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FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo

N. Processo: 2012/50292-5 (Bolsa no país – Regular – Pós-Doutorado) Vigência: 01/10/2012 a 30/09/2014

Beneficiário: Mateus Araújo Silva

Responsável: Ismail Norberto Xavier

Relatório Científico 2012-2014

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Sumário

1. Resumo do plano inicial 2

2. Detalhamento dos progressos e dos resultados obtidos no período 6

2.1. Aprofundamento das pesquisas bibliográficas, no Brasil e na França 7 2.2. Resultados publicados 8 2.2.1 “Glauber Rocha, e Jean-Luc Godard: olhares cruzados” (2013) 9 2.2.2. “Eisenstein e Glauber Rocha: notas para um reexame de paternidade” (2014) 13 2.3. Conferências e/ou comunicações diretamente ligadas à pesquisa: 35 2.3.1. “Paulo Emílio Salles Gomes e o Cinema Novo: uma perplexidade” (29-5-2013) 35 2.3.2. “Glauber Rocha, Deus e o Diabo e o Nordestern” (20-8-2013) 35 2.3.3. “Glauber Rocha prismático: ensaios de cinema comparado” (17-9-2013) 36 2.3.4. “Glauber Rocha e Eisenstein: notas para um exame comparativo” (29-8-2014) 37 2.3.5. “Glauber Rocha e Eisenstein: conexões e influências” (7-9-2014) 37 2.3.6. “Eisenstein e Glauber Rocha: debatendo as convergências” (12-9-2014) 37 2.4. Curso de Pós-Graduação na ECA-USP diretamente ligado à pesquisa: 38 2.4.1. Glauber Rocha Prismático: elementos de Cinema Comparado I (ECA-USP, 2014/1) 38

3. Atividades paralelas (indiretamente ligadas à pesquisa) 42

3.1. Outras publicações: 43 3.1.1. "Glauber crítico: notas sobre O Século do Cinema” (2012) 43 3.1.2. "Boca do lixo S.A.: notas sobre O Bandido da Luz Vermelha" (2012) 43 3.1.3. “Straub, Huillet e o ensaísmo dos outros” (2013) 43 3.1.4. "Eduardo Coutinho, Pierre Perrault e as prosódias do mundo" (2013) 44 3.2. Concurso na ECA e colaborações parciais com seu departamento de cinema (2014) 44

4. Conclusão: balanço dos progressos e perspectivas futuras da pesquisa na ECA 47

5. Anexos 48 5.1. Cópias de Certificados 49 5.2. Cópias de Publicações 56

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1. Resumo do plano inicial

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O plano inicial do projeto enviado à Fapesp previa o aprofundamento de uma pesquisa já esboçada e o avanço na elaboração de um livro de ensaios, dela decorrente, sobre as relações entre a obra de Glauber Rocha e o trabalho de alguns de seus colegas do cinema mundial com os quais ele estabeleceu um diálogo notório. O elenco destes colegas incluía Sergei Eisenstein, Luis Buñuel, John Ford, Jean Rouch, Pier Paolo Pasolini, Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, Miklos Jancso, Carmelo Bene e Robert Kramer. A título de indicação e baliza iniciais, o projeto reproduzia o seguinte sumário, então vislumbrado para o livro:

Glauber Prismático

Introdução

Capítulo 1: Glauber e Ford

a) Ford, primeiro amor de juventude; b) O western fordiano e o "nordestern" glauberiano (Deus e o Diabo, O Dragão); c) A luta dos homens e a política do mar: Hurricane (1937) / Barravento [+ It's all true de Welles]; d) Desventuras do colonialismo: The Lost Patrol (1934), Mogambo (1953), Seven Women (1966) / Der Leone

Capitulo 2: Glauber e Eisenstein

a) O modelo de Eisenstein e a vocação de Glauber b) A onipresença da História e o olhar teleológico c) Diálogos estilísticos: Deus e o Diabo / Potemkim, Der Leone, Cabezas Cortadas / Ivan o Terrível d) A montagem nuclear: Di e A Idade da Terra

Capitulo 3: Glauber e Buñuel

a) Da moral buñueliana ao Novo Cristo de Glauber b) A História febril: o remake de La fièvre monte à El Pao (1960) em Terra em Transe (1967) c) A História onírica: o diálogo de Cabezas Cortadas com L'Âge d'Or (1930)

Capitulo 4: Rocha e Rouch: de um transe a outro

a) Horizontes comuns b) Olhares cruzados: incompreensão recíproca ou busca da autarquia? c) Teatralidade, oralidade, discurso indireto livre d) Transe do cinema (Rouch) e transe do mundo (Rocha)

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Capítulo 5: Glauber, Godard e o Vento do Leste: alegoria de um (des)encontro

a) Caminhos convergentes: cinefilia, política, história b) Antes do Vento: cineclastia marxista (Godard) x pragmatismo terceiro-mundista (Glauber); c) Palavras ao vento: um Cristo e duas moças na encruzilhada d) Conclusão: um contracampo evitado

Capítulo 6: Glauber e Pasolini: a fome do povo e as figuras do Cristo

a) O lumpen e a fome (Accattone, Mamma Roma, La Ricotta / Deus e o Diabo, Câncer, O Dragão) b) O intelectual e as atualidades (Comizi d'amore / As armas e o povo, Abertura; La Rabbia / História do Brasil); c) Mergulhos no terceiro mundo (a antigüidade impura de Pasolini, a África de Glauber) d) O Mito, a religião popular e as figuras do Cristo (La Ricotta, Il Vangelo, Deus e o Diabo, Terra em Transe, Vent d'Est, Idade da Terra);

Capítulo 7: Glauber e Miklos Jancso: Coreografias da História

a) De Glauber sobre Jancso: elogios de 1968 a 1975, encontros em 1968-70, ecos em Claro b) Silêncios de Jancso e ecos de Glauber em seus filmes: Vermelhos e brancos (1967), Silêncio e grito (1968) c) Revoltas populares revisitadas: Deus e o Diabo / Les sans-espoir (1965) e Salmo vermelho (1972) d) Anti-realismo, alegoria e dança na representação da História: O Dragão, Claro e A idade da terra / Vermelhos e brancos (1967), Silêncio e grito (1968), Ah! Ça ira (1968), Agnus Dei (1970), Salmo vermelho (1972), Por Electra (1974), Vícios privados, virtudes públicas (1975);

Capítulo 8: Glauber e os Straub: diálogos de exilados em Roma

a) A recepção dos Straub no Brasil (Saraceni, Júlio Bressane, Arthur Omar, Arnaldo Jabor) b) Glauber crítico e seus comentários sobre os Straub de 1968 a 1975 c) O diálogo de Claro com os filmes romanos dos Straub (Othon, Lições de História, Introdução à ‘música para acompanhamento de cena de filme’)

Capitulo 9: Glauber e Robert Kramer: a política como problema

a) Entre o desejo de revolução e a crise existencial: In the Country (1966), The Edge (1967), Ice (1969) e Terra em Transe (1967); b) Aventuras políticas no exílio: - incursões em campos minados (Vietnã em guerra em People's War [1969], Congo Brazzaville em Der Leone [1969], Espanha franquista em Cabezas cortadas [1970]); - agitações paralelas em Portugal (As armas e o povo [1976] / Cenas da luta de classes em Portugal [1977], Gestos e fragmentos [Alberto Seixas Santos, 1980-82 – roteiro e atuação de R. Kramer]); c) O estado das coisas nos grandes afrescos: Milestones (1975), Route One / USA (1989) / Claro (1975) e Idade da Terra (1980); d) Da macropolítica à micropolítica (Kramer), da geopolítica à cosmopolítica (Glauber);

Capitulo 10: Glauber e Carmelo Bene: a tentação do grotesco

a) Caricaturismo político (Glauber) e vandalismo estético (Bene); b) Macbeth farsesco em Cabezas Cortadas c) A colaboração em Claro (e a reavaliação glauberiana tardia do grotesco de Fellini) d) Ecos de Bene no caricaturismo da Idade da Terra

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Destes dez capítulos então previstos, eu já publicara versões preliminares de três, e o pós-doutorado se afigurava como a ocasião para um ciclo mais concentrado de pesquisas que me permitisse avançar no eventual aprimoramento do que já se esboçara, e sobretudo na redação dos capítulos ainda não esboçados.

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2. Detalhamento dos progressos e dos resultados obtidos no período

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2.1. Aprofundamento das pesquisas bibliográficas (São Paulo, Paris e Rio de Janeiro)

Como previsto no projeto inicial, a bolsa me permitiu aprofundar as pesquisas bibliográficas em torno dos textos de e sobre Glauber, assim como dos cineastas com os quais se tratava de relacionar a sua obra. Este aprofundamento se deu pela leitura paciente da bibliografia indicada no projeto inicial e pelos acréscimos resultantes de novas pesquisas. Estas foram feitas basicamente: 1) nos fundos da Cinemateca Brasileira (fundo Glauber Rocha que precedia a compra recente do acervo do Tempo Glauber, objeto de uma auditoria que inviabilizou seu acesso); 2) em três bibliotecas parisienses: Bibliothèque du Film (BIFI) da Cinemathèque Française (sobretudo para a coleção de revistas e para a hemeroteca digitalizada dos artigos de jornais franceses sobre os filmes lançados na França, de Glauber mas não só), Bibliothèque François Truffaut e Biblioteca do Istituto Italiano di Cultura (esta última para materiais de e sobre Pasolini e Carmelo Bene), visitadas de 1 a 12 de junho de 2013, no rastro de um Colóquio de que participei no Sul da França discutindo Paulo Emílio, o Cinema Novo e Glauber (cf. ítem 2.3.1 infra) e 3) na coleção de recortes e documentos sobre Glauber, assim como no que restou de sua biblioteca, que ainda permaneciam no Espaço Tempo Glauber no Rio de Janeiro, visitado três vezes ao longo da pesquisa, em 2013 e 2014. Teses, livros recentes e artigos a que eu ainda não tivera acesso quando da elaboração do projeto também vieram enriquecer o universo bibliográfico estudado. Ao mesmo tempo, em Paris e no Rio de Janeiro, tive ocasião de recolher depoimentos (alguns gravados, outros anotados) de amigos ou contemporâneos de Glauber que o conheceram ou com ele trabalharam (Cristiana Tulio Altan, Renato Berta, J.-M. Straub, Jean Narboni e Jacques Bontemps em Paris; José Carlos Avelar, Geraldo Sarno, Eduardo Escorel, Ricardo Miranda e Othon Bastos no Rio), que trouxeram novos elementos e informações úteis para o conhecimento das circunstâncias de seu trabalho. A organização e o exame do conjunto dos materiais recolhidos ajudaram a aprofundar hipóteses já vislumbradas, a perceber novos aspectos até então pouco visíveis e a avançar na redação de alguns capítulos, um dos quais (sobre Glauber e Eisenstein) encontrou uma forma literariamente acabada e saiu publicado, outros (sobre Glauber e Carmelo Bene, e sobre Glauber e Pasolini) ainda se encontram numa forma intermediária, esquematizada e esboçada mas ainda aquém de uma versão acabada ou publicável. 8

2.2. Resultados publicados

Embora devam ser reunidos em livro e ganhem em ser lidos juntos, os ensaios foram concebidos, desde o início do projeto, numa relação de considerável autonomia recíproca. Tal autonomia me permitiu, ao longo da vigência desta bolsa, investir na pesquisa e na leitura dos materiais envolvidos, direcionando ao mesmo tempo os meus esforços de redação em função de ocasiões externas fornecidas por convites a Colóquios, Cursos e publicações. Foi este o caso das duas publicações indicadas a seguir:

2.2.1 “Glauber Rocha, Jean Rouch e Jean-Luc Godard: olhares cruzados”, In: Eduardo Teixeira (coord.), Troca de olhares: França-Brasil no Cinema,. Rio de Janeiro: AbraPress / Ambassade de France au Brésil, 2013. (nova síntese de capítulos aprimorados durante a bolsa).

Este primeiro resultado publicado decorreu de um texto encomendado para uma publicação da Embaixada da França no Brasil acerca de uma eventual influência do cinema brasileiro sobre o francês. O exercício me permitiu propor uma breve síntese, com nova angulação, de trabalhos anteriores sobre as relações de Glauber com Rouch e Godard. Reproduzo-a abaixo:

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Glauber Rocha, Jean Rouch e Jean-Luc Godard: olhares cruzados

Mateus Araújo

I

As relações entre o cinema do Brasil e o da França, a exemplo do que ocorreu em outras esferas da produção cultural dos dois países, permaneceram fundamentalmente assimétricas ao longo do tempo. Se o cinema brasileiro chegou, de modo ora mais difuso, ora mais específico, a sofrer alguma influência do cinema francês, não se pode dizer que o inverso tenha acontecido. Não que o cinema francês tenha ignorado o Brasil, ou tenha ficado insensível ao seu poder de atração. Cineastas franceses de perfil muito diverso, e de várias épocas, filmaram por aqui. Marcel Camus rodou três filmes, dentre os quais Orfeu Negro (1959), adaptação de uma peça de Vinícius de Moraes; consagrou um de seus documentários políticos a Carlos Marighela no auge da ditadura militar iniciada em 1964 (On vous parle du Brésil: Carlos Marighela, 1970); mais recentemente, a artista contemporânea Dominique Gonzalez-Foerster fez alguns de seus vídeos no Rio de Janeiro e em Brasília. Além disso, assim como a crítica e o público em geral, os cineastas franceses puderam ver muitos filmes brasileiros ao longo dos anos, embora boa parte do nosso cinema ainda seja pouco conhecida na França1. Do cosmopolita Alberto Cavalcanti (que filmou na França de 1925 a 1933 antes de seguir carreira alhures) ao contemporâneo Walter Salles, alguns cineastas brasileiros se destacaram mais que outros colegas, mas o grupo mais reconhecido e discutido na França talvez ainda seja o dos cinemanovistas (Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Paulo Cesar Saraceni, Leon Hirzsman etc), que ganharam prestígio internacional nos anos 60 graças aos festivais e às revistas européias, sobretudo francesas e italianas, e encarnam ainda hoje, aos olhos dos cinéfilos franceses, uma certa idéia do cinema brasileiro moderno2.

