Venda proibida. produção patrocínio

O cinema de

Organização Leonardo Luiz Ferreira O Cinema de Hal Hartley Ferreira, Leonardo Luiz (org.)

1ª. Edição Janeiro de 2018

Produção editorial e revisão: Leonardo Luiz Ferreira Projeto gráfico: Guilherme Lopes Moura

Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem prévia autorização dos organizadores. 23 de janeiro a 4 de fevereiro de 2018

A CAIXA é uma empresa pública brasileira que prima pelo respeito à di- versidade, e mantém comitês internos atuantes para promover entre os seus empregados campanhas, programas e ações voltados para disseminar ideias, conhecimentos e atitudes de respeito e tolerância à diversidade de gênero, raça, orientação sexual e todas as demais diferenças que caracterizam a sociedade. A CAIXA também é uma das principais patrocinadoras da cultura brasileira, e destina, anualmente, mais de R$ 80 milhões de seu orçamento para patrocínio a projetos nas suas unidades da CAIXA Cultural além de outros espaços, com ênfase para exposições, peças de teatro, espetáculos de dança, shows, cinema, festivais de teatro e dança, e artesanato brasileiro. Os projetos patrocinados são selecionados via edital público, uma opção da CAIXA para tornar mais de- mocrática e acessível à participação de produtores e artistas de todo o país. A mostra O Cinema de Hal Hartley é uma retrospectiva inédita de um dos diretores norte-americanos mais cultuados dos anos 90. Hal Hartley é um dos principais nomes do cinema independente norte-americano do fim dos anos 80 e 90, considerado uma figura-chave de um movimento que atingiu vários países. Ao patrocinar mais esta mostra para o público carioca, a CAIXA reafirma sua política cultural de estimular a discussão e a disseminação de ideias, pro- mover a pluralidade de pensamento, mantendo viva sua vocação de democra- tizar o acesso à produção artística contemporânea.

Caixa Econômica Federal

Curadoria

O meu primeiro contato com o cinema de Hal Hartley surgiu na época em que as locadoras no Brasil estavam no auge da popularidade. O VHS tinha chegado para ficar em meados dos anos 80 e já era uma opção barata de en- tretenimento em relação à sala de cinema. Era um momento em que as distri- buidoras também investiam em títulos alternativos e no cinema de autor: há ainda hoje uma série de filmes importantes lançados em fitas de vídeo e nun- ca relançados em formato digital, DVD/Blu-ray. Devemos lembrar também que não existia a Internet, com acesso fácil da atualidade, e que as informa- ções sobre determinado filme ou diretor só chegavam filtradas pela imprensa local ou através de pesquisa e interesse nas locadoras de bairro. Portanto, nos anos 90, eu acompanhei de perto uma nova geração de cineastas norte-ame- ricanos que foram chegando aos poucos nos cinemas e, consequentemente, lançados em VHS — onde eu tinha a liberdade para ver e rever as obras, gravar e marcar cenas. É nesse panorama que “descubro” Hal Hartley em uma série de lançamentos consecutivos em home vídeo: A Incrível Verdade, Confiança, Simples Desejo, Amateur e Flerte. O cinema de Hal Hartley deixou marcas profundas em mim, tanto que quan- do pude passei a colecionar as fitas em VHS, DVDs e a importar títulos que nem foram lançados por aqui. É nesse momento que tenho contato com o seu média-metragem , uma de suas pérolas esquecidas por cinéfilos e críticos exatamente por conta de sua duração — o que fez com que circulasse pouco por não se tratar de um longa — e difícil acesso para download — até hoje também nunca surgiu uma legenda completa em português da obra, algo que a retrospectiva vai corrigir. Para mim está entre os dez filmes mais im- portantes da minha vida, aquele divisor de águas, que muda, de certa forma, a sua maneira de pensar e observar o mundo. Surviving Desire é até hoje o filme que mais assisti de maneira consecutiva em casa: decorei as falas e cenas, como se o personagem, o professor de literatura apaixonado por uma de suas alunas, se relacionasse diretamente comigo. Há um pouco de mim nele e vem daí essa universalidade dos temas de Hartley. Assim como tantos outros cineastas foram importantes na minha forma- ção, entre eles Manoel de Oliveira, Stanley Kubrick, John Carpenter e Eric Rohmer, Hartley se transformou numa fonte de inspiração: quando “crescer” quero fazer filmes assim. Então, até o momento, o que fiz atrás das câmeras foi com a marca da independência, de manter-se fiel ao meu pensamento ci- nematográfico, mesmo que tudo aponte para a direção contrária. O projeto de uma retrospectiva colocando em reflexão e análise a filmogra- fia de Hal Hartley surgiu com essa vontade de que mais pessoas conhecessem o seu trabalho e (re) descobrissem um autor dos mais reverenciados nos anos 90, chamado de ícone do cinema independente, que amargou fracassos de bilheteria e reavaliação negativa da crítica especializada dos anos 2000 em diante, a ponto de chegar a uma questão: quem é Hal Hartley? Para respon- der, nada melhor do que os filmes falarem por si só. E deixando de lado os prêmios, o legado que fica é, sem dúvida, a obra, que permanece viva, filosó- fica e pulsante na tela. É um cinema de ambiguidades, ironias, mas também de enorme apreço ao texto, as palavras como guias da ação. Como diria , um dos personagens emblemáticos de Hartley: “às vezes, nós temos que ir para a obscuridade para nos tornamos depois gênios.” A retrospectiva O Cinema de Hal Hartley só tomou forma definitiva quando em outubro de 2015 o cineasta veio ao Festival do Rio para ministrar uma mas- terclass de direção e apresentar seu mais recente longa-metragem, . Através de um amigo em comum, eu consegui marcar um encontro com o reali- zador para apresentar o projeto de mostra e afirmar que esse sonho acalentado por alguns anos iria para o papel e deste para a tela em pouco tempo. Contando com o apoio total de Hartley — que só não está presente novamente no Rio de Janeiro por conta de compromissos profissionais —, o ciclo se completa em duas semanas cercadas de filmes, eventos e palestras na Caixa Cultural.

Leonardo Luiz Ferreira Curador

Leonardo Luiz Ferreira é crítico de cinema, cineasta e jornalista. Membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ), com passagens por diversos veículos, entre eles, Revista Paisà, Filme B e www.criticos.com.br, e colaborações na Revista Variety, Contracampo e no Jornal do Brasil. Coorganizador do livro John Carpenter: O Medo é só o Começo (Ed. Bookmakers). Codiretor do longa- metragem Chantal Akerman, de cá (2010) e da série Cinema de Bordas (Canal Brasil, 2013). Curador da retrospectiva O Cinema de Nicolas Klotz: A França dos Excluídos e O Cinema de Hal Hartley, entre outros trabalhos. Diretor e produtor do curta Paisagem Interior (2014) e do longa NK + EP (2015). Sumário

Biografia · 13

Fortuna Crítica

Médias e Longas-metragens A Incrível Verdade por Marcelo Janot · 22 Confiança por Filipe Furtado · 26 Surviving Desire por Leonardo Luiz Ferreira · 30 Simples Desejo por Sérgio Alpendre · 34 Amateur por Fernando Oriente · 38 Flerte por Susana Schild · 44 As Confissões de Henry Fool por Marcelo Miranda · 48 O Livro da Vida por Raphaela Ximenes · 52 Beatrice e o Monstro por Beatriz Saldanha · 56 por Camila Vieira · 60 por Rodrigo Fonseca · 64 Meanwhile por Octavio Caruso · 68 My America por Carol Almeida · 72 Ned Rifle por Mario Abbade · 76

Curtas-Metragens por Fernando Oriente e Leonardo Luiz Ferreira Ambição · 80 Teoria da Conquista · 81 Opera No 1 · 82 NYC 3/94 · 83 The Other Also · 84 The New Math(s) · 85 Kimono · 86 The Sisters of Mercy · 87

O Cinema de Hartley através da imprensa brasileira · 91

Entrevistas por Rodrigo Fonseca Hal Hartley · 109

Parker Posey · 113

Artigos Análise do roteiro de Confiança por Sylvio Gonçalves · 117 O Cinema de Hal Hartley por Steve Rybin · 121

Sobre os autores · 126 Créditos · 131 Biografia Hal Hartley nasceu em Lindenhurst, Long Island, Estados Unidos, no dia 3 de novembro de 1959. Os pais Eileen Flynn e Harold Hartley, de raízes ca- tólicas, eram pertencentes à classe média trabalhadora e criaram Hal e mais dois irmãos e uma irmã num subúrbio localizado à uma hora de Nova Iorque. Filho de metalúrgico, Hartley pagou os estudos trabalhando cedo em oficinas e lojas de departamento. Essa observação do universo de uma pequena cida- de e da classe média americana, ele vai traduzir em imagens e textos, anos depois, nos seus filmes. Após se graduar em Lindenhurst High School, em 1977, manifestou o seu primeiro interesse em arte com a pintura. Ele passou a frequentar a Massu- chetts College of Arts, em Boston, onde se aproximou do cinema e fez um cur- so eletivo relacionado a filmagem em Super 8. Após o período entre 1977-78, Hartley retornou para casa para conseguir mais dinheiro voltado aos estudos, o que levou a sua matrícula na State University of , na Purchase Film School, em setembro de 1980. É nesse momento que ele conhece um grupo de atores e técnicos cinematográficos que vão trabalhar com o cineasta no futuro, incluindo o diretor de fotografia Michael Spiller, que fotografa oito longas do diretor. A graduação da universidade acontece em 1984, e depois de anos como assistente de produção e direção, ele abre a sua própria produtora, True Fiction Pictures, para realizar o sonho de cinema. O seu filme de conclusão de curso, o média Kid (1984), foi rodado em 16mm e tem como protagonista um jovem que quer sair a todo custo de sua pequena

O Cinema de Hal Hartley | 13 cidade, algo que espelha o sentimento compartilhado com personagens dos longas A Incrível Verdade e Confiança. O cineasta ficou obcecado em concluir o projeto e partir para novos horizontes. O curta-metragem The Cartographer´s Girfriend (1987) surge de um roteiro escrito na época da graduação com algu- mas novas ideias a partir da convivência em uma cidade grande. É a primeira aparição de um tema que vai acompanhá-lo por toda a carreira: o amor e o mistério das mulheres. Hartley sabia que havia chegado o momento de dirigir um longa-metragem, mas não tinha expectativa de conseguir financiamento. Após alguns trabalhos de diversos tipos e a direção de mais um curta, Dogs (1988), além da feitura de roteiros mais comerciais — como um de gênero terror para embarcar numa onda da década —, um produtor disse que conseguiria levantar uma parte do orçamento necessário para a produção de um longa. Então, com apenas 62 mil dólares de orçamento num roteiro enxuto, com atores bem ensaiados, locações definidas e sem muitas repetições de tomadas, Hal Hartley produz e dirige AIn - crível Verdade. O filme faz sucesso no circuito independente e a produção fatura, pelo menos, 500 mil dólares acima de seu custo total. E o principal, o diretor faz exatamente o projeto que queria, sem concessão alguma. Estão ali todas as mar- cas do seu cinema, como uma carta de princípios: a crise de identidade; o exis- tencialismo dos personagens; a dificuldade em amar; o humor negro; a trilha sonora de rock e minimalista; tiradas filosóficas e sobre a cultura pop; e ações tomadas tanto por corpos em movimento no quadro quanto diálogos rápidos. O estabelecimento de seu nome no mercado de cinema independente ameri- cano acontece de maneira rápida e avassaladora: ele produz, dirige, roteiriza e faz a trilha sonora de uma série de curtas, médias e longas em um curto espaço de tempo. A consagração vem através de prêmios em festivais — o mais notá- vel a Palma de Ouro de melhor Roteiro em Cannes por As Confissões de Henry

14 Fool — e aclamação da crítica internacional. No Brasil, ele recebe o prêmio de público na Mostra de São Paulo por Confiança. E seus filmes passam a figurar entre os mais desejados em festivais no Rio de Janeiro e São Paulo. Representante direto de uma nova cena indie, cujos autores filmam universos particulares com baixos orçamentos, que surge com força nos Estados Unidos, mesmo sem nunca estar atrelado a um movimento, Hartley tem como pares de geração Quentin Tarantino, Kevin Smith, Tom DiCillo, Spike Lee, Todd Haynes, Richard Linklater, entre muitos outros que surgiram no mesmo período e che- garam a ser denominados como “filhos de Sundance”. O festival dirigido por Robert Redford, que foi responsável por lançar carreiras de jovens cineastas apostando na autoria e independência de realização. Em 1998, Hartley continua a quebrar barreiras e abraçar o novo ao dirigir seu primeiro projeto em digital, O Livro da Vida; e passa a adotar a técnica desde então trazendo um frescor estético a sua filmografia. Obra que integra o coletivo de produções 2000 visto Por..., com filmes de diversos países refletindo sobre a chegada de um novo século. Na sequência dirige a sua única produção para um grande estúdio, a United Arts, com Beatrice e o Monstro. A releitura de A Bela e a Fera tem passagens rodadas na Islândia e conta com produção exe- cutiva de Francis Ford Coppola, através de sua produtora American Zoetrope. Após amargar uma recepção negativa, Hal se dedica ao teatro com a peça Soon e a curtas-metragens cada vez mais experimentais. O ícone da independência permanece atento ao mercado e investe nas re- des sociais como meio de difusão de seu trabalho e de contato com possíveis apoiadores de obras. Primeiro lança uma campanha bem-sucedida no Kicks- tarter para que seja produzido e lançado em DVD/Blu-ray o filme Meanwhile. Tendo em vista o retorno positivo propõe um valor para que o fechamento da trilogia Henry Fool, que recebeu o título de Ned Rifle, saia do papel e ganhe as

O Cinema de Hal Hartley | 15 telas através de um financiamento coletivo. Mais uma vez consegue arreca- dar o montante necessário e passa a compreender as redes sociais como uma ferramenta de independência: “pirataria é uma das razões principais porque faço menos filmes nos dias de hoje – não existe como ganhar dinheiro do tra- balho em cinema se muitas pessoas continuam passando suas obras de graça. O financiamento coletivo é uma forma de sobrevivência do artista”, declarou Hartley em entrevista ao curador da mostra. O passo seguinte foi a chegada a TV por demanda com a direção de alguns episódios para a série Red Oaks, uma produção da Amazon Studios, cujo apli- cativo, Amazon Prime, já se encontra disponível para assinatura no Brasil, com todos os produtos legendados em português. O futuro no cinema também pas- sa pelo streaming nos mais diferentes suportes.

16 Filmografia Completa

Kid (1984, média) The Cartographer´s Girlfriend (1987, curta) Dogs (1988, curta) A Incrível Verdade (The Unbelievable Truth, 1989, longa) Confiança (Trust, 1990, longa) Teoria da Conquista (Theory of Achievement, 1991, curta) Ambição (Ambition, 1991, curta) Surviving Desire (1991, média) Simples Desejo (, 1992, longa) Iris (1994, videoclipe) Amateur (1994, longa) Opera No 1 (1994, curta) NYC 3/94 (1994, curta) Flerte (Flirt, 1995, longa) As Confissões de Henry Fool (Henry Fool, 1997, longa) The Other Also (1997, curta) O Livro da Vida (The Book of Life, 1998, longa) The New Math(s) (2000, curta) Beatrice e o Monstro (No Such Thing, 2001, longa) Kimono (2001, curta) The Sisters of Mercy (2004, curta) The Girl From Monday (2005, longa) Fay Grim (2006, longa) The Apologies (2010, curta) Implied Harmonies (2010, curta)

O Cinema de Hal Hartley | 17 Adventure (2010, curta) Accomplice (2010, curta) A/Muse (2010, curta) Meanwhile (2011, média) My America (2012, websérie, 50 episódios) My America (2014, longa) La Commedia (2014, filme-concerto) Ned Rifle (2014, longa) Red Oaks (2015-17, série de TV, 8 episódios)

Teatro Soon (1998) La Commedia (2008)

Livros The Heart is a Muscle (2010, Ed. Libraryman, compilação de fotos dos filmes) From Here to the Station (2014, Ed. Possible Films, compilação de pinturas e esboços de Hal Hartley)

Música Our Lady of the Highway (2012) The Ryful Album (2015) After the Catastrophe (2017)

Os filmes em formato DVD/Blu-ray, os CDs e livros podem ser consultados e adquiridos atra- vés do site oficial de Hal Hartley: www.halhartley.com

18

Fortuna Crítica Médias e Longas-metragens A Incrível Verdade (The Unbelievable Truth) EUA, 1989. Com: Adrienne Shelly, e Sinopse: Homem retorna para sua cidade natal depois de um período cumprindo sen- tença por homicídio. Ele descobre que, com o passar do tempo, os detalhes do crime foram esquecidos e substituídos por lendas locais. Seleção Oficial do Festival de Sundance. Duração: 90 minutos | Classificação indicativa: 14 anos

Hal Hartley apresenta: “Escrito em duas semanas, na parte central de leitura da New York Public Library, no turno da noite, logo após uma jornada de trabalho. Ainda que tenha escrito mui- tas histórias como essa, o princípio imediato de inspirações quando tive a oportu- nidade realmente de fazer algo foram os longas-metragens Corações Solitários (Choose Me, 1984), de Alan Rudolph, e Estranhos no Paraíso (Strangers Than Pa- radise, 1984), de Jim Jarmusch. Rodado em 11 dias e finalizado com 62 mil dólares.”

22 Cinema que não envelhece Marcelo Janot

Um dos responsáveis por pavimentar o caminho para a geração de cine- astas independentes que causariam uma revolução no cinema americano nos anos 70, John Cassavetes optou por se manter à margem de Hollywood, fiel ao seu método, até o fim da vida. Morreu em fevereiro de 1989 — ironicamente poucos dias depois que Sexo, Mentiras e Videotape (Sex, Lies, and Videotape), de Steven Soderbergh —, ganhou o prêmio do público no Festival de Sundan- ce e começou a se tornar um fenômeno. Cassavetes não veria, portanto, o surgimento de uma segunda geração de diretores independentes que, assim como Martin Scorsese, Robert Altman, Bob Rafelson e Hal Ashby duas déca- das antes, bebeu na sua fonte e surgiu como alternativa para os blockbusters, que mais uma vez tomavam conta da meca do cinema. Depois que o filme de Soderbergh ganhou a Palma de Ouro em Cannes e teve um lucro de bilheteria 20 vezes maior que o seu custo de produção, as atenções se voltaram para Sundance outra vez no ano seguinte. Havia uma expectativa grande em relação aos longas de estreia de dois diretores nova- -iorquinos: Metropolitan, de Whit Stillman, e A Incrível Verdade, de Hal Hartley. Qual deles seria o novo Sexo, Mentiras e Videotape? No fim das contas, nem um nem outro. Ambos colheram elogios da crítica, porém saíram de mãos aba- nando. Mas enquanto Soderbergh logo levaria sua expertise independente para Hollywood, os outros dois, cada qual com seu estilo, se juntaram a Jim Jarmusch, Spike Lee e outros para mostrar que havia, sim, uma nova onda independente em curso.

