<<

dossiê iphan 4 { de Roda do Recôncavo Baiano } img dossiê iphan 4 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } imagem “O samba é a vida, é a alma, é a alegria da gente (...) lhe digo, eu estou com as pernas travadas de reumatismo, a pressão circulando, a coluna também, mas quando toca o pinicado do samba eu acho que eu fico boa, eu sambo, pareço uma menina de 15 anos.”

Dalva Damiana de Freitas, Cachoeira/BA Presidente da República Instrução Técnica e Elaboração do dossiê Edição do Dossiê Luiz Inácio Lula da Silva para Registro do Samba de Roda EDIÇÃO DE TEXTO Ministro da Cultura SUPERVISÃO TÉCNICA Carlos Sandroni Moreira Departamento de Patrimõnio Imaterial Marcia Sant’Anna Ana Gita de Oliveira Presidente do Iphan Marcia Sant’Anna REVISÃO DE TEXTO Luiz Fernando de Almeida Graça Mendes COORDENADOR DE PESQUISA Luiz Henrique de Azevêdo Borges Chefe de Gabinete Carlos Sandroni Rívia Ryker Bandeira de Alencar Aloísio Guapindaya Sérgio de Sá EQUIPE DE PESQUISA ProcuradorA-chefe federal Ari Lima ELABORAÇÃO DOS ANEXOS Tereza Beatriz da Rosa Miguel Francisca Marques Luiz Henrique de Azevêdo Borges Josias Pires Rívia Ryker Bandeira de Alencar Diretora de patrimônio imaterial Katharina Döring Márcia Sant’Anna Suzana Martins PROJETO GRÁFICO Victor Burton Diretor de patrimônio material ASSISTENTE DE COORDENAÇÃO e fiscalização Alessandra Leão DIAGRAMAÇÃO Dalmo Vieira Filho Pedro Ivo Oliveira Diretor de Museus FOTOGRAFIAS e centros culturais José do Nascimento Junior Luiz Santos Jean Jaulbert Diretora de planejamento Gilberto Sena e administração Márcio Vianna Maria Emília Nascimento Santos Pedro Ivo Oliveira

Coordenadora-geral de pesquisa, PARTITURAS documentação e referência Ralph Cole Waddey Lia Motta Carlos Sandroni Lucia Helena Cysneiros Coordenador-Geral de promoção do patrimônio cultural João Gonçalves

Superintendente Regional na Bahia Eugênio de Ávila Lins

Instituto do patrimônio histórico e artístico nacional SBN Quadra 2 Bloco F Edifício Central Brasília Cep: 70040-904 Brasília-DF Telefones: (61) 3414.6176, 3414.6186, 3414.6199 Faxes: (61) 3414.6126 e 3414.6198 www.iphan.gov.br [email protected] Ficha Técnica CD Samba de Roda – Ficha Técnica Samba de Roda do Recôncavo PÁGINA 4 Samba de Roda Patrimônio da Humanidade Baiano Barquinha de Bom Jesus em bom jesus dos pobres, PESQUISA REGISTRO DO SAMBA DE RODA DO município de saubara. Carlos Sandroni RECÔNCAVO BAIANO Processo número 01450.010146/2004-60 foto: luiz santos. ÁUDIO PÁGINA 6 • Gravação com a Unidade Móvel do Núcleo PROPONENTES: Mãe Áurea em Casa de de Etnomusicologia da UFPE – Zé Guilherme • Associação Cultural Samba de Roda Dalva Damiana de Iansã (Bamburucena), Lima Freitas são francisco do conde. • Assistentes de Gravação – Johann Brehmer/ • Grupo Cultural Filhos de Nagô foto: luiz santos. Alessandra Leão • Associação de Pesquisa em Cultura Popular e Música • Gravação em DAT (Cachoeira) – Francisca Tradicional do Recôncavo Marques • Mixagem no Estúdio Mister Mouse (Recife) DATA DE ABERTURA DO PROCESSO: – Léo D/ William P/ Zé Guilherme Lima 17/08/2004 a Masterização do CD - Carlos Freitas – Classic Pedido de Registro aprovado a 4 reunião do Conselho Máster (São Paulo) Consultivo, em 30/09/2004 Inscrição no de Registro das Formas de Expressão, em PRODUÇÃO EXECUTIVA 05/10/2004 Carlos Sandroni Josias Pires Neto

APOIO Núcleo de Etnomusicologia da Universidade Federal de Pernambuco Secretária – Anita Holanda Freitas

PARCERIA Amafro – Sociedade Amigos da Cultura Afro- Brasileira sumário { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 

10 APRESENTAÇÃO 68 Justificativa (O samba de 102 Viola de Samba e Samba de roda como objeto de registro) Viola no Recôncavo Baiano 12 INTRODUÇÃO 75 Enfraquecimento da forma de 103 Apresentação 15 Notas expressão, pressões e riscos 105 Viola de samba potenciais de desaparecimento 118 Samba de viola 16 IDENTIFICAÇÃO 81 Notas 140 Um epílogo pessoal 17 Localização geográfica da forma 142 Exemplos musicais de expressão e das comunidades 82 PLANO DE SALVAGUARDA 149 Notas abrangidas na pesquisa 85 Objetivos do plano integrado de 19 Periodicidade da forma de salvaguarda e valorização do samba 154 FONTES BIBLIOGRÁFICAS expressão cultural de roda 21 Notas 86 Componentes do plano de 158 ANEXO 1 Partituras salvaguarda 22 DESCRIÇÃO 92 Execução e etapas do plano de 190 ANEXO 2 Parecer do Relator 23 Forma de expressão cultural e salvaguarda referências históricas recentes 95 Notas 198 ANEXO 3 Grupos e pessoas 25 História, desenvolvimento e contactadas função social 96 BALANÇO PRELIMINAR 34 Descrição técnica: estilo, 97 Primeiros resultados do 200 ANEXO 4 Instituições parceiras gênero, escolas, influências processo de salvaguarda do samba 66 Notas de roda 201 ANEXO 5 Letras do CD Samba de 101 Notas Roda - Patrimônio da Humanidade APRESENTAção { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 11

passo de baiana do econhecido como uma das gado pela Unesco em 2005. samba suerdieck. foto: matrizes do notório símbo- Desde então o Iphan tem acom- pedro ivo oliveira. R lo nacional, o samba, o samba de panhado a elaboração e a implan- PÁGINA 8 roda do Recôncavo Baiano foi tação do Plano de Salvaguarda do epand iro. foto: luiz santos. inscrito no Livro de Registro das samba de roda, com o objetivo de Formas de Expressão em 2004. apoiar e fomentar ações de valori- PÁGINA 9 Contudo, como demonstra este zação dos sambadores e sambadeiras det alhe de renda de vestimenta de baiana. exemplar da série Dossiês Iphan, o da Bahia e a melhoria das condições foto: pedro ivo valor do samba de roda transcende que propiciam a continuidade deste oliveira. esse caráter de ancestralidade e sua valioso bem cultural. importância permanece presente Com mais esta publicação, o no cotidiano de homens e mulheres Iphan prossegue com o trabalho de da Bahia. ampla divulgação dos bens culturais Manifestação musical, coreo- registrados e espera que, para além gráfica e poética, o samba de roda de sua terra natal, o samba de roda permeia atividades econômicas, continue a despertar pés, palmas e religiosas e lúdicas, particularmente corações. no contexto cultural do Recôncavo Baiano. A pesquisa publicada neste Luiz Fernando de Almeida Dossiê também fundamentou a Presidente do Iphan candidatura do samba de roda à III Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade, título que foi outor- introdução { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 13

Seu Zé de Lelinha (José Vitório dos Reis) e seu machete. foto: luiz santos.

dossiê de Registro do samba de O trabalho foi grandemente indicaram novos contatos e assim Oroda do Recôncavo baiano foi facilitado pelas pesquisas prévias de por diante. Em outros casos, foi realizado em Recife/PE, em Salva- Katharina Döring, Josias Pires e feito por meio de visitas a localida- dor/BA e no Recôncavo da Bahia, Francisca Marques, que gentilmen- des e perguntas aos moradores. Os no ano de 2004, coordenado por te puseram seus contatos, conheci- contatos assim desenvolvidos, se- Carlos Sandroni, professor da Uni- mentos e prestígio junto aos samba- mana após semana, deram origem a versidade Federal de Pernambuco dores à disposição do projeto. Este entrevistas, observações e relatórios - UFPE e presidente da Associa- contou com o acompanhamento e de visita enviados ao coordenador. ção Brasileira de Etnomusicologia supervisão técnica do Iphan, por Com base nesse material foram (2002-2004). A equipe de pes- meio de seu Departamento de Pa- identificados os em suas quisa constituiu-se das etnomusi- trimônio Imaterial, e com o apoio particularidades e pontos comuns. cólogas Katharina Döring, profes- financeiro do Ministério da Cul- A etapa seguinte correspondeu à sora da Universidade do Estado da tura, do Iphan e da Unesco, viabi- escolha de uma quantidade me- Bahia, e Francisca Marques, presi- lizado por contrato firmado com nor de localidades, nas quais havia dente da Associação de Pesquisa em a Fundação de Apoio à Pesquisa e samba de roda, para pesquisa mais Cultura Popular e Música Tradi- Extensão da Universidade Federal aprofundada, incluindo registro cional do Recôncavo, de Cachoeira/ da Bahia - Fapex. fotográfico, em vídeo e em áudio BA; do antropólogo Ari Lima, pro- A metodologia do trabalho con- digital. A Unidade Móvel de Grava- fessor da Faculdade de Tecnologia sistiu em, num primeiro momento, ção do Núcleo de Etnomusicologia e Ciência, de Salvador; da pesqui- mapear a ocorrência do samba de da UFPE deslocou-se em dois fins sadora de dança Suzana Martins, roda no maior número possível de de semana para o Recôncavo, e fez professora da Universidade Federal municípios e localidades do Re- 10 horas de gravação multipista em da Bahia, e do documentarista côncavo e adjacências. Tal mapea- 10 diferentes municípios.2 Uma Josias Pires, professor da Faculdade mento, na maioria dos casos, partiu equipe de vídeo e um fotógrafo pas- Dois de Julho, de Salvador.1 dos já citados contatos prévios, que saram 15 dias na região.3 Foi { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 14

Seu Pedro Sambador e Dona Porcina, sambadeira, em maracangalha. foto: luiz santos.

página ao lado Baiana na parte exterior do Terreiro de Pai Edinho, em maragogipe. foto: luiz santos.

definida uma lista de temas, em ção, incluindo imagens de arquivo Participaram cerca de 50 samba- torno dos quais as informações e imagens colhidas em 2004, bem dores de todo o Recôncavo, repre- sobre cada localidade passaram a ser como uma síntese deste vídeo, com sentantes do Iphan e da Comissão organizadas. duração de 10 minutos. Baiana de Folclore. A discussão, Paralelamente a esse trabalho de O conjunto das informações realizada em plenária e em grupos campo foi também realizada pes- processadas a partir dessas pesquisas separados, versou sobre a situa- quisa em fontes secundárias como foi utilizado para produzir o texto ção dos sambadores, seus grupos e livros e artigos acadêmicos sobre o do dossiê de Registro e a versão, comunidades; sobre a memória e samba de roda e seu contexto, fon- encaminhada à Unesco para apoiar documentação a respeito do sam- tes sobre o samba de roda na inter- a candidatura do samba de roda à III ba; e sobre a transmissão do samba net e fontes audiovisuais existentes Proclamação das Obras-Primas do Patri- às novas gerações. As conclusões, (cinema, vídeo e som). mônio Oral e Imaterial da Humanidade. sintetizadas e postas no papel pela O material de áudio produzido Cópias do áudio em CDs, de parte equipe de pesquisa, foram incorpo- pela pesquisa de campo foi pré- das fotografias e uma síntese do radas ao dossiê de Registro, sendo, mixado e, dos 13 CDs resultantes, material em vídeo (fita VHS) foram mais tarde, objeto de detalhamento selecionou-se cerca de uma hora de entregues aos sambadores. por ocasião da implementação do música, que recebeu mixagem defi- No dia 18 de setembro de 2004 Plano de Salvaguarda do samba de nitiva e masterização. A parte vocal foi realizada na cidade de São Fran- roda. das músicas constantes deste CD foi cisco do Conde, com o apoio da Presentemente, com o apoio fi- transcrita em partitura, e suas letras prefeitura local e da Universidade nanceiro do Ministério da Cultura também transcritas. As fotografias Estadual de Feira de Santana, reu- e do Iphan, as ações para a salva- feitas foram selecionadas e identi- nião com os sambadores para dis- guarda dessa forma de expressão se ficadas por localidade. O material cutir a situação do samba de roda, encontram em pleno andamento. audiovisual foi editado e produzido sua sustentabilidade e eventuais me- Entre os seus principais resultados um vídeo com duas horas de dura- didas de apoio a serem propostas. destacam-se: maior articulação { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 15

notas

1. A redação final contou ainda com apoio suplementar da historiadora Wlamy- ra Albuquerque da Universidade Estadual de Feira de Santana, no que se refere à história do Recôncavo, e de Maria Gore- tti Rocha de Oliveira, no que se refere à descrição da dança. 2. Cachoeira, Conceição do Almeida, Jaguaripe, Santo Amaro, São Félix, São Francisco do Conde, Saubara, Teodoro Sampaio, Terra Nova, Vera Cruz. 3. Imagens foram feitas nos mesmos municípios, e mais Cabaceiras do Para- guaçu, Maragogipe, Simões Filho, Castro Alves e São Sebastião do Passé. entre os praticantes, obtida a partir difusão e transmissão de conheci- da criação da Associação de Samba- mentos, além de atividades ligadas à dores e Sambadeiras do Estado da produção e à reprodução do samba Bahia; o crescimento dos convites a de roda. grupos de samba de roda para apre- Tais resultados, ainda que sentações em outras localidades; a parciais, têm aumentado o respei- revitalização de saberes tradicionais to pelos indivíduos e grupos que vinculados ao samba de roda e a fazem e que transmitem essa forma realização das gestões fundamentais de samba e aberto o caminho para para a implantação de uma rede que o processo de salvaguarda desse de Casas do Samba no Recôncavo patrimônio brasileiro se torne cada baiano para intercâmbio, pesquisa, vez mais sólido e autônomo. identificação { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 17

Dona Fia, do Samba de Roda de Pirajuía. foto: luiz santos. localização geográfica da forma de expressão e das comunidades abrangidas na pesquisa

samba de roda ocorre em todo Recôncavo. Para este guia cultural, dossiê de Registro foram pesquisa- Oo Estado da Bahia. Apresenta que adota a divisão econômica do dos 21 municípios e 33 localidades inúmeras variações que parecem Estado, o Recôncavo está dividi- (mencionadas entre parênteses), estar relacionadas com aspectos do em duas regiões distintas, uma conforme a seguinte lista (ver tam- ecológicos, históricos e socioeco- compreendendo a Região Metropo- bém mapa de localização):1 nômicos das diferentes regiões do litana de Salvador e a outra chama- • Aratuípe (Maragogipinho) Estado. Mas o Recôncavo – como da Recôncavo Sul, incluindo, além – 8.738 habitantes. veremos, em detalhe, a seguir – tem dos municípios tradicionalmente • Camaçari (Parafuso) – 191.855 importância fundamental na for- identificados como do Recôncavo, habitantes. mação política, social e econômica aqueloutros que constituem o vale • Cabaceiras do Paraguaçu (Sede, do Estado da Bahia. É responsável do Jiquiriçá. Reúne 33 municípios, Geolândia) – 16.189 habitantes. também pelas suas principais refe- totalizando 10.015 km2, 1,7% da • Cachoeira (Sede, Santiago do rências culturais, artísticas e, por superficie da Bahia. Suas coordena- Iguape, Alecrim, Belém) – 31.748 assim dizer, pelo ethos atribuído, das geográficas se estendem de 12E habitantes. fora e dentro do Estado, ao povo 23’ a 13E 24’ lat. S e de 38E 38’ a • Castro Alves – 24.802 habitantes. baiano. Para situar geograficamente 40E 10’ long. W.” • Conceição do Almeida – 19.144 essa região, podemos adotar como habitantes. ponto de partida a definição forne- Contudo, a depender do ponto • Governador Mangabeira – 18.916 cida pelo Guia Cultural da Bahia, de vista que se adote, ou seja, geo- habitantes. vol. 2, Recôncavo (1997): gráfico, econômico ou cultural, as • Jaguaripe (Sede, Camassandi, definições e delimitações do Re- Mutá, Pirajuía) – 13.378 habitan- “A faixa de terra que contorna côncavo são muito variáveis. Quan- tes. a baía de Todos os Santos, formada to aos municípios que compõem • Lauro de Freitas (Portão) por mangues, baixas e tabuleiros, a região, por exemplo, o número – 141.280 habitantes. é conhecida como a Região do vai de 17 até 96. Na elaboração do • Maragogipe (Sede, Coqueiros, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 18

Itapecerica) – 41.256 habitantes. • Simões Filho (Pitanga dos Palma- • Muritiba – 32.286 habitantes. res) – 107.561 habitantes. • Salvador – 2.673.560 habitantes. • Teodoro Sampaio – 8.435 habi- • Santo Amaro (Sede, São Braz) tantes. – 61.079 habitantes. • Terra Nova – 13.274 habitantes. • São Félix – 14.649 habitantes. • Vera Cruz (Mar Grande) – • São Francisco do Conde (Sede, 34.520 habitantes. Ilha do Paty) – 30.069 habitantes. • São Sebastião do Passé (Maracan- De acordo com o IBGE, estes galha) – 41.924 habitantes. municípios totalizam 3.536.220 • Saubara (Sede, Bom Jesus dos habitantes, o que corresponde a Pobres) – 11.557 habitantes. 25% da população do estado.2 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 19

Procissão de Nossa Senhora da Boa Morte, em cachoeira. foto: luiz santos. periodicidade da forma de expressão cultural

ão há ocasiões exclusivas para O samba também acontece de- Na realização do samba de roda, pois de festas de candomblés de rito mas há aquelas nas quais ele é indis- nagô ou angola, em alguns casos, já pensável. A primeira delas refere- como tradição institucionalizada e, se às festas do catolicismo popular em outros casos, como algo espon- que são associadas, no Recôncavo, a tâneo que pode acontecer ou não a tradições religiosas afro-brasileiras. depender do ânimo das pessoas. Na Em particular, no final de setembro ilha de Itaparica é comum, ainda, o são célebres os sambas nas festas dos samba acontecer de manhã, depois santos Cosme e Damião, sincretiza- de uma noite inteira de festa para dos com os orixás iorubanos rela- os eguns, entidades espirituais rela- cionados aos gêmeos, os Ibeji. Estas cionadas aos ancestrais. festividades são chamadas também Outra importante festa religiosa de Carurus de Cosme, devido à parte fundamental do culto aos onde o samba de roda representa iguaria da culinária afro-brasileira, caboclos, entidades espirituais papel de coadjuvante proeminente o caruru, que é servida na ocasião. cultuadas no contexto afro-brasi- e indispensável é a de Nossa Se- Nessas festas, as crianças comem leiro, mas com forte referência ao nhora da Boa Morte, em agosto, primeiro - sempre em grupos universo ameríndio. Acredita-se na cidade de Cachoeira (Marques, múltiplos de sete - pois esses santos que os caboclos gostem de samba, e 2003). são considerados seus protetores; em particular das modalidades que Assim, a singularidade do samba depois, os demais presentes. Em incluem viola. Nos festejos públicos de roda para seus praticantes tem seguida às rezas coletivas cantadas, de culto aos caboclos, denominados relação com a maneira como este entra o samba de roda como con- toques, a presença de um samba de permeia as mais diversas expressões clusão. viola é fundamental (Lody, 1977; do rico patrimônio imaterial da O samba de roda também é Garcia, 1995). Bahia, e em particular do Recônca- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 20

vo, como que acrescentado, feito um intermezzo ou conclusão de caráter lúdico, aos mais variados eventos do calendário festivo religioso ou civil. Os exemplos poderiam se mul- tiplicar: ternos de reis e folias de reis em vários municípios; zé de vale em Saubara e Gameleira, na Ilha de Itaparica; burrinhas em vários municípios; bumba-meu-boi em Parafuso, no município de Ca- maçari... Em todas essas festividades o samba é presença indispensável. Citaremos apenas uma fala relativa à barquinha de Bom Jesus dos Pobres:

“É que aqui tem um pessoal mais antigo que saía pelas ruas no dia 31 de dezembro, com a barca, de rua em rua, de casa em casa, pegando oferendas. Fazia samba de roda nas portas, o pessoal acei- tava, chamava pra beber e botava oferendas na barquinha. E depois que corria as ruas, quando dava { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 21

Caruru de Cosme e Damião na comunidade de ponta de souza, maragogipe. foto: luiz santos.

meia-noite, essa barca ia pra praia e o fato de que formas de samba são colocava-se no mar com as oferen- ligadas, de uma ou outra maneira, das, pedindo que traga boas coisas a quase todas as espécies culturais para o ano vindouro e leve as coisas importantes, e que têm um papel ruins que passaram do ano que es- importante nas demais datas festi- tava terminando, e pedindo fartura vas, sejam elas religiosas, rituais ou para o pessoal que aqui vive da pesca de outra natureza”. (1990:106) notas e dos barcos”. (Maria Rita, Bom Jesus dos Pobres)3 Esta posição especial faz tam- bém do samba de roda a forma mais Embora essas outras celebrações comum e tradicional de o povo e formas de expressão tenham gran- baiano festejar em seu dia-a-dia: de importância para as comunida- des em questão, numa visão global “Além dos diversos eventos 1. Fonte: IBGE. Os dados populacio- nais correspondem à estimativa realizada nenhuma delas parece exercer, tão mencionados acima para se fazer em 2005 e à população total dos municí- bem quanto o samba, o papel de um samba, todos os acontecimentos pios, com base nos dados do Censo do ano denominador comum da cultura podem dar motivo para um samba, 2000. popular do Recôncavo. Como es- seja um batizado, uma reunião es- 2. Fonte: IBGE. Os dados populacio- creve Tiago de Oliveira Pinto: pontânea dos moradores do povoa- nais correspondem à estimativa realizada em 2005, com base nos dados do Censo do etc.” (Pinto, 1990:108). do ano 2000. “No Recôncavo, o samba sem 3. As entrevistas citadas, a não ser dúvida tem uma posição especial. É quando especificado, foram registradas em significante a ligação que o samba vídeo, no Recôncavo, em agosto de 2004. consegue entre todas as faixas etá- rias e entre os sexos, como também descrição { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 23

Samba Chula os Filhos da Pitangueira, são francisco do conde. foto: luiz santos. página ao lado Dt e alhe de baiana durante procissão de Nossa Senhora da Boa Morte. foto: luiz santos.

samba de roda é uma mani- diferentes dos dois primeiros, com Ofestação musical, coreográfi- ou sem reforço das mulheres pre- ca, poética e festiva, presente em forma de sentes. As estrofes são relativamente todo o estado da Bahia, mas muito expressão curtas, podendo ser de um único particularmente na região do Re- verso, e raramente indo além de côncavo. Em sua definição mínima cultural e oito versos. Há ocorrência eventual constitui-se da reunião, que pode referências de improvisação verbal. Existe um ser fixada no calendário ou não, de repertório de estrofes conhecidas grupo de pessoas para performance de históricas pelos participantes, que no caso de um repertório musical e coreográ- recentes canto individual, e eventualmente fico, cujas características são dadas em dupla, podem ser acionadas ad aqui de modo geral e resumido: libitum.3 • Disposição dos participantes • A coreografia, sempre feita em círculo ou formato aproximado, rítmicos em ostinato.2 dentro da roda, pode ser muito va- donde o nome samba de roda. • Cantos estróficos e silábicos riada, mas seu gesto mais típico é o • Presença possível de instru- em língua portuguesa, de caráter chamado miudinho. Feito, sobre- mentos musicais membranofones responsorial e repetitivo. A estrofe tudo, da cintura para baixo, consis- – caracteristicamente, o pandeiro1; principal, em certos casos, chamada te num quase imperceptível sapatear idiofones – caracteristicamente, o de chula, pode ser cantada por um para frente e para trás dos pés quase prato-e-faca; e cordofones – carac- ou dois cantores com certo grau de colados ao chão, com a movimen- teristicamente, a viola. Os tocado- especialização, enquanto a respos- tação correspondente dos quadris. res ficam juntos fazendo parte do ta ou relativo - trata-se de termos Embora homens também possam círculo. Os presentes participam locais - pode ser cantada por todos dançar, há clara predominância de do acompanhamento musical com os presentes ou, às vezes, por dois mulheres na dança, enquanto no palmas, segundo certos padrões cantores também especializados, toque dos instrumentos a predomi- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 24

Caruru em homenagem a São Roque, Pitanga dos Palmares, município de Simões Filho. foto: luiz santos.

nância é masculina, com exceção do corpo. O princípio da alternância mitidas por africanos escravizados prato-e-faca. Outro traço marcante relaciona-se também com um dos no Estado da Bahia. Essas tradições da coreografia é a alternância, ou gestos coreográficos mais típicos do se mesclaram de maneira singular seja: exceção feita à finalização de samba de roda, a famosa umbigada, a traços culturais trazidos pelos um samba, não é comum que todos ou choque de umbigos: traço cultu- portugueses, como os instrumentos os participantes dancem ao mesmo ral de origem banto, a umbigada é mencionados acima, e à própria tempo, o que teria por efeito desfa- um sinal por meio do qual a pessoa língua portuguesa e elementos de zer o círculo de assistentes, desca- que está sambando designa quem suas formas poéticas. Tal mescla, racterizando assim o samba como de irá substituí-la na roda (Carneiro, assim como outras mais recentes, roda. Em alguns casos é estritamente 1961; Tinhorão, 1988:45-68). não exclui o fato de que o samba proibido que mais de uma pessoa • O samba de roda pode acon- de roda foi e é essencialmente uma dance de cada vez: uma só pessoa tecer dentro de casa ou ao ar livre, forma de expressão de brasileiros deverá executar sua dança, sempre em um bar, uma praça ou um afro-descendentes, que se reconhe- no interior do espaço delimitado terreiro de candomblé. Sua per- cem como tais. pela roda, e em seguida escolher formance tem caráter inclusivo, ou entre os participantes o que irá seja, todos os presentes, mesmo os substituí-la. Em outros casos, várias que ali estejam pela primeira vez, pessoas podem dançar ao mes- são em princípio instados a parti- mo tempo. Os participantes que cipar, cantando as respostas corais, formam a roda, por não estarem batendo palmas no ritmo e até mes- dentro dela, não dançam, a não ser mo dançando no meio da roda caso que se considere o bater palmas um a ocasião se apresente. tipo de dança; ou eventualmen- O samba de roda, desde antigos te dançam apenas através de uma relatos, traz como suporte deter- discreta movimentação rítmica do minante tradições culturais trans- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 25

HISTÓRIA, DESENVOLVIMENTO E FUNÇÃO SOCIAL, SIMBÓLICA E CULTURAL

O Recôncavo na história gueses, e do infortúnio de muitos 1693, e a de Santo Amaro foi criada Por Recôncavo, como visto, se africanos e indígenas. Por isso, em 1724. A elas se seguiram várias costuma designar uma vasta fai- trata-se de uma unidade regional outras e, assim, no final do século xa litorânea que circunda a Baía que foi concebida e é situada por XVIII, as margens do rio Paraguaçu de Todos os Santos, à entrada da dentro da história dos engenhos de – até onde ele se fazia navegável – já qual se ergue a cidade de Salvador, cana, da escravidão e da indústria estavam relativamente povoadas. capital do Estado da Bahia. São as açucareira no Brasil. Ainda naquele século, Salvador e terras em “volta d’água” (Brandão, Assim que chegaram, os portu- Cachoeira já eram os dois princi- 1998:30): afinal, foi como a boca gueses perceberam que a baía era pais centros metropolitanos da re- aberta da Baía de Todos os Santos um porto naturalmente seguro, e as gião, pólos integradores do circuito que a região passou a fazer parte terras em seu entorno lhes parece- comercial, político e cultural que a do mundo Atlântico. Na definição ram propícias para que os primei- colonização portuguesa inaugurou. de Kátia Mattoso, “o Recôncavo é, ros núcleos colonizadores fossem No ritmo dos engenhos de açú- antes de tudo, uma terra oceânica” estabelecidos. As pequenas ilhas e car o Recôncavo foi se formando, (Mattoso, 1992:54). Delimitá-lo, os recifes dificultavam a entrada de e foram surgindo e crescendo os no entanto, não é uma tarefa fácil, navios inimigos, mas para quem núcleos urbanos, fazendo funcio- ainda que se use o oceano como conhecia bem os caminhos do mar nar uma rede pela qual transitavam fronteira. Mesmo porque, quando e dos rios era possível transitar em produtos e pessoas ocupadas com o se diz Recôncavo baiano, está se fa- médias e pequenas embarcações. comércio. lando muito mais de um “conceito Resguardados do Atlântico, mas Dessa rede tem sido subtraído histórico [do] que de uma unidade também por ele providos, ergue- e acrescentado, ao longo de tantos fisiográfica” (Santos, 1998:62). O ram-se no Recôncavo engenhos de séculos, um considerável número Recôncavo é uma invenção histórica cana-de-açúcar, paróquias e vilas. de cidades. Para o geógrafo Milton e uma configuração cultural que As de São Francisco do Conde, Santos, por exemplo, fazem parte nasceu da aventura de alguns portu- Cachoeira e Jaguaripe datam de do Recôncavo 28 municípios.4 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 26

Samba de Roda Suerdieck no dia da Festa da Boa Morte em cachoeira. foto: luiz santos.

o fumo produzidos em seu entor- no rumo ao porto de Salvador. As pessoas faziam o mesmo percurso no famoso vapor de Cachoeira, de fabricação inglesa. Infelizmente o Recôncavo, além da degradação ambiental, sofre de outras mazelas. A pobreza generali- zada e a desigualdade social também são ali heranças compartilhadas. Para alguns, o Recôncavo é sinôni- mo de “região cronicamente pobre, entretanto dotada do fascínio de ser A sua justificativa para tal configu- guaçu foi construída a barragem de a principal detentora da tradição ração é a conexão que existe entre Pedra do Cavalo: uma intervenção cultural da sociedade escravista” essas cidades dispersas ao longo da que, se garante o abastecimento (Pedrão, 1998:219). Mas nem sem- baía, mas integradas econômica e regular de água potável para várias pre foi assim. Por um longo tempo culturalmente. Em outros tempos, comunidades, compromete todo o a opulência e riqueza dos donos de além do mar, os rios do lugar tam- ecossistema pelo processo contínuo terras e escravos saltavam aos olhos. bém ajudavam a garantir a funcio- de salinização e assoreamento do Logo que se instalaram no Recôn- nalidade da rede. O Paraguaçu, rio, prejudicando sobremaneira a cavo os colonizadores descobriram o Subaé e o Jaguaripe são os mais pesca e a mariscagem, importantes as virtudes do solo de massapê, importantes. Todos eles enfrentam e tradicionais fontes de renda para predominante na região. Trata-se hoje, contudo, uma grave situação as populações locais. Até o século de uma terra de coloração escura, de degradação ambiental. No Para- XIX, o Paraguaçu levava o açúcar e rica em materiais orgânicos, pouco { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 27

Pescadores da comunidade de ponta de souza trazendo os frutos do mar para o tradicional Caruru de Cosme e Damião. foto: luiz santos.

permeável, mas capaz de conservar a Na segunda metade do século XIX esmagadora maioria negros, que umidade durante um longo tem- foram abertas as primeiras fábricas abandonaram as velhas cidades de po. O massapê e o clima tropical de charutos. No período, a região Santo Amaro, Cachoeira, São Félix se prestavam bem para o cultivo amargava uma grave e irreversível e São Francisco do Conde para se em larga escala da cana-de-açúcar. crise econômica e, para muitas estabelecerem em povoados e vilas Após a dizimação de muitos indí- trabalhadoras – visto ser esta uma menores, em busca de melhores genas e a escravização ou expulsão indústria de predominância femi- condições de vida. Com isso, o Re- de outros tantos, os portugueses se nina – ser empregada na feitura côncavo foi expandido para dentro assenhorearam dos melhores ter- dos charutos era uma oportunidade de si mesmo. É muito corriqueiro renos, fazendo-se donos de pessoas ímpar. As fábricas mais importantes encontrar na região famílias espa- e riquezas. Embora os negócios do foram a Suerdieck, fundada em Ca- lhadas por diversas cidades: o re- açúcar estivessem sempre à mercê choeira por imigrantes alemães, e a sultado de inúmeras tentativas de se do mercado internacional, as ven- Dannemann, em São Félix. Ainda viver melhor. Entretanto, também das garantiram fortuna e prestígio se cultiva fumo no Recôncavo, mas é preciso acentuar que foi graças a aos grandes proprietários locais. uma produção acanhada, em pe- esse processo migratório que hoje Criou-se ali, assim, uma economia quena escala. é possível perceber certa unida- sustentada pelas lavouras do fumo, Com a decadência da produção de cultural na região. Mesmo em da cana-de-açúcar e pelo trabalho da cana-de-açúcar e do fumo, e o povoados e cidades distantes entre de negros escravizados; criou- empobrecimento regional que se si, podem ser observadas práticas e se também uma cultura filha das seguiu, ficaram ainda mais redu- tradições similares, a exemplo do relações sociais geradas no mundo zidas e precárias as oportunidades samba de roda. escravista. de sobrevivência. Assim, teve lugar Nos anos 1950, a extração de Associada à lavoura canaviei- uma outra forma de expansão do petróleo, recém-descoberto na ra, a indústria do tabaco também Recôncavo: a migração. Foram região, prometia encerrar a letargia floresceu no Recôncavo baiano. muitos os trabalhadores, em sua econômica que nos 100 anos ante- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 28

Dona Fia, do Samba de Roda de Pirajuía. foto: luiz santos.

riores cobrira boa parte do Recôn- cavo. Tal promessa foi cumprida apenas em parte, e mesmo os limi- tados benefícios resultantes para a população local têm sido distribuí- dos regionalmente de modo bas- tante desigual. Cidades como Catu, Candeias e São Francisco do Conde cresceram vertiginosamente com a produção petrolífera, enquanto antigos e importantes centros urba- nos, a exemplo de Cachoeira, Santo Amaro e Maragogipe, continuam ao largo das novas benesses extraí- ser, uma marca da cultura do lugar. de roda. Tamanha predominância das do solo. Por sua vez, a recriação Eram negros os homens, mulheres negra faz com que o Recôncavo das tradições culturais locais está e crianças que cuidavam dos cana- resguarde práticas culturais que são, relacionada a este duplo movimen- viais, faziam os engenhos funciona- a um só tempo, uma síntese das to: o acelerado desenvolvimento rem, mantinham toda a infra-es- experiências das populações afri- de alguns centros urbanos funda- trutura necessária para o bem viver canas no Brasil, e a evidência da mentais no mapa cultural da região, de seus senhores... e ainda promo- enorme criatividade dos seus e a secular paralisia econômica de viam magníficos batuques.5 Como descendentes. cidades não menos importantes. hoje também o são os trabalhadores A despeito da disritmia intra- ocupados com a cata de mariscos, regional, a presença africana e com a pequena lavoura ou com o afro-descendente foi, e continua a refino de petróleo, e com o samba { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 29

Seu Pedro Sambador, de maracangalha. foto: luiz santos.

O samba de roda na história “(...) entram em cena a viola ou o Formas culturais que fazem violino, e começa a cantoria, que parte do samba de roda em sua logo cede passo à atraente dança dos configuração atual podem ser negros. (...) Consiste em baila- encontradas desde o século XVII rem os pares ao dedilhar insípido em registros históricos, sempre em do instrumento, sempre no mes- relação com o universo dos negros. mo ritmo, quase sem moverem A umbigada - ou embigada - por as pernas, com toda a ondulação exemplo, aparece em poemas de licenciosa dos corpos, em contato Gregório de Matos (1636-1696), de modo estranhamente imodesto. do mesmo modo que a viola, já em Os espectadores colaboram com a vilancicos seiscentistas, aparece no música em um coro improvisado, e papel de instrumento privilegiado batem palmas, apreciando o espe- do baile dos negros escravizados.6 táculo (...)” (citado por Tinhorão, De maneira mais específica, as 1988:54). primeiras referências históricas a manifestações culturais diretamen- Embora fale de uma dança de te assemelhadas ao samba de roda pares e mencione um violino7, há datam do início do século XIX, e se na descrição outros elementos que devem à pena de viajantes estran- fazem pensar no samba de roda: geiros que escreveram sobre suas uma dança de negros, ao som de experiências no Brasil. O inglês viola, onde quase não se movem as Thomas Lindley registrou em 1803, pernas - como na coreografia do na Bahia, uma dança assim descrita: miudinho - e onde os espectadores também cantam e batem palmas. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 30

A primeira menção registrada no quando vi que era na 4a prisão desta a seguir -, na primeira metade do Brasil da palavra samba data de cadeia (...) imediatamente disse ao século XIX o termo utilizado por 1838, e se encontra num jornal sargento mandasse a sentinela con- escrito para designar de manei- satírico então editado em Pernam- ter a ordem naquela prisão: cessou ra genérica os divertimentos dos buco, estado com o qual a Bahia faz o samba (...)” (Reis, 2002:130). negros era batuque. É só na segun- fronteira a noroeste. A menção é, da metade do século que se passa a entretanto, feita de passagem, sem Mas este é, no estado atual das encontrar, sobretudo na imprensa nenhuma descrição, nem, aliás, pesquisas, um registro isolado, e em registros policiais, referências associação específica a afro-des- e que de resto não traz maiores em profusão ao samba na Bahia, e cendentes. Já o primeiro registro esclarecimentos sobre em que já agora com muitas das caracterís- conhecido da palavra samba na consistia o referido samba, além de ticas hoje presentes no Recôncavo. Bahia, encontrado pelo historiador ser alarme, estrondo e desordem; ressal- A primeira delas data de 1864 – de João José Reis, data de 1844, em vando-se que o próprio carcereiro 140 anos atrás, portanto, e 20 anos Salvador, e está num relato feito em não só parece saber bem de que se depois do carcereiro Santos Vieira: janeiro daquele ano pelo carcerei- trata - posto que se declara capaz, “Nos becos da Rua da Castanhe- ro da prisão municipal, Joaquim em princípio, de fazer a distinção da, por exemplo, havia, segundo o José dos Santos Vieira, ao Chefe de entre sambas de africanos e de nacionais jornal O Alabama [de 26/1/1864], Polícia: - como não tem nenhuma dúvi- sambas, todas as noites, acom- da de que o Chefe de Polícia seria panhados de pratos e pandeiros” “Ontem quase 9 horas da noite, igualmente capaz de entendê-lo. (Santos, 1998:23-4). Como vimos, depois das prisões fechadas, ouvi A julgar pelas pesquisas de que pratos e pandeiros estão ainda hoje um alarme, que não podia perceber dispomos - cujos resultados estão entre os instrumentos mais típicos se era samba de africanos, ou de no artigo já citado de João José de acompanhamento do samba. nacionais (...) vim à guarda infor- Reis, e no de Jocélio Teles dos San- Dois anos depois, o mesmo mar-me aonde era aquele estrondo, tos que citaremos abundantemente jornal O Alabama publicava, em Sr. Luís Bispo dos Ramos (Luís Feirante), em castro alves. foto: luiz santos.

versos, uma descrição mais detalha- Dá embigada no Victor descrição para o que se tem obser- da de samba acontecido no bairro E cai sobre um canapé 8 vado de maneira predominante nos do Uruguai, em Salvador: últimos anos é a presença de mu- A descrição corresponde, com lheres tocando pandeiro e tirando Houve samba no Uruguai pequenas ressalvas, ao que se pode o samba, isto é, cantando a estrofe A vinte e três do passado ver hoje no Recôncavo, assim como principal. Outra mulher canta chu- (...) ao vocabulário empregado. Há la em poema publicado no mesmo concordância no que se refere aos jornal no ano seguinte: Mestre Paulino ferreiro elementos materiais – a viola, com Com a viola empunhada sua corda mais aguda chamada de A creoula Herculana Acompanhava na prima prima, e o pandeiro. Aos verbos Uma chula entoou Uma chula bem tirada usados – rufar o pandeiro, tirar a Rosa do peixe, Lourença chula ou o samba, responder a toada. A toada acompanhou A Mariquinhas rufava E finalmente à dança, em que uma Com muito garbo o pandeiro pessoa específica sai e dá uma em- Caiu na roda Olegária Custódia tirava o samba bigada em outra. Note-se ainda que Puxou mui bem a fieira Tocava o samba o Pinheiro acompanhar a chula na prima corres- E foi dar uma umbigada ponde ao modo de tocar ponteado No rapaz Bastos Pereira Miguel Corcunda e Paulina dos violeiros do Recôncavo, em Respondiam a toada que se tange uma corda de cada vez, Este depois dum corrido De vez em quando tomando diferentemente de outros estilos de Deu na creoula Clotildes De cachaça uma golada acompanhamento de música popu- A qual fez o seu peão lar, em que várias cordas são tangi- E foi bater na Matildes Saiu então o Elias das ao mesmo tempo. A fazer seu roda-pé A principal diferença desta { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 32

Depois de um miudinho Que fez Antonia Dengosa Dançou Maria Libânia E depois Maria Rosa 9