1 Cineastas brasileiros de peso, como Mário Peixoto, Humberto Mauro, Júlio Bressane, Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci e Arthur Omar, entre outros, continuam muito menos conhecidos do que deveriam na França. 2 Sobre a recepção francesa do Cinema Novo, ver o livro de Alexandre Figueirôa, La vague du cinéma nouveau en France fut-elle une invention de la critique? Paris: L’Harmattan, 2000 (Trad. bras.: Cinema Novo: A onda do jovem cinema e sua recepção na França. Campinas: Papirus, 2004). 10

Seja como for, nenhum cineasta francês de proa chegou a reivindicar alguma influência do cinema brasileiro ou, o que é mais importante, chegou a exprimi-la em seus filmes. Dois casos significativos, não propriamente de influência, mas de diálogo efetivo de cineastas franceses fundamentais com um colega brasileiro de envergadura foram os de Jean Rouch e Jean-Luc Godard com Glauber Rocha. Pela sua exemplaridade e pela importância dos cineastas envolvidos, tal diálogo merece aqui nossa atenção3.

II

Rouch e Godard tomaram contato com os filmes de Glauber e dos cinemanovistas em meados dos anos 60, num momento em que os brasileiros já conheciam os deles - Glauber começou a ver os filmes de Rouch e Godard por volta de 1961-62, e os menciona em seus textos desde 1963, com parcimônia e respeito no caso de Rouch, com frequência e admiração crescentes no caso de Godard. Nenhum dos dois franceses era indiferente ao Brasil. Godard já visitara na juventude o Rio de Janeiro, cujas belezas evoca numa crítica de julho de 1959 a Orfeu Negro de Camus (, n.97), que as teria traído. Rouch já recebera jovens cineastas brasileiros (Joaquim Pedro, Elyseu Visconti etc) em seus seminários do Museu do Homem, antes de assistir, num Festival do Instituto Columbianum em janeiro de 1965 em Gênova, a vários dos primeiros filmes do Cinema Novo, que o deixaram impressionadíssimo. Como jurado do Festival, ele deu o prêmio de melhor filme a Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), que mais tarde passou a exibir em seus cursos - e que Godard incluiria por sua vez na sua lista dos 10 melhores filmes estreados em Paris em 1965 (Cahiers du Cinéma, n.174, jan.1966). Segundo um depoimento de P.C. Saraceni, Rouch lhe teria dito em fevereiro de 1965 que “o Cinema Novo é a coisa mais importante que aconteceu [no cinema] desde Einsenstein”. Segundo outro do próprio Glauber, Godard teria intuído a ideia de La Chinoise (1967) ao ver O Desafio (1965) de Saraceni no Festival de Berlim de 1966. Naquele Festival em Gênova, Rouch conheceu Glauber pessoalmente, antes de revê-lo meses depois com a turma toda do Cinema Novo no Festival do Rio de Janeiro, que consolidou sua amizade pelo Brasil. Depois da visita de 1965, Rouch retornou seis vezes ao Brasil, onde

3 Seria impossível descer aos detalhes das complexas relações de Glauber com estes dois colegas, às quais já consagrei outros textos. Ver os meus “Godard, Glauber e o Vento do Leste: alegoria de um (des)encontro”, Devires, Vol.4, n.1, jan.-jun. 2007, p.36-63, e “Jean Rouch e Glauber Rocha, de um transe ao outro”, In: Mateus Araújo Silva (org.), Jean Rouch 2009: Retrospectivas e Colóquios no Brasil, Belo Horizonte, Balafon, 2010, p.47- 89. 11

chegou a acalentar em 1971 três projetos de filmes (nunca levados a cabo) com seu amigo Thomaz Farkas. O encontro pessoal de Godard com Glauber remonta pelo menos ao Festival de Veneza de 1967, senão a 1964, no Festival de Cannes e na estada parisiense de Glauber que o sucedeu. E Jean-Pierre Gorin, parceiro cinematográfico de Godard entre 1967 e 1970, conta ter visto em Paris Terra em Transe “umas trinta vezes seguidas no espaço de dez dias” (com Godard em algumas?) no início de 1968, antes de ficar amigo de Glauber meses mais tarde. Em nada fortuitas, estas amizades repousavam em convergências de fundo entre o projeto de cinema de Glauber e os de Rouch e de Godard. Rouch ajudara a inventar os postulados fundamentais do cinema moderno, que Glauber e Godard assumiriam para valer: os três ignoraram estúdios, equipamentos pesados e estruturas industriais de produção, trabalharam quase sempre de modo artesanal, com orçamentos baratos, equipes pequenas, luz natural e muita câmera na mão. Os três concederam também muita autonomia à experiência da filmagem, que nunca se confundiu neles com a mera execução de um roteiro previamente definido (ainda que este tenha existido, sobretudo em Godard) e se abriu sempre para a improvisação. Todos recusaram desde o início o fetichismo da técnica e procuraram desmistificá-la, conferindo um primado evidente à dimensão expressiva do filme em detrimento das normas técnicas estabelecidas até então, e transformando em riqueza estética o que era carência de produção. Afora este modo de produção, comum aos três, o cinema de Glauber partilhou outros elementos de fundo com o dos outros. Com o de Rouch, partilhou um esforço de relativizar a racionalidade técnico-científica que dominou o século XX e promoveu seu desencantamento, recorrendo para isso a outras formas de racionalidade e a outros sistemas de pensamento, como os mitos e as crenças religiosas de origem africana, e abrindo-se a estados psíquicos liberados do controle do ego, como o sonho, a loucura e o transe, que Rouch estudara como fenômeno antropológico, e que Glauber invoca como metáfora. Com o de Godard, partilhou um trajeto bem semelhante (guardadas as diferenças de contexto e de escala temporal), que o levou de uma cinefilia inicial dos tempos de crítico atuante a um impulso de intervenção política imediata em seu país e fora dele na segunda metade dos anos 60, antes da breve aventura televisual dos anos 70 e da reflexão mais serena sobre a relação entre o cinema e o século XX. Esta dá o tom das Histoire(s) du Cinéma (1988-98) de Godard, mas também das páginas do Século do Cinema, de Glauber, publicado postumamente em 1983. Foi nesse contexto de convergência artística, admiração recíproca e amizade (não isenta de rusgas) entre Rouch, Godard e Glauber, que surgiram no trabalho dos franceses traços de um 12

diálogo com o brasileiro, sobretudo após Terra em Transe (1967), que causou impacto na França. É curioso perceber que, embora Rouch tenha estudado e filmado ritos de possessão e cerimônias de transe na África desde os anos 40, ele só começou a chamar seu método de filmagem de “cine-transe” em textos do início dos anos 70. A fórmula metafórica de “Terra em transe” criada por Glauber não terá sugerido a Rouch a criação da sua própria (“cine-transe”), igualmente metafórica, e inspirada segundo ele em Dziga Vertov? Se tal hipótese sobre Rouch ainda espera um exame atento, a presença de Glauber no cinema de Godard é porém da ordem do fato. Depois de mencioná-lo nominalmente num diálogo dos personagens ao fim de Le Gai Savoir (1968), cujo sentido é claramente uma homenagem fraterna, Godard (junto com seu parceiro Jean-Pierre Gorin) o convida para dirigir uma cena de Vent d’Est (1969), na qual Glauber aceita apenas atuar como ator. Nesta cena, que corrresponde no filme a um momento de auto-crítica dos cineastas franceses, Glauber aparece numa encruzilhada de paisagem rural italiana, apontando dois caminhos do cinema político a pedido de uma moça grávida que avançava com uma câmera nas costas ao abordá-lo, mas que acaba não prestando muita atenção ao que ele diz.

Glauber fazendo seu próprio papel em cena de Vent D’Est (1969)... retomada na dedicatória do ep. 1-B das Histoire(s) du Cinéma de Godard

Embora curta, esta cena propunha uma alegoria muito lúcida das dificuldades implicadas no diálogo entre um grande cineasta europeu e outro grande cineasta do assim chamado terceiro mundo. A cena e seu comentário em off põem em jogo uma espécie de diálogo de surdos, em que os interlocutores não chegam a se olhar nem a falar na mesma língua, e o cineasta francês conclui que seu caminho não se confunde com o dos cinemas políticos do terceiro mundo. Aquele foi o momento de maior proximidade de Godard com Glauber, que ele homenagearia ainda, muitos anos depois, nas suas Histoire(s) du Cinéma, ao lhe dedicar o episódio 1-B. 13

Se não chegam a configurar propriamente uma influência do cinema brasileiro sobre o cinema francês, estes episódios históricos revelam ao menos um momento em que alguns dos melhores cineastas modernos dos dois países dialogaram de igual para igual. 14

2.2.2. “Eisenstein e Glauber Rocha: notas para um reexame de paternidade”. In: Adilson Mendes (Org.). Eisenstein / Brasil 2014. São Paulo / Rio de Janeiro: MIS / Azougue, 2014, pp.145-163. (versão preliminar de capítulo inteiramente novo do futuro livro)

Com gestação mais longa, discussão mais aprofundada e publicação mais recente, um outro resultado publicado das pesquisas em curso foi o texto examinando as relações entre Glauber Rocha e Serguei Eisenstein. Versões diferentes deste texto foram lidas em dois Colóquios Internacionais (um em São Paulo no MIS, outro no Rio de Janeiro) e em uma palestra de um curso de curta duração que ministrei em Belo Horizonte, todos em 2014 (ver ítens 2.3.4, 2.3.5 e 2.3.6 infra). Dada a forma literariamente mais acabada que este texto ganhou, e a pesquisa mais aprofundada da qual ele nasceu, posso considerá-lo como o resultado mais significativo já alcancado neste período da pesquisa de Pós-doc. Por tudo isso, pareceu-me proveitoso reproduzi-lo aqui na íntegra (ver também, em anexo, a versão diagramada no livro coletivo citado acima, ainda no prelo), ao invés de meramente resumi-lo:

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Eisenstein e Glauber Rocha: notas para um reexame de paternidade

Mateus Araújo (ECA-USP / FAPESP)

Além de pertencer, com Godard, Buñuel, Ford, Pasolini e Visconti, ao grupo seleto dos cineastas que mais contaram para Glauber Rocha, Eisenstein foi talvez, de todos, aquele que exerceu sobre o pensamento e a prática do brasileiro a influência mais forte, constante e duradoura, apesar de ser também, deste grupo, o único que o brasileiro não chegou a conhecer pessoalmente. Sua presença, que os críticos perceberam e assinalaram desde cedo4, é maciça ao longo de todo o itinerário de Glauber, tanto nos textos quanto nos filmes: desde os primeiros textos críticos de Glauber publicados na Bahia em 1956 até os últimos, publicados senão finalizados em Portugal, pouco antes de morrer, abundam as referências a Eisenstein (mais de 200 nos seus 5 livros principais)5, que só não ultrapassam em quantidade aquelas a Godard, e cuja ênfase salta aos olhos. Em textos de várias épocas, Eisenstein é qualificado não só de “revolucionário” (RCCB, p.36; SC, p.227) como de “grande revolucionário” (SC, p.188), “o mais revolucionário dos cineastas russos” (SC, p.346), autor de filmes, eles também, “revolucionários, na sua própria práxis” (CM, p.281)6. Glauber chega a invocá-lo como “Sua Majestade Sergei Mikhailovitch Eisenstein” e “o maior gênio do século XX” (SC, p.170), Em paralelo, todos os filmes de Glauber, desde Barravento até Idade da Terra, parecem informados,

4 Lembremos, entre outros, Alberto Moravia, Alex Viany, Walter da Silveira, Paulo Perdigão, Sérgio Augusto, Luiz Carlos Maciel e Mino Argentieri (em DDTS, p.5, 134-5, 177-8, 154, 164, 167, 189-90 n.1, 217 e 220), Lino Miccichè e Barthélémy Amengual (Études Cinématographiques, n.97-99, “Glauber Rocha”, 1973, p.17, 47, 53-4 e 65-67), René Gardies (Glauber Rocha, Paris, Seghers, 1974, p.14), Ismail Xavier (Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome, Brasiliense, 1983, p. 82-7; reed. CosacNaify, 2007, p.100-9; “Glauber Rocha: le désir de l’Histoire”, 1988, p.149; trad. bras., O Cinema Brasileiro Moderno, 2001, p.140; “Prefácio” in SC, 2006, p.15), Serge Daney (Ciné Journal 1981-1986, Paris, Cahiers du Cinéma, 1986, p.38), David Bordwell (The Cinema of Eisenstein, Harvard U.P., 1993, p.262) Jacques Aumont (“Eisenstein chez les autres”, in Pour un cinéma comparé: influences et répétitions, Paris, Cinemathèque Française, 1996, p.116-9) e Eugenio Renzi (“Rocheisenstein”, in D. Bax, C. Béghin & M. Araújo Silva (dir.), Glauber Rocha / Nelson Rodrigues, Magic Cinéma, 2005, p.62-5). 5 Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (Rio, Civilização Brasileira, 1963, Reed. Cosac Naify 2003), Deus e o Diabo na Terra do Sol (Rio, Civilização Brasileira, 1965), Revolução do Cinema Novo (Rio, Alhambra/Embrafilme, 1981, Reed. Cosac Naify 2004), O Século do Cinema (Rio, Alhambra / Embrafilme, 1983, Reed. Cosac Naify, 2006) e Cartas ao Mundo (S. Paulo, Cia. das Letras, 1997), doravante abreviados por RCCB, DDTS, RCN, SC, CM e, no caso dos reeditados, citados sempre nas reedições da Cosac Naify, com a indicação exata do artigo na nota. 6 Carta a Jean-Claude Bernardet, 12/07/1967. 16

de perto ou de longe, pelos filmes de Eisenstein, que ele começou a ver bem jovem (em sessões do Clube de Cinema da Bahia organizadas pelo crítico Walter da Silveira), ainda nos anos 50, quando também começou a ler os textos de Eisenstein em seus estudos para o programa radiofônico “Cinema em Close-Up” (1956-7)7. Nos limites de uma primeira aproximação, amparada sobretudo nos textos do próprio Glauber, arrisco nas notas que seguem um exame inicial do lugar de Eisenstein nos escritos de Glauber (seção I), e uma discussão preliminar da sua presença nos filmes do cineasta brasileiro (seção II), capazes de encaminhar em bases seguras uma confrontação mais detida da obra dos dois cineastas.

