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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA CENA – PPGAC

NÍVEL MESTRADO

MARIA LUCAS PEREIRA VALENTIM

DO CÍLIO A NAVALHA: montação na cena carioca

Texto apresentado para qualificação no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do título de mestre.

Orientador: Prof. Dr. Manoel Silvestre Friques

Rio de Janeiro 2019

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Maria Lucas Pereira Valentim

DO CÍLIO A NAVALHA: montação na cena carioca

Aprovada em: 23/12/2019

______Prof. Dr. Manoel Silvestre Friques (orientador)

______Prof. Dra. Elizabeth Motta Jacob (ECO/UFRJ – EBA/UFRJ)

______Prof. Dr. Samuel Sampaio Abrantes (EBA/UFRJ)

______Prof. Dr. Caio Arnizaut Riscado (ECO/UFRJ)

______Prof. Dra. Jaqueline Gomes de Jesus (IFRJ)

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O século XXI é um século estético. Na história, há eras da razão e eras do espetáculo, e é importante saber em que era você está. Nossa América, nossa internet não é a Atenas antiga. É Roma. E seu problema é que você pensa que está no fórum quando está realmente no circo.

(Natalie Wynn, 2018)

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Resumo

Esta pesquisa pretende, a partir da análise de distintas práticas de “montação”, compreendê-las e relacioná-las a fazeres que buscam fugir do binarismo de gênero vigente em nossa sociedade. Configura-se como uma cartografia pautada por espacialidades e corporeidades oriundas da prática do travestimento na cidade do Rio de Janeiro atual. Busca-se, a partir da vivência da pesquisadora como artista que participa da cena local, realizar uma análise não só de seu próprio trabalho, mas também de outros artistas da atualidade. Para isso, recupera também a história do travestismo no Rio de Janeiro, por meio de espaços físicos e artistas de outrora que pavimentaram alguns caminhos para a cena contemporânea. O processo de criação e execução desta pesquisa se traduz, primeira e principalmente, na prática artística de quem a escreve: uma artista que, a partir da arte Queen, passa a se compreender como uma pessoa trans não binária. O conjunto de espaços, artistas e momentos históricos discute questões relacionadas aos conceitos de gênero e de performance como alicerces que caminham na construção e na manutenção de uma cena de contornos marginalizados em relação à cultura dominante e à Academia.

Palavras-Chave: Artes Cênicas, Performance, Estudos de Gênero, Transgeneridade, Queer, Cuir,

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Abstract

This research aims to analyse, understand and compare different drag queens’ practices as actions that seek to escape our socienty’s gender binarism. It is a cartography based on spatialities and corporealities arising from the practices of transvestite in contemporary Rio de Janeiro. Based on the experience of the researcher – as an artist who participates in the local scene – this study focuses also on a range of contemporary non-binaries artists. To do so, it also recovers the history of transvestism in Rio de Janeiro, through physical spaces and artists of the past that paved some paths for the present scene. The process of creating and executing this research translates, first and foremost, into the artistic practice of the writer: a drag queen artist who comes to understand theirself as a non-binary trans person. The set of spaces, artists and historical moments discuss issues related to the concepts of gender and performance as foundations that lead to the construction and to the maintenance of a scene of marginalized contours in relation to the dominant culture and the Academy.

Keywords: Performing Arts, Performance, Gender Studies, Transgender, Queer, Cuir, Drag Queen

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Agradecimentos

(após finalizar meu look colando longos cílios postiços, gostaria de agradecer pelo percurso e pela concretização deste trabalho)

À Manoel Silvestre Friques, que chegou, de forma assertiva, horizontal e propositiva, engenhando e coordenando a orientação do meu projeto e garantindo minha permanência no Programa de Pós Graduação em Artes da Cena. Obrigada por ajudar a me entender como um Corpo Estranho, a partir de tantos direcionamentos e inspirações com a força capricorniana de seu ascendente de origem até então desconhecida.

À Beth Jacob, coordenadora do programa de Pós Graduação no qual estou inserida, pelo afeto e pela generosidade em compreender que as questões da vida afetam a academia (e a arte) e vice e versa.

À Caio Riscado, Uma Bicha Miúda, porém potente em sua grandeza teatral contemporânea. Obrigada pelos esforços nos seus trabalhos pessoais, dos quais sou fã desde tempos remotos, e pela brilhante presença nessa banca composta colorida e diversa como um Sonho TransViado e Alterosa.

À Samuel Abrantes, a.k.a. Samile Cunha, pela sua presença divônica e maravilhosa nessa parte final, e de conclusão, do mestrado. Obrigada pelas Transconexões na arte-vida.

Á presença transdisciplinar de Jaqueline Gomes de Jesus, uma mulher que me inspira por toda sua luta e presença constante em variados âmbitos e meios do transativismo; aprender te ouvindo e te lendo faz sentir-me especial nesse momento, ao saber que você esta em contato com minha dissertação, que se conclui como um diário cartografado e dissertativo. --- Existem vivências não-cisgêneras que faz com que somente nós possamos compreender umas as outres. ---

À Maria do Carmo, ou D. Carminha, mulher nordestina leonina e guerreira. Colocou-me nesse mundo e sempre busca compreender minha existência fora dos padrões exigidos socialmente.

Ao Padre Luís Corrêa e Lima e ao Grupo Diversidade Católica, pelo amparo e pela força que dão para minha querida mãe.

À Haus of Deboche (Maybe Love, Linda Mistakes & Delirious Fênix), minha família drag que comprova que afetos não sanguíneos podem e precisam ser (e são!) de extrema importância para corpos não normativos. Viva a arte drag e burlesca!

À Maíra Barillo e Aline Vargas, pela amizade conquistada no mestrado e ampliada para outras zonas da/na vida.

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À Flavia Coutinho e Gênesis, por todo amparo e impulsionamento desde quando o mestrado e o fazer drag eram apenas elocubrações em minha mente (e meu corpo como um todo).

À Marcio Januário, que, ao ver em mim uma potência na travestilidade, me motivou a jogar-me de cabeça em tal ação.

À Jezebel de Carlli e Silvero Pereira: sem ter participado da residência artística no Teatro Poeira, minha corpa não teria se lançado no caminho da montação.

À Luiza Frizzo: pelo computador que me presenteou e onde eu pude ler, escrever e concluir esse processo de escrita. Não seria possível concluir os presentes escritos sem seu sensível e potente apoio.

À Juracy de Oliveira, por me impulsionar dizendo; “vai bicha, a senhora é maravilhosa!”

À Victor Newlands: a experimentação prática em seu projeto de pesquisa foi de grande importância para minha manutenção e estadia na Pós Graduação, pois para ser uma corpa atuante, é preciso de extremo esforço físico e mental.

À Casa Sapucaia, pelo apoio físico, onde pude desenvolver grande parte dos meus escritos. Mais precisamente, à Tavie Gonzalez e Rafaela Sampaio: as noites de discussão e vinho foram de impacto importantíssimo para muitos dos escritos nessa pesquisa (viva as Sapatão!). Dedico imensurável agradecimento a Dercy, uma baby cão que cresceu durante a construção dessa discertação: titia te ama! (pois a cadela é a melhor amiga de uma ex-homem!).

À todes artistas da montação – precisamente envolvides nos eventos “Queens O Concurso”, “Rival Rebolado”, “Yés Nós Temos Burlesco”, “Cabaré Diferentão”, “Transformistas Medicadas” – por todas as trocas necessárias para minha vivência artística e para o processo de pesquisa dessa dissertação.

Às tantes que passaram e passam na minha trajetória de vida-academia-arte: Bem Medeiros, Pri Bertucci, Aretha Sadick, Betch Cleiman, Fabiano de Freitas (Dadado), Davi Giordano, Adriano Guimarães, Vanessa Garcia, Júlia Vargas, Mateus Muniz, Leo Paixão, Piton Niza, Betina Polaroide, Miami Pink, Dávila Pontes, Dan Venturi a.k.a. A Dita, Daniel Castanheira, Duda Caro, Christiane Parreira, Francesco Moreno, Luciana Bezerra, Maria Clara Contrucci, Laudeci Queiroz, Lucas Gibson, Renata Ferrer, Tata Barreto, Miranda Lebrão, Rafael Bqueer a.k.a. Uhura Bqueer, Fábio Ferreira, Jaqueline Calazans, Cami Carrelo a.k.a. Wendel Cândido e Thadeu dos Anjos a.k.a. Thizy Nebulosa, Jeam Alembo.

Aos movimentos, grupos e espaços que, de alguma forma, colaboraram para que este trabalho se desenvolvesse: Le Circo de la Drag, Turma OK, Drag-Se, SsexBbox, Marcha do Orgulho Trans da Cidade de São Paulo, PopPorn, Mostra Bosque, Mães Pela Diversidade, Corpos Visíveis, Cabaret da Cecília, Gataria Photography, Piratas de Gênero, Die in the House, Reduto, Miúda – Mostra Esforços.

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Aos espaços onde pude, até o presente momento, conquistar o lugar de estudo acadêmico e ampliar meus conhecimentos nesse espaço de contradições que é a academia: Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidad Autonoma de Madrid (UAM), Universidad Nacional de Colombia – sede Bogotá (UNAL) e Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV – Parque Lage). Não poderia deixar de mencionar e agradecer: Projeto FESP, Banco Santander, CCCI - PUC Rio, PET-LET PUC-Rio, Vice Reitoria Para Assuntos Acadêmicos PUC - Rio, sendo estes grupos e instituições que auxiliaram com bolsas de estudo e manutenção ao longo de todo esse longo processo.

Aos grupos de teatro Nós do Morro (Vidigal) e Roça Caça Cultura (Rocinha), onde pude ainda prematuramente iniciar meus passos na vida artística.

À tantes outres que, nesse processo de pesquisa e estudo, tomei conhecimento da transviada existência, sendo essas corpas de outros lugares e épocas distintas à minha, mas que, com certeza estão ao meu lado, pois somos anjas-da-guarda umas das outras: Hija de Pera, Rose Wood, Claudia Wonder, Suzi Shock, Mario Mieli, La Prohibida, La Ely, Grayson Perry, Diana Navarro (Diana de Santa Fé), Josecarlo Henriquez (#soyputo), Virgine Despentes, Pedro Lemebel e Pancho Casas (Las Yeguas del apocalipses) e muites outres que me inspiram mesmo sem ter conhecimento da minha existência.

À todes as corpas travestys (transvestigêneres), pessoas trans e não binárias, artistas drags, sapatonas caminhoneiras, bichas bichérrimas e todos os tipos de corpas não normativas. Todas as pessoas queer / kuir / cuir, que abriram caminho para que hoje eu possa existir, além de resistir, e buscar não desistir nunca.

Yemanjá,

Pombas Giras,

Minhas anjas da guarda.

À todas as Deusas e poderes femininos que me acompanham.

À minha navalha que se mantém acuendada, entre livros e maquiagens, de prontidão para Defesa.

Axé, Evoé, Merda!

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Índice de Ilustrações

Figura 1 -Cílios Love Mistakes 3001 (acervo Ma.Ma. Horn) ...... 20 Figura 2: Tacones do Museo Travesti (acervo google imagens)...... 23 Figura 3: Cartaz do filme Pink Flamingos (acervo google imagens)...... 30 Figura 4: Folheto de divulgação de Laura de Vison. (acervo Romulo Maduro)...... 31 Figura 5: Espetáculo Bichas. Foto de Maíra Barillo...... 34 Figura 6: Espetáculo Dona QuiXota. Foto de Maíra Barillo...... 35 Figura 7: Espetáculo Sonho AlteRosa. Foto de Francisco Costa...... 36 Figura 8: Blackyva. Foto de Karina Abdel...... 36 Figura 9: Hija de Perra. Foto de Zaida Gonzalez...... 42 Figura 10: Catálogo exposição Queer Museu (Acervo Pessoal)...... 43 Figura 11: Gabe Passareli performando no Queer Museu. Foto de Marina Benzaquen. 44 Figura 12: Cartaz do filme Priscila, A Rainha do Deserto (acervo google imagens). .. 47 Figura 13: Drag King Rubão. Arte de akeminess...... 48 Figura 14: Figura de Kathakali no Livro História Mundial do Teatro...... 50 Figura 15: Estátua do Hermafrodito (acervo google imagens)...... 54 Figura 16: Hijras na Índia. (Acervo Google imagens)...... 55 Figura 17: Venus Xtravaganza em Paris is Burning...... 60 Figura 18: e Courtney Act (acervo google imagens)...... 62 Figura 19: Rogéria. Foto cartaz filme sobre sua vida...... 64 Figura 20: Rogéria no Teatro Rival. Capa do Jornal O Globo de 03/09/2016...... 65 Figura 21: Ma.Ma. Horn em oficina de performance no Sesc de Copacabana...... 67 Figura 22: Silvia Calderoni em MDLSX. Foto de Renato Mangolin...... 70 Figura 23: Ma.Ma. Horn em photoshot para o projeto The Drag Series. Foto Fernando Cysneiros...... 71 Figura 24: Drag Queen Pandora Yume. Foto Betina Polaroide...... 72 Figura 25: Gays em comemoração em New York nos anos 70. (acervo google imagens)...... 75 Figura 26: Orlan. (fonte - site orlan.eu)...... 77 Figura 27: Cindy Sherman ( fonte-Site MoMa)...... 78 11

Figura 28: Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo...... 79 Figura 29:Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo...... 81 Figura 30: Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo...... 81 Figura 31: Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo...... 82 Figura 32:Anne Sprinkle e a sua “Anatomy of a Pin Up" (acervo google imagens). .... 85 Figura 33:Diane Torr (acervo google imagens)...... 87 Figura 34:Vicente Van Goth performando no Teatro Rival Foto Tata Barreto/Gataria Photografy...... 89 Figura 35:Cartaz do espetáculo Hedwig, versão Brasileira. (Fonte Google Images). ... 91 Figura 36:Vicente Van Goth performando no Teatro Rival Foto Tata Barreto/Gataria Photografy...... 93 Figura 37:Vicente Van Goth performando no Teatro Rival Foto Tata Barreto/Gataria Photografy...... 93 Figura 38:Haus Of Deboche para Calendário Queens 2019. Foto Betina Polaroide. .... 96 Figura 39:Transformista Divina Aloma performando no palco da Turma Ok. (Fonte site Turma Ok)...... 105 Figura 40:Transformista Meime dos Brilhos performando no palco do Cabaret CasaNova. (Fonte Google Imagens)...... 107 Figura 41:Cartaz Rival Rebolado. (acervo Teatro Rival)...... 109 Figura 42:Dzi Croquetes (Fonte Google Imagens)...... 110 Figura 43:Divinas Divas (fonte google imagens)...... 111 Figura 44:Cartaz The Queen (Página The Queen no Facebook)...... 112 Figura 45:Capa do site de RuPaul...... 113 Figura 46:Bonecas Barbie, modelo RuPaul. (acervo google imagens)...... 114 Figura 47:Pabllo Vittar estampando a lata e o comercial da Coca-Cola (acervo google imagens)...... 115 Figura 48:Ma.Ma. Horn na Lapa. Foto Lucas Gibson...... 120 Figura 49:Obra Bixinhas de Lyz Paraizo. Foto Gabriella Garcia...... 121 Figura 50:Mateusa Passarelli (acervo google imagens)...... 122 Figura 51: Marielle Franco (acervo google imagens)...... 122

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 142 Travestilidade Cartografada 182.1 O cílio: o olhar através da Prótese 192.2 Gênero e Performance 262.3 LGBTQIA e muito mais 322.4 Por uma Corpa Cuir 412.5 Montação 463 Desidentificação: Corpos em Performatividade 673.1 Desidentificando uma Corpa 683.2 A Flâneuse Perversa 743.3 A corpa e suas variadas interfaces ou As variadas faces de uma drag 794 Desterritorialização: Construindo coletividades 964.1 Encontrando aliados: novos territoriós a serem explorados 974.2 Origem dos Drag Spaces e os Palcos da Montação 1005 Afrontamento: A Prótese como Defesa 1205.1 Navalha: a montação cortante 121Referências Bibliográficas 128Anexo 01 134Anexo 02 Error! Bookmark not defined.Anexo 03 129 Anexo 04 137Anexo 05 139Anexo 06 142

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INTRODUÇÃO A presente pesquisa visa, a partir da análise de distintas práticas de “montação” questionar o que se sucede no corpo e na sociedade em volta de quem se monta. Começamos então a mapear uma estética com o objetivo de destrinchar quais éticas são criadas e vivenciadas a partir da mesma. A partir da análise da ação de agregar um cílio postiço, a pesquisa analisa o mesmo o entendendo como prótese e, assim, como princípio da montação. A partir dessas noções de prótese e de montação, é realizada uma viagem pela Rio de Janeiro atual e de outrora, para revelar uma variedade de corpos e espacialidades relacionados, de distintas formas, à arte da montação.

Toda a pesquisa é construída por uma estudante de artes que há três anos atua como performer drag queen. Tal vivência conduziu a um questionamento dos padrões de gênero imperantes em uma sociedade heteronormativa, levando à compreensão de seu próprio corpo como uma corpa Não-Binária. Esta pesquisa talvez seja uma forma de plasmar criticamente os lugares em que tal ato se deu: os espaços da performatividade (do corpo, do encontro) e da performance. O esforço aqui é o de elaborar um estudo que ainda governa o entendimento do fazer drag – um homem que se veste de mulher. A valorização da cena carioca atual busca privilegiar as diferentes formas do fazer drag. Para isso, busca-se suporte em falas que destrincham a performatividade de corpos que fogem da normatividade compulsória atribuída a todos nós quando no nascimento, tais como o “Manifesto Contrassexual”, de Paul B. Preciado, e os escritos de artistas cuirs como Jota Mombaça e de Hija de Perra.

Como principal suporte teórico, busca-se utilizar o texto “Cartografias ‘Queer’: o ‘flâneur’ perverso, a lésbica topofóbica e a puta multicartográfica, ou como fazer uma cartografia ‘zorra’ com Annie Sprinkle”, de Paul B. Preciado, além de uma variedade de outros escritos do autor. Pontos relevantes em tal texto são as definições das bichas da cidade como flanêurs perversos que ocupam os espaços urbanos revertendo seu uso cotidiano. A partir daí, surge nesta pesquisa, a figura da Flâneuse Perversa. A dissertação busca trazer essa leitura, da Flânêuse Perversa, para definir toda e quaisquer corpa que se monte: figuras travestidas que transitam por espaços noturnos, perigosos, caóticos e urbanos.

Em um segundo momento, Preciado recorre aos cursos de Drag Kings de Diane Torr e às performances de arte pós-pornô com Anne Sprinkle como táticas de 15 questionamento da condição da “lésbica fantasmagórica”. Ele observa um movimento de ocupação, por estas artistas, do espaço urbano dominado até então pelo flanêur perverso. Daí a importância de pesquisar a presença de duas mulheres que se travestem na atual cena drag carioca. Buscando remediar o severo apagamento histórico de que foram alvo, esta pesquisa pretende focalizar o fazer drag de mulheres.

Busca-se também refletir sobre, a partir da lógica dos “drag spaces” concebida por Preciado, a criação dos locais de encontro das drags queens e suas variantes, sejam os recônditos das boates (que remetem aos lugares ermos e escondidos onde se realizavam concursos na época da ditadura militar) ou ao glamour teatral proporcionado pelo Teatro Rival, resquícios de uma Lapa e do centro da cidade que primavam pelo glamour de outras épocas. Quando se dirige o foco ao presente, é também necessário refletir sobre um dos principais lugares de atuação do fazer drag na atualidade: as telas. Em grande maioria, as drag queens da atualidade se inspiram no Reality Show estadunidense RuPaul’s e utilizam suas redes sociais para se promoverem e falarem diretamente com seu público, divulgarem seus trabalhos. Surge então um palco virtual, um outro aparato para a performatividade das artistas da montação.

Para dialogar com a dimensão cartográfica desta pesquisa, elege-se como inspiração os escritos e o trabalho do Museo Travesti del Peru, de Guiseppe Campuzano. A partir de “Cartografia Sentimental”, de Suely Rolnik, busca-se, na lógica dos afetos proposta pela autora, construir a presente pesquisa como um exercício cartográfico onde a ancestralidade se mescla com os atuais encontros na urbes. A partir dos escritos de Preciado, esta pesquisa focaliza os corpos em performatividade, pois são todos, independente do gênero do performer ou da persona construída, “trabalhadores do ânus”. Compreende-se assim a cena drag como um ato performático, entendendo performance como não só apenas os minutos em que a drag sobe no palco para realizar um número, mas sim toda o conjunto de processos e interações sociais que relacionam corpos, espacialidades, memórias e apagamentos.

Para isso, busca-se, no primeiro capítulo, a partir da noção de Preciado a cerca do que vem a ser prótese, compreender o que seria a montação, como elementos manufaturados para a transformação de corpos. Busca-se uma diversidade corporal ao longo da trajetória da história da humanidade, com foco nas artes cênicas, concluindo 16 com um exercício de definição de termos que serão de profundo auxílio na leitura que segue.

No segundo capítulo, busca-se compreender o conceito de Flâneur, trazido por Walter Benjamin e reutilizado por Preciado como Flâneur Perverso. Ao nos apropriarmos dele, passamos a utilizá-lo no feminino para denominar as artistas trazidas nessa pesquisa. A noção de desidentificação, trabalhada tanto por Preciado quanto José Esteban Muñoz, também é mobilizada para a análise de duas performers contemporâneas: Palloma Maremoto, uma das primeiras mulheres cisgênera a performar como drag queen no Rio de Janeiro; e Vicent Van Goth, Drag King burlesco criado e vivenciado pela escritora Priscilla Matsumoto, também mulher cis. Duas performances, uma de cada drag, serão utilizadas como eixos da análise artística. Para trazer subsídios para as análises são realizadas referências ao passado do travestismento carioca e mundial, buscando daí retirar permanências e transformações.

No terceiro capitulo, buscamos analisar o conceito de desterritorialização proposto por Preciado. O foco aqui recai naqueles espaços que fomentam a arte transfosmista, tanto antes quanto agora, passando por boates, teatros e telas. Na era das telas, da internet e da comunicação de massa, o grande expoente será programa ’ Drag Race.

No último capítulo, chega-se à conclusão de que esse corpo montado, transformado e diferente de como começou a pesquisa, precisa defendender-se, utilizando da metáfora da navalha para contrastar com o cílio, que auxiliou no início da montação do primeiro capítulo da dissertação. Para construção desse corpo em defesa, busca-se respaldo nos escritos de Jota Mombaça sobre estudos decoloniais e redistribuição de violência.

A presente pesquisa não visa explicar de forma analítica e didática o que vem a ser a arte drag-transformista ou a problemática da diversidade sexual, suas siglas, nomenclaturas e divisões quanto à classe social, mas sim analisar a potência performática desses corpos (na cena e fora dela). Para tanto, são necessárias pequenas aproximações a artistas de outros fazeres no campo das artes, na maioria das vezes performers mais relacionados com a performance art, traçando paralelos e caminhos possíveis para um entendimento da performatividade drag. Após apropriar-se da Teoria Selvagem (Wild Theory) de Jack Halberstman e são mobilizadas também citações, 17 imagens e todo e qualquer aparato que auxilie nesse movimento constante de análise e de construção de pensamento, tais como: falas das próprias drags, vídeos do Youtube e também de leituras e escritas de teóricos queers.

Por fim, é preciso ressaltar que esta pesquisa configura-se como um caminho que mais indica do que avalia, mais expõe do que configura, mais esboça uma cartografia do que desenha um mapa, com suas legendas e especificações, que serviria para coordenar não iniciados e expor quem vive tal cena. Não é um trabalho didático, mas afetuoso e performático: é uma escrita que ressalta traços vivenciados por e em quem a escreve. Porém, não é apenas um simples diário de bordo, mas uma escrita que propõe exercícios críticos e analíticos sobre estes (meus) modos de (sobre)vivência.

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2 Travestilidade Cartografada

No princípio o cílio. O cílio antecede ao olho, e o olhar.1

1 Referencia a frase “no princípio era o dildo. O dildo antecede ao pênis.´de Paul Preciado em Manifesto Contrasexual(2002). 19

2.1 O cílio: o olhar através da Prótese

Promover o acesso e a promulgação de conhecimento, talvez seja esse o propósito das instituições de ensino. Ao adentrar em tal espaço, esboço um estudo que se dá pelo meu olhar: talvez seja sempre sobre lançar nossos olhares no mundo e buscar um diálogo com o ensino acadêmico. Torna-se necessário então, nessa presente dissertação, a busca por um olhar atento que não só observa a cena de uma cidade grande, mas que também é atravessado por ela. Ampliar: alargar o olho para arregaçar o olhar. Promover um campo que potencializa a absorção de sensibilidades: as artes da cena. A academia traz uma estrutura, nosso corpo traz a sensibilidade, adquirida nos estudos anteriores e para fora dos muros mórbidos do campus universitário. Pensar sobre arte e sobre a cena, com a consciência de que assim também estou fazendo uma cena. Confesso que estou pensando e absorvendo a partir da minha vivência, para além desses muros que citei anteriormente, para uma vivência que está se fazendo no minuto que escrevo esse texto no computador e que, mesmo plasmado na escrita que agora chega aos seus olhos, continua seu caminho além-muros. Mas foquemos no objeto que observa, o meu corpo. Coloco meu olho em questão, mas não apenas o olho. O olhar.

Desde criança, me questionavam se eu utilizava uma máscara de cílio nos olhos. Máscara nos cílios eu não usava, demorei para me permitir utilizar maquiagem. Esses cílios enormes e grossos ocupavam um corpo inconformado, um corpo que, desde antes de saber o que seria ser uma bicha (e falarei mais sobre essa identidade proximamente nesse primeiro capítulo), já recebia essa palavra de forma jocosa ou raivosa em todas as instituições que frequentava: família, escola e igreja. Esse olhar atento buscava nos contornos do seu feminino corpo infantil qual era o erro que o fazia sofrer as agressões sempre decorrentes da palavra gritada: Bicha! Esse olho que passou a absorver o mundo e a compreender que quanto menos bicha fosse, mais o corpo se manteria intacto ao vexame público. Mas a vitória de quem a violenta não empodera quem é oprimido. Esse corpo, ao longo de muitos anos, foi alargando o olhar e, com isso, ampliando-se em uma imensidão de possibilidades que deturpam o seu próprio olhar, dando um salto (alto) nos padrões sociais inscritos nos olhares daqueles que o observavam. Trazer poder ao meu corpo foi um ato de vitória e de enfrentamento às violências vividas.

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Figura 1 -Cílios Love Mistakes 3001 (acervo Ma.Ma. Horn)

Na vida adulta, pela primeira vez, esse olho não só passou a utilizar máscara de cílio nos cílios, como colar pestanas imensas com múltiplas cores e tamanhos. Às vezes, é necessário o exagero para que duvidemos de nós e criemos as nossas próprias normas. Hoje, tenho utilizado apenas uma quantidade bem pequena de máscara na região das celhas da parte superior de onde sai o meu olhar. Mas, foquemos nesse primeiro ato, o de colorir os pêlos da área pela qual eu (você) absorvo(e) imageticamente tudo que estará contido nas próximas páginas.

Esse olho passa a enxergar de uma outra forma o mundo e o corpo no qual está alocado. Uma corpa, no caso. Tomo licença para utilizar a palavra corpo no feminino, talvez um dos primeiros visíveis atos de rebeldia na escrita desse trabalho. Uma rebeldia “a olhos nus”, pois outras rebeldias foram injetadas na corpa da pesquisadora para que a mesma estivesse em vida vos escrevendo. Esse cílio, antes envergonhado, agora se torna parte constituinte da personalidade dessa corpa, auxiliando inclusive na transformarção do corpO em corpA.

A corpa que observa e escreve, que estuda e se auto-inscreve, é uma corpa que tem o cílio como uma parte atuante nesse ex-corpo, como uma prótese. Podemos entender prótese, segundo um autor que vem chamando atenção objetiva dessa corpa- cílio, por diversas questões nesse contínuo movimento de desestruturar-se (onde termina e começa a corpA, onde termina e começa o cílio?): Paul B. Preciado. Filósofo, ativista e pós-estruturalista, é um dos autores representantes dos Estudos Queer que me foi indicado por toda e qualquer pessoa acadêmica após o ato de agregar a prótese-cílio em minha então corpa. Recebi com dúvidas o queer, o olhava de soslaio. Até que entendi que o queer ao qual os intelectuais se referiam era a bicha que permeou, desde os 21 primeiros anos de vivência, a existência dessa corpa. Queer era o termo utilizado para desginar as corpas bichas, assim como a minha, em países de lingua inglesa. Após as corpas queers tomarem poder sobre si mesmas, se apropriam do termo que antes lhes era utilizado para o ultraje, e começam a produzir na instância acadêmica uma infinidade de saberes para pensar e trabalhar sobre suas vivências. Acontece que, em terras latino-americanas o queer chega através, e dentro, dos muros da universidade para uma população majoritariamente de elite, branca e burguesa. Na favela em que eu cresci, era sobre ser bicha mesmo. Bicha, Sapatão e Travesti: é então sobre isso que estudo, escrevo e vivencio.

Ao aproximar-me de Preciado, descubro autoras como Julia Serrano, Guacira Lopes e Judith Butler, compreendendo o quanto as bandeiras feminista e queer se aproximam e distanciam em variadas instâncias. Para além do feminismo, já mais amplamente contemplado e discutido em contextos acadêmicos, descubro também o transfeminismo, onde observo uma aproximação maior das teorias queers e dos estudos que perpassarei na minha corpa e nesta dissertação. Pesquisadoras como Megg Rayara e Jaqueline Gomes de Jesus parecem-me de interessante aproximação, não só pela excelência em suas pesquisas no âmbito acadêmico a respeito das corpas trans, mas, sobretudo, pela tarefa de serem suas próprias corpas detentoras das vivências das quais elas se debruçam a produzir.

Neste caminho, surge o potente trabalho da bicha Jota Mombaça a partir do qual surge uma série de identificações que ocorrem ao depararmos com corpos que perpassam caminhos parecidos aos nossos. Neste caso, duas bichas estranhas no espaço da academia. Constato que pode ser de produtivo contestar os espaços, inclusive o acadêmico, a partir de nossa vivência como corpos estranhos, ou queers, americanizando de forma debochada este nosso texto. (A tradução literal para queer seria estranho e, nesse caso, aqui no Brasil, de onde escrevo e vivencio a pesquisa, prefiro ser um corpo estranho a ser um corpo queer. Não faço parte da elite acadêmica e social, eu estou apanhando e sobrevivendo nas ruas da Rio de Janeiro atual, pelo simples fato de ser estranha à norma). A partir de leituras atentas de Mombaça, deparo- me com a Teoria Selvagem, de Jack Halberstam, que “tende a sobrepor a um certo referencial canônico uma multiplicidade de referências estranhas ao cânone” (Halberstam, 2013). Minha pesquisa necessita de uma multiplicidade de referências acadêmicas, cartográficas e de uma grande gama de possibilidades e recortes para que a 22 mesma seja plasmada nessas folhas, como produção de um Programa de Pós Graduação. A Teoria Selvagem é, sobretudo “embalada por séries de descontinuidades” (Jota Mombaça, 2016) que garantem que a vida além dos muros acadêmicos tenha a mesma importância que os ideais canônicos: programas de internet, reality shows, matérias jornalísticas, palestras. Toda e quaisquer produção viva é material potente para a construção da dissertação. A Teoria Selvagem (Wild Theory) permitiu-me, e permite, agregar aos referenciais canônicos uma enorme gama de referenciais estranhos ao mesmo, construindo assim um Arquivo Selvagem (Wild Archive).

Após essas primeiras tessituras no campo da leitura e da teoria, acerco-me – primeiro, de maneira a me inspirar; depois, para tentar aproximar-me como fonte de estímulo e de conhecimento –, do trabalho Museo Travesti del Peru, de Guiseppe Campuzano. Através de uma grande quantidade de acervos que remetem à travestilidade ancestral no Peru, a artista busca trazer a história de seu país de uma maneira interseccional, ressaltando uma parcela ainda muito estigmatizada e marginalizada – figuras trans e drag queens – pela população majoritária e pela história hegemônica e eurocêntrica compartilhada nos ambientes institucionais. Em um mesmo ambiente, escrito ou geográfico, mesclam-se objetos e arquivos que remetem à ancestralidade peruana, assim como os sapatos de salto alto de uma travestí de Lima que foi viver na Itália. Também, são expostos documentos legais ou escritos canônicos e borralos com manifestações artísticas que despensam o caráter de ficcionalidade. Descartando inserir minorias em um contexto não horizontal e autoritário, este museu nômade “desarticula o sítio privilegiado da subjetividade heterossexual – uma subjetividade que converte toda a diferença em um objeto de estudo e torna invisível sua própria contingência e os processos sociais que resultaram em suas construções” (catálogo 31* Bienal de Arte de São Paulo, 2014.)

