]o fraccionamento disseminador” (ibidem: 29).

16 Entende‑se, por isso, importante mobilizar as duas teses – em concreto os conceitos de campo e mundo artístico –, como forma de 1) promover uma aproximação à problemática ancorada numa postura de relativismo analítico, de inspiração simmeliana, ciente dos perigos em que uma e outra incorrem, prevenindo‑nos, assim, de ver, na realidade social, unicamente aquilo que procuramos, mantendo‑nos alerta para possibilidades inesperadas; e 2) porque se entende que, também do ponto de vista da operacionalização, ambos os conceitos são compatíveis, apesar das (ou justamente pelas) diferenças epistemológicas/metodológicas.

17 Quando falamos em campo, referimo‑nos a um processo histórico de diferenciação entre esferas de atividade, enquanto campos sociais relativamente autónomos – espaços estruturados de posições, com diferentes doxai, investimentos, recompensas, interesses e lógicas. Dito de outra forma, uma ‘topologia social’ (Born, 2010b: 177) constituída através da tomada de posição (competitiva, ainda que complementar) e delimitada por trajetórias possíveis. Falamos, então, de lutas específicas aos campos, cujo motor seria a distribuição desigual de capitais, e, por isso, de uma teoria dos campos de poder (Wacquant, 2005: 118). Bourdieu coloca, assim, a arte numa teia de relações sociais para explicar que a transcendentalidade é afinal produto da crença coletiva – a ideia de illusio –, transformando, em última instância, a obra artística em fetiche, pelo que ao sociólogo caberia desvendar a desigualdade estrutural dos campos artísticos, acobertada pelas práticas (aparentemente) desinteressadas (Prior, 2011: 124).

18 Mas os campos não esgotam, sabemo‑lo, a interação social. Dizem respeito, fundamentalmente, ao domínio das atividades profissionais (e públicas). A própria autonomia dos campos – por muito que cada universo (e.g., artístico, literário, científico) tenda a extremá‑la – não pode senão ser considerada relativamente, uma vez que há reconhecida sobreposição de (ou permeabilidade entre) esferas, com natural preponderância do campo económico. Há agentes sem interesse nas lutas, há campos que são subcampos de outros campos, há práticas e objetos que pertencem a vários campos simultaneamente, agentes entre e sem campos (Lahire, 2003: 43‑44). É por isso que encontramos contextos sociais que congregam agentes ‘profissionais’, ‘legítimos’ ou ‘permanentes’, mas igualmente ‘amadores’, simples ‘consumidores’ e ‘espectadores’. Mais: assumir que os agentes lutam entre si não deve, ainda assim, impedir‑nos de reconhecer que, em nome do interesse específico do campo, existe entre eles um certo grau de “cumplicidade objetiva” que vai para além das lutas que os opõem (Lahire, 2001: 25).

19 As brechas da teoria bourdiana são, pois, evidentes: negligencia (ou pelo menos desprestigia) a dimensão sensório‑corporal da cultura, sobrevaloriza a experiência

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 138

estética em moldes sociológicos e falha em conceptualizar a mudança (Prior, 2008: 312). Por isso se propõe que a teoria dos campos seja vista como uma ferramenta de inquestionável utilidade analítica, que permite responder a uma série de problemas científicos, mas sem com isso esquecer que pode, por sua vez, constituir um sério obstáculo ao conhecimento do mundo social, sobretudo quando tomada como instrumento exclusivo para a contextualização das práticas (Lahire, 2001: 36).

20 É, portanto, indispensável complementar o mapeamento das posições inerentes ao campo (ou subcampo) com uma análise mais fina, sensível às nuances da interação social, atenta a subjetividades múltiplas, que contemple lógicas de ação colaborativa – no fundo, analisar não só indivíduos concretos, nomeados, mas também as relações por eles estabelecidas. É disso exemplo a teoria dos art worlds (Becker, 1982): ao evitar ascender à abstração bourdiana – a separação quase esquizofrénica entre campo e um tal universo de relações pessoais entre agentes do campo –, e focando, em vez, na interação social – i.e., nos mecanismos que permitem a emergência das práticas artísticas (Bottero e Crossley, 2011: 100) –, mostra‑se, no que a este ponto concerne, evidentemente mais promissora. A ênfase atribuída à relação entre convenção (musical) e prazer, a título ilustrativo, é particularmente importante, ao oferecer alternativa à noção de illusio – a tal “crença colectiva nas regras do jogo” (Teixeira Lopes, 2003: 88) – como forma de explicar o compromisso com a atividade cultural, sem para isso mobilizar forçosamente lutas simbólicas ou o instrumentalismo (Crossley e Bottero, 2015). Eis, então, por que motivo se entende que a associação imediata entre campo e habitus, quando pensada rigidamente, nos impede de analisar uma vastidão de práticas sociais.

21 Por outro lado, e sendo certo que Becker marca a atualidade ao olhar para as redes que enformam os diversos meios musicais, despoluindo o debate teórico, é igualmente evidente que falha em enquadrar a experiência subjetiva na estrutura de relações objetivas. Referimo‑nos, claro está, à crítica recorrente segundo a qual a teoria beckeriana (e o interacionismo de forma geral) negligencia questões estruturais de poder e de recursos. (Sublinhe‑se, em boa verdade, que tais questões são também cruciais em Becker; simplesmente não são enfrentadas do ponto de vista estrutural.) A sua abordagem é, assim, interacional no seu sentido mais vasto: os mundos artísticos fazem‑se não pelo estrito contacto entre atores sociais, mas através das redes e dos sistemas de ligações, diretos e indiretos (Bottero e Crossley, 2011: 105). Encerra‑se, como tal, numa certa ingenuidade analítica, cegando‑se ante lógicas competitivas, de luta pela imposição, por parte de grupos sociais específicos, de taxonomias favoráveis, de esquemas classificatórios que reproduzam e/ou alterem a estrutura dominante.

22 Dir‑se‑á, em suma, que se a teoria dos campos não pode fazer mais do que estudar a “dimensão polemológica dos universos considerados” (Lahire, 2001: 43), menoscabando simultaneamente história de longa duração e microssociologia (cujos objetos são tomados como questões marginais, insignificantes), o conceito de art world – e seus sucedâneos, de que é exemplo a noção de culture world (Crane, 1992) –, ao convocar os mais diversos pilares das manifestações culturais (produtores, convenções, instâncias de legitimação, organizações, públicos, etc.), e reinscrevendo‑as no seu contexto, pode assumir‑se como um importante contraponto, que nos permite abraçar a especificidade da comunicação artística, e, assim, enriquecer a proposta de Bourdieu. É neste quadro que a abordagem contextual beckeriana assume particular relevância para o nosso programa de pesquisa: vinculando decisivamente a produção do sentido ao encontro

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 139

entre obra e recetores, sejam eles detentores dos códigos culturais ‘legítimos’ ou não. Como afirma Lahire, impõe‑se consagrar que: a progressiva autonomização das funções sociais [...] está indissociavelmente ligada ao processo de constituição de tradições específicas, continuamente re‑tomadas, trans-formadas, re‑elaboradas, de geração em geração, e que formam uma base para a elaboração de lógicas, de objetos, e de estilos de enunciação cada vez mais específicos. (2001: 41)

23 Será, no entanto, legítimo questionar a exequibilidade de uma proposta que visa mobilizar conceitos com implicações tão distintas como os de campo e mundo artístico. Se a possibilidade de considerá‑los conjuntamente no plano teórico, ao bom estilo da dialética adorniana, encontrará – pensamos – pouca resistência, a ideia de conceber um desenho metodológico que congregue os dois será decerto algo mais controverso. De pronto justificamos: pensadas de forma complementar, as duas noções podem unir‑se numa arquitetura que contemple vários níveis de análise, i.e., apontando a uma sociologia pluriescalar, que recuse um modelo causal da ação humana. Num tal desenho, a perspetiva de Becker adequar‑se‑ia, de um modo geral, a uma escala micro, realçando quadros normativos, modos de fazer partilhados, crenças e valores a que os atores aderem, prestando‑se o conceito de campo tendencialmente à dimensão meso, ao enquadrar estes mesmos mundos artísticos num espaço social mais vasto, de posições fortemente estruturadas, sujeito à participação em disputas sistémicas pela propriedade simbólica, de que nos fala Bourdieu.

24 Urge, ainda assim, salientar, sem prejuízo do exposto, que a proposta agora desenhada não faz uma absoluta separação entre níveis de análise – e, como tal, dos respetivos conceitos, algo que significaria reincidir no impasse da distinção entre estrutura e interação. As propostas teóricas de Bourdieu e Becker, aliás, e como terá ficado claro, não respondem a contextos diferentes; debruçam‑se, isso sim, sobre aspetos distintos de uma mesma realidade social. Ambos os autores enfatizam, por exemplo, a fluidez da organização social e das práticas coletivas – como expresso na correspondência (parcial) entre a oposição bourdiana ‘heterodoxia vs. ortodoxia’, ou ‘produtores tradicionais vs. vanguardistas’ (Bourdieu, 1984), e a tipologia social de artistas proposta por Becker, que inclui ‘profissionais integrados’ e ‘mavericks’ (Becker, 1976). Os atores detêm recursos, interagem e formam relações; não parece, então, haver contradição entre as duas propostas (Bottero e Crossley, 2011: 114). Enquanto desconstruções sociologicamente informadas da doutrina kantiana, empenhadas em enquadrar o “objeto estético numa rede de forças e determinações sociais” (Prior, 2011: 122), há pois um potencial de complementaridade teórica que devemos explorar. Se a teoria dos campos assume um papel essencial na representação dos mecanismos e espaços em que se exercem os jogos de poder, é através de Becker que entendemos a complexidade das interações e a importância das redes colaborativas, contribuindo decisivamente para abarcar uma multitude de práticas sociais. Trata‑se, por conseguinte, de reconhecer que, dentro de cada um destes contextos ou níveis de análise, e apesar de potenciais preponderâncias, coexistem lógicas e registos de ação plurais.

25 Começa agora a fechar‑se o nosso quadro teórico que, não obstante, se mantém incapaz de responder a fenómenos de pertença simultânea a contextos sociais distintos, que exigem, por sua vez, diferentes esquemas de ação por parte de cada ator. É por isso que se assume, de novo com Lahire, que a subjetividade não se faz necessariamente por “síntese e unificação”. Sem que se assuma uma lógica de total descontinuidade entre contextos de interação, consagra‑se a possibilidade de incorporação de uma

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 140

multiplicidade de esquemas de ação (de perceção, de avaliação, etc.), articulados em reportórios de esquemas de ação – conjuntos abreviados de experiências sociais, construídos e incorporados ao longo de socializações anteriores. Assim se coordenam passado e presente, enfrentando‑se a realidade de forma relacional – a ação como ponto de encontro de experiências passadas e situação social presente –, ou seja, circunscrevendo os campos de ativação e inibição do passado incorporado, como proposto por Lahire. Acrescendo a Weber, postula‑se, então, a necessidade de atender à pluralidade dos tempos e das lógicas de ação, i.e., de rumar a uma “sociologia da pluralidade das lógicas efectivas de acção e da pluralidade das formas de relação com a acção” (Lahire, 2003: 201).

26 Esperamos agora estar finalmente em condições de corresponder à recomendação feita por Bourdieu (que de resto deixou por cumprir) e ir além de uma estéril “física social”, durkheimiana, sem, para isso, recorrer a uma “semiologia social”, cativa de “relatos de narrativas”, encerrada em incongruentes depoimentos, mero “produto de estruturas mentais/linguísticas” (Bourdieu, 1984: 483). Insiste‑se, pois, na “necessidade de conjugarmos perspectivas sociologistas com abordagens compreensivas, respeitando o poder de facticidade externa dos fenómenos sociais, mas rejeitando um papel de autómatos passivos aos agentes sociais” (Teixeira Lopes, 2000: 77).

A música contemporânea e a etnografia institucional

27 Chegados a este ponto, é então momento de restringir o âmbito da análise à problemática que nos ocupa – o cisma estético do modernismo musical e “a divergência sem precedentes entre a música contemporânea séria e os seus públicos” (Babbitt, 1958: 154). Como assevera Boulez, as obras musicais do nosso tempo tendem a assumir‑se como eventos únicos – que têm, naturalmente, antecedentes, mas que são cada vez menos redutíveis a esquemas de perceção preestabelecidos –, criando evidentes obstáculos ao pronto discernimento e, como tal, alterando os requisitos necessários a uma plena imersão no nexo artístico, à relação com o objeto estético. Existem, portanto, bloqueios de código importantes, que diminuem as hipóteses de uma apropriação competente – ainda que “a força da mensagem, a qualidade da escrita, a beleza do som, [ou] a inteligibilidade das pistas” (Foucault e Boulez, 1985: 10) possam deflagrar situações de ligação espontânea. A questão da “insularidade cultural” da música de hoje, propunha Foucault (ibidem: 11), é pois mais complexa do que talvez nos tenha parecido à primeira vista; é consequência (não só) de uma deficiente pedagogia, ou de problemas de divulgação, mas também condição inexorável da própria criação contemporânea. Não mais gramática definida a posteriori – i.e., baseada numa teoria explanatória que é resultado de uma experiência coletiva de longo termo, como em Rameau –, falamos, sobretudo desde Stockhausen, em conhecimento desenvolvido a priori (Deliège, 2010: 157) – música que desafia convencionalismos, “que se liberta de todos os seus esquemas [e] sinais”, “que não tenta ser familiar”, “que não se repete a si mesma”, “desenhada para preservar o seu caráter vanguardista” (Foucault e Boulez, 1985: 9, 11), pelo que espaço incontornavelmente fronteiriço.

28 O exposto é tão mais relevante se pensarmos que não se restringe a questões percetivas, ou de quadros de julgamento. É sabido que a praxis da música contemporânea convoca “técnicas instrumentais inovadoras, formas alternativas de notação, [e sobretudo] uma capacidade de adaptação a novas circunstâncias de performance” (ibidem: 7), fatores

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 141

estes que negoceiam tendências antinómicas, de libertação e coerção, que, por sua vez, se traduzem em importantes oportunidades e constrangimentos para os mais diversos agentes que participam da esfera artística, que abalam o edifício tecnológico e burocrático que lhe está subjacente. Não espanta, por conseguinte, que tenhamos passado de “um problema real, a desadequação dos critérios tradicionais de avaliação e julgamento da arte atual, para diatribes político‑ideológicas” (Jimenez, 2010: 250). Abre‑se, então, caminho à condenação da produção contemporânea, tendo por base imposições de legitimidade e relevância artística, sem que nos apercebamos verdadeiramente da contradição aqui implícita.

29 O espaço não nos permite, por razões que serão evidentes, assumir uma discussão alargada, mas importa, em todo o caso, e se atentarmos ao panorama atual da programação artística e cultural, salientar a evidente primazia da lógica cultural sobre a estética. É, pois, cada vez mais difícil à arte contemporânea contornar as estruturas organizativas, de que é subsidiária, num processo que, em última instância, coloca em causa esse mesmo caráter subversivo que sempre a caracterizou (ibidem: 255). Começará, presumimos, a tornar‑se clara a pertinência de alocar o debate ao contexto institucional, enquanto forma privilegiada de articular algumas das tensões referidas, para tal convocando a miríade de atores envolvidos. É por isso que, partindo das propostas seminais de Pierre‑Michel Menger e Georgina Born, avançamos agora para a concretização da disputa teórica, reportando ao caso específico do centro IRCAM – instituição de particular relevância para o nosso objeto de estudo.8

30 Menger monta um verdadeiro aparato estatístico para denunciar aquilo que entende ser o progressivo fortalecimento da criação musical culta, no seu movimento de autonomização, através da formação de um mercado da inovação totalmente subvencionado. Beneficiando do processo histórico de canonização musical (Weber, 2003), legitima‑se, de acordo com o autor, o apoio público à música contemporânea, pela criação de uma forma ímpar de protetorado cultural (Menger, 2001). À medida em que avança com a descrição detalhada das profundas transformações operadas no mercado musical, à época, torna‑se clara a “socialização progressiva dos riscos da atividade criadora” (ibidem: 27), no que a esta manifestação cultural diz respeito, por via do mecenato de Estado. Para tal, cruza o estudo das carreiras artísticas e caracterização sociográfica dos compositores de música ‘séria’ – sinalizando uma “homologia entre perfis de carreira, de um lado, e produção e tomadas de posição estética, do outro” (Héran, 1984: 315) –, com a análise pormenorizada da estrutura e comportamentos da procura.

31 Fala‑nos, então, de uma ‘hiperseleção’ dos públicos – alto grau de familiaridade com a cultura musical clássica, posse de um importante capital escolar e pertença maioritária a classes superiores (Menger, 1988: 113) – e de uma equivalência autofágica entre produção e consumo, que resultam numa acentuação de traços distintivos de desigualdade na assistência. Mas Menger vai mais além nas conclusões: distingue entre consumo e perceção, e revela‑nos, assim, o desfasamento entre “competência cultural suposta” e “competência estética demonstrada” (ibidem: 109). É por isso que questiona, em última instância, a aparente correspondência entre produção e con-sumo de bens culturais, ao detetar comportamentos de autocensura estética e forte voluntarismo disposicional por parte dos públicos. De acordo com o autor, a ausência de paradigmas dominantes na composição – i.e., a extrema fragmentação da produção, pela ação simultânea da individualização da sintaxe e do desenvolvimento anómico das

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 142

investigações sobre os materiais sonoros – deu origem a uma “frustração percetiva generalizada” (ibidem: 137): o interesse pela música contemporânea parece, então, carecer de sustentação crítica. Assim entendidas, a continuidade na assistência e a auto-culpabilização ou voluntarismo na hora de aderir à estética vanguardista não poderiam senão associar‑se a fenómenos de distinção social (Menger, 2001).

32 Georgina Born (1995), por sua vez, leva a cabo uma abordagem etnográfica que examina as práticas e os conhecimentos híbridos desenvolvidos através da colaboração entre músicos e cientistas informáticos. Dito de outra forma, retrata a progressiva racionalização do vanguardismo musical pós‑serialista – ulterior fase do processo de burocratização que em Weber se delineara –, articulado em três vértices: o recurso à ciência e tecnologia, como forma de renovar a composição musical; a sua institucionalização, assente numa divisão alargada do trabalho; e o “policiamento” da estética autorizada (e consequente externalização e/ou negação de estilos musicais alternativos, ou de divergentes tecnologias [Born, 2010b: 189]). Entende, então, a autora que a administração do IRCAM, ao erguer tais barreiras, apontou a um controlo severo do tipo de música praticado na instituição, assegurando, dessa forma, o prolongamento da estética bouleziana. Contrariando autores que encontram na pós‑modernidade a superação (ou pelo menos pacificação) de velhas tensões entre culturas erudita e popular, Born insiste numa forte consolidação do ethos modernista, reificado até pela própria linguagem pós‑modernista – em seu entender, uma encarnação de decíduos antagonismos em relação a formas culturais ‘menores’. Propõe, assim, uma linha de leitura que coordena subjetividades individuais e processos coletivos: através da análise de material histórico e etnográfico, filtrado pela teoria kleiniana, desmonta os mecanismos utilizados pela instituição para resistir às pressões políticas e comerciais, de modo a preservar a sua autonomia. Ao ‘socializar’ a sua conceção dos sistemas psíquicos, socorre‑se, em suma, da herança antropológica para problematizar subjetividades autorais e estéticas (Born, 1997).

33 Falamos, então, de contributos teóricos que exigem mesura, que muito fizeram por recuperar avitas preocupações da sociologia, mas que não deixam, por isso, de convidar à crítica. Se a tradição clássica foi (devidamente) atacada por impor uma visão redutora da experiência estética, é também verdade que Menger pouco faz para nobilitar a ‘procura’. Os da banda da teoria crítica levaram, é certo, a ideia de ‘receção’ a um ponto extremo, dramatizando as implicações da alegada passividade dos públicos, mas a proposta que agora se discute encerra problemas não menos significativos. Refere‑se à ‘herança das vanguardas’ – conjunto de proibições fundamentais ditadas pela rutura com a tradição tonal –, mas igualmente a um estado de ‘anomia estética’ (Menger, 1988: 143), sem explorar devidamente a aparente contradição entre a alusão a uma tal inclinação estética comum (relembre‑se que a rejeição é também fator de agregação e forma de delimitação) e a suposta ausência de paradigmas dominantes na composição, reflexo de uma pluralidade (ou fragmentação) disposicional.

34 Já em Born, procede‑se sofregamente para a antinomia entre modernismo musical e música popular (na sua forma direta ou indireta – emulada pelo ecletismo pós‑modernista), numa exacerbação abusiva dos princípios estéticos que sustentam uma e outra (negação/assunção da tonalidade, da repetição, da regularidade rítmica, assim como de formas musicais temáticas/narrativas). É por isso que, ao ignorar nuances no discurso de Boulez – estranhamente excluído das entrevistas –, e embarcando até em imprecisões terminológicas (como a utilização indistinta dos

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 143

termos dodecafonismo e serialismo), Born vicia a denúncia da criação de um suposto enclave institucional privilegiado, formalista e elitista. Examina incongruências inter‑ e intrasubjetivas, avançando perigosamente numa psicologização da sociologia, em que mudanças nas disposições estéticas dos atores são entendidas necessariamente como calculismo estratégico, justificado pela busca de legitimidade, ou constrangimento incorporado, naturalizado, inconsciente (Born, 1997). Born sentencia, então, o contraste entre a superfície da retórica modernista – enfatizando a inovação, mudança e liberdade – e a estrutura profunda do discurso, inerte, codificado – no fundo, atado a um conjunto limitado de práticas estéticas e opções teóricas, mas sobretudo a importantes proibições. Fará, no entanto, sentido falar‑se de uma ontologia modernista, assente na retórica da inovação estética, e de uma filosofia IRCAM, de caráter “anti‑inventivo” (Born, 2010b: 197)?

35 Os perigos são axiomáticos e, como tal, particularmente instrutivos para a perspetiva que aqui se fundamenta. Reconhecer a necessidade eminentemente sociológica de apontar a uma certa redução da complexidade da realidade social não deve impedir‑nos de consagrar também zonas cinzentas, subtilezas e gradações, evitando, assim, a estéril alternância entre diferentes formas de determinismo e anomia. Eis então exposto um dos vícios da sociologia: a dialética sem relativismo. Como nos diz Lahire, a teoria sociológica tende a mergulhar‑nos numa obrigatoriedade quase paralisante de escolha entre “a ordem da estratégia consciente, do cálculo, da decisão racional, da reflexividade ou da intencionalidade consciente”, e o “mundo do ajustamento pré‑reflexivo, infraconsciente às situações práticas, do sentido prático e do sentido de improvisação” (Lahire, 2003: 201). E o que dizer do cruzamento interdisciplinar? A complementaridade entre tradições teóricas é elemento‑chave de uma renovação metodológica que em muito contribuiu para ultrapassar ancestrais impasses epistemológicos, mas não pode implicar uma descaracterização da disciplina.

36 É por isso que, seguindo as pisadas de Born (2010b), e de acordo com a proposta que temos vindo a avançar, se propõe uma abordagem que integre a etnografia institucional numa análise mais abrangente, do (sub)campo de produção cultural em que opera – o modernismo musical –, mas que combine igualmente etnografia e história – i.e., que considere as diversas dinâmicas (discursiva, estética, política e económica) que informam o presente, consubstanciando as respetivas estratégias de mediação. Defende‑se, por conseguinte, uma abordagem multimodal, material e imaterial, em que sujeitos e objetos coincidem – sujeito e obra considerados ao longo do tempo e espaço (Born: 2010b: 188). Só assim estaremos em condições de desenvolver uma interpretação crítica do objeto cultural em questão, respondendo de forma cautelosa ao apelo interdisciplinar, i.e., apostando numa heterodoxia controlada (Teixeira Lopes, 2000: 76), que dê: particular atenção analítica aos factores que melhor exteriorizam a (relativa) autonomia da ordem cultural na multidimensionalidade do espaço social, designadamente a construção simbólica, as múltiplas linguagens e formas expressivas (com especial destaque para a hexis corporal), os rituais e todas as formas de representação e de ideação. (ibidem: 77)

Perspetivas de pesquisa

37 Este foi, portanto, o ponto de partida para o objeto de estudo – o Remix Ensemble Casa da Música –, na expectativa de contribuir para um retrato sociológico da música

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 144

contemporânea no Porto, descortinando alguns dos complexos princípios que organizam este meio. E são vários os motivos de interesse. Desde logo, teórico‑metodológicos: apontar a um apaziguamento entre correntes teóricas que nos permita, não recentrar, mas pelo menos restituir, à obra musical, dignidade analítica. Sabemos, desde Bourdieu, que a análise histórica “permite compreender as condições da ‘compreensão’, apropriação simbólica, real ou fictícia, de um objeto simbólico que pode acompanhar‑se dessa forma particular de fruição [a] que chamamos estética” (Bourdieu, 1996: 365). Não espanta, por isso, que haja pródromos, entre teóricos atuais (Born, 2010b; Hennion, 2002), de um reconhecimento crescente face às virtualidades da análise textual, da necessidade de pensar os fenómenos musicais por referência aos seus universos de sentido e de atender aos discursos estéticos. Só assim estaremos em condições de ultrapassar a eterna dicotomia entre universalismos descredibilizados e um total relativismo – reconciliando a abordagem sociológica com a experiência estética. Mais: a possibilidade de aplicar alguns dos recentes desenvolvimentos teórico‑metodológicos, operados pela mão da cultura popular, à música ‘erudita’. Por outras palavras, a oportunidade de submeter a abordagem contextual a um teste de abrangência, aplicando‑a a um mundo artístico com evidentes especificidades.

38 Como nota Stubbs (2009), se a arte e arquitetura são hoje verdadeiros casos de sucesso mediático, escapando (a espaços) até à dura lógica dos mercados, o mesmo não se pode dizer da música contemporânea, que vai acumulando falhanços sucessivos, cujas propostas parecem afugentar o ouvinte comum. O vanguardismo parece ser bem‑recebido no domínio das artes plásticas, que aliás muito partilham com as homólogas performativas, mas a verdade é que a experimentação musical embate na aparente indiferença dos públicos. Um mundo que mantém, para usurpar a expressão de Wacquant (2004: 17), uma “dupla relação de simbiose e oposição” face à música ‘clássica’, de afinidade e concomitante antagonismo, usufruindo da proteção legitimadora da estética pura, mas acabando por cair vítima de uma obsessiva ligação ao passado, da cristalização hagiográfica. Em todo o caso, a chave para entender o baixo grau de identificação dos públicos – e de boa parte dos músicos também – poderá estar também na formalidade e hermetismo, nas rígidas modalidades de fruição de um género musical marcado por ímpares lógicas simbólicas, que obedecem (ainda que no limite da acessibilidade) a uma fortíssima estruturação hierárquica. Em suma, e parafraseando Foucault (Foucault e Boulez, 1985), a questão não passa por perguntar, com a música a esta distância, como podemos repatriá‑la, mas antes entender por que motivo, sendo‑nos tão próxima, tão consubstancial à nossa cultura e ao nosso tempo, nos parece tão longínqua.

39 É, por isso, particularmente relevante cruzar representações de músicos e públicos, encontrar coincidências e descontinuidades face às opções institucionais, i.e., considerar conjuntamente os diversos planos da análise – produção, receção e mediação. Eis, então, corroborada a opção pela etnografia, pensada não como um fim em si (o tal pressuposto ético que carece de constatação empírica), mas antes como forma de aproximação ao terreno, de conciliação de níveis de análise e de articulação entre técnicas de recolha de dados. No fundo, tomada como elemento agregador das várias estratégias de pesquisa. Dado que o tema foi ainda muito pouco explorado pela sociologia,9 o objetivo passa por representar holística e heuristicamente este mundo artístico – fazer o levantamento do terreno e, assim, contribuir para a discussão informada.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 145

40 Para tal, o Remix Ensemble é caso único no país, enquanto ensemble desta natureza – ou seja, de caráter institucional. Oferece, pois, condições ideais para 1) analisar redes de instituições culturais, a nível europeu, como são o Réseau Varèse ou a ECHO, 2) pensar a política cultural portuguesa, em especial modalidades mistas de financiamento (lógicas público‑privadas), 3) retratar percursos educativos e formativos, 4) olhar para o mercado de trabalho e carreiras profissionais/artísticas, 5) avaliar estratégias de mediação cultural, 6) procurar perfis sociológicos dos públicos e entender os problemas de receção da música contemporânea, 7) reconstituir representações e subjetividades estéticas, 8) refletir sobre alterações profundas nas convenções musicais e nos modos de apropriação artística, entre outros.

41 Tudo isto enquanto celebramos o 10.º aniversário da Casa da Música e o 15.º do Remix, a que se junta a simbólica escolha da Alemanha como país homenageado na programação de 2015, num momento em que ainda se sentem os efeitos de uma conjuntura económica e financeira que todos conhecemos – algo que acentua a pertinência da articulação com questões de política cultural, ou das lógicas de globalização. Altura privilegiada, portanto, para reconstituirmos a memória coletiva de um ensemble que alterou de forma profunda o panorama cultural português, para refletir e projetar tempos vindouros.

BIBLIOGRAFIA

Adorno, Theodor (1991), The Culture Industry. New York: Routledge.

Adorno, Theodor (1994), Introduction à la sociologie de la musique. Genève: Éditions Contrechamps.

Babbitt, Milton (1958), “Who Cares if You Listen?”, High Fidelity, 8(2), 154‑159.

Becker, Howard (1976), “Art Worlds and Social Types”, American Behavioral Scientist, 19(6), 703‑718.

Becker, Howard (1982), Art Worlds. Berkeley: University of California Press.

Benjamin, Walter (2010), “The Work of Art in the Age of its Technological Reproducibility”, Grey Room, 39, 11‑37.

Bennett, Andy (1999), “Subcultures or Neo‑tribes? Rethinking the Relationship between Youth, Style and Musical Taste”, Sociology, 33(3), 599‑617.

Boia, Pedro dos Santos (2015), “Das tensões entre desmistificar e reconhecer os discursos ao repensar ‘o social’: manifesto por uma sociologia ecléctica”, Sociologia ‑ Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 29, 105‑128.

Born, Georgina (1995), Rationalizing Culture: IRCAM, Boulez, and the Institutionalization of the Musical Avant‑Garde. Berkeley: University of California Press.