Mais uma vez, encontra-se re- ferência a cantar chula e à umbiga- da. A isso se somam referências ao corrido, que veremos tratar-se de uma modalidade de samba praticada ainda hoje, ao miudinho, à dispo- sição em círculo dos participantes - “caiu na roda Olegária” -, e à dança feita individual e sucessivamente musicais-coreográficas de negros. gipe, outra cidade do Recôncavo, - “Depois de Antonia Dengosa, João José Reis menciona um do- enviou para exame em Salvador dançou Maria Libânia e depois cumento de 1808 que fala de uma uma postura municipal proibindo Maria Rosa”. O poema, aliás, segue grande festa de escravos acontecida “batuques e vozerias em casas públi- enumerando o nome de mais 19 em Santo Amaro, com muita músi- cas” (Idem: 135ss). mulheres que na ocasião ainda sam- ca e dança, assistência numerosa de No final do século XIX e na pri- baram uma depois da outra. população branca e beneplácito dos meira metade do seguinte, o samba Especificamente no Recôncavo, senhores locais, para contrarieda- baiano tornou-se objeto de interes- registros documentais da palavra de, aliás, das autoridades policiais se de intelectuais, sendo menciona- samba, no século XIX, são mais ra- de Salvador (Reis, 2002:105ss). O do e descrito sumariamente pelos ros. Não faltam, porém, registros mesmo autor informa que em 1855 principais estudiosos do campo de batuques e outras manifestações a Câmara Municipal de Marago- afro-baiano, como Nina Rodri- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 33

Caminhada das baianas do Terreiro de Pai Edinho, em dia de tradicional lavagem da escadaria da igreja local, em maragogipe. foto: luiz santos. página ao lado Da on Cardo (Antônia Erotildes da Silva), de saubara. foto: luiz santos.

gues, Manoel Querino, Artur Ra- etnomusicologia pela Universidade bom estado, em Berlim, Alemanha. mos e, sobretudo, Edison Carnei- do Texas, em Austin, nos Estados Finalmente, nos anos 1990, a ro. Este período coincide, como Unidos. Esta pesquisa se deu entre etnomusicóloga Rosa Maria Zami- veremos à frente em detalhe, com o 1976 e 1982, e embora Waddey não th, trabalhando então para a Co- da ascensão do samba feito no Rio tenha finalmente escrito uma tese, ordenação de Folclore e Cultura de Janeiro, como gênero de canção publicou um importante artigo em Popular da Fundação Nacional de urbana gravada em discos e tocada duas partes na Latin American Music Arte - Funarte, fez uma pesquisa de no rádio. Coincide, na verdade, Review (Waddey, 1980 e 1981). A curta duração na cidade de Cacho- com as etapas iniciais do predomí- pesquisa de Waddey centrou-se em eira, que resultou em artigo (Zami- nio do modo de vida industrial e Salvador, Saubara, Santo Amaro e th, 1995) e CD, gravado em cola- urbano – e de estabelecimento de Castro Alves. Seu acervo encontra- boração com Elizabeth Travassos. um mercado de entretenimento se sob custódia da Universidade do O acervo gerado por esta pesquisa de massas – no país. Tais processos Texas. encontra-se guardado em condi- influenciaram, é claro, a prática A segunda pesquisa foi feita pelo ções adequadas no Centro Nacional do samba de roda, cuja importân- etnomusicólogo brasileiro radica- de Folclore e Cultura Popular, no cia declinou muito em Salvador, do na Alemanha Tiago de Oliveira . embora tenha declinado menos em Pinto. Ela aconteceu, sobretudo, No início dos anos 2000, três muitas partes do estado da Bahia, e, entre 1982 e 1990, nas proximi- dissertações de mestrado foram em particular, no Recôncavo. dades de Santo Amaro, e seus resul- escritas sobre o samba de roda. A de No último quarto do século XX tados foram publicados no livro Erivaldo Sales Nunes, Cultura popular houve três pesquisas acadêmicas Capoeira samba candomblé. O livro não no Recôncavo baiano: a tradição e a moder- importantes sobre o samba de roda foi traduzido para o português e o nização do samba de roda, defendida no no Recôncavo. A primeira delas acervo gerado pela pesquisa, bem Programa de Pós-Graduação em foi feita por Ralph Cole Waddey, como pelas freqüentes voltas de Letras da Universidade Federal da então candidato ao doutorado em Pinto à região, encontra-se em Paraíba, em 2002, enfoca, sobre- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 34

DESCRIÇÃO TÉCNICA: ESTILO, GÊNERO, ESCOLAS, INFLUÊNCIAS

tudo, a região de Santo Amaro. A TIPOS pantes, por contraste com o samba de Katharina Döring, O samba de roda Há inúmeras modalidades de chula, de samba de roda simples- do SembaGota, defendida no Progra- samba de roda no Recôncavo. A mente. ma de Pós-Graduação em Música pesquisa realizada propõe entendê- As principais diferenças entre da Universidade Federal da Bahia, las com base em dois grandes tipos. samba corrido e samba chula se em 2002, é um estudo de caso O primeiro corresponde a uma ca- referem às relações entre música e sobre um grupo de jovens músicos tegoria nativa bastante generalizada dança, e podem ser resumidas em profissionais de Salvador, ligados no Recôncavo e em Salvador: samba dois pontos principais. Primeiro: a um dos mais tradicionais terrei- corrido. O segundo permite apro- no samba chula, a dança e o canto ros de candomblé da cidade. A de ximar, por alguns traços comuns, nunca acontecem ao mesmo tempo Francisca Marques, Samba de roda em sambas diferentes, na região de - estando os toques dos instrumen- Cachoeira, Bahia: uma abordagem etnomu- Santo Amaro e municípios vizinhos tos presentes nas duas atividades sicológica, defendida no Programa - muitos dos quais de emancipação -, enquanto no samba corrido, de Pós-Graduação em Música da política recente em relação a Santo ao contrário, dança, canto e to- Universidade Federal do Rio de Amaro -, que são chamados de ques acontecem simultaneamente. Janeiro, em 2003, enfoca especial- samba chula, de parada, amarrado ou de Segundo: no samba chula apenas mente o samba de roda na festa de viola; e que na região de Cachoeira, uma pessoa de cada vez samba no Nossa Senhora da Boa Morte, na com diferenças maiores, são cha- meio da roda; enquanto no sam- cidade de Cachoeira. A pesquisa- mados de barravento. Será usado, por ba corrido podem sambar uma ou dora, instalada em Cachoeira desde convenção, o nome samba chula várias pessoas ao mesmo tempo no 2001, vem produzindo um im- em referência ao segundo tipo em meio da roda. Pode-se dizer que no portante acervo sonoro digital – o questão. Já o samba corrido, como samba corrido os eventos tendem único deste tipo que se encontra será visto a seguir, tem um caráter a ser mais agregados, e no samba atualmente na Bahia segundo nossas mais genérico, e por isso pode ser chula, mais separados. Os músicos informações. chamado às vezes pelos partici- expressam a diferença dizendo, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 35

samba suerdieck, cachoeira. foto: luiz santos.

em , que o samba pro samba de parada”. (João Antô- cantando. Quando os homens pa- corrido é mais livre, mais permis- nio das Virgens, de Saubara). ram de cantar e ficam só os instru- sivo; ao passo que o samba chula é mentos e a marcação, o pandeiro, mais exigente, mais rigoroso. Neste “Porque o samba de viola é um aí a mulher sai no pé dos tocadores, último, não só cada um dos sam- samba amarrado e nós temos que vai saindo, dando umbigada nas badores precisa esperar sua vez de respeitar, nós responde [cantando], outras. Quando o homem começa a dançar, enquanto aprecia o desem- quando pára de responder a chula, cantar de novo a mulher geralmente penho do outro, como também, de a gente sai [dançando], pra respei- só fica batendo palma e cantando”. maneira mais geral, os conjuntos tar um ao outro. E samba corrido (Carlos M. Santana, São Braz). de sambadores e cantores precisam todo mundo samba junto, não tem esperar-se mutuamente, cada grupo esse negócio de parar separando as Uma vez estabelecida, por con- apreciando enquanto isso o desem- coisas”. (Maria Augusta Ferreira, traste e em linhas gerais, a distinção penho do outro. Dessa forma, o São Braz). entre os dois tipos de samba de roda samba chula é uma modalidade de encontrados no Recôncavo, segue- expressão onde a apreciação estética “[No samba corrido] pode sair se uma descrição mais pormenori- desempenha papel especialmente homem e mulher na roda, e já a zada, tanto de seus aspectos gerais, importante. chula, quando as pareias [isto é, como de suas particularidades. as duplas que gritam a chula] não “No samba de parada, a gente estão cantando, a mulher leva aqui- canta e a mulher sai na roda, e a lo com uma grande consideração. gente espera ela sair da roda pra Porque se as pareias estiverem can- gente repetir a cantar. Cada qual tando e a mulher sair na roda, exis- tem sua vez, não saem duas [mulhe- te aquela desfeita, já é um conceito res], só sai uma: a diferença é essa mesmo da chula, que você não pode do samba de roda [isto é, corrido] sair enquanto os homens estiverem { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 36

Sr. Luís Bispo dos Ramos (Luís Feirante) e jovem sambadeira, em castro alves. foto: luiz santos.

A cena do samba músicos, pois todos, em princípio, A roda, que dá nome ao gêne- batem palmas e cantam as respostas. ro, é comum aos dois tipos men- Ou serão, como propôs Gilbert cionados. A palavra não deve ser Rouget (1980), musicantes: partici- tomada num sentido excessivamente pantes ativos de um evento musical, literal. A forma real de disposição e não seus meros espectadores. dos participantes pode ser antes a Waddey propõe falar de um “con- de um semicírculo, ou mesmo, a junto musical secundário [formado depender do espaço onde acon- pelos espectadores/participantes], tece o samba, assemelhar-se a um proporcionando não só um acrés- quadrado ou a uma elipse. Como cimo da sonoridade percussiva, no caso da famosa Távola Redonda, como também (o que é talvez de a alusão ao formato circular pode importância maior) um estímulo aqui ter relação com certa igualdade ao envolvimento e entusiasmo de formal dos participantes, estando todos” (1982:15). Este conjunto secun- todos à mesma distância do centro dário está, pois, difuso, confundin- e desfrutando do recíproco direito do-se com a totalidade do samba; de – respeitadas as regras do jogo mas há um conjunto primário que, – sambar por alguns minutos no em vez disso, está concentrado num meio do contorno desenhado pelos ponto da roda, e é constituído pelas assistentes. pessoas que num dado momento A roda é, no entanto, polariza- cantam as partes mais individualiza- da pelo ponto onde se agrupam os das do samba e tocam os principais músicos. De certa forma, todos os instrumentos disponíveis. presentes em um samba de roda são O samba de roda pode ser visto { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 37

também como arena privilegiada “A gente precisa muito do ho- sambaram]”. (Pedro dos Santos, para um diálogo altamente codifi- mem por causa do toque, porque líder do samba chula de Maracan- cado entre homens e mulheres. O raramente a mulher toca; e o ho- galha). erotismo é um componente estru- mem precisa da mulher pra acom- tural do samba, expresso não só panhar na voz e no pé. Sem a mu- Para outros, porém, os homens pelos corpos dos participantes, mas lher não tem samba, sem homem também podem sambar, mas fazem- também pelas mais variadas inter- também não tem. Aqui a gente no de maneira um pouco diferente: jeições e comentários, inclusive depende dos toques, mas pra sam- aqueles relativos aos conflitos por bar depende de mulher: um samba “A diferença é que a mulher se ciúmes (Waddey, 1981:33). só de homem, você vem, dá uma sacode mais do que o homem. É De maneira geral, considera-se olhada e vai embora, mas quando vê que a gente nasceu pra sambar no que no samba de roda e, como de mulher, fica”. (D.Mirinha, Pira- pé e a mulher pra se requebrar”. hábito com mais rigor no samba juía). (Antonio Correia de Souza, de chula, o papel típico do homem é Mutá). tocar, enquanto o da mulher é Esta diferença é levada a rigor sambar: em algumas comunidades que pra- Em todo o caso é importante ticam preferencialmente o samba notar que a relação entre homens “Eu acho que a mulher pra chula: tocando e mulheres sambando essa coisa assim [de sambar] é mais é algo fundamental para o bom quente, mais enérgica. Eu também “Nesse samba da gente, só dança desenrolar de um samba. A boa toco, sambo, canto, mas eu acho mulher. Homem só dança se vem sambadeira estimula o tocador, que a mulher tem mais elegância uma pessoa de fora, que a gente não do mesmo jeito que o samba bem pra sambar e o homem pra tocar”. queira dizer nada, aí a gente deixa tocado, e muito particularmente (Maria Rita Machado, Bom Jesus [ele sambar]. Mas o certo... vocês a viola bem tocada, estimulam a dos Pobres). viram aí [isto é, apenas mulheres sambadeira: { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 38

“O samba fica mais quente e a gente se motiva mais quando a mu- lher sai, dá aquela remexidazinha, sai no pé dos tocador... aí os toca- dor olha um pra cara do outro, pra ver qual é a que samba mais, que mexe mais com a cintura... quer di- zer, é claro que motiva, né, pra nós tocarmos. Inclusive a gente se em- polga até muito mais, tem mulher que a gente toca mais e tem mulher que a gente toca menos. Tem mu- lher que se empolga e samba no pé roda das paparutas da do tocador, e o que o tocador faz, da viola, no pandeiro, e pinica em ilha do paty, município chama mais embaixo ou grita mais cima da gente, aí a gente joga pra lá de maragogipe. foto: alto, entendeu?” (Carlos M. Santa- mesmo. Isso é que é mulher pisar luiz santos. na, dito Babau, São Braz). valente, mulher boa, é prazer e página ao lado alegria e satisfação”. (João Saturno, ianaba cantando. foto: “Quando eu estou sambando, São Braz). jean jaulbert. eu grito uma chula, que eu vejo uma mulher ali amassando o barro “Quanto mais no samba a gente no mesmo lugar, eu não gosto vê a mulher na roda sambando, muito, aí eu estou com o pandeiro sapateando, mais a gente tem a mais amarrado. Mas quando eu vejo influência de tocar”. (João Antônio a mulher sair e cortar mesmo no pé das Virgens, Saubara). { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 39

O canto resposta à chula, e apresenta, ideal- Em se tratando de samba chula, mente, alguma espécie de relação a principal parte cantada é chamada com aquela, sendo que o caráter justamente de chula. Chula (mascu- desta relação é muitas vezes, para lino: chulo) é adjetivo português dizer o mínimo, obscuro, inclusive, que quer dizer vulgar ou grosseira. De ao que parece, para os sambadores. adjetivo passou a substantivo já em Portugal, para designar certas dan- “O que é o relativo? O relativo ças e cantos populares. No Brasil, é uma segunda chula que no final os estudiosos registraram a existên- combina com a chula” (Pedro dos cia de chulas não só na Bahia, mas Santos, Maracangalha). também no Rio Grande do Sul, Amazonas e São Paulo, também Mas em que consiste este combi- para designar cantos e danças. Na o chamado relativo, também em nar?... É certo, no entanto, como Bahia, no entanto, o termo se fixou polifonia de terças paralelas. já notara Waddey (1982:16), que no canto, como já foi notado por o relativo bem executado deve se Oneyda Alvarenga.10 “Quatro sambador: dois canta seguir imediatamente à chula, sem Alguns grupos, por exemplo, a chula e dois responde o relativo. perda de um só tempo: em Santiago do Iguape e São Fran- E mulher, a quantidade que tiver cisco do Conde, parecem concor- [também responde o relativo]” “(...) uma parte [dos homens] dar em que para cantar o samba (Zeca Afonso, São Francisco do grita a chula, os outros respondem chula o ideal é contar com quatro Conde). o relativo, imediatamente, pra não homens. Os dois primeiros can- ficar a palavra longe da outra.” tam a chula, em polifonia de terças O relativo é uma estrofe cantada (Manuel Domingos Silva, Teodoro paralelas, e os dois outros cantam que se constitui numa espécie de Sampaio). { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 40

Mestre Quadrado, em mar grande, município de vera cruz. foto: luiz santos.

E que, além disso, o reforço vocal das mulheres durante o rela- tivo é valorizado esteticamente, de maneira muito explícita:

“E quando o outro responde o relativo, a mulher vem e comple- menta junto, que é pra ficar boni- to” (Idem, ibidem).

“O relativo é assim: o sambador tem por obrigação cantar o samba, e as mulheres ficam na parte do relativo, pra ficar uma coisa mais bonita. Porque o homem cantando o samba e o relativo, não sai, então as mulheres cantando o relativo, o samba fica mais organizado, mais bonito” (Dilma F. Alves Santa- na, conhecida por Fiita, Teodoro Sampaio).

Em alguns locais, no entanto, como Mar Grande, na ilha de Ita- parica, os gritadores de chulas fazem { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 41

questão de dizer – com uma ponta As partituras e letras transcritas cisco do Conde, faixa 10 do CD de orgulho – que “não se canta re- anexas trazem inúmeros exemplos Samba de Roda – Patrimônio da Humani- lativo” (Mestre Gerson Quadrado, de chulas com e sem relativos, e de dade). 7 de agosto de 2004, anotação de corridos. Daremos aqui, a título campo). de ilustração, apenas uns poucos Chula: No samba corrido é mais exemplos: “Foi agora que eu cheguei, comum o cantador principal do Tava na beira da praia samba ser um solista. É em média Chula: Conversando com meu bem: mais curta a duração de cada in- “Minha sinhá, minha iaiá (bis) – Eh, minha caboquinha, me queira bem, tervenção sua, constituída às vezes Quem tem amor tem que dar Que o bem que eu quero a outra, de um único verso ou um dístico. Quem não tem não pode dar Eu quero a você também.” Aqui, a existência de uma estro- Mulata baiana, quero ver a palma zoar (Mestre Quadrado e Manteigui- fe de resposta - também curta - é Chora, mulata, chora nha, Mar Grande, Itaparica, faixa obrigatória. Não recebe o nome de Na prima desta viola” 4 do CD Samba de Roda – Patrimônio da relativo e será cantada, idealmente, Relativo: Humanidade). pelo conjunto dos participantes do “Ôh, vi Amélia namorando, eu vi Amélia samba. Em alguns casos, o texto e Eu vi Amélia namorando, namora, Amélia” a melodia cantados pelo solista são (Waddey, 1982:26) repetidos com variações mínimas pelo coro dos presentes. Em ou- Corrido: tros, as duas partes são diferentes. “Você matou meu sabiá, A parte coral é, no entanto, sempre Moça morena, vou pra Ribeira sambar” fixa, enquanto a do solista, se for Resposta: diferente da primeira, pode variar Igual ou não. (Samba Raízes de Angola, S. Fran- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 42

Sambão na rua em Pirajuía. foto: luiz santos.

Os instrumentos mais nobres instrumentos: o prato- dido em todo o Brasil. As pessoas que fazem o samba e-faca, que será abordado adiante. O segundo tipo encontrado, de roda tocam os instrumentos Isto não exclui, no entanto, o chamado no Recôncavo de mache- disponíveis. Esta expressão é utilizada fato de que determinados instru- te11, é uma viola de talhe diminuto, para que se perceba a complexidade mentos são especialmente valori- como se fosse uma soprano da fa- das relações entre, por um lado, a zados, especialmente no caso do mília das violas. De fato, na pes- maneira como a participação dos samba chula, sempre mais cheio de quisa de Ralph Waddey encontra-se instrumentos no samba de roda é rigores. Para este, o instrumento menção a três tamanhos diferentes conceituada pelos músicos, e por mais importante é a viola. É tal a de violas artesanais do Recôncavo, outro, a maneira como é posta em importância do instrumento que obedecendo à velha terminologia prática. Veremos que certos ins- um dos nomes por meio dos quais portuguesa para os dois maiores: trumentos, mesmo os muitíssimo a forma de expressão é conhecida é regra inteira e três quartos. O nome do valorizados, nem sempre estarão samba de viola. modelo menor também tem origem disponíveis para uso. Na verdade São encontrados dois tipos portuguesa, situada, ao que parece, é perfeitamente possível fazer um de viola empregados no samba de na Ilha da Madeira. Tanto lá como samba de roda sem instrumentos: roda. Ambos apresentam cinco or- no Brasil, machete foi muitas vezes cantando, batendo palmas e even- dens de cordas duplas: as três mais um outro nome para o cavaquinho, tualmente batendo ritmos nos ob- graves, oitavadas, e as duas mais que tem quatro cordas simples e é jetos que estiverem à mão. Se hou- agudas, afinadas em uníssono. Um ainda menor.12 ver pandeiro, entrará o pandeiro, tipo é a viola industrial, também O machete do Recôncavo parece se houver timbal, melhor, e assim conhecida como viola paulista, pro- ser mais característico da região por diante. O papel das soluções ad vavelmente devido aos principais que se estende de Santo Amaro ao hoc na produção sonora do samba fabricantes estarem na cidade de Norte e a Leste em direção a Salva- de roda tem sua melhor ilustração São Paulo. Um pouco menor que o dor. Em Cachoeira e na região que no caso do que, hoje, é um de seus violão, o modelo é bastante difun- se estende desta cidade em direção { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 43

o machete usado por Seu Zé de Lelinha. foto: luiz santos.

ao Sul e ao Vale do Jequiriçá, não porém necessita de reforma, pois se encontrou menção ao instru- está todo pintado de azul claro e mento, sendo usada, quando era o sem cordas. O outro está em bom caso, a viola paulista. Esta também é estado e pertence ao senhor Pedro, usada na região do machete, onde, o líder do grupo de Maracangalha, no entanto, a preferência por este é que o emprestou para um jovem, manifesta, e acentuada por sua atual filho de um dos cantadores de chula raridade. e tocador de cavaquinho no mesmo Durante a preparação deste grupo. Esse músico estuda mache- dossiê foram encontrados cinco te e já se apresentou algumas vezes machetes: um, na cidade de Sau- com o instrumento. bara, encontrava-se danificado. Eis, segundo Waddey, as me- O segundo, em São Francisco didas aproximadas dos machetes: do Conde, em perfeito estado, e comprimento, 76 cm; diâmetro do magnificamente tocado por seu Zé bojo superior, 17 cm; diâmetro do de Lelinha. Estes dois primeiros bojo inferior, 22 cm; cintura, 12 apresentam fatura em tudo simi- cm; altura da caixa, 6 cm. lar, inclusive nas ornamentações O quinto machete foi en- do tampo, com desenhos de flores. contrado na Ilha de Itaparica, de Dois machetes estão em Maracan- propriedade do grande sambador, galha, no município de Candeias, falecido em 2005, Gerson Francis- sendo um de propriedade do co da Anunciação, conhecido como senhor José da Glória, tocador de Mestre Quadrado. Encontrava-se prato-e-faca e triângulo no grupo também em perfeito estado, em- Samba Chula de Maracangalha, bora lhe faltassem cordas. Mestre { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 44

Pessoal do grupo do Samba Chula de Maracangalha (Zé de Glória – prato, Hilário Mota, conhecido por Pequeno – pandeiro, Seu Pedro Sambador – timbal). foto: luiz santos.

página ao lado ucavaq inho usado no Samba Chula de Maracangalha. foto: luiz santos.

Quadrado não sabia tocá-lo, mas parecido com o de violões e cava- que a viola é mais fundamental. Isso guardava-o com muito ciúme por- quinhos modernos, e inclui crave- se deve também a que, neste tipo que pertencera a Chico da Viola, lhas de metal com roscas. O tampo de samba, quando uma sambadeira oriundo de Santiago de Iguape e, não é ornamentado. Por dentro há entra na roda, as vozes se calam e posteriormente, músico em Salva- um selo onde ainda se pode ler o passa a caber à viola - e, no caso da dor, com quem fez sambas duran- nome do construtor: Clarindo dos região de Santo Amaro, de prefe- te muitos anos e que, ao falecer, Santos.13 rência a um machete - o papel de deixou-lhe o instrumento como No samba chula, como ficou protagonista musical, num diálogo herança. claro, o uso da viola é mais impor- com a dança. Na ausência de viola, A fatura do quinto mache- tante que no samba corrido. Os o mesmo papel de protagonista te encontrado é diferente da dos dois tipos podem acontecer com ou musical poderá ser desempenhado anteriores. Seu acabamento é mais sem viola, mas é no samba de chula por violão, cavaquinho ou bando- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 45

lim. O cavaquinho e o violão tanto da sanfona. Também há referências podem ser empregados conjun- ao uso da sanfona de oito baixos em tamente com a viola, como, na outros municípios das regiões Nor- ausência desta, em seu lugar. Já o te e Noroeste do Recôncavo, como bandolim foi observado apenas em Antonio Cardoso, Amélia Rodri- Santiago do Iguape, numa ocasião gues e Conceição de Jacuípe, assim em que não havia viola disponível. como em Castro Alves, mais ao Sul. Um dos mais importantes cantores Os outros instrumentos uti- de samba de Cachoeira, o falecido lizados são membranofones e Dedão (Augusto Passos da Costa, idiofones. Entre os primeiros, o 1944-2004) informou que o grupo principal é o pandeiro. O pan- de cordas deveria constar ideal- deiro é um tambor de aro com mente de viola, violão e cavaquinho platinelas, correspondente ao que (Cachoeira, 10 de julho de 2004, em inglês se chama tambourine, e em de papel de embrulho, de jornal ou anotação de campo). francês tambour de basque. Há dois de palha” (Waddey, 1981:15, nota). Também foram encontrados ca- tipos de pandeiros em uso atual- O outro tipo é o pandeiro indus- sos de uso da sanfona de oito baixos: mente no Recôncavo. Um é o tipo trializado, com aro, platinelas e em Terra Nova, Teodoro Sam- tradicional, feito pelos próprios tarrachas de metal, e membrana de paio e Maracangalha. Nessa região sambadores. O aro é de madeira de plástico. Este último é hoje larga- do Recôncavo Norte, existe certa jenipapo, as platinelas de chapinha mente predominante. valorização desse instrumento no de refrigerante, e a membrana pode Outros membranofones que são samba chula. Em Teodoro Sampaio ser de couro de jibóia ou de bode. utilizados no Recôncavo: existe ainda um grupo de samba Esta é fixada no aro por meio de • Atabaques: tambores cilín- que toca com um realejo, ou gaita de pregos e retesada, antes de tocar, dricos grandes, abaulados no meio, boca, cuja sonoridade se aproxima “mediante calor gerado pela queima com membrana de couro de um { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 46

abaixo btim ales. foto: luiz santos.

àr di eita Dt e alhe de Dona Maria Augusta, sambadeira de São Braz, tocando prato-e-faca. foto: luiz santos.

• Tamborins ou tamborinos: tambores pequenos, de aro, com membranas de couro ou sintéti- cas que são tocados com pequenas baquetas de madeira. • Marcação: tambores cilíndri- cos grandes com membrana plásti- ca, de um lado só, tocados em posi- ção horizontal, apoiados nas pernas de tocadores sentados, ou vertical, apoiados no chão e com tocadores de pé. Tocam-se com as mãos. Entre os idiofones, o mais lado só, tocados em posição vertical característico do samba de roda é Ao contrário dos outros ins- e apoiados no chão. Os tocadores o prato-e-faca. Trata-se dos dois trumentos citados, o prato-e-faca ficam de pé e tocam com as mãos. utensílios domésticos usuais, com a é tocado predominantemente por São os tambores clássicos do can- única especificação de que o prato mulheres. Isto pode se dever à rela- domblé baiano. deve ser, de preferência, esmaltado. ção tradicionalmente privilegiada, • Timbales: tambores cônicos Na descrição de Waddey: “Mantém- no Recôncavo, entre mulheres e o grandes com membrana plástica, se o prato na palma aberta de uma mundo da cozinha. Outra peculia- de um lado só, tocados em posição mão, numa posição como se fosse ridade da tocadora de prato-e-faca horizontal e apoiados nas pernas um pastelão que o tocador estivesse é que ela, regra geral, toca de pé, e dos tocadores, que ficam sentados. preparando para lançar no próprio não necessariamente numa posição Tocam-se com as mãos. rosto. Arranha-se a faca na borda próxima à do conjunto dos tocado- do prato (...)”. (1981:15) res. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 47

à direita utab inhas tocadas por baiana do samba de roda suerdieck. foto: pedro ivo oliveira. iaba xo xequerê. foto: luiz santos.

Outros idiofones encontrados geral, as mulheres batem palmas isso, o uso de amplificação para os no samba de roda são reco-recos e suaves durante a chula cantada para instrumentos de corda se generali- chocalhos - estes, de contas inter- não atrapalhar os cantadores, ou zou. Cavaquinhos, violões e violas nas ou externas -, dos mais variados mesmo, em vez de bater palmas, em muitos casos foram dotados de formatos e materiais; e, nos muni- esfregam suavemente em movimen- captador embutido e conectados cípios mais distantes do mar, tri- tos circulares as palmas das mãos. por um fio a pequenas caixas de ângulos de metal, suspensos no ar Quando então a chula termina, to- som, geralmente, de má qualidade. pela mão menos hábil do tocador, e das começam a bater as palmas - ou Em algumas ocasiões, o uso de mi- tocados pela outra com uma vareta tabuinhas - com entusiasmo. crofones para as vozes também não também de metal. Os resultados da pesquisa de é incomum. É de especial importância no Waddey indicam o conjunto de acompanhamento rítmico do samba percussão apropriado para o samba de roda o papel das palmas, batidas, como sendo constituído de dois idealmente, por todos os partici- pandeiros, prato-e-faca e ocasio- pantes/assistentes. A participação nalmente um pequeno tambor. de todos os presentes por meio das Não são mencionadas as tabuinhas. palmas funciona como uma indica- Nos sambas presenciados duran- ção da qualidade do samba, de sua te a preparação deste dossiê, esse capacidade de contagiar a todos. conjunto foi consideravelmente Como uma espécie de derivação das acrescido. Viam-se geralmente três palmas, alguns grupos – de Cacho- pandeiros e a presença de tambo- eira, Saubara - utilizam pares de res grandes - timbales e marcação tabuinhas, ou taubinhas, que fazem os - era usual. O resultado é que o mesmos padrões rítmicos. acompanhamento rítmico cresceu É importante notar que, regra em volume. Em concordância com { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 48

passo de baiana do samba suerdieck. foto: pedro ivo oliveira.

O ritmo junto a clérigos e a aristocratas. Seu de linhas-guia (Nketia 1975), de beat Qual é o compasso do samba? uso para descrição da música feita (Kubik 1995), e de unidades operacio- Qualquer músico brasileiro que hoje por afro-descendentes em si- nais mínimas (Arom 1985) ou pulsações tenha estudado um pouco da cha- tuação de pobreza no Recôncavo da elementares (Kubik 1995). mada teoria musical não hesitará Bahia diz muito sobre uma história Os eventos rítmicos do samba em responder: “dois por quatro”. de dominação que também come- de roda podem, para fins analí- Isto quer dizer, em resumo, que seu çou no século XVI. Mas a maneira ticos, ser divididos em diferentes ritmo se faz em torno de dois tempos, como tais ferramentas vêm sendo planos. Num plano mais básico, ou duas pulsações principais, de usadas pelos músicos populares ou mais denso – isto é, com maior duração teoricamente igual – cor- brasileiros, nos últimos 100 anos, quantidade relativa de articulações respondendo, por exemplo, aos é certamente – como no caso do rítmicas por período – estão os passos de alguém que se dispusesse prato-e-faca – bastante diferente pandeiros, prato-e-faca, e, quando simplesmente a caminhar em sintonia do uso previsto por seus inventores. presentes, chocalhos e reco-recos. com o samba14 – as quais se subdivi- Tal fato justifica, a nosso ver, o uso A participação desses instrumen- dem em quatro unidades menores, – moderado e sempre crítico – que tos no samba tem como ponto também de duração teoricamente delas também será feito aqui. de partida um ostinato que, em igual. Na notação musical escolar, A descrição da estrutura rítmica termos de notação convencional, os tempos são escritos em semíni- do samba de roda é bastante faci- pode ser descrito como uma suces- mas, e as unidades menores, em litada, também – e não por acaso são de semicolcheias – as unidades semicolcheias. – pelo uso de conceitos desenvol- mínimas de Arom ou a pulsação Compassos, semínimas e semi- vidos, na etnomusicologia, por elementar de Kubik. A partir dessa colcheias foram inventados na Eu- estudiosos das músicas da África base, acentuações e deslocamentos ropa, entre os séculos XVI e XVII, sub-sahariana. Pensamos, em são criados, preferencialmente de como ferramentas de uma prática particular, nos conceitos de contra- maneira contramétrica.15 musical desenvolvida sobretudo metricidade (Kolinski 1960, 1973), Um outro plano do ritmo, por { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 49

assim dizer mais espaçado e num que os pontos de apoio dos pés, mentos dos pés é percebida pelas registro mais grave, é configurado sempre alternando entre o direito e sambadeiras como igual – o que predominantemente por instru- o esquerdo, correspondem aos beats. configuraria um ritmo de subdivi- mentos como os timbales e tambo- No entanto, o que acontece entre são propriamente ternária, como res de marcação. Este corresponde um beat e outro é menos claro. no caso de um compasso seis por oito, às semínimas, ou ao beat de Kubik, A alternância dos passos se dá simultâneo ao dois por quatro dos ins- ou ainda, como ficou dito atrás, da seguinte maneira no miudinho, trumentos; ou se tal duração é por aos passos de uma caminhada em estando sublinhados os pontos de elas percebida como diferente, indi- sintonia com o samba. Em alguns apoio: direito-esquerdo-direito- cando uma subdivisão, finalmente, casos, essas semínimas são tocadas esquerdo-direito-esquerdo-direito binária como no caso da chamada de maneira igual, sem marca que as etc. Como o mesmo pé nunca se síncope característica, ou, usando-se distinga; em outros casos – talvez repete, o ritmo seria em princípio figuras musicais convencionais, por influência do samba carioca? binário (direito-esquerdo); mas do semicolcheia-colcheia-semicolcheia. Como – há acentuação e timbre mais grave ponto de vista dos pontos de apoio, o miudinho é rápido, as diferenças no que seria a segunda semínima do sublinhados acima - pontos onde de duração absoluta entre as duas dois por quatro, configurando mais os passos coincidem com o beat hipóteses são dificilmente percep- um caso de contrametricidade. - a subdivisão seria antes ternária. tíveis, e provavelmente coincidem A alusão aos passos remete a um Percebe-se que o miudinho não com as margens de erro de qualquer ponto de grande interesse e que corresponde ao que foi chamado formalização musical. É possível necessita maior aprofundamento: acima de caminhada, sendo um que estratégias de pesquisa baseadas o da definição do ritmo feito pelos movimento, além de obviamente na psicologia cognitiva sejam indi- pés das sambadeiras no miudinho. mais complexo, sensivelmente mais cadas para dirimir a dúvida. A importância dos pés no samba rápido que os passos cotidianos. Um terceiro plano do ritmo de roda é ressaltada em inúmeros No entanto, ainda não foi possível corresponde às linhas-guia, e sua depoimentos colhidos. Parece claro saber se a duração desses movi- execução cabe prioritariamente às { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 50

palmas e/ou às tabuinhas. Tanto no No entanto esta se combina, Finalmente, um quarto plano da que se refere à densidade ou espaça- no caso aqui estudado, com outros elaboração rítmica é o que corres- mento das durações, como no que se elementos rítmicos de maneira ponde às vozes que cantam chulas, refere ao timbre (grave ou agudo), bastante singular, gerando inclu- relativos, barraventos e corridos. no samba de roda as linhas-guia sive configurações rítmicas que se Como já notara Waddey, a liberda- ficam numa posição intermediária aproximam do que foi chamado de rítmica das melodias em relação entre os dois outros planos já men- paradigma do Estácio (Sandroni, ao beat é muito grande, confirmada, cionados. 2001): mais um caso em que as in- portanto, no samba de roda, uma A presença de linhas-guia como fluências mútuas entre samba baia- tendência percebida pelos estu- traço rítmico africano na músi- no e carioca são difíceis de elucidar. diosos na música influenciada pela ca brasileira tem sido notada por cultura negro-africana de maneira vários pesquisadores (Kubik 1979; Ex. 2, 3 e 4 geral. Mukuna, s/d; Sandroni, 2001). A rítmica do samba de roda é No caso do samba de roda, a linha- um terreno vasto e fascinante e aqui guia mais presente é aquela talvez não se pretendeu mais que apontar mais comum na música tradicional alguns elementos gerais para sua brasileira: o famoso 3-3-2, ou col- caracterização. cheia pontuada, colcheia pontuada, colcheia.

Ex. 1 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 51

Dona Dodô, Dona Maria Anna e Dona Deco, sambadeiras de Saubara. foto: luiz santos.

Melodia e harmonia Os sambas de roda do Recônca- vo baiano empregam escala diatô- nica maior não temperada, com o sétimo grau oscilando entre a sétima maior e a menor e, freqüen- temente, numa posição intermedi- ária. A articulação das melodias tem forte tendência a acontecer off-beat, confirmando a opinião geral dos especialistas sobre as tendências rítmicas das músicas afro-america- nas. A polifonia em terças paralelas é muito freqüente, e mesmo obri- gatória no caso do samba chula. Os gritadores de chulas tendem a can- tar no registro de tenor, chegando às vezes ao lá agudo (ver Exemplo 5). Estes são os intervalos predomi- nantes, mas há também ocorrência de quartas, quintas e sextas entre os dois gritadores de chulas (ver Exemplo 8). No relativo, as mulheres cantam geralmente uma oitava acima do { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 52

gritador de chula que faz a voz mais grave e, conseqüentemente, uma sexta acima do gritador de chula que faz a voz mais aguda (ver Exem- plos 6 e 7). Quando há instrumento har- mônico - violão, violas de vários ti- pos, cavaquinho ou sanfona de oito baixos - os acordes são geralmente de tônica e dominante. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 53

A dança quenino, ele proporciona locomo- dançando o miudinho, se reque- O passo mais característico do ção cômoda devido à velocidade na brando e se deslocando no espaço samba de roda é o chamado miudi- qual é executado. Esta locomoção, geral em direção aos músicos, para nho. Trata-se de um leve e rápido ademais, pode ser feita para qual- dançarem bem próximas e de frente pisoteado, com os pés na posição quer direção sem sair do miudinho: para eles, numa espécie de monó- paralela e solas plantadas no chão. para frente, para os lados ou para logo corporal, que, embora seja No caso das sambadeiras, parece ser trás, de acordo com o desejo da reverencial e respeitoso, também sempre a partir deste pisoteado que sambadeira. é exibicionista. Tamanhas são a as outras partes do corpo se mo- Como os músicos normalmente graciosidade e a velocidade com que vem, simultaneamente, e a dança estão posicionados ou no fundo do a sambadeira se locomove através do se desdobra. Embora o passo do círculo, de frente para as samba- espaço, desenhando em seu deslo- miudinho seja, em amplitude, pe- deiras, ou ao lado delas, elas saem camento linhas { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 54

a Tradicional umbigada, Samba de Roda Suerdieck. foto: luiz santos.

página anterior bSam a de Roda Filhos de Nagô, de são félix. foto: luiz santos.

Há uma diferença fundamen- mente o foco do olhar está dirigido tal entre o samba chula e o sam- para o chão, observando o passo do ba corrido, quanto à postura das miudinho. Enquanto que, nas mais sambadeiras. Em geral, no samba jovens, o foco do olhar se dirige chula, a sambadeira mantém a co- discretamente para várias direções. luna vertebral ereta, os dois joelhos Entretanto, elas não perdem a sen- semiflexionados, com ambos os sualidade do remexer dos quadris, braços relaxados e soltos, descan- que é bastante enfatizado, tanto sando-os ao longo do corpo. O pelas mulheres mais velhas como peso do corpo é distribuído na sola pelas mais jovens. dos pés, entre os dedos e os calca- No caso dos sambas corridos, nhares. O movimento dos quadris embora a coluna vertebral tam- também é contínuo e proveniente bém esteja ereta, ela se mostra mais sinuosas, que dá a impressão de do ritmo produzido pelos pés. Ele flexível, enquanto os dois joelhos estar deslizando ou escorregando lembra uma pequena gangorra que ficam semiflexionados e ambos os numa superfície lisa. Ao término de balançasse de maneira perpendicu- cotovelos também semiflexionados, seu solo, a sambadeira dá a umbi- lar à pélvis, com o ponto de engate dão aos braços mobilidade no mo- gada na próxima, que irá então por um pouco abaixo do umbigo. Este vimento de ir e vir; os pés conti- sua vez correr a roda. A umbigada é movimento, nas sambadeiras mais nuam plantados e em contato com muitas vezes quase imperceptível, velhas, pode ser feito mantendo a o chão, ainda no passo miudinho, e pode também ser trocada por parte superior do corpo totalmente mas com mais velocidade, amplitu- outro gesto indicativo da escolha, imóvel. de e liberdade: os pés se separam e como erguer os braços na frente do Entre as sambadeiras mais velhas podem às vezes sair do paralelismo outro, ou simplesmente lançar um notamos também que, embora a e formar um ângulo agudo; os cal- olhar. cabeça se mantenha ereta, geral- canhares elevam-se um pouco mais. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 55

sambadeira do samba da capela, de conceição do almeida. foto: luiz santos.

Conseqüentemente, as pernas tam- pois no samba de roda a sambadeira bém se separam um pouco e o peso “tem que correr a roda”. do corpo é levemente jogado para “Correr a roda” significa dan- frente e para os dedos dos pés. Elas çar, não em um mesmo local, mas usam também, de vez em quando, extrapolando os limites espaciais da a articulação de ambos os ombros, sua própria kinesfera16, expandin- sacudindo-os e, conseqüentemen- do-se e utilizando-se do espaço ge- te, agitando todo o corpo, inclusive ral da roda. Ou seja, a sambadeira a cabeça e o foco do olhar, que se se desloca – geralmente no sentido dirige para várias direções. Ou ain- anti-horário – aproximando-se da, em combinação com o remexer fisicamente de cada músico, como dos quadris, as mulheres podem se estivesse dançando não só em tremer ambos os ombros fazendo o resposta ao que ele toca, mas para miudinho sem sair do lugar. ta que “esse negócio de chegar no ele, reverenciando o que ele faz, ao Uma das mais evidentes con- meio da roda, pular, pular e sair mesmo tempo em que exibe o que venções coreográficas do samba de não é samba”. Dilma lamenta que ela é capaz de fazer. Sendo assim, roda - tomado agora de maneira “a juventude de hoje” não esteja a regra coreográfica de correr a roda geral - diz respeito ao uso do espaço sambando mais “pra correr a roda”, acaba por revelar não só a interde- dentro da roda. Qual seja: quem pois muitos estão misturando e pendência da música com a dança, entra na roda para sambar, tem dançando como se fos- mas também o relacionamento que correr a roda. Dilma Santana, de se samba de roda. Ela explica que íntimo estabelecido entre o músico Teodoro Sampaio, por exemplo, algumas sambadeiras “chegam assim que toca o samba, que geralmente é diz que “é obrigação da mulher, no meio da roda, se sacodem todas do sexo masculino, com a dançari- quando ela samba mesmo, correr no pagode e vão saindo”, o que, na sambadeira, que geralmente é do a roda”. A sambadeira argumen- no seu entendimento, está errado, sexo feminino. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 56

Samba de Roda Raízes de Angola, em São Francisco do Conde. foto: luiz santos.

página ao lado bSam a da Capela, em conceição do almeida. foto: luiz santos.