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Figura 2: Tacones do Museo Travesti (acervo google imagens).

Dentre a grande variedade de material bibliográfico nos quais mergulhei para essa “construção selvagem”, a dissertação de mestrado “M0N5+_S:FOTOGRAFIA/MONTAÇÃO”, de Maíra Barillo – contemporânea minha neste Programa de Pó Graduação –, que registrou fotograficamente as artistas da noite no Rio de Janeiro da atualidade. Esta investigação conversou diretamente com meu material de pesquisa, tanto de forma prática quanto acadêmica. Outras publicações paralelas, como a dissertação “Veio À Tona, Foi K.O.: Pabllo Vittar e a Cultura Drag na Mídia Brasileira”, de Rafael Ribeiro, sobre a cena drag queen na mídia atual, e a “Tese Bicha” de Caio Riscado, foram de impacto edificante e tonificador: na primeira, observo um artista que logra produzir sobre tal arte dentro e fora dos muros; e, no outro, observo infinitas possibilidades do devir-bicha em cena, apesar de não considerar tal identidade mais como pertencente, ou não totalmente, ao meu corpo, mas falaremos disso em breve. No mais, encontrar a dissertação “Da Abertura à Despossessão: uma performance em cinco movimentos”, de Miro Spinelli, no site da universidade na qual estudo, elevou meu olhar de alegria, devido ao fato de o recente Programa de Pós Graduação já ter tido uma pessoa trans pesquisando e escrevendo sobre e a partir de suas vivências. Mas também me entristece quando pergunto porque corpas trans ainda são sempre minorias nos espaços de poder?

Após abrir um pouco os caminhos de referências que pretendo seguir nas próximas páginas, voltemos ao elemento inicial de despontamento para a aventura selvagem que faremos pela Rio de Janeiro: os cílios-próteses. Tenho atrasado a explicação sobre o que vem a ser o mesmo, acercando-me de Paul B. Preciado, pois confesso que tenho desconfiado de toda e qualquer tessitura do saber advinda do combo homem-branco-europeu. Mesmo Preciado sendo transgênero, ele se aproxima um tanto do espectro “macho” e, desde que iniciei meu processo de me tornar corpa, não foi 24 apenas o meu masculino que comecei a negar, mas tudo que se aproxime dele: me tornei um tanto misândrica. Tudo isso talvez apenas para lembrar, e retificar, que sou, no momento atual, uma ex-homem.

Para entendermos o que Preciado entende como prótese, precisamos descalçar o salto alto e dar um passo para trás, não recuando nos escritos deste trabalho, mas impulsionando-nos para avançar em maiores complicações. Torna-se necessário compreender que esse ato de ser uma ex-homem, uma ex-corpo e atual corpa, mais expande os limites corporais do que perde algo intrínseco à sua natureza. A natureza aqui está ligada ao corpo biológico, ao que já possuímos no mesmo quando do nascimento. Tem mais ligação com expandir-se, ou melhor, se tornar, do que limitar-se pelo que já nos foi imposto como dado quando no nascimento, pois se “não se nasce mulher, torna-se” (Beauvoir, 1966, pag. 13). Uma corpa bicha também se torna assim ao longo de sua existência: pode-se escamotear seu andar rebolativo para melhor viver em sociedade, com menos perigos e mais privilégios; ou pode-se agregar a prótese cílios para se tornar cada vez mais viada e afrontar o meio social.

Nesse momento de indagação, observo que os mesmos olhares academicistas que me associavam às teorias bicha dos E.U.A e Europa, no caso os estudos sobre o queer, apontavam a minha pesquisa e meu trabalho artístico como sendo relacionado a gênero. Eu negava insistentemente, e a negação do olhar pode esconder preconceitos sobre o desconhecido, dizia eu estar pesquisando sobre performance drag queen. Foi por esse viés que cheguei aqui: a arte drag foi uma plataforma que me impulsionou a relizar todas essas pesquisas e experiências que tive em minha vida nos últimos anos. Nesse momento, eu deixei de ser apenas uma bicha e sim uma bicha com cílios gigantes, uma artista drag queen. Mal sabia eu que o salto que me faria caminhar pelo mundo drag era uma plataforma poderosa e de altíssimo cano. Mal sabia eu da potência do fazer drag em tensionar conceitos muito engessados em nossa sociedade, como, neste caso, o de gênero. Entendo isso de forma mais efetiva e afetiva, ao lançar meu olhar para o que uma drag queen carioca contemporânea dissertou em um vídeo no Youtube:

Pra mim, Drag é uma performance baseada numa persona que tem como tema o gênero. Esse tema pode ser usado de várias formas, a drag pode burlar o gênero, alterar o gênero, inverter o gênero, descaracterizar o gênero, reforçar o gênero. O que importa é que ela precisa pegar esse conceito de gênero e brincar com ele (L’ORANGE, 2018).

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Com essa indagação, passo a compreender esse corpo no qual pertenço como um campo onde eu possa problematizar questões relacionadas a gênero. Nesse momento, observo que, antes de analisar e compreender a prótese como algo que está para fora do corpo biológico, é necessário compreender que corpo é esse. Seria o gênero também uma prótese acoplada à matéria? Compreendo então que, para utilizar o gênero como um tema central na pesquisa, é preciso, antes de qualquer coisa, compreender como a nossa sociedade entende, e impõe, ele.

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2.2 Gênero e Performance Em 1947, o psiquiatra estadunidense John Money, pesquisando casos de crianças intersexuais2, cunha o termo gênero, o diferenciando de “sexo”, para nomear o pertencimento de um indivíduo a determinado grupo social masculino ou feminino. A discussão sobre a categoria de gênero desponta socialmente, sobretudo no âmbito acadêmico e político, no debate sobre a história das mulheres e com o avanço dos movimentos feministas dos anos 1960 e 1970. Poderíamos focar a análise em nomes importantes de tal desenvolvimento, como Joan Scott, Margaret Rago ou Donna Haraway. Mas olhemos com atenção para o que Judith Butler, em seu Problemas de Gênero, entende como performatividade de gênero.

A performatividade de gênero seria, em nossa sociedade, um campo de disputa de poder, onde o masculino está no topo da cadeia social e tudo que é tido como feminino, quando se empodera, “retornava inexplicavelmente o olhar, revertia a mirada, e contestava o lugar de autoridade da posição masculina” (Butler, 1990, p. 07). Sendo assim, podemos compreender que, o que nossa sociedade produz como gênero e como desejo, são objetos estruturantes de uma cultura binária e heteronormativa. Butler problematiza o que acontece com o sujeito, e com a estabilidade das categorias de gênero, quando se desmascara o sistema binário vigente que vivenciamos e experienciamos em nossa sociedade. Sendo assim, Butler coloca que, para o feminismo, é necessário rir das categorias impostas e de como nossa sociedade compreende e molda o “ser mulher”. Compreendendo que a categoria gênero subdivide a nossa sociedade ente masculino e feminino, homem e mulher, se faz necessário compreender também que a palavra gera poder e que o gênero se constrói também através do discurso. Para tanto, Butler analisa o último capítulo da História da Sexualidade, de Foucault:

Para Foucault, o corpo não é sexuado em nenhum sentido significativo antes de sua determinação num discurso pelo qual ele é investido de uma ideia de sexo natural ou essencial. O Corpo só ganha significado no discurso no contexto das relações de poder. A sexualidade é uma organização historicamente específica de poder, do discurso, dos corpos e da afetividade. Como tal, Foucault compreende que a sexualidade produz o sexo como um conceito artificial que efetivamente amplia e mascara as relações de poder responsáveis por sua gênese (BUTLER, 1990, p. 137).

2 “Pessoa cujo corpo varia do padrão de masculino ou feminino culturalmente estabelecido, no que se refere a configurações dos cromossomos, localização dos órgãos genitais (...) A intersexualidade se refere a um conjunto amplo de variações dos corpos tidos como masculinos e femininos.” ( Jaqueline Gomes de Jesus, 2012 p. 26) 27

Desta forma, podemos pensar no discurso como ação, como gerador de significados múltiplos, de propriedade, de poder e, porque não, de performatividade. O que Butler propõe é que, para além da natureza e da biologia dos corpos, existe todo um constructo social que gerencia e dita padrões já desde antes de nossos nascimentos, quando nos é especificada a genitália e/ou as características biológicas compreendidas como macho ou fêmea. A partir do nascimento, o ser humano passa a aprender e executar uma série de performances cotidianas aliadas ao que a sociedade compreende com o ser masculino ou o ser feminino, sendo o primeiro atribuído aos corpos com pênis e o segundo àqueles com vagina. A autora entende o gênero como uma performance: através de atos apreendidos e ditados socialmente, repetimos o que a cultura entende como gênero, partindo de um ponto binário do que se compreende como masculino e feminino. Ao longo destes inícios da minha escrita, o seu olho e seu olhar atentos podem observar que, ao trazer o conceito de gênero sendo compreendido como performance, pretendo não me abster apenas da performance dessa corpa em si, mas dos atos de performatividade. Isso implica em apropriar-se do cílio, do colar e do descolar/deslocar. Não apenas em como essa corpa utiliza o cílio enquanto o mesmo se mantém colado como artefato protético. A partir disso, discorrerei, tanto com relação à minha corpa ou às outras trazidas nesse trabalho. Não me interessa apenas os cinco minutos de uma performance drag, sua dublagem, número corporal ou musical, mas o que ocorre com essa corpa e como ela se relaciona com o mundo ao seu redor. Nesse sentido, passo a entender que essa minha corpa passa atuar como performer, recodificadora de signos sociais e que negocia sua arte, sua vida e sua existência. Para tanto, parece-me de grande valia a definição de Richard Schechner para um “comportamento restaurado”. O estudioso dos estudos da performance menciona o exemplo de uma mãe que, levando uma colher de cereal à sua própria boca e depois a boca do bebê, faz com que o mesmo aprenda que precisa abrir sua boca e ingerir a comida. Esse ato, segundo Schechner, é uma performance que lida com o conceito de “comportamento restaurado”. Mas não só esse simples ato. Dale a algumas décadas, o bebê, já uma mulher adulta, mostra um registro, foto ou vídeo, de tal ato para o seu filho, ensinando-o assim como deve se portar. Sendo assim, “performances são feitas de comportamento restaurado, mas cada performance é diferente de qualquer outra” (Schechner, 2006, p. 4). Nesse sentido, podemos observar que a corpa que se apropria de artefatos sociais relacionados ao 28 gênero que não lhe foi designado no nascimento promove uma quebra dos códigos sociais. É quando os outros, ao me verem agora como uma corpa-cílio se interrogam: é ele ou ela? Com esse ato performático executado na minha corpa, os outros, com quem interajo cênicamente, ou na vida, desaprendem como devem tratar a minha pessoa. Eu restauro o comportamento esperado para com o meu ex-corpo e atual corpa e crio questionamento no meu convívio social. Os outros, nesse caso, são como a criança que, através do ato da mãe, no caso meu cílio-corpa, aprendem a como lidar com um corpo que foge do binarismo de gênero. Assim como a criança que aprende a levar a colher à boca, podemos deslocar o olhar para o que Butler discorre sobre o quão a nossa sociedade nos molda e nos ensina como devemos agir com relação ao corpo biológico que possuímos quando no nascimento. Seria necessário “localizar o mecanismo mediante o qual o sexo transforma-se em gênero e pretender estabelecer, não só o caráter de construção do gênero” (Butler, 1990, p. 167). Com isso, podemos compreender que a prótese está para o corpo como uma artefato que impulsiona e gerencia a performatividade de gênero: Imaginemos que a sedimentação das normas de gênero produza o fenômeno de um sexo natural, uma mulher real, ou qualquer das ficções sociais vigentes e compulsórias, e que se trate de uma sedimentação que ao longo do tempo, produziu um conjunto de estilos corporais que, em forma retificada, aparecem como a configuração natural dos corpos em sexos que existem numa relação binária uns com os outros. Se esses estilos são impostos, e se produzem sujeitos e gêneros coerentes que figuram como seus originadores, que tipo de performance poderia revelar que essa causa aparente é um efeito? (BUTLER, 1990, p. 201).

Quando a autora coloca a “causa aparente” como um efeito, podemos atentar para a performance drag como um importante exemplo de como os artefatos relacionados ao gênero são constructos sociais, ou seja, artificiais e cênicos. Os cílios são então nada mais do que artifícios sociais que, acoplados a um corpo, moldam sua leitura social. Para Butler (1990, p. 37), “a drag expõe a estrutura imitativa do gênero”. Podemos, portanto, trazer a figura da drag queen como um importante expoente, um significativo símbolo do “problema” que é o gênero para nosso convívio em sociedade. Uma drag queen se constrói utilizando símbolos e clichês significativos da nossa sociedade para criar uma performatividade cenicamente artificializada. É interessante olhar atentamente para a fragilidade do gênero, assim como ele é imposto socialmente. Pois, nesse momento, estamos, a título de exemplificação, colocando no centro do texto uma série de experiências corporais onde o que impera é o adorno, é como a pessoa 29 presente no corpo ou corpa o adorna e o resignifica. Nesse momento, o que importa é “que agora é bem menos biológico e muito mais cultural” (SALES; SOUZA, 2012, p. 36). Após compreender que tal fragilidade de gênero é exposta, quebrada e questionada com a figura de uma drag queen, um importante nome é trazido por Butler para mergulhar no cerne da questão. Trata-se da drag queen Divine. Butler então discorre sobre seu trabalho no filme “Female Trouble”: A performance dela / dele desestabiliza as próprias distinções entre natural e artificial, profundidade e superfície, interno e externo – por meio das quais operam quase sempre os discursos sobre gênero. Seria o drag uma imitação de gênero, ou dramatizaria os gestos significantes mediante os quais o gênero se estabelece? Ser mulher construiria um “fato natural” ou uma performance cultural, ou seria a “naturalidade constituída mediante atos performáticos discursivamente compelidos, que produzem o corpo no interior das categorias de sexo e por meio delas? Contudo, as práticas de gênero de ‘Divine nos limites’ das culturas gay e lésbica tematizam frequente “o natural” em contextos de paródia que destacam construção performativa de um sexo original e verdadeiro. Que outras categorias fundacionais da identidade – identidade binária de sexo, gênero e corpo – podem ser apresentadas como produções a criar o efeito do natural, original e inevitável? (BUTLER, 1990, p. 8-9).

Nesse ponto, podemos retomar uma vez mais o exemplo da mãe que alimenta o bebê, aliando à performatividade de Divine. Divine é Divine, mas também é Harris Glenn Milstead, ator que dá vida a essa drag queen e que, também como ator e não apenas como sua famosa persona drag queen, atuou em uma grande quantidade de filmes e peças de teatro, realizou ensaios fotográficos, performances e gravou músicas autorais. Sua feminilidade é construída. Aprendemos, ao vê-la, que sua figura é feminina.

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Figura 3: Cartaz do filme Pink Flamingos (acervo google imagens).

Mais interessante que aprendermos com sua figura e sua performatividade de gênero, é o fato de que, na grande maioria de filmes que fez em parceria com o cineasta John Waters, suas personagens são sórdidas e representam a escória da sociedade. Em Pink Flamingos, ela busca ser a pessoa mais imunda do mundo, realizando atos grotescos como comer as fezes de um cachorro. Sendo assim, ele/ela não só se apropria de signos aliados ao gênero divergente do qual lhe foi incumbido ao nascer, como deturpa o papel da mulher, o que se espera de uma figura feminina em um meio social. O mesmo se pode observar na artista chilena Hija de Perra, que, em parceria com o cineasta Edwin Oyarce, participa do filme Empaná de Pino e realiza todo um trabalho onde se deconstroem padrões normativos com relação a gênero e sexualidade, sendo, por diversas vezes, lida como uma espécie de Divine sul-americana. Na Rio de Janeiro, tivemos, entre as décadas de 1980 e 1990, a artista Laura de Vison, tida como a “musa do undergorund carioca”, também comparada a Divine. Laura, que performou marjoritariamente no Bar Boêmio, no centro do Rio, realizava uma infinidade de performances incomuns e bizarras.

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Figura 4: Folheto de divulgação de Laura de Vison. (acervo Romulo Maduro).

Voltando para a persona de Harris Glenn Milstead, e indo além de sua performance drag, temos que Divine Se confundia com quem era montada ou desmontada... era uma drag queen montada construída artisticamente, mas que era performada mesmo sem a montação. Ou ainda, vivenciava a montação em situações cotidianas, onde uma personagem não seria considerada a forma mais apropriada de se estar, como, por exemplo, restaurantes. Divine foi, então, pelo que sabemos, performance artística e performatividade de gênero ao mesmo tempo. Dando lugar ainda às vezes à performatividade bixa de Harris Glenn Milstead, que desmontado, estrelaria na televisão estadunidense poucos dias antes de sua morte (BARILLO, 2019, p. 65-66).

Nesse sentido, o quesito da performatividade, trazido anteriormente, me parece mais uma vez tão interessante quanto a performance em si: a performance se traduz no papel Divine desempenhado nos filmes; a performatividade, em tudo que ocorre com Harris / Divine ao longo de sua vida artística e pessoal. Um olhar mais normativo poderia insinuar uma dicotomia entre arte e vida, ou ator e personagem, mas prefiro que lancemos nossos olhares para o caráter de identificação desse corpo ao vivenciar o seu ser “bicha” para além do que era sua drag nas telas.

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2.3 LGBTQIA e muito mais Nesse momento, e como já prometido anteriormente, precisamos de alguns instantes para retocar a cola dos cílios gigantes e atentarmos para o que seria a identidade bicha. Mais precisamente, utilizando nosso português latino-americano, de onde nos comunicamos e com o idioma no qual é escrita essa dissertação, para adentrarmos nessa identidade. Se, em inglês, temos a Nancy, em espanhol, a Marica e, em italiano, a Checca, precisamos pensar que, diferente dessas outras línguas, no nosso português, o adjetivo e xingamento para designar homossexuais masculinos não é o diminutivo de um nome de mulher, mas sim o feminino de bicho: a bicha. Tal nomenclatura já ressalta a falta de humanidade colocada em figuras que possuem uma sexualidade desviante daquilo que a sociedade estabelece como correto e normal. Meu olho atento e curioso para todo e qualquer detalhe sobre sexualidade e gênero, sobretudo no fazer desse trabalho, encontra um significado no livro Aurelia (2006, p.03), onde bicha é “homossexual masculino; gay; homem efeminado”. A definição e o livro em conjunto com Babado Forte (1999) são de caráter utilitário para o desenvolvimento do presente trabalho. Porém se parecem com leituras datadas que não esboçam como a comunidade se comporta e se manifesta no presente momento. Percebo também que a chamada “diversidade” sempre se executa, se identificando e se expressando, de formas bastantes volatéis, deixando escritos e pesquisas datadas e ultrapassadas com o passar dos tempos, assim como essa minha dissertação pode ser daqui a bem pouco tempo. O termo bicha, ao longo dos anos, deixou de ser apenas uma forma xula, assim como a palavra baitola3, de se tratar um homossexual masculino, passando a ser quase uma identidade de gênero para corpos que, designados masculinos quando nascem, expressam uma infinidade de possíveis feminilidades, sem necessariamente se compreenderem e se reivindicarem como mulheres trans ou travestis.4 Nos idos dos anos 1970, além da palavra gay, de origem americana e que significa “feliz”, as bichas

3 Bitola significa a distância entre os trilhos dos trens. Uma história que configura o imaginário popular diz que, em meados de 1913, chega ao Ceará o inglês Francis Reginald Hull, homossexual assumido, e que foi encarregado de fazer um levantamento topográfico na construção de linhas de trem no Brasil daquela época. Ao viver no Nordeste do Brasil, mais especificamente no estado do Ceará, ficou vulgarmente conhecido como “Baitola”, por ser essa a maneira com que dizia Bitola, de acordo com seu sotaque britânico. Como se deu de forma muito ampla a imigração de cearenses para o Rio de Janeiro, tal palavra foi alocada ao imaginário popular, servindo, assim como “bicha”, como um popular xingamento à população homossexual. 4 No caso, as mulheres trans e travestis são pessoas que foram designadas como do gênero masculino ao nascer e que se identificam com um gênero divergente desse associado ao seu corpo biológico quando no nascimento. 33 cariocas se definiam como entendidos5. Essa nomenclatura vem da época da ditadura militar onde, aqueles que eram entendidos dos assuntos das bichas, podiam frequentar os guetos, as “turmas”, de forma escondida, algo sobre o qual falaremos mais adiante. Esse termo, entendidos, ainda é usado em alguns grupos, sobretudo na Zona Norte carioca, e também é, e foi, utilizado pelas lésbicas, sendo elas as entendidas. O termo bicha pode ser compreendido como o oposto a entendido, que “refere-se a uma identidade específica alusiva à orientação sexual, que tem seu surgimento e significado atribuído ao ideal igualitário da classe média paulista e carioca entre as décadas de 1960 e 1970” (Fry, 1982, p.18). O similar a bicha, com relação às lésbicas ou entendidas é o termo Sapatão. Tanto a bicha quanto o sapatão são termos que, no decorrer da minha vida, foram amplamente reapropriados pela juventude gay e lésbica carioca, servindo como bandeira de empoderamento para definir corpas que ocupam lugares que antes lhes eram negados. Nesse movimento, observa-se a quantidade de trabalhos em uma grande variedade de meios, que utilizam desses termos para se auto-definirem, tendo como exemplos o canal do Youtube Sapatão Amiga, de Ana Claudino, e o espetáculo Bichas, de Gabriel Pardella. Os termos bicha e sapatão podem ser compreendidos como veículos empoderadores, no sentido de que esses corpos expressam e utilizam performatividades que deturpam os padrões binários de gênero colocados como norma em nossa sociedade. O mesmo pode ser observado no fazer drag: quando uma corpa como a minha, cansada de ser hostilizada com a palavra bicha, antes de se apropriar e se empoderar da mesma, resolve assumir e tomar para si um xingamento, o transformando em bandeira e causa social. Para algumas corpas, é um lugar de passagem, uma prótese constituinte do guarda-chuva da diversidade que auxilia nos processos de reconstrução de gênero e de identificação pessoal. Ao se apropriar de tal identidade, a corpa pode também se colocar numa linha muito tênue: quebra os padrões sociais e constata, pela experiência, até onde a prótese leva o corpo, podendo auxiliar o mesmo na transição, na transformação de corpO em corpA. A performatividade que vai em contra o padrão social permite a expressão livre do corpo, o adentramento em outras possíveis identidades e sexualidades, quebrando o adestramento social dos atos compulsórios e compulsivos que nos moldam, apenas, como Homem ou Mulher.

5 Entendido é um termo cunhado de forma informal pelo artista performático Edy Star, que veio a se tornar uma gíria gay muito utilizada até meados dos anos 1990. 34

O espetáculo teatral Bichas, mencionado anteriormente, assim como a identidade bicha, é um lugar de apropriação de uma palavra que remetia inicialmente a atos vulgares e desprezíveis, de apenas um espectro da diversidade sexual: os homossexuais masculinos. Acontece que o guarda-chuva queer e transgênero da atualidade, mais especificamente, os estudos queer pode ser muito bem representado pelo que Preciado chama de Corpos Falantes: En el marco del contrato contra-sexual, los cuerpos se reconocen a si mismos no como hombres o mujeres, sino como cuerpos parlantes, y reconocen a los otros como cuerpos parlantes. Se reconocen a si mismos la posibilidad de asceder a todas las practicas significantes, así como a todas las posiciones de enunciación, en tantos sujetos que la historia a determinado como masculinas, femininas o perversas (Preciado, 2002, p.13 )

Munidas da noção de corpos falantes, podemos mergulhar em algumas performances que promovem exercícios de des-identificação em relação ao gênero e à sexualidade.

Figura 5: Espetáculo Bichas. Foto de Maíra Barillo.

Na peça de Gabriel Pardella, por exemplo, vemos bichas-drags queens mas, em um segundo momento, as possibilidades corporais se ampliam: vemos corpos de gêneros distintos, negras, gordas, cabeludas. É um convite para que o corpo desviado da norma, seja ele qual for, se aproprie de termos que antes lhes eram utilizados como xingamentos para agora se auto-construirem, problematizarem a apropriação dos mesmos e propiciarem outras variações de manifestações identitárias. O mesmo se pode observar no espetáculo Dona quiXota, onde se fala de buceta de variadas formas e, cenicamente, o elenco é, em sua maioria, de mulheres cis, tendo um homem trans e apenas dois homens cisgênero, um interpretando a personagem da Bicha. O espetáculo, que é realizado de froma intinerante e similar a um cortejo, vangloria as corpas com vagina e faz uma verdadeira ode à xota. 35

Figura 6: Espetáculo Dona QuiXota. Foto de Maíra Barillo.

Podemos compreender que a peça Bichas, assim como Dona QuiXota, são possibilidades de distintos convites para que as identidade Sapatão e Bicha se reconstruam em outras possíveis construções de identidades sexuais e de gênero. Ainda sobre a identidade bicha e as artes da cena na Rio de Janeiro atual, podemos observar o SonhoAlteRosa de Caio Riscado. Este espetáculo teatral busca trazer humanidade à figura da bicha, utilizando de ferramentas do teatro contemporâneo para criar imagens e memórias da vivência da bicha-performer. É lógico que esse trabalho, assim como qualquer outro e de qualquer instância, não se traduz na variedade total do que vem a ser bicha na cidade do Rio de Janeiro. Essa subjetividade tem a ver com a vivência da Bicha-Caio que, com seus recortes sociais, é branca e moradora da Zona Sul da cidade. 36

Figura 7: Espetáculo Sonho AlteRosa. Foto de Francisco Costa.

Um trabalho que traz à tona outros possíveis recortes sociais do ser bicha nessa cidade é aquele de Blackyva: bicha não binária e preta, favelada e que, com sua investigação performática no funk, propõe não só um aprofundamento em sua condição de sexo e gênero, como também na violência policial que qualquer moradora das zonas de maior vulnerabilidade social na cidade vivencia cotidianamente.

Figura 8: Blackyva. Foto de Karina Abdel.

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Revertendo o olhar para o espectro bicha, e não só para a individualidade de determinados artistas bichas nessa cidade, podemos pensar que, na atualidade, o mesmo se distancia muito do ideal das bichas de outras décadas, quando desde os anos 1970 importávamos a cultura gay dos EUA, com o ideal do “macho man”6: bichas peludas, fortes e muito masculinizadas. As bichas de hoje valorizam sua feminilidade e a aproximação da identidade travesti. Estampa-se com orgulho o ser “afeminada”, em contrapartida do “gay padrão”, que seria aquele que se aproxima mais do ideal de homem heteronormativo, aquela bicha que nem parece que é. Um termo recente e utilizado, e despontado, pela funkeira Linn da Quebrada é o Bixa-Travesty, sendo interessante trazer para esse estudo queer como um Corpo Falante, ou uma corpA, se auto-define: “Quando eu fui inventar esse lance da Bixa Travesty, foi porque eu acho que nesse espectro entre o masculino e o feminino me parece que eu sou uma falha” (Linn, 2018). Sendo assim, retomando o primeiro exemplo da peça Bichas e sua abertura para uma variedade das possibilidades do ser bicha, o que Linn propõe com essa construção de um novo nome para sua identidade de gênero é também uma apropriação de nomes que eram utilizados como insultos, ressignificando-os. Este corpo falante é antes de tudo um corpo se auto-definindo. Conclui-se daí que a sigla LGBTQIA+ não se traduz em um conjunto de caixinhas estáveis, passando ela mesma por um um processo volátil, fluido e incessante de redefinições. O termo LGBTQIA+ significa Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers, Intersexo, Assexuais e a infinidade de possibilidades de expressões de gêneros e sexualidades, como a Pansexualidade e muitas outras. O termo já foi, por muitos anos, utilizado como GLS, sendo acrônimo para Gays, Lésbicas e Simpatizantes. Antes, era apenas referido à comunidade Gay, ou Homossexual. Ao longo da história, o protagonismo dos homens gays foi sendo desconstruído e dando vazão a uma série de outras possibilidades de corpas, incluído as mulheres, as travestis, as pessoas bissexuais etc. Nos últimos anos, a sigla, que já foi colocada por um tempo apenas como GLBT (ou GLBTT) e, posteriormente como LGBTQ, foi ganhando novos contornos, buscando legitimar outras formas de sexualidades e identidades de gênero. A atual sigla já não coloca o G, de gays, na frente, dando protagonismo para as lésbicas, o L. Atualmente,

6 Ideal das bichas dos anos 1970, que tinham como ícone o Village People, grupo de música disco americana. A expressão “Macho Man” se tornou amplamente conhecida nesta década pela música homônima lançada em 1978, integrando o álbum San Francisco. 38 algumas pessoas e coletivos, em sua maioria nos EUA, já utilizam a sigla TLGB+, buscando trazer o T, de Transgêneros, para o topo da sigla, sendo essa a parte da comunidade em maior número de vulnerabilidade social e com carência de diversos direitos ao redor do mundo. Podemos compreender que essa grande questão, a sigla T, de Trangêneros, ainda sendo como a faixa da sigla LGBTQIA+ que apresenta maior índice de falta de melhores condições sociais. Muito se especula sobre as especificidades inerentes ao corpo transgênero, mas, me parece que é necessário sempre saber e pesquisar através dos escritos e das vivências de quem vive a letra T em sua própria pele, como uma corpA falante. O termo Trans, assim como o termo homossexual, é cunhado por pessoas não homossexuais e fora da sigla LGBTQIA+. Cria-se o termo homossexualidade para designar “os outros”, e só aí o termo heterossexual é criado por “nós”, em resposta. Conforme esclarece Butler (2000, p. 100-101): Sin la homosexualidad como copia, no habría una construcción de la heterosexualidad como origen. Esta presupone en este caso a aquella. Si el homosexual como copia precede al heterosexual como origen, parece razonable conceder que la copia viene antes que el origen, que la homosexualidad es el origen y la heterosexualidad, la copia. Pero estas simples inversiones no son realmente posibles [...] toda la estructura de la copia y el origen se revela como extremadamente inestable ya que cada posición se invierte en la otra y confunde la posibilidad de una forma estable que localice la prioridad lógica o temporal de cada término. [...] Si la heterosexualidad es una imposible imitación de sí misma, que se constituye de un modo performativo como el original, entonces su parodia imitativa – cuando y donde existen en las culturas gays – es solamente una imitación de una imitación, una copia de una copia pues no hay original.

A partir da observação de Butler, nota-se que a construção de alguns termos são respostas nossas (corpAs falantes LGBTQIA+) à denominação que pessoas não pertencentes a essa comunidade nos deram, nos cunharam. O termo Transexual é trazido ao idioma inglês por David Oliver, em 1949, e popularizado pelo doutor alemão Harry Benjamin na década de 1960, em conjunto com o termo Transgênero. Porém, Compreendiam-se esses indivíduos como incluídos no denominado “travestismo fetichista”, entendido na época, especialmente por psicanalistas, como uma patologia, um tipo de psicose, de acordo com a visão de que o gênero identificado pela pessoa “normal” estaria submetido ao seu sexo biológico. Essa concepção reduz a transexualidade a uma patologia e as pessoas transexuais a pessoas para as quais procedimentos cirúrgicos trariam uma “cura” (Jesus, 2018, p.01).