O Cinema de Hal Hartley | 23 E assim como o mestre Cassavetes fizera no passado, Hartley não se deixou seduzir pelas possibilidades abertas por Soderbergh e continuou fazendo fil- mes de baixo orçamento, com total controle autoral, tornando as caracterís- ticas peculiares de seu filme de estreia como marcas registradas visíveis ao longo de sua obra. O orçamento de pouco mais de 60 mil dólares foi suficiente para que o cineasta filmasse A Incrível Verdade em sua cidade natal, no subúrbio classe média de Long Island, refletindo os dramas existenciais de personagens à de- riva naquele universo. Os protagonistas são Josh (Robert Burke), recém-saí- do da penitenciária após cumprir pena por assassinato, e a estudante Audry (Adrienne Shelly), às voltas com o dilema de entrar na universidade ou seguir uma carreira como modelo. Josh, embora seja um excelente mecânico, é a todo instante confundido com um padre por causa da fala mansa e da roupa preta, volta para sua cida- dezinha após ir tão jovem para a cadeia e ter ficado quase duas décadas preso. O mundo para ele ainda se resume ao lugar onde cresceu. Apesar do mito que se criou em torno das mortes da namorada e do pai dela, pelas quais seria o responsável e que o deixaram com fama de perigoso assassino, Josh não se furta a filosofar sobre o assunto. Já Audry perdeu o interesse pelo que será de sua vida no futuro porque acredita que um ataque nuclear destruirá o mundo em poucos meses. Em A Incrível Verdade, os diálogos mais parecem monólogos interiores a todo o momento interrompidos por banalidades cotidianas. Quando Audry toma café com os pais e fala de sua preocupação com o fim do mundo, a mãe vira para o marido e reclama que a máquina de lavar nova já está quebrada. Na ofi- cina, Josh tem uma longa conversa com um colega, que observa a mudança de comportamento dos homens, que se tornam mais limpos e higiênicos quando

24 estão namorando. Parece papo de mecânico, mas Josh muda de assunto: “Eu matei um homem. Nunca imaginei que seria capaz disso. Quando se faz algo inimaginável, sem ter premeditado, quando se percebe o quanto é fácil, tudo cai em uma nova perspectiva. De repente, as coisas que eram importantes pra você não importam mais, porque você fez o inimaginável. Fez o que achava impossível. Então, percebe que é capaz de qualquer coisa”. A resposta do ami- go: “Você não é gay, é?” O filme marcava o início de uma longa parceria com o diretor de fotografia Michael Spiller, que encontra nos enquadramentos criativos e cortes descon- certantes a correspondência visual perfeita para os diálogos antinaturalistas. Além disso, o experimentalismo no uso do som, as cartelas pretas caracterís- ticas do cinema de Godard, que pontuam inesperadamente a narrativa, reve- lam a influência do ícone da Nouvelle Vague francesa. Se pensarmos que temas como a reinserção de um preso na sociedade e as paranoias apocalípticas por conta de arsenais nucleares nunca estiveram tão na ordem do dia quanto agora, A Incrível Verdade pode até soar profético, mas na realidade as questões que o filme levanta são atemporais e estão subordi- nadas ao que chama mais atenção nos filmes de Hartley, que é justamente a originalidade na representação formal desse universo. Por isso mesmo, seus filmes raramente envelhecem.

O Cinema de Hal Hartley | 25 Confiança (Trust) EUA/Reino Unido, 1990. Com: , Adrienne Shelly e Edie Falco Sinopse: Após ser expulsa de casa, Maria encontra uma senhora que reclama de não ter filhos. Vagando a esmo, ela termina em uma casa abandonada, onde conhece Matthew. Quando um bebê é sequestrado, a jovem sai em busca da senhora. Prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Sundance e do Público na Mostra de São Paulo. Duração: 107 minutos | Classificação indicativa: 14 anos

Hal Hartley apresenta: “Originalmente escrito antes de A Incrível Verdade, mas feito em sequência depois que dirigi Adrienne Shelly e, por causa, do sucesso do meu longa de estreia. Inspi- rado e encorajado por alguns bons e sólidos melodramas, notavelmente britânicos, como Georgy, a Feiticeira (Georgy Girl, 1966), de Silvio Narizzano e Sammy e Rosie (Sammy and Rosie get Laid, 1987), de Stephen Frears.”

26 Sobrevivendo o mundo a dois Filipe Furtado

Quando pensamos no cinema americano a tendência é sempre encontrar dois meios separados: Hollywood e o cinema independente, e com eles a ideia do filme de gênero de um lado e do filme realista do outro. Afinal crescendo a sombra de uma indústria tão poderosa é natural que o cinema independente americano se propusesse como seu contraponto e até um cineasta radicalmen- te antinaturalista como John Cassavetes (ou mais tarde, o primeiro Jarmusch) vai ser com frequência defendido por uma retórica que destaca uma verdade essencial que os filmes contêm. Pensemos, então, em como Steven Soderbergh na sequência de Sexo, Mentiras e Videotape (Sex, Lies, and Videotape, 1989) foi recebido a pedradas ao colocar todo o peso barroco em Kafka (1991), seu se- gundo longa, e gastaram-se anos até que se compreendesse que o naturalismo do primeiro filme era um exercício tão artificial para o cineasta quanto quando pratica um filme de roubo. Hal Hartley chamou a atenção justamente durante o primeiro boom de Sundance naquele curto momento do tudo pode entre 1989- 1992 mais ou menos, antes da Miramax e o dinheiro das majors cooptarem o festival como a ideia do cinema independente. O que torna Hartley fascinante num primeiro instante, e neste sentido Con- fiança é um filme exemplar, é a maneira com que ele quebra nossas expectati- vas quanto ao que seria um filme independente americano.Confiança abre com o pai de Maria, personagem principal, caindo morto diante da notícia de que a adolescente esteja grávida. E seus primeiros vinte minutos são um amontoado de peripécias vividas por ela e seu futuro pretendente, Matthew, até que eles

O Cinema de Hal Hartley | 27 possam se encontrar e o filme de verdade comece. Não é propriamente ele- gante (narrativa jamais se tornara um ponto forte de Hartley), mas o volume de informação que o longa empurra sobre o espectador (mortes, sequestros, demissões, rompimentos, relações familiares tempestuosas, a possibilidade do suicídio, uma tentativa de estupro) impressionam pelo volume e pela veloci- dade (cobre-se somente um dia de ação), sem que a obra nunca saia de con- trole. Existem muitos filmes que usariam tudo isto para chegar a um clímax de encontro do casal, mas aqui isto encerra o prólogo para que aconteça a longa dança de atrações entre Maria e Matthew, ao qual, verdadeiramente, o filme está interessado. Hartley filma Confiança (assim como todos os seus filmes anteriores a Ama- teur) na sua Long Island natal, mas longe de qualquer desejo de captar a re- gião tal qual ela é, o espaço parece existir pela familiaridade que ela permite ao realizador. Mas o mundo que o filme constrói de maneira cuidadosa é um mundo de cinema com tintas excessivas e excentricidades e simbolismos bem distantes de qualquer realidade (pensemos na granada que Matthew carrega de um lado para o outro e que sabemos precisará ser posta em uso no clímax da narrativa). A fotografia de Michael Spiller tem um calor que reforça esta ideia e a maneira como Hartley pede a seus atores para lerem o diálogo explicita como Maria e Matthew são personagens numa parábola demonstrativa como seus próprios nomes denunciam. Confiança existe muito distante de um exercício de gênero (apesar de ser es- crito de forma a se assemelhar a uma comédia de acasalamento), mas também tem pouca relação com um retrato da vida em Long Island. O centro do filme é uma divisão entre a família, e todo o peso da história que as relações fami- liares trazem consigo. E o casal, a promessa de futuro que se carrega, e como o título sugere, a partir de uma ideia de cumplicidade. A cena-chave do filme

28 com Matthew agarrando Maria enquanto ela cai e a promessa dela que fará o mesmo por ele (como de fato faz no final) explicita o gesto principal da obra: o excesso da atitude romântica do entusiasmo juvenil dela vem acompanhado de uma crença no outro; amar é, sobretudo, acreditar no parceiro, dividir com ele. A mãe de Maria, que é junto do pai de Matthew, o mais próximo que o filme tem de um vilão, recusa esta ideia de cumplicidade e promove o individualis- mo, o desejo de que a filha permaneça solteira e não estrague a vida dividindo tudo com outra pessoa, como ela fizera. O conflito final entre Matthew abrir mão das suas crenças para poder se tornar um provedor melhor se completa na decisão de Maria em abortar. A ideia de confiança mistura o romantismo com a praticidade. O mal-estar dos EUA da década de 80, da depressão econômica, das relações familiares apodrecidas, só podem ser mesmo superados a dois.

O Cinema de Hal Hartley | 29 Surviving Desire EUA, 1991. Com: Martin Donovan, Rebecca Nelson e Matt Malloy Sinopse: Professor de literatura se apaixona por uma de suas alunas. Ela está mais interessada na experiência empírica de um relacionamento com um homem cuja vida é guiada pelos temas da literatura russa. Mas como os grandes romances russos, a dor de amar está fadada ao fracasso. Duração: 53 minutos | Classificação indicativa: 14 anos

Hal Hartley apresenta: “Escrito de maneira bem rápida após ser procurado pela American Playhouse, a única programadora de arte na TV americana naquela época. Simples Desejo já estava escrito e financiado, mas nós tínhamos alguns meses antes da rodagem. Surviving Desire, Teoria da Conquista e Ambição foram feitos em sequência no primeiro semestre de 1991. Foi um período de muito trabalho, porém prazeroso.”

30 “O amor ativo é trabalho...e coragem” Leonardo Luiz Ferreira

“Creio que a senhora é boa e sincera. Se não atingir a felicidade, lembre-se sempre de que está no caminho certo. Tente não se desviar dele. Acima de tudo, evite toda a falsidade, particularmente a falsidade para consigo mesma. Observe a sua própria desonestidade, verifique-a a cada hora, a cada minuto. Evite ser desdenhosa para com os outros e para consigo. O que lhe parece mal tornar-se- -á mais puro dentro de si apenas porque o observa. Evite o medo, apesar de ser apenas a consequência de todos os tipos de falsidade. Nunca se assuste com a sua franqueza na busca por amor.” (Fiódor Mikhailovski Dostoévski)

O período mais prolífico da carreira de Hal Hartley (1989-1995) rendeu não só longas em sequência, mas curtas e até o média-metragem Surviving De- sire. Localizado exatamente entre Confiança e Simples Desejo, que consagram definitivamente o cineasta como um dos principais autores do cinema inde- pendente americano, o filme é desconhecido para a maioria de cinéfilos e crí- ticos. Talvez por ter curta duração e não ter circulado tanto. Talvez por estar espremido entre duas obras das mais fortes e representativas de sua carreira. Mas é ali, em uma encomenda para a televisão, que Hartley sintetiza todo seu cinema em pouco mais de 50 minutos de projeção. Um professor de literatura, interpretado por Martin Donovan, um dos me- lhores alter egos de Hartley, recita um trecho de Os Irmãos Karamazov, de Dos- toiévski, para seus alunos. Há mais de um mês ele repete as mesmas palavras, o que provoca a revolta da turma. Mas uma aluna presta atenção em tudo que

O Cinema de Hal Hartley | 31 o professor diz e reafirma a sua importância. Assim tem início uma história de enamoramento mesclado a um humor satírico de rara beleza no cinema. O argumento de Surviving Desire é de uma simplicidade franciscana: mestre se apaixona pela discípula. A complexidade surge a partir do confronto de ideias e conceitos sobre afetos e sentimentos. O ser e estar no universo, que é a inda- gação que perpassa toda a filmografia de Hartley. Não adianta buscar respostas para a vida sem nunca entender o sentido das perguntas. Hartley é o poeta do encontro, pois para ele só é possível compreender e en- frentar o mundo por intermédio do choque com o próximo, seja de maneira fí- sica com altercações cômicas entre professor e alunos, seja de forma emocional ao se lançar sem medo a um sentimento. Em Surviving Desire, o amor aparece como o único caminho, já que “só o conhecimento não é tudo”, para a redenção de uma vida em constante conflito. Porém, para o sentimento existir precisa-se aceitá-lo sem condições. A jovem coloca a carreira acima de tudo e não entende que o amor poderia ser a essência dessa paz na consciência. Um diálogo mordaz arremata essa condição de fuga: “O problema de nós, americanos, é que sempre queremos que as tragédias tenham finais felizes.” O professor se chama Jude em referência direta ao romance Judas, o obscuro, de Thomas Hardy. Mas não se trata apenas de uma homenagem, como tam- bém há inter-relações: os personagens compartilham um destino inexorável devido ao peso das convenções sociais — em Hartley, há uma censura velada de um homem mais velho se apaixonar por uma jovem, sem que isso não sig- nifique tirar proveito de ambos os lados. A negação desse sentimento repre- senta a sua “morte”. Já em Hardy, Jude vem de uma classe pobre e de maneira autodidata adquire conhecimento através da leitura e tenta em vão entrar numa universidade e se transformar em um acadêmico. Só que o preconceito “demole” sua vontade.

32 Antes mesmo da explosão imagética da sequência de dança em Simples De- sejo, Surviving Desire captura a essência da encenação cinematográfica no tre- cho do “musical sem música”, onde os atores fazem a mimese de musicais de Hollywood da Era de Ouro e incluem elementos da contemporaneidade. O que parece um exercício estético vazio ou uma piscadela para o público de van- guarda é, na verdade, a extensão da relação câmera-objeto/espaço-corpo, que é um dos cernes na mise en scène de Hartley. Como nos grandes romances, a vida é um palco repleto de “som e fúria.” Transcrevendo um trecho dos mais lembrados diálogos de Hartley: “O mais en- graçado é que quando você deseja algo imediatamente está com um problema. E quando você está com um problema não deseja mais nada. A vida é uma tra- gédia, Ned Rifle.”

O Cinema de Hal Hartley | 33 Simples Desejo (Simple Men) EUA/Itália/Reino Unido, 1992. Com: Robert John Burke, Martin Donovan e Elina Löwensohn Sinopse: Amargurado por ter sido traído pela mulher que amava, Bill decide seduzir a próxima que encontrar, e depois dispensá-la. Enquanto isso, seu irmão está determi- nado a descobrir o paradeiro do pai, um revolucionário que está escondido há 20 anos. Seleção Oficial do Festival Cannes – indicado à Palma de Ouro. Duração: 105 minutos | Classificação indicativa: 14 anos

Hal Hartley apresenta: “Sentindo que consegui alcançar com Confiança aquilo que sempre tinha pensado em fazer, eu me lancei mais confiante para ideias ilustrativas que encontrei nas leituras de não ficção e, ao mesmo tempo, para a estética da França e filmes britâ- nicos dos anos 60 — que estava interessado há um bom tempo: Godard, certamen- te, em uma sensibilidade visual que compartilhamos, mas também na discussão franca de ideias, uso de entrevistas, etc. Entretanto, Marat/Sade (1967), de Peter Brook, se tornou uma influência central e uma pedra de toque naquela época, e se mantém vivo ainda hoje no meu trabalho.”

34 América mediana Sérgio Alpendre

Na estreia de Simples Desejo no Brasil, em algum momento do biênio 1992/93, pensei ter visto uma continuação estilística menos inspirada, mas ainda suficientemente boa, de seu filme anterior, Confiança, com o qual muito rapidamente (era apenas seu segundo filme) Hal Hartley estourou definitiva- mente a bolha do cinema independente americano e surgiu como um autor e digno seguidor de Godard (guardada a distância entre um diretor habilidoso e um gênio). Um pouco depois, Amateur daria o passo seguinte para um novo pa- tamar, onde Hartley foi incapaz de permanecer, tendo sua carreira, senão deca- ído totalmente, ao menos perdido parte do brilho inicial. Pude rever Confiança há poucos anos e boa parte da força sentida há quase três décadas permaneceu. Somente agora surgiu a oportunidade de rever Simples Desejo, com um misto de tensão, pela possibilidade de o filme despencar, e saudosismo, por estar nova- mente em contato com um dos pequenos heróis da cinefilia na primeira metade dos anos 1990. Na revisão, percebi que Simples Desejo estabelece um papel importante na filmografia de Hartley. A maturidade demonstrada em Amateur não seria pos- sível se a verve godardiana em Confiança não fosse definitivamente expurgada com Simples Desejo, seu terceiro longa para cinema. Esse expurgo se dá pelo despojamento. Ainda mais despojado e livre (embora seja mesmo inferior) que Confiança, a ponto de algumas de suas imagens parecerem captadas em digi- tal, muito antes do digital acontecer, Simples Desejo procura exalar tanto fres- cor que por vezes quase cai na armadilha da falsa modéstia: do diretor ciente

O Cinema de Hal Hartley | 35 de seus trunfos e de que precisa disfarçá-los para não passar por soberbo ou autoindulgente. Na trama, dois irmãos, Bill e Dennis McCabe (Robert Burke e , respectivamente), saem à procura do pai e se deparam com uma fauna que parece existir unicamente no cinema independente americano: uma freira fumante, uma romena abandonada, uma mulher misteriosa cujo marido foi preso, um policial filósofo, um motociclista estressado, uma estudante in- quieta e um guitarrista frentista de posto. A simplicidade é explicitada já no título, mas não impede que uma série de indagações ou reflexões sobre a vida apareçam aqui e ali em frases como “por que as mulheres existem?”, “não há romance; não há aventura; só há problema e desejo”, “nada como uma máqui- na para fazer um homem se sentir insignificante” ou “todo dinheiro é sujo”. A simplicidade, portanto, é ambígua, e muitas vezes se disfarça de complexidade (ou o contrário). Seria inútil negar a conexão com Godard. Ela é evidente, e paródica, vide o momento Bande à Part (1964), em que há uma coreografia ao som de Sonic Youth com dois homens e uma mulher, ou o momento Pierrot le Fou (1965), com o anarquista em fuga num barco. Godard parodiou o cinema americano em seus filmes sessentistas. O cinema americano parodiou os filmes sessentis- tas de Godard (já parodiava desde os anos 1960). Nada mais justo. O problema é que essa conexão com o enfant terrible da Nouvelle Vague não é o que torna valioso o cinema de Hartley. Pelo contrário, é uma limitação. Porque o forte de Hartley, percebe-se melhor nesses filmes iniciais, é o retrato de uma América mediana, ou mesmo medíocre, formada por jovens que procuram se encontrar ao seguir, no caso específico de Simples Desejo, o rastro dos pais para matá-los simbolicamente, algo semelhante com o que Hartley tenta fazer com Godard aqui. Uma América formada também por seres à deriva do grande sonho ame- ricano: assaltantes de araque, homens abandonados por mulheres, mulheres

36 que só se envolvem com marginais — como a doce Kate (Karen Sillas) — ou aspirantes a artistas que trabalham em postos de gasolina. Uma América que deu praticamente errado, e que Hartley pinta aqui com tintas sóbrias, pouco godardianas, apesar de um vermelho marcante de uma breve locação.

O Cinema de Hal Hartley | 37 Amateur EUA/França/Reino Unido, 1994. Com: Isabelle Huppert, Martin Donovan e Elina Löwensohn Sinopse: Isabelle é uma ex-freira aguardando uma missão especial de Deus. Enquan- to isso, ela ganha a vida escrevendo pornografia. A moça encontra Thomas, um rapaz com amnésia. Juntos partem em uma jornada para descobrir seu passado. Prêmio de Prata (2º lugar) no Festival de Tóquio. Duração: 105 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “Foi a primeira vez que eu me permiti subverter um gênero. No caso, o filme de detetive. Nós podemos ser perdoados se tivermos feito algum mal, mas tivermos esquecido o que fizemos? Qual, exatamente, é o ponto de punição?”