I. Eisenstein como objeto, parâmetro e inspiração teórica para o Glauber crítico

A vários anos de intervalo, cobrindo o arco de todo o seu itinerário de crítico e cineasta, Glauber consagrou dois textos inteiros a Eisenstein: o artigo de juventude "Conhecimento de S. M. Eisenstein" (1960)8 e o ensaio de fundo publicado tardiamente “Eyzenstein e a Revolução Soviétyka” (1981)9. A eles, podemos acrescentar a primeira parte do artigo “Palma de Ouro 75” (1975, em RCN, p.281-5), cujas cinco primeiras páginas trazem considerações específicas sobre Eisenstein, e a entrevista de 1969 intitulada programaticamente “É preciso voltar a Eisenstein” (SC, p.274-6), à qual voltarei na seção II. O artigo de 196010 trazia um elogio ao cineasta russo por um crítico admirativo, que já sofria sua influência antes mesmo de estrear no longa-metragem com Barravento, e já o considerava, ecoando textos de Walter da Silveira e Paulo Emilio Salles Gomes, um dos maiores cineastas de todos os tempos e um dos mais necessários ao repertório da cinefilia brasileira. Em consonância com tal elogio, encontramos uma série de referências contemporâneas de Glauber a Eisenstein, às quais voltarei, numa dezena de artigos de 1956 a 196211 que evidenciam seu

7 Sobre o contato inicial de Glauber com filmes e textos de Eisenstein, cf. João Carlos Teixeira Gomes, Glauber Rocha, esse vulcão (Rio, Nova Fronteira, 1997, p. 21 e 57) e o próprio Walter da Silveira (em DDTS, p.175). 8 Diário de Noticias, Salvador, 8/6/1960. 9 Publicado no Catálogo Glauber Rocha, Lisboa, Cinemateca Portuguesa, abril de 1981, p.34-38, e na revista Luz & Ação, Ano 1, n. 1 (agosto 1981) e n.2 (setembro 1981). Recolhido depois em SC, p.161-170. 10 Não recolhido no Século do Cinema e nunca republicado, este artigo é um documento precioso sobre a leitura que o jovem Glauber fazia de Eisenstein. 11 Cf. “Elia Kazan” (1956), “Delinquência juvenil” (1957), “Do novo Western” (1958), “Dramaturgia fílmica: Visconti” (1959), “Vadim (BB) Vadim” (1960), “O Barroco viscontiano” (1961), “Um filme genial” (1961) e “Visconti e os nervos de Rocco” (1962), todos em SC (p.90, 87, 127, 128, 129, 216, 304-5, 229, 133-4, 136, 224, 227), além de “Raízes mexicanas de Benito Alazraki” (1958), em RCN, p.38-43. 17

interesse e seu respeito pelo trabalho do cineasta russo, chamado por ele aqui e ali de “mestre russo” (SC, p.229, 305) ou “mestre soviético” (RCN, p,40)12, e apontado como um dos “nomes maiores da nossa época” no cinema (SC, p.224). Num deles, de 1959, Glauber diz que a montagem dialética teorizada por Eisenstein constitui “o método que mais se aproximou do filme absoluto” (SC, p.216)13. Noutro, de 1961, ele diz que os filmes de Eisenstein lhe “impressionaram como fenômeno estético” e “mantiveram o altíssimo nível de cinema criativo”, o “fenômeno Eisenstein” se constituindo num “caso isolado” (SC, p.133-4)14. Publicado em 1981 antes de ser recolhido no Século do Cinema, o outro artigo nasceu de um texto escrito basicamente em 1975, que Glauber levava muito a sério, a julgar por sua carta a Carlos Diegues de 22 ou 23/08/1975: “Escrevi um ensaio sobre Griffith, Chaplin e Eisenstein, a melhor coisa que escrevi em matéria de teoria. Tem 35 páginas, onde se pode publicar aí?” (CM, p.522-3). Mais enxuta e possivelmente refundida, a versão que aparece no Século provavelmente corresponde ao “ensaio esclarecedor sobre Eisenstein e a Revolução Sovyetyka” de que falava Glauber numa carta a Celso Amorim de 29/08/1979 (CM, p.652). Ela se divide em nove seções numeradas e já não traz as partes relativas a Griffith e Chaplin, que devem ter sido desbastadas e aproveitadas nos textos “Chaplin” e “Griffith”, também incluídos no Século (p.37-9 e 40-3). Nas nove seções que restaram, Glauber procura articular a estética de SME à Revolução Soviética (seções 1 e 2), comenta sumariamente sua filmografia e sua teoria da montagem (seções 3 e 4), extrai da discussão de Ivan I e II questões históricas, estéticas e filosóficas (seções 5 a 8), antes de evocar no fim sua visita ao Museu Eisenstein em Moscou - que sabemos ter ocorrido no início de 1976 (seção 9). Relido hoje, este texto nos aparece como um dos mais opacos de Glauber, um dos que leva mais longe seu furor linguageiro e suas veleidades especulativas. Cheio de palavras-valise condensando nomes e noções (“kyenciartyztyka”, “zaratruztexpressyonyzm”, “Ciênciartísticologica”, “espermexpressionista”, “Ciralexandrotaviaugusto”), assim como de letras K, Y, Z, o texto traz (sobretudo nas seções 6 e 7) passagens francamente especulativas15, de difícil compreensão. Sua matéria é ao mesmo tempo histórica (História da URSS, do Cristianismo e do mundo ocidental) e filosófica (Marxismo); seu desenvolvimento recorre amiúde a esquemas dialéticos (cf. p.164, 165 e 167) e psicanalíticos (cf. p.166 e 167); seu

12 “Rayzes mexicanas de Benito Alazraki 58”. 13 “Dramaturgia fílmica: Visconti”. 14 “Um filme genial”. 15 O intérprete que procurou enfrentá-las mais detidamente foi Eugenio Renzi (2005), com resultados porém que não convencem. 18

horizonte é a afirmação do cinema como forma específica e superior de conhecimento, irredutível à ciência e à filosofia (cf. p.166). Tudo isto se organiza numa prosa muito lábil, pouco preocupada com a univocidade dos conceitos, que vão variando e se deixando modular ao longo das nove seções de que se compõe o texto, algumas das quais insistem em analogias entre os personagens de Eisenstein e figuras da história soviética e universal, aí incluídos Ciro da Pérsia e Alexandre da Macedônia (“Montezuma Nevski Ivan I Hernán Cortez Ivan II Alexandre reencarnam Ciro”), sobre os quais Glauber escrevera em Roma, em 1974, um roteiro publicado mais tarde sob o título La Nascita degli Dei (Torino, ERI, 1981). Redigidas em Roma e datadas de 8/4/1975 num datiloscrito, as primeiras páginas do artigo “Palma de Ouro 75”, publicado pela primeira vez em Revolução do Cinema Novo trazem um texto paralelo ao daquele discutido acima, suas considerações ora reforçando ora prolongando as do outro texto, de cuja versão original podem ter sido extraídas. O texto porém não traz subdivisões e o estilo parece mais sóbrio, ainda que alguns argumentos recubram os do outro texto (cf. RCN, p.281-5).

Além destes textos mais frontais, e de algumas passagens sobre Eisenstein de outros que poderiam completá-los, Glauber deixou referências muito numerosas ao cineasta russo em textos sobre outros cineastas. Em boa parte deles, Glauber sugeria influências de Eisenstein, apontando-as em cenas ou filmes dos anos 50-60 de colegas da Europa e das Américas. Na Europa, os processos narrativos de Resnais em (1959) estariam “sustentados pela teoria eisensteineana do monólogo cinematográfico, exposto em Film Form” (SC, p.229)16, enquanto Luchino Visconti teria usurpado as idéias de Roberto Rossellini e “reformulado” Eisenstein, do qual Ingmar Bergman seria um “diluidor” (SC, p.311)17. O novo cinema húngaro, de Miklos Jancsó, Istvan Szabo e Ferenc Kósa, seria no bloco socialista “o único que volta a tomar e a analisar a linha revolucionária total de Eisenstein” (SC, p.348)18. Nos Estados Unidos, Stanley Kramer teria se inspirado em Eisenstein numa sequência de procissão em The Pride and the Passion, de 1957 (SC, p.61)19, assim como Elia Kazan teria sido influenciado por Que Viva México na plasticidade da representação da paisagem mexicana em

16 “O barroco viscontiano”. 17 “Você gosta de Jean-Luc Godard?” (1967). 18 “O novo cinema no mundo” (1968). 19 “Stanley Kramer” (1958). 19

Que Viva Zapata!, de 1952 (SC, p.90)20. Já nos anos 60, um filme intitulado Consciências compradas e supostamente destruído pelo seu diretor Timothy Anger (que parece ser um cineasta imaginário inventado por Glauber) traria em sua meia hora inicial evocações do cinema russo dos anos 20, antes que o próprio Eisenstein aparecesse em cenas informais num encontro com Chaplin em Hollywood, e que um ator aparecesse observando fotos do Encouraçado Potemkim (SC, p.146)21. À recepção de Eisenstein no Brasil e à sua influência sobre o Cinema Novo22, Glauber sempre esteve atento, como atestam algumas considerações bem circunstanciadas em entrevistas dos anos 60 e 70: “No Brasil, por exemplo, todas as teorias de Eisenstein chegaram em tradução espanhola e depois portuguesa e, como os cineclubes e as cinematecas são bem organizados, a obra de Eisenstein era muito conhecida lá. Nós éramos eisensteinianos e não admitíamos que se pudesse fazer um filme a não ser com montagem curta, primeiros planos etc” (RCN, p.112)23. “No princípio, nós éramos muito eisensteinianos. Os primeiros filmes do cinema novo eram bastante eisensteinianos” (RCN, p.202)24. “O nosso grupo de cinema novo tinha uma formação cinematográfica muito ligada ao cinema russo revolucionário de Eisenstein, Pudovkin, Dovjenko, Vertov e também ao teatro de Brecht” (RCN, p.297)25. “Nós procuramos no cinema russo dos anos vinte, essencialmente em Eisenstein, que é a montagem dialética, que caiu com o stalinismo. Mas aí é que estava a base do negócio. A teoria da montagem das atrações, de conflitos...”26. Em suas evocações do período inicial do Cinema Novo, Glauber salienta a admiração quase sectária do grupo por Eisenstein. Ela explicaria algumas ressalvas da época ao admirado Rio 40 graus (Nelson Pereira dos Santos, 1954), que “não era um filme eisensteiniano” (RCN, p.112), e a desconfiança inicial do grupo em relação a Paulo César Saraceni, entusiasta do cinema italiano, e de quem se dizia, talvez injustamente, “esse aí não

20 “Elia Kazan”. 21 “Bad Movie ou saudades do Maciel” (1970). 22 Em RCCB (p.45-6, 50-2 e 92), Glauber invoca Eisenstein a propósito de Humberto Mauro (que herdaria algo da sua força em Ganga Bruta, cujo lirismo do plano porém se oporia à sua montagem dialética) e de Lima Barreto (que o teria assimilado mal) 23 “Positif 67”, entrevista a Michel Ciment e Piero Arlorio, publicada sob o título “Entretien avec Glauber Rocha” em Positif, n.91, janvier 1968, p.19-36. 24 “Cahiers du Cinéma 69”, entrevista a Michel Delahaye, Pierre Kast e Jean Narboni, publicada sob o título “Entretien avec Glauber Rocha” nos Cahiers du Cinéma, n.214, juillet/août 1969, p.22-41. 25 “Filmcritica 75”, entrevista a Judita Hribar, publicada originalmente sob o título “conversazione con Glauber Rocha” em Filmcritica, Italia, n.256, agosto de 1975. 26 Entrevista a Mário A. Jacobskind e Toninho Mendes em Versus, n.6, 15/11.1976, depois em Sidney Rezende (org.), Ideário de Glauber Rocha (Rio, Philobiblion, 1986, p.75). 20

entende Eisenstein” (Ibid.)27. Em compensação, lembrou amiúde o quanto a admiração comum por Eisenstein o uniu a Leon Hirszman – que também reconheceu isto numa entrevista de 1983 a Alex Viany na qual dizia “A teoria [de Eisenstein] tinha muitas coisas que também foram muito fecundas para o Glauber. Acho que Eisenstein foi um ponto de unidade entre nós”28. Glauber, por seu turno, lembra que sua amizade por Hirszman “se devia ao fato de que ele gostava de Eisenstein. Ele era engenheiro, tinha as teorias de Eisenstein na ponta da língua, ele fazia experiências. Seu primeiro filme, Pedreira de São Diogo [1962], um curta-metragem, era a aplicação das idéias de Eisenstein” (RCN, p.112). Noutro texto, ele atribui a Hirszman uma “formação eisensteineana” e considera Pedreira de São Diogo “magnífica ilustração de algumas idéias de Eisenstein”, de quem Hirszman gostaria até mais intensamente do que ele Glauber, por ter “compreensão dialética mais profunda” (RCN, p.202)29. Alguns testemunhos dão notícia, aliás, de um grupo de estudo sobre Eisenstein organizado no Rio por cinemanovistas em 1969 ou 1970, após o AI-5 e a finalização do Dragão da Maldade, com a participação de Glauber, Geraldo Sarno, José Carlos Avellar e outros, sob a liderança de Leon Hirszman. Este o evoca na referida entrevista: “[Eu] lia muito Eisenstein. Em certa época estudei direito os textos dele, mas isso foi muitos anos depois, porque nós fizemos um grupo de estudos, estavam o Eduardo Escorel, o Geraldo Sarno, o Glauber... Foi em 1969, logo depois do AI-5. Talvez em 1970. Formamos um grupo que estudou Eisenstein mais organizadamente.”30 Conversas telefônicas recentes com Avellar e Sarno31 trazem mais detalhes deste grupo, que teria se reunido umas oito vezes (num curto período de dois meses), sempre aos sábados, no apartamento de Glauber em Botafogo, sob a coordenação de Hirszman, para discutir alguns textos de Eisenstein recém traduzidos pelos Cahiers du Cinéma (emprestados por Sarno), além de outros incluídos em Film Form e Film Sense, lidos em traduções espanholas. Segundo Avellar, o elemento deflagrador do grupo seria um comentário de alguém, que intrigou Glauber, sobre a semelhança entre uma cena de Ivan e outra do Dragão.