Muito se discute a respeito da diferença entre os dois termos, um mais ligado ao sexo e outro mais ligado ao gênero, sendo que ambos já orientam leituras e 39 interpretações. Porém, é preciso uma vez sublinhar que tais estudos e nomenclaturas são oriundas de pessoas cisgêneras – isto é, pessoas que não são transgêneras ou transexuais – que não vivenciam tais experiências. Esta denominação de cisgeneridade é atribuída muitas vezes à pesquisadora trans Júlia Serrano, mas a mesma diz ter conhecimento de que o termo foi criado por volta de 1995 pelo homem transgênero Carl Buijs. Mas, importa aqui saber menos quem cunhou o termo e mais de onde ele vem: foi a transgenereidade que criou um nome para definir a existência de outras pessoas, aquelas que não o são. Se a cisgenereidade constrói um termo e, a partir dele, nos exclui, nos hospitaliza e/ou nos patologiza, nós construimos outro para mostrá-los que não estão no centro da norma universal de onde supostamente nos apontam, nós que somos tidas como extremidades do eixo. A transgenereidade pode, e deve, (e está fazendo) falar por si mesma: construir lugares onde as pessoas cis e as trans ocupem lugares de poder-saber-desejar equivalentes nas instâncias sociais. Assim, as trans não são algo à parte, mas algo que, assim como o ser “cis”, constitui o espaço da sociedade. Nesse momento, é interessante trazer outros termos para se referir a pessoas transgêneras, sendo os mesmos criados por pessoas trans brasileiras: transgente, por Letícia Lanz, Transidentidade, por João W. Nery, e Transvestigênere, por Indianara Siqueira. Tais nomenclaturas são mais abertas a uma pluralidade de vivências de corpas que vão além dos papeis sociais impostos às mesmas. Nery (2011, p. 4) define a transidentidade como abrangindo “uma série de opções em que uma pessoa sente o desejo de adotar, temporária ou permanentemente, o comportamento e os atributos sociais de gênero (masculino ou feminino), em contradição com o sexo genital.” Letícia Lanz (2014, p. 24), por sua vez, afirma que Transgênero não quer dizer um gay (ou lésbica ou bi) “mais afetado”, nem uma patologia mental do indivíduo. Não é tampouco o nome de mais uma identidade gênero-divergente (como travesti, transexual, crossdresser, drag queen, transhomem, etc.) mas um termo “guarda-chuva”, que reúne debaixo de si todas as identidades gênero-divergentes, ou seja, identidades que, de alguma forma e em algum grau, descumprem, violam, ferem e/ou afrontam o dispositivo binário de gênero.

Compreendendo, com Lanz, a letra T, da sigla LGBTQIA+, como uma letra guarda-chuva, nos deslocamos para a definição de Transvestigênere, adotada a partir de agora, como “toda pessoa não cisgênera... qualquer coisa que não seja cisgênera, pode ser Transvestigênere” (Hilton, 2019). Hilton refere-se ao termo cunhado por Indianara Siqueira, uma transvestigênere, militante, e pessoa a frente da Casa Nem, um dos 40 principais abrigos para pessoas trans em vulnerabilidade social no Rio de Janeiro. Esta instituição sofreu um ataque truculento pela polícia do Rio e atualmente ocupa um prédio no Bairro de Copacabana, ocupação esta intitulada de Stoneall Inn.7

Transvestigênere tem me parecido, por um lado, um termo mais próximo do que Preciado coloca como Corpos Falantes e, por outro lado, aquele que mais tem se aproximado dos exercícios des-indetificatórios dessa corpa: um corpo inadequado ao CIStema8 e que se auto-produz, na vida-performance e também nessa escrita.

7 Stonewall Inn é o nome de um bar LGBTQIA+ em Nova York que, em finais da década de 1960, contou com uma série de ataques violentos por conta da polícia local e, com a resposta da população que frequentava o ambiente, na noite de 28 de Junho de 1969, inicia-se uma grande manifestação gerando a conhecida Revolta de Stonewall. Trata-se de um marco para uma maior liberdade da comunidade gay nos EUA que repercutiu em todo o mundo, sendo a origem das diversas paradas LGBTQIA+ que existem em variados países. Dois personagens marcantes e atuantes nessa história são as trans Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera, sendo uma negra e a outra descendente de latinos. 8 Junção das palavras Sistema com o prefixo Cis, de Cisgeneridade. 41

2.4 Por uma Corpa Cuir

Serei um monstro sexual normatizado pela academia dentro da selva de cimento? Hija de Perra

Retomando o fôlego, e a compostura, do espacate9 que o salto para trás realizou com nossas corpas, com o intuito de compreeder o que vem a ser a prótese, segundo Preciado, permito-me explicar um entendimento interessante que ocorreu com esta corpa ao longo da pesquisa. Melhor dizendo, não estou aqui para explicar, mas para confundir. Tal estudo não pretende categorizar, organizar categorias estanques, mas problematizar a diversidade de corpos e corpas que, assim como o meu, criam problemas à categoria gênero, essa sim tratada de forma não porosa e bastante impermeável em nossa sociedade. A possibilidade de mudar o artigo no fim da palavra corpo é, talvez, uma forma de aproximação na escrita do ideal de Corpos Falantes de Preciado. Através da prótese-cílio, enceno tensionamentos que se deslocam para ferramentas eficazes na perfuração, como navalhas que perfuram o gênero impermeabilizado. Mas, ainda não chegamos no momento da navalha mostrar ao que veio. Precisamos construir bases sólidas nessa evolução cartográfica e descontínua, promovendo uma construção advinda de terrenos propícios a progressões que provoquem descontinuidades. As bases que temos, até o presente momento, são encontradas nos escritos de Preciado, a mim indicados. Com essas bases, tomo conhecimento de grupos como Queer Nation, Radical Fury, Lesbian Avengers, Pony e Prostitute New York, que despontam desde os anos 1980 como produtores de pesquisas no norte do continente americano. Nesse momento, encontro mais proximidade, inclusive geográfica, no nosso país vizinho, o Chile. Nele, outras corpas, assim como a minha, debruçam suas produções sobre a problematica de gênero, como Irina La Loca10, CUDS (Colectivo Universitario de Disidencia Sexual) e Hija de Perra.

9 Espacates são movimentos bruscos que as drags fazem com as pernas, em suas apresentações, onde, em fração de segundos, vão do corpo em pé, na posição vertical, para a horizontal no chão, geralmente com as pernas dobradas ou entrelaçadas. 10 Irina Gallardo, mais conhecida como Irina La Loca, é uma performer cuir chilena que produziu uma série de ações e performances em parceria com Hija de Pera, sendo inclusive integrante do elenco do filme Empaná de Pino. 42

Figura 9: Hija de Perra. Foto de Zaida Gonzalez.

Hija de Perra, pelo seu caráter sórdido e putrefato, colocou-se como uma terrorista do gênero, problematizando o processo de recepção dos Queer Studies. Hija pondera que, em terras latino-americanas, os habitantes que aqui já estavam antes da colonização europeia utilizavam seus corpos e modos de existir para além da binaridade de gênero. Agora, com a proliferação desses estudos, Parece que tudo o que tínhamos feito no passado, atualmente se amotina e se harmoniza dentro do que São Focault descrevia em seus anos na História da Sexualidade e que mesclado com os anos de maravilhoso feminismo acabam no que Santa Butler inscreveu como queer (Hija, 2014 p. 03). Nesse sentido, variados pensadores preferem utilizar o termo Kuir, ou Cuir, ao invés do termo inglês, aproximando a nomenclatura do cu (ou culo, em espanhol). Enrolar a língua dizendo queer não tem o mesmo peso para nós, brasileiros, do que para os estudiosos de língua inglesa. De modo semelhante, queer não tem a mesma força em espanhol que falar sobre “Maricas, Bolleras e Trans”, ou seja, bichas, sapatões e travestis. É necessário problematizar a recepção da palavra queer em contexto sul- americano, para que o mesmo não seja mais um adestramento elitista. Pois, a maneira com que ele é inserido na própria América do Norte já traz uma dimensão de elistismo, quando antes da canonização da expressão “teoria queer” por Lauretis, a palavra “queer” já era utilizada em escritos teóricos de acadêmicas chicanas, negras, lésbicas e de classe trabalhadora, ou seja, por aquelas que, ainda sendo formalmente cidadãs estadunidenses, careciam de reconhecimento pleno 43

como tal e enraizavam seus desejos, ânsias e identidade para além de suas fronteiras (Climaco, 2012 p 32).

Se David M. Halperín, assim como outros teóricos queers norte-americanos, problematizavam a rápida institucionalização do queer por lá, em nossas terras, o mesmo acontece, porém sendo uma institucionalização “importada”. Assim, Hija de Pera coloca que o queer chega em nossas terras de duas maneiras: com as Caravelas e, mais tarde, com os Shoppings. As caravelas queer, remontam o mito da nossa colonização: há mais ou menos dez anos atrás, estudiosos que sabiam ler inglês descobriram essa nova erudição em termos de teoria. Em um segundo momento, que vivemos na atualidade, Hija coloca como a época do Shopping Queer, onde essa teoria já é processada e espalhada para o além muro das academias, em espaços de artes, políticas e festas. É onde, aliado a práticas capitalistas, o queer determina e dita padrões, e espaços de difícil acesso para quem realmente não está de acordo com a norma. Nas palavras de Jota Mombaça (2016), “o queer às vezes é usado aqui no nosso contexto para mascarar certas relações de poder que estão na cara. Quer dizer, na nossa cara!... Quem não tem nome em lista VIP como é que faz pra ser queer?” (Mombaça, 2016).

Figura 10: Catálogo exposição Queer Museu (Acervo Pessoal).

Para enriquecer o debate, tomemos a exposição Queer Museu – cartografias da diferença na arte brasileira (2018). A mostra, que sofreu censura e boicote não só no Rio de Janeiro, mas também em outros estados por conta de governantes e representações religiosas e de direita, segue uma linha onde se busca produções de arte queer no Brasil. Porém, o que se vê na exposição não condiz ao certo com a origem do termo: existem muito mais corpas que fogem da norma em trabalhos subalternos, como receptores e guias da exposição, e menos corpos transgressores nos trabalhos apresentados como “arte”. Nesse sentido, pergunto: uma arte produzida por mulheres é essencialmente feminista? Respondo, sem sombra de dúvidas: não! 44

Sendo assim, uma arte produzida apenas por uma parcela da comunidade LGBTQIA+, sobretudo homens e mulheres, gays e lésbicas brancos e de classe média, não é necessariamente uma arte queer, no sentido de ser estranha à norma. O trabalho contou com uma seleção de obras que “não contemplaria a diversidade e a complexidade dxs artistas queer atuando no Brasil, dando mais visibilidade a artistas héteros, brancos e com carreiras consolidadas” (Fonseca, 2018). Partes do material expositivo eram, inclusive, de caráter transfóbico11, mas, após manifestações de pessoas trans, foram modificados. Sem sombra de dúvidas, o trabalho de coordenação feito por Ulisses Carrilho supriu um tanto a falta de queer na exposição que institucionalizou e levou tal nome. O coordenador buscou aglomerar e realizar uma arte realmente Cuir, promovendo uma série de ações homólogas à exposição, desde bate-papos com artistas LGBTQIA+ a performances no espaço das Cavalariças e na piscina do Parque Lage, contando com artistas, como essa corpa que aqui escreve e muitos outres. Como Gabe Passareli, que realizou um ato performático pintando seu corpo de carvão e deixando-o exposto em um espaço de passagem da EAV Parque Lage. Então, picha, com o mesmo carvão que se pintou, as paredes da instituição com dizeres como: “Farsa, Apropriação” em baixo do letreiro da exposição que continha o nome da mesma: Queer Museu.

Figura 11: Gabe Passareli performando no Queer Museu. Foto de Marina Benzaquen.

11 Para Jaqueline de Jesus (2012, p.30), a transfobia é “preconceito e/ou discriminação em função da identidade de gênero de pessoas transexuais ou travestis. Não confundir com homofobia”. 45

A performance de Passareli talvez seja um ato que mais se aproxima do que o Coletivo de Dissidências Sexuais – CUDS12, do Chile, coloca como “mais que TRANSdisciplinaridade, interessa a indisciplina”, pois “ni lo queer nasció em la universidad, ni nunca entrará em sus aulas de forma pacífica” (Vidarte, 2007 p 14). Nossas corpas não querem apenas ser legitimadas como artistas, produtoras ou, simplesmente, humanas. Elas querem ser ouvidas onde é necessário pensar sobre a colonização dos nossos corpos, afetos e de nossas produções de conhecimento.

12 Coletivo sobre dissidências sexuais no Chile. Para mais informações: disidenciasexualcuds.wordpress.com 46

2.5 Montação We’re all born naked and the rest is drag. RuPaul

Passemos, enfim, à prótese. Para tal, reescrevo a frase de RuPaul como: “Nascemos apenas corpo, o resto é Montação”. Aí começa o processo de transformação: tirar a letra O e colocar a letra A. Não mais corpo, mas corpA. Esse processo é intrínseco à montação e à prótese. A manufatura protética que adorna nossas corpas pode ser definida como montação e talvez seja esse o ponto nevrálgico, a espinha dorsal dessa nossa corpa, a minha e a da pesquisa. Segundo Erika Palomino, o ato de se montar é uma gíria oriunda do universo das travestis, para falar sobre todo o adorno corporal que utilizam em sua expressão de gênero. No Pajubá13, montação significa a ação de se preparar para a apresentação pública. O termo foi se popularizando e passou a ser utilizado para a vestimenta clubber14 ou qualquer outra que seja mais extravagante. Assim, foi adotado pelas artistas drag. A partir dos anos 1990, as drag queens adotam, em sua grande maioria, uma estética que se aproxima dos filmes Priscila, A Rainha do Deserto e Para Woong Foo15, utilizando saltos altos enormes, perucas imensas, muito glitter, cor e maquiagem extravagante.

13 Linguagem utilizada pela população LGBTQIA+, sobretudo pelas travestis nas ruas das grandes cidades. O dialeto é utilizado, em seu início, para que as travestis que trabalhavam nas ruas pudessem se comunicar entre elas, sem o conhecimento dos outros. A linguagem possui palavras oriundas do Iorubá. 14 Clubbers é o termo utilizado para participantes do movimento Club Kid, herdeiro do Glam Rock dos anos 1970. Na passagem das décadas 1980 para 1990, é bastante efervescente na cultura noturna de Nova York e Londres. Daí, essa subcultura é importada para o resto do mundo. Clubbers então é usado para se referir a essas pessoas que se vestem de forma extra-cotidiana e que frequentam festas de música eletrônica em clubes das grandes metrópoles. 15 The Adventures of Priscilla, Queen of Desert e To Wong Foo, Thanks for Everything Julie Newmar são duas obras cinematográficas, a primeira australiana e a segunda estadunidense, que na década de 1990 se tornam emblemáticas ao colocar personagens Drag Queens como protagonistas em filmes de estilo Road Movies. O estilo, que poderia ser traduzido como “filmes de estrada”, define obras em que as protagonistas saem pela estrada em uma viagem que acaba se transfomando em uma trajetória de autoconhecimento. 47

Figura 12: Cartaz do filme Priscila, A Rainha do Deserto (acervo google imagens).

Nesse caso, podemos associar tal vestimenta ao que Aurélia (2006, p. 13), o dicionário brasileiro de Pajubá define como “montação: processo de vestir-se com roupa de mulher, geralmente com certo exagero”, onde uma figura montada seria “bem vestido, cross-dressing,16 ou biba17 vestida de mulher”. Mas a montação parece ir além desta definição. O ato da montação não se dá apenas por meio de uma transformação do masculino para o feminino, por mais que essa seja a forma mais explorada e amplamente divulgada pela grande mídia já há algum tempo. De fato, muitas figuras precisam iniciar um processo de montação absorvendo signos oriundos do universo feminino. Muitas continuam. Mas a montação e o fazer drag podem ser compreendidos como um corpo em transformação, em processo de questionamento de gênero enquanto uma categoria social. Nesse ponto, podemos pensar que o fazer drag também possui uma vertente bastante interessante, que se dá pelo viés oposto àquele normalmente conhecido: os Drag Kings.18

16 Cross-Dressing, do termo em inglês, seria uma pessoa que se veste com roupas e objetos associados ao gênero oposto ao seu. Segundo Jaqueline Gomes de Jesus são ; “ Homens heterossexuais, comumente casados, que não buscam reconhecimento e tratamento de gênero (não são transgêneras). Mas, apesar de vivenciarem diferentes papéis de gênero, tendo prazer ao se vestirem como mulheres, sentem-se como pertencentes ao gênero que lhes foi atribuído ao nascimento, e não se consideram travestis... A vivência do crossdresser geralmente é doméstica, com ou sem apoio de suas companheiras, têm satisfação emocional ou sexual momentânea em se vestirem como mulheres, diferentemente das travestis, que vivem integralmente de forma feminina.” (Jaqueline Gomes de Jesus, 2012). 17 Biba é uma maneira muito utilizada nos anos 90 para se referir aos homossexuais masculinos, assim como bicha e baitola. 18 Conforme explica Preciado (2008, p.32), “La cultura Drag King emerge en Nueva York y San Francisco a mediados de los ochenta en los talleres drag king de Diane Torr, Annie Sprinkle y Jack Amstrom, en las performances de Shelly Mars, Moby Dick, Dred, Split Britches o The Five Lesbian Brothers, y en la representacion fotografica de Del LaGrace Volcano. Esa cultura no habita en las universidades ni en los archivos, sino que se extiende a través de una red underground de bares, clubes y asociaciones que conecta hoy la casi totalidad de las metropolís de Occidente. Las prácticas drag king crean un espacio de visibilidad proprio a la cultura marica, bollera y trans a través del 48

Os kings utilizam a montação com um viés contrário às queens: corpos designados femininos, sendo a grande maioria mulheres cisgêneras, mas também tendo uma variedade de artistas que são homens trans que criam personagens masculinos. No século XIX, e até início do XX, eram muito populares na Inglaterra artistas kings como Hetty King e Vesta Tilley. Porém, os movimentos drags que se destacam inclusive na cena mainstream ao redor do mundo desde os anos 1980, com suas idas e vindas na cultura de massa, hipervalorizam a cultura queen, operando, com isso, certo apagamento dos kings. Contudo, nos dias atuais, surgem coletivos que pretendem reescrever esta história. Aqui no Brasil, existe o coletivo Kings of The Nitgh, em Curitiba, do qual faz parte o artista burlesco Rubão.

Figura 13: Drag King Rubão. Arte de akeminess.

Mas, como elaborar uma escrita do fazer drag? Vejamos o que dizem alguns escritos. Revertendo nossos olhares com longos cílios postiços para tempos recônditos do fazer teatral, pode-se observar a presença de homens que constroem, de variadas formas, figuras femininas no caráter da construção cênica. Tal feito se dava, em uma primeira instância, pelo fato de, às mulheres, ser vetado o oficio de atriz. Já aí minha corpa se contorce ao constatar o fato de que as mulheres foram, durante muitos séculos e em variadas sociedades, tolhidas de representarem papéis. Daí surge a figura da drag, traindo o caráter machista da sociedade ocidental, mas que hoje revela-se como plataforma de questionamentos do pensamento heterossexual. reciclaje y la declinación paródica de modelos de la masculinidad de la cultura popular dominante. No solo hombre y mujer, masculino y femenino, sino tambien homosexual y heterosexual aparecen hoy como binarismos u poposiciones insuficientes para caracterizar la produccion contemporanea de cuerpos queer. Mas allá de la resignificacion o de la resistencia a la normalización, las políticas performativas van a convertirse en un campo de experimentacion en el lugar de producion de nuevas subjetividades y, por tanto, en una verdadera alternativa a las formas tradicionales de hacer politica.”

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Sendo assim, atores travestidos interpretavam todos e quaisquer personagens femininos obtidos nas peças teatrais. Eles utilizavam longos saltos altos e suas roupas arrastavam no chão, daí uma possível origem para o termo drag, isto é, arrasto, como cita Roger Baker em seu livro Drag: The History of Female Impersonator in the Performing Arts.19 Ao longo desta história, as drag queens tiveram diferentes funções, seja representando características sagradas, como vivendo personagens trágicas na Grécia Antiga, seja blasfemando e burlando as convenções sociais, assemelhando-se às figuras dos bufões. As drags nem sempre tiveram esse nome. Então, o que se pretende analisar nesse momento são as possibilidades dos primeiros surgimentos do que hoje entendemos como drag, localizando este fazer no âmbito do ofício teatral em diversas sociedades ao redor do mundo. As personagens de William Shakeaspeare, por exemplo, eram todas interpretadas por meninos jovens e, nos próprios textos, o autor, no rodapé da página em que descrevia esses papéis, marcava-o com a sigla DRAG, para sinalizar que aquela personagem seria interpretada por um homem, sendo o termo um acrônimo para Dress As A Girl, ou seja, vestido como uma garota.20 A partir da inserção das atrizes no fazer teatral, fica cada vez mais difícil ver a figura das drags nos espetáculos teatrais, tendo aí o início de um processo de marginalização. Os homens travestidos distanciam-se, com isso, das formas tradicionais teatrais e, já na era elisabetana, há indícios históricos dos primeiros “guetos”, como as “Molly Houses”21 na Londres do século XVIII. Em tais contextos, homens que gostavam de se travestir de formas femininas frequentavam um espaço determinado, praticando uma performatividade de gênero que já caminhava para fora dos espaços direcionados ao fazer teatral.

19 “The term “drag” is thought to be a colloquialism from the Elizabethan and Jacobean period English history, when male actors performed female parts in a transvestite theater.” (Ashburn, 2002, p. 02) 20 In: Amanajás, Igor. Drag Queen: Um Percurso Pela Arte dos Atores Transformistas. Revista Belas Artes, v.1 p. 10, 2014. 21 “The term molly originally referred to a female prostitute, but in London in the early eighteenth century groups of men, noted for their effeminacy a sexual interest in each other, began to call themselves mollies and gather in semi-private venues called molly houses. In addition to a handful of public cruising places in London, molly houses, which were mostly taverns or private rooms, served as important meeting places for men sexually interested in each other. These venues and the men who frequented them comprised one of the first modern homosexual subcultures. Molly houses provided mollies a space in which to act on homosexual desires and develop a sense of community. Margaret Clap owned and ran the most notorious of these houses, which was located in Field Lane in Holborn. Sunday evenings were often its busiest night, when sometimes close to fifty customers filled her rooms. Me they dressed in women’s clothing, took on female personae, and affected effeminate mannerisms and speech.” (Bateman, 2004, p 01) 50

No contexto ocidental, a mulher só pôde começar a ocupar os palcos apenas no século XVIII. No Oriente, tal feito somente se deu séculos depois. Ali, construiu-se uma performatividade cênica pouco estudada em linhas gerais, formando assim um exercício performático que hoje podemos compreender como queer, através da construção de estereótipos femininos em corpos masculinos, que cria regras e condutas que variam de sociedade em sociedade. Para acompanhar tal percurso, minha corpa costura fragmentos historiográficos retirados do livro de Margot Berthold, História Mundial do Teatro, sempre atenta a toda e qualquer menção aos corpos travestidos descritos nas longas páginas desse livro.

Figura 14: Figura de Kathakali no Livro História Mundial do Teatro.

Na imagem retirada do livro, já podemos observar a figura indiana da Kathakali ricamente vestida, com adornos que mesclam elementos relacionados ao feminino e ao masculino. Com isso, podemos observar que no âmbito das performances rituais – compreendidos por Berthold como “Teatro Primitivo” – o caráter ritualístico, intrínseco às mesmas, inclui as mulheres. Porém, quando tal ritual começa a se estabelecer mais como arte e menos como expressão ritualística, aos homens é elevado o lugar de artistas e às mulheres lhes é negado. Assim como na Índia, o Japão também possui uma forte cultura onde os atores, desde os primórdios teatrais, culminam em atuações de dança no palco cênico. Nota-se, também, no Teatro de Sombras da Indonésia – o wayang –, a exclusão de mulheres em todo o ambiente teatral, inclusive da plateia. Mais tarde, elas puderam adentrar o espaço teatral, porém possuindo um ambiente propício a elas e separado dos 51 espectadores masculinos, como também ocorreu no teatro turco. Tais aspectos são característicos e oriundos de seus mais primórdios rituais de iniciação na sociedade. O teatro chinês possui também, desde seus primórdios, todo um aparato visual rico em detalhes, onde o ator possuía domínio total no palco, dando alusão a variadas facetas ricamente detalhadas e compreendidas de acordo com a cultura local. As cores de seus trajes, assim como a grande maioria de seus gestos, eram ricas em códigos culturais assimilados pelo público em questão. Mas, também nessa cultura, os papéis tanto masculinos quanto femininos eram sempre interpretados por homens, até o século XX:

Embora não houvesse nenhuma exclusão categórica da atriz na China, como havia no Japão, até perto do fim da dinastia Ch’ing, no início do século XX, era considerado inconveniente para as mulheres aparecer no palco juntamente com homens. O privilégio de interpretar papéis femininos, da “feminilidade” masculina altamente estilizada, devia ser adquirido ao longo de anos de rigoroso treinamento, e isso era mais apreciado que a própria condição natural (BERTHOLD, 2004, p. 70).

Durante o império Mongol na China, em 1263, as mulheres conquistaram o direito de atuar ao lado dos atores. Porém, elas deveriam utilizar o cinto verde, o mesmo relegado às cortesãs, criando assim um nicho social que as renegava o direito de artistas e as igualava ao que a sociedade compreendia como escória social. Uma das categorias dos espetáculos do Teatro Noh japonês era as chamadas “peças de perucas” ou “peças de mulheres”, onde os atores protagonistas, utilizando perucas, interpretavam personagens femininos. Para os japoneses, não haveria problema para um homem expressar os sentimentos de uma mulher, pois eles consideravam que a máscara conferia ao ator algo de superior às convenções humanas. Nas origens do teatro Kabuki, a bailarina Okuni, na antiga Yedo e hoje conhecida como Tóquio, realizava números de danças e músicas com outras bailarinas. No início, essas apresentações possuíam caráter religioso mas, ao longo do tempo, foram se distanciando de tal atributo, ganhando contornos mundanos. Após alguns anos, é lançado um edito proibindo todas as mulheres (onnas) de aparecerem nos palcos, realizando o que era então chamado de onna-kabuki. Realizando um salto alto e temporal, migremos para a Europa, onde, aos pés da Acrópole grega, em Atenas, reside uma (e apenas uma) origem do fazer teatral. Os rituais de sacrifício, as danças e os cultos, assim como nas épocas primitivas, começam a dar vazão ao que hoje podemos compreender como teatro, onde os ritos dionisíacos se desenvolvem e resultam nas tragédias e nas comédias. Mantendo um conjunto de 52 características específicas (dramáticas, arquitetônicas etc.), o teatro romano se revela como herdeiro do teatro grego. Mas é somente no que compreendemos como Mimo e Pantomima que as mulheres ganham destaque e obtêm a possibilidade de executarem o papel de atrizes: O mimo foi, desde o princípio, o único gênero teatral em que a participação da mulher não era um tabu. A Mima é dançarina que exibia sua flexibilidade acrobática na Florália, que podia – e tinha de poder – atrever-se a homenagear a deusa da natureza em flor despindo as vestes, é a irmã de todas aquelas que têm exercido o atemporal ofício de agradar aos homens. Ela é a irmã da dançarina hindu que responde a pergunta do estranho: “A quem pertences?” com a seguinte franqueza: “Pertenço a ti.” (BERTHOLD, 2004, p. 162).

Podemos observar, ao longo do início do fazer teatral na história da humanidade, o quanto o teatro é oriundo dos rituais divinos e o quanto, ao se aproximar do que hoje compreendemos como arte teatral, esse espaço é tolhido às mulheres. Para conseguirem realizar tal tarefa, elas precisavam possuir um status social relacionado sempre aos contornos marginais que tais sociedades constroem. Tal fato, de adquirir contornos marginais, no sentido de estar à margem dos espaços teatrais, é destinado aos homens que se travestem quando as mulheres começam a adentrar o âmbito teatral e adquirem poder no que concerne ao status de atriz. A partir deste breve panorama histórico, podemos compreender que o teatro propiciou um ambiente onde, aos homens, era respaldado o exercício da feminilização de seus corpos, construindo uma gama ética e estética de estilização e de vivência do feminino. A interdição às mulheres abriu espaço para a construção estilizada de um feminino pomposo, sempre ampliando e engrandecendo os estereótipos sociais respectivos a cada época. No entanto, “ser mulher”, apesar de ser garantido em cena, não era permitido na vida real. Era uma construção estritamente cênica. Contudo, nos Castratti, da Ópera europeia, por exemplo, a construção do feminino se dá de forma mais visceral e definitiva. Nas demais vivências aqui mencionadas, os corpos masculinos podiam experienciar, através do teatro, uma parcialidade da vivência de gênero que outros homens, nas mesmas épocas, não teriam a oportunidade de viver. Porém, aos castratti era imposta uma ressignificação radical de seus corpos, por meio da castração de suas genitálias quando ainda jovens. Eles eram submetidos a esta operação para que pudessem alcançar potências vocais que somente os corpos nascidos sob os signos do feminino poderiam até então. Os castratti construíram assim uma nova corporeidade desviada, quebrando paradigmas corporais relacionados ao gênero. 53

Sendo assim, a partir dos exemplos mencionados, podemos afirmar que, aos corpos femininos que fugiam dos padrões de gênero, era negado o caráter teatral, sendo estes mesmos corpos empurrados aos bordéis e cabarés, locais de marginalização onde eles serviam ao bel prazer de corpos heteronormativos. Para o homem que se afemina, o teatro serviu, desde suas origens, como um lugar legítimo para se construir e vivenciar uma feminilidade não oriunda do seu papel social relacionado ao gênero atribuído quando no seu nascimento.22 Os guetos (os Molly Houses) na era elisabetana se abriram para construir um espaço de segurança e de performatividade para os atores que antes atuavam como drags no teatro. Agora, após o advento da mulher também podendo estar em cena, se tornam obsoletos tais espaços. Já a figura dos Castratti também se desloca para uma corporeidade longe da binaridade homem-mulher no corpo de tais figuras, e que toma contornos distintos do que víamos anteriormente com relação à construção de feminilização apenas para a cena. Com os castratti, abre-se uma necessidade de explorar outros campos da arte, menos protegidos pelo palco teatral e com uma abertura lateral para a vida. Assim, podemos pensar que o teatro como uma reminiscência do que hoje pode ser compreendido como o fazer drag. Porém, a drag ultrapassa os limites teatrais, mesmo o tendo como berço. A história do travestismo necessita então ser estudada e observada para fora do teatro, ou ao lado dele. Talvez necessitemos reverter nosso olhar com largos cílios para o que acontece para fora da cena e da arte: a vida. Uma montação que se dá em corpas que quebram paradigmas do que se compreende como gênero, resgatando um tanto nossa ancestralidade para podermos avançar em possíveis futuras conclusões. Em variadas sociedades, ao longo da história mundial, cultuou-se deuses de corporalidades ambíguas, como: Hapi, uma divindade trans egípcia que protege o Rio Nilo; a Avalokiteshvara, divindidade tibetana caracterizada pela fluidez de gênero; e Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite na mitologia grega.

22 “Na Europa temos o fenômeno dos castrati, meninos castrados na pré-puberdade para que o timbre vocal agudo da infância seja preservado, evitando as mudanças hormonais que na puberdade dão as características graves a voz masculina... Este corpo ambíguo, de voz feminina e identidade sexual masculina, travestido de mulher na cena, provocava ao mesmo tempo fascínio e repulsa da sociedade de seu tempo” IN; “Quem é Essa Mulher? Castratti, Ermafrodite, dan e outros cruzamentos de gênero da voz em cena.” (BISCARO, 2017. p. 4) 54

Figura 15: Estátua do Hermafrodito (acervo google imagens).

A deusa Hermafrodito, como podemos observar na foto, possuía uma corporalidade ambígua, com características relacionadas aos corpos feminino e masculino. Assim como uma variedade de deuses que possuem as mesmas características, ao redor do mundo também existiram, e existem, uma infinidade de corpas que não se enquadram na binaridade de gênero, assim como os Two-Spirit (termo em inglês que busca traduzir Anishinaabemowin Agokwe), que, na América do Norte, realizavam uma infinidade de tarefas especiais, pois se compreendia que as mesmas possuíam dois espíritos. Similar às Two-Spirits, que vulgarmente são chamadas de Berdaches23, existem até os dias de hoje as Muxes, que também sofreram a intervenção cultural da colonização europeia e vivem como um terceiro gênero legitimado pelo Estado, na cidade de Juchitan, no estado de Oaxaca, no México. Assim como as Muxes do México, as Hijras da Índia também são reconhecidas pelo Estado como um terceiro gênero desde 2014. Porém, sua existência e sua cultura são datadas desde há aproximadamente cinco mil anos atrás.