Born, Georgina (1997), “Modernist Discourse, Psychic Forms and Agency: Aesthetic Subjectivities at IRCAM”, Cultural Anthropology, 12(4), 480‑501.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 146

Born, Georgina (2010a), “For a Relational Musicology: Music and Interdisciplinarity, Beyond the Practice Turn”, Journal of the Royal Musical Association, 135(2), 205‑243.

Born, Georgina (2010b), “The Social and the Aesthetic: For a Post‑Bourdieuian Theory of Cultural Production”, Cultural Sociology, 4(2), 171‑208.

Bottero, Wendy; Crossley, Nick (2011), “Worlds, Fields and Networks: Becker, Bourdieu and the Structures of Social Relations”, Cultural Sociology, 5(1), 99‑119.

Bourdieu, Pierre (1984), Distinction: A Social Critique of the Judgement of Taste. Harvard: Routledge & Keegan Paul Ltd.

Bourdieu, Pierre (1996), As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras.

Crane, Diana (1992), The Production of Culture: Media and the Urban Arts. California: Sage Publications.

Crossley, Nick; Bottero, Wendy (2015), “Music Worlds and Internal Goods: The Role of Convention”, Cultural Sociology, 9(1), 38‑55.

Deliège, Célestin (2010), “A Period of Confrontation: The Post‑Webern Years”, in Max Paddison; Ir ène Deliège (orgs.), Contemporary Music: Theoretical and Philosophical Perspectives. Surrey: Ashgate, 143‑172.

Denora, Tia (2000), Music in Everyday Life. Cambridge: Cambridge University Press.

Dimaggio, Paul (1987), “Classification in Art”, American Sociological Review, 52(4), 440‑455.

Dubois, Vincent (2011), “Lowbrow Culture and French Cultural Policy: The Socio‑political Logics of a Changing and Paradoxical Relationship”, International Journal of Cultural Policy, 17(4), 394‑404.

Fesch, Gil (2015), “A sociologia da música e os seus fundadores: para uma reapreciação diacrónica”, in Paula Guerra (org.), More Than Loud: os mundos dentro de cada som. Porto: Afrontamento, 35‑47.

Foucault, Michel; Boulez, Pierre (1985), “Contemporary Music and the Public”, Perspectives of New Music, 24(1), 6‑12.

Guerra, Paula (2013), A instável leveza do rock. Génese, dinâmica e consolidação do rock alternativo em Portugal (1980‑2010). Porto: Afrontamento.

Guerra, Paula (2015a), “Sonhos Pop: criação, aura e carisma na música moderna portuguesa”, E‑Compós, 18(1), 1‑22.

Guerra, Paula (2015b), “Introdução aos mundos dentro de cada som”, in Paula Guerra (org.), More Than Loud: os mundos dentro de cada som. Porto: Afrontamento, 7‑26.

Hebdige, Dick (1979), Subculture: The Meaning of Style. London: Methuen.

Hennion, Antoine (2002), “Music and Mediation: Towards a New Sociology of Music”, in Martin Clayton; Trevor Herbert; Richard Middleton (orgs.), The Cultural Study of Music: A Critical Introduction. London: Routledge, 80‑91.

Héran, François (1984), “Menger (Pierre‑Michel), Le paradoxe du musicien. Le compositeur, le mélomane et l’État dans la sociétécontemporaine”, Revue française de sociologie, 25(2), 313‑316.

Hesmondhalgh, David (2005), “Subcultures, Scenes or Tribes? None of the Above”, Journal of Youth Studies, 8(1), 21‑40.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 147

Jimenez, Marc (2010), “Towards an Aesthetics of Risk”, in Max Paddison; Irène Deliège (orgs.), Contemporary Music: Theoretical and Philosophical Perspectives. Surrey: Ashgate, 249‑258.

Lahire, Bernard (2001), “Champ, hors‑champ, contrechamp”, in Bernard Lahire (org.), Le travail sociologique de Pierre Bourdieu: dettes et critiques. Paris: La Découverte, 23‑57.

Lahire, Bernard (2003), O homem plural. Lisboa: Instituto Piaget.

Martin, Peter (2006), Music and the Sociological Gaze. Art Worlds and Cultural Production. Manchester: Manchester University Press.

Menger, Pierre‑Michel (2001), Le paradoxe du musicien. Le compositeur, le mélomane et l’ État dans la sociétécontemporaine. Paris: L’Harmattan.

Menger, Pierre‑Michel (1988), “El oídoespeculativo. Consumo y percepción de la música contemporánea”, Papers Revista de Sociología, 29.

Menger, Pierre‑Michel (1999), “Artistic Labor Markets and Careers”, Annual Review of Sociology, 25, 541‑574.

Paddison, Max (1982), “The Critique Criticised: Adorno and Popular Music”, Popular Music, 2, 201‑218.

Pinho Vargas, António (2007), “A ausência da música portuguesa no contexto europeu: Uma investigação em curso”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, 47‑69.

Prior, Nick (2008), “Putting a Glitch in the Field: Bourdieu, Actor Network Theory and Contemporary Music”, Cultural Sociology, 2(3), 301‑319.

Prior, Nick (2011), “Critique and Renewal in the Sociology of Music: Bourdieu and Beyond”, Cultural Sociology, 5(1), 121‑138.

Shepherd, John; Devine, Kyle (2015), “Introduction: Music and the Sociological Imagination – Pasts and Prospects”, in John Shepherd; Kyle Devine (orgs.), The Routledge Reader on the Sociology of Music. New York: Routledge, 1‑22.

Simmel, Georg (1968), “Psychological and Ethnological Studies On Music”, in Peter Etzkorn (org.), The Conflict in Modern Culture and Other Essays. New York: Teachers College Press, 98‑140.

Straw, Will (2006), “Scenes and Sensibilities”, E‑Compós, 6, 1‑16.

Stubbs, David (2009), Fear of Music. Why People Get Rothko but Don’t Get Stockhausen. Winchester: Zero Books.

Teixeira Lopes, João (2000), “Itinerário teórico em torno da produção dos fenómenos simbólicos”, Sociologia ‑ Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 10, 27‑78.

Teixeira Lopes, João (2003), “Da impossibilidade da revolução. Breve contributo sobre Bourdieu e os conceitos de luta e de mudança social”, Fórum Sociológico, 9/10, 87‑89.

Vieira de Carvalho, Mário (2007), A tragédia da escuta. Luigi Nono e a música doséculo XX. Lisboa: Imprensa Nacional‑Casa da Moeda.

Wacquant, Loïc (2004), Body & Soul: Notebooks of an Apprentice Boxer. Oxford: Oxford University Press.

Wacquant, Loïc (2005), “Mapear o campo artístico”, Sociologia, Problemas e Práticas, 48, 117‑123.

Weber, Max (1998), Sociologie de la musique: Les fondements rationnels et sociaux de la musique. Paris: Éditions Métailié.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 148

Weber, William (2003), “Consequences of the Canon. The Institutionalization of Enmity between Contemporary and Classical Music”, Common Knowledge, 9(1), 78‑99.

Willis, Paul (1978), Profane Culture. London: Routledge Kegan & Paul.

NOTAS

*. Este trabalho contou com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, através da bolsa de doutoramento com a referência SFRH/BD/98528/2013 – projeto realizado sob a orientação científica do Professor Doutor João Teixeira Lopes e da Professora Doutora Paula Guerra. Tratando‑se de uma investigação em curso, o texto que aqui se apresenta assume um caráter naturalmente preliminar; pretende‑se, pois, debater o trajeto percorrido, articulando apoios teóricos, opções metodológicas e objetivos de pesquisa. 1. Importa sublinhar, sem prejuízo do exposto, que a música sempre assim foi reputada (e disso é prova o legado de alguns dos clássicos da disciplina), mas encontramos, em anos recentes, crescente entusiasmo face às oportunidades por ela oferecidas à investigação sociológica. 2. Ao mobilizar o termo ‘música popular’, estamos, naturalmente, conscientes da ambiguidade que lhe é inerente (albergando manifestações culturais tão distintas como a música tradicional, a música comercial ou de massas, entre outras). Por manifesta impossibilidade prática, a discussão terminológica não pode ser enfrentada aqui, mas importa tornar claro que nos afastamos de qualquer tipo de conceção hierarquizante. Move‑nos a simples utilidade analítica. Para uma discussão alargada, vide Dubois (2011). 3. Todas as traduções presentes no texto são da responsabilidade do autor. 4. Não podendo este trabalho, por razões evidentes, abraçar a disputa enunciada, remete‑se para a análise crítica de Hesmondhalgh (2005). 5. Para uma proposta de itinerário teórico da sociologia da música, vide Fesch (2015). Não se pretendia considerar na íntegra a genealogia da disciplina, mas tão‑somente sugerir uma grelha de leitura alternativa, que considerasse de maneira diacrónica as plataformas de diálogo e protolinhagens teóricas estabelecidas entre autores clássicos. 6. Parte destas incongruências justificar‑se‑á com leituras isoladas da sua teoria social lato sensu e da sua produção especificamente dedicada à música. Reitera‑se, por conseguinte, a necessidade de integrar o nível particular no contexto da obra completa, neste e noutros autores. 7. O leitor informado estranhará o aparente esquecimento de autores relevantes – como são os casos de Herbert Spencer ou John Mueller, mas principalmente de Alfred Schütz. O seu célebre texto – “Making Music Together: A Study in Social Relationship” – e em especial os conceitos aí propostos, de inner time ou mutual tuning‑in relationship, constituíram uma importantíssima inspiração para interacionistas como Becker ou Faulkner, entre outros (Shepherd e Devine, 2015: 24). Relembra‑se, no entanto, que o objetivo expresso desta secção passava não por uma revisão extensiva da literatura clássica da disciplina, mas antes por esboçar um modelo alternativo de leitura, que contemplasse discussões teóricas relevantes. 8. O Institut de Recherche et Coordination Acoustique Musique (IRCAM) é hoje um dos principais centros europeus de criação musical contemporânea e investigação científica. Fundado por Pierre Boulez durante os anos 70, em Paris – desde 2006 sob a direção de Frank Madlener –, está associado ao Centre Pompidou e é tutelado pelo Ministério da Cultura e da Comunicação. A atividade do IRCAM desenvolve‑se em torno de três eixos fundamentais – criação artística, pesquisa tecnológica e divulgação científica –, tendo ainda ligação estreita com o Ensemble Intercontemporain. É, conjuntamente com a Casa da Música, membro do Réseau Varèse. Fonte: www.ircam.fr.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 149

9. Menção é devida aos textos inaugurais de Vieira de Carvalho (2007), sobre a tragédia da escuta na contemporaneidade, e de Pinho Vargas (2007), acerca da ausência da música portuguesa no contexto europeu – ambos partindo do prisma da teoria crítica. Refere‑se ainda a exemplaridade do trabalho de Guerra (2013), naquele que é um contributo decisivo para a notoriedade da análise dos fenómenos musicais no seio da sociologia portuguesa.

RESUMOS

O presente artigo avança com uma discussão preliminar acerca dos fundamentos teóricos que servem de base a um projeto de investigação em curso. Para tal, desvelar‑se‑á a estratégia de aproximação ao objeto de estudo – o Remix Ensemble Casa da Música –, oferecendo, assim, um quadro de análise que permita dar passos rumo a um retrato do subcampo da música contemporânea portuguesa, e que possibilite uma leitura crítica da tão propalada crise da nova música. Desenreda‑se a exposição em torno de quatro eixos fundamentais: 1) breve problematização da evolução histórica da sociologia da música; 2) esboço de modelo teórico, assente numa proposta de diálogo entre conceitos‑chave (campo e mundo artístico); 3) revisão (sumaríssima) de literatura específica e do papel da etnografia; e 4) análise da problemática e definição dos objetivos específicos.

This paper presents a preliminary discussion on the theoretical foundations of an ongoing study. It begins by unravelling the initial approach to the subject of the study – the Casa da Música Remix Ensemble – then develops an analytical framework designed to capture recent transformations in the subfield of Portuguese contemporary music, as a means of enriching a much‑debated topic – the crisis in new music. It examines four fundamental strands: 1) a brief reassessment of the historic evolution of music sociology; 2) an outline of the theoretical model, based on the dialogue between the key concepts (field and art world); 3) a critical review of the specific literature and the role of ethnography; 4) a brief overview of the research topic and its specific objectives.

Le présent article part sur une discussion préliminaire à propos des fondements théoriques qui servent de base à un projet de recherche en cours. Pour ce faire, nous dévoilerons la stratégie d’approche de l’objet d’étude – le Remix Ensemble Casa da Música –, en offrant ainsi un cadre d’analyse qui permette d’aller de l’avant dans la direction d’un portrait du sous domaine de la musique contemporaine portugaise, et qui rende possible une lecture critique de cette crise de la nouvelle musique dont on parle tant. L’exposé se développe autour de quatre axes fondamentaux: 1) brève problématisation de l’évolution historique de la sociologie de la musique; 2) ébauche de modèle théorique, reposant sur une proposition de dialogue entre concepts‑clé (domaine et monde artistique); 3) révision (très sommaire) de la littérature spécifique et du rôle de l’ethnographie; et 4) analyse de la problématique et définition des objectifs spécifiques.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 150

ÍNDICE

Palavras-chave: Howard Becker (1928-), música contemporânea, Pierre Bourdieu (1930-2002), sociologia da música, teoria sociológica Mots-clés: Howard Becker (1928‑), musique contemporaine, Pierre Bourdieu (1930-2002), sociologie de la musique, théorie sociologique Keywords: contemporary music, Howard Becker (1928‑), Pierre Bourdieu (1930‑2002), sociological theory, sociology of music

AUTOR

GIL FESCH

Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras, Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150‑564 Porto, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 151

Novas configurações do álbum de música na cultura digital: O caso do aplicativo “Biophilia”* New Forms of the Music Album in Digital Culture: The Case of the “Biophilia” App Nouvelles configurations de l’album de musique dans la culture digitale: le cas de l’application “Biophilia”

Lucas Waltenberg

NOTA DO EDITOR

Artigo recebido a 21.07.2015 Aprovado para publicação a 01.02.2016 Eu lembro de ir a um cybercafe – com muita, muita ressaca – e escrever o manifesto: esta música sobre relâmpago está ensinando você sobre arpejos, cristais estão ensinando você sobre estrutura, DNA sobre ritmos, e assim por diante... BJÖRK (2011)1

Introdução

1 Entre os desafios enfrentados pela indústria da música em seu processo de reconfiguração, podemos destacar a queda na venda de fonogramas, o compartilhamento irrestrito de ficheiros musicais e a pressuposição de que o álbum estaria com os dias contados, uma vez que os consumidores teriam mais interesse em algumas das músicas do que no “pacote completo” oferecido pelo formato. Nos últimos anos, entretanto, vemos despontar algumas tendências que dão a esse cenário

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 152

contornos mais complexos. Os discos de vinil, por exemplo, um suporte tido como ultrapassado, vêm ganhando uma força renovada no mercado, mostrando que as “velhas” mídias ainda possuem seu lugar frente a aparelhos de reprodução musical modernos e portáteis (Guerra, 2011; Bartmanski e Woodward, 2013; Gauziski, 2013). Sobre a morte anunciada do álbum (Carvalho e Rios, 2009), mesmo que os ouvintes possam descarregar somente uma ou outra música oferecida no pacote, o formato ainda figura como um dos principais produtos da indústria fonográfica, seja em vinil, CD, MP3 ou até mesmo em fita cassete, que circula em alguns nichos.

2 A partir disso, este artigo objetiva refletir, de uma maneira geral, sobre o processo de reestruturação da indústria fonográfica. Mais especificamente, adotando uma perspectiva que dê conta da importância das materialidades dos suportes de reprodução musical, discutimos como o álbum de música também é reconfigurado nesse processo. Como estudo de caso, apresentamos e analisamos o álbum-aplicativo (app album) “Biophilia”, lançado pela artista islandesa Björk no fim de 2011, que traz o álbum homônimo em um aplicativo para dispositivos da Apple,2 inserindo o ouvinte em uma experiência imersiva de escuta musical.

3 Assim, as questões que guiarão nossa análise são: quais os papéis das materialidades dos dispositivos (iPads, iPhones, etc.) e dos suportes (aplicativos) nessa recriação do álbum? Como são ressignificados os protocolos de escuta (Straw, 2012) do álbum nesse novo formato? Por fim, como o álbum‑aplicativo faz a “remediação” (Bolter e Grusin, 2000) do álbum de música?

1. O problema do álbum na cultura digital

4 Entendemos o álbum de música como aquele produto da indústria fonográfica que circunscreve sonora e tematicamente a criação dos músicos e apresenta uma série de características, tais como: a ordem predeterminada das faixas, a incorporação de elementos gráficos, como fontes e imagens para compor a capa, contracapa, encarte e uma certa unidade sonora ou “continuidade lógica” (Shuker, 1999; Dantas, 2005; De Marchi, 2005; Sá, 2009; Carvalho e Rios, 2009). A arte da capa, um de seus elementos fundamentais, possui um papel primordial ao articular as canções no álbum com a imagem que o artista quer passar. Segundo a reflexão de Shuker (1999), por exemplo, artistas que colocam as letras de suas músicas na embalagem apontam para uma certa “seriedade” e “a iconografia das capas muitas vezes conota características do gênero da gravação” (ibidem: 45), agregando, inclusive, valor artístico ao álbum.

5 No cenário atual, porque se acredita que esse formato cultural estaria ameaçado? A resposta a essa pergunta, ainda que precise de uma boa dose de relativização, pode ser dada, em parte, pelo crescente uso dos ficheiros digitais de áudio. Na internet, seja em redes operadas por tecnologias peer‑to‑peer, em sites de hospedagem de ficheiros ou até mesmo em lojas virtuais, é possível descarregar músicas desagregadas do “pacote fechado” materializado pelo álbum. Ou seja, se antesestivéssemos interessados somente em uma ou outra faixa específica, era necessário pagar pelo álbum inteiro, mesmo que o produto oferecesse músicas que não eram do nosso interesse. Com a possibilidade de fazermos o download somente das faixas de nossa escolha, o formato álbum estaria perdendo importância frente à realidade praticada pelos ouvintes. Além disso, os elementos gráficos e textuais do álbum, como a capa, o encarte, as letras impressas e as informações relativas à produção daquele material perderiam espaço nesses canais de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 153

circulação, nos ficheiros MP3 e nos dispositivos reprodutores que pouco privilegiariam os elementos não musicais.

6 Na verdade, a suposição de que o álbum, tal como o conhecemos, estaria com os dias contados não surge com os ficheiros digitais. Carvalho e Rios (2009: 81) sugerem que desde os anos 1970, com a introdução da fita cassete no mercado fonográfico, já se percebia certa “insatisfação” com o modelo do álbum, “como ele é preparado e imposto pelas gravadoras” – afinal, as fitas possibilitavam aos consumidores gravar suas próprias compilações. No entanto, tecnologias como o CD e, sobretudo, o MP3, ampliaram essa suposta sensação de incômodo, pois a escuta do álbum estaria sendo substituída por uma escuta unitária. Carvalho e Rios (2009) chamam de “ditadura do álbum comercial” tal imposição de artistas, produtores e gravadoras em oferecer um produto fechado, onde só uma parte seria de interesse do público. Por conta do uso crescente dos novos suportes musicais, os autores ainda apostam numa volta à estética do single, ou seja, as músicas voltariam a ser consumidas individualmente, separadas do álbum.

7 Ainda nessa direção, Herschmann e Kischinhevsky (2011: 24), levantam alguns pontos para contextualizar o processo de reconfiguração da indústria fonográfica. Entre eles, os autores citam “a crise da noção de álbum (vários músicos vêm repensando a relevância de gravá‑los e/ou lançá‑los) que vai deixando de ser o objetivo central desta indústria ou a mercadoria mais valorizada nesta dinâmica de produção e consumo”.

8 Discutindo as novas materialidades da música, Bødker postula que: se cada vez mais um número crescente de consumidores (que não fazem parte da geração do LP) vir o álbum não como um formato definido com referência a preocupações estéticas mas, ao invés disso, como uma forma de ‘compra forçada’ através de conteúdo adicional que precisa ser adquirido para que seja possível obter as partes desejadas (e há indicação disso), as novas possibilidades digitais podem, de fato, colocar o álbumsob forte tensão. (2004: 13, tradução do autor)

9 Sim, as novas tecnologias trouxeram problemas para o álbum da forma que ele estava pensado. Porém, isso não quer dizer que o formato tenha os seus dias contados. Defendemos que adotar uma perspectiva que pensa a materialidade dos diferentes suportes fonográficos nesse debate nos permite trilhar um caminho que dê não somente conta das rupturas, mas também da permanência do álbum, mesmo frente a esses desafios.

10 Em primeiro lugar, é importante colocar que, ainda que a ideia de um álbum musical possa ter origem nos primórdios da indústria da música,3 interessa‑nos aqui aquele que remonta ao surgimento do disco de vinil de 33⅓ r.p.m. Pois, tal como Bartmanski e Woodward (2013), entendemos que as histórias de ambos estão entrelaçadas. Assim, como configura a introdução dos discos long‑play novas práticas de escuta musical? Discutindo a materialidade da música, Straw (2012), no caso desse suporte, fala de um “protocolo de escuta”, o qual relaciona as faixas do álbum com seus paratextos:4 as imagens da capa, do encarte e os textos de apresentação.5 Tal “protocolo de escuta”, no entanto, não se restringe ao disco de vinil. O próprio Straw, noutra ocasião, também fala como essa forma intensa de escuta aparece nos CD, “no qual um ouvinte se debruçaria lentamente pelo encarte que acompanha [o CD] enquanto um trabalho musical é revelado, cada um iluminando o outro dentro de uma interconexão necessária” (Straw, 2009: 86, tradução do autor). No entanto, como sugerimos acima, a materialidade do álbum em CD traz consigo um problema que não aparecia no vinil: o

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 154

facto de ele ser leve e mais facilmente portátil ajudava a distanciar a música da “embalagem, da anotação e do design intencionados a garantir o valor e a integridade do CD enquanto uma forma cultural distinta” (Straw, 2009: 82, tradução do autor). No caso do MP3, esse problema ganha contornos mais complexos, uma vez que, no ambiente on‑line, a música é mais facilmente afastada de tais paratextos que materializam o álbum.

11 Dessa forma, entendemos que o formato “álbum de música” deve necessariamente ser pensado em diálogo com a materialidade do suporte onde ele é registado. Diferentes suportes – discos de vinil, CDs ou MP3 – evocam diferentes práticas, uma vez que possuem “protocolos de escuta” particulares; e também problematizam o formato. Aqui, vamos focar em uma nova configuração do álbum musical, o álbum‑aplicativo, entendendo‑o “como um software desenvolvido para dispositivos móveis, que traz um álbum específico envolto em elementos complementares às músicas, invocando um protocolo de escuta direcionado pelos recursos interativos utilizados pelos desenvolvedores do app” (Polivanov e Waltenberg, 2015: 268).

12 Pensando a materialidade da música, Straw afirma que: “considerada há muito tempo uma das formas culturais mais etéreas e abstratas, a música é indiscutivelmente a mais incorporada nas infraestruturas materiais do nosso cotidiano” (2012: 227). Na análise do álbum‑aplicativo “Biophilia”, usaremos a ideia de “protocolo de escuta” como um recurso metodológico para investigar novas configurações do álbum de música, com atenção especial à sua materialidade. Dessa forma, falaremos o álbum como um artefacto cultural, tal como Sterne (2011; 2012) e Sá (2007) tratam o MP3, ou seja, “um constructo que produz um conjunto de relações sociais e materiais específicas” (ibidem: 129). A partir de Magaudda (2011), lembramos que mesmo no contexto da cultura digital é possível falar em materialidade. Como observa o autor, a digitalização da música não significa necessariamente “menos materialidade”; ao contrário, esse processo reconfigura a relação entre materialidade e cultura, onde se nota “um renovado papel desempenhado por objetos materiais na vida e nas atividades das pessoas”. Assim, dispositivos móveis podem ser vistos como aparelhos de reprodução musical, sugerindo novos protocolos de produção e consumo de álbuns. Partilhamos também da visão de Abreu (2009: 125), para quem novos dispositivos digitais que atuam na mediação entre a criação e o consumo musical “permitiram uma recriação significativa da cultura musical, dos processos de constituição de critérios de fruição lúdica e estética da música e das práticas de uso e manipulação dessa mesma música”. Por fim, destacamos também nosso alinhamento com Sá e Polivanov (2012: 23), que articulam um conjunto relevante de reflexões sobre materialidade e cultura material, seja a ideia de que “todo ato de comunicação exige um suporte material que exerce influência sobre a mensagem”, seja a vertente antropológica que nos instiga “a pensar sobre a especificidade, concretude ou materialidade de cada um dos artefatos técnicos em seus usos cotidianos”. Interessa-nos, portanto, em primeiro lugar, observar e descrever o objeto em questão para, em seguida, destacar “protocolos de escuta” que seriam específicos do álbum‑aplicativo.

2. “Biophilia”: Contexto e descrição

13 A artista islandesa Björk talvez seja uma das personalidades da música que mais consegue produzir na vertente experimental, sem abrir mão de uma exposição digna de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 155

grandes estrelas da música pop. Envolvida em diversos projetos musicais desde o início da adolescência, a cantora foi apresentada ao mundo através de sua banda Sugarcubes, que vivenciou um sucesso moderado com o lançamento do primeiro álbum, “Life’s too good” (1988). Três discos depois, a banda acabou e a cantora se lançou em uma nova carreira solo com o álbum “Debut” (1993).

14 Com uma discografia que, além dos trabalhos solo, engloba trilhas sonoras, participações em gravações de outros músicos, composições para estrelas do porte de Madonna e álbuns de remixes, Björk procura usar influências diversas em suas produções. De 1993 a 2011, ano de lançamento de “Biophilia”, Björk procura produzir músicas cada vez mais “estranhas” – ruídos, grunhidos e produções pouco comprometidas com clichês do mainstream –, gozando de ainda mais prestígio em seu campo de atuação.

15 Épossível dizer que para cadaálbum, sãoacionados sonoridades e temas diversos, de forma que a sua discografia se torna um grande caleidoscópio musical. Para citar apenas alguns discos, “Debut” (1993) e “Post” (1995) são talvez os registos mais pop, sonoramente falando, com músicas dançantes e videoclipes de ampla exposição em emissoras de televisão, como a MTV. Em “Vespertine” (2001), Björk apostou em ruídos mais delicados, contando com a destreza da harpista Zeena Parkins e os sons inusitados da dupla de música eletrônica experimental Matmos. “Medúlla” (2004) foi gravado em quase sua totalidade usando apenas vozes, recorrendo pontualmente a recursos eletrônicos para dar corpo a algumas faixas. O álbum seguinte, “Volta” (2007), trouxe uma Björk mais eclética e pop, estabelecendo parcerias com Antony Hegarty, da banda Antony and the Johnsons, e o produtor de hip hop Timbaland, que já colaborou com artistas como Madonna, Justin Timberlake, Nelly Furtado e Missy Elliot.

16 Ainda que todos os álbuns de Björk tenham a sua importância e singularidade na variegada discografia da cantora, “Biophilia” (2011) merece um tratamento especial pela grandeza dos temas abordados e do lugar ocupado pelo álbum em um projeto multimídia mais amplo. Segundo a cantora: “Biophilia” começou como uma ideia de uma “casa da música”, uma escola de música/museu para crianças em um dos prédios desocupados da Islândia. Depois, virou um filme 3D; em seguida, um centro de invenção para instrumentos musicais acústicos, um console de jogo eletrônico e um experimento de controlador touchscreen, e então, por último, mas não menos importante, uma caixa de aplicativos. (tradução do autor)6

17 De uma maneira geral, “Biophilia” gira em torno das conexões entre música, natureza e ciência. Cada canção enfatiza um tema, que é explorado tanto na letra, quando nas escolhas sonoras e instrumentais. Em ampla matéria publicada na edição britânica da revista Wired,7 aponta‑se que o projeto possui uma “ambição musicológica”, uma vez que cada faixa procura ensinar algo do fazer musical relacionando‑a a um fenómeno da natureza ou um aspecto científico. “Thunderbolt” por exemplo, enfatiza arpejos enquanto a sonoridade é inspirada por relâmpagos; “Moon” relaciona sequências ao ciclo lunar; “Mutual Core” estabelece um diálogo entre acordes e placas tectônicas, e assim por diante.

18 Lançado em disco de vinil, CD e MP3, “Biophilia” também foi disponibilizado como um aplicativo móvel para dispositivos da Apple – iPhone, iPad e iPod Touch –, formato que ficou conhecido como album app ou app album (aqui, usaremos a expressão álbum- aplicativo). Para essa versão, Björk reuniu um grupo formado por profissionais de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 156

diferentes áreas, como musicólogos, programadores, animadores, cientistas e designers. A coordenação do projeto ficou por conta de Scott Snibbe, artista multimídia e empresário, através do Snibbe Studio. Em entrevista para a revista Dazed & Confused, Scott aponta: Eu sempre fui obcecado por fazer do computador uma extensão da mente humana, tornando‑a interativa usando movimento, animação e som. [...] Mais precisamente, eu acho que ele [o álbum “Biophilia”] é sobre a infinitude da natureza em todas as suas escalas e como a música se relaciona a isso. As pessoas esquecem que a matemática é uma forma de modelar a natureza e negligenciam a beleza e o prazer disso. (tradução do autor)8

19 Sobre a escolha do artista para integrar a equipe, Björk explica que: Ele compartilhava a minha visão de fundir a música e os aplicativos, fez dois dos aplicativos, virou o gerente do projeto e vai inspecionar as projeções ao vivo, onde tentaremos fazer as pessoas se sentirem como se estivessem dentro do iPad, tocando e ouvindo os apps. (tradução do autor)9

20 Interessante também foi a negociação com as lojas virtuais da Apple, através das quais tanto o álbum‑aplicativo quanto as músicas podem ser adquiridas. Conta a artista que o departamento de música – iTunes Store – e o de aplicativos – App Store – são competitivos e “Biophilia” foi o primeiro caso de um projeto lançado e comercializado ao mesmo tempo por esses dois canais. Enquanto na App Store é possível fazer o download do álbum‑aplicativo, na iTunes Store ficam disponíveis as músicas do álbum – que podem ser compradas em separado ou em conjunto.