O segundo aspecto coreográfico complex dialogue in which various parts of the a cabeça – se move como um todo. fundamental do samba de roda diz body talk at the same time, and in seemingly Esta articulação total do corpo pode respeito ao papel preponderan- different languages: “um diálogo com- ser considerada uma conseqüência te exercido pela parte inferior do plexo no qual várias partes do corpo natural da participação íntegra e corpo. A expressão, aliás, difundida falam ao mesmo tempo, e em lin- apaixonada dos sambadores em suas em todo o Brasil, segundo a qual o guagens aparentemente diferentes” performances. Como bem explicou sambador tem que saber dizer no pé (1995:2). a sambadeira Alva Célia Medeiros, sintetiza não apenas uma das regras de São Francisco do Conde: “O mestras do samba como dança – Ou, nas palavras de uma sambadei- samba de roda, pra mim, é algo regra que não é exclusiva do samba ra: espontâneo, é algo que mexe com o de roda – mas também revela qual coração, mexe com o corpo, mexe a parte do corpo que desempenha “Samba é para quem sabe sam- com a mente, mexe com toda a o papel principal dentro da dan- bar (...) [mas] nem todo mundo estrutura nossa”. ça. Com isso não se quer dizer que sabe sambar. Sambar não é estar Isso explicaria, talvez, por que os pés são os únicos a falar, ou que pulando, sambar é no pé. O sam- alguns entrevistados consideram o significado da dança se confina ba vem do pé. Se fizer o ritmo no a prática do samba como algo que aos movimentos dos pés. Mas sim, corpo e o pé certinho no chão, o alegra, rejuvenesce e cura. A alegria que os pés são o centro gerador de samba vai longe”. (Maria Augusta S. e o bem-estar desfrutados pelos que movimentos, centro que ressoa e Ferreira, São Braz). participam da roda de samba, seja repercute no resto do corpo. Como tocando, cantando ou dançando, é, bem disse Barbara Browning, o Em suma, embora no samba os de fato, um tema recorrente alu- samba é the dance of the body articulate, pés comandem os movimentos do dido por inúmeros entrevistados. ou seja, a dança do corpo capaz de resto do corpo, como um centro Dona Dalva Damiana de Freitas, falar (1995:1). A autora descreve gerador de movimento, o corpo da por exemplo, ressalta os benefícios os movimentos do samba como a sambadeira – da ponta dos pés até físicos e mentais do samba dizendo: { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 57

tro do espaço, evolui numa série de movimentos e exibe sua habilidade de sambador. Toda a coreogra- fia se desenvolve entre as fileiras e segue uma variedade de seqüências de movimento, comandada por D. Marina. Por exemplo, os homens, sambando, correm no centro do espaço atrás das mulheres, sendo que, em outros momentos, são elas que se dirigem a eles; essa brin- cadeira se estende num jogo de sedução e de cumprimentos, numa “Estou com as pernas travadas de da cidade de Conceição do Almei- exibição cheia de glamour. reumatismo, a pressão circulando, da, sob liderança de D. Marina, Em outro momento, as samba- a coluna também. Mas quando toca os casais formam duas fileiras para deiras se locomovem marcando o o pinicado do samba eu acho que dançarem uma em frente da outra ritmo no chão, transferem o peso eu fico boa. Eu sambo, pareço uma usando indumentária padronizada. do corpo para frente, arrastam o menina de 15 anos”. As sambadeiras, na sua maio- pé que fica atrás, e assim, vão ao A seguir, alguns exemplos de ria jovens, iniciam o samba com encontro dos sambadores. Depois é variações coreográficas do samba de o passo miudinho e, em seguida, a vez deles irem ao encontro delas, roda. através de uma discreta umbigada, procedendo da mesma maneira. Na coreografia do grupo cha- convidam um sambador que esteja Em um determinado momento, mado de Samba da Capela, forma- posicionado na fileira oposta à sua, D. Marina coloca um pau de vas- do por jovens mulheres e homens para sambar. Ele, sozinho, no cen- soura no centro do espaço. Primei- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 58

ro, as mulheres vão, uma a uma, e dade, aliás, quase que inteiramente panela de alumínio que está no passam por cima dele, executando formada por negros, como tantas chão, panela que depois é colocada um passo pulado de cruzar e des- outras no Recôncavo. na cabeça. Enquanto isso, as ou- cruzar as pernas; depois é a vez dos As sambadeiras Paparutas in- tras que estão no círculo cantam e homens. Ainda na evolução dessa terpretam uma coreografia com um dançam, segurando um prato de coreografia, um outro momento enredo fixo, ao som de um grupo comida na cabeça, preparado por original consiste em os homens se de músicos. Todas vestidas com elas, e repetindo, inúmeras vezes, a dirigirem às mulheres e, com muita trajes padronizados, as sambadei- seguinte canção: habilidade, as suspenderem pelas ras do Paparutas desenvolvem uma axilas e as girarem no ar. cena com a finalidade de mostrar a “E somos nós, Paparutas boas (bis) O entusiasmo é vibrante, tanto culinária local por meio do samba, Na cozinha na manemolência dos participantes como da platéia onde se destacam a coreografia e a somos pequenas e provocantes que assiste atenta às evoluções dos pantomima de gestos. na maior reminiscência. sambadores, principalmente quan- A exibição das sambadeiras do Eu sou a manemolência do eles demonstram domínio numa Paparutas, junto a outros mora- que me chamam de Iaiá variedade de ações corporais, como, dores da ilha, se deu ao ar livre. Eu sou a dona da cozinha por exemplo, sapatear, deslizar, sa- No centro de um grande círculo como eu não há igual”. cudir, balançar, pular, entre tantas formado só por mulheres e três outras. meninas, fica a protagonista da O movimento de deslocamen- Outra variação coreográfica do coreografia, a Dona da Comida, to no círculo é repetitivo e se dá samba de roda que merece destaque que se destaca pela vestimenta de através de um passo que vai para um é a do grupo de mulheres e músicos baiana, toda de . Inicialmen- lado e para o outro, balançando o chamado Paparutas, da comunidade te, a Dona da Comida, sambando, corpo todo, num movimento de da Ilha do Paty, no município de simula um gesto de mexer com pêndulo. Depois dessa primeira São Francisco do Conde, comuni- uma colher de pau a comida numa cena, as mulheres se dirigem, uma { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 59

a dona da comida das pararutas, ilha do paty, município de são francisco do conde. foto: luiz santos.

a uma, à Dona da Comida, para lhe mostrar seu prato. Esta, então, simula uma expressão corporal de aprovação do prato, mas às vezes lança uma expressão facial questio- nadora para determinado prato, aparentemente comunicando que aquele ali está “mais ou menos”. Toda essa cena é uma comédia, como dizem alguns moradores da ilha. Após a cena da aprovação da Dona da Comida com as sambadei- ras, os pratos são servidos à comu- nidade e aos convidados. Depois elas voltam a dançar livremente na roda do samba, junto com outras pessoas, que se juntam a elas espon- taneamente. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 60

detalhes de indumentária das baianas do samba de roda suerdieck. fotos: pedro ivo oliveira.

A indumentária modernas do dia-a-dia, como saia estilos; e, em alguns grupos, dis- Não há uma regra fixa na indu- curta e justa, calças compridas e creta maquiagem. As sambadeiras mentária dos participantes do sam- sapatos tipo tênis, visivelmente di- complementam esse traje usando ba de roda, simplesmente se dança ficulta a movimentação dos quadris, sandálias para sambar. com a roupa que está no corpo. das pernas e do passo miudinho. As cores usadas no traje das Em geral, as pessoas se vestem com Naqueles grupos que apresen- baianas são contrastantes e fortes, roupas do cotidiano, aquelas que tam uma indumentária uniforme e como o azul e o amarelo, e o laranja usam no dia-a-dia, para trabalhar padronizada, as sambadeiras usam e o verde. A combinação das co- ou passear. um traje típico baseado na simbo- res, aparentemente, não obedece a Mas nota-se que para as sam- logia da tradicional baiana, ou seja, nenhum padrão estético especial, badeiras a saia ampla, comprida, saia ampla, comprida e franzida e também não segue nenhuma franzida na cintura e rodada, é boa na cintura, muitas vezes com dois tendência de moda atual. Nota-se para a expressão corporal. Esse tipo níveis de babados, e também com que aqueles grupos que buscam se de saia proporciona ao remexer tecidos estampados em cores vivas profissionalizar usam indumentária dos quadris mais mobilidade, e aos e contrastantes; blusa folgada com uniformizada e padronizada, mas movimentos, amplitude, principal- babado no decote redondo, feita cada um demonstra uma percep- mente quando elas giram e sambam com tecido de algodão e, geral- ção estética própria que não parece no passo do miudinho. A imagem mente, com uma das cores contras- especialmente influenciada pelos do corpo das sambadeiras em mo- tantes com a cor do tecido da saia meios de comunicação contempo- vimentos simultâneos, sacudindo estampada; turbante ou uma tira râneos. os ombros, remexendo os quadris, de tecido largo feito de algodão, A maioria das sambadeiras girando e segurando a saia rodada, encobrindo os cabelos, e com uma usa sandálias, mas em alguns gru- produz no espectador uma sensação das cores contrastantes da saia ou pos elas se apresentam descalças. estética de vitalidade e bem-estar. da blusa; colares de cores diver- Quanto aos homens, usam sapatos Por outro lado, o uso de roupas sas; brincos e pulseiras de diversos e muitas vezes dançam também des- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 61

à direita evestim nta das paparutas. foto: luiz santos. ai ba xo A s mulheres do Samba de Roda Barquinha de Bom Jesus (Dona Rita, Nice, Charlene e Dona Eliene). foto: luiz santos.

calços, dependendo do local onde cabelos. Esse adereço é característi- presentes entraram na roda com as se samba. co da tradicional baiana, das ven- roupas cotidianas que vestiam na- Dos mais destacados trajes de dedoras de acarajé e das filhas-de- quele momento. Em outros grupos, baiana tradicional estão os do grupo santo quando se apresentam para a os sambadores dançaram desde o comandado por D. Dalva Damiana dança do Xirê, em cerimônias do início com a roupa do cotidiano, de Freitas, na cidade de Cachoeira, candomblé.17 como calças compridas, bermudas, durante as comemorações na Festa O único grupo de sambadores shorts, camisa de mangas curtas ou da Nossa Senhora da Boa Morte. que vimos vestindo indumentária compridas de tecido de algodão ou As sambadeiras usam por baixo da totalmente uniformizada e padro- mesmo camisetas de malha e sapa- saia estampada – ampla, compri- nizada é o de D. Marina, em Con- tos. Em outros ainda - Terra Nova, da, até os tornozelos, franzida na ceição do Almeida. Ainda assim, Suerdieck, Samba Chula de Pitan- cintura e rodada – várias outras no final do samba, várias pessoas gueira - as sambadeiras usavam, que são chamadas de anáguas, para dar um maior volume. Além disso, por cima dessa saia, elas usam uma blusa ampla, branca e rendada, com mangas curtas, a chamada bata; uma grande quantidade de colares, pulseiras, brincos; e um manto largo e comprido colocado por cima de um dos ombros, conhecido pelas filhas-de-santo do candomblé como pano da costa. Essas senhoras também usam um turbante branco amarrado na cabeça, encobrindo os { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 62

os meninos jadson e jan, do Sítio Dois Meninos em Pirajuía. foto: luiz santos.

página ao lado Seu João do Boi e os netos, Calango e Nêgo, de São Braz, município Santo Amaro da Purificação. foto: luiz santos.

ano que estavam totalmente absor- vidas pelo ritmo do samba, fazendo pequenos passos e batendo palmas, para grande alegria dos adultos e jovens presentes. A partir de 8 ou 10 anos já participam da roda de forma ativa e consciente. O papel da família parece ser bastante importante no estímulo e nas oportunidades de observação do samba. Em alguns casos, quem faz isso é a família nuclear: todas, saias compridas, embora Aprendizado “(...) e aí vindo de pequena, de diferentes modelos. No que se A transmissão dos saberes en- mãinha cantava, ele [pai] tocando, e refere aos músicos, só vimos usarem volvidos na realização do samba de eu fui vendo e aprendendo, essas indumentária uniformizada ou pa- roda vem sendo feita por meio da músicas mesmo que eu acabei de dronizada os dos grupos Raízes de observação e da imitação. Crian- cantar foi de pequena [que apren- Angola, em São Francisco do Con- ças observam e escutam o samba de di] no samba de roda.” (Kelly Cris- de, Filhos de Nagô, na cidade de roda desde a mais tenra idade. A tina S. dos Santos, Ilha do Paty). São Félix, e o das Paparutas da Ilha partir de 4 ou 5 anos, ou mesmo do Paty. Nos outros casos, prevalece bem antes, elas começam a imi- Em outros casos, a família am- uma indumentária do cotidiano. tar a dança, as palmas e os toques pliada: Em algumas localidades, os músicos rítmicos. Em vários casos foram usam chapéu de couro ou palha. observadas crianças pequenas de um “Eu mesmo desde criança gosto { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 63

do samba, meu pai era sambador, E depois eu fui crescendo, minhas Nem sempre a observação é meus tios, meus parentes são daqui tias gostavam muito de samba e pedi tão passiva quanto pode parecer. de Terra Nova, e eu me criei nesse a ela: ‘Júlia, deixe Fiita ir conti- Em alguns casos, parece haver uma clima e gosto até hoje do samba, go pro samba’, e ela deixava e eu intencionalidade educativa, tanto acho bonito” (Carlos Pereira dos sambava a noite toda, achava bo- por parte dos mais velhos, quanto Santos, chamado Carlito Carpin- nito minhas tias sambando porque da própria criança: teiro, Teodoro Sampaio). todo mundo sambava, era a família inteira, achava bonito e continuei e “Quando eu tinha cinco anos “Minha mãe saía para as rezas até hoje eu gosto do samba” (Dil- de idade, meu pai começou a me e me levava e eu ficava olhando o ma F.A. Santana, conhecida como levar pro samba pra me ensinar. Aí povo sambar, mas achava tão boni- Fiita, Teodoro Sampaio). eu fui, ficava com o olho em cima to e dizia ‘eu vou sambar um dia’. da boca dos homens pra aprender e { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 64

Meninas e pandeiro, no Alto do Riachinho, Mar Grande, município de Vera Cruz. foto: luiz santos.

daqui a pouco comecei a entrar no É importante ressaltar também ram envolver os rapazes no samba, meio” (Zeca Afonso, São Francisco que o mundo do aprendizado do ensinando-os a tocar os diversos do Conde). samba na verdade são dois mundos, instrumentos, o que obviamente separados por gênero. As meninas tem a ver com a inclinação de cada É claro também que, na ausên- aprendem a sambar com as mulhe- um e com os conhecimentos do pai, cia dos pais, outros podem desem- res, que as introduzem nos passos tio, irmão etc. Em muitos casos, penhar o papel de estimuladores do e movimentos, e adotam a postura como foi visto, o gosto dos rapazes aprendizado: de madrinhas: em alguns casos foi ob- pelo samba é herança familiar, mas servado e ouvido que as sambadeiras nem sempre é este o fator decisivo. “Eu fui criado com um cidadão experientes se responsabilizam por Conversando com os sambadores, que era sambador, aí eu fui apren- uma ou duas meninas, que inclusive percebe-se que muitas vezes fala dendo com ele e gostando” (Manoel entram na roda junto a essas madri- mais alto o pendor individual do Domingos J. Silva, dito Duzinho, nhas, sambando paralelamente de jovem, talvez o que se chama de Teodoro Sampaio). forma discreta, acompanhando seus talento. Ora, segundo os samba- passos e caminhos na roda. Esse dores, em muitos casos este pendor “Não vou dizer nem que apren- aprendizado dentro da roda, como musical estaria se inclinando em di com minha mãe, que minha mãe em outros momentos fora da roda, outras direções. Os jovens interes- ela nunca gostou de samba, era uma também pode ser visto como uma sados em música, e em aprender pessoa meia pacata. Mas aprendi introdução ao mundo feminino, instrumentos como cavaquinho ou com as pessoas daqui, da terra, as pois a jovem começa a desenvolver violão, geralmente querem tocar os pessoas mais antigas que saíam com uma consciência maior sobre seu estilos musicais do momento, e são a barquinha, e eu desde pequena corpo e sensualidade, alimentada, poucos os que se dedicam ao estudo acompanhava e aprendi” (Maria além disso, pelas conversas e co- do toque da viola no samba chula. Rita S. Machado, Bom Jesus dos mentários das mulheres mais velhas. Várias conversas com os sambadores Pobres). Os homens também procu- pareceram indicar que o aprendi- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 65

zado baseado na oralidade e na imi- proeminente no caso masculino, vir a tornar-se sambadeiras, en- tação poderia ser complementado, que, ademais, traz conflitos maiores quanto apenas poucos dos rapazes com proveito, por estilos educativos entre as hierarquias e comporta- se tornarão gritadores de chula ou que ligassem o samba a interesses mentos tradicionais dos samba- violeiros, pontos altos da hierarquia mais típicos dos jovens de hoje, dores, e o estilo de convívio mais dos sambadores; embora certamen- como o uso de recursos tecnológi- democrático dos jovens rapazes. É te uma quantidade um pouco maior cos, a profissionalização etc. possível que as diferenças de gênero deles possa vir a tocar regularmente Assim como no caso das moças no que se refere ao aprendizado os demais instrumentos, como pan- em relação às mulheres, o samba estejam ligadas também ao cará- deiros, atabaques e timbales. também serve de via de introdução ter menos especializado do papel das dos rapazes ao mundo dos homens. mulheres no samba de roda. Ou Mas este papel do samba não é tão seja, quase todas as jovens podem { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 66

1. Uma descrição detalhada dos instru- edição e estudo crítico de uma coleção de mentos citados será encontrada à frente. peças para machete, compostas em 1846, 2. Padrão (ou desenho) rítmico que se por Cândido Drummond de Vasconcelos repete com regularidade (nota do editor). na ilha da Madeira (Morais, 2003). O 3. Expressão de origem latina utilizada instrumento em questão não corresponde na escrita musical para indicar que deter- ao machete do Recôncavo, sendo, em vez minado trecho de uma música pode ser disso, bastante próximo ao cavaquinho. notas executado sem estrita adesão ao andamento É bastante possível que o machete que dá estabelecido, que uma passagem é opta- nome ao conto “O machete”, de Macha- tiva ou que o executante pode, em suma, do de Assis (1994[1878]), seja também improvisar (nota do editor). um cavaquinho. Vide também Budasz 4. Seriam eles: Alagoinhas, Aratuí- 2001:30-4. pe, Cachoeira, Camaçari, Castro Alves, 13. Clarindo dos Santos (1922-1980) Catu, Conceição de Feira, Conceição do foi o mais célebre construtor de violas do Almeida, Coração de Maria, Cruz das Recôncavo. Foi um dos principais cola- Almas, Feira de Santana, Irará, Itaparica, boradores da pesquisa de Ralph Waddey, Jaguaripe, Maragogipe, Mata de São João, no final dos anos 1970. Quando de sua Muritiba, Nazaré, Pojuca, Santo Antônio morte, Ralph a contragosto comprou o de Jesus, Santo Amaro, Santo Estevão, São que restava de sua oficina, para evitar que Félix, São Felipe, São Francisco do Conde, se perdesse (Waddey, comunicação pessoal, São Gonçalo dos Campos, São Sebastião julho de 2004). Este acervo encontra-se do Passé e Salvador. hoje na Universidade do Texas, em Austin. 5. Para a descrição de um destes, 14. Sem esquecer que tal “sintonia” ocorrido em Santo Amaro em 1808, e que não acontece naturalmente, mas depende parece ter sido especialmente impressio- de certo conhecimento prévio da cultura nante, vide Reis, 2002:104ss. musical em questão. 6. Para os poemas de Gregório de 15. Para uma discussão do conceito Matos, Budasz, 2001:148-55; para os de contrametricidade, vide Sandroni, vilancicos, Damasceno, 1970:88-9. 2001:21-8. 7. É possível que Lindley não conhe- 16. Termo técnico empregado em cesse o cavaquinho, e o tivesse confundido estudos de dança, que significa “esfera de com um violino. De fato, na seqüência ele movimento”. menciona o “dedilhar” do instrumento, e 17. O Xirê é um dos rituais que com- não o friccionar de um arco. põem as celebrações em louvor às divin- 8. Citado em Santos, 1998:27. O jor- dades do candomblé, no qual as filhas- nal citado é de 19/5/1866. de-santo dançam em torno de um eixo 9. Citado por Santos, 1998:33. O imaginário ou assinalado por um elemento jornal citado é de 7/2/1867. vertical denominado poste central. Cor- 10. No verbete “Chula” (não assinado), responde à parte pública dessas celebrações para a Enciclopédia da Música Brasileira (Marcon- e pode ser assistido por pessoas não inicia- des, 1977:192-3). das (nota do editor). 11. Substantivo masculino, pronuncia- se com o “e” do meio fechado: machête. 12. No final de 2003, o musicólo- go português Manuel Morais publicou a { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 67

pandeiro usado na marujada, em saubara. foto: luiz santos. justificativa { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 69

Dona Madalena, em Geolândia, município de Cabaceiras do Paraguassu. foto: luiz santos. o samba de roda como objeto de registro

música popular, num sentido de samba, mas tinham certas carac- gravadas por estrelas do rádio e do Aamplo, vem sendo reconhecida terísticas comuns com sambas: no disco como Francisco Alves e Car- há muito como um campo privile- Maranhão, em Alagoas, Rio Grande mem Miranda; e o movimento das giado da expressão cultural no Bra- do Norte, Minas Gerais... escolas de samba, hoje existentes em sil. Ela é multifacetada, singular em No início dos anos 1930, nas- todos os estados, e não só nas suas comparação às músicas de outros cem no Rio de Janeiro as primeiras capitais. Nessas duas vias há, ainda, países, plural no território nacional escolas de samba. Elas irão modifi- a influência da hegemonia econô- e, sob certos aspectos, ainda mui- car profundamente o estilo do sam- mico-político-cultural do Rio de to mal conhecida. Um gênero, no ba carioca que, a partir de então, e Janeiro. O samba brasileiro, pois – tal entanto, se destacou nacional e in- num breve lapso de tempo, chegará como é, hoje, entendido, praticado ternacionalmente desde pelo menos a todo o país e assumirá, já no final e consumido em todo o Brasil, e os anos 1930, como sua expressão da mesma década, o posto de sím- também em outros países – é uma máxima: o samba. bolo musical da nacionalidade. Para forma de expressão desenvolvida Como vimos, a primeira men- tal, deu-se a confluência de dois primariamente na antiga capital ção documentada da palavra samba fatores: primeiro, a existência de federal.1 no Brasil data de 1838, em Per- grande número de músicas locais, Mas a enorme popularidade nambuco. Entre esta data e meados que eram já conhecidas como sam- deste samba não impediu que, em dos anos 1920, há registros de ativi- bas, ou que, conhecidas por ou- diferentes pontos do país, conti- dades musicais e coreográficas cha- tros nomes, tinham, com aquelas, nuassem existindo sambas locais, madas de samba em vários pontos semelhança. Segundo, a penetração oriundos de tradições às vezes do Brasil: Bahia, Ceará, Pernam- nacional do samba carioca, que se centenárias, e com maior ou menor buco, São Paulo, Rio de Janeiro. deu por duas vias simultâneas: os capacidade de adaptar-se às trans- No mesmo período há registro de meios de comunicação de massa, formações históricas. É o caso do outras manifestações musicais e co- que passaram a veicular largamen- samba rural paulista, do samba de reográficas que não eram chamadas te canções chamadas de sambas, coco pernambucano e – com outro { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 70

nome, mas com inúmeros traços como ainda hoje, eram chamados meros homens e mulheres de todo comuns – do tambor de crioula também de sambas - coincidem o país. É o caso também do samba maranhense. É o caso também do em inúmeros pontos com o que se de roda baiano, que continua “vivo samba de roda baiano, objeto do pode observar na Bahia em ple- ainda lá”, segundo uma canção presente dossiê, que, no entanto, no século XXI. Tais conexões são de Dorival Caymmi. Como berço ocupa na música popular do Brasil reconhecidas e assumidas pelos reconhecido do samba brasileiro, uma posição singular. praticantes do samba em sua versão ele já ocupa um lugar privilegiado Esta singularidade se deve, entre carioca e nacional, como atestam, no panteão da sensibilidade dos outras coisas, a razões históricas entre outras coisas, inúmeras letras habitantes deste país; e também, é e a traços formais. Tanto por sua de samba e a presença indispensável importante que se diga, na de todos origem, como por algumas de suas de uma Ala das Baianas em todos os aqueles que, da Suécia ao Texas, características, o samba carioca – o desfiles de escolas de samba. passando pela África e pelo Japão, samba brasileiro – apresenta pro- A enorme pujança, no Brasil, hoje amam e praticam o samba em fundas conexões com o samba de da música popular profissional, sua versão mais difundida. É mais roda baiano. É ponto pacífico na nacionalizada através dos meios de do que justificado, portanto, que historiografia do gênero que os pri- comunicação – e conhecida a par- seja amplamente reconhecido tam- meiros sambas cariocas, incluindo o tir dos anos 1960 pela sigla MPB bém como prática contemporânea e famoso Pelo telefone (1917), nasceram –obscureceu muitas vezes o fato de como patrimônio vivo. no seio da comunidade de imigran- que as formas de expressão tradi- A magnitude do valor do samba tes baianos que existia em torno da cionais, que lhe serviram de ponto de roda como bem cultural reside Praça Onze, berço do carnaval do de partida e fonte de inspiração em seu conjunto. Ele é dança, é Rio de Janeiro (Silva, 1975; Moura, no decorrer do século XX, longe música, é poesia, é inclusive tea- 1983). As descrições dos eventos de serem apenas raízes longínquas, tro, posto que apresenta cenários, festivos onde se cantavam e dança- continuaram, e continuam a ser, indumentária e papéis a serem vam tais sambas - eventos que, aliás, parte importante da vida de inú- desempenhados. E é – não menos { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 71

Dona Fia e o Samba de Roda de Pirajuía. foto: luiz santos.

pode ser avaliado em seus depoi- mentos e, em primeiro lugar, em termos absolutos:

“O samba de roda representa, pra minha vida, as minhas raízes. (...) É uma coisa mesmo do san- gue, das raízes, e eu me sinto muito bem fazendo isso. Desde pequena eu acompanho os antigos no samba de roda, e cresci e hoje abracei o samba de roda, adoro, e pra mim representa muito.(...) A gente não importante – participação: a alegria roda através de todos os sentidos, pode deixar isso, porque é nosso, e máxima do samba reside em fazer mas também através de ações físicas, faço tudo, dou o meu sangue, pra parte dele, em sambar. No sentido as quais transformam, é claro, a não acabar essa tradição” (Maria próprio, como se sabe, “sambar” maneira como o corpo o percebe. Rita Machado, da Barquinha de quer dizer dançar o samba. Mas, Esse caráter totalizador da expe- Bom Jesus dos Pobres). com licença poética, a palavra pode riência do samba em nada diminui ser usada para designar qualquer as qualidades específicas de cada um Mas também em termos compa- das inúmeras modalidades em que é de seus aspectos. rativos: possível dele participar, seja can- Para significativas parcelas do tando, tocando, batendo palmas, povo do Recôncavo, o samba de “Eu gosto do samba mesmo, respondendo o refrão ou o relativo. roda se reveste indubitavelmente de eu adoro o samba, deixo qualquer E assim desfrutando do samba de um valor excepcional. Tal aspecto motivação pelo samba de roda. (...) { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 72

deixo festa, futebol, qualquer coisa, também é ligado por seus pratican- preserva uma tradição, preserva e vou pro samba” (Manoel Domin- tes ao seu papel como testemunho uma raiz, uma cultura que é mui- gos Silva, dito Duzinho, do samba de tradições mais que centenárias to importante para a referência da chula de Teodoro Sampaio). trazidas ao Brasil pelos africanos própria Bahia, dentro dessa tradi- escravizados. ção que é o samba” (Alva Célia, S. O samba é concebido como algo Francisco do Conde). que tem caráter de síntese. Isto, por “O que eu sei é que partiu mais dizer respeito à totalidade de cada dos escravos, né? Que os primeiros “(...) essa tradição que vem pas- pessoa envolvida. Mas também por habitantes da nossa terra foram os sando de geração pra geração. Foi integrar campos distintos, consti- escravos, e geralmente nos en- meu bisavô quem trouxe para aqui tuindo assim um saber próprio a genhos a minha mãe contava que para o Brasil, porque ele foi um dos seus praticantes: se fazia muito samba. De noite, escravos que, quando o povo veio “[No samba de roda] você vê quando eles terminavam o trabalho, da África, ele veio como sambador, que algumas músicas são cantigas de quando iam descansar, noite de lua, e aqui passou pro meu avô e passou roda, a gente canta até umas mú- sentavam no terreiro e daí surgiam pro meu pai e passou pra mim, e sicas que são entoadas dentro dos os sambas” (Maria Ana do Rosário, por isso a gente não quer deixar terreiros pelos caboclos (...) e até Saubara). acabar porque já tá na terceira ou a gente faz trovas também, poesias, quarta geração” (Zeca Afonso, S. versos. Então pra mim é uma mis- “O samba na verdade a gente Francisco do Conde). tura de ideais, de cultura, uma mis- sabe que é de origem africana, os tura de um saber, um saber que só o escravos quando eles vieram trou- Essa convicção expressa pelos próprio nativo da criação do samba xeram seus anseios, seus desejos, praticantes do samba é, como já que sabe sentir isso aí” (Idem). tradições, ideais. E na verdade não foi visto, corroborada pelos regis- morreu, continuou: então pra mim tros históricos. Mas ela não exclui O valor do samba de roda é muito importante porque a gente o fato de que o samba de roda é { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 73

Os irmãos Zilda do Sacramento e Alcides do Sacramento, do grupo As Paparutas. foto: luiz santos.

resultado de um processo de trocas cordas africanos. O mesmo se pode fazem a glória da moderna música interculturais. Sendo uma atividade dizer da parte poética do samba, popular brasileira, como Dorival de afro-descendentes, e exibindo cantada em língua portuguesa, com Caymmi (Samba da minha terra), Ge- traços culturais de origem africana, corte estrófico e rítmico português, raldo Pereira (Falsa baiana) e Caeta- ele não deixa de comportar, desde mas com emissão vocal e conteúdo no Veloso (Boa palavra, É de manhã...). seus primeiros registros históricos, verbal absolutamente associados à Nos dias de hoje, o samba de roda elementos trazidos pelos europeus. cultura dos afro-descendentes do tem inspirado compositores como Esses elementos, no entanto, foram Recôncavo. Roberto Mendes - especialmente como que apropriados à sua maneira O papel do samba de roda baia- o CD Tradução - Raimundo Sodré, pelo samba de roda. Talvez o caso no como fecunda matriz de novas com o CD Dengo e outros. Tem mais típico seja o do instrumento formas culturais é também indu- também inspirado grupos con- musical prato-e-faca: os utensílios bitável. Como já foi dito, é ponto tratados por grandes gravadoras, domésticos de origem européia pacífico entre os historiadores da como alguns dos ligados à chamada foram empregados, de maneira música popular brasileira que foi da axé music. Finalmente, cabe men- totalmente inesperada para seus comunidade de imigrantes baianos cionar que o samba de roda é base fabricantes e utilizadores prévios, no Rio de Janeiro, no início do do trabalho apresentado por Dona como idiofones raspados. Algo século XX e dos sambas que faziam, Edith do Prato - ela própria uma semelhante ocorre com os instru- que começou a tomar forma o habitante do Recôncavo e praticante mentos de corda - violão, machete, samba carioca, com suas inúmeras tradicional do gênero - no CD Vozes cavaquinho - que, mesmo trazidos variantes como o samba-enredo, o da purificação, que obteve em 2004 o por europeus, soam nas mãos dos samba de breque, o samba canção, importante prêmio de músi- sambadores afro-descendentes o samba de partido-alto etc. ca popular brasileira na categoria de maneira totalmente original e O samba de roda foi também Regional. única, remetendo em alguns casos fonte de inspiração para alguns Por tudo isso, a comunidade do às sonoridades de instrumentos de dos compositores profissionais que samba de roda engajou-se no seu { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 74

Dona Dalva, do Samba de Roda Suerdieck, em cachoeira. foto: luiz santos.

reconhecimento como patrimônio:

“Era muito bom que virasse um patrimônio, era uma beleza, era uma benção porque o samba de roda é uma coisa muito importan- te. (...) O samba é a vida, é a alma, é a alegria da gente (...) lhe digo, eu estou com as pernas travadas de reumatismo, a pressão circulando, a coluna também, mas quando toca o pinicar do samba eu acho que eu fico boa, eu sambo, pareço uma menina de 15 anos” (Dalva Damia- na de Freitas, Cachoeira). { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 75

enfraquecimento da forma de expressão, pressões e riscos potenciais de desaparecimento

prática do samba de roda de roda é a competição desigual que O samba brasileiro é, em suas Asofreu considerável declínio sofre por parte dos meios de comu- múltiplas formas, muito valoriza- no curso do século XX. Um dos nicação de massa e do imenso pres- do no país e não se pode dizer que fatores que contribuiu para isso foi tígio da moderna música popular. esteja em risco de extinção. No a decadência econômica do Re- Tal prestígio leva muitos jovens a entanto, isto se refere, sobretudo, côncavo que, embora iniciada no acreditar que o samba de roda é um ao samba carioca, que, como vimos, século XIX, ainda aumentou, entre divertimento de velhos, ultrapassa- é a modalidade dominante e a que outras razões, devido à construção, do e fora de moda. mais laços desenvolveu com a in- nos anos 1970, da rodovia unindo Mais especificamente, um im- dústria cultural. Ora, vai muita dis- Salvador a Feira de Santana. Esta portante fator de enfraquecimento tância entre a valorização do samba rodovia passa na fronteira Norte de uma das modalidades mais valo- comercial nos meios de comuni- do Recôncavo e tornou-se a via rizadas de samba de roda, o samba cação de massa e a valorização de preferida para o fluxo de produtos chula, é o quase completo desapa- sambas tradicionais no seu contexto agrícolas do interior do Estado em recimento do instrumento mais original. As idéias preponderantes direção à capital. Assim, o comér- apropriado para a sua performance: no Brasil sobre as relações entre cio, as feiras e o ir-e-vir de embar- as violas de samba e, entre elas, música popular e música folclóri- cações nos rios do Recôncavo - so- especialmente, o machete. Como já ca estabelecem que esta última é a bretudo o Paraguaçu - e na baía de foi dito, o último artesão conheci- raiz, uma espécie de sobrevivência Todos os Santos foram reduzidos do de violas de samba, Clarindo dos anacrônica, na qual a primeira se consideravelmente, o que agravou Santos, morreu em 1980. Os sam- inspira e se vivifica. Isso pode ser a estagnação econômica e acentuou badores da região do samba chula notado no tipo de reconhecimento o êxodo da população para a capital queixam-se constantemente da falta verbal que é dado ao samba de roda do Estado e para o Sul do país. desses instrumentos, pois sentem tradicional nos meios de comuni- Outro fator que vem contri- que sem eles o samba perde algo de cação de massa, reverenciado, em buindo para a decadência do samba grande importância. palavras, mas considerado primiti- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 76

Tocador de Sanfona durante o Caruru, comunidade de ponta de souza, maragogipe. foto: luiz santos.

vo, rústico. Lê-se, por exemplo, na ter nenhuma repercussão positiva plo de uma situação conhecida de internet: “É uma música muito rica sobre a vivência do samba de roda quantos se interessam pela cultura que ainda está lá, quase primitiva, em, digamos, Santiago do Iguape, popular tradicional no Brasil. É como a chula, ultimamente esque- que fica a menos de 50 km da casa problema cuja solução exige uma cida até pelos próprios baianos” (da de Dona Edith em Santo Amaro. A longa batalha de idéias e luta contra apresentação do CD do sambista cadeia de mediações que vai do pal- preconceitos arraigados, tal como Roque Ferreira, na página da gra- co do Prêmio TIM ao adro da igreja vêm empreendendo o Iphan e o vadora Biscoito Fino). Ou ainda: de Santiago do Iguape é demasia- Ministério da Cultura. Nessa luta, “Das 14 faixas do álbum, apenas três do complexa. Em todo caso, se é um dos caminhos principais é ouvir não pertencem ao domínio públi- possível argumentar que tal pre- as reivindicações dos próprios sam- co. A predominância das faixas de miação traz embutida pelo menos a badores. autoria desconhecida se deve ao fato possibilidade de um efeito positivo Uma das suas queixas recorren- de o samba de roda ser um gênero na outra ponta, deve-se reconhecer tes refere-se à carência de violeiros primitivo, cantado e cultivado pelas que, para que tal efeito se realize, é e violas adequadas. O instrumento, baianas antes do aparecimento do preciso justamente atuar na referida em muitos casos, precisa ser subs- samba propriamente dito, no Rio, cadeia de mediações. tituído por violão, cavaquinho ou na década de 10” (da apresentação A percepção atual de uma parte bandolim; a queixa dos sambistas do CD de Dona Edith do Prato, na significativa dos sambadores do quanto à falta de bons tocadores é mesma página). Recôncavo é a de que seu samba de generalizada. A situação dos demais Nesse quadro, a relativa valo- roda é desvalorizado pela socieda- instrumentos também é, em geral, rização do próprio samba de roda de. De fato, o descaso para com o bastante insatisfatória. Já foram como gênero comercial – manifes- samba de roda por parte de ins- mencionadas, em particular, as tada, por exemplo, na mencionada tâncias locais - quer da sociedade sanfonas de oito baixos utilizadas premiação do CD de Dona Edith civil, quer políticas, educacionais por alguns grupos, todas encontra- do Prato pela TIM – pode não e culturais - é apenas um exem- das em estado lastimável. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 77

[paulista] que não vai dar a mesma tonalidade que vai dar aquela viola antiga. E se quiser uma daquela tem que encomendar no Maranhão ou em outro lugar. É como o pandeiro de tarraxa: nós toca, mas era [de] couro de cobra, prego, como João ainda tem, Babau tem. O samba nativo é esse, e a viola natural não é essa que nós toca não, é o machete. E essa nós temos que desencavar de onde tiver, pra botar o samba nativo mesmo como era.” (Augusto Mas no que se refere aos ins- fatório. Com a raridade, a valoriza- Lopes, São Braz). trumentos, o ponto mais sensível ção do instrumento se tornou ainda para a continuidade e a integrida- maior. Muitos dos músicos sentem “As pessoas quando vêm pra de cultural do samba de roda é o que, sem o machete, o samba perde ouvir o samba de roda, não ou- desaparecimento dos artesãos que algo de importante: vem um samba de roda totalmente faziam machetes, as pequenas violas original, por falta de apoio, porque de cinco ordens, típicas da região “Hoje em dia nós não temos a nós não temos o apoio mesmo pra de Santo Amaro. Hoje são pou- viola principal como era antiga- o machete. Esse machete é difícil de quíssimos os sambadores que pos- mente: era o machete, era a vio- ser encontrado e até hoje nós não suem um machete. Foi encontrado la pequenininha de pau. Ela era conseguimos formalizar o samba apenas um tocador dominando sua necessária pra esse samba da gen- ideal, o instrumento ideal” (Carlos técnica e repertório num grau satis- te. Hoje em dia tem aquela viola M. Santana, dito Babau, São Braz). { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 78

alunos tendo aula de viola. foto: jean jaulbert.