23 “O uso do termo Berdache é criticado por ser antiquado e ofensivo, tendo em vista que não era utilizado pelos indivíduos aos quais se referia: ele foi imposto por antropólogos que se basearam na palavra francesa para homem que se prostitui (garoto de programa, ‘michê’), ‘bardache’, a qual, por sua vez, derivou-se do árabe ‘bardaj’, que significa ‘cativo, prisioneiro’.” (Jaqueline Gomes de Jesus, 2018 P. 01) 55

Figura 16: Hijras na Índia. (Acervo Google imagens).

Assim como as Hijras da índia, na Indonésia existem as Fa´afafines, que, já tendo possuído um lugar digno socialmente, após o contato com a cultura ocidental, possuem níveis de vida social de grande vulnerabilidade. É interessante e necessário pensar que todas essas vivências de gênero ressaltadas agora na pesquisa são alejadas, de distintas formas, do convívio social por conta das invasões europeias e do contato com outras culturas divergentes das suas de origem. Aqui no Brasil, antes da invasão portuguesa, existiam as Cudinas, indías nascidas com corpo biológico masculino, mas que se portavam socialmente como gênero feminino.24 Pode-se também observar a presença de corpas transgressoras de gênero oriundas do continente africano e trazidas, desumanamente, para serem escravizadas no Brasil-Colônia, conforme observa Megg Rayara (2018, p.03): Depois das indígenas, os primeiros relatos sobre travestilidade que se tem notícia, em nosso país, se referem a pessoas negras. O relato mais antigo, data de 1591 e narra a história de Xica Manicongo. Residente em Salvador, desafiava as normas de gênero e borrava as fronteiras daquilo que era tido como feminino e masculino e saia às ruas com um pano cingido ao corpo para mostrar que servia de mulher paciente.25

Desse modo, assim como no “Brasil”, antes da invasão europeia, o continente africano também possuía uma grande variedade de práticas de gênero, sendo violentamente abolidas e penalizadas pelo colonizador. Pensando em travestilidades

24 Nas tribos indígenas as Bichas eram chamadas de Tibiras e as Sapatonas de Çacoaimbeguiras. 25 Mulher Paciente era o termo utilizado para identificar pessoas Transvestigêneres femininas na época do Brasil Colônia. 56 negras, podemos dar um salto temporal e chegarmos na nossa caótica Rio de Janeiro em tempos não tão longínquos do século XXI. Figuras como Cintura Fina, que nasceu em Fortaleza mas se radicou em Minas Gerais, e Madame Satan, oriunda de Pernambuco mas radicada no Rio de Janeiro, são exemplos de corpas transvestigêneres. Sendo descendentes diretas de escravos africanos, elas eram desobedientes às normas de gênero impostas socialmente em um Brasil não tão distante: Desordeiro, pederasta passivo. Usa suas sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz. Não tem religião alguma. Fuma, joga e é dado ao vício da embriaguez. Exprime-se com dificuldade e intercala, em sua conversa, palavras da gíria de seu ambiente. É de pouca inteligência. Não gosta do convívio da sociedade por ver que esta o repele, dados seus vícios. É visto sempre entre pederastas, prostitutas, proxenetas e outras pessoas do mais baixo nível social. Inteiramente nocivo à sociedade ( João Ker, 2018, P. 01)

O trecho acima é retirado de matéria realizada sobre a vida de Madame Satan, mas o mesmo foi reescrito de um registro policial, encontrado dentre 26 processos respondidos por Madame Satan ao longo de sua vida.26 Nas primeiras décadas do século XXI, Madame Satan foi uma bicha preta travesti que se apresentava e vivia no bairro da Lapa e que escreveu, de próprio punho, sua autobiografia nunca publicada. Minha corpa se pega pensando, em meio a tal pesquisa, o quanto que as corpas travestigêneres, ao longo da história, sobretudo as corpas pretas, se tornam silenciadas, sem a possibilidade de falarem por si mesmas e de construírem um novo imaginário social com relação as mesmas: Na década de 1950, período em que a comunidade homossexual branca e de classe média do Rio de Janeiro desfrutava de certa tranquilidade, o trânsito e a profissionalização de travestis continuavam restrito `a prostituição e ao teatro. Alguns estudiosos trazem informações que reiteram a ideia de que as identidades femininas travestis só eram toleradas quando estavam em seus locais de trabalho, sendo raras aquelas que desafiavam a sociedade e expressavam suas feminilidades em período integral. Chamo a atenção para o fato de que essas afirmações tomam como base as experiências de vida das travestis brancas, especialmente aquelas contratadas como transformistas por companhias de teatro em São Paulo e Rio de Janeiro. (Rayara, 2018, p.01)

Vale ressaltar que Travesti, assim como as Muxes, Hijras e Fa`falines são em suas respectivas regiões, é uma identidade de gênero especificamente latina, brasileira. Trata-se de uma identidade construída e auto-denominada por vivências brasileiras.27

26 É também com essa descrição que o diretor Karim Aïnouz abre a primeira cena da cinebiografia que dirigiu em 2002, intitulada Madame Satan e que conta a trajetória da vida da personagem emblemática. 27 “Se “ser travesti” é algo continuado e sem fim, este processo pode ser dividido em algumas etapas. A primeira delas é quando ainda se é “gayzinho” (classificação êmica), ou seja, já assumiu a orientação sexual para familiares e para “a sociedade” (como elas dizem, para um conjunto mais abrangente de pessoas), mas ainda não se vestem com roupas femininas ou ingerem hormônios. A fase seguinte é 57

Conforme sugere a descrição de Madame Satan, a travesti brasileira possui contornos marginais, sendo sempre associada a furtos, violência e prostituição, pois é alejada do convívio social, sendo vulgarmente retratada pela grande mídia e, na grande maioria das vezes, expulsa de casa ao começar a expressar o gênero no qual se identifica. Até os dias de hoje, já com alguns avanços, a população travesti enfrenta dificuldades ao enfrentar uma infinitudes de empecilhos para se inserirem socialmente. Uma pergunta-alerta: como não invalidar o trabalho de corpas trans? Como artista da montação, o que mais me tem parecido oportuno, e próximo, de observar com meu olho-cílio-prótese, são os atos que colaboram com a invisibilidade trans, como os casos do transfake28. Entende-se como transfake a performance de artistas cisgêneros quando interpretam personagens trans em variadas instâncias artísticas, como teatro, TV e cinema. Ao longo da história, uma grande quantidade de obras artísticas colaboraram com a propagação do transfake, como o trabalho do ator Rodrigo Santoro que interpretou a personagem Lady Dy no filme Carandiru, de Hector Babenco (2003). Esse exemplo é uma mostra clara de como o transfake age diretamente na propagação de uma visão enganosa que colabora de forma maléfica com o imáginário social que a população cisgênera possui em relação à vivência trans. Colocar um homem para interpretar uma travesti faz com que no nosso imaginário se construa a imagem de que mulheres trans são homens que se montam. Para além da construção desse imaginário, o transfake colabora diretamente com a falta de empregabilidade das artistas trans, vide o caso da atriz Telma Lipp. A artista trans, que já estava afastada da mídia com poucas oportunidades de trabalho, teria sido convidada para trabalhar no filme e, após meses de testes, ensaios e laboratórios, foi descartada, em proveito do galã Santoro. O afastamento das gravações e a falta de trabalhos fizeram com que a artista entrasse em

“montar-se”, que significa, no vocabulário próprio do universo homossexual masculino, vestir-se com roupas femininas, maquiar-se de forma a esconder a marca da barba, ressaltar maçãs do rosto, evidenciar cílios, as pálpebras dos olhos e a boca. Nessa etapa, vestir-se com roupas femininas ainda é algo ocasional, furtivo, restrito a momentos de lazer. O terceiro momento é o da “transformação”, uma fase mais nuançada, pois tanto pode envolver apenas depilação dos pêlos do corpo e vestir-se cada vez mais freqüentemente como mulher, como pode indicar o momento inicial de ingestão de hormônios, quando estes ainda não mostraram efeitos perceptíveis; finalmente, a quarta etapa, quando já se é travesti, além do consumo de hormônios, vestem-se todo o tempo com roupas femininas (sobretudo roupas íntimas, pode estar de shorts, sem camisa, mas de calcinha) e planeja injetar silicone nos quadris e nádegas” (Pelúcio, 2005, p.38) 28 O Monart (Movimento Nacional de Artistas Trans) tem rebatido veementemente o ato do transfake buscando soluções e apontando casos realizados em diversas instâncias artísticas até os dias de hoje. A luta do Monart, que busca dar um basta à prática transfake, se assemelha com o que ocorreu com o movimento negro, que tornou insustentável o blackface, quando atores brancos, pintados com tinta preta, faziam personagens negras de forma estereotipada, reproduzindo o racismo em diversos trabalhos artísticos. 58 um quadro grave de depressão, que leva à seu falecimento. Com tal exemplo, podemos observar que o ato do transfake não só desumaniza a figura trans, como a impossibilita de trabalhar e, consequentemente, de viver dignamente. Poderia listar uma enorme quantidade de práticas transfakes na atualidade. Contudo, prefiro observar que existem atualmente, em variadas instâncias artísticas, várias produções feitas por/com pessoas trans, como o filme Jessika (2017), tendo as travestis Galba Gogogia e Verônica Valentino respectivamente como diretora e protagonista; e a Bicha-Travesty Linn da Quebrada circulando com seus shows ao redor do mundo e em cartaz protagonizando um filme no cinema além de atuar na série Segunda Chamada(2019), da Rede Globo de Televisão. Ainda sobre a identidade travesti, podemos observar que, a partir dos anos 1950, começa a existir o fenômeno de muitas se apresentarem em ambientes teatrais, sobretudo as mais brancas e femininas. Abre-se, também, mais tarde, um nicho televisivo que tanto valoriza a identidade trans quanto a ridiculariza. Os programas de Silvio Santos, no SBT, e o Clube do Bolinha, na Rede Bandeirantes, apresentam de formas variadas o corpo trans. Mas, apesar desta visibilidade, o primeiro não respeita a identidade de gênero e nem o nome social29 das artistas, enquanto que o segundo buscava tratá-las com mais humanidade e respeito. Aqui, quanto mais o corpo trans se aproxima de um ideal de beleza cisgênero, mas ele consegue se incorporar às culturas de massas, vide o grande sucesso das travestis Roberta Close e Telma Lipp a partir dos anos 1980. Tal padronização, manifesta desde a inserção das corpas trans no mercado teatral entre Rio de Janeiro e São Paulo e também europeu dos anos 1960, apaga e oprime grande parte dessa população, marjoritariamente negra, oriunda de classes sociais baixíssimas e trabalhando na prostituição. O boom da pílula anticoncepcional faz com que as mulheres trans, em busca do ideal de feminilidade almejado, absorvam esse elemento protético, de maneira informal e muito perigosa para suas saúdes. Algumas, pertencentes às classes baixas e ao nicho da prostituição, acabam realizando procedimentos estéticos com as chamadas bombadeiras, geralmente travestis mais velhas que se dedicam a modelar o corpo de travestis mais novas com a utilização de silicone industrial em diversas partes do corpo. Nos anos 1960, as artistas que conseguiam trabalhar com o teatro, tendo realizado a transição de gênero ou simplesmente se montando para a performance, eram

29 Nome Social é o nome pelo qual a pessoa trans se identifica e é reconhecida, não sendo necessariamente o nome que consta no seu documento de registro. 59 denominadas de transformistas. O termo drag queen é de origem estadunidense e só chega ao Brasil lá no início dos anos 1990, com os filmes hollywoodianos antes mencionados. A vivência nas ruas da Rio de Janeiro até então era mais similar a outro filme, também produzido nos EUA na mesma época, mas que relatava a cena dos ballrooms. Paris is Burning documentava as comunidades LGBTQIA+, sobretudo imigrantes, negras e marginalizadas, que organizavam bailes onde as pessoas podiam se apresentar, através do corpo e da dança, suas próprias trajetórias. A partir da década de 1990, variados artistas do mainstream, como a cantora , passam a se apropriar destas técnicas e corpos, tornando pública a cultura dos bailes de voguing.30 Voltemos à questão das corpas contemporâneas montadas através das análises de Butler e Preciado. A partir de Paris is Burning, chegamos em um ponto interessante quando o assunto é montação, ou seja, corpas que, a partir de próteses de distintas formas, deturpam o corpo biológico e se auto-constroem. Considerando o transfake, podemos realizar um exercício instável de classificação, notando as diferenças sócio- artísticas existentes entre a performer drag (ou transformista) e a pessoa tranvestigênere (transexuais, travestis), a partir de Jesus (2012, p. 12): Reconhecendo-se a diversidade de formas de viver o gênero, dois aspectos cabem na dimensão geral que denominamos de “transgênero”, como expressões diferentes da condição trans, a vivência de gênero como: 1. Identidade (o que caracteriza transexuais e travestis); 2. Funcionalidade (representado por crossdressers, drag queen, drag kings e transformistas).

A dinâmica entre identidade e funcionalidade pode ser um bom caminho para se pensar a tensão existente entre os estudos de Butler e Preciado. Sem dúvida alguma – e o mesmo o reconhece – há uma filiação do pensamento de Preciado em relação à investigação de Butler. Contudo, há um espaço entre a performatividade de gênero e a prótese. Pois, a “noção de ‘performance de gênero’ teria ofuscado, segundo Preciado (2017, p. 93), a própria materialidade dos corpos trans ao instrumentalizar conceitualmente as figuras do travesti e da drag” (FRIQUES, 2018, p. 81). Pois, a drag Divine, citada por Judith em Problemas de Gênero, por ser uma Drag Queen, possui uma gênero “funcional”, ao contrário de Venus Xtravaganza31, personagem do

30 A série americana Pose, lançada em 2018, retrata ficcionalmente – e, portanto, não de forma documental como no Paris is Burning – a realidade da comunidade Nova Iorquina LGBTQIA+ (sobretudo negra, imigrante, transgênera e soropositiva) nos anos 1970 e 1980, sendo um dos produtos de TV que contou com o maior número de artistas trans, como atores e equipe técnica, até os dias de hoje. 31 Venus Xtravaganza foi uma artista performática transgênera americana, de origem porto-riquenha, que foi amplamente conhecida pela sua participação no documentário Paris is Burning. Após começar a se entender como trans e expressar sua identidade de gênero, teve de se afastar de sua família e passou a se 60 documentário Paris Is Burning. Podemos compreender aí o quanto os estudos de Preciado avançam, inclusive no caráter relacionado à Montação. No capítulo “Breve Genealogia do Orgasmo ou O Vibrador de Butler”, Preciado afirma que para Butler o corpo pensado farmacologicamente32, no caso falando de Vênus Xtravaganza não é levado em conta em suas pesquisas, pois, conforme explica Haddock (2016, p. 13) não subinha o fato de que ela não era uma drag queen, mas sim que já estava em transição, tomando hormônios, e que, além disso tudo, era pobre, drogada e se prostituía, sendo isso, seu corpo abjeto marcado pelos hormônios, pela pobreza e pela prostituição, a verdadeira razão pela qual ela fora assassinada. Essa hipérbole da análise de Butler leva Preciado a pensar o corpo como performance, sobretudo em sua materialidade fármaco-sócio-político- econômica.

Figura 17: Venus Xtravaganza em Paris is Burning.

Preciado passa a entender o gênero não somente, tal como Butler, como uma performance social, mas também como uma prótese acoplada em nossas corpas na era da farmacologia, seja ela legal ou ilegal, tomada de forma consciente ou inconsciente. A pílula anticoncepcional, utilizada por muitas mulheres trans para possuir traços femininos em seus corpos, foi criada no pós Segunda-Guerra mundial com o intuito de prostituir no pier de Nova York. A performer foi assassinada violentamente durante as filmagens de Paris is Burning, sendo tal feito relatado nos momentos finais do trabalho cinematográfico. Seu sobrenome se dá pelo fato de pertencer à família Xtravaganza, que se mantém atuante até os dias de hoje, participando de uma infinidade de projetos LGBTQIA+ e nos circuitos de bailes. Chama-se de família, ou Haus no inglês, quando um grupo de pessoas LGBTQIA+, sobretudo com precárias formas de viver em sociedade, se unem como uma coletividade para se ajudarem e competirem juntas nos bailes de Vogue. 32 Paul B. Preciado cunha o termo farmacopornografía no seu livro Texto Yonque(2008). O termo baseia- se em uma idéia de que a indústria farmacêutica em conjunto com a indústria pornográfica e o capitalismo, integram-se como responsáveis aos ciclos de controle reprodutivos e sociais, regulando, assim, os nossos corpos. 61 dominar e controlar os corpos relacionados ao gênero feminino, no caso as mulheres cisgêneras. Preciado (2008, p. 30) esclarece: Se es posible hablar, com Judith Butler de uma producción peformativa del género, habria que indicar que aquello que es imitado aqui no és unicamente una representación teatral o um código semiótico, sino más bien la totalidade biológica del viviente. He llamado a este processo, pensando em las expresiones drag queen (hombre biologicamente definido que pratica uma forma visible de feminidad) y drag king (mujer biologicamente definida que practica uma forma visible de masculinidade), bio-drag, travestismo somático: Aquello que es representado e imitado tecnicamente a través de la píldora ya no és código vestimentário o um estilo corporal, sino um processo biológico; más precisamente, el ciclo menstrual.

Preciado problematiza a performatividade de gênero, trazendo uma noção de prótese que já não está mais apenas no âmbito da cena, fora de nossas corpas, mas sim na superfície de um corpo que vive em uma era da farmacologia: todos ingerimos substâncias de variadas formas que deturpam o nosso corpo “natural”. Levando isto em consideração, esta pesquisa se dedica a corpas que se metamorfoseiam, seja de forma efêmera (como a maioria das drag queens-transformistas que se montam apenas em ocasiões funcionais), ou permanente, como as travestis que, a partir de uma redefinição de gênero, modificam a forma como apresentam suas corpas (seja realizando mudanças estéticas ou simplesmente modificando a prótese-nome, se auto-definindo como pessoas trans).33 Nesse sentido, nossa pesquisa sobre montação avança alguns passos no que podemos compreender, ou problematizar, como gênero, quando retoma a noção de prótese para a teoria queer: O gênero não é simplesmente performativo (isto é, um efeito das práticas culturais linguístico-discursivas) como desejaria Judith Butler. O gênero é, antes de tudo, prostético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos. É puramente construído e ao mesmo tempo inteiramente orgânico. Foge das falsas dicotomias metafísicas entre o corpo e a alma, a forma e a matéria. O gênero se parece com o dildo. Ambos, afinal, vão além da imitação. Sua plasticidade carnal desestabiliza a distinção ente o imitado e o imitador, entre a natureza e o artifício, entre os órgãos sexuais e as práticas do sexo (PRECIADO, 2017. p. 29).

Sendo assim, podemos analisar que esses pêlos agregados por cola e friccionados na parte superior de nossos olhos são artefatos, construções para além da natureza, que alteram as noções corporais com relação ao gênero. Podemos também dizer que o gênero, assim como é compreendido e imposto socialmente, é uma prótese social, algo que não é natural ao nosso corpo, mas agregado a ele. Sendo assim, ao tomarmos de assalto nossos xingamentos, nos apropriarmos, e nos orgulharmos deles

33 Ressalte-se aqui que há travesties transformistas e vice-versa. 62

(assim como faz o queer, o kuir, a bicha, o sapatão e a travesti), construímos também uma nova corporalidade, montamos um corpo não natural, potente, político e prostético. Tudo é prótese. E prótese é montação. Sendo assim, meu olhar – todo minha prostética corpA montada –, compreende que prótese e montação guiam, a partir de agora, a nossa corpA de pesquisa.

Figura 18: Adore Delano e Courtney Act (acervo google imagens).

Na atualidade, existe uma série de novas práticas que, em terras brasileiras, poderíamos denominar como corpas transvestigêneres. Artistas como Adore Delano, que se denomina uma pessoa não-binária ou Courtney Act, que se entende como gênero fluido, são exemplos de artistas cantoras estadunidenses que, a partir de uma mega exposição midiática advinda de suas participações em Reality Shows de países de língua inglesa, apresentam-se, em um primeiro momento, como Drag Queens. Mas, com o passar do tempo, questionam seu gênero, para além da montação, e não se compreendem mais, e apenas, como homens cisgêneros e gays que se montam de drag. A montação é também uma expressão de gênero.34 Tanto Delano quanto Act passaram,

34 Adore Delano e Courtney Act, ambas participaram dos programas de competição musical, American Idol e , sendo depois inseridas na temporada 06 do programa de competição entre drag queens americano RuPauls’ Drag Race, sendo finalistas nessa edição. Após solidificarem suas carreiras como cantoras drags, passa a participar de outros Realit Shows ao redor do mundo e a se identificarem com as identidades Não-binária e Gênero Fluido. Diz-se de Não-Binário como uma identidade de gênero guarda-chuva que abarca toda e qualquer identidade que não seja a cisgênera, assim como o Gênero- Fluido. Já a identidade de Courtney Act, Gender-Fluid, diz-se de uma pessoa que não se enquadra na binaridade homem e mulher, mas sente-se como horas mais masculina e horas mais feminina; a Courtney Act diz sentir-se como pertencente ao gênero feminino quando está montada de drag, expressando esse seu lado, e masculina quando não o está, e convive bem com essas duas formas de vivenciar sua identidade. 63 por meio da performatividade drag, por processos de transformar e compreender seus corpos como corpAs. Este processo é, em linhas gerais, o que Preciado (2007, p. 69) coloca como a definição do que vem a ser a possibilidade das corpas queers: “La dissolución de la identidade sexual em uma multiplicidade de deseos, practicas y estéticas, la invención de nuevas sensibilidades nuevas formas de vida colectiva”.

Parece intrínseco a esta pesquisa pensar na arte como uma ferramenta importante para propiciar atos de montação, criações de novas próteses, investigações de identidades. O mesmo pode ser observado em uma importante geração de travestis cariocas, pelos idos dos anos 1960:

Nesse período, artistas transformistas (termo brasileiro para os artistas performáticos atualmente conhecidos como drag queens e drag kings), igualmente referidos como praticantes do travestismo, apresentavam-se nos palcos, como o Teatro Rival, até mesmo após 1964, com permissão da ditadura militar, não podendo, porém, confundirem-se com as mulheres cisgêneras fora de seus espaços cênicos. Mas sempre há frestas. A cantora e performer Divina Aloma, negra, musa do pintor Di Cavalcanti, chegou a se apresentar no canecão e em outros espaços que dividia com mulheres cis (Jesus, 2018, p01.) Essa geração de mulheres trans viveram a época da ditadura militar e experimentaram a vida como grandes artistas em palcos teatrais no Brasil e no mundo, sobretudo as travestis brancas. Elas puderam performar sua feminilidade, em uma primeira instância, na arte e, posteriormente, na vida. Um importante grupo, oriundo dessa época, é o chamado Divinas Divas. Aqui, destaca-se, dentre muitas outras, a artista Rogéria, que seguiu, em linhas gerais, o percurso descrito anteriormente: ela vivencia sua travestilidade nos palcos, sendo incorporada ao círculo teatral, e realiza a transição de gênero após passar anos trabalhando na Europa. A artista, que, durante o início de sua carreira, atendia pelo nome de Astolfo, e com orgulho falava desse nome mesmo após a transição, era maquiadora de grandes artistas do teatro e da TV nacional. Mas foi por meio da travestilidade que ela rompeu os palcos e iniciou seus primeiros passos como artista, sobretudo nos palcos do Teatro Rival: Todo mundo me atazanava, dizendo que eu devia arriscar e buscar meu espaço. Fernanda Montenegro estava fazendo uma novela na TV Rio, e eu a maquiava. Perguntei a ela: – Será que um dia vou poder fazer teatro? – Claro, por que não? – Como que eu vou para o palco vestida de mulher? – Arte independe de sexo. Se você tem talento vai dar certo, não custa nada tentar – disse Fernanda. Aí eu fui e aconteceu. (PASCHOAL, 2016, p. 20).

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Figura 19: Rogéria. Foto cartaz filme sobre sua vida.

Foi em sua temporada morando em Paris que, após anos se “montando” nas artes cênicas, que Rogéria descobre performatividade também para a vida: Com hormônios, cabelos louros, depilada e magra, unhas longas e quadradas (dicas dos tempos de vedete com Carmen Verônica), só lhe faltava uma correção no nariz. A cirurgia de um dia foi realizada numa clínica no 6ème arrondissement. Pronto! O encontro de Astolfo com seu lado mulher estava terminado. Agora Rogéria passaria a incorporar o lado feminino em seu cotidiano parisiense 24 horas por dia. (PASCHOAL, 2016, p. 27).

Com Rogéria, realizamos mais um salto alto temporal nas digressões históricas, chegando na região da Lapa, no palco do teatro Rival, em Setembro de 2016. Trata-se da noite de estreia de um espetáculo que buscava exaltar os tempos em que este teatro, assim como toda essa região do centro do Rio de Janeiro, abrigava dezenas de artistas travestis em suas produções: o espetáculo Rival Rebolado. Nesse espetáculo, ocorria semanalmente um concurso de drag queens que sempre homenageava divas de outras gerações. Nessa noite, a homenageada era Rogéria, presente e sentada na primeira fileira, enquanto que a prótese-nome Ma.Ma. Horn era utilizada pela primeira vez. Tendo sido encorajada por amigos do meio teatral que, por sua vez, me levaram, me maquiaram e me montaram toda, posso dizer que fui quase empurrada para a montação 65 drag queen. Não ganhei o concurso, mas algo mais do que isso: comecei um processo de desidentificação que será melhor explicado adiante.

Figura 20: Rogéria no Teatro Rival. Capa do Jornal O Globo de 03/09/2016.

Um ano depois, volto a esse mesmo palco para participar novamente do concurso. Fico feliz por ganhar o título de Miss Simpatia, mas muitíssimo triste por, nessa mesma semana, um ano depois do meu primeiro encontro com Rogéria, ser a semana de sua morte. Recordo-me com muita satisfação da primeira vez que nos esbarramos na coxia do Teatro Rival. Assim que acabo de chegar montada, ela passa as mãos pela minha barba e pergunta: “É sua mesmo? É de verdade?”. Utilizei barba não só nessa noite, mas durante um bom tempo em meus primeiros anos como drag. Após a performance, divido camarim com ela, que me diz: “Você, e o que você faz, é além do drag. Os movimentos das suas mãos são lindos. Isso é único e já está em você”. Hoje me pergunto: a barba era minha mesma, ou algo biológico e intrinsicamente acoplado ao gênero masculino? O que ela quis dizer com meus movimentos e tudo que eu faço ser único e já estar em mim? Serei uma drag biológica ou uma excelente performer? Não pude completar minha conversação com ela, pois o camarim se encheu de outras corpas e o suor (ainda não estava acostumada com a prótese-maquiagem) começa a escorrer e faz com que minha visão fique turva. O cílio-protese cai. Na verdade, descubro que já tinha caído: minha prótese estava colada e pisada no palco do Teatro Rival, mas eu não precisava mais dela, meu corpo de então começava, naquele momento, a se auto-descobrir como corpo-prótese, como corpa. A bicha, gritada nas instituições Escola, Casa, Família, e que por anos se escondeu em seu então corpo, 66 agora utiliza do teatro e, logo mais, da academia, para apropriar-se de sua história, de sua ancestralidade e, intrinsicamente, de sua travestilidade. O cílio já antecede o meu olhar; a montação começou mana! Hora de recriar sua identidade, suas redes e territórios.

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3 Desidentificação: Corpos em Performatividade

Eu era bonita. Mas isso foi os meus pais que fizeram, foi Deus e minha genética. E o que que eu faço de mim?

Elke Maravilha

Figura 21: Ma.Ma. Horn em oficina de performance no Sesc de Copacabana.

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3.1 Desidentificando uma Corpa Estes escritos não buscam ser uma autoficção, mas sim uma possibilidade de protocolos de intoxicação voluntária por meio da análise de variados procedimentos e maneiras de montação.35 Indaguemos: O que fazer com um corpo? O que cabe em uma corpa? Se o cílio é deixado para trás, pode ser colado novamente, e assim inicia-se um processo de adentrar em uma infinidade de possibilidades imagéticas que deturpam a origem, a biologia originária, realizando uma performatividade que mescla o que é cópia e o que é original. A imagem que reflito nesse momento já não é mais aquela que vejo no espelho e, se antes pedia para focarem a atenção no meu olho/olhar, agora peço que não me acompanhem se possuírem certezas demais relacionadas às suas naturezas corporais. Agora é tudo fabricado como em um jogo de difícil assimilação. Agora, independente da montação protética, é fundamental, não se reconhecer, pois a des- idenficação é urgente e política, é uma urgência que faz política e transforma a nossa realidade. É possuir prazer em construir a dúvida, e trabalhar sobre ela.

Saindo do campo abstrato e buscando uma assimilação um tanto mais concreta, podemos recorrer ao que Preciado (2008, p. 18)coloca como desidentificação, discorrendo sobre uma oficina de Drag King da qual participa. Ele coloca que a oficina não se inicia com as corpas presentes se vestindo e se comportando como “homens”, mas, antes, tomando conhecimento do caráter da ortopedia corporal da própria feminilidade desses corpos, desidentificando a feminilidade antes construída:

Esta primera parte del taller podría pensarse com respecto a los llamados por Paul Ricoeur – maestros de la sospecha –, Marx, Freud y Nietzsche, como uma inducción colectiva de sospecha de género. Se nos incita colectivamente a explorar aquello que a menudo tomamos como fundamentos estables de nuestra identidade (el sexo, el género y la sexualidade) como meras construcciones culturales y políticas, y por tanto, como posible objetos de um processo de reconstrución intencional, crítica e insumisa. Esta sospecha de género compartida provoca um movimento subjetivo que há sido denominado por Teresa de Lauretis y tematizado después por José Muñoz com el nombre desidentificación. A desidentificação, sendo um conceito oriundo da psicologia, é mais amplamente utilizada por Muñoz (1999) para analisar atos performáticos da população queer negra36, entendendo que o mesmo pode ser compreendido como processos que intervêm na cultura dominante, onde o sujeito não se assimila a ou rejeita ela, mas

35 Em seu Texto Yonqui (2008), Paul Preciado propõe uma infinidade de pensamentos a partir dos seus procedimentos de ingestão de Testosterona. O filósofo coloca que o mesmo não busca ser uma autoficção, mas Autopolítica e Autoteoria. 36 Em “Disidentifications, Queers of colors and the performance of Politic”, 1999. 69 pesquisa outras estratégias para se utilizar dela, sendo o mesmo um processo de sobrevivência. É sobre ler os códigos dominantes e se integrar, ao revertê-los de sua maneira.

Observo esse processo, não executado de maneira proposital na época, na foto que abre esse capítulo. Ali, estou com um casaco que cobre parte do meu dorso, sobre uma mesa, sem calças, com um computador entre as minhas pernas e que reflete a imagem de uma vagina, contrastando com um corpo de traços masculinos. A imagem registra um processo de performance que participei no Sesc de Copacabana, com o diretor Renato Rocha. Desde que comecei a me inquietar com meu corpo em relação ao fazer cênico, busquei uma vivências e oficinas nas quais eu pudesse explorar, de forma prática, as possibilidades do meu corpo naquele momento, iniciando assim a minha transição de gênero, ou melhor dizendo, o meu processo de desidentificação. As próteses identitárias relacionadas ao gênero masculino sempre foram muito estranhas a minha corpa. Mas antes eu não tinha a oportunidade de trabalhar, com meu então corpo, sobre isso.

Antes de chegar nesse momento presente, de pensar com minha corpa no ambiente acadêmico e plasmar nessas páginas minhas impressões sobre arte, vida e teoria, pude participar da oficina de crítica com Daniela Avila Small37. Como exercício, teríamos de assistir a algum trabalho do festival Atos de Fala (2016) e escrever sobre o mesmo. Para tal trabalho, resolvi assistir ao espetáculo MDLSX, de Silvia Calderoni38. Neste exato momento, eu lia pela primeira vez algumas obras de Preciado, o que me fez absorver de forma muito efusiva o trabalho de Silvia em MDLSX.