21 O aplicativo “Biophilia” é estruturado através de um app “aglutinador”, que dá acesso a outros dez aplicativos, um para cada faixa do álbum. Ao executar “Biophilia”, o usuário encontra uma galáxia (Figura 1) com nove estrelas, cada uma com uma cor diferente, representando uma música do álbum e o convite “swipe a finger to orbit”. A exceçãoéo aplicativo para a canção “Cosmogony”, quesópode ser acessado pelomenu, localizado no canto superior esquerdo.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 157

FIGURA 1 – Galáxia de “Biophilia”

Fonte: Wellhart Ltd, retirada do press kit disponível para download em http://www.snibbe.com/apps#/ biophilia/

22 Com a exceção de “Cosmogony” e “Dark Matter”, os aplicativos apresentam um menu interno, com os botões “play”, “animation”, “score”, “lyrics” e “credits”, além de uma breve descrição da faixa e uma análise da musicóloga Nicola Dibben. Enquanto no menu de “Cosmogony”, o botão “play” é suprimido para dar lugar a “intro” (vídeo com uma narração sobre o projeto “Biophilia”) e “song” (vídeo musical que simula uma navegação pela galáxia de “Biophilia”), em “Dark Matter”nãoháo botão“lyrics”.

23 Todas as faixas, excetuando “Cosmogony”, possuem uma experiência interativa, como um jogo, que pode ser acessado pelo botão “play”. Através desse recurso, enquanto o ouvinte manipula os aplicativos, entra em contato com a sonoridade da canção, podendo explorá‑la através de imagens, de áudio e do tato. O texto de apresentação sobre a canção “Thunderbolt”, presente no menu interno, explica: Imagine a força natural mais poderosa e fantástica capaz de gerar som e você provavelmente pensará em tempestade de trovões. Björk usa raios para fazer essa canção e o aplicativo. A linha de baixo é o som de uma descarga elétrica criada por uma bobina de tesla formando um padrão musical – o arpejo. Enquanto o arranjo vocal e a letra anseiam por milagres, a linha de baixo oscila entre sons musicais e da natureza, e entre som audível e vibração sentida. (tradução do autor)

24 No aplicativo de “Thunderbolt” (Figura 2), criamos arpejos posicionando nossos dedos na tela do dispositivo. Podemos usar somente o som dos trovões, ou usar o acompanhamento vocal enquanto criamos as trovoadas.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 158

FIGURA 2 – Experiência interativa da música “Thunderbolt” no aplicativo “Biophilia”

Fonte: Wellhart Ltd, retirada do press kit disponível para download em http://www.snibbe.com/apps#/ biophilia/

25 O aplicativo para a canção “Solstice” (Figura 3) apresenta um “jogo” bem diferente do descrito acima. O texto de apresentação fala: Quando Sjón, antigo colaborador e amigo de Björk, foi convidado a escrever um poema natalino para um jornal islandês, ele compôs essa celebração à luz e às estações do ano. A comparação no poema entre o sistema solar e uma árvore de natal inspirou o aplicativo da canção: no centro há um sol, do qual você puxa raios de luz para formar uma harpa circular de cordas tocadas por planetas em órbita; incline a tela e a imagem muda. Björk toca Solstice com uma harpa pendular especialmente encomendada, que incorpora a ideia de gravidade, central para a inspiração da música.

26 Na experiência interativa em “Solstice”, o ouvinte torna‑se usuário e, de certa forma, cocompositor ao ser convidado a interferir no acompanhamento da música. Enquanto a voz de Björk dá a melodia, o instrumental é criado à medida que interferimos no “sistema solar” exibido no aplicativo.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 159

FIGURA 3 – Experiência interativa da música “Solstice” no aplicativo “Biophilia”

Fonte: Wellhart Ltd, retirada do press kit disponível para download em http://www.snibbe.com/apps#/ biophilia/

3. A remediação do álbum musical em “Biophilia”: novos protocolos de escuta

27 Os dois exemplos apresentados acima são apenas uma amostra da complexidade do projeto, trazendo questões interessantes para pensarmos a articulação entre os temas abordados e o formato álbum‑aplicativo. Ou seja, as relações entre música, natureza e tecnologia, ainda que recorrentemente mencionadas nas letras e nas escolhas de sons e instrumentos, ficam ainda mais explícitas quando consideramos que o álbum, nesse caso, não é somente a reunião de músicas. Ao contrário, é preciso considerar o conjunto formado por sons, imagens, textos e experiências interativas para entender com acuidade o recorte sonoro e temático proposto pela artista.

28 Retomando a noção de “protocolo de escuta”, onde os paratextos são elementos fundamentais na escuta de álbuns, podemos dizer que as informações paratextuais do álbum‑aplicativo de “Biophilia” se apresentam como recursos importantes para que o projeto seja explorado em sua totalidade. Em primeiro lugar, a “capa” do aplicativo conecta o programa à identidade visual do álbum registrado noutros suportes. Na tela de apresentação, a galáxia, as cores e ostítulos das músicas auxiliam na navegação 3D. Nas telas individuais das faixas, os textos oferecem explicações detalhadas da inspiração por trás de determinada música, além das instruções para que o usuário desfrute de forma completa a experiência interativa.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 160

29 Pela aproximação entre música e jogos eletrônicos, cabe retomar a reflexão de Falcão sobre o papel dos paratextos no contexto dos games. Argumenta o autor que: [...] além de os acontecimentos variarem de acordo com como se joga, que caminhos se trilha, [...] quando um jogador produz algo a respeito de um jogo – um tutorial, por exemplo – este tutorial não apenas modifica expectativas, ele modifica o meio em si. É razoável, portanto, sugerir que a criação destes paratextos [...] guiam nossa mão, nos ensinam como solucionar complexos enigmas, nos dão pequenos empurrões nas direções certas. (2013: 126, ênfase no original)

30 Podemos inferir que as informações paratextuais no álbum‑aplicativo “Biophilia”dão o tom do tipo de interação que se espera do ouvinte. Para que ele desfrute do programa de maneira completa ,são explicadas várias ferramentas e énecessário lercurtos manuais de instrução. Se, por um lado, esse tipo de direcionamento tira um pouco da liberdade prometida no convite “swipe a finger to orbit”, por outro, permite ao usuário se aprofundar nas variadas experiências disponíveis.

31 No aplicativo, não há uma ordem para “jogar” as músicas; o ouvinte faz o seu próprio percurso. E, ainda que as músicas sejam importantes, tão atrativos quanto elas são os jogos e programas que manipulamos na tela, o tempo todo pontuados pelos elementos sonoros das canções. “Biophilia” oferece diferentes experiências de escuta musical, dependendo do instrumento que faz a mediação do álbum. Mesmo que possamos somente ouvir as músicas, no aplicativo, somos desafiados a encarar de forma diferente o trabalho musical de Björk, manipulando‑o, olhando para ele e investigando os sons que compõem cada canção. Como apontado por Abreu (2000: 133), precisamos observar a “densa pluralidade de usos e de práticas que conferem aos instrumentos de mediação um papel central na compreensão dos consumos musicais contemporâneos”. O álbum registado em suportes como o disco de vinil e o CD invoca ou estimula certas práticas de escuta, como a execução das faixas na ordem proposta e o acompanhamento dos elementos gráficos da capa e do encarte. No aplicativo, o álbum torna‑se uma espécie de game, onde o ouvinte é convidado a adotar um papel mais participativo, transformando‑se em um usuário que brinca com as músicas e as recria. No aplicativo, tão importante quanto ouvir a música étocar nelas com as pontas dos dedos.

32 Assim, perguntamos, como o álbum‑aplicativo “remedeia” o álbum de música, entendido em um sentido mais tradicional? Bolter e Grusin (2000: 49) entendem como “remediação” e “representação de um meio em outro”, uma característica definidora das novas mídias digitais. O conceito é regido por uma dupla lógica, que aponta para as noções de imediação e hipermediação. Enquanto a primeira diz respeito à “transparência” do meio, onde o espectador ficaria com a impressão de estar em contato direto com aquilo que é representado, desenvolvendo uma relação mais íntima e imersiva, a segunda aponta para um estilo de apresentação que preza pela heterogeneidade.10 Assim, “se a lógica da imediação leva a apagar ou a tornar automático o ato da representação, a lógica da hipermediação reconhece múltiplos atos de representação e torna‑os visíveis” (ibidem: 33‑34, tradução do autor).

33 Como um álbum, o app de “Biophilia” traz as músicas e o trabalho gráfico correspondente ao tema abordado, explorando um repertório sonoro e imagético em torno de um produto musical. Entretanto, no aplicativo, não basta ver as imagens, ler os textos ou ouvir as músicas como se fossem atividades separadas, pois a experiência só se torna completa quando se conjuga essas três instâncias. Nesse contexto, ouvir

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 161

“Biophilia” é usar (ou jogar) “Biophilia”. Entendemos que o álbum‑aplicativo de “Biophilia” é, portanto, de um ato de remediar o álbum de música que conjuga a dupla lógica de imediação e hipermediação. Através de toques na tela, o usuário coloca‑se em contato mais direto com a música, intervindo diretamente nela, como se o meio fosse apagado. Ao mesmo tempo, há um complexo hipermidiático que traz animações, imagens, sons, botões, menus e controles, de forma que o ouvinte possa usufruir a experiência multimidiaticamente.

Considerações finais

34 Em Cibercultura, Lévy (2000: 147) postulou que “os testemunhos artísticos da cibercultura são obras‑fluxo, obras‑processo, ou mesmo obras‑acontecimento pouco adequadas ao armazenamento e à conservação”. Podemos dizer que o álbum‑aplicativo “Biophilia” está posicionado em um entre‑lugar nessa reflexão. Ainda que o projeto considere o ouvinte (assumindo o papel de usuário) como um coautor da obra no sentindo de lhe fornecer a ele meios de se colocar como criador e manipulador de sons, “Biophilia” apresenta um campo de atuação circunscrito à temática explorada, às características materiais do suporte e aos paratextos, os quais tornam o álbum presente, aproximam ouvinte e artista e estabelecem as regras de uso para melhor aproveitamento da interatividade.

35 Ao mesmo tempo que aponta para uma novidade, “Biophilia” também recupera certas práticas de escuta musical que, acredita‑se, foram enfraquecidas pelas novas tecnologias. Como aponta Snibbe: Se você pensar bem e tiver, digamos, mais de 40 anos, como eu, o conceito de imersão na música remonta a um ato bastante simples, que acontecia quando pegávamos um disco de vinil e o escutávamos, olhando o encarte e lendo as letras, completamente esquecidos do mundo enquanto nos apaixonávamos pela música [...]. Os formatos digitais nos tiraram um pouco dessa capacidade. Graças a eles, ouvimos música em movimento, enquanto escovamos os dentes ou tomamos banho. Não que isso seja de todo ruim, mas é como se mantivéssemos um relacionamento amoroso superficial com a música. “Biophilia” é uma experiência em torno daquele conceito de que falei inicialmente, de nos fazer parar e ouvir a música com profunda atenção. A diferença é que agora o encarte, as fotos, as imagens, tudo está em movimento, tudo tem vida. (Albuquerque, 2011)

36 O aplicativo “Biophilia” mostra que, no atual processo de reconfiguração da indústria fonográfica, precisamos olhar não somente para as rupturas de modelos mais tradicionais, mas também para as continuidades. Nesse sentido, o formato “álbum”, tido como ameaçado pelas novas práticas de consumo musical, mostra que pode ser repensado para acompanhar o processo, incentivando novas maneiras dos consumidores e dos próprios artistas de lidarem com a música.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 162

BIBLIOGRAFIA

Abreu, Paula (2000), “Práticas e consumos de música(s). Ilustrações sobre alguns novos contextos da prática cultural”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 56, 123‑147. Consultado a 20.07.2015 em http://www.ces.uc.pt/rccs/includes/download.php?id=723.

Abreu, Paula (2009), “A indústria fonográfica e o mercado da música gravada. Histórias de um longo desentendimento”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 85, 105‑129. Consultado a 20.07.2015 em http://rccs.revues.org/356.

Albuquerque, Carlos (2011), “Parceiro de Björk em ‘Biophilia’ diz que aplicativos nos farão voltar a ouvir música com atenção”, Jornal O Globo, de 4 de novembro. Consultado a 04.02.2014 em http://oglobo.globo.com/cultura/parceiro-de-bjork-em-biophilia-diz-que-aplicativos-nos-farao- voltar-ouvir-musica-com-atencao-3215442.

Bartmanski, Dominik; Woodward, Ian (2013), “The Vinyl: The Analogue Medium in the Age of Digital Reproduction”, Journal of Consumer Culture, 0(0), 1‑24.

Bødker, Henrik (2004), “The Changing Materiality of Music”, The Centre for Internet Research, Aarhus. Consultado a 06.04.2016, em https://www.academia.edu/7763732/ The_Changing_Materiality_of_Music.

Bolter, Jay David; Grusin, Richard (2000), Remediation. Understanding New Media. Cambridge: MIT Press.

Carvalho, Alice Tomaz de; Rios, Riverson (2009), “O MP3 e o fim da ditadura do álbum comercial”, in Irineu Franco Perpetuo; Sergio Amadeu da Silveira (orgs.), O futuro da música depois da morte do CD. São Paulo: Momento Editorial, 75‑90.

Dantas, Danilo Fraga (2005), “MP3, a morte do álbum e o sonho de liberdade da canção?”, Anais do V Encontro da ENLEPICC. Salvador: UFBA.

De Marchi, Leonardo (2005), “A angústia do formato. Uma história dos formatos fonográficos”, E‑Compós, 2, 1‑19. Consultado a 08.03.2014, em http://compos.org.br/seer/index.php/e-compos/ article/viewFile/29/30.

Falcão, Thiago (2013), “Paratextos, programas de ação”, in Erick Felinto (org.), Cibercultura em tempos de diversidade. Estética, entretenimento e política. Guararema, SP: Anadarco, 123‑146.

Gauziski, Débora (2013), “O resgate do vinil: uma análise do mercado atual e dos colecionadores na cidade do Rio de Janeiro”, Ciberlegenda, 28, 83‑94. Consultado a 20.07.2015, em http:// www.ciberlegenda.uff.br/index.php/revista/article/viewFile/627/344.

Genette, Gerard (2001), Paratexts. Thresholds of Interpretation. Cambridge: Cambridge University Press.

Guerra, Paula (2011), “Alta Fidelidade: um roteiro com paragens pelas lojas de discos independentes em Portugal na última década (1998-2010)”, Sociologia – Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, XXI, 23‑48.

Herschmann, Micael; Kischinhevsky, Marcelo (2011), “Tendências da indústria da música no início do século XXI”, in Jeder Silveira Janotti Jr; Tatiana Rodrigues Lima; Victor de Almeida Nobre Pires (orgs.), Dez anos a mil. Mídia e música popular massiva. Porto Alegre: Simplíssimo, 23‑34.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 163

Jones, Steve; Sorger, Martin (1999), “Covering Music: A Brief History and Analysis of Album Cover Design”, Journal of Popular Music Studies, 11‑12(1), 68‑102. Consultado a 20.07.2015, em http:// onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1533-1598.1999.tb00004.x/abstract.

Lévy, Pierre (2000), Cibercultura. São Paulo: Ed. 34 [2.ªed.].

Magaudda, Paolo (2011), “When Materiality ‘Bites Back’. Digital Music Consumption Practices in the Age of Dematerialization”, Journal of Consumer Culture, 11(1), 15‑36.

Polivanov, Beatriz; Waltenberg, Lucas (2015), “Synthetica. Reflexões acerca da (i)materialidade da música em álbuns‑aplicativo”, Galáxia, 29, 262‑275. Consultado a 20.07.2015, em http:// revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/view/19291.

Sá, Simone Pereira de (2007), “Tosco, sujo, low‑fi. Nas rotas do MP3, pistas sonoras do digital trash ”, in Vinicius Andrade Pereira (org.), Cultura digital trash. Linguagens, comportamentos, entretenimento e consumo. Rio de Janeiro: E‑papers, 124‑135.

Sá, Simone Pereira de (2009), “O CD morreu? Viva o vinil!”, in Irineu Franco Perpetuo; Sergio Amadeu da Silveira (orgs.), O futuro da música depois da morte do CD. São Paulo: Momento Editorial, 49‑73.

Sá,Simone Pereira de; Polivanov, Beatriz (2012), “Presentificação, vínculo e delegação nos sites de redes sociais”, Comunicação, mídia e consumo, 9(9), 13‑36. Consultado 20.07.2015, em http:// revistacmc.espm.br/index.php/revistacmc/article/view/341.

Sanjek, Russell (1988), American Popular Music and its Business. The First Four Hundred Years, vol. 3. New York/Oxford: Oxford University Press.

Shuker, Roy (1999), Vocabulário de música pop. São Paulo: Hedra [1.ª ed.].

Sterne, Jonathan (2011), “O MP3 como um artefato cultural”, in Simone Pereira de Sá (org.), Rumos da cultura da música. Negócios, estéticas, linguagens e audibilidades. Porto Alegre: Sulina, 63‑89.

Sterne, Jonathan (2012), MP3. The Meaning of a Format. Durham/London: Duke University Press.

Straw, Will (2009), “The Music CD and its Ends”, Design and Culture, 1(1), 79‑92. Consultado a 06.04.2016, em https://www.academia.edu/10111356/The_Music_CD_and_its_Ends.

Straw, Will (2012), “Music and Material Culture”, in Martin Clayton; Trevor Herbert; Richard Middleton (orgs.), The Cultural Study of Music. A Critical Introduction. London/New York: Routledge, 227‑236.

NOTAS

*. O autor deste artigo é doutorando do PPGCOM/UFF (Brasil), onde desenvolve pesquisa sobre a reconfiguração do formato álbum na cultura digital. Integra o LabCULT, grupo de pesquisa coordenado pela Professora Doutora Simone Pereira de Sá. 1. Entrevista para a revista Dazed & Confused, em agosto de 2011, edição para iPad (tradução do autor). 2. Em 2013, o aplicativo foi disponibilizado também para dispositivos móveis com o sistema operacional do Google, Android. Consultado a 20.07.2015, em http://www.theverge.com/ 2013/7/17/4529964/bjork-biophilia-hits-google-play-android. 3. Sanjek (1988: 134, tradução do autor) aponta “Bix Beiderbecke Memorial Album” como o primeiro álbum “contendo várias gravações de música popular por um artista ou grupo particular ou construído em torno de um tema central.” Lançado em 1936 pela RCA‑Victor, o produto consistia em um pacote com seis discos de dez polegadas e um encarte de doze páginas,

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 164

cuja proposta era prestar uma homenagem ao trompetista Leon Bismarck “Bix” Beiderbeck, falecido em 7 de agosto de 1931, aos 26 anos. Sobre a denominação “álbum”, Jones e Sorger (1999: 71, tradução do autor) sugerem que o “empacotamento” de músicas sob o nome de álbum estabelece uma relação direta com álbuns de fotografia. Por causa da longa duração de peças de música clássica e a baixa capacidade de armazenamento dos discos de 78 r.p.m., as obras precisavam ser comercializadas em vários discos, arrumados em pesadas caixas de papelão: “[a] similaridade, em aparência e função, dessas caixas com os álbuns de foto, as levaram a ser conhecidas como álbuns”. 4. Genette (2001) entende paratexto como “aquilo que permite a um texto transformar‑se em um livro e ser oferecido como tal aos seus leitores e, mais genericamente, ao público”. Para o autor, os paratextos expandem e envolvem o texto principal com o objetivo de presentificá‑lo, ou seja, torná‑lo presente “para garantir a presença do texto do mundo”. Da forma como é construído, o conceito de paratexto permite uma série de desdobramentos que vão além do livro. Aqui, tratamos como paratexto qualquer elemento que expande, envolve e presentifica o álbum musical. Consideraremos, então, o encarte, as imagens, o título, a capa, a ordem das faixas, textos presentes e outros elementos constitutivos. 5. Ainda que esse protocolo de escuta sugira uma relação de proximidade idealizada, quase de imersão, entre ouvinte, artista e suporte material, é importante notar que colecionadores costumam justificar suas preferências pelo vinil nesses termos (Bartmanski e Woodward, 2013; Gauziski, 2013). 6. Editorial da revista Dazed & Confused, julho 2011, escrito por Björk, editora convidada nesta edição. 7. “Music, Nature, Science”, Wired. London: The Condé Nast Publications Ltd, agosto 2011 (edição para iPad). 8. “Violently Appy”, Dazed & Confused. London: Waddell Limited, julho 2011 (edição para iPad). 9. Ver nota de rodapé anterior. 10. Para os autores, a navegação on‑line seria um exemplo de hipermediação, uma vez que combina imagens, vídeos, sons e textos em um mesmo espaço.

RESUMOS

Este artigo aborda o processo de reestruturação da indústria fonográfica, com foco no formato “álbum de música”. Adotando uma perspectiva que considera a importância das materialidades dos suportes de reprodução musical, analisa o álbum‑aplicativo “Biophilia”, lançado por Björk em 2011, guiado por questões sobre a materialidade da música e a remediação do álbum musical através de novos protocolos de escuta. Argumentamos que o formato álbum – supostamente ameaçado pelas novas práticas de consumo nas tecnologias digitais – mostra sinais de que pode ser repensado para acompanhar o processo de reestruturação da indústria musical, incentivando novas maneiras de os consumidores e os próprios artistas lidarem com a música.

This article addresses changes in the phonographic industry, focusing on the “music album” format. Adopting a perspective that considers the importance of the materiality of music playback devices, it analyses the “Biophilia” app‑album launched by Björk in 2011, guided by questions concerning the materiality of music and the remediation of the music album through new protocols for listening. It argues that the album format – supposedly threatened by new

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 165

music consumption practices involving digital technologies – suggests that it can be remodelled to follow the changing music industry, encouraging consumers and artists to respond to music in new ways.

Cet article se penche sur le processus de restructuration de l’industrie phonographique, avec une particulière attention au format “album de musique”. En adoptant une perspective qui tient compte de l’importance des matérialités de supports de reproduction musicale, nous nous penchons sur l’album‑application “Biophilia”, lancé par Björk en 2011, guidé par des questions sur la matérialité de la musique et la remédiation de l’album musical à travers de nouveaux protocoles d’écoute. Nous alléguons que le format album – supposément menacé par les nouvelles pratiques de consommation dans les technologies digitales – montre ainsi qu’il peut être repensé afin d’accompagner le processus de restructuration de l’industrie musicale, en encourageant de nouvelles façons, de la part des consommateurs autant que des propres artistes, d’aborder la musique.

ÍNDICE

Palavras-chave: álbum aplicativo, álbum de música, Biophilia, Björk, indústria fonográfica, música eletrónica Mots-clés: album‑application, album de musique, Biophilia, Björk, industrie phonographique, musique électronique Keywords: app‑album, Biophilia, Björk, electronic music, music album, phonographic industry

AUTOR

LUCAS WALTENBERG

Programa de Pós‑Graduação em Comunicação, Universidade Federal Fluminense Niterói, RJ. CEP 24210‑590, Brasil [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 166

Os novos modelos de negócio da música digital e a economia da atenção The New Digital Music Business Models and the Attention Economy Les nouveaux modèles d’affaire de la musique digitale et l’économie de l’attention

Leonardo Ribeiro da Cruz

NOTA DO EDITOR

Artigo recebido a 29.06.2015 Aprovado para publicação a 24.03.2016

Introdução

1 Desde o ano de 2008, tem-se apontado a música digital como uma promessa para salvar um mercado de música gravada em crise.1 Hoje, os diversos modelos de negócio da música digital – em especial a venda direta de música e o acesso em diversos tipos de sites de streaming 2 – possuem uma importância crucial nos desdobramentos do mercado. Além de ganhos em receita, os meios digitais de distribuição legal de música são responsáveis por apresentar novas opções de promoção, popularização e logística de distribuição da música gravada. Essas opções, em diversos casos, apresentam novos tipos de relação entre o mercado fonográfico e o público consumidor e entre os atores do mercado musical e apresentam ainda modos inovadores de fruição musical, de forma legal e diversificada.

2 Esse artigo – que apresenta uma parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado intitulada “Internet e arquiteturas de controle: as estratégias de repressão e inserção do mercado fonográfico digital” (Cruz, 2014) – tem como objetivo discutir alguns dos

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 167

desdobramentos apresentados pelos novos modelos de negócio da música digital: a popularização dos serviços de streaming e a oferta abundante de música; o crescimento do modelo de acesso à música, das estratégias de financiamento por publicidade e a diversificação do cariz comercial da música; a hegemonização dos espaços financiados pelas estratégias da publicidade comportamental e o papel do público consumidor na valorização desses espaços e, finalmente, as novas diretrizes da chamada “economia da atenção” (Goldhaber, 1992, 1997; Lanham, 1994) e o aprofundamento do paradigma da sociedade de controle (Deleuze, 1994).

3 Qual é o papel do público consumidor nesse modelo? Por ser tão amplo e complexo, não foi possível esgotar este tema nem abordar alguns desdobramentos importantes nesse espaço. Por este motivo optou-se por abordar o tema a partir do recorte do mercado, embora de uma forma crítica. Questões relacionadas às transformações estéticas apresentadas pelos novos suportes de música, bem como uma análise dos novos modelos de fruição da música sob o ponto de vista do público consumidor ou dos artistas também tiveram que ser deixadas de lado. Por fim, os desdobramentos tecnopolíticos das decisões tomadas por esse mercado – como a ampliação da vigilância ubíqua; a transformação da vigilância econômica em vigilância política; ou a influência da economia da atenção na transformação da topologia da internet – não encontraram aqui, também, espaço para ser desenvolvidos, devendo ser tema para um outro artigo.

4 Na realização dessa empreitada, essa investigação se utiliza de pesquisas empíricas sobre o mercado fonográfico atual, bem como de pesquisas exploratórias sobre os novos ambientes de acesso à música digital. Foram utilizados dados secundários retirados, em grande parte, dos relatórios anuais da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI – International Federation of the Phonographic Industry), intitulados IFPI Digital Music Report (IFPI, 2015). Tais dados referem-se ao mercado mundial de música gravada e são obtidos através dos relatórios de marketing das diversas associações nacionais federadas – como a Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD), a Associação Americana das Indústrias de Gravação (RIAA – Recording Industry Association of America) ou a Associação Fonográfica Portuguesa – e das indústrias fonográficas associadas. A IFPI possui cerca de 1300 membros em 61 países. Foram utilizados ainda dados globais e locais relacionados ao crescimento dos serviços de streaming (Nielsen, 2014, 2015; RIAA, 2012) e à diminuição da contrafação de música digital (NPD, 2012; IPSOS, 2013; Aguiar, 2015). Não tendo sido encontrados os dados globais, utilizaram-se os dados locais, que serviram para ilustrar algumas tendências importantes, mesmo que em espaços geograficamente restritos.

5 Já os dados relacionados ao funcionamento dos serviços de streaming, seus termos de uso e de privacidade foram obtidos através de pesquisas exploratórias realizadas nos sites e aplicativos dos serviços disponíveis no Brasil, lugar onde essa pesquisa foi realizada. Embora os termos de uso sejam semelhantes em todos os países onde o serviço é executado – e bastante semelhantes até entre as diversas empresas de streaming –, eles devem se adequar às leis locais de proteção de dados, privacidade, etc.

6 Da mesma forma, fizemos uso de referenciais diversos para conceitualizar a nova economia do acesso (Rifkin, 2001; Santos, 2003), a economia da atenção (Goldhaber, 1997; Crary, 2013; Freire, 2012; Senra, 2013) e as sociedades de controle (Deleuze, 1994; Foucault, 2004; Virilio, 1999).

7 Como resultado, é intenção do presente artigo apresentar as características de um novo mercado global de música gravada assente nas formas de valorização da publicidade

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 168

comportamental. A eficiência desse mercado diz respeito à possibilidade, aberta pelo marketing, de mobilizar estratégias comerciais que consigam valorizar um ambiente voltado à abundância e à gratuidade. Em contrapartida, tais estratégias inserem o mercado fonográfico em um novo mercado de dados, em que, ao oferecer um ambiente seguro e abundante de acesso à música e apresentar uma nova e eficiente forma de fruição de música, conseguem se valorizar através dos dados de navegação de seus usuários e seu tempo de atenção.

8 Esse modelo não é novo e não foi inaugurado pelo mercado fonográfico. Ele está se tornando hegemônico na rede e, por se basear em espaços fechados cuja valorização se dá pelo acesso e pela permanência do usuário, está alterando definitivamente a topologia da internet. A adesão do mercado da música nesse novo filão do capitalismo digital só faz expandir ainda mais esses espaços e, por consequência, ampliar o escopo da vigilância ubíqua montada pelo marketing.

Streaming de música e o problema da abundância

9 Ao analisar a história do mercado de música gravada, podemos observar o protagonismo das tecnologias de gravação, de cópia e de suporte técnico em seu desenvolvimento. O fonógrafo e o gramofone, as gravações elétricas, a fita magnética, a gravação multicanal, a evolução das tecnologias de estúdio e de fábrica alteraram definitivamente a trajetória do mercado da música e a relação entre seus atores.

10 As tecnologias digitais de distribuição foram as últimas tecnologias a influenciar os rumos dos atores desse mercado. Enquanto o grande mercado fonográfico ainda buscava se valorizar através da venda de mídia física, os usuários da internet, empoderados pelo grande barateamento da produção e distribuição de cópias digitais dos produtos culturais – propiciado pelo uso do computador e das redes digitais como meios de produção –, se empenharam em construir ambientes eficientes e não autorizados de distribuição gratuita de música digital, provocando um enorme ruído nos canais de distribuição e de promoção das grandes indústrias.

11 Nesse cenário, as primeiras manifestações das empresas fonográficas na internet foram as de repressão através da expansão e endurecimento das leis autorais. A oferta gratuita de músicas digitalizadas em um ambiente propício à distribuição abundante, eficiente e com a possibilidade de oferta de uma quantidade maior de música fez com que as maiores empresas do setor se sentissem ameaçadas.3

12 Contudo, a grande demanda por abundância de títulos – somada à cres-cente popularização de aparelhos reprodutores de música digital – apontou para um caminho bastante lucrativo para as empresas fonográficas, que mar-cou a primeira estratégia de inserção do grande mercado musical na internet: a venda direta de música digital. De maneira geral, esse serviço funciona através de empresas especializadas que fazem acordos com as gravadoras para disponibilizarem suas músicas para a venda, pagando- lhes parte do lucro direto sob a forma de royalties de direitos autorais. Tais empresas são novos atores dentro do mercado fonográfico. Conhecidas como “serviços de música digital”, elas negoceiam os royalties com as gravadoras e selos, digitalizam os acervos, criam os ambientes on-line para negociar diretamente as músicas com os consumidores on-line, etc. Tais empresas, portanto, não surgiram dentro do tradicional mercado musical e não pertencem ao portfólio das grandes gravadoras.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 169

13 Contudo, a venda direta de música digital, embora manifeste enormes vantagens ao desvincular a música de seu suporte de distribuição, não apresenta uma grande inovação no modelo já consolidado do mercado musical. O paradigma continua a ser a venda de produtos no mercado da música gravada e a transferência de posse. Esta só pode fazer concorrência à distribuição gratuita e não autorizada de música a partir do discurso da legalidade e da segurança, mas não apresenta vantagem em relação à gratuidade ou à abundância. A venda de música on-line continua a colocar a aquisição de bens culturais no regime de escassez. A propriedade ainda é o paradigma e seu modelo depende do controle sobre a sua troca entre vendedores e compradores no mercado. A internet é, para esse modelo, um novo tipo de suporte e de forma de distribuição, muito embora a comercialização de música na forma de download continue constituindo a maior parcela de rendimentos para a distribuição de música digital, somando 52% dos ganhos globais desse setor em 2014 (IFPI, 2015).