38 A força dos personagens Fernando Oriente

Na primeira fase de sua carreira, Hal Hartley foi responsável por criar personagens extremante carismáticos e cativantes, que ao mesmo tempo transbordam um misto de fragilidade e potências reprimidas. Personagens es- ses construídos em cima de estereótipos e arquétipos, numa espécie de reapro- priação dos tipos marginalizados tão caros à história do cinema, os anti-heróis e errantes que habitam o espaço ficcional das alteridades. São tipos que em suas texturas carregam o vazio de suas interioridades, a falta de rumo, as incer- tezas subjetivas, inconformismo, tédio e cansaço existencial. Figuras sempre presas a uma imobilidade do corpo e do espírito. Amateur, o último de seus grandes filmes, é composto inteiramente a partir de dois elementos centrais: a força desses personagens, cujas características Hartley sabia muito bem como fazer transparecer no tecido dramático, e as situações narrativas em que es- ses tipos eram inseridos pelo acaso caótico de seus deslocamentos forçados (e muitas vezes desejados). Voltando a força dos personagens, o filme traz uma série de tipos que trans- cendem aqueles que estavam no centro dos trabalhos anteriores de Hartley. Se seus longas e médias até então eram compostos por homens e mulheres que habitavam essa zona de marginalidade, vulnerabilidade e exclusão em um pano de fundo típico de cidades pequenas habitadas por uma classe média branca em crise de identidade e fragilidade emocional, em Amateur temos uma trinca de personagens centrais compostas por um homem com amnésia (que antes de perder a memória e a noção de si mesmo, era um criminoso violento

O Cinema de Hal Hartley | 39 e cruel ligado ao submundo da indústria pornográfica), uma ex-freira virgem que escreve histórias eróticas para revistas pornô e se considera ninfomaníaca, e uma jovem atriz pornô que foi cooptada pelo cafetão, agora desmemoriado e que viveu anos sob o jugo de sua brutalidade. E para ampliar ainda mais, de ma- neira extremante sarcástica e intencionalmente estereotipada, esses três per- sonagens são envolvidos por uma trama de intrigas internacionais de crime e corrupção que abrangem uma poderosa organização criminosa transnacional. Assim como em todos os melhores filmes do diretor,Amateur é um longa que tem sua enunciação posta em dramaturgia a partir do encontro entre persona- gens deslocados; encontros surgidos ao acaso, improváveis e que tencionarão sempre conflitos e afetos. É esse choque com o outro que determina as situa- ções e soluções de dramaturgia, bem como o desenrolar narrativo do filme. Em Amateur, uma característica já presente nos filmes anteriores de Hartley, fica ainda mais explícita. Por mais que o diretor trabalhe com questões típicas da tendência neo-existencialista que tomou conta do cinema independente ame- ricano a partir dos anos 1980, ele o faz de maneira irônica e autocrítica. Sem diluir a força dos personagens, suas interrelações e as potências dramáticas da ação, Hartley insere de maneira funcional o humor e o sarcasmo, num processo que ao mesmo tempo em que não afrouxa o drama confere força às texturas de seus personagens, por outro lado pretende deixar claro como tudo aquilo que põe em cena está sujeito à questionamentos, a diferentes abordagens de lei- tura e assimilação. Ao contrário do que muito de seus detratores afirmam, Hal Hartley não se considera um cronista de um mundo em crise. Ele cria situações, desenvolve tensões, levanta questões e insere o mal-estar e a fragilidade de uma sociedade desencantada por meio da já mencionada competência com que compõem seus personagens e, principalmente, pela força sensorial que retira das ações, conflitos e tensões em que esses tipos estão mergulhados. Por mais

40 estilizadas, charmosas e cativantes que sejam as sequências do filme, elas não estão lá para esconder deficiências de encenação e enunciação, mas sim para oferecer algo que é fundamental ao cinema: a potência, a sensorialidade e a intensidade desse jogo proposto pela ficção cinematográfica, pela imagem que carrega os significados e possibilidades que cabem apenas ao espectador decifrar e sentir. Amateur é um filme que, dentro dessa mistura de autocríti- ca da própria imagem dada e da onipresente ironia, consegue retirar beleza, ternura e desconforto de cada situação construída; de tudo que é sugerido, mas nunca imposto. Desconforto, deslocamento, melancolia, ironia e humor condicionam e deter- minam a encenação, a evolução dramático-narrativa, a construção dos planos e a composição do quadro — composição essa em que os posicionamentos de câmera, distâncias focais e as perspectivas de achatamento da profundidade de campo – o que mantém a mise en scéne na superfície dos planos — provocam no espectador a sensação de desarranjo espacial que se projeta na temporalidade expandida das ações encenadas. As referências caras ao cinema moderno euro- peu que marcam os filmes de Hal Hartley estão presentes de forma explícita em Amateur, desde seu uso de elementos godardianos formais e temáticos (tanto da primeira fase de JLG como de seus filmes da primeira metade dos anos 1980) até a citação explícita a Michelangelo Antonioni, presente na última cena do filme, que remete diretamente ao final de Passageiro: Profissão Repórter (The Passenger, 1975). Mas Hartley usa essas referências sem a intenção de produzir cópias ou um mimetismo banal de grandes diretores. Ele as usa tanto como homenagem, bem como um resgate que possibilita uma recontextualização da obra desses diretores; um diálogo do cinema com o próprio cinema. Com a distância histórica e crítica que nos permite rever a obra de Hal Hartley hoje, o que temos é a permanência de um punhado de belos filmes que

O Cinema de Hal Hartley | 41 cederam lugar a projetos completamente equivocados de um cineasta que pa- rece ter se perdido logo após seu último belo filme, exatamente Amateur. Mas seus primeiros curtas e médias e a trinca de longas que, certamente, são seus melhores trabalhos — Confiança, Simples Desejo e Amateur — sobrevivem muito bem. Voltar a essa obra é um grande prazer, apesar do descaso, da indiferença e do massacre que o diretor sofreu por grande parte da crítica nas últimas déca- das e que não poupou nem seu notável início de carreira.

42

Flerte (Flirt) Alemanha/EUA/Japão, 1995. Com: Martin Donovan, Dwight Ewell e Miho Nikaido Sinopse: Uma simples história de amor e perda. A mesma situação acontece em três cidades diferentes: uma pessoa deve decidir manter o compromisso com o amante que retorna para casa ou seguir adiante com algo novo? Duração: 85 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “Este é meu trabalho mais completo. Minhas curiosidades e habilidades adquiri- das tinham maturado no ponto certo e se misturados com a minha equipe e nossa habilidade de colocar “o dinheiro na tela”. Claro que é um dos meus filmes menos populares, mas isso não significa nada para mim. Este é meu mais sensível, criativo e apurado trabalho.”

44 “Flertar é existir na ambiguidade” Susana Schild

Talvez a palavra ‘flerte’ esteja um tanto fora de moda para a geração ‘crush’, supostamente voltada para a satisfação mais imediata de seus simples desejos. Mas nos idos dos anos 80/começo dos anos 90, quando a arte de se- duzir não era politicamente incorreta e nem corria o risco de ser chamada de assédio, o verbo flertar fazia parte da aproximação entre pessoas com segun- das, terceiras ou sabe-se lá quantas intenções. Também se poderia dizer que um artista ‘flertava’ com a Bossa Nova, com o modernismo, com o realismo ou qualquer outra corrente artística. Esse preâmbulo serve como tentativa de aproximar Flerte, quinto longa-me- tragem de Hal Hartley, lançado em 1995, do espectador contemporâneo que desconhece a obra de um dos mais cultuados diretores da então ‘geração do novo cinema independente americano’ — ao lado de figuras como Jim Jarmus- ch, David Lynch, Steven Soderbergh, Gus Van Sant, Spike Lee, entre outros. Em comum, a turma compartilhava o baixo orçamento, a opção pela trans- ferência de personagens periféricos de Hollywood para o centro e a busca de um approach bem pessoal. No caso de Hartley, o viés autoral alinhava-se tanto com colegas de geração (ele destacava Jarmusch e Lee) como através de flertes assumidos com referências europeias, que incluíam o dramaturgo Bertolt Bre- cht, o cineasta Robert Bresson e, sobretudo, o pai da Nouvelle Vague Jean-Luc Godard. Nesse mix, surgiam algumas marcas de Hartley: o distanciamento de um romantismo explícito, um antinaturalismo das interpretações e uma abor- dagem minimalista (e um tanto cínica) das situações captadas em elaborada

O Cinema de Hal Hartley | 45 estilização e estetização de enquadramentos, cortes e painel cromático. Como arremate, um humor sutil, pelo menos para seus seguidores. Por tudo isso, Flerte é uma boa síntese da obra do diretor em sua primei- ra fase, marcada pela desconstrução de clichês e uma evidente desconfian- ça do futuro dos personagens, transmitida através de diálogos que podiam transitar da mais rala banalidade a questões filosóficas. As rupturas com os dogmas mainstream de filmes anteriores — sobretudo A Incrível Verdade, Con- fiançae Simples Desejo — são aprofundadas a partir da própria estrutura fílmi- ca: três histórias em lugares e tempos diferentes, com personagens idem, se desenvolvem praticamente com os mesmos diálogos. Um exercício formal e estético que teve como origem um curta de mesmo nome realizado em 1993, restrito a Nova Iorque. Dois anos depois, o formato longa incorpora tramas e locações em Berlim e Tóquio. Três variações contemporâneas (da época) sobre o clássico tema da traição, triângulos ou quadriláteros amorosos, flertes com o destino. Os episó- dios envolvem sempre alguém de partida e decisões que implicam permanecer com o caso atual ou o retorno para um caso pendente, seja algo mal resolvido no passado ou uma proposta de casamento. Para Hal Hartley, nada parecia tão complicado quanto à definição e um compromisso mais sólido de um casal. A trilogia se desenvolve em fevereiro de 1993 em Nova Iorque, em outubro de 1994 em Berlim, e em março de 1995 em Tóquio. Na primeira, uma modelo internacional hesita entre o amante e uma proposta de casamento. Em Berlim, temos uma dupla gay (uma das partes interpretada por um negro). Em Tóquio, uma companhia teatral exibe a competição habitual entre atrizes. Além dos diálogos basicamente iguais, as tramas envolvem conversas telefô- nicas em orelhões (outra marca da época), tiros e atendimento em hospitais. E também uma espécie de coro grego para analisar as situações: frequentadores

46 de um banheiro em NY, operários de obra em Berlim e prostitutas na prisão em Tóquio. Na Alemanha, os operários, entre várias digressões, entregam o jogo. “Flertar é existir na ambiguidade. A intenção do diretor é comparar a mesma situação em contextos diferentes”. Um deles indaga: “Será que ele vai conse- guir”? Prudente, um colega pondera: “É cedo para falar”. Mas é no final do terceiro episódio que o diretor interfere de forma mais pessoal: no papel do namorado americano da mocinha nipônica (Miho Nikai- do), Hal Hartley, como um cineasta de passagem pelo Japão, aguarda, lado do aparente flerte, o voo para a América. Na bagagem, uma lata de filmes com a inscrição “Flirt1”. Por acaso — ou não — a dupla se casou realmente em 1996. Nos créditos destacam-se parceiros habituais do diretor, como os atores Martin Donovan, Bill Sage, Robert Burke, a atriz Elina Löwensohn, o diretor de fotografia Michael Spiller (de seus quatro longas anteriores), e Steve Hamilton na edição. Além de assinar o roteiro, Hartley compõe a trilha sonora com o pseudônimo de Ned Rifle (ao lado de Jeffrey Taylor). Ao que consta, diferente de seus personagens desconfiados do happy end, Hal Hartley e Miho Nikaido vivem felizes para sempre desde então. O casal têm dois filhos.

O Cinema de Hal Hartley | 47 As Confissões de Henry Fool (Henry Fool) EUA, 1997. Com: Thomas Jay Ryan, e Sinopse: Um lixeiro de nome Simon se torna amigo de Henry Fool, um mal-humora- do romancista. Ele abre o mundo mágico da literatura para o rapaz, que agora busca escrever ‘o maior poema norte-americano’. Enquanto Simon ganha notoriedade nos círculos literários, Henry afunda sua vida em bares. Prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes. Duração: 137 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “Ainda que tenha me divertido escrevendo, Henry Fool foi produzido com a intenção deliberada de “me colocar para fora do mundo do cinema.” (Eu estava cheio com o mercado de cinema e queria fazer outras coisas na vida. Como era ingênuo!). Meu mais calculado projeto, que gerou uma onda de ótimas críticas ao meu trabalho, foi baseado em jargões jornalísticos vazios que retirei de críticas contemporâneas de filmes e livros, além de eventos atuais de política e da sociedade. Acabou funcio- nando e se tornou meu filme de maior sucesso crítico e comercial. E me apaixonei pelos personagens; então, decidi retornar a eles novamente.”

48 Tolos na terra da esperança Marcelo Miranda

Hal Hartley é cria direta da década de 1990 no cinema independente dos EUA. Na mesma velocidade com que foi alçado a nome a se acompanhar, ele virou só uma lembrança com o passar dos anos — mesmo seguindo lentamente na carreira depois dos ‘90, com títulos como Fay Grim (2006) e Ned Rifle (2014), entre poucos outros. As Confissões de Henry Fool, lançado em 1997, está no meio do caminho e, se observado na perspectiva de toda uma obra, reflete as inquie- tações de uma época incerta e os descaminhos relativos ao que ainda estava para ser feito. Claro, é muito fácil especular os significados de um filme 20 anos depois de sua realização, mas é também um exercício estimulante acionar os contextos históricos na ambição de compreender um cinema que hoje pode soar ao mesmo tempo fresco e anacrônico. Os conflitos estabelecidos em Henry Fool já apontavam para a dicotomia en- tre algo que se apresentava como novidade versus a incompreensão do que so- ava desgastado, viciado e medíocre. Simon Grim, o gari estimulado a se tornar poeta pelo pseudo-beatnik Henry Fool, surge em cena como o personagem tí- pico de certo cinema que aflorava em meados dos anos 90: perturbado psicolo- gicamente, fracassado, frustrado e filho de um núcleo familiar disfuncional. À primeira vista, o filme parece sádico ao rir dele e de suas desventuras. Quando Fool adentra o quadro e passa a circular pela família — numa variação tragicô- mica do visitante Terence Stamp de Teorema, de Pier Paolo Pasolini (1968) —, o riso deixa de vir do artista que olha com superioridade para suas crias (como muitas vezes Hartley foi acusado) e se agrega à instância narrativa, partindo

O Cinema de Hal Hartley | 49 dos acontecimentos cada vez mais inesperados na trajetória de Simon. Hartley ironiza as tolices da sociedade norte-americana ao olhar para per- sonagens à margem no caldo cultural do país, ainda que sejam, na prática, seu maior símbolo: trabalham (em subempregos), geram renda (para os ricos, nun- ca para si mesmos), consomem (especialmente os então ascendentes compu- tadores) e votam (há um cabo eleitoral que insiste em angariar apoio a um candidato protótipo do que viria a ser Donald Trump). Nessa radiografia, Henry Fool (que carrega no próprio nome a tolice de seu entorno) é a entidade fora do tempo, que surge como se saído do nada (na verdade, ele é um ex-condenado tentando reconstruir a vida) e sopra no verdadeiro tolo da história o segredo para o sucesso. Fazendo jus ao sobrenome, Fool, escritor comezinho de litera- tura barata, se deixará suplantar pela ascensão do amigo (que posteriormente ganha o Prêmio Nobel de Literatura, maior lance de zombaria e delírio do fil- me). A troca de papéis entre artífice e executor herda seu impacto deO Homem que Matou o Facínora (The Man Who Shot Liberty Vance, 1962), de John Ford, no qual a fama histórica e mítica recai sobre aquele que a tomou para si, e não sobre quem efetivamente articulou a ação. Mas, diferente do senso de honra e tragédia presente em Ford, As Confissões de Henry Fool dá ao personagem-tí- tulo o destino de seu antecessor: o de subempregado com família desajeitada. Fool segue propulsionando anonimamente as engrenagens do país — pelo me- nos até se tornar foragido por um crime quando tenta proteger uma mulher do marido violento. Quem o ajudará? O ex-amigo ganhador do Nobel, justamente. A atmosfera de As Confissões de Henry Fool, em seu vai e vem de ironias, mis- tura o deboche do Jean-Luc Godard da década de 1980 a certa desdramatização dos atores herdada de Robert Bresson, passando pelo absurdismo das peças de Samuel Beckett. A mescla, assumidamente pretensiosa, também se relaciona ao cinema norte-americano noventista que queria absorver de tudo através da

50 reconfiguração dos referenciais de formação dos cineastas. Se nem todos po- diam ser Brian De Palma — que, como poucos (quase ninguém), compreendeu à perfeição o que era absorver sua matéria-prima e criar algo completamente novo a partir dela —, muitos tentavam ser Hal Hartley (ou Quentin Tarantino, ou Jim Jarmusch, ou os irmãos Coen, ou até Martin Scorsese, que vinha de ge- ração anterior, mas às vezes parecia ter surgido nos ‘90). Pois Hartley — e As Confissões de Henry Fool é exemplar essencial disso — tinha despudor suficiente para pegar o que lhe fascinava e misturar sem re- calques, explicitando as próprias bases através dos mecanismos de encenação. O filme de 1997 já era depuração de um estilo construído através de vários longas e curtas-metragens anteriores e da ótima recepção que seus trabalhos angariavam no circuito de festivais e lançamentos indies. Não à toa, Henry Fool ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes (quatro anos depois de Pulp Fiction, de Tarantino, levar a Palma de Ouro), o que foi um grande passo para a legitimação buscada por um cinema que se construía nas profundezas da indústria de maneira muito distinta da explosão que fora a Nova Hollywood nos anos 60 e 70.

O Cinema de Hal Hartley | 51 O Livro da Vida (The Book of Life) EUA/França, 1998. Com: Martin Donovan, PJ Harvey e Thomas Jay Ryan Sinopse: O fim do milênio ganhou notoriedade nas profecias contemporâneas. O que aconteceria se Jesus tivesse segundas intenções a respeito do Apocalipse? É 31 de dezembro de 1999 e o Ano Novo recebe outro significado a partir de um debate entre o Diabo, Jesus Cristo e Maria Madalena. Duração: 63 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “Este foi uma pequena encomenda de um canal de TV franco-alemão. Passei um ano escrevendo uma peça, Soon, que viria a estrear na Europa em julho de 1998. Tinha a ver com as seitas de cristãos radicais na história da América — pessoas rezando pelo fim do mundo. Eu tinha que empreender muitas leituras porque não conhecia bem esse tipo de indivíduo. Tinha muito material sobrando que era en- graçado demais para colocar na peça, então comecei a escrever O Livro da Vida. Este foi um momento de muita diversão. Já estava trabalhando com vídeo digital em projetos menores e estava ansioso para fazer algo mais ambicioso. ”

52 O Apocalipse segundo Hal Hartley Raphaela Ximenes

No final do século XX houve uma preocupação com o que aconteceria com os computadores do mundo quando 1999 virasse para 2000, o chamado bug do milênio era uma maldição do mundo contemporâneo, que ruiria sem tecnologia. Esse novo mal do século mostrava que por mais que a humanidade tivesse evoluído, o medo do novo, de seguir em frente, ainda existia. Nesse cenário muitas expressões artísticas surgiram, em uma tentativa de definir me- lhor esse temor. Essa foi a inspiração das produtoras Caroline Benjo e Carole Scotta para criar o projeto 2000 vu par... (2000 visto por...), que foi comprado pelo canal de televisão alemão-francês Arte. Dez diretores de diferentes paí- ses realizariam dez filmes de um pouco mais de 1 hora de duração, mostrando como eles viam a chegada do novo século. Coube ao diretor Hal Hartley mos- trar como os Estados Unidos receberia o novo milênio. Em O Livro da Vida, Jesus Cristo (Martin Donovan) volta à Terra acompanha- do de Maria Madalena (P.J. Harvey), pelo aeroporto J. F. K., em Nova York, onde deve recuperar um computador que contém o Livro da Vida. Ele deve quebrar seus sete selos para liberar o Apocalipse e acabar com a humanidade, salvando apenas algumas almas. Ao mesmo tempo, o demônio (Thomas Jay Ryan) con- versa com um homem, Dave (Dave Simonds), que gasta todo seu dinheiro em apostas, e uma garçonete do bar, Edie (Miho Nikaido), onde estão. Hartley monta uma peça cômica que mistura o dilema de Cristo em acabar com a humanidade com a história de Dave e Edie. O demônio percebe que a bondosa garçonete é apaixonada por Dave e decide fazer um jogo com os dois,

O Cinema de Hal Hartley | 53 com o intuito de mostrar a Dave que ele também é apaixonado por ela. Os personagens agem como se fizessem parte de uma tragicomédia grega, com atuações exageradas, beirando o surrealismo. Jesus decide não liberar mais o Apocalipse porque acabou se afeiçoando à humanidade, o que passa a ser um enorme problema para aqueles que decidem lucrar com o fim do mundo. Advo- gados foram contratados, aparentemente por Deus, para ajudar Jesus. Quando ele muda de ideia, o caos acontece porque os advogados temem qual será o castigo. Em toda essa pantomima o único personagem a permanecer sereno é Maria Madalena, que entende as razões de Cristo. Essa divertida confusão cria- da por Hartley não foi bem recebida na época e nem foi por causa do polêmico tema religioso, mas talvez porque muitos focaram na linha central da trama, sem prestar atenção no que realmente era mostrado. O Deus vingativo de Hartley destoa do mundo moderno criado por ele, com Jesus usando terno, computadores, advogados corporativos e um demônio quase humano. Mas ele é a maior metáfora do filme, que mostra que por mais que o mundo tenha evoluído ainda se agarra a ideias antiquadas e teme um fim de proporções bíblicas. Esse ser vingativo, que se irritou com a humanidade, paira no ideal humano até hoje, vinte anos depois de o filme ter sido realizado, o que torna O Livro da Vida uma obra muito atual. Dentro dessa metáfora, Deus também é o chefão de uma empresa corrupta, formada por empregados que ambicionam seu poder com a mesma devoção que o temem. Jesus é o jovem empresário que quer se livrar desses vícios e começar um novo ciclo, mas sem ter que destruir tudo, apenas renovar as ideias, afinal um novo milênio está para se iniciar. Há alguns embates entre Jesus e o demônio que rendem conversas delicio- sas com diálogos que apenas Hal Hartley consegue construir. Sentado no bar, decidido ir contra a ira de seu Pai, Jesus avisa ao demônio que não vai liberar o

54 Apocalipse, o segundo, então, questiona a decisão do primeiro, lembrando que foi exatamente por se rebelar que ele foi exilado do Paraíso, mostrando a Jesus que no fundo eles são iguais. Há também um questionamento sobre religião e ser cristão, por que eles seriam melhores que todo o resto, um debate muito atual em tempos nos quais a Igreja e o Estado parecem se unir da forma errada, alienando aqueles que não vivem de acordo com os preceitos da Bíblia, pola- rizando cada vez mais o mundo. Ainda, no mesmo diálogo, Jesus e o demônio comentam sobre os seres humanos, se eles realmente são necessários, até que o demônio faz um comentário quase profético: “eles ficarão obcecados por eles mesmos de novas maneiras”. Mas o final de Hartley é positivo, com Jesus pen- sando no novo milênio, como seriam os humanos no futuro: lembrar-se-iam dele, seriam mais inteligentes, se ainda estariam divididos em apenas dois se- xos, se falariam apenas uma língua; e várias outras ponderações. Olhando para essa divertida confusão que Hartley construiu, observa-se um olhar otimista sobre o futuro, para ele o novo milênio chegava cheio de possi- bilidades, mesmo que fosse amedrontador. Sua ótima metáfora em cima de um Deus vingativo que quer terminar com tudo porque acredita que a humanidade não está mais dando certo, combina com o medo do novo, de olhar para frente, de aceitar o diferente e, principalmente, de não admitir que a realidade que se conhece mude. Um filme escrito e realizado em 1998 que traduz muito bem o mundo atual. Vinte anos se passaram, o mundo ainda passa por mudanças, por rebeliões, encontra-se completamente polarizado, mostra-se, às vezes, um pou- co retrógrado, já que aqueles que sempre tiveram vantagem no passado, temem perder o poder. Mas não existe mais a necessidade de um dilúvio ou de esperar pela Ira Divina, os próprios humanos são capazes de mudar seus futuros, de não ficarem presos ao passado, afinal apenas seguindo em frente é que se sobrevive.