“Então, a dificuldade que nós temos, é porque não existe mais quem faz o instrumento desse tipo. Porque só serve desse tipo, o ma- chete, porque é a tradição, e não é só a tradição: porque só serve mes- mo para o samba é o machete, viola grande não serve pra samba. Porque pra gente cantar com a viola grande tem que ser sol maior e o samba fica feio” (Zeca Afonso, São Francisco do Conde). A recuperação do saber-fazer violas machetes, e a preservação e pesquisadores independentes, não e de difícil acesso (caso de Waddey desenvolvimento do que resta do residentes no Brasil e não vincu- até a presente publicação), ou de saber tocá-las é, pois, urgente, e lados organicamente a estruturas todo não disponíveis em português por si só já justificaria a importân- locais e permanentes. Instituições (caso de Oliveira Pinto). No que se cia de ações afirmativas de valoriza- culturais brasileiras não possuem refere aos acervos que estão no Bra- ção do samba de roda.2 cópias dos acervos gerados por estas sil - os gerados pelas pesquisas de Outra queixa recorrente dos pesquisas, um dos quais se encontra Zamith/Travassos e Marques - não sambadores é a de falta de acesso hoje nos Estados Unidos, e o outro se encontram em condições ade- ao material produzido por pesqui- na Alemanha. Mesmo os resulta- quadas de consulta pelos sambado- sas feitas com eles próprios. Duas dos acadêmicos gerados por estas res. No que se refere ao acervo que das principais pesquisas realizadas pesquisas encontram-se disponíveis foi gerado pela presente pesquisa, - Waddey e Pinto - foram feitas por em português de maneira parcial embora parte dele esteja sendo { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 79

devolvido por meio de cópias para parte da juventude da região, como faço minha rocinha na terra dos os sambadores, por enquanto há modelos a imitar, mas antes como outros porque eu não tenho sítio apenas a intenção de que possa vir a personificação de um estado do pra plantar (...) Se não plantar roça a ser consultado facilmente pelos qual se quer escapar. vive de quê? Tem muitas pessoas futuros sambadores do Recôncavo. que têm idade e não são aposen- Essa situação de falta de acesso às “O trabalho é esse, vivemos tudo tadas, não recebem. Passar fome informações geradas por pesquisas de pescaria. Quando é no verão, não pode, tem que plantar roça, é sentida por muitos sambadores, tem uma coisinha melhor, e quan- feijão, milho, mandioca, abóbo- com toda a razão, como um desres- do é no inverno, que a pescaria ra, batata, tudo pra sobreviver, peito aos seus direitos culturais. ‘pifa’, eles todos passam privação. senão vai morrer de fome. (...) E Além disso, é forçoso mencio- Não pedem porque têm vergonha se não comer não agüenta sambar, nar a situação de grande precarie- de sair pedindo. (...) Dentro da tem que comer pra ficar forte, pra dade material em que vive boa parte maré, perdem a noite toda dentro agüentar sambar!!!!” (Madalena dos das sambadoras e sambadores. De de uma canoa, correndo o risco Ramos, Geolândia, Cabaceiras do fato, o principal risco de desapa- de perder a vida, um dia trazem Paraguaçu). recimento do samba de roda está um quilo de siri, e às vezes voltam ligado às difíceis condições sociais e pra casa com meio quilo, às vezes Nessas condições, a juventude econômicas em que vivem seus pra- tem casa com quatro, cinco filhos, volta seus olhos para as perspecti- ticantes. Em sua maioria, negros; marido desempregado, como é que vas de vida moderna oferecidas por falantes de português dialetal, estig- está passando?” (Manoel Barbosa tudo que vem da capital do estado matizado socialmente; em situação do Amor Divino, dito Mané do e, mais ao Sul, dos centros econô- econômica precária pois vivem de Velho, Itapecerica). micos do país. Nisto se enquadram agricultura de subsistência, da pesca novos gêneros e estilos de diversão, ou de aposentadorias irrisórias, eles “Eu fazia e faço [roça], arrumo difundidos pelos meios de comu- não se apresentam, para a maior um pedacinho de terra pra plantar, nicação de massa. Entre estes, em { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 80

particular o pagode, um tipo de samba comercial que ganhou no- toriedade a partir do final dos anos 1980:

“(...) hoje não se ouve samba de origens, e sim ouvimos difundido o pagode, porque toda garotada hoje gosta do pagode, mas só que o verdadeiro samba está nas pessoas que viveram 50 anos atrás, que não tinha outro tipo de diversão, que não existia televisão. (...) Então estão deixando morrer a cultura dessas pessoas, simplesmente pelo fato de não estarmos passando para as gerações futuras” (Paulo César F. Santos, Maragogipe).

E o arrocha, dança da moda em 2004, derivada da onda da música brega:

“Mas hoje as meninas não que- rem aprender [o samba de roda], só { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 81

Seu Domingos Preto, do Samba suspiro do Iguape, santiago do iguape. foto: luiz santos.

querem aprender esse negócio desse meio da roda, se sacodem todas no arrocha” (D. Zelita, Saubara). pagode, e vão saindo, e não é assim, o samba de roda tem que correr a Mesmo quando a adesão aos roda” (Dilma F.A. Santana, Teo- novos gêneros não implica em doro Sampaio). abandono dos antigos, ela ocasio- na por vezes a alteração dos estilos É diante deste quadro, e de notas tradicionais: tudo o mais que foi exposto, que o reconhecimento do samba de “É obrigação da mulher, quan- roda como Patrimônio Cultural do ela samba mesmo, ela correr a Brasileiro e, pela Unesco, como roda, e [diante de] cada tocador Obra-Prima do Patrimônio Oral daquele, no pé da viola, no pé do e Imaterial da Humanidade - além pandeiro, ela cortar o samba. Esse de fazer justiça a um bem cultural 1. Sobre o samba carioca e suas relações com o samba baiano, Sandroni 2001. negócio de chegar no meio da roda, de enorme relevância - pode ajudar Sobre as relações entre samba carioca e pular, pular e sair, não é samba. Aí a contrabalançar as tendências de identidade nacional, vide também Vianna, o povo já inverte, porque a juven- enfraquecimento detectadas, e a 1995. tude de hoje não samba mais pra restituir às comunidades locais, 2. Essas ações tiveram início ainda em correr a roda, é contado uma jovem nacional e internacional, todo o 2004, logo em seguida ao Registro do samba de roda como Patrimônio Cultural que faz isso [isto é, são poucas as prestígio que merecem as samba- do Brasil (nota do editor). jovens que o fazem]. Elas sambam deiras, os sambadores e sua maravi- assim o ritmo [mostra], [como se lhosa arte. fosse] pagode. E samba de roda é samba de roda, e pagode é pagode! E elas misturam, chegam assim no plano de salvaguarda { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 83

Mãe Eufrásia, de saubara. foto: luiz santos.

o dia 30 de setembro de 2004, Oral e Imaterial da Humanidade. decorrer dos cinco anos previstos No Conselho Consultivo do Pa- O conhecimento produzido para o desenvolvimento do plano, trimônio Cultural, que atua junto durante as pesquisas que possibili- deverão assumir responsabilidades ao Iphan, aprovou o Registro do taram o Registro do samba de roda, de gestão cada vez maiores. samba de roda do Recôncavo baiano assim como o contato com os pro- Os sambadores do Recôncavo e concedeu a esta expressão musi- blemas e demandas colocados pelos não possuíam, até o ano de 2004, cal, poética e coreográfica o título grupos e indivíduos que praticam nenhuma organização própria que de Patrimônio Cultural do Brasil. essa forma de expressão no Recôn- reunisse a todos. Em muitas locali- No dia 5 de outubro, em cerimônia cavo baiano, permitiu a formulação dades eles se organizaram em asso- solene realizada em Brasília com de um Plano Integrado de Salva- ciações, mas estas não reúnem mais a presença do presidente da Re- guarda e Valorização do Samba de uma cidade e raramente reúnem pública, Luiz Inácio Lula da Silva, de Roda que, após a efetivação do mais de um grupo de sambadores. do ministro da Cultura, Gilberto Registro, foi ajustado e comple- Assim, a criação de uma espécie Gil, do então presidente do Iphan, mentado a partir de contatos com de Conselho permanente dos sam- Antonio Augusto Arantes, e de um os grupos envolvidos. badores do Recôncavo para traçar grupo de sambadores do Recôn- O responsável pela implemen- diretrizes, acompanhar, discutir cavo, o samba de roda foi inscrito tação do plano, em suas primeiras e fiscalizar as diferentes etapas de no Livro de Registro das Formas de etapas, é o Iphan, por meio do De- implementação do plano de salva- Expressão e declarado publicamente partamento de Patrimônio Imate- guarda surgiu como uma medida Patrimônio Cultural do Brasil. Em rial e da Superintendência Regional fundamental. Esta organização de- 25 de novembro de 2005, junta- na Bahia. Esta implementação vem veria dispor de um órgão executivo mente com outros 43 bens cultu- sendo feita em diálogo permanente com capacidade gerencial e agili- rais provenientes de várias partes com os sambadores e com as insti- dade para captar e utilizar recursos do mundo, foi proclamado pela tuições locais que são parceiras nes- financeiros e ter sua organização Unesco Obra-Prima do Patrimônio se trabalho (ver anexo), as quais, no jurídica e administrativa estabeleci- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 84

boi e sambadores em frente à associação cultural filhos de nagô, em são félix. foto: luiz santos.

param ativamente da elaboração do dossiê de Registro, dando infor- mações, formulando propostas e realizando performances de samba de roda para gravação em áudio e vídeo. Esta participação continuou, se ampliou e se aprofundou du- rante a implementação do plano de salvaguarda. Vários encontros de sambadores para a discussão de inúmeros aspectos do plano foram realizados sob a coordenação da sua associação, encontros que conta- da durante os dois primeiros anos com o apoio financeiro do Iphan, ram também com a participação de vigência do plano. foram dados os primeiros passos no do Iphan e de instituições locais A auto-organização dos grupos sentido da constituição e formali- parceiras. e indivíduos que praticam o samba zação de uma instituição capaz de de roda no estado da Bahia foi, des- representar os indivíduos e grupos de o início, considerada uma ação produtores dessa arte – ação efeti- estratégica porque, entre outras vada em 17 de abril de 2005 com funções, torna possível promover a criação da Associação de Samba- a sustentabilidade social e a auto- dores e Sambadeiras do Estado da nomia do processo de valorização Bahia. e fortalecimento dessa forma de Alguns dos mais destacados expressão. Assim, já em 2004, sambadores do Recôncavo partici- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 85

Seu Mundinho, da Marujada de Saubara. Objetivos foto: luiz santos. do Plano Integrado de Salvaguarda e Valorização do Samba de Roda

Curto prazo conhecimentos sobre o samba de • Salvaguardar o saber tradicio- roda no Recôncavo e regiões vizi- nal dos praticantes mais idosos do nhas. samba de roda e contribuir para sua • Contribuir para que a práti- transmissão às gerações mais novas. ca do samba de roda e os saberes Revitalizar no Recôncavo a feitura tradicionais a ele associados conti- artesanal de violas de samba e, em nuem sendo transmitidos para as especial, de machetes. novas gerações. • Salvaguardar o repertório e a • Promover o samba de roda técnica do machete como instru- dentro e fora do Recôncavo, pos- mento acompanhador do samba sibilitando que seus valores sejam chula e a sua performance em asso- apreciados por um público amplo, ciação com violas maiores. no Brasil e em todo o mundo. • Contribuir para o processo de auto-organização dos sambadores do Recôncavo.

Médio e longo prazo • Salvaguardar o samba de roda do Recôncavo baiano, atuando como contrapeso às tendências de enfraquecimento detectadas. • Aprofundar, organizar e dis- ponibilizar aos sambadores, pes- quisadores e ao público em geral, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 86

componentes do plano

plano de salvaguarda do samba região de Cachoeira, sendo ambos, já foi dito, antes que a indústria Ode roda se estrutura em torno de acordo com as categorias nativas, fonográfica contribuísse para que das seguintes linhas de ação: opostos ao samba corrido. o samba carioca se tornasse sím- 1. Pesquisa e documentação Outro ponto importante é co- bolo da brasilidade, já existiam 2. Reprodução e transmissão às nhecer a extensão do samba de roda referências a diferentes sambas em novas gerações do Recôncavo em outras regiões da Pernambuco, Minas Gerais e outras 3. Promoção Bahia. Como foi dito no início, regiões do país. 4. Apoio o samba de roda é encontrado em Em terceiro lugar, é necessário todo o estado. Presume-se que os que as informações sobre o samba 1. Pesquisa e documentação sambas do sertão da Bahia, da Cha- de roda estejam disponíveis para Esta linha refere-se, primeiro, pada Diamantina etc., tenham sido os próprios sambadores. Para isso, à continuidade da pesquisa sobre interiorizados a partir do Recôn- deverão ser adquiridos ou copiados o samba de roda do Recôncavo. As cavo e de Salvador, para onde eram os acervos já existentes, e deverá ser pesquisas já feitas, incluindo a que trazidos os negros escravizados. No criado um Centro de Referência do serviu de base à elaboração do dos- entanto, após tanto tempo, essas samba de roda em uma cidade do siê de Registro, deixaram algumas outras regiões devem ter desen- Recôncavo a ser definida conjun- lacunas. Há ainda necessidade de volvido modalidades específicas tamente com os sambadores. Este estudar melhor as inúmeras varia- de samba de roda. Estas também Centro deverá ligar-se a uma rede ções do samba de roda, como samba devem ser estudadas para que o de centros menores a ser criada, aos de estivador, samba de coco, samba conhecimento da forma de expres- poucos, em todos os municípios da de bate baú e outras. Precisa ser são seja mais completo. Ademais, região, possibilitando aos sambado- ainda melhor definida a própria di- o estudo da maneira como se deu a res das localidades mais distantes o ferença entre o samba chula, carac- interiorização referida pode lançar acesso ao material produzido sobre terístico da região de Santo Amaro, pistas para melhor compreensão da eles e sobre seus colegas de outros e o samba barravento, típico da difusão nacional do samba. Como pontos. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 87

alunos de viola se ajudando. foto: jean jaulbert.

Além disso, é importante que os seja quanto às várias modalidades sobre tais mecanismos indica que, resultados das pesquisas e as visões em que é praticado nas diferentes em muitos casos, a transmissão do dos especialistas das diversas áreas regiões. samba ocorre concomitantemen- sobre tais resultados possam ser dis- Os seminários onde serão deba- te a outras atividades. Em outras cutidas e confrontadas, o que será tidos os resultados das pesquisas e o palavras, aprende-se o samba de feito por meio de seminários sobre andamento do Plano de Salvaguarda roda fazendo samba de roda e, não o samba de roda. Esses seminários contarão sempre com a participação necessariamente, em horas e locais possibilitarão também que o traba- de sambadores como expositores específicos para o aprendizado. É lho desenvolvido sobre esta forma e debatedores, e não apenas como importante que a intervenção nessa de expressão possa ser compartilha- assunto do debate. área leve isto em conta e evite ao do e aproveitado por pessoas envol- máximo o risco da escolarização desta vidas com outras que compõem o 2. Reprodução e transmissão forma de expressão. rico patrimônio cultural brasileiro. O samba de roda possui seus A ação mais urgente nesta linha As atividades de pesquisa de- meios próprios de transmissão, se refere à reprodução dos saberes verão ser desenvolvidas em cola- baseados na imitação, na oralidade relativos à viola de samba e, em par- boração com os sambadores e suas etc. A intervenção do plano nesta ticular, ao machete: o saber fazê-lo comunidades, e não simplesmente área justifica-se pelas alterações do e o saber tocá-lo. Para o saber-fa- tomando-os como informantes. De contexto social, que têm diminuído zer, trata-se propriamente de uma fato, muitos sambadores e pessoas a eficácia destes mecanismos tradi- revitalização, na medida em que o de suas comunidades que participa- cionais. Mas tal intervenção precisa último artesão de violas de samba ram como colaboradores na realiza- ser baseada, em primeiro lugar, conhecido, como já mencionado, ção do dossiê de Registro demons- no conhecimento desses mesmos morreu há mais de 20 anos. Assim, traram um profundo interesse por mecanismos, portanto, em conexão será necessário reconstruir violas aumentar seus conhecimentos sobre com a linha de ação 1: Pesquisa. de samba e machetes a partir dos o samba, seja quanto à sua história, O conhecimento já produzido poucos exemplares remanescentes, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 88

baiana do samba suerdieck autografando cd após apresentação em brasília-df. foto: márcio vianna.

e com a ajuda de artesãos-luthiers dança. Isto poderá ser feito com nacional, e também à difusão do que, no Recôncavo ou em outras o incentivo aos sambas-mirins, e conhecimento produzido sobre ele. regiões do país, ainda fazem violas também, no caso do aprendizado Isto será feito por meio de publi- similares. As violas que vierem a ser dos instrumentos de cordas, por cações em forma de livros, CDs, construídas por esses artesãos serão, meio de oficinas ministradas pelos vídeos e outras mídias disponíveis. é claro, testadas pelos sambadores próprios portadores das tradições Por outro lado, o valor do samba para posterior aperfeiçoamento. do samba de roda, em especial pelos de roda não pode nem de longe Para o saber-tocar, conta-se mais velhos. Nesta linha de ação, a ser aquilatado pelo público sem com a participação do Sr. José participação dos sambadores e de um contato direto, razão pela qual Vitório dos Reis, também conhe- suas comunidades é, mais do que considera-se importante que esta cido como Zé de Lelinha, de São em qualquer outra, condição sine forma de expressão, também fora Francisco do Conde, que domina qua non. De fato, aqui, o papel do de seu ambiente de origem, possa a técnica e o repertório do mache- Iphan e das instituições parceiras ser apresentada ao vivo. Em algu- te, e poderá transmiti-los a jovens será, sobretudo, o de contribuir mas localidades do Recôncavo, os violeiros. Paralelamente deverá para a continuidade e a melhoria sambadores já se organizaram em ser feito um trabalho exaustivo de de um processo de transmissão de grupos semiprofissionais e tiveram registro em vídeo da performance saberes e práticas que se dá entre os oportunidade de se apresentar em do Sr. Reis. sambadores mais velhos e as novas outras cidades do país e mesmo no Outras ações propostas re- gerações. exterior. O plano pretende esti- ferem-se à transmissão às novas mular tais iniciativas por meio de gerações do samba de roda em sua 3. Promoção orientação, contatos e apoio ge- totalidade, abordando diferen- Esta linha relaciona-se à valo- rencial. Outro mecanismo eficaz tes aspectos: o canto - incluindo rização do samba de roda junto a de promoção do samba de roda é aí as chulas e os relativos cantados um público mais amplo, tanto em a organização de uma exposição a duas vozes, os instrumentos e a nível local, como nacional e inter- itinerante, com fotografias, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 89

res do Recôncavo possuem pouca articulação entre si. Contribui para isso a precária situação econômica em que estão, o que torna difícil até mesmo o deslocamento das várias localidades do Recôncavo para um ponto comum. Sendo assim, é im- portante que o Plano de Salvaguar- da contemple o apoio ao processo de auto-organização dos samba- dores, condição indispensável para que o próprio plano e as possíveis ações posteriores de salvaguarda instrumentos musicais etc. dores sobre todos os aspectos de seu sejam gerenciados por eles mesmos. No que toca a esta linha de ação, patrimônio imaterial que forem Outro apoio previsto é a cria- o mais importante é assegurar que objeto de difusão. ção, já mencionada, de um Centro a promoção do samba de roda se dê de Referência do Samba de Roda. em concordância com as aspirações 4. Apoio Tal iniciativa implica a obtenção de e necessidades dos sambadores e Esta linha de ação tem um ca- um imóvel, por meio de compra, suas comunidades. Ou seja, “uma ráter mais geral na medida em que construção ou doação, que deverá difusão seletiva e controlada pelos se propõe a fornecer alguns apoios ser devidamente equipado para a seus detentores (...)”1. É impor- diretos que criarão uma estrutura preservação de vários tipos de docu- tante, também, que sejam res- de sustentação para as demais ativi- mentos e para sua disponibilização guardados os direitos intelectuais dades. aos sambadores e ao público. individuais e coletivos dos samba- Como foi visto, os sambado- Já foi mencionada também a { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 90

machetes em oficina de luteria. fotos: jean jaulbert.

página ao lado seu zé de lelinha com o machete, em são francisco do conde: foto: luiz santos.

constituição, ligada a este Centro, com o Centro de Referência do do machete. Deverá ser criada no de uma rede de Casas do Samba nos Samba de Roda. Esta conexão diz Recôncavo a Oficina de Luteria municípios do Recôncavo. Serão respeito, por exemplo, à disponibi- Tradicional Clarindo dos Santos, espaços simples, a serem usados lização de cópias de documentos do nome dado em homenagem ao coletivamente pelos sambadores centro para sambadores locais, mas citado artesão de violas, já falecido. para ensaios, atividades educativas, também ao envio de informações Esta Oficina se dedicará em especial reuniões e o que mais necessitarem. sobre as peculiaridades dos sambas à recuperação do ofício de fazer Deverão estar dotadas de um salão locais para o centro. violas de samba, à capacitação de principal, onde se realizarão as Finalmente, uma importante artesãos e também à confecção de atividades mencionadas e uma sala ação de apoio se refere à revitali- outros instrumentos, como pandei- menor, com computador e arqui- zação da luteria das violas artesa- ros, atabaques e timbales. vos, onde se trabalhará em conexão nais do Recôncavo, em particular No que se refere ao apoio ao { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 91

processo de auto-organização dos sambadores do Recôncavo e de outras associações que eles julguem adequadas, é evidente que sua par- ticipação é condição necessária. Quanto à implementação física do Centro de Referência do Sam- ba de Roda, da Oficina de Luteria Tradicional Clarindo dos Santos e, muito especialmente, da rede de Casas do Samba, também será fun- damental a participação dos samba- dores e das organizações locais, por exemplo, na própria decisão sobre as cidades em que os dois primeiros deverão ser implantados. Por fim, é importante ressaltar que o Iphan e demais instituições parceiras organizarão oficinas de formação e atividades de capaci- tação para os sambadores, com o objetivo de ajudá-los a dominar os diferentes códigos necessários para sua plena participação em algumas das atividades aqui mencionadas. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 92

Execução e etapas do plano de salvaguarda

Fase 1: 2004-2005 do aprofundamento do diálogo panhada por um pesquisador e um Providências de planejamento, com os portadores da tradição e, etnomusicólogo, que também atuou relacionadas à implantação do pla- em particular, com a instância de como facilitador do processo de no de salvaguarda, foram adotadas representação dos sambadores do aprendizagem.2 Os alunos que par- nesse período, assim como ações Recôncavo. A organização jurídico- ticiparam desse treinamento foram relacionadas à linha de ação Re- administrativa dessa instância foi indicados por grupos de sambado- produção e Transmissão. Embora, iniciada e concluída nesta fase com res e a experiência produziu impor- originalmente, estivessem também a criação da Associação dos Samba- tante material didático em áudio e previstas atividades de pesquisa e dores e Sambadeiras do Estado da tablaturas, contendo o repertório documentação nesta fase, diante Bahia. do Mestre Zé de Lelinha, além de da grave situação de fragilidade do As medidas emergenciais rela- registros audiovisuais e fotográficos saber-tocar e do saber-fazer viola tivas à salvaguarda da viola machete de todo o processo.3 Este material machete, decidiu-se concentrar foram iniciadas no ano de 2004 e será, na próxima fase do plano de recursos e esforços na implemen- concluídas em 2005. Referiram- salvaguarda, aproveitado para a tação de medidas emergenciais de se à realização de oficinas para a edição de um guia, em DVD, des- fortalecimento dos processos de revitalização do saber-fazer e para a tinado à aprendizagem dessa viola, reprodução e transmissão atinentes transmissão do saber-tocar. assim como para o aprofundamento a esse instrumento. A oficina de transmissão e do- do conhecimento sobre o samba de O planejamento da implantação cumentação do saber-tocar machete roda do Recôncavo. do plano de salvaguarda se referiu foi realizada entre maio e setembro Apesar do bom aproveitamen- à elaboração de projetos, ao maior de 2005 na Casa de Cultura de São to por parte dos aprendizes que detalhamento orçamentário, téc- Francisco do Conde, com apoio participaram dessa experiência, o nico e administrativo das medidas da prefeitura local. Foi ministra- domínio do machete é complexo propostas, bem como a seu aper- da pelo Sr. José Vitório dos Reis e o trabalho de documentação do feiçoamento, sobretudo, por meio - Mestre Zé de Lelinha - e acom- repertório desse instrumento e de { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 93

Seu Zé de Lelinha e aluno praticando o machete. foto: jean jaulbert.

transmissão do saber a ele relacio- Fase 2: 2005-2006 presidida pelo ministro da Cultu- nado deverá continuar nas próxi- Ações previstas ra, Gilberto Gil, foi apresentado mas fases. • Início da implantação física do aos sambadores do Recôncavo o O artesão responsável pelo Centro de Referência do Samba de projeto de restauração do Solar trabalho inicial de retomada da Roda, da Oficina de Luteria Tra- Araújo Pinho, também conhecido fabricação de violas machetes foi o dicional Clarindo dos Santos e da como Solar Subaé, imóvel que será Sr. Antônio Carlos dos Anjos, da rede de Casas do Samba. destinado à implantação do Centro cidade de Cachoeira, carpinteiro e • Apoio aos sambas-mirins. de Referência do Samba de Roda. músico experiente na confecção e • Complementação das ações de No evento foi também assinado, manutenção de instrumentos musi- pesquisa e documentação. por vários prefeitos da região, um cais. Esta indicação foi validada por • Aquisição e duplicação de Termo de Compromisso e Adesão pesquisadores e mestres do samba acervos. ao Plano de Salvaguarda do Samba de roda do Recôncavo, sendo, nesta • Realização de seminários de de Roda. fase, fabricadas três novas violas e acompanhamento do Plano. De acordo com este instrumen- restauradas outras duas, uma das • Publicação de livros, CDs e to, caberá ao Ministério da Cultura quais de propriedade do Mestre vídeo sobre o samba de roda. viabilizar a instalação da rede de Zé de Lelinha. Todo o processo de • Organização definitiva da As- Casas do Samba nos municípios fabricação foi registrado em foto- sociação dos Sambadores e Samba- do Recôncavo e ao Iphan, entre grafia e vídeo, além de documenta- deiras do Estado da Bahia. outras atribuições, incentivar a das as entrevistas nas quais o artesão continuidade das pesquisas sobre o comenta e explica os procedimentos Ações realizadas ou em samba de roda na Bahia; ampliar as de construção do instrumento. andamento ações que visem ao fortalecimento, Em 24 de agosto de 2006, à reprodução e à transmissão dos em solenidade realizada na cidade saberes e conhecimentos relaciona- de Santo Amaro da Purificação e dos ao samba de roda; e promover { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 94

capa do cd samba de roda –atrimônio p da humanidade.

samba de roda no âmbito do plano de salvaguarda, foi financiado pelo Iphan e produzido em parceria com a Sociedade de Amigos da Cultura Afro-Brasileira (Amafro) e com a Associação de Sambadores e Sam- badeiras do Estado da Bahia. Outra ação de promoção, realizada nesta segunda fase do plano, diz respeito à presente edição do dossiê de Registro do samba de roda. A iniciativa, além de dar cumprimento à norma que e valorizar essa forma de expressão relacionadas a eventos ou festivi- estabelece que os bens registrados em nível local, nacional e interna- dades municipais e a apoiá-los nos devem ser amplamente divulgados,4 cional, por meio de projetos de di- deslocamentos para apresentações permite difundir para além do vulgação e difusão. Os municípios ou reuniões em outras localidades. Recôncavo e da Bahia o conheci- signatários, por sua vez, compro- Ainda na solenidade realizada mento sobre essa tradição. O dossiê meteram-se a contribuir para a ins- na cidade de Santo Amaro, foi lan- de Registro foi editado em livro e talação da rede de Casas do Samba çado o CD Samba de Roda – Patrimônio também na forma de CD-Rom, de Roda, disponibilizando imóveis da Humanidade, com uma seleção do contendo imagens e áudio. para tal iniciativa e contribuindo repertório dos grupos que partici- Em 2005, tiveram início os na sua manutenção. Comprome- param da pesquisa para o Registro contatos com a Prefeitura Muni- tem-se também a dar prioridade dessa arte. O CD, que concretizou cipal de São Francisco do Conde aos grupos locais em apresentações uma primeira ação de promoção do para a implantação, naquela cidade, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 95

notas

da Oficina de Luteria Tradicional e para administração e manutenção 1. Dossiê de Registro da Arte Gráfica Clarindo dos Santos. Na realidade, da rede de Casas do Samba. Kusiwa dos índios Wajãpi, 2002. um embrião dessa oficina já entrou • Continuidade do apoio aos 2. Respectivamente, Josias Pires e Jean Joubert Freitas Mendes. em atividade a partir da fabrica- sambas-mirins. 3. Foram produzidos 660 minutos ção das três novas violas machetes • Oficinas de samba de roda de gravação audiovisual em Mini DV e que foram financiadas pelo Iphan, ministradas pelos sambadores mais 180 minutos em MD, e 360 fotografias estando em andamento negociações velhos. digitais. para a implantação definitiva desse • Exposição sobre o samba de 4. Artigo 6°, do Decreto n. 3551, de 4 de agosto de 2000, que criou o Registro equipamento. roda. de bens culturais de natureza imaterial e o • Apoio à apresentação de Programa Nacional do Patrimônio Imate- Fase 3: 2006-2008 grupos de samba de roda fora do rial. Ações Previstas Recôncavo. • Conclusão da implantação física do Centro de Referência do Fase 4: 2008-2009 Samba de Roda e da Oficina de Ações Previstas Luteria Tradicional Clarindo dos • Finalização da implantação da Santos. Continuidade da implanta- rede de Casas do Samba. ção da rede de Casas do Samba. • Ações de avaliação do anda- • Ações de apoio para a ma- mento e da eficácia do plano desen- nutenção e auto-sustentabilidade volvido. das estruturas de apoio montadas. • Avaliação dos impactos da sal- Treinamento e capacitação de sam- vaguarda no samba de roda. badores para captação de recursos junto a agências e programas gover- namentais e não-governamentais, BalançoBalanço preliminarpreliminar { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 97

Dona Cadu (Ricardina Pereira da Silva) sambando, em Coqueiro do Paraguassu, primeiros município Maragogipe. resultados do foto: luiz santos. processo de salvaguarda do samba de roda

pesar das dificuldades e pro- sões culturais em seus aspectos de se pode afirmar que o plano de Ablemas que sempre permeiam produção, reprodução e transmis- salvaguarda do samba de roda vai a execução de uma ação pioneira, são, cuidando para que esse proces- bem. A Associação dos Sambadores os participantes e observadores das so seja conduzido e administrado e Sambadeiras do Estado da Bahia ações de salvaguarda do samba de pelos próprios praticantes. Eles são está plenamente constituída,2 tem roda têm freqüentemente ressaltado e devem continuar sendo os princi- proporcionado maior articulação que o processo de reconhecimento pais sujeitos da preservação do bem entre os grupos e indivíduos que e valorização dessa forma de ex- cultural. praticam o samba e encaminhado pressão como patrimônio cultural A organização dos sambadores questões importantes relacionadas à brasileiro “tem sido rico e gratifi- do Recôncavo em uma associação captação de recursos e identificação cante para todos os envolvidos”.1 A constituiu, assim, um passo fun- de imóveis para a rede de Casas do participação dos sambadores e de damental não apenas para que se Samba.3 seus grupos na implantação do pla- avance no sentido dessa autonomia, Após o Registro do samba de no de salvaguarda tem sido intensa mas também para que os órgãos roda e sua proclamação como Patri- e essa é, sem dúvida, a principal governamentais envolvidos no pro- mônio Oral e Imaterial da Hu- razão desse sucesso. cesso de salvaguarda tenham inter- manidade, os convites aos grupos A política de salvaguarda do locutor qualificado e representativo para apresentações em Salvador patrimônio cultural imaterial que dos portadores dessa tradição. ou fora das comunidades locais vem sendo executada pelo Iphan Garante-se também, dessa forma, aumentaram. O grupo de samba tem como um dos seus princípios que benefícios e efeitos positi- chula Filhos da Pitangueira, de São fundamentais a promoção da auto- vos gerados pela patrimonialização da Francisco do Conde, por exemplo, nomia dos processos de reconhe- expressão cultural sejam apropria- foi contratado pelo SESC para fazer cimento e valorização. Em outras dos por aqueles que a produzem e apresentações em 17 capitais do palavras, um dos seus principais transmitem. país. objetivos é fortalecer essas expres- Até o momento, portanto, Com as pesquisas para produção { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 98

do dossiê de Registro, a realização investimentos estratégicos voltados desafios a enfrentar para que todos de oficinas para revitalização do para o fortalecimento dessa forma os seus objetivos sejam atingidos. saber-tocar e do saber-fazer viola de expressão em aspectos cruciais Um desses desafios é, sem dúvida, a machete, a organização da Associa- relacionados à sua reprodução e consolidação de uma rede de par- ção dos Sambadores e Sambadei- transmissão e, também, à afirmação ceiros e a implementação de ações ras do Estado da Bahia, a edição e e consolidação de seus praticantes de capacitação que permitam ao lançamento do CD de músicas dos como condutores do processo de processo de preservação do samba grupos do Recôncavo e outras ações valorização. avançar com suas próprias pernas. de divulgação, o Ministério da Cul- Apesar de suas conquistas, Outro desafio, não menos impor- tura e o Iphan confirmam seu com- entretanto, o plano de salvaguar- tante, é a construção de indicadores promisso com o fortalecimento do da do samba de roda tem ainda para monitoramento e avaliação dos samba de roda. Estes constituíram um longo caminho a percorrer e resultados e impactos do trabalho { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 99

crianças sambando durante o Caruru de Cosme e Damião, na comunidade de ponta de souza, maragogipe. foto: luiz santos.

de salvaguarda, de modo que se porque a gente não pode deixar ção dos chamados sambas-mirins, possa acompanhar a dinâmica de isso. Eu faço tudo, dou o meu grupos de crianças que fazem samba valorização iniciada, especialmente sangue pra não acabar essa tradição” de roda sob orientação de samba- no que toca à melhoria das condi- (Dona Rita, Bom Jesus dos Pobres). dores mais velhos. Entre estes, se ções materiais e sociais que permi- destaca o que foi organizado por tem a existência, a continuidade e “A gente está fazendo um tra- Dona Dalva Damiana de Freitas no a renovação da tradição do samba balho de conscientização grupal, a grupo de samba de roda Suerdie- de roda e sua transmissão às novas gente reúne as pessoas que fazem ck, na cidade de Cachoeira. Esse gerações. parte do grupo para conversar so- samba-mirim foi criado em 1984 Até a proclamação do Registro, bre o real valor do samba. A gente no bairro do Rosarinho e desde as principais iniciativas no sentido também está fazendo um trabalho então atende a comunidade, en- da preservação do samba de roda de preservação através de crianças, volvendo pais e conhecidos, des- eram tomadas pelos próprios sam- em reuniões falando sobre o que pertando-os para a importância da badores. Muitos grupos já vinham, é o samba, como surgiu o samba, continuidade do samba de roda, e nos últimos anos, se preocupando a importância do samba pra nos- recebendo crianças, em sua maio- com a questão da transmissão de sa tradição, pra nossa história, a ria, com idades entre cinco e dez suas técnicas e conhecimentos, con- relação do samba com nossa identi- anos. Integrantes da família de D. forme já descrito em outras partes dade cultural. E aí a gente procura Dalva são responsáveis pelo sam- deste dossiê: preservar, porque se a gente não ba-mirim, com responsabilidades procurar preservar ele vai mor- complementares entre si. Sua filha “O que eu tenho feito é persis- rer” (Alva Célia, São Francisco do Luci, recentemente falecida, por tido. Muitas meninas não querem Conde). exemplo, desempenhava um papel sair [participar do samba], ficam didático importante relativo ao to- envergonhadas, e eu faço a cabeça Cabe mencionar também, como que das tabuinhas e à performance delas [convenço-as a participar], fruto dessas preocupações, a cria- coreográfica das meninas. Gilson, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 100

caruru de cosme e damião. foto: luiz santos. página ao lado aDon Aurinda, tocadora de prato, mar grande, município vera cruz.foto: luiz santos.

genro de D. Dalva, orienta os me- ninos no toque dos pandeiros, tri- ângulo e reco-reco. Vários adultos hoje participantes do samba de roda Suerdieck vieram do samba-mirim. Boa parte dos músicos e cantores de outros grupos de samba e de pago- de, em Cachoeira e nas redondezas, passou pelo samba-mirim de D. Dalva. Com as ações de fortalecimen- to desenvolvidas até agora, com a implantação gradativa da rede de Casas do Samba e, principalmente, com a garra que os sambadores e sambadeiras têm demonstrado na defesa e preservação de sua arte, há razões para crer que o Plano de Sal- vaguarda ora em curso continuará se efetivando com sucesso. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 101

notas

1. Ver, por exemplo, Sandroni, Carlos. “Questões em torno do Dossiê do Sam- ba de Roda”. In: CNFCP, MinC/Iphan. Registro e Políticas de Salvaguarda para as Culturas Populares. Rio de Janeiro, 2005, p. 52. 2. A Diretoria eleita pelos sambado- res em 2005 é composta de: Coordena- dor Geral, Rosildo Moreira do Rosário; Coordenador Administrativo, Mário dos Santos; Coordenador Financeiro, Djalma Afonso Gomes; Coordenador de Comu- nicação, Edivaldo José; e Coordenador de Pesquisa, Bule-Bule. 3. A associação já preparou e está encaminhando ao Programa Nacional de Apoio à Cultura – Pronac, projeto para financiamento do equipamento do Centro de Referência do Samba de Roda, que já conta com o apoio da Petrobras. violaviola dede sambasamba ee sambasamba dede violaviola nono recôncavorecôncavo baianobaiano { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 103

Mestre Quadrado, com o machete, mar grande, município vera cruz. foto: luiz santos.

pesquisa de campo, no entan- preparava meu doutorado so- to, acabou conhecendo um tipo bre samba carioca, estive na casa de samba sobre o qual não existia de Ralph nos Estados Unidos. então literatura específica, e que o Ele presenteou-me com uma fita fascinou, levando-o a redirecionar cassete que guardo ciumentamen- o tema de suas pesquisas: o sam- te até hoje, contendo trechos das apresentação ba de viola ou samba chula. Ralph gravações que fizera no Recôncavo, não concluiu seu doutorado, mas incluindo maravilhosos toques de escreveu dois artigos fundamentais machete, totalmente diferentes do sobre o assunto ora aqui republi- que eu já ouvira até então em violas cados (Waddey, 1980 e 1981), além brasileiras. No primeiro semestre de ter reunido vasto acervo sobre a de 2004, na ocasião das discussões música tradicional do Recôncavo, ocorridas no Ministério da Cultu- alph Cole Waddey, nascido em incluindo gravações, exemplares ra e no Iphan sobre a candidatura RCincinatti - Ohio (EUA) em de instrumentos e documentação brasileira à Terceira Proclamação 1943, há muitos anos é pesquisador associada. Junto com o acervo de das Obras-Primas do Patrimônio e amigo da música brasileira. Na Tiago de Oliveira Pinto, que tam- Oral e Imaterial da Humanidade da segunda metade dos anos 1970, era bém realizou importantes pesquisas Unesco, penso que não foi pequeno aluno de doutorado em Etnomusi- sobre o samba de roda nos anos o papel desempenhado pela escuta cologia na Universidade de Austin, 1980 e 1990, conforme citado com destas gravações, em uma reunião Texas, sob orientação do saudoso mais detalhes neste dossiê, o acervo não isenta de emoção, na escolha Gerard Béhague, e tinha intenção de Ralph é uma das mais impor- final do samba de roda como nosso de escrever uma tese sobre a mú- tantes coleções etnográficas sobre o candidato. sica da capoeira. Quando chegou assunto hoje existentes. Mais do que por seu pionei- em Salvador para seu período de Em 1993, quando eu próprio rismo e importância histórica, a { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 104

machete. foto: jean jaulbert.

viola de samba e samba de viola no recôncavo baiano1

inclusão dos artigos de Ralph Cole defensor da pureza e do valor das Waddey na publicação deste dossiê suas tradições de raiz africana. O se justifica pela qualidade de sua pressuposto é que somente o samba etnografia e por sua atualidade. merece tal desprezo: que é despro- Quando viajei pelo Recôncavo com vido de arte por ser tão simples, a equipe que trabalhou na pesquisa que não exige nem aprendizagem aqui apresentada tive aquela sensa- especial nem talento para a sua exe- ção, às vezes descrita por pesquisa- cução, e que é tão sem importância dores de campo, como de familia- perante quem o cultiva, que pode ridade via literatura. Muito do que ser feito em qualquer ocasião ou estava vendo então pela primeira lugar. Nada mais longe da verdade. vez, já podia reconhecer ou prever, Pois, conforme insistia em dizer graças às minuciosas descrições de “Cobrinha Verde”,2 “samba é coisa Ralph, que havia lido em inglês ão é raro ouvir na Bahia, como séria”. numa revista norte-americana, e Nme disse um amigo, que “sam- O conceito de “samba” é tão que agora se tornam acessíveis a um ba é apenas coisa que neguinho faz vasto e profundo na música e na público mais amplo, como há mui- em esquina de rua”. Esta observação vida brasileiras que praticamente to merece a cultura brasileira. não causaria surpresa se partisse de desafia definição. É um gênero alguém do círculo, bastante am- (musical e coreográfico), um acon- Carlos Sandroni plo, para quem toda a arte popular tecimento e um grupo de pessoas. Professor-Adjunto de Etnomusicologia baiana é primitiva, pagã e selvagem. Como gênero, freqüentemente não da Universidade Federal de Pernambuco Mas neste caso teve origem num se distingue de outros, a não ser baiano que se autoclassificava como pela região e pelos nomes que aí mulato, com curso superior, pro- recebe, como os “cocos” do ser- fissional liberal, e que se considera tão da Bahia3 e outras áreas mais { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 105

1. VIOLA DE SAMBA

ao Norte. O samba a que Cobri- VIOLA em regiões onde os estilos musicais nha Verde se refere é o “samba de A forma e a construção da viola exigem, idealmente, uma forma viola”. “Samba de viola”, “samba brasileira são aproximadamente as diferente do instrumento. Este é de chula”, “samba de parada”, do violão. Suas dimensões, depen- o caso do Recôncavo baiano, onde “samba de ”, “samba dendo da região e do uso, variam: está desaparecendo não somente a sant’amarense”, “samba amarra- podem ser as mesmas desse último arte de fabricar a viola, como o uso do”, todos se referem a um mesmo instrumento, ou consideravelmente até mesmo da viola industrializada fenômeno: variam as denominações menores. Seu braço tem trastos, (que cede lugar ao violão e mesmo à conforme diferentes aspectos que e, na execução, pode ser ponteada guitarra). apresenta. Na realidade, é o texto, a ou “rasgada” com palheta ou com Aqueles que, no Recôncavo, de- “chula”, que formalmente dissocia os dedos. O que, de maneira digna têm a arte e ciência da viola são de de outros este tipo de samba, mas é de nota, distingue a viola do vio- parecer que é o “primeiro dos ins- a viola, sua presença na execução do lão e lhe determina em boa parte a trumentos”. É duplo esse primado. gênero e seu significado no evento, sonoridade, bem como a técnica, é A viola é o primeiro no sentido de que mais o caracterizam aos olhos ser instrumento de encordoamento admitir-se ser o mais antigo. Com dos seus participantes. em ordens duplas, tendo de oito a efeito, sabemos pelo menos que um A primeira parte deste ensaio é doze cordas (mais freqüentemente instrumento denominado “viola” dedicada ao instrumento, na forma dez), afinadas em pares de oita- está há muito tempo no Brasil. O de que se reveste no Recôncavo. vas e uníssonos. Este instrumento jesuíta José de Anchieta escreveu, A segunda examinará o samba do popular ainda é, embora rara- no século XVI, que os meninos Recôncavo segundo as suas várias mente, feito por artesãos. A viola índios “fazem as suas danças à por- denominações, e como gênero, industrializada, fabricada em São tuguesa, com tamboris e violas”.5 acontecimento e grupo de pessoas.4 Paulo, e por isso chamada pelos Esta antigüidade, ao lado da asso- violeiros do Recôncavo de “viola ciação com os primeiros senhores paulista”, hoje predomina inclusive portugueses, contribui por si para { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 106

o segundo sentido do primado: o nando breves e simples interlúdios de outros instrumentos de cordas sentir-se que é o primeiro dentre os de solos, que, no caso do “repen- (como o violão e o cavaquinho) e instrumentos. Afirma-se ser o mais te”, proporcionam ao cantador um instrumentos de percussão (ten- nobre e histórico, o mais brasileiro rápido momento para pensar no do como centro o pandeiro). A e, ao mesmo tempo, o mais euro- próximo improviso. exatidão é essencial na complexa peu. Na Bahia, tanto no sertão como, interação entre as violas, os outros Em duas regiões brasileiras, a de maneira particular, no Recôn- instrumentos e quem dança ou música da viola encontrou apre- cavo, a viola acompanha a dança e canta. Este complexo e preciso rela- ciável número de cultivadores na o canto. O violeiro não só fornece cionamento, mais a necessidade de indústria de discos. A viola é o um fundo rítmico aos que dançam, uma conveniente e bem-estrutura- ponto de apoio do acompanhamen- como é encorajado a desafiá-los a da variedade musical, caracterizados to da “música caipira”, cujo centro acompanhar com os pés a destreza pela maneira de combinar violas de é o Estado de São Paulo, tendo se rítmica dos dedos do executante. diferentes tamanhos, afinações e industrializado principalmente em Um “toque” (breve padrão harmô- toques, proporciona um verdadeiro função desse mercado. Visto ser nico, melódico e rítmico) básico é ideal de conjunto que funciona na São Paulo a metrópole fabril, ali constantemente repetido, mas há prática e se articula na teoria tradi- é também fabricada, prevalecen- dentro desse padrão uma urdidura cional oral, parte dela aforismática, do, pois, em todo o país, a “viola em ornamentação e ritmo de con- parte racional. Efetivamente, pou- paulista”. No nordeste brasileiro, a siderável complexidade. O conjun- cas coisas podem ser mais típicas da “viola repentista” é a companheira to instrumental consiste de várias complexidade do Recôncavo baiano necessária do cantor de “repentes” violas (de tamanhos diferentes, ou, - arcaico, místico, tradicional, em e “desafios” improvisados. O acom- se do mesmo tamanho, afinadas rápida mudança e de extraordinária panhamento de violas nos estilos diferentemente, ou ainda, se afina- heterogeneidade - do que a viola e caipira e repentista é musicalmente das da mesma maneira, executando sua música, e os usos e significações bastante secundário, proporcio- toques diferentes), eventualmente de ambas. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 107

Seu Zé de Lelinha e seu machete. foto: luiz santos.