14 Contudo, o mercado fonográfico – e todo o mercado de bens culturais – começa a esboçar novos modelos de negócio que marcam uma alternativa ao paradigma da troca de propriedade. Novos serviços de streaming por demanda se apoderam da tendência para a abundância e a gratuidade da transmissão de dados da internet para redefinir o papel da música, do mercado e do consumidor – aqui mais propriamente um usuário. Oferecer bens em abundância e gratuitamente aos usuários foi a última e derradeira lição aprendida pelo mercado fonográfico com o compartilhamento de arquivos. Hoje, como bem define Cory Doctorow (2012), a abundância se tornou a característica essencial de toda a mídia, e é peça-chave para o novo modelo de negócios baseado no acesso.

15 Até agora existem dois modelos predominantes de serviços de streaming. Os que se configuram como uma rádio on-line, que permitem que os usuários acessem passivamente uma seleção de música, e os serviços interativos por demanda, que permitem que os usuários escolham as músicas que gostariam de ouvir. Diferente dos serviços de download de músicas, nos serviços de streaming, a música não fica, a princípio, disponível no computador do usuário.4 Este somente tem acesso à música quando está on-line e dentro do ambiente virtual da empresa que disponibiliza o serviço.

16 As músicas são ofertadas, em alguns modelos, gratuitamente e em grande quantidade e a receita é gerada por publicidade e/ou pela venda de contas premium, em que o usuário paga uma quantia mensal para fazer o download da música, ouvi-la com melhor qualidade técnica e sem ser interrompido por anúncios publicitários. Há vários serviços desse tipo, sendo estes os que revelam maior crescimento na rede. Em 2013, em dados publicados pela empresa de pesquisa Nielsen, com contribuição da Billboard, ao menos no mercado estadunidense, o rendimento das vendas de música digital caiu 6%, enquanto a renda gerada através dos serviços de streaming de música subiram 32% (Nielsen, 2014). Já em 2014, segundo o relatório da IFPI, os rendimentos dos serviços de streaming de música tiveram crescimento de 39% e representavam 23% do mercado de música digital global, enquanto a venda direta de música teve uma queda de 8,1% (IFPI, 2015). No mercado estadunidense, segundo relatório da Nielsen Music, o número de músicas acessadas por streaming aumentou 53% em 2014 (chegando ao total de 164 bilhões de acessos), enquanto o número de músicas vendidas caiu 12,5% (aproximadamente 1,3 milhões) (Nielsen, 2015). Já no Brasil, país onde essa pesquisa foi realizada, o streaming cresceu 22% em 2014 e passou a representar 51% do faturamento

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 170

de música digital. O país foi um dos destaques no IFPI Digital Music Report 2015. O relatório celebra as parcerias realizadas entre as empresas de streaming e as de telecomunicações, como a TIMmusic by Deezer ou a Vivo Música by Napster.

17 Os serviços de streaming por demanda, como o de venda direta de música digital, são prestados por empresas parcialmente independentes das grandes gravadoras. Elas procuram gerar receita e, por meio dela, ou pagam o licen-ciamento das músicas ou oferecem um acordo de percentagem de lucros de publicidade.5 Como em todos os serviços baseados em publicidade, há várias especulações sobre a sua sustentabilidade.6 A maior questão é que, segundo tais análises, os ganhos com publicidade não são suficientes para pagar o direito autoral das músicas distribuídas.

18 Contudo, atualmente podemos perceber um aumento do interesse de participação real no mercado de música digital por parte das grandes empresas de música gravada. Elas se aproveitam do seu papel peculiar na cadeia eco-nômica desse novo modelo de negócio – sem a autorização para que os fonogramas sejam utilizados pelos serviços digitais, estes se tornam ilegais ou têm uma oferta muito reduzida de música – para angariar uma participação nas start-ups de entretenimento digital, em especial as de streaming de música. Segundo Zack O’Milley Greenburg, no artigo “Como as gravadoras estão se apoderando da multibilionária revolução digital” (2015), em outubro de 2014 a Warner Music Group se tornou a primeira grande gravadora a fechar uma parceria com uma start-up do género, tendo adquirido 5% da empresa por um valor superior a 120 milhões de dólares americanos. Segundo o artigo, esse valor foi negociado com um desconto de 50% nas ações da empresa.

19 O caso da Warner foi o primeiro de muitos. Segundo o citado artigo, todas as três grandes empresas do concentrado mercado fonográfico atual – nominalmente a Warner Music Group, a Universal Music e a Sony Music – obtêm participação nos negócios das start-ups de música ou de entretenimento em geral, e na sua maioria em condições muito vantajosas. Algumas vezes, inclusivamente, de forma gratuita. Em troca, as gravadoras concedem a autorização de reprodução de seus valiosos fonogramas (Greenburg, 2015).

20 Atualmente, os maiores serviços internacionais de streaming de música chegaram ao Brasil. Entre eles estão o Deezer,7 Spotify,8 Apple Music,9 Tidal10 e Napster.11 No Brasil, os três primeiros oferecem serviços gratuitos de streaming financiados por publicidade no site e/ou entre as músicas, com algumas limitações. O serviço Deezer limita a utilização de seu aplicativo para smartphone e não permite que suas músicas sejam acessadas de forma offline. O Spotify oferece um serviço gratuito com limitações na quantidade de músicas ofertadas, na qualidade do áudio, com a possibilidade de ouvir músicas offline e limitando o número de vezes que o usuário pode avançar de música em uma playlist. Já o serviço da Apple oferece, hoje, um período de teste de três meses mediante a instalação de um programa no computador do usuário.

21 O modelo de negócio dos serviços gratuitos de streaming é o chamado Ad Suported, ou serviço financiado por publicidade. Contudo, todos os serviços listados, até mesmo aqueles que não oferecem streaming gratuito, possuem, em sua política de privacidade, cláusulas que lhes permitem acessar e comercializar os dados de navegação dos usuários com empresas de marketing ou comercializar o próprio acesso aos usuários através de cookies12 de terceiros.

22 O serviço Napster dispõe, em sua política de privacidade,13 que

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 171

Cada usuário [...], por meio deste documento, nos autoriza expressamente a coletar e armazenar suas Informações Pessoais não sensíveis e outras informações comportamentais no banco de dados do Napster, que podem incluir: nome e endereço de e-mail, informações de cobrança, informações sobre software baixado, produtos e conteúdos adquiridos e/ou acessados pelos produtos ou serviços Napster (incluindo, no caso de produtos de música, trilhas transmitidas ou salvas em bibliotecas ou listas de reprodução), informações sobre local (como CEP ou código postal e país), configuração do computador (como sistema operacional, velocidade da conexão e periféricos), a endereço IP da Internet (IP) e URL do site que o enviou à página de registro relevante do Napster, tipos de periféricos (incluindo leitores de mídia portáteis) usados pelos produtos Napster no seu computador (para garantir que você tenha acesso às correções e patches mais recentes para compatibilidade total com esses dispositivos), o identificador exclusivo do seu dispositivo (UDID), local geográfico, informações demográficas fornecidas por você (como idioma, sexo e idade e, se aplicável, preferências de conteúdo e informações de personalização), e se você está conectado ou desconectado do serviço Napster ou se alterou sua senha ou informações de cobrança.

23 Já sobre o uso de cookies de rastreamento, o serviço Napster afirma coletar dados sobre “o endereço de IP do qual você acessa ao site, o tipo de navegador e os sistemas operacionais usados para acessar o site, data e hora do acesso, páginas que você visitou e endereço do site a partir do qual você chegou ao nosso site” e que esses dados podem ser utilizados para “relatar para terceiros (como anunciantes) estatísticas agregadas sobre nossos usuários em termos de números, padrões de tráfego e informações relacionadas no site” e para “rastrear anonimamente as interações com a publicidade on-line, por exemplo, para monitorar o número de vezes que um anúncio de banner é exibido e o número de vezes em que é clicado”. Por fim, o Napster pode, a partir da sua política de privacidade, fornecer o acesso ao usuário diretamente para outras empresas: “O Napster também trabalha com empresas de publicidade on-line que podem usar cookies para rastrear suas preferências de navegação e fornecer anúncios direcionados com base nessas preferências”.

24 Cláusulas semelhantes estão presentes em todos os termos de privacidade dos serviços de streaming ofertados no país, sejam eles gratuitos ou não. É interessante perceber que os modelos de negociação dos dados de navegação dos usuários tornaram-se hegemônicos em relação aos serviços de streaming de música, mesmo naqueles que não oferecem a gratuidade como contrapartida. A comercialização desses registros é mais uma receita gerada a partir da criação de espaços controlados pelos serviços de internet, o que põe em risco, como veremos no próximo capítulo, a privacidade dos usuários da rede. O serviço TIDAL afirma que: O TIDAL também usa cookies de rastreamento de remarketing de fornecedores terceiros, incluindo o cookie de rastreamento do Google AdWords. Isso significa que vamos continuar a mostrar anúncios para você em toda a Internet, utilizando as redes de anúncios existentes que facilitam este tipo de publicidade.14

25 Já o serviço Apple Music, em sua política de privacidade, aponta que “A Apple e seus parceiros usam cookies e outras tecnologias de serviços de publicidade móvel para controlar o número de exibições de determinado anúncio, mostrar anúncios de acordo com os interesses do usuário e avaliar o desempenho das campanhas de publicidade”.15 Na mesma política de privacidade, a empresa sugere alguns exemplos de dados captados: Podemos coletar informações como ocupação, idioma, código postal, código de área, identificador único de dispositivo, URL de referência, localização e fuso horário em

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 172

que um produto Apple é usado para que possamos entender melhor o comportamento do cliente e melhorar nossos produtos, serviços e propaganda. Também coletamos informações sobre atividades do cliente em nosso site, nos serviços iCloud e na iTunes Store, e em nossos outros produtos e serviços. Essas informações são agregadas e usadas para nos ajudar a fornecer informações mais úteis para nossos clientes e para entender que partes de nosso site, produtos e serviços são de mais interesse.

26 Nota-se que esses dados de navegação comercializados, como em todos os espaços analisados aqui, não são gerados apenas na navegação dentro do site específico, mas em toda a navegação do usuário depois que este ter feito o login. Esse direito é apontado na política de privacidade do serviço Spotify.16 Segundo o documento, quando versa sobre a instalação de cookies: Nós usamos esses cookies para fornecer anúncios através do Serviço Spotify. Alguns anúncios podem ser relevantes para você e para seus interesses. Esses cookies podem também ajudar-nos, bem como aos nossos parceiros de negócio, a regular os anúncios que você recebe e a mensurar sua efetividade. [...] terceiros podem usar cookies e outras tecnologias similares para coletar informações sobre suas atividades on-line ao longo do tempo e em diferentes websites.

27 Outro serviço muito utilizado para o acesso gratuito de música por streaming é a plataforma de vídeos YouTube, da empresa Google. Todas as grandes gravadoras têm um canal próprio no serviço, onde disponibilizam clipes musicais, entrevistas e partes de shows de seus artistas. Desta forma, as empresas conseguem elas mesmas gerar receitas, diretamente com publicidade ou indiretamente como forma de promoção de seus produtos. Além disso, os usuários podem realizar o upload de músicas, álbuns completos, apresentações ao vivo e até de clipes produzidos por eles.

28 O YouTube é o mais importante serviço de música na internet justamente por não ser projetado especificamente para esse fim. Jimmy Iovine, executivo da Apple Music, afirmou que o YouTube é responsável por 40% da audição de música em geral e por apenas 4% das receitas globais de música.17 A possibilidade de os usuários colocarem, eles próprios, vídeos na rede, além de ser um terreno fértil para as grandes empresas fonográficas, faz do YouTube, nas palavras de Eric Garland, analista de mídia digital e CEO da agência de pesquisa on-line Big Champagne, o maior acervo de música digital por demanda do mundo.18

29 Embora o YouTube seja uma boa ferramenta de divulgação, promoção e de lucratividade para as empresas fonográficas, o fato de não ter sido projetado para ser um serviço de streaming de música apresenta alguns dilemas para a música digital. Primeiro, o YouTube não tem restrições geográficas a partir da demanda do mercado de música, como nos serviços de streaming. Isso faz com que apresente novidades na música digital sem que haja a possibilidade de compra de discos ou de música digital, estas sim, geograficamente limitadas por estratégias comerciais do mercado musical. Da mesma forma, o YouTube não inclui restrições sobre os suportes em que pode ser executado. A maioria dos serviços do mercado musical restringe o streaming gratuito a computadores pessoais. Se o usuário pretender utilizar o serviço em aparelhos móveis, como smartphones ou tablets, terá que pagar por uma assinatura. Por fim, o YouTube é responsável por um outro movimento relacionado ao acesso à música: através de sua rede, a própria contrafação de música está sendo transferida para o streaming. Com a sucessiva retirada de links dos serviços de armazenamento de arquivos – realizada pela cada vez mais onipotente regra de notificação e retirada (notice and takedown) associada

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 173

às leis de direito autoral –, o YouTube está constituindo um locus privilegiado para o consumo de música gratuita.

30 Por esse motivo, o YouTube foi alvo de diversas ações legais promovidas pelas empresas fonográficas. Para combater a contrafação dos direitos autorais em sua rede, inaugurou uma estratégia interessante – chamada de Content ID19 – que relaciona a publicação não autorizada e os ganhos com publicidade. O serviço possui um algoritmo que identifica as músicas contidas nos vídeos publicados pelos usuários e as compara com o banco de dados dos titulares previamente cadastrados no Content ID. Caso a música já esteja registrada, o site entra em contato com o detentor dos direitos da música – na maioria das vezes uma grande gravadora que já possui um canal no site – e oferece a opção de esse detentor receber parte do lucro de publicidade daquele vídeo em específico. Além disso, o serviço ainda disponibiliza, no vídeo em questão, links de serviços de venda de música digital – como o iTunes ou a Amazon – para quem pretender adquirir a música legalmente. O diretor do departamento financeiro da gravadora EMI afirmou, durante uma conferência,20 que a empresa fonográfica recebia, em 2011, cerca de meio centavo de dólar por visualização. Já segundo o então vice-presidente de conteúdo do YouTube, Tom Pickett, o serviço pagou para a indústria da música, ao longo dos últimos anos, mais de 1 bilhão de dólares americanos.21

Streaming de música e o mercado de comercialização de dados dos usuários

31 O streaming gratuito de música é, de fato, o que mais aproxima o mercado musical das estratégias do chamado capitalismo informacional (Castells, 1999). A partir dele, a música muda de natureza comercial, deixa de ser negociada diretamente ao consumidor final e é ofertada sob a forma de acesso. As empresas de serviço de música on-line adquirem o direito de disponibilizar músicas através de licenças de uso amparadas nas leis de direito autoral, mas, a partir daí, estas deixam de se aproximar a um bem comercializado para se aproximar de um serviço a favor do marketing. Os “novos modelos de negócio”, empreendidos tanto pelas empresas do mercado fonográfico quanto pelas chamadas “empresas de internet”, têm, como forma privilegiada de financiamento, as ações de marketing e de peças publicitárias. Para as empresas fonográficas, os modelos baseados na internet como espaço de distribuição e divulgação de música digital financiados por publicidade possibilitam a valorização de ambientes controlados na rede. A música, aqui, é uma isca de uma “economia da atenção” (Goldhaber, 1992, 1997; Lanham, 1994), em que o que é valorizado é o tempo de navegação do usuário em ambientes específicos e sua atenção às peças publicitárias às quais ele é exposto e que são escolhidas exclusivamente para ele.

32 Jeremy Rifkin, no livro A era do acesso (2001), aponta uma particularidade essencial na transformação do produto em serviço. Segundo ele, os serviços não podem ser confundidos com propriedade. O serviço não é produzido, ele é executado e oferecido, disponibilizado de forma imaterial e intangível e, por essa forma, em uma economia de serviços, o tempo humano é também transformado em commodity. Segundo ele: A Era do Acesso é definida, acima de tudo, pela crescente transformação em commodity de toda a experiência humana. Redes comerciais de todos os tipos e formas navegam pela Web em torno da totalidade da vida humana, reduzindo todo o momento de experiência vivida em status. Na era do capitalismo, caracterizada

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 174

pela propriedade, a ênfase era vender bens e serviços. Na economia ciberespacial, a transformação de bens e serviços em commodities torna secundária a transformação das relações humanas. Manter a atenção de vendedores e clientes na nova economia de rede em ritmo acelerado, em mudança constante, significa controlar o máximo de tempo possível. (Rifkin, 2001: 79)

33 Na economia do acesso às informações nas redes digitais há, portanto, um deslocamento de perspectiva. O que está no centro da atividade econômica é o controle do tempo de navegação e da atenção do usuário, além de seus dados de navegação. O usuário torna-se, ele próprio, através da transformação de sua experiência digital em uma grande quantidade de dados, um produto para uma ecologia de empresas de marketing digital.22 Em troca, temos uma oferta legal de música em tamanho, qualidade e facilidade de acesso nunca antes oferecida ao seu consumidor. A transformação da economia da abundância em um modelo de negócio financiado por publicidade não extingue, portanto, a escassez. Apenas a desloca. O que se torna bem escasso, aqui, é o tempo de navegação em que o usuário se dispõe a ser afetado pelas estratégias publicitárias, ou seja, a sua atenção. Esse bem é trocado entre o serviço de internet e as empresas de marketing on-line, e é com essa troca que as empresas fonográficas são pagas. A música, oferecida de forma fácil, abundante e gratuita, tem, como função, atrair o usuário para o ambiente onde a atenção é captada. Quando acessamos a música, estamos nós mesmos sendo acessados.

34 Essa é a base do que hoje é chamado de “economia da atenção”. O pressuposto é que a internet é um espaço que faz com que qualquer informação possa, tendencialmente, tornar-se abundante. Contudo, como aponta Michael Goldhaber (1997), a abundância de informação tem, como consequência, a escassez de atenção. Citando um dos seminais artigos sobre o tema, “Designing Organizations for an Information-Rich World”, de Herbert A. Simon (1969), a atenção é aquilo que a informação consome. Um mundo rico em informação gera um mundo pobre em atenção. Aí surge a necessidade de alocá-la de forma eficiente e econômica.

35 Para Goldhaber, a internet não gera apenas uma abundância de informação, gera sua inundação (overflowing), e nós estamos nos afogando nela. E, como na lei de Simon, se a informação flui por uma via, a atenção é canalizada como contrapartida. Quanto mais informação, mais a atenção, ela mesma um bem rival e escasso, se dilui. Nesse movimento, a atenção se torna intrinsecamente escassa e, consequentemente, valiosa.

36 A possibilidade de geração de valor sobre a atenção gera um mercado em que, ao menos em teoria, o consumidor concorda em receber tipos de serviços e mercadorias informacionais em troca do seu tempo de atenção. Quanto mais consumidoresusuários, maior seu estoque de atenção. Contudo, baseado em um mercado concorrencial, quanto mais empresas jogam nesse tipo de economia, mais escassa se torna a atenção do usuário. Nesse sentido, há duas medidas de concorrência: agregar mais informação dentro de um mesmo espaço de valorização da atenção e apresentar informações com maior relevância – ou ao menos com maior atratividade – ao consumidor-usuário. É nesse momento que se torna importante a segunda mercadoria criada por essa economia da atenção on-line: a possibilidade de aquisição, através dos termos de uso, dos dados de navegação dos usuários da rede. Quanto mais informações as empresas tiverem sobre os usuários, mais relevantes e atrativos poderão se tornar os ambientes de captura de atenção. Esse é o maior salto qualitativo desse tipo de estratégia de marketing: a atratividade não precisa mais ser massiva, ela pode ser mais ou menos personalizável e individualizada.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 175

37 Nesse mesmo sentido, a atratividade de um maior número de usuários é uma grande medida concorrencial entre as empresas. A empresa que detiver um maior número de usuários alcança a maior fatia do mercado – como o caso do buscador Google em relação aos dados de busca dos usuários da internet. A qualidade do serviço, sua abrangência, facilidade de utilização, inovação e popularidade – além do valor de utilização – são fundamentais para que o serviço tenha sucesso comercial. No mercado de streaming de música, a preferência do consumidor dá-se em relação à abrangência do catálogo (e os contratos com as grandes empresas de música são fundamentais), o valor da assinatura ou sua gratuidade, a quantidade de plataformas alcançadas pelos serviços (smartphones, computadores pessoais, consolas de video game, etc.), a possibilidade de construir e compartilhar playlists de música, etc.23

38 Seja como for, é importante notar que a aposta do mercado da música nesse modelo de negócio é amplamente vantajosa para o consumidor de música. Os serviços de streaming oferecem mais segurança, abundância e facilidade de aquisição de música do que qualquer serviço ilegal de compartilhamento de arquivos. Isso pode ser observado através das pesquisas sobre a contrafação de música na internet. Segundo um estudo publicado pela empresa de pesquisa em mídia NPD Group, em 2012, a prática de compartilhamento ilegal de música em redes peer-to-peer (P2P) caiu 17% nos Estados Unidos da América, em comparação com o ano de 2011 e o volume de música presente nas redes P2P diminuiu em 26% no mesmo período. Já o download ilegal de música por meio de ficheiros virtuais (ciberlockers ou online hosting services) caiu 28% no país. Segundo a pesquisa, essa queda de percentual tem, como pano de fundo, o surgimento e a popularização de serviços legais e gratuitos de streaming de música (NPD, 2012). Já um estudo realizado pela agência de pesquisa norueguesa Ipsos MMI aponta que, na Noruega, entre o período de 2008 e 2012, o número de downloads ilegais caiu de 1,2 bilhões de arquivos baixados para 210 milhões. Uma queda de 82,5% (IPSOS, 2013). A análise da queda é a mesma: o aumento de serviços legais de música gratuita ou de baixo custo é a causa principal. Segundo a pesquisa, 47% dos entrevistados afirmaram ter substituído o download ilegal por alternativas legais de streaming de música e, desses, 50% afirmaram pagar através de uma conta premium. Já em 2015, o IPTS (Institute for Prospective Technological Studies) da Comissão Europeia publicou um estudo em que também afirma a importância do serviço Spotify para a queda na contrafação digital de música (Aguiar, 2015). Segundo o estudo, os principais serviços de streaming de música foram capazes de reduzir os índices de pirataria de música no continente europeu ao mesmo tempo em que diminuíram, também, o índice de downloads pagos de música.

39 Ainda no ano 2000, Laymert Garcia dos Santos, em sua palestra intitulada “Consumindo o Futuro” (2003), já havia captado a tendência à hipervalorização do marketing nas empresas de internet em geral e alertou para a ruptura que tais modelos apresentam em sua relação com o consumidor, ao transformá-lo em um tipo especial de mercadoria. Conforme suas palavras: Apostar na valorização do assinante-consumidor e, administrando o seu consumo, controlar as alavancas da demanda – é exatamente isso que estão fazendo as “dot- com”, as empresas da Internet que estão colonizando o ciberespaço e capitalizando o virtual através do conceito de marca. […] Na nova economia o futuro consumidor é uma mercadoria virtual. Mas uma mercadoria especial: não mais mercadoria que produz mercadorias, como nos tempos do velho Marx, mas sim mercadoria que consome mercadorias materiais e imateriais, tanto atuais quanto virtuais. Administrar o consumidor cativo, controlar as alavancas da demanda é, portanto, a

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 176

quintessência da estratégia de marketing e a ambição máxima de quem deseja direcionar o futuro, antecipando a sua realização. (Santos, 2003: 130-131)

40 O marketing é uma forma de antecipação do futuro – e, na internet, isso ocorre via prospecção dos dados de navegação dos usuários. Essa economia da gratuidade é financiada por uma atividade que aposta que aquilo que ela financia voltará a tornar-se valor econômico capitalizado. Mas a evolução do marketing é justamente tornar mais real essa antecipação. O marketing massivo, vinculado às mídias de broadcast – como o rádio ou a televisão – tem muito menos chances de se efetivar do que as estratégias prospectivas personalizadas da internet. Aproveitando-se da característica da comunicação difusiva do broadcast – de poucos para muitos – o marketing vinculado nas chamadas “grandes mídias” está voltado para a venda de poucos produtos para muitas pessoas. Porém, atualmente, segundo os consultores de marketing Don Peppers e Martha Rogers, citados por Rifkin (2001), o objetivo é justamente tentar vender para um único consumidor o maior número de produtos possível.

41 Para isso, devem elaborar-se estratégias capazes de definir, com a maior exatidão possível, o que o usuário quer, para oferecer-lhe a melhor experiência possível de marketing, e, para isso, as empresas de marketing encontram na internet o espaço de excelência. Estamos cada vez mais transferindo nossas atividades cotidianas para a rede. A internet se tornou espaço de compra, de comunicação, de trabalho e de sociabilidade. Encontramos amigos, fazemos pesquisas de preço, falamos sobre nosso cotidiano, comunicamos com outras pessoas, acessamos produtos culturais e pesquisamos sobre os mais variados assuntos. Nas redes sociais publicamos sobre nossas atividades e interesses, expomos nosso modo de vida, publicamos fotos pessoais, marcamos nossos amigos e lugares de interesse, etc. Estamos, extensiva e exaustivamente, transferindo nossa subjetividade para as redes eletrônicas.

42 Todavia, tudo que fazemos na internet deixa rastros. Toda nossa navegação é registrada através de cookies e, posteriormente, é enviada para empresas de processamento de informações. Esse é o movimento propiciado pela digitalização dos hábitos a partir da colonização do ciberespaço. Estamos, na internet, interagindo cada vez mais em espaços fechados, estriados, voltados à valorização. Vamos de um espaço fechado para outro, e, como tendência, toda nossa experiência digital se passa em um número menor de ambientes, controlados por um número menor de empresas. Evgeny Morozov (2012), um dos mais atentos analistas das recentes transformações da internet, chama o momento atual da rede de “a segunda morte do flaneur”. Para ele, as empresas de internet, cada vez mais hegemônicas e concentradas, são como as reformas na arquitetura e no planejamento urbano promovidas em Paris, na segunda metade do século XIX, pelo governo de Napoleão III. Grandes avenidas e praças foram abertas, houve a proliferação da iluminação de rua, e as galerias foram se transformando cada vez mais em lojas de departamento. A possibilidade de passear incógnito, de caminhar sem ser flagrado, de se perder em ruas estreitas, foi substituída pela velocidade dos carros nas grandes avenidas e a organização do espaço como espaço de consumo. Na internet, as grandes empresas são as grandes avenidas iluminadas, onde não há mais espaço para o passeio, para o anonimato e para se perder. É nas grandes avenidas que se canaliza o fluxo de pessoas e de informações, ambientes hipervalorizados de exposição de produtos e de publicidade.

43 É a atratividade desses ambientes que faz com que, apesar dos famigerados termos de uso e das políticas de privacidade, os usuários concordem que suas experiências de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 177

navegação sejam rastreadas. Basta uma leitura atenta a esses documentos referentes aos serviços de internet desse tipo – que, são, afinal, contratos – para descobrirmos como nossa navegação é vigiada.

44 Esses dados de rastreamento, captados por empresas de publicidade, são captados em inúmeros lugares na internet. Basicamente, qualquer serviço financiado por publicidade na rede contém alguma forma de rastreamento dos nossos hábitos: quais as informações mais procuradas, os links que acessamos, quanto tempo permanecemos na página, como chegamos àquela página, dentre outros.

Marketing comportamental e a economia da atenção

45 Esse é um modelo de negócio em franca expansão na rede, que tem na publicidade sua grande fonte de renda e representa o maior salto em importância das ações de marketing on-line. Através dele adquirimos o acesso aos serviços e aos produtos oferecidos gratuitamente em ambientes controlados por essas empresas; dessa forma trocamos nossos valiosos dados de navegação, que se transformarão em padrões de acesso e de consumo para, enfim, retornarem às nossas vistas como propaganda “personalizada” em grande parte dos locais que visitamos na internet. O marketing se tornou hegemônico e onipresente nas redes informacionais, capaz de se apresentar de forma muito mais atraente em todo o período de navegação, e fazendo com que o tempo de acesso às redes seja capitalizável.

46 Somos, portanto, duplamente valiosos como produto digital: pelos nossos hábitos digitalizados e pelo nosso tempo de navegação, em um ciclo que se fecha no consumo: “[e]stamos fazendo a transição para o que os economistas chamam de economia da ‘experiência’ – um mundo em que a própria vida de cada pessoa se torna, de fato, um mercado comercial” (Rifkin, 2001: 6). Nesse meio tempo, a cultura e suas formas de manifestação se tornam atrativos, sendo a sua função manter o usuário em ambientes controlados e que se valorizam através dos seus dados e tempo de navegação.

47 Tudo se torna uma experiência de marketing. Na internet, espaço para onde estamos transferindo grande parte de nossas atividades cotidianas, seja no trabalho ou no tempo livre, somos constantemente acessados e afetados por tais estratégias de marketing e controle. As atividades realizadas na rede são pretextos, cujo objetivo é colocar-nos na roda da publicidade on-line. Gilles Deleuze, em “Post-scriptum sobre a sociedade de controle” (1994), no qual captou com excelência as tendências que se desenvolveram nos últimos anos, já alertava sobre essa hegemonia do marketing no capitalismo atual quando apontava que “o marketing é agora o instrumento de controle social, e forma a raça impudente dos nossos senhores”, controle esse que é “de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado” (Deleuze, 1994: 224).

