Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Letras

Silvina Julia Tomasini

O Brasil dos argentinos: os romances cariocas de Manuel Puig

Rio de Janeiro 2019 Silvina Julia Tomasini

O Brasil dos argentinos: os romances cariocas de Manuel Puig

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Estudos de Literatura.

Orientador: Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha

Rio de Janeiro 2019 CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA CEH/B

T655 Tomasini, Silvina Julia. O Brasil dos argentinos: os romances cariocas de Manuel Puig / Silvina Julia Tomasini. – 2019. 150 f.: il.

Orientador: João Cezar de Castro Rocha. Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras.

1. Puig, Manuel, 1932-1990 – Crítica e interpretação – Teses. 2. Puig, Manuel, 1932-1990. Sangue de amor correspondido – Teses. 3. Multilinguismo – Teses. 4. Linguística - Teses. I. Rocha, João Cezar de Castro. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.

CDU 860(82)-95

Bibliotecária: Eliane de Almeida Prata. CRB7 4578/94

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.

______Assinatura Data Silvina Julia Tomasini

O Brasil dos argentinos: os romances cariocas de Manuel Puig

Tese apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós- Graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Estudos de Literatura.

Aprovada em 29 de março de 2019.

Banca Examinadora:

______Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha (Orientador) Instituto de Letras - UERJ ______Profª. Dra. Maria Aparecida Salgueiro Instituto de Letras - UERJ ______Profª. Dra. Ieda Magri Instituto de Letras - UERJ ______

Prof. Dr. Karl Eric Schollhammer Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro ______Profª. Dra. Adriana Amante Universidade de Buenos Aires

Rio de Janeiro 2019 DEDICATÓRIA

À Clara, pelas tardes de cinema. AGRADECIMENTOS

A João Cezar de Castro Rocha por confiar em minha pesquisa e apoiar sempre meu trabalho. A Adriana Amante, da Universidade de Buenos Aires, e a Laura Demaría, da Universidade de Maryland. A Graciela Speranza por me apresentar Manuel Puig em suas aulas. A Graciela Goldchluk pela ajuda com o material do Arquivo Puig, e a Carlos Puig, por me permitir reproduzir aqui partes do arquivo. A professores, tradutores e escritores queridos que conheci no Brasil. Aos amigos daqui e de lá, Fábio, Leonardo, Jânderson, Katia, Marianna, Letícia e Clara. Aos meus pais.

No es posible hablar exclusivamente un idioma. Siempre que hablamos, hablamos sobre un transfondo, conocido o meramente intuido de una diversidad de lenguas. Solo podemos hablar porque nuestro idioma no está solo. Fabio Morábito

Cuando un escritor vuelve el oído hacia dentro, junto con la muerte, el miedo o, si tiene suerte, un vacío venturoso, se topa con la imposibilidad de ser auténtico, porque no hay nada definido con referencia a lo cual la autenticidad pueda evaluarse, salvo el abandono a lo que suponemos que no somos –un amante o la otredad de lo existente– y en realidad nos da el ser. Marcelo Cohen

RESUMO

TOMASINI, Silvina Julia. O Brasil dos argentinos: os romances cariocas de Manuel Puig. 2019. 150 f. Tese (Doutorado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Figura singularíssima na literatura argentina, e ao mesmo tempo indiscutivelmente canônico, Manuel Puig morou no Rio de Janeiro entre os anos de 1980 e 1989. Parte de uma linhagem de escritores argentinos que viajaram ou moraram no Brasil e que deixaram textos sobre o seu passo pelo país, Puig escreveu aqui dois de seus romances menos estudados e compreendidos: Sangre de amor correspondido (1982) e Cae la noche tropical (1987). Os textos “brasileiros” de autores argentinos estão começando a ser estudados com maior interesse nos últimos tempos. A partir deles é possível criar novos pontos de contato cultural entre ambos países e refletir sobre a longa e complexa relação cultural e linguística entre o Brasil e a Argentina. O que essa vivência brasileira representou nos últimos romances de Puig (este escritor experimental, que reuniu na sua obra literatura popular e sofisticação narrativa)? Fascinado pelo português do Brasil, experimentou nos romances brasileiros uma maneira única de articular a aproximação e distância entre nossas línguas, sobretudo em Sangue de amor correspondido, que foi escrita e publicada ao mesmo tempo em português e espanhol. Através de uma exaustiva análise do Archivo Puig será possível entender a complexa trama linguística deste romance.

Palavras-chave: Manuel Puig. Multilinguismo. Arquivo.

RESUMEN

TOMASINI, Silvina Julia. El Brasil de los argentinos: las novelas cariocas de Manuel Puig. 2019. 150 f. Tese (Doutorado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Figura singularísima de la literatura argentina, y al mismo tempo indiscutiblemente canónico, Manuel Puig vivió en Rio de Janeiro entre los años 1980 y 1989. Parte de un linaje de escritores argentinos que viajaron o vivieron en Brasil y que escribieron textos sobre su paso por el país, escribió aquí dos de sus novelas menos estudiadas y comprendidas: Sangre de amor correspondido (1982) y Cae la noche tropical (1987). Estos textos “brasileños” de autores argentinos están siendo estudiados con más interés por la crítica apenas en los últimos tiempos. Estos ayudan a crear nuevos puntos de contato cultural entre ambos países y reflexionar sobre la larga y compleja relación cultural y lingüística entre Brasil y Argentina. ¿Cómo está representada esa vivencia brasileña en los últimos romances de Puig (este escritor experimental, que reunió en su obra literatura popular y sofisticación narrativa)? Fascinado por el portugués de Brasil, experimentó en sus novelas brasileñas una manera única de articular la aproximación y distancia entre nuestras lenguas, sobre todo en Sangre de amor correspondido, que fue escrita y publicada al mismo tiempo en portugués y español. A través de un exhaustivo análisis del Archivo Puig será posible entender la compleja urdimbre lingüística de esta novela.

Palabras clave: Manuel Puig. Multilingüismo. Archivo.

ABSTRACT

TOMASINI, Silvina Julia. Brazil by Argentineans: Manuel Puig’s carioca novels. 2019. 150 f. Tese (Doutorado em Letras) - Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

Manuel Puig, a singular figure in Argentinean literature though canonical at the same time, lived in Rio de Janeiro between 1980 and 1989. He belongs to a group of Argentinean writers that travelled or lived in Brazil and wrote their impressions and thoughts on the country, since he wrote and published in Rio Sangre de amor correspondido (1982) and Cae la noche tropical (1987), his less studied and understood novels. These “brazilian” texts by Argentinean writers are recently being studied by critics from both countries, and their studies are creating new connections and opening new ways of thinking the large and complex cultural and linguistic relationship between Brazil and Argentina. How is this Brazilian life represented on Puig’s last novels? How did he work with Brazilian culture and language, being an experimental writer that mixed popular literature with narrative sofistication? Fascinated by Brazilian Portuguese, Puig made an experiment on his carioca novels combining, in a unique way, closeness and distance between our languages, especially in Sangre de amor correspondido, written and published simultaneously in Portuguese and Spanish. Through an extensive analysis of his archive it is possible to understand its linguistic structure.

Keywords: Manuel Puig. Multilinguism. Archive.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – O Rio de Janeiro de O. Girondo …………………………………………….... 28 Figura 2 – Fachada do prédio de Puig no Rio…………………………………………….. 58 Figura 3 – Puig no México………………………………………………………………... 84 Figura 4 – Exemplo da transcrição…………………………………………………...…... 90 Figura 5 – Conteúdo das fitas….……………………………………………..…...……… 91 Figura 6 – Papel avulso: pré-texto ……………………………………………………….. 92 Figura 7 – Lista de músicas ………………………………………….……………..…….. 93 Figura 8 – Músicas de Roberto Carlos…………………………………..………………... 94 Figura 9 – Indicações narrativas na margem …………………………………..………… 96 Figura 10 – Notas de número de fitas …………………………………………..………… 98 Figura 11 – Primeira folha da transcrição da entrevista……………...…………..………… 100 Figura 12 – Primeira versão em português ……………………………….………..……… 101 Figura 13 – Primeira versão em espanhol ………………………………...……..………… 102 Figura 14 – Dificuldade de compreensão ………………………………..………...……… 106 Figura 15 – Indecisões de tradução (I) ……………………………………………..……… 108 Figura 16 – Indecisões de tradução (II) …………………………………………...….…… 109 Figura 17 – Indecisões de tradução (III) ……………………………………...…………… 111 Figura 18 – Indecisões de tradução (IV) ……………………………………….….….…… 112 Figura 19 – Indecisões de tradução (V) ……………………………………..…………….. 112 Figura 20 – Espanhol de Cae la noche tropical...... ………………….……..…..... 125 Figura 21 – Montagem e articulação de temas e fitas……………………………....……… 140 Figura 22 – Entrevista: dinâmica da conversa ………………………………..…………… 142 Figura 23 – Entrevista fita B (I)………………...……………………………..…………… 143 Figura 24 – Entrevista fita B (II) …………….………………………………..…………… 144 Figura 25 – Entrevista fita B (III) …………….…….………………………..…………… 144 Figura 26 – Título tentativo e nome de autor ……….………………………….…..……… 146 Figura 27 – Nome de autor …………………………………………………….…..……… 148 Figura 28 – Notas de Cae la noche tropical …………………………………………….… 149 Figura 29 – Notas de Cae la noche tropical (II) ………………………………...………… 150 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO……………………………………………………………...……… 11 1 O BRASIL DOS ARGENTINOS………………………………………..………… 15 1.1 Transitar a alteridade: singularmente estrangeiros……………………..……..… 15 1.1.2 História de uma ideia…………………………….…………………………….…….. 18 1.2 Escritores argentinos viajantes, exilados e forasteiros no Brasil ………….…….. 23 1.2.1 A “escala” Rio: Sarmiento, Girondo, Arlt e Uhart…………………………….…….. 24 1.2.2 Corpo, língua e exílio: Néstor Perlongher e Manuel Puig………………………..….. 33 2 MANUEL PUIG: APROXIMAÇÕES E DISTÂNCIAS……………….……… 40 2.1 O trópico nos pampas: Cinema e literatura…………………………………….… 42 2.2 Cosmopolitismo à la Puig……………………………………………………...…… 50 2.3 O “ciclo americano”: I love NY (e DF e RJ) …...………………………….…… 53 3 SANGUE DE AMOR CORRESPONDIDO, UM ROMANCE BRASILEIRO….. 61 3.1 Aproximações e distâncias (II) ……………………………………….…………… 62 3.2 As línguas da história: Sangre e Sangue……………………………………..….… 74 3.3 As vozes do arquivo …………………………………………………………..….… 82 4 O FIM DO ROMANCE NA NOITE TROPICAL ……………………….….…… 118 4.1 Falar/fofocar……………………………………………………………...……….… 119 4.2 Aproximações e distâncias (III) ……………………………………………...……. 124 4.3 O escritor forasteiro……………………………...………………………………… 128 CONCLUSÃO……………………………….………………….…………..…….. 131 REFERÊNCIAS…………………………….….…………………………..……… 133 APÊNDICE……………………………………..………...……...…………...….… 140 11

INTRODUÇÃO

Trabalhar com a literatura de Manuel Puig propõe sempre vários desafios. Seus textos parecem estar sempre em constante transformação, como escapando da seriedade que lhe imprimem alguns discursos com os quais a crítica procura analisá-los: continuamente a literatura de Puig toca em questões teóricas, mas jamais se rende a elas. Por isso, há um momento nos textos críticos sobre Puig em que pareceriam estar falando em outra coisa, seu objeto se escapa, e quando querem abordar apenas uma questão de sua escrita acaba abordando as múltiplas questões que os textos abrem. Há sempre alguma coisa que não consegue se encaixar, um resto, um excesso. Como se a aventura, a aposta da escrita de Puig radicasse em um outro lugar. Como se seus textos estivessem sempre um pouco além dos conceitos e, é preciso se dizer, dos críticos. Ou, como demonstra Graciela Speranza na sua tese, um pouco além da literatura (2000). Sobretudo, porque o gesto crítico, em sua análise do material, imobiliza e destrói o fluxo das vozes que murmuram nos seus textos. Também, é difícil fazer crítica sobre Puig quando estamos sob o fascínio de sua escrita: este trabalho não escapará dos desejos (e, portanto, das imprecisões) de abranger os vários temas que propõe sua literatura, inclusive haverá um ressábio de decepção na leitura, como acontece com todos os estudos sobre Puig. Há um espaço na produção de Puig pouco analisado, e frequentemente marginalizado, que interessa especialmente a pesquisadoras e pesquisadores que estudam o trânsito entre o Brasil e Argentina (assim como pessoas dedicadas à tradução entre o português e o espanhol). Puig, na sua vida de viajante e ao mesmo tempo exilado, morou nove anos no Rio de Janeiro, o tempo máximo que permaneceu em um país fora da Argentina. O que pode nos contar a literatura de Puig sobre esta vivência? Há rastros “brasileiros” na escrita dele? Puig escreveu dois romances no Rio de Janeiro, Sangre de amor correspondido, publicado em 1982, e Cae la noche tropical, de 1987, além de peças de teatro e roteiros. Mas a literatura “brasileira” de Puig ainda não foi trabalhada da mesma forma que seus outros romances. Qual é a razão disso? No primeiro capítulo, veremos que muitos trabalhos de pesquisa estão sendo feitos nos últimos tempos em relação a escritores argentinos que atravessaram a fronteira e escreveram no 12

Brasil. Tanto do século XIX quanto do século XX, e até do século XXI. Sabemos que as fronteiras nacionais nunca foram uma barreira para a literatura, que na leitura de escritores e tradutores e críticos, a literatura brasileira e a argentina dialogam e se enriquecem mutuamente, embora haja tanto desconhecimento e falta de atenção a nossas literaturas nos grandes circuitos do mercado editorial e da academia. Também veremos quanto deste suposto desconhecimento e afastamento dos países está relacionado com percepções da língua. Cada vez mais, o trabalho de escritores, críticos e tradutores está repensando a articulação “literária” entre o Brasil e a Argentina. Esta tese faz parte desses trabalhos, mas sem deixar de apontar que houve e ainda há a invisibilização simbólica de anteriores aproximações em trabalhos de tradução e de escrita. Veremos em detalhe esta questão no capítulo um através de uma sorte de mapa que acompanha o périplo de escritores argentinos no Brasil: Sarmiento, Girondo, Arlt, Uhart, Perlongher, Puig... Os textos que escreveram no Brasil estão recebendo agora seus estudos críticos. O segundo capítulo funciona também como segunda parte: começa o “viver entre línguas” de Manuel Puig. A partir desse momento, o trabalho aborda alguns romances de Puig em uma sorte de colagem (para depois se centrar nos romances brasileiros). Há limitações de tempo e espaço: a proposta é a análise de apenas os livros que não receberam muita importância na crítica, e, neles, analisar questões que também não foram analisadas muito: a língua, mas sobretudo o português. No segundo capítulo, o texto centra-se sobretudo na mistura literariamente produtiva de cinema e literatura, a fundação de um mito de escritor na construção do seu primeiro romance La traición de Rita Hayworth, e logo mais, o trabalho em Boquitas pintadas e sua vontade experimental nunca separada dos gêneros populares. Também analisaremos a importância das línguas na sua formação como escritor (embora ele estivesse se formando como cineasta), e a relação com os lugares onde morou: começando pela cidade na que nasceu, General Villegas, até a Cuernavaca, no México, onde morreu, passando por Buenos Aires, Nova Iorque e, claro, o Rio de Janeiro. Todas cidades onde teve experiências e aprendizagens linguísticas que fizeram dele um escritor cosmopolita muito particular. No terceiro capítulo, entramos em Sangre de amor correspondido, o primeiro romance brasileiro. Logicamente, o título nos remete também ao amor, que em Puig será uma paixão pelo Brasil e pelo português brasileiro –sem dúvidas, o motor da escrita do romance. 13

Trata-se do capítulo mais longo: como colocou César Aira, Sangre de amor correspondido é o romance que foi a culminação do seu gênio (1990) porque trabalhou, em português, a voz do outro em uma máxima aproximação enquanto tecia a própria escrita. Puig entrevista um brasileiro e faz gravações. A partir delas, escreve seu romance em português e espanhol e o resultado é um texto tão excessivo quanto deslumbrante em tanto continuação e aperfeiçoamento das técnicas narrativas de Puig, que, desta vez, incluem a tradução. Para estudar melhor a construção do romance, entraremos no arquivo Puig e analisaremos a partir do material como foi o processo de tradução. Não é a intenção neste ponto do capítulo, propor as práticas tradutórias de Puig como uma forma viável de traduzir (de fato, o que ele faz pode ser considerado um exercício pouco profissional no campo da tradução), mas ver sim que operações Puig faz na tradução que desestabilizam noções básicas da teoria da tradução, ao mesmo tempo que faz a mesma coisa com a categoria de autor. É nessa articulação entre tradução e criação literária que a tese encontra seu lugar de enunciação. No quarto capítulo, veremos como Cae la noche tropical apresenta uma outra forma de articular a distância e a aproximação que caracterizam não só os romances de Puig, mas também a relação entre o Brasil e a Argentina. Neste sentido, veremos que os dois romances são duas respostas literárias diferentes à sua vida no Brasil. Também, estudaremos seus romances cariocas em relação com sua vida no Rio. Esta tese procura de alguma forma refazer esse seu percurso aproximando-se da figura do escritor, não para obter deduções inúteis através de biografismos, mas para dar conta de uma escrita que, como toda escrita de vanguarda, articulou vida e literatura (ou cinema). É uma forma, também, do texto não ser alheio ao enorme atrativo narrativo da própria vida de Manuel Puig. A escrita de Puig é um exercício (melhor: é um posicionamento) da palavra em presente contínuo. Como pegar as palavras que se desfazem nas cartas entre Nené e Juan Carlos no final de Boquitas pintadas? O interesse que guia este trabalho é o de marcar uma interrogação, apontar para uma indecisão, talvez uma ambiguidade, que seja produtiva para pensar a literatura de Puig e também a relação entre o português e o espanhol nas nossas literaturas. Mas, de todo modo, pretende não deixar de apontar para uma fluidez dos textos de Puig, sem tentar cancelá-los nem fixá-los em conceitos teóricos. Finalmente, uma pergunta e sua possível resposta que sempre guiaram este trabalho e, espero que quem leia a tenha presente tanto quanto esteve na escrita, é por que continuar falando 14

em Manuel Puig? O que adicionar às teses, livros, colóquios, filmes que abordaram seus textos e sua vida? Por um lado, porque esta tese pretende fazer (humildemente) o percurso puiguiano e chegar no Rio, para que as ideias do texto (que é mesmo um tecido entre duas línguas) sejam discutidas no trânsito entre os dois países, e possa circular na academia brasileira, e não em uma academia argentina saturada de textos de Puig. Por outro lado, porque no trabalho de Puig há uma interessante maneira de diálogo entre o Brasil e a Argentina na forma em que desarticula criativamente preconceitos e limitações. Por último, se vale a pena continuar estudando Manuel Puig é porque ainda tem muito a dizer em seu intenso e excessivo trabalho com a voz que é, em definitiva, uma enorme e sensível reflexão sobre .