37 Daniela Ávila Small é, idealizadora e editora da revista Questão de Crítica, revista eletrônica de críticas teatrais, e presidente da seção brasileira da associação internacional de críticos de teatro. 38 O texto que escrevi sobre o espetáculo MDLSX segue anexado no fim dessa dissertação. 70

Figura 22: Silvia Calderoni em MDLSX. Foto de Renato Mangolin.

O trabalho cênico de Calderoni chamou-me atenção, pois ela rompe com as barreiras cênicas, realizando um projeto que mescla performance, música ao vivo executada ao vivo, teatro, dança e vídeo-arte. Calderoni é então uma artista sem barreiras que ora é performer, dj, bailarina e/ou atriz. Mais do que isso, ela também rompe com barreiras em seu corpo não só como artista, mas também como pessoa: uma figura andrógena que mescla elementos femininos e masculinos. Em cena, ela não é ela nem ele, nem homem, nem mulher. Toda a trajetória do trabalho segue a partir do momento em que a artista se descobre uma pessoa intersexual, possuindo qualidades biológicas masculinas e femininas em seu corpo queer. Por possuir uma orientação de sexualidade fora do senso comum, ela se auto-define como pansexual. Devido ao fato de a pesquisa se dar sobre sua condição de gênero e sobre as experiências a partir da mesma, a performance tem um tanto de Teatro Documentário, mesclado com clichês do teatro contemporâneo. Sem sombra de dúvidas, a interação com essa experiência cênica foi um estopim para que eu continuasse questionando meu corpo, minha arte e, um tanto mais pra frente, o meu gênero.

Segui nesse processo de investigação pessoal, que culminaria na arte drag, participando da oficina Gênero, Teatro e Performatividade – Movimento Para Corpos Desviantes com Silvero Pereira, do grupo cearense As Travestidas, e Jezebel de Carli, respectivamente, ator e diretora do espetáculo BR Trans39. A ocupação de Pereira e Carli no Teatro Poeira foi um pólo de investigação artística que culminou não só nos

39 As Travestidas é um importante grupo teatral cearense, composto por bichas, drags, travestis e pessoas de gêneros não-binários. O espetáculo BR Trans é um monólogo, executado por Silveira Pereira, onde a cena traz uma variedade de histórias de violências vividas por pessoas LGBTQIA+. 71 meus primeiros passos como drag queen, mas também impulsionou uma variedade de desenvolvimentos artísticos, como as experimentações que resultaram na criação do espetáculo Le Circo de la Drag.40 Tal oficina propunha, a partir de jogos que questionavam a noção de gênero na sociedade, construir experiências corporais que permitissem aos corpos abjetos adentrarem os espaços cênicos. Havia uma busca por um corpo que se montasse como possibilidade de invenção e de jogo. Ao longo dos meses da oficina, mobilizei uma vez mais os procedimentos de desidentificação.

Nesse momento, é interessante ressaltar que antes, quando ainda era uma pequena bicha para quem perguntavam se utilizava máscara nos cílios, eu já executava pequenos atos de desidentificação corporal, de forma ingênua e inocente. É a memória deles que passei a acessar para trabalhá-los cenicamente nessas e em outras diversas oficinas que participei. Logo no fim da minha adolescência, a explosão de testosterona ocasionou uma grande e potente barba em meu rosto. A mesma me causava profundo incômodo por deixar meu rosto menos feminino, porém me auxiliava, trazendo um pouco de virilidade para minha face e, na grande maioria das vezes, me livrava da fatídica e constrangedora pergunta: você é menino ou menina?

Figura 23: Ma.Ma. Horn em photoshot para o projeto The Drag Series. Foto Fernando Cysneiros.

40 Le Circo de La Drag é um espetáculo teatral que tematiza, com humor satírico, uma variedade de situações cotidianas na vida dos brasileiros da atualidade. O trabalho se apropria de elementos da arte drag queen, como a maquiagem e a dublagem, para realizar performances de diferentes interfaces. O projeto já se apresentou em variadas cidades ao redor do mundo, como São Paulo, Bruxelas, Lisboa e Paris. 72

Durante um tempo, passei a desmasculinizar meu corpo, já em processo de tornar-se corpa, porém, deixando a barba crescer e tomar vida própria. Criei assim uma figura andrógina, hiper-feminina e com uma longa barba. Mas, precisei me desapegar, não sei se definitivamente, dessa imagem que antes foi empoderadora, mas que agora me enclausurava. Ao tirar a barba, percebo o quanto não só o meu rosto é frágil, mas também muito, e sempre, a suposta masculinidade do homem cisgênero. Minha corpa passa a travar uma luta diária entre assédios e olhares nunca antes vivenciados. Eu poderia descrever aqui uma infinidades de experiências a respeito disso, e não só com os homens. Em todas elas, um simples elemento prostético transforma toda a maneira de como os outros observam e se relacionam com a sua corpa. Mas, por enquanto, prefiro deixar essa lacuna a ser preenchida pelo imaginário de vocês, ou experienciada por quem almejar ser uma mulher barbada por dois anos e depois mudar drasticamente a moldura do seu feminino rosto, arrancando a prótese-barba. Parece-me importante retificar que eu não sou, nem fui, a única drag barbada ao longo da história do fazer drag, tendo, aqui no Rio de Janeiro, a drag Pandora Yume, representante da nova geração e uma das primeiras a utilizar barba em suas montações.

Figura 24: Drag Queen Pandora Yume. Foto Betina Polaroide.

Nesse processo, de buscar plasmar no meu corpo, e na minha experiência corporal, essas novas estéticas e performatividades, cria-se um terreno poroso onde as 73 próteses relacionadas a gênero passam a ser questionadas e tensionadas em minha nova experiência corporal, acadêmica e artística. Neste terreno, recorro a outros atos desidentificadores propostos por drags da atualidade carioca.

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3.2 A Flâneuse Perversa Já no meu primeiro dia montada no Teatro Rival, não consegui me desmontar completamente para sair e fui, montadíssima, passear pelas ruas do centro do Rio com outras amigas. A montação me possibilitava remanejar o meu contato com o universo ao redor de minha corpa. É sobre outras possibilidades de corpas que remanejam sua interação cênica e social que vamos falar brevemente. Nesse momento, interessava-me, com um nova possibilidade corporal, adentrar na multidão, camuflar-me, de modo a construir novos espaços para observar e ser observada.

Trazer a imagem de um grande centro urbano, em uma metrópole, pode ser sempre caótica. Mas esqueçamos por um momento a Rio de Janeiro de 2016 e pensemos na Paris, do século XIX. Nessa época, Paris passava por uma reestruturação urbana, na qual suas estreitas ruas medievais desapareceram, dando lugar a amplos boulevares que propiciavam uma nova maneira de vivenciar a vida parisiense. Walter Benjamin encontra não só nessas ruas, mas nas mesmas descritas na literatura de Charles Baudelaire, a figura do homem que “vive sua vida de encontros visuais, enquanto mantém uma relação desligada, anônima e essencialmente distante da paisagem urbana pela qual se move” (Turner, 2003. P 17.). A esse homem que se permite flanar nessa nova Paris, Benjamim nomeia de Flanêur, que, no francês, vem do verbo flanêr, “para passeio”. Tentemos uma rápida aproximação dessa corpa montada à figura do flâneur: assim como o flâneur da Paris do século XIX, no agora, para além da intoxicação que me permito com a montação prostética, posso realizar “a intoxicação da comodidade que surge com o fluxo de pedestres” (Benjamin, 1984, p. 55).

Aproveitando os alargamentos que tenho realizado na geografia do meu corpo, convido-vos a abrir a noção geográfica também em relação a outra metrópole que entra agora nessa discussão a cerca do flâneur. Utilizando essa figura, o crítico de arte norte- americano Aaron Belsky coloca o gay da cidade grande, tendo New York como centro de sua pesquisa, como uma espécie de Flaneur Perverso41, quando define o espaço queer como “inútil, imoral, um espaço sensual que existe para experiência. É um espaço de espetáculo, consumo, baile e obscenidade. Um uso desviado e uma deformação de

41 Aaron Belsky utiliza dessa retórica, realizando um projeto cartográfico que estabelece elações entre a casa de Oscar Wilde, as ruas de Greenwich Village, a Boate 52 (NY), os arbustos e os labirintos do Central Park, a casa de Charles Moore e Clubbes BDSM de São Francisco. 75 um lugar, uma apropriação dos edifícios e dos códigos de cidade com fins perversos” (Belsky, 1997, p. 10).

Figura 25: Gays em comemoração em New York nos anos 70. (acervo google imagens).

Apropriando-se do termo injurioso colocado por Aaron, Preciado (2017, p. 03), em sua Cartografia Queer utiliza do mesmo para descrever os gays da New York dos anos 1970 do seguinte modo: “O gay pode ser entendido como um flaneur perverso que passeia sem rumo determinado pela cidade em busca de novidades e acontecimentos.” Tal nomenclatura também é utilizada por Preciado, em antagonismo com a figura das mulheres lésbicas, que não só possuem um grande apagamento histórico na grande quantidade de estudos cartográficos queers, como também menos privilégios sociais oriundo do machismo em que vivemos em nossa sociedade:

Se o perigo da cartografia dominante é a sua tendência hagiográfica, o seu ideal utópico é o que leva a se imaginar como um grande relato capaz de apagar, incorporar ou recodificar aquilo que excede ou resiste à norma, o perigo de cartografia identitária das minorias é funcionar, como diria Focault, como “um ato de vigilância”, cobrindo de alguma maneira o mapa que os dispositivos de controle impulsionam para se converter, então, num arquivo de vítimas que, mais do que criticar a opressão e a sua diferença, acabam por estetizá-la. (Preciado, 2017, P.03). Preciado busca empregar o termo Flâneur Perverso não só para contrapor ao apagamento do corpo lésbico, mas também para, assim como a ressignificação da palavra queer, reutilizar e se apropriar de termos oriundos de cartografias que escondem, “por trás de propostas formalistas, cumplicidades com narrativas heterossexuais e coloniais dominantes”. No nosso caso, voltando para a pesquisa que constroe um arquivo selvagem na Rio de Janeiro da atualidade, consigo compreender a minha corpa, após o início do ato da montação, como pertencente a uma Flâneuse Perversa. Assim, compreenderemos e chamaremos todas as outras corpas que colocaremos no escopo desse relicário em contínuo processo de desidentificação. 76

Assim, vamos conhecer e interagir com uma variedade de corpas-próteses de distintos tipos de flanêurs e flaneuses perversas cariocas pelo espaço urbano que agora nos cerca. A flâneusse perversa é queer por ser um Corpo Falante, mas sobretudo cuir, por ser um corpo latino americano. Ela é também constituída de próteses auto- identitárias, pois estou, e estamos, falando de figuras montadas.

Se, no início do que hoje compreendemos como teatro, às mulheres foi tolhido o espaço de estar em cena (e daí nasce o fazer drag em variadas sociedades e épocas e em lugares distintos no mundo) e se as mesmas são apagadas em uma grande variedade de cartografias, como a de Aaron Belsky, apontada por Preciado, nesse estudo, buscaremos trazer o olhar, o cílio e a corpa atenta a Flanêuses Perversas que são mulheres cisgêneras. Tal fato não se dá apenas pela dívida histórica que possuímos com as mesmas com relação ao desenvolvimento de vários setores na história da humanidade, mas porque possuímos também, na atualidade carioca e ao redor do Brasil e do mundo, uma grande gama de artistas que, sendo mulheres cisgêneras ou também homens e mulheres trans, não possuem a mesma validação em seus trabalhos artísticos e estéticos que outras faixas da comunidade LGBTQIA+, sobretudo com relação aos homens gays que fazem drag.

Nos próximos capítulos, analisaremos atentamente duas performances artísticas propostas, respecivamente, pela maquiadora e drag queen Palloma Maremoto, e o drag king Vicente Van Goth, persona da escritora Priscilla Matsumoto. Mas essas Flaneuses Perversas trazidas aqui, incluindo a minha corpa, não pretendem ser lidas e encaixotadas em definições estáticas: é por uma livre estética não estática que estamos vivenciando e analisando tal investigação. É preciso limpar bem a cola dos cílios para olhar com atenção, não realizando o que critica Preciado em relação algumas cartografias que servem à vigilância.

Um bom ponto de partida talvez seja uma desidentificação em relação ao fazer drag rumo a uma aproximação com a performance art. Para isso, recuperamos a Cuir- Perversa Hija de Pera que, ao ser comparada a Divine em uma entrevista, responde que tal ato seria “uma ignorância. É porque não sabem quem é Nina Hagen, nem Cindy Sherman, nem Orlan.” (Pera, 2014) Acatando a sugestão de Hija, recorramos a duas das artistas mencionadas por ela. Cindy Sherman e Orlan são casos distintos de figuras femininas que, por meio de variados atos performáticos, reconfiguram suas imagens 77 corporais e constroem problematizações ao redor do corpo feminino e dos padrões sociais relacionados aos mesmos. Cindy Sherman pulveriza sua imagem em uma variedade de experimentos fotográficos que mesclam sua figura a múltiplos cenários e artefatos minimamente construídos e elaborados pela mesma. Já Orlan dá um passo além em suas investigações performáticas sendo uma das percursoras do que se pode compreender como Body Art. Ao recorrer a uma série de cirurgias estéticas onde transforma partes de seu corpo, realizando alusões a obras de arte amplamente reconhecidas, a artista filma todos esses procedimentos estéticos e os expõe em uma variedade de lugares reconhecidos como instituições artísticas em todo o mundo, como o Centre Pompidou de Paris. Existe um elo em comum entre estas duas artistas e que me parece de interessante observação, antes de avançarmos na urbes carioca. Falamos agora de duas artistas colocadas como pertencentes ao âmbito da performance art, que pode ser compreendida como:

[...] uma arte de fronteira, no seu contínuo movimento de ruptura com o que pode ser denominado “arte estabelecida, a performance acaba penetrando por caminhos e situações antes não valorizadas como arte. Da mesma forma, acaba tocando tênues limites que separam vida e arte (COHEN, 2007, p. 38).

Figura 26: Orlan. (fonte - site orlan.eu).

A partir da definição de Cohen, notamos que Orlan realiza procedimentos em instituições ligadas às cirurgias estéticas, deslocando-os para instituições artísticas. A Body Art de Orlan se dá no corpo da artista, é uma manifestação viva, humana e questionadora. De modo semelhante, Sherman busca, a partir de seus trabalhos 78 artísticos, questionar as normas, os padrões sociais com relação a gênero e beleza, mobilizando, para isso, toda sorte de situações e materiais. São performances que questionam o comportamento restaurado relacionado ao gênero feminino, problematizando como a sociedade lida e se comporta com relação aos seus corpos de mulheres cisgêneras. Tais exemplificações se dão como um suporte para que possamos analisar o quanto o trabalho performático pode deturpar, questionar e burlar os padrões sociais e a forma como a artista trabalha no/com seu corpo.

Figura 27: Cindy Sherman ( fonte-Site MoMa).

Importante pensar sobre como os trabalhos de Orlan e de Cindy Sherman conversam com tantos outros trazidos nessa pesquisa quando as artistas utilizam suas corpas como processos inacabados, não sendo o resultado das cirurgias de Orlan o fim de sua obra, por exemplo. Nesse caso, interessa mais à artista o caminho, onde trabalha com suas próteses, realizando suas montações. Interessa-me, tanto em meu processo, quanto aos outros que me aproximo, fugir da análise apenas do resultado da transformação de corpo em corpa, mas sim dos processo imbuídos nos mesmos. Nesse sentido, analisemos o entre processual dos dois acontecimentos performativos cariocas, para adentrarmos na urbes como corpas perversas e montadas.

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3.3 A corpa e suas variadas interfaces ou As variadas faces de uma drag Com nosso salto alto, desembarcamos em meio a uma festa, majoritariamente frequentada por pessoas LGBTQIA+, da onde emerge uma figura que carrega em sua corpa próteses que culminam em uma extravagante montação.

Figura 28: Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo.

A performance, que vem sendo desenvolvida já há alguns anos, se inicia com a corpa da artista performando uma hiper-feminilização. Neste “número drag” intitulado Máscara, a performer adentra o local da ação vestida como uma boneca Barbie: vestido rosa muito colado, cabelos loiros e o rosto bastante repuxado com maquiagem de efeito. No palco, ela então começa a dublar a música Barbie Girl, hit pop lançado em 1997 do grupo Acqua, cuja letra merece ser citada:

I’m a Barbie girl in a Barbie world

Life in plastic, it’s fantastic

You can brush my hair, undress me everywhere

Imagination, life is your creation

I'm a blond bimbo girl in a fantasy world

Dress me up, make it tight, I’m your dolly

You’re my doll, rock’n’roll, feel the glamour in pink 80

Kiss me here, touch me there, hanky panky

You can touch

You can play

If you say “I’m always yours”

Come on, Barbie, let’s go party! (ah ah ah yeah)

Make me walk, make me talk, do whatever you please

I can act like a star, I can beg on my knees

Come jump in, bimbo friend, let us do it again

Hit the town, fool around, let’s go party

A música, de forma irônica, faz uma crítica aos padrões de beleza, atentando para a Barbie, que é a protagonista da letra, ser uma mulher de plástico. Lembrando que Barbie é uma boneca criada no fim dos anos 1950 e que, aliada à grande indústria capitalista, é uma das próteses vinculadas ao gênero feminino, com o claro intuito de impor padrões estéticos e capitalistas já na infância das corpas acopladas à prótese- gênero-mulher quando do nascimento.

Em determinado momento, a música muda para Máscara, da cantora de rock Pitty (2003). Tal canção fala sobre o ser humano ser fiel a quem ele é “mesmo que seja bizarro”. É neste contexto que a artista começa a repuxar seu rosto, dando a perceber que aquela face era uma máscara colada em sua pele com técnicas de efeitos especiais. Neste processo, um novo rosto é revelado. Mas, antes de vermos um rosto natural, vemos esta segunda fisionomia também alterada, um rosto também super maquiado. 81

Figura 29:Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo.

Figura 30: Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo..

Após arrancar toda a máscara de latéx, a performer drag passa então a tirar todas aquelas peças de roupa que apertavam demasiadamente sua corpa, revelando então a corporeidade de uma mulher longe dos padrões de beleza sociais simbolizados pela boneca Barbie. Palloma Maremoto, nome da artista em questão, não é magra, não é alta, não é, enfim, uma Barbie Girl. Ao despir-se deste ideal, Maremoto levanta então um pano-cartaz transparente sobre o qual se lê: Meu corpo é arte livre. Através do tecido translúcido, o corpo nu da performer se espraia diante dos olhos dos espectadores. Neste momento, podemos nos indagar que liberdade essa corpa tem? É livre de quê e de quem? Assim como o meu cílio plasmado no chão do Teatro Rival, ou da barba que tirei 82 após dois anos de montação, e muitos de vida, retorno o olhar para o que Preciado coloca como bio-drag, ao referir-se a Vênus Xtravaganza, compreendendo que essa corpa não está livre pelo simples fato de estar em vida e despida das montações efêmeras de drag. Qual ato pode “livrar” essa corpa de uma manipulação externa – se é dessa liberdade que a performer fala, pois é assim que consigo ler ao analisar a concatenação das ações decorridas na performance – o de se mascarar ou o de se desmascarar? O que é mais montação, a maquiagem ou a pele moldada pela vida e vivida na era da farmacopornografía? Mais do que criar respostas ao analisar a performance de Maremoto, busquemos suscitar pensamentos interrogativos.

Figura 31: Palloma Maremoto performando na festa Mona. Foto Maíra Barillo.

Palloma Maremoto é uma das primeiras mulheres cisgêneras a despontarem no cenário drag contemporâneo carioca. Além de performer drag, ela é maquiadora e atriz, tendo encontrado no mundo drag um ambiento propício aos seus experimentos 83 performáticos que envolvem a criação de nome, de rosto e de corporeidade específicos. Máscara é um exemplo deste processo, trazendo uma narrativa de empoderamento de corpos, através da afirmação de cada indivíduo de sua existência própria. Assim, se, na era Elisabetana, ou em variados indícios do início do fazer teatral ao redor do mundo, homens precisavam de camadas e mais camadas de roupas para estarem em cena, lugar esse proibido às mulheres, hoje Palloma adentra a cena e se monta para desmontar: cria- se uma cópia da cópia, é real por ser artificial, problematiza-se a prótese ao mostrá-la em sua fragilidade.

Pois bem, esse corpo em performance problematiza não só as noções de gênero, colocando em cena uma mulher que se despe em público, vide o lugar social atribuído o corpo feminino: o recôndito do lar. O corpo performando reconfigura o imaginário que o público tem a princípio do corpo de uma drag queen: seria um homem com o pênis escondido e não uma mulher de buceta? Pois sim, ela tem boceta, seios e está performando em um ambiente onde, marjoritariamente as performers são homens com pênis que criam personas femininas ao realizarem o ato de acuendar a neca (ou tuck, no inglês).42

Na Idade Média, as mulheres tomam o seu lugar na cena teatral e passam a também poder trabalhar como atrizes, consecutivamente não sobrando espaço para os homens que encontravam na montação uma performatividade, os obrigando a construírem os seus guetos. Na atualidade carioca, as mulheres cisgêneras começam a reescrever um espaço antes dominado apenas por homens cis, mulheres trans e travestis: a cena drag. Esse movimento também pode ser visto com artistas como Frutífera Ilha, na Bahia, Vlada Vitrova, de Juiz de Fora, Creme Fatale, de São Francisco (EUA), Ginger Moon e Cherry Pop, das Riot Queens, em São Paulo, e muitas outras ao redor do mundo. Parece-me importante destacar que não buscamos construir, promover ou esboçar, um espaço de disputa territorial. Antes de mais nada, tal ponto se dá para elucidar a questão da mobilidade com a qual a atual cena vem se consolidando, explorando outras corpas e diversas formas e vivências de se construir o trabalho da drag queen, décadas atrás descritas como transformistas.

42 Diz-se acuendar a neca ao ato de esconder o pênis para poder fazer alusão à vagina, ao usar roupas apertadas. Ao acuendar a neca, o pênis é repuxado para trás e as bolas do saco escrotal são alocadas na parte interna da coxa. Acuendar = Esconder; Neca = Pênis. Tais palavras são retiradas do Pajubá. No inglês, a palavra utilizada para tal ato é to tuck, popularizado no Reality Show Rupaul’s Drag Race. 84

Retomando o ponto central deste subcapítulo, podemos reter a performance de Palloma Maremoto como uma desconstrução das técnicas de representação do corpo, e da sexualidade das mulheres sob a ótica das drag queens. Em sua chegada no centro da boate, ela performa uma hiper-feminilização em sua corpa, tomando para si todo o estereótipo que nos faz a ler como uma drag queen. Mas ela toma seu público de surpresa ao revelar o que tem por trás desse artefato físico e protético que atrapalhava o seu mover e caminhar – maquiagem e roupa –, destitundo sua montação e revelando o seu corpo sem as próteses drag. Podemos compreender que este tipo de performatividade na festa remete ao feito de Annie Sprinkle nos EUA em 1979, com o início do pós-pornô.

O pós-porno43 é uma série de produções que executam processos de reapropriação das tecnologias de produção do corpo e da sexualidade, que já nao podem ser somente tecnologias heterossexuais e heterocentradas. Busca-se multiplicar a produção pornográfica para produzir outras sexualidades, pois nao existe sexualidade sem comunicação no tempo atual, chamado por Preciado de Farmacopornografica.44

Mas, por que minha corpa remete a performance de Maremoto a práticas da arte pos-pornó? Variados artistas, assim como Anne Sprinkle, passam a intitularem assim seus trabalhos, como Bruce la Bruce, Virgine Despentes, Del LaGrace Volcano, dentre outros, tendo em conta que

os que hasta ahora fueran sido el objeto passivo de la representación pornográfica (mujeres, actores y actrices pornô, putas, maricas etc.) aparecen ahora como los sujetos de representación cuestionando de este modo los códigos (estéticos, políticos, narrativos etc.) que fazian visíveis sus cuerpos y practicas sexuales (Preciado, 2008). Paloma, assim como Annie, subverte os estereótipos sociais e desafia as convenções esperadas às quais seu corpo deve corresponder. A performance Máscara, desmascara os procedimentos estéticos utilizados pelas drag queens, assim como Annie Sprinkle, em sua Anatomy of a Pin-Up revela todo o procedimento estético que produz a feminilidade pornográfica. Ambos são cartografias de processos performativos: um sendo a performance como mote de desconstrução; outro utilizando da fotografia como superfície de inscrição. Assim, ambas as mulheres estão, em distintas cenas alternativas

43 “Em 1990 Anne Sprinkle utiliza por primera vez la expresión Post Porno, del artista holandês Wink Van Kempen, para apresentar su espectaculo The Public Servix Announcement.” (Preciado, 2008). 44 Em Testo Yonqui (2008). 85 e décadas diferentes, tomando para si o ato liberativo de suas corpas sendo: uma maquiadora que, como drag, se despe e mostra que seu corpo livre é empoderador; a outra, ex-atriz pornô, subverte a lógica do CIStema dominante e esmiúça toda a técnica que faz com que seu corpo sirva para o prazer sexual do homem. Tanto uma como outra buscam, por meio de suas performances, tomar para si o prazer e o protagonismo no estudo e na exposição de suas corpas e dos signos que são delegados a elas quando de seus nascimentos em um corpo com buceta. Pois,

Sprinkle fotografa a transformação de uma série de mulheres em sex-stars, estrelas sexuais, através de um processo que ela denomina como pin-up therapy. Tudo que é necessário, sinaliza Sprinkle, é: “Boa maquiagem, uma cinta-liga, muitas perucas, salto altos, uma pose e, o mais importante, boa iluminação” (Preciado, 2017 p. 28) Esta descrição referente à performance de Sprinkle pode ser a definição do figurino e montação de Palloma Maremoto em sua performance Máscara, também desmascarando a “estrutura imitativa do gênero”(Butler, 1990, p. 37).

Figura 32:Anne Sprinkle e a sua “Anatomy of a Pin Up" (acervo google imagens).

Palloma Maremoto, assim como Vicente Van Goth – que analisaremos nas próximas páginas –, se distanciam de certo lugar denominado para as mulheres em algumas produções televisivas atuais. Podemos exemplificar com o programa Drag Me 86 as A Queen,45 um reality show brasileiro onde Drag Queens transformam uma mulher cotidiana em Diva Drag. O programa, que segue os moldes do americano Drag U46, parece seguir a cartilha de Sprinkle, ressaltando tudo que a mesma, como descrevemos anteriormente, utilizava para expor a farsa que é a indústria pornô, e toda a tecnologia de gênero já exposta por Preciado. Nota-se aqui que o fazer drag vem sendo absorvido pelo mainstream. Isso cria um jogo de dinâmicas contrárias às artes produzidas, primeiramente, em guetos formados por grupos identitários. Essa problemática relacionada à indústria mainstream absorvendo a arte drag está intrinsicamente relacionada ao programa estadunidense RuPaul’s Drag Race e sua difusão ao redor do mundo, e pode ser discutida e observada através de uma série de estudos acadêmicos produzidos nos EUA, sendo eles batizados de Drag Race Studies.47 Sobre a problemática da chegada, e da apropriação, da arte drag pelas culturas de massa, discorreremos oportunamente. Por agora, continuemos conhecendo mais um personagem da atualidade da cena drag-transformista carioca.

Ao lado de Annie Sprinkle, Preciado, em sua cartografia queer, reflete sobre outra artista que, em mesma época, buscou quebrar os padrões para as corpas femininas com buceta, burlando o que se espera delas. Em parceria com Sprinkle, Diane Torr inicia um workshop de Drag King, onde uma série de mulheres estuda a performatividade masculina em espaços públicos:

Novamente, aqui a possível transformação da subjetividade surge a partir de um trabalho de desconstrução dos códigos normativos de representação do gênero, do sexo e da sexualidade e da transgressão dos limites dos espaços

45 Drag Me Ass a Queen é um Reality Show Brasileiro, televisionado pelo canal por assinatura E!. Conta com apresentação das drag queens Ikaro Kdoshi, Penelope Jean e Rita Von Hunty, todas atuantes na cidade de São Paulo. Em cada capítulo, o programa recebe uma “mulher comum” que almeja ter um dia de drag. Apesar da grande maioria não ter experimentado o fazer drag antes, algumas seguiram carreira em São Paulo, após a participação no programa, como a drag Morana Evermore. 46 Drag U, diminuitivo de Universidade Drag, é um programa onde mulheres comuns aprendem técnicas de montação com drags queens experientes e ex integrantes do programa RuPauls’s Drag Race, sendo o programa uma spin-off do mesmo. RuPaul’s Drag Race é um reality show norte-americano, comandado pela drag queen RuPaul. Anualmente, um número de drags são confinadas no woorkroom no qual devem realizar uma série de atividades que se resumem na criação de looks para utilizarem desfilando no palco principal, construído fora da sala de trabalho. Além do desfile, elas são testadas em desafios de maquiagem, dança, atuação e muitos outros. Diariamente, as queens são divididas entre as melhores e as piores da semana. As duas piores realizam um número de dublagem. A pior performer é eliminada da competição. Todos os prêmios, dos mini e maxi desafios semanais, assim como o prêmio geral destinado à ganhadora finalista, são relacionados ao universo drag e, principalmente, as marcas produzidas por/para Charles RuPaul, ator que dá vida à drag que comanda e dá título ao programa. 47 Sobre Drag Race Studies, existe uma série de produções acadêmicas que analisam o programa, aliando-o a técnicas de consumo de massa, problematizando sobre a ótica do feminismo e sobre uma variedade de olhares ligadas a pesquisa acadêmica. A grande maioria dessa produção se dá em material de língua inglesa. 87

públicos e privados nos quais os diferentes corpos codificados ganham visibilidade e reconhecimento. Contudo, diante de leituras como aquelas que foram desenvolvidas por Dominique Baqué, que reduzem a dimensão performativa presente no trabalho de Sprinkle a uma função psicológica ou social, torna-se necessário des-psicologizar essas propostas e devolver-lhes seu estatuto de prática estética. Como adverte Suely Rolnik, colaboradora de Félix Guattari, ao falar do trabalho da artista Lygia Clark, esse caráter terapêutico não entra em contradição com a dimensão estética da obra, ressalta, ao contrário, que a possibilidade de transformação psicológica ou política surge precisamente de sua condição estética. (Preciado, 2017, p. 29) Seja enfiando uma espátula em sua vagina e mostrando para todo o público que, com um microfone na mão, pode manifestar sua reação ao estar defronte ao órgão “íntimo” da performer; ou, ao se colocar na cama e realizar, de frente ao seus espectadores, uma série de posições estereotipadas associada à figura da Pin Up, Sprinkle proporciona uma quebra dos paradigmas sexuais, de sexualidade e também com relação ao que se entende como gênero. Um processo de descodificação de um corpo feminino cristalizado na figura da Pin Up (que pode nos remeter à Barbie Girl da performance de Palloma Maremoto) ou até mesmo do corpo de um homem viril, como ocorre nas oficinas de Diane Torr. Nesse sentido, não se trata apenas de uma atitude terapêutica, mas sim uma esteriotipação, uma performatividade que propõe exaltar o quão nossa performance sexual e de gênero é moldada, encenada e aprendida de forma compulsória.

Figura 33:Diane Torr (acervo google imagens).

Diane Torr, artista pesquisadora e drag king, promoveu, ao longo de sua carreira, uma infinidade de oficinas que ela intitulava de Men For a Day (Homens por Um Dia), 88 onde pesquisava a corporalidade masculina e a forma de alocá-la para a construção de drag kings: o masculino construído no corpo feminino. Vicent Van Goth, drag king atuante na cena carioca, busca uma corporalidade que vai para além do sistema binário de gênero, onde se pode observar uma corpa em constante apropriação e ruptura com os padrões relacionados a gênero e sexualidade.