VIOLA NO RECÔNCAVO ainda ativo na Bahia: Clarindo dos virtude de morar nas proximidades Quase todos os aspectos da viola Santos, nascido em 1922 (falecido de Salvador e que, mais no interior do Recôncavo comportam duas em 1o de dezembro de 1980), rocei- do Estado, poderia deparar-me espécies de explicações e descri- ro, residente a cerca de 75 quilô- com outros artesãos, pelo menos ções: uma natural, a outra sobre- metros de Salvador, perto da cidade em meia atividade. A nenhum ou- natural; uma mundana, a outra de Santo Amaro da Purificação, ca- tro encontrei pessoalmente: ape- extraterrena, mística e mítica. O pital da antiga economia açucareira, nas, aqui e ali, um nome vagamente primado que, entre os instrumen- onde era conhecido como “Cla- lembrado; ninguém, contudo, que tos, lhe atribuem os músicos po- rindo da Viola” e expunha à venda ainda trabalhasse em violas. Aqueles pulares, pode ser explicado pelos os seus instrumentos na barraca de que ainda tocavam o instrumento seus poderes não musicais (as forças um amigo no mercado municipal, usavam os antigos, feitos à mão, já que se diz possuir) e pela vincula- quando não tinha encomendas de cheios de remendos, ou a “viola ção, na mente dos que ainda usam instrumentos especiais. Os seus paulista” industrializada. Os arte- o instrumento, com os primeiros eram largamente usados e aprecia- sanais eram bem semelhantes aos de colonizadores e senhores do Brasil. dos pelos violeiros que encontrei Clarindo, com variações menores É, ademais, o instrumento popular em Salvador, nos sambas do bairro no tamanho e na madeira usada, mais inacessível, e por conseguinte do Alto da Santa Cruz, muitos de de acordo com as disponibilidades o primeiro e mais elevado, tanto do cujos residentes (alguns dos quais locais. Viajei permanentemente ponto de vista musical - pelas difi- violeiros) provinham de Santo com duas das violas de Clarindo, culdades em dominá-lo - como do Amaro. Verifiquei que os instru- fosse para usá-las eu mesmo, caso ângulo econômico, devido ao custo mentos de Clarindo eram usados encontrasse um mestre desejoso de da técnica, dos materiais e ferra- e tinham preferência em Santo ensinar-me qualquer coisa, fosse mentas necessários à sua feitura. Amaro e em volta, assim como em para fixar em gravação a arte de al- Um único fabricante de violas Cachoeira. Suspeitava haver loca- gum violeiro que não dispusesse de me foi possível localizar em 1976 lizado unicamente o Clarindo em instrumento. Jamais afastei-me de { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 108

uma localidade sem que me rogas- diâmetro, o inferior de cerca de 22 três-quartos, possui dez cordas de sem deixar as criações de Clarindo cm, e a cintura de mais ou menos metal em cinco pares. A posição com os violeiros locais, e em certa 12 cm. A viola de “três-quartos” para a execução da viola é seme- oportunidade invocou-se mesmo, tem o comprimento de 89,5 cm, o lhante à do violão, e o instrumen- em defesa do pedido, uma chula bojo superior de 20 cm, o inferior to é encordoado de tal maneira tradicional, “ou me venda ou me de 29,5 cm, e a cintura de 15 cm. A que as ordens mais agudas estão dá” (o que aconteceu ao fim de uma altura da caixa de ressonância, tanto mais perto do colo do músico que sessão de gravação). Sinto-me, por do machete como da três-quartos, as mais graves. As três primeiras conseguinte, à vontade para usar as é de cerca de 6 cm. A regra do ma- ordens, mais agudas, são de fios de violas de Clarindo como modelos chete tem o comprimento de cerca aço nu afinados em uníssono. As de descrição. de 18 cm, e a da três-quartos, cerca mais graves são afinadas em oitavas, Clarindo fazia violas para os de 23 cm, dividida por dez trastos com uma corda revestida e a outra, violeiros do Recôncavo de prefe- de bronze ou de cobre, espaçados a “requinta”, sem revestimento.6 rência em dois tamanhos: o “ma- de modo que produzam intervalos, A “requinta” do quarto par é de fio chete” e a “três-quartos”, usadas grosso modo, de segundas menores. do mesmo diâmetro das cordas do lado a lado no conjunto tradicional Instrumentos de ambos os tama- terceiro par. As requintas dos dois de samba, por vezes acompanha- nhos podem ter outros trastos de pares mais graves são dispostas de das também do cavaquinho e do madeira de lei ou de metal encrava- tal maneira que, com o instrumen- violão moderno, que a tenda de dos na face da caixa de ressonância, to na posição de tocar, estão mais Clarindo podia igualmente pro- apenas nas duas ordens mais agu- distantes do colo do músico do que duzir. O “machete” (nome ao que das, a “prima” e a “segunda”. as suas correspondentes uma oitava parece oriundo da Ilha da Madeira) Uma denominação coletiva mais baixa. tem de comprimento cerca de 76 em curso no Recôncavo para esses Hoje em dia, a caixa de resso- centímetros, com o bojo superior instrumentos é “viola de dez cor- nância é com mais freqüência feita de aproximadamente 17 cm em das”. O machete, assim como a de pinho, embora se usem o cedro { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 109

detalhe da mão esquerda no machete. foto: jean jaulbert.

e o jacarandá no fundo e nos lados, rial, de acordo com o seu “toque” de unha crescida, ou às vezes com a quando as condições, sobretudo e gosto. O processo se denomina dedeira). O violeiro faz seus to- as financeiras, assim permitem. “surrar a viola”, no sentido de cas- ques essencialmente em torno de A regra ainda é amiúde de jaca- tigá-la ou de domá-la para adquirir padrões de acordes formados na randá, como são as dez “craveiras” o desempenho desejado. mão esquerda, ponteando somente (cravelhas) de afinação, o cavalete Podem negá-lo os músicos que com o indicador nos três pares de e (de jacarandá e piaçaba) o relevo se servem de palheta, mas o uso cordas mais agudos e o polegar nos ornamental na forma de losangos exclusivo dos dedos é geralmente dois mais graves. Nunca vi na Bahia (às vezes em rosas, com talos de mais apreciado. A palheta é segura violeiro que ponteie com três ou fio de piaçaba) que acompanha os pelo polegar e o indicador, limi- mesmo dois dedos. contornos da borda exterior da face tando assim o executante a rasgar Foi empiricamente que Cla- e circunda a abertura da mesma, ou a dedilhar uma única nota de rindo aprendeu a fazer violas. de aproximadamente 6,5 cm de cada vez, o que resulta num padrão Contou-me que, depois que o seu diâmetro. Os trastos são de bronze interrompido, às vezes de notá- antigo fornecedor de instrumentos ou de cobre, estes últimos me- vel habilidade e muito próprio à converteu-se em “crente”, abju- nos dispendiosos e mais comuns. textura do conjunto, um tanto rando assim a música, e especial- Conquanto a ação das cordas de aço semelhante à harpa. Todavia, quem mente a viola e tudo o que significa, mais agudas - extremamente finas se utiliza do indicador e do polegar Clarindo decidiu que era capaz de -, ao cortarem os trastos e neles pode conseguir o efeito da palheta reproduzir um instrumento que- deixarem incisões, exija a freqüen- - “catando” a melodia - com a unha brado que possuía. Não negava as te substituição destes, isto serve de crescida desse dedo (ou mesmo com imperfeições da sua primeira obra. ocasião ao proprietário da viola a espécie de palheta que se prende Os lados de suas violas são arquea- para temperar em seu instrumento no indicador) enquanto mantém o dos ao redor de uma sólida forma as idiossincrasias e imperfeições da pulso rítmico do toque - a “mar- de jacarandá (que Clarindo herdou regra, as tensões internas e o mate- cação” - com o polegar (também do seu amigo renascido na religião, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 110

juntamente com algumas relutantes “Dengosa”. Meu mestre em Salva- deve ser seduzida pelo executante e instruções sobre o seu emprego) dor, Antônio Moura da Silva, nas- tornar-se sedutora em suas mãos. e colados sob pressão. Enquanto cido em Santo Amaro e conhecido Nem mesmo a Virgem Maria a viola se arma e adquire forma no bairro do Alto da Santa Cruz está imune aos poderes da viola. (na realidade, em todas as fases de como “Candeá”, denominou “Me- Ouve-se dizer na Bahia que a “pri- construção, enquanto o instru- nina Linda” o machete que Clarin- ma” da viola (a ordem de cordas de mento não se acha fisicamente nas do fez para ele. Inscreveu o nome afinação mais aguda) é ao mesmo mãos do construtor), põe-se um na face da viola para complementar tempo abençoada e maldita. No ramo de arruda para afastar o “mau os fragmentos de espelhos e as fitas sertão do estado, afirma-se que a olhado”, que, deitado durante o do Nosso Senhor do Bonfim que viola recebe os favores da Virgem tempo vulnerável de gestação, antes acrescentou aos relevos de jacaran- Maria porque é o instrumento mais do acabamento e de receber nome, dá, de autoria de Clarindo, a fim apropriado para o seu ofício. Mas, pode significar que nunca virá “a de embelezar a sua Menina Linda. no Recôncavo, se diz que a prima prestar”. Ganha assim personalida- Quando contei a este que havia foi excomungada porque Nossa de e, supõe-se, defesas pessoais. dado o nome de “Prima Julieta” à Senhora não pôde resistir ao seu O proprietário do instrumento três-quartos que me preparara, dis- chamado, e uma noite desceu do dá-lhe o nome. A viola favorita de se-me que já lhe havia dado o nome altar para sapatear ao som da viola. Clarindo se chamava “Princesa Ma- de “Venância”, ajuntando, contu- História semelhante se conta rinalva”. Outro violeiro de Santo do, “Prima Julieta cai bem” e que de Cristo. Este teria sido obrigado Amaro recordou-se com saudades eu tinha liberdade para continuar a sair em busca de São João e São da sua viola “Moça Velha Branca” com o novo nome. No Recôncavo, Pedro, que, despachados em missão que tinha vendido quando, uns dez a viola é efetivamente mulher, e as terrena, terminaram envolvendo-se anos antes, atravessava tempos difí- suas qualidades e formas femininas num samba de viola, desviando-se ceis. A que possuía em 1977, quan- são realçadas pela ornamentação e assim do objetivo. Tendo final- do foi feita a entrevista, chamava-se o nome que o dono lhe dá. A viola mente reencontrado os discípulos, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 111

Seu Nininho e Dona Maria Augusta, tradicionais sambadores de São Braz, município Santo Amaro da Purificação. foto: luiz santos.

o próprio Cristo tampouco resistiu, conseqüência perfeitamente natural e, antes de seguir caminho, deu de certas facetas de execução implí- alguns passos ao som da viola. citas nas relações de intervalos entre Os violeiros pesam cuidadosa- as cordas livres. mente as conseqüências de tocar A afinação rio-abaixo (chama- os seus instrumentos em certos da “guitarra boiadeira” no sertão) lugares, ocasiões e afinações. Nas proporciona consonância em todos florestas, especialmente se afinada os cinco pares livres. Entre a quinta em rio-abaixo e manejada entre parelha (a mais grave) e a quarta, há a meia-noite e as seis da manhã, o intervalo de uma quinta perfeita; a viola atrai “bichos do chão”, os entre o quarto e o terceiro pares, “encantes” da floresta (os caboclos)7 uma quarta perfeita; entre o tercei- e, o que lhe seja talvez mais caracte- ro e o segundo, uma terça maior; rístico, “o Homem”, isto é, Sata- e entre o “segundo” e a “prima” nás. excomungada, uma terça menor. Pode-se aprender a arte da O resultado é uma tríade maior viola de maneira natural, através de formada nos três pares agudos com longos anos de audição, imitação e a fundamental dobrada uma oi- emulação, ou de maneira sobrena- tava mais baixa e em uníssono nas tural, por meio de um pacto com o duas cordas do quinto par e o seu Demônio. A predileção deste pela quinto grau similarmente dobrado afinação em rio-abaixo é explicada no quarto par. (Ver Exemplo 1, na pelos violeiros como resultado dos página 142.) mágicos poderes de atração daquela “Candeá” dizia com desdém forma de afinar, e também como que qualquer um pode tocar viola { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 112

em rio-abaixo; tudo o que se tem a a moça a segui-lo. Suspeita-se que to pares, há uma quinta perfeita; fazer é “passar o dedo, e qualquer o violeiro humano tem poderes entre o quarto e o quinto, uma floreio dá certo”. Mostrava que o de sedução aparentados com os do quarta perfeita. (Ver Exemplo 1.) instrumento pode ser tocado em Diabo, e os violeiros têm consciên- Esta afinação toma o seu nome do rio-abaixo dispensando a mão es- cia da sensibilidade dos seus instru- uso de uma meia-pestana sobre os querda; demonstrava como o diabo mentos. três pares mais agudos, no quinto seduziu “a filha do Barão” duran- Visto que todos os intervalos trasto, como centro da formação te um samba, ao tocar um padrão entre as cordas livres em rio-abaixo da mão esquerda, “atravessando” simples que usa as cordas livres, o são acusticamente puros, a sonori- assim a viola e criando uma tríade tempo suficiente para desobrigar a dade do instrumento é efetivamente maior cuja fundamental é dobrada mão esquerda e possibilitar-lhe fa- bastante ressonante e penetrante no quarto par. Essa tríade forma no zer sinais à moça, no sentido de que nessa afinação. A maioria dos caso o acorde de tônica, do mes- se preparasse para acompanhá-lo na violeiros, todavia, limita-se a tocar mo modo que, em rio-abaixo, a fuga “rio-abaixo”. Somente a moça em apenas uma tonalidade em rio- tríade tônica é formada pelos três compreendeu os sinais; seus pais se abaixo, outra razão para o desprezo primeiros pares livres. O acorde de congratulavam por terem encon- em que o têm alguns executantes. dominante é facilmente produzido trado um violeiro tão talentoso que A afinação “travessa”, como a (na sua segunda inversão) nos três podia tocar com uma única mão. “rio-abaixo”, forma uma tríade pares mais agudos desta meia-pes- Foi evidentemente a consonância maior nas três ordens mais agudas, tana do quinto trasto, apertando-se entre as cordas livres que permitiu mas o quarto par é um tom inteiro o primeiro par no sétimo trasto à mão do violeiro/Satanás os gestos mais grave do que o do rio abai- com o dedo anular, e o segundo não-musicais. O encantamento da xo, invertendo-se assim a posição par no sexto trasto com o médio. afinação, que, tratado pelo violeiro do pentacorde e do tetracorde na O indicador permanece no quinto apropriado, pode mesmo chamar oitava entre o terceiro e o quinto trasto do primeiro par. A quinta do os espíritos das florestas, induziu pares; entre o terceiro e o quar- acorde subdominante já está pre- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 113

detalhe do machete. foto: jean jaulbert.

sente também no quarto par livre. tanto os violeiros como os canta- terminologia a ela associada, que é O acorde dominante está presente dores gostam ocasionalmente de o vocabulário básico da teoria mu- na sua posição fundamental nos três mudar de tonalidade, seja para aco- sical européia adaptado às práticas e pares mais agudos em aberto, com a modar os seus diferentes âmbitos de categorias musicais locais, permite sua fundamental dobrada no quinto vozes, seja para usufruir a satisfação aos músicos organizar verbalmen- par. O violeiro remove o indica- estética que uma mudança de to- te o conjunto e sua apresentação. dor do quinto trasto para passar nalidade proporciona. A mudança Suponho que foi introduzida por da tônica à dominante. Embora a não somente altera a altura real da mestres de música europeus que maioria dos violeiros se limitem a música, como também cada tona- ensinaram em Santo Amaro no apenas uma tonalidade na travessa, lidade tem implicações próprias século XIX, e que depois veio a ser recursos consideráveis de ornamen- de ritmo, andamento e textura. A absorvida pela população local, na tação melódica e de complexidade afinação mais apreciada em San- medida em que cada elemento se rítmica derivam-se desta estrutura to Amaro, chamada “natural”, é a tornou necessário para uma músi- tão simples. Um sinal de domínio mesma do violão moderno, sem a ca realmente baiana - isto é, onde da viola (embora mais característico sua corda mais grave, a sexta (e sem elementos europeus e africanos do sertão) é o domínio do toque pensar em alturas absolutas). Nessa combinaram-se numa forma local. “iúna”,8 que é executado somente afinação, o violeiro consegue tocar As relações tonais e a termino- em travessa. Uma das combinações em certo número de tonalidades. logia a ela associadas penetraram ideais do conjunto de violas para O termo “natural” é usado tanto nesta teoria musical popular de o samba tradicional emprega uma no sentido de “correto” como de maneira singular. Os acordes se machete em travessa para preencher “nativo”. Esta afinação é, por con- formam na viola afinada em natural o registro mais alto. seguinte, originária e peculiar de em posições que seriam familiares No samba de viola de Santo Santo Amaro, mas também a mais à maioria dos tocadores de violão Amaro e imediações (e, em Salva- correta e apropriada, porque mais e as suas fundamentais são deno- dor, no estilo “sant’amarense”), versátil e erudita que as outras. A minadas segundos. Executar numa { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 114

tonalidade e denominá-la pela sua tônica é comum entre os violeiros que tocam em natural. Ré maior é o tom mais comum para o samba, principalmente porque, na altura real em que as violas estão afinadas, o âmbito vocal é confortável para a maioria dos cantadores. Existem os conceitos de maior e menor, e se reconhece que só as tonalidades maiores são apropriadas ao sam- ba. Em “Ré maior”, a “primeira parte” é um acorde de Ré maior; a “segunda parte” é um acorde de Lá maior com sétima, a que não se chama “dominante”, mas se admite “quase igual à primeira parte de Lá maior”, demonstrando-se assim o reconhecimento das proximida- des tonais: vê-se que a dominante de um tom está relacionada com a tônica de outro. Nesta teoria musical popular, tonalidade não é apenas a identifi- cação de uma tônica e suas relações { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 115

Seu Zé de Lelinha. foto: luiz santos.

harmônicas. Indica também a posi- foram representados em alguns esquerda o tratamento rítmico da ção ao longo da regra (ou braço) da sistemas renascentistas de tablatura mão direita (“marcação”) específi- viola onde o acorde é formado. “Ré para o alaúde. “Ré maior sustenido co de cada um. O resultado é que maior grande” compõe-se ape- bemol” é Ré maior numa quarta cada tom se identifica não somente nas nas quatro ordens mais graves posição, ainda mais aguda, ou seja através da sua altura em relação a e toca-se usando um padrão que “mais embaixo”. O “Sustenido de outros tons, como também pela percorre a quarta e a quinta ordens. Lá maior” é conhecido por um maneira distinta de ser executado. “Ré maior pequeno”, demonstrado nome especial, “samango”, palavra “Lá maior”, por exemplo, dá a sen- no Exemplo 2, é talvez o mais comum de provável origem banto, que sig- sação de uma breve passagem pela de todos os “tons” da viola para nifica “preguiçoso” ou “indolente”. sua subdominante, remanescente samba. “Ré maior sustenido” não é A tonalidade e as posições onde do son jarocho mexicano e do son mon- um acorde maior com a fundamen- as “partes” se formam têm impli- tuno cubano (suponho que não seja tal de Ré sustenido, como seria na cações de ritmo e andamento bem simples coincidência), o que não teoria musical convencional euro- definidas, no sentido de que cada acontece em “Ré maior” (Exemplo 2). péia. É, sim, um acorde cuja fun- uma é tocada de determinada ma- Além disso, cada violeiro tem o seu damental é Ré, mas formado numa neira ou conforme certo padrão. próprio padrão melódico e rítmi- posição mais adiante na regra da Cada tonalidade ou posição, pois, co básico, com a sua ornamenta- viola; vale dizer, o acorde soa mais é virtualmente um toque. Esses ção, para a execução de cada tom. agudo. O violeiro diria que este padrões são ditados ao menos em “Toque”, por conseguinte, é uma acorde é “mais embaixo”, referên- parte pelas características inerentes forma de composição para o reper- cia à maneira como o instrumento às próprias formações: a mão pode tório da viola: é a célula através da é empunhado: os sons mais agudos fazer certas coisas mais facilmente qual o violeiro individual introduz da viola encontram-se mais perto em determinadas posições do que o seu próprio material no sistema do chão (em termos espaciais, mais em outras. Complementa a ma- musical e a sua própria música na baixos), da mesma forma como neira de formar os acordes na mão execução. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 116

samba suspiro do iguape, em santiago do iguape, cachoeira. foto: luiz santos.

Essas noções teóricas são im- mas afinada uma quarta ou uma em seu “Sol maior”. Quando o portantes, principalmente na quinta mais grave. (Ver Exemplo 1.) tocador da machete, que funcio- formação apropriada do conjunto O executante da viola maior afina a na como viola-guia, murmura aos de violas, ou seja, um conjunto de sua “prima”, posta uma quarta mais ouvidos do tocador da três-quartos instrumentos de diferentes tama- grave, em uníssono com a “segun- que se senta ao seu lado, “Samba nhos, afinados diferentemente uns da” da machete. Para afinar uma em Lá”, cumpre ao último perceber em relação aos outros e tocados quinta mais grave, o instrumento logo que vai tocar em “Ré”. Se não diferentemente uns dos outros. A maior afina a sua “segunda” uma perceber, o violeiro-guia lhe infor- maioria dos violeiros concordam oitava mais grave do que a “prima” ma. É a tonalidade do machete que em que um conjunto de samba com do instrumento menor. verbalmente define a tonalidade do muitas violas resulta, na palavra de Afinadas em “natural”, em conjunto em qualquer ocasião, e, certo informante, em verdadeira qualquer altura, as “primas” tan- uma vez que cada tonalidade tem as “bagunça”, basicamente por duas to do instrumento menor como suas facetas de estilo, é o estilo da razões: primeiro, num grupo ex- do maior são chamadas “Mi”. A tonalidade do machete que predo- cessivamente numeroso, os músicos “segunda” é sempre “Si”, a tercei- mina. Os cantadores (que podem tendem a não se acostumar às regras ra ordem “Sol”, a quarta “Ré” e a ser ou não os próprios violeiros) de conjunto; em segundo lugar, quinta “Lá”. Conseqüentemente, são livres para pedir determinado instrumentos em demasia inevi- com a sua “segunda” afinada em tom. “Lá maior”, por exemplo, tavelmente tumultuam a sutileza uníssono com a prima do mache- exige que os cantadores cantem em e a nitidez do ideal sonoro de um te, o tocador da três-quartos deve âmbito extremamente agudo (usan- agrupamento de violas. A com- tocar a sua terceira, a que chama do o falsete), ou em outro muito binação a que se dá preferência, “Sol”, quando a última faz soar a grave. Tende a ser mais langoroso no estilo de Santo Amaro, é uma sua quarta ordem, chamada “Ré”. que outras tonalidades, executan- machete afinada em natural e uma Quando a machete toca em “Ré do-se em andamento mais lento. três-quartos, também em natural, maior”, cabe à três-quartos tocar Os cantadores devem sustentar, por { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 117

períodos maiores, difíceis alturas de anular-se de tocar do violeiro-guia. ocasionalmente um pequeno tam- inflexão lamuriosa, particularmente A machete em “travessa” (que do bor de tamanho variável, e prato- nos finais de frases. mesmo modo deve atingir textura e-faca (de preferência esmaltado, e Quando um segundo machete apropriada no registro mais alto) quanto mais arrebentado melhor). integra o conjunto, seja na au- afina a sua “prima”, sua quarta e Qualquer dos componentes do sência de uma viola três-quartos, sua quinta ordens em uníssono com conjunto pode figurar também seja como terceiro componente do aqueles mesmos pares da machete entre os cantadores, que cantam grupo, é recomendável que o seu em “natural”, com as duas outras aos pares, principalmente em terças tocador a afine em “travessa”. Se ordens ajustadas de modo que paralelas. Ocasionalmente, em- é dos que preferem tocar somen- ofereçam intervalos apropriados bora seja raro, um dos cantadores te em “natural”, provavelmente à afinação. O músico continuará não fará parte do conjunto instru- deverá (afina o seu instrumento em a chamar a quarta e a quinta or- mental. No decorrer de uma típica uníssono com a machete do compa- dens respectivamente “Ré” e “Lá” noite de samba, os músicos poderão nheiro) optar por uma execução em e reconhece que só pode acompa- sair do conjunto e a ele retornar, “sustenido”, ou em “sustenido-be- nhar com facilidade a machete em mudando a sua função musical mol”. Se resolvesse ignorar as con- “natural” se a última tocar em “Ré”. interna, numa constante recompo- siderações de textura que o tocar Tal como um violeiro me declarou, sição do grupo que faculta varieda- em outra posição procura cumprir, “em travessa não se fala em tonali- de estilística e a resistência física ao o violeiro-guia provavelmente dade”. samba “de valor”, o qual “só acaba sugeriria que o primeiro tocasse em A percussão do conjunto apro- quando o dia arraiar”. determinada posição tonal. Con- priado para o samba consiste de um tinuar ignorando a sugestão não ou dois pandeiros (talvez três, caso levaria à outra coerção que um dar os tocadores sejam bastante cuida- de ombros, um balançar de cabeça dosos para tocar no mesmo estilo e de brando desgosto, e um discreto não “esmagar” as vozes e as violas), { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 118

2. samba de viola

em-se dito do samba que é tomados em conjunto, esses nomes bre o samba, concentrando-se em Tquase tudo, do sublime ao ri- proporcionam uma definição com- argumentos a respeito da etimolo- dículo.9 Este estudo toma a defesa pleta do gênero. gia da palavra e numa polêmica so- de algo mais próximo do primeiro A compreensão do significado bre se o samba se originou na Bahia ponto de vista, pois, longe de ser completo desse tipo de samba exige ou no Rio de Janeiro, obscurece um passatempo de esquina, o samba também a sua apreciação como o passado e ignora o presente. O pode ser uma arte complexa, bem ocasião, como evento ritual, que é primeiro destes argumentos pare- como parte de atos e eventos reli- parte integrante das mais impor- ce preocupado com uma remota giosos. tantes festas da religião doméstica fonte africana do samba e o outro Na primeira parte deste estudo, da família, num quase inseparável com uma distante fonte brasileira. examinaram-se várias propriedades sistema de crenças herdado da Áfri- Ambas as atitudes são grandemente físicas, musicais e simbólicas da ca e do catolicismo popular, nota- dedutivas e ignoram o comporta- viola brasileira no Recôncavo, o damente nas pequenas localidades mento humano que os seus par- instrumento musical que dá a um e nas áreas rurais circunvizinhas do ticipantes denominam “samba”.10 gênero de samba o mais comum dos Recôncavo. Um samba é o evento Ambas evidenciam uma tentativa seus nomes: “samba de viola.” Os que se desenrola através da execu- de encontrar um passado para o outros nomes - “samba de chula” ção do gênero musical do mesmo samba com pouco conhecimento de (ou “samba chulado”) [Nota da nome. seu presente. Neste ensaio, enfim, revisão: na pesquisa de 2004, en- Finalmente, “samba” assume convém procurar-se flores antes de contramos mais a expressão “samba um sentido de identidade de grupo raízes. chula”], “samba de parada”, “sam- que discrimina os indivíduos com- O propósito deste estudo não é ba santo-amarense”, “samba de petentes para participar do evento e buscar uma definição geral de sam- partido alto”, “samba amarrado” para execução do gênero de manei- ba: o assunto é vasto e tenho comi- - identificam o mesmo gênero por ra correta. go que irrelevante. O objetivo aqui diferentes aspectos, e realmente, Muito do que se tem escrito so- em jogo é lançar a vista sobre uma { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 119

Dona Fia com prato-e- faca, do Samba de Roda de Pirajuía. foto: luiz santos.

forma específica de comportamen- O GÊNERO uma ou duas vezes, praticamente to artístico que os seus executantes O que se segue deverá servir de sem metro, a fim de fixar a tonali- denominam “samba” (com os seus texto básico. É o sumário do mí- dade, permitindo assim aos outros já mencionados qualificativos) e nimo dos eventos que constituem violeiros que estabeleçam as suas. por esse meio contribuir para uma o gênero. Esta célula de execução O toque das violas adquire metro noção válida de pelo menos um dos (que, na terminologia de músi- de forma gradativa, dentro, apro- gêneros em que cabe aquele termo, ca e dança, poderia chamar-se ximadamente, dos quatro próximos do qual se tem abusado bastante. A de “peça”) ajudará a esclarecer os compassos, e os instrumentos de orientação que seguiremos é em- vários nomes que o gênero recebe. percussão entram a seu próprio pírica: é resultado de trabalho e de Uma seqüência de tais células, e a critério, tocando o pandeiro mais observações de campo; as fontes se- maneira como são concatenadas a ou menos conforme o padrão dado cundárias têm uma posição de fato fim de produzir a seqüência, geram no Exemplo 3. secundária. a estrutura e a dinâmica do gênero. Mantém-se o prato na palma Pressupõe-se um conjunto aberta de uma mão, como se fosse musical mínimo e ideal do tipo um pastelão que o tocador estivesse descrito na primeira parte do pre- prestes a lançar no próprio rosto. sente estudo: uma viola “machete” Arranha-se a faca na borda do pra- afinada em “natural” e tocando em to da maneira vista no Exemplo 4. “Ré maior pequeno”, uma viola São as palmas dos demais “três-quartos” afinada em “natu- presentes uma parte essencial da ral” e tocando em “Lá maior”, um percussão. Situação típica é a de pandeiro11, e um prato-e-faca. A pessoas que se mantém de pé junto viola principal (a viola machete, das paredes da sala, geralmen- viola-guia) toca o padrão de “Ré te pequena, a um lado da qual os maior” (demonstrado no Exemplo 2) músicos permanecem sentados, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 120

foto de gilberto sena, do arquivo de ralph waddey.

exceto o tocador de prato-e-faca, claro que o conjunto está conve- faca, como no Exemplo 9. As palmas que normalmente fica em pé (a não nientemente formado, de entre os mudam para o mesmo padrão e ser que também cante chula). Essas músicos que formam o conjunto reduzem grandemente o volume, palmas constituem o que pode cha- primário entram dois cantadores muitas cessando de todo. O prato- mar-se de conjunto musical secun- com o texto do canto, uma “chula”, e-faca parece assim funcionar como dário, proporcionando não só um em terças paralelas, como no Exemplo um instrumento-guia em relação ao acréscimo de sonoridade percussi- 8. Ao completar-se a chula, dois conjunto secundário. va, como também (o que é talvez de outros cantadores podem responder Com o término do relativo (ou, importância maior) um estímulo ao (sem perder nem um só tempo, se se não se canta relativo, ao térmi- envolvimento e ao entusiasmo de adequadamente executada) com um no da chula), o prato-e-faca e as todos os que estão na sala. As pal- “relativo”,12 cujo texto seria, su- palmas retornam ao seus padrões mas entram à vontade, principal- postamente, relevante para a chula iniciais, mas com insistência ainda mente no padrão dado no Exemplo (ou, justamente, “relativo” a ela), maior, a fim de encorajar o dança- 5. Outras pessoas, à medida que o relevância essa que os próprios mú- dor - “sambador” ou “sambadora” conjunto se forma e o entusiasmo sicos reconhecem ser muitas vezes (com mais freqüência uma mu- cresce, podem bater palmas, num duvidosa (ou que não sabem, ou lher)13 - que logo entra na “roda” padrão de colcheias de igual acen- não querem, explicar). De maneira (o espaço livre no centro da sala, tuação, como no Exemplo 6. Outros, típica, o relativo consiste em dois aproximadamente em círculo), ainda, curvando a palma direita e, versos, ocupando oito compassos, para “sambar” ou “sapatear”.14 Os com uma rápida torção do punho, e é cantado uma vez, também em movimentos dos pés, minúsculos, em golpes contra a esquerda, po- terças paralelas, e imediatamente intricados, rápidos, e às vezes quase dem percutir da forma mostrada no repetido. imperceptíveis (o “sapateado”, tam- Exemplo 7. Durante o canto, o prato-e-faca bém chamado “repicado”, “recol- Depois de cerca de dezesseis se modifica, passando-se a bater chete”, ou “miudinho”) são quase compassos, ou após tornar-se na borda do prato com as costas da os únicos movimentos do corpo na { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 121

dinho”, parece flutuar na direção Então a que vai dançar movi- dos músicos, de onde o pandeiro menta-se para o centro da roda, a chama para a “boca do banco”. onde dança breve tempo, “dá três O tocador de pandeiro segura o voltas” e, finalmente, movendo-se seu instrumento numa posição rapidamente para a periferia da horizontal, perto do chão e do roda, “passa” o samba a alguém seu banco ou tamborete (ou mes- da sua escolha, mediante um sinal mo cadeira), entre as suas pernas que faz parte de um conjunto, um abertas e executa o padrão mostrado repertório, de sinais apropriados, no Exemplo 10, com a extensão dos sendo talvez o mais comum a “um- seus dedos fechados sobre a pele bigada”: a dançadeira abre os bra- folgada do pandeiro. A mulher ços e estende o ventre, ou melhor que dança se apresenta diante de o umbigo, na direção da pessoa a coreografia do samba no estilo do cada instrumento, especialmente quem está passando a dança. Os Recôncavo adequadamente execu- diante da viola-guia ou do músico dois podem se tocar efetivamente, tado. que oferece o ritmo mais atraente, ou não. Outros sinais são um toque Ao dançar, a mulher mantém escolhendo entre um repertório de do joelho no de quem vai dançar o queixo levantado, o rosto volta- passos específicos (presumindo-se (mais comum entre homens), ou do para o lado, de modo altivo, as que ela seja do número, rapida- estender as mãos juntas, num gesto mãos nos quadris, ou segurando mente declinando, daquelas que de prece (ou adoração), na direção de leve com uma mão a sua saia ainda dominam esse repertório). A do rosto da pessoa que recebe o na altura da coxa, suspendendo-a viola-guia toca uma “passagem”, tal encargo. O tempo desta na roda é delicadamente.15 Ela entra na roda, como a do Exemplo 11, para a mulher, indeterminado, e dura essencial- vindo do seu lugar na periferia e, como dizem os violeiros, “tirar no mente de acordo com a sua vontade com os pequenos passos do “miu- pé o que a viola tira no dedo”. (moderada pela apreciação ou a { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 122

Samba Chula os Filhos da Pitangueira, de são francisco do conde . foto: luiz santos.

falta dela por parte dos demais par- Introdução instrumental uma mudança e/ou um intervalo. ticipantes em relação à sua dança), Chula A (+ Relativo A) A célula de execução está completa mas uma execução típica dura entre Dançador A e, embora seja raro na prática, um 16 e 48 compassos musicais. Chula A (+ Relativo A ou B) samba como evento poderia em tese O novo dançador - homem Dançador B consistir apenas desta célula (exa- ou mulher - espera no seu lugar Chula A (+ Relativo A, B, ou C) tamente como um recital ou con- enquanto se repete a chula, e esta Dançador C certo poderia consistir de apenas é respondida pelo mesmo relativo, Chula B (+ Relativo D) uma peça). Um novo ciclo começa, por outro, ou por nenhum. Tipi- Dançador D... geralmente após um descanso de camente, uma chula e seus relativos alguns minutos (e habitualmente são executados três vezes, cada vez ...e assim por diante. Os parênteses com o reabastecimento dos músicos separada por uma seqüência de servem para lembrar que os relati- em bebidas, e às vezes comidas), em dança. Três ou mais chulas diferen- vos podem ou não estar presentes, e nova tonalidade. tes são geralmente ligadas, antes que que o mesmo relativo pode ou não O que se transcreve no Exemplo 8 os instrumentos parem e se reagru- ser repetido para a mesma chula (e é excelente demonstração de regis- pem. Um dançador se apresenta qualquer combinação destas possi- tro alto, chamado “voz de mulher”, entre duas diferentes chulas exa- bilidades). que é talvez o principal refinamen- tamente como se o intervalo fosse O ciclo termina mais comu- to, ou maneirismo, da execução apenas entre repetições da mesma mente logo depois de uma chula vocal para os cantores masculinos chula.16 (e seu relativo), a critério da vio- de chulas no estilo sant’amarense. Em resumo, um ciclo completo la-guia, que se interrompe por Ambos os cantores nesta apresen- característico obedece ao seguinte motivos próprios ou por indicação tação eram homens. A despeito da esquema: de outro músico ou de uma pessoa região tonal aguda, os sons vocais de responsabilidade do conjunto são relaxados. O timbre não é ás- secundário, ou da casa, para fazer pero, e a produção vocal parece ser { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 123

de verdadeiro contratenor. Neste exemplo, como acontece comu- mente, a voz mais aguda é chama- da “primeira voz”, e a mais grave “segunda voz”. Essencialmente, contudo, a primeira voz é a voz- guia, e como tal pode ser tanto a mais aguda como a mais grave. O cantor que escolhe a chula e entra em primeiro lugar escolhe também a parte e o registro em que cantará; o outro cantor deve então adaptar-se da maneira mais con- veniente. Uma primeira voz pode selecionar certo registro no qual a sua segunda, para ajustar-se ade- quadamente, seja forçada, de ma- neira desconfortável, a um registro elevado. Esta forma de competição, de acordo com Antônio “Can- deá” Moura, é comum no “samba de estiva” (mas de forma alguma exclusiva dele), no qual a primeira é comumente a voz mais grave. Um par de cantadores (“parceiros”), { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 124

altamente acostumados um ao ou- são apenas implícitos. A fixação do se fossem um só. Os dois freqüen- tro, pode mesmo permutar as vozes texto é bastante livre, e os valores temente cantam olhando atenta- em certas frases em determinadas rítmicos variam de execução para mente um para o outro, especial- chulas, como fazem Cobrinha execução. Os valores dados no Exem- mente se antes não cantaram juntos Verde e Candeá no último verso (*) plo 8 não devem, por conseguinte, com freqüência. Parcerias são desta chula: ser tomados muito literalmente. escolhidas com cuidado e cultiva- As alterações cromáticas tam- das com carinho. Cobrinha Verde Ô liga,19 ô liga meu bem bará, (bis) bém são tratadas um tanto livre- celebrava esse tipo de relação numa Roxo, não. Sou mulatinho, mente, e o rebaixamento do sétimo chula que cantava tendo Candeá Cabelo crespo, cacheadinho. grau da escala, característico da como parceiro: Bicho do mato tem três pé. música tradicional brasileira, espe- Ele pula alí, dança candomblé. cialmente no Nordeste, por vezes Era eu e era Candeá, Pimenta de jiriquitá.20 ocorre, por vezes não. Mais pre- E nós dois andava junto. *Vou beber na venda de Loriana. cisamente, o sétimo grau é tratado Não sei se Deus consente como neutro: pode ser uma sétima Numa cova dois defunto. O Exemplo 8 também mostra menor ou uma sétima maior, ou outra importante faceta do estilo pode cair em algum ponto inter- Melodias específicas, tipos de canto: pouco do que os canta- mediário. melódicos e tratamento dos tipos dores fazem acontece em cima do A liberdade de expressão que tal melódicos variam consideravel- tempo; só raramente uma sílaba fluidez oferece exige cuidado, pre- mente de acordo com os cantadores não se antecipa, ou ligeiramente se cisão e intimidade proporcionais individuais, grupos e localidades. O retarda, em relação ao pulso rítmi- entre os parceiros e cantadores, a tratamento dessas variantes e variá- co. Tempo e metro são claramente fim de atingir o ideal de exatidão do veis será abordado em futuro estu- expressos pelos instrumentos de estilo. Os cantadores devem agir e do. Um traço melódico recorrente, percussão, mas, para os cantadores, reagir, em sua apresentação, como todavia, que é identificado e deno- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 125

samba tradicional da ilha, mar grande, ilha de itaparica. foto: luiz santos.

