Percurso E Produção Musical De Gonzagão E Gonzaguinha
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PERCURSO E PRODUÇÃO MUSICAL DE GONZAGÃO E GONZAGUINHA Cláudia Pereira Vasconcelos 1 Resumo: Este artigo pretende discutir de que forma os percursos, permeados por fronteiras geográficas, culturais e afetivas, interferiram na produção musical de Luiz Gonzaga do Nascimento (Gonzagão) e de Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior (Gonzaguinha). O pai é oriundo do sertão de Pernambuco, tendo se deslocado para o Rio de Janeiro, onde alcançou grande sucesso nos anos 1940/50; já o filho, nasceu no Morro de São Carlos, área periférica no Rio de Janeiro e marcou presença no cenário nacional entre as décadas de 1970/80. O fato de ambos virem de lugares historicamente marginalizados no Brasil, sendo homens não brancos, pertencentes a uma classe social desprivilegiada e, ainda assim, terem alcançado o "panteão" da Música Popular Brasileira, indica que estes artistas realizaram deslocamentos de fronteiras diversos. Importa pensar quais estratégias e/ou táticas cada um utilizou para driblar as citadas fronteiras, e se nesse movimento, suas obras e presenças podem ser vistas como discursos insubordinados que vão na contramão das representações oficiais da brasilidade. Para tanto, será analisada uma música de cada artista que nos ajudará a adentrar a discussão, ainda em processo de investigação. Palavras-chave: Fronteiras culturais; Gonzagão e Gonzaguinha; música; identidades; percursos decoloniais. 1. Introdução ou apresentação da pesquisa O presente trabalho trata de uma pesquisa de doutorado em andamento, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura, realizada na Universidade de Lisboa em regime de co-tutela com o Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA2. O estudo que tem como título: Deslocamentos de fronteiras: percurso e produção musical de Gonzagão e Gonzaguinha na construção das brasilidades, visa discutir as obras dos artistas citados, a partir de 03 questões principais: 1. Considerando os percursos de vida e os deslocamentos realizados pelos sujeitos estudados para alcançar o sucesso, que táticas e/ou estratégias3 cada um utilizou para driblar as fronteiras que separam "centro" e "periferia"? 1 Doutoranda do Programa de Estudos de Cultura da Universidade de Lisboa e Professora de História na UNEB – Universidade do Estado da Bahia - Campus IV. E-mail: [email protected] 2 No âmbito do pós-cultura/IHAC, a pesquisa é orientada pela Professora Dra Marilda Santanna. 3 Utilizo aqui os conceitos de "tática" e "estratégia" no sentido que Michel de Certeau (2009) define em seu livro A invenção do cotidiano. De acordo com o autor, a tática seria a “arte do fraco”, ela é parte de uma criatividade intelectual tão tenaz como sutil, pois não cria um contra-discurso direto, nem pretende atuar 2. Suas obras e suas presenças podem ser consideradas representativas na emergência de dizeres e sentidos que vão na contramão dos discursos oficiais de brasilidade? Podem ser lidas como discursos insubordinados? 3. Como o elo entre pai e filho famosos aparece nas suas obras? Para justificar as questões levantadas é importante dizer que Luiz Gonzaga, o pai de Gonzaguinha, nasceu no município de Exu, sertão de Pernambuco, região Nordeste, um território geográfico e político insistentemente identificado no imaginário nacional como o lugar do atraso, da seca, portanto, da pobreza material, do analfabetismo, da religiosidade popular exacerbada e de um tipo de violência associado ao mundo rural (cangaço e luta pela posse de terras). Apesar de originário desse território-representação do atávico por excelência e de pertencer a uma família pobre e negra, Luiz Gonzaga se consagrou, a partir dos anos 1940/50, como o "Rei do Baião". Ficou conhecido em todo território nacional cantando e contando esse Brasil sertanejo, concebido para ser esquecido ou estigmatizado pelo projeto de modernização da nação. Sua presença no imaginário nacional até os dias de hoje, especialmente no período das festas juninas, ainda é muito marcante, tendo visibilidade também em âmbito mundial4. De um outro lado da cena cultural, cerca de trinta anos depois, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha, alcança grande sucesso tornando-se um dos compositores mais prestigiados e requisitados no cenário nacional entre os anos 1970 e 1990. Apesar de chegar ao topo do sucesso no final da década de 1970 e ter nascido na moderna cidade do Rio de Janeiro (região Sudeste), Gonzaguinha também pode ser pensado como um sujeito que sai de outro território considerado marginal e consegue, através da sua música, obter visibilidade no cenário cultural brasileiro. Nascido e criado no Morro de São Carlos (Estácio), área periférica do Rio, atualmente denominada de "favela", de onde, segundo os discursos oficiais de uma política de segurança colonialista e elitista, advém uma população "perigosa”. Cresceu na casa dos padrinhos em um espaço de escassez e ausências em vários aspectos. Sua trajetória artística fora influenciada por como um poder, mas está presente no cotidiano como rastro, astúcia. Já a estratégia estaria no campo do cálculo onde as relações de força atuam a partir de um sujeito(s) de querer e poder, sendo permeada por elaborações mais teóricas, organizadas pelo postulado de um poder. 