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1 O BRASIL DOS ARGENTINOS

1.1 Transitar a alteridade: singularmente estrangeiros

Mesmo atravessando a fronteira, para nós, argentinos, o Brasil parece distante, como se somente pudéssemos imaginá-lo. A ideia do Brasil, de sua cultura e sua língua, constrói una verdadeira geografia imaginária que desenha um mapa desejante, de pura natureza e língua musical. Porém, a cultura e língua brasileiras evocam uma “estranha estrangeria”: em um primeiro momento, atravessar a fronteira e transitar do outro lado parece fácil. Logo depois aquilo que parecia tão transparente torna-se mais opaco. As variações marcam diferenças que primeiro nos encantam mas, afinal, falar português não é tão fácil e os costumes dos brasileiros não são tão similares. Naquela hesitação entre o familiar e a perda de familiaridade encontram-se várias das ideias e preconceitos que povoam nossas “imaginações”. Muitas vezes, quando a distância crítica não se estabelece, não há (verdadeira) observação do outro mas representações prévias – positivas ou negativas– da cultura. Dessa forma, fazemos do nosso intercâmbio um depósito de utopias e distopias. Logicamente, esta construção é feita também dos cruzamentos reais: o diálogo cultural e intelectual entre os países é constante, e se materializa em um interesse sempre renovado nos sucessivos projetos de pesquisa, de escrita e, sobretudo, de tradução. Mas mesmo nesses cenários podemos encontrar também estas lógicas imaginárias. Além do tropicalismo brasileiro e do europeísmo argentino, e todos os outros estereótipos que nos soam familiares (“matrizes identitárias simbólicas brasileiras e argentinas elaboradas, consolidadas e internalizadas”, como afirma Gustavo Ribeiro Lins em Argentinos e brasileiros (2002, p. 3)), há uma outra série de lugares-comuns que adquirem a forma de uma eterna reflexão, pois para os países de língua espanhola no lugar do Brasil sempre parece haver uma pergunta: Por que não nos conhecemos? Por que, sendo tão próximos geográfica e culturalmente, não conhecemos mais da cultura brasileira? Isso se traduz no âmbito literário em perguntas do tipo: Por que não nos lemos? Por que o Brasil ainda ocupa um lugar marginal na– circulação e nos espaços de consagração da 16

literatura latino-americana? Será a literatura brasileira, como mencionou o escritor Sérgio Rodrigues, uma literatura que permanece escondida, que continua sendo o segredo melhor guardado da literatura latino-americana?1. Neste sentido, proponho pensar em uma outra pergunta que seja, talvez, mais produtiva: Como esta alteridade tão familiar transita na literatura? A distância e o desconhecimento mútuo colocam-se como um problema para ser resolvido por meio de “pontes”, “laços”, “cruzamentos” que visam superar a “distância”, a “barreira”, a “fronteira”, o “abismo”. Uma miríade de metáforas são utilizadas uma e outra vez para descrever o fenômeno. Empreitadas editoriais, acadêmicas e literárias procuraram fazer estes laços. O Mercosul em grande parte trouxe um interesse pelas relações culturais (que nunca alcançaram imitar a força das relações comerciais) ao que se juntou um crescimento econômico do Brasil que augurava um desenvolvimento inusitado e uma visibilização da sua cultura no mundo. Há inúmeros exemplos de diálogos entre o Brasil e a Argentina dentro da literatura e dos estudos literários, como a relevância que o trabalho de Raúl Antelo e Antonio Candido tiveram na crítica literária latino-americana, o diálogo com Ángel Rama ou Beatriz Sarlo, as traduções de Manuel Bandeira, as viagens e escritos de Mário de Andrade, Silviano Santiago, etc., assim como as viagens de escritores ou intelectuais argentinos para o Brasil, que comentarei mais adiante. Somente nas últimas décadas há uma longa lista de trabalhos, projetos e eventos que (ao longo da primeira década do século XXI) foram criados na Argentina envolvendo pesquisadores, tradutores e escritores argentinos. Para citar alguns deles, foi relevante trabalho dos críticos literários e professores Raúl Antelo, Adriana Amante, Florencia Garramuño, Gonzalo Aguilar, Marcela Croce, Daniel Link e Eduardo Muslip (com trabalhos publicados ao longo do século XXI). A coleção “Vereda Brasil” da editora Corregidor, a revista de artes e literatura Grumo, etc. Muitos destes trabalhos se apresentam como auxílios ante uma sensação de “falta”, um vazio que há entre os países, uma insuficiência que deve ser corrigida. E se fôssemos pela via positiva? Isto é, discutir fora da ideia de ausência e da necessidade de criar mais pontes, procurando o que efetivamente existe e não o que deveria existir? Pois muitas vezes o que já existe é invisibilizado, dando espaço a novas empreitadas editoriais alentadas pela ideia de que não há e é preciso fazer novas aproximações (em breve tocarei neste interessante fenômeno que podemos ver muito claramente no campo da tradução).

1 Frase recolhida do discurso de recebimento do Prêmio Portugal Telecom, Rio de Janeiro, no dia 9/12/2014. 17

No seu já clássico artigo “Abaixo, Tordesilhas!”, Jorge Schwartz recolhe, na história do século XX, o gesto de vários críticos literários em prol da eliminação imaginária da linha de Tordesilhas, ao redor daqueles “projetos que fazem de América Latina um corpus cultural unificado, nele incluído o português” (1994, p. 196). Como outros críticos, Schwartz corrobora a ideia da diferença linguística como “uma das barreiras que afastaram o leitor hispânico das obras escritas em português” (p. 186). Não é incomum que a diferença linguística se desenhe acima da fronteira espacial. Mas não se trataria de um contrassenso? Como é que a mesma língua virou uma das principais culpadas da construção da fronteira e do nosso desencontro? Em um importante trabalho sobre o estudo do espanhol no Brasil2, a linguista argentina Maite Celada esclarece como a percepção das nossas línguas tem muito a dizer sobre o estudo delas (e, adiciono, a recepção das nossas literaturas). No Brasil, propõe a pesquisadora, a semelhança do espanhol com o português criou a ideia de que ela dispensaria o estudo da língua (2002, p. 12). Isso tornou-se uma “interpretação” da língua espanhola, uma discursividade que adquiriu a consistência de estereótipo. Em nome da semelhança, o espanhol acabou reduzido a uma mera “nomenclatura” de palavras diferentes do português, cujo domínio asseguraria o domínio da língua. O mesmo fenômeno é perceptível na Argentina em relação ao português. Celada propõe um caminho interessante para pensar a relação que o brasileiro tem com o espanhol, estudando o que ela chama de “ilusão de competência espontânea”:

A proximidade linguística e o modo como esta foi tratada historicamente propiciam uma posição pela qual o sujeito do aprendizado sente-se no direito de apropriar-se espontânea e imediatamente da língua do outro. A proximidade, portanto, possibilitaria uma “ilusão de competência” sobre a outra língua [...] comete-se um excesso de confiança no funcionamento transparente da cultura estrangeira, sem mostrar a mais leve suspeita sobre a resistência ou opacidade que, de nossa perspectiva, implica a “alteridade discursiva (CELADA, 2002, p. 42).

Na sua tese, Celada chama o espanhol de língua singularmente estrangeira. Para a pesquisadora, o “estranho” surge na perda da promessa da facilidade de aprendizagem da língua. Afinal, não era tão transparente nem tão fácil. Segundo sua análise, essa perda resulta em uma profunda frustração.

2 A Tese de doutorado de Maite Celada, apresentada na UNICAMP no ano de 2002, leva o título de O espanhol para o brasileiro. Uma língua singularmente estrangeira. 18

A língua constitui uma das questões mais importantes e ao mesmo tempo “obstaculizadoras” na relação cultural entre o Brasil e a Argentina e na circulação das suas literaturas. E isso por razões que não se relacionam com o simples fato de se tratarem de duas línguas estrangeiras, mas por serem “singularmente” estrangeiras. Tal barreira está dada pela história da representação e a discursividade que essas línguas têm no interior das duas culturas. Daí, se pudermos entender as nuances, as complexidades da recepção e da discursividade sobre a língua portuguesa e espanhola em cada país, entenderemos a circulação da cultura e da literatura. Garramuño e Amante tocam nesse ponto:

La cercanía entre el portugués y el español ha generado – al margen de intercambios interesantes– un equívoco que consideramos improductivo: suponer que el acceso al universo lingüístico y conceptual del portugués es inmediato y automáticamente posible. Eso, antes que un acercamiento frecuente a la producción brasileña, ha generado desconocimiento y desatención reales (AMANTE; GARRAMUÑO, 2000, p. 14).

É preciso repensar a alteridade linguística considerando a singularidade da nossa estrangeria. Isto é, materializar estruturas que antes de mais nada permitam a circulação da palavra para estranhar-nos e expor-nos à língua do outro, a uma cultura na qual nos reconhecemos e que ao mesmo tempo nos interpela e questiona.

1.1.2 História de uma ideia

A relação entre o Brasil e a Argentina dentro do sistema de traduções é complexa e, por vezes, enigmática. Entender o fenômeno requer um estudo interdisciplinar, que envolva da sociolinguística aos estudos literários, passando pela história do livro e das ideias. Por que os pesquisadores, editores e leitores voltam sempre à ideia de que não nos conhecemos, afirmando que seria importante traduzir mais e promover mais aproximações? De onde vem essa ideia de desconhecimento de longa data? Através do estudo da tradução da literatura brasileira e dos agentes que transitaram e transitam entre as duas culturas podemos responder melhor essa pergunta e refletir sobre questões de nacionalidade, alteridade, diferenciação e integração política, econômica e cultural. 19

“La relación literaria entre Brasil y Argentina ha sido, durante su larga historia, un vínculo oscilante de encuentros y desencuentros”, escreve Marina Moguillansky na apresentação do livro Passo de Guanxuma, sobre os intercâmbios culturais Brasil-Argentina (2009, p. 203). Produto de uma série de conferências na Universidad de General Sarmiento em Buenos Aires, realizadas no ano de 2009, o livro propõe uma “negociação” entre as representações prévias e o “estímulo concreto” através de viagens, experiências pessoais e profissionais. Na verdade, há uma longa história de aproximações materializadas em forma de traduções, diálogos e encontros, mas são as distâncias simbólicas as que parecem prevalecer. O que gera essas distâncias simbólicas que invisibilizam as efetivas aproximações materiais e criam dois sistemas literários que parecem funcionar muito distanciados? As representações da língua portuguesa e espanhola, as ideias preconcebidas sobre essas línguas (ideias de prestígio, dificuldade, clareza ou semelhança) e a circulação das nossas literaturas em relação com essas ideias (em língua portuguesa/em língua espanhola) permeiam nossas relações e a forma pela qual estabelecemos diálogos culturais e literários. Em um trabalho pioneiro, Traducir el Brasil, o antropólogo argentino Gustavo Sorá se debruçou sobre esta relação no mundo editorial argentino e chegou a hipóteses muito pertinentes e ousadas. Ao estudar a tradução de literatura brasileira no país, Sorá percebeu que as numerosas traduções desta literatura eram quase “invisíveis” tanto na Argentina quanto no Brasil para os leitores e escritores, inclusive para os mesmos autores brasileiros que tinham sido traduzidos. Ao longo do século XX (e não é muito diferente no XXI), a tradução de literatura brasileira para o espanhol ficou capturada em uma dinâmica muito particular: criação de projetos de traduções seguidos por uma invisibilização, o que, por sua vez, gera novas empresas de tradução. Essa dinâmica tem sua base na ideia, discutida aqui anteriormente, do “desconhecimento” do Brasil na Argentina, que atravessa a história das nossas relações. A ideia consiste em que não é suficiente o que se faz para a divulgação da cultura brasileira no nosso país, pois ainda assim sua literatura permanece desconhecida. Esta ideia foi capaz de promover grandes esforços em prol da tradução, mas ao mesmo tempo e pela intensidade da sua força, acabou invisibilizando a nada desprezível quantidade de literatura brasileira traduzida. O pesquisador traz um dado fundamental: a Argentina foi “casi en igual grado que París, el lugar donde más se tradujo y editó a autores brasileños” (2003, p. 23). 20

O antropólogo realizou uma historização minuciosa desse fenômeno e encontra em uma declaração do diplomata argentino Martín García Mérou, de 1900, um ponto de partida para pensar esta problemática, assim como sua própria pesquisa. Mérou, que nos finais do século XIX, representou a Argentina no Rio de Janeiro, publicou El Brasil intelectual, um estudo sobre literatura brasileira cuja origem se encontra, segundo o próprio autor, no fato de que, das literaturas sul-americanas, ela era a menos conhecida. Sorá encontra nesse livro uma fórmula que poderíamos chamar de fundacional da ideia que rege a recepção da literatura brasileira na Argentina:

Denomino “fórmula Mérou” a un esquema de pensamiento que atraviesa la historia cultural argentina y postula el “desconocimiento del Brasil” al tiempo que impulsa acciones para revertir tal situación. Tal vez motivados por el afán de perseguir ese vacío, a lo largo del siglo XX críticos, traductores, escritores, editores realizaron variadas acciones que generaron la acumulación de un significativo fondo de autores brasileños publicados en Argentina (2003, p. 21).

O porquê e a história desse “esquema de pensamento” encontra suas raízes no século XIX. Mas é na primeira metade do século XX que, segundo Sorá, desenvolvem-se “los diferentes principios que organizaron las prácticas de traducción” (2003, p. 69). Ao longo da segunda metade do século XIX, a literatura brasileira apareceu em algumas matérias e escritos avulsos dos argentinos, primeiro dos exilados, posteriormente dos diplomatas que viajavam como representantes da recente república. Mas só em 1886 houve um estudo sistematizado da literatura brasileira, já em um contexto do que se chamou a “Geração de 80”. Garcia Mérou começa a publicar El Brasil intelectual em uma série de ensaios em La Biblioteca, revista dirigida pelo franco-argentino Paul Groussac, e dentro do seu trabalho como diplomata do governo de Julio Argentino Roca. É publicado em forma de livro em 1900, no contexto da primeira visita de um presidente republicano brasileiro: Manuel de Campos Sales. Perto das comemorações do “Centenario de la Revolución de Mayo de 1810”, o Brasil já não era para os intelectuais argentinos um país que lhes servia para pensar sua própria nação, como foi para os românticos (como comentarei em breve). Emerge pela primeira vez “como referencia de alteridad fundamental” (SORA, 2003, p. 85) ao existir um estudo da literatura brasileira em comparação com a história das instituições argentinas. É importante destacar que naquele momento os “representantes” da cultura brasileira na Argentina eram diplomatas ou 21

políticos. Depois, essa tarefa foi feita por intelectuais, críticos literários, escritores, tradutores, jornalistas. A “fórmula Mérou”, explica Sorá, espelha-se em outra fórmula que a complementa e valida, que o antropólogo encontra no crítico brasileiro Brito Broca. Em A vida literária no Brasil-1900, Broca escrevia que a ficção brasileira ainda não tinha sido publicada em castelhano. Sorá contrapõe a esta ideia o fato de a biblioteca La Nación de Buenos Aires ter publicado títulos de autores brasileiros já na primeira década do século XX. Dessa maneira, a “fórmula Mérou” de desconhecimento do Brasil e posterior empreitada de tradução se complementa com a fórmula Broca de invisibilizacão destas realizações. As crenças representadas nas fórmulas são tão fortes e enraizadas, que ainda hoje vemos essa mesma dinâmica. Sorá analisa os agentes culturais que tornaram possível a publicação e circulação da literatura brasileira: os editores e os tradutores, e os mesmos escritores, representantes da cultura brasileira que tanto trabalharam na divulgação e na criação de uma memória editorial da literatura brasileira. Mas, “a pesar de tanta materia, en el plano de la creencia todo pasa como si poco o nada hubiera sucedido en la formación argentina de un fondo de literatura brasileña” (SORA, 2003, p. 185). Nos anos de 1990 começa uma nova fase, a de “internacionalização”. O Mercosul parecia ter aberto finalmente a porta para a língua portuguesa e a literatura brasileira na Argentina. Vários anos depois, contudo, sabemos que não é bem o caso. Sorá analisa a verdadeira “aduana” das nossas literaturas: Frankfurt. Por outro lado, as leis do mercado apontam para a produção em língua inglesa, e a literatura em português perde atrativo. O caminho dos livros acaba sendo muito mais longo para atravessar uma distancia tão curta como a do Brasil com a Argentina. Eis um ponto importantíssimo: a Feira de Frankfurt e o idioma inglês nos afastam e triangulam as nossas relações. Quanto do preconceito entre nós tem a ver com a triangulação e a importância de línguas como o francês e o inglês por cima do espanhol e o português? A ideia de que é possível dominá-lo sem estudo ou exposição à língua é concomitante à ideia de que há línguas prestigiosas, centrais e línguas periféricas, como as nossas. Essa ideia é tão forte que provoca dois fenômenos: por um lado, apesar da enorme importância da literatura argentina para o Brasil, ela não se materializa em traduções nem edições no Brasil nem no interesse do aprendizado do espanhol por parte dos intelectuais (os editores falam que não vendem, os tradutores do espanhol muitas vezes não dominam a língua). Por outro lado, a pouca circulação 22

da literatura brasileira na Argentina, a falta de especialização e formação em português para tradutores, a escassa quantidade de tradutores literários do português em relação com outras línguas. Os escritores brasileiros costumam dizer que o português, como língua periférica, é a causa do desconhecimento mundial da sua literatura (mas quanto não tem de periférico o espanhol?). Em aberta e óbvia derrota para o espanhol, o português seria para o resto do mundo uma língua isolada e constantemente confundida com o espanhol, o que levanta certas polêmicas e desconfianças internas entre os falantes dessas duas línguas (basta ver o que acontece nas comunidades latinas nos Estados Unidos). Porém, como pensar o português em relação com o espanhol dentro da América Latina? Como uma língua tão semelhante pode ser a causa da distância cultural? 3 Uma das hipóteses mais interessantes levantadas pelo livro de Sorá consiste em entender que a relação Brasil-Argentina se dá triangularmente com os países “centrais”; dessa forma, esses países “parecen negar sus relaciones culturales en virtud del privilegio de su reconocimiento en los países centrales, especialmente en Europa occidental.” (SORA, 2003, p. 24). A relação entre os dois países não se dá em forma direta e, por isso, acabam se olhando com desconfiança perante a competição pelo mesmo espaço. Mas o que acontece quando pensamos as relações entre nós(otros)? É possível pensar o espanhol e o português além da nossa relação com o inglês ou o francês (e o mercado)? Quando brasileiros ou argentinos culpabilizamos a língua como “barreira” para nosso (des)conhecimento mútuo, deveríamos culpar o mercado e especialmente nossas próprias práticas

3 Em 2016, a FIL Guadalajara convidou, como o faz nas suas edições, um grupo de escritores brasileiros que fazem parte de uma programação especial, “Destinación Brasil”. É inevitável que surja o tema do que separa os escritores brasileiros do resto dos latino-americanos. A autora Caroline Rodrigues disse, em um post do dia 12 de dezembro de 2016 no seu Facebook, ter “invejinha do idioma que transcende e das suas literaturas navegantes, inveja boa, inveja potente, latinidade é tão mais legal”. É interessante ver como o escritor brasileiro se posiciona por fora do que quer que seja a “latinidade”, ou “América Latina”, ou, pior ainda, os “latinos”. Então, eu me faço algumas perguntas: Quanto nessa observação há de ideia importada sobre o espanhol como “o latino”, em sua perigosa forma de unir, misturar e dissolver aquilo que não está tão unido assim? Quanto há de uma ideia de um (inexistente) espanhol único, claro para todos os milhões de falantes da língua – o que é um tema importantíssimo para a tradução da literatura brasileira mas que não parece mostrar quase relevância nenhuma nem para os escritores, nem agentes literários nem editoras brasileiras. E, finalmente, quanto há de um mercado que criou para o exterior o conceito de um “boom latino-americano” e que deixou de lado o Brasil? Ou seja: há a falta de sistemas de consagração conjuntos que permitam desenvolver um mercado mais inclusivo ao invés de competirmos pelo mesmo mercado estrangeiro, em uma rivalidade que acaba naturalizando a importância das literaturas em línguas inglesas ou francesas e constrói as literaturas em português ou espanhol como sistemas literários distantes e cuja tradução ocupa um lugar muito menor no sistema de traduções nacionais.