27 Embora seja bem conhecida a preferência de Saraceni pelo neo-realismo italiano (Rossellini sobretudo), suas memórias Por dentro do cinema novo – minha viagem (Rio, Nova Fronteira, 1993) permitem perceber seu respeito e sua consideração por Eisenstein, ainda que eles não se traduzam em adesão estética ao seu cinema. 28 In Alex Viany, O Processo do Cinema Novo, Rio, Aeroplano, 1999, p.288. 29 Glauber também fala do pendor eisensteineano de Hirszman em RCN (p.342. 411 e 412-3) e RCCB (p.41). 30 In Alex Viany, Op. cit, p.287. 31 Agradeço também o depoimento de Escorel, que crê não ter participado de nenhuma reunião naquele período de trabalho febril e longa viagem à Europa, embora se lembre do desejo comum à época de estudar Eisenstein. 21

Seja como for, afora o caso de Hirszman, cuja impregnação eisensteineana era de fato notória e assumida32, Glauber aponta ainda alguma influência de Eisenstein em filmes de Cacá Diegues (Ganga Zumba, de 1964, e Os Herdeiros, de 1969), Ruy Guerra (Os Fuzis, de 1963), Orlando Senna e Geraldo Sarno (Rebelião em Novo Sol, de 1963)33, com o qual diz ter discutido Eisenstein nos tempos de juventude de ambos na Bahia (cf. RCN, p.398).

Para além da questão das influências, Glauber também invocou Eisenstein como parâmetro ou comparante em seu exame de outros cineastas – de Welles e Visconti a Buñuel e Godard. Ao elogiá-los (ou criticá-los), é como se Glauber sentisse a necessidade de posicioná- los em relação a Eisenstein, que lhe ajudava a balizar sua discussão e acabava funcionando assim como uma espécie de princípio regulador, ou de superego para o crítico. Assim, contrastes, paralelos e linhagens o convidam a invocar Eisenstein, ainda que estivesse discutindo o trabalho dos outros. Os paralelos de Welles com Eisenstein são talvez os mais frequentes, e aparecem em vários textos: “depois de Eisenstein, nunca um cineasta foi tão fílmico como OW. [...] Se Eisenstein foi o maior intérprete da revolução soviética e das transformações radicais trazidas pelo socialismo, OW é o maior intérprete da tragédia imperialista. [...] OW não interpreta uma transformação à maneira de Eisenstein, porque essa revolução não se passou nos Estados Unidos” (SC, p.49 e 50)34; “Eisenstein organiza, Welles destrói. Cidadão Kane é um passo simultâneo ao de Ivan. É o filme que provavelmente Eisenstein faria nos Estados Unidos” (SC, p.310)35; “O drama de Eisenstein no stalinismo não é diferente daquele de Orson Welles com a RKO ou de John Huston com a Metro” (RCN, p.61)36.

32 “Eu vi o Potemkim e fiquei louco. [...] Então eu tive de ler a teoria dele. [...] Ele me fascinava muito. E, de uma certa maneira, eu sabia tudo de cor. [...] Meu primeiro filme é uma cópia, é uma homenagem completa às teorias dele [...]. Não se pode falar que o filme, Pedreira de São Diogo, só tem as teorias, tem a obra mesmo. Um jovem pré-intoxicado com aquilo, um vício, ler só aquilo, entre aspas, só aquilo, ao lado daquilo, defendendo aquilo... Quer dizer, eu defendia, eu era um porta-voz, um defensor das idéias teóricas do Eisenstein e dos filmes do Eisenstein” (In Alex Viany, Op. cit., p.287-8). Sobre este ponto, ver também Helena Salem, Leon Hirszman: o navegador das estrelas (Rio, Rocco, 1997, p.99 e 214) e Paulo César Saraceni, Op. cit., p.52 (“[Eu] tinha aprendido com Leon Hirszman tudo sobre a montagem intelectual e de atração de Eisenstein”). 33 Em Ganga Zumba, “havia influência de Eisenstein mas se confundia com outras influências” (RCN, p.202). “Os Fuzis, de Guerra, é também bastante eisensteineano” (Ibid.). Em Os Herdeiros “pode-se reencontrar todo este espírito eisensteineano de que eu falava” (RCN, p.203). “Em 1963, Orlando e Geraldo Sarno realizam o filme Rebelião em Novo Sol [...]. Montado em estilo eisensteiniano-vertoviano, o filme influenciaria a epicidade de Deus e o Diabo na Terra do Sol”. (RCN, p. 476). 34 “Orson Welles”, sem indicação de data, mas escrito provavelmente depois de 1975, a julgar pelo estilo e pelo vocabulário. 35 “Você gosta de Jean-Luc Godard? (1967). 36 “Vidas Secas 64” 22

Com Godard, a comparação é de envergadura: Godard teria no tempo de Glauber a importância que Eisenstein teve no seu. Godard foi “o maior cineasta depois de Eisenstein” (SC, p.317)37, ou “o maior cineasta desde que Eisenstein morreu” (RCN, p.164), ou “o maior cineasta desde Eisenstein” (RCN, p.221)38. No caso de Visconti e Buñuel, Eisenstein é invocado como contraprova da grandeza deles, que seriam grandes mesmo que divergissem dele (Visconti) ou que ignorassem seu legado (Buñuel): “Se Eisenstein teoriza a montagem dialética, com o sentido nascendo do conflito anterior de dois fotogramas, isso não implica em dogma: foi apenas até hoje o método que mais se aproximou do filme absoluto, não invalidando, contudo, a mensagem linear pregada por Pudovkin, próxima (com ligeiras variações) da corporificação da idéia, que marca o estilo de Luchino Visconti” (SC, p.216)39; Visconti foi um grande cineasta embora seu humanismo crítico não nos permita identificá-lo ao revolucionário revoltado (Brecht) nem ao revolucionário em ação (Eisenstein) (cf. SC, p.224-5)40. E Buñuel fez seus filmes “desprezando anos e anos de teorias, os livros de Eisenstein, Rudolf Arnheim, Bela Balázs, Umberto Barbaro” etc (SC, p.174)41. Vale lembrar ainda o quanto o cineasta brasileiro incorporou em seus textos noções e conceitos de Eisenstein ao falar de outros cineastas. Ele fala em montagem métrica, tonal e rítmica a propósito de Visconti (SC, p.240) e de Welles (SC, p.50)42, invoca a teoria da montagem de Eisenstein ao discutir filmes de Nicholas Ray (SC, p.87)43 e John Sturges (SC, p.127, 128 e 129)44, assim como invoca a teoria eisesteineana do monólogo interior a propósito de Raíces (1954) de Benito Alazraki (RCN, p.40)45, Studs Lonigan (1960) de Irving Lerner (SC, p. 136)46 e Hiroshima Mon Amour (1959) de Resnais (SC, p.229)47. A noção de “dramaturgia fílmica” e o par teórico “forma e sentido do cinema”, usados em dois artigos sobre Visconti de 1959 (SC, p.216-21 e 221-2), também se inspiram diretamente em Eisenstein. Este breve passeio pelos textos de Glauber nos mostra que ele não cessou de atentar para o lugar de Eisenstein na história do cinema, e para a sua presenca em posições e filmes de outros

37 “O último escândalo de Godard” (1970). 38 “America Nuestra 69” e “Cahiers du Cinéma 69”, respectivamente. 39 “Dramaturgia fílmica: Visconti” (1959). 40 “Visconti e os nervos de Rocco” (1962). 41 “Os 12 mandamentos de nosso senhor Buñuel” (1962). 42 Cf. “Esplendor de um Deus” e “Orson Welles”, respectivamente. 43 “Delinquencia juvenil” (1957) 44 “Do novo western” (1958) 45 “Rayzes mexicanas de Benito Alazraki 58” (1958). 46 “Um filme genial” (1961) 47 “O Barroco viscontiano” (1959) 23

cineastas. Não cessou tampouco de tê-lo em mente ao discuti-los. Ora, se discutiu amiúde Eisenstein, e se não parou de pensar nele ao discutir seus colegas, foi porque de fato pensou muito em Eisenstein, a ponto de tomar num dado momento a iniciativa concreta de estudá-lo com companheiros de geração. Resta ver como ele abordou as influências de Eisenstein em seu próprio trabalho, e como as integrou em seus filmes.

II. Glauber cineasta face a Eisenstein: identificação, aplicação, revisão

Em alguns de seus textos, Glauber sugere que Eisenstein funcionou como um modelo a partir do qual descobriu sua vocação de cineasta, e com o qual chegou a se identificar em alguns momentos. Numa carta reveladora a Paulo Emilio Salles Gomes de 26/01/1976, ele diz: “Segundo minhas próprias idéias sobre a materialização foi o mito Eisenstein que me fez ser cineasta. [...] Primeiro quando era jovem me identificava fisicamente com suas fotos. Depois os filmes. E os livros que li e reli durante a vida sem nunca entender bem. [...] Mas creio que entendi a montagem dialética de Eisenstein à minha maneira. Da reflexão semiconsciente à prática” (CM, p.582). O trecho encadeia a identificação física na juventude ao contato (posterior?) com os filmes e com os livros lidos e relidos “durante a vida sem nunca entender bem”, até que uma certa compreensão da montagem dialética chegasse na passagem da “reflexão semiconsciente à prática” de cineasta. Embora rico de indicações, ele não não chega porém a explicitar quais filmes nem quais livros marcaram a relação de Glauber com Eisenstein em seu itinerário, assim como não permite historiá-la de modo mais preciso. Dos filmes, ele deve ter visto antes de 1964 (possivelmente em Salvador, senão em suas idas ao Rio, a São Paulo e à Europa) A Greve, Potemkim, Outubro, A Linha Geral e Alexandre Nevski, que cita em seus textos48. É bastante improvável, embora não impossível, que tenha visto à época alguma das versões existentes do inacabado Que viva México, sobre o qual porém nunca se furtou a falar. Mais tarde, em sua viagens ao México, aos EUA ou a Moscou, sem falar na sua estadia na Europa e em Cuba, deve ter visto alguma versão deste material, para cuja montagem tardia de Alexandrov diz ter sido

48 Cf. “Elia Kazan” (1956), “Delinquência juvenil” (1957), “Vadim (BB) Vadim” (1960), “Visconti e os nervos de Rocco” (1962) e “Orson Welles”, dos anos 70 (cf. SC, p.90, 81, 304, 224 e 50, respectivamente), além naturalmente dos próprios textos sobre Eisenstein. 24

convidado a contribuir em 197649, mas cujo resultado finalizado em julho de 1979 não deve ter conseguido ver (se é que o viu um dia) antes de arrematar Idade da Terra em 1980 no Brasil. As duas partes de Ivan Grosny ele confessa em 1964 não ter conseguido ver até então50, e ao que consta ainda não tinha conseguido quando finalizava o Dragão51 em 1969. Ele provavelmente só conseguiu vê-las em meados dos anos 70, em Paris, Roma, Havana ou Moscou. Dos livros, ele menciona, em textos dos anos 50, 60 e 70, o Film Form52 (que deve ter lido primeiro em Salvador, provavelmente em tradução argentina53), e consta ter lido com os colegas do grupo de estudos alguns textos publicados pelos Cahiers du Cinéma na passagem dos anos 60 aos 7054, assim como de O Sentido do Filme55, mas salvo engano não chega a citar nominalmente nem estes nem outros. No que restou de sua biblioteca pessoal nos arquivos do Tempo Glauber, encontramos apenas dois volumes de Eisenstein, em traduções francesa e espanhola, sem nenhuma anotação à margem: Au delà des étoiles (Paris: Union Générale d’éditions, 1974) e El arte de Charles Chaplin (Buenos Aires: Ed. Losange, 1956), de Eisenstein, R. Bleiman e G. Kozintsev56. Em todo caso, para além de uma apuração mais exata daquilo que Glauber viu e leu de Eisenstein (e de quando o fez), podemos dizer que sua identificação com ele passou por uma convergência de fundo do seu com o projeto de cinema do mestre russo. Na dramaturgia de ambos, salta aos olhos a obsessão com a História coletiva, que faz com que os personagens principais tendam sempre a encarnar o confronto entre as forças sociais da opressão dos poderosos e as da emancipação popular, suas motivações se reduzindo raramente à esfera da