48 Nesse artigo, escrito em maio de 1990, Gilles Deleuze dissertou sobre o papel chave desempenhado pelas tecnologias informacionais na importante transição das sociedades disciplinares analisadas por Michel Foucault para as Sociedades de Controle. Foucault, em Vigiar e Punir (2004), aponta o surgimento de novas formas de reorganização do sistema judicial e penal baseados em novas relações e práticas de poder. Essas novas relações vão determinar o que ele chama de sociedade disciplinar, que é a própria sociedade moderna. Esse novo tipo de sistema de poder tem o imperativo de se pautar não por uma necessidade social, mas sim por um sistema disciplinar que pretende – e efetivamente consegue – estabelecer relações de vigilância individuais.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 178

Parte do pressuposto da periculosidade virtual de todos os indivíduos, que deve ser neutralizada pela vigilância e disciplina constante não só de seus atos, mas de seus próprios corpos. Para esse efeito, a instituição penal ou jurídica deve ser assessorada por uma rede de instituições laterais de poder e de vigilância – tais como a escola, a polícia, as instituições médicas, psicológicas, pedagógicas, criminológicas. Essa forma de poder baseada na vigilância logo se difunde em outras esferas da sociedade e a justificativa da periculosidade basta para um controle econômico, útil e eficiente do corpo, tanto nas instituições escolares como nas médicas ou produtivas, baseado em uma coerção sem folga e um controle ao nível da mecânica, visando sempre a economia e a eficácia dos movimentos.

49 Deleuze parte da perspectiva de Foucault ao afirmar que o filósofo, além de identificar com mestria o delineamento das sociedades de disciplina – baseadas na vigilância a partir da organização dos grandes meios de confinamento em espaços fechados –, identificou também a brevidade e a superação desse modelo. Da mesma forma que as sociedades disciplinares sucederam às sociedades da soberania, elas também estavam em vias de serem superadas. Para Deleuze, essa superação começa a ocorrer lentamente a partir da Segunda Guerra Mundial, com a crise dos meios de confinamento e o surgimento de novas liberdades de controle.

50 Pensar o marketing como controle nos alerta sobre a potência nefasta do rastreamento dos nossos hábitos. Não passamos despercebidos e, a partir de ferramentas digitais voltadas para o lucro, somos constantemente vigiados. O marketing se tornou instrumento político, e o cruzamento das informações coletadas dos nossos hábitos on- line se torna, potencialmente, o maior aparato de vigilância já construído, 24 causando graves distúrbios em questões relacionadas à privacidade e cidadania, o que, por fim, acaba por interferir no estatuto democrático.

51 Laymert Garcia dos Santos situa bem o problema quando afirma que, em uma economia movida a partir da digitalização da nossa própria vida cotidiana, “a própria existência do indivíduo é posta em questão”: Aqueles que processam a sua vida descendo a níveis microscópicos não o concebem mais como sujeitos, mas sim como geradores de padrões informacionais que é preciso manipular; aos olhos de quem opera com o valor do tempo de vida, o indivíduo dissolve-se em fluxos de dados. (Santos, 2003: 148)

52 Esse movimento de hipervalorização da digitalização e do processamento de nossos hábitos na rede acaba por transformar nossos modos de sociabilidade em informação e, como tal, eles se tornam mercadoria. Nessa economia do acesso digital, somos nós que somos acessados, e nossos dados que são a propriedade retida e ofertada como leasing em uma rede que envolve empresas de marketing on-line e empresas de venda de produtos. Entramos aqui como produto e como consumidores de informação. Somos matéria-prima e público-alvo de um complexo mercado de marketing. De um lado, consumimos serviços e mercadoria-informação em eficientes ambientes digitais. Por outro, tais ambientes recolhem e processam valiosos dados que os retroalimentam, tornando-os mais atrativo ao consumidor e servindo de matéria-prima para uma complexa rede de mercado do marketing comportamental.

53 Assim, como previu Gilles Deleuze (1994), deixamos de ser indivíduos para nos tornarmos divíduos, divisíveis e cindidos em nosso corpo biológico e nosso corpo de dados, numérico, mantidos em banco de dados para o processamento de informações, em um movimento que começa com o surgimento das pesquisas em marketing e que

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 179

conquistou seu corolário com o chamado Big Data. Na sociedade do controle, somos constantemente modulados a cada acesso, em um movimento contínuo e ilimitado, onde nunca se termina o que quer que seja. É a partir do processamento constante de nosso corpo de dados e de seu movimento nas redes digitais que somos descobertos e analisados, mas apenas naquilo que interessa ao processo de capitalização e de controle: o que pode se tornar padrão e ser revertido em propriedade. Não temos identidade em nosso corpo de dados: somos um número identificador (IP), uma conta, uma cifra ou um número estatístico, mas ele pode conter mais informações sobre nós do que aquilo que nós mesmos conseguimos registrar.

54 A transformação do consumidor em produto é a maior façanha desse novo modelo de negócio digital, e isso ocorre via digitalização dos nossos gostos e via mercantilização de nossa atenção e de nosso tempo de navegação.

55 O que está em jogo aqui é a capacidade de estimular, racionalizar e controlar a atenção do usuário, e isso é conquistado através das tecnologias de digitalização e processamento dos nossos hábitos on-line. As possibilidades de processamento e categorização da nossa experiência de navegação possibilitam uma apuração da nossa percepção em ambientes digitais e a fazem funcionar dentro de um regime econômico específico. Um certo uso das tecnologias digitais de rastreamento é capaz de colocar nossa atenção dentro de um tipo de arquitetura de controle voltada, em um primeiro momento, para a valorização.

56 A busca pela possibilidade de racionalização da percepção em geral e sua relação com técnicas de gerenciamento da atenção não é novidade. Essa relação atua historicamente em nossos corpos e ajudou a formar, na modernidade, nossa forma de perceber o mundo. Essa é a tese de Jonathan Crary, em seu livro Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna (2013), uma genealogia da atenção entre os séculos XIX e XX dentro daquilo que ele chama de modernização da subjetividade.

57 Em sua obra, Crary (2013) insere a percepção e a atenção dentro do processo de captura, disciplinarização e controle do corpo, que atua sobre o campo social através de uma série de técnicas externas. A ideia geral do autor é demonstrar que os modos pelos quais ouvimos, olhamos ou nos concentramos em algo possui um arraigado caráter histórico. Nossa atenção não é uma condição natural, mas “o produto de uma densa e poderosa recomposição da subjetividade humana no Ocidente ao longo dos últimos 150 anos” (ibidem: 25).

58 No centro desse processo analisado por Crary estão as relações entre o observador, as inovações nas tecnologias de percepção e a prática artística. Como bem aponta Stella Senra, autora do prefácio da edição brasileira da obra Suspensões da percepção, a análise de Crary desloca a linha divisória entre arte e técnica ao afirmar que a transformação de status da percepção “passa tanto por máquinas de visão quanto por rupturas no próprio exercício da pintura” (Senra, 2013: 10). O próprio autor afirma que as novas qualidades dos estudos sobre a percepção só tiveram lugar no limiar histórico da segunda metade do século XIX, “em que começou a evaporar qualquer diferença qualitativa importante entre a vida e a técnica” (Crary, 2013: 35).

59 Portanto, para Crary, as tecnologias do espetáculo, exposição, projeção, atração e registro alteram definitivamente as experiências sensoriais dos sujeitos modernos. Dado o modo de produção e difusão dessas tecnologias no então nascente capitalismo industrial, tais transformações sensoriais se tornam inseparáveis dos processos

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 180

econômicos, sociais e políticos. Mais do que isso, o processo de disciplinarização da atenção tornou-se um problema que se incluía na organização do trabalho e da produção do capitalismo industrial.

60 A possibilidade de reformatar processos sonoros, visuais, informacionais e energéticos em mercadorias quantificáveis e passíveis de distribuição fez com que a administração da atenção abrisse caminhos cada vez mais complexos dentro do campo social e que a nossa atenção passasse a depender, cada vez mais, do ajustamento à contínua reconfiguração técnica, política e econômica das formas de consumo do mundo sensorial. Portanto, dentro de uma série de descontinuidades históricas no mundo do trabalho, do consumo e do modo de produção do capitalismo contemporâneo, resta-nos perguntar – bem como fez Stella Senra e Emerson Freire –, em que tipo de compasso e de descompasso se encontra nossa atenção nos dias de hoje em relação àquela analisada por Crary? Se a atenção e a experiência perceptiva puderam ser administradas dentro do escopo da ortopedia social na sociedade disciplinar e colocadas assim à mercê de um sistema econômico e produtivo assente no industrialismo e na produção direta de mercadorias, como elas se comportam hoje, com a falência dos aparatos disciplinares e com a emergência da sociedade do controle?

61 Freire insere o deslocamento da administração da atenção justamente dentro das transformações sociais articuladas por Michel Foucault (2004) e Gilles Deleuze (1994) – a mudança nos dispositivos e na administração de poder, de uma sociedade disciplinar para uma sociedade do controle. Para ele, se a atenção pode ser identificada, mensurada e administrada por uma série de estímulos técnicos, a transformação das máquinas energéticas da sociedade disciplinar para as máquinas cibernéticas da sociedade do controle eleva as possibilidades de controle da atenção a níveis qualitativamente diferentes. Dentro desse novo paradigma, o modelo de observador se transforma, bem como a própria experiência sensorial. Há aí um problema de natureza e de modus operandi na possibilidade de captura. A atenção é capturada e mensurada não só como estímulo, mas como relação entre o observador e a máquina. Segundo Freire, Há outra velocidade envolvida que desloca o foco da atenção para a capacidade de leitura de padrões fragmentados, uma torrente de dados e informações que surgem no monitor deve ser ‘lida’ rapidamente e/ou ainda deve disparar ações dos que jogam em uma lan-house, por exemplo. Por isso, às vezes, tem‑se a impressão de que o ponto da atenção até deslocou-se para a máquina, quem está atenta é a máquina através do software, que tem a capacidade de conduzir os operadores em rede, uma espécie de atenção compartilhada com a máquina. (2012: 185-186)

62 As recentes tecnologias perceptivas das redes digitais inauguraram a possibilidade de acesso e de modulação da observação através da análise dos rastros digitais captados na relação interativa dos usuários com a máquina e com os estímulos que ela produz. Assim, fez-se possível a hegemonização da captura, da mensuração da observação e da atenção e sua consolidação dentro dos sistemas econômicos, políticos e produtivos.

63 É nesse sentido que Stella Senra (2013) sugere que a possibilidade de gerência da atenção nas redes informacionais e a formação de uma eficiente economia da atenção acontecem a partir de uma transformação essencial na própria operação de captura da experiência sensorial. O que está no centro do controle da atenção agora não é mais a resposta aos estímulos, mas a possibilidade cada vez maior de digitalização e de processamento dessa resposta, que pôde, assim como tudo aquilo cujas qualidades

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 181

puderam ser processadas como dados, tornar-se cada vez mais permeável às operações de controle.

64 É esse o sentido da economia da atenção realizada pelos novos modelos de negócio das empresas de internet. A possibilidade de modulação da atenção, em um desdobramento não linear da administração da percepção, fez com que o tempo de navegação dos usuários das redes digitais pudesse adquirir valor de troca. Diferente das estratégias de marketing que financiam há tempos os meios de entretenimento de massa, cujo período de atenção é calculado abstratamente e baseado na média de audiência que um conteúdo pode atingir e cuja prospecção do público-alvo era baseado no perfil também abstrato dos interessados por esse conteúdo, a captura e o processamento dos dados de navegação fazem com que o próprio usuário se torne uma mercadoria escassa e valorizada pelo marketing on-line.

Considerações finais

65 Vimos, no decorrer deste artigo, que as novas estratégias de inserção do mercado fonográfico na rede – em especial os novos serviços de streaming por demanda, em grande crescimento na rede – apresentam uma nova forma de distribuição comercial da música digital. Nele, o mercado de música pôde se valorizar através de um modelo de negócio que concorre com a gratuidade e abundância da contrafação digital da música25 e se pautar na característica própria da digitalização: a produção e distribuição rápida, barata e eficiente de cópias. Nesse caso, ao dispor a música de forma abundante e gratuita, a escassez, essencial para o estabelecimento de um mercado e para a formação do valor, teve que ser deslocada da música para os usuários. Vimos que, nesse novo mercado, ao acessar os produtos culturais e serviços digitalizados, ofertados, em grande medida, de forma gratuita em ambientes fechados, os usuários desses serviços são também transformados em produto através da digitalização do nosso comportamento na rede e do nosso tempo de navegação.

66 Contudo, esse novo negócio só se apresenta de forma funcional através de dois movimentos interdependentes: a valorização dos ambientes onde a música é acessada e a efetividade das estratégias de repressão aos ambientes não autorizados a participar desse mercado. É só através da criação de espaços fechados na rede – o site ou aplicativo que oferta uma grande quantidade de música, acessada de forma fácil, gratuitamente ou a preços bem reduzidos, onde os usuários devem ficar permanentemente conectados para acessar a música e ser acessados pelos dispositivos de publicidade – que os novos atores desse mercado podem controlar o fluxo de dados trocados nas operações de acesso. De forma conjunta, é só através das estratégias de repressão, como os dispositivos de “notificação e retirada”, que esses ambientes fechados podem ser apontados como ambientes legais e seguros de acesso à música. Nesse caso, a abundância, a gratuidade e a facilidade de acesso à música digital se torna uma forma eficiente de atratividade, usada como um serviço do marketing digital.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 182

BIBLIOGRAFIA

Aguiar, Luiz; Waldfogel, Joel (2015), Streaming Reaches Flood Stage: Does Spotify Stimulate or Depress Music Sales? European Commission, Joint Research Centre Sevilha. Consultado a 25.01.2016, em https://ec.europa.eu/jrc/sites/default/files/JRC96951.pdf.

Castells, Manuel (1999), A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra.

Crary, Jonathan (2013), Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify.

Cruz, Leonardo Ribeiro da (2014), Internet e arquiteturas de controle: as estratégias de repressão e inserção do mercado fonográfico digital. Tese de Doutorado apresentada à Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil. Consultado a 26.06.2015, em http:// www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000941869.

Deleuze, Gilles (1994), “Post-Scriptum sobre as sociedades de controle”, in Gilles Deleuze, Conversações. São Paulo: Editora 34, 221-224.

Doctorow, Cory (2012), “O Pecado Original”, Caderno Link. 22 de julho. Consultado a 26.06.2015, em http://blogs.estadao.com.br/link/o-pecado-original/.

Foucault, Michel (2004), Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.

Freire, Emerson (2012), Da sensação ausente à sensação como potência: tema e variações sobre a relação arte-tecnologia. Tese de Doutorado apresentado à Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil.

Goldhaber, Michael H. (1992), “The Attention Society”, Release 1.0, (26 March), n.º 3, E. Dyson (org.), New York: EDventure Holdings, 1-20.

Goldhaber, Michael H. (1997), “The Attention Economy and the Net”, First Monday, 2(4), 7 de abril de 1997. Consultado a 26.06.2015, em http://firstmonday.org/article/view/519/440.

Greenburg, Zack O’Milley (2015), “Como as gravadoras estão se apoderando da multibilionária revolução digital”, Forbes Brasil, 18 de dezembro. Consultado a 12.01.2016, em http:// www.forbes.com.br/negocios/2015/12/como-as-gravadoras-estao-se-apoderando-da- multibilionaria-revolucao-digital/.

IFPI – International Federation of the Phonographic Industry (2008), Digital Music Report 2008. IFPI.org. Consultado a 08.04.2016, em http://www.ifpi.org/content/library/DMR2008.pdf.

IFPI – International Federation of the Phonographic Industry (2015), Digital Music Report 2015. IFPI.org. Consultado a 26.06.2015, em –http://www.ifpi.org/downloads/Digital-Music- Report-2015.pdf.

IPSOS – Ipsos MediaCT (2013), Kopiering av opphavsrettslig beskyttet innhold i 2012. Utarbeidet for Norwaco. Consultado a 17.01.2016, em http://www.aftenposten.no/incoming/article7254471.ece/ BINARY/Rapport+om+kopierin g.pdf.

Lanham, Richard (1994), “The Economics of Attention”, Atas do 124.º Encontro anual da Association of Research Librarians, 18-20 de maio, Austin, Texas, Estados Unidos da América. Consultado a 20.01.2016, em http://old.arl.org/resources/pubs/mmproceedings/124mmlanham.

Morozov, Evgeny (2012), “A segunda morte do flâneur”, Caderno Link, 19 de fevereiro.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 183

Nielsen (2014), U.S. Music Industry Year-End Review: 2013. Nielsen. Consultado a 26.06.2015, em http://www.nielsen.com/us/en/insights/reports/2014/u-s-music-industry-year-end- review-2013.html.

Nielsen (2015), 2014 Nielsen Music Report. Nielsen. Consultado a 26.06.2015, em http:// www.nielsen.com/us/en/press-room/2015/2014-nielsen-music-report.html.

NPD – The NPD Group (2012), Music File Sharing Declined Significantly in 2012. NPD Group. Consultado a 17.12.2015, em https://www.npd.com/wps/portal/npd/us/news/press-releases/ the-npd-group-music-file-sharing-declined-significantly-in-2012/.

RIAA – Recording Industry Association of America (2012), 2011 Year End Shipment Data. RIAA. Consultado a 17.01.2016, em http://www.marketingfx.com/downloads/ 1460556363.04470000_aebf73f2dc/2011%20RIAA%20Shipments.pdf.

Rifkin, Jeremy (2001), A era do acesso. São Paulo: Makron Books.

Santos, Laymert Garcia dos (2003), Politizar as novas tecnologias. São Paulo: Ed. 34.

Senra, Stella (2013), “Crary e as transformações do observador”, in Jonathan Crary, Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 9-19.

Simon, Herbert (1969), Designing Organizations for an Information-Rich World. Baltmore: John Hopkins University Press.

Virilio, Paul (1999), A bomba informática. São Paulo: Estação Liberdade.

NOTAS

1. Em 2007, o mercado digital de música gravada alcançou 15% de todo o rendimento do mercado fonográfico (IFPI, 2008: 05) e apresentou um crescimento de 40% em um ano (ibidem: 06). Já 2011 foi um ano emblemático para o setor da música digital quando, nos Estados Unidos da América, o rendimento do mercado digital de música alcançou 50% de todo o rendimento do mercado fonográfico e, pela primeira vez desde 2004, o rendimento do mercado fonográfico estadunidense apresentou crescimento (RIAA, 2012). 2. O serviço de streaming se caracteriza por ser um espaço onde o usuário consegue acessar certos tipos de produtos culturais (como música ou vídeos) sem precisar realizar um download do arquivo executado. Neste sentido, o produto só será executado se o usuário estiver conectado à internet e ao serviço executante. 3. Para uma análise mais completa em relação às estratégias de repressão do mercado fonográfico sobre o compartilhamento de arquivos, ver o artigo “RIAA vs. The People: Four Years Later”, da fundação Electronic Frontier Foundation. Consultado a 08.04.2016, em http:// w2.eff.org/IP/P2P/riaa_at_four.pdf. 4. Tecnicamente, quando um usuário acessa a música em um servidor, partes pequenas da música são temporariamente copiadas para seu computador, permanecendo lá somente pelo tempo de sua reprodução. 5. Cf. http://www.numerama.com/magazine/10016-Deezer-rapporte-uniquement-70000-euros- la-Sacem-en-six-mois.html, consultado a 08.04.2016. 6. Cf. http://www.guardian.co.uk/technology/blog/2009/oct/08/spotify-internet; http:// remixtures.com/2009/01/deezer-em-busca-da-sobrevivencia/. Consultados a 08.04.2016. 7. O Deezer é um serviço de streaming por demanda criado na França em 2007. É considerado o primeiro serviço de streaming que conseguiu se legalizar. Chegou ao Brasil em 2013 e possui parceria com os sites e serviços de telefonia no país. É o serviço de streaming mais utilizado na

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 184

Europa. Presente em 182 países, o serviço possui contratos de licenciamento com as três grandes gravadoras e com mais de 100 selos em todo o mundo. Assim, oferece mais de 35 mil músicas em seu acervo para mais de 6 milhões de usuários pagantes (Deezer.com). 8. O Spotify é um serviço sueco de streaming de música por demanda, criado em 2008 pela empresa Spotify AB. Possui cerca de 75 milhões de usuários – sendo 20 milhões usuários assinantes – em 64 países. Oferece serviços gratuitos – com baixa qualidade de áudio e com peças publicitárias entre as faixas de música – e serviços pagos, com melhor qualidade de áudio e sem publicidade. 9. A Apple Music é um recente serviço de streaming da empresa Apple Inc. Lançado em 100 países, inclusive no Brasil, em 30 de junho de 2015, o serviço já conta com 37 milhões de músicas em seu acervo e já possui mais de 15 milhões de usuários. A Apple foi uma das grandes responsáveis pela popularização da venda de música digital com seu serviço iTunes. Com o crescimento dos serviços de streaming, busca agora fazer concorrência com as grandes empresas do setor, como o Spotify e o Deezer. 10. O serviço de distribuição digital de música Tidal foi uma iniciativa de grandes artistas para combater as baixas remunerações repassadas pelos grandes serviços de streaming. Lançado em março pelo artista Jay Z, o serviço conta com o apoio de Beyoncé, Madonna, Kanye West, Rihanna, Taylor Swift, Nicki Minaj, Alicia Keys, entre outros. O serviço, além de oferecer música em alta qualidade, pretende impor um novo modelo de remuneração para os artistas, repassando 75% dos ganhos diretamente aos escritores, cantores e músicos executantes. Os artistas engajados nesse novo modelo acusam os grandes serviços de streaming de remunerar muito pouco os setores criativos e ceder parte de seus dividendos às grandes gravadoras. 11. O Napster foi criado como um serviço ilegal de compartilhamento de arquivos por Shawn Fanning e Sean Parker em 1999 e foi um dos maiores protagonistas da transformação do mercado da música. A partir do uso massivo de suas redes, o programa apresentou uma forma rápida, gratuita e abundante de aquisição de música e alterou, definitivamente, a forma de fruição musical no começo do século XXI. Em 2001, o serviço foi fechado após um longo e noticioso processo jurídico movido por titulares de direitos autorais. A marca e o logotipo do Napster foram então vendidos à empresa Roxio em 2003 e, em 2008, foram adquiridos pela empresa Best Buy. Atualmente, o Napster se uniu ao serviço de streaming Rhapsody e se tornou a marca da empresa nos países da América Latina e na Europa. Atualmente conta com 2,5 milhões de assinantes. 12. Cookies são pequenos arquivos de texto gravados automaticamente no computador do usuário de internet e que contêm dados trocados entre o navegador e as páginas por ele acessadas. Sua função principal é armazenar dados sobre o acesso, a permanência e o comportamento do usuário em uma página da internet – que sites visitou, por quanto tempo, em que links clicou, com quem interagiu, etc. – que são posteriormente enviados para empresas de processamento de informações. As informações são utilizadas por essas empresas para tentar combinar os anúncios publicitários aos interesses de um usuário. Eles são utilizados em toda a Web, mas, na maioria dos casos, sua presença só é divulgada no interior das políticas de privacidade. 13. Cf. http://br.napster.com/privacypolicy/?l=pt_BR, consultado a 03.02.2016. 14. Cf. http://tidal.com/br/privacy, consultado a 03.02.2016. 15. Cf. http://www.apple.com/br/privacy/privacy-policy/, consultado a 03.02.2016. 16. Cf. https://www.spotify.com/us/legal/privacy-policy/, consultado a 04.02.2016. 17. Cf. http://www.digitalmusicnews.com/2015/10/09/youtube-accounts-for-40-of-all-music- listening-and-4-of-all-music-revenues/, consultado a 09.04.2016. 18. Cf. http://gizmodo.uol.com.br/o-estado-da-musica-na-internet-youtube-pandora-itunes-e- facebook/, consultado a 09.04.2016.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 185

19. Cf. https://support.google.com/youtube/answer/2797370?p=cid_what_is&rd=1, consultado a 08.04.2016. 20. Cf. http://torrentfreak.com/images/LW-2011.05.06-Trial-Transcript.pdf, consultado a 09.04.2016. 21. Cf. http://www.billboard.com/biz/articles/news/digital-and-mobile/5893900/youtube-has- paid-out-1-billion-to-music-industry-in, consultado a 08.04.2016. 22. O mercado de marketing digital – principalmente aquele voltado ao marketing de comportamento – vem se ampliando e se aperfeiçoando rapidamente. Um infográfico publicado produzido por Scott Brinker para a revista Markerting Land e disponível em http:// marketingland.com/martech-companies-double-113921 nos dá uma ideia da complexidade das relações entre diversas empresas do setor (consultado a 08.04.2016). 23. Cf. http://www.digitalmusicnews.com/2016/01/19/are-we-willing-to-pay-more-for-better- sound-quality/ e http://www.cnet.com/how-to/spotify-rdio-and-more-how-to-get-started-with- subscription-music-services/, consultados a 08.04.2016. 24. Os documentos vazados por Edward Snowden sobre o programa de espionagem dos serviços de inteligência dos Estados Unidos da América e do Reino Unido nos alertou sobre o caráter político desse tipo de vigilância econômica exercida pelo marketing digital. Quando os dados captados pelas grandes empresas do mercado digital da atenção podem ser acessados por agentes políticos de segurança, forçando sua identificação e apresentando algoritmos eficientes de busca, a vigilância exercida pelo mercado toma uma forma de espionagem política nunca antes conquistada por qualquer tipo de governo. Desta vez, é através da permissividade da vigilância ubíqua implementada por um modelo de negócio que possibilita a formação de um aparato de controle político. A estrutura de captação e processamento de informações já está pronta, atuando de forma eficiente e largamente estabelecida pelas empresas do mercado digital. Basta aos mecanismos de repressão política acessá-las. Esse assunto é mais bem discutido no último capítulo de minha tese de doutorado (Cruz, 2014). 25. É interessante perceber que isso começa a ocorrer não só no campo da música digital, mas em grande parte no da produção cultural digitalizada. Um exemplo disso é a constante queda de tráfego das redes de compartilhamento peer-2-peer – em especial as redes BitTorrent, popularizadas principalmente pelo grupo The Pirate Bay – e o aumento do tráfego de serviços legais de streaming, como o Netflix. Em um estudo realizado pela empresa de serviços de banda- larga estadunidense Sandvine, o fluxo de dados relacionados a downloads em redes torrent caiu consideravelmente na América do Norte. Em 2008, os dados das redes BitTorrent correspondiam a 31% de todos os dados trafegados na internet na América do Norte. Em 2014, esse número foi de 4,85%. Por outro lado, os dados do serviço de streaming de vídeo Netflix ocuparam 33,81% de todo o tráfego de dados da América do Norte em 2014.

RESUMOS

O presente artigo busca analisar as estratégias de inserção do mercado fonográfico no ambiente digital, em especial os novos serviços gratuitos de streaming por demanda. Aborda-se a mudança da natureza comercial da música – que deixa de ser comercializada diretamente para ser valorizada como um serviço do marketing comportamental – e como esse novo modelo tem, como pressuposto, por um lado, as características de abundância e gratuidade da música e, por outro, a valorização dos dados de navegação e do tempo de atenção dos usuários. Por fim, o texto discute

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 186

o modo como esse novo serviço fomenta a hegemonia da economia da atenção on-line e da vigilância ubíqua e auxilia na expansão de ambientes digitais fechados, produzidos unicamente pelo mercado em detrimento de espaços livres e abertos.

This article aims to analyse the music industry’s strategies for economic integration within the digital environment, in particular the new, free, on-demand streaming services. It discusses the changing nature of commercial music – which is no longer marketed directly but developed as a behavioural marketing service – and how the prerequisites for this new model are, on the one hand, a mass of free music, but also the use of user navigation data and attention time. It concludes by examining how this new service in the recorded music market fosters the hegemony of the online attention economy and ubiquitous surveillance, and also helps expand closed spaces on the network geared to market values at the expense of free and open spaces.

Le présent article se penche sur les stratégies d’insertion du marché phonographique dans l’environnement digital, en particulier les nouveaux services gratuits de streaming à la demande. Nous faisons une approche du changement de la nature commerciale de la musique – qui n’est plus commercialisée directement pour être valorisée comme un service du marketing comportemental – et de la façon dont ce nouveau modèle a, comme présupposé, d’une part les caractéristiques de l’abondance et de gratuité de la musique et, d’autre part, la valorisation des données de navigation et du temps d’attention des usagers. Enfin, le texte débat de la façon dont ce nouveau service favorise l’hégémonie de l’économie de l’attention online et la surveillance omniprésente et aide à l’expansion d’environnements digitaux fermés, produits uniquement par le marché au détriment d’espaces libres et ouverts.

ÍNDICE

Palavras-chave: economia da atenção, estratégias de marketing, indústria fonográfica, música digital, streaming de áudio Mots-clés: économie de l’attention, industrie phonographique, musique digitale, stratégies de marketing, streaming audio Keywords: attention economy, audio streaming, digital music, marketing strategies, phonographic industry

AUTOR

LEONARDO RIBEIRO DA CRUZ

Doutor em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP) Avenida Jeanne Rosande Guisard, 495, Taubaté-SP, CEP 12050-560, Brasil [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 187

Spotify e os piratas: Em busca de uma “jukebox celestial” para a diversidade cultural Spotify and the Pirates: In Search of a “Celestial Jukebox” for Cultural Diversity Spotify et les pirates: À la recherche d’un “jukebox céleste” pour la diversité culturelle

Miguel Afonso Caetano

NOTA DO EDITOR

Artigo recebido a 16.06.2015 Aprovado para publicação a 15.12.2015

Introdução: A Internet enquanto sistema de superdistribuição de cópias

1 Com o aumento da relevância económica da informação e do conhecimento nas principais economias mundiais ao longo das últimas três décadas, tem‑se assistido à multiplicação de tentativas de transformação dos bens informacionais em meras mercadorias apropriáveis por privados, através da expansão temporal e sectorial das leis de propriedade intelectual e do controlo tecnológico do acesso a eles. Tal processo tem levado autores como James Boyle a referir‑se à existência de um “segundo movimento de emparcelamento”. Na sequência do primeiro movimento de vedação das terras comuns (“baldios”) iniciado na Inglaterra do século XVI que privou a maioria da população de uma parte substancial dos seus meios de subsistência, até então obtidos diretamente a partir do cultivo em campos abertos, este segundo emparcelamento visaria hoje em dia os “comuns intangíveis da mente” (Boyle, 2003).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 188

2 Na medida em que as redes de partilha de ficheiros (peer‑to‑peer – P2P) 1 via Internet introduziram pela primeira vez na história da humanidade a possibilidade de cada utilizador copiar em simultâneo informação de milhões de outros utilizadores sem ser necessário saber quem eles são ou onde se encontram, a sua irrupção no final do século passado foi numa fase inicial encarada como o grão de areia na engrenagem deste processo de apropriação privada da informação.