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e preconceitos em relação com a língua do outro. Talvez ainda não saibamos bem como construir nossa alteridade de outra forma, como transitar nossas línguas sem sair dos “lugares-comuns” gerados ao longo de dois séculos de imaginação, competitividade e desconfiança do outro. O esforço de construirmos “pontes” deve estar em encontrar formas de fazer nossas línguas circularem de maneiras mais criativas, e mais atentas. Esta é a proposta deste trabalho, concomitante a meu trabalho como tradutora de literatura brasileira: estudar as escritas que transitaram a alteridade linguística e cultural de formas menos preconceituosas e estereotipadas, como o fez a literatura de Manuel Puig, que em Sangre de amor correspondido (1982) consegue construir um diálogo criativo e único entre elas em um trabalho de experimentação linguística e literária. A esse seu primeiro romance escrito no Rio de Janeiro e ao segundo, em menor medida, Cae la noche tropical (1987) estará dedicada esta tese.

1.2 Escritores argentinos viajantes, exilados e forasteiros no Brasil

Além de um clássico roteiro turístico, para o Brasil também foi, e continua sendo, um roteiro literário. Não poucas vezes foi um roteiro de exílio. Muitos escritores argentinos escreveram de viagem ou no exílio no Brasil: dos poetas românticos até a contista e cronista Hebe Uhart passando por Sarmiento, Juana Manso, Miguel Cané, Roberto Arlt, Bioy Casares, Sarah Gallardo, Tulio Carella, Manuel Puig, e Néstor Perlongher, entre outros. Eles atravessaram a fronteira e desenharam formas de narrar o Brasil, traduzindo em literatura suas experiências entre línguas e culturas. Em alguns casos, escreveram textos breves, em outros, fizeram do Brasil um espaço literário relevante na sua própria obra, entretecendo nela uma verdadeira “poética da distância”. Como soa nosso espanhol de longe? Como ecoa nosso espanhol no português? Que sons e imagens nos devolve essa língua? A passagem pelo Brasil pode ser muito produtiva. Há interessantíssimas formas nas quais alguns escritores fizeram este trânsito, e que gerou textos que fazem parte de um projeto estético maior. Nesses escritos encontramos momentos de encantamento e desencantamento, momentos de tensão e separação, assim como várias reflexões sobre a cultura de origem. Se bem 24

encontramos vários episódios similares, há também certas construções e imagens que desafiam os lugares comuns ou que os retrabalham em outra chave. Se o Rio de Janeiro foi muitas vezes uma cidade onde os viajantes argentinos faziam escala antes de encarar para Europa, o mesmo aconteceu com a crítica literária em relação com o lugar do Brasil na produção literária argentina: foi reduzido a escala, a “nota al pasar”, anedota. Esta passagem, e os escritos que ela gerou, quase não receberam atenção da crítica até recentemente. Pois estes textos não são apenas anotações ao correr da pena, ou notas culturais; são escritos que dialogam com a própria obra dos autores e fazem parte dela não tão marginalmente. A crítica já tem começado a chamar a atenção para eles, redescobrindo um olhar estético, poético e político.

1.2.1 A “escala” Rio: Sarmiento, Girondo, Arlt e Uhart

“La idea de paisaje denota siempre un escenario y un espectador; una serie de valores que el espectador deposita en el escenario y una serie de técnicas desarrolladas para representarlo o constituirlo según su propia mirada”, afirmam Silvestri e Aliata no belo e imprescindível El paisaje en el arte y las ciencias humanas (1994, p. 12). A contemplação da Bahia de Guanabara, por trazer um exemplo da paisagem carioca, provocou nos escritores argentinos textos muito diferentes. Se no conceito mesmo de “paisagem” encontramos esta dinâmica particular entre dentro e fora, como mencionamos na citação, da mesma forma há uma articulação da paisagem com projeto literário nos textos dos escritores argentinos no Rio. Em 1846, Domingo Faustino Sarmiento viaja para o Rio de Janeiro na sua primeira viagem a Europa e Estados Unidos. Sarmiento é um exilado da Argentina federal (e perigosamente inimiga para um unitário como ele) de Juan Manuel de Rosas. Havia alguns anos que estava morando no Chile, onde tinha um cargo/posto no Ministério de Educação, e foi enviado em uma missão pedagógica. Sarmiento sai de Santiago, passando pelo Montevidéu, e no Rio se reencontra com outros intelectuais exilados, que moravam no Brasil. A produção dos exilados na época de Rosas só recebe uma completa aproximação na primeira década do século XXI no trabalho da crítica Adriana Amante em sua tese de doutorado sobre os primeiros 25

“cronistas” argentinos da vida brasileira. Em Poéticas y políticas del destierro, Amante, ela mesma quase uma cronista como aponta Sylvia Molloy no prólogo, analisa as vidas e a produção de Juan María Gutiérrez, Juana Manso, José Mármol e Sarmiento, alguns dos mais importantes nomes das letras argentinas do século XIX, que se encontram no Brasil no marco do exílio4. Brasil é “un punto en la cartografia de la fuga” (AMANTE, 2009, p. 41), onde os românticos não só vão se reencontrar, mas também continuarão pensando a própria pátria. Longe das viagens de prazer às quais o Brasil estará relacionado no imaginário argentino, a viagem de exílio dos argentinos impus suas restrições e sua própria enunciação, e superpus na observação e a troca cultural a urgência dos planos políticos para a construção política e fundação literária da nação. As viagens dos exilados argentinos para o Brasil foram úteis para dar forma a sua própria nação, hipótese central do livro de Amante, quem afirma que para esses exilados “estar afuera es seguir pensando la nación perdida” (p. 40). “El exiliado piensa la patria de los otros para seguir pensando en su propia patria”, sugere Amante (p. 30), e [neste sentido] a relação entre a paisagem e a construção da nação será de muita importância, como veremos. Os exilados argentinos escreveram e refletiram sobre política brasileira, o que lhes deu a oportunidade de pensar sua própria pátria, mesmo para pensar projetos opostos, definindo nos trópicos, pelo avesso, seu projeto de nação. Enquanto os brasileiros buscavam uma “postulación de un Brasil sólo naturaleza […] persiguen la imagen de una civilización asociada a los espacios urbanos que les permita desfundar la Argentina sólo naturaleza” (AMANTE, 2009, p. 45). No Rio, Sarmiento encontra José Marmol, quem em seu longo poema Cantos del peregrino, dedica-se à empresa da configuração do espaço “como paisaje estética y políticamente productivo que se imbrica con el discurso de la patria perdida” (AMANTE, 2009, p. 43). Assim, a paisagem carioca se recorta sobre a paisagem dos pampas para um portenho “cuya mirada está habituada a sumergirse en los horizontes […] son una novedad, sin duda, las montañas que hacen alzar su cabeza sobre los valles de Brasil.” (MARMOL apud AMANTE, p. 388). Como Echeverría e Alberdi, continua Amante, Mármol pertence à geração romântica, que encontra na paisagem vertical a verdadeira força sublime da natureza mais do que a paisagem da planície. “Bellos, fantásticos paisajes”, exclama Sarmiento na sua carta do dia 20 de fevereiro de 1846. O trópico, tão diferente do pampa, não deixa de ser uma paisagem esteticamente produtiva:

4 Exílio ao que foram obrigados os escritores e intelectuais “unitários” pelo segundo governo de Juan Manuel de Rosas (1835-1852). 26

os escritores românticos argentinos veem nos pampas o pampa bárbaro de Rosas, o espaço tendente a governos despóticos, aquilo que deve ser civilizado (p. 390). Nos trópicos, pelo contrário, trata-se de uma profusão de sensações e maravilha que, como bem coloca Amante, acabam com a necessidade de controle da paisagem (o pampa indómito e bárbaro) com o controle de si próprio, pois Sarmiento diz estar aturdido: “Paséome atónito por los alrededores de Río de Janeiro, y a cada detalle del espectáculo, siento que mis facultades de sentir no alcanzan a abarcar tantas maravillas” (1993, p. 60). Ao que se segue uma belíssima e dramática descrição do Corcovado:

el Corcovado, inmenso fragmento de granito que se avanza de una manera amenazante sobre la línea perpendicular, como si el núcleo de la montaña hubiese querido sacar la cabeza en medio de las convulsiones de la agonia, a respirar el aire libre, sofocado por las masas de vegetación, yerbas, arbustos, árboles, enredaderas, amontonadas, superpuestas, intrincadas e impenetrables que la cubren, desde la base hasta los cuatro quintos de su elevación total. (p. 61)

O entorno tropical o desarticula: “es reveladora esta imagen sarmientina: se lo ve agotado, excitado, fuera de sí”, afirma Amante (p. 28). Nas sua cartas não deixa de falar do “inefable deleite”, ou o “entusiasmo casi delirante”. Os textos de Sarmiento (como seu Facundo, que está levando para Europa), são pura corporalidade, como o relato da sua passagem pelo Rio:

Son las seis de la mañana apenas, mi querido amigo, y ya estoy postrado, deshecho, como queda nuestra pobre organización cuando se ha aventurado más allá del límite permitido de los goces. El sol está ahí ya, en el borde del horizonte, escudriñando los más recónditos recesos de este cráter abierto en cuyo interior está fundada Río de Janeiro [...] Después de veinte días de residencia en esta ciudad, permanezco inmóvil, los brazos tendidos, las fibras sin elasticidad, agobiado bajo la influencia letárgica (1993, p. 56/57)

A paisagem carioca é construída com as árvores, os jardins, os morros. A urbe não chama a atenção do viajante, não é mais interessante do que a natureza. O que ela tem de europeu, ele prefere ver na Europa. Mesmo não conhecendo o Velho Continente, Sarmiento escreve como se fosse o mais cosmopolita dos argentinos (essa operação tão sarmientina), considera a cidade uma cópia do que prefere ver no original. Como se pudesse separar os elementos da cidade, opta por falar do morro, do verde. E do sol, claro. Mas, como sabemos, a paisagem muda segundo o observador e já no século XX, Oliverio Girondo faz da Bahia de Guanabara uma coisa totalmente diferente e radicalmente nova que acaba de vez com o olhar romântico da natureza na literatura. 27

Em 1920, Girondo chega ao Rio. Não é nem a primeira nem a última viagem que faz para o Brasil. Mas daquela vez, ali escreveu um dos vinte famosíssimos poemas para ler no bonde, seu primeiro livro. Publicado em 1922, 20 poemas para ser leídos en el tranvia reúne poemas de diferentes cidades em diferentes datas, não seguindo uma cronologia de diário de viagem, mas pulando de uma a outra no tempo e no espaço, subvertendo a linearidade da viagem e das escalas. Fazendo parte do mosaico cubista do livro, Rio entra no turbilhão modernista e deformante de cidades, corpos e natureza. A data de composição é de novembro de 1920, o título é simplesmente “Rio de Janeiro” e é ilustrado no livro com um desenho próprio:

RIO DE JANEIRO

La ciudad imita en cartón, una ciudad de pórfido.

Caravanas de montañas acampan en los alrededores.

El “Pan de Azúcar” basta para almibarar toda la bahía... El “Pan de Azúcar” y su alambre carril, que perderá el equilibrio por no usar una sombrilla de papel.

Con sus caras pintarrajeadas, los edifícios saltan unos encima de los otros y cuando están arriba, ponen el lomo, para que las palmeras le den un golpe de plumero en la azotea.

El sol ablanda el asfalto y las nalgas de las mujeres, madura las peras de la electricidad, sufre un crepúsculo, en los botones de ópalo que los hombres usan hasta para abrocharse la bragueta.

¡Siete veces al día, se riegan las calles con agua de jazmin!

Hay viejos árboles pederastas, florecidos en rosas de té; y viejos árboles que se tragan los chicos que juegan al arco en los paseos. Frutas que al caer hacen un buraco enorme en la vereda; negros que tienen cutis de tabaco, las palmas de las manos hechas de coral, y sonrisas desfachatadas de sandía.

Sólo por cuatrocientos mil reis se toma un café, que perfuma todo un barrio de la ciudad durante diez minutos. (p.11)

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Figura 1 - O Rio de Janeiro de O. Girondo

Fonte: GIRONDO, O. Veinte poemas para ser leídos en el tranvía, Buenos Aires: Martin Fierro, 1922.

O Rio de Janeiro de Girondo é o paraíso risonho e animado da modernidade com doses iguais de natureza e cidade –uma mágica fusão de café, asfalto e mato. A cidade animizada parece ter aparecido antes dos morros, que “acampam” ao seu redor –vejamos a diferença com o Pão de Açúcar de Sarmiento! A pura natureza brasileira se torna um paraíso da modernidade nas “peras de la electricidad”. Girondo faz da favela uma paisagem urbana e natural ao mesmo tempo. Jorge Schwartz explica no livro Vanguardia y cosmopolitismo en la Década del Veinte, (que estuda em chave comparada Oswald de Andrade e Oliverio Girondo – embora curiosamente passe por cima este poema) como esta fusão de diferenças (hombre-naturaleza-objetos) conforma a nova paisagem urbana de Oliverio Girondo (1993, p. 147). Para Girondo, o interessante é essa nova paisagem urbana, ou seja, o que ela tem de mecânica. Aquilo que o Rio pode oferecer como atraente para a visão do poeta-fotógrafo é de igual modo a favela, as ruas, as palmeiras e os 29

prédios. Para Schwartz, a obra de Girondo “se convertirá en la exaltación de la circunstancia, y en que la transitoria imagen callejera ocupa el lugar central” (1993, p. 144). A palmeira torna-se plumeiro dos prédios, e aparece em primeiro plano no seu desenho, fazendo do poema e o desenho uma caricatura verbal e visual que distorce a realidade. Como coloca Francine Masiello,

las relaciones entre poetas y pintura también presuponen otro proyecto común compartido por los seguidores de la vanguardia: promover un espectáculo de la modernidad [...] Su trabajo estuvo atravesado por la angustia de que tal vez lo real no fuera realmente capaz de entrar en el ámbito de lo representable. De aqui deriva el énfasis en la parodia, las con frecuencia exageradas líneas de su exploracion poética, las habituales representaciones grotescas de aquellos sujetos encuadrados por su ojo de turista. (1999, p. 407).