49 Na carta a Paulo Emilio de 26/1/1976, posterior à visita ao Museu Eisenstein e às conversas com Naum Kleiman, Glauber cita uma cena do copião para se referir à atriz mexicana Isabel Vilaseñor com quem Eisenstein teria tido um caso (CM, p.584), e conta que “tudo de Que Viva México chegou dos Estados Unidos e Alexandrov e Yusccvitch [Youtkévitch] vão tentar montar o filme completo, e inclusive, para minha surpresa, me convidaram para colaborar. Mas eu dei apenas uma sugestão, que o texto fosse escrito pelo Alejo Carpentier” (CM, p.580). 50 “Eu não vi Ivã Groznii antes de fazer este filme [Deus e o Diabo].; eu tinha visto Alexandre Névisque, que me impressionou muito, mas não pelo lado da composição, e sim pela aplicação da música, essa estrutura orquestral que Névisque tem” (DDTS, p.135). 51 Devo esta informação a José Carlos Avellar, em conversa de agosto de 2014. 52 Cf. “Do novo Western” (1958), “O Barroco viscontiano” (1961) e “Esplendor de um Deus” (1971), todos em SC (p.127, 129, 229 e 240) 53 A mesma que Geraldo Sarno, em conversa de agosto de 2014, me contou ter comprado em Salvador no início dos anos 60, e ter lido sem entender muito bem. 54 Segundo me disse Sarno na mesma conversa. Na entrevista de julho/agosto de 1969 aos Cahiers du Cinéma (n.214), um Glauber atento ao trabalho de então da revista diz que “atualmente vocês falam muito sobre Eisenstein” (RCN, p.201). 55 Segundo Avellar na já referida conversa de agosto de 2014. 56 Neste volume, vale notar em todo caso que as páginas do artigo de Eisenstein, “Carlitos el pibe”, p.97-117, são as únicas abertas por espátula, num indício de que Glauber deve tê-lo em algum momento ao menos folheado, senão lido. 25

psicologia individual. Os filmes de ambos privilegiam episódios e fenômenos de revolta ou de revolução, as revoltas tendendo amiúde a prefigurar a revolução que virá um dia (Glauber) ou que já veio, e se trata de celebrar retroativamente (Eisenstein). O olhar retroativo para episódios do passado traz sempre, em ambos, uma armadura teleológica que faz deles uma prefiguração ou um anúncio de processos futuros. Este esquema vale para as revoltas malogradas (A Greve, o episódio do massacre de Odessa em O Encouraçado Potemkim, Deus e o Diabo), cuja derrota é um fermento para a revolução vindoura, mas inclui também a representação de revoltas bem sucedidas constituindo ou anunciando, em escalas variáveis (vilarejos, navio, castelo e seus arredores), vitórias das forças populares contra a opressão (primeira metade do próprio Potemkim, Barravento, O Dragão, Cabeças cortadas). E se conjuga ainda com a representação de revoluções em sentido estrito, que ambos filmaram com empatia e entusiasmo (Outubro, Der Leone, cenas de euforia nas ruas de Lisboa no filme coletivo As Armas e o povo, de 1975, sobre a Revolução dos Cravos). Se a problemática do cinema de Glauber tende assim a convergir com a do cinema de Eisenstein, seu estilo também traz afinidades dignas de nota, no privilégio do registro épico (que Glauber designa amiúde como épico-didático, invocando justamente Eisenstein ao lado de Brecht), na acentuação da dimensão patética dos gestos e das expressões dos personagens, e no primado conferido à montagem, que Glauber tomou talvez como o elemento primordial do cinema de Eisenstein com o qual procurou dialogar. Na verdade, o principal objeto da meditação de Glauber sobre Eisenstein parece ser a montagem: ao longo de todo o seu itinerário, ele não cessou de meditar na teoria e na prática eisensteineanas da montagem, que qualificou sempre de dialética e tomou sempre como um modelo a não perder de vista (embora não a imitar sem mais). Seu cinema traduz esta preocupação em vários momentos e, como vimos, é pela montagem dialética que Glauber diz na carta a Paulo Emilio de 26/1/1976 ter compreendido Eisenstein à sua maneira (isto é, a de um cineasta, não a de um teórico). Nesta mesma carta, Glauber fornece um pouco adiante uma indicação eloquente da inspiração eisensteineana de seu trabalho, ao estabelecer entre os seus e os filmes de Eisenstein uma correspondência termo a termo, que ele qualifica de “paralelo arbitrário”, mas da qual se diz convicto: “Greve – Barravento / Potemkim – Deus e o Diabo / Outubro – Terra em Transe / Antônio das Mortes [O Dragão da Maldade] – Alexandre Nevski / Cabeças Cortadas – Ivan / Que viva México – História do Brasil / Linha Geral – O Leão de 7 cabeças” (CM, p.583-4). 26

Que eu saiba, Glauber nunca arriscou um tal exercício comparativo de imaginação crítica com nenhum outro cineasta. Nenhum outro lhe serviu tão diretamente de espelho, e com nenhum outro chegou tão perto de se identificar – nem mesmo com Pasolini, com quem diz ter sentido “comuns identidades tribais, bárbaras” (SC, p.256) ao assistir Il Vangelo secondo Matteo57. Desta sua tendência a se identificar com Eisenstein, Glauber dá outros indícios, como o de querer, no Museu Eisenstein, na noite do “aniversário de Mycha”, se assentar na poltrona do mestre “coberta pela manta real vermelha” num “amoroso rito ao Mago Poeta Morto Ressuscitado entre Vodka e Kayan!” (SC, p.170), dizendo depois que Eisenstein “era um menino, [...] que não encontrou seu Alter Ego!” (Ibid.)58, como se lamentasse o fato de os dois não terem se conhecido, e sugerisse ser ele o tal alter ego. Ou ainda, o de perguntar a Raquel Gerber, em carta de 01/09/1976, se ela iria ou não “escrever o romance Glauber Rocha como Marie Seton escreveu a biografia Eisenstein” (CM, p.611). No prefácio ao livro de Silvie Pierre (Glauber Rocha, Paris, Cahiers du Cinéma, 1987, p.6-7), depois de notar duas vezes que Glauber foi saudado como “o Eisenstein moderno”59, Jean Narboni conta que o cineasta brasileiro também pedira à estudiosa francesa para ser sua biógrafa como Marie Seton fora a de Eisenstein, o que permite perceber, para além da boutade, uma idéia que frequentou o pensamento do cineasta na relação com diferentes interlocutores. Se quase se identifica com Eisenstein em alguns momentos, Glauber reconhece com frequência, em textos de várias épocas, ter sofrido a influência do cineasta russo: “eu era eisensteineano” (RCN, p.22)60; “alucino nos cortes de Eisenstein” (RCN, p.205)61; “sou um legítimo ‘herdeiro’ de Eisenstein e Brecht” (CM, p.561)62; “acho que recebi o espírito da teoria

57 Sobre as afinidades e identidades entre Glauber e Pasolini, ver Ismail Xavier, “Glauber Rocha e o desejo da História”, em O Cinema Brasileiro Moderno (S. Paulo, Paz e Terra, 2a ed. 2004, p.142, n.2) e “Prefácio” em SC, p.27-8;, Ivana Bentes, “O Mito e o sagrado em Glauber e Pasolini” (Cultura Vozes, Vol. 88, n.2, maio-junho 1994, p.13-7), Duvaldo Bamonte (Afinidades eletivas: o diálogo de Glauber Rocha com Pier Paolo Pasolini 1970-75, S. Paulo, ECA-USP, 2002) e Bouchra Khalili, “Synchrétiques attitudes”, in D. Bax, C. Béghin & M. Araújo Silva (dir.), Glauber Rocha / Nelson Rodrigues, 2005, p.72-5. 58 Eugenio Renzi (art. cit,, p.62) enfatiza esta frase como sintoma de uma identificação de Glauber com Eisenstein. 59 De todos os novos cineastas surgidos nos anos 60, “le plus incontestablement reconnu comme génial, non seulement par la critique et les cinéphiles, mais par les grands du cinéma – Buñuel, Renoir, Rossellini, Godard – fut sans aucun doute Glauber Rocha, salué comme l’Eisenstein moderne” (p.6). Ele teria incumbido Sylvie Pierre de escrever sobre ele, e “lui avait demandé, puisqu’on le tenait pour l’Eisenstein des temps modernes, d’être sa biographe, comme Marie Seaton l’avait été de son prédécesseur” (p.7). Numa entrevista de 1969 já citada ao jornal italiano Il Messaggero, o entrevistador nota que “com exceção de Eisenstein, Glauber Rocha [...] não se parece com nenhum outro diretor” (SC, p.276). 60 “O Cinema Novo 1962”. 61 “Solanas 71”. 62 Carta a Juliet Berto, 1976. 27

científica de Eisenstein. O segredo de meus filmes é a prática da montagem dialética. Um método científico” (CM, p.636)63. “Da Bahia, onde teorizei um cinema fora do tempo ou o específico fílmico a-histórico passei ao Rio onde pratiquei o cinema épico/didático, via Brecht/Eisenstein” e enriquecido por outros aportes (RCN, p.403)64. Selecionadas, resumidas ou parafraseadas, estas passagens deixam claro o reconhecimento por Glauber, em seu projeto de cinema, da influência de Eisenstein, do qual se diz ora um partidário, ora um herdeiro, ora uma espécie de médium que teria recebido seu espírito. Resta examinar a modalidade da sua assimilação de tal influência: como e em que bases Glauber procurou integrá-la aos seus filmes? A esse respeito, uma questão fundamental que sempre esteve no centro da meditação glauberiana sobre os cineastas que admirou foi a de como integrar soberanamente suas lições, sem cair na imitação servil e estéril. Num artigo de 1967, Glauber formulou com clareza a necessidade de ultrapassar tal imitação, por meio de uma aplicação autônoma, que ele chama de “instrumentalização”, do repertório internacional da técnica cinematográfica:

“A técnica do cinema passado e atual do mundo desenvolvido me interessa, na medida em que eu possa ‘instrumentalizá-la’ [...]. O que é esta ‘instrumentalização’? Aplicar, como método, determinadas chaves da técnica cinematográfica, pedras de toque gerais que, na evolução da técnica, transcendem ao espírito individual de cada autor e se implantem no vocabulário estético do cinema [...]. Ao contrário, a imitação nasce de uma atitude passiva do cineasta diante do cinema, de uma suicida necessidade de se salvar na linguagem estabelecida, pensando que, se salvando pela imitação, salva o filme. [...] Somente um sofrimento direto do real e uma crítica dialética permanente pode ultrapassar o nível da imitação mitológica da técnica cinematográfica, instrumentalizando os jogos em expressões progressivas. Filmes brasileiros, como Vidas secas, A falecida ou Os fuzis, são exemplos de como cineastas colonizados podem instrumentalizar a técnica do cinema desenvolvido e promover uma expressão internacional.” (“Tricontinental 67”, RCN, p.108-9).

Numa entrevista do mesmo ano, Glauber reitera o argumento, ao observar que, se admira este ou aquele cineasta, “isto não implica submissão intelectual. Respeito, isso sim, as grandes

63 Carta a Dan Talbot, 06/08/1978. 64 “Viana Zelito 80”. 28

lições. E como cinema é uma linguagem em constante desenvolvimento, não posso deixar de usar certos métodos que me ensinaram os grandes cineastas. Mas eu os aplico à minha maneira” (Folha de São Paulo, 02/02/1967)65. Ora, se Eisenstein é certamente um dos cineastas que ele mais admira, esta admiração nunca suspendeu porém sua autonomia, nem sua consciência da diferença de contexto entre o trabalho do colega russo e o seu: “Eu gosto muito de Eisenstein, mas eu vivo numa realidade que não é uma epopéia no estilo de Alexandre Nevski, nem um drama histórico estilo Ivan, o terrível” (RCN, p.112-3)66. Ou ainda: “eu gosto muito de um certo cinema que poderia ser chamado de cinema-ópera: Welles, Eisenstein... Gosto muito de Ivan, o terrível, Alexandre Nevsky, A linha geral, mas isso não tem nada a ver conosco, assim como o teatro Cabúqui ou Brecht” (RCN, p.209)67. A questão de como aplicar ou instrumentalizar Eisenstein sempre esteve presente para Glauber, que desde um texto de 1958 já procurava avaliar os acertos e desacertos de sua integração em Raízes (1954) de Benito Alazraki (RCN, p.38-43)68, bem antes de considerar a “aplicação” das suas idéias em Pedreira de São Diogo (Hirszman, 1962) como “uma magnífica ilustração de algumas idéias de Eisenstein” (RCN, p.202)69. No seu próprio trabalho, Glauber sempre pareceu muito vigilante em sua aplicação ou instrumentalização de Eisenstein. Ele reconhece a influência eisensteineana em alguns de seus filmes, como Barravento, Deus e o Diabo, Terra em Transe, O Dragão da Maldade, Der Leone e Cabeças Cortadas, embora nem sempre se preocupe em determinar a natureza de sua assimilação: na entrevista já citada de 1967 a Michel Ciment, ele aponta em Barravento, ao lado de elementos antieisensteineanos vindos da descoberta de Rossellini, “resíduos eisensteinianos, e primeiros planos no estilo de Que Viva México!” (RCN, p.81)70, antes de dizer, anos depois, a Jorge Amado que “foi da síntese de Eisenstein com Mar Morto, de Caymmi com Jorge de Lima, que nasceu Barravento” (CM, p.634)71. Na mesma entrevista de 1967, reconhece em Deus e o Diabo “a sombra de Eisenstein, sobretudo na primeira parte” (RCN, p.81)72, na qual aponta em 1981, numa de suas últimas entrevistas, “um caminho de inspiração eisensteineana, de A linha

65 Apud Sidney Rezende, Op. cit., p.62. 66 “Positif 67”. 67 “Cahiers du Cinéma 69” (1969) 68 “Rayzes mexicanas de benito Alazraki 58”. 69 “Cahiers du Cinéma 69” (1969). 70 “Positif 67”. 71 Carta a Jorge Amado de 1978. 72 “Positif 67”. 29