Na performance analisada agora, o palco se abre ao som da música Glamazon, de RuPaul. O drag Vicente Va Goth, de 1,68 metros e 52 quilos, adentra o palco com roupas que o senso comum espera de uma drag queen: longa peruca loira alisada, maquiagem extravagante que, ao contrário do king de Diane Torr, não apaga seus traços femininos oriundos de sua prótese-biológica-feminina. A roupa, um longo vestido azul brilhoso, também não definem seus traços como masculinos, pelo contrário, vemos uma mulher vestida de drag queen. Ao chegar no centro do palco, ela abre um leque, comunicando-se corporalmente com seu público. A música cessa e entra um aúdio, então dublado por Vicente. Neste número de lyp sync, o drag dubla o texto Se Eu Fosse Eu, de Clarice Lispector, na voz da atriz Aracy Balabanian. Em seguida, tem início outro número de lip sync, desta vez Wig in a Box, do filme Hedwig and the Angry Inch (2001), de John Cameron Mitchell. Durante esta segunda dublagem, Vicente então começa a arrancar pedaços da sua saia, sobre os quais estão escritos dizeres como “Puta”, “Suja”, “Burra”, “Fútil”, “Louca”.

Após arrancar partes do seu figurino, o drag se dirige a uma mesa, uma espécie de camarim localizado ao centro, no fundo do palco. Lá, ele, com pedaços de lenço- umedecidos, começa a tirar sua maquiagem, arrancando em seguida a peruca, se despindo aos poucos. Em meio ao momento mais burlesco de seu número, o aúdio, que antes era da música de Hedwig, se transforma na música Mesmo Que Seja Eu, de Ney Matogrosso. Vicent então arranca a parte de cima de sua montação e revela seu peitoral, minimamente construído com técnica executada pelos drag kings, onde o seio feminino é repuxado para traz com fita e, por cima dele, é desenhado um peitoral masculino. 89

Figura 34:Vicente Van Goth performando no Teatro Rival Foto Tata Barreto/Gataria Photografy.

Sua montação então remete diretamente aos trajes utilizados por Ney Matogrosso, na época dos Secos e Molhados, realizando assim uma citação direta ao artista em sua época mais andrógina. Com a montação da parte final de seu número, o drag realiza movimentos mais soltos: seria uma liberdade que se contrapõe a toda a moldura forçada com a qual a performer entrou em cena? Mas já podemos pensar o que é liberdade ou o que é uma corpa livre, assim como já problematizamos na performance de Maremoto. Ao terminar o número, ele arranca o último tecido que sobrava em sua corpa, revelando o símbolo de feminino (♀), parando diante do público, no centro do palco.

Em sua entrada, Vicent Van Goth já realiza uma citação direta ao filme Hedwig: a peruca de sua montação é idêntica àquela utilizada pelo ator e diretor americano John Cameron Mitchell. Hedwig contrapõe as simplorias classificações de gênero ao longo da obra, que é uma adaptação cinematográfica de uma peça que estreiou no circuito Off- Brodway em 1998. Na trama, Hedwig começa como um jovem gay e, após a prática da montação, realiza uma cirurgia de redesignação sexual, passando, de uma forma mais definitiva, a possuir uma corpa. Contudo, se este processo traz satisfações, por outro lado, Hedwig deve lidar com as expectativas frustradas resultante do fracasso de uma operação de redesignação sexual, ou seja, o centímetro nervoso exposto no título. Some- se a isso o fato de a protagonista possuir uma performatividade que foge aos padrões acoplados às corpas femininas: ela é grosseira, pesada, rock’n’roll, conforme ela reforça na canção dublada por Vicent: “I’m pulling the wig down from the shelf / suddenly I’m this punk rock star / of stage and screen / And I ain’t never / I’m never turning back”. 90

Atrelado ao desconforto relacionado à sua identidade sexual, há também o incômodo quanto a seu pertencimento social. Hedwig, que viveu a infância em uma casa apertada na Berlin Oriental, durante a existência do muro, cresceu recebendo o tráfego cultural dos EUA e alimentando o sonho de liberdade americano: fugir dali e viver feliz. Se o lado oriental é socialista, fugir para o lado imperialista, do capital, seria desvincular-se das questões de desigualdades sociais e identitárias. Este duplo desconforto, ao meu ver, é apenas para intensificar a contradição dessa corpa-Hedwig que, nessa obra cinematográfica, explicita a contradição de uma corpa que foge às definições de como uma sociedade – capitalista ou comunista º busca compreender o tema de gênero.

No início de sua performance, Vicent adentra o palco já com a típica peruca de Hedwig, porém dublando uma música do atual American Dream da maioria dos jovens LGBTQIA+s ao redor do mundo: o reality show de competição Drag Queen RuPaul’s Drag Race. Charles Rupaul, que encarna a drag RuPaul é uma artista bastante conhecida em New York e que enveredou como uma Drag Top Model nos anos 1990, após emergir da cena Club Kid assim como variados nomes que se mantêm no hall off fame até os dias atuais, tendo Amanda Lepore48 como um de seus exemplos vivos. Após algumas décadas realizando uma variedade de participações em programas de TV, RuPaul criou o seu próprio reality show, onde, a cada temporada, drags queens competem pelo título de Rainha da América. Tal programa, que teve sua primeira edição em 2009 e nunca mais parou, foi um grande marco na carreira de RuPaul, tornando não só ela, mas todas as participantes conhecidas em todo o mundo. Grande parte delas fazem turnês mundiais – como a recente Werq the World, registrada também em uma série documental –, se apresentando em todos os continentes do mundo. Mas, quem ganhou com isso também foi a arte drag, que se popularizou internacionalmente, fazendo com que novas gerações, e um número maior de pessoas, conhecessem tal arte para além dos guetos LGBTQIA+.

Em Glamazon, canção lançada em 2011, RuPaul canta: “Everybody wants her / Miss Sexy in the city / She’s on the prowl / She run this town / Who’s that girl? / A fly ferocious lady / Get up and dance”. Nota-se que a letra da música expõe esse ideal hiper-feminilizado, individualista e tipicamente norte-americano: “seja bela, seja a

48 Artista transgênera de New York, ex-club kids e conhecida mundialmente. 91 melhor”. Caso se compare a trajetória de Hedwig ao sucesso de RuPaul, auto-intitulada Super Model of the World, conforme seu álbum lançado em 1993, nota-se então a discrepância entre as duas trajetórias (algo que deve ser relativizado, evidentemente, pela próprio percurso bem sucedido de John Cameron Mitchell, cuja obra foi adaptada até em contexto brasileiro por Evandro Mesquita)49. Pois, tal performance não é alcançada por Hedwig que não concluiu com êxito sua cirurgia, assim como diz na letra de outra música do filme, intitulada Angry Inch:

O ferimento cicatrizou / E eu fiquei com um monte de uma polegada de carne / Onde costumava ser meu pênis / E a vagina nunca apareceu / Um amontoado de carne de um centímetro com uma cicatriz cortando ao meio / Com um lado careta / Em um rosto sem olhos / Só um pouco de volume / Era um centímetro furioso. (MITCHEL, 2001 – tradução livre).

Figura 35:Cartaz do espetáculo Hedwig, versão Brasileira. (Fonte Google Images).

Diante do fracasso do sonho americano emblematizado pelo centímetro enfurecido que se interpõe entre a realidade e seu desejo, Hedwig não performa mais nem como homem e nem como mulher, residindo em um espectro não binário,

49 A obra Hedwig, em contextos cariocas, também foi montada pela drag queen Frankie Monstro que, com outros performers Drag Queens da cidade do Rio de Janeiro, realiza sessões interativas de obras cinematográficas, como The Rocky Horror Picture Show, no Cinema Odeon. As drags Palloma Maremoto e Vincent Van Goth fizeram parte do elenco da então sessão interativa de Hedwig. 92 travestido, indefinido. É importante ter em conta que tal personagem, apesar da montação drag queen, ainda se identifica com pronomes masculinos no começo do filme. Só depois da possibilidade de fuga pelo casamento e a contraproposta do futuro esposo, ela passa a se questionar sobre a possibilidade da cirurgia de redesignação: torna-se mais fácil para ela adentrar no âmbito do gênero feminino do que voltar ao domínio masculino. Estes exemplos confirmam as complexidades da personagem que, ao longo do filme, se extravasam e se fundem em uma performance de gênero que não está definida nem no masculino e tampouco no feminino: ela e/ou ele é Hedwig: é isso que importa.

A quebra da binariedade de gênero que sustenta as performatividades heteronormativas é uma questão central na performance de Vincent Van Goth. Quanto a isso, podemos recuperar outra referência importante à performance, um fragmento de uma crônica de Clarice Lispector:

Quando eu não sei onde guardei um papel importante e a procura revela-se inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar, diria melhor, sentir. E não me sinto bem.50 Tal papel, referido no texto de Clarice Lispector, que Vicent dubla na voz da atriz Aracy Balabanian, se refere tanto ao pensamento heterossexual que realiza a gestão biopolítica dos corpos quanto ao papel da Drag Queen neste contexto. Afinal, uma Drag Queen deve colaborar com o imaginário e com o esteriótipo instituídos de feminilidade aos quais as mulheres já são submetidas diariamente, de modo por vezes cruel e perverso? Ou, alternativamente, a performatividade drag deve questionar, burlar e subverter as normas cristalizadas por um pensamento binário, misógino e machista? Como mulher, Priscila Matsumoto – a escritora que dá vida ao performer Vicente – está fadada a ser inscrita nos lugares comuns a corpos femininos, domínios abjetos circunscritos, conforme a performance ressalta, pelos dizeres “puta, louca, burra, fútil e suja”.

50 Clarice Lispector em crônica para o Jornal do Brasil (1968). 93

Figura 36:Vicente Van Goth performando no Teatro Rival Foto Tata Barreto/Gataria Photografy.

Seus seios apertados com fitas e tendo um peitoral masculino desenhado por cima, são procedimentos estéticos que vão contra a natureza do corpo feminino biologicamente naturalizado por um sistema heterossexual, forçando as barreiras de gênero. É mais um ato de desidentificar a feminilidade tida como “natural” nessa corpa e experienciando uma corporalidade mais próxima do corpo masculino. Vicent elabora uma performance na qual as categorias de gênero estão borradas: ele se identifica e se desidentifica variadas vezes, incorporando uma diversidade de símbolos sociais relacionados a muitas experiências de gênero na nossa sociedade.

Por fim, a cadeia de referências sobre as quais se assenta a performance prossegue por meio da música “Mesmo Que Seja Eu”, lançada por Ney Matogrosso em 1988, no álbum Sangue Latino.

Figura 37:Vicente Van Goth performando no Teatro Rival Foto Tata Barreto/Gataria Photografy.

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Com os Secos e Molhados, Ney Matogrosso reverberava em seu corpo cênico um regozijo ao desconstruir-se – ou construir-se – como um corpo não binarizado: um torso masculino, nu e peludo, com uma calcinha minúscula e saia que desvelavam longas pernas afeminadas. A bicha rebolativa exibia também maquiagem exagerada, mas não hiper feminina. Em certo sentido, Ney assemelha-se à montação das Dzi Croquetes, que nos anos 1970 “tratavam de embaralhar as identidades e problematizar as classificações” (FRIQUES, 2018, p. 11), podendo este grupo teatral ser considerado como um dos percursores da travestilidade carioca e que realizavam, com sua vivência, procedimentos semelhantes ao proposto por Van Goth décadas depois: embaralhar as fronteiras e se revelar como um intercambista de gênero, utilizando do invólucro efêmero para questionar as supostas verdades binárias, postas como regras universais.

Ao analisar as performances de Maremoto e Vicente, podemos também norteá- las sob a perspectiva de uma das características mais associadas à arte drag: a noção de camp. Aliás, o verbo no francês se camper, quer dizer se montar, trazendo essa estética do exagero, ao âmago da cultura e da performatividade drag. Tendo isto em mente, a reflexão de Susan Sontag a respeito do tema é bastante apropriada, visto que “todos os objetos e pessoas camp contém um grande componente de artifício” e que também há aí “uma tendência ao exagero das características sexuais e aos maneirismos da sexualidade” (SONTAG, 1964, p. 4). Esta estética do exagero, responsável por colocar entre aspas noções de gênero, nos remete indiscutivelmente à célebre frase do “não se nasce mulher, torna-se”, de Simone de Beauvoir em O segundo sexo, estudo que inaugurou uma poderosa corrente de reflexão a respeito de determinações históricas escamoteadas enquanto essências aparentes.

Quanto a isto, podemos pensar sobre toda a construção social de gênero, a partir da performance das drag kings. Pois, se o camp “vê tudo em aspas” e o ato de “perceber o camp em objetos e pessoas é entender que Ser é Representar um papel” (SONTAG, 1964, p.4), a estética camp, assim como a performatividade drag, nos remete a questionamentos e à subversão de padrões fundados no âmago da nossa cultura. Nesse sentido, a estética do exagero entrevista na performatividade drag busca, por meio da caricatura e do sarcasmo, questionar não só o meio social circundante, como também – e porque não – o gosto estético. Sendo assim, o camp constitui um domínio cultural pertinente às performances aqui analisadas. Pois, o exagero e a proximidade com a indústria cultural em práticas artísticas encontradas em espaços marginais ao campo 95 hegemônico da arte se fazem notar nos vestuários dos Secos e Molhados, na estética de Hedwig, na música pop Barbie Girl e, sem sombra de dúvidas, na drag Rupaul, sendo estes artefatos da indústria cultural contemporânea que circunscrevem, ao lado de outros (Clarice Lispector), ambas as performances.

No âmbito da indústria cultural, é interessante observar algumas batalhas que, em certo sentido, fomentaram a performatividade drag. Este é o caso indubitável tanto dos Secos e Molhados quanto de Rupaul. Outra genealogia é, sem dúvida, o funk carioca. Podemos pensar que, se no fim dos anos 1990, variadas artistas mulheres, como Tati Quebra Barraco, Valesca Popozuda e Deize Tigrona51 invadem o Funk Carioca, tomando de assalto uma arte marginal extremamente machista e que objetificava o corpo da mulher, drags como Palloma Maremoto e Vincent Van Goth abrem caminho na arte drag atual para quebras de paradigmas e reconfiguração do que se entende como Drag Queen na cena do Rio de Janeiro nos dias de hoje. Pode-se pensar também que as funkeiras aqui mencionadas promoveram uma fusão interessante no mercado do funk que, nos últimos anos ganhou força com figuras drags e trans, como Lia Clark (SP) e Mulher Pepita (RJ) despontando como ícones e criando um cenário queer na cena funkeira. MC Linn da Quebrada é outro destaque, com um funk que se aproxima da estética do pós-pornô, com melodias sobre sua vivência como uma travesti preta e perfirérica de São Paulo. O gênero delimita determinado tipo de arte, extrapola barreiras sociais e empodera fatias da sociedade que precisam também se expressar, com o intuito de alertar determinados tipos de opressão ou de apagamento, mesmo em expressões tidas como marginais, ao menos em sua origem, como a arte drag e o funk. Citando Tati Quebrabarraco em uma de suas populares mais emblemáticas para o cenário do funk no Rio de Janeiro, podemos dizer que Maremato também então “Sou feia mas to na moda”. A performance de Maremoto revela um corpo que não corresponde ao ideal opressor, oriundo do machismo estrutural da nossa conjuntura quanto sociedade, sendo então esse corpo feminino, magro ou gordo, feio ou bonito, mas criando sua própria moda, sua própria cena e sua própria performatividade.52

51 Esta sendo a única que não se manteve initerruptamente na carreira como as outras, mas que acaba de voltar à atividade, produzida pelo selo Batekoo. 52 Nos anos 1990, mas não de forma tão presente e potente como nos dias de hoje, possuímos algumas figuras que pode se entender como queer no cenário do funk carioca. A bailarina Lacraia, que dançava com Serginho, despontou na grande mídia. A artista performática Marcela Maria, que com sua persona MC Xuparina, quebrou variadas fronteiras de gênero, se mudando do Brasil e vivendo seus últimos anos em Berlim, onde também trabalhou como atriz. Sem contar na cantora e multiartista, também 96

4 Desterritorialização: Construindo coletividades

Figura 38:Haus Of Deboche para Calendário Queens 2019. Foto Betina Polaroide.

O fenômeno drag não é somente um processo de travestimento corporal, mas sim que implica na transformação de um espaço e do seu uso desviado, ou seja, algo que poderíamos denominar como a fabricação de drag spaces, de espaços performativos. Paul Preciado

underground Pedra Costa, que também rompeu barreiras geográficas e pode levar seu funk queer para variadas instancias, atuando no duo Solange Tô Aberta. 97

4.1 Encontrando aliados: novos territoriós a serem explorados Nesse momento, em que não sou mais apenas um olho-cílio, mas uma corpa- prótese completamente adentrada na vivência com e a partir da montação, se faz necessário construir possibilidades de um chão sólido para caminhar de salto alto. Foi preciso, desde então, criar laços e espaços que me acolhessem e me encorajassem, de pessoas, de certa forma, semelhantes a mim que construíssem um ideal de família, para além dos laços sanguíneos. A Haus Of Deboche, que é um coletivo construído por mim e mais três artistas drags e burlescos – Maybe Love, Linda Mistakes e Delirious Fênix – tem sido um espaço de acolhimento e de refúgio, onde tenho me montado na grande maioria das vezes em que vou me apresentar. A Casa Sapucaia, no alto de Santa Teresa, é uma casa onde todes es moradores são artistas e ocupam o local de variadas formas. Pude a conhecer por intermédio da companheira de Pós Graduação em Artes da Cena, Aline Vargas, que me levou a o espaço, onde tenho conseguido ter paz para concluir boa parte dos estudos relacionados à esta dissertação. Esses exemplos são expostos para mostrar como, de formas diversas, corpas que fogem da binaridade de gênero são colocadas de forma marginal em nossa sociedade e sofrem e oferecem perigo social apenas por serem corpos expressivos e questionadores. Tais corpos se tornam cada vez mais vulneráveis quando, atualmente temos um presidente no poder que, além de simbolizar um partido de ultradireita, promove um discurso agressivo invocando ódio e violência com relação a toda a comunidade LGBTQIA+. Já desde sua campanha, sofri ataques nas redes sociais e nas ruas, tendo como exemplo maior uma tarde em que eu apenas caminhava na Avenida Paulista, em São Paulo, e recebi um soco no meu ombro direito por um homem que vestia uma camisa com o rosto do atual presidente.

É preciso, antes de qualquer coisa, não recuar, fortalecer-se e construir redes, pois a corpa precisa se nutrir, inclusive para ocupar o espaço da academia e de produção de conhecimento. É preciso mobilizar a multidão queer:

O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais... As minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer. O corpo da multidão queer aparece no centro disso que chamei, para retomar uma expressão de Deleuze, de um trabalho de desterritorialização da heterossexualidade. Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal. Esse processo de desterritorialização do corpo obriga a resistir aos 98

processos do tornar-se normal. Que existam tecnologias precisas de produção dos corpos normais ou de normalização dos gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibilidade de ação política. Pelo contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade sexual. (PRECIADO, 2011, p. 14) De modo semelhante à desidentificação, a desterritorialização, de caráter mais grupal e menos individual, interfere nos modos de vida da pesquisadora que aqui dialoga, para executar tal investigação de forma ativa e propositiva. É precisa estar nos lugares e buscar os meios para viver, fazendo arte, pesquisando e escrevendo sobre e a partir – e dentro – da mesma. Com esse entendimento, é preciso compreender, e engendrar, novas estruturas, técnicas e modos de fazer, quando

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 323) Foi/é/será preciso observar e construir meios para que a pesquisa ocorra como um diálogo entre minha corpa e os ambientes que me nutrem, sendo eles as casas nas quais dormi, os lugares onde trabalhei e estudei. Tal pesquisa, assim como minha vida acadêmica e pessoal, foi cerceada em diversas vezes, muitas delas que quase não me permitiram cumprir estes escritos, sempre sendo por imposições sociais oriundas do lugar de onde sou originária: uma corpa afeminada vivendo em uma favela carioca. Mas disso, adentraremos e falaremos melhor mais adiante. Busquemos, por agora, analisar um pouco melhor o conceito de desterritorialização. Podemos compreender o território como um agenciamento, onde

Todo agenciamento é, em primeiro lugar, territorial. A primeira regra concreta dos agenciamentos é descobrir a territorialidade que envolvem, pois sempre há alguma: dentro de sua lata de lixo ou sobre o banco, os personagens de Beckett criam para si um território. Descobrir os agenciamentos territoriais de alguém, homem ou animal: ‘minha casa’. [...] O território cria o agenciamento. O território excede ao mesmo tempo o organismo e o meio, e a relação entre ambos; por isso, o agenciamento ultrapassa também o simples ‘comportamento’ (Haesbaert, 1997, p. 218). Uma vez que o agenciamento nos territórios promove não só a fisicalidade, mas as relações inerentes ao mesmo, a desterritorialização da multidão queer é um ato de 99 negar o território como dado, imposto. Ela propõe re-ocupar e reutilizar os mesmos de acordo com suas práticas, não territorializando seguindo os moldes impostos por outras corpas que dividem os espaços sociais conosco ou com normas já pré-estabelecidas na utilização do mesmo e que vão contra nossa instância física neles. Os cílios que possuo em minha pequena corpa quando criança estão para os cílios postiços assim como minha família de sangue está para Haus of Deboche. Até que ponto vivemos na “naturalidade” dos corpos e das experiências em sociedade? Até que ponto construímos novas práticas?

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4.2 Origem dos Drag Spaces e os Palcos da Montação Nesse eterno movimento de aproximação da minha corpa e de expansão para outros territórios e experiências, proponho que adentremos outras territorialidades, fortalecendo e conhecendo o que acontece agora na cartografia carioca, mas também colocando o holofote para nossas antepassadas. Assim, podemos entender o ontem para que, organizando o hoje, possamos construir melhores condições no amanhã.

Drag Space, assim como ilustra o título deste subcapítulo, é um termo cunhado pela teórica queer Kosofsky Sedgwik que define espacialidades que podem ser reconhecidas pela “sua capacidade de transformação performativa” (Preciado, 2011, p. 24). Aqui, trata-se dos espaços mais tolerantes para corpas que fogem das normas heteronormativas de gênero performatizadas pelas imposições sociais.

Nossas corpas já sofrem limitações variadas, em praticamente todas instâncias do nosso dia-dia. O controle para com nossas corpas se dá até em ambientes onde teríamos de ter a liberdade de excluirmos dejetos corporais e ou limparnos, como é o caso dos banheiros, quando:

Para além das fronteiras nacionais, milhões de fronteiras de gênero, difusas e tentaculares, segmentam cada metro quadrado do espaço que nos rodeia. Ali onde a arquitetura parece simplesmente se colocar a serviço das necessidades naturais mais básicas (dormir, comer, cagar, mijar…), suas portas e janelas, seus muros e aberturas, regulando o acesso e o olhar, operam silenciosamente como a mais discreta e efetiva das “tecnologias de gênero”. Assim, por exemplo, os banheiros públicos, instituições burguesas generalizadas nas cidades europeias a partir do século XIX, pensados primeiro como espaço de gestão de lixo corporal nos espaços urbanos , vão se converter progressivamente em cabines de vigilância de gênero. […] Na porta de cada banheiro, como único signo, uma interpelação de gênero: masculino ou feminino, damas ou cavalheiros, guarda-chuva ou chapéu, bigode ou florzinha, como se tivéssemos que entrar no banheiro para refazer o gênero mais do que se desfazer da urina e da merda. Não nos perguntam se vamos cagar ou mijar, se temos ou não diarreia, ninguém se interessa nem pela cor nem pelo tamanho da merda. A única coisa que importa é o GÊNERO (PRECIADO, 2019, p.01). É uma máquina muito bem engendrada sobre a qual é preciso ter consciência. Com atos de desidentificação e desterritorialização, conseguimos não cair, e sofrer, nas armadilhas normativas que a sociedade nos impõe. Tal situação serve não só como um enunciado do que se pretende discutir no presente capítulo, mas também aponta para a necessidade de compreensão de que, em tal escrito, Preciado se propõe a realizar uma análise dos banheiros públicos – em especial, os do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris – enquanto tecnologias de gênero. O autor toma liberdade para se colocar como 101 investigador-crítico, pois, em sua história de vida, pôde passar por ambas situações, adentrando e experienciando o que é estar ou não de acordo com o que se espera, tanto no banheiro feminino ou no masculino, pois o mesmo é um homem trans.53

Dissertando sobre mais um espaço normativo em nossa sociedade, podemos pensar o oposto disso: uma espacialidade que propicia a prática da montação, por exemplo. Preciado coloca a casa de Anne Sprinkle como um curioso Drag Space:

a sua sala de estar, a sua cozinha e o seu banheiro, haviam se transformado em espaço público e performativo, às vezes cenário de teatro burlesco ou de performance, às vezes oficina de tatuagem e piercing, cenário de gravação de filmes, masmorra SM, local de reuniões políticas de profissionais da pornografia e do sexo, um espaço expositivo para aquilo que Sprinkle começa nessa época a denominar como sex art, ou centro de publicações onde são produzidos folhetos, revistas e panfletos políticos-sexuais em prol da legalização da prostituição e da pornografia (Preciado, 2017 p. 24). Com isso, podemos compreender que não existem limites para as práticas descritas pelo autor, assim como não existiram para os espaços que traremos nas próximas folhas, sendo os mesmos espaços de performatividade drag-transformista na cidade do Rio de Janeiro, os nossos Drag Spaces. Para começar, gostaria de começar a falar sobre os espaços escondidos, camuflados, onde as Bichas se intitulavam de Entendidos, pois precisava ser “entendido” de tal assunto para saber onde e como frequentar as “turmas” durante a ditadura militar no Brasil. Começaremos nossas busca por esses espaços que chamo de recônditos.

O que seriam os recônditos? São ambientes onde a Flânêuse Perversa adentra alguns espaços escondidos da urbes, como em um ritual apenas para iniciados. O recôndito é uma caixa mágica onde é permitido vivenciar uma experiência à qual a cidade, na grande maioria das vezes, exclui. Neste espaço, uma grande multiplicidade de corpas que não performam sua experiência de arte-vida-gênero de acordo com a norma CIStemática vigente na sociedade, encontra acolhimento. Neles, o holofote clareia pequenas caixas escuras que revelam o glitter das artistas da noite, ou se

53 É a partir desta experiência que o autor colecionou alguns comportamentos vistos nos banheiros públicos: o espelho do banheiro feminino como espaço para retocar a maquiagem de mulher-feminina, sendo esta também alvo dos olhares severos de outras mulheres-femininas; ou até mesmo a constatação de que “mijar de pé publicamente é uma das performances constitutivas da masculinidade heterossexual moderna”, são pontos interessantes de destaque. Desse modo, o discreto mictório, antes de ser um instrumento de higiene, é uma tecnologia de gênero que participa da produção da masculinidade no espaço público. São noções que apenas ele, tendo vivenciado e subscrito em seu corpo, e sua vivência, a transição de gênero, o coloca como um cartógrafo autônomo e borrador de fronteiras impostas socialmente. Sua proposição, assim como suas conclusões e vivência, são diárias, estando em contraposição às binaridades das fronteiras de gênero que gerenciam e organizam a nossa vida social. 102 escurecem por completo em darkrooms54, permitindo àqueles corpos darem vazão aos seus desejos mais escondidos, compulsoriamente reprimidos em nossa sociedade heteronormativa. Nos recônditos, a Flânêuse Perversa adentra e recria espaços e afetos, sendo talvez o mais tradicional das últimas décadas a Turma OK, ambiente para se compreender o caráter do que aqui venho chamando de recôndito, e para a compreensão da construção da cena transformista carioca.

A Turma OK é muito mais que um espaço de festividade, é um coletivo de resistência. É o primeiro grupo LGBTQIA+ de que se tem registro na história do Brasil, fundado em 1962 e que se mantém em atividade até a atualidade, se solidificando no que eles chamam de um ambiente respeitoso e familiar.55 Em um sobrado, no centro do Rio de Janeiro, se consolidaram como um ambiente de tradição, assim como a Gafieira Estudantina, o Cordão do Bola Preta e o Bar Luís. O termo “turma”, muito utilizado para designar uma reunião de homossexuais em apartamentos nas décadas de 1950 e 1960, se dá por conta do clube contar com um pequeno grupo fixo que se reúne semanalmente para admirar o trabalho de artistas veteranas, jantar, cantar e jogar bingo.

Tais espaços, como os apartamentos, serviram como manutenção da arte da montação durante a ditadura militar, onde não se podia anunciar eventos que ocorriam entre amigos próximos e que viviam entre quatro paredes. Conforme lembra Patrícia Saint-Laurent, na série documental Noturnas56: “na hora de bater palma fazia-se o estalar de dedos, para não fazer barulho para a vizinhança e não chamarem a polícia”. O recôndito, deve-se, com isso, à condição da formação inicial de tais guetos, não só da Turma Ok, mas do caráter da vivência e da prática homossexual na época do início de sua configuração como Drag Space. Em “A Confraria Gay: um estudo de sociabilidade, homossexualidade e amizades na Turma Ok”, Thiago Soliva (2012, p.18 ) traça todo um panorama, do início da Turma Ok até a atualidade, no epicentro de uma nova configuração cartográfica:

No Rio de Janeiro, a região compreendida entre a Praça Tiradentes e a Cinelândia marcou os contornos de uma cartografia dos desejos, onde prostitutas, marginais e “frescos” compartilhavam um mesmo espaço urbano,

54 Quarto escuro onde, geralmente em festas de boate, se pode realizar o ato sexual. 55 Importante ressaltar que entre os anos de 1969 e 1975, o clube esteve fechado, devido às repressivas da Ditadura Militar. 56 A série Noturnas, que foi ao ar pelo Canal Brasil, e ainda consta em seu site na internet, faz um mergulho na historia transformista do Brasil, entrevistando 46 artistas brasileiras de outras gerações anteriores a essa, incluindo-se aí, dentre outras, Rogéria. 103

a rua, para negociarem o sexo. A frequência de determinados grupos nesses espaços possibilitou a construção de identidades coletivas em função do reconhecimento de traços comuns. Nesse momento, as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo vão se tornando mais evidentes, passando a preocupar as autoridades competentes... Homens com atributos físicos e comportamentos associados ao feminino dão visibilidade a esse novo tipo social.

Entre as décadas de 1950 e 1960, não só no Rio de Janeiro mas também em São Paulo, a Flâneuse Perversa brasileira, no caso os homens homossexuais, as bichas de outrora, se reúnem e buscam melhores maneiras de vivenciarem sua homossexualidade. A grande maioria desse homens era oriunda de outros estados brasileiros não tão de “vanguarda” como as populosas metrópoles que eram, e ainda são, o eixo Rio de Janeiro-São Paulo. A sociabilidade homossexual promove espaços de encontro, servindo também como Drag Space, lugares onde a quebra do paradigma de gênero, sobretudo a busca pelo feminino em corpos masculinos e homossexuais, promove o início do que viria a se solidificar, e se manter até a atualidade como a Turma Ok. As “turmas” eram esses lugares de encontro, de sociabilidade e de construção de família (ou haus). Diferente da rapidez midiática na qual vivemos na atualidade, as informações e novidades eram proporcianadas por uma grande quantidade de jornais, executados e produzidos em mimiógrafos e distribuídos nos secretos encontros que essas turmas realizavam em seus apartamentos apenas para os iniciados, ou “entendidos”. As “Turmas”, em seus apartamentos, começam a despertar esse fenômeno do agrupamento homossexual nos idos dos anos 1960, década marcada pela presidência de Juscelino Kubitschek e de seu famoso lema “cinquenta anos em cinco”. O Brasil se torna um país em modernização em paralelo à glamourosa era do rádio e aos concursos de miss: Dentre os espaços dedicados ao pertencimento homossexual, destacam-se sobretudo os apartamentos, em cuja intimidade eram organizados eventos de todo tipo, de encontros a concursos de Miss. Outro espaço dedicado à sociabilidade homossexual era, de fato, o teatro (FRIQUES, 2018, p. ).