minado pelos próprios cantadores Ô, vem a cavalaria da donzela Teodora. (bis) Exemplo 8 vai no sentido contrário. (caso raro, em contraste com o Cada cavalo uma sela, cada sela uma senhora. O “repicado” do estilo coreo- extenso vocabulário teórico aplica- Três Maria, três Joana, três tocador de viola. gráfico tradicional de samba está do à viola e seu uso) é o “baixão” - a Quem me dera aquela roxa pra raiar no colo rapidamente cedendo terreno ao sensível na oitava inferior sustida dela. “rebolado” do samba de Carnaval na sílaba final do penúltimo verso, Toca viola, ioiô. Minha santa é virtuosa. (e acrescente-se, dos programas de como no Exemplo 12. A sustentação Mulher que engana homem é danada de auditório da televisão). O reper- da sílaba final de cada verso sobre teimosa, ô, iaiá.21 tório dos sapateados - “bate-sola”, vários tempos é característica do “corta-jaca”, “samba-no-coco” e estilo de Santo Amaro propriamen- Candeá canta esta chula de duas “charre” (ou “chale”) - está caindo te dito (cidade sede do município maneiras: numa delas, sustenta a em esquecimento, e os dançado- do mesmo nome, em contraste com última sílaba da palavra “teimosa”, res mais jovens ignoram também a seus distritos atuais e os já emanci- deixando fora a palavra “iaiá”; na seqüência apropriada de eventos na pados, como, por exemplo, Sauba- outra, acrescenta a palavra “iaiá”, e roda. Esta espécie de mudança, que ra). No estilo “estiva”, essas sílabas sustenta sua sílaba final. De pas- consiste numa diminuição concre- finais são quase truncadas, mas no sagem, diga-se que ele apresenta ta do repertório, estabelece nítido verdadeiro estilo santo-amarense as esta chula como uma que “não pega contraste com o processo de mu- interjeições “Ô ai-ai”, “Ô ah-ah”, relativo”. (“- Por que não pega, dança do passado, no qual o mate- ou mesmo “Ô iaiá” são acrescen- Sr. Candeá?” “- Não pega. É por rial era reinterpretado em termos tadas ao fim do texto da chula e isto.”) Esta chula é cantada com do estilo tradicional preexistente, e estendidas sobre vários compassos, um baixão na palavra “virtuosa”, nele incorporado. ao invés da sílaba final do texto, tal e demonstra também outro tra- O “charre”, que ainda pode como nesta chula que Candeá cos- ço comum: com mais freqüência ser encontrado entre os da velha tumava cantar: repete-se o primeiro verso de uma geração na localidade de Saubara, chula do que se deixa de fazê-lo. O é claramente o charleston22 executa- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 126

do no estilo do samba tradicional claro. todavia, enfrentarão dificuldades - isto é, com movimentos de pés “Samba de viola” refere-se e despesas para contarem com a contidos e com os braços retidos evidentemente ao instrumento que presença de violeiros, e a viola ge- nos lados, em lugar dos balanços e constitui o centro do conjunto ralmente não acompanha sambas de os saltos das pernas e dos braços do instrumental de acompanhamento outros tipos. charleston “autêntico”. Reconhece- deste samba. O assunto “viola” já “Samba de parada” refere-se se que o charre, ou “chale”, “veio foi extensamente tratado, mas vale ao fato de os cantadores pararem o de fora”, muitos anos atrás, e que a pena ressaltar que este instru- canto enquanto o dançador dança era uma “dança” (tomando-se esta mento proporciona uma definição e o dançador interromper a dança palavra no sentido de algo diferente existencial do samba. A simples para que os cantadores cantem. Em de “samba”). O charleston natu- presença da viola e de sua bagagem contraposição, no “samba corrido” ralizou-se e enriqueceu o gênero simbólica no samba dá a este gêne- não somente o canto e dança são antigo ao assumir o estilo tradicio- ro um dos seus nomes de uso mais simultâneos, como também mais de nal, ao passo que o rebolado invade generalizado. Noutras palavras, a um dançador pode entrar na roda a aquele gênero e expulsa o estilo mesma célula de execução musical um só tempo, coisas rigorosamente tradicional. pode ser, e efetivamente é, feita sem proibidas no samba de parada. Esta descrição pretende atingir a viola, quando o instrumento não O fator formal essencial e prin- a função essencial de definir um está disponível. O estilo da dança cipal elemento organizador nesse gênero que, mesmo para os seus e do canto, os textos, e a seqüência estilo de samba é a chula, do que participantes, se impõe através de dos eventos são os mesmos, mas se deriva a denominação “samba nomes variados e intercambiáveis, são acompanhados somente pelo de chula” (ou “samba chulado”). cada um se referindo simplesmente conjunto de percussão. Outro ins- Um ensaio substancial poderia ser a uma faceta diferente do mesmo trumento - a sanfona, por exemplo elaborado sobre a históra dos vários samba. O exame de cada um desses - pode fazer a substituição musical gêneros musicais e coreográficos nomes em separado torná-lo-á bem da viola. Os promotores do evento, aos quais o nome de “chula” tem { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 127

tocadores do grupo paparutas. foto: luiz santos.

sido aplicado. Tem sido considera- tiva). Uma constante entre todas E assim por diante, sempre do, como canto e dança, sinônimo essas variáveis é que a forma textual lamentando as tarefas que Maria ou uma variante do fandango e do do samba chulado é essencialmente não executa por causa de sua indis- sapateado, populares no século XIX européia. As chulas são de extensões posição. Este corrido só termina em Portugal, no Rio de Janeiro, diferentes, mas cada chula indivi- quando, após certo tempo, os par- São Paulo e Rio Grande do Sul.23 dual tem uma extensão e duração ticipantes se cansam, e outro solista Todos os relatos estão de acordo em específicas. Em contraste, o padrão entra com outro corrido. que a chula virtualmente se extin- breve do chamado do solo e da res- É difícil criar, de forma sumá- guiu em todos esses lugares. posta do grupo, e a duração inde- ria, uma idéia geral significativa No samba do Recôncavo, a terminada do samba “corrido” são de algo tão variado no conteúdo e chula24 é o texto do canto. Chulas eminentemente africanos, como na forma como a chula. Uma das são poemas, de extensão variável, neste exemplo. características que as chulas pare- porém mais comumente de quatro cem compartilhar é um senso de versos, e ecléticos ao extremo, tanto (Solo) Que é que Maria tem? intimidade - uma proximidade na forma como no assunto. A chula (Grupo) ‘Tá doente. pessoal entre o cantador e o assun- pode ter sentido lógico, mensa- Que é que Maria tem? to - expresso em linguagem muito gem clara, ser narrativa e linear, ‘Tá doente. coloquial. Esta qualidade foi vista ou pode ser altamente simbólica, Maria não lava roupa. nos exemplos já oferecidos. parecendo expressar uma livre ‘Tá doente. A chula no Exemplo 8 é um diá- associação. A chula, como vimos, Maria não varre a casa. logo pastoral em que um vizinho pode ser seguida por um “relativo”, ‘Tá doente. aparece para pedir emprestado uma tipicamente de dois versos, que se Maria não vai pra rua. cadela à sua pouco compreensiva considera adequado para a chula ‘Tá doente. comadre,25 para ajudar a expulsar que o precede (adequação esta que, Que é que Maria tem? um boi da sua roça. O nome da na prática, muitas vezes é só rela- ‘Tá doente. cachorra é Caravela: coisas do mar { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 128

foto de gilberto sena, do arquivo de ralph waddey.

são imunes às coisas da terra, como Ô, compadre, que dia você chegou? Cheguei por exemplo os “bichos do chão” ontem. (eufemismo para cobras) e a raiva, Fui na guerra dos Canudos, não morri. razão por que freqüentemente os Dia de fogo cerrado, mataram todo soldado. cães recebem nomes marítimos.26 Dia de fogo primeiro, mataram Antônio Na chula, o vizinho chama a ca- Conselheiro. chorra exatamente como se estivesse Dia de fogo segundo, mataram todo jagunço. na roça: “Ecô, Caravela!”. A pri- Ô, compadre, que dia você chegou? Cheguei meira chula citada no texto deste ontem. trabalho trata com ironia noções raciais: “Roxo, não. Sou mulatinho A chula pode ser a respeito do - cabelo crespo, cacheadinho”. O próprio samba, como acontece cantador decide que uma bebida na com esta conversa (também chula venda de uma certa “Loriana” pode de “Cobrinha”) entre pai e filho. Ói o velho lá! resolver os problemas. A segunda O último diz o que se passou no Ô, meu pai, de meia-noite para o dia, chula citada no texto é uma declara- samba da noite anterior. Faca fora desafia. ção de amizade fraternal e de união Ói o velho fora de lá! entre os dois cantadores. Ô, meu pai, ainda ontem fui no samba. Deu Esse senso de intimidade apa- bom. A mistura de temas e idéias, rece até nas chulas a respeito de Ói o velho lá! como ocorre na chula referida na acontecimentos históricos, tal como Deu muito comida, meu pai. nota 21, pode indicar a recomposi- numa das chulas favoritas de Co- Ói o velho lá! ção a partir de mais de uma fonte, brinha Verde, também na forma de Tinha muita bebida, meu pai. e isto certamente conviria à natu- diálogo: Ói o velho lá! reza permissiva da chula em todos Tinha moça bonita, meu pai. os seus aspectos. Em outros casos, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 129

todavia, esta livre associação parece corrente, e podem ser paródias de mento mesmo, durante o samba, obedecer a uma coerência impres- outros textos, tal como esta chula de como foi a precedente. Pode então sionista, expressa na linguagem autoria de Candeá, baseada numa entrar no repertório estabelecido lírica das imagens vivas do cotidiano cantiga muito ouvida alguns anos e ser cantada por qualquer pessoa, do Recôncavo, tal como nesta chula atrás nas emissoras baianas. embora seja reconhecida como freqüentemente cantada por Can- a chula de autor tal. Do mesmo deá. Quando será modo, uma chula já existente é O dia da minha sorte? conhecida como a chula do indiví- Ô, vem do mar, Antes da minha morte, duo que a introduziu no repertório Do outro lado de lá. Olha eu. Esse dia chegará. de um grupo ou local específicos. Cabocolinho, venha cá serear. Qualquer um pode então cantá-la, Que coisa bonita eu acho, Sou filho de Oxum. reconhecendo-se que é a chula de Banana madura no fundo do cacho. Sou neto de Iemanjá. quem a introduziu, muito embora Céu de amor. Sou filho de Ogum. este não reclame autoria, como é Céu de amor é céu de amar. Sou neto de Oxalá. exatamente o caso, por exemplo, Da forma que o barco anda, meu mano, Antes da minha morte, da chula citada, “Ô, meu pai ...”: Como o vento leva. Minha sorte vai mudar. Candeá admitia tê-la aprendido Deus me livre de eu andar, mulher, nos sambas de sua juventude, em Como o barco anda. A mais notável contribuição de Santo Amaro da Purificação. Candeá ao texto é o apelo que faz à Uma vaga idéia da idade relativa Além da possibilidade de uma sua relação com seus orixás, inclu- das chulas no repertório é reconhe- chula ser refeita de pedaços de sive de parentesco de “santo”. cida pelos que as executam, mas não outros textos, as chulas são também Embora não seja essencialmente se apresenta nenhuma razão ana- extraídas intactas de outros reper- um gênero improvisado, às vezes a lítica. O violeiro Crispim Ubaldo tórios, inclusive da música popular chula pode ser composta no mo- Evangelista, agricultor em Senzala { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 130

Samba de Roda Raízes de Angola, de são francisco do conde. foto: luiz santos.

página ao lado Seu Mundinho e Seu João de Iaiá, da Marujada de Saubara. foto: luiz santos.

(perto de Oliveira dos Campinhos, pessoas na roda. Um dançador entra na roda; re- localidade nas proximidades de Diz-se que o “samba amarrado” pete-se a chula acima, e outro entra Santo Amaro), nascido em 1911,27 se refere, por um lado, a um ritmo na roda. Este ciclo pode acontecer apresenta como “a primeira chu- um tanto calmo e ao uso refina- várias vezes. O samba é então “de- la” esta, que se transcreve com um do e reservado de vozes, violas e samarrado”, cantando-se a chula, relativo. mesmo percussão, em comparação desta vez com os seus versos finais: com o samba corrido, mais “solto” (Chula) e demonstrativo. Candeá, todavia, Na Feira de Santana, Minha sinhá, minha iaiá. (bis) dá uma explicação mais específica Eu vendi meu boi fiado Quem tem amor tem que dá. do samba amarrado com base numa Por um bom dinheiro, ai, ai. Quem não tem não pode dá. forma especial de chula. O samba é Mulata baiana, quero ver a palma zoá. “amarrado” cantando-se os ver- Introduz-se uma nova chula, e o Chora mulata, chora sos finais da chula somente depois samba continua. Na prima desta viola. da repetição final desta, como no Nos tempos presentes, associa- seguinte exemplo. Canta-se inicial- se mais comumente o “partido alto” (Relativo) mente a chula desta forma: com o samba do Rio de Janeiro, Ô, vi Amélia namorando. Eu vi Amélia. mas há considerável indicação de Eu vi Amélia namorando. Namora, Amélia. Garimpeiro, boiadeiro, que o termo e o estilo do samba que Olha seu gado esparramado. identifica possam ter emigrado da As chulas podem ter também Sinhazinha mandou me chamar Bahia.28 A palavra partido, já se vê, sentido imediato. Existem textos Lá de cima do sobrado. significa, entre outras coisas, uma especiais para começar uma noite Um conto de réis eu dou associação política formal. Parti- de samba, para permitir a um novo Pela boiada do gado, do é também um extenso campo cantador se apresentar, e para lou- Tirando tortos e magros de cana-de-açúcar, e deste modo var ou provocar outros músicos e Que não possam viajar. partido alto pode significar uma plantação em terreno elevado. A um público não distraído nem por da Purificação e seus arredores o Prof. Zilda Paim, de Santo Amaro outras dançadeiras, nem por textos samba que apresenta tais elementos da Purificação, explica que partido cantados. Este aspecto oferece estilísticos. A expressão tem eviden- alto era o samba que os senhores de também uma explicação da predo- temente mais sentido fora do que engenho estimulavam para exibir as minância de mulheres nesta espé- dentro de Santo Amaro, e o seu suas “cabrochas e mucamas” favo- cie de samba. A participação dos sentido, por exemplo, em Salvador ritas, vale dizer, as suas amantes es- senhores de terra explica o uso de é diferente daquele que tem em Ca- cravas prediletas.29 Cobrinha Verde um instrumento de origem euro- choeira. Na primeira cidade, centro afirma que o partido alto é o samba péia (a viola), e de um texto cantado onde muitos estilos regionais se da “ristrocacia”.30 em língua européia, e de estrutura reuniram, “samba sant’amarense” Partido alto pode, pois, referir- européia. refere-se em sentido generalizado se a um discreto refúgio no canavial Raízes etimológicas e históricas ao estilo de samba do Recôncavo, em terreno alto, assim como ao são de pouco interesse para os mú- exemplificado pelo de Santo Ama- partido, ou sociedade, dos “barões sicos do Recôncavo. São mais prag- ro. Em outros locais do Recôncavo, do açúcar” do Recôncavo. A his- máticos, e os informantes definem muitos dos quais têm seus próprios tória oral falha em especificar qual o partido alto em termos estilísticos estilos bastante semelhantes ao de dessas é a válida (se alguma delas o claros e simples: é cantado em duas Santo Amaro, o termo refere-se for), mas esta hipótese proporciona vozes, a “primeira” e a “segun- a detalhes específicos e menores pelo menos explicações parciais aos da”; só uma mulher entra na roda do repertório, ao uso da viola, à vários elementos estilísticos desse de cada vez, e só quando a chula maneira de dançar e ao estilo do gênero de samba. O canto cessa, e (possivelmente com seu relativo) canto. em contraste com o samba corrido, terminou. apenas uma mulher de cada vez é Samba “santo-amarense” admitida na roda, a fim de mostrar refere-se ao fato de que está mais sua habilidade e seus encantos a associado à cidade de Santo Amaro { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 132

O EVENTO gumas vizinhanças de Saubara, e em junto adequado se reúna numa base É verdade que este gênero de outras localidades do Recôncavo, diária. Enfim, vale lembrar que o samba, e qualquer outro, pode ser as pessoas costumam sambar quase samba de viola é da “aristocracia”, apresentado nas esquinas, mas no todas as noites, depois do dia de nas palavras de Cobrinha Verde, e, mesmo sentido em que um quar- trabalho. Trata-se porém de uma nas de Marcelino Amorim, “dono” teto de cordas da música erudita execução do gênero apenas, infor- do toque “iúna” referido alhures também pode ser - e realmente é mal e recreativo, e não do samba neste ensaio, é “música clássica”.31 - apresentado nos passeios públicos como evento. Predomina em tais Muito mais provável é que o samba (e até nos metrôs) das metrópoles momentos, aliás, o samba corrido. informal de recreio venha a ser o européias e norte-americanas. As É pouco provável que um samba corrido: é mais fácil formar o gru- apresentações de música de câma- de viola se realize numa esquina de po, e, já que qualquer número de ra a céu aberto (e nos túneis dos rua. Sem mencionar o anonimato pessoas pode “brincar” e quase ao metrôs) podem ser prejudicadas e a confusão de uma via pública, o mesmo tempo, é bem mais iguali- em comparação com as audições de fato é que os violeiros e os canta- tário. salas de concertos, em termos de dores de chulas são extremamente Isto não pretende relegar o acústica e de vários outros fatores exigentes a propósito do ambiente samba corrido a uma ordem infe- ambientais (e, é claro, muitas vezes em que se apresentam (inclusive no rior. No evento completo do sam- em termos da habilidade musical que se refere ao ambiente huma- ba, os corridos e as chulas com suas dos executantes), mas o gênero e a no e à conduta dos presentes), até paradas se complementam, como forma artísticos em si são os mes- mesmo quando esse ambiente é veremos. mos, e tanto os executantes como parte da sua própria vizinhança, já O samba acontece adequa- os ouvintes reconhecem que a rua que o conjunto de violas é peque- damente entre quatro paredes e não é o meio ideal, e nem sempre o no, e os cantadores são apenas dois, realiza-se, mais caracteristicamente, adequado, para a apresentação. o som que produzem não é alto. É nas salas da frente das casas parti- É verdade também que em al- igualmente improvável que o con- culares. É um evento doméstico, de { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 133

foto de gilberto sena, do arquivo de ralph waddey. página ao lado Car uru de Cosme e Damião, em maragogipe. foto: luiz santos.

família e, por extensão, de vizi- parte de uma religião pessoal que nhança e comunidade. Realiza-se o indivíduo escolhe e assume, e em ocasiões especiais, de significa- no qual, em certa medida, elege o ção religiosa direta ou indireta. As tempo e a maneira de cumprir os da última categoria incluem ritos atos indicados. O samba pode ser a de passagem: nascimentos, casa- parte pública, celebratória e re- mentos, batismos, e mesmo festas creativa de um ritual completo que de quinze anos. As da primeira são ajuda a cumprir a obrigação. mais interessantes para este ensaio. A comemoração em homena- Os eventos de natureza direta- gem a São Roque, realizada todos mente religiosa32 e ritual ocorrem os anos no dia desse santo (16 de em dias dedicados a um santo, seja agosto) por determinado morador patrono de nascimento de alguém, em sua casa num lugarejo perto um santo que se escolheu como de Santo Amaro, reúne todos os quitetura baiana, se erguem numa protetor, ou cuja intervenção se elementos. São Braz é um vilarejo à colina, a cavaleiro do arraial. O solicitou. No sistema de crenças beira da maré, que depende quase São Roque católico, como muitos afro-baiano, que funciona em inteiramente da pesca. Tem uma leitores sabem, está associado ao íntima relação com o catolicismo rua principal sem pavimentação, Obaluaiê afro-baiano, a qualidade popular, pode mesmo ser o próprio que atravessa uma pequena praça jovem do idoso Omolu, que está as- santo quem demonstra interesse em com uma capela e termina no outro sociado a São Lázaro. Juntos, são as ser procurado (em outras palavras, lado da colina, perto do mangue. divindades que controlam as enfer- o santo pode tomar a iniciativa). Várias ruas se estendem a partir da midades e a peste. Em resumo, estes eventos po- rua principal. As ruínas de uma Esse morador e um primo seu dem ser “promessa” ou “obrigação” igreja barroca dedicada a São Braz, têm suas casas localizadas perto de alguém. A obrigação é de fato de importância na história da ar- uma da outra, na rua principal { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 134

de São Braz. Na véspera do dia de santos preferidos no culto domés- Os participantes dão uma salva de São Roque, gambiarras são esten- tico). A reza é aberta físicamente palmas e respondem, “Viva!”, e didas entre as duas casas. Na sala e simbolicamente à comunidade, amiúde soltam-se foguetes na rua, de uma delas, realiza-se uma festa e o grupo participante consiste de diante da casa. de candomblé em homenagem a todos aqueles que desejam assistir. O estilo musical que prevalece Obaluaiê, ritual em que o orixá é Este grupo se reúne ao redor do no evento começa gradativamente chamado com tambores e ciclos de altar e da rezadeira, respondendo, a modificar-se, num processo de cânticos de origem africana. Simul- também em canto, a suas preces. transformação musical que leva taneamente, na outra casa, perten- O estilo musical destas preces diretamente ao samba. Dando um cente ao primo, realiza-se uma reza é europeu. O tempo é lento e o passo da Europa rumo ao Brasil, e um samba para São Roque.33 ritmo, quadrado. O canto pode ser as mulheres cantam uma roda34 A reza é um ciclo de orações em uníssono, ou às vezes em terças de despedida a São Roque (Exemplo cantadas em português (com al- paralelas improvisadas. A impressão 13). Toda a assembléia entra com gumas respostas em latim, às vezes é geralmente de lamento, embora, as palmas em cima do tempo, e o de memória apenas fonética, “Ora é claro, nada em absoluto exista de andamento se acelera à medida que pros nobres”, por exemplo) e “ti- lamento no rito. A reza prolon- sucessivamente a roda se repete. radas” por uma “rezadeira”, pessoa ga-se por aproximadamente meia Alguns dos músicos que acompa- especializada, na grande maioria hora. Encerra-se com uma ladai- nharão o samba assistiram à reza, e, dos casos mulher, e trazida de fora nha de despedida para o santo ou a em certo ponto, pode-se ouvir um pelo dono da casa. Reza ajoelhada - santa, freqüentemente agradecen- timbal que se vem juntar ao con- ou sentada numa esteira de palha de do-lhe a presença e expressando a junto (Exemplo 14). A roda termina artesanato local - diante de um altar esperança de que a ocasião se repita quando a rezadeira interrompe com (chamado às vezes de “pejí”) ornado no ano vindouro. Ao fim da ladai- outra saudação, “Bença, Senhor com imagens do santo reverenciado nha, a rezadeira saúda o santo três São Roque!”. Quase imediatamen- (e talvez com imagens dos outros vezes, “Viva Senhor São Roque!” te, as mulheres iniciam uma segun- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 135

foto de gilberto sena, do arquivo de ralph waddey.

O samba de Messias foi um A primeira chula cantada é com grande e feliz acontecimento no freqüência diretamente apropriada ano em que este caso foi registra- a abrir uma noitada: do. Os violeiros geralmente con- cordaram em que o conjunto era Dona da casa, cheguei agora. demasiadamente grande e que, Foi agora que eu cheguei, por conseguinte, jamais se ajustou Com Deus e Nossa Senhora. devidamente, resultando assim na [Nota: Esta chula é cantada na “bagunça” - palavras suas - a que abertura do CD Samba de roda – Patri- se aludiu muito atrás neste estudo. mônio da Humanidade] Viola, cavaquinho e violão eram de São Braz mesmo. Dois violei- Em Saubara, um músico pode ros foram trazidos de localidades apresentar-se e introduzir-se no da despedida ao santo, desta vez em próximas, sendo o transporte pago samba com esta chula, pela qual forma de samba - mais precisamen- pelo patrocinador. O alojamento parece louvar sua própria conduta: te, um corrido (Exemplo 15). Uma foi problema menor, pois o sono ou várias pessoas podem entrar na foi coisa rara. Comida e bebida Pela primeira vez que chego, roda para sambar diante do altar, foram abundantes no samba, e Peço licença. que permanece exposto por toda certo número de casas se abriu para Apertei a mão das moças, a noite. O conjunto de cordas e descanso de forasteiros e vizinhos E dos mais velhos dei a bença. percussão (a “charanga”) arranja- igualmente. Ajoelhei pedi perdão. se no lugar competente, e quando O samba não é em absoluto uma Eu dei a bença aos mais velhos, o corrido das mulheres termina, cadeia de eventos inteiramente ho- E às moças eu apertei a mão. o samba de viola está pronto para mogênea e indiscriminada durante começar quase imediatamente. as muitas horas que pode durar. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 136

Os cantadores podem zom- Ao que outro par poderá res- que, pelas graças de uma mulher da bar um do outro, ou louvarem-se ponder com este relativo: roda, o ciúme e mesmo a violência mutuamente, em suas chulas. Um se excitem. Uma forma comum de par deles pode cantar da seguinte Colega meu, elogio a uma sambadora particular forma: Vou mandar de relepada. (e também uma forma de partici- Quando Deus mandar a chuva, pação para quem não está dançan- Se minha mulher souber Você vai na enxurrada. do) é o grito, “Olhe seu marido, Que um cantador me venceu, mulher!” (ou, “Marido, olhe sua Ela jura, bate fé, Não é incomum que dois mulher!”), destinado a provocá-la “Isto não aconteceu”. cantadores se convidem a sair da ainda mais a caprichar na roda (e, Arruma a trouxa e vai-se embora. casa “para ver se o corpo agüenta o de passagem, enciumar o compa- Não quer morar mais eu. que a boca fala”, nem é incomum nheiro dela). De qualquer forma, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 137

Samba de Roda de Pirajuía. foto: luiz santos.

diz-se que um samba sem pelo me- Em determinado momento da boca, e ele ou ela entra na roda para nos ameaça de briga “não prestou”. noitada, o samba pode se tornar sambar ao som da seguinte chula Tal como diz a chula, “De meia- mais lúdico, com a execução de e seu corrido, repetidos enquanto noite para o dia, faca fora desafia”. “brincadeiras” contendo diálogo a pessoa que dança permanece na Várias vezes durante a noi- falado e representação, e usando roda: te, tanto para proporcionar uma adereços e objetos de cena, como mudança de passo como para dar o “Samba de Severo”. Nesse, um (Chula, solo) trégua aos violeiros e cantadores mestre de cerimônias pergunta a Quando eu tinha meu Severo, de chula, os corridos substituem as vários indivíduos (identificados Eu comi de prato cheio. chulas. O corrido pode ser variante por um chapéu que passa de um Hoje que não tenho Severo, de uma chula, como neste caso: ao próximo escolhido), os quais Nem bem cheio nem bem meio. improvisam papéis de forasteiros, (Corrido) (Chula) porque apareceram no samba sem (Solo) O Severo é bom. Eu via Maria sentada, serem chamados. O intruso inven- (Grupo) É bom demais. Sentada no tamborete, ta qualquer pretexto para estar nas (Solo) O Severo é bom. Cozendo sua costura, vizinhanças e algum grau de paren- (Grupo) É bom rapaz. Bordando seu ramalhete. tesco, ou outro vínculo freqüen- Chora, chorei, chora. temente sugestivo, com um certo Quem dança passa o samba ao Chora, Maria, chora “Severo”. Quem indaga procura próximo “forasteiro”, colocando Na prima desta viola, paciente porém insistentemente o chapéu em sua cabeça, a música Chora. saber se o penetra “faz o que Seve- pára, e repete-se o interrogatório. ro faz”. Este desafia em resposta: É difícil recusar o chapéu, e assim (Corrido) “Pinique aí pra ver!”. A percussão este samba é usado para provocar a Ô, chora, Maria, chora, (bis) começa antes, se possível, destas participação dos que se marginali- Na prima desta viola. palavras terminarem de sair da sua zam, assim como fazer um intervalo { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 138

Samba em dia de Caruru de Cosme e Damião. foto: luiz santos.

página ao lado Líderes do Samba de Castro Alves. foto: luiz santos.

humorístico, malicioso e até final- (Solo) Porque apanhou violeiros e cantadores às vezes re- mente gaiato (combinação que aliás Nhem, nhem, nhem. sistem ao cansaço, enquanto exaus- carateriza o fino senso de humor do Porque não mamou. tos nos seus lugares, continuam a Recôncavo). De uma forma ou de Nhem, nhem, nhem. cantar e tocar, espichando o pes- outra, geralmente aumenta a ani- Chora, menino. coço e forçando os olhos para além mação. O samba de Severo termina Nhem, nhem, nhem. da porta, aguardando “o dia raiar”, quando alguém, decidindo que se O menino é chorão. para sentirem-se satisfeitos com o prolongou o suficiente, anuncia Nhem, nhem, nhem. samba. Um bom samba pode muito que ele ou ela (é indiferente que Chora, menino. bem “entrar no dia seguinte”, e seja mulher) é Severo em carne e Nhem, nhem, nhem. não é raro ouvir-se que um samba osso. Entra na roda, e não passa o O menino é chorão. continua diretamente na segunda chapéu. (...) noite da festa. Mas os tempos estão Outros sambas com teor de mudando rapidamente, e, nos dias representação não incluem diálogo Noutro samba, “Coça-quipá”,35 de hoje, é motivo de satisfação en- falado. Em “Chora, menino”, um quem dança finge ter comichões, contrar-se mesmo uma só noite de objeto representando um neném e coça as partes do corpo, indo das samba rigorosamente executado. (pode ser uma boneca mesmo, ou menos às mais provocativas. uma garrafa, um trapo, um pedaço O valor de um samba é calcu- de pau, qualquer coisa) passa de lado em boa medida por sua dura- dançador para dançador, enquanto ção. É lógico que um samba bom, se canta um corrido sobre o “quente”, tende inevitavelmente a da criança: durar mais do que um samba fraco; mas parece haver mais do que isto. (Solo) Chora, menino. Nenhum samba digno de lembran- (Grupo) Nhem, nhem, nhem. ça termina antes do amanhecer. Os O GRUPO O “samba” não é certamente, indústria turística, e ainda mais É inegável que os participantes na Bahia, um grupo ou sociedade quando falam com forasteiros. de um samba, durante sua efetiva- formal (salvo para fazer apresenta- “Nosso samba”, contudo, pode ção, formam um grupo. É claro ções). Há, todavia, forte reconheci- também ser usado de referência a também que o samba tem signi- mento de afinidade com um certo, todos aqueles que são considerados ficação religiosa e mesmo função e muitas vezes bem específico, competentes para executar o gênero religiosa direta. No culto domés- grupo de pessoas competentes em com propriedade e da mesma forma tico, o samba se realiza não apenas um estilo de samba, na maioria dos participar do evento. Admite-se para um santo, mas diante dele, casos estreitamente identificado, e que o conceito é tênue, e certa- presente em seu altar. Tanto Souza freqüentemente com fortes cono- mente merece mais estudo, mas não Carneiro como N’Landu-Longa tações regionais e até micro-regio- há dúvida alguma de que o samba é sugeriram a natureza religiosa do nais. um importante ponto de referência samba no passado, quer africano, A relação está implícita na lin- para os seus participantes no seu quer brasileiro, e o último chega guagem que os participantes usam ambiente social. a afirmar que o samba remonta a a propósito do gênero. “Nosso um grupo de iniciação ao qual se samba” pode ser usado para in- permanece ligado por toda a vida. A dicar aquele grupo de músicos e questão é saber se o samba da Bahia, dançadores que juntos costumam presentemente, retém ou não uma realmente executar o gênero. É, qualidade de identidade com um noutras palavras, o conjunto de grupo estabelecido - grupo que apresentação (performance). Assim, os dure além da identidade momen- músicos de samba podem referir-se tânea assumida enquanto o gênero ao seu “conjunto”, especialmente se apresenta, e há participação no aqueles que tiveram experiência evento do samba. com grupos de “folclore” para a { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 140

um epílogo pessoal

ui informado da viola do Amaro da Purificação homens, e de um instrumento musical cujo FRecôncavo e do seu samba no mulheres, famosos nas redondezas tipo realmente adequado é fabri- decorrer de um trabalho que fazia por suas proezas como violeiros, cado por um minúsculo grupo de em Salvador sobre o repertório como conhecedores de grande nú- artesãos em plena fase de extinção. musical do jogo de capoeira, e foi mero de chulas, como possuidores Para os herdeiros naturais dessa através de informantes de capoei- de um “grito” excepcional, como tradição - os descendentes dos ra, especialmente o saudoso Rafael “bagunceiros”. Conheci um fazedor violeiros, cantadores e sambadeiras Alves França, o Mestre “Cobrinha de violas. Através de Santo Ama- - muitas vezes este samba antigo Verde”, que pela primeira vez fui ro, conheci São Braz, e Saubara (e representa um passado de pobre- apresentado aos violeiros do Alto da lá Marujos, Cristãos e Mouros, e za rural e de imobilidade social Santa Cruz, em Salvador, entre os França, Oropa, Portugal, e Bahia). e econômica. Na verdade, pouco quais Antônio “Candeá” Moura e Descobri, afinal, uma tremenda existe nas vidas da maioria dos meus seus colegas - na sua maioria, como rede de samba e sambas, e uma informantes que indique outra coi- “Cobrinha”, emigrados do Recôn- arte musical de considerável com- sa. O interesse do estudioso de fora cavo. Foi Cobrinha o primeiro a plexidade, aparentemente nunca os espanta, o que parece ter tido insistir em que eu, como músico, antes tratada, salvo de passagem, em pelo menos algum efeito na reava- precisava conhecer “nosso samba... qualquer espécie de publicação. liação positiva da tradição na mente samba de viola”, e levou-me a ver A música e a sua rede, todavia, daqueles que a herdaram. “Candeá”, que morava alí perto. estavam e estão rapidamente desa- A reação da classe média com Através do samba, conheci o parecendo, como acontece a tanta formação universitária, especial- Recôncavo. Aos poucos, comecei coisa da cultura tradicional do mente entre indivíduos de meia- a viajar com os músicos do “Alto” Recôncavo. Talvez o samba de viola idade, e tanto mais “politizados” para as terras natais deles, nos dias fosse a única que jamais tinha sido melhor, pode ser bem diferente. de festa ou de “obrigação” de pa- registrada, mesmo pela indústria do Bom número de amigos meus nos rente ou amigo. Conheci em Santo turismo, e é a única que depende campos profissional, acadêmico, { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 141

Seu Pedro Sambador e Dona Porcina, em maracangalha. foto: luiz santos.

Nélson de Araújo, morreu também Clarindo dos Santos, “Clarindo da Viola”, sem deixar no Recôncavo quem faça violas para seus violeiros e para os violeiros do futuro. O samba de viola faz parte de um cosmos [mundo] de compor- tamento simbólico repleto [pleno] e coerente. Se é uma arte bela e expressiva, como aqui se afirma, é urgente que seja divulgada (e prati- cada), para que os filhos e as filhas dos violeiros do Alto da Santa Cruz jornalístico ou artístico (muitos dos gela. É um claro símbolo de nacio- e das mulheres de Saubara possam quais, como os próprios violeiros, nalismo saudável, de um Brasil de ainda cantar: têm laços íntimos e recentes com certo modo mais brasileiro, menos “Ainda ontem fui no samba. o Recôncavo), têm se expressado comprometido com o desarmô- Deu bom”. quase maravilhados com o samba de nico modelo de desenvolvimento viola. Muitos afirmam relembrá-lo e da idolatria alienante da cultura das suas infâncias, e espantam-se internacional de massa das recentes de vê-lo ainda existente. Muitos décadas - um Brasil que esperam, me expressaram o ponto de vista de ou esperavam, conquistar. que, para eles, esse estilo musical Desde que este ensaio foi inicia- representa a quintessência de uma do, sem falar nas mortes do “Co- música brasileira verdadeira e sin- brinha Verde”, do “Candeá” e do { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 142

exemplos musicais

altura real é dada na nota Exemplo 1: AFINAÇÃO DA VIOLA Ainicial entre parênteses; esta nota mostra a altura da primeira As cordas simples são indicadas que são tangidas antes do par uma nota do exemplo não circunscrita por notas cheias; as revestidas, por oitava mais baixa, pelo movimen- por parênteses. Todas as alturas nos notas brancas. As “requintas” da to do polegar do violeiro quando Exemplos 1 e 2 são na prática uma quarta e quinta ordens são indica- avança na direção do indicador. A quinta e uma sétima menor mais das por hastes. As cordas são repre- afinação “requintada” é outra usada agudas do que aqui demonstrado, e sentadas na pauta na ordem física em Santo Amaro, mas é menos as violas que foram discutidas neste segundo a qual estão colocadas no comum que as demais examinadas, ensaio são afinadas uma sétima instrumento. Isto significa que as e não é descrito no texto. acima das alturas mostradas nos “requintas” estão numa posição tal exemplos, dependendo da execu- ção, isto é, das características dos instrumentos e das vozes dos canta- dores presentes. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 143

Exemplo 2: RÉ MAIOR E LÁ MAIOR

A altura aqui indicada é da “mache- te”, mas os padrões se formariam da mesma maneira na viola “três quartos” afinada em “natural”. O tempo num samba seria colcheia entre aproximadamente 96 e 120.

Exemplo 3: PANDEIRO d’uma nota representa o som agudo Esta é uma transcrição rudimentar da batida de toda a palma no couro e simplificada da maneira altamen- Cada semicolcheia representa o do instrumento, comprimido pela te sofisticada que o instrumento é retinir das rodelas do pandeiro, pressão do polegar da mão direi- tocado. Consegue-se complexidade produzido pelo movimento do ta sobre o couro moderadamente através da variação dos acentos e punho da mão esquerda (com o comprimido; as notas entre parên- batidas da mão direita e da tensão qual mais habitualmente se segura o teses são os sons das rodelas por si aplicada sobre o couro pelo polegar instrumento). Um círculo (_) acima mesmas, isto é, sem golpes da mão da mão que segura o pandeiro. d’uma nota representa um som direita sobre o couro do pandeiro. profundo produzido pela batida do polegar da mão direita sobre o couro livre, não comprimido, do pandeiro; o sinal “mais” (+) acima { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 144

Exemplo 4: PRATO-E-FACA

As notas acentuadas e aquelas cujas hastes não estão conectadas com uma nota precedente representam sons produzidos pelo dorso da faca batendo na borda do prato; as notas cujas hastes estão conectadas repre- sentam os sons produzidos pela faca raspando o prato, sem se afastar dele.

Exemplo 5: PALMAS Exemplo 6: PALMAS Exemplo 7: PALMAS { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 145

Exemplo 8: CHULA E RELATIVO

O relativo está grandemente sim- plificado no exemplo que se trans- creveu. Só se oferece a voz mais aguda; a mais grave, na maioria dos casos, combinaria em terças para- lelas. O tratamento rítmico, como o da chula, seria caracterizado por antecipações e retardamentos na batida.