Geral e do Encouraçado Potemkim”, entre outros. O filme teria sido feito de uma “luta entre Ford e Eisenstein...” (SC, p.330)73. Noutras declarações sobre passagens específicas de Deus o Diabo, ele apresenta o diálogo com Eisenstein ora como uma aplicação de suas lições, ora como uma revisão. Se o bloco do roteiro que se passava em Monte Santo teve que ser muito modificado nas filmagens por carências e incidentes de produção, Glauber diz tê-lo construído no filme “usando os processos de montagem de que dispunha – desde Eisenstein até Resnais” (DDTS, p.53 n.10), e recorrendo “às teorias de Eisenstein que, no caso, se aplicavam bem ao tema, embora soubesse que estas teorias são hoje em dia superadas. Tratava-se, contudo, de fazer o filme – e isto era o mais importante.” (DDTS, p.62, n.12). Esta observação sobre as teorias eisensteineanas, que cabia usar pragmaticamente como parte do arsenal de recursos disponíveis numa filmagem com percalços, já sugere uma certa autonomia do cineasta Glauber diante do legado teórico de Eisenstein a ele acessível naquele momento: embora lhe parecessem superadas, aquelas teorias convinham bem ao seu tema e, assim, continuavam úteis naquele caso. Tal autonomia volta a aparecer quando, num debate de 24/3/1964, Glauber qualifica de “revisão” uma citação que fez, também no bloco de Monte Santo em Deus e o Diabo, não das teorias, mas de uma sequência do Encouraçado Potemkim:

“Quanto a Eisenstein: a cena da escada é uma citação clara da escadaria de Odessa. [...] Eu citei: mas querendo fazer humildemente uma revisão. Porque a montagem de Odessa é uma montagem racional, dialética; eu fiz uma montagem ao contrário, uma montagem anárquica e fora de continuidade. Pode parecer uma coisa pretensiosa, mas ao citar as escadarias de Odessa, eu quis fazer uma revisão. A montagem de Odessa é uma montagem toda racional, equilibrada, evolutiva, clara, orgânica, matemática, determinada; e aquela montagem que eu fiz foi uma montagem toda contrária. Há um certo tom eisensteineano na composição, mas é só questão de mise-en-scène” (DDTS, p.135, grifos meus).

A admissão da aplicação ou da revisão não significa portanto adesão plena à fatura do mestre. Esta idéia de “revisar” Eisenstein fazendo ressalvas reaparece em “America Nuestra 69”,

73 “A passagem das mitologias” (entrevista a João Lopes em Sintra, 8/4/1981). 30

um texto de julho de 1969, escrito em Roma sobre um projeto de filme homônimo74. O texto traz várias referências a Eisenstein, de quem o filme deveria ter a dialética (RCN, p.162). Ao eventual produtor Dan Talbot, Glauber tenciona apresentar o projeto como o de “um filme pós- eisensteiniano” (RCN, p.163). Pensando no que vislumbra, Glauber diz que “América deve ter uma montagem épica. Mas quero revisar o próprio Eisenstein: uma épica moderna, produzida por uma cultura antiquíssima75 mas ainda desconhecida. Sou obrigado a ser solidário com esta antigüidade. Mas é tão perigoso fazer cinema na A. Latina que desejo correr o risco de ambicionar a totalidade. Eisenstein era tão puro que não tinha vergonha de dizer que sentia o verdadeiro êxtase da criação enquanto filmava o Potemkim; [...] Por isto Eisenstein realizou grandes filmes. Não teve medo, e sua principal virtude foi ousar a beleza” (RCN, p.164-5). Não é fácil imaginar em quê exatamente consistiria esta revisão de Eisenstein, mas podemos vislumbrar um filme de montagem épica que honrasse a ousadia estética de Eisenstein sem aderir porém a todas as suas escolhas. Pouco antes, noutro trecho igualmente sugestivo deste mesmo texto, Glauber dissera que “América deve ser um filme que multiplique Eisenstein por ele mesmo” (Ibid.), sem explicar em que consistiria elevar, no filme, Eisenstein ao quadrado. Pouco adiante, suas considerações se precisam um pouco, quando ele diz que “América nuestra deve ser um filme nascido de todas estas contradições. Por exemplo: deve ter um espírito eisensteiniano mas ser anti-Que Viva México!. Não gosto do espírito plástico de Viva México!: aí Eisenstein transferiu Da Vinci, Michelangelo etc., toda a idealização renascentista para o México76. A plástica de Que Viva México! deveria ser moderna como os travellings de Renoir no campo em Madame Bovary e outros filmes ou mesmo [como a de] Rossellini [quando] fotografou Viaggio in Itália” (RCN, p.167). Sem prejuízo do diálogo confesso com Eisenstein, a distância sugerida pelas ressalvas talvez justifique uma certa oscilação de Glauber, ao longo dos anos, entre os adjetivos “eisensteineano” e “pós-eisensteineano” que ele alterna para qualificar alguns de seus trabalhos, ou entre, de um lado, um movimento que ele sugere de avançar rumo (ou de retornar) a Eisenstein e, de outro, um movimento contrário de se despedir do mestre. Por vezes, os dois movimentos opostos de aproximação e afastamento podem ser associados ao mesmo filme,

74 Projeto que já alimentara em sua primeira versão de 1966 o roteiro de Terra em Transe e cuja segunda versão de 1967 Glauber decidira retrabalhar para filmá-la nos inícios dos anos 70) 75 O texto publicado em RCN (2a ed., 2004, p.164, linha 31) diz “cultura critiquíssima”, mas a continuação da frase e seu sentido me fazem crer que sua fixação herdou um erro de revisão da edição original de 1981 (p. 133, l. 25). 76 Difícil saber se Glauber baseava-se aqui em fotos, relatos, comentários ou em cenas das versões existentes. 31

como o Dragão da Maldade, que (com Terra em Transe) Glauber aproxima de cineastas qualificados por ele de pós-eisensteineanos, mas cujo movimento o levaria rumo a Eisenstein. Se Godard e Straub são os primeiros cineastas dialéticos pós-eisensteineanos, “Terra em transe é um filme dialético. Antônio das Mortes [O Dragão da Maldade] é dialético: tem influência de La Chinoise e de Straub. E é uma falta de complexos rumo a Eisenstein” (RCN, p.167)77. Esta última frase sugere em 1969 que, embora influenciado por cineastas pós-eisensteineanos, o Dragão tende não a se despedir, mas a se aproximar de Eisenstein, cumprindo assim à risca a divisa “é preciso voltar a Eisenstein”, que dava o título à sua entrevista de fevereiro do mesmo ano ao jornal italiano Il Messaggero, na qual ele diz peremptoriamente que “a origem da arte moderna está na Rússia: Eisenstein, Meyerhold. Depois não se fez nada de interessante no cinema. Sim, talvez filmes belos, mas nada de novo, nada que tenha significado. É necessário recomeçar desde Eisenstein: do Eisenstein não somente o diretor, mas também do Eisenstein teórico do cinema” (SC, p.275). Noutra declaração, de 1981, Glauber afirma sem nunaces a inspiração eisensteineana do Dragão, que “é o meu Alexandre Nevski. [...] Antônio das Mortes [O Dragão da Maldade] era o Alexandre Nevski do sertão, a ópera global inspirada pelas lições de Eisenstein” (SC, p.330)78. Vale lembrar o interesse de Glauber à época por Eisenstein, sobre o qual, já vimos, ele participara de um grupo de estudos no Brasil, estimulado por uma comparação feita por alguém entre o Dragão e Ivan. Não isento desta oscilação, tal interesse reaparece em declarações sobre o par de filmes Der Leone have sept cabecas e Cabeças Cortadas. Pouco depois de lançá-lo, Glauber diz ao crítico Louis Marcorelles que Der Leone “é meu diálogo – eu, cineasta inspirado e oprimido – com os mestres colonizadores da arte política que eu mais admiro: Eisenstein, Brecht e Godard. É um diálogo de agradecimentos e de adeus” (Folha de São Paulo, 7/4/1971, Ilustrada, p.30). Adeus aos mestres? Libertação da sua influência? Glauber precisa logo depois que “a evocação de Eisenstein, Brecht e Godard não deve ser interpretada como ‘homenagem’: ela é usada como método para melhor me aproximar dessa pré-história do homem do terceiro mundo” (Ibid.). Dois anos mais tarde, Glauber trata em todo caso de reivindicar a filiação eisensteineana de Der Leone ao instruir Fabiano Canosa sobre como apresentar o filme em Nova York: “O Leão tem de ser apresentado aí como ‘um filme materialista histórico e dialético from

77 “America Nuestra 69”. 78 “A passagem das mitologias”. 32

Eisenstein, Brecht, Godard and Cinema Novo’” (CM, p.468)79. E em 23/3/1970, antes mesmo de acabar suas filmagens e de vislumbrar sua forma final montada, faz o mesmo com Cabeças Cortadas, ao defini-lo em conversa com Augusto M. Torres como “uma espécie de Ivan o Terrível latino-americano, tratado com um certo senso de humor”80 . America Nuestra acabou não resultando em filme, mas o embate com Que Viva México vislumbrado no texto de 1969 alimentou também o projeto de Idade da Terra, que mobilizou anos de esforço na década de 70, na qual Glauber nunca perdeu Eisenstein de vista, e voltou fortemente a ele. Segundo conta seu biógrafo João Carlos Teixeira Rodrigues (Op. cit, p.273- 80), Glauber tentou viabilizar Idade da Terra em 1974 no México, numa versão inicialmente concebida como uma adaptação do roteiro de Que Viva México. Submetido ao governo mexicano em 1974, o projeto não vingou: os mexicanos não toparam financiá-lo. Na carta a Paulo Emilio de 15/1/1976, ao falar deste projeto de A Idade da Terra (naquela altura O Nascimento da Terra), o próprio Glauber menciona a recusa mexicana e a inspiração eisensteineana: “o roteiro se compõe de cinco atos – a tal patética eisensteineana – e seria a partir de Que Viva México [...] O governo mexicano proibiu” (CM, p.586). Vicissitudes e reformulações à parte, Idade da Terra só começaria a ser filmado no Brasil em 1977-8, guardando algo daquele projeto inicial, cuja tentativa de partir de um clássico ecoava a de Cabeças Cortadas, submetido inicialmente ao governo espanhol como uma adaptação de Macbeth intitulada Macbeth 70. A versão traduzida e modificada do roteiro submetido em inglês aos mexicanos aparece, com o título “Anabaziz – o primeiro dia do novo século” e a indicação “(primeiro tratamento de A Idade da Terra)”, nos Roteyros do Terceiro Mundo81, com uma nota de intenções ao fim (p.235-6), datada de 16/3/1977, em que Glauber volta a invocar a “a Teoria da Montagem em Quarta Dimensão”82, num eco direto do ensaio de Eisenstein “A quarta dimensão do cinema” (1929) recolhido em Film Form.83 Esta referência à teoria da montagem eisensteineana era uma constante nos textos glauberiano da época, e a grandiloquência jocosa de duas cartas, escritas a Peter Schumann e a

79 Carta a Fabiano Canosa, 1973, 80 Augusto M. Torres, “Diario de rodaje de Cabezas Cortadas”, em Glauber Rocha y Cabezas Cortadas. Introducción, diario de rodaje y selección de textos de Glauber Rocha a cargo de Augusto M. Torres. Guión de Glauber Rocha. Barcelona, Editorial Anagrama, 1970, p.98. 81 Rio, Alhambra / Embrafilme, 1985, p.193-236. 82 Já mencionada antes na carta a Paulo Emilio de 15/1/1976: “... daí a montagem dialética em quarta dimensão, como falava SME, da qual Outubro é o exemplo” (CM, p.582-3). 83 Cf. A forma do filme, Trad. Teresa Otoni, Rio, Jorge Zahar, 1990, p.71-76 (esp. p.75). 33

Cacá Diegues no mesmo dia de 3/1/1976 (pouco antes das três visitas daquele janeiro ao Museu Eisenstein em Moscou), faz pensar numa verdadeira obsessão de então em torno de Eisenstein:

“Eisenstein? MD = MI = H / MI E

esta fórmula resume o segredo da Teoria da Montagem Nuclear – criada por Eisenstein e desenvolvida por mim. Eis o segredo dos meus filmes. Tenho a fórmula revolucionária. Muito importante!!! é por isso que quero ir trabalhar nos países socialistas. Sou contra o cinema sociológico pois a sociologia é parte da frondosa dialética. Marx ainda não foi entendido. Brecht + Eisenstein = Eis o início de uma estética marxista. Eis minha via, desde Barravento” (A Peter Schumann, CM, p.572).

“Eisenstein? Decifrei a teoria do CINEMA NUCLEAR. Mandei pro Sarra a fórmula decifrada. Top Secret!!! Eis a fórmula: MD = MI = H = Segredo de Estado ME E” (A Cacá Diegues, CM, p.574).