Encontramos também o humor e a dessacralização de todo erotismo, típico da estética de Girondo: o sol toca o asfalto antes do que as nádegas das mulheres. A erotização maquinal e a reificação aparecem ao longo de todos poemas do livro: não há um Brasil diferente, mas incluído na série de cidades e de poemas. Schwartz argumenta: “En esta visión de la sociedad contemporánea, lo erótico se degrada y caricaturiza. Hay una verdadera intención de destruir los modelos psicológicos impuestos por el romanticisimo irónicamente criticados a través del lenguaje satírico del poeta” (1993, p. 146). Estamos ante um texto aberta e animadamente cosmopolita. E não no estilo de Sarmiento, que ainda nada conhece de primeira mão, mas escreve e compara. Além do “cartão postal” há no poema de Girondo a própria busca estética vanguardista. Há a alegria da imagem engraçada, quase surrealista. Girondo não está procurando profundidades, nem marginalidades. Está vendo de longe: enfoca e tira sua delirante fotografia instantânea. Alguns anos depois, em 1930, Roberto Arlt é já o reconhecido jornalista de El Mundo, autor das crônicas diárias da vida na cidade de Buenos Aires, suas famosas “aguafuertes”, e o polêmico autor de El juguete rabioso. A direção do jornal o envia para o Rio de Janeiro como parte de uma série de viagens pela América Latina. Ao longo dessa viagem, ele escreverá suas “aguafuertes cariocas”, publicadas entre abril e maio de 1930. “Andá a vagar un poco”, diz o chefe de redação, o que para Arlt não podia ter sido mais gratificante: “¡Conocer sobre la vida y la gente rara de las Repúblicas del norte de Sudamérica!” (2013, p. 12, ênfase nossa). 30

Arlt não quer ver a natureza, quer ver a cidade, ir para os cafés, conhecer a marginalidade: está ansioso por continuar no Rio o roteiro das aguafuertes portenhas (talvez as crônicas mais engraçadas e viscerais da literatura argentina). Quem como Arlt conseguiu descrever a cidade com tanta precisão, desespero e ouvido? Quem fez, como ele, da observação e da oralidade tão potente ferramenta literária? Porque, sabemos, sua aguda observação e ouvido para capturar as formas de vida da cidade, as conversas, o “lunfardo”, são magníficas. Mas, o que ele observará e ouvirá no Rio? Arlt fica dois meses no Brasil, e escreve suas crônicas entre o dia 2 de abril e 29 de maio. Lidas uma após a outra, elas formam um pequeno diário de viagem. Essas crônicas foram publicadas em formato de livro apenas em 2013, antes disso mal tinham sido estudadas (Raúl Antelo as incluiu em alguns textos críticos). Portanto, permaneceram como marginais à enorme produção cronística do autor. Mas elas revelam questões muito interessantes em relação com a própria busca estética na forma de retratar o Brasil, que muito chamou a atenção da crítica após a publicação. Recém-chegado, Arlt observa e reflete sobre as relações com o Brasil, e nesse contexto, sobre sua própria missão, seu trabalho: vagabundear, ir pelas margens, conhecer sujeitos estranhos. Nada de fazer reportagens a escritores, literária, inútil para conhecer uma cidade e sua gente. À margem da literatura, divertido e cínico, reflete:

No pasa mes casi sin que de Buenos Aires salgan tres escolares en aventura periodística y lo primero que hacen, cuando llegan a cualquier país, es entrevistar a escritores que a nadie interesan. [...] ¿Por qué voy a ir yo a quitarles el trabajo a esos muchachos? No. ¿Por qué voy a ir a sustraerles mercadería a los cien periodistas sudamericanos que viajan por cuenta de sus diarios para saber qué piensa Mengano y Fulano de nuestro país. De memoria sé lo que ocurriría. Yo, de ir a verlos, tendré que decir que son unos genios y ellos, a su vez, dirán que tengo un talento brutal. Y el asunto queda así arreglado de conversación: “He entrevistado al genial novelista X”. Ellos: “Nos ha visitado el despampanante periodista argentino...”. Todo esto son macanas. Cada vez me convenzo mas que la única forma de conocer un país, aunque sea un cachito, es conviviendo con sus habitantes; pero no como escritor, sino como si uno fuera tendero, empleado o cualquier cosa. Vivir... vivir por completo al margen de la literatura y de los literatos. (2013, p. 48)

Como coloca Beatriz Sarlo, Arlt “cambia la cultura literaria y fija su mirada en las cosas que no podían ver los escritores que eran sus contemporáneos” (1988, p. 92). A observação e a vadiagem levam material para sua escrita. Se Girondo era o poeta das novas cidades modernas europeias e latino-americanas, Arlt é o cronista da “modernidade periférica”. Essa modernidade 31

tinha a ver com os “pozos negros” e “zaguanes hediondos”, como analisa Sarlo, enquanto o Rio parece ser pura luz, aberto, e talvez de tão aberto ante seus olhos acaba por não ver. No começo, está “embelesado” pela cidade: “Si hay una tierra de América donde el extranjero pueda sentirse cómodo y agradecido al modo natural de ser de la gente, esta es Brasil. Niños, hombres y mujeres engranan sus acciones dentro de la más perfecta urbanidad” (ARLT, 2013, p. 55). Mas suas observações vão mudando ao longo da série de crônicas. A ideia do Rio interessante vai deixando lugar para o contraponto com Buenos Aires. Assim, a surpresa das coisas que acontecem, que parecem melhores do que em Buenos Aires, como a decência das pessoas, a limpeza, a língua portuguesa, que “es de lo más delicioso que pueda concebirse” (p. 24), dá lugar à frustração do portenho que não encontra ali o que existe na sua própria cidade. Ironicamente, no Rio, Arlt sente saudades. As crônicas vão tornando-se o relato de sua amargura e melancolia, para ser o perfeito retrato do portenho arrogante:

“Nosotros, habitantes de la más hermosa ciudad de América (me refiero a Buenos Aires), creemos que los cariocas, y los brasileños en general, son gente que se pasa con la panza al sol desde que ‘Febo asoma’ hasta que se va a roncar. Y estamos equivocados de medio a medio [...] trabajan, trabajan y no van al café sino breves minutos.” (ARLT, 2013, p. 73)

O Rio de Arlt é limitadíssimo, talvez porque ele fosse fiel ao seu projeto: Buenos Aires. Arlt, o “argentino exemplar” como o chama Raúl Antelo (2008, p. 34) observa o Rio e os cariocas mas enfatiza as boas caraterísticas quase estereotipadas do portenho. Acha a cidade entediante, calma e de pessoas tranquilas: faltam malandros, crimes, “el pueblo es dulce, manso”, diz, não como os portenhos (ARLT, 2013, p. 73). O desencanto e a irritação tomam conta das crônicas, que acabam sendo mais uma exaltação da Argentina e de Buenos Aires do que o que prometia no começo. “Somos los mejores, sin vuelta: los mejores” (ARLT, 2013, p. 147). Arlt procura encontrar Buenos Aires no Rio de Janeiro. Não acha na língua dos brasileiros as formas portenhas do palavrão, da gíria: “Aquí se fala dulcemente o no se habla” (p. 180). Ou escreve passagens como a seguinte, onde podemos ler um Arlt revoltado e aflito, com saudades de uma briga, de algum conflito:

Aquí no discute nadie. No se enoja nadie. Se vive como en un salón [...] – Usted es un tipo insociable – me dice mi interlocutor–. Lo mejor que podía haber hecho era quedarse en su arrabal.... Yo también lo creo, y no penaría tanto para encontrar temas de nota como estoy penando aqui. (ARLT, 2013, p. 144) 32

Muito longe do cartão postal, da leve alegria de Girondo e do interesse sensorial e científico de Sarmiento, Arlt renuncia à paisagem da natureza, da vegetação exuberante e das praias. Não cede ao deslumbramento, nada terá efeito nele: sobe no bondinho no Pão de Açúcar e a descrição é seca e objetiva, desinteressada: “Usted ha creído que sentiría vaya a saber qué emociones, y no siente nada” (p. 130). Sobre a sua experiência na praia, afirma: “Fui a Copacabana. Lo de las muchachas de Copacabana es una mula. He visto a algunas que se bañaban y no causan ningún efecto” (p. 126). Arlt procura, porém, casas com jardins, cafés cheios de vagabundos, becos do crime e malandros. E não os encontra. Assim, o cronista já não fala da cidade na que está, mas da perda da que deixou: está perdido, confuso. Por que não viu a cidade de malandros, do nascimento do samba, da vida da boemia e noturna? Neste sentido, e de forma contundente e provocadora, Martin Kohan afirmou na apresentação do livro, em 25 de junho de 2103, na Biblioteca Nacional: “habría que decir que estas son las verdaderas aguafuertes porteñas de Arlt”. Nos últimos anos, uma cronista viajante veio trazendo notícias do Rio, a contista Hebe Uhart. Falecida há poucos meses na cidade de Buenos Aires, deixou inúmeros contos e crônicas de viagens, talvez seu gênero predileto. Sua crônica sobre o Rio de Janeiro se encontra em Viajera crónica (2011) e no interessante Brasil. Ficciones de argentinos (2013). No roteiro dela, o Rio não é uma escala para chegar a Europa mas, pelo contrário, uma cidade dentro do seu deslocamento latino-americano, que conforma seu livro de crônicas. A sonoridade do português e as formas dos cariocas chamam a atenção da cronista que sempre teve o ouvido e o olhar atento para as particularidades das pessoas e suas falas, mesmo em ambientes muito cotidianos. Na crônica “Rio es un estado de ánimo”, corpo e paisagem se unem no tecido urbano que é o Rio da primeira década do século XXI. O primeiro que adverte é a multiplicidade da realidade carioca: “Todo en Río es colorido y todo es mucho [...] Río vendría a ser como una sinfonia coral donde hay mucho de todo”, e mais adiante: “Río exhibe todo: sus jardines, su pasado, sus mendigos, su beleza, su fealdad” (UHART, 2013, p. 103). Rio exibe todo, e a cronista recorta e reflete. A crônica traz a particular forma de olhar e de recortar de Hebe Uhart, que pula de um a outro tema, muitas vezes sem continuidade, e que se faz perguntas curiosas e se responde com respostas ainda mais curiosas: “De dónde les viene a 33

los cariocas la afición por ciertos nombres como Eneida, Eneas, Mauritonio, Flavio, Plinio? Tal vez del pasado imperial o del gusto por las biografías y las mitologías” (p. 107). O tom de Uhat é desconcertado: a cidade propõe para ela coisas muito curiosas, sobretudo na linguagem:

[...] Mis diálogos eran más o menos así: — En esa esquina debería haber un semáforo. Es un cruce peligroso. Interlocutor: — Deberia, sim. Mas não existe. Y ningún comentario posterior, porque tal vez deberían existir los elefantes azules. (UHART, 2013, p. 106)

Sobre a língua, diz: “Parecen más antiguos [que los rioplatenses] por su lenguaje, con sus ‘agora’, ‘mesmo’, ‘muher’, como si la lengua fuera una mezcla de latín con algún gauchesco exótico y caprichoso.” (UHART, 2013, p. 106). Diálogos na rua, recortes do jornal, uma praça, um prédio, vai pulando da televisão à praia, como uma crônica de detalhes da língua e da paisagem. Em um belo livrinho sobre escrita, Hebe Uhart fala da construção literária. Las clases de Hebe Uhart (editado por sua aluna Liliana Villanueva) talvez sejam a melhor crítica para a própria produção. Falando nas crônicas, ela afirma que

El sentido del lenguaje es muy importante y, como decía Flannery O’Connor, “buena parte del trabajo del escritor ya está hecho antes de que empiece a escribir, porque nuestra historia vive en nuestra forma de hablar”. No es lo mismo decir que hace calor o “calorón”, como se dice en Córdoba, o “calorazo” en la provincia de Buenos Aires [...] Esas observaciones son importantes en una crónica de viajes, donde tengo que mirar los diarios, los graffitis, los carteles de las iglesias. Tengo que ver el lenguaje. (2015, p. 47, ênfase nossa).

Esses detalhes são pequenos “indicios de algo que siempre es mayor y más complejo”, como esclarecem os editores Isis Mc Elroy e Eduardo Muslip no prólogo de Brasil. Ficciones de argentinos (2013, p. 21). Porém, esses indícios escapam da análise e entram em uma sorte de síntese de uma cidade que apresenta uma “curiosa tendencia a reconciliar lo irreconciliable” (p. 17).

1.2.2 Corpo, língua e exílio: Néstor Perlongher e Manuel Puig

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Na série de autores argentinos no Brasil há dois, com mais diferenças do que pontos em comum, que fizeram do Brasil sua morada e seu espaço para a criação de uma parte importante de sua obra. É o caso de Néstor Perlongher, poeta, e Manuel Puig, romancista. Ambos exilados e homossexuais (eles fundaram o Frente para la Liberación Homosexual em Buenos Aires em 1971), encontraram no Brasil uma forma de vida e de experiência que, antes de ser a do melancólico emigrante e exilado da própria língua e cultura, é mais plena e liberadora5. O sociólogo e poeta do “neobarroso”, Néstor Perlongher, mudou-se para São Paulo em 1981, exilado da Argentina dos tempos da última ditadura. Estudou na pós-graduação em antropologia na Unicamp e escreveu a maioria de seus livros de poesia no Brasil, onde morreu, vítima do Aids, em 1992. A pesquisadora Cecilia Palmeiro analisa em Desbunde y felicidad (2011) a importância do poeta radicado no Brasil no trânsito under cultural e poético entre Argentina e o Brasil nos anos de 1980 e 1990, encontrando em Perlongher seu genial contrabandista. Antes de morar no Brasil, Perlongher já tinha entrado em contato com autores da geração do desbunde, como Glauco Matoso e João Silvério Trevisan. Uma vez no Brasil, Perlongher “exporta” a poesia de Haroldo de Campos, Matoso, Trevisan ou Piva, que se tornaram visíveis anos depois, nas formas de produção, sociabilização e comunidade literária do grupo Belleza y felicidad, de Buenos Aires, junto com a editora cartonera, uma das primeiras a publicar poesia marginal brasileira. Palmeiro afirma que “funcionaron durante años subrepticia y clandestinamente en la literatura underground y el archivo alternativo lo que Nestor Perlongher llamaba devenires minoritarios (de la literatura y la política)” (2011, p. 11). Os próprios livros de Perlongher são laços entre Buenos Aires e São Paulo, pois sua linguagem poética particular nasce da união e no trânsito entre aqueles dois espaços. Chamado de “artesano de la locura lingüística” por Nicolás Rosa (2002 apud PANESI, 2002), na sua poesia a linguagem se contamina do sexo e os fluidos corporais. Há um devir outro: por um lado, no uso do portunhol, como tipo particular de contaminação linguística. Por outro, “un proceso de

5 Poderia incluir neste grupo ao dramaturgo, poeta e crítico literário, Tulio Carella. Ainda marginal no cânone literário argentino, Carella chegou ao Brasil em 1960 a convite da Universidade de Recife e ficou até 1962. No seu tempo em Pernambuco escreveu um diário que foi publicado anos mais tarde com o título de Orgia. A experiência no Brasil propiciou um processo de transformação na sua estética, mas foi preso pelo exército, que achava que fosse um comunista com contatos em Cuba e foi torturado. Ao revistar o apartamento no que morava encontraram o diário onde conta suas aventuras homossexuais, e por causa disso foi expulso da universidade. Carella foi embora do Brasil. A diferença de Perlongher e Puig, não fez do Brasil seu espaço de trabalho nem do português uma experimentação no centro de sua procura estética, como veremos mais adiante no caso deles. 35

lumpenización que implica barroquizar la lengua hasta trashearla [sic] hasta mostrar el fondo barroso de la tradición local” (PALMEIRO, 2011, p. 45). Nela, as línguas, ecoando uma na outra no interior do poema, se fundem no portunhol poético de Perlongher: o português é pura produtividade poética e transformação, uma poiesis. Em Papeles insumisos, coletânea de seus textos avulsos, escreve: “O portunhol como estado de alteração” (PERLONGHER, 1997, p. 26). Há inúmeros poemas onde analisar esta sinuosidade linguística, mas no seguinte poema encontramos várias dos usos que Perlongher faz do português:

(grades)

estola que radas, rodas, rueda, greda en el degrau –degrádase, desagradable boa, la de esa moquerie, y cuyos flejos, gelatinosos, lame. losa la de esa escala. pues en sus ascensiones, o descensos, o líneas, de laberinto, boas de fleco y “filipetas”, botas lo que se pisa: paño de “pranto” y “maquerie”: machette ruinosa, lo que en ella rolaba, o el rolar de esos vahos, mohosos, musga el rielar de ese desliz: pétalo caviloso que, pecado en su pasmada esplendidez, tremola; vino que áspero en los rajados torsos se disipa, pringado: gredas o paño, botas, gelatinas

(Poemas completos, 1997, p. 93)

No poema, o português não só dialoga poéticamente com o espanhol, mas também “interviene o socava la presencia absoluta del castellano”, como afirma Pablo Gasparini em “Néstor Perlongher: una extraterritorialidad en gozoso portuñol” (2010, p. 758). Podemos ler o efeito estético das palavras em outra língua e sua ressonância no espanhol nos sons, deslizamentos, riscos. As duas línguas, mais do que estabelecer pontes entre elas, entregam-se à instabilidade do gozo da língua. O poema desce até os detritos do espanhol e do português, e funde as línguas como em um fluido corporal, em um “barro” de uma língua poética barroca que devem então “barrosa”. A sua é uma poética e uma política do corpo, como afirma Palmeiro, em uma “primacía del significante, delirio del lenguaje, barroquización, corporalidad de la escritura” (2011, p. 50). 36

Se a língua em Perlongher desce no escuro até se transformar em barro, a língua em Manuel Puig é bem mais ensolarada – embora, sabemos, melodramática. É aquela que está bem na superfície: na revista, no rádio, no cinema, a que circula nas fofocas, nas promessas de amor, nas letras dos tangos (no Brasil, será a língua das músicas de Roberto Carlos). Mas para ser justos com seus personagens, a língua da literatura de Puig é também à da fantasia, da indagação pessoal, do autodescobrimento, da emancipação, sempre em um tom naif, bovarista, emocional, mas que encontra ali sua profundeza e, claro, seu encanto. Manuel Puig chegou ao Rio de Janeiro quase ao mesmo tempo que Perlongher a São Paulo, e ficou nove anos na cidade maravilhosa. Vinha de morar em Nova Iorque, e antes, na Cidade do México. Tinha deixado à Argentina em 1973. Não voltou mais. A censura que sofreu sua obra naquele ano, as ameaças e a ditadura que sobreveio logo depois, assim como a falta de reconhecimento e a pouca recepção crítica da sua literatura, levaram-no para o cada vez mais amargo exílio definitivo. Puig atravessou e misturou vários universos diferentes não só na própria vida mas também na escrita: distanciada do universo dos escritores do boom dos anos sessenta, experimentou na sua literatura com materiais da cultura popular, como radionovelas, folhetins, o cinema de Hollywood, tango ou boleros, materiais que até aquele momento não tinham nenhum prestígio na “cultura alta”. Deles extraiu uma inusitada força narrativa e a levou para a ficção, e que acabou renovando e transformando para sempre a literatura em espanhol. Hoje em dia, a fortuna crítica de Manuel Puig é extensa e variada: nos últimos vinte anos, uma furiosa “moda Puig” na crítica literária saldou de alguma forma a dívida que a academia argentina tinha com um dos seus grandes autores. Romances como Boquitas pintadas ou El beso de la mujer araña são considerados óperas primas e centrais no cânone literário nacional. Sua obra foi analisada a partir das mais variadas abordagens: psicanálise, cinema, política, gender e genre, queer, pop art, arte de massas... O “fenômeno Puig” fascinou e continua fascinando pelo paradoxo da profunda superficialidade do enigma: como analisar a complexidade de uma narrativa que se mostra tão transparente nos seus materiais, feita de vozes, filmes, recortes de jornal, cartas, canções? Como aponta a crítica argentina Graciela Speranza, sua escrita parece irreduzível a fórmulas: “Es que su obra, inasible en su extrema libertad, devuelve como un boomerang las caracterizaciones teóricas precisas y los sistemas totalizadores” (2000, p. 33). 37

Mas também, e este é um fato pouco apontado pela crítica6, Puig experimentou com as línguas: o espanhol da Argentina, o do México e o chamado de “neutro”; o inglês; o italiano; o francês; o português do Brasil, e também o que poderíamos chamar as línguas das traduções. Ao longo de toda a obra de Puig, encontramos uma oscilação de aproximação e distância com a própria língua e os lugares de pertencimento. Escritor “translíngue” (KELLMAN, 2000, p. 9), Puig não só escrevia em várias línguas, mas também revisava as traduções dos seus romances. Se pouco tem se falado do trabalho interlinguístico de Puig, menos ainda foi estudada sua relação com o português. Os “romances cariocas” foram os menos analisados pela crítica, que usou apenas como dado biográfico o fato de Puig ter morado no Brasil. Mas o dado biográfico torna-se de grande importância quando analisamos mais detidamente estes dois romances e os pensamos em relação à procura e projeto estéticos da obra inteira de Puig. Longe de serem romances marginais, Sangre de amor correspondido (1982) e Cae la noche tropical (1988) são novas modulações dos tópicos, temas e estratégias narrativas que a Puig mais interessavam. Assim que ele se mudou para o Brasil, Puig começou a planejar um novo romance. Estava terminando de escrever Maldición enterna a quien lee estas páginas (1981), mas aquele novo romance se impus. E dessa vez seria em português, pois a história e a língua do seu romance estava na voz de um brasileiro que conheceu na reforma do seu apartamento. Um ano depois, Puig publica simultaneamente Sangre de amor correspondido, em espanhol, e Sangue de amor correspondido, em português. O que o fez escrever um romance em português quando mal sabia a língua? Por que se dedica depois à autotradução do romance? Como cria Puig uma língua de tradução? Para começar a responder algumas perguntas, podemos dizer que seu ouvido sensível e fascinado o leva a trabalhar com o português da forma que ele já havia trabalhado em outros de seus romances, através do uso do gravador (como em El beso de la mujer araña). Constrói seu romance com os depoimentos de um brasileiro, articula a língua e cultura brasileira dentro do seu próprio projeto de escrita, mergulha no arquivo cultural e linguístico do Brasil e depois faz uma estranha operação de autotradução para o espanhol. O capítulo 3 desta tese estudará essa operação ficcional e linguística, a operação de tradução e as possíveis derivas teóricas de sua experimentação linguística.