O Cinema de Hal Hartley | 55 Beatrice e o Monstro (No Such Thing) EUA/Islândia, 2001. Com: Sarah Polley, Robert John Burke e Julie Christie Sinopse: Jovem jornalista viaja para a Islândia em busca de seu noivo desaparecido. Mas ela se depara com uma criatura mítica em seu lugar. A moça, aos poucos, tenta forçar um relacionamento amoroso com o ser. Seleção Oficial do Festival de Cannes – Mostra Um Certo Olhar. Duração: 102 minutos | Classificação indicativa: 14 anos

Hal Hartley apresenta: “Meu amigo islandês Fridrik Fridriksson, produtor e cineasta, me convidou para fazer um filme de monstro na Islândia. Ele pensou que conseguiria levantar o orça- mento necessário. Isto não ocorreu. Mas, nesse momento, eu já tinha um roteiro do qual gostava. De fato, eu já estava pensando nessa história desde o colégio. Mas dei- xei que agora fosse influenciada por assuntos do momento: terrorismo, publicidade e as notícias (o “outro terrorismo”). Outra subversão de gênero — desta vez não como um filme de monstro, mas um conto de fadas — que tem como alvo a indústria de notícias e a indiferença crescente do público. Como resultado não é um filme popular. Mas tenho orgulho em ter realizado. Especialmente aprecio as sequências de traveling e a interpretação de Helen Mirren, como uma produtora feroz de TV. ”

56 Humano, demasiado humano Beatriz Saldanha

Todo mundo já ouviu falar no conto de fadas A Bela e a Fera, consagrado na literatura por Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, cuja versão foi publi- cada pela primeira vez em 1756. No cinema, cerca de 200 anos mais tarde, a história passou por diversas adaptações, inclusive algumas delas realizadas por cineastas de alto calibre, como Jean Cocteau e Juraj Herz. Em 1991, os estúdios Disney, que já cultivavam uma tradição em adaptações de contos de fadas, pro- duziram uma versão animada, a mais popular entre todas as transposições para as telas do conto de Beaumont. Dez anos mais tarde, com Beatrice e o Monstro, Hal Hartley decidiu modernizar A Bela e a Fera, ambientando a trama em Nova Iorque no início dos anos 2000 e tendo como ponto de partida os bastidores do jornal de uma grande emissora de televisão. Ávida por notícias sensacionalis- tas, a emissora enviara uma equipe de filmagens para a Islândia, com o objeti- vo de investigar a lenda de um monstro que estaria aterrorizando uma aldeia isolada. A equipe passa dois meses desaparecida, até que Beatrice, a moça que cuida das correspondências e serve o café, se oferece para ir ao encontro do monstro, já que seu noivo integrava o grupo. A inescrupulosa editora do jornal enxerga o potencial de drama da situação e autoriza a viagem. Os personagens principais são bem semelhantes às origens literárias: tão in- gênua quanto corajosa, Beatrice (Sarah Polley) encontra reflexo na figura de Bela. Já a inteligência e a cultura, bem como o figurino recatado usado por ela na primeira metade do filme, remetem à versão de Walt Disney. A represen- tação do monstro também é clássica: misantropo, profundamente angustia-

O Cinema de Hal Hartley | 57 do pela própria existência, e o fato de ser imune a armas de fogo torna tudo ainda mais dolorido. Além de se destacar por um impressionante trabalho de maquiagem e efeitos especiais, o monstro ganha vida através de Robert John Burke, ator que Hartley conhecera nos tempos de faculdade e com quem tra- balhara nos filmes A Incrível Verdade, Simples Desejo e Flerte. Os personagens, de modo geral, são delineados até demais, sem deixar muitas margens para dúvida. A editora, interpretada por Helen Mirren, está sempre empunhando um cigarro, sedenta por veicular as piores notícias possíveis. Uma caricatura da mídia sensacionalista, um tema de grande interesse para Hartley, o qual vol- taria a abordar em The Girl From Monday. Dr. Artaud é um cientista genioso que conhece o segredo por trás do monstro. Vivido pelo ator e diretor islan- dês Baltasar Kormákur, o personagem usa um par de óculos de lentes muito grossas, um paletó mal abotoado e não larga o charuto por nada, quase um Groucho Marx da ciência. Aliás, é uma experiência interessante observar como Hartley insere ironia e humor inexpressivo (deadpan) em um filme de formas tão marcadas. A delica- deza de alguns planos também é algo memorável, como quando Beatrice aban- dona a bengala que usava na recuperação de um acidente. O objeto permanece estático, em primeiro plano, enquanto, pela janela, vemos a moça caminhar livre. A fluidez da câmera, que vez ou outra executatravellings circulares, são de encher os olhos. Entretanto, a trilha sonora eletrônica, composta pelo próprio diretor, soa invasiva e incômoda aos ouvidos. Apesar de parecer um filme atípico na carreira do cineasta pelo teor fantás- tico, Beatrice e o Monstro é assinalado por longos diálogos, monólogos e outras características particulares ao cinema de Hartley, como personagens pouco convencionais e discurso filosófico. Chama a atenção por suas dualidades e contradições, e também pela transformação de suas personagens principais,

58 aproximando o fantástico da realidade e fazendo com que o absurdo esteja menos no monstro e mais no ser humano. Um retrato melancólico sobre o de- saparecimento e a irrelevância da fantasia diante do horror do mundo real. O monstro é uma representação grotesca de nós mesmos.

O Cinema de Hal Hartley | 59 The Girl From Monday EUA, 2005. Com: Bill Sage, Sabrina Lloyd e Tatiana Abraços Sinopse: Nos dias da Grande Revolução, uma empresa multimídia inseriu a ditadura do consumidor na América. Cidadãos são agora oferendas públicas no mercado de ações e toda vez que eles se relacionam sexualmente e se mantêm emocionalmente desapegados o valor cresce. Horrorizado com a desumanização, um homem lidera a Contrarrevolução. Prêmio “Novas Visões” no Sitges – Catalonian Film Festival. Duração: 84 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “Aqui quero continuar meu pensamento crítico sobre a cultura corporativa, pu- blicidade, etc. Mas retornando a forma e técnica de O Livro da Vida, que foi mais bem apreciada.”

60 Rastros de corpos em futuro distópico Camila Vieira

Múltiplas faíscas luminosas rasgam um fundo azul, enquanto ruídos ele- trônicos são entrecortados por silêncios. As primeiras imagens de The Girl From Monday apresentam o rastro, o traço, o vestígio como componente estéti- co para uma narrativa de ficção científica, realizada a partir das possibilidades do vídeo digital. Com uma produção de orçamento enxuto, Hal Hartley não faz de seu longa-metragem um grande aparato de maquinarias e efeitos especiais, como é de praxe em filmes do gênero. Pelo contrário, é bem econômico ao pre- ferir explorar planos de enquadramentos inclinados e com velocidade ralen- tada de gravação da câmera (uma Sony VX2000). A estratégia não só enfatiza o estranhamento daquele universo fílmico criado, como também proporciona efeitos de evanescência na imagem, quando os corpos inertes dos personagens se movimentam. O mundo futurista de The Girl From Monday é constituído por indivíduos submetidos à lógica do consumo e que já não têm mais autonomia sobre seus próprios modos de vida. “A palavra se torna carne. Não. O corpo permanece... o que?”, questiona a voz over do narrador, que resume a dúvida do filme em torno da corporeidade e dos desejos de seus personagens. São seres que transitam pelos espaços, deixando vestígios de tudo o que fazem, a partir do monitora- mento do código de barras impresso em seus pulsos. Em um cenário distópico, uma Nova Iorque fria e asséptica vive a era da Revolução, orquestrada pela Tri- ple M (Major Multimedia Monopoly), que coordena uma ditadura do consumo em prol do desenvolvimento e do progresso tecnológico.

O Cinema de Hal Hartley | 61 O protagonista Jack Bell (Bill Sage) é um dos executivos da agência de publi- cidade da Triple M e responsável por lançar um projeto que estimula os con- sumidores a aumentar o poder de compra, de acordo com a intensificação dos atos sexuais. Cada indivíduo é pensado como investimento com potencial de rentabilidade e a população é convencida a acreditar que o novo regime é o ideal. Ao se colocar em dúvida sobre sua função na agência, Jack toma parte na contrarrevolução ao sistema. Sua colega de trabalho, Cecile (Sabrina Lloyd), é constantemente punida por burlar as regras da corporação e, aos poucos, nutre a curiosidade por também se integrar à clandestinidade. Uma mulher — a garota do título (interpretada pela modelo brasileira Ta- tiana Abraços) — aparece nua no oceano, vinda de um planeta distante, com a missão de levar de volta o amigo que chegou naquela cidade, há dez anos, também preso a um corpo humano. Ela é quem melhor representa a figura do outsider, que tanto mobiliza a filmografia de Hal Hartley. Outsiders também são os contrarrevolucionários, como o jovem William, que procura subverter as ordens da escola. Dentro do universo do filme, o ambiente escolar é como se fosse uma prisão de alta segurança, com rígido controle de armas e moni- toramento cognitivo dos estudantes, que são medicados para permanecerem apáticos e educados para se tornarem estúpidos. Neste trecho do filme,Walden , de Henry Thoreau, é uma referência literária, que aparece como instrumento de autodescoberta dos funcionários, obrigados a cumprir horas de trabalho na escola, como punição pela infração das regras de mercado. Para criar uma sociedade totalitária, opressiva e vigilante como elemento central de The Girl From Monday, Hartley inspira-se na literatura de George Orwell, mas é bastante contrarrevolucionário na forma como filma. Não se se- duz por grandes aparatos tecnológicos a preencher o cenário, nem por figurinos sofisticados (o que há de mais inusitado são os capacetes acoplados a computa-

62 dores). O cineasta potencializa os recursos precários do vídeo e, para incremen- tar a ambiência, a trilha musical mistura instrumentos mecânicos e eletrônicos. Algo notável na encenação de The Girl From Monday é a gestualidade dos ato- res, que contribui para o realismo antinaturalista do filme. Os rostos sustentam olhares quase inexpressivos e os corpos alternam entre a paralisia e movimen- tos repetitivos. Tal estratégia é reforçada na sequência da sala de aula, quando os estudantes são forçados a usar capacetes com programas virtuais, que os le- vam a se movimentar de maneira uniforme, como se estivessem anestesiados. Em notas sobre a produção, Hartley descreveu The Girl From Monday como “um filme falso de ficção científica sobre o modo como vivemos agora.” O lon- ga-metragem elabora um instigante comentário crítico sobre as forças sociais, culturais e econômicas do capitalismo contemporâneo, que transforma o sexo, o corpo e o conhecimento em mercadorias.

O Cinema de Hal Hartley | 63 Fay Grim Alemanha/EUA/França, 2006. Com: Parker Posey, Jeff Goldblum e James Urbaniak Sinopse: Fay Grim é uma mãe solteira do Queens. Ela teme que Ned, seu filho, se pa- reça com o pai, Henry Fool, que está foragido da polícia há sete anos. Simon, o irmão de Fay, cumpre pena de 10 anos de prisão por ter sido cúmplice de Henry. Na cela, Simon pensa bastante nos anos em que viveu com Henry e suspeita que ele não fosse o homem que dizia ser. Prêmio do Público no RiverRun International Film Festival e Seleção Oficial do Festival de Toronto. Duração: 118 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “Finalmente, eu encontrei uma forma de retornar aos personagens de Henry Fool. Eu sabia que tinha que ser sobre Fay. Mas, então, pensei que podia usar isso in- tencionalmente para que americanos desinformados considerarem a mudança do mundo que nós estamos experimentando...”

64 Intriga internacional à moda Howard Hawks Rodrigo Fonseca

Numa entrevista concedida à revista Tabu em 2015, Hal Hartley afirmou que a cada filme novo dirigido por ele deixa em sua boca um sabor de western. Não há aparência alguma de bangue-bangue em Fay Grim, lançado pelo cine- asta em 2006, no Festival de Toronto: trata-se de um thriller de espionagem, cheio de charme, filmado em locações como Berlim, Paris e Nova Iorque. Mas Hartley insiste em vê-lo como um bangue-bangue existencial... e explica a ra- zão: “Todo faroeste, no fundo, é uma crônica sobre a preservação de uma ética e a construção de uma identidade com base no desbravamento de uma terra inóspita, como, no caso, o Velho Oeste. E é assim que minha câmera se reporta às realidades urbanas que eu filmo”. Amparado numa atuação abrasiva de Parker Posey, que parece filtrar cada rasgo de afetividade barata das situações melodramáticas com as quais se depara, Fay Grim vê a transição de um indivíduo da passividade cotidiana es- sencial à ação, movido por um incidente incitante do extraordinário — é um mote comum a Hartley. No enredo, Fay é uma mãe solteira do Queens, que tenta abafar de suas memórias angústias vividas na história narrada em As Confissões de Henry Fool. Ela teme que Ned (Liam Aiken), seu filho de 14 anos, venha a se parecer com seu pai, o escritor (ou quase isso) Henry (Thomas Jay Ryan), que está foragido da polícia há sete anos. Simon (James Urbaniak), o irmão de Fay, cumpre pena de 10 anos de prisão por ter sido cúmplice de Henry, mas deve a ele a paixão que desenvolveu pela escrita. Na cela, Simon pensa bastante nos anos em que viveu com Henry e suspeita que ele não era

O Cinema de Hal Hartley | 65 o homem que dizia ser: havia mais do que Literatura em seu universo. Um dia, a CIA procura Fay e pede que ela viaje até Paris, para reaver alguns bens de Henry. A missão se revela um jogo perigoso, levando a moça ao secreto mundo da espionagem internacional. Que conexão existiria nesta trama com o faroeste? Pense pela lógica de Hartley: há um ethos interno que Fay, confrontada com uma realidade que exi- ge virtudes heroicas, faz de tudo para resguardar. Ela não deseja ser como os agentes à sua volta. Não estamos diante de uma jornada heroica clássica, pois o filme não é o que se chama de “cinema de primeiro campo” (conceito derivado do antropólogo David Bordwell), ou seja, uma narrativa calcada numa missão a ser completada. Estamos diante de uma narrativa na qual o discurso filosófico de Hal (seu cinismo em relação às convenções sociais, inclua aí as convenções cinematográficas) se faz mais importante do que viradas de roteiro: é “cinema de segundo campo”, isto é, um espaço de debate. Hartley equilibra suas provocações com uma cadência de aventura cons- truindo, ele mesmo, uma montagem que se alterna entre o frenético e o con- templativo, planos picotados e alongados, numa diástole e numa sístole, como o movimento do coração. Fay não é um 007 de saias: é uma mãe em busca de sossego em sua família e uma mulher afoita por exorcizar fantasmas de um pretérito imperfeito. Temos uma roupagem de suspense que por vezes lembra Intriga Internacional (North by Northwest, 1959), porém, Hartley é menos hit- chcokiano e mais hawksiano, dialogando mais com o Howard Hawks charmoso (e sombrio) de À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946).

66

Meanwhile EUA, 2011. Com: D.J. Mendel, Danielle Meyer e Miho Nikaido Sinopse: A história de Joe Fulton: aquele que pode corrigir qualquer coisa e ajudar a qualquer um, porém não consegue atingir sucesso na vida pessoal em nenhuma área. Mas hoje talvez seja diferente. Duração: 59 minutos | Classificação indicativa: 14 anos

Hal Hartley apresenta: “Quando retornei para Nova Iorque depois de cinco anos vivendo na Europa que- ria realizar um filme simples sobre um homem apenas tentando que as coisas fossem feitas. Estava interessado nas coisas do cotidiano — as tarefas munda- nas. Eu tinha feito bastante disso em Berlim com meus curtas-metragens daquele período. Mas também queria olhar para a cidade novamente com um olhar mais maduro e fresco.”

68 A felicidade por entre espasmos de angústia Octavio Caruso

Dentre todos os jovens diretores independentes que foram impulsio- nados pelo reconhecimento no Festival de Sundance no início da década de noventa, nomes como Quentin Tarantino, Steven Soderbergh, Tom DiCillo, Anthony Drazan, Richard Linklater, Alexandre Rockwell, Todd Haynes, Gregg Araki, Allison Anders e Maggie Greenwald, não há criador mais curioso que Hal Hartley. Alguns de seus colegas moldaram seus estilos ao longo do tempo na direção de algo mais facilmente palatável para o público mainstream, decisão comercialmente inteligente, porém, moralmente semelhante ao literário pac- to faustiano. Os chamados “filmes indie” populares hoje são, em grande parte, projetos que seguem uma cartilha estético-narrativa limitada, uma espécie de fábrica de cosplays de cineastas marginalizados que, por trás da fachada produ- zida, escondem os fios dos titereiros engravatados. Hartley é o que a garotada hoje em dia chamaria de “indie de raiz”, tudo nele é genuíno. Com baixíssimo orçamento e apenas onze dias de filmagens, ele fir- mou seus pés no delicioso A Incrível Verdade, evoluiu o conceito em Confiança e Simples Desejo, explorou os limites no excelente Amateur, alcançou maturi- dade em As Confissões de Henry Fool e, quando a regra do jogo dizia que havia chegado o momento de lucrar com sua imagem, abraçar o sistema e, de certa forma, aceitar ser domesticado criativamente pela indústria, o nova-iorquino atacou com sua obra tematicamente mais corajosa: Beatrice e o Monstro. Esta conduta artisticamente íntegra se mantém clara em seus trabalhos recentes. Audacioso, ele financiou Meanwhile com a ajuda dos fãs em uma campanha no

O Cinema de Hal Hartley | 69 Kickstarter, talvez seu esforço audiovisual mais radical, filmado com uma Ca- non 5D DSLR e idealizado para a tela pequena. Ao contrário dos anteriores, que essencialmente lidavam com a subversão de convenções de variados gêneros, desta feita ele estabelece linguagem própria, inserindo uma generosa dose de inspiração autobiográfica na figura do renomado escritor vivido por Stephen Ellis, que se encontra com o protagonista, o esforçado e azarado Joe (D.J. Men- del), em um bar de Manhattan para discutir as dificuldades de se lutar por um lugar ao sol na selva de pedra. O personagem, inspirado em Leopold Bloom, do romance Ulisses, de James Joyce, simboliza a natureza múltipla e complexa do ser humano: as suas várias facetas são destrinchadas na estrutura narrativa em capítulos numerados. Acompanhamos o desencantado homem de meia-idade em sua complicada jornada até o escritório da produtora Possible Films — esperto exercício meta- linguístico, já que se trata da própria produtora de Hartley — na tentativa de vender sua história e garantir mais algum tempo de sobrevivência financeira na área. Com sua conta bancária congelada por atraso no pagamento dos im- postos, ele se agarra a alguns trocados e realiza todo tipo de bico, cruzando no caminho com figuras tão angustiadas quanto ele, como a melancólica mulher (Chelsea Crowe) que deseja pular de uma ponte para a morte certa, ou a jovem (Kanstance Frakes) que desabafa seus problemas perceptivelmente fragiliza- da e emoldurada pela melosa trilha sonora propositalmente manipuladora, bruscamente interrompida pela frieza de seu interlocutor que a abandona no meio do discurso sem cerimônia alguma. Há no ar uma opressiva sensação de desamparo, do triste rapaz esmolando na calçada com uma placa informando sua qualificação para trabalhar, passando pelo ilusório conforto profissional do irmão caçula (Scott Shepherd) de Joe, executivo preso em uma rotina que já não representa nada em sua vida, até uma amargurada ex-namorada (Christi-

70 ne Holt), que não conseguiu superar o fato de que foi trocada por uma garota muito mais jovem. Parece que a sociedade cria regras com a intenção de desu- manizar os indivíduos e conscientemente apressar uma suicida corrida rumo à extinção, como a freudiana pulsão de morte que estimula as diversas teorias de fim do mundo que pululam na mídia com incrível frequência. Quando é questionado no bar sobre a razão que o leva a buscar diferentes atividades, ele defende inteligentemente que é mais difícil abater um alvo em movimento. O ato de evitar se focar em apenas uma linha de atuação, leitmotiv da obra, potencializa o contexto apocalíptico de extrema injustiça em que pou- cos privilegiados alcançam facilmente e, muitas das vezes, sem talento, os seus objetivos, restando as sobras para serem disputadas pela multidão de comuns. É quando o autor, alter ego do diretor, surpreende Joe ao afirmar que o sucesso afasta os riscos, elemento fundamental na equação desafiadora que todo artis- ta deve se empenhar em resolver. A felicidade, apesar de ser difícil de acreditar, está exatamente no conflito, repousando entre espasmos de angústia.