4 A música mais conhecida de Luiz Gonzaga é Asa Branca, foi concebida em parceria com Humberto Teixeira e é considerada um hino do Nordeste, tem em média 400 regravações, incluindo versões em inglês (David Byrne), chinês (Bai Chibang), coreano (Coreyahband), senegalês (Ameth Male), além de inúmeras regravações realizadas por importantes intérpretes nacionais, a exemplo de Caetano Veloso, Raul Seixas, Maria Bethânia, Elis Regina, Daniela Mercury, Gilberto Gil, Clara Nunes, entre outros. diversas e ricas referências, porém, distanciada da interferência e do prestígio do pai famoso. Mesmo sabendo que a produção e o sucesso de suas canções se deram em diferentes contextos históricos e que a forma de lidar com a carreira fora bastante heterogênea, considero importante destacar uma marca encontrada na trajetória artística tanto do pai quanto do filho e que me parece crucial para fundamentar a hipótese central da tese: de que suas obras e presenças no cenário cultural brasileiro podem ser lidas como discursos insubordinados e divergentes dos discursos oficiais de brasilidade. Em nenhum momento de suas carreiras Gonzagão e Gonzaguinha abriram mão do seu dizer de si. Ainda que afetados por uma clara herança colonial e escravista/racista que se atualiza no Brasil e que insiste em hierarquizar saberes, fixar lugares e demarcar fronteiras, os artistas pesquisados, assumiram e afirmaram, de diferentes modos, a dizibilidade e visibilidade (Albuquerque Jr, 2005) de elementos que os constituem enquanto pessoas/trajetórias e que os identificam como representantes de uma brasilidade negada, subjugada e excluída do projeto de construção da nação, até então em curso. O primeiro, assume o Sertão/Nordeste5 como tema central da sua obra, inclusive apropriando-se, através da vestimenta de um personagem/movimento que foi perseguido e mesmo banido violentamente pelo Estado brasileiro nos anos 1930: o cangaço. O segundo canta a favela, o morro, a exploração trabalhador pobre brasileiro, a necessidade da luta em plena ditadura militar; auto intitula-se “moleque" ou "moleque de rua", outro personagem "desagradável" aos olhos do Estado e que nos dias de hoje é ainda mais visto como um perigo para a sociedade, sendo alvo preferencial da política racista e militarista de segurança pública do Rio de Janeiro e das grandes cidades brasileiras. Por fim, o interesse em abordar na tese a relação familiar entre pai e filho famosos, advém do fato de que é de conhecimento do grande público que tal relacionamento foi marcado por tensões, dificuldades de diálogo e desconfianças na maior parte do tempo, porém, pouco se aborda sobre o processo de (re)conciliação entre os dois que se deu na 5 Em alguns momentos do texto trarei à palavra sertão associada a palavra Nordeste visto que, segundo o historiador Albuquerque Jr (2003), os inventores da identidade nordestina elegem o sertanejo como o representante mais legítimo da nordestinidade. Por ter no seu imaginário que a figura de um homem "embrutecido pela natureza", tão bem descrito por Euclides da Cunha como um herói, guerreiro e resistente, seria quem melhor representa essa região. Considerando-se esquecidos do projeto de modernização do país, necessitam recobrar a importância e a prioridade no acesso aos recursos federais. Para uma discussão mais aprofundada ver: Vasconcelos, 2011. última década de vida de ambos. A partir dos anos 1980 Gonzaguinha convida o pai para um trabalho conjunto, o que é recebido de forma positiva pelo velho Lua, quando realizam uma turnê pelo Brasil intitulada Vida de Viajante. Nesse momento estabelecem uma parceria fecunda, de ordem artística e pessoal que durará até que o fim das suas vidas. Por supor que tal fato influenciou diretamente a obra de Gonzaguinha, mas também a carreira de Gonzagão, serão analisadas (na tese) canções feitas em parceria, bem como canções que abordam esse elo, composta em diferentes períodos. Do ponto de vista metodológico e visando deslindar os problemas abordados, serão analisadas canções de ambos, priorizando as três principais temáticas da pesquisa: a trajetória/deslocamento, aqui consideradas como canções autobiográficas; músicas que abordem seus enunciados a respeito do Brasil e do brasileiro; e canções que remetam ao elo entre pai e filho. Para nutrir as discussões da pesquisa serão tomados como aportes teóricos alguns conceitos e reflexões oriundos do pensamento pós-colonial e decolonial, especialmente, formulados na América Latina e no Brasil. No texto que segue focarei a discussão nas primeiras questões citadas. Apresentarei canções autobiográficas, que mencionam processos de deslocamentos dos artistas e que, de certo modo, abordam aspectos de como pensam o Brasil. 2. Músicas autobiográficas do "Rei do Baião" e do "príncipe Moleque" 2.1 – Regressei! De Luiz Gonzaga apresentarei o baião Respeita Januário, composto por ele em parceria com Humberto Teixeira e lançado em 1950. Em linhas gerais, a canção retrata a volta do artista 16 anos depois de partir da casa dos pais, no sertão do Araripe.