6 Um trabalho pioneiro neste sentido é o livro Las lenguas vivas, de Delfina Cabrera, que analisa o trabalho de Puig em inglês e francês, e que foi publicado em 2016. 38

Uma primeira ideia que surge ao ler sua tradução é que, para Puig, a fidelidade não se deve ao original mas ao seu projeto de tradutor, que é, em definitiva, a do escritor. Chama a atenção o espanhol “estranho”, que mantém as marcas da oralidade do português brasileiro, mas sem nunca ser portunhol. Como se Puig como tradutor fizesse “ir la lengua de llegada a la de partida” (GOLOBOFF, 1997, p. 73). Similar neste sentido à postura de Borges e Haroldo de Campos, a tradução “cria” (ou “transcria”) um novo original. Assim, na sua tradução, Puig aproxima as figuras do autor e do tradutor. Mas na publicação simultânea do romance nas duas línguas podemos ler mais do que um simples pragmatismo editorial: ao escrever em português, Puig apropria-se da língua e faz um gesto de inserção e intervenção no sistema literário local. Há aqui uma coisa interessante. Puig acaba articulando um olhar que não é o local, mas também não é estrangeiro: uma forma diferente de transitar a alteridade. Puig é uma figura mais complexa e rica do que o “estrangeiro”, e que tem uma tradição na literatura: o “forasteiro”. Termo trabalhado pela crítica argentina Laura Demaría, o forasteiro não pertence ao lugar em que está, mas ao mesmo tempo não pode senão pertencer: “El forastero es el que no termina de inscribirse, de ubicarse”, aponta Demaría (2014, p. 54). Não se trata mais de “ser” argentino ou brasileiro: o “estar” em outro lugar reorganiza as ideias do nacional e do pertencimento. A escrita de Puig articula o brasileiro e o argentino através de uma dinâmica de aproximações e distâncias, sem nunca resolver a tensão. Os dois romances que Puig escreve no Brasil são duas formas diferentes (e complementárias) de articular sua condição de escritor forasteiro: Sangre de amor correspondido conta a história de Josemar, um rapaz do interior do Rio que vem para a cidade do Rio de Janeiro para ser jogador profissional de futebol e acaba trabalhando na construção. O texto está baseado nos depoimentos de um brasileiro que ele entrevista. Seis anos depois, escreve Cae la noche tropical que também tem lugar no Rio, e que será seu último romance. Nele, a diferença do anterior, as personagens são argentinas, e descortina o olhar delas sobre a Baía de Guanabara. Os romances são significativamente opostos em vários sentidos: um em português, língua que mal falava, e outro em espanhol, língua que, após tantos anos morando no Brasil, queria recuperar como língua literária. A crítica de Cae la noche tropical é muitíssimo maior do que a que recebeu Sangre de amor correspondido: ao longo deste trabalho se analisarão as possíveis causas desta significativa diferença e para isso me deterei muito mais no primeiro romance, que 39

foi muito mal lido, em um minucioso trabalho de arquivo. Manuel Puig, mesmo sendo peça fundamental da história da literatura argentina do século XX, não tem recebido atenção crítica sobre seus “romances cariocas” nem suas operações linguísticas fruto da sua experiência brasileira. Puig fez da fronteira cultural entre o Brasil e a Argentina um trabalho literário muito original e ainda pouco analisado. A relação oscilante a respeito da própria pátria e da própria língua assim como sua também singular inscrição na literatura tanto argentina quanto brasileira são interessantes para continuarmos refletindo sobre a relação cultural entre o Brasil e a Argentina e suas línguas, e achar formas criativas de dar novas respostas ao lugar comum da nossa separação. Puig transformou seu “viver entre línguas”7 em um artefato literário e linguístico. A esse artefato maravilhoso estarão dedicados os próximos capítulos desta tese.

7 Roubo o título do belo livro de ensaios da escritora e crítica Sylvia Molloy, traduzido recentemente por uma tradutora brasileira e uma argentina, Mariana Sanchez e eu: Viver entre línguas, Relicário, 2018. 40

2. MANUEL PUIG: APROXIMAÇÕES E DISTÂNCIAS

A inusitada trajetória intelectual de Puig, o gesto vanguardista da sua literatura, o uso de materiais da cultura popular, sua difusa origem como escritor ao mesmo tempo que sua grande popularidade foram talvez motivos pelos quais o sistema literário argentino demorou a incorporar a Puig como o autor canônico que é hoje. Autor de oito romances, oito peças de teatro e numerosos roteiros de cinema8, Puig foi, antes que mais nada, um grande narrador preocupado com a construção do relato e técnicas literárias inovadoras. Por isso, não surpreende que fosse Ricardo Piglia seu crítico mais entusiasta e um dos primeiros a chamar a atenção, em 1969, para o então jovem romancista que acabava de publicar La traición de Rita Hayworth. Puig, segundo Piglia, demonstrou que experimentação narrativa não vai na contramão da narração e que gêneros populares não são opostos à literatura culta. Mas não foi até depois de sua morte nos começos dos anos de 1990 que Puig começou a receber na Argentina a celebração crítica que tanto desejava, e que o levou a um lugar central da literatura nacional do século XX. Manuel Puig nasceu em dezembro de 1932, em General Villegas, uma cidade pequena da Província de Buenos Aires. De 10.000 habitantes na época, ela fica no meio da planície pampeana, a 500 quilômetros de Buenos Aires, perto da fronteira com a província de Córdoba, na parte chamada de “pampa seca”. A paisagem desprovida de atrações visuais e o clima opressivo e limitador de uma cidadezinha nos anos 40 são o cenário perfeito para que Puig encontre nos filmes de Hollywood do cinema municipal uma riqueza e expansão oposta a sua realidade, e gere nele a ideia da ficção como salvação e formação para alguma coisa que será, anos depois, a literatura: El pueblo en el que nací es la ausencia total del paisaje, una planicie perfecta... la persona que nace y se muere ahí no ha visto nada... nada más que lo que dan en el cine. Además de esa naturaleza, el clima humano era muy especial... era la vigencia total del machismo. Estaba aceptado que había fuertes y débiles y lo que daba prestigio era la prepotencia. Yo rechacé todo eso, me pareció demasiado

8 Puig escreveu mais roteiros do que romances, como afirma a pesquisadora Delfina Cabrera em Las lenguas vivas, livro que analisa estes textos considerados marginais. O “percurso de escrita” de Puig, coloca Graciela Goldchluk, começa com um roteiro Ball Cancelled (1958) e acaba com Vivaldi (1989) (GOLDCHLUCK apud CABRERA, 2016). Puig também adaptou para o cinema seus próprios romances, Boquitas pintadas, El beso de la mujer araña e Pubis angelical, e também o conto “El impostor” de Silvina Ocampo e “El lugar sin límites”, de José Donoso. 41

desagradable. Traté de ignorar esa realidad y tomé al cine como mi realidade (informação verbal)9.

Em sintonia com o desconforto provocado pelo lugar de nascimento e o desejo de se aproximar mais do mundo que mostravam os filmes, Puig começou muito cedo a estudar línguas (inglês, francês, italiano e alemão) e a viajar. A primeira viagem foi para Buenos Aires, para cursar o ensino médio, e depois, em 1956, graças a uma bolsa de estudos do Instituto Dante Allighieri, viajou à Roma para estudar no mítico Cinecittà, com o projeto de trabalhar em cinema. Mas as coisas não saíram como planejadas: o cinema hollywoodiano que Puig amava não agradava aos professores e diretores neorrealistas. Mesmo assim, trabalhou em cinema como roteirista e assistente de direção, inclusive já de volta para a Argentina. Mas a experiência no cinema continuava sendo frustrante. Os roteiros que Puig escreveu naquela época não chegaram a virar filmes, e na Argentina imperava também a estética neorrealista que não lhe interessava (CABRERA, 2017, p. 12). Em 1963 partiu para Nova Iorque, onde residiu até 1967. Levava com ele um projeto de escrita de roteiro que deveio, finalmente, em um romance: La traición de Rita Hayworth, onde ficcionalizava aquela cidade da infância e a transformava na já mítica Coronel Vallejos. Voltou para Buenos Aires, onde publicou o romance em 1968, mas não sem dificuldades. O romance ficou em terceiro lugar no prestigioso prêmio Herralde, e Sudamericana, que no mesmo ano publicaria Cien años de soledad, rejeitou-a por medo à censura quando estava no prelo. Finalmente, foi publicado por uma pequena editora Jorge Alvarez que naquela época estava publicando os trabalhos de novos narradores e críticos argentinos como David Viñas e Rodolfo Walsh. No ano seguinte publicou seu segundo romance Boquitas pintadas, já pela Sudamericana, e seus romances acabaram virando um fenômeno de vendas. Mas em 1973, seu terceiro romance, The Buenos Aires Affair, foi censurado. Enquanto Puig estava de viagem, sua família recebeu ameaças da triple A. Era o começo do terror, que acabou virando a ditadura militar argentina de 197610. Puig decidiu então ficar na Cidade do México, e deixou definitivamente a Argentina.

9 Programa A fondo, entrevista com Manuel Puig, exibido na RTVE, Madrid, 1977. 10 A Triple A foi um grupo parapolicial entre 1974 e 1975, que ameaçava intelectuais, tinha listas negras, e deu começo às detenções ilegais, torturas e repressão que caracterizou o governo de facto de 1976 a 1983.

42

Se bem era, de fato, um viajante (nas suas cartas podemos ler seus roteiros pelo mundo, viagens para Roma, Milão, Nova Iorque, México, Rio, etc.), sua decisão de não voltar à Argentina esteve relacionada à crescente censura nos anos de 1970 e depois à incompreensão que sentia por parte dos críticos literários. Mais do que um exilado político, foi um exilado literário: depois de deixar o país, Puig não foi publicado nem reeditado na Argentina até sua morte. Os textos que publica a partir daquele momento terão uma circulação (e reconhecimento) no estrangeiro e Puig ficará cada vez mais distante da Argentina, embora gerando outro tipo de aproximação (linguística e temática) ao seu país nos seus romances. Este vaivém entre aproximação e distância com o leitor argentino não é simplesmente anedótico, relacionado com o fato de morar longe. Já no seu primeiro romance Puig trabalha as possibilidades de aproximação e distância com seu próprio país e cultura ao relacionar, por exemplo, Hollywood com a cidade de General Villegas. As locações viram parte fundamental do projeto estético de Puig. Assim, a crítica Jorgelina Corbatta divide sua obra em “ciclos” relacionados às locações dos romances, o que por sua vez está relacionado, em grande parte, aos próprios deslocamentos do Puig (1983, p. 591). Haveria um primeiro ciclo, o de “Coronel Vallejos” (que inclui os dois primeiros romances), um segundo, o “ciclo de Buenos Aires” (The Buenos Aires affair, El beso de la mujer araña (1976)) e o terceiro, o “ciclo americano”: Pubis angelical (1979, mexicano), Maldición eterna a quien lea estas páginas (1981, nova-iorquino), e Sangre de amor correspondido e Cae la noche tropical (1982 e 1988, cariocas)11. Esta tese tratará especificamente dos romances cariocas, os menos estudados pela crítica. Mas não deixará de levar em conta o conjunto da obra puiguiana. Pois estes romances são novas modulações que renovam (até levar ao extremo) ao mesmo tempo que encerram um projeto estético de pouco mais de vinte anos de escrita.

2.1 O trópico nos pampas: cinema e literatura

11 Todos os romances de Puig foram traduzidos para o português. Porém, nesta tese o título das obras de Puig e as citações serão feitas em espanhol e diferenciarei, mais adiante, a versão em português de Sangue de amor correspondido. 43

“Siempre cuento la cuestión esta de la ausencia de paisaje en la pampa. Para mí siempre la máxima aspiración era la de vivir en el trópico” (PUIG, 1983)

Se para Sarmiento o “nada” que os pampas ofereciam à vista podia gerar impressões tão profundas que faziam nascer a poesia12, para Puig o nada da planície era isso mesmo: o nada. A realidade fora do cinema era infértil (“¡a realidade não existe!”, dizia à sua amiga Carmencita, muito pelo contrário, no escuro da sala, o cinema trazia para ele a realidade (BALMACEDA, 2018, p. 6)). Por isso é possível ver no filme A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen, uma homenagem ao universo de Puig. Nele, Cecilia (Mia Farrow) se apaixona pelo protagonista do filme que está assistindo e atravessa a tela de cinema para viver as histórias do outro lado. “El cine plagia el mundo de quien supo encontrar en el cine el modelo mismo de su imaginario”, aponta Piglia (1993, p. 114). Como para outras Cecilias, as heroínas dos primeiros romances de Puig, o cinema é a oportunidade de fugir das suas realidades monótonas, pois o cinema hollywoodiano era, segundo ele, o único que permitia àquelas pessoas sonharem. Uma verdadeira “introspecção liberadora” (SPERANZA, 2000, p.105) que o cinema de massas propiciava nas espectadoras e que será sempre o turning point das ficções de Puig, quando os personagens acessam a uma verdade – a maioria das vezes uma verdade de si próprios. Assim, o leitor/espectador poderia fazer suas procuras internas e vislumbrar algo naquele encontro de sensibilidades. Não foi a única vez que o cinema falou do universo Puig, um filme argentino bastante recente, El ciudadano ilustre, conta em parte a história de Puig: um autor de uma cidade pequena do interior argentino, mundialmente famoso pelos romances inspirados naquela cidade, retorna à cidade natal após quarenta anos de ausência. A semelhança não fica apenas na anedota. O protagonista mesmo, Daniel Mantovani (Oscar Martínez), cita um trecho de uma entrevista que deu Puig13. Há mais dois filmes que tratam de Puig, desta vez um documentário e uma biopic. O documentário Regreso a Coronel Vallejos (de Carlos Castro, 2018), centra-se na relação do autor

12 No seu Facundo, Sarmiento escreve uma imagem memorável da contemplação dos Pampas e a une com a produção poética: “Qué impresiones ha de dejar en el habitante de la República Argentina el simple acto de clavar los ojos en el horizonte y ver… no ver nada? […] qué hay más allá de lo que ve? La soledad, el peligro, el salvaje, la muerte. He aquí ya la poesía. […] De aquí resulta que el pueblo argentino es poeta por carácter, por naturaleza.” (1999, p. 59). 13 É interessante mencionar que nem os diretores (Gastón Duprat e Mariano Cohn) nem o roteirista (Andrés Duprat) falaram abertamente desta inclusão. 44

e General Villegas, e a recepção da sua literatura na cidade onde nasceu. O outro filme retrata os anos de Puig no Rio, Vereda tropical (de Javier Torre, 2004) e falarei dele mais adiante. É interessante destacar que a relação de Puig com o cinema se deu pelo cruzamento de cinema e literatura nos seus escritos, e nos filmes que sobre ele foram feitos14. Porém, no começo da sua carreira, Puig queria se dedicar ao cinema, e escrevia roteiros. Escritos em inglês e baseados em outros filmes, eram, segundo ele mesmo, artefactos esquisitos: “Yo sabía inglés pero no era bilingüe, estaba lleno de faltas, una cosa disparatada. Los argumentos eran un refrito de Cumbres borrascosas, de Rebeca, de todos los filmes que de chico me habían impresionado” (PUIG apud CABRERA, 2017, p.37). Os resultados negativos do esforço de Puig para escrever e vender seus roteiros o levou a aceitar a sugestão de fazer um experimento: escrever em sua língua materna e depois traduzir. O texto que resultou desse exercício não é apenas o germe do que será sua particular estética, como acaba configurando uma das mais memoráveis cenas fundantes de mito de escritor. Segundo ele, estava fazendo um rascunho dos personagens de um roteiro baseado em pessoas que conhecia quando criança, em particular, a tia. Tentando lembrar dela, percebeu que o que mais conhecia da tia era a voz, as coisas que ela falava. Então, limitou-se a transcrever sua memória da fala dela, mas o que era para conformar apenas parte de um roteiro, acabou se estendendo por mais de trinta páginas. O futuro cineasta tornou-se, naquele momento, em um romancista, e “Pájaros en la cabeza”, título do texto, deu começo à escrita de La traición de Rita Hayworth. O ingresso quase que involuntário de Puig à literatura é através de um texto que parece com um “murmullo de voces femininas”, como o caracterizou Alberto Giordano (2001). Percebida pelo Toto, protagonista e alter-ego do autor, que sofre a hostilidade do mundo dos adultos a voz da tia fofoca, reclama da vida no interior do país e fala, muito, em cinema:

Este chico otra vez empieza con que se aburre... qué cosa, estos chicos. El mío se sabe entretener pero el Toto es una barbaridad con las cosas que sale a veces. Esa Mita le ha dado todos los gustos, pero no en todo lo tiene malcriado, porque hay que ver que el chico marcha regio en la escuela y aprende inglés lo más bien. Pero

14 Além de escrever vários roteiros de cinema que nunca foram filmados, Puig adaptou El lugar sin límites de José Donoso, que filmou Arturo Ripstein em 1978, mas se recusou a participar nos créditos. Por outro lado, participou como roteirista nos filmes baseados na sua obra, como Boquitas pintadas (Torre Nilson, 1974), Pubis angelical (Raúl de la Torre, 1982) e El beso de la mujer araña (Babenco, 1985), embora não gostasse de participar neles. Sobre a adaptação de Boquitas pintadas, diz em entrevista: “Yo no creía demasiado en las posibilidades cinematográficas de la novela pero acepté porque pensé que cualquier otro se encontraría con las mismas dificultades y por lo menos yo conocía bien la novela. Pero no trabajé cómodo, precisamente por la reducción de espacio” (“Una narrativa de lo melifluo”, 1982). 45

mi hermana tenía el mismo vicio del cine y el chico lo heredó. A Alfredo ni que le hablen de ir al cine si no es que le gusta la cinta pero como no le atrae ninguna, si no es deportiva, o de basquet. Ya quisiera yo tener compañía para el cine, porque hay que ver que si nadie te acompaña o te arrastra al cine una se queda como una tonta y se aplasta entre la costura y que la cena y que el almuerzo. [...] Yo a Alfredo lo llevé a ver esa película de cuatro horas y me volvió con un dolor de cabeza terrible. A mí tampoco me gustó tanto como decían. Mita y el Toto habían ido la tarde anterior y se vinieron enloquecidos, no hacían más que poner los ojos en blanco y hacer aspaviento, porque en eso el chico le ha salido igual a ella, de agrandar un poco todo [...].Y aunque es chico hay que ver cómo entiende las películas y cómo lloró cuando Mita no lo llevó acá en La Plata a ver Dama de las camelias porque era de noche. (p.16, ênfase nossa, 2004).