O Cinema de Hal Hartley | 71 My America EUA, 2014. Com: Greg Allen, Thomas Jay Ryan e D.J. Mendel Sinopse: Uma sala. Vinte e uma vozes. Um retrato dos Estados Unidos. O filme é composto de 21 monólogos escritos pelos mais excitantes autores teatrais da contemporaneidade. Duração: 77 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “A comunidade que dá suporte para o Center Stage Theater, em Baltimore, enco- mendou 50 monólogos para dramaturgos contemporâneos com o objetivo de cele- brar seu 50º aniversário. Muitos deles foram interpretados no teatro. Então, eles me pediram para rodá-los com fins promocionais — para usar no website e em áreas públicas de Baltimore. Um ano depois, recebi a permissão de pegar aqueles que achei os 20 melhores monólogos e fazer um longa-metragem a partir disso. En- contrei grandes atores que passaram a trabalhar comigo. Eu não fiz o elenco nem escrevi nada em My America, obviamente... Eu só tive apenas 60 minutos para rodar cada um dos segmentos. Tudo em uma sala grande.... Foi uma explosão.”

72 Uma América fragmentada em cartões-postais às avessas Carol Almeida

Não são poucas as obras, no cinema e fora dele, que se debruçam sobre o que viria a ser a identidade da América, essa instituição responsável pela fun- dação do imaginário não apenas sobre si mesma, mas sobre o resto do mundo. Quando Hal Hartley, diretor que sempre se negou a compactuar com o mains- tream que opera esse imaginário, decide então fazer um filme que tenta, de alguma forma, encapsular a identidade do que essa América significa para ele, espera-se nada menos que as imagens venham revestidas com uma não tão fina camada de ironia. E se ele decide fazer My America em esquetes individuais que acontecem num cenário minimalista, chapado, um loft quase que desprovido de objetos de cena, há ali uma declaração de que a pretensão de identificar o que (ou quem) é a América será filmada em um espaço que espelhe o quão rasa e plana pode ser a estranha obsessão de uma nação em busca de um ethos único. Porque talvez a América, ou pelo menos essa América que ele chama de “minha” (e cujo pronome possessivo, por si só, dá a dimensão territorialista e protecionista dessa nação), seja tão complexa quanto uma parede branca de fundo: ao mesmo tempo em que tudo pode ser projetado sobre ela, tudo pode ser tão insípido e vazio quanto ela. A ênfase nas possibilidades de performan- ces teatrais que esse espaço traz é onde se registra o cuidadoso trabalho de direção, que aqui se atém a um processo tanto de enquadramento quanto de montagem. Hartley filma esses personagens “tipicamente americanos” com a câmera no tripé, ora em planos mais fechados, ora em planos, como não pode- ria deixar de ser, americanos.

O Cinema de Hal Hartley | 73 O modo como ele enquadra e edita as imagens dialoga, quase sempre, dire- tamente com o que é dito em cena: para a mulher que fala sobre o problema de uma sociedade que não mais “olha nos olhos” das pessoas, a câmera a filma de cima, num plongée que se nega a olhar nos olhos dessa mulher; para o su- jeito paranoico que narra o assassinato de um presidente, os planos médios se intercalam com closes e supercloses que dão conta do estado de espírito de alguém que parece estar sendo perseguido por alguma conspiração intrincada (a própria América?). O desenho de som, em alguns momentos, interfere nos monólogos, ajudando a dar algumas outras dimensões de tempo e espaço ao ambiente vazio em cena. My America, no entanto, é um filme que, no esforço de parecer ironicamente despretensioso nesse exercício de registrar perfis, sofre com altos e baixos de roteiros escritos, desta vez, não por Hartley, mas por 21 autores que, não pou- cas às vezes, pesam a mão no clichê. Pela própria declaração pessoal instituída no título do filme, imagina-se que a América da qual Hartley vai tratar diz res- peito àquela dos personagens suburbanos de seus filmes, algo entre a popula- ção mais conhecida como o white trash e uma classe média trabalhadora, ambas atravessadas por um moralismo puritano e um sentimento egóico e arrogante diante de tudo que não é espelho. “Boas cercas fazem bons vizinhos, então você fica do seu lado da cerca pra que a minha grama seja sempre mais verde”, diz o ator que interpreta o homem branco raivoso. O fato é que muito desses personagens, particularmente algumas mulheres brancas, se tornam muitas vezes tão rasos e achatados quanto o espaço em que são filmados. Uma candidata a miss fala as piores frases feitas; uma jovem yu- ppie que deseja que o Oriente Médio se exploda porque ela já tem “problemas” suficientes; uma mãe de família conversando no supermercado sobre como fazer a torta do Dia da Independência; e o imigrante que tem ódio de todas

74 as minorias. Várias das pessoas em quadro se transformam rapidamente em pastiches que pouco acrescentam às camadas de ironia à América suburbana com a qual o cinema de Hartley ficou conhecido. Os melhores episódios do filme — e é importante pontuar que ele foi pensado originalmente como uma websérie, com mais esquetes do que as que aparecem no longa — acontecem quando a dupla de poetas conhecida como The 5th L rima versos agudos: “não há lugar melhor que o capitalismo, baby, nós somos a vaidade no seu ápice” e quando um presidiário, interpretado pelo ator Brian Tyree Henry, fala de como a famosa “guerra às drogas” de Ronald Reagan foi, na verdade, uma guerra aos negros: “ele precisava de um inimigo, precisava escolher quem ia pra cadeia e quem poderia votar: Harvard ou a Quebrada?”. Com altos e baixos em seus respectivos roteiros, os monólogos filmados em My America terminam funcionando como um testemunho do quão a ideia de ser americano/a é, ela mesma, sempre suscetível a cair em um lugar-comum construído pela própria indústria cinematográfica. E como, tantas vezes, as melhores conclusões sobre o que constitui essa nação terminam partindo das pessoas que, para além de elaborarem intelectualmente sobre a América, vi- vem de fato dentro dela.

O Cinema de Hal Hartley | 75 Ned Rifle EUA, 2014. Com: Aubrey Plaza, Parker Posey e Thomas Jay Ryan Sinopse: Jovem sai em busca do pai com a intenção de matá-lo por ter destruído a vida de sua mãe. Mas os seus objetivos são frustrados pela problemática Susan, cuja conexão com seu pai está relacionada antes da chegada de Henry Fool na vida da família Rifle. Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim – Mostra Panorama. Duração: 85 minutos | Classificação indicativa: 16 anos

Hal Hartley apresenta: “Eu queria que a saga da família Grim chegasse ao fim. Mesmo quando comecei a escrever Fay Grim, já sabia que deveria existir uma terceira parte final – e que seria focada em Ned, o filho. Então, tinha esperança que Liam Aiken crescesse e se transformasse em um ator. E isso aconteceu. E, de maneira interessante, ele cresceu para ser um ator muito parecido com os protagonistas de meus primeiros filmes – como Martin Donovan, Bil Sage e Robert Burke.”

76 Voltando à velha forma Mario Abbade

Um ponto interessante sobre Ned Rifle é que não é necessário ter visto os dois filmes anteriores para compreender o que está acontecendo na trama. O longa é o terceiro capítulo de uma narrativa iniciada em 1997 com As Confis- sões de Henry Fool. O cineasta Hal Hartley levou quase 20 anos para finalizar a trilogia, algo impensável num projeto típico de Hollywood que envolve con- tar uma história em três partes. Essa particularidade define bem o porquê de Hartley ser chamado de o legítimo diretor de filmes independentes. Quando ele concebeu Henry Fool, a ideia não era iniciar uma trilogia, mesmo tendo sido o seu filme com melhor retorno financeiro, além de ter ganhado o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes de 1998. Mas Hartley resolveu voltar aos personagens com Fay Grim em 2006, e, em Ned Rifle, finaliza a saga concentrando a trama em Ned (Liam Aiken), filho de Henry (Thomas Jay Ryan). Ned está determinado a matar seu pai por acreditar ser ele o responsável por destruir a vida de Fay (Parker Posey), sua mãe. Mas seus planos são frustrados com a entrada em cena da problemática e sexy Susan (Aubrey Plaza). Ela tem uma ligação com Henry desde antes de ele se envolver com a família Grim. O ba- cana é que Hartley mantém basicamente o elenco que estava desde o início em Henry Fool, com destaque para Liam Aiken, de quem o público pode acompanhar o crescimento, de criança até se tornar adulto. Algo que remete vagamente ao que o diretor Richard Linklater fez em Boyhood: Da infância à juventude (2014). Ned Rifle pode ser classificado como um road movie protagonizado por uma família disfuncional. E o longa tem todos os maneirismos visuais e dramatúr-

O Cinema de Hal Hartley | 77 gicos que fizeram Hartley ser cultuado por um séquito de fãs. O diretor sabe como ninguém dar aquele tratamento levemente surreal e bizarro ao cotidiano, de modo que mesmo o espectador menos atento consiga perceber as peculia- ridades apontadas. Hartley segue seu estilo minimalista de não facilitar nas pequenas nuances dramáticas para os não iniciados, quase como se fosse um experimento em que desconstrói a narrativa com a típica mistura de drama enxuto com comédia pouco comum, com interpretações contidas de todo o elenco. Essa escolha é corroborada pela fotografia de cores opacas do sérvio Vladimir Subotic, que tinha trabalhado com ele em La Commedia (2014). O humor intelectual de Hartley aqui ganha camadas tragicômicas, principal- mente por causa da personagem interpretada por Aubrey Plaza, que é a novi- dade do projeto. Ela rouba o filme em tudo que é cena que aparece. Plaza faz o papel com uma aura de femme fatale que transforma o longa num thriller re- vestido de estética neo noir. Ao mesmo tempo, Hartley mantém intacta uma de suas qualidades mais singelas, que é a maneira como os personagens expõem pérolas filosóficas como se estivessem num recital — e que levam para a tela a visão do diretor sobre a vida e o mundo. Em Ned Rifle, Hartley propõe um deba- te sobre o conflito entre o sagrado e o profano por meio de temas como religião, Deus, pecado, parricídio e família. O longa representa um retorno ao melhor de Hartley, lembrando seus primeiros filmes - que ele continue nesse caminho.

78 Curtas-metragens Ambição

Seguindo uma espécie de fluxo de pensamento, do trabalho em progresso, Ambição já denota elementos da obra pregressa e do que iria aparecer a seguir. Mesmo com uma proposta mais narrativa do que as experiências digitais que começam na segunda metade dos anos 90, o curta também representa a ca- racterística essencial dos filmes de menor duração: um esboço em que tudo é permitido para encontrar uma forma ideal de trabalho com texto, imagens e atores. Ambição é um conto cinematográfico que carrega a crise existencialista do personagem principal, como em toda a filmografia de Hartley, em meio a uma crítica irônica ao corporativismo e ao mercado de trabalho, com direito a monólogos sobre o sentido de uma carreira profissional. Os corpos em Hartley estão sempre em choque ou ocupando o espaço de maneira antagônica. Tudo em cena se traduz a partir de uma luta, tanto que até a sineta característica do boxe soa na tela escura. Em meio ao capitalismo desenfreado, a disputa não existe somente na base de currículos ou na entrevista de emprego, ela está ali entre socos, empurrões e tapas. (Leonardo Luiz Ferreira)

(Ambition) EUA, 1991. Com: George Seaster, Patricia Sullivan e Bill Sage Sinopse: Um dia na vida de um jovem artista que busca sucesso profissional e a atenção de uma bela mulher, mas apenas se depara com frustração e violência. Duração: 9 minutos Classificação indicativa: 14 anos

80 Teoria da Conquista

Retrato de uma geração de artistas que representa o filme de ficção mais biográfico de Hartley. O diálogo estabelecido se relaciona diretamente com a urgência do fim dos anos 80 e 90: como ser um intelectual sem poder pagar nem o aluguel? Um apartamento passa a ser o ponto de encontro entre amigos para discussões filosóficas e músicas; tudo marcado pela fina ironia nos diálo- gos, uma das principais características do diretor, que analisa os personagens sem julgá-los e provoca a reflexão no espectador. A tão propalada admiração por Godard encontra de fato aqui uma homenagem afetiva explícita na presen- ça de um coadjuvante fumando charuto, de óculos escuros e com a presença física que remete ao realizador francês. Assim como diversas outras obras, Te- oria da Conquista traz a citação de autores que marcaram o diretor de alguma forma e se transformam em um fluxo de consciência dos personagens: Robert Bresson e a cerveja podem andar juntos na mesma sentença no cinema de Hal Hartley. (L.L.F.)

(Theory of Achievement) EUA, 1991. Com: Bob Gosse, Jessica Sage e Elina Löwensohn Sinopse: O retrato de um grupo de amigos de classe média que busca um sentido para a existência. Mas antes necessitam pagar o aluguel. Duração: 18 minutos Classificação indicativa: 14 anos

O Cinema de Hal Hartley | 81 Opera Nº 1

O curta surge como uma tiração de sarro, ao mesmo tempo em que valori- za as possibilidades de improvisação em meio à precariedade. Hartley celebra a liberdade de se construir imagens sem compromissos e livre da obrigato- riedade de imprimir discursos sofisticados ou mesmo discutir grandes temas. Opera Nº 1 também serve para ridicularizar os musicais cafonas que tomavam conta da Broadway bem como de certo cinema água com açúcar feito nos gran- des estúdios hollywoodianos em plenos anos 1990. Trabalhando em cenários deteriorados de antigos prédios nova-iorquinos, com músicas piegas dubla- das por algumas de suas atrizes fetiche, como Parker Posey e Adrienne Shelly, coreografias e atuações intencionalmente caricatas e abusando da encenação despojada, Hal Hartley faz desse curta mais uma peça de ironia tão cara a seus métodos de criação. Embora surja insosso, o filme vale pela deslocação e pelo nonsense despretensioso. (Fernando Oriente)

EUA, 1994. Com: Adrienne Shelley, Parker Posey e Patricia Dunnock Sinopse: Uma pequena ópera cômica que segue duas deusas interferindo na vida de mortais. Duração: 7 minutos Classificação indicativa: 14 anos

82 NYC 3/94

O curta traz a cidade de Nova Iorque como cenário e personagem, como um corpo vivo que promove e condiciona a desordem e o caos naqueles que ha- bitam em seu interior orgânico. Ao intercalar, de maneira irônica, um persona- gem que lê reflexões teórico-existencialistas para a câmera, com cenas de rua em que outros personagens se encontram em constante tensão e movimento, sendo ameaçados por algo que nos chega por meio da banda sonora — ruídos de tiros, buzinas, explosões — Hartley constrói um filme performático, em que a presença dos atores se expressa por meio do gestual, do movimento corporal, dos encontros e desencontros desses corpos acossados por um ambiente hostil e uma atmosfera de medo. Mais do que debater a opressão de uma grande cidade sobre a fragilidade do ser humano, Hartley encena tudo com ironia; e o que nos fica é uma ausência de sentido, uma incapacidade de se fazer entender pelo outro, a fragilidade dos discursos e teorias. E que apenas a performance e a materialidade errante dos corpos são capazes de garantir certa posição dentro de uma estrutura que foge das próprias existências subjetivas, bem como são incapazes de serem traduzi- das por imagens e sons. (F.O.)

EUA, 1994. Com: James Urbaniak, Lianna Pai e Dwight Ewell Sinopse: No dia 1º de março de 1994, quatro pessoas são flagradas e expõem seus sentimentos enquanto Nova York está sob ataque. Duração: 9 minutos Classificação indicativa: 14 anos

O Cinema de Hal Hartley | 83 The Other Also

Em seu mais radical e melhor curta, Hal Hartley trabalha dentro das pos- sibilidades expandidas da imagem como força impressionista e sensorial. Num único plano estático, totalmente desfocado, a silhueta de duas mulheres, que se movimentam lentamente pelo quadro, se aproximado e recuando uma da outra e da câmera fixa, emolduradas por uma janela ao fundo que deixa atra- vessar uma luz dourada que toma conta de toda cena. São imagens de uma beleza melancólica que remetem a solidão, ao encontro e ao desencontro e, ao mesmo tempo, a presença e a ausência física dentro de um tempo estendido num espaço delimitado pela imagem, mas que o transpassa. A movimentação suave dentro do plano, a relação material entre corpos desfocados e os efeitos da modulação da luz aliadas a uma banda sonora com música minimalista e palavras repetidas num ritmo hipnótico fazem de The Other Also uma ex- periência que transcende o cinema e dialoga de maneira direta com as artes plásticas. (F.O.)

EUA, 1997. Com: Miho Nikaido, James Urbaniak e Elina Löwensohn Sinopse: Uma meditação atmosférica e minimalista sobre o tema do amor que se foca na reconciliação e no perdão. Duração: 7 minutos Classificação indicativa: 14 anos

84 The New Math(s)

Filme performático em que a movimentação coreografada dos persona- gens dentro do quadro e os posicionamentos de câmera que distorcem as pers- pectivas do espaço interno dos planos funcionam como potencializadores de uma sensação de desconforto e conflito, bem como de um mal-estar instalado dentro da própria imagem que servem para Hartley retomar alguns de seus te- mas favoritos, como a incapacidade de harmonia entre as pessoas e a sensação de deslocamento desses tipos dentro de uma extensão espaço-temporal. Sem diálogos, abusando das sensações provocadas pela subversão das geometrias do quadro e enfatizando a presença física de distintos objetos de cena, o cine- asta faz uma tentativa surrealista de discutir a desordem e a falta de signifi- cação da existência contemporânea em um mundo incapaz de ser explicado e muito menos compreendido. (F.O.)

EUA/Reino Unido, 2000. Com: Miho Nikaido, D.J. Mendel e Dave Neumann Sinopse: Dois estudantes brigam com o professor e entre si para encontrar a solução de uma complexa equação matemática. Duração: 15 minutos Classificação indicativa: 12 anos

O Cinema de Hal Hartley | 85 Kimono

Hal Hartley constrói no curta-metragem uma fábula metafísica de liber- tação erótica de uma mulher. Abusando da relação entre corpo e natureza, o diretor trabalha num registro poético das imagens, em que o corpo da mulher, após atravessar uma jornada física, vai se revelando, expondo não só sua carne, mas suas sensações e desejos. Esse desnudamento físico e emocional é com- posto com distância pudica por Hartley. O desejo, a possibilidade de gozo e de libertação carnal são sempre mediadas por uma necessidade de bom gosto e de impor beleza poética às imagens em detrimento de uma maior tensão erótica. Um filme simples, que opera nas sugestões (muitas vezes frias) e que busca a beleza formal para tecer um discurso sensual. Recheado por cartelas com ver- sos de poesias japonesas, o curta promete mais do que oferece, mas se deixa ver com prazer contido e distante. (F.O.)