3 Mais de década e meia passada, as estatísticas recolhidas pelas empresas de monitorização de tráfego da Internet apontam para uma progressiva diminuição da popularidade do P2P face a outros tipos de protocolo de rede – HTTP – e aplicações de Internet – entretenimento em tempo real (Cisco, 2015; Sandvine, 2014). Embora esta tendência seja maioritariamente um resultado direto da difusão da banda larga móvel – permitindo assim que o utilizador aceda ao conteúdo pretendido a partir de um smartphone ou tablet, na rua, no metro, no autocarro ou no trabalho –, a recente adoção generalizada dos serviços de streaming como Netflix, Youtube ou Spotify um pouco por todo o mundo não pode ser adequadamente compreendida sem ter igualmente em consideração a ofensiva jurídica travada a nível global com recurso a leis e outras medidas regulamentares de proteção da propriedade intelectual contra quem partilha, programa software P2P e fornece acesso à Internet.

4 Este artigo, inserido num trabalho de pesquisa mais amplo,2 destina‑se a apresentar um estudo de caso do serviço de streaming da empresa sueca Spotify baseado na experiência de utilização do serviço pelo autor enquanto subscritor premium, residente num país periférico da União Europeia (Portugal), contrastando‑a com a de uma comunidade privada de partilha de ficheiros via BitTorrent especializada em música ao longo de quase oito anos. Em termos metodológicos, a análise empírica descritiva de ambos os serviços será complementada com uma abordagem próxima dos estudos críticos de tecnologia, centrada numa distinção rigorosa das práticas tecnológicas (streaming versus downloading) e protocolos de Internet (HTTP versus P2P) em questão, sem ignorar as implicações sociais e culturais inerentes a cada modelo de distribuição de dados.

5 Pretende‑se deste modo evidenciar de que forma serviços de streaming como o da companhia sueca contribuíram para as indústrias culturais readquirirem o controlo do acesso às obras protegidas por direitos de autor que tinham perdido com o surgimento e consequente popularização das primeiras redes de partilha de ficheiros. Indo mais longe, pretende-se igualmente demonstrar que a aplicação férrea dos direitos de propriedade intelectual na Internet representa uma desestabilização fundamental no equilíbrio entre os direitos dos utilizadores e os direitos dos criadores que vigorou até à massificação da Internet.

Onde o streaming acaba e o download começa

6 A 12 de fevereiro de 2013 o serviço de streaming de música da empresa sueca Spotify foi oficialmente lançado em Portugal. Na altura, a plataforma digital contava já com um catálogo global composto por mais de 20 milhões de músicas. Para aceder a tal manancial de faixas, o utilizador apenas necessita de instalar a aplicação oficial. Esta aplicação inclui versões compatíveis com uma panóplia de sistemas operativos e dispositivos.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 189

7 O serviço da Spotify centra‑se num modelo de negócio característico de muitas start‑ups da Internet que é frequentemente designado de freemium (contração de free – ‘grátis’ – com premium – símbolo de exclusividade e valor acrescentado): uma versão gratuita, financiada por anunciantes mediante a integração de publicidade3 entre as faixas, mas que ainda assim permite ouvir um número ilimitado de canções, e ainda duas versões pagas, as quais em troca do pagamento de uma mensalidade, oferecem o acesso ilimitado e ininterrupto sem publicidade, concedendo inclusive a possibilidade de audição através de um dispositivo móvel. Para tal, e não obstante a possibilidade de guardar localmente algumas músicas para posterior audição offline, supõe‑se que o utilizador disponha de uma ligação permanente à Internet de modo a poder escutar, via streaming, os sons transmitidos à distância pelos servidores da Spotify.

8 Aquela em que as maiores editores discográficas do mundo depositam as esperanças de ser a solução definitiva para o problema mundial da “pirataria online” na aceção corrente do termo – a cópia de conteúdos multimédia sem a autorização dos detentores de direitos de autor – faz assim uso de uma tecnologia de distribuição de dados que é convencionalmente colocada numa posição diametralmente oposta ao do download enquanto cópia permanente do ficheiro em que a música ou o vídeo se encontram comprimidos.

9 Essa dissimilitude é, porém, mais aparente do que real, podendo aqui encontrar‑se a raiz de algumas das polémicas mais graves em torno da discussão pública sobre os direitos de autor na era da Internet. Quando um utilizador efetua um download, ele está essencialmente a guardar o ficheiro respetivo que transfere de um servidor ou computador remoto no seu disco rígido para posterior reprodução. Deste modo, já não precisa de estar ligado à Internet para ouvir a música ou o filme em questão.

10 Para além disso, em termos estritamente técnicos o streaming deve ser entendido como um download temporário de um ficheiro, na medida em que o ficheiro completo não se destina a ser guardado no disco rígido do computador. O que efetivamente ocorre é que o ficheiro vai sendo transferido em pequenas secções à velocidade de tempo real, sendo em seguida removido. Para tal, o streaming faz uso de uma técnica designada buffering, através da qual os dados são guardados durante um curto período de tempo na memória RAM do computador. Deste modo, esses dados passam a estar disponíveis imediatamente antes de serem acedidos. Antes do início da massificação das ligações de Internet de banda larga, em meados do início do século XXI em países como Portugal, o utilizador tinha que esperar que uma determinada parte do ficheiro fosse descarregada (20%, por exemplo) antes de começar a ouvir a música ou a ver o vídeo pretendido via streaming. À medida que o conteúdo ia sendo reproduzido, o computador continuava a descarregar a parte restante e a colocá‑la no buffer. Atualmente, com a abrangência de um número cada vez maior de zonas do país por ligações de banda larga como ADSL e cabo coaxial, na prática esse compasso de espera foi significativamente reduzido, sendo a reprodução iniciada quase automaticamente.

11 Do ponto de vista meramente prático, a distinção entre streaming e download parece residir, assim, cada vez mais num dilema quase ontológico no que concerne ao momento ou situação em que o streaming se converte num download efetivo e este no primeiro, à medida que os contornos entre ambos se vão esfumando graças ao próprio avanço da tecnologia.

12 Na verdade, esta diferenciação entre streaming e downloading não se restringe à era da digitalização das Tecnologias de Informação e Comunicação, remetendo antes para um

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 190

contexto mais vasto da história dos média, pelo menos desde a segunda metade do século XX. No seu cerne está a oposição entre o carácter transitório e efémero dos sinais de difusão ou emissão de áudio e vídeo por tecnologias como a rádio e a televisão e o carácter perene ou arquivístico de outro leque de suportes analógicos. Por permitirem não só o registo permanente de emissões de rádio e televisão mas também a cópia de discos de vinil pelos utilizadores de uma forma económica, privada e relativamente expedita, os gravadores de audiocassetes e videocassetes foram inicialmente alvo da perseguição tanto de empresas de radiodifusão como de companhias discográficas (Cummings, 2013 e Kernfeld, 2011) e produtoras de cinema (Decherney, 2012; Hilderbrand, 2009; Johns, 2009; McDonald, 2007 e Wasser, 2001).

13 Tal como a rádio na era analógica da radiodifusão, os serviços de streaming da era digital em rede oferecem ao utilizador‑recetor a possibilidade de acesso a um fluxo (stream em inglês) contínuo de música e vídeo em tempo real, apenas superficialmente insuscetível de ser captado (guardado para um dispositivo de armazenamento de dados como o disco rígido externo de um computador, tablet, smartphone ou leitor portátil de música) para posterior reprodução. A possibilidade de controlo permanente tanto do catálogo disponível para transmissão como da experiência de receção consiste assim na receita de sucesso do modelo de negócio de serviços de streaming como o da Spotify no caso da música, ou o Youtube da Google e a plataforma de Video‑on‑Demand (VoD) da Netflix, no que diz respeito ao vídeo. Um dos principais pressupostos deste modelo de negócios consiste precisamente na incapacidade de o recetor captar a transmissão para a ouvir ou visualizar onde quer que deseja mesmo sem acesso à Internet, após a remoção da sua conta no serviço ou da suspensão da subscrição, no caso de a plataforma em questão requerer o pagamento de uma mensalidade.

14 Se, todavia, toda a tecnologia digital funciona mediante a cópia e manipulação de ficheiros digitais e se, como Kevin Kelly refere, a Internet se assemelha a uma máquina de copiar incessantemente informação sob a forma de zeros e uns (Kelly, 2008), compreende‑se por que razão se torna bastante mais difícil aos detentores de direitos exercer o direito exclusivo à cópia num ambiente de comunicação em rede. Se tanto o streaming como o download pressupõem a realização de cópias, na prática será sempre impossível controlar todas ou pelo menos a maior parte das cópias de ficheiros efetuadas por utilizadores privados sem comprometer direitos e liberdades individuais. 4 Neste sentido, a Internet introduz uma diferença qualitativa no que toca à distinção tradicional entre suportes de receção e suportes de gravação: a mesma tecnologia – o computador pessoal, tablet ou smartphone – desempenha a função de receção e gravação.

15 Será por isso apenas necessário pesquisar alguns minutos em qualquer motor de busca para o utilizador encontrar dezenas de aplicações ou extensões de navegadores da web especialmente concebidas para transformar o streaming de cada um dos serviços mencionados num download permanente. No caso da música, tal tarefa torna‑se ainda mais fácil com o recurso a um simples software de gravação e edição de áudio como o Audacity. Embora seja difícil averiguar o real grau de utilização destas ferramentas por parte dos utilizadores, tanto o vasto número de alternativas disponíveis como o seu destaque em resultados de pesquisa aproximados levam a considerar seriamente a hipótese de que uma percentagem não despiciente de utilizadores recorre a elas para efetuar aquilo que os produtores de conteúdos tentavam precisamente impedir através da adoção da tecnologia de streaming: a realização de um número ilimitado de cópias sem qualquer perda significativa de qualidade sonora e visual a partir do ficheiro

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 191

transmitido, cópias essas que podem ser transferidas para um número ilimitado de dispositivos durante o processo.

Streaming: Um “modelo limitado em termos económicos”

16 Não estranha assim que alguns analistas estabeleçam um paralelismo histórico, chegando mesmo à conclusão que, longe de ser a próxima grande tendência do consumo de música, o streaming não passa da rádio do século XXI (Tschmuck, 2013). Ou seja, em vez de assinalar a passagem de uma economia centrada no mero acesso em lugar da posse (ownership) dos conteúdos (Rifkin, 2000a e 2000b), na perspetiva do utilizador o streaming parece assim servir um propósito diferente dos downloads ou mesmo dos suportes físicos tradicionais (CD e discos em vinil). Nesse sentido, todos os dados disponíveis publicamente sobre os hábitos de utilização de plataformas de streaming indiciam que se trata de um “modelo limitado em termos económicos” na medida em que, dado o fraco valor adicional oferecido por estes serviços, os utilizadores tendem a encontrar poucas razões para pagar pelo acesso à música via streaming (Aigrain, 2012: 63).

17 Com efeito, apesar do crescimento do número de utilizadores ativos, a percentagem daqueles que estão dispostos a pagar continua a ser reduzida. Esta opinião é veiculada por Tschmuck com base numa leitura aturada de uma série de estudos publicados desde 2010 até outubro de 2013 sobre os hábitos de consumo de música dos utilizadores. Embora faça questão de salientar o carácter diverso e contraditório dos resultados em causa, este professor da Universidade de Música e Estudos Performativos de Viena retira as seguintes conclusões: • A grande maioria (mais de 80%) dos utilizadores de música – mesmo os pertencentes a gerações mais novas – preferem a posse de música (ou seja, CD e downloads pagos) ao acesso (streaming). • O nível de notoriedade dos sites de streaming de vídeos musicais como o YouTube é significativamente superior ao dos serviços de streaming de áudio como o Spotify. O nível de notoriedade dos serviços de streaming entre os mais jovens é superior ao do de faixas etárias mais velhas. • A percentagem de utilizadores ativos de serviços de streaming é ainda reduzida. Varia entre 48% na Suécia a 12% na Alemanha e uns meros 4% no Japão. • A predisposição para pagar por subscrições de música é fraca – 22 a 31%. Uma vasta maioria de utilizadores e não utilizadores interessados preferem a versão freemium financiada por publicidade aos modelos premium. • O número de subscritores de serviços de streaming de música é reduzido. De acordo com o estudo BITKOM, uns meros 1,6% de utilizadores de Internet na Alemanha pagam por serviços de streaming. • Os serviços de streaming de música são usados maioritariamente para descobrir música nova (Tschmuck, 2013).

18 Tal como no caso da partilha de ficheiros, o grande receio tanto de artistas como de executivos da indústria é o da canibalização das vendas tanto de CD como de downloads a partir de serviços autorizados. Este receio é razoável, se tivermos em conta os dados do relatório The Streaming Effect: Assessing The Impact of Streaming Music Behaviour, da autoria de Mark Mulligan e Alun Simpson da consultora britânica MIDiA. Com base num

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 192

questionário realizado em junho de 2014 a três mil inquiridos residentes no Reino Unido, EUA e Brasil, os analistas alertam para o facto de que 45% das pessoas que adquirem downloads ouvem também música via streaming (Mulligan e Simpson, 2014). Outro dado alarmante é o facto de apenas 15% dos inquiridos que ouvem música via streaming terem assinado um serviço pago para beneficiar do período experimental gratuito. Tendo em conta estes dados, não será por isso de admirar que 23% dos inquiridos que compravam mais de um álbum por mês terem entretanto deixado de o fazer, de acordo com as suas respostas.

19 O pessimismo que a leitura destes dados pode fazer transparecer contrasta no entanto com o otimismo cauteloso da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Segundo esta organização que representa os interesses das maiores companhias discográficas do mundo, as receitas globais geradas pelos serviços de streaming por subscrição e acesso financiado por publicidade subiram 39% em 2014 face ao ano anterior, tendo‑se situado nos 1,6 mil milhões de dólares (IFPI, 2015). Já quanto à evolução do número de subscritores de serviços de música, a subida tem‑se registado a um ritmo ainda mais rápido: de apenas 8 milhões em 2010 para 13 milhões em 2011, 20 milhões em 2012, 28 milhões em 2013 e 41 milhões em 2014.

Spotify: O “cavalo de Tróia” da indústria discográfica para enfrentar a partilha não autorizada

20 Enquanto responsável por uma parte relativamente substancial desses utilizadores pagantes,5 a empresa sueca Spotify tem sido alvo de uma atenção especial pela indústria discográfica. Em 2008, em conjunto com a Merlin (associação representante das editoras independentes de discos), as quatro maiores companhias discográficas do mundo (Universal Music Group, EMI, Warner Music Group e Sony Music Entertainment) adquiriram em conjunto uma participação acionista de 18 por cento por um valor ligeiramente inferior a nove milhões de euros (Schwarz, 2013: 152). Tendo em conta que sete anos mais tarde, em abril de 2015, no âmbito de uma nova ronda de recolha de fundos que resultou na angariação de 350 milhões de dólares, a empresa seria avaliada em oito mil milhões de dólares6 (Tausche, 2015), pode concluir‑se que tal participação se tratou de uma contrapartida pela aquisição dos direitos de licenciamento do catálogo das quatro grandes majors.

21 O caminho percorrido até à celebração de acordos entre ambas as partes envolveu todavia complexas e demoradas negociações que decorreram desde a fundação da Spotify em abril de 2006 por dois empresários suecos, Daniel Ek e Martin Lorentzon até ao lançamento do serviço na Suécia bem como noutros países europeus em outubro de 2008. A hostilidade por parte dos executivos das companhias discográficas era tão grande que se recusavam mesmo a experimentar eles próprios o serviço, quanto mais a licenciar as músicas dos seus catálogos. A solução encontrada por Ek e Lorentzon para convencê‑los foi tanto engenhosa como eficaz, com a empresa a oferecer o acesso gratuito aos alunos dos liceus onde sabiam que os filhos desses executivos se encontravam a estudar. Isso fez com que estes se tivessem lentamente começado a aperceber que a Spotify “talvez pudesse competir com a pirataria e remunerar os detentores de direitos” (Wikström, 2013: 118‑119).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 193

22 Em maio de 2015, o seu serviço encontra‑se disponível em 58 países. No que diz respeito aos países de língua portuguesa, a plataforma pode ser acedida por utilizadores residentes em Portugal – como começámos por referir – e, mais recentemente – desde o final de maio de 2014 –, no Brasil (Grego, 2014). Se até ao momento não foi divulgado o número concreto de utilizadores do serviço nestes dois territórios, ainda assim a empresa já revelou alguns dados que indiciam um nível bastante significativo de adesão ao seu serviço tanto em Portugal como no Brasil (SAPO Tek, 2014 e Nunes, 2015).

23 Apesar de, tal como todos os restantes serviços de streaming de música (Deezer e Pandora, por exemplo), até agora a Spotify ainda não ter conseguido obter qualquer lucro, as receitas estão a crescer a um ritmo mais rápido que as perdas (Brustein, 2014). Daí que as companhias discográficas não tenham grande razão para queixas. Compreende‑se porquê: em média 70% das receitas geradas pela empresa por via da publicidade e das subscrições são distribuídas aos detentores de direitos sob a forma de royalties de direitos de autor, 7 ficando a Spotify com os restantes 30%. Esses 70% são geralmente pagos diretamente às companhias discográficas e editoras de música8 que retiram uma comissão e só depois distribuem o restante aos artistas e empresários, dependendo dos contratos individuais estabelecidos.

24 Juntamente com a participação acionista das majors na empresa, este sistema de distribuição das receitas tem suscitado fortes críticas por parte de músicos mais famosos. Um dos casos que mais repercussão gerou na comunicação social foi o de Thom Yorke, vocalista da banda britânica Radiohead. Em julho de 2013 o músico retirou o seu álbum a solo The Eraser bem como o de Atoms for Peace, o seu projeto com Nigel Godrich (produtor dos Radiohead), da plataforma da Spotify em protesto pelos fracos montantes em royalties recebidos pelos artistas – sobretudo os mais jovens – em comparação com as receitas obtidas com as vendas de CD e downloads digitais (Arthur, 2013).

25 Em resposta, em dezembro desse mesmo ano a empresa lançou o site Spotify for Artists,9 onde alega ter pago mais de 2 mil milhões de dólares (1,6 mil milhões de euros) em royalties desde 2008 até hoje (Spotify, 2013).10 Desse montante, 500 milhões de dólares (393 milhões de euros) teriam sido entregues somente durante o ano de 2013. De acordo com os seus dados, em média cada reprodução via streaming de uma faixa representa um pagamento entre os 0,006 USD (0,0053€) e os 0,0084 USD (0,0074€) para os detentores de direitos.

26 Nesse mesmo site, os responsáveis pela empresa admitem inequivocamente pela primeira vez que “a Spotify foi concebida de raiz para combater a pirataria”, no intuito de oferecer “um serviço melhor que a pirataria” e de modo a “convencer as pessoas a deixar de recorrer à partilha ilegal de ficheiros e voltar a consumir música de uma forma legal.”

27 Não deixa, no entanto, de ser curioso o facto de as próprias origens da empresa se confundirem com as fronteiras daquilo que convencionalmente é designado de “pirataria”, ou seja, o download não autorizado de obras protegidas por direitos de autor. Isto porque a base de dados da versão beta do serviço da Spotify começou por ser preenchida com os próprios ficheiros de música obtidos de forma não autorizada da Internet por Ek e os seus amigos (Greeley, 2011). Em suma, para além da mera coincidência de partilhar a mesma nacionalidade geográfica que o The Pirate Bay – o maior site da rede P2P BitTorrent do mundo –, a Spotify começou por ser ela própria um arquivo ilegal de música não licenciada (Schwarz, 2013: 149).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 194

28 Igualmente assinalável é o facto de até muito recentemente a empresa ter feito uso da tecnologia de rede P2P para aliviar as suas despesas com largura de banda e servidores. Durante boa parte do tempo de existência do seu serviço, a Spotify recorreu a uma rede P2P privada para o fornecimento das músicas solicitadas pelos utilizadores pela primeira vez em alternativa aos seus próprios servidores. Esta rede chegou até a ser responsável por quase 80% de todas as músicas acedidas pelos utilizadores através da Internet (Ernesto, 2011; Kreitz e Niemelä, 2010). Deste modo, os utilizadores acabaram eles próprios por assumir o principal papel de distribuidores dos conteúdos licenciados pela Spotify – na sua maior parte, sem sequer se aperceberem disso. As despesas com largura de banda e de espaço de armazenamento de dados eram assim partilhadas com os utilizadores. Para além do aspeto económico, a tecnologia P2P permitiu que a transmissão das músicas fosse feita de forma a que as faixas começassem quase imediatamente, sem qualquer período assinalável de latência. Na verdade, só em abril de 2014 é que a empresa deu início à desativação da sua rede P2P para passar a recorrer exclusivamente a servidores centrais (Ernesto, 2014).

29 Para além do recurso à tecnologia P2P no sentido de facilitar a reprodução das músicas, o próprio passado da Spotify encontra‑se bastante associado à partilha de ficheiros. Pouco antes de fundarem a empresa de streaming de música, Daniel Ek e Ludvig Strigeus (futuro Chief Software Architect da Spotify), desenvolveram o uTorrent, uma das aplicações mais populares do protocolo de P2P BitTorrent (Allen‑Robertson, 2013; Schwarz, 2013: 151).

Limites da esfera do mercado na diversidade e democratização cultural: Um relato pessoal

30 Em termos sucintos, a proposta comercial da Spotify consiste em oferecer toda a música que consigamos ouvir a custo zero (ou quase zero). Pretende‑se assim, através de uma alternativa sancionada pela indústria discográfica, fazer diminuir a partilha não autorizada sem fins comerciais de obras protegidas por direitos de autor. Nesse sentido, torna‑se forçoso estabelecer uma comparação com a experiência de utilização proporcionada pelos sites e redes onde ocorre o tipo de práticas que se pretende combater.

31 Enquanto responsável pelo Remixtures.com, um blogue pessoal atualizado várias vezes ao dia sobre música digital, partilha de ficheiros, novos modelos de negócio e direitos de autor que funcionou entre outubro de 2006 e dezembro de 2009, tive a oportunidade de noticiar não só o anúncio do serviço mas também o lançamento da primeira versão beta da Spotify (Caetano, 2008a e 2008b). Se bem que um pouco cético de um serviço “apadrinhado” pelas companhias discográficas, confesso que fiquei encantado com a possibilidade de aceder a “toda a música do mundo” mediante uma “nuvem” (cloud em inglês) de servidores informáticos espalhados pelo mundo. Mais ainda devido à incorporação de diversas funcionalidades destinadas à descoberta de música nova. Enquanto membro do What.cd – um dos maiores sites privados de BitTorrent 11 do mundo especializados em música – desde a sua fundação em outubro de 2007, considerava que nenhum serviço de música autorizado seria alguma vez capaz de disponibilizar um repositório online tão completo, variado e rico como o dessa

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 195

comunidade de partilha de música, sem fins comerciais e totalmente dependente de doações e voluntariado.

32 Para se ter uma ideia, em abril de 2015 o What.cd contava com 150 675 utilizadores registados e 2 202 390 ficheiros torrent relativos a 908 963 lançamentos musicais de 753 479 artistas. O desfasamento entre o número de ficheiros registados e o número de lançamentos deve‑se ao facto de o site incluir o maior número de formatos áudio possíveis do mesmo disco, com especial destaque para FLAC, um formato áudio comprimido semelhante ao MP3 mas que, ao contrário deste, oferece o máximo de fidelidade sonora sem qualquer perda de qualidade. Se estimarmos em dez o número médio de faixas por lançamento – tendo em conta que a média tende a ser 12 no caso de álbuns mas também já contando com EP e singles –, o total de músicas disponíveis para download a partir do What.cd deverá rondar os 8,5 milhões.

33 Se à primeira vista esse número pode parecer muito aquém dos alegados 20 milhões de músicas passíveis de serem encontradas no serviço da Spotify, numa pesquisa mais aprofundada rapidamente chegamos à conclusão de que no caso dos artistas mais populares – e cujo valor de licenciamento do seu catálogo solicitado pela respetiva companhia discográfica atinge montantes mais elevados –, a oferta disponível frequentemente se reduz a versões dos seus temas mais famosos por outros artistas mais ou menos desconhecidos. É assim possível encontrar 600 versões de “Skyfall” de Adele, mas não a versão original da própria cantora britânica (Nakashima, 2013). O mesmo se diga aliás a respeito de bandas de rock clássico dos anos 60 e 70 como The Beatles ou AC/DC, cujos detentores de direitos ainda não permitiram a disponibilização da sua música na plataforma da empresa sueca. Mesmo quando a música original do artista se encontra acessível, torna‑se complicado encontrá‑la por entre centenas de outras versões. Um dos exemplos mais recentes é o de “Suit & Tie” de Justin Timberlake, que já foi alvo de mais de 180 canções (ibidem). Em contrapartida, no What.cd não só a probabilidade de situações semelhantes ocorrerem é muito mais reduzida (todo o trabalho é feito de forma voluntária, sem fins comerciais mas também sem autorização dos detentores de direitos) como também o próprio interface do site impede que os efeitos de uma eventual profusão de versões adaptadas de outros artistas se façam sentir, uma vez que cada artista e cada lançamento têm uma página própria.

34 Foi deste modo que, ao aderir ao serviço premium da Spotify 12 poucas horas após o lançamento da empresa em Portugal, cedo me deparei com uma profusão de conteúdos que pouco ou nada tinham a ver com o que procurava, bem como com outras deficiências a nível da curadoria e edição de conteúdos. Com efeito, embora a Spotify inclua várias funcionalidades que permitem a descoberta de música nova (estações de rádio baseadas num estilo de música ou artista, inúmeras playlists temáticas permanentemente atualizadas pelos utilizadores, canais de marca mantidos por publicações e críticos especializados, etc.), estas funcionalidades parecem destinar‑se mais ao consumidor casual de música do que especificamente ao fã mais ávido e intensivo. Um exemplo que torna mais claro essas diferenças é a forma de apresentação dos resultados de lançamentos relativos a artistas nas suas respetivas páginas. Embora nos dois casos a ordem seja cronológica (começando pelo mais recente ao mais antigo), na Spotify não existe qualquer tipo de organização adicional, o que significa que no caso de artistas mais populares teremos que percorrer por entre uma série de antologias dos maiores êxitos até chegarmos a lançamentos originais. O mesmo já não

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 196

sucede no caso do What.cd, onde em cada página de artista existe uma hierarquia lógica na apresentação dos resultados: 1. Álbuns; 2. Bandas sonoras; 3. EP; 4. Antologias; 5. Compilações de temas vários; 6. DJ Mixes; 7. Singles 8. Álbuns de concertos ao vivo; 9. Remixes; 10. Bootlegs;13 11. Mixtapes; 12. Versões demo; 13. Guest Appearances;14 14. Produções.

35 Ainda no que diz respeito à descoberta de música nova, trackers privados de BitTorrent como o What.cd têm ao longo do tempo integrado uma série de funcionalidades de recomendação como a possibilidade de criação de “colagens” relativas às listas de melhores discos, de acordo com publicações especializadas como Pitchfork e Tiny Mix Tapes e de listas pessoais baseadas na opinião dos membros, tops de lançamentos mais populares do mês ou do ano, ferramentas de recomendação algorítmica com base nos hábitos de download dos utilizadores que anteriormente descarregaram o mesmo disco e listas de todos os lançamentos num determinado estilo musical de acordo com as etiquetas (tags) incluídas pela comunidade para melhor descrever um disco.

36 Sendo o serviço da Spotify um serviço de streaming dependente do estabelecimento de acordos de licenciamento com os detentores de direitos relativos a cada território nacional, tal como no caso do YouTube da Google, da iTunes Store da Apple ou da loja Kindle da Amazon, existem determinados conteúdos que não se encontram disponíveis para os utilizadores de um determinado país. Embora já tivesse uma vaga noção da existência dessas restrições geográficas no serviço da Spotify, só em julho de 2013 é que me deparei com tal situação. No âmbito de uma viagem a Toronto tive a oportunidade de conhecer a obra da cantora local de música country e folk Jennifer Castle durante a primeira parte do concerto da banda nova‑iorquina Woods. Regressado a Portugal, pesquisei o seu nome na aplicação da Spotify mas não consegui encontrar nada. Foi só quando introduzi os termos ‘“Jennifer Castle” + “Spotify”’ na caixa de pesquisa do motor de busca Google que encontrei uma página Web do site da empresa sueca referente ao álbum “Castlemusic” de 2011 da cantora, contendo links para a reprodução das faixas a partir da aplicação da Spotify. Contudo, ao clicar num desses links deparei com uma mensagem informando‑me que o conteúdo pretendido não estava disponível em Portugal. Não sendo totalmente de descurar a possibilidade de tal decisão ter eventualmente partido quer da própria artista quer da própria companhia discográfica (Flemish Eye), é impossível não deixar de especular a respeito da relação entre a participação acionista das quatro maiores companhias discográficas do mundo e a forma como os artistas independentes são tratados pela Spotify tendo por base este episódio. Aqui, tal como em inúmeros outros casos de lançamentos independentes, a

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 197

alternativa gratuita mas não autorizada demonstrou mais uma vez a melhor (porque única) opção à escolha.

37 Mas o que de facto me levou a desistir de subscrever o serviço pago da Spotify foi o facto de – não obstante ter sido “concebido de raiz para combater a pirataria” – este ser igualmente vulnerável ao fenómeno da já tradicional possibilidade de remoção súbita de conteúdos sem qualquer aviso antecipado, o que no caso da loja Kindle da Amazon, chegou a assumir contornos simultaneamente soturnos e caricatos com a remoção das cópias de edições eletrónicas de 1984 e O Triunfo dos Porcos de George Orwell (Allen‑Robertson, 2013: 170‑174; Striphas, 2011: xvii). Para além da qualidade superior dos ficheiros áudio,15 uma das razões que me levara a subscrever a versão mais cara do serviço premium da Spotify – no valor de 6,99€ por mês – tinha sido a possibilidade de descarregar para posterior reprodução offline até um máximo de 3333 músicas para um computador pessoal, tablet ou smartphone (independentemente do sistema operativo) a partir de qualquer lugar onde me encontrasse, bastando apenas para tal dispor de uma ligação sem fios à Internet via wi‑fi. No seu site, a Spotify faz questão de informar que a única condição necessária para continuar a poder reproduzir as músicas em questão é que o dispositivo renove a concessão da licença por mais 30 dias através dos servidores da Spotify. Para tal, a empresa recorre a uma tecnologia de DRM que encripta os ficheiros.16

38 A situação em concreto que me afetou veio no entanto a demonstrar que os termos do contrato com que a empresa me solicitou que concordasse nem sempre eram compatíveis com a informação destinada ao consumidor. Foi deste modo que me apercebi, a 13 de setembro de 2013, que três álbuns17 que tinha previamente descarregado para o meu smartphone tinham não só subitamente desaparecido do cartão microSD do dispositivo como também já não era possível encontrá‑los na base de dados da Spotify a partir da sua aplicação. Na prática, se não tivesse descarregado esses álbuns para o meu computador pessoal a partir do What.cd teria perdido permanentemente o acesso a eles.