Presente nos projetos e nas elucubrações bem-humoradas de Glauber, Eisenstein aparece muito na referida carta a Paulo Emilio de 26/1/1976, escrita após seu retorno de Moscou, onde passara o aniversário de Eisenstein. Nesta carta, Glauber também inclui na comparação com os filmes de Eisenstein seu penúltimo filme em data, História do Brasil (1974), associando-o a Que Viva México pelo propósito comum aos dois filmes de apresentar vastos painéis históricos dos países em questão84. Tivesse a carta sido escrita dois ou três anos mais tarde, Glauber teria provavelmente acrescentado a esta comparação o curta Di (1976-7) ou Idade da Terra, que me parecem, cada um a seu modo, tão ou mais marcados por seu embate com Que Viva México do que o filme co-dirigido com Marcos Medeiros em Cuba. Di tem como objeto desencadeador um rito funerário cristão (velório e sepultamento) e parece animado por uma concepção festiva da morte, não muito distante daquela dos mexicanos abordada no epílogo do roteiro de Que Viva México sobre “a festa dos mortos”, e invocada explicitamente por Glauber em seu texto de apresentação ao curta: “A morte é um tema festivo

84 No artigo “Glauber à Lille” (Libération, 01/04/1982), Sylvie Pierre também invoca “todo o esplendor do mito de Eisenstein” a propósito de História do Brasil. 34

para os mexicanos...”. Além disso, parece integrar em sua própria fatura a do pintor homenageado (sobretudo nos planos da mulata Marina Montini, que respondem de perto aos quadros de Di mostrando mulatas, recorrentes no fluxo do filme), fazendo com Di algo parecido com o que Eisenstein fez de Orozco, cujo estilo mimetizou em alguns de seus planos (sobretudo os do episódio “Maguey”, frequentemente calcados na pintura de Orozco)85. Quanto a Idade da Terra, o diálogo com Que Viva México animou toda a sua gênese, do projeto inicialmente submetido em inglês ao governo mexicano à sua tradução publicada sob o título “Anabaziz” com nota de intenções de 1977, e desta ao filme iniciado naquele ano e finalizado em 1980. Um exame mais atento também revelaria ecos de Que Viva México em passagens e aspectos de Idade da Terra86. Seja como for, para além destes paralelos específicos que cabe aprofundar, o diálogo talvez mais importante destes dois filmes tardios de Glauber com Eisenstein passa pela operação da “montagem nuclear”, que Glauber remete ao cineasta russo, embora não conste que o autor de Film Form tenha usado esta expressão. Nela, o adjetivo “nuclear” sugere uma idéia de explosão87, que o jovem Glauber já usava ao invocar num texto de 1958 a “concepção eisensteineana de montagem (o choque multiplamente interior, subjetivo, semelhante às explosões de um motor [...] vide Film Form” (SC, p.127)88 e volta a reiterar em textos dos anos 70 sobre Welles e Eisenstein, ao mencionar a “explosão nuclear de Ivan II” (SC, p.52) ou dizer que “Ivan I e parte de Ivan II é clarescuro e colorido como a explosão nuklear” (SC, p.167). Uma variante igualmente original desta idéia aparece no curioso verbo “espermatizar”, neologismo criado por Glauber como uma espécie de versão orgânico-sexual do mesmo modelo, como se o choque entre os planos pudesse por vezes fazer não a guerra, mas o amor: “A crise do

85 Segundo Aragón Leiva, citado por Eduardo de la Vega Alfaro (Del Muro a la pantalla: S. M. Eisenstein y el arte pictórico mexicano, Guadalajara, Univ. de Guadalajara, 1997, p.46), Eisenstein lhe teria dito pessoalmente que “La técnica que estamos utilizando para este filme guarda mucha relación con la técnica de los murales de Orozco”. No texto “Prometheus (Expérience)” de Eisenstein incluído em Cinématisme: peinture et cinéma organizado por François Albera (Bruxelles, Complexe, 1980), a reprodução entre outros do Maguey (1931) de Orozco (p.111) deixa clara aquela mimetização reconhecida pelo cineasta. 86 Entre outros exemplos, pensemos no bloco edênico do início, que ecoa cenas do episódio Sandunga do filme mexicano, assim como os blocos do Carnaval no Rio e das festas religiosas em Salvador ecoam os desfiles populares mostrados nos blocos Sandunga e Fiesta. 87 Muito bem apontada por Ismail Xavier como contribuição original de Glauber, na confluência entre seus textos e seu último filme: “Mais de uma vez ele se refere à taxonomia de Eisenstein (os tipos de montagem), fazendo dela uma clara matriz de seu pensamento, num diálogo que se desdobra na contribuição original que vem dar à teoria quando pensa no novo modo de abertura em leque das associações temáticas da montagem como uma explosão em cadeia – liberação de uma intensidade por irradiação de valores plásticos – como bem mostra a sequência das escolas de samba em A Idade da Terra, quando experimenta a ‘montagem nuclear’” (“Prefácio, em SC, p.15). 88 “Do novo western”, texto que traz ainda, pouco depois, a expressão vizinha “explosão dramática”, (p.128), remetendo novamente de modo explícito a Eisenstein. 35

velho Dyabo Ivan II, quando Eyzensteyn o espermatiza em cores no ritual Dyonizyako, é a irrupção da Ynkonzciência Sexual na Konzcyênzia Fylozófyka e Cyentyfyka da Heustórya” (SC, p.166). A montagem neste caso produziria uma descarga visual (ejaculação?) pela acumulação de estímulos sensoriais. Ora, a operação que Glauber batiza de montagem nuclear aparece em vários momentos de A Idade da Terra, que contou com três montadores, e estrutura o fluxo inteiro de Di. Um exame cuidadoso da sua utilização nestes dois filmes, que ficará para um outro artigo, talvez nos revele um dos momentos mais fortes da aplicação ou da revisão de Eisenstein por Glauber, no fim de seu trajeto de cineasta marcado pela admiração e, por vezes, pela identificação com a obra do mestre. * Identificação, aplicação, revisão: estes três impulsos, que não se excluem e podem andar juntos, configuram, de um polo ao outro, o arco do diálogo travado por Glauber com o legado de Eisenstein. Este diálogo torna a obra do brasileiro, a meio século e meio planeta de distância, um desdobramento inusitado, profundamente original, do monumental trabalho do artista de Riga.

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2.3. Conferências e/ou comunicações diretamente ligadas à pesquisa:

2.3.1. “Paulo Emílio Salles Gomes et le Cinema Novo: notes autour d’une perplexité” [Comunicação de 29-5-2013 numa mesa do Colloque International Salles Gomes et Jean Vigo: cinéphilie, littérature et patrimoine cinématographique, Montpellier, L’Université Paul-Valéry (Montpelier III) / L’Institut Jean Vigo / Cinemateca Brasileira, 28-30/5/2013] – ver certificado em anexo

Nesta conferência, discuti um verdadeiro enigma da moderna historiografia cinematográfica brasileira: a surpreendente magreza da contribuição de Paulo Emilio à fortuna crítica do cinema novo brasileiro, de que ele foi um preparador, um parceiro e um cúmplice, mas sobre o qual não chegou a deixar textos críticos de envergadura, apesar de ter podido conhecer bem os filmes e de ter tido ao menos quinze anos de atividade febril para escrever sobre eles. Procurando cercar este enigma de vários ângulos, sugeri que Paulo Emilio se pronunciou sobre o Cinema Novo mais como historiador do que como crítico, e que sua posição historiográfica face ao cinema brasileiro divergia bastante da posição cinemanovista, cuja encarnação exemplar aparecia na Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), de Glauber Rocha, de que ele não gostara. A abordagem historiográfica do Cinema Novo por Paulo Emilio seria assim uma resposta à historiografia teleológica do Cinema Brasileiro proposta por Glauber e pelos cinemanovistas. Esta discussão me permitiu desdobrar diretamente questões presentes em meu texto sobre Glauber crítico publicado no início da bolsa (ver ítem 3.1.1 infra), e que deverão ser integradas ao livro, sob uma forma que resta definir (como apêndice? Como parte da introdução?).

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2.3.2. “Glauber Rocha, Deus e o Diabo e o Nordestern”. [Comunicação de 20/08/2013 numa mesa do XI Seminário Internacional Archai, sobre o tema “Deuses, 37

Homens e Heróis, entre gregos e baianos” – Belo Horizonte, UFMG / UNESCO] – ver certificado em anexo

Nesta conferência, discuti a relação de Glauber Rocha com os Deuses, homens e heróis gregos, que eram objeto do seminário internacional. Tênue, esta relação não foi porém inexistente, e minha comunicação procurou examiná-la a partir, de um lado, de um episódio curioso de incursão direta ao mundo grego e, de outro, de uma influência grega indireta sofrida pela mediação constante do Western: 1) o projeto italiano de filme La Nascita degli Dei, (adaptação da Ciropédia e da Anábasis de Xenofonte) roteirizado em 1974 e publicado postumamente em 1981 (Torino, ERI); 2) a influência do Western, que atravessou sua obra desde muito cedo e trouxe para ela uma presença indireta da épica grega. Neste segundo ponto, examinei o papel do Western no repertório cinematográfico de Glauber desde a sua juventude, e a sua presença efetiva em alguns de seus filmes, notadamente Deus e o Diabo na terra do Sol (1964). Este filme foi visto como uma resposta direta a uma insuficiência, discutida por Glauber em páginas reveladoras de Revisão Crítica do Cinema Brasileiro (1963), do ciclo brasileiro do filme de cangaço, também chamado de Nordestern. O exame do Nordestern e do Western em Glauber franqueou-me uma aproximação ao seu diálogo com John Ford, objeto de um capítulo ainda não escrito do meu projeto de livro.

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2.3.3. “Glauber Rocha prismático: ensaios de cinema comparado” [Comunicação de 17/9/2013 ao IV Seminário de Pesquisa de Pós-Graduação da ECA]

Nesta comunicação, apresentei as linhas gerais da minha pesquisa de pós-doutorado, insistindo na maneira pela qual ela evita uma polarização presente em certos momentos da história do departamento de cinema da ECA entre, de um lado, a defesa de pesquisas voltadas exclusivamente ao cinema brasileiro e, de outro, a defesa de uma internacionalização de seus objetos. Tal como se configurou, minha pesquisa conjuga um exame atento da obra de um cineasta brasileiro, mas a partir de seus diálogos com o cinema mundial. Assim fazendo, escapa 38

da camisa de força do tema exclusivamente brasileiro, evitando ao mesmo tempo resvalar num cosmopolitismo abstrato.

*

2.3.4. Glauber Rocha e Eisenstein: notas para um exame comparativo” [Conferência de 29/8/2014 no mini-curso “Exercícios de Cinema Comparado” ministrado na pós-graduação da Comunicação na UFMG em 29-30/8/2014 – ver certificado em anexo]

2.3.5. “Glauber Rocha e Eisenstein: conexões e influências” [Conferência de 7/9/2014 no MIS de São Paulo, em mesa do Colóquio Eisenstein 2014 com Reinaldo Cardenutto – ver prospecto em anexo]

2.3.6. “Eisenstein e Glauber Rocha: debatendo as convergências” (Conferência de 12-9-2014 no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro, em mesa do Colóquio “Eisenstein e as Artes” com José Carlos Avelar – ver páginas da brochura do IMS em anexo)

Um pouco diferentes na angulação e nos desenvolvimentos, estas três conferências examinaram as relações entre Glauber e Eisenstein. O ponto focal da primeira, proferida num curso sobre a abordagem comparatista nos estudos de cinema e amparada pelo uso de trecho de filmes dos dois cineastas, era salientar o interesse e os ganhos hermenêuticos desta confrontação entre eles; a segunda procurou examinar com mais vagar o papel de Eisenstein nos escritos de Glauber Rocha, numa mesa em que as influências do cineasta russo sobre Leon Hirszman também eram objeto de discussão específica; a terceira se ocupou sobretudo com a intensificação do interesse de Glauber por Eisenstein a partir do fim dos anos 60, momento em que o brasileiro organizou com colegas sessões de estudos dos textos do autor de Outubro, evocadas e discutidas na mesa por José Carlos Avelar – que delas participou em 1969.

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2.4. Curso de Pós-Graduação na ECA-USP baseado na pesquisa:

2.4.1. Glauber Rocha Prismático: elementos de Cinema Comparado I (ministrado junto com Ismail Xavier na Pós-graduação da ECA-USP no 1o Semestre de 2014)

No primeiro semestre de 2014, ministrei, na condição de Pós-doutorando e portanto em colaboração com Ismail Xavier (supervisor desta pesquisa), o curso “Glauber Rocha Prismático: elementos de cinema comparado I” no programa de pós-graduação em multimeios da ECA- USP. Primeiro de dois módulos previstos, este curso me permitiu desenvolver diversos aspectos do diálogo de Glauber Rocha com, respectivamente, Jean Rouch, Jean-Luc Godard e Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, testando hipóteses interpretativas que eu já tivera ocasião de publicar, mas ao mesmo tempo aprofundando-as e desdobrando-as em direções até então inexploradas por mim. Entre outros exemplos destas novas investigações, lembro aqui o papel da mixagem sonora na abordagem do transe em Terra em Transe, as incursões televisuais paralelas de Glauber e Godard na segunda metade dos anos 70, o papel da música tropicalista na cena de Glauber em Vent d’Est (Godard & Gorin, 1969), o exame mais atento da homenagem tardia de Godard a Glauber no episódio 1-B das Histoire(s) du Cinéma, as diferenças específicas na abordagem dos ritos funerários em Rouch e Glauber, a relação heterodoxa com a tradição do filme ensaio nos Straub e em Glauber. Ele me permitiu também esboçar uma aproximação mais precisa ao diálogo de Glauber Rocha com Carmelo Bene, sobre o qual eu ainda não tivera ocasião de escrever. Permitiu ainda esboçar (por ocasião da 8a aula) uma análise da abordagem cristológica de Glauber, tanto nos seus textos (de 1962 a 1981) quanto nos seus filmes. Esta análise encaminha em bases avançadas um exame do diálogo de Glauber com Pasolini (ainda não publicado) e, indiretamente, com Buñuel (em direção não prevista no sumário do livro, e esboçada para uma comunicação proposta a um Congresso de Cinema na UNAM, no México)89 Um segundo módulo desta disciplina está previsto para o segundo semestre de 2015, e tratará dos diálogos de Glauber com, respectivamente, Eisenstein, Buñuel, John Ford e Pasolini.