Alemanha, 2001. Com: Miho Nikaido, Valerie Celis e Shen Yun Sinopse: Uma jovem noiva abandonada descobre suas tentações internas durante a descida para uma floresta misteriosa. Duração: 27 minutos Classificação indicativa: 14 anos

86 The Sisters of Mercy

O filme trabalha, ao mesmo tempo, a presença das duas atrizes no qua- dro, a relação delas com um extracampo estendido e com a imagem e o texto falado. Ao mostrar fragmentos de takes, dentro de uma montagem truncada, com constantes cortes secos, falsos raccords e repetição de cenas, Hartley dis- cute o processo de construção do filme, a relação que o texto falado carrega em suas possibilidades de significação (ou esgotamento) e como a presença física de personagens/atrizes dentro de um quadro, de uma imagem fabricada, pode trazer um discurso próprio, seja pela materialidade dos recortes dentro da cena, seja por meio dos silêncios e expressões faciais, seja pela relação que as duas atrizes têm com o fora de quadro. Uma desconstrução da percepção e um desnudamento do processo de fabricação e manipulação da linguagem por meio dos mecanismos de composição da gramática do cinema — explicitados e falsificados pelo uso da música, pelas modulações da luz, pelo conteúdo dos textos e a ressignicação que esse texto assume ao ser repetido, sobreposto e rearranjado. A tudo isso se soma a relação daquilo que a imagem pode reter e daquilo que a transborda de maneira imperfeita e se perde num continuum para além de si mesma. (F.O.)

EUA, 2004. Com: Parker Posey e Sabrina Lloyd Sinopse: Um documentário que registra os períodos entre as filmagens do curta-metragem Iris, revelando a imaginação, diligência e paciência para criação de um plano cinematográfico. Duração: 17 minutos Classificação indicativa: 14 anos

O Cinema de Hal Hartley | 87 Hal Hartley sobre os curtas

Ambição e Teoria da Conquista “Nós éramos menos articulados, mas esses tipos de conversações eram recorrentes entre meus amigos e eu naquela época. Estes curtas são como fotografias das pes- soas com quem saía e aprendia com.”

The Sisters of Mercy “Esta obra é feita a partir de sobras de filmagem de um clipe que fiz anos antes para a Kim Deal, da banda Pixies. Eu me aproveitei da encomenda para testar es- tas jovens atrizes que gostaria de trabalhar com. Parker Posey, claro, eu já conhe- cia. Mas Sabrina Lloyd era algo novo. Nós não trabalhamos juntos até que fizemos The Girl From Monday. E foi nesse momento, depois de The Girl From Monday, que redescobri essas sobras e decidi fazer algo novo com elas.”

The Other Also “Encomenda direta de um museu francês. Eu tinha que produzir algo para ser mostrado como vídeoarte na galeria.”

Kimono “Propuseram-me a realização de algo sexy, barato e rodado rápido... Eu fiz fotos de minha bela esposa. Baseei as passagens na poesia erótica japonesa que en- contramos.”

Opera No 1 “Fui provocado a fazer algo divertido e musical. Mas que fosse barato e rodado rápido...”

88 NYC 3/94 “No momento da primeira tentativa de destruir as torres do World Trade Center, eu fui solicitado a produzir algo sobre a minha cidade, Nova Iorque.”

The New Math(s) “Este foi um meio pelo qual Andriessen e eu podemos descobrir uma forma para trabalharmos juntos adaptando nossas sensibilidades na interpretação de textos clássicos. Nos anos seguintes, nós trabalhamos na transposição de Inanna antes de passarmos para nossa maior colaboração, La Commedia, de Dante Alighieri.”

O Cinema de Hal Hartley | 89 O Cinema de Hartley através da imprensa brasileira A compilação a seguir, realizada a partir de pesquisa no acervo da Ci- nemateca do MAM/RJ, reúne trechos de críticas, matérias e artigos sobre o cinema de Hal Hartley. Nesses textos podemos avaliar a reação brasileira ao cineasta tanto na época de lançamento dos filmes quanto anos depois. Fica cristalina a observação que a imprensa nacional seguiu o padrão da interna- cional: Hartley foi muito saudado até As Confissões de Henry Fool (1997), e de- pois amarga mais críticas negativas do que positivas ao seu trabalho, incluin- do reavaliações sobre suas primeiras obras. Mas, ao mesmo tempo, com a era digital, foi descoberto por novos cinéfilos e críticos jovens que promoveram um novo olhar para seu cinema. A compilação tem valor histórico e cobre desde comentários sobre os primeiros curtas até seu último longa-metragem lançado, Ned Rifle (2014). A ortografia da época foi respeitada, bem como eventuais erros gramaticais para permanecer fiel as publicações originais. Apenas algumas pequenas al- terações com relação ao Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa fo- ram realizadas para tornar a leitura mais fluente. Foram empreendidos tam- bém todos os esforços para localização de autoria dos textos e precisão nas datas de publicação, que somente em alguns casos não foi possível.

O Cinema de Hal Hartley | 91 A Incrível Verdade (The Unbelievable Truth, 1989) Texto escrito por Fernanda Scalzo e publicado na Folha de São Paulo. Título: Hal Hartley mostra a vida como ela é De clara inspiração godardiana são suas repetições de diálogos, que perdem o sentido original e ganham outros para perdê-los também. E a falação que se desfaz em eco na cabeça da às vezes entediada às vezes inebriada Audry. (....) Dentro da simplicidade do roteiro e das próprias personagens, Hartley constrói seu filme a partir da repetição do cotidiano, de gestos, de falas au- tomáticas. Com um olhar singular e os recursos estéticos possíveis, Hartley, longe da glamourização, mostra a vida como ela é.

Crítica escrita por Rafael Amaral e publicada no site Palavras de Cinema. Link para acesso do texto completo: https://palavrasdecinema.com/2017/07/03/a-in- crivel-verdade-de-hal-hartley/ No universo de Hartley, neste primeiro longa-metragem, tudo é feito de emoção. As personagens apenas fingem racionalidade. O diretor produz uma brincadeira às vezes com cores fortes, veloz, que só não chega a ser indolor porque há palavras cortantes. As personagens ainda mostram agressividade na forma com que se comunicam, ou alguma verdade. E o olhar de Audry e Josh ao céu, no plano final, não deixa saber o que vem pela frente. Talvez persista o medo. Talvez não sejam livres como pareçam.

Confiança (Trust, 1990) Texto escrito por Arnaldo Jabor e publicado na Folha de São Paulo. Título: Hal Hartley fala dos heróis excluídos Uma espécie de Robert Bresson gélido. Não frio, não seco. Hal Hartley re- jeita qualquer adjetivo, qualquer ornamento, afetos fáceis. Mas rejeita tam-

92 bém os fáceis frutos de um “maneirismo do rigor” (em que o próprio Bresson às vezes indulgiu). Por outro lado, também odeia vivamente ser um “punk- director” tipo Polyester ou Sid and Nancy que transforme a vida ocidental num pretexto para um expressionismo “pop-kitsch” excessivo. Não há nele essa vontade de “denunciar” o mau gosto da vida americana. Não é preciso a gordura delirante da Divine, ou os exageros de Andy Warhol. O feio já está impregnado a fundo nas figuras e décors.

Crítica escrita por Antonio Gonçalves Filho na Folha de São Paulo e publicada no dia 30/10/1992. Título: Confiança desce ao inferno suburbano Num dos muitos momentos de godardiana reflexão, o rebelde Matthew de Confiança vira para Maria, sua suburbana companheira de infortúnio, e diz: “Família é como revólver. Se você aponta na direção errada, acerta alguém.” O cineasta Hal Hartley vai mais longe. Usa uma granada para explodir o nú- cleo familiar. Segundo o ótimo Confiança, todas as tragédias são alimentadas pelo paranoico modelo celular, que não admite invasores em seu organismo. (...) Para resumir, Hartley não é do tipo que compõe fanfarras para o homem comum. É o incomum, o “outsider”, que faz o mundo girar. Gente “normal” fica parada, vendo televisão, justamente o objeto que Matthew mais odeia.

Matéria escrita por Susana Schild e publicada no Jornal do Brasil em 13 de no- vembro de 1992. Título: Confiança no avesso No final dos anos 50, os ingredientes de Confiança poderiam render um dramalhão do tipo A Caldeira do Diabo, também revisitada com tons maca- bros por David Lynch na série Twin Peaks. Mas Hartley, que distribui suas

O Cinema de Hal Hartley | 93 influências por Jim Jarmusch e Spike Lee, e ainda Robert Bresson e Jean-Luc Godard, foge do naturalismo hollywoodiano e parte em busca de um realismo tão estranho quanto original, solidário a um casalzinho de outsiders com pais piradíssimos, que não merecem a menor confiança. (...) O requintado apuro visual e técnico de Confiança foram obtidos com míseros US$ 600 mil – uma pechincha para padrões americanos. “Levei um mês para escrever, um mês para filmar e três meses na montagem”, disse o diretor.

Simples Desejo (Simple Men, 1992) Crítica escrita por Sérgio Augusto na Folha de São Paulo e publicada no dia 17/10/1992. Título: Hal Hartley é o David Lynch ensolarado Terceiro longa de Hal Hartley, 33, a mais nova esperança católica do cinema americano, depois de Coppola e Scorsese. Nem parece? E a medalhinha que Bill (Robert Burke) ganha de presente no início do filme? Além de católico num cinema de raízes judaicas e protestantes, Hartley tem outro diferencial: filma como um europeu. Interessando-se mais pelas situações do que pela intriga tecida por elas, conjuga elegância e descontração, rigor e anarquia formal, humor e circunspecção.

Matéria escrita por Eva Joory e publicada em O Globo no dia 6 de novembro de 1992. Título: O poeta dos ‘outsiders’ Com 32 anos, Hartley começou sua carreira filmando em super-8 e fazendo curtas experimentais. Seus longas demonstram preferência por temas urba- nos e tratam de pessoas à margem, inadaptadas e anarquistas. Seu maior ta- lento é saber injetar grandes doses de graça e um humor quase surrealista nos filmes, o que faz com que ele assuma semelhança com Jean-Luc Godard. Em

94 Simples Desejo, ele põe todos os atores em cena para dançar ao som pesadís- simo da banda Sonic Youth (Kool thing). Não precisa dizer que a cena é uma das mais engraçadas do filme.

Crítica escrita por Luciano Trigo e publicada em O Globo no dia 29 de janeiro de 1993. Título: Imobilidade existencial É uma visão mais amadurecida que a de Confiança, mas ainda persistem al- guns cacoetes desnecessários, como um excesso de bofetadas e desmaios. Nos enquadramentos, diálogos, ritmo de montagem e encadeamento narrativo, Hartley continua a prestar tributo ao “último” Godard (de Salve-se quem pu- der, a vida em diante), o que não basta para classificá-lo como genial. Algumas sequências de Simples Desejo são memoráveis, o que indica que Hartley já é mais do que um promissor. Mas, certamente, o melhor de sua obra está por vir.

Crítica escrita por Luiz Zanin Oricchio e publicada em O Estado de São Paulo no dia 5 de fevereiro de 1993. Título: Momento de verdade na tela O cinema de Hal Hartley é minimalista. Lembra os planos áridos de Wen- ders, em Paris, Texas e a monotonia cansada de A Última Sessão de Cinema, de Bogdanovich. Hartley trabalha com distanciamento crítico em relação a seus personagens. Em momento algum cai na pieguice. O reencontro de Bill com a confiança é expresso em um único gesto. Singelo, calmo, medido, sem exaltação. Um momento de verdade no cinema.

O Cinema de Hal Hartley | 95 Texto escrito por Nelson Hoineff e publicado no jornal O Dia em 29 de janeiro de 1993. Título: Hartley brilha entre as feras Para quem quiser fugir à mediocridade e ao convencional, no entanto, nada melhor que mais um filme de Hal Hartley, de quem o carioca acabou de ver Confiança. Seu filme a ser lançado hoje, Simples Desejo, vai na mesma linha. (...) Hartley não é um cineasta de seguir padrões estéticos previsíveis. Há nele uma deliciosa mistura de Godard, Jarmusch e autores da linha de Waters. Se- gue uma linha pragmática, completamente afinada com padrões modernos de comportamento. Seu cinema desponta com justiça entre os mais importantes da produção independente dos anos 90.

Amateur (1994) Matéria escrita por Amir Labaki e publicada na Folha de São Paulo no dia 18 de maio de 1994. Título: Hal Hartley confessa influência de Godard Exibido fora de competição, na Quinzena dos Realizadores, Amateur con- sagrou definitivamente o cineasta norte-americano Hal Hartley em Can- nes-94. Para o diretor de Confiança, trata-se de uma espécie de revanche da fria recepção, há dois anos, de seu longa anterior, Simples Desejo, na mostra Competitiva. Muito mais controlado e reflexivo que no encontro em Can- nes-92, Hartley falou à Folha sobre o encontro com a atriz francesa Isabelle Huppert: “Ela me escreveu uma carta depois de assistir Confiança dizendo que gostaria de trabalhar comigo. Nos encontramos umas quatro vezes, em Paris e em Nova York, e discutimos um roteiro que se transformou em Ama- teur. Me preocupava um pouco alguma estranheza que ela poderia trazer ao processo, vindo de fora e unindo-se a um grupo que tem tradicionalmente

96 trabalhado junto. Mas não demorei a perceber que ela tinha o mesmo tipo de sensibilidade que meus outros atores, como Martin Donovan e Elina Löwen- sohn. Ensaiamos durante umas seis semanas antes das filmagens, que dura- ram outras tantas.

Crítica escrita por Hugo Sukman e publicada no Jornal do Brasil. Título: Atores distanciados sob uma direção observadora Hartley mostra-se um hábil criador de histórias engraçadas, um arguto ob- servador da realidade que o cerca e um cineasta com uma cultura cinemato- gráfica rara. É hilariante, por exemplo, a cena em que Donovan, desmemoria- do, pergunta a um menino sentado num banco de praça o que ele está lendo. O garoto está lendo a Odisseia, de Homero, que é descrita como um livro de aventuras. A pequena gag resume o cinema de Hartley: uma relação divertida, uma observação contemporânea e bem-humorada da cultura clássica.

Crítica escrita por Rogério Durst e publicada em O Globo no dia dois de setembro de 1994. Título: Bom moderninho fazendo gêneros Hartley tempera sua chique salada de elementos com uma encenação posu- da, que às vezes beira o ridículo, mas nunca deixa de impressionar como bom cinema moderninho. E Isabelle Huppert rouba todas as cenas em que pisa.

Flerte (Flirt, 1995) Crítica escrita por Carlos Alberto Mattos e publicada em O Estado de São Paulo. Título: Formalismo vira mera perfumaria Flerte é mais um exemplar do novo formalismo que invadiu o cinema dos anos 90. Tão ou mais interessante que as histórias é a maneira de contá-las.

O Cinema de Hal Hartley | 97 Como na década de 60, redescobriu-se o prazer de experimentar com a nar- rativa. (....) Tudo aqui se resume a um flerte literal com as palavras e as ima- gens, uma brincadeira despretensiosa com a memória do espectador – que pode ocasionalmente se divertir ou simplesmente se nausear com o jogo de reincidências. Não por acaso, o último episódio termina com o próprio dire- tor dormindo sobre as latas de Flerte. Hal Hartley assina, ironicamente como sempre, seu pequeno divertimento pessoal e pisca um olho para os cinéfilos que o cultuam com fervor às vezes desmesurado.

Crítica escrita por Pedro Butcher e publicada no Jornal do Brasil no dia 17 de maio de 1996. Título: Um triângulo multinacional Hal Hartley é o cineasta da superfície. O mais independente dos diretores americanos não está interessado nas profundezas – seja da história, seja dos personagens, seja das ideias. As figuras que ele imagina deslizam num mesmo plano, puramente cinematográfico, onde os acontecimentos não têm qualquer outro significado: formam apenas uma cena de cinema. Este aspecto bem go- dardiano de sua obra, presente desde Confiança, está mais radicalizado neste Flerte. (....) Hartley consegue transformar o retorno de situações numa espécie de dejá vu interessante, neste seu filme mais próximo do experimental.

Artigo escrito por José Carlos Avellar e publicado em O Estado de São Paulo no dia 17 de outubro de 1996. Título: Realizador parte de uma atitude de espectador Um cinema de espectador, um cinema de memória. Conscientemente ou não, pouco importa, os filmes de Hartley brincam com a condição do especta- dor no instante da projeção. Brincam, assim como Allen, que inventou em Ze-

98 lig o personagem-espectador por excelência, o que se transforma todo o tempo para ser o que a imagem solicita dele. Ou assim como (brincadeira mais requin- tada) Godard e Resnais vêm fazendo em seus filmes. Os filmes de Hartley são assim talvez porque o realizador, para se sentir mais realizador, parte de uma atitude de espectador diante de filmes (europeus), que, por sua vez, partiram de uma atitude de espectador de filmes (norte-americanos). Ou porque para ele o que de fato importa seja estabelecer um diálogo de espectadores.

As Confissões de Henry Fool (Henry Fool, 1997) Crítica publicada no Jornal da Tarde (São Paulo) no dia 23 de outubro de 1997 e consta a assinatura somente de E.G. Título: Henry Fool: uma fábula que provoca e diverte Hal Hartley faz as pazes com o público. Depois dos insossos Amateur e Flerte, o diretor de Confiança e Simples Desejo volta a colocar seu estilo an- ticonvencional a serviço da narrativa e dos personagens. Henry Fool é uma provocativa fábula moderna. Com diálogos instigantes e interpretações con- vincentes (apesar de algumas situações absurdas), o filme apresenta uma ir- resistível construção de um anti-herói.

Crítica escrita por Celso Sabadin e publicada no site Cineclick no dia 22 de maio de 2009. Link para acesso do texto completo: https://www.cineclick.com.br/criti- cas/as-confissoes-de-henry-fool Denso e pesado, o filme mergulha fundo no universo marginal dos persona- gens principais e não poupa o espectador de momentos embaraçosos ou mesmo constrangedores. Decididamente, não é programa para quem deseja apenas um leve entretenimento cinematográfico para o fim de semana. Muito pelo con- trário, As Confissões de Henry Fool chega a ser perturbador, na medida em que

O Cinema de Hal Hartley | 99 explora sem retoques uma realidade crua rodeada por vícios e misérias, embora não perca de vista a eterna condição humana de sonhar com um futuro melhor.

Crítica escrita por Rubens Ewald Filho e publicada no portal UOL. Link para acesso do texto completo: https://cinema.uol.com.br/resenha/as-confissoes-de- -henry-fool-1997.jhtm O filme é irregular, com uma história longa e esquisita, retomando a velha história de um estranho que chega num lugar e modifica a vida de todos. Egocêntrico, alcoólatra, pervertido (ou seja, é um anti-anjo de Teorema de Pasolini). (...) As interpretações são interessantes (em particular de Parker Posey, que nesse ano foi premiada em Sundance como uma espécie de musa do filme independente). É um filme para poucos.

O Livro da Vida (The Book of Life) Matéria escrita por Marcelo Rezende e publicada na Folha de São Paulo no dia 29 de outubro de 1997. Título: ‘Há independentes terríveis’, diz Hartley Presidente do júri da Mostra de Cinema de São Paulo, o cineasta norte-a- mericano Hal Hartley já foi, no início da década, chamado pela crítica de “Je- an-Luc Godard dos EUA” e “grande esperança do cinema independente.” (....) Após a indiferença provocada por Flerte (1995) e a recuperação com Henry Fool, premiado no último Festival de Toronto, Hartley prepara agora um tra- balho para o ARTE, um canal de TV europeu. (...) Para o cineasta, há a neces- sidade, hoje, de uma revolução no cinema de seu país. Um pouco nos moldes da realizada por John Cassavetes (1929-1989), o ator e diretor de Shadows e A Woman under Influence, que, diz, foi o maior exemplo em seus primeiros anos no cinema.

100 Crítica escrita por Carlos Adriano e publicada na Folha de São Paulo no dia 23 de setembro de 1999. Título: Sobre a obra-prima de Hal Hartley O filme foi realizado em vídeo digital e ampliado para película 35mm. A câ- mera minúscula e outras facilidades digitais dotaram a obra de grande impac- to. É raro o aparato técnico estar tão integrado ao projeto estético e ao tema. O próprio Hartley coloca os termos numa equação estética e econômica. O borrado caleidoscópico inquieto e o rastro de imagens ralentadas rimam com a instabilidade e a precariedade da vida no final de século e milênio. A batida tecno (na trilha, David Byrne, Yo La Tengo e PJ Harvey, também no elenco) pontua um mundo computadorizado, surreal e virtual. Os lapsos temporais são metáforas dessa parábola sobre o fim dos tempos.