Ao ler a extensa citação podemos ver como o universo de Puig já aparece aqui com toda sua força: o cinema hollywoodiano e o drama familiar se misturam nas vozes femininas e charmosamente expressivas da família, que “falam” no espanhol argentino dos anos trinta modelado no cocoliche15, o melodrama popular, o cinema, os folhetins, as revistas do coração. Os primeiros personagens de Puig pertencem a aquele mundo

...de clase media o de baja clase media argentina de los años treinta y cuarenta, hijos de inmigrantes y ex campesinos que habían llegado a Argentina con algunas tradiciones que más bien convenia olvidar porque denunciaban su origen. Ellos venían a cambiar de clase social, querían ser propietarios o comerciantes. Sobre todo es la generación de sus hijos la que me interesa, la primera generación de argentinos. Era difícil para ellos encontrar un modelo de lenguaje. Los modelos a mano eran los folletines y la radio: lenguajes no reales, lenguajes muy cargados precisamente para impresionar a un público poco refinado. Se cargaban las tintas para lograr un impacto y crearon, de hecho, una certa sensibilidad. Las primeras letras de tango van dirigidas a un público que tiene que entender como sea, con trazos de brocha gorda (“Una narrativa de lo melifluo”, entrevista, 1982, a ênfase é nossa).

Um universo feito de palavras vindas de discursos e até de línguas diferentes no que Puig trabalhou uma sensibilidade: a sensibilidade bovarista característica do estilo Puig, do “efeito Puig”, como o chama Piglia em vários trabalhos. Uma língua “oral” que está muito mais trabalhada do que parece, como veremos mais adiante nos manuscritos e arquivos do escritor. Mas ao mesmo tempo Puig encontra naquele universo um potencial de reflexão e liberação, e sobretudo um potencial narrativo – um torrente de energia que vem da língua, e não já apenas das imagens nebulosas e fantasiosas do cinema. La traición de Rita Hayworth (1967) e Boquitas pintadas (1968), seus primeiros romances, estão baseados em fatos e pessoas que existiram na sua cidade natal. Puig mudou os

15 O cocoliche é a mistura de italiano com espanhol na Argentina da imigração italiana de começos de século XX. 46

nomes próprios e contou a história a través de uma variedade inusitada, quase que joyceana, de procedimentos narrativos: diálogos, cartas, monólogos interiores, sonhos, diários, informes... qualquer tipo de narração exceto o narrador “omnisciente”. São conhecidas as palavras em atitude um tanto blasé de Puig a respeito do Ulisses, de Joyce:

Yo no vengo de ninguna tradición literaria. Vengo del cine: de oír radio, de ver folletines, melodramas de la Metro [...] Muchos me han dicho que en mí hay influencias de Joyce. Yo lo que tomé conscientemente de Joyce es esto: hojeé un poco el Ulises y vi que era un libro compuesto con técnicas diferentes. Basta. Eso me gustó” (“Entrevista”, 1973).

A crítica leu de diversas formas as técnicas narrativas dos romances na época do lançamento no final dos anos sessenta. Em alguns casos foi visto como uma falta, em outros, como uma denúncia. Mas, como sugere Speranza,

Alternativamente moderna, vanguardista, kitsch, camp, o pós-moderna, la literatura de Puig se ofrece dócilmente como comprobación empírica de tales o cuales presupuestos teóricos pero deja siempre un resto que no encaja, resistente a los límites de las denominaciones precisas” (1997, p. 129)

Uma famosa frase de Onetti descreve o inusitado da aposta literária: “Después de leer los dos libros de Puig, yo sé cómo hablan sus personajes, cómo escriben cartas sus personajes, cómo piensan sus personajes, pero no sé cómo escribe Puig, no conozco su estilo” (apud SPERANZA, 2000, p. 4). Enquanto Borges foi mais suscinto ao declarar simplesmente que Boquitas pintadas era um livro de Max Factor (AMIANO, 2009), em alusão à marca de cosméticos das atrizes de Hollywood. A crítica literária estudou com muito detalhe como seus romances desafiam as formas narrativas convencionais e propõem um experimento inovador e original em relação, sobretudo, à possibilidade de fusionar literatura culta com popular e de incluir novos materiais e tipos de narradores. A grande variedade de recursos narrativos e materiais com os que trabalha exibem a clara vontade experimental de Puig, que propõe deslocar o autoritarismo que parece separar o “alto” do “baixo” e que impõe uma voz única ao relato, o que limita para ele tanto temática como formalmente a arte literária. Efetivamente, a literatura de Puig coloca uma nova forma de conceber a escrita em relação à liberdade para escolher os materiais com que trabalha: 47

começando pelo fato de que o próprio Puig, como escritor, substitui a biblioteca pela videoteca.16 Estas particularidades operam fundamentalmente em duas experimentações vanguardistas: tanto na inclusão de elementos provenientes da cultura popular, quanto no apagamento do narrador convencional. Cabe destacar que em ambas operações é o cinema, especialmente o de Hollywood dos anos trinta a cinquenta, a constante fonte de modelos. Mundo hiperbólico de grandes paixões, Puig põe o cinema a funcionar dentro de uma série de interrogações sobre a própria identidade dos personagens: utiliza esses materiais não só como referências pop, mas também para falar de outra coisa, da política sexual, dos estereótipos sobre o feminino, da construção das subjetividades e da educação sentimental. Nos seus romances a star, por exemplo, é uma sorte de fantasma cuja beleza transforma ou desarruma o mundo de seus personagens. A estrela de cinema torna-se narrativamente produtiva dentro de uma arquitetura mais complexa organizada a partir da colagem e polifonia. Piglia resumiu muito bem o que estava acontecendo nesta literatura desconcertante para a crítica:

Puig ha sabido encontrar técnicas narrativas en zonas tradicionalmente ajenas a la literatura: las revistas de modas, la confesión religiosa, las necrológicas se convierten en modos de narrar que permiten renovar las formas de la novela. Al mismo tiempo manejó siempre los procedimientos más intensos del relato (el suspenso, el escamoteo de las identidades, las revelaciones sorpresivas, las omisiones y las implicancias oblicuas, el desenlace sorpresivo y brutal) e hizo ver que el interés narrativo no es contradictorio con las técnicas experimentales. El collage, la mezcla, la combinación de voces y de registros que rompen con los estereotipos de la novela tradicional se convierten también en un elemento clave del suspenso narrativo (1993, p. 114, ênfase nossa).

A questão da multiplicidade de vozes e discursos e a falta de narrador levaram à crítica a analisar detidamente o que estava acontecendo naqueles livros. Héctor Schmucler escreveu que as personagens dos romances de Puig “no tienen nada propio que decir: son atravesados por el lenguaje de la sociedad constituida. La ideología de lo cotidiano, canonizada en el habla de los medios masivos de difusión (revistas, radio, cine) constituye el pensamiento de sus palabras” (1969, p. 8). Josefina Ludmer fez um detalhado estudo dos “narradores indiretos” de Boquitas pintadas que substituem o narrador em terceira pessoa (1971). Para Graciela Speranza, porém, Puig levou a narração ao grau zero, como acontece no cinema (2000). Como diria Aira, Puig “fue el más grande de los narradores porque supo que a una historia no es necesario contarla” (1990).

16 Graciela Speranza adverte que “la videoteca se impone como espacio privilegiado de aprendizaje e inspiración y reemplaza a la enciclopedia tradicional del escritor, la biblioteca.” (2000, p. 45) 48

O romance foi lido como uma “paródia” por Saul Sosnowsky e depois por Josefina Ludmer, assim como por Emir Rodríguez Monegal, que sugeriu que o distanciamento não era necessariamente irônico, mas que havia uma “simpatía”, e que “aunque como escritor Puig es capaz de juzgar a sus personajes, como parodista se sitúa en el mismo nivel” (1972, p. 11). Acostumado à leitura paródica, Puig contesta em entrevista:

Yo no tengo una intención paródica. Uso a veces cierto humor porque mis temas son tan ácidos, tan mezquinos, que sería realmente muy aburrido un desarrollo de todo eso sin un elemento de humor. Son historias en general muy sombrías las mías, creo que se necesita un ingrediente de humor. Además, en la vida hay humor, ¿verdad?, y en los argentinos –aunque cueste creerlo– también. Volviendo a lo de parodia, parodia significa burla, y yo no me burlo de mis personajes, comparto con ellos una cantidad de cuestiones, su lenguaje, sus gustos (“Encuentros con Manuel Puig”, 1983).

O discurso paródico permitiria construir a distância que a crítica literária precisava para assimilá-lo no mundo da literatura “alta”. Pois, de modo contrário, a crítica o receberia (e na verdade assim o fez) como uma escrita sem profundidade, de baixa qualidade, que não passava de uma repetição dos discursos da cultura de massas. Porém, mais interessante é apelar antes ao conceito de “camp”, desenvolvido por Susan Sontag no seu clássico ensaio “Notes on camp” (escrito pouco antes da época na que Puig escreve estes romances), conceito sempre útil na leitura dos romances de Puig, onde achamos aquele deleite naïf pelo mal gosto e pelos sentimentos exagerados com os que a autora define o camp (1964, p. 288). Nesses primeiros romances de Puig as personagens vivem um cotidiano entediante sobre o qual eles não têm poder nenhum. Por isso, o cinema (e suas stars), com aquelas histórias fascinantes e rocambolescas, consegue ter um impactante efeito sobre eles, que acabam se apropriando dos modelos de beleza hollywoodianos como modelos para construir suas histórias pessoais. Porém, há um deslocamento, um desajuste, uma brecha entre as personagens e as estrelas de cinema. Em Boquitas pintadas, o “rostro perfecto de Juan Carlos” (p. 44) é o nó ao redor do qual se desenvolve o enredo e o drama principal do romance, a história de amor de Nené e Juan Carlos. Graças à sua beleza, Juan Carlos domina o mundo das mulheres. E embora ele as trai constantemente, elas perdoam, pois sua beleza o exonera de toda culpa: “¡Juan Carlos! Si Dios te hizo tan lindo es porque Él vio tu alma buena, y te premió” (p. 35) . Juan Carlos é uma criatura em muitos aspectos miserável, e não passa de um simples mulherengo de província, e bastante ignorante; no entanto, Nené, no final do romance, confessa ao filho: 49

“Mami, qué es de todo el mundo la cosa que más te gustó de todas”, y yo enseguida pensé en una cosa, claro que no se la pude decir: la cara de Juan Carlos. Porque en la vida para mí lo más lindo que he visto es la cara de Juan Carlos, que en paz descanse (p. 34).

A fantasia da personagem e a sua realidade são tão antitéticas que naquela oposição surgem os sentimentos e a ilusão de fuga: o cinema e a cultura popular funcionam como catalisadores de um desejo de mudança. Falando sobre o “par romântico” de Boquitas pintadas, Puig conta: “Para Juan Carlos, el protagonista, me basé en un recuerdo infantil [...] Se llamaba Danilo, un hombre de película (yo en esa época era un cinemaniático perdido)” (entrevista “Encuentros con Manuel Puig”, 1983) e depois:

En ese pueblo su cara linda obsesiona porque sugiere una idea de perfección, es lo único de orden superior que tienen a la vista. Aunque esa fachada no corresponda a nada internamente [...] esa belleza es un trampolín para la imaginación. Nené es una chica de lo más limitada, pero llega a una dimensión casi metafísica, a concebir abismos terribles a partir de ese impulso que le da su admiración por lo superior, una cara bella.

Calcado de um rosto hollywoodiano, Juan Carlos é para aquelas mulheres uma espécie de salvação pela beleza. Essa beleza a encontraremos no rosto do Josemar, protagonista de Sangre de amor correspondido, versão brasileira do Juan Carlos no, agora sim, o “romance tropical” de Puig. Mas veremos como nesse desajuste e exentricidade típicos da sua literatura consegue destropicalizar o Rio de Janeiro e oferecer uma narrativa tão desconcertante quanto melodramaticamente particular. Boquitas pintadas foi um sucesso de vendas, tanto na Argentina, quanto no exterior, sobretudo na França, Itália e Estados Unidos. La traición, por seu lado, tinha tido muito mais sucesso fora do que no país (a lenda diz que até a própria Rita Hayworth conhecia o romance). Puig era melhor recebido no exterior do que na Argentina, e à pouca receptividade da crítica seguiu-se o problema com a censura. Depois de deixar General Villegas para ir morar em Buenos Aires, ele já não volta para a cidade natal. Mas confessa: nada me produce más curiosidad que mi pueblo... yo querría volver como una mirada sin cuerpo. Como cuando ves una película. Quedar reducido a una mirada, ser un par de ojos, de oídos... Más allá del alcance del dolor. Ir a ver el pueblo como se entra en el cine, pues... Esa es la película que más quiero ver.”17 (ROMERO, 331)

17 Citação que recolhe o filme El ciudadano ilustre e que o protagonista, Daniel Mantovani, usa em entrevista no filme. 50

Porém, na verdade, Puig consegue voltar para General Villegas... em forma de outdoor. Na beira da estrada, ao ingressar à cidade, Puig nos dá as boas vindas com um sorriso de galã.

2.2. Cosmopolitismo à la Puig

Puig foi uma das grandes figuras cosmopolitas da literatura argentina, embora muito longe da figura do típico intelectual cosmopolita argentino ao estilo de Borges — formado pela herança de uma biblioteca europeia ou pelas frequentes viagens na juventude. Jeito muito latino- americano de se tornar escritor, as “viagens de iniciação” e as leituras em línguas estrangeiras já podemos encontrá-las como fundamentais na biografia do escritor argentino Esteban Echeverría, que abre para a literatura nacional uma linha que se continua em Lucio V. Mansilla, passando por Sarmiento, encontra em Jorge Luis Borges e Oliverio Girondo sua máxima expressão e chega até Julio Cortázar, Alejandra Pizarnik e Juan José Saer, por citar apenas alguns nomes. Puig falava várias línguas estrangeiras com fluência, e inclusive escreveu em inglês, italiano, francês e português. Mas sua aprendizagem não foi em privilegiadas viagens de descobrimento intelectual nem em um lar bilíngue ou poliglota, mas nos cursinhos de Buenos Aires, como a Cultural Inglesa, a Dante Alighieri e a Aliança Francesa. Nos cursinhos e, sobretudo, na salas de cinema. Por isso, não são as línguas europeias as que o fascinam primeiro, mas o inglês americano: aprendê-lo era acessar ao mundo dos filmes que tanto amava. A língua estrangeira foi desde cedo, junto com o cinema, a forma de fugir do ambiente limitante de cidade do interior, e aquela eleição entrou rapidamente em conflito com a própria língua: “Para mí, mi lengua era la lengua del subdesarrollo, los idiomas de la realidad eran el inglés, el italiano y el francés. Lo único que estudié en la vida con pasión fueron estos idiomas, los que iban a permitir mi fuga” (apud ROMERO, 2006, p. 256). As línguas estrangeiras são um meio para sair da Argentina, mas também para “mirarse en aquella otredad que significa el cosmopolitismo norteamericano/europeo”, como apontam Logie e Romero (2008, p. 3). A relação de tensão com a própria língua e cultura atravessa de uma ponta à outra a obra de Puig. E é ao mesmo tempo um fio condutor para analisarmos o trabalho com a subjetividade e a alteridade que ele constrói nos seus romances. 51

Ao longo da vida, Puig manteve sempre uma relação conflitiva com sua língua materna; no começo, porque não sentia o espanhol como uma língua própria e ficava com medo de escrever naquela língua. Também a via cheia de preconceitos e esnobismo “teñida de pampa y de machismo” (apud CABRERA, p. 37). Assim, o multilinguismo “le ofrece una vía de escape, le permite alejarse de la huella pedagógica y retórica de la literatura nacional, y cuestionar los espacios discursivos de la identidad cultural; viene a ser un ejercicio de exorcismo”, como apontam Logie e Romero (p. 4). É aquele universo de vozes em língua estrangeira no escuro da sala de cinema e não a grande e renomeada tradição literária argentina aquilo que será a semente da procura literária de Puig. Por outro lado, seu espanhol não foi nunca o da literatura, mas o espanhol que transitava por outros espaços, o espanhol que ele ouvia quando criança, que circulava nas revistas, o rádio, e principalmente aquele dos filmes dublados: seu o espanhol é, também, um espanhol de tradução (CABRERA, p. 49). O mito de origem da literatura de Puig se funda, então, em dois deslocamentos: do cinema para a literatura, e das línguas estrangeiras para o espanhol. No mencionado texto “Pájaros en la cabeza”, Puig percorre pela primeira vez a distância interna entre a língua materna e uma língua criativa e artística, e começa, assim, a escrever seu primeiro romance. Não é a primeira vez que escreve em espanhol: já tinha feito trabalhos de tradução, legendagem de filmes, alguns textos, mas o espanhol era considerado por ele como uma língua “de cuarta” (Goldchluk, 2000). O plurilinguismo está desde o começo da sua escrita, pois os seus primeiros textos, os roteiros Ball cancelled e Summer Indoors, foram escritos em inglês (mesmo no inglês de um nada bilíngue Puig). Em otras línguas escreveu roteiros, peças, crônicas, mas também romances (Maldición eterna a quien lea estas páginas foi escrito em inglês e Sangre de amor correspondido foi escrito em português), e muitos dos seus romances têm uma matriz multilíngue, como é possível ver nos rascunhos e diversas versões prévias deles. Puig foi um escritor “multilingue” ou, melhor, “translingue”, ou seja, aquele que consegue atravessar as fronteiras das línguas na sua escrita, criar em outras línguas que não a materna, seguindo o conceito de Steven Kellman em Translingual Writers (2000, p.11) — escritores que problematizaram o conceito de cânone nacional e seu sistema literário. Conhecemos várias dessas figuras complexas e múltiplas, Conrad, Beckett, Nabokov... E dentre os argentinos, Copi e Héctor Bianciotti em francês, e Rodolfo Wilcock em italiano. Podemos ubicar a Puig nessa linhagem? 52