Assim como existia a Turma OK, que sobreviveu à ditadura militar, tivemos, em outras proporções, um grande número de artistas transformistas que trabalhavam e vivenciavam sua transexualidade e/ou arte transformista nos palcos teatrais, como já comentamos aqui. Atenhamo-nos, por hora, aos drag spaces que mantêm suas montações nos espaços ainda reconhecidos como recônditos, para depois darmos saltos mais altos. 104

A Turma OK é um recôndito que apresenta, valoriza e mantém um palco italiano.57 O palco conta com painel na parte traseira, que alude a um salão antigo, pomposo e detalhista, em uma estética que beira o camp. O palco, que é composto por uma estrutura de madeira pintada de preto, possui uma coxia localizada à sua esquerda, bem pequena e que serve para mediar a distância entre público e artistas. Em tal espaço, preza-se pela performance no palco e pela distância entre palco e plateia, ainda que essa não seja muita, pois o salão não é muito grande, uma sala de um sobradinho. Na parte do salão destinada ao público, funciona um pequeno bar e se dispõem algumas mesas e cadeiras. Trata-se de um ambiente calmo e acolhedor e esse ideal possui propósitos específicos: a Turma Ok se aproxima de um espaço familiar que preza por performance das artistas nos palcos e se distancia dos “inferninhos” mais contemporâneos. O ápice das noites é o palco: não há pegação e darkroom, e, em geral, após as apresentações, todos vão embora. O palco, ali, não é improvisado, ele é o personagem principal, o protagonista de uma cena onde homossexuais maduros se encontram e prezam por não revelarem suas intimidades, suas práticas sexuais. Neste espaço tradicional da noite transformista carioca, a performance das artistas são realizadas sempre com as fronteiras entre palco e plateia, bem como entre o público e o privado. O contrário acontece em outros recônditos no Rio de Janeiro, podendo exemplificar aqui as boates la Cueva ou a Fosfobox, ambas, diferentes do acesso a Turma OK, com entradas subterrâneas e, principalmente a Fosfobox, frequentada pelo público mais jovem. A performance executada por Palloma Maremoto, e descrita aqui anteriormente, foi realizada na festa Mona, que, assim como V de Viadão, Showroom e Morta, foram, e continuam sendo espaços para a performatividade da grande maioria das drags das novas gerações e, marjoritariamente produzidas em espaços-recônditos. As artistas da atualidade se autodenominam Drag Queens, diferentemente das artistas que frequentam a Turma Ok, e de outras gerações, sendo essas as transformistas. Lembramos aqui, com Samuel Abranches (2014, p. 148) que “o termo ‘transformista’ apareceu na década de 1960. A drag queen data dos anos 1980, nos Estados Unidos e no Brasil, reflexo da geração das discotecas”. Quando o termo drag chega ao Brasil, resulta de outros modismos americanos já mencionados aqui.

57 Palco Italiano é quando a arquitetura do palco é pensada como uma estrutura a ser observada de frente, proporcionando a observação da plateia a partir da noção de profundidade e perspectiva. Tais noções são oriundas das pinturas da virada do século xv para o xvi, época na qual a sociedade começou a valorizar esse tipo de palco no fazer teatral, com influencias em como se estava realizando as artes visuais. 105

Por frequentar, de diferentes formas, esses ambientes, é interessante encontrar semelhanças e distanciamentos entre essas duas cenas tão distintas e que coexistem na mesma cidade. Se, em nossa época atual, contamos com drags realizadas por mulheres cisgêneras como Vicent e Maremoto, o primeiro agrupamento da Turma Ok possuía também alguns nomes como Miss Buracolina e Tia Mame, sobretudo mulheres lésbicas que frequentavam esses escondidos encontros e ajudavam a “camuflar” o grupo, o tornando mais heterogêneo em seus encontros nos apartamentos (SOLIVA, 2016, p. 8). Se, hoje em dia, como na Fosfobox, Maremoto performa Pitty ou Barbie Girl, as divas da geração Turma OK são outras: de um lado e Rihanna; do outro Judy Garland e Liza Minelly58. De um lado, a contestação atual; de outro lado, o glamour das divas de outras épocas, havendo sempre uma busca pelo feminino em suas distintas nuances e performatividades. Outro detalhe é que até os dias de hoje a Turma Ok abre suas portas para variados concursos de transformistas ao longo do ano, como os eventos anuais que coroam Miss e Mister OK.

Figura 39:Transformista Divina Aloma performando no palco da Turma Ok. (Fonte site Turma Ok).

58 Pamela Star, que iniciou sua carreira em um concurso de dublagem na boate Le Boy em meados da década de 1990, tem na sua drag uma sócia de Liza Minelly. Pamela lembra que, depois de conhecer Marlene Casanova – a sócia de Emilinha Borba – realizou diversos shows pelo país. Interessante observar a herança empreendedora que Marlene transmite à Pamela, como se constata no depoimento de Pamela para a série Noturnas, disponível em: https://globosatplay.globo.com/canal-brasil/v/5652752/. 106

Ao lado da Turma Ok, há também o Cabaret Casanova, um espaço marcante para toda uma geração, sendo a casa onde Madame Satan realizava shows em uma Lapa mais longínqua: O Casanova foi, sem sombra de dúvidas, um espaço histórico e de inegável resistência da comunidade gay do Rio de Janeiro. Numa época em que não se falava de direitos civis dos cidadãos , lá estava o velho Casanova transgredindo padrões de comportamento em plena ditadura militar... Foi ali no Casanova onde se formou o ainda embrionário Dzi Croquetes, ali o lendário Madame Satã fez suas últimas incursões pela “sua” Lapa boêmia onde artistas do porte de Carlos Machado e Alcione se apresentaram. (MARINHO, 2011)59

O Cabaré Casanova abre suas portas em 1939 e, durante muitos anos, foi referência na apresentação de shows de travestis e transformistas no centro do Rio de Janeiro. Diferente da Turma OK, se localizava em um espaço com maior acesso e movimentação de pessoas e agregava em seu público uma diversidade maior de pessoas. O Cabaret, como o nome já diz, buscava ser, e era, uma casa de shows e não apenas um clube de amigos, uma “turma”.

Na boate Casanova, cuja dona é uma travesti negra, predominam pessoas das camadas populares e moradores de subúrbios, havendo mais pardos e pretos, bem como travestis. É vista como decadente pelo público de maior poder aquisitivo. […] As boates Cabaret e Cine Ideal, na Lapa, guardam algumas semelhanças com Madureira, no sentido de uma maior afirmação de uma identidade gay que pode ser atribuída a uma maior aproximação com o perfil socioeconômico. Isso não significa uma definição rígida de identidades sexuais, mas tendências que podem ser interpretadas à luz dos marcadores sociais, como a classe e gênero. (Monteiro, 2010, p. 93-94).

A Travestí descrita acima é Meime dos Brilhos e conhecida por não deixar nenhuma “menina” subir ao palco se não estivesse montada de forma impecável: meia calça, maquiagem e perfume. Foi nessa casa importantíssima que o grupo Dzi Croquetes realizou uma de suas primeiras performances, sendo este local um marco na história LGBTQIA+ carioca, mas que atualmente está em Ruinas.

59 http://nossostons.blogspot.com/2011/08/cabaret-casanova-fim-era.html 107

Figura 40:Transformista Meime dos Brilhos performando no palco do Cabaret CasaNova. (Fonte Google Imagens).

O mesmo não aconteceu com outro palco carioca importantissimo por colocar uma grande quantidade de travestis e transformistas em suas instalações: o Teatro Rival. É nesse teatro que, além de ser o primeiro palco em que adentrei com meu cílio-prótese, Vicent Van Goth se revelou entre Hedwig e Ney Matogrosso. O teatro possui um palco e plateia enormes, suas dimensões são consideráveis, sobretudo quando temos uma performer sozinha sobre esse palco, como foi o caso de Vicent. Mas esta dimensão física do palco em nada se equipara à sua dimensão histórica. Um pouco distinto dos ambientes descritos anteriormente, podemos falar da atual cena drag vivenciada no Teatro Rival, mais precisamente no Rival Rebolado, um “cabaré contemporâneo que conta com números de lyp-synch, strip-tease etc.” (FRIQUES, 2018, p. 13). O Rival Rebolado surge com uma proposta de trazer de volta o Teatro de Revista60 à Cinelândia, utilizando números cômicos para brincar com situações políticas da atualidade, mesclados a performances burlescas61 e a um concurso

60 “O teatro de revista originou-se na França, no século XVIII, com o objetivo de revisar acontecimentos, sob um olhar crítico e cômico. A revista alcançou forte popularidade no século XIX, tornando-se um gênero de sucesso mundial em meados desse século. Ela se enquadra dentro da vertente denominada teatro ligeiro, a qual abarcava gêneros de teatro popular que possuíam um ritmo bastante ágil na escrita, com entradas e saídas de personagens, falas curtas entre outros recursos. Assim, no século XIX, com o crescimento urbano e a demanda por novas formas de expressão nas maiores cidades do Ocidente, se desenvolveram diversos gêneros do teatro ligeiro, como: o vaudeville, a mágica, o cafécantante, o music- hall, a comédia musical, a opereta e a revista” (Mariana de Araujo Aguiar, 2012, pg. 01) 61 Segundo Giórgia Conceição (2013, p.17 ), “A burla é a origem etimológica do burlesco. Burlesco é o adjetivo daquilo que burla. A palavra deriva do latim burula, gracejo, piada. A literatura foi a primeira área artística a adotar a palavra, a partir do século XVII. Ao migrar para o campo da performance, a burla 108 de drags que coroa a Rainha da Cinelândia. Os números ocorrem ora no palco, ora na plateia, já que uma das propostas é instaurar uma atmosfera de Cabaret, com direito a mesas móveis, dispostas pelo espaço onde performers e frequentadores se encontram e os garçons servem drinks. Pode-se observar o palco de longe, mas também pode-se pedir uma mesa bem próximo à boca da cena, sublinhando as permeabilidades. O Rival foi um dos primeiros, já na década de 1970, a dar espaço para artistas transformistas, drags e travestis: é um lugar, antes de mais nada, com profunda importância politica e cultural. Assim como na Turma OK e no Cabaret Casanova, transformistas das últimas quatro ou cinco décadas coloriram esse palco muito antes das drags da nova geração carioca nascerem. Mas, diferente da Turma OK, o Rival se manteve como um espaço mais voltado a outras variedades de artes, não sendo, portanto, um clube social voltado apenas para as “artes da noite”. O enfoque do Teatro Rival envolve apresentações cênicas de distintas escalas e estilos. Por vinte anos, entre 1999 e 2019, o espaço recebeu patrocínio da Petrobrás, conseguindo se manter como um local importante da paisagem noturna carioca. Dentre à variedade de shows e espetáculos que ali se ocorrem, houve (e há) inúmeras proposições cênicas ligadas ao transformismo e a artistas LGBTQIA+ em geral. Também no palco do Teatro Rival, assim como em outros palcos do Brasil e da europa, foi realizado o espetáculo Le Circo de La Drag, dirigido pelo jovem diretor Juracy de Oliveira, onde “ancorado no melhor estilo teatro de revista, besteirol e cabaré, nos 50 minutos que se seguem, a peça é inteiramente cantada. Ou melhor dizendo, dublada como um bom show de drag queen” (DAMASCENO, 2018, p 01). O espetáculo busca realizar variadas críticas a situações atuais do Brasil e apropria-se da cultura drag em variados fatores, como a montação e o lipsync.

pode ser usada como estratégia e política de criação, questionando o valor e o significado de identidades. Uma chave de ignição, que permite ao performer exibir a fraude da fixidez identitária, através da reversão de certos efeitos da cultura hegemônica em seu corpo. Explicando de outra maneira: na literatura burlesca, o autor zombava da altivez de heróis, ou enaltecia personagens do povo, provocando distorções e novos olhares aos padrões estabelecidos; mas a dimensão dessa experimentação (paródica, satírica, crítica) passa, então, da escritura de personagens fictícios para os corpos reais de performers.” 109

Figura 41:Cartaz Rival Rebolado. (acervo Teatro Rival).

O palco italiano do Teatro Rival, com suas generosas dimensões e boa estrutura de luz e som, oferece uma acabamento cênico às performatividades drag próxima a de espetáculos teatrais. Nele, passaram as divas Rogéria, Valéria, Marquesa, sendo estas algumas das integrantes do grupo Divinas Divas. Tal grupo caracteriza com exatidão os traços de uma performatividade transformista que roubou a cena em plena ditadura militar, com sucessos arrebatadores em escala internacional. Mas, o que talvez se possa afirmar é que esta geração em torno do que apenas retrospectivamente podemos denominar de Divinas Divas, caso justapostas aos Dzi Croquetes, nos revelam duas performatividades radicalmente distintas: Tem-se, a partir da década de 60, espetáculos no Teatro Rival onde travestis e transgêneros prestam as mais diversas homenagens aos estereótipos de feminilidade, com muito brilho e glamour, respondendo performaticamente à marginalidade de suas existências sociais. Por outro lado, nos anos 70, os integrantes do Dzi Croquetes tratavam de embaralhar as identidades e problematizar as classificações (Friques, 2018, p. 11 ).

Os Dzi Croquetes e as Divinas Divas podem ser considerados como importantes balizas históricas que circunscrevem o que hoje podemos compreender como performatividade drag no Brasil. A igual importância se dá justamente pela diferença conceitual e performática, tanto na vida quanto nos palcos, entre ambos.

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Figura 42:Dzi Croquetes (Fonte Google Imagens).

Sendo assim, os Dzi Croquetes era composto por homens que se travestiam para confundir os gêneros, agregando características mistas, suas maquiagens exageradas e hiper-feminilizadas, que beiram o grotesco, ao serem plasmadas em seus corpos másculos, sendo o grupo composto por homens, cis, gays. Já as Divinas Divas são, em sua maioria, mulheres trans e travestis que reforçam o gênero feminino inclusive no nome. Diferente dos Dzi Croquettes, que fizeram questão em manter Croquettes, e não Croquettas, e agregar o Dzi, fazendo uma referência abrasileirada ao termo Queer:

Afinal de contas, eles estavam travestidos sem serem travestis, em estratégia melhor denominadas de “genderfuck transvestitism”... esta determinação está pouco presente na primeira geração de artistas travestis agrupada sob o rótulo Divinas Divas. Contudo, algo do “estilo epiceno” se manifesta também neste caso, visto que a valorização do imaginário glamoroso da diva – sendo a diva muitas vezes, associada a mulheres que fogem do padrão de feminilidade, incorporando, pois, um traço queer ou camp – traz consigo o exagero, mas também certa duplicidade (Friques, 2018, p. 14).

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Figura 43:Divinas Divas (fonte google imagens).

Ambos os coletivos, Dzi Croquetes e Divinas Divas, podem ser conhecidos a partir de filmes feitos por duas mulheres jovens, filhas de figuras que pertenciam a tais grupos: Leandra Leal, herdeira do Teatro Rival, não só retornou com as Divas aos palcos, mas realizou um documentário sobre a história delas; Tatiana Issa, filha do cenógrafo Américo Issa, levou às telas suas memórias mescladas a relatos de ex- participantes do grupo andrógino.62 Na atualidade, o Teatro Rival tem sido predominantemente ocupado por artistas drag queens da nova cena carioca que, influenciadas por programas de Reality Show de língua inglesa, introduzem uma série de concursos drags que, pela semelhança ao produto de consumo de massa, lotam o teatro e obtêm grande procura de novas artistas da arte do transformismo em seus primeiros anos de carreira. Atualmente, as drags Miami Pink, Ravena Creole e Samara Rios conduzem os concursos Drag Stars e The Queen, sendo essa vertente oriunda da Queens O Concurso, que existiu durante dois anos nas boites TV Bar e Fosfobox, ambos recônditos em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro.

62 Por tanto, ambos os grupos podem ser melhor conhecidos nos filmes documentais Divinas Divas (2016) e Di Croquetes (2009). 112

Figura 44:Cartaz The Queen (Página The Queen no Facebook).

Mas a inspiração principal para tais concursos é nitidamente o programa americando RuPaul’s Drag Race. Muito por conta do programa, pode-se observar que a grande maioria das artistas transformistas dessa geração, assim como eu, possuem um outro palco, uma outra forma de conhecer, se relacionar e apresentar-se como drag: as telas. Assim, O teatro performático do Dzi Croquettes alimenta, desde os anos de 1970, uma produção musical que passou pelos formatos midiáticos tradicionais e no segundo decênio dos anos 2000 ganhou o espaço virtual das redes digitais – tanto em suas performances quanto na sua linguagem (SILVA, 2018, p. 16).

As telas da atualidade nos perseguem em todos os lados, seja na TV, nos nossos computadores, tablets, celulares: nossa vivência cotidiana está repleta delas. Nesse momento, também se tornam amplamente divulgadas as figuras das drag queens, atualmente ocupando não só os palcos das boites, dos clubes e dos teatros, mas também alcançando um papel que já se qualifica como uma figura pop: drag agora é mainstream! Indubitavelmente, um dos fatores principais para tamanha visibilidade da performatividade drag é o programa RuPaul’s Drag Race e seu impacto mundial como um grande impulsionador na arte transformista ao redor do mundo. Não é um exagero dizer que a grande maioria das drags queens da nova geração carioca teve suas primeiras interações com o universo drag a partir do momento em que conheceram e se tornaram fãs do programa estadunidense, consumindo bonecas, documentários, músicas, broches, camisetas, livros, dvds, séries, eventos, videoclips, dentre toda uma 113 gama de produtos e serviços gerados sob a patente RuPaul e vendidos em seu website oficial63.

Figura 45:Capa do site de RuPaul.

O sucesso do programa é tamanho, já tendo sido realizadas 11 temporadas, bem como versões inglesa e tailandesa. O programa também originou uma grande variedade de sub-produtos, como os Untucked, que mostra os bastidores do programa, o já mencionado Drag U, e as versões All Stars, que ocorrem anualmente, com o retorno de ex-participantes, que competem pela coroa de melhor das melhores.64 O programa de RuPaul extrapolou todos os mercados, lançando chocolates, CD´s, músicas autorais e, dentre uma infinidade de produtos comerciais, uma vez ao ano é realizada a feira DragCon em Nova York e Los Angeles, contando com mais de 40.000 participantes em um evento que ocorre por alguns dias, anualmente, em ambas as cidades. Em janeiro de 2020, RuPaul lança seu mais novo empreendimento: a série do Netflix Aj and The Queen.

63 Vide www..com. 64 “A produtora de RPDR World Of Wonders também vem investindo em programas para seu canal no YouTube e mais recentemente para o seu serviço pago de streaming, o WOW Presents Plus. La é possível encontrar programas com drag queens que se destacaram no programa, como , , e Detox” (RIBEIRO, 2019, p. 50). 114

Figura 46:Bonecas Barbie, modelo RuPaul. (acervo google imagens).

RuPaul construiu um império e, assim como a arte drag que saiu dos recônditos das grandes cidades e agora está nas telas ao redor do mundo, a artista também modificou sua montação, dando outros traços para seus aspectos visuais. A drag que, quando jovem, era Club Kid, hoje assemelha sua montação ao de uma mulher branca, loira e de alta classe social. Podemos, portanto, dizer que RuPaul, assim como seu programa “abre mão da narrativa subversiva do camp, adaptando-o a uma demanda consumista” (LANG et al., 2015, p.01 ). As novas tecnologias de informação e de comunicação, com isso, auxiliam as novas drags de diversos modos: fortalecem as comunidades e os interesses comuns, promovem visibilidade, aproximam artistas e público. De modo correlato, é possível encontrar hoje uma quantidade considerável de youtubers trans que realizam sua transição online, compartilhando cada etapa de suas transformações65, e uma infinidade de artistas e jovens LGBTQIA+ em redes digitais. A informação está aí, em uma era em que, com alguns toques, podemos nos comunicar e obter notícias diversas advindas de múltiplas partes do mundo. Mas não haveria um outro lado da moeda? Pois, com a propagação de tal arte nesses novos meios de comunicação e cultura de massa, acontece que a cultura drag-transformista “redimensiona a construção de subjetividades em torno da dita estética camp e reapropria seu quê de subversão política, fazendo das drags, parte da rentável indústria do mainstream” (LANG et. al, 2015, p. 01). Para colocarmos um caminho nessa linha de pensamento proposta, pensemos então que “é impossível fazer uma arte queer sem ir contra o neoliberalismo”, diz Sam Bourcier (2015, p.01), alertando ele sobre o possível antagonismo existente entre o

65 Podemos citar as youtubers Rosa Luz, Mandy Candy e o Luca, do canal Trans Diário. 115 pensamento queer e o pensamento neoliberal66. O risco aqui é o de querer se inserir em uma determinada construção social adequando-se aos modelos já estagnados, o que, ao meu ver, é constatado também com o grande sucesso de programas como RuPaul e a atual fase onde a figura da drag queen permeia o imaginário pop mainstream. “A Drag queen foi elevada ao topo para que se fizesse compreender que a feminilidade é uma performance, uma imitação sem original”, alerta Bourcier (2015, p.01 ) em referência direta aos achados teóricos de Butler. Podemos pensar que, se os atos de desidentificação são executados quando nos apropriamos de elementos renegados a nós para reverter a utilização dos mesmos, o que o sistema neoliberal e capitalista tem feito é justamente o contrário: utilizar a figura da drag, da artista que ascende profissional e financeiramente no mercado, como um exemplo unitário e ideal de ascenção social. Quer o autor atentar para o perigo da cultura queer ser aliada aos ideais neoliberais e de consumo. De fato, a presente pesquisa esbarra nesta tensão colocada por Bourcier: é como se drag, ao apropriar-se da cultura de massa na atualidade, valorizasse mais o ideal neoliberal do “faça você mesma e obtenha sucesso” do que a máxima “seja você mesma e foda-se o CIStema”. Como lidar com este impasse?

Figura 47:Pabllo Vittar estampando a lata e o comercial da Coca-Cola (acervo google imagens).

Como interpretar a presença da Pabllo Vittar67 em uma lata de Coca-Cola ou em um programa dominical na TV aberta? Como equacionar o individualismo meritocrático neoliberal à luta diária por respeito e dignidade da comunidade LGBTQI+? Ao nosso ver, um dos problemas é que a massificação deturpa o caráter questionador e amplia as fatias mercadológicas – o famigerado Pink Money –, gerando mais consumo e menos

66 Neoliberalismo é um termo oriundo dos anos 1980, muito utilizado na economia política e do desenvolvimento para aliar uma certa “reforma de mercado”, porém com uma perspectiva crítica, relalionando-o a expansão do individualismo imbricado por um Capitalimo desenfreado. 67 Pabllo Vittar possui, até o atual momento, cinco milhões de seguidores na rede social Instagram, sendo a drag queen que possui o maior número seguidores de todo o mundo. 116 pensamento crítico que, de fato, questione os processos sociais de abjeção e marginalidade a que estão submetidas esta comunidade. Por um lado, é maravilhoso que todas as performers que adentrem em um reality como RuPaul possam ter sua agenda de trabalhos cheia e conquistem uma respeitabilidade no circuito internacional, divulgando a arte drag por todo o mundo. Por outro lado, esta visibilidade acompanha os desígnios neoliberais: cada performer torna-se uma marca RuPaul a ser exaustivamente divulgada a despeito mesmo das cenas locais. Não à toa, uma das principais críticas, no Brasil e no mundo, não apenas em relação à RuPaul mas à própria teoria queer, é sua colonização cultural, na medida em que ocorre aí um processo de valorização de uma cena primordialmente estadunidense em detrimento das cenas locais. Basta frequentar, e analisar, festas como Priscilla ou Realness68 para dar-se conta de que a grande parte do público que frequenta as mesmas é composta por jovens e adolescentes que não são fãs de drag queens, mas sim de artistas participantes do programa de RuPaul. Eles, na grande maioria das vezes, não conhecem, e nem reconhecem, as artistas locais e sempre comparam as mesmas às participantes do Reality, como se este fosse o único ideal de artista possível. Sendo assim, quando uma tranformista brasileira se recusa a ser rotulada como drag, tal comentário deve ser valorizado enquanto uma tomada de posição geo e biopolítica. Com isso, o risco do lema “love yourself” é ele se tornar apenas uma máxima meritocrática alinhada ao consumo e à produção em série de estilos de vida. É preciso pensar no perigo que existe quando da inserção do sistema heteromativo e capitalista em nossa arte, como alerta Bourcier, falando mais precisamente dos corpos trans e o atual interesse de diversas mídias em agregar histórias e personagens trans (como nas séries americanas Orange is The New Black (2013) e Transparent (2014), e em filmes como Tangerine (2015), ou em produções nacionais na atualidade, como a série Segunda Chamada (2019) e em novelas como A Dona do Pedaço (2019) e Malhação (2018), e diversos outros produtos televisivos ou de serviços streaming) que faz com que essas corpas sofram uma “extração da mais-valia do capital sobre nossos corpos”.69 É preciso, antes de qualquer coisa, pensar que visibilidade não

68 Estas são algumas das festas promovidas no eixo Rio-São Paulo que, com edições temáticas, realizam show de alguma drag que participou de uma edição passada do programa, colocando artistas drags da cena local para trabalharem como Hostess, Mestras de Cerimônia, Djs e Performers, antes, durante e depois do show da artista internacional. 69 BOURCIER, Sam. 2017. p. 177. 117 garante, nem quer dizer, inclusão. Ou seja, há uma assimilação capitalista que não se traduz, de fato, em inclusão social. Como tenho tentado ao longo da pesquisa, precisamos sempre pensar nos processos de desterritorialização. Assim, precisamos lembrar dos lugares de privilégios e de quem está à margem na comunidade. Uma das principais problemáticas do programa de RuPaul é vender apenas uma parcela da possibilidade de uma artista da montação. O programa, que já está no ar há mais de 10 anos, não inclui a pauta trans e sequer almeja ter mulheres cisgêneras competindo, mesmo já existindo mulheres, e outras tipos de corpas que não sejam homem cis, que trabalham como artistas drag queens ao redor do mundo. Em entrevista ao site The Guardian, RuPaul deixou claro que seu programa é feito para homens que se transformam em personagens femininos e que todas as mulheres trans que dele participaram somente realizaram transição de gênero (hormonização e próteses de silicone) após a participação na competição: “Drag perde seu censo de ironia, uma vez que não é o homem que faz isso” (RuPaul, 2018 p. 01) Após grande polêmica gerada pela frase de RuPaul, ela desculpou-se publicamente e, mesmo já tendo passado algumas temporadas do programa, somente agregou a artista Gia Gun, que já tinha participado do Reality antes, mas sem ter feito a transição, para participar de uma temporada All Stars. 70 Como o ideal do programa, como podemos perceber, se afasta dos ideais aqui levantados, tanto pelos estudos queer como pelos feministas, ocorre um apagamento e um silenciamento de fatias da comunidade LGBTQIA+, e também das mulheres em geral. Parece-me interessante a colocação da ex-participante , que, após participar do programa realizou transição de gênero e, hoje, é uma modelo trans. A artista, em entrevistas em sites populares de mídia LGBTQIA+, incluindo Queerty, The Advocate e The Gay Times, assim como em suas contas pessoais de mídia social, ressalta que “o uso da linguagem transfóbica utilizada por RuPaul evidencia os principais valores que invadem os espaços queer.” A modelo chama a atenção para “as conseqüências prejudiciais da recuperação da terminologia pejorativa” (VAN KESSEL, 2016, p. 10). Carrera destaca uma capacidade potencialmente didática de articulações televisionadas de identidades sexuais e de identidade não normativas para desafiar

70 Após convidar , RuPaul também convidou a drag , que participou da temporada 02 do programa, onde, na final, se declara trans, para participar do Holi-Slay Spectacular (especial de natal) em 2018. Sonique foi a primeira mulher a se declarar trans após participação do programa, sendo seguida de Carmen Carrera, Stacy Layne Mathews, Quênia Michaels, Jiggly Caliente, Lashauwn Beyond, Monica Beverly Hilz, Gia Gunn e . 118 estereótipos negativos e promover a inclusão social. Toda sua crítica é oriunda do termo “She Mail71”, utilizado em uma das provas fixas da competição. Assim como o termo apontado por Carrera, uma série de práticas são problematizadas por outras camadas da população LGBTQIA+. Tais camadas, assim como pesquisadoras feministas, alertam sobre o programa de RuPaul auxiliar, de forma problemática, na manutenção de um imaginário social que estigmatiza a população LGBTQIA+ como um todo. Reforçando toda essa contradição do programa, é importante falar que o mesmo propiciou um avanço na arte drag ao redor do mundo. Uma grande variedade de programas, em TV e internet, diretamente inspirado nele como o The Boulet Brothers Dragula (EUA), Academia de Drags (Brasil), The Switch e Versus Drag (Chile), La Mas Draga (México), Queens of Drags (Alemanha), Hause of Drag (Nova Zelândia), dentre outros. Enquanto RuPaul não abre espaço para outras corporalidades diferentes da dele, um homem cisgênero, outros programas estão incorporando outras faixas da comunidade LGBTQIA+ em suas produções, vide os ganhadores de 2018 do The Boulet Brothers Dragula e do Hause of Drags, sendo os dois Drag Kings e o segundo um homem trans.72 Aqui no Rio de Janeiro, tivemos o canal Drag-se, que, diferente dos moldes dos Reality Shows, seguia a vida de 12 drags cariocas, criando conteúdos que iam desde tutorial de maquiagem, entrevistas, programas sobre moda e arte no geral e divulgação da noite drag local. Nesse sentido, podemos compreender que a tela é um dos suportes para a manutenção da arte drag, de distintas formas, na atualidade, fomentando carreiras, compartilhando conhecimentos e remodelando as formas com as quais a sociedade atual adere as imagens das corpas em montação. Agora que caminhamos por uma grande possibilidades de lugares, sendo eles palcos, telas e recônditos, precisamos desterritorializar, reconfigurar a corpa, para uma análise mais específica. Parece-me interessante destacar que, na presente pesquisa, refiro-me, em grande parte, aos espaços na Rio de Janeiro pelas quais eu passei, tomei conhecimento e/ou esbarrei em estudos teóricos que me contemplaram, tendo em conta uma grande gama de espaços e artistas que sequer tive a oportunidade de mencionar. Não tenho a intenção de realizar apagamento histórico ou silencimaneto de nenhuma parte, por isso a necessidade de tal explicitação. Para tanto, busco, em anexo, realizar

71 She Mail, é um termo depreciativo, assim como “Traveco” no Português ou “Okama” em Japones, para definir de forma vexatória Mulheres transgênero. 72 São eles; Landon Cíper (Dragula) e Hugo Grrrl (Haus of Drags). 119 uma listagem englobando mais nomes, tanto de artistas quanto de lugares que, de alguma forma, utilizam e ou se relacionam com a arte, e com corpas, em montação. Por agora, aproximemo-nos ao fim desta montação cartográfica.

120

5 Afrontamento: A Prótese como Defesa.

Figura 48:Ma.Ma. Horn na Lapa. Foto Lucas Gibson.

Ela é amapô de carne e osso, silicone industrial. Navalha na boca, calcinha de fio dental. Linn da Quebrada

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5.1 Navalha: a montação cortante

Figura 49:Obra Bixinhas de Lyz Paraizo. Foto Gabriella Garcia.

A imagem escolhida para abrir esse capítulo final é da obra Bixinhas, da artista Lyz Paraizo. A artista constrói uma série de objetos, alguns intitulados de Jóias Bélicas onde reconfigura o caráter de perigo que os objetos relacionados a corpas trans adquire. Nas palavras de Lustosa (2018, p.01), “é justamente no vestir-se – ou no montar-se – que as possibilidades de vida e morte se deflagram e se alternam.” Faço referência a tal artista por, nesse último momento, entender como os adornos corporais podem reconfigurar um caráter de defesa para as corpas que ousam fugir dos padrões binários de gênero, quando “a imagem aberta por Lyz dialoga com o interdito e o desejo, discutindo sobre questões que estão entre o íntimo fetiche e o público visível, entre o sexo e a autodefesa” (LUSTOSA, 2018, p. 01).

A prótese, diferentemente do cílio, passou a ser intrínseca às minhas montações diárias: são as lâminas. Já desde o primeiro carnaval que saí, sem ser para trabalhar como drag, completamente montada para encontrar uma amiga travesti no centro do Rio e uma multidão de homens me cercaram em atitude suspeita, passei a sempre caminhar com faca, garfo, às vezes até ficar de olho nas garrafas de cerveja pelas ruas. Pois, se alguém se aproxima, eu agarro ela pela parte mais fina, tasco em qualquer superfície e fico com um gargalo roto para me defender. A Gilete foi muito popularizada em associação com as travestis que trabalham nas zonas de prostituição, pois algumas se cortam para não serem presas, ou levam gilete dentro da boca para se defenderem na prisão: é tática de guerra meu amor! 122

Já nesse primeiro carnaval que me montei, inclusive com a prótese-navalha, conheci, numa pista de dança no centro do Rio, a estudante Matheusa Passarelli, que, um ano após essa noite, morre esquartejada em uma favela.