Crítica escrita por Ruy Gardnier e publicada na revista eletrônica Contracampo. Link para acesso do texto completo: http://www.contracampo.com.br/criticas/ olivrodavida.htm O Livro da Vida, experiência entretanto radical de Hartley na fragmentação – filme quase todo feito de gags, numa profusão enorme de planos –, é fil- mado num vídeo que consegue aproveitar esteticamente as suas limitações, criando às vezes planos com alguma beleza e um todo consistente no plano da imagem – mesmo que a imagem no filme só sirva para registrar as falas. E quando os personagens abrem a boca, haja bobagem: a pobre atendente escolhe na loteria os números 31/11/19/99 porque são os números do último dia do ano, Jesus e Lúcifer falam sobre o Apocalipse e discutem se Lúcifer se demitiu ou foi demitido.

O Cinema de Hal Hartley | 101 Beatrice e o Monstro (No Such Thing, 2001) Crítica escrita por Eduardo Valente e publicada na revista eletrônica Contracampo. Link para acesso do texto completo: http://www.contracampo.com.br/31/beatrice.htm Se Hartley após o belo Confiança tem regularmente perpetrado alguns dos fil- mes mais chatos do cinema mundial (exceção a Amateur em alguns momentos), grande parte disso se deve a Godard demais mal digerido. E é neste Beatrice e o Monstro que vemos o quão mal digerido. Porque o filme é uma assustadora can- ção de nota só, do que aliás a trilha sonora é um exemplo prático. Quantas vezes se pode repetir num filme só que a humanidade é tola e fútil, que o império da mídia é doentio, que no mundo moderno pessoas tornam-se celebridades pelos motivos menos nobres? Quantas vezes se pode ouvir isso tudo reiterado e dito a sério e ainda segurar a gargalhada? Uma vez que a gente já viu tudo, desde A Bela e a Fera (matriz assumida, lógico) até mesmo de E.T. e King Kong, a Um Hóspede do Barulho, será possível tocar nesta nota ainda hoje, sem muita, mas muita auto-ironia? Claro que Hartley tem ironia sobrando nos seus diálogos “inteligentes”, nos seus arroubos criativos (ah, este monstro rabugento mas en- graçadinho, quem diria...), nas suas brincadeiras de linguagem. Só que a ironia é direcionada aos outros e nunca ao ridículo de seu próprio discurso.

Crítica escrita por Ana Carolina Grether e Marcelo Müller e publicada no Blog Blue Velvet. Link para acesso do texto completo: https://bluevelvetblog.wordpress. com/2013/05/05/cinema-a-dois-hal-hartley-uma-relacao-muito-perigosa-2/ Para muitos Hal Hartley é um apaixonado e iludido cineasta que ama Go- dard e tenta inserir sem sucesso nos filmes seu olhar mais pessoal, confuso e ousado. Para mim, ainda que de forma irregular, ele é capaz de inovar e trazer uma forma bastante interessante de interlocução nos diálogos que parecem loucos, aleatórios, bem como a construção feliz de todos seus personagens.

102 Beatrice e o Monstro pode ser, a meu ver, uma fábula recontada na moder- nidade por um cineasta delirante, inteligente e principalmente autoral. (...) Hartley injeta forte substrato crítico em sua versão bastante particular de A Bela e a Fera, evitando maneirismos ou qualquer artifício que tire os holofo- tes da trama em si e de seus subtextos. Beatrice e o Monstro é um dos filmes mais interessantes desse diretor tão inusitado como talentoso, dono de veia sarcástica, quando não zombeteira, aqui demonstrando também total ciência artística e crítica da anomalia chamada “humano”.

Fay Grim (2006) Crítica escrita por José Geraldo Couto e publicada na Folha de São Paulo no dia 18 de outubro de 2007. Link para acesso do texto completo: http://www1.folha. uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1810200722.htm Título: Em continuação, Hal Hartley faz paródia “cool” de thriller A crítica norte-americana, zelosa pela integridade dos gêneros narrativos, de um modo geral torceu o nariz para o filme de Hartley. Dá para entender. Fay Grim distende, pelo exagero rocambolesco e pelo distanciamento irônico, a gravidade tensa dos thrillers de espionagem, sem no entanto cair na sátira desbragada de um Johnny English, um Austin Powers ou um Agente 86. Além disso, ousa mostrar terroristas islâmicos como gente de carne, osso, inteligência e boas intenções. Pode-se encarar os enquadramentos ligeira- mente inclinados de Hartley, bem como os letreiros “godardianos” inseridos aqui e ali, como cacoetes de um certo cinema independente americano, feito mais de pose “cool” do que propriamente de invenção. Mas vale mais a pena relaxar e se divertir com as tiradas surpreendentes do policial vivido por Jeff Goldblum ou com as trapalhadas da espiã acidental Fay Grim, que entre outras coisas guarda o celular no modo vibratório junto à

O Cinema de Hal Hartley | 103 virilha e, cada vez que recebe uma ligação, quase tem um orgasmo.

Texto escrito por Luiz Carlos Merten e publicado em O Estado de São Paulo. Link para acesso do texto completo: http://cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,- fay-grim-ve-os-estados-unidos-com-olho-mordaz,248063 Título: Fay Grim vê os Estados Unidos com olho mordaz Cinéfilos de carteirinha devem lembrar-se de que, nos anos 90, Hal Hartley era um dos diretores mais CC - cool e cult - do cinema dos EUA. Para muitos críticos, ele era a própria cara da produção independente no que tinha de mais ousado. Avesso às formas narrativas tradicionais, Hartley conquistou adeptos por sua crítica mordaz ao modus operandi da sociedade norte-ame- ricana em filmes como Simples Desejo, Amateur e Flerte. Em 1997, ele fez As Confissões de Henry Fool, do qual Fay Grim é a sequência. (....) O resultado é um filme minimalista inteligente e simpático, no qual dá gosto ver como Hartley resolve os problemas de produção. Fay Grim é um compêndio da pro- dução barata, e este é seu maior charme.

Meanwhile (2011) Texto escrito por Sérgio Alpendre e publicado na revista eletrônica Interlúdio. Link para acesso do texto completo: http://www.revistainterludio.com.br/?p=4377 Meanwhile é a pequena história de Joe, um candidato frustrado a ser um figurão em tantos frontes: músico, produtor de cinema, escritor, empresário, e até mesmo um consertador de diversos tipos de máquinas. Ao contrário do filme de Gomes, que testa nossa paciência em mais de 100 minutos, o de Hartley é bem curto, tem apenas 61 minutos. E são minutos que passam rápido, graças aos encontros curiosos que Joe tem em Manhattan, durante algumas horas de um determinado dia. É possível que muitos não embarquem

104 na onda do personagem, um típico falastrão nova-iorquino. E apesar de ser muito superior a Fay Grim, o longa anterior, Meanwhile está bem longe de Confiança ou Amateur para nos garantir de que Hartley voltou à velha forma. Mas como o próprio nome diz, por enquanto, já que a inspiração não vem, o diretor faz passatempos pequenos e agradáveis.

Crítica escrita por Pablo Villaça e publicada no site Cinema em Cena no dia 20 de outubro de 2012. Link para acesso do texto completo: http://diariodebordo. cinemaemcena.com.br/?cat=50&paged=4 Vivido com imenso carisma por Mendel, o protagonista é, em suma, um ho- mem engajado com o mundo ao seu redor e empenhado em realizar algo que o faça se sentir importante – uma concessão ao ego que não o impede de pen- sar constantemente no próximo. Aliás, é recompensador ver um personagem que não se limita a dizer diálogos funcionais, mas que mantém conversas en- volventes com figuras de todos os tipos, ouvindo o que têm a dizer e promo- vendo discussões que oscilam entre o trivial e o profundo, apresentando-se sempre honestas. Surpreendentemente denso e ambicioso para um filme tão curto, Meanwhile é um dos melhores trabalhos de um diretor já conhecido por seu inquestionável talento e por sua maturidade cada vez maior.

Ned Rifle (2014) Crítica escrita por Fernando Andrade e publicada no site Ambrosia. Link para acesso do texto completo: http://ambrosia.com.br/cinema/festival-do-rio-exibe- -ned-rifle-ultimo-filme-do-cineasta-americano-hal-hartley/ Título: Festival do Rio exibe Ned Rifle, último filme do cineasta americano Hal Hartley O diretor salpica seu roteiro de um vocabulário auto evocativo para o pró-

O Cinema de Hal Hartley | 105 prio fazer arte na América. Dentro de um contexto artístico como se deve? Inserir uma situação transgressora; qual tipo de moralismo? se deve ter com personagens fora do esquadro normativo. A pose é para o diretor, uma pes- quisa eminentemente estética dos padrões que a América exporta ao mundo, em termos de estereótipos culturais. Ambos personagens, tanto Henry quan- to a garota que transou com ele, modificam-se no decorrer da narrativa. Uma pertinente gradação de valor do que o público percebe de si ao se ver refleti- do, pois ninguém é sã ao foco dos olhos (plano americano).

Crítica escrita por Willian Silveira e publicada no site Papo de Cinema. Link para acesso do texto completo: https://www.papodecinema.com.br/filmes/ned-rifle/ A direção de Hal Hartley lembra a de Hal Ashby, um dos tantos realizadores que Hollywood fez questão de colocar à margem da indústria. Ned Rifle se assemelha, e pode-se dizer inspirado, com o clássico Muito Além do Jardim (1979), em que a ótima atuação de Peter Sellers leva o jardineiro Chance a se tornar-se o homem de confiança de um milionário. O bom domínio dos dois atos iniciais não se mantém até o final. O terceiro momento, justamen- te quando encontra o pai e percebe o envolvimento dele com Susan, é que Ned Rifle passa de um corredor aberto e arejado para um beco. O evidente estrangulamento da narrativa desemboca em um desfecho sem convicção e, principalmente por isso, decepcionante.

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Entrevistas Hal Hartley

No tempo das diligências de Molière Rodrigo Fonseca

Estrela de verve autoral que nasceu na cena indie dos EUA, nos anos 1990, Hal Hartley encontrou na internet uma parceira de trabalho. A partir das redes sociais e das ferramentas do crowdfunding, o cineasta nova-iorquino de Long Island, com 58 anos de vida e 33 de cinema, viabilizou maneiras de filmar que desafiam os cânones mercadológicos da indústria. A esteira de filmes icônicos em sua trajetória como realizador, como Confiança (1990) e Amateur (1994), fizeram dele um estandarte de exceção no craft dos diretores americanos. Em 2015, ele chegou ao requinte de fechar uma trilogia muito particular, composta por As Confissões de Henry Fool (melhor roteiro em Cannes em 1998), Fay Grim (2006) e Ned Rifle (2014), pelo qual ele recebeu o prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Berlim. Láureas ele tem aos montes, conquistadas em mostras como Sundance, Tóquio, Catalunha e até São Paulo, cidade que ama de paixão e já esteve presente em algumas ocasiões, inclusive como jurado da Mostra de cinema. Porém hoje, seu maior interesse está na televisão, que, com a chamada Era de Ouro dos seriados, tornou-se um canteiro de invenção. É assim que ele descreve a teledramaturgia na entrevista a seguir.

O Cinema de Hal Hartley | 109 O que mudou na sua forma de entender a indústria audiovisual depois da experiência de dirigir uma série como Red Oaks? Hal Hartley: O que existe de mais adulto, em padrão industrial, no audiovi- sual dos Estados Unidos, está na televisão, pois é lá que está o dinheiro e uma necessidade de autoafirmação que favorece a produção de enredos incomuns. A serialização deu aos criadores um novo domínio do tempo. Como alguns de meus filmes estabelecem uma relação quase continuativa entre si, eu me sinto bem à vontade com a dinâmica de narrar para a televisão. Fora isso, a TV é a casa da palavra. É no diálogo que as ações se resolvem; não na imagem. Meus filmes sempre foram muito dialogados, com muitas falas, muita reflexão: algo típico da teledramaturgia, só que um pouco mais filosófico. Ficções, não im- porta em que suporte sejam consumidas, são instâncias de reflexão sobre to- madas de decisões. O que interessa em Édipo Rei é o que ele vai decidir fazer quando souber que é o assassino de seu pai. A TV, com a dilatação do tempo, dá a um contador de histórias a oportunidade de explorar com calma o risco de cada decisão.

Existe um universo próprio em seu cinema, que dialoga com gêneros (espionagem, fantasia), mas segue regras próprias, sobretudo no que diz respeito a um emprego fino da ironia. Como o senhor descreve este mun- do que nasceu com seu primeiro longa-metragem, A Incrível Verdade, de 1989, e segue até hoje? Sou um espelho das inquietações da baixa classe média, aquela que suja as mãos de graxa e fura o dedo em pregos para levar o pão à mesa. Tenho uma predileção pelo operariado, mesmo quando meu cinema segue linhas narrati- vas que não flertem com o storytelling social estabelecido ainda no século XIX. A classe operária é uma Comédia Humana, de sofrimentos e potências, trágica

110 por essência. Nestes tempos nos quais o marxismo parece ter caído em desuso, falar de operários é um meio de se retratar hábitos e linguajares muito particu- lares, que carregam em si a urgência da sobrevivência, do trabalho. Meu cinema tenta garimpar evidências desses modos de falar, desses modos de agir, dessas crenças nas praticidades do dia a dia, mesclando as descobertas do Real com situações ficcionais que lidam com o risco, com o extraordinário. Na fricção que se dá entre observação e invenção, nasce um pensamento que me ajuda a entender e a classificar o mundo a partir do amor, da lealdade.

Qual é a influência mais direta sobre sua escrita, marcada pelo que se chama na Europa de “razão cínica”? Eu poderia lhe falar de Godard e de Fassbinder, pela maneira com que rom- pem com a linearidade da narrativa, mas antes deles vem uma grife do teatro: Molière. O que melhor me formou como artista foi a herança das peças de Mo- lière, pela maneira de olhar e registrar os costumes de uma nova burguesia. O misto de fascínio, estranheza e encantamento com a qual ele enxerga os bur- gueses serviu de base para meus estudos sobre as classes operárias. Existe um empenho em mim de falar delas sem estar refém da Sociologia. Numa outra direção, a leitura de Dom Quixote me trouxe o distanciamento ideal para falar de classes às quais eu não pertenço, tendo o humor e a fantasia como aliados. E há, no cinema, a importância do faroeste dos anos 1930, 40 e 50, feito por John Ford e Howard Hawks, na minha forma de filmar. Eles dois me ensina- ram muito sobre o humanismo. O western é uma crônica sobre a preservação de uma ética e a construção de uma identidade com base no desbravamento de uma terra inóspita.

Como era a realidade do cinema dos EUA nos anos 1990, quando o se-

O Cinema de Hal Hartley | 111 nhor criou sua reputação como autor? A independência não começou com a gente. Ela vem de John Cassavetes, ainda no fim dos anos 1950. Mas nós fomos agraciados por uma mobilização atípica de distribuidores e exibidores que nos chamavam de indies para nos dar um apelo de mercado singularizado. Fiz parte de uma geração que buscava o dinheiro para filmar na Europa, em uma rede de pequenos distribuidores que surgia com fome de filmes com maior ambição estética, capazes de despertar a atenção de uma plateia de apetite por narrativas e linguagens mais sofisti- cadas. Eram esses europeus que nos bancavam, de fora dos EUA pra dentro. A gente não passava por Hollywood, mas esta usava a gente como uma medida de diferença, como um “novo produto”. O que descaracterizou esse nosso cinema foram as crises do Velho Mundo, quando estas se abateram sobre a Europa, nosso veio de fomento ficou esgotado. Por isso, fomos buscar uma saída no crowdfunding via web para filmar.

O rótulo de autor lhe cai de maneira confortável? Tenho uma obra particular, mas eu nunca me deixei render aos pecados da pretensão ou do hermetismo. Nunca esperei ser admirado. Sou fã de Hawks e de Ford, poetas que filmavam em ambiente industrial.

112 Parker Posey

O fio desencapado de Parker Posey, a musa de Hal Hartley Rodrigo Fonseca

Escalada para viver a versão feminina do traquina Dr. Smith na reatuali- zação da série Perdidos no Espaço, que estreia em 2018 na Netflix, a americana de Baltimore Parker Posey tem uma prolífica carreira na TV e no cinema in- dependente, sendo que nesta seara ela é vista, há quase 20 anos como a musa de Hal Hartley. A figura da femme quase fatale Fay Grim a persegue como um emblema de autoralidade, abrindo-lhe portas para experiências com diretores de prestígio, como Woody Allen, que enxerga nela uma parceira perfeita para encarnar as agruras das mulheres de 50 anos. “Tenho o cuidado de construir figuras femininas cheias de desejos... desejos das mais variadas ordens... capaz de imprimir um sentimento de insatisfação e de incompletude às tramas em que atuo”, explicou Parker, numa entrevista sobre sua carreira durante o 68º Festival de Cannes, do qual participou com O Homem Irracional (Irrational Man, 2015) em sessão hors concours. “Sou uma atriz que nunca gostou de ensaiar. Pra mim a emoção se perde quando a gente ensaia. O que vale é aquela hora H, na frente da câmera, porque ali, meu foco está no outro, na reação do outro, no sentimento do parceiro. E os atores que Hartley escala são ótimos na arte de trocar”.

O Cinema de Hal Hartley | 113 Existe um humor cínico nos filmes de Hartley que deu a Parker um instinto para a comédia pautado na ironia. Ela estreou como atriz em 1991 e logo ganhou fama nas franjas de Hollywood por seu interesse em imprimir sensualidade e inquietação existencial a personagens envolvidas em enredos rocambolescos, nos quais a palavra resolve a narrativa. Com Hartley, ela trabalhou em Amateur (1994), Flerte (1995) e As Confissões de Henry Fool (1997), na qual ficou célebre no papel da espiã Fay Grim, retomada num longa-metragem com seu nome, em 2006, e em Ned Rifle (2014). “Nestes filmes, tudo o que Hal exigia de mim era a surpresa, a invenção”, conta Parker. “Com ele, tudo é muito calculado. Mas cabe aos atores a liberdade de inventar caminhos. Isso foi ótimo na minha formação e me ajudou no encontro com Woody Allen, que, nas filmagens de O Homem Irracional me deu só 20 páginas de roteiro para ler quando me convidou. Era apenas o trecho correspondente à minha personagem e mais nada. O máximo que veio a mais dele foi uma carta explicando como a personagem era. Só. Isso me deixava muito curiosa, pois eu queria entender mais sobre os outros per- sonagens. Mas a curiosidade me alimenta. Gosto da sensação de estar em sets onde o processo parece um fio desencapado pronto a me dar um choque”.