39 O facto de não ter recebido qualquer notificação antes ou depois do sucedido por parte da Spotify mostra até que ponto o serviço funciona como um “jardim murado” regido por regras de gestão de “condomínio” pouco transparentes e claras. Perante esta situação decidi então cancelar a minha subscrição na Spotify a 24 de outubro de 2013, pouco mais de oito meses após o início da minha experiência de utilização. A partir desse momento tornou‑se para mim particularmente evidente como a transição dos hábitos de consumo de conteúdos culturais para plataformas de streaming poderia significar a reconquista do controlo perdido pelas maiores companhias discográficas, produtoras de filmes e editoras de livros do mundo para os utilizadores durante o período de maior popularidade das redes de partilha de ficheiros.

40 Pese embora os vários estudos empíricos citados pela Spotify para demonstrar um alegado impacto positivo que o seu serviço tem exercido na redução da “pirataria online ” (Spotify, 2013; Ernesto, 2013), tentei com a exposição apresentada em cima evidenciar que só muito dificilmente os serviços comerciais de streaming apoiados pela indústria de produção de obras culturais poderão ser capazes de proporcionar uma oferta centrada na diversidade cultural e na democratização do acesso à cultura e ao conhecimento.

41 Chegados a este ponto, forçoso é notar uma contradição entre a liberdade efetiva de circulação de dados permitida pela Internet e, em particular, pela tecnologia de partilha de ficheiros, e os limites impostos pela lei. Com efeito, no que diz respeito à

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 198

proteção das obras literárias ou artísticas, tanto o direito de autor (droit d’auteur na tradição jurídica europeia) como o copyright (na tradição anglo‑saxónica) concedem aos detentores de direitos um conjunto de direitos exclusivos relativos à exploração das suas obras.18 A existência destes direitos implica que a partilha de ficheiros entre pessoas seja considerada uma infração ao direito de autor sempre que não exista uma autorização prévia junto de cada detentor individual de direitos.

42 Originalmente, o direito de autor tinha como objetivo conciliar dois interesses aparentemente incompatíveis entre si: incentivar a criação de novas obras por parte de autores e criadores e, simultaneamente, fomentar a disseminação da cultura, da inovação e do progresso social. Se no discurso das associações industriais representantes dos detentores de direitos parece reinar a tese de que a partilha de ficheiros está a aniquilar a indústria da música, do cinema e do livro, os dados empíricos disponíveis até agora apontam para um cenário mais complexo e matizado em que este tipo de práticas mediadas tecnologicamente contém em si tanto um potencial de destruição como de (re)construção de novos modelos de negócio.

43 Ainda assim, estes dados indiciam que a consecução desse duplo objetivo original do direito de autor sem restringir desnecessariamente o direito à cópia sempre que não estejam em causa fins comerciais é perfeitamente possível. Em suma, à primeira vista a partilha de ficheiros nem eliminou os incentivos dos artistas a criarem nem reduziu as opções de escolha dos consumidores.

44 Apesar de bem enraizada nos meios culturais e políticos, a perspetiva meramente economicista da contabilização dos eventuais prejuízos provocados pela partilha de ficheiros tem o grande inconveniente de se limitar a conceder importância à facilidade adicional proporcionada pela Internet na cópia de obras culturais face a tecnologias analógicas anteriores. Visto deste prisma, a partilha consiste apenas numa falha do mercado e não numa dimensão fundamental da cultura que de facto é (Aigrain, 2011).

Conclusão

45 Com este texto tentei demonstrar que, apesar das propostas aliciantes de empresas como a Spotify, o sucesso dos seus serviços de streaming depende de um compromisso com o utilizador que em troca de maior conveniência lhe retira liberdade. Deste modo, o streaming pode ser entendido no âmbito de uma estratégia puramente comercial levada a cabo pelas companhias discográficas – bem como pelas produtoras de cinema – no intuito de reconquistar o controlo que tinham perdido para os utilizadores em resultado da ascensão do Napster, assim como de outras redes e sites de partilha de ficheiros. Ao prometerem o acesso ubíquo a um vasto catálogo de músicas e vídeos à escolha, os serviços de streaming podem assim ser considerados como um “Cavalo de Tróia” para a Propriedade Intelectual na era da Internet. Graças ao streaming, a contradição entre o efetivo livre fluxo de informação que a Internet permite e os limites artificiais estabelecidos pelo Direito é contornada mediante a reimposição de um controlo tecnológico que o recurso a tecnologias de DRM permite.

46 Serviços comerciais como o da Spotify apresentam‑se deste modo como uma implementação quase perfeita do sistema descrito em 1994 pelo jurista Paul Goldstein sob a designação de “jukebox celestial”. No seu livro Copyright’s Highway, Goldstein previa para um futuro próximo o aparecimento de um sistema destinado a “remunerar

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 199

os detentores de direitos por cada vez que as suas obras fossem escolhidas.” Tal sistema cobraria: aos subscritores por via eletrónica cada utilização das obras pré‑gravadas disponíveis – filmes, gravações sonoras, livros, revistas ou artigos de jornais [...] Com o crescimento da audiência e a diminuição dos custos de distribuição, o preço do acesso a essas obras deveria descer acentuadamente para um valor bastante inferior aos atualmente pagos, de modo que as pessoas não se dariam ao trabalho de fazer cópias das obras transmitidas por radiodifusão ou mesmo via Internet, sabendo de antemão que poderiam obter qualquer obra disponível na jukebox celestial sempre que quisessem. (Goldstein, 2003 [1994]: 23)

47 Goldstein notava ainda acertadamente que “a capacidade da jukebox celestial de cobrar pelo acesso – e de vedar o acesso ao serviço caso o subscritor não pague as suas contas – deveria reduzir substancialmente o espetro de custos de transação” (ibidem: 207). Embora o autor chegasse mesmo a especular sobre a possibilidade de uma lei de direitos de autor extirpada de quaisquer isenções à responsabilidade jurídica (ou seja, o chamado uso justo ou fair use), tal visão de total mercantilização dos bens informacionais tal como implementada por serviços de streaming como o da Spotify deve fazer‑nos ponderar sobre as perdas reais em termos de bem‑estar social, diversidade cultural e acesso à cultura e ao conhecimento daí resultantes. Sobretudo, tendo em conta a abundância informacional proporcionada pela Internet e pelas tecnologias digitais em geral.

BIBLIOGRAFIA

Aigrain, Philippe (2011), “Sharing is not a market failure”, blog Communs / Commons, 20 de novembro. Consultado a 11.06.2015, em http://paigrain.debatpublic.net/?p=3778&lang=en.

Aigrain, Philippe (2012), Sharing: Culture and the Economy in the Internet Age. Amsterdam: Amsterdam University Press.

Allen‑Robertson, James (2013), Digital Culture Industry: A History of Digital Distribution. Basingstoke: Palgrave Macmillan.

Arthur, Charles (2013), “Thom Yorke Blasts Spotify on Twitter as he Pulls his Music”, The Guardian, 15 de julho. Consultado a 11.06.2015, em http://www.theguardian.com/technology/ 2013/jul/15/thom-yorke-spotify-twitter.

Boyle, James (2003), “The Second Enclosure Movement and the Construction of the Public Domain”, Law and Contemporary Problems, 66, 33‑74. Consultado a 12.04.2016 em http://ssrn.com/ abstract=470983.

Brustein, Joshua (2014), “Spotify Hits 10 Million Paid Users. Now Can It Make Money?”, Bloomberg Business, 21 de maio. Consultado a 11.06.2015, em http://www.bloomberg.com/bw/articles/ 2014-05-21/why-spotify-and-the-streaming-music-industry-cant-make-money.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 200

Caetano, Miguel (2008a), “Spotify: toda a música do mundo a pedido”, blog Remixtures.com, 19 de junho. Consultado a 11.06.2015, em http://www.remixtures.com/2008/06/ spotify‑toda‑a‑musica‑do‑mundo‑a‑pedido/.

Caetano, Miguel (2008b), “‘Jukebox celestial’ Spotify já abriu... em alguns países do mundo”, blog Remixtures.com, 7 de outubro. Consultado a 11.06.2015, em http://www.remixtures.com/2008/10/ jukebox-celestial-spotify-j-abriu-em-alguns-pases-do-mundo/.

Cisco (2015), “Cisco Visual Networking Index: Forecast and Methodology, 2014‑1019”, 27 de maio. Consultado a 12.11.2015, em http://www.cisco.com/c/en/us/solutions/collateral/service- provider/ip-ngn-ip-next-generation-network/white_paper_c11-481360.html.

Cummings, Alex Sayf (2013), Democracy of Sound: Music Piracy and the Remaking of American Copyright in the Twentieth Century. Oxford: Oxford University Press.

Decherney, Peter (2012), Hollywood’s Copyright Wars: From Edison to the Internet. New York: Columbia University Press.

Ernesto (2011), “Spotify: A Massice P2P Network, Blessed by Record Labels”, TorrentFreak, 17 de junho. Consultado a 11.06.2015, em https://torrentfreak.com/spotify-a-massive-p2p-network- blessed-by-record-labels-110617/.

Ernesto (2013), “Spotify Was Designed from the Ground Up to Combat Piracy”. TorrentFreak, 4 de dezembro. Consultado a 11.06.2015, em http://torrentfreak.com/spotify-was-designed-from-the- ground-up-to-combat-piracy-131204/.

Ernesto (2014), “Spotify Starts Shutting Down its Massive P2P Network”. TorrentFreak, 16 de abril. Consultado a 11.06.2015, em https://torrentfreak.com/spotify-starts-shutting-down-its-massive- p2p-network-140416/.

Goldstein, Paul (2003), Copyright’s Highway: From Gutenberg to the Celestial Jukebox. Stanford, California: Stanford University Press [ed. orig.: 1994].

Grego, Maurício (2014), “Spotify, o maior serviço de música do mundo, chega ao Brasil”, Exame.com, 28 de maio. Consultado a 11.06.2015, em http://exame.abril.com.br/tecnologia/ noticias/spotify-o-maior-servico-de-musica-do-mundo-chega-ao-brasil.

Greeley, Brendan (2011), “Daniel Ek’s Spotify: Music’s Last Best Hope”, Bloomberg Business, 13 de julho. Consultado a 11.06.2015, em http://www.bloomberg.com/bw/magazine/daniel-eks- spotify-musics-last-best-hope-07142011.html.

Hilderbrand, Lucas (2009), Inherent Vice: Bootleg Histories of Videotape and Copyright. Durham: Duke University Press.

IFPI (2015), IFPI Digital Music Report 2015: Charting the Path to Sustainable Growth. IFPI. Consultado a 11.06.2015, em http://www.ifpi.org/downloads/Digital-Music-Report-2015.pdf.

Johns, Adrian (2009), Piracy: The Intellectual Property Wars from Gutenberg to Gates. Chicago: University of Chicago Press.

Katz, Candice (2014), “10 Million Subscribers!”, Spotify Blog, 21 de maio. Consultado a 11.06.2015, em https://news.spotify.com/us/2014/05/21/10-million-subscribers/.

Kelly, Kevin (2008), “Better Than Free”, The Technium, 31 de janeiro. Consultado a 11.06.2015, em http://kk.org/thetechnium/2008/01/better-than-fre.

Kernfeld, Barry (2011), Pop Song Piracy: Disobedient Music Distribution since 1929. Chicago: University of Chicago Press.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 201

Kreitz, Gunnar; Niemelä, Fredrik (2010), “Spotify – Large Scale, Low Latency, P2P Music-on- Demand Streaming”, Proceedings of IEEE P2P’10. Consultado a 16.06.2015, em https:// www.csc.kth.se/~gkreitz/spotify-p2p10/spotify-p2p10.pdf.

Lardner, James (1987), Fast Forward: Hollywood, the Japanese, and the Onslaught of the VCR. New York: Norton.

McDonald, Paul (2007), Video and DVD Industries. London: British Film Institute.

Mulligan, Mark; Simpson, Alun (2014), The Streaming Effect: Assessing The Impact of Streaming Music Behaviour. MIDia Research.

Nakashima, Ryan (2013), “Cover Songs on Spotify: Homage or Irksome Marketing Ploy?”, Associated Press, 30 de maio. Consultado a 16.06.2015, em http://www.huffingtonpost.com/ 2013/05/30/cover-songs-homage-or-irk_n_3362235.html.

Nunes, Emily Canto (2015), “Por música offline e acesso móvel, usuários trocam a pirataria pelo streaming”, IG Tecnologia, 28 de maio. Consultado a 12.11.2015, em http://tecnologia.ig.com.br/ especial/2015-05-28/por-musica-offline-e-acesso-movel-usuarios-trocam-a-pirataria-pelo- streaming.html.

Rifkin, Jeremy (2000a), The Age of Access: The New Culture of Hypercapitalism Where All of Life is a Paid- For Experience. New York: J. P. Tarcher/Putnam.

Rifkin, Jeremy (2000b), “Where Napster Has Gone, Others Will Follow”, Los Angeles Times, 21 de agosto. Consultado a 16.06.2015, em http://articles.latimes.com/2000/aug/21/local/me-7952.

Sandvine (2014), “Global Internet Phenomena Report: 2H 2014”. Consultado a 12.11.2015, em https://www.sandvine.com/downloads/general/global-internet-phenomena/2014/2h-2014- global-internet-phenomena-report.pdf.

SAPO Tek (2014), “Portugueses gastam quase três vezes mais no Spotify Premium do que no iTunes”, 12 de fevereiro. Consultado a 12.11.2015, em http://tek.sapo.pt/noticias/internet/ artigo/ portugueses_gastam_quase_tres_vezes_mais_no_spotify_premium_do_que_no_itunes-1365580tek.html.

Schwarz, Jonas Anderson (2013), Online File Sharing: Innovations in Media Consumption. New York: Routledge.

Sloan, Paul (2013), “Spotify: Growing Like Mad, Yet So Far To Go”, CNET, 12 de março.Consultado a 16.06.2015, em http://www.cnet.com/news/spotify-growing-like-mad-yet-so-far-to-go/.

Spotify (2013), “Spotify’s impact on piracy”, SpotifyArtists. Consultado a 16.06.2015, em http:// www.spotifyartists.com/spotify-explained/#spotifys-impact-on-piracy.

Spotify (2015), “20 Million Reasons to Say Thanks”, Spotify Blog, 10 de junho. Consultado a 12.10.2015, em https://news.spotify.com/us/2015/06/10/20-million-reasons-to-say-thanks/.

Striphas, Ted (2011), The Late Age of Print: Everyday Book Culture from Consumerism to Control. New York: Columbia University Press.

Tausche, Kayla (2015), “Spotify Raises $350M at $8B Valuation: Sources”, CNBC, 1 de maio. Consultado a 16.06.2015, em http://www.cnbc.com/id/102631432.

F0 Tschmuck, Peter (2013), “Is Streaming the Next Big Thing? 2D What Consumers Want”, Music Business Research, 18 de outubro. Consultado a 16.06.2015, em https:// musicbusinessresearch.wordpress.com/2013/10/18/is-streaming-the-next-big-thing-what- consumers-want/.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 202

Wang, Ryuou; Shoshitaishvili, Yan; Kruegel, Christopher; Vigna, Giovanni (2013), “Steal this Movie – Automatically Bypassing DRM Protection in Streaming Media Services”, Proceedings of the 22nd USENIX conference on Security, 687-702. Consultado a 16.06.2015, em https:// www.cs.ucsb.edu/~vigna/publications/2013_SP_MovieStealer.pdf.

Wasser, Frederick (2001), Veni, Vidi, Video: The Hollywood Empire and the VCR. Austin: University of Texas Press.

Willens, Max (2015), “Spotify Launches All-Out Blitz on Advertisers in NYC as Streaming Music Heats Up”, International Business Times, 29 de setembro. Consultado a 12.11.2015, em http:// www.ibtimes.com/spotify-launches-all-out-blitz-advertisers-nyc-streaming-music- heats-2117378.

Wikström, Patrik (2013), The Music Industry: Music in the Cloud. Cambridge: Polity.

NOTAS

1. Com origem no campo da informática, o termo P2P refere‑se a um determinado tipo de arquitetura de redes de computadores que se distingue do modelo tradicional servidor/cliente ao permitir que cada computador ligado à rede envie e receba dados. 2. O presente texto baseia-se na introdução de uma tese de doutoramento em Ciências da Comunicação intitulada “Cultura P2P: Uma análise sociológica comparativa das redes e dos sites de partilha online de músicas, filmes e livros eletrónicos em Portugal e no Brasil”, com data de defesa prevista para o segundo semestre de 2016. 3. Perfazendo um total de cerca de três minutos de publicidade por cada hora de música reproduzida. 4. Apesar da introdução de Medidas de Proteção Tecnológica (Technological Protection Measures –

F0 TPMs) como tecnologias de Gestão Digital de Direitos (Digital Rights Management 2D DRMs) – bem como a proibição da disponibilização de quaisquer aplicações ou métodos que permitam derrubálas em vários tratados internacionais de propriedade intelectual e legislações nacionais de direitos de autor a partir de meados dos anos 90, na prática nenhum mecanismo de proteção anticópia revelou até hoje ser inquebrável. 5. De acordo com os dados mais recentes disponibilizados pela Spotify, em junho de 2015 a empresa tinha 20 milhões de assinantes e mais de 75 milhões de utilizadores ativos (Spotify, 2015), esperando a empresa que este número ascenda aos 100 milhões no final de 2015 (Willens, 2015). Em maio de 2014, o número de assinantes era de 10 milhões para um total de mais de 40 milhões de utilizadores ativos (Katz, 2014). Em março de 2013, os subscritores ultrapassavam os seis milhões, sendo de 24 milhões o número de utilizadores ativos (Sloan, 2013). 6. Pouco menos de 6,4 mil milhões de euros. 7. De acordo com a popularidade da sua música no serviço. 8. Publishers, em inglês. 9. Disponível em http://www.spotifyartists.com. 10. Em junho de 2015, esse montante já tinha ascendido aos 3 mil milhões de dólares (pouco menos de 2,8 mil milhões de euros) (Spotify, 2015). 11. Acessível apenas por convite enviado por um membro. 12. Tal como é habitual na maioria dos outros serviços de streaming, a Spotify permite que o utilizador desfrute inicialmente de 30 dias de acesso grátis à modalidade premium. 13. Gravações não autorizadas. 14. Participações em lançamentos de outros artistas por convite.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 203

15. 320 Kbps e não 160 Kbps. Os ficheiros encontram-se disponíveis no formato de código-fonte aberto Ogg Vorbis em vez do tradicional MP3. 16. Ver no entanto Wang et al. (2013), onde é apresentada uma técnica chamada MovieStealer, que permite derrubar a proteção DRM de vários serviços streaming, entre os quais o da Spotify. 17. Dois deles da banda de música eletrónica Javelin (Brooklyn, Nova Iorque – EUA), No Mas (2010) e Canyon Candy (2011) e um do projeto de Hip‑Hop Madvillain, Madvillainy (2004). 18. Entre os quais: 1) direito a reproduzir ou copiar a obra num suporte material; 2) o direito a comunicar a obra ao público; 3) o direito a distribuir cópias públicas da obra.

RESUMOS

Apontados frequentemente como a solução definitiva para o problema mundial da “pirataria online”, os serviços de streaming têm vindo a substituir as redes e os sites de partilha de ficheiros nas preferências dos utilizadores relativamente ao acesso online a música. Um exemplo de crescente popularidade é o serviço da empresa sueca Spotify. Embora a Spotify cite vários estudos demonstrando um alegado impacto positivo do seu serviço na redução da “pirataria online”, este artigo visa demonstrar que só muito dificilmente as plataformas comerciais de streaming apoiadas pela indústria de produção de obras culturais poderão ser capazes de proporcionar uma oferta centrada na e democratização do acesso à cultura. Para tal, irá proceder‑se a uma análise comparativa entre o serviço da Spotify e uma comunidade privada de partilha de ficheiros baseada numa experiência pessoal de utilização de ambos os serviços a partir de um país periférico da União Europeia como Portugal.

Often seen as the ultimate solution for the global problem of “online piracy”, streaming services have been replacing file sharing networks and sites as the preferred means of accessing online music. One example of their increasing popularity is the service provided by the Swedish company Spotify. Even though Spotify quotes several studies showing the alleged positive impact of its service in terms of reducing “online music piracy”, this paper aims to highlight the main obstacles facing an offer based on the democratization of access to culture presented by commercial streaming services supported by the culture industries. It draws on a comparative analysis of Spotify and a private file‑sharing community (a private BitTorrent tracker), based on the experience of using both services by an individual living in a peripheral country in the European Union like in Portugal.

Souvent mentionné comme la solution définitive au problème du “piratage online”, les services de streaming tendent peu à peu à remplacer les réseaux et les sites de partage de fichiers dans la préférence des utilisateurs en matière d’accès online à la musique. Un exemple de croissante popularité en est le service de l’entreprise suédoise Spotify. Bien que Spotify cite diverses études démontrant un soi‑disant impact positif de son service sur la réduction du “piratage online”, cet article a pour but de démontrer que ce n’est que très difficilement que les plateformes commerciales de streaming, soutenues par l’industrie de production d’œuvres culturelles, seront à même de produire une offre centrée sur la démocratisation de l’accès à la culture. Pour ce faire, nous procèderons à une analyse comparative entre le service de Spotify et une communauté privée de partage de fichiers reposant sur une expérience personnelle d’utilisation des deux services à partir d’un pays périphérique de l’Union Européenne comme le Portugal.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 204

ÍNDICE

Palavras-chave: direitos de autor, pirataria digital, sociologia da música, Spotify, streaming de áudio Keywords: audio streaming, author rights, digital piracy, sociology of music, Spotify Mots-clés: droits d’auteur, piratage numérique, sociologie de la musique, Spotify, streaming audio

AUTOR

MIGUEL AFONSO CAETANO

Escola de Sociologia e Políticas Públicas, ISCTE‑Instituto Universitário de Lisboa Avenida das Forças Armadas, 1649‑026 Lisboa, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 205

Recensões

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 206

Zembylas, Tasos (org.) (2014), Artistic Practices. Social Interactions and Cultural Dynamics

Paula Guerra

REFERÊNCIA

Zembylas, Tasos (org.) (2014), Artistic Practices. Social Interactions and Cultural Dynamics. New York: Routledge, 206 pp.

1 Apesar da familiaridade de muitos com o que se designa por práticas sociais, Tasos Zembylas defende que deve compreender-se o primeiro plano das práticas de maneira bem diferente da forma convencional. De salientar, também, a chamada de atenção do autor sobre a dualidade inerente ao conceito/noção de prática artística – refletida no título da obra e em alguns capítulos desta antologia –, dado este termo possuir um significado específico nas artes (sendo por isso “nativo”): a prática como a forma como o artista compromete o seu próprio trabalho em prol do processo criativo. Na verdade, esta dualidade, manifesta em vários dos contributos que integram este trabalho antológico, legitimará o entendimento de que esta obra é de interesse para os sociólogos das artes e da cultura e para os que apreciem e se interessem pela noção de prática, sejam eles provenientes da sociologia ou de outras áreas.

2 Este livro organiza-se em torno da revivificação e reatualização analítica e conceptual do conceito de prática aplicado ao campo artístico. Concretamente, aborda as práticas artísticas e a sua importância na estruturação das artes contemporâneas. Esta abordagem funda-se na perspetiva de que a criação artística é, mais ou menos, um processo aberto (e) incorporado numa esfera social e cultural. Isto implicará que o processo artístico pressupõe um conhecimento vasto, sobretudo dos seus produtores, criadores e mediadores. Deste modo, assume-se que a investigação sociológica do processo de criação artística começará por questionar qual o modo melhor para se penetrar neste processo. A nossa compreensão sobre a prática artística determina se a

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 207

vemos primeiramente como um produto ou se a entendemos como uma prática, como um termo que refere a uma ordem de atividades conectadas que também possuem uma dimensão ontológica. Neste segundo caso, o objeto de investigação não pode ser exclusivamente discursivo. A lógica da prática não é uma lógica formal; o conhecimento prático deve ser entendido como a capacidade de agir de acordo com uma visão situacional, em vez de um reconhecimento no sentido mais estrito da palavra. A prática ou o conhecimento fundamentado na prática é formado com base na socialização e na experiência, isto é, através da formação, imitação e dos próprios processos de aprendizagem. Este é o alcance deste livro.

3 Tasos Zembylas, mentor e organizador da obra, defende que uma investigação teórica sobre o conhecer artístico implica conceber os processos de criação como objetos complexos, que resultam de uma sinergia de várias formas e elementos de conhecimento – teórico, experiencial, sensorial, etc. Na criação artística, as regras, as convenções e os valores estéticos, as emoções e as motivações – todos componentes indissociáveis do trabalho total final – são integrados. Zembylas nota ainda que existe um certo “esquecimento das práticas” por parte da filosofia e da teoria social. Por um lado, quer no campo das artes, quer no campo das ciências, trabalha-se significativamente ao nível teórico e experimental, apresentando-se resultados sem referência ao processo criativo subjacente aos trabalhos realizados naqueles âmbitos – talvez devido ao facto de estas práticas serem autoevidentes para os autores ou devido à preocupação destes em focarem-se mais nos conteúdos e não no modus operandi inerente aos seus feitos/realizações. Por outro lado, parece haver uma desvalorização do corpo enquanto portador, ele próprio, de agency. Na verdade, a tradição racionalista (de inspiração cartesiana) constrói a racionalidade como uma faculdade intelectual/ cognitiva, meramente formal, removida da vida quotidiana. Mas independentemente destes dualismos filosófico-teóricos (como, por exemplo, a fenomenologia versus pragmatismo), crê Zembylas que é possível enfatizar a primazia da prática e o papel central do corpo como um “veículo inteligível”.

4 A escolha do tema deste livro – as práticas artísticas – decorre, segundo Zembylas, de várias razões. A primeira razão prende-se, precisamente, com o facto de a sociologia das artes ter vindo a evidenciar as estruturas institucionais e as relações de poder que determinam a visibilidade no mundo das artes e, consequente, os processos de construção da reputação artística. Uma segunda razão assenta na premissa de que o conceito de prática será, teoricamente, bastante promissor no que respeita à superação dos dualismos já referenciados e discutidos – ou seja, a superação da oposição indivíduo/sociedade, tornando possível a análise de atividades e discursos sobre os níveis micro e macro, simultaneamente. A terceira razão reside na defesa de que um olhar mais atento sobre as práticas artísticas poderá contribuir para se apreender a dimensão prática da estética, uma vez que esta tem sido, por um lado, no seio da filosofia, perspetivada por vários pressupostos, e, por outro lado, equacionada pela sociologia tendo por base uma perspetiva extrínseca (assumindo-se que representa um discurso hegemónico no qual se estabelece padrões específicos de avaliação), relegando a existência de uma relação intrínseca da mesma com o processo de criação artística.

5 A obra organiza-se em duas partes. A primeira, de cariz mais teórico, estrutura-se em quatro capítulos, a saber: “The Concept of Practice and the Sociology of the Arts”, do próprio Zembylas; “Art Bundles”, de Theodore Schatzki; “Practices of Contemporary Art”, de Nathalie Heinich; e, finalmente, “Artistic Practices as Gendered Practices”, de

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 208

Marie Buscatto. O primeiro contributo explora o significado de prática para vários autores (desde Aristóteles), propondo Zembylas uma estrutura conceptual para a análise da criação artística como um processo complexo, apresentando uma abordagem complementar às teorias existentes que potencie novos temas para a sociologia das artes. Schatzki apresenta uma abordagem prático-teorética da arte. No terceiro capítulo, Heinich aplica o conceito de paradigma ao mundo das artes, identificando três formas coexistentes de conceptualização e de prática (praxis) das artes visuais: a arte clássica (figurativa e narrativa), a arte moderna (que transgride os padrões de figuração tradicional) e a arte contemporânea (que desafia a própria noção de arte). No último capítulo, recapitulam-se as investigações recentes sobre as relações de género nas artes.

6 A segunda parte da obra é composta por sete capítulos de natureza mais analítica e aplicados a diferentes subcampos artísticos particulares: arte contemporânea, cinema, street art, literatura, arte pública, dança e música. Assim, no primeiro capítulo desta componente (quinto da obra), Chris Mathieu e Iben Sandal Stjerne analisam a aquisição, o refinamento e abandono das práticas ao longo das carreiras na produção de um filme; tendo por referência vários estudos empíricos, procuram demonstrar como as constantes negociações sobre o significado construído em torno das boas e más práticas modificam as atuais, adiantando que estas mudanças das práticas se relacionam, em alguns casos, com as mudanças do próprio ambiente/contexto, ao passo que, em outros, dependem de processos internos e resultados decorrentes de determinados caminhos e trajetórias. No capítulo seguinte, Silvana K. Figueroa-Dreher, a propósito da improvisação no jazz, intenta demonstrar o modo como o material musical, a atitude dos músicos e a interação entre eles desempenham um papel fundamental na elucidação/compreensão das práticas de improvisação. No capítulo seguinte, Chiara Basseti interpreta o corpo, com a sua experiência e o seu conhecimento incorporado, como uma dimensão fundamental em todas as práticas humanas; tendo por referência a natureza corpórea da performance da dança.