Exemplo 8: PRATO-E-FACA { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 146

Exemplo 10: PANDEIRO “BOCA DE BANCO”

(Os círculos têm a mesma significa- ção que no Ex. 1)

Exemplo 11: PASSAGEM DE VIOLA

Exemplo 12: “BAIXÃO” { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 147

Exemplo 13: RODA, “ADEUS, SÃO ROQUE”

Exemplo 14: TIMBAL { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 148

Exemplo 15: CORRIDO, “ATÉ P’RO ANO” { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 149

1. Este ensaio foi publicado, na sua qual leva em conta a formação dos terrenos primeira versão, em inglês, na Revista de e a resultante utilização dos solos. (...) Música Latinoamericana, Vol. I, N._ 2 (ou- Recôncavo quer dizer açúcar, açúcar e tubro, 1980), e Vol. II, N._ 2 (outubro, fumo, massapê, (...) casas-grandes caindo 1981) da University of Texas Press (Austin, em ruínas, (...) os grandes navios petro- Texas, EUA). A “Parte I: Viola de Samba” leiros aportados na entrada do boqueirão, foi editada em português, em tradução na Ilha de Madre de Deus, bem defronte Notas de Nélson de Araújo, na série monográ- à igrejinha de Loreto no mais puro estilo fica Ensaios/Pesquisas, N._ 6 (dezembro, jesuítico seiscentista na Ilha dos Frades.” 1980), do Centro de Estudos Afro-Orien- Machado Nedo, Zahidé. Quadro sociológico da tais da Universidade Federal da Bahia “civilização” do Recôncavo, pp. 3-4. (Salvador, Bahia). 5. Anchieta, José de, S.J. Poesias, p. O estudo que resultou nesta publicação 743, n._ 9. começou mediante pesquisa subsidiada 6. Os nomes pelos quais as cordas pelo Social Sciences Research Council do são chamadas no Sul do Brasil são pouco American Council of Learned Societies, usados na Bahia. Câmara Cascudo, em seu no decorrer da qual o autor esteve ligado Dicionário do folclore brasileiro, verbete “Viola”, à University of Illinois, como candidato dá os seguintes nomes: “prima” e “con- ao Ph.D., e ao Centro de Estudos Afro- traprima” (1._ par); “requinta” e “contra- Orientais, ao qual deseja apresentar pro- requinta” (2._ par); “turina” e “contratu- fundos agradecimentos pela cordialidade e rina” (3._ par); “toeira” e “contratoeira” apoio, durante esses longos anos, dos seus (4._ par); “canotilho” ou “bordão” e funcionários, alunos, professores e, no- “contracanotilho” (5._ par). tadamente, dos seus diretores, Guilherme 7. Algumas cerimônias dos cultos dos de Souza Castro, Nélson de Araújo, Júlio caboclos comportam violas, como as que Braga e Jeferson Bacelar. envolvem o “Boiadeiro”, sendo o instru- 2. Rafael Alves França, conhecido mento favorito deste. como “Cobrinha Verde”, é dos mais 8. Diz-se que o “iúna” imita o canto do renomados dentre os mestres tradicionais pássaro que dá o nome ao toque. da capoeira. Também fazia curas, segun- 9. N’Totila N’Landu-Longa, em do suas palavras, “pelas ervas e as águas”. conferência pronunciada no CEAO (10 Foi quem primeiro me abriu caminho de maio de 1978), da qual há uma grava- ao mundo da viola, dos violeiros e do seu ção depositada na biblioteca deste órgão, samba, no qual era exímio. sugere que “samba”, como vocábulo e fato, 3. No sertão da Bahia, o gênero pode é descendente do quicongo sáamba, que ser chamado “coco”, mas o evento recebe o significa o grupo iniciatório no qual uma nome de “samba”. pessoa se torna habilitada para funções 4. A significação dos termos usados no políticas, sociais e religiosas, passando a título é o verdadeiro assunto do presen- significar, por analogia, a hierarquia das te trabalho, sendo conveniente, todavia, divindades. Edison Carneiro, em Fol- acrescentar a seguinte citação: “O chamado guedos tradicionais (p. 36), sugere que Recôncavo geográfico, compreendendo “samba” deriva de e significa umbi- a área em torno da Bahia de Todos os gada, através do qual a dança passa de uma Santos, cuja entrada é a cidade do Salva- pessoa à próxima. Batista Siqueira afirma, dor, se estende, no conceito fisiográfico, o em A origem do termo “samba” (p. 30), que { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 150

“samba” vem da palavra carirí equivalente 12. O Recôncavo baiano é uma ver- suas parceiras femininas, seu estilo é mais ao português “cágado”. dadeira civilização, embora regional e já comumente um tanto diferente, caracteri- Existem diversas outras explicações arcaica (veja Machado Neto, 1971, e Milton zado pelos movimentos de pernas e braços etimológicas. Há por exemplo em Lu- Santos, 1959). Nesta civilização, como em (conhecidos como “piegas”) mais exube- anda, Angola, uma rodovia à beira-mar, qualquer outra, as diferenças entre lugares rantes e acrobáticos. chamada “Estrada da Samba”, usada quase próximos são às vezes nítidas e rigorosa- 14. Existem em todo o Brasil, e mesmo diariamente pelo autor deste trabalho mente reconhecidas pelos habitantes. em toda a Bahia, vários estilos do “sapate- quando teve ocasião de passar uns meses Na cidade de Santo Amaro da Purifica- ado”. No Recôncavo “sapatear” significa de 1996 neste país a serviço da ONU. O ção, sede do município do mesmo nome, dançar nos pequenos e rápidos movimen- pedido de uma explicação ao povo do lugar não se canta relativo. No lugar de Santa tos do pé característicos do samba. O sa- recebeu, de um informante amigo, a res- Elisa, do mesmo município, e em Saubara pateado (ou “sapateio”) pode ser executado posta de que “samba” era “uma espécie de - cidade só recentemente emancipada de facilmente de pés descalços. braço do mar”, e de outro participante da Santo Amaro -, o relativo entra a rigor. 15. Conheço uma certa sambadora, de mesma conversação cordial, “qual nada - é Em São Braz, também no município de apelido “Da Véia” (da velha), de Saubara, um tabuleiro no interior”. Terreno fértil, Santo Amaro, e só uns 18km de Saubara, que samba daquela maneira, segurando a mas para outra colheita. não entra. O hábito do lugar onde está saia com a mão esquerda e acrescentando 10. Uma exceção é Samba rural paulista de se realizando o samba prevalece naquele sua marca registrada de encostar de leve na Mário de Andrade, trabalho baseado em samba, mas, já que é comum em qualquer bochecha direita as pontas dos dedos (ou observação de campo. samba a presença de cantores de lugares apenas a do dedo indicador) da mão direi- 11. O pandeiro tradicional do Re- vizinhos, porém de hábitos divergentes, ta, a palma para cima - olhando para cima côncavo consta de um aro de madeira são proporcionalmente comuns os choques como se estivesse distraída ou desinteres- (de preferência jenipapo), com rodelas estilísticos, e não raros os atritos em torno sada. Estas marcas registradas maneiristas recortadas de folhas de flandres (hoje em deles. [Nota do revisor: a pesquisa realiza- são permitidas, e mesmo estimuladas, dia, de tampas de garrafa de cerveja ou da em 2004 mostra certas diferenças com entre os participantes. Diversas pessoas refrigerante, achatadas e desamassadas) e o aqui afirmado neste ponto. O grupo com podem empregar o mesmo maneirismo, com membrana de pele de cobra, veado ou que trabalhamos em São Braz canta relati- ou semelhante, da mesma forma que cada bode (e por esta razão esse instrumento é vo, como se percebe na faixa 1 do CD Samba cantador tem sua própria voz e sua pró- muitas vezes chamado apenas de “bode”). de roda, patrimônio da humanidade]. pria maneira de interpretar, mas sempre O couro esticado é pregado na orla do aro, 13. Uma vez que esta descrição visa a dentro do estilo. Certos maneirismos não e é apertado durante o samba, conforme oferecer um modelo, use-se como exem- seriam considerados apropriados ao estilo. a necessidade, mediante calor gerado pela plo a situação, mais comum, de mulhe- O estilo do samba - tanto coreográfico queima de papel de embrulho, papel-jor- res que dançam e homens que tocam os quanto musical - reconhece os elementos e nal ou palha. Recentemente, entraram instrumentos e cantam as chulas. Não o comportamento que nele não cabem. em uso pandeiros industrializados, com se pretende ignorar a presença de mu- 16. Convida-se o leitor a comparar a membranas de plástico esticadas por uma lheres como violeiras (o que de resto é descrição do samba que se faz no presente coroa de ferro e apertadas por tarrachas de muito raro), nem a de homens na roda estudo com a do feita por Manuel ferro. A sonoridade desse instrumento é, de samba. O melhor prato-e-faca que Antônio de Almeida no seu romance evidentemente, diferente da sonoridade do ouvi no Recôncavo esteve (e continua) nas Memórias de um sargento de milícias (pag. 39 e seu congênere artesanal, e os músicos mais mãos de Joselita Moreira (a muito querida seg.), que transcorre no Rio de Janeiro ortodoxos sentem que o pandeiro moder- “Zelita”) de Saubara, e o Exemplo 4 é uma “no tempo do Rei”, quer dizer, na segunda no é ruidoso demais. Queixam-se também tentativa de transcrever o seu estilo. Os década do século XIX. - mencione-se de passagem - que a mem- homens, que predominam nas rodas do “Todos sabem o que é o fado, essa dan- brana de plástico é altamente vulnerável a sertão, são comuns nas do Recôncavo, mas ça tão voluptuosa, tão variada, que parece derretimento e perfuração pelas brasas dos são secundários, e embora possam dançar filha do mais apurado estudo da arte. Uma cigarros dos seus tocadores. no mesmo estilo de sapateado, como fazem simples viola serve melhor do que instru- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 151

mento algum para o efeito. quenos Mundos, Tomo I, O Recôncavo, “Bandas pag. 50: O fado tem diversas formas, cada qual de pífanos na Bahia e em Sergipe”, pag. “O partido alto, que tanto delicia os mais original. Ora, uma só pessoa, homem 321. veteranos do samba, não se executa para o ou mulher, dança no meio da casa por A “Donzela Teodora” é, como se sabe, grande público, nem exige a bateria das es- algum tempo, fazendo passos os mais difi- um dos grandes temas da literatura de colas. Ao som de reco-reco, prato e faca, cultosos, tomando as mais airosas posições, cordel do Nordeste. A história é compro- chocalho, cavaquinho e de canções tradi- acompanhando tudo isso com estalos que vadamente de origem árabe-medieval, e cionais, como na Bahia - um estribilho dá com os dedos, e depois pouco e pouco foi estudada por Luís da Câmara Cascudo sobre o qual o cantador versa ou improvisa aproximando-se de qualquer que lhe em Cinco Livros do Povo, Vaqueiros e Cantadores, - um único dançarino, homem ou mulher, agrada; faz-lhe diante algumas negaças e e outras publicações. Introduzida remo- ocupa o centro da roda, passando a vez viravoltas, e finalmente bate palmas, o que tamente na Península Ibérica, desde 1840 com uma umbigada simulada. Os antigos quer dizer que a escolheu para substituir o vem sendo publicada no Brasil, na forma relembram assim “os velhos tempos” da seu lugar. de folhetos em prosa, posteriormente em chegada do samba ao Rio de Janeiro.” Assim corre a roda até que todos te- versos. Na literatura árabe, aparece em O verbete “Partido Alto” na Enciclopé- nham dançado.” várias coleções das Mil e Uma Noites. dia da Música Brasileira: Erudita, Folcló- 17. Antônio Moura (“Candeá”), 22. Dança de salão de origem norte- rica e Popular diz o seguinte: “primeira”, e Henrique Santana da Silva, americana dos anos 1920 (e das boates de “Tipo de samba dançado nos morros “segunda”. A gravação sobre a qual se fez bebida clandestina da lei seca) que leva cariocas. Trazido da Bahia para a cidade do esta transcrição foi realizada em 12/4/78, o nome do porto importante do estado Rio de Janeiro em fins do século passa- na casa de Candeá, no Alto da Santa Cruz, de Carolina do Sul, fundado no tempo do, foi um dos elementos formadores das bairro de Salvador. Candeá faleceu em colonial inglês e, por sinal, berço de uma escolas de samba. Dançado em roda, carac- Salvador em 11 de março de 1988. cultura africana-norteamericana de peso. teriza-se por não haver dança enquanto se 18. Antônio Moura, comunicação 23. A semelhança do “sapateado” tira o canto estrófico, sem refrão. Depois pessoal, 1978. do Rio Grande do Sul e dos “piegas” do de cantada cada estrofe, um dos raiadores 19. Lira? “lundu”, ainda assim conhecido no sertão (dançarinos) sai sambando e, partindo dos 20. Jiquiriçá? da Bahia, certamente merece mais estudo tocadores, dá duas voltas na roda, termi- 21. Os versos desta chula são uma em termos de formas arcaicas e possivel- nando com a umbigada. O que a recebe sai curiosa incorporação da “Donzela Teo- mente em termos de uma remota formação dançando, depois de cantada outra estrofe, dora” - velha história popular portuguesa musical e coreográfica do Brasil. e assim sucessivamente. As mulheres mui- passada para o Brasil - ao folclore musical 24. A palavra “chula” (forma femini- tas vezes dançam o miudinho. Os partici- do interior baiano. Ainda recentemente, na de “chulo”) significa como se sabe, em pantes batem palmas, marcando o ritmo e o pesquisador Nélson de Araújo, um dos seu sentido mais geral, “vulgar, rude ou acompanhando os instrumentos: violões, tradutores deste trabalho, encontrou o rústico”. cavaquinhos, flautas, pandeiros e prato-e- mesmo tema literário servindo à melodia 25. Por sinal, “comadre” ou “com- faca.” de um dos “toques” de conhecida banda de padre”, como se sabe, pode significar, 29. Zilda Paim. Comunicação pessoal, pífanos de Uauá, no sertão baiano de Ca- segundo costume do Recôncavo, amizade 1980. nudos. A melodia, recolhida por um dos ou título de respeito e afeto mútuos, além 30. Rafael Alves França, “Cobrinha integrantes da banda no começo do século do relacionamento sacramental. Verde”. Entrevista gravada em 12 de se- e desde antão fazendo parte do seu reper- 26. Agradece-se ao Prof. Cid Teixeira tembro de 1977. tório de “toques” fora originariamente por esta elucidação, feita em comunicação 31. Numa conversa de botequim alguns uma modinha cantada pela população de pessoal. anos atrás no Alto da Santa Cruz, perto Uauá tal como relata Nélson de Araújo, 27. Falecido no início da década dos da casa de Marcelino, o autor e alguns primeiro em artigo intitulado “Calumbi, a anos noventa. praticantes do samba de viola, entre eles o banda baiana de pífanos”, publicado em A 28. Sobre o “partido alto”, escreve Marcelino, estavam trocando idéias sobre Tarde (edição de 9.12.84) e depois em Pe- Edison Carneiro em Folguedos Tradicionais, o tipo de música que a gente apreciava. O { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 152

autor, quase pedindo desculpas, disse que vezes o samba de um dia emendava com a vital do autor). A música do candomblé gostava de, entre outras coisas, “música manhã do outro. Hoje o Samba de Oxum, para Omolu na casa do primo-vizinho é clássica”. Marcelino não vacilou: inter- pelas dificuldades de vida das pessoas que inteiramente audível na gravação, ao fun- veio com animação, “Eu também gosto da o compõem, mudou. É feito somente com do, assim como se ouve a discreta entrada música clássica – samba de viola!” atabaques, agogô, o prato-e-faca e as pal- do timbal mencionado vários parágrafos 32. Souza Carneiro (pai de Edison mas, e é realizado num dia só. adiante. Carneiro), em Os mitos africanos no Brasil (pag. Nesse dia, as expectativas das pessoas na Além disso, e por certo digna de regis- 436 e segs.) afirma que o samba era uma casa ficam voltadas para o Samba de Oxum, tro, é a realização de uma cerimônia muita “dança dos negros feita sempre em honra que geralmente se inicia à tarde e segue rara, levada a efeito pela última vez depois aos Orixás, por algum motivo religioso até que se dê a festa por encerrada, com a de muitos anos de cumprimento em São . . . saindo dos candomblés para o meio saída da cozinha do tradicional bacalhau a Braz por uma senhora, que então a esta da rua” só após “os primeiros séculos do martelo. parte faleceu. descobrimento”. As mulheres se arrumam com o traje de Referimos-nós à “comida dos cachor- Valiosa elucidação de notável caso de ‘crioula’, todas elas muito enfeitadas com ros”. Como foram os cães que, com suas um samba (de viola, da forma que ve- torço, colares e pulseiras. Estão, na sua lambidas, sararam as feridas de São Lázaro, remos) que não saiu do candomblé foi maioria, descalças. O samba pode começar oferecia-se todos os anos aos cachorros de gentilmente fornecida por Márcia Maria no salão, onde se realiza o candomblé, São Baz (começando com sete escolhidos), de Souza em abril de 1985, em forma de e terminar na cozinha, ou vice-versa. Às em homenagem a esses animais, assim pequeno manuscrito, aqui publicado pela vezes, ainda arrumando a cozinha após o como ao santo, um banquete completo primeira vez. almoço, o samba vai começando, até que com vinho (Vinho Composto Jurubeba O Gantois - um dos terreiros da Bahia surja um tocador de atabaque. Assim, o “Leão do Norte”), seguido por um ciclo de mais respeitados por sua ortodoxia e a me- samba se arruma e vai para o salão, onde cantos em louvor ao santo. Este costume ticulosidade com que cumpre as obrigações ficam todos em círculo, batendo palmas. extremamente raro tem sido registrado da casa - da mãe de santo Maria Escolástica São as próprias mulheres que tiram noutras partes do Brasil. [Espera-se que Conceição Nazareth, mais conhecida como o samba, uma por uma, horas seguidas Gilberto Sena possa realizar a sua pla- Mãe Menininha, comemora anualmente sapateando, segurando nos lados da saia, nejada e mais detalhada descrição deste um Samba de Oxum. levantando-a um pouco em certos mo- banquete de São Braz, a despeito da morte Os eventos rituais da casa obedecem a mentos. Cada mulher tem suas caracterís- de quem a promovia.] um calendário de festas móveis começando ticas próprias no uso dos pés e dos braços. 34. A roda é uma dança circular, na última sexta-feira de setembro com as A mulher na roda escolhe sua sucessora acompanhada de cantos, geralmente Águas de Oxalá. Este ciclo de festas públi- e a chama, ora com a umbigada, ora com realizada fora de casa, em metro binário cas continua até festejar todos os orixás, as mãos juntas estiradas e dirigidas para a simples, ritmo quadrado e em andamento encerrando-se nos fins de novembro ou outra. moderado de marcha. no início de dezembro. A festa de Oxum, As pessoas no samba vão se revezando 35. Quipá é uma erva que provoca orixá da mãe de santo, é uma das mais na roda e nos instrumentos musicais, até comichões. importantes da casa. Realiza-se, geralmen- ser servido o bacalhau a martelo, que ter- te em novembro, a festa de Oxum num mina o ritual Samba de Oxum. domingo e, na segunda-feira seguinte, o 33. A reza e o samba aqui usados como Samba de Oxum. modelos realizaram-se da noite de 15 para Segundo alguns informantes, esse a manhã de 16 de agosto de 1978, e foram samba, até mais ou menos 1980, era samba gravados quase na íntegra pelo autor, de viola, com todos os elementos que com a parceria de Gilberto de Lemos normalmente compõem esse tipo de ‘brin- Sena (parceiro, aliás, irmão inseparável e cadeira’: viola, atabaque, prato-e-faca, e indispensável nas investidas de “campo” as palmas. Eram três dias de samba, e às que produziram este trabalho e esta época { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 153

detalhe de baiana do samba de roda suerdieck. foto: márcio vianna. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 154

Bibliografia básica sobre o samba NUNES, Erivaldo Sales. Cultura de roda: popular no Recôncavo baiano: a tradição e a modernização no samba de roda. Disserta- ARAÚJO, Nélson. Pequenos mundos: ção de mestrado em Letras, UFBA, um panorama da cultura popular da Bahia. 2002. Fontes Tomo I: O Recôncavo. Salvador: bibliográficas UFBA/Fundação Casa de Jorge OLIVEIRA PINTO, Tiago de. Capoeira, Amado, 1992. samba, candomblé. Berlim: Staatliche Museum, 1990. CARNEIRO, Edison. Samba de umbi- gada. Rio de Janeiro: Campanha de QUERINO, Manuel. A Bahia de outrora. Defesa do Folclore Brasileiro, 1961. Salvador: Livraria Econômica, 1922. DÖRING, Katharina. O samba de roda do Sembagota: tradição e contemporaneidade. RAMOS, Artur. Folclore negro no Brasil. Dissertação de Mestrado em Músi- Rio de Janeiro: Civilização Brasi- ca, UFBA, 2002. leira, 1935.

GARCIA, Sônia Maria Chada. A REIS, João José. “Tambores e te- música dos caboclos: o Ilê Axé Dele Omi. mores: a festa negra na Bahia na Dissertação de mestrado em Músi- primeira metade do século XIX”, in ca, UFBA, 1995. Maria Clementina Cunha (org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de histó- LODY, Raul. “Samba de caboclo”. ria social da cultura, São Paulo: Uni- Cadernos de Folclore. Rio de Janeiro: camp/Cecult, 2002. Funarte, 1977. RODRIGUES, Nina. Os africanos no MARQUES, Francisca. Samba de roda Brasil. São Paulo: Cia. Editora Na- em Cachoeira, Bahia: uma abordagem etno- cional,1932. musicológica. Dissertação de Mestrado em Música, UFRJ, 2003. SANTOS, Jocélio Teles dos. “Di- vertimentos estrondosos: batuques MUKUNA, Kazadi Wa Mukuna. Con- e sambas no século XIX”, Ritmos em tribuição bantu na música popular brasileira. trânsito: sócio-antropologia da música baia- São Paulo: Global. S/d [1979?]. na, São Paulo: Dynamis, Salvador: Programa A cor da Bahia, 1998. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 155

TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos BRANDÃO, Maria de Azevedo. KUBIK,Gerard. Angolan traits in Black negros no Brasil. São Paulo: Art Edito- “Introdução. Cidade e Recôncavo music, games and dances of Brazil. Lisboa: ra, 1988. da Bahia”, IN: BRANDÃO, Ma- Junta de Investigações do Ultramar, ria de Azevedo (org.). Recôncavo da 1979. WADDEY, Ralph.“Samba de Viola Bahia. Sociedade e economia em transição. and Viola de Samba”, parte I. Latin Salvador: Fundação Casa de Jorge ______. Theory of African Music, american music review, 1/2, Fall/Winter, Amado, 1998. Wilhelmshaven: Florian Noetzel, pp.196-212, 1980. 1995. BROWNING, Barbara. Samba – re- ______.“Samba de Viola and sistence in motion, Bloomington and MARCONDES, Marcos. Enciclopédia da Viola de Samba”, parte II. Latin Indianapolis: Indiana University música brasileira – erudita, folclórica, popu- american music review, 2/2, Fall/Winter, Press, 1995. lar. São Paulo: Art Editora, 1977. pp.252-79, 1981 BUDASZ, Rogério. The five-course guitar MORAIS, Manuel. Coleção de peças para ZAMITH, Rosa Maria. “O samba (viola) in Portugal and Brazil in the late machete de Cândido Drummond de Vascon- baiano em tempo e espaço”, Revista seventeenth and early eighteenth centuries. celos – 1846. Lisboa: Caleidoscópio, Interfaces, I/2 agosto, 1995. Tese de Doutorado, University of 2003. Southern California, 2001. MOURA, Roberto. [1983] Tia Ciata e DAMASCENO, Darci. Vilancicos Seis- a Pequena África no Rio de Janeiro, Rio de centistas. Rio de Janeiro: Biblioteca Janeiro: Secretaria Municipal de Nacional, 1970. Cultura, 1995.

Outras obras citadas: GUIA CULTURAL DA BAHIA, vol. NKETIA, J.H.K. The music of Africa. 2, Recôncavo. Salvador: Governo Londres: Victor Gollanz, 1975. ALVARENGA, Oneida. “Chula”. In: do Estado da Bahia, Secretaria da MARCONDES (org). Enciclopédia Cultura e Turismo, Coordenação PEDRÃO, Fernando Carlos. “No- da Música Brasileira: Erudita, folclorica e de Cultura. 1997. vos rumos, novos personagens”. popular. São Paulo: Art, 1977. IN: BRANDÃO, Maria de Azevedo KOLINSKI, Mieczyslaw. “Review of (org). Recôncavo da Bahia. Sociedade e AROM, Simha. Polyphonies et polyrith- Studies in African Music by A.M. economia em transição. Salvador: Fun- mies d’Afrique Centrale, Paris: SELAF, Jones”, The Musical Quarterly, XLVI/1, dação Casa de Jorge Amado, 1998. 1985. p.105-10, 1960. ROUGET, Gilbert. La musique et la ASSIS, Machado de Assis. “O ma- ______. “A cross-cultural ap- transe. Paris: Gallimard. 1980. chete”. Obras Completas, vol. II, Rio de proach to rythmic patterns”, Ethno- Janeiro: Nova Aguilar, 1994[1878]. musicology XVII/3, p.494-506, 1973. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 156

SANDRONI, Carlos. Feitiço decente: Ensaio Ralph Waddey: Machado Neto, Zahidé. Quadro transformações do samba no Rio de Janeiro. sociológico da “civilização” do Recônca- Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, Anchieta, S.J., José de. Poesias. vo. Salvador: Centro de Estudos 2001. Transcrição, traduções e notas de Bahianos, 1971. M. L.J. Paula Martins. Comissão SANTOS, Milton. “A rede urbana do IV Centenário da Cidade de Marcondes, Marcos, ed. Enciclopé- do Recôncavo”, IN: BRANDÃO, São Paulo. Boletim IV - Museu dia da Música Brasileira: erudita, folclórica Maria de Azevedo (org). Recôncavo da Paulista - Documentação Lingüísti- e popular. São Paulo: Art Editôra, Bahia. Sociedade e economia em transição. ca, 4. São Paulo: Museu Paulista, 1977. Salvador: Fundação Casa de Jorge 1954. Amado, 1998. Santos, Milton. A rede urbana do Andrade, Mário de. “Samba Recôncavo. Salvador: Imprensa Ofi- SILVA, Flávio. Origines de la samba rural paulista”. Aspectos da música cial[?], 1959[?]. urbaine à Rio de Janeiro. Dissertação de brasileira. Obras completas de Mário de mestrado, Paris, EPHE, 1973. Andrade, Vol. I. São Paulo: Livraria Siqueira, Batista. A origem do termo Martins Editôra, 1955. “samba”. São Paulo: Instituição Bra- VIANNA, Hermano. O mistério do Araújo, Nélson de. “A banda sileira de Difusão Cultural, 1978. samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ baiana de pífanos”. A Tarde. UFRJ, 1995. 12.12.78.

______. Pequenos mundos: um panora- ma da cultura popular da Bahia, Tomo I, O Recôncavo. Salvador, BA: Universi- dade Federal da Bahia e Fundação Casa de Jorge Amado, 1986.

Carneiro, Edison. Folguedos tradi- cionais. Coleção temas brasileiros, Vol. 17. Rio de Janeiro: Conquis- ta, 1974.

Carneiro, Souza. Os mitos africanos no Brasil: ciência do folclore. Brasiliana, Vol. 103. São Paulo: Cia. Editôra Nacional, 1937. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 157

Discografia: Fontes audiovisuais que apresen- • Pescadores do Iguape, direção tam material importante sobre o Bruno Saphira, 2003. • Vários. Viva a Bahia! Coleção de Pes- samba de roda, encontradas no quisas da Música Brasileira. LP. Salvador: acervo do Instituto de Radiodifu- Philips, 1968. são da Bahia (IRDEB), Salvador:

• Capoeira, samba, candomblé. CD. Filmes: Editado por Tiago de Oliveira • Tempo de Folclore, direção Pinto. Berlim: Staatliche Museen Oscar Santana, cor, década de Preussischer Kulturbesitz, 1991. 1970. • Festas na Bahia de Oxalá, dire- • Vários. Samba de roda no Recônca- ção Ronaldo Duarte, cor, 1969. vo baiano. Coleção Documentário • Capoeiragem, direção Jair Sonoro do Folclore Brasileiro. CD. Moura, cor, 1968. Rio de Janeiro: CFCP/Funarte, • A Terra do Samba de Roda, di- 1994. reção Ronaldo Duarte, P/B, 1977. • Cachoeira - cidade do Recôn- • Vários. Bahia singular e plural, vols. cavo baiano, direção Ney Negrão, I a VIII. CDs. Salvador: IRDEB, P/B, 1967. 1998-2002. Vídeos: • Barravento. Vatapá de véia. Co- • As Burrinhas da Bahia, TVE- leção Emergentes da Madrugada, Bahia, 1999. CD. Salvador: WR Discos, 1999. • Ternos e Folias de Reis, TVE- Bahia, 1999. • Mendes, Roberto. Tradução. CD • Bumba-meu-boi, TVE-Bahia, duplo. São Paulo: EMI, 2000. 2000. • Reisado Zé de Vale, TVE- • Edith do Prato. Vozes da Purifi- Bahia, 2002. cação. CD. Salvador: Governo da • Recôncavo na palma da mão, Bahia, s/d [2003]. TVE-Bahia, 2002. • Dança de São Gonçalo, TVE- Bahia, 2002. • Festa de São Roque, TVE- Bahia, 2003. • Cosme e Damião, TVE-Bahia, 2003. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 158

Anexo 1 partituras { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 159 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 160 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 161 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 162 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 163 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 164 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 165 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 166 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 167 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 168 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 169 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 170 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 171 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 172 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 173 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 174 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 175 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 176 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 177 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 178 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 179 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 180 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 181 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 182 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 183 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 184 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 185 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 186 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 187 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 188 { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 189

Samba de Roda Barquinha de Bom Jesus, de bom jesus dos pobres, saubara. foto: luiz santos.

página 215 lso ista do samba de roda suerdieck: foto: márcio vianna. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 190

Anexo 2 parecer do relator

De Maria Cecília Londres Fonseca, dades, que a princípio poderiam não definir, no texto do decre- relatora do Processo de Registro constituir problemas para uma to, um “conceito” de patrimônio do Samba de Roda do Recôncavo instrução bem fundamentada, na imaterial, remetendo apenas ao Baiano no Conselho Consultivo do verdade se revelaram desafios que artigo 216 da Constituição Federal Patrimônio Cultural - Iphan vieram enriquecer o entendimento de 1988, e deixando que o próprio dessa manifestação em particular processo de aplicação do decreto vá e da própria noção de patrimô- criando uma jurisprudência a partir Introdução nio imaterial. O conhecimento da análise dos pedidos apresenta- O processo de Registro do gerado pela instrução do processo dos. “Samba de roda no Recôncavo vem, portanto, contribuir para a Com essa estratégia, todas as baiano” no Livro das Formas de construção dessa noção, formulada informações e análises reunidas em Expressão é o quarto pedido en- recentemente e ainda pouco ela- instruções, pareceres e documentos caminhado a este Conselho, e borada, tanto no Brasil como no produzidos no cumprimento das o segundo a ser indicado para o contexto internacional. exigências burocráticas de anda- Livro em questão. Perfeitamente Nesse sentido, considero que mento dos processos adquirem adequado, como os que o antece- a decisão tomada pela Comissão um valor suplementar, na medida deram, aos termos de decreto n° instituída pelo ministro Francis- em que, uma vez consolidadas em 3.551/2000, apresenta, no entan- co Weffort em 1998 para propor bancos de dados e em trabalhos de to, particularidades tanto na forma instrumento legal voltado para a caráter analítico e teórico, cons- de seu encaminhamento quanto à preservação do patrimônio cultural tituem a base para a formulação própria natureza do objeto, carac- brasileiro tem se mostrado, na prá- de políticas para o setor. E, nesse terísticas que o singularizam e que tica, o caminho mais frutífero para processo, acredito que o papel do serão levadas em consideração no a construção desse campo semânti- Conselho Consultivo do Patrimô- presente parecer. co que é também objeto de política nio Cultural, enquanto representa- Entendo que essas particulari- pública. Refiro-me à decisão de ção da sociedade, necessariamente { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 191

será, conforme reivindicado por cluindo, como é indispensável no para sua salvaguarda. vários conselheiros em mais de uma caso de um “patrimônio cultural Tendo como fundamento o ocasião, e proposto pelo DPI do vivo” , os produtores e transmisso- exame da documentação que me Iphan, o de parceiro na formula- res dos bens culturais de natureza foi encaminhada, como premissa o ção e avaliação de políticas, e não imaterial – que certamente contri- estabelecido no decreto n° 3.551, e apenas de instância decisória no buirá para práticas políticas mais como orientação as considerações julgamento dos processos caso a ágeis e democráticas. feitas acima, passo à apresentação caso, como tem ocorrido com os Considero que a instrução do do meu parecer. tombamentos. processo do “Samba de roda do Acredito também que a propos- Recôncavo baiano” cumpre ple- Análise do processo ta de regulamentação do decreto, e namente as exigências de rigor na O pedido de Registro do “Sam- a sistemática de sugestão de critérios pesquisa etnográfica e de sensibi- ba de roda no Recôncavo baiano”, e prioridades – já encaminhados a lidade para os aspectos políticos de encaminhado ao Iphan em 13 de esse Conselho - constituirão baliza- sua motivação. Em um curtíssimo agosto de 2004, foi precedido pelo mentos sólidos e indispensáveis ao espaço de tempo, a equipe coorde- lançamento da candidatura do sam- bom andamento de sua aplicação, nada pelo Professor Carlos Sandro- ba à terceira edição do programa tanto para as instâncias técnicas e ni realizou um trabalho exemplar da Unesco intitulado “Proclamação decisórias quanto para a sociedade, no sentido de fornecer não só os das Obras-Primas do Patrimônio no sentido de dar consistência e vi- elementos para uma avaliação da oral e Imaterial da Humanida- sibilidade a noções ainda nebulosas, pertinência de se registrar o bem de”, amplamente divulgado pela haja vista a freqüente confusão de em questão como também de esta- imprensa em março e abril deste “registro” com “tombamento”. belecer desde o início uma relação ano. Essa decisão, apresentada pelo Com essa dinâmica, cria-se um de diálogo com os grupos de samba próprio Ministro da Cultura, teve campo de diálogo constante entre as de roda, apresentando, como base grande impacto, provocando um várias instâncias envolvidas – in- nesse contato, sugestões pertinentes debate em torno da proposta. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 192

A abertura do processo junto do pela antropóloga Dominique – o fato de o samba de roda baiano ao Iphan, feita em 13 de agosto de Gallois, aqui tratava-se de cir- estar na origem do samba carioca, o 2004, com base em pedido enca- cunscrever no amplíssimo e difuso que é comprovado por várias fontes minhado por três associações da re- contexto do samba brasileiro uma históricas citadas – vem ao encon- gião do Recôncavo baiano, é fruto manifestação que fosse espacial- tro do requisito de “continuidade de um amadurecimento da primei- mente delimitável, culturalmente histórica” mencionado no pará- ra proposta mencionada acima, e relevante e, sobretudo, cuja distin- grafo 2o. do artigo 1o. do decreto já no curso da elaboração do dossiê ção, no universo musical e coreo- n° 3.551/2000. Além disso, esse para a Unesco. Embora o mesmo gráfico tão diversificado do samba, fato é pouquíssimo conhecido pela tenha ocorrido com o processo de estivesse fundada numa justificativa grande maioria dos brasileiros, e, Registro da “Arte Kusiwa dos Wa- consistente. Decisão técnica mas sem medo de incorrer em exagero, jãpi”, nesse caso a situação era bem também política, dada a importân- poderíamos dizer que é quase uma mais complexa em vários aspectos: cia do samba como “símbolo musical da questão de justiça tornar pública na definição do objeto, na ne- nacionalidade”(p. 69) na medida em essa informação e conferir a essa cessária articulação com os grupos que o sentido do termo “samba” foi manifestação o devido reconhe- envolvidos com o bem em questão, adquirindo uma amplitude e uma cimento enquanto patrimônio e na elaboração de um plano de polissemia que levam, freqüente- cultural brasileiro. Nesse sentido salvaguarda. mente, a que seja identificado à – e, no meu entender, muito mais Se no caso da arte kusiwa dos MPB em suas ricas e inumeráveis apropriadamente do que no caso Wajãpi, a construção do objeto versões. de um eventual registro do “samba” do pedido de registro foi bastante A leitura da instrução do pro- – a outorga do Registro ao sam- facilitada pelo trabalho junto a esse cesso demonstra, no meu entender, ba de roda do Recôncavo baiano grupo indígena, por muitos anos, o acerto da proposta e a consis- viria cumprir uma das principais do Núcleo de História Indígena e tência na construção do objeto. O motivações para a criação desse Indigenismo da USP, coordena- principal argumento apresentado instituto legal: propiciar o de- { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 193

senvolvimento de uma política de que essa última é a “raiz”, uma espécie de parecimento dessas manifestações patrimônio cultural mais inclusiva sobrevivência anacrônica, na qual a primeira deva-se ao repúdio ou, no mínimo, e mais representativa da diversidade se inspira e se vivifica.”(p. 61) Esse, ali- à indiferença das novas gerações, cultural brasileira, privilegiando ás, é um dos maiores desafios para que preferem se identificar com os aquelas manifestações que, embora as políticas voltadas para o patri- valores veiculados a partir dos gran- apresentem “relevância nacional mônio imaterial: ir de encontro a des centros urbanos pelos meios de para a memória, a identidade e a uma conotação de “primitivismo” comunicação de massa. Trabalhar formação da sociedade brasilei- que se atribui aos bens culturais de no sentido de entender os bens cul- ra” (art. 1o. par. 2o. do decreto natureza imaterial, que, ao mesmo turais de natureza imaterial como n° 3.551/2000), não gozam de tempo em que os idealiza como expressões de nossa diversidade cul- reconhecimento nem de valoriza- resquícios puros de um passado, e tural significa quebrar essa equação ção por parte da sociedade (o que fonte para a criação contemporâ- de lugares marcados, e contribuir considero a forma mais eficiente de nea, termina por “aprisioná-los” para que sua produção e transmis- salvaguarda), nem dos benefícios em determinadas versões e – o que são possam retomar plenamente sua da proteção via direitos legalmente é mais grave – em determinadas vitalidade. regulamentados (como o direito de condições de produção, associando Voltando ao caso do samba de autor, de propriedade intelectual, a criatividade dos produtores às ca- roda, o fato de essa expressão ter de patente, etc.). rências de seu modo de vida. Essas suas raízes na cultura afro-brasileira Citando o texto do dossiê, são posturas que costumam estar desenvolvida no contexto da escra- quando esse reconhecimento se dá, embutidas na exigência de auten- vidão vem reforçar o argumento expressa “a distância que vai da valorização ticidade, criando-se assim uma cor- da continuidade histórica, assim nos meios de comunicação de massa a uma relação quase perversa entre valor como a presença de elementos da valorização no seu contexto original. As idéias cultural e desvalorização social. Não cultura trazida pelos europeus (por preponderantes sobre as relações entre “música é de surpreender, portanto, que exemplo, o prato e a faca) e mesmo popular” e “música folclórica” estabelecem um dos principais riscos de desa- de elementos caboclos. Do mesmo { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 194

modo, a pesquisa demonstra que o marcada pelas imagens dos desfiles brasileiro assume por ocasião dos samba de roda tem um caráter “sin- das escolas de samba no período do desfiles carnavalescos. crético”, pois é tocado e dançado carnaval. Considero, portanto, que a tanto em festas religiosas católicas Embora todos esses traços con- construção de um possível objeto como em cultos de candomblé. tribuam para distinguir o samba de de Registro, tal como formulada na Ao argumento da “continuidade roda das manifestações contempo- instrução do processo, está bastante histórica” se soma a caracteriza- râneas mais conhecidas do samba, consistente, a não ser por um deta- ção do samba de roda como uma há um traço enfatizado no texto da lhe aparentemente irrelevante : em manifestação singular quanto a sua instrução que, a meu ver, constitui alguns documentos a referência é a expressão musical e coreográfica. A um dos valores mais significativos “samba de roda do Recôncavo baia- minuciosa descrição feita na ins- dessa forma de expressão da cultu- no” (pedido de registro, ofício de trução do processo identifica dois ra nacional, e que é característico encaminhamento do Presidente do tipos de samba de roda – “chula” também do pagode (em sua versão Iphan); já o título do dossiê refere- e “corrido” – diferenciando-os a tradicional) e de outras versões do se a “samba de roda no Recôncavo partir dos instrumentos utilizados, samba brasileiro: a “espontaneida- baiano”. Entendo que a diferença das peculiaridades rítmicas, mu- de” de sua ocorrência, constituin- não pode ser entendida como uma sicais e coreográficas, e da codifi- do-se como uma forma de expres- mera variação vocabular: no pri- cação da participação de homens e são profundamente internalizada meiro caso, o leitor é induzido a mulheres. A própria utilização do nos indivíduos e grupos que o têm considerar o samba de roda nessa termo “sambador/a” para desig- como parte de seu repertório cultu- região como um gênero específico, nar os participantes os diferencia ral. A própria expressão “o samba com características próprias bastan- dos “sambistas” do samba carioca, acontece” é elucidativa de uma ma- te marcadas; já na segunda redação, gênero identificado como “samba nifestação não ritualizada do samba, a impressão que fica é de que a re- brasileiro”, e cuja representação, contribuindo para relativizar o ferência é à ocorrência, na região, sobretudo no exterior, é muito caráter de espetáculo que o samba de um gênero existente também em { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 195

outras localidades. Conforme pude lado e legitimamente reconhecido sonoro produzido pela pesquisa. depreender da leitura da documen- pelos indígenas para representá-los Essa conduta distingue a produção tação, a primeira redação me parece nas negociações junto às outras ins- de uma pesquisa etnográfica com mais apropriada, na medida em tituições envolvidas no encaminha- fins estritamente acadêmicos do que o samba de roda tal como foi mento do pedido, inclusive junto compromisso dos pesquisadores apresentado na instrução do pro- ao Estado nacional. No caso do com o que seriam os primeiros pas- cesso pode ser considerado como samba de roda, o próprio relatório sos de uma intervenção conduzida e uma forma de expressão enraizada de pesquisa menciona os inúme- regulamentada pelo poder público, predominantemente no Recôncavo ros grupos identificados (sendo de que será totalmente inócua sem a baiano, onde teriam sido desen- supor que possa haver outros ainda adesão dos principais interessados, volvidas as características que o não identificados) que não estão mesmo se atendida a exigência de singularizam como gênero musical articulados, em seu conjunto, em anuência prévia. A propósito, a e coreográfico. É importante que qualquer tipo de organização ou necessidade de envolver os “gru- essa ambigüidade seja resolvida, associação. Por esse motivo, foi pos, comunidades e indivíduos” optando-se pela redação que for muito gratificante perceber que o na preservação dos bens culturais julgada mais adequada. processo de elaboração do dossiê de imateriais foi um ponto bastante Quanto ao processo de cons- instrução levou esse fato em conta, enfatizado na elaboração da Con- trução de articulações que viabili- tratando as pessoas contatadas não venção da Unesco para a salvaguarda zem o registro e posteriormente a apenas como meros informantes, do patrimônio cultural imaterial, salvaguarda do bem, observo tam- mas como interlocutores e par- preocupação significativa sobretudo bém uma importante diferença em ceiros na produção do trabalho, se considerarmos que a interlocu- relação ao caso da arte kusiwa. O lançando inclusive bases para uma ção desse organismo internacional pedido dos Wajãpi foi encaminha- futura organização ao reuni-los se dá essencialmente com os Estados do pela APINA – o Conselho de para discutir a proposta e entregan- nacionais. Aldeias Wajãpi, interlocutor articu- do-lhes cópias do material visual e Finalmente, e no mesmo { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 196

sentido apontado acima, é bastante a vivência do samba de roda em, digamos, quisas. As ações de apoio propostas positivo o fato de que as propostas Santiago do Iguape (que fica a menos de 50 – e que se enquadram perfeita- de salvaguarda tenham como base km da casa de dona Edith em Santo Amaaro). mente nos requisitos do Programa não apenas os dados coletados pela A cadeia de mediações que vai do palco do Nacional do Patrimônio Imaterial pesquisa como também as reivindi- Festival TIM ao adro da igreja de Santiago – visam a assegurar “condições de cações dos sambadores e sambado- do Iguape é demasiado complexa. Em todo sustentabilidade” de uma tradição ras, que freqüentemente expressam caso, se se pode argumentar que tal premiação e envolvem necessariamente con- “revolta” com o que consideram traz embutida pelo menos a possibilidade de dições materiais e simbólicas de indiferença do poder público, que um efeito positivo na outra ponta, deve-se sobrevivência da atividade e de seus prestigiaria formas musicais mais reconhecer que, para que tal efeito se realize, é executantes. As medidas propostas conhecidas pelo grande público, preciso justamente atuar na referida cadeia de preliminarmente no dossiê são: favorecidas assim com retorno co- mediações.”(p. 17) • Apoio à fabricação e conser- mercial. Mas, como se observa mui- vação dos instrumentos (principal- to apropriadamete no dossiê, essas As medidas de salvaguarda pro- mente do machete) reivindicações dos grupos, ainda postas no dossiê levam em conta o • Apoio à formação de fabrican- que perfeitamente legítimas, não interesse de se preservar essa mani- tes de instrumentos e de violeiros são elemento suficiente para a ela- festação cultural enquanto patri- • Acesso dos grupos ao material boração de medidas de salvaguarda. mônio dos sambadores e sambado- das pesquisas por meio da criação Vale citar aqui o texto da pesquisa: ras, agregando-lhe valor enquanto de um espaço, na região, para guar- “Patrimônio cultural do Brasil”. da e disponibilização do material, “Neste quadro, a valorização do samba de Essa perspectiva implica, portan- e de um sistema que possibilite o roda como gênero comercial – manifesta- to, num trabalho extremamente acesso a todos os interessados da por exemplo na premiação do CD de D. complexo que vai bem além do que • Divulgação ampla para o pú- Edith do Prato pela TIM em 2004 – pode nos anos 70-80 denominávamos de blico de informações sobre o samba não ter nenhuma repercussão positiva sobre “devolução” dos resultados das pes- de roda. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 197