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Artigos

116 Uma análise do roteiro de Confiança Sylvio Gonçalves

Em 1991, o filmeConfiança obteve o prêmio de roteiro Waldo Salt no Fes- tival de Cinema de Sundance. Justíssimo. Devido às restrições de orçamento, o segundo longa de Hal Hartley carece do rigor de direção, arte e fotografia de seus filmes posteriores. Mas o que falta em estética, Hartley compensa em roteiro. Imediatamente chama a atenção a profundidade e o carisma dos per- sonagens, e a concisão dos diálogos. Hartley resgata o estilo das screwball co- medies, ou comédias malucas, dos anos 1930, marcadas pela troca de comen- tários ferinos e sarcásticos entre os protagonistas dos casais românticos. De fato, algumas falas de Confiança poderiam pertencer a Aconteceu Naquela Noite (It Happened One Night, 1934), ou a Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938). Mas enquanto respectivamente Frank Capra e Howard Hawks disfarçam suas temáticas em metáforas e trocadilhos, Hartley, desfrutando da liberdade do ci- nema independente americano dos anos 1990, aborda com franqueza cruel as questões sexuais e existenciais dos personagens. Confiança começa com uma excelente teaser scene, ou cold open: uma cena curta que mesmo antes da inserção do título do filme embarca o espectador em pleno desenvolvimento do enredo. Maria Coughlin (a saudosa Adrienne Shelly) revela aos pais que abandonou o ensino médio e que está grávida de um atleta do time de futebol americano da escola, com quem pretende se casar. O pai a chama de piranha, e ela o esbofeteia. Maria sai de casa, sem saber que segundos depois o pai cairá morto, vítima de um enfarto fulminante. Tudo isso ocorre em dois minutos, informando ao espectador quem é a protagonista (Maria),

O Cinema de Hal Hartley | 117 quais são as suas características principais (futilidade e impulsividade), a sua backstory, ou antecedentes na trama (sexo e gravidez na adolescência) e a sua necessidade dramática (escolher que rumo dar à sua vida). E como tudo isso é estabelecido em forma de piada, o espectador é informado sobre a qual gênero o filme pertence, no caso, a comédia de humor negro. Logo após a teaser scene, nos é apresentado o coprotagonista Matthew Slau- ghter (Martin Donovan). Demonstrando que Hartley é adepto de duas máximas do bom roteirista — os personagens devem se comunicar por subtexto, e o filme deve mostrar em vez de contar — conhecemos Matthew por meio de diálo- gos indiretos e atitudes físicas. Entediado e estressado pelo trabalho repetitivo numa oficina de conserto de computadores, Matthew se rebela contra o chefe autoritário, atirando um monitor no chão e declarando que algumas coisas não devem ser consertadas. Numa camada superior de diálogo a fala exprime a opi- nião do personagem sobre o aparelho, mas numa camada mais profunda — o subtexto — ela exemplifica a visão niilista do personagem sobre ele próprio e a vida em geral. Em seguida, Matthew declara a sua demissão, não com palavras, mas prendendo a cabeça do chefe numa prensa mecânica para em seguida mar- char para a saída da oficina. Estrutura de roteiro é uma questão muito discutida entre escritores audio- visuais e profissionais de cinema em geral. Porém, um equívoco comum con- sidera estrutura apenas a proporção entre atos adotada pelo cinema norte-a- mericano clássico: introdução no primeiro quarto do roteiro, desenvolvimento no segundo e no terceiro quarto, e conclusão no último quarto. Embora esse seja um modelo extremamente funcional, é possível adotar uma estrutura par- ticular à obra, para substituir por, ou somar à, estrutura narrativa clássica. No caso de Confiança, Hartley mantém a estrutura clássica, mas acrescenta a ela um interessantíssimo paralelismo entre os arcos dramáticos dos dois persona-

118 gens principais. Nas duas primeiras cenas vemos uma mulher e um homem que ainda não se conhecem atuarem com a mesma impulsividade em momentos pivotais de suas vidas. Aliás, o fato de que ambos os nomes começam com as mesmas duas letras não é coincidência. O espectador percebe imediatamente que Maria e Matthew estão cursando trajetórias paralelas, que poderão em al- gum momento vir a se cruzar. O paralelismo entre as tramas de Maria e Matthew prossegue nas cenas se- guintes, na medida em que ambos os personagens vivem conflitos com os seus entes queridos. Maria conta ao namorado que está grávida, mas ele a respon- sabiliza pela gravidez e se recusa a abandonar seus planos de se tornar um atleta profissional para cuidar dela e da criança. Maria retorna para casa para descobrir que matou inadvertidamente o pai, e entender que a mãe pretende se vingar obrigando-a a trabalhar para sustentá-la. Matthew, apesar de já ter passado dos trinta, ainda vive com o pai, um obcecado por ordem e limpeza. Ele conta ao pai que se demitiu, e é obrigado a ouvir um sermão carregado de sarcasmo e desprezo. Indecisa se aborta ou não, Maria vai a um bar, onde sofre uma tentativa de estupro e testemunha o sequestro do bebê de uma jovem mãe. Martin, também vivendo um dilema, deixar ou não a casa do pai, peram- bula sem rumo pela noite, e é nesse ponto que os dois personagens se conhe- cem — aos vinte e nove minutos, ainda no começo do segundo ato, segundo a estrutura narrativa de roteiro clássica. Maria e Matthew passam a percorrer juntos a trama, mas os seus arcos dra- máticos particulares continuam a espelhar um ao outro. Acolhida na casa de Matthew, Maria testemunha e influencia a relação tempestiva entre ele e o pai. E ao acompanhar Maria à casa de sua mãe e irmã, Matthew desequilibra ain- da mais a já abalada relação entre as três mulheres. Os arcos se entrelaçam definitivamente numa cena memorável: Maria descobre que Matthew sempre

O Cinema de Hal Hartley | 119 carrega uma granada de mão e, preocupada, pede para que ele deixe o arte- fato sob a sua guarda. A entrega da granada de Matthew a Maria não é ape- nas uma evidência do crescente envolvimento afetivo entre os personagens, mas uma demonstração suprema de “confiança”, tema central do enredo, que sintomaticamente dá título ao filme. Aos quarenta e nove minutos da trama de cento e cinco minutos, essa cena ocorre aproximadamente na metade da projeção, configurando o que diversos analistas de dramaturgia definem de “ponto médio” do roteiro. A partir da segunda metade do segundo ato, o filme investe em seu potencial romântico, mas sem jamais abandonar o humor negro prometido na primeira cena. Maria e Matthew consideram a possibilidade de casar e formar uma fa- mília com o bebê que está por nascer. Porém, esses personagens traumatizados por relacionamentos anteriores se recusam a reconhecer que estão apaixona- dos, preferindo justificar a sua união com elementos como atração, respeito mútuo e… confiança. O resultado de uma competição de bebida entre Matthew e a mãe de Maria marca uma virada na trama, abrindo um terceiro ato que segue todas as regras do cinema narrativo clássico: tramas e subtramas são concluídas; conflitos in- ternos e externos dos personagens se acirram até a resolução; personagens principais e secundários demonstram terem se transformado; e é respondida a questão levantada pela premissa dramática da protagonista: que rumo Maria escolherá para a sua vida?

120 O Cinema de Hal Hartley Steve Rybin

Eu primeiro descobri os filmes de Hal Hartley como um cinéfilo na ado- lescência. Crescendo nos subúrbios da classe média americana, o cinema de Hartley me pareceu ao mesmo tempo familiar e estranho. Nos seus filmes exis- te um grupo de (em sua maioria) jovens brancos adultos confortáveis economi- camente, que bebem e pensam, e ouvem música, leem e se apaixonam, e ain- da capturados e enquadrados em imagens que são afetuosas e precisas numa sensibilidade distinta de tudo que já tinha visto. (Eu vi os filmes de Godard e Bresson um pouco depois de assistir aos longas de Hartley, e, em algum mo- mento, algumas de suas influências e estratégias de filmagem se tornaram mais aparentes). Eu assisti de maneira suficiente o cinema independente americano em meados dos anos 90 (próximo da época de lançamento de Simples Desejo, Amateur e Flerte) para saber que Hartley era um membro característico da tur- ma dos cineastas “indies” (em sua distância de Hollywood, e em sua ironia). Mas era também aparente que Hal tinha distinção em relação a outros dire- tores independentes, que fizeram rapidamente o “salto” para Hollywood: seu estilo, diferente de outros pares, nunca foi embebido em referências da cultura popular norte-americana. Eu não chamaria Hartley como um “formalista” naquela época, também por- que não sabia o que significava quando assistia a seus primeiros trabalhos. Ain- da que eu tenha alguma ideia do que seja um formalista agora, não tenho certe- za se o colocaria nessa categoria: apesar de seus filmes serem moldados através de um rigoroso e cuidadoso processo de atenção a imagem, som e performance

O Cinema de Hal Hartley | 121 do elenco, o trabalho de Hartley nunca se instala dentro de uma forma rígida ou finalizada. O trabalho do cineasta é sempre mais vivo do que isso, sempre o produto de um diretor que consistentemente aperfeiçoa e refina sua prática, nunca repousando dentro de uma “marca confiável” de autor (se alguém pode discutir aqui é no caso de alguns outros — “quase independentes” pares, como Quentin Tarantino ou Wes Anderson). Claro que, se um espectador olhar para, por exemplo, A Incrível Verdade, Confiança, Simples Desejo e Flerte em suces- são, obviamente, a repetição se torna cristalina: em atores (Adrienne Shelly, nos dois primeiros filmes, Robert John Burke no primeiro, terceiro e quarto, Martin Donovan no segundo e terceiro); coreografia (explosões abruptas em movimentos de dança em Simples Desejo e Flerte); música (o padrão cuida- doso selecionado do uso de música instrumental e rock alternativo em to- dos os filmes, alguns até compostos pelo próprio Hartley); e assim por diante. Entretanto, a reiteração formalista de Hartley não é um processo de “colar e copiar”: para trabalhar com, por exemplo, Martin Donovan múltiplas vezes não é contar, ou só contar, com uma certa presença interpretativa e um tipo de personagem, mas sim retrabalhar a relação da imagem e som a cada vez; cada filme é uma nova aventura para uma colaboração fresca entre o diretor e o ator — e, isso precisa ser dito, renova a percepção de trabalho e prazer para os espectadores de Hartley. Quando eu comecei há alguns anos atrás a editar um livro de novos artigos sobre os filmes de Hartley, eu determinei o títuloO Cinema de Hal Hartley: Fler- tando com o Formalismo (The Cinema of Hal Hartley: Flirting with Formalism), não apenas como um (seco e acadêmico) trocadilho com um dos títulos de seus filmes, mas também para expressar uma aliança de Hartley com o formalismo como uma tradição cinematográfica. Sem dúvida, o cinema de Hartley é rigo- roso e profundamente engajado com questões da narrativa e forma estilística,

122 como qualquer um que preste atenção aos padrões cuidadosos de situação e desenvolvimento narrativo em três partes de Flerte sabe. Porém, Hartley nunca se fechou num certo tipo de forma. Ele modificou o conteúdo de seu trabalho em resposta a mudança da tecnologia do cinema e dos contextos sociais: cada um dos três filmes da trilogia de Henry Fool, por exemplo, ainda que claramen- te sejam construídos a partir de variações de obras anteriores, funcionam como trabalhos independentes com suas qualidades formais e temáticas próprias (a descoberta da autonarrativa em As Confissões de Henry Fool, rodado em 35mm, dando espaço para a espionagem em Fay Grim — distinto por sua estética de vídeo digital — e ambas distinções narrativas servindo como uma herança que caminha bem mais longe com Ned Rifle). Nesse sentido, parte do prazer em assistir todos os seus filmes numa su- cessão — como uma retrospectiva permite que isso aconteça — é saborear as repetições familiares enquanto toma-se nota de surpresas inesperadas. Que Hartley tenha colocado a mão em um filme de monstro — em 2001, com Beatrice e o Monstro — é salientar apenas um exemplo de caminhos nos quais seu traba- lho, e sua qualidade familiar de estilo, são frequentemente cheias de surpresa. Mas as pequenas revelações em sua filmografia tendem a ser aquelas que me mantém retornando aos seus filmes. Talvez por causa de minhas próprias pre- dileções, estes pequenos toques normalmente tendem a envolver gestos, mo- vimentos e expressões – os pequenos gestos de interpretação cuidadosamente capturados pela câmera de Hartley. Estou falando, como exemplo: o jeito que o ator Thomas Jay Ryan pressiona as teclas do piano enquanto ensina a James Urbaniak aulas de gramática em As Confissões de Henry Fool; como Parker Po- sey aperta documentos importantes enquanto muda lateralmente através da tela em uma escada em Fay Grim, transformando uma cena familiar de qual- quer filme de espionagem em uma dança de balé; o modo subterrâneo no qual

O Cinema de Hal Hartley | 123 Miho Nikaido, no final de Flerte, se atira pelas ruas de Tóquio para retornar ao seu amante. Performances em filmes são frequentemente como danças (uma metáfora que nós encontramos ao escrever sobre cinema desde a era do cine- ma mudo, especialmente na relação da crítica com Chaplin), mas o trabalho de Hartley com os atores parece único na atenção modulada e cuidadosa em como eles se movem. Eles nos permitem “ver as costuras” enquanto criam seus personagens, seus gestos e movimentos, que nunca desaparecem inteiramente dentro das abstrações do cinema comercial conhecidas como “motivação” ou “psicologia”. Eles são parte crucial do prazer em assistir ao trabalho de Hartley, e de trabalhar como espectador para descobrir o significado em seus filmes.

*O livro O Cinema de Hal Hartley: Flertando com o Formalismo, em sua versão original em inglês, pode ser adquirido no Brasil, em formato e-book, no site da Amazon.com.br.

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Sobre os autores

Beatriz Saldanha é crítica, pesquisadora e curadora de cinema. Mestra em Comunica- ção audiovisual pela UAM, ela é integrante do coletivo Elviras e da Aceccine. Escreve regularmente para catálogos de mostras e colabora periodicamente com textos para os sites Cineplot, Interlúdio e Rocinante. Mantém a revista eletrônica Les Diaboliques (www.revistalesdiaboliques.wordpress.com), onde escreve sobre filmes de horror.

Camila Vieira é jornalista e crítica de cinema. Doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Escreve atualmente nas revistas eletrônicas Sobrecinema, Multiplot e Moventes. É integrante da Associação Brasilei- ra de Críticos de Cinema (Abraccine), da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine) e do Elviras - Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema.

Carol Almeida é crítica, pesquisadora e curadora de cinema, doutoranda do programa de pós-graduação em Comunicação na UFPE, com foco em estudos sobre o cinema con- temporâneo brasileiro. Ministra oficinas sobre a representação da mulher no cinema, faz parte do coletivo Elviras - Mulheres Críticas de Cinema, do Mape (Mulheres no Au- diovisual Pernambuco) e da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Publica no site Foradequadro.com.

Fernando Oriente é crítico, professor e pesquisador de cinema. É editor e crítico do site de cinema Tudo Vai Bem (www.tudovaibem.com), além de colaborador das revistas Interlúdio e Teorema, entre outras publicações. Ministra cursos de cinema em diversas localidades, como unidades do SESC, a Escola de Cinema do Maranhão — IEMA, ci- nemas, cineclubes e espaços de pesquisa cinematográfica. Escreve para catálogos de mostras e festivais, bem como para livros de cinema. Participa de debates e palestras em mostras, festivais e diferentes eventos ligados ao cinema e ao audiovisual.

Filipe Furtado é ex-editor das revistas Cinética e Paisà. Escreveu para publicações como Contracampo, Filme Cultura, Cine Imperfeito, Teorema, Rouge e The Film Jour- nal. Mantém o blog Anotações de um Cinéfilo (https://anotacoescinefilo.com/) e é membro da Abraccine.

Marcelo Janot é jornalista e crítico de cinema desde 1992. Escreveu para diversas pu- blicações nacionais e estrangeiras, e hoje é crítico do jornal O Globo e editor do site Criticos.com.br. Ministra regularmente cursos teóricos de cinema. Foi comentarista do

126 canal Telecine Cult por oito anos e presidiu a Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro (ACCRJ) por dois mandatos. Como membro da Fipresci, integrou o júri da crítica internacional em vários festivais, como Roterdã e San Sebastian. Lançou recen- temente o livro Revisão Crítica (Editora Autografia).

Marcelo Miranda é crítico de cinema, jornalista e curador. Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Escreve na revista eletrônica Cinética (www.revistacinetica.com.br) e participa de comissões de seleção de longas e curtas-metragens em diversos festivais brasileiros. Autor de textos para livros e catálogos de cinema. Coorganizou o livro Re- vista de Cinema: Antologia 1954-58/1961-64. Mora em Belo Horizonte (MG).

Mario Abbade é jornalista e crítico de cinema.

Octavio Caruso é escritor, crítico de cinema, ator, roteirista e cineasta independente. Membro da ACCRJ e da Fipresci. Autor dos livros Devo Tudo ao Cinema (Ed. Litteris, 2013) e A Arte do Guerreiro Lúcido (Ed. Jaguatirica, 2017). Dirigiu os curtas: Übermensch (2015), Teresa (2015), Nocebo (2016) e Se (2017).

Raphaela Ximenes é jornalista com especialização em Jornalismo Cultural pela Uni- versidade Estácio de Sá. Crítica de Cinema e membro do Coletivo Elviras. Criadora do site 366 Filmes (https://366filmes.com/) e participa do podcast Depois dos Créditos.

Rodrigo Fonseca é carioca de Bonsucesso, formado pela UFRJ, crítico de cinema e ro- teirista. Escreve programas e séries na TV Globo. Entrevista cineastas para o site Ome- lete (www.omelete.uol.com.br) e resenha sobre filmes no blog P de Pop (http://cultura. estadao.com.br/blogs/p-de-pop/) do Estado de São Paulo. É professor na AIC-RJ e na Escola Darcy Ribeiro. Escreveu nove livros, entre eles a ficçãoComo Era Triste a Chinesa de Godard e a biografia Renato Aragão — Do Ceará Para o Coração do Brasil.

Sérgio Alpendre é crítico de cinema, professor, pesquisador e jornalista. Escreve na Folha de São Paulo desde 2008 (Ilustrada, Mais, Guia Folha e Guia livros, discos, filmes). Doutorando em Comunicação/Cinema pela Universidade Anhembi-Morumbi, com bol- sa da CAPES. Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA – USP, com bolsa da CAPES. Coordenador do Núcleo de História e Crítica da Escola Inspiratorium. Edita a Revista Interlúdio (www.revistainterludio.com.br) e o blog de cinema sergioalpendre. com. Participou como palestrante dos Encontros Cinematográficos, na cidade de Fun- dão, em Portugal (março de 2015 e maio de 2017). Ministrou uma MasterClass na UBI - Universidade da Beira Interior, em Covilhã, Portugal (março de 2015).

O Cinema de Hal Hartley | 127 Steven Rybin é professor-assistente de estudos de cinema na Universidade de Min- nesota, Mankato. Ele é autor de Gestures of Love: Romancing Performance in Classical Hollywood Cinema (SUNY Press, 2017), editor de The Cinema of Hal Hartley: Flirting with Formalism* (Wallflower Press, 2016), e coeditor, com Will Scheibel, de Lonely Places, Dangerous Ground: Nicholas Ray in American Cinema (SUNY Press, 2014).

Susana Schild é jornalista, crítica de cinema, roteirista. Trabalhou no Jornal do Brasil, foi colaboradora de O Estado de São Paulo e dirigiu a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Escreveu os roteiros de Depois Daquele Baile (adaptação de peça de Rogério Falabella) e Mão na Luva (adaptação da peça de Oduvaldo Vianna Filho), ambos dirigidos por Roberto Bomtempo (e codireção de José Joffily no segundo). Para teatro, adaptou Um Sopro de Vida, de Clarice Lispector, e De Verdade, de Sandor Marai (em parceria com Isabel Muniz). Curadora do livro bilíngue O cinema brasileiro hoje: Ensaios de críticos e especialistas de todo o país (Edição Latin American Training Center, 2015). Membro da ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro) e Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Desde outubro de 2010, in- tegra o quadro de críticos de cinema de O Globo.

Sylvio Gonçalves é roteirista de filmes como S.O.S. Mulheres ao Mar, Confissões de Adolescente, Sem Controle e Eu Fico Loko.

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Agradecimento especial ao cineasta Hal Hartley por sua obra e apoio total a retrospectiva.

Agradecimentos Bernardo Uzeda Breno Lira Gomes Bruno Mello Cecilia Fernandes Ferreira Chris McChane Cinemateca do MAM/RJ Claudia Lima Fernandes Eliane Meire da Silva Ferreira Fábio Velozo Gustavo Luiz Ferreira Hernani Heffner Jocimar Fernandes (in memoriam) Lourdes Mendonça (in memoriam) Lucia Teixeira Luiz Sergio Ferreira Mario Abbade Marlice Lima Fernandes Pedro Butcher Possible Films Steven Rybin Vinicius Brum

“Knowing is not enough.”

130 Curadoria Leonardo Luiz Ferreira

Produção Executiva Fernanda Teixeira

Coordenação Geral Fernanda Teixeira e Yves Moura

Coordenação Editorial e Revisão Leonardo Luiz Ferreira

Projeto Gráfico Guilherme Lopes Moura

Site Mia Estudio Criativo

Vinheta Fernanda Teixeira

Assessoria de Imprensa Alexandre Aquino

Comunicação e Marketing Seven Star

Tradução Legendas Luana Rocha e Daniel Maggi

Produção Buendía Filmes

CAIXA Cultural RJ | Cinemas 1 e 2 10 a 22 de outubro de 2017 www.caixacultural.gov.br Av. Almirante Barroso, 25, Centro facebook.com/CaixaCulturalRioDeJaneiro Tel.: (21) 3980.3815 Baixe o aplicativo CAIXA Cultural

Alvará de Funcionamento da CAIXA Cultural facebook.com/OCinemaDeHalHartley RJ: nº 041667, de 31/03/2009, sem vencimento. www.buendiafilmes.com.br/hartley

O Cinema de Hal Hartley | 131 Este catálogo foi composto com as famílias tipográficas PT Sans e Stag. O miolo foi impresso em papel Pólen Bold 90g/m2 e a capa em Supremo 250g/m2, com tiragem de 500 exemplares na Gráfica Stamppa, em janeiro de 2018.

Venda proibida. produção patrocínio