7 Continuando a percorrer a segunda parte desta antologia, Zembylas centra-se no processo de escrita literária, explorando, primeiramente, o nexus entre a sociologia das artes e a abordagem do conhecimento tácito e discutindo a sua aplicação na investigação empírica sobre o processo artístico criativo; num segundo momento, procura lançar pistas sobre: a criação e integração de ideias criativas, a relevância da experiência, a forma como os escritores enfrentam desafios específicos decorrentes da exposição e da fragilidade dos processos criativos e da influência dos seus pares. No capítulo seguinte, Laurent Thévenot discute as diferentes formas de compromisso em projetos de arte participativa. A partir de um projeto específico, “Um jardim partilhado em Paris”, o autor explora vários aspetos relacionados com aqueles compromissos, a emergência do comunitarismo e formas de justificação de bens comuns. O contributo de Sophia Krzys Acord centra-se na exploração dos processos de preparação e montagem de exposições (curadoria) no sentido de revelar a mediação como resultado de interações que decorrem não só entre os diferentes atores sociais, mas também entre obras de arte, outros objetos e o espaço. Por fim, Graciela Trajtenberg, traz para a discussão a análise de práticas artísticas desenvolvidas à margem do mundo da arte, tomando como exemplo o graffiti, onde as margens respeitam às restrições legais ou à formação artística informal deste domínio específico da prática.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 209

8 Tal como refere Zembylas (2014: 4), esta antologia inclui várias discussões e análises de práticas artísticas, constituindo-se num esforço coordenado para explorar a complexidade e indeterminação dos processos criativos artísticos. Considera-se que a temática desta obra – o estudo das práticas artísticas – é muito conveniente, tendo em conta o crescente interesse nas mesmas, visível em vários campos da sociologia, dos média e da sociedade em geral. Por isso mesmo, nos parece extremamente importante e oportuna a sua publicação, constituindo um contributo muito útil para o alumiamento de trabalhos sociológicos que incidem sobre as práticas artísticas e as práticas sociais em geral, como não acontecia desde os trabalhos de Pierre Bourdieu.

AUTORES

PAULA GUERRA

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 210

Campbell, Miranda (2013), Out of the Basement. Youth Cultural Production in Practice and in Policy

Pedro Quintela

REFERÊNCIA

Campbell, Miranda (2013), Out of the Basement. Youth Cultural Production in Practice and in Policy. Montreal & Kingston/London/Ithaka: McGill-Queen’s University Press, 283 pp.

1 Apesar da grande proximidade dos seus objetos de estudo, são ainda relativamente escassas análises e estudos que ambicionam cruzar as questões da juventude, do emprego e da transição para o mercado de trabalho com o processo de crescente culturalização da economia, no seio do qual a chamada ‘agenda’ criativa tem vindo, nas últimas duas décadas, a atingir um particular protagonismo, seduzindo um número cada vez mais expressivo de jovens. No contexto anglo-saxónico, Angela McRobbie foi pioneira, distinguindo-se ao propor um notável cruzamento entre sociologia da juventude e da cultura, os estudos (sub- e pós-)culturais e a economia da cultura.

2 Out of the Basement resulta da investigação de doutoramento de Miranda Campbell e insere-se justamente nesta linha de investigação, questionando o modo como as políticas públicas têm respondido aos desafios que coloca o facto de um número crescente de jovens construir um trajeto profissional no setor cultural e criativo. Contrariamente às abordagens convencionais, que tendem a estudar o trabalho e emprego em domínios de produção cultural com uma matriz industrial (cinema ou televisão, por exemplo), Campbell debruça‑se sobre diferentes percursos juvenis em transição para a idade adulta, centrando a sua análise em carreiras e projetos culturais que assumem um perfil marcadamente pessoal e/ou que assentam numa base comunitária, de pequena escala, frequentemente desenvolvidos de um modo independente e do‑it‑yourself (ou, como prefere a autora, do‑it‑with‑others).

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 211

3 Através de um aturado trabalho empírico, assente na recolha e análise de histórias de vida, realização de estudos de caso, análise documental de fontes diversificadas e ainda na observação direta, a autora reflete sobre o modo como estes jovens canadianos (dos 18 aos 35 anos) almejam trabalhar no setor cultural e criativo de forma independente e autónoma, criando soluções de autoemprego de pequena escala, construindo e negociando os seus percursos pessoais e profissionais. Simultaneamente, Campbell analisa as políticas públicas – sobretudo nos domínios da cultura, educação, juventude e planeamento urbano –, discutindo de que modo têm potenciado ou constrangido os percursos e iniciativas dos jovens. Ao longo do livro identificam‑se, assim, importantes desafios e avança‑se mesmo com propostas concretas para uma nova geração de políticas públicas.

4 Esta obra está estruturada em três partes – Práticas, Estruturas e Iniciativas –, subdividas em sete capítulos, uma introdução e uma conclusão. Evitando uma divisão excessivamente linear, Campbell propõe um diálogo permanente entre teoria e empiria, convidando o leitor a refletir sobre diferentes problemáticas a partir de histórias de vida, excertos de entrevistas ou estudos de casos que, por sua vez, suscitam uma discussão teórica.

5 A primeira parte do livro centra‑se na discussão de três aspetos‑chave. Um primeiro aspeto diz respeito às grandes transformações em curso nos domínios da produção, distribuição e consumo cultural, dando especial atenção aos impactos da digitalização e uso crescente da Internet na forma como os jovens constroem hoje os seus percursos profissionais e se relacionam com os processos de ensino e aprendizagem. Apresenta‑se, em segundo lugar, uma reflexão em torno da transformação do conceito de juventude, articulando‑o com as profundas mutações do mercado laboral. Num contexto marcado por uma crescente precariedade laboral, explora‑se aqui com particular acuidade o crescente fascínio por formas de emprego menos convencionais, mais autónomas e criativas. Num terceiro ponto, Campbell analisa criticamente o posicionamento periférico da juventude num quadro em que ‘agenda’ criativa domina a esfera política e académica. A autora conclui que as conceções dominantes de indústrias criativas são desadequadas pois, por um lado, tendem a centrar‑se nas esferas mais industrializadas do setor, negligenciando atividades de produção cultural de pequena escala, baseadas em abordagens artesanais e do‑it‑yourself, e, por outro lado, mantêm‑se ainda arreigadas a conceções dicotómicas e puristas de criatividade e de trabalho criativo que não têm correspondência com as conceções e práticas dos jovens estudados.

6 A segunda parte do livro equaciona, em diferentes planos e escalas territoriais (nacional, federal, provincial e municipal), as políticas públicas relacionadas com cultura, educação e juventude. Embora as referências ao Canadá sejam aqui centrais, tecem‑se igualmente análises comparativas com outros contextos internacionais (nomeadamente, com o Reino Unido). Campbell apresenta um diagnóstico crítico que, em geral, evidencia o conservadorismo das instituições públicas, as omissões a questões relacionadas com a juventude e denota ainda um preocupante desfasamento face às necessidades específicas que se colocam ao nível da formação e emprego neste setor. Em alternativa, propõe uma nova abordagem ao planeamento das políticas culturais, mais articulada e transversal, capaz de equacionar as relações entre cultura, juventude, educação e desenvolvimento comunitário. Num contexto de crise económica e social, como o atual, Campbell defende que a juventude e as suas atividades culturais e

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 212

artísticas de escala reduzida e forte enraizamento local deverão beneficiar de um outro reconhecimento político. Argumenta também ser necessário alargar e diversificar os públicos‑alvo de medidas e iniciativas de emprego relacionados com a área da cultura.

7 A terceira e última parte do livro analisa algumas experiências que apontam perspetivas interessantes de novos modelos de organização e resposta aos desafios que hoje se colocam às políticas culturais e educativas. Assim, aborda diferentes iniciativas de jovens que trabalham no setor cultural e criativo e que, de diversos modos, procuram ultrapassar os obstáculos existentes. Para além de identificar boas práticas, Campbell analisa criticamente alguns conceitos‑chave que se tornaram hegemónicos neste campo de intervenção (por exemplo o de rede), refletindo em torno das suas limitações e dos mecanismos de exclusão que têm implícitos. Sublinha a necessidade de revisão de algumas orientações de política pública apresentando, nestes três últimos capítulos, várias recomendações concretas para a melhoria dos instrumentos públicos de apoio a jovens produtores e organizações culturais. Nas conclusões, Campbell reitera a urgência de aprofundar o conhecimento das experiências e necessidades concretas dos jovens que pretendem trabalhar no setor cultural e criativo, considerando que este tipo de análises e estudos devem constituir um veículo fundamental para a revisão e aperfeiçoamento das políticas públicas. Neste sentido, defende um posicionamento mais interventivo das ciências sociais, capaz de informar criticamente as políticas públicas através de investigações atualizadas sobre juventude e culturas juvenis, processos de transição para o mercado de trabalho e indústrias culturais e criativas.

8 Em suma, este trabalho constitui um contributo muito relevante ao discutir, de forma rigorosa e original, um importante conjunto de questões relacionadas com políticas públicas, juventude e emprego em setores culturais e criativos. Out of the Basement, pelo seu esforço de articulação e reflexão crítica, a partir de fontes técnico-científicas diversificadas e elementos empíricos originais, disponibiliza ao leitor inúmeras pistas para reflexão e intervenção que certamente poderão ser úteis quer a investigadores académicos, quer a quadros técnicos e decisores políticos.

AUTORES

PEDRO QUINTELA

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 213

Bártolo, José (coord.) (2015), Design Português

Pedro Quintela

REFERÊNCIA

Bártolo, José (coord.) (2015), Design Português. Vila do Conde: Verso da História, 8 volumes.

1 Assistiu-se, nas últimas décadas, a um amplo e crescente reconhecimento da relevância política, económica, cultural e social do design. Contudo, em Portugal este processo tem sido substancialmente mais lento, comparando nomeadamente com outros países europeus, o que se poderá justificar pelos atrasos e as debilidades crónicas que caraterizam o desenvolvimento do seu tecido industrial, pelo caráter relativamente recente do exercício desta profissão e ainda pelas dificuldades em afirmar a sua relevância e autonomia disciplinar. Estes fatores ajudam a explicar a posição secundária a que foi votada a análise histórica do desenvolvimento do design em Portugal até à década de 1990 – se excetuarmos as incursões de historiadores como José-Augusto França ou Manuel Rio-Carvalho em áreas relacionadas com o design (como as artes decorativas, o desenho e a caricatura) –, quando surgem os contributos pioneiros de Maria Helena Souto (1991)1 e Rui Afonso Santos (1995).2 Sobretudo desde 2000, com o desenvolvimento do ensino e investigação em design em Portugal, inicia-se um processo de “patrimonialização” do design nacional (Quintela, 2014)3 que se carateriza, entre outros aspetos, pelo surgimento de vários trabalhos de análise histórica da disciplina, proliferando sobretudo abordagens monográficas ou delimitadas a certos períodos históricos.

2 Éjustamente neste quadro queDesign Português adquire um especial interesse, assumindo explicitamente “o objetivo de colmatar a quase total ausência de obras de referência sobre a história do design contemporâneo em Portugal”. Composta por oito volumes, semanalmente distribuídos com o jornal Público, entre março e maio de 2015, esta publicação coletiva envolveu investigadores de diferentes gerações, filiações

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 214

institucionais e formações disciplinares (história de arte, design, ciências da comunicação). Estruturada cronologicamente, abrange o extenso período de 1900 a 2015, incidindo os seis volumes iniciais em duas décadas particulares e os dois últimos tomos dedicando-se à apresentação de uma cronologia detalhada.

3 Propõe-se uma leitura sequencial da evolução do design em Portugal, combinando a análise do desenvolvimento da disciplina e seus profissionais com o enquadramento do contexto nacional do ponto de vista social, cultural e económico, identificando fatores externos com impacto relevante no desenvolvimento do campo, e ainda considerando as grandes tendências e movimentos internacionais contemporâneos no design (e das artes em geral), no sentido de detetar influências e sintonias. Pretende-se, assim, compreender cada época, identificando os principais intervenientes (designers, ateliers, empresas, etc.), tipologias de encomendas/trabalhos desenvolvidos, evoluções ao nível do ensino e da formação, contextos de representação e discussão pública acerca da disciplina e da sua importância (económica, social, cultura), entre outros aspetos.

4 O resultado global é bastante satisfatório, apresentando uma análise sistemática da evolução do design em Portugal ao longo do século XX e XXI, amplamente enriquecida por um vasto conjunto de imagens, algumas delas de difícil acesso. Como seria expetável, numa obra com estas caraterísticas, não se apresentam leituras históricas particularmente inovadoras, resultantes de investigações originais e aprofundadas, mas uma síntese histórica que recorre a uma multiplicidade de fontes de informação (embora, lamentavelmente, nem sempre devidamente referenciadas nas notas bibliográficas). Contudo, este aspeto não torna o resultado final menos interessante, sendo de referir o bom equilíbrio de linguagem que aqui se encontra, capaz de comunicar, de forma simultaneamente apelativa e rigorosa, com um público alargado – aspeto fundamental numa publicação distribuída com um jornal de grande tiragem. Design Português constitui, por isso, um contributo importante para enriquecer e alargar o debate acerca da história do design em Portugal.

5 Importa, contudo, sublinhar certos desequilíbrios que parecem resultar da opção da divisão da obra em volumes, segmentando a análise por pares de décadas. Esta leitura histórica tem, naturalmente, um certo grau de artificialidade, já que muitos destes processos têm características mais profundas, prolongando-se no tempo e exigindo, assim, uma leitura mais alargada. Não admira, portanto, que sejam frequentes as remissões para aspetos referidos em volumes anteriores ou posteriores, o que cria algumas redundâncias e complexifica a leitura.

6 Étambémdiscutível– ainda que compreensível, atendendo ao caráter introdutório da obra– a opção por centrar aanálise em percursos individuais (dedesigners ou atelier), acabando por retirar espaço a outro tipo de leituras, porventura menos “heroicas”, que caraterizam muitas das abordagens à história do design (cf. Julier, 2008: 43-47),4 mas não menos interessantes. Observando o período mais contemporâneo, por exemplo, parece haver uma clara insistência em focar os percursos de alguns designers gráficos com trabalhos para clientes ligados às artes e à cultura, descurando outras dimensões do trabalho nesta área, porventura menos reconhecidas entre pares mas não menos fundamentais, ligadas à criação de elementos de comunicação visual de cariz mais quotidiano. Com efeito, se a comunicação marcadamente “comercial” está muito presente na análise das décadas iniciais do século XX, esta vai-se tornando cada vez mais rarefeita à medida que nos aproximamos do século XXI – quando, paradoxalmente,

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 215

talvez nunca como hoje a publicidade e o marketing tenham estado tão presentes na nossa sociedade.

7 Por outro lado, se a aposta em abordar os períodos históricos mais contemporâneos constitui certamente um dos aspetos mais interessantes e diferenciadores deste trabalho, contém alguns riscos que talvez pudessem ter sido mais ponderados. Em particular, a leitura do volume dedicado ao período mais recente (2000/2015) revela, por vezes, a necessidade de uma melhor explicitação das opções tomadas na seleção de obras, projetos, iniciativas, ateliers e designers. Este esforço argumentativo teria sido importante para evidenciar o distanciamento do autor, José Bártolo, relativamente a um período em que tem estado intensamente envolvido enquanto professor e investigador universitário, crítico, comissário, blogger e editor.

8 Por último, a ausência de uma conclusão constitui outro ponto menos positivo, pois permitiria uma melhor articulação das muitas questões e reflexões levantadas pelos autores, evidenciando algumas das grandes linhas de força para pensar o processo de emergência, desenvolvimento e institucionalização do design em Portugal. Esta síntese final poderia ainda tornar mais clara a leitura comparativa com o contexto internacional.

9 Apesar dos aspetos anteriormente referidos, importa concluir destacando novamente o notável trabalho desenvolvido por todos os autores que colaboraram em Design Português, sublinhando que esta obra constitui um ponto de partida bastante útil para quem pretenda aprofundar o estudo desta temática, abrindo perspetivas de pesquisa para um conjunto de novas discussões e debates.

NOTAS

1. Souto, Maria Helena (1991), “‘Design’ em Portugal 1980-1990 – Dispersão Pluralista”, in José- Augusto França (programação e introdução), Portugal moderno. Artes e letras. Lisboa: Pomo, 99-117. 2. Santos, Rui Afonso (1995), “O design e a decoração em Portugal, 1900-1994”, in Paulo Pereira (dir.), História da Arte Portuguesa, Vol. III – Do barroco à contemporaneidade. Lisboa: Círculo de Leitores, 437-505. 3. Quintela, Pedro (2014), “Processos de ‘patrimonialização’ do design em Portugal: algumas reflexões”, Cabo dos Trabalhos, 10, 1-21. Consultado a 18.04.2016 em http:// cabodostrabalhos.ces.uc.pt/n10/documentos/9.1.2_Pedro_Quintela.pdf.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 216

AUTORES

PEDRO QUINTELA

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 217

Espaço Virtual

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 218

Título da página eletrónica: Keep It Simple, Make It Fast! URL: http://www.punk.pt/pt/

Ana Sofia Oliveira

1 O punk tem merecido cada vez mais atenção, quer a nível internacional, quer a nível nacional. Seja a partir do olhar jornalístico, seja por parte de projetos artísticos e culturais que, considerando diferentes contextos geográficos e socioculturais, tem emergido todo um conjunto de iniciativas a fim de contribuir para uma melhor e mais completa compreensão de um fenómeno que extravasa a esfera musical.

2 Em Portugal, desde meados de 2012, o projeto de investigação Keep it Simple, Make it Fast! (KISMIF)1 tem vindo a compilar informação e a produzir conhecimento sobre uma realidade que, de uma forma geral, é ainda pouco conhecida: a cena punk portuguesa desde a sua formação até aos dias de hoje (1977-2012). A abordagem é transdisciplinar (Antropologia, História, Psicologia, Comunicação, Jornalismo e Sociologia) e articula tempos e espaços diversos, de forma sincrónica e diacrónica, de modo a levantar o véu que oculta um objeto de estudo manifestamente complexo e socialmente pouco visível.

3 A plataforma digital Keep It Simple, Make It Fast! é um dos produtos deste projeto de investigação. Assenta numa lógica de partilha da informação recolhida e produzida e numa vontade de dar a conhecer a história de um fenómeno cultural tão multifacetado como o punk. É um espaço de work in progress e do-it-yourself, no sentido em que é continuamente alimentado pelos membros da equipa do projeto, mas também por todos aqueles que, possuindo textos e narrativas referentes ao trajeto do punk português, os queiram partilhar.

4 Para além de informações relativas ao projeto, como as referentes à equipa, às linhas de investigação ou aos produtos (destaque para o documentário produzido no âmbito do projeto – “Bastardos. Trajetos do punk português (1977-2014)”), é possível encontrar vários artigos sobre bandas, fanzines ou editoras que marcaram e continuam a marcar a história do punk, bem como referência a livros recentemente publicados e que abordam não apenas o punk, mas também outras cenas musicais underground, a nível nacional e internacional. Há também um espaço dedicado às duas edições da conferência

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 219

internacional e da summer school realizadas em 2014 e 2015, no âmbito do projeto. A plataforma digital inclui ainda um link para um arquivo do punk português, que conta com digitalizações de diferentes tipos de material: artwork e memorabília, como bilhetes e cartazes de concertos/festivais; capas de CD, vinis, K7; fanzines; e fotografias, entre outros.

5 Considerando o conjunto de informações e de referências que a plataforma digital Keep It Simple, Make It Fast! disponibiliza, parece-nos que é de toda a pertinência para todos aqueles que se interessem, seja numa perspetiva de investigação, seja numa perspetiva informativa, pelo movimento punk e, em sentido mais amplo, pelas culturas urbanas e suas manifestações musicais. Ao mesmo tempo, o seu caráter colaborativo parece‑nos um bom exemplo de aproximação entre a academia e a sociedade em geral, ao promover a partilha e o acesso ao conhecimento produzido, e também o diálogo entre vivências distintas mas complementares.

NOTAS

1. Projeto cofinanciado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/CS-SOC/118830/2010) e por fundos FEDER (através do programa operacional COMPETE). O KISMIF é desenvolvido no Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto (IS|UP), em parceria com o Griffith Centre for Cultural Research (GCCR), a Universitat de Lleida (UdL), a Faculdade de Economia da Universidade do Porto (FEP), a Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), a Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), as Bibliotecas Municipais de Lisboa (BLX), a Raging Planet e a Anoise Records.

AUTOR

ANA SOFIA OLIVEIRA

Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), DINÂMIA’CET Avenida das Forças Armadas, Edifício ISCTE, 1649-026 Lisboa, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 220

Título da página eletrónica: PROFestival URL: http://profestival.net/

Pedro Quintela

1 Os festivais têm vindo, nas últimas décadas, a assumir uma crescente relevância nas estratégias de desenvolvimento socioeconómico de cidades e regiões, estando frequentemente associados a estratégia de marketing urbano e territorial. Na verdade, atualmente assiste-se a um crescente fenómeno de “festivalização da cultura” que se carateriza não só pelo seu caráter global mas também pela sua profunda variedade e diversidade, abrangendo as mais diversas áreas artísticas, culturais, lúdicas e criativas em sentido cada vez mais amplo.

2 O PROFestival constitui uma plataforma digital que foi desenvolvida no âmbito do Programa de Mestrado em Gestão Cultural da Universidade de Barcelona e é gerida pela Fundação Bosch i Gimpera (que está associada à Universidade de Barcelona). Conta ainda com o apoio do Ministério da Educação, Cultura e Desporto de Espanha, do Instituto de Cultura de Barcelona e Ibertur, bem como com a colaboração de vários diretores, programadores e outros profissionais ligados à organização de festivais.

3 Neste website pretende-se, por um lado, promover os festivais artísticos (de música, artes visuais, artes performativas, literatura, etc.), no plano nacional e internacional. Para tal, o PROFestival disponibiliza um mapeamento georreferenciado de festivais que se realizam em Espanha, que constitui um poderoso motor de busca, uma secção dedicada à oferta de programação de festivais, um calendário de eventos e publica ainda, com regularidade, um boletim informativo. Além disso, este portal online tem ainda associado um blogue onde são regularmente disponibilizados artigos, entrevistas e outro tipo de notícias relacionadas com o universo de festivais e com as transformações associados ao processo de “festivalização da cultura”, a que anteriormente aludíamos, refletindo detalhadamente acerca dos desafios que se colocam à gestão cultural e aos processos de formação dos profissionais do setor cultural e criativo.

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 221

4 O PROFestival procura ainda, por outro lado, contribuir para melhorar as condições de trabalho dos profissionais do setor (programadores, produtores, técnicos, assessores de comunicação, etc.), disponibilizando o acesso a um conjunto de “ferramentas” técnicas disponível numa área reservada a profissionais: bases de dados, boletins informativos, ofertas de emprego e outros recursos (bibliografia, vídeos, estudos e estatísticas, etc.). De forma geral, a informação acessível neste portal encontra-se bastante bem organizada, dando a possibilidade de os utilizadores fazerem uma pesquisa dinâmica, na medida em que permite uma busca por diferentes “pontos de entrada”: o nome do festival, a sua tipologia, a localização geográfica ou ainda através de palavras-chave. Embora parte da informação esteja disponível apenas a quem se inscrever como profissional, qualquer leitor tem a possibilidade de aceder a um conjunto bastante interessante de informações relacionadas com a diversidade de oferta de festivais, as suas características, audiências, etc. Considerando o conjunto de informações e de referências que o PROFestival disponibiliza, tendo sobretudo por referência o universo de Espanha, parece-nos que este constitui um motor de busca digital com grande interesse para todos aqueles que se interessem, quer numa perspetiva de investigação, quer numa perspetiva lúdica, pela temática dos festivais e, em sentido mais amplo, das cidades e culturas urbanas.

AUTOR

PEDRO QUINTELA

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra Colégio de S. Jerónimo, Largo D. Dinis, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 222

Título da página eletrónica: Dangerous Minds URL: http://dangerousminds.net/

Paula Guerra

1 O espaço virtual Dangerous Minds apresenta-se como um compêndio de “novas e estranhas” ideias, novas formas de arte, novas abordagens a questões sociais e novas informações/notícias relacionadas com a cultura pop em geral emergente depois da Segunda Grande Guerra. Com uma atividade diária de aproximadamente quatro posts, este espaço assume como missão a seguinte: “Achamos que os seres humanos são muito estranhos e muitas vezes totalmente hilariantes. Nós gostamos muito de coisas estranhas e inexplicáveis. Nós acreditamos que as coisas têm de mudar e rapidamente. Tem de ser algo acerca do bem comum, senão não interessa. Nós gostaríamos de pedir sugestões acerca de coisas engraçadas/sérias aos nossos leitores de elevado nível de inteligência. Nós somos a vossa distração favorita.” (https://www.facebook.com/ DangerousMindsBlog/timeline). Assim, sob o turbilhão da cultura pop, este espaço permite um mergulho diário constante nas suas manifestações, concretizando uma tarefa bem difícil: a de disseminar acontecimentos, artefactos e vidas marcadas por forte volatilidade, velocidade e efemeridade.

2 Atualmente, conta com o contributo de 16 pessoas que, com maior ou menor regularidade, escrevem sobre aqueles que são os seus interesses e sobre aquilo que de mais peculiar tiverem conhecimento na esfera da cultura pop. A ideia base não é uma espécie de recomendação dos artigos ou dos temas visados mas, antes, a disponibilização da informação e uma simples chamada de atenção sobre a mesma. E, como é habitual, a narrativa combina acasos e predestinações, ortodoxias e dissidências, coisas que foram novas e envelheceram, coisas que estavam perdidas e foram recuperadas, memórias, saberes e emoções, numa constante elaboração e reelaboração, intertextualidade e interpretação.

3 A função de arquivo assumida por este espaço é da máxima importância. Assim, num arquivo que remonta a maio de 2009, podemos encontrar inúmeros artigos/publicações que se enquadram num variado leque temático, abrangendo uma panóplia de 53 tópicos relevantes para as culturas urbanas, tais como: a girl’s best friend is her guitar, activism,

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 223

advertising, advertorial, american‑style (Republican) Christianity, amusing, animals, animation, art, belief, books, class, war, crime, current events, dance, design, drugs, economy, fashion, featured, feminism, food, games, heroes, hip‑hop, history, hysteria, idiocracy, kooks, literature, media, movies, music, occult, one-hit wonders, politics, pop culture, punk, queer, r.i.p., race, science/tech, sex, sports, stupid or evil?, superstar, television, the wrong side of history, they hate us for our freedom, thinkers, unorthodox. O tipo e a profusão de tópicos traduzem bem o seu propósito, sistematizado da seguinte forma: “Dangerous Minds é uma compilação F0 do novo e do estranho 2D novas ideias, novas formas de arte, novas abordagens a questões sociais, e novas descobertas da cultura pop. A nossa política editorial, como a definimos, faz com que muitas vezes os conteúdos reflitam os interesses, as vontades e as peculiaridades de cada autor que contribui. Mas isso é relativo: muitas vezes a ideia é apenas ‘Isto foi o que tal e tal disseram, deem uma olhada e digam o que pensam’. Isso é importante: nós não defendemos tudo aquilo que está aqui presente; estamos sobretudo a dizer ‘Aqui está’.” (https://www.facebook.com/DangerousMindsBlog/timeline).

AUTOR

PAULA GUERRA

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 224

Título da página eletrónica: The Past is Unwritten URL: https://thepastisunwritten.wordpress.com/

Paula Guerra

1 A música e as diferentes cenas musicais, assim como as suas implicações em diferentes esferas da sociedade, têm vindo a adquirir uma importância crescente que se traduz, entre outros aspetos, na proliferação de trabalhos científicos sobre as mesmas. A criação do blogue The Past is Unwritten é reflexo disso mesmo, como deixa antever o seu subtítulo: “Digging Through the History of the American Underground Music Scene”. O blogue, que funciona como uma espécie de fanzine online, foi criado, no início de 2010, por Rylan Kafara durante a sua investigação no âmbito de um mestrado em História Americana. O principal objetivo era, na altura, contribuir para uma mais completa e matizada compreensão acerca das cenas musicais americanas no espetro do punk e do que é considerado música underground, alternativa e independente, atendendo igualmente às suas implicações sociais, culturais e políticas. Ao desenvolver uma tese sobre um tópico em relação ao qual toda a gente sabe algo e tem uma opinião, Rylan Kafara considerou ser uma boa ideia ter um blogue onde todos pudessem partilhar a informação que possuíam, assim como trocar experiências e discutir opiniões. Simultaneamente, esta era uma forma de reconhecer as ideias e o conhecimento das pessoas. Nas suas próprias palavras: “A intenção deste blogue é trabalhar na atmosfera de um ‘entendimento nuanceado’, em especial no que toca às cenas punk/underground/ alternativas/independentes, e às suas implicações socio-políticas e culturais. Estou a escrever a minha tese para um mestrado em História Americana sobre esse assunto, e já que é um tópico de que toda a gente sabe alguma coisa, e muito provavelmente, sobre o qual toda a gente tem uma opinião, achei que era uma boa ideia para um blogue. Assim, posso ‘roubar as ideias’ das pessoas e ficar com um curso à custa disso... quer dizer, citar, obviamente, citar cuidadosamente as pessoas que expressam as ideias, dando-lhes o devido crédito e reconhecimento, garantindo o respeito pelo seu esforço. Obviamente.” (https://thepastisunwritten.wordpress.com/about/).

2 Hoje a tese, intitulada “This is Not For You: The Rise and Fall of Music Milieux in Seattle and the Pacific Northwest, 1950s-1990s”, está terminada e defendida, mas o interesse e

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016 225

a investigação em torno da música, da cultura pop e da história prevalecem, o que justifica a manutenção do blogue. Para além do livre acesso à tese e às publicações do autor, encontramos referências a outros espaços virtuais relacionados com o tema, bem como artigos a respeito do underground, do punk e da sua dimensão política e de resistência ou sobre a cena musical local (Edmonton, Alberta, Canadá).

3 Quanto ao nome, por um lado é uma homenagem a Joe Strummer e à sua ideia “the future is unwritten”. Por outro lado, é o reiterar de que esta ideia pode ser aplicada também ao passado. Assume-se que as ideias e as opiniões sobre “o que realmente aconteceu” na História constituem algo aberto ao debate e ao confronto de interpretações. Contrariando a crença popular, o “quê” e o “quando” podem ser menos importantes do que o “como” e o “porquê”. Neste sentido, novas e diferenciadas informações podem contribuir para uma compreensão matizada, e por isso mais completa, do passado. É, essencialmente, nesta premissa que assenta o blogue The Past is Unwritten: na partilha de gostos, de memórias, de afinidades, de interesses, de emoções – como tem acontecido um pouco por todo o lado com as publicações independentes.

AUTOR

PAULA GUERRA

Faculdade de Letras da Universidade do Porto Via Panorâmica, s/n, 4150-564 Porto, Portugal [email protected]

Revista Crítica de Ciências Sociais, 109 | 2016