Como escritor exilado e translíngue, Puig adotou a língua do país onde morava. Ganhou- se a vida traduzindo e escrevendo em outras línguas. Além do mais, participava de perto da tradução dos romances, sobretudo para o inglês, francês e italiano, e ele mesmo traduziu parte da sua obra. Pertencia a aquele grupo de escritores raros que são translingues e autotradutores. Como coloca Axel Gasquet no prólogo de Écrivains multilingues et écritures métises, “não é tanto o abandono da língua materna por outra língua de expressão o que torna interessante a figura do escritor multilíngue, mas sua recusa de enraizar em uma língua qualquer, sobretudo naquela que escolheu para se expressar” (2007, p.9, tradução nossa). Não se tratava somente de escrever em uma outra língua mas em duas: de alguma forma, escrever “entre línguas”. A partir de The Buenos Aires Affair, Piglia nota que Puig abandona o espanhol cheio de localismos de La traición e Boquitas pintadas e começa a trabalhar com um espanhol mais neutro que vai ficando cada vez mais longe da oralidade dos primeiros romances. Um espanhol “de tradução” porque, por um lado, sua obra já começava a ser inserida em um contexto mundial e Puig descobre a dificuldade que era traduzir para outras línguas seus romances tão cheios de elementos orais. Piglia afirma que “Puig deja de escribir en su lengua materna– o, si ustedes quieren, en la lengua de la tía– y empieza a trabajar el modelo de lengua de un espacio neutro, lexicalmente neutro” (2016, 143). Ou seja, sacrifica a língua pela inserção da cultura mundial na sua obra. Porém, veremos que o espanhol de Puig não é tão “neutro”, mas cheio de marcas, invenções e lastres de outras línguas. Sua língua é, como seus romances, um puro artifício, uma construção de colagens e montagens — esse o espanhol por exemplo de El beso de la mujer araña ou Pubis angelical, romances nos que introduz falas e depoimentos. Assim, radicaliza mais ainda um trabalho literário feito de discursos e palavras que não provém de um centro linguístico que os organiza. A respeito do espanhol neutro, veremos como em Sangre de amor correspondido apaga as marcas de diferenciação gramatical e sintática entre “tú” e “vos”, mas mantém marcas da oralidade em português, deixando o texto em uma indefinição estranha, o que analisarei em outro capítulo. Porfim, no seu último romance, Cae la noche tropical, volta para o espanhol nitidamente argentino nos diálogos de duas idosas que moram no Rio de Janeiro, em 53

uma belíssima homenagem ao seu espanhol mas que será sem dúvidas um romance “translingue”, quer dizer, onde terá lugar o convívio de línguas18.

2.3 O “ciclo americano”: I love NY (e DF e RJ)

A relação da escrita de Puig com as cidades nas que morou é crucial na sua literatura desde o primeiro romance. Seu enorme interesse pelas línguas e a importância que para sua poética tinham os discursos na construção de uma subjetividade se reflete tanto no interesse sobre as formas de falar quanto no árduo trabalho linguístico e discursivo na construção dos romances. Puig tinha abandonado a Argentina em 1973 e seus livros deixaram de circular no país. Também deixaram de circular entrevistas e notícias sobre ele19. El beso de la mujer araña e The Buenos Aires Affair estavam proibidas, e a partir do ano 1979 Pubis angelical tem “exibição restringida”, (o livro estava na livraria mas não podia ser exibido nas prateleiras). Em uma entrevista de meados dos anos oitenta, Puig reclama da marginalização que sofre sua obra no país, a censura, a pouca circulação e a mais ainda escassa crítica. Nos anos setenta e boa parte dos oitenta, a proibição e a censura fizeram que o Manuel Puig fosse mais lido em língua estrangeira do que em espanhol: “fue muy problemático. Ante todo perdí a mis lectores, a los principales. Yo escribo, ante todo, para la gente que comparte mis problemas; más que nadie los comparte un argentino. Y fueron años en que mis libros no llegaban a los argentinos.” (apud ROMERO, 2006, p. 287) Pubis angelical foi escrita entre 1976 e 1979, e se passa em 1975, pouco antes do golpe de Estado na Argentina. Entre Cidade do México e Nova Iorque escreveu também El beso de la mujer araña, roteiros como La cara del villano e Recuerdo do Tijuana (1978), os musicais Amor del bueno (1974) e Muy señor mío (1975). A nostalgia era um espaço perigoso para Puig (MASIELLO, 1998), mas nos romances escritos nesta época, El beso e Pubis angelical, a Argentina é um espaço literário e de disputa política.

18 Nos áudios dos anos setenta de Manuel Puig podemos ouvir como sua voz tinha um sotaque marcadamente mexicano. Mas já nas gravações de finais dos anos oitenta, após sua passagem pelo Brasil, é clara a mistura de melodias do argentino, mexicano e português brasileiro. 19 Até a nomeação para o prêmio Nobel teve um mínimo ou quase nulo destaque na imprensa. 54

Ana, a protagonista de Pubis angelical, é uma argentina de classe média alta que está hospitalizada no México. A medicação faz com que ela tenha alucinações e sonhos que, no romance, estão narrados apelando ao melodrama, ao suspense e à ficção científica. Nas alucinações, Ana se desdobra em uma star de Hollywood dos anos vinte e em uma prostituta do futuro que, através de fantasias que incluem o descobrimento da origem secreta do patriarcado, tenta entender sua frustração em relação com seu gênero e sexualidade. Essas fantasias e as perguntas que faz enquanto está consciente são o veículo que ela encontra para questionar os discursos que conhece e que modelam as formas de resposta sexual e de classe às que estava acostumada. Mas além de problematizar os discursos da sexualidade feminina e da maternidade, entre outros, ela realiza também uma reflexão sobre as formas de falar. Já morando no exterior, Puig começa a incluir “observações linguísticas”. Neste primeiro caso, ouvindo e analisando o espanhol da Argentina à distância. No romance, Ana dialoga com sua amiga mexicana sobre os significados das palavras. Em uma cena hilariante, elas falam sobre a eleição que a aristocracia argentina faz de certas palavras por sobre outras:

— [...] Allá en Buenos Aires decimos comer, en vez de cenar, como dicen ustedes. — Cenar es correcto español, ¿no? — Y ustedes dicen comer a mediodía y nosotros almorzar. Pero también allá hay gente que dice cenar. Pero esa es una cosa cómica, porque está visto como de clase baja. — ¿Y por qué cómica? — No, digo cómica porque justamente tiene que ver con algo de él, de Pozzi. Pero te lo cuento después. Bueno, me da vergüenza pero te lo cuento ya. Hay palabras que allá están consideradas de clase baja, como rojo,... esposa, hermoso, cena, y qué sé yo. Y el primer día que vi a Pozzi, yo dije que me tenía que ir a comer y él hizo un chiste y todos se rieron de mí, y me hizo quedar como una snob. — Sigue. — Yo fui educada así, en casa nunca se dijo rojo, siempre colorado. Y mujer en vez de esposa, marido en vez de esposo. Fue él que me hizo ver hasta qué punto era toda una cuestión snob, clasista, ¿me entendés? [...] — ¿Tú crees que ustedes los argentinos se merecen la fama que tienen, de snobs? —¡Claro! La clase alta no te imaginás lo que es, yo los conozco muy bien. — ... — Yo había sido educada así, de chica mamá me corregía si yo decía la palabra equivocada. — ¿Tu mamá es de clase alta? — No, más o menos acomodada, pero alta no. Snob y basta. Y me olvidaba lo peor, “tomar la leche” en vez de “tomar el té”. Peor todavía que decir “rojo”. (49/50)

Ana conversa também com o namorado, Pozzi, que é um militante peronista argentino de esquerda dos anos 70. Ela lhe faz várias perguntas complexas ao respeito da sua ideologia 55

política, pois precisa entender o que significa “peronismo de izquierda”. Para responder suas perguntas, Puig pega emprestada a voz de um militante peronista de esquerda: grava a explicação dele e a inclui no romance. Em entrevista, Puig declara: “Yo diría que no tengo una visión muy clara del peronismo [...] Yo me puse en el lugar de Ana, busqué a alguien que respondiera a las características de Pozzi y armé la escena de esa manera” (1982, p. 22). O uso do gravador é para a explicação de certas palavras ou conceitos que o escritor quer deixar para outras vozes falarem. A construção do romance é, mais uma vez, uma montagem de vozes, mas agora é introduzida uma tecnologia na ficção. Mesmo sendo um recurso de jornalistas ou da literatura testemunhal, Puig evita o uso jornalístico do gravador e o transforma em um uso artítstico mais emparentado com as experimentações artísticas de vanguarda como os trabalhos Tape poems ou Literatura oral (1966) dos artistas visuais Eduardo Costa e Roberto Jacoby, que exhibiam a materialidade da fala em um projeto para o qual gravavam a diferentes pessoas falando e expunham os gravadores e as fitas (COSTA, 2016, p. 5). Radicalizando mais ainda sua aposta pela voz dos personagens, tirando todo indício de um narrador único, Puig confessa na entrevista citada: “Me valgo de un personaje porque pienso que ese personaje sí asume un punto de vista.”(1982, a ênfase é do autor). Ana e Pozzi tentam chegar a uma definição de “peronismo”:

— Pero definime entonces a Perón, con una palabra, o decime con quién lo podés comparar. —Ya que te gustan las etiquetas, ahí va la palabra: populismo. Era un caudillo populista, el jefe de un movimento popular. Si querés un nombre, se me ocurre uno solo. Nasser. Pero esa es otra historia. — Pero me das vueltas y vueltas, y no llegamos a... — ¿No llegamos a qué? Te estoy contando. — ¿Pero era un tipo de derecha o no, para vos? — Era un populista. — Dale con eso. — Sí, dale. Tenía una estructura mental formada por su educación militar y por las experiencias que vivió en la Italia de Mussolini, pero era ante todo un pragmático, es decir buscaba la fuerza allí donde ésta estaba. No interesa si él en el fondo era un derechista. — Pero cómo no iba a interesar, ahí tenés lo que dejó de herencia, una presidenta de ultraderecha. — Tenés razón, interesa, desde hace unos meses he comenzado a sospechar que interesa más de lo que yo creía. La herencia es un resultado, un finale. La política se ejerce por opciones, es igual que cuando vas a votar, tenés que elegir entre lo que hay. [...] — Yo lo que no entendo es como te podés meter en un partido donde hay todos esos grupos de ladrones, y bien de derecha que son, puritanos y todo, como el que me tocó conocer de cerca por desgracia. 56

— Yo no entré en un partido, yo entré en el peronismo, que es algo mucho más grande que un partido. El peronismo es un movimiento: partidos, sindicatos, organizaciones empresarias, estudiantiles, tendencias ideológicas diametralmente opuestas. Solo unificadas en la idea del movimiento nacional y en la figura de Perón. (p. 110)

A cena continua com a explicação do grupo armado Montoneros e a ERP, em um momento em que na Argentina continuava sob a ditadura militar. Na distância, a política argentina foi um tema que Puig tocou de forma extremamente aberta, tanto em El beso de la mujer araña quanto em Pubis angelical. Por questões de saúde, Puig deixou o México em 1976 e voltou a morar em Nova Iorque. Lá terminou de escrever Pubis angelical e se dedicou também a uma série de crônicas que foram reunidas em Estertores de uma década, escritas para a revista espanhola Bazaar entre finais de 1978 e começos de 1979. Mas depois de um tempo, Puig ficou desapontado com a cidade americana. Não se sentia mais à vontade com os nova-iorquinos, como confessa em entrevista: “el Nueva York de la segunda vuelta fue muy triste para mí. Era el de la resaca, se había acabado la aventura hippy y no había proyecto colectivo. Yo trataba de interesarme por las cosas del país y hacer amistades, pero me sentía muy aislado” (1982, p. 22). Na mesma entrevista, Puig conta que conheceu um jovem americano na piscina, um “personagem” que queria ser escritor, e que não gostava dos americanos: “Yo quería ser él y él quería ser yo [...] Entonces le propuse dialogar tres veces por semana, pagándole. Nos encontrábamos dos horas cada vez. Él no quería grabadora [...] Ese diálogo, en el que yo me ponía en el lugar del viejo, es la novela” (p. 23). Como no caso de Pubis angelical, Puig performa o papel de um dos personagens: “Él se sentaba al lado mío y yo tomaba nota a máquina de lo que íbamos diciendo” (apud ROMERO, 2006, 204). O romance é um longo diálogo entre o velho e afásico Ramírez, um líder sindical argentino, hospitalizado em Nova Iorque e o jovem e saudável Larry, um estudante americano pobre. Puig faz um novo experimento que continua e aprofunda suas procuras estéticas e experimentações literárias. Agora com um “personagem” americano, a escrita é a duas vozes e duas línguas: não era a primeira vez que trabalhava em inglês, mas Puig faz um particular trabalho de tradução neste romance, que escreveu ao mesmo tempo em inglês e espanhol, um enorme trabalho linguístico e de tradução. Publicado em espanhol em 1980 (a versão em inglês aparece dois anos depois) o romance deixou à crítica desconcertada: pela primeira vez não havia paissagens argentinas e um dos 57

protagonistas era estrangeiro. A crítica marcou nele seu espanhol de “tradução”: de fato, no romance os personagens jamais usam o “vos” argentino, pronome de segunda pessoa, mas o formal “usted”. Com Maldición eterna a quien lea estas páginas em andamento, em 1980 Puig decidiu acabar o relacionamento com Nova Iorque e se mudou novamente. A cidade escolhida dessa vez foi Rio de Janeiro, onde morou nove anos seguidos. Brasil oferecia muitas vantagens, entre elas, a volta a uma vida mais “sul-americana” e morar perto da Argentina, sobretudo do seus pais, cuja saúde o preocupava. Segundo sua biógrafa (e tradutora) Suzane Jill Levine, “Rio was perfect: a big city with a cultural life and a beach where Manuel could swim every day. The Cariocas were relaxed, fun-loving, and ‘tropical, but not too tropical’ – and the boys were black, beautiful and available.” (LEVINE, 2001, p.311). Rio de Janeiro era a grande promessa do paraíso. Puig conta à família sobre as primeiras e deslumbrantes experiências na cidade maravilhosa em várias das cartas reunidas em Querida familia, livro organizado pela crítica Graciela Goldchluk que reúne as cartas do Puig aos seus familiares. Lendo as cartas podemos ter uma impressão das coisas que mais o interessavam na época da mudança para o Rio: antes que mais nada, o trabalho, depois as questões relacionadas com a nova casa (a dificuldade de achar um apartamento e a quando o encontrou) e, logicamente, os filmes que assistia diariamente. Sua vida era de trabalho, tranquilidade e conforto. Puig comprou quatro apartamentos no Leblon: um para ele, e os outros para a mãe, o pai (que foram morar no Rio depois) e o namorado. Puig morava na rua Aperana, no Alto Leblon, uma rua sem saída, a poucos quarteirões da praia. O prédio ainda existe e se conserva igual à época na que morava Puig (ver Figura 3). As cartas misturam trabalho, ideias sobre o Rio, o apartamento novo, os filmes que assiste, as plantas, os banhos de mar. Também, fala das pessoas das quais se cerca (algumas delas aparecerão no seu romance Cae la noche tropical), de escritores e das estrelas de Hollywood como personagens da vida dele que compartilha com sua família. Não deixa de falar do sucesso ou a falta de sucesso de alguma das suas obras — comenta o impacto que de El beso no Brasil: “ya en Río empiezan a reconocerme por la calle” (2006, p. 337) —, as resenhas e, sobretudo, fala do que ele pensa dos seus romances e o destino que imagina para eles — enfim, a sua relação com seus próprios textos. Puig é muito organizado e meticuloso com os detalhes de cada um 58

deles: tradução, edição, prêmios, circulação, resenhas. E aquilo tudo entra no mundo íntimo das cartas. No Rio, finalizou o romance Maldición, ganhou prêmios, deu palestras tanto no Brasil quanto na Europa (Alemanha, França, Itália), revisou as traduções de El beso de la mujer araña, adaptou roteiros. A editora Codecri relançou sua obra no Brasil, e ele começou as conversas com Hector Babenco para filmar El beso. Recebia em casa a amigos escritores e editores, evento que havia virado um gênero em si mesmo: visitar a Manuel Puig no Rio. Entre os muitos artistas e críticos que o visitaram, há o relato da visita dos escritores César Aira, Alan Pauls, o poeta Daniel Molina, o artista visual Eduardo Costa, o músico Federico Moura, a crítica Graciela Speranza... Segundo os visitantes, sua biblioteca não era muito volumosa. Já a videoteca era enorme (chegou a contar com mais de 3.500 títulos). Foi também lugar de reunião de amigos cinéfilos, onde se juntavam para assistir cinema nas projeções caseiras que Puig fazia, motivo pelo qual chamavam sua casa de “o cineminha do Leblon”.