A preocupação com um pla- Conclusão de dados do Iphan e ampla divul- no de salvaguarda, que envolve Meu parecer é inteiramente gação e promoção – se prossiga no necessariamente inúmeros atores favorável ao registro do Samba de trabalho de elaboração de um plano e iniciativas, embora não este- roda do Recôncavo Baiano no de salvaguarda que, se adequada- ja explicitamente mencionada no Livro das Formas de Expressão, mente realizado, muito provavel- decreto n° 3.551/2000, já estava de na medida em que os elementos mente contribuirá não apenas para algum modo implícita na exigência contidos na instrução do proces- a continuidade histórica do samba de revalidação periódica do título so evidenciam que se trata de uma de roda, como para sua expansão e de “Patrimônio Cultural do Bra- tradição viva e de relevância cultural difusão, sem que fiquem compro- sil”. Deve-se à inspiração em uma de âmbito nacional. A essas qualifi- metidos os valores que justificaram oportuna exigência do programa cações, cabe lembrar a responsabi- o registro. “Proclamação das obras-primas do lidade do Estado junto aos grupos patrimônio oral e imaterial da hu- de sambadores e sambadoras no Brasília, 28 de setembro de 2004. manidade” da Unesco. No Brasil, sentido de que a outorga do título essa preocupação pode ser enten- de “Patrimônio Cultural do Bra- Maria Cecilia Londres Fonseca dida como fruto da experiência sil” não se limite a uma distinção acumulada com os mais de sessenta honorífica, mas signifique um real anos de vigência do instituto do investimento na salvaguarda des- tombamento, e significa o reco- sa forma de expressão musical e nhecimento de que o recurso a um coreográfica tão representativa da instrumento legal é etapa necessária diversidade cultural brasileira. Por mas não suficiente para viabilizar a essa razão é fundamental que, aos preservação de um bem, sendo que compromissos previstos no texto o Estado tem funções definidas mas do decreto n° 3551/2000 – docu- limitadas nesse processo. mentação a ser incluída em banco { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 198

Contatos dos grupos 7. Samba de Roda Raízes de Angola (São Francisco do Conde) 1. Samba Chula de São Braz (71) 3651.2148 / 9971.6424 Anexo 3 (75) 3216.1074 / 3241.2557 (falar com Alva Célia) (falar com Fernando) grupos e 8. Samba de Roda Suspiro do Igua- pessoas 2. Associação Cultural Filhos de pe (Santiago do Iguape) Nagô (São Félix) (71) 9961.2087 contactadas (75) 3425.2234 (falar com Nalva) (falar com Mário dos Santos) 9. Samba de Roda União Teodo- 3. Samba Chula Filhos da Pitan- rense gueira (São Francisco do Conde) (75) 3237.2470 (71) 3651.1928 (falar com Mário César) (falar com Zeca Afonso) 10. Clemente e Sua Gente 4. Samba da Suerdick (Cachoeira) (75) 3238.2666 (Associação Cultural do Samba de (falar com Clemente) Roda “Dalva Damiana de Freitas” - Cachoeira) 11. Samba do Rosário (Saubara) (75) 3425.4218 / (75) 9112.1545 [email protected] (falar com Rosildo) (falar com Ane) (75) 3696.1652 (falar com dona Anna) 5. Sambadores de Mutá e Pirajuía (71) 9606.6653 12. Samba de Viola de Pitanga dos (falar com Mirinha) Palmares (Simões Filho) (71) 9105.2633 6. Samba da Capela (Conceição do (falar com Bernadete) Almeida) (75) 3629.2683 13. Samba Chula Os Vendavais (falar com Fátima ou Jaelson) (Salvador) (75) 3629.2360 (71) 3247.874 / 9158.1287 (falar com Marina) (falar com Mestre Nelito) { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 199

14. Samba Resgate (Itapecerica Pessoas Governador Mangabeira – Maragogipe) entrevistadas Povoado da Aldeia – Marivaldo (75) 3526.2502 / 3526.1195 / Rodrigues dos Reis 3526.2968 Cabaceiras do Paraguaçu Portão – Leopoldo Silvério da (falar com Paulo Cezar ou Maria Francisco Pereira Xavier Rocha São Pedro) Antonio Anselmo da Paz Distrito de Geolândia – Madalena Lauro de Freitas 15. Samba Chula de Maracangalha Ramos Bairro Portão – Samba de Viola (Maracangalha – São Sebastião do Unidos de Portão – Florisvaldo So- Passé) Cachoeira ares de Azevedo (Mestre Paizinho) (71) 3656.6002 / 3656.6039 Samba de Roda Amor de Mamãe (falar com Mestre Pedro) Samba de Roda Filhos do Caquen- Maragogipe de Coqueiros – Ricardina Pereira da 16. Rita da Barquinha Samba de Roda Filhos da Barragem Silva (Dona Cadu) e Fátima Luiz (Bom Jesus dos Pobres – Saubara) Distrito de Alecrim – Maria Aleluia (75) 3699.2149 Belém – Glória Maria Amaral dos São Félix (falar com Rita) Santos Matatauba (Outeiro Redondo/Boa Povoado da Pinguela – Francisco Vista) – Isabel Conceição (Dona 17. Grupo Brilho do Samba (Para- Leal e Antonio Leal Beka) fuso – Camaçari) Santiago do Iguape – Domingos (71) 3668.1448 Conceição São Francisco do Conde (falar com Miro) Ilha do Paty – Samba das Paparutas Camaçari – Altamirando Amorim Parafuso – Bumba-meu-Boi de Parafuso – Valdomiro Vera Cruz (Ilha de Itaparica) Mar Grande – Samba Tradicio- Conceição do Almeida nal da Ilha – Gerson Francisco da Marina Santos e Maurício Carvalho Anunciação (Mestre Quadrado), Santos (conhecido como Moura, Mestre Manteiguinha, Mestre Ri- sobrinho de D. Marina) mum, Dona Aurinda

Castro Alves Seu Elmiro Santiago, conhecido como Seu Bilinho { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 200

• AMAFRO - Sociedade Amigos Prefeituras que aderiram ao Termo da Cultura Afro-Brasileira de Compromisso e Adesão que visa • Associação Cultural de Preser- a execução do Plano de Salvaguarda vação do Patrimônio Bantu - do Samba de Roda até setembro Anexo 4 ACBANTU de 2006 (Termo firmado entre o • Associação de Pesquisa em Ministério da Cultura, o Iphan e instituições Cultura Popular e Música Tradi- Municípios do Recôncavo Baiano): parceiras cional do Recôncavo • Cabaceiras do Paraguaçu • Centro de Estudos Afro- • São Sebastião do Passe Orientais da Universidade Federal • Santo Amaro da Bahia • São Félix • Comissão Baiana de Folclore • Castro Alves • Correios • Teodoro Sampaio • Fundação Cultural do Estado • Saubara da Bahia • Fundação Gregório de Mattos • Fundação NICSA • Ministério das Comunicações • Prefeitura de São Francisco do Conde • Pronac/Petrobrás • Universidade Estadual da Bahia - UNEB • Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 201

1. Dono da casa, eu cheguei agora No mar não vou (Samba tradicional do Recôncavo, com Por que não sei nadar adaptação do grupo) A maré tá muito cheia BR-OIJ-06-00001 Anexo 5 A canoa não pode passar Samba Chula de São Braz letras do cd No mar não vou, aê Tenho medo de morrer, ah ah samba de roda Dono da casa, - patriMônio da eu cheguei agora Foi agora que eu cheguei Gravado em 31 de julho de 2004, no res- humanidade Cheguei agora, cheguei agora taurante Nando’s Mariscos, em São Braz, Com Deus e Nossa Senhora município de Santo Amaro da Purificação.

Eu vi conversa de homem PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO João Saturno (João do Boi): voz, pandei- Eu vi grito de rapaz ro / Máximo Ferreira Silva (Maçu): voz, Eu vi conversa de homem pandeiro / José Alves Ferreira (Zé Quer É assim que homem faz Mamar): voz, pandeiro / Antônio Satur- no (Alumínio): voz, pandeiro / Augusto Eu saí pra meu trabalho Lopes (Nininho): viola / Lídio Chagas de Jesus (Lidião): violão / Carlos Mivaldo Deixei Luíza em casa Santana (Babau): marcação / José Carlos dos Santos (Zé dos Santos): marcação. Luíza se descuidou Coro, palmas e sambadeiras: Catarina Labareda me roubou Chagas de Jesus (Nildete) / Doralice San- Luíza, minha nêga tanade Almeida (Dora) / Faustina Ferreira da Silva / Maria Raimunda de Jesus Satur- Eu vou ver Labareda no / Raimunda Nonato de Souza (Mundi- Me leva pra Salvador, Morena nha) e público presente no local. Me leva pra Salvador, Morena São Braz é um distrito do município de Eu saí pra meu trabalho Santo Amaro. O Samba Chula de São Braz é um dos grupos de samba de roda mais Deixei Luíza em casa requisitados da região, tendo também participado de CDs comoTradução/Tradição, Luíza se descuidou do compositor sant’amarense Roberto Labareda me roubou Mendes, de um vídeo da série Música do Brasil (produzida por Hermano Vianna), e de projetos com Antonio Nóbrega e Maria Luíza, minha nega Betânia. Eu vou ver labareda

Que dor mamãe, que dor mamãe, Que dor mamãe, minha mãe que dor { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 202

2. Filho de Nagô / Rio Paraguaçu Paraguaçu, tu embeleza’ Cachoeira 3. No meu castelo de sonho (Mário dos Santos) (Zeca Afonso) BR-OIJ-06-00030 Ó meu Paraguaçu... BR-OIJ-06-00004 Grupo Cultural Filhos de Nagô (São Samba Chula Filhos da Pitangueira (São Félix) Gravado no dia primeiro de agosto de Francisco do Conde) 2004, no Centro Cultural Dannemann, São Benedito é negro em São Félix. Ai, iá, lê, ô Eu sou filho de Ogum Ai, iá, lê, ô PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO No meu castelo de sonho Evandro César Pereira Lessa (César Vem mexer, adeus mana, do Samba): voz principal, pandeiro / Meu amor tá na janela Ó meu pai Senhor Ogum Franklande Leal dos Santos: voz, violão / Onde ela é a rainha Nelito Bernadino de Souza (Dunga): voz, Ela é somente minha São Benedito é negro pandeiro / Geovane Matos Santos (Geo E eu sou somente dela Eu sou filho de nagô Santos): viola / Renivaldo da Silva Neves (Neto): banjo / Robson Damião Moreira São Benedito meu pai (Índio): timbal / Genivaldo Ângelo de Je- Lê, lê, ô, lê, lê Ele é o nosso protetor sus (Geni): timbal / Gilson Lima Moreira: lê, lê, lá, lá triângulo. Eu cheguei agora São Benedito é negro Boa noite pessoal Eu sou filho de nagô Os Filhos de Nagô participaram, com outros grupos de São Félix e Cachoeira, do São Benedito meu pai pioneiro CD produzido pela Coordenação Ai, iá, lê, ô Ele é o nosso protetor de Folclore e Cultura Popular (MinC) em Ai, iá, lê, ô 1994, Samba de Roda no Recôncavo Baia- Se você quiser saber Tanto tempo eu te falei no. Em 2004, o grupo lançou o Onde é essa morada Mas não me canso de falar CD Viola velha. É do Rio Paraguaçu Vá morar na Pitangueira Ô meu povo, vamos todos abraçar Terra boa abençoada Se você for lá um dia Sempre ter o que comer Vá ver a filosofia Sempre ter o que beber Do sambador da pesada Paraguaçu, quem te viu e quem te vê Se a Anália não quiser ir, Ó meu Paraguaçu, Eu vou só, eu vou só Ó meu gigante rio, Teu nome é parte Ai, iá, lê, ô Da história do Brasil Ai, iá, lê, ô Jogue o lixo no lixo Sambador da Pitangueira Vamo’ acabar com essa sujeira É parada muito quente Precisa ter cachola { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 203

Pra sambar no meio da gente Coro, palmas e sambadeiras: Angelina de 4. Porto de Salvador / Na beira da Oliveira / Arlinda Cerqueira praia / Cachorro trigueiro Você tem que aprender Andrade (Linda) / Celina da Conceição (Chulas tradicionais do Recôncavo, as duas dos Santos /Edvalda da Rocha Gomes (Tu- Para quando nós morrer primeiras com adaptação de Mestre Qua- dinha) / Heloísa Bispo (Lula) / Hilda da drado, a terceira com adaptação de Mestre Do Brasil virar semente Rocha (Didi) / Lindaura Rocha Ribeiro Manteguinha) / Maria Sofia Lima dos Santos (Sufa) / Ma- BR-OIJ-06-00007 ria Vitória Gomes da Cruz (Vicky) / Neuza Me leva pra Salvador, Morena Samba Tradicional da Ilha (Mar Grande) Me leva pra Salvador, Morena Maria Rocha / Ocleres Demetris / Odete Maria Ferreira Capistrano (Dete) / Raílda Afonso Gomes. Salvador, Ê, ê, ê Tem navio americano Eu cheguei na Cachoeira Porto de Salvador, Esta faixa e a nº 8, do mesmo grupo, são Tem navio americano Feira de Santana as únicas deste CD onde se pode ouvir a viola conhecida no Recôncavo como Santana da feira machete. Típico do samba da região de Vou trabalhar, Ô morena bonita Santo Amaro, o machete tem cinco cordas Que o Ari tá me mandando Eu moro na Pitangueira duplas, como a maioria das violas brasilei- Botar as caras na parede ras, mas suas dimensões são excepcional- Vou lá, Pode peneirar, peneira mente pequenas, sendo pouco maior que Contramestre tá chamando Pode peneirar, peneira um cavaquinho. Aqui ele é tocado por José Vitório dos Reis, o Zé de Lelinha (foto), Ôiá Pode peneirar nascido em 1932, e uma das poucas pessoas que hoje domina este instrumento. Com Eu hoje tava na beira da praia apoio do Iphan, ele vem desenvolvendo Conversando com meu bem Gravado no dia primeiro de agosto de oficinas para ensinar jovens do Recôncavo Minha caboclinha me queira bem 2004, na sede do grupo, no bairro da a tocar o machete. Pitangueira, em São Francisco do Conde. Que o bem que eu quero a outra, Eu quero a você também, ah ah. PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO José Afonso Gomes (Zeca Afonso): voz, Vem nego vadiar pandeiro / Aurino Paciência: voz, pan- Tava na beira da praia deiro/ Nemésio Isaías da Silva (Demésio): voz, pandeiro / José Vitório dos Reis (Zé de Lelinha): machete / Raimundo Capis- Foi agora que eu cheguei trano (Camarão): violão / Domingos de Conversando com meu bem Jesus: pandeiro, marcação / José Valberto Minha caboclinha me queira bem dosSantos Júnior: pandeiro / Edmundo Que o bem que eu quero a outra da Cruz (Barrigão): marcação / Djalma da Cruz Gomes: tamborim / Djalma Afonso Eu quero a você também, ah ah. Gomes: tamborim / Denivan da Cruz Go- mes (Deni): tamborim de couro de jibóia Meu cachorro trigueiro / Djavan da Cruz Gomes (Ivan):maracá. O meu cachorro trigueiro { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 204

Na porta era mofino (projeto Toques e Trocas, com patrocínio 5. Vinheta: Maria Teresa E no mato era ligeiro da Petrobras). Gérson Francisco da Anun- (Dalva Damiana de Freitas) Ele acuou ciação faleceu a 17 de abril de 2005, dia BR-0IJ-06-00008 exato em que foi fundada, em Saubara, a Lá no pé de formigueiro Associação dos Sambadores e Sambadeiras Desde baixo, desde cima do Estado da Bahia. Ô Maria Teresa Matei o tatu verdadeiro Toma lá teus pedaços Todo mundo tomou Vem me ver vadiar Mas não teve embaraço Meu cachorro trigueiro ... Embaraço que tive De não ter meu dinheiro Gravadas em 7 de agosto de 2004 no bar Para comprar uma fita de Mestre Quadrado e de sua esposa, Dona Para amarrar teu cabelo Balbina, no Alto do Riachinho, em Mar Grande, município de Vera Cruz, Ilha de Itaparica. Gravado na Casa Paulo Dias Adorno, em Cachoeira, em maio de 2001. Canta Dalva PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Gérson Francisco da Anunciação (Mestre Damiana de Freitas, acompanhada ao Quadrado): voz principal (em Na beira violão por José Carlos Pereira Conceição da praia e Porto de Salvador), pandeiro / (Viana). Raimundo Rodrigues de Oliveira (Mestre Manteguinha): voz principal (em Cachor- ro trigueiro), pandeiro / Claudionor Dalva Damiana de Freitas, nascida em Correia dos Santos (Rimu): cavaquinho 1927, é uma legenda do samba de Cacho- / Carlos Alberto dos Santos (Tatuzinho): eira. Ela trabalhava na antiga fábrica de pandeiro / Aurinda Raimunda da Anun- charutos Suerdieck, onde com suas com- ciação (D. Aurinda): prato-e-faca / Ana panheiras de trabalho passou a organizar Lúcia Francisca da Anunciação: samba- um grupo de samba. A fábrica acabou, mas deira. o Samba da Suerdieck é hoje um dos mais tradicionais da cidade. Dona Dalva – como Mestre Quadrado (1925-2005), além de é carinhosamente conhecida – é também ter sido na juventude e durante toda vida integrante da Irmandade de Nossa Senhora um grande capoeirista, era um dos maiores da Boa Morte, uma das mais veneráveis conhecedores de chulas, que gostava de instituições da cultura afro-brasileira. cantar, diferentemente do que se faz na região de Santo Amaro, sem relativo, emendando uma na outra (tal como se ouve nesta gravação). Já com mais de se- tenta anos, gravou os CDs Encanto banto num recanto da Ilha: capoeira angola e samba chula (independente) e Aruê Pã com o grupo Samba Tradicional da Ilha { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 205

6. Eu vi o sol, vi a lua clarear / Eu Que tem perna de urubu Augusto Passos da Costa (1944-2004), não tenho medo de andar no mar Eu só gosto de mulher gorda conhecido como Dedão, era taxista e foi (Samba tradicional do Recôncavo, com Que tem perna de chuchu um dos maiores intérpretes de samba de adaptação do grupo) roda da região de Cachoeira. O apelido, BR-OIJ-06-00009 assim como a vocação para o samba, veio Samba de Roda Amor de Mamãe (Cacho- Eu não tenho medo de criança quando participava dos ajuntó- rios, mutirões de vizinhos e parentes que, eira) De andar no mar Eu só tenho medo movidos a samba, construíam suas casas de É do vapor virar adobe (barro). Mestre do “samba antigó- Eu vi o sol rio”, era considerado o puxador oficial do Vi a lua clarear samba da Festa de Nossa Senhora da Boa Eu vi meu bem Minha mãe chama Maria Morte, anualmente realizada em agosto na Dentro do canavial Moradora de Nagé cidade. No meio de tanta Maria Minha zabelê Eu não sei minha mãe quem é, olha aí Minha zabelê Toda meia noite Eu não tenho medo Eu sonho com você De andar no mar Eu só tenho medo Eu não tenho medo É do vapor virar De andar no mar Eu só tenho medo Venha cá dona casa É do vapor virar Traga água pra eu beber Não é sede não é nada Eu não tenho medo É vontade de lhe ver De andar no mar Eu só tenho medo Gravado em primeiro de agosto de 2004, É do vapor virar no Centro Cultural Dannemann, em São Félix. E vem a lua saindo Por detrás da bananeira PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Não é lua, não é nada Augusto Passos da Costa (Dedão): voz principal / José Carlos Pereira Conceição É a bandeira brasileira, olha aí (Viana): viola / Jefferson Ataíde Rodri- gues Braga (Jerso): violão / João Lima de Eu não tenho medo Jesus (Rochedo): cavaquinho / Antonio de De andar no mar Souza Conceição (Caboré): voz, pandei- Eu só tenho medo ro / Alberto Ferreira dos Santos (Pedro Galinha Morta), voz, pandeiro / Ubirajara É do vapor virar Silva Conceição: voz, timbal / Luiz Reis Eu não gosto de mulher magra Moreira (Luiz Orelha): voz, timbal. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 206

7. Arrasta a sandália 8. Roda pião / Olelê, baiana Data, local e participantes da gravação, tais (Samba tradicional do Recôncavo, (Zeca Afonso) como na faixa 3. com adaptação do grupo) BR-OIJ-06-00029 BR-OIJ-06-00010 Samba Chula Filhos da Pitangueira (São Sambadores de Mutá e Pirajuía Francisco do Conde) Os Filhos da Pitangueira se definem como grupo de samba chula, mas sambas corridos, como estes que aqui se ouvem, Arrasta a sandália aí Roda, roda, pião também fazem parte de seu repertório. Sou eu morena Que não bambeia, pião

Arrasta a sandália aí Roda, roda, pião Sou eu morena Que não bambeia, pião

Ô, que não bambeia, pião Gravado no barracão na frente da casa Ê que não bambeia, pião de Dona Fia, em Pirajuía, município de Jaguaripe. Roda, roda, pião PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Que não bambeia, pião Miraíldes Xavier de Lima (Mirinha): voz / Antônio Correia de Souza: voz / Maria Olelê baiana Crispiniana de Jesus (Fia): pandeiro / A baiana deu o sinal Cândido Manoel da Conceição: pandeiro / Robson Carlos Santos Amaral: timbal / Neide Maria de Souza: timbal / Antô- Olelê baiana nio Lázaro: timbal / Edivaldo Rodrigues Souza: timbal / Jorge Santiago Conceição: Deu na terra deu no mar atabaque. Coro, palmas e sambadeiras: Lucila Maria Santos Barbosa / Maria Braulina / Valdete Gonzaga Boa Morte / Olelê baiana Bárbara Santiago Conceição / Altamira Souza Barbosa. A baiana deu o sinal

Esta faixa apresenta um samba corrido, tal A baiana me pega como as faixas seguintes (até a 11). Aqui, o verso único é tirado pelo solista com Me joga na lama pequenas variações melódicas, e repetido Eu não sou camarão na chamada resposta, cantada por todos os Camarão me chamam participantes do samba. Em outros casos, o solista canta um ou mais versos, que podem Olelê baiana ser também improvisados, enquanto o coro canta um verso fixo, diferente do primeiro. { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 207

9. Vinheta: Dinheiro novo 10. Quem matou meu sabiá Costa (Val) / Águida Pereira de Souza / (Samba tradicional do Recôncavo, (Samba tradicional do Recôncavo, Maria Cacilda da Cruz Coelho / Maria com adaptação do grupo) com adaptação do grupo) Terezinha dos Santos (Teço) / Maria Bal- BR-OIJ-06-00005 BR-OIJ-06-00016 bina dos Santos (Bina) / Maria Hortência Samba da Capela (Conceição do Almeida) Samba de Roda Raízes de Angola Barbosa. (São Francisco do Conde) Eu vou buscar, eu vou buscar Dinheiro novo na Bahia Quem matou meu sabiá O governo mandou dar Moça morena, Dinheiro novo eu vou buscar Vou pra Ribeira sambar

Você matou meu sabiá Gravado em 7 de agosto de 2004, na Moça morena, Associação Cultural Dr. José Joaquim de Eu vou pra Ribeira sambar Almeida, em Conceição do Almeida.

PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Marina Santos (Lina): voz principal / Gravado em primeiro de agosto de 2004, Maria de Fátima Conceição Cruz (Fafá): no Terreiro Angurusema Dya Nzambi, voz / Jaelson Conceição Cruz: tamborim situado no centro de São Francisco do / Benedito Pereira (Bené): pandeiro / Conde. José Vaz Santos (Zé das Farinhas): surdo / Cachimbo:timbal. Coro, palmas e samba: PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Antonia Rita Santos (Tonha Preta) / Anto- Alva Célia Medeiros Assis: voz principal nia Santos (Tonha Moça) / Antonio Mar- / Rozendo Honorato de Paula (Pinto): cos Nascimento Fonseca (Marquinhos) / cavaquinho, bandolim / Hamilton dos Antonio Santos (Tonho do Rio) / Roberto Santos (Miltão): cavaquinho / Celso Bahia: violão de 7 cordas / Gildásio Afonso dos Santos Rodrigues (Bereço). Santos (Juquinha): pandeiro / Everaldo dos Santos (Bango): pandeiro / Roque de Jesus Santos (Boni): pandeiro / Roque Bispo dos Santos (Sapo): marcação de mão / Francisco Paulo dos Santos (Nem): re- bôlo (tambor de couro) / Valter dos Santos Machado (Valtinho): tamborim, maracá / Jocelino Roque Santos (Joka): tamborim, maracá, meia-lua. Coro, palmas e sam- badeiras: Valdenice Áurea Medeiros (Mãe Áurea) / Maria das Graças Bonfim (Gal) / Jandira Maria dos Santos Franco / Maria Regina dos Santos de Jesus / Berenice Borges dos Santos (Biu dos Santos) / Maria Balbina Silva dos Santos (Baby) / Valnísia { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 208

11. Eu vi a ema lá na lagoa uma das fontes de inspiração de seus pri- 13. Carão tá na lagoa (Samba tradicional do Recôncavo, com meiros sambas. (Samba tradicional do Recôncavo, com adaptação do grupo) adaptação do grupo) BR-OIJ-06-00006 BR-OIJ-06-00019 Samba de Roda Suspiro do Iguape 12. Vinheta: Conversa dos samba- Samba de Roda União Teodorense ( (Santiago do Iguape) dores organizando a gravação em Teodoro Sampaio) Teodoro Sampaio Eu vi a ema Dia 31 de julho de 2004 Carão tá na lagoa BR-OIJ-06-00031 Beliscando o aruá Lá na lagoa Segura o tiro, Helena Ema tem asa Não deixa o carão voar

Mas não avoa Segura o tiro, Helena Aê, baiana Não deixa o carão voar Gravado em 8 de agosto de 2004 no bar Tatuí, em Santiago do Iguape, município Quem nasceu para sofrer de Cachoeira. Deixa penar PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Quem nasceu para sofrer Domingos Conceição (Domingos Preto): Deixa penar voz, pandeiro / Valter do Amor Divino Conceição (Besouro): voz, pandeiro / Fer- Pelejo, mas não posso nando da Cruz (Fefeco): voz, pandeiro / Manoel Germano Assis Dias (Cebola): voz, pandeiro / Evaney Barbosa Guedes (Nei): Fazer do caixeiro sócio bandolim / Cantídio Conceição Filho (Tim): voz, palmas / Moacir Fernandes da Caixeiro se embebeda Silva (Moa): voz / Ananias Nery Viana: Amor, menina pandeiro / Augusto César Fernandes (César): tumbadora / Pedro dos Santos E não dá conta do negócio Barbosa (Pedro Swing): timbal / Edmun- do Ribeiro Soledade (Bobô): triângulo / Ai, ai Agnelo da Luz: pandeiro. Coro, palmas e Meus amor, ai, ai samba feitos pelo público presente. Ai, ai O vale do Iguape fica entre as cidades de Meus amor, ai, ai Cachoeira e Santo Amaro e tem uma forte tradição de sambas de roda. Esta tradição Botei meu barco n´água é mencionada pelo sant’amarense , no livro Verdade tropical, como No dia de chuva, aê { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 209

Dia que não tem vento 14. O carro virou na ladeira 15. Vapor de terra / Meia hora só Amor, menina (Samba tradicional do Recôncavo, com (Sambas tradicionais do Recôncavo, com Meu barco não tem carreira adaptação do grupo) adaptação do grupo) BR-OIJ-06-00018 BR-OIJ-06-00012 Clemente e Sua Gente (Terra Nova) Clemente e Sua Gente (Terra Nova) Ô iá, iá Ô mamãe, aê mamãe, Vapor de terra subiu Eu vou beirar o mar, ê O carro virou na ladeira Vapor de terra desceu Eu vou beirar o mar, ê Virou virou Vapor de terra subiu Eu vou beirar o mar Matou, matou Vapor de terra desceu Morreu, morreu Gravado no Espaço Cultural Dois de Ju- Ô Horácio do mato lho, em 31 de julho de 2004. Na roda do meu pandeiro Você é malcriado Ô iôiô Chegou na Bahia, morreu PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO Na roda do meu pandeiro Carlos Pereira dos Santos (Carlito Car- Ô iáiá Meia hora só pinteiro): voz, tamborinho de repique / Manoel Domingo de Jesus Silva (Du- Meia hora só zinho): voz, tambor / Aluizio Gonçalves Data, local e participantes da gravação, tais (Véio): voz, pandeiro / Carlos Bispo dos como na faixa seguinte. Meia hora Santos (Paião): voz, cavaquinho / Elinaldo Meia hora só das Mercês Santo (Nal): reco-reco / Luiz de Anunciação Santos: pandeiro. Coro, palmas e sambadeiras: Augusta dos Santos Suêlo / Ana Cristina Reis Silva / Celina Gravado em 8 de agosto de 2004, na sede Suêlo dos Santos Uzeda / Dilma Ferreira da Associação dos Moradores do Bairro Alves Santana (Fiita) / Edijane Barbosa Caipe, Terra Nova. Pereira (Jane) / Ilza dos Santos Suêlo / Maria Severina Barreto (Severa) / Maria PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO das Mercês dos Santos (Nenzinha) / Maria Clemente Eustáquio de Souza: sanfona de Enedina Bispo / Maria Edelvira da Silva / 8 baixos / José Ivanildo Correia (Pepeto): Nirete Silva Roseira / Raquel Barbosa. viola, pandeiro, timbal / Domício dos Santos Brito (Micinho): voz, viola, pan- Nesta faixa e nas seguintes até a 17, com deiro, ganzá / Miguel Cerqueira: voz, exceção da 15, estamos de volta ao samba pandeiro / Faustino Pereira: voz, pandei- chula. ro / César Dantas Pinto: voz, pandeiro / Eugênio Santos: voz / Raimundo Alves: voz / Dionízio Correia: voz, bongô / José Rufino Pereira (Binha): timbal / Már- cia Marques: triângulo. Coro, palmas e sambadeiras: Maria Almerinda dos Santos (Milu) / Maria Domingas / Maria dos Santos Faleta (Vardinha) / Marinalva { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 210

Ferreira de Jesus (Marlene) / Lúcia de 16. Ai, dendê Data, local e participantes da gravação, tais Oliveira. (Chula tradicional do Recôncavo, com como na faixa 4. Voz principal de Mestre adaptação de Mestre Quadrado) Quadrado. Aurinda Raimunda da Anun- A presença de uma sanfona de oito baixos BR-OIJ-06-00013 ciação: prato-e-faca. no samba de roda pode surpreender. Mas Samba Tradicional da Ilha o instrumento não é raro no Recôncavo, (Mar Grande, Vera Cruz) Sendo uma atividade de afro-descenden- cujos intercâmbios econômicos, demográ- tes, o samba de roda também comporta ficos e culturais com o sertão da Bahia são Ai dendê, ai dendê elementos trazidos da Europa. Estes no notórios entanto foram “apropriados” à sua ma- Ai dendê, neira. Talvez o caso mais típico seja o do Tem boca não pode falar prato-e-faca: os utensílios domésticos de Ouvido não é pra ouvir origem européia foram empregados, de Nariz não é pra cheirar maneira totalmente inesperada para seus Dedo não é pra apontar fabricantes e utilizadores prévios, como instrumento musical. A faca é arranhada na borda do prato num ritmo contínuo,à Ô Jorge, maneira de um reco-reco. Ao contrá- A navalha de Angola rio dos outros instrumentos do samba, o Oiá, oiá, oiá prato-e-faca é tocado predominantemente A navalha de Angola por mulheres. Mas João da Baiana tocava prato-e-faca com Donga e Pixinguinha Oiá, oiá nas festas de Tia Ciata, e depois em grava- ções do Grupo da Guarda Velha. Tem boca não pode falar Ouvido não é pra ouvir Nariz não é pra cheirar Dedo não é pra apontar

Ô Jorge, A navalha de Angola Oiá, oiá, oiá A navalha de Angola Oiá, oiá { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 211

17. Botei meu barco n´água Gravado em 31 de julho de 2004, no 18. Ó Virgem Santa / Carolina / (Samba tradicional do Recôncavo, com Terreiro de Oxum, na rua do Taboão, em Coqueiro novo adaptação do grupo) Saubara. (Cântico e sambas tradicionais do Recôn- BR-OIJ-06-00017 cavo, com adaptações do grupo) Samba do Rosário (Saubara) PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO BR-OIJ-06-00028 Joselita Moreira da Cruz Silva (D. Zelita): Sambadores de Mutá e Pirajuía voz, palmas / Mário Bispo Barbosa (Mário Botei meu barco n´água de Nusceço): viola / Euzébio Santos de Mas não falei com meu mestre Almeida (Zibinho): violão / Rafael do Ó Virgem Santa Espírito Santo: voz, pandeiro / Gregório Rogai por nós O vento deu na proa dos Santos (Góia): pandeiro / Antônio Rogai por nós Pancada de noroeste Carlos dos Santos (Vortinha): pandeiro Ó Virgem Santa / Guilhermino Moreira (Guilherme): (ê ah ah) tambor / João Antônio das Virgens (João Nós precisamos de paz de Iáiá): timbal / Maria Gregória Santana Eu vou m’embora, ô Moreira (Branca): prato-e-faca. Coro, Viemos saudar Maria minha amada palmas e sambadeiras: Hermínia da Silva Ó meu guia forte Santos / Maria Ângela Moreira (Deco) / (Ele é forte) Maria Anna Moreira do Rosário (D. Anna) Ainda ontem eu vi meu bem / Maria Emília Moreira (Teteca) / Maria Ó meu Santo Antônio Inda hoje eu quero ver Leocádia da Cruz (Dodô) / Marta Ferreira É quem nos dá sorte / Sônia Regina Barbosa. (Ele é forte) Não mandei você gostar de mim Não mandei você de mim gostar O Recôncavo é uma região formada por Ê, ê, Carolina mangues, tabuleiros, baixios, ilhotas e vales Não mandei você olhar pra mim margeando o mar da Baía de Todos os Ê, ê, ê, ê Carolina Não mandei olhar Santos. Temas marítimos como o desta faixa são freqüentes nos sambas da região. Ê, ê, Carolina Ô Luzia, Ê, ê, ê, ê Carolina Você é, não sabe Dona Zelita a Dona Anna são duas irmãs com muita tradição de samba de roda na família.No início dos anos 1980, o Coqueiro novo Eu lhe conto uma mentira etnomusicólogo Ralph Waddey publicou Coqueiro novo Você pensa que é verdade uma monografia incluindo o resultado de Na Bahia não tem mais Eu me chamo flor da noite pesquisas feitas com esta família de Sau- Coqueiro novo bara. Hoje em dia, o filho de Dona Anna, Rosildo, é uma das principais lideranças da Data, local e participantes da gravação, Fulô de matar saudade Associação de Sambadores e Sambadeiras tais como na faixa 7. Ai, ai fundada em 2005. Esta faixa, assim como a seguinte, Vou fazer bilu bilu testemunha a profunda conexão do No seu queixinho samba de roda com a religiosidade do Eh, pra saber Recôncavo. O cântico em louvor à Virgem Se você gosta de carinho é seguido, sem interrupção, pelos sambas { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 212

corridos, tal como tantas vezes acontece 20. Vinheta: Marido, eu vou pro 21. Graças a Deus que as coisa’ nas festas de santos da região. samba melhorou (Dalva Damiana de Freitas) (Dalva Damiana de Freitas) BR-OIJ-06-00025 BR-OIJ-06-00023 19. Vamos cantar esse Reis / Samba de Roda da Suerdieck (Cachoeira) Que bonito Reis de São Cosme - Marido, eu vou pra o samba (Lôas de reis tradicionais do Recôncavo, Graças a Deus com adaptação do grupo) - Mulher eu lá não vou BR-OIJ-06-00027 Se eu gostasse de zoada Que as coisa’ melhorou Samba da Capela (Conceição do Almeida) Trabalhava no trator As festas de Cachoeira Mulher, eu lá não vou Todas elas levantou Vamos cantar esse Reis - Não vá Que é a nossa devoção - Eu lá não vou Graças a Deus Em louvor a Santa Bárbara - Não vá Que as coisa’ melhorou São Cosme, São Damião - Eu lá não vou As festas de Cachoeira Mulher Todas elas levantou Já saiu as três Marias Todas três a passear Foi chegado o Patrimônio* Procurando Jesus Cristo Gravado na Casa Paulo Dias Adorno, em Consertando o bangalô Sem nunca poder achar Cachoeira, em maio de 2001. Canta Dalva Me traga de volta o trem Damiana de Freitas, acompanhada por José Me traga de volta o vapor Carlos Pereira Conceição (Viana), violão. Vamos cantar esse Reis Que é a nossa devoção Graças a Deus Em louvor a Santa Bárbara Que as coisa’ melhorou São Cosme, São Damião As festas de Cachoeira Todas elas levantou Que bonito Reis de São Cosme É coroado, é coroado Nossa Cachoeira é bela São Cosme é coroado. É jóia, é diamante Só falta voltar agora A Festa dos Navegantes Data, local e participantes da gravação, tais como na faixa 9. Graças a Deus Que as coisa’ melhorou As festas de Reis são um momento privile- As festas de Cachoeira giado da cultura popular do Nordeste, e na Bahia o samba é parte integrante delas. Todas elas levantou { Samba de Roda do Recôncavo Baiano } 213

Gravado na Casa Paulo Dias Adorno, em 22. Adeus, gente Cachoeira, em maio de 2001. (Samba tradicional do Recôncavo, com adaptação do grupo) PARTICIPARAM DA GRAVAÇÃO BR-OIJ-06-00024 Dalva Damiana de Freitas: voz principal / Samba de Roda Amor de Mamãe Gilberto Santos (Seu Ferrolho): viola, voz (Cachoeira) / Edmilson dos Santos (Seu Ná): violão / Silvério Bispo dos Santos (Seu Bureca): voz, cavaquinho / Martiniano Ferreira Adeus, gente dos Santos Neto (Gílson): voz, pandeiro / Adeus, gente Lucidalva dos Santos Cerqueira (Luci): Adeus, que eu já vou me embora voz, taubinhas / Antônio Batista Santa- Adeus, gente na: pandeiro / Joel Ventura dos Santos: timbal / Miguel dos Santos Filho: timbal / Leandro dos Santos Cerqueira: triângulo / Adeus, gente Cleydson Nascimento dos Santos: pandei- Adeus, gente ro. Adeus, que eu já vou me embora Adeus, gente

Adeus, que eu já vou me embora Adeus, gente Adeus, até outra hora Adeus, gente

Data, local e participantes da gravação, tais como na faixa 6. Voz principal: Dedão (Augusto Passos da Costa, 1944-2004).

Dedão foi um colaborador ativo no pro- cesso de pesquisa que resultou neste CD. Viajou pelo Recôncavo conduzindo pes- quisadores na sua Brasília azul, conversou e riu com os sambadores que encontrou, cantou com eles e até desafiou Mané do Véio (do Samba de Roda Resgate, Itapece- rica), num encontro inesquecível. A gra- vação que aqui se escuta é o último registro de Dedão e seu Samba de Roda Amor de Mamãe. Ele estava bastante debilitado pelo diabetes e morreria três meses depois.

Este livro foi produzido na primavera de 2006 para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA ALOÍSIO MAGALHÃES

S187 Samba de Roda do Recôncavo Baiano. _ Brasília, DF : Iphan, 2006. 216 p. : il. color. ; 25 cm. + CD ROM. – (Dossiê Iphan ; 4)

ISBN - 978-85-7334-041-9 ISBN - 85-7334-041-x

1. Patrimônio Imaterial. 2. Samba de roda. 3. Patrimônio Cultural. I. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. II. Série.

Iphan/Brasília-DF CDD – 394.3