Figura 50:Mateusa Passarelli (acervo google imagens).

Alguns meses depois deste carnaval, participei de um concurso no Teatro Net Rio, em Copacabana. Apesar de ter ganhado o mesmo, quase não tive como chegar: um homem foi impunemente baleado na janela do meu quarto, deixando minha porta com 32 furos de bala, a janela arrombada e minha parede toda suja de sangue. Foi nesse mesmo dia que a polícia lançou uma bomba na porta da minha casa, fazendo com que eu perdesse meu antigo computador e quase não tivesse como realizar esses escritos que agora chegam aos seus olhos-prótese-cílios.

Figura 51: Marielle Franco (acervo google imagens).

No dia que participei, e ganhei, o concurso do Net Rio, conheço pessoalmente a jurada do evento: Marielle Franco. Além dessa noite ter sido muito acolhedora, pois, antes de chegar para me apresentar, ocorreu isso que eu acabo de contar, no teatro, a vereadora e socióloga me abraçou carinhosamente e se divertiu muito com minha 123 apresentação. Dali a alguns meses, recebo a fatídica notícia de que ela e seu motorista haviam sido assassinados, tendo ela levado três tiros. A investigação para encontrar os assassinos dura anos, com algumas indicações de que o atual governo ligado à extrema direita está completamente envolvido no caso, pois o nosso Estado legitima a violência. Não tem sido fácil entender isso na pele, quando sua arte lhe atravessa e você passa a encontrar o seu corpo cada vez mais feminino, deixando de lado os variados privilégios que a aparência masculina traziam para essa corpa. A maquinaria social é treinada para caçar qualquer corpa que esteja, de alguma forma, longe do ideal do macho-branco- cisgênero.

Se escrevo de forma rápida e atroz esse último capítulo, é porque. nesse momento da pesquisa, minha corpa compreendeu que a urgência por sobreviver nos torna ligeiras, flanêuses perversas, como que treinadas para se defender publicamente por meio de nossas montações cortantes:

Espancamentos públicos, omissão médica, espetacularização das mortes, naturalização da extinção social, genocídios, processo de exclusão e violência sistêmica formam parte da vida diária de muitas pessoas trans, assim como sapatonas, bichas e outras corpas dissidentes sexuais e desobedientes de gênero, especialmente as racializadas e empobrecidas [...] Reditribuição da violência é uma demanda prática quando estamos morrendo sozinhas e sem nenhum tipo de reparação seja do Estado, seja da sociedade organizada. Redistribuição da violência é um projeto de justiça social em pleno estado de emergência e deve ser performada por aquelas para quem a paz nunca foi uma opção (Mombaça, 2016, p. 09-10). Se concluo esses escritos trazendo sangue e fúria a este documento, é porque a minha performatividade, que é onde se friccionam minha arte e minha vida, está sempre no limite da defesa, do medo, da não humanidade. A violência vivida nas nossas corpas são engendradas e tão fortemente acionadas, assim como a prótese-gênero que é acoplada de forma compulsória quando ainda somos bebês. Nesse sentido, os gritos de “Bicha!” que minha pequena corpa infantil ouvia antes de sequer imaginar possuir o privilégio de pisar numa academia, foram como treinamentos para o que hoje tenho sofrido de forma sórdida e cruel.

Mencionando a palavra treinamento, se torna urgente, nesse capítulo, mencionar o grupo Piranhas Team, sediado no bairro da Lapa, onde a população LGBTQIA+ pode contar com aulas de artes marciais, para melhor se defenderem na urbes cortante. Após 124 encontrar-se como corpa, é preciso mante-la, sustenta-la, treiná-la, as ruas são hostis a corpas que fujam da cisheteronomatividade compulsória73.

Pois voltando ao estado de guerra instaurado nos arredores da minha casa, após estar impossibilitada de continuar os estudos do Mestrado, pela prótese-bomba que danificou minha computador-prótese, saio da Favela da Rocinha, em uma noite de Domingo, para fazer uma apresentação em uma boate. Calcinha, sutian, maquiagem básica. Cabelo preso, um blusão, e as próteses masculinas suavizam a bio-drag escondida para ir fazer seu acué.74 A violência engendrada pelo Estado avança na entrada da favela, assim como eu avanço para sair. Essa corpa cuir desemboca em uma viela escura, onde uma quantidade de, mais ou menos, vinte homens camuflados invade, não só a rua sem saída, como todos os orifícios da minha corpa. Aí, eles utilizam suas armas fálicas de guerra para que a espetacularização das violências injetadas em minha corpa aumentasse o status de homens provedores do bem e que podem, e devem, maltratar as corpas que ousam desacatar as próteses estatais. A prótese-sangue, a prótese-dor, a prótese-ódio, têm sido então onde tenho encontrado acalanto para ser artista, para buscar as referências aqui descritas e para alcançar o título de Mestra.

Porém, a prótese-navalha que comecei a utilizar perfurou não só o gênero que me prendia com poderosas amarras: “eu gostaria de dizer: nós vamos penetrar suas famílias, bagunçar suas genealogias e dar cabo de suas ficções de linhagem.” (Mombaça, 2016, p.11 ). A ordem agora é se auto-cuidar. A desidentificação, como um caráter mais pessoal, e a desterritorialização, de forma coletiva, me fizeram, e estão me fazendo, repensar as táticas para poder circular pela urbes e pelos espaços de poder. A escrita tortuosa e não reveladora dessa dissertação diz muito sobre isso: nós não vamos ajudar na nossa catalogação! Isso aqui não é só uma dissertação sobre montação e montação é também armadura de guerra, “isso é uma barricada!” (Mombaça, 2016, p.16 ).

Não tem como concluir apenas de forma acadêmica e formal, não tem como apenas concluir, não tem como. Por isso me comprometo a “bagunçar a lógica de seu

73 “Heteronormatividade ou Heterosexualidade Compulsoria. Crença na heterossexualidade como característica do ser humano “normal”. Desse modo, qualquer pessoa que saia desse padrão é considerada fora da norma, o que justificaria sua marginalização” ( de Jesus, 2012, p. 30) sendo assim, acrescento o prefixo cis a palavra heteronormatividade para juntar as questões de gênero e não só de sexualidade que a nossa sociedade coloca como regra a ser seguida. 74 Acué, no Pajubá, significa Dinheiro. 125 privilégio, intensificar suas crises e desmontar sua ontologia dominante e controladora” (Mombaça, 2016), pois essa corpa, que tem se moldado a seu próprio modo, não busca apenas obter conhecimento da instituição de ensino. Ela busca apropriar-se das técnicas que, por séculos, foram negadas às minhas ancestrais. Busca um diálogo horizontal, busca dissertar sobre, conversar. Mas tal pesquisa se faz potente quando minha corpa ocupa esse lugar contraditório e se interroga: onde estavam as travestis quando os muros que cerceiam tal instituição se moldava? Onde estão as corpas trans e transvestigeneres na bibliografia, na biblioteca, na sala de professores, na sala de aula?

Ainda somos minorias nesse campo do saber, então minha corpa não pode negar a contradição desse espaço na construção desta dissertação. Nesse momento, sinto que sou eu a flaneuse perversa que adentra e subverte a norma criada por e para pessoas cisgêneras e abala as estruturas de poder. Não sei as regras, confundo a ABNT, assim como confundo-me com a queda de testosterona presente em meu corpo feminino que há pouco descobriu-se estar em construção e por se fazer. Nesse processo, torna-se interessante ressaltar que falar na primeira pessoa nunca foi uma busca de um grito de enunciação pessoal, mas a descoberta de um grito que evoca outres, do antes e do agora, provocando os muros mórbidos da academia a repensarem seus saberes assim como pensamos e remontamos nossas corpas e nossas trajetórias. As nossas histórias, assim como o ensino formal, também podem se auto-questionarem, darem um salto (alto) na produção de conhecimento. Elas podem entender suas potências, criando referências para futuras gerações e ocupando esses espaços de conhecimento e de poder que por séculos nos foram, e ainda o são, negados.

Se o cílio surgiu, no início desse meu processo pessoal, e nas páginas dessa dissertação, como um simples elemento de montação para um corpo cuir, a navalha vem para encerrar e potencializar esses escritos, rasgando de forma ativa e propositiva essas páginas que, assim como nossas corpas, se veem manchadas do sangue de quem ousa ocupar, o seu corpo e a urbes, de maneiras não normativas. As corpas perversas que, utilizando de uma grande variedade de próteses corporais, adentram processos de desidentificações para desterritorializarem suas artes, suas vidas e seus afetos.

Torna-se necessário afirmar que a montação na cena carioca, assim como no mundo, nunca cessou e nunca terminará. Seja nos recônditos de um apartamento ou nos vídeo do Youtube, nas vielas de uma favela precarizada ou nos palcos das principais 126 casas de espetáculo, ela se faz e se refaz. Seja no adorno delicado ou na prótese que perfura e pode matar, seja por montações efêmeras, ou com procedimentos que também adentram e/ou aderem os contornos da epiderme, continuarei me remontando, (des)identificando, descamando, ou melhor, sobrepondo para revelar, metamorfoseando-me para me ocupar.

A montação nunca para.

É devir bicha travesty, devenir non binary, mastigar o queer – acuendá-lo – e vomitar como Cuir.

Ressignificar o corpo, a cidade e a escrita, para existir.

É fazer-se Mestra, para ocupar e resistir.

Ocupemos e montemos! OcupoMontemos.

Evoé!

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Esse trabalho passa por minha corpa e por essa escrita, mas não começa aqui e nem termina nele, pois “por que deveriam nossos corpos finalizar na pele?”

Dona Haraway

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134

Anexo 01 Instruções para abrir a dissertação com a prótese cortante

Ou

Como realizar uma montação dissertativa

Em suas mãos, uma dissertação.

Dissertações sobre as minhas e tantas outras práticas de Montação.

Envoltas por um invólucro presente na urbes, na mesma onde se dá a cena descrita nas páginas dissertativas. Envoltas por tapume laranja.

Para perfurar o invólucro e ter acesso aos pensamentos transcritos, é preciso que se utilize também da mesma montação que me fez construir tal investigação, um procedimento que vai do cílio á navalha.

Primeiramente utilize um pouco de cola de cílios, caso não possua, qualquer tipo de cola serve, mas vá com parcimónia, pois os cílios que lhe presenteio já possuem um pouco de cola em sua superfície a ser acoplada em seus olhos. Lembrando que será necessário utilizar os mesmos para uma experiência mais completa e relacional com o conteúdo que irá ler, e, ao longo do mesmo, você irá entender.

Em segundo lugar, tome a navalha-faca como um objeto seu. Essa navalha poderia ser construída com qualquer objeto cortante manufaturado, o importante é conseguir perfurar os obstáculos que são construídos pela cidade e que impedem com que você conclua seus objetivos. Rasgue o invólucro laranja sem parcimônia.

Pronto, agora com seus longos cílios acopladas em seus olhos e com o objeto cortante ao seu lado, a leitura desta tessitura dissertativa pode ser absorvida por sua corpa- montada.

Bem vinda!

Ass: Ma.Ma. Horn 135

Nota – A presente dissertação foi entregue para a banca de defesa envolta por um tapume laranja. Junto com a dissertação envolta por tal objeto, cada professor(a/e) constituinte da banca recebeu uma caixa com um par de cílios Love Mistakes 3001 e uma faca. Os cílios Love Mistakes 3001 são confeccionados à mão e feitos de papel pelas drag queens Maybe Love e Linda Mistakes.

136

Anexo 02 Contrato Contrassexual75

Eu, voluntaria e corporalmente, renuncio a minha condição de Homem ou de Mulher, a todo privilegio social, econômico e patrimonial e a toda obrigação social, econômica e reprodutiva derivados de minha condição sexual e em um sistema centrado na heteronormatividade. Me reconheço e reconheço os outros como corpos falantes e aceito de pleno consentimento não manter relações sexuais naturalizantes, nem estabelecer relações sexuais fora de contratos pré estabelecidos temporalmente.

Me reconheço como trabalhador do cú. Renuncio a todos os laços de filiação, maritais ou parentais, que me são impostos pela sociedade heterocentrada, assim como aos privilegios e obrigações que eles derivam. Renuncio a todos os meus direitos de propriedade sobre meus fluidos sexuais ou produções do meu útero. Reconheço meu direito a usar minhas células reprodutivas unicamente quando haja um contrato livre e consensual, e renuncio a todos meus direitos de propriedade sobre os corpos falantes gerado pelo ato da reprodução.

Ass:______

Data: 23 / 12 / 2019

75 Escrito por Paul B. Preciado, no livro Manifesto ContraSexual. Tradução Minha. 137

Anexo 03

Discurso de Cerimônia da nova e já sempre mestra

(TRANS)Formada

Discurso de empoderamento de uma pessoa em não conformidade com o gênero, com a arte, com a academia, porem negociando sua estância em todas essas instituições contraditórias.

Um dia fui Bixa

Certa noite Transformista

Hoje Travestigênere da lambada esquerdista

Designada homem

Criança Viada pobre que não consome

Transformista nos palcos, (TRANS)Formada na vida (na pista transfobica e perigosa pela violência dos homens)

Drag Queen de profissão

Artista da Confusão

Acadêmica pela persistência na Disertação

Burlesca por Burlar

Atriz por atuante atuar

Performer pelo gênero destruir e rePerformar

(não de acordo aos padrões que lhe foram impostos ao nascer-estrear)

Militante do Cú, pois acredita que, cada um tendo o seu, faz com ele o que mais lhe prouver.

Pelas minhas deusas dou axé, meio latina meio , corro pra fazer meu acué, com a navalha afiada pra quem ousar pisar no meu pé

138

Com afeto

Com talento

Com amor não romântico e

Com muita raiva pelo padrão hipocrita e contraditório imposto;Decreto que aceito o canudo e concedo a instituição da contradição meu aval para me ter em sua relação.

Enfim mestra (assim sempre fomos umas das outras) agradesco minha ancestralidade e pela por mim outorgada, outorGata, decisão;

prometo seguir com a prática da montação.

Com humor e rancor, ( braveza, glamour e deboche porque não? );

Ma.Ma. Horn.

139

Anexo 04

Sob a Luz do Sexo do Meio: Crítica do espetáculo “MDLSX”

Arrancar as vogais do título da obra, deixar poroso o título, assim como todo o trabalho em questão. Permitir que o espectador esteja em atitude ativa ao tentar construir o título da performance, além de enxergar toda a complexidade mostrada por uma luz que revela, velando a cena obscura, catártica, que alia a performance à dramaturgia oriunda da vida revelada. MDLSX se mostra uma obra potente justamente nas suas fragilidades: o caminho / sexo do meio, o meio termo, o estar presente na ausência do corpo real. Não diria ausência na verdade, pois o corpo da performer se dá à ação de forma vigorosa, e nunca virtuosa, na frente do espectador, porém ele é enrijecido por uma timidez potente e uma doce agressividade, ao mesclar caracteres de ambos os sexos. Na verdade, é preciso compreender que não existem apenas dois sexos e o corpo da própria performer comprova isso, sendo ela uma pessoa intersexo, possuindo em sua biologia caracteres dos sexos tidos como feminino e masculino. Além de sua condição biológica, a artista possui uma performatividade andrógena, não binária e que quebra os padrões estabelecidos socialmente com relação ao gênero e também à sexualidade, sendo abertamente uma pessoa pansexual. Em meio a uma sociedade que nos padroniza como apenas Homens ou Mulheres, o corpo cênico de Silvia Calderoni joga luz a uma corporeidade obscura, no sentido de invisibilizada socialmente, e ali, no palco, ela ganha luz e potência ao ser tensionada durante as horas do espetáculo. A música, aliada à cenografia e a todo o aparato utilizado cenicamente, mesclam caracteres contemporâneos, midiáticos, joviais e da cultura pop. Nada é revelado de forma trivial num espaço onde a potência criativa é debochada, forte, pulsante e acelerada. O público, disposto no espaço da arena do Sesc de Copacabana, não se enxerga, pois a luz de serviço só é acessa em um único momento onde a atriz cria uma espécie de calda e se TRANSforma em sereia. A luz se acende e ela olha diretamente em nossos olhos, revestida por um corpo-pele que não tem gênero definido: é um tronco andrógino que possui uma calda improvisada. Ao revelar, de forma explícita, a sua genitália, uma luz infravermelha (na verdade verde) corta o seu corpo ao meio e, da região genital, ela expele, comprime, um jato de laquê. Seu órgão genital é revelado, mas não o enxergamos por completo, assim como a performer brinca em todos os 140 momentos cênicos. Uma câmera é utilizada ao vivo, revelando no telão uma boca que grita, um dedo que aponta, um mamilo que ressalta em um corpo magro, frágil, porém potente e anárquico. Essa história é sua? É real? A dramaturgia do espetáculo é criada, construída, ou embasada na realidade da vida da artista e dos que a cercam? Essas perguntas permeiam o pensamento dos espectadores que buscam enxergar a cena na realidade e/ou a vida real que transborda nos textos e nas imagens visualizadas cenicamente. Esse caráter documental, diria ainda HiperRealista da cena de MDLSX, cativa o espectador e o transborda para o universo que se vive para fora do teatro. No nosso país, foram registrados mais de 604 casos de mortes de travestis e transexuais nos últimos seis anos, de acordo com pesquisa da TRANSGENDER EUROPE (os MIDLE SEX vivem à margem da sociedade, lutando para serem enxergados e possuírem direitos básicos, intrínsecos a qualquer ser humano, como obtenção de seus nomes sociais e acesso a trabalho e educação). Retomando o caráter visual da performance MDLSX, podemos refletir sobre esta cena que utiliza de diversos aparatos, como câmera ao vivo, música e voz em off, mas que não preza por um virtuosismo da performer em questão. Tais aparatos não servem como um suporte para que a atriz seja protagonista da cena, mas ajudam a desvelar uma performance que busca interagir com o público revelando diversos níveis de interpretações e interações com a plateia disposta no espaço de trabalho. Nós, o público, somos colocados frente a um corpo que se metamorfoseia em sereia, em HomemMulher barbado(a), que vivencia esse caminho do meio buscando sua REexistência e, diria mais, deflagrando sua essência em um jogo cênico de potente vigor. Um Orlando pós moderno, citando a obra de Virginia Woolf. Se Orlan ou Cindy Sherman utilizam de aparatos e aplicativos para realizarem o que Deleuze chamaria de devir, Silvia Calderoni utiliza da ausência de aparatos / aplicativos corporais. Ela se despe e apaga / mantém a luz mínima do teatro, para nos deixar curiosos, buscando enxergar seus corpo-devir em diversas metamorfoses e investigar essa TRANSformação performada, e vivenciada, no espetáculo em questão. O que nos é revelado é um caminho com pouca luz, um título sem as vogais e um dispositivo cênico onde, sempre, devemos enxergar o que está pelo meio, o que se faz e refaz a cada instante, seja na cena realizada ou na vida lá fora: corpos pulsantes, dançantes e performativos, que gritam por um lugar, por serem aceitos e enxergados em 141 uma sociedade em TRANSformação, evolução. Corpos falantes, segundo Preciado, Corpos Sem Orgãos (CsO), segundo Deleuze. Apenas Corpos! Luz e Ação!

NOTA: Escrito realizado a partir da apresentação de MDLSX no festival “Atos de Fala” em 2016 no Teatro de Arena do Sesc de Copacabana. MDLSX é um espetáculo italiano da cia Motus, com atuação de Silvia Calderoni, direção de Enrico Casagrande e Daniela Nicoló, dramaturgia de Daniela Nicoló e Silvia Calderoni. A crítica foi realizada como trabalho de conclusão da oficina “Crítica das Artes da Cena”, com Daniela Ávila Small na Sede das Cias, Lapa – RJ, em maio de 2016.

142

Anexo 05

Cátalogo com nomes de variadas corpas que, de alguma forma ou em algum momento em suas vidas, utilizaram-se da arte da montação.

CORPOS FALANTES

A

A Dita, Alla, Alexandre Zeus, Alexia Rochard, Alessandra Vargas, Aloma Divina, Alma Negrot, Amber, Andreia Andrew, Andrea Gaspareli, Akyza, Aura Loli, Aurora Borealis, Aurora Black, Aretha Sadick, Athena Sparks, Aretuza Lovi, Atafona Beach, Azre, Ana Djumanaz, Ana Marddox, Átila Bezerra, Antártica Latão, April J Real, aMistik, Alva, Anja, Ayla Moon, Alicia Brocchi, As Bafônicas, As Coachelas, Azazel Acabou Forçando a Barra, Angelica Ravache, Ártemis Anais, Ava Simões,

B

Babalu Vendraminy, Barbarella Schneider, Bacia, Barvara Pah, Betina Poraloid, Babalu Vendraminy, Bu!woman, Bee Chá Eder, BoomBoom Chernobyl, Barbara Thunder, Bixa Canibal, Brilha La Luna, Brigitte de Búzios, Bruna Pitter , Brunella D’Esteffano, Blogueirinha de Merda, Bruna Dapeaux, Black Haddid, Briana

C

Camel, Caio Riscado, Camille K, Cassie Lahan, Carmen Laveau, Chloe Van Dame, Charlie Wayne, Cleo Azure, Cookie Pisca, Chup Chups, Cupcake Fatale, Clô, Cloven Femme, Ci7 Carolaine, Co Kendrah, Candice Petrova, Conga Bombréia, Cheyenne Velásquez, Celine Mazza, Claudia Celeste, Claudia Pantera, Camile K. , Claudette Colbert, Cindy Sunshine,

D 143

Danna, Dandara Dako Bley, Dandara Vital, Danny D’Avalon, Danuza Meio Mundo,Danjah Patra, Dappes, Dichava Beck, Diva More, Dianelly Braga, Diamond Albuquerque, Dominique Lamarque, Dominique Laurence, Dalie Thernick, Distortia, Dinna Nova, Delirious Fênix, Denise Thainá, Desiree, Diziky, Donatella, Diana Finsk, Denise Born, Debora Reis, Dolores del Rio, Denise Taynáh.

E

Ebony Monstro, Efêmera, Eloy, Eula Rochard, Erica Barreto, Erica Vogue, Eclipse de La Luna, Elayne Parker, Ellie Saad, Ella Goddeé, Emma Richter, Emmie Reek, Enigma Bley, Eloah Schiffer, Eva T. Vênus, Elektra Drag, Eloína, Elaine Parker, Erica Barreto,

F

Fabiany Carraro, Fabiola Flores, Fabiola Fontenelle, Flávia Ferraz, Fhelycia Boisier, Ferrula Muniz, Fujica de Holliday, Fúria, Fox Goulart, Fleur Theodora,

G

Gaby Rodin, Gaia, Gargantua Garona Blow, Gaya, Galba Gogoia, Gui Mauad, Gaby Monclair, Georgette de La Cruz,Gilka Dantas, Grazielle Freitas, Gisele Almodovar, Gatinha.

H

Hannah Suzart, Harlene Dufrayer, Hellena Borgys, Hellen Christine, Holly Berdache, Hyuna Paul,

I

Isabelita dos Patins, Isis Amígdala, Ira de Furstemberg, Iryna Leblon, Irmãos Brasil. 144

J

Jane di Castro, Johnny Pink, Jazz K, Jennifer L’amour, Jujubah Real, Jupter, Julie Sparks, Juju Palito, Jenifer de Martini, Juju Palito, Jeniffer Di Martini, João Olú.

K

Katlen Hanner, Karla Thompson, Karina Karão, Karina Bley, Kay, Katrevosa, Kiarah Pucca, Kamila MecBee, Kasha Lotte, Katya Fonseca, Katya Jones, Katucha Brown,Karoline Absinto, Kenda Barbie, Krystal Havashi, Kennyah Smith, Kitana Dreans, Kukita Rinaldi, Karla Von Zeller.

L

Ladiva Moon, Lady Bynydyctha, Lalesca de Paula, Lana Volkman, Laura Alecsander, Laura de Vison, Linn da Quebrada, Linn Falcão, Lyz Paraiso, Laquisha More, Lili Bitch, Lili Carabina, Lua Drag, Luna The Witch,Luna Quartz, Lashonda, Lótus, Lidia Bombom, Layla Riker, Leôncia (Flávia Coutinho), Lola Swan, Lemon Wednesday, Lana Morgana, Lavinia Weirdo, Linda Mistakis, Latisha Samedi, Luara Lutero, Leticia H Collyver, Lolla Liaison, LordTallent,Lorna Washington, Loyal Alig, , Luiza Gasparelly, Lorrayne Lovely, Lorena ravache, Luana Muniz, Leo Paixão, Leda Camargo, Luanda Guerpe,Loretta Yang, Lola Montese, llona de Martini, Loretha Yang, Lolla Froot, Luana Muniz.

M

Mabel, Matheusa, Madame Satan, Ma.Ma. Horn, Madeleine Katherine Pinaud, Malu Pinheiro, Mayara Riker, Marcia Anderson, Marcela Wenanck, Marcela Salorran, Magenta Darwin, Marcela Kyanello, Maria Paju, Maybe Love, Marquesa, Magaly Penélope, Martha, Melina Bley, Mia Moon,Miami Pink, Melania, Mancha Ta’Blur, Mady Beeong, Madalena Langon, Maria Madalena, Manalu, Mirana, Madame Belial, 145

Miranda Lebrão, Meime dos Brilhos, Mulher Pepita, Melissa Lorange, MC Trans, Melissa Banks, Megan Drag, Múmia, Miranda Ravache, Metilla Sparks, Milena Cornish, Mikaela Mendy, Myka, Mimosa Kerr, Memea Muller, Michelle Nascimento, Melba Aways, Mulher Pepita, Mikaella Pitt, Medusa Pandemonium, Modulor, Mozie,

N

Naná Stwart,Natacha, Nando Brandão, Nani Brilhosa, Natasha Fierce, Nataliya Goncharova, Nebraska Andrômedah, Nlara Blck Simas, Noah Berklyn, Naja Moon, Neptun, Naiola Sanchez, Núbia Pinheiro, Nuvem, Nuno Deam, Nina Bronx, Nêmesis, Nix Fajute. Norma Solan,, Nepopó, Nico, Nix Fajute,

O

Old, Organzza, Onirica, Olivia Gold, Olga Dantelly, Ohana Azalee, Overdose Drag, Onira Black, Ororo Ivy.

P

Pace, Paula Braga Della, Palloma Maremoto, Palloma Velasquez, Pamela Star, Pandora Yume,Paula Goodarth, Paulette Godar ,Paolla Bercklin, Paola Moretto, Paola Strass,Paulette Show, Patricia Saint Laurent, Pamela Star, Pepéia, Poseidon Pussy, Psy Odara, Pedro Creole, Pepita Pe Pew, Perola Negra, Perola Fenix, Pitón Pitoniza, Petula, Petruska Vonzeller, Pata, Paulete, Perfeita, Piton Niza.

Q

R 146

Rani Bong, Rainha Favelada, Ravena Creole, Regine DiMônaco,Rebecca Bley Bleyde, Rubia Conchita de la Chota, Rebeca Fox, Roberta Di Summer, Ravanna Banks, Rogéria., Rose BomBom, Rose Christine, Rudy Pinho, Oberta D’Summer,

S

Samantha Alucardd, Samile Cunha, Samara Rios,Safira O’Hara, Suzy Brasil, Suzy Parker, Sara & Nina, Sarah Jordan, Scarllet, Shaniqua, She-He Menine, Sia & Mesa, Shandra, Silver Moon, Sky Prinsloo, Sophie Leah, Shena Meneguel, Scovino, Sodoma, Sky Drag, Sophia Mel, Solaria Gael, Stacy Malibu, Sthefany Camburão, Shannon Skarllet, Sasha Fierce, Sasha Vegas, Sissy Diamond, Sindy Sunshine, Santelly Monti, Scotus, Sasha Blanc, Savvana Real, Sill, Sirena Signus, Sophia Monroe, Sula Lastorini, Silinha, Sky Drag,

T

Taiana de Martini, Tatyane Braz, Tiaro, Tbengston, Thaylla Myller, Tamara Taylor, Tati, Tee G.I. Friday, The Monia, Thizy Nebulosa, Troya, Theodora Fleur, Tina Max, Thamy la Close., Tula Morgani, Titi Taylor, The Kings,

U

Uhura BQueer, Uma, Úrsula Mon-Amour,

V

Vaca Cornélia (Cornélia Flowers), Valéria, Vanessa Cardin, Vanubia Close, Velma Real, Vicent Van Goth, Veluma, Verona West Glam, Vina Gretchen, Vitóri Titan, Vitoria Black, Vick Diamond, Stradwarious, Vera Verão, Vovó Mafalda, Viviane Walker, Vick L’amour, Ventura Profana, Virginia Flores, Volupia,

147

W

Waleska Raymond, Wanda Camburão, Watusi, W Queer, Wiggy Nova, Wendel Candido, Watusi, Wala Capebolo.

X

Xaxu,

Y

Yan Chi, Yanka, Yasmin Bahls, Yasmin Oliveira, Yoncé Rinally, Yone Karr, Ylon de Martini, Yone Karr, Ylona Di Martini, Yeda Brown,

Z

Zafira Levine, Zâmbia,

148

Anexo 06

Cátalogo com nomes de variados territórios que, de alguma forma comportaram corpos e corpas que utilizavam da arte da montação.

(Des)Territórios

A

Auê House, Angels, Aquelas Gazelas, Amigas e Rivais, As Flamingas, Alfredão.

B

Barbrela, Bar Boêmio, Bar Flôr do André, Bar do Hélio, Buraco da Lacraia, Beco das Garrafas, Biblioteca Parque da Rocinha, Balança Mas Não Cai, Bar do Kotoko, Bunker, Boite 1140, Bixcoito Drag Festival, Best Bar, Butterfly, Bukowski, Andorinhas, Boate Encontros, Boate Encantos.

C

Cabaret Casa Nova, Cabaré Cascadura, Cabaré Diferentão, Cabaré MM, Casa Maremoto, Circo Voador, CAL – Casa das Artes de Laranjeiras, Cais da Imperatriz, Casa de Baco, Castelinho do Flamengo, Cine Jóia, Candy Party, Combaty, Cineclube LGBT+, Cine Odeon, Comuna, Caixa Preta, Castle of Vibe, Coletivo Drag-se, Clube da Pinta, Clube do Batom, Club 177, Casa da Matriz, Cine Ideal, Casa Club, Cineclube Buraco do Getúlio, Chove Lá, Casa Sapucaia.

D 149

Drag Sunset, Drag Star, Draglícia, Dama de Ferro,

E

Emoções da Rocinha, Escandinavia, Espaço Franklin, Éden, Escola de Teatro Martins Penna, Eletric / Campo Grande, Eletric / Nova Iguaçu, Eros, Espaço Fênix,

F

Fancy, Fosfobox, Fundição Progresso, Fênix, Flôrida,

G

GDN, Galeria Café, Gaivota, Galeria Alaska, Galpão Gamboa,

H

Hollywood Club,

I

Incontrus,

J

Juliu’s Bar,

L

La Cueva, La Paz Club, Le Boy, La Chichiolina, Le Circo de la Drag, 150

M

Mona, Morta, Mostra Bosque PUC de Artes Cênicas, Manouche, Mara, Closedale, Malagueta,

N

New Meio Mundo, New Frenzy, Sinônimo, Novo Romance

O

Open Bitch, Os Boêmios.

P

Papa G, Pink Flamingo, Priscila, Pipper, Point 202, Praça dos Direitos Humanos, Piratas de Gênero,

Q

Queen, Queens – o concurso, Queen – a nova cena drag, Quiosque Rainbow, Quiosque Bambu, Quarta Gay

R

Realness, Rebola, Reduto,

S 151

Sal e Pimenta, Sarau Vamos Falar de Coisa Boa, Site Club, Simpatia, Sarau do Escritório, Scala,

T

Turma OK, Teatro Rival, Teatro Oscar Nyemeier, Teatro Cacilda Becker, The Week, Theatro Net Rio, The Place, TV Bar, Teatro Poeira, The Tribal, Terça Trans.

U

Uni-Rio, UFRJ, UFF, Up Turn,

V

Vidigal Show, Vogue GLS, Vollupya, V de Viadão,

W

X

Y

Z