89 Embora a proposta tenha sido aceita pelos organizadores deste Colóquio Internacional, tive porém de renunciar a ele após mudança da sua data prevista, que o deixou fora da vigência da bolsa, inviabilizando o financiamento da passagem aérea pela Fapesp. 40

Reproduzo abaixo a ementa, o conteúdo, os objetivos e a justificativa do curso propostos à Pós-graduação quando da oferta da disciplina:

Conteúdo (Ementa):

Organizado em dois módulos, o curso propõe um exercício de cinema comparado, concentrando seu foco na obra de Glauber Rocha para abordá-la à luz de seus diálogos com a de outros cineastas. Neste primeiro módulo, examinaremos os diálogos que Glauber travou em sua obra com Jean Rouch, Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet e Carmelo Bene. Diversos e variados, eles exigirão abordagens igualmente distintas. Uma se voltará para convergências entre aspectos mais gerais das obras comparadas (de Glauber e Rouch), outra discutirá o sentido de uma colaboração de Glauber em filme alheio (de Godard), outra ainda confrontará filmes de Glauber aos de seus colegas (Straub e Huillet), e uma última examinará a incidência de elementos do trabalho de Bene nos últimos longas de Glauber, num dos quais o italiano atuou. Incluindo projeções (parciais ou integrais) de versões digitais de filmes de Glauber e de seus colegas examinados, este primeiro módulo se dividirá em 5 blocos, recobrindo uma introdução e quatro exames sucessivos dos diálogos em questão.

Parte I: Introdução

1a Aula (12/3/2014): Introdução – Para uma abordagem prismática de Glauber Rocha

Parte II: Glauber e Rouch : de um transe a outro

2a Aula (19/3/2014): Glauber e Rouch – Considerações preliminares 3a Aula (26//3/2014): Glauber e Rouch – Olhares cruzados, influências caladas 4a Aula (02/4/2014): Glauber e Rouch – Teatralidade da mise en scène e oralidade 5a Aula (09/4/2014): Glauber e Rouch – Discurso indireto livre e tratamento da religiosidade

Parte III: Glauber, Godard e o Vento do Leste: alegoria de um (des)encontro 41

6a Aula (23/4/2014): Glauber e Godard – considerações preliminares 7a Aula (30/4/2014): Glauber e Godard – aproximação e divergências antes do Vento 8a Aula (07/5/2014): Vento do Leste – A Cena da encruzilhada na cristologia de Glauber 9a Aula (14/5/2014): Vento do Leste – A Cena da encruzilhada como alegoria do desencontro

Parte IV: Glauber e Straub-Huillet : diálogos de exilados

10a Aula (21/5/2014): Recepção brasileira dos Straub 11a Aula (28/5/2014): Câncer (1968/72) e O Noivo, a atriz e o cafetão (1968) 12a Aula (04/6/2014): Claro (1975) e seu diálogo com a Roma dos Straub

Parte V: Glauber e Carmelo Bene: a tentação do grotesco

13a Aula (11/6/2014): Glauber e Bene: convergências iniciais 14a Aula (18/6/2014): O caso Claro (1975) 15a Aula (25/6/2014): Desdobramentos em A Idade da Terra (1980)

Objetivos:

De um lado, testar, por amostragem, a fecundidade de uma abordagem comparativa mais sistemática (qualificada aqui de prismática), ainda pouco praticada no âmbito dos estudos cinematográficos entre nós. De outro, explorar facetas pouco discutidas do cinema de Glauber que, apesar de notoriamente permeável ao trabalho de seus colegas estrangeiros, não suscitou, com raras exceções, estudos de fôlego voltados para os seus diálogos com o cinema deles.

Justificativa:

Trinta anos após sua morte prematura, Glauber Rocha segue sendo consensualmente considerado o mais importante cineasta que o Brasil já produziu, razão pela qual ele continua 42

mobilizando pesquisadores brasileiros e continua sendo, hoje, o mais discutido na bibliografia existente. Mas esta ainda está muito longe de esgotar a riqueza e os múltiplos aspectos da sua obra, o que por si só justifica a oportunidade e o interesse da abordagem comparatista do seu cinema que este curso pretende aprofundar. Seja como for, para além desta mera constatação inicial, tal abordagem pretende trazer pelo menos três contribuições aos nossos estudos cinematográficos em geral e glauberianos em particular: 1) Uma contribuição metodológica, ao ensaiar um tipo de discussão ainda raro no campo dos estudos de cinema; 2) Uma contribuição propriamente hermenêutica aos estudos glauberianos, ao reequilibrar e completar um pouco a angulação sob a qual tem sido discutido o cinema de Glauber, que foi objeto de análises e interpretações primorosas, mas raramente acerca de suas relações complexas com a tradição do cinema mundial; 3) Uma contribuição histórica, ao abordar à luz de um caso particular os desencontros do cinema moderno, suas promessas não cumpridas, na interface entre um de seus representantes principais vindos de um país periférico (Glauber, vindo do Brasil) e vários outros vindos de países desenvolvidos do ocidente europeu.

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3. Atividades Paralelas

(indiretamente ligadas à pesquisa)

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3.1. Outras publicações:

3.1.1. “Glauber crítico: notas sobre O Século do Cinema”. Revista da Cinemateca Brasileira, n.1, setembro de 2012, p.16-33.

Arrematado e publicado entre a notícia da concessão pela Fapesp da bolsa de pós- doutorado e o início da sua vigência, este texto examina o itinerário crítico de Glauber Rocha, concentrando-se em suas contribuições (críticas, teóricas e historiográficas) presentes no Século do Cinema, seu livro consagrado ao cinema mundial. Ele constitui material a ser integrado ao meu livro, de maneira ainda a definir (como parte da introdução ou como um apêndice). Ver anexo, p.72-88 infra.

3.1.2. "Boca do lixo, Sociedade Anônima: notas sobre O Bandido da Luz Vermelha". In: VALE, Glaura Cardoso (Org.). Catálogo do 16o Forumdoc.BH - Festival do filme documentário e etnográfico de Belo Horizonte. Belo Horizonte: Filmes de Quintal, 2012, p. 192-200.

Ensaio comparativo sobre a relação de O Bandido da luz vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) com São Paulo S.A. (Luis Sérgio Person, 1965) e, numa menor medida, O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965) e Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967). O filme de Glauber entra na discussão apenas lateralmente, em alguns parágrafos do texto, como coadjuvante do argumento central, por assim dizer. Mas além da sua presença, incluo aqui este texto pelo seu exercício da abordagem comparatista, próxima àquela proposta na pesquisa sobre Glauber. Ver anexo, p.89- 93 infra.

3.1.3. “Straub, Huillet e o ensaísmo dos outros”. Devires (UFMG), Vol. 10, n.1, janeiro / junho de 2013, p. 108-137.

O estudo examina a presença e o sentido de um veio ensaístico no cinema dos Straub, tão singular – e atípico - quanto aquele que podemos desentranhar de alguns filmes tardios de Glauber (Claro, Di, trechos de A Idade da Terra), com o qual pretendo compará-lo, 45

aprofundando uma comparação entre o cineasta brasileiro e o casal francês cuja versão publicada ainda pode ser aprimorada. A questão do ensaio virá à tona neste aprimoramento futuro, assim como veio na 12a Aula ministrada no curso da ECA (ver ítem 2.4. supra), e este texto contém, até aqui, o encaminhamento mais completo desta discussão no que concerne aos Straub. Ver anexo, p.94-121 infra.

3.1.4. "Eduardo Coutinho, Pierre Perrault e as prosódias do mundo". In: Ohata, Milton (Org.). Eduardo Coutinho. São Paulo: CosacNaify, 2013, p. 432-439.

Este texto promove um exame comparativo das obras de Eduardo Coutinho e do quebequense Pierre Perrault, a partir de dois pontos fundamentais em ambas: 1) a preocupação em recompor o elo entre o passado e o presente na experiência de indivíduos ou comunidades; 2) o exercício de uma escuta cada vez mais fina da fala alheia. Além do método comparatista de abordagem (afim àquele que venho utilizando em minha pesquisa), o texto aborda Perrault, um cineasta cujo trabalho guarda pontos de contato ideológico com os de Glauber e de Rouch, os três se inscrevendo, cada um a seu modo, numa linhagem de cineastas que caracterizei alhures como “arcaicos modernos”. Ver anexo, p.122-132 infra.

3.2. Concurso na ECA e colaborações parciais com o seu departamento de cinema (2014)

Depois de consultar informalmente um conselheiro da Fapesp, decidi me inscrever num concurso para professor doutor realizado na ECA-USP no primeiro semestre de 2014. O departamento de Cinema, Rádio e Televisão era o mesmo em que eu já desenvolvia minha pesquisa, não houve objeção da parte da Fapesp (a única condição era a de o candidato aprovado não acumular a bolsa do pós-doc e o salário da universidade quando fosse efetivado, nem deixar de se dedicar prioritariamente à pesquisa), e minha eventual entrada definitiva na USP me parecia estar em estrita consonância com o propósito explícito da Agência de enraizar pesquisadores em centros de pesquisa de universidades brasileiras. Meu supervisor tampouco apresentou veto, reconhecendo ser este também o interesse da Fapesp e o da própria universidade, com a ressalva de que a pesquisa em andamento não deveria porém sair do foco nem perder a estrita primazia sobre todo o resto. Sem descurá-la nem tirá-la do foco principal, e 46

vendo aliás a possibilidade de prolongá-la, em estrita continuidade com o estágio pós-doutoral, como pesquisa da dedicação exclusiva se eu entrasse no Departamento, fiz o concurso e fui aprovado, sabendo também que a tramitação até a contratação levaria meses e que esta provavelmente não chegaria antes do fim previsto da bolsa. De resto, caso ela chegasse e não pudesse ser adiada, eu poderia sempre cancelar a bolsa antes de me efetivar no departamento (era requisito aliás para a contratação pela USP a apresentação de documento oficial de cancelamento da bolsa). O curso na pós-graduação, diretamente ligado ao meu projeto de pós-doutorado, já estava acertado e foi ministrado como previsto ao longo do primeiro semestre. No segundo semestre, em razão dos atrasos decorrentes da greve prolongada, eu consegui esperar o fim da bolsa em setembro para assumir para valer as disciplinas da graduação sem ter jamais prejudicado a pesquisa em função de outras tarefas departamentais (proposta de nova ementa de disciplina da graduação, três bancas de qualificação, e pouco mais, sem nenhuma remuneração). Vista com olhos de hoje, a escolha me pareceu acertada, pois aquele setembro terá sido um mês rico de colheitas pós-doutorais, talvez o mais rico e produtivo em resultados de toda a pesquisa: arrematei ali um texto longamente gestado desde 2013 sobre Glauber Rocha e Eisenstein, que apresentei em três ocasiões e publiquei num volume coletivo com colegas nacionais e internacionais (cf. ítens 2.2.2, 2.3.4, 2.3.5 e 2.3.6 supra, além da versão publicada em anexo, p.62-71 infra). Ao fim da vigência da bolsa da Fapesp, em 30/09/2014, o contrato da USP ainda não ficara pronto e eu ainda não estava efetivado. Posso dizer então que tanto pelo calendário quanto pelos resultados, valeu a pena ter mantido a bolsa até o fim da sua vigência prevista. A entrada imediata nas atividades de ensino, que começaram com tudo em outubro, acarretaram porém meu atraso na entrega deste relatório, pelo qual me desculpo e peço a compreensão da Fapesp.

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4. Conclusão: balanço dos progressos e perspectivas futuras da pesquisa na ECA

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Findo o pós-doutorado, posso dividir os progressos da pesquisa em três direções: 1) a primeira, que mais avançou, concerne ao exame efetivo dos materiais bibliográficos e filmográficos, que cresceram ao longo da pesquisa, e vão permitir a passagem mais ágil à escrita ou ao arremate dos capítulos que faltam; 2) a segunda, que avançou em paralelo, concerne ao aprimoramento do próprio método comparatista, testado nos capítulos sobre Glauber, mas também em outros textos sobre ele (Glauber/Rouch/Godard, ítem 2.1.1 supra anexado também nas p.57-61 infra) ou outros cineastas (Sganzerla/Person, Coutinho/Perrault, comentados nos ítens 3.1.2 e 3.1.4 supra, e anexados nas p.89-93 e 122-132 infra); 3) a terceira, razão de ser da pesquisa, também avançou, e concerne à publicação dos seus resultados em futuros capítulos do livro. Neste front editorial, o capítulo sobre Glauber e Eisenstein (ítem 2.2.2 supra, anexado também nas p.62-71 infra) veio à luz numa versão já muito desenvolvida, e os capítulos sobre Glauber e Carmelo Bene, Pier Paolo Pasolini e Luis Buñuel se aproximaram da “publicabilidade”, embora não tenham ainda saído publicados (eu imaginei estar com pelo mais um deles pronto e publicado em setembro, mas terei de esperar mais um pouco). O capítulo sobre Glauber e os Straub ganhou um aporte importante num texto publicado sobre o ensaísmo nos Straub (comentado no ítem 3.1.3 supra e anexado nas p.94-121 infra), a ser condensado numa nova seção que o compare ao de Glauber Dada a continuidade da pesquisa como atividade de docente em regime de dedicação exclusiva, espero arrematar e publicar pelo menos dois novos capítulos (já esboçados) ainda este ano, em cujo segundo semestre estarei oferecendo o segundo módulo da disciplina “Glauber Prismático: elementos de cinema comparado” na pós- graduação da ECA (tomando agora Eisenstein, Buñuel, Ford e Pasolini como comparantes), . Vale repetir, para concluir, que ao longo do pós-doutorado, antes como depois do concurso, nunca deixei de trabalhar prioritariamente, senão exclusivamente, na pesquisa sobre Glauber. Esta se desdobrará em minha pesquisa de docente no seio do departamento. Se ela avançou sem interrupções durante o pós-doutorado, vai prosseguir agora em novo regime, de modo a que seu objetivo prático – a conclusão do livro de ensaios – possa ser alcançado, e que o investimento da Fapesp nestes dois anos produza, ao fim e ao cabo, os frutos almejados.

São Paulo, 07/01/2015 ______Mateus Araújo Silva 49

5. Anexos

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5.1. Cópias de Certificados

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5.2. Cópias de Publicações