Figura 2 - Fachada do prédio de Puig no Rio

Foto da entrada da casa de Puig, na rua Aperana Nº 57. Fonte: fotografia Julia Tomasini, 2019. 59

Puig contava na cidade com um círculo de pessoas que o ajudaram nas suas pesquisas e nas traduções; entre outros, Susana Pravaz, psicanalista, Luiz Otávio Barreto, tradutor, May Lorenzo Alcalá, agregada cultural no Consulado argentino. Em livro autobiográfico, ela fez um belo depoimento sobre as tradicionais veladas na casa da mãe do Puig:

Un día me llamó para invitarme a compartir una de las famosas – pero recónditas – sesiones de video. Me preguntó ¿qué querés ver? Yo le respondí automáticamente: una de Greta Garbo... la primera hablada. La respuesta, dada en aquel tono semiseductor de Manuel, fue a pesar de ello contundente: ¿querés la versión americana o la alemana? [...] Había que llegar justo a las nueve; un retraso de quince minutos ocasionaba amables pero enconadas quejas [...] Después se pasaba al cuarto de los televisores. Había tres o cuatro, con sus correspondientes videos, que cubrían un amplio espectro de sistemas, ya que Manuel recibía material de Roma, París, México, Estados Unidos y alguna bala perdida de Argentina. Allí se veía en silencio el film seleccionado por Manuel, que a veces lo hacía en honor a sus invitados o exhibía sus “estrenos”, recién llegados a través de algún corresponsal. Si la copia era sin subtitular y el idioma original era inglés o alemán, Mauel hacía la traducción simultánea para Male – y también para nosotros en el caso de la última lengua–.Terminada la película, se la comentaba por unos diez minutos, durante los que se degustaba algún licor preparado por Male o whisky traído por Manuel en su último viaje. A eso de las doce y media los invitados partíamos escrupulosamente. (1992, 105)

Sua vida no Brasil foi retratada pelo diretor Javier Torre (filho do diretor Torre Nilson, que levou ao cinema Boquitas pintadas) no filme Vereda tropical, de 2006. Apesar do olhar às vezes simplista sobre sua vida em geral e seu processo de escrita, é interessante a reconstrução de um Rio dos anos 80 e a sensibilidade de Puig na cidade. O filme não está a altura do personagem (ao contrário dos romances de Puig), e uma coisa chamativa para um filme sobre Puig é que as vozes estão “dubladas”. Há um outro trabalho sobre a vida de Puig no Brasil em dois capítulos do livro Varados en Río (2017), do escritor espanhol Javier Montes, onde relata o percurso de três escritores estrangeiros no Rio: Manuel Puig, Elizabeth Bishop e Rosa Chacel. Não-ficção misturado com autoficção, o texto retrata a Puig através das pessoas que o conheceram no Rio. Do alegre recebimento playero aos Herralde à enorme decepção que levou Alan Pauls ao conhecer seu mestre, Montes faz um bonito racconto daquelas visitas assim como as veladas de cinefilia às que obrigava aos seus amigos: “Su amiga Felisa Pinto recordaba que en una ocasión Puig le hizo ver quince veces una escena en la que Hedy Lamarr se probaba un sombrero”, conta Montes, divertido. 60

Na casa de Leblon, Puig tinha uma verdadeira montagem de aparelhos de vídeo e televisores: Había usado los tres sistemas distintos de grabación internacionales (Beta, PAL y VHS), y después de unos comienzos acidentados en los que se hizo con cintas que luego no podía ver, acabó comprando tres televisores compatibles con cada videograbadora, para simplificar. El sistema de captación incluía ramificaciones, provedores y porteadores de mercancia de varios países, “las esclavitas” o los “videoesclavos”, como los llama en sus cartas: amigos cinéfilos y críticos que grababan en televisores de Nueva York, Los Ángeles, México DF, Roma y París (MONTES, 2017).

De uma forma novedosa e “tecnológica”, na sua vida no Rio de Janeiro Puig articula novamente cinema, língua e literatura. Ao invés de prestar atenção no seu olhar estrangeiro, Puig deixou-se encantar pelo olhar brasileiro, um tipo de olhar radicalmente oposto ao argentino e certamente distante do americano: “En Brasil hay una tolerancia que yo no había encontrado nunca, distinta de la de Nueva York, donde podés andar desnudo y ninguno dice nada, pero porque de alguna manera nadie te ve ni te observa. La mirada carioca es otra cosa, no es crítica pero jamás es indiferente” (em entrevista “Cine y sexualidad”, 1986, p. 112). 61

3 SANGRE DE AMOR CORRESPONDIDO: UM ROMANCE BRASILEIRO

3.1 Aproximações e distâncias (II)

Em março de 1980, Puig comprou o apartamento da rua Aperana, e entre julho e agosto começou um novo romance. “Va a ser complicadita y llevará tiempo pero me gusta mucho el proyecto, ya estaba dándole vueltas hacía meses pero ahora ya está bien planteado el plan”, escreve Puig em carta à família (p. 317). Trata-se de Sangre de amor correspondido. Embora Puig vivesse em um despreocupado Rio de Janeiro, e com a vida sonhada que a fama e fortuna vindas do reconhecimento internacional lhe davam, o primeiro romance que escreveu no Brasil não é um romance nem feliz nem paradisíaco. O personagem nada tem a ver com ele nem com o tipo de vida que fazia. Também não experimenta fazendo o papel de algum dos personagens, como vimos em Pubis angelical ou Maldición eterna a quien lea estas páginas. Puig não está de alguma forma “envolvido” no romance. A distância entre eles é enorme. Diferentemente de seus romances anteriores, o romance não trata de experiências passadas, ou lembranças, como La Traición de Rita Hayworth ou Boquitas Pintadas, nem de questões relacionadas com a arte ou a política ou a sexualidade, como The Buenos Aires Affaire, El beso de la mujer araña, Pubis angelical, nem de alguma situação pessoal que quisesse compreender, como Maldición eterna a quien lea estas páginas. É também o único romance que não tem personagens argentinos20. Dessa vez, veremos, trata-se principalmente de uma língua que se impõe. Longe dos cenários maravilhosos da cidade, do mar e do conforto urbano, Josemar, o protagonista de Sangre, vem da roça, de uma cidade pequena do interior do Rio — e a maior parte da narrativa se passa em cenários naturais e pobres do interior. A história e o personagem do protagonista são baseados nos depoimentos de um jovem pedreiro (muitas vezes chamado de “Chefão”), de cerca de trinta anos, que tinha vindo de um município do noroeste fluminense, Laje do Muriaé, para trabalhar no Rio. Puig o conheceu logo depois de se instalar no Rio, quando

20 “Ahora tengo un tema brasileño – disse em entrevista com Nora Catelli–. Despareció totalmente lo argentino. Tal vez esté tan presente, que no tenga necesidad de corporeizarse en un personaje” (1982, p. 25). 62

decidiu fazer obra no novo apartamento. Ele tinha contratado um grupo de pedreiros, e um deles chamou em seguida sua atenção pela forma de falar: “Despertó muchísimo mi curiosidad. Siempre había en su lenguaje un desvío, un trabajo metafórico [...] eso me llamó la atención y quise registrar su habla, tratar de captar su lenguaje”, comenta em entrevista a Gillio (1984, p. 39). Puig pensou em gravá-lo para ter um arquivo da sua voz, o que poderia ser útil no futuro para alguma narrativa, da mesma forma como colecionava trechos de filmes em fitas. Mas quando começou a gravar, Puig percebeu que além de uma voz fascinante havia uma história e um personagem, ambíguo e fantasioso:

Él tenía una historia que contar: había amado a una mujer pero tuvo que marcharse del pueblo y ella se volvió loca. Yo me creí todo lo que me contó, pero unos días después, empezó a introducir en su historia contradicciones y variaciones. Al haber encontrado alguien que le escuchara, aprovechó para proyectar una visión ideal de sí mismo. (PUIG apud LEVINE, 2001, p. 327).

Puig relatou várias vezes a inusitada origem do seu romance: “Se me cruza un personaje con una historia extraordinaria y un lenguaje especial, y yo tengo, de algún modo que analizar ese lenguaje” (PUIG apud SIGANEVICH, 1997, p. 239, a ênfase é nossa). Ao longo de várias sessões no mês de agosto de 1981, Puig grava seu diálogo com o pedreiro: ele vai contando sua história de vida, suas relações amorosas e especialmente a relação com uma namorada que ficou louca, tema no que Puig estava interessado. Segundo os planos de Puig, o romance seria exatamente a história de Abelardo, o pedreiro, com seu jeito de falar e as contradições da sua narrativa. Não era a primeira vez que usava o gravador, mas certamente nunca o tinha utilizado para fazer um romance completo21. Como explica a jornalista Maria Moreno:

Manuel Puig utilizó notas, luego grabador, en principio de manera convencional, para poder conservar y consultar información y capturar ciertos tonos. Es en Sangre de amor correspondido en donde quedó capturado en una cinta que no venía de Hollywood al utilizar una serie de grabaciones, exacerbando al máximo la exclusión de un narrador omnisciente (2004).

21 No já mencionado filme Vereda tropical é quase caricaturizado o uso do gravador por parte de Puig. Em uma cena, o escritor frequenta bares para ter encontros com homens e gravá-los secretamente enquanto eles falam. Uma noite, um deles percebe o microfone, bate nele e Puig fica ferido. É uma pena que o filme não tivesse narrado melhor o trabalho de Puig com a gravadora como parte do seu trabalho de escritor e não de tosco “espião”. 63

Em uma aposta absurda na escrita e na literatura, Puig começou a entrevistar a Abelardo para construir seu novo romance em português quando mal tinha acabado Maldición eterna a quien lea estas páginas, mal tinha se mudado para o Rio (o apartamento estava em obra) e mal sabia falar o português. Haverá no mundo escritores tão otimistas e entusiastas quanto Puig? Puig encontra um “personagem” a quem quer “analisar”, primeiro por causa da língua e depois, por causa da história que vai contando: a história de um jovem que mesmo se fazendo de macho durão, é sensível e contraditório. Por isso lhe propus fazer um romance com a sua história: ele lhe pagaria para que contasse sua vida respondendo suas perguntas. E dividiriam os direitos autorais: “firmamos un contrato para que él cobrara derechos, derechos de personaje, claro” (apud ROMERO, 2006, p. 215, a ênfase é minha). Podemos imaginar a estranha e rara cena de um autor e seu personagem fazendo um pacto? Uma cena à la Pirandello, mas na qual o autor procura um personagem, ou melhor, encontra-o:

Al principio no creía que de aquello saliese una novela, simplemente quería captar ciertos rasgos de lenguaje campesino. Pero al oírle, me fui dando cuenta de que había allí una historia, no solo un lenguaje. La historia, pues, me interesaba, pero pensaba que tendría necesidad de buscar recursos estructurales para mantener la intriga, para reforzar el contenido anecdótico. Pero sucedió algo imprevisto, el personaje se empezó a contradecir (apud ROMERO, 2006, p. 264).

Esta particular gênese e construção do romance é conhecida no nível anedótico, sobretudo através das entrevistas que o mesmo Puig concedeu. Aliás, muito do que sabemos dos romances de Puig é através de entrevistas: apesar da complexidade conceitual dos seus livros, Puig nunca escreveu ensaios sobre literatura ou sobre sua estética ou inclusive interpretações sobre seus romances, mas deu declarações em entrevistas que tratavam sobre o processo de escrita. Piglia sublinha este fato:

Nosotros tenemos que escuchar el modo en que un escritor quiere ser leído, no cómo interpreta sus textos. Lo que dice un escritor cuando interpreta el sentido de los textos no tiene ninguna importancia. Pero sí la tiene lo que diga sobre la experiencia de la construcción. Lean las entrevistas a Puig y verán lo que es una consciencia literaria refinada (2008, p. 136).

Terá sido sua confiança naquela “consciencia literaria refinada” que o levou, como um Nabokov às avessas, a escrever em língua estrangeira mas sem dominá-la? 64

Além da língua, o personagem e sua história são distantes para ele, mas essa distância é arrasada pela aproximação imediata com a sua fala, efeito do recurso tecnológico que é a gravadora. Abelardo fala um português rural, cheio de erros gramaticais, e infinitas repetições de marcadores discursivos: “aí”, “olha”, “o seguinte”. Sua língua é ágil, expressiva e por vezes crua para contar uma história cheia de ambiguidades, carências, machismo, mas também de uma enorme sensibilidade. E se por um lado é a primeira vez que Puig trabalha com um personagem, linguagem e locações distantes do seu “universo”22 (as referências são do mundo da roça, da mata atlântica ou da periferia carioca) é também a primeira vez que trabalha de forma tão próxima à fala e ao universo daquele personagem. Uma proximidade máxima que dribla o testemunhal e o documentário para experimentar com muitíssimo risco (do qual tanto Puig quanto seus críticos sabiam) com a linguagem particular de uma voz, cuja forte dicção se mantém tanto na versão em português quanto em espanhol (no próximo apartado analisarei o português do “original” e o espanhol da “tradução”). É nessa dinâmica de máxima aproximação e ao mesmo tempo de enorme distância que o romance de Puig opera uma forma singular de trabalhar a outredade (cultural e linguística) e que o encontro entre o escritor argentino e a cultura brasileira propus como desafio. Em 1982, publicou simultaneamente a versão em espanhol com o título Sangre de amor correspondido, editado por Seix Barral, e Sangue de amor correspondido, em português pela editora Nova Fronteira. Na orelha, a professora e crítica literária Bella Jozef anunciava que “o famoso escritor aqui [no Rio] vive”. E a contracapa trazia o instigante texto:

Quem tem medo de Manuel Puig? [...] Quem tem medo de ouvir a voz de um pedreiro brasileiro e com ele, na linguagem dele, reconstruir a trajetória de uma vida que só resta a alucinação do sexo? Quem tem medo de ver e sentir, na fala e no corpo desse pedreiro, a força de um povo que, mesmo massacrado pela miséria, inspira e faz nascer uma obra-prima como este Sangue de amor correspondido? (1982).

Se bem na Argentina já ninguém tem medo de Manuel Puig, Sangre de amor correspondido é o seu romance menos estudado. Será pela dificuldade de lê-lo como um romance claramente “puigueano”, pela falta de elementos da “cultura popular”? Será pela distância com a

22 Não parece ter nada a ver com o brilhante mundo de stars de Hollywood, ou a linguagem do rádio ou do cinema ou das revistas do coração ou dos gêneros menores, bastardeados, materiais de onde a maioria dos seus romances extraem a sua força narrativa, imaginativa e de experimentação que tanto comoveu o panorama das letras na Argentina. 65

literatura do Puig mais famoso? Ou será pela distância cultural com o Brasil? Ou será por todas essas razões, na inesperada experimentação linguística entre o português e o espanhol que o livro propõe? Estruturalmente, o romance trata-se de um longo monólogo em terceira pessoa dividido em onze capítulos e um epílogo, sem alternância de narradores. Também não achamos aqui intertextos nem citações, como as características epígrafes de boleros, tangos ou diálogos de cinema, tão frequentes na literatura de Puig. Como muito bem adverte Pamela Bacarisse, o fato de muitos críticos terem analisado principalmente a inclusão da arte popular, os discursos dos meios de comunicação e o cinema na literatura de Puig, fez com que não achassem Sangre de amor correspondido muito relevante, pois não há nele as referências culturais típicas da sua escrita (1991, p. 471). A crítica deixou pouco espaço para este romance, como se na análise dos primeiros romances houvesse sido abordado tudo o que precisava ser dito sobre Puig, e esse último tivesse sido apenas uma nova e talvez fraca modulação do mesmo artifício narrativo. Neste sentido, Alan Pauls aponta que tanto este romance quanto Cae la noche tropical são romances estranhamente desprovidos de cultura: “Aquí no hay cine, ni radio, ni televisión, ni boleros ni tango: ninguna de las influyentes matrices de la cultura de masas que en los libros de Puig suelen tramar historias” (2007, a ênfase é nossa). Mas o que sim trama histórias neste romance? É a própria língua e discurso do personagem os que tramam a história: o autor apenas foi alterando a ordem, “montando a voz”, como veremos mais adiante. Puig, cuja literatura se baseia em personagens e suas vozes, dessa vez foi até o extremo. Talvez este romance seja um dos mais puigueanos e talvez Puig, no sacrifício do sua voz, seja um dos escritores mais fieis ao seu projeto. Com a distância dos anos, olhando para trás na sua carreira, Puig percebeu o percurso da sua escrita, os meandros do seu projeto estético. Em várias entrevistas se defende, amargurado, das leituras com “má vontade”. Sobre Maldición eterna a quien lea estas páginas e Sangue de amor correspondido disse, defendendo-se das críticas:

Lo que no acepto es que se diga que hubo razones editoriales, necesidad de publicar. No, porque realmente si yo hubiese, alguna vez, cedido ante eso, hubiese escrito diez versiones de Boquitas pintadas [...] He abandonado filones que daban para más, siempre tratando de responder a esa compulsión interna, a una real necesidad de expresar algo, a 66

veces no compartiendo con los lectores el interés por el tema23. (apud ROMERO, 2006, 345)

Sabemos, então, que no romance não há marcas textuais que indiquem reproduções de diferentes discursos, ora um discurso recortado de outro lugar – como por exemplo é possível ver em Boquitas pintadas, nos recortes de jornal, ou em El beso de la mujer araña as explicações sobre sexualidade –, ora nos diálogos dos personagens atravessados pela linguagem dos meios massivos de comunicação. Muito pelo contrário, como bem coloca Bacarisse, a falta de elementos da cultura popular explica-se na própria gênese do romance: “su redacción a partir de la transcripción de un relato real deja entrar la vida de una manera tan directa en la novela que la mediación de los subgéneros se vuelve complicada” (1991, p. 471). Assim como em Maldición eterna a quien lea estas páginas, Puig decidiu trabalhar com o discurso do seu personagem, fazendo apenas algumas intervenções. A história, contada através da voz daquele oximoron que é o que ele chama de “personagem real” prima por sobre as múltiplas possibilidades de trabalhar o material como uma não ficção ou como uma pura ficção ou ficcionalização. Como aponta Giordano, “las voces, para la literatura de Puig, no son simplemente un material ya dado que se somete, con miras a su integración estética en una novela, a un trabajo de ‘ficcionalización’” (2001, p. 8). Claudia Kozak, por sua parte, completa a ideia:

entre la voz del albañil que Puig conoció en su departamento de Río de Janeiro, con el que estableció un contrato de trabajo, y la voz de Josemar tal como la leemos en Sangre de amor correspondido, esas voces tan próximas, hay una distancia infinita. Entre una y otra voz ha ocurrido un salto: la invención de un sentido “novelesco” de lo que esa voz dice y de sus modos de decir, un sentido irreductible a lo “interesante” de las inflexiones de la voz real y a lo “interesante” de la historia que cuenta en Sangre de amor correspondido (1998).

Puig faz uma máxima aproximação da cultura do outro, gravando sua língua e se apropriando dela na escrita do seu romance, mas não se trata de testemunha nem depoimento. Como apontou Piglia, ele “crea un extraño desplazamiento: Puig ficcionaliza las marcas de lo testimonial y borra las huellas” (1993, p. 116). Assim, eliminando os traços de documento, escreve e publica um romance (e em duas línguas e para dois mercados diferentes) que levará seu

23 Desde o começo da sua carreira, Puig teve problemas de “timing”: La traición de Rita Hayworth demorou uns anos a ser publicado por causa do medo das editoras à censura. No caso de El beso de la mujer araña aconteceu a mesma coisa: as editoras da França e da Itália não queriam publicá-lo por se tratar de um tema complexo e tabú demais para a época como a de unir homossexualidade e militância política. 67

nome de autor. Daí a confusão e desestabilização de certas categorias, como a de “autor” e “personagem”. O trabalho do romancista Puig não está na história nem na voz que vai contando, mas no tipo especial de construção:

cuando me pongo a contar decido yo en qué términos voy a contar, a la historia no la puedo cambiar, pero sí puedo elegir yo el estilo, la técnica, y ese es un momento de libertad estética que me da placer, porque si de algún modo resuelvo problemas expresivos, eso me gratifica (apud ROMERO, 2006, p. 280).

Puig decidiu dividir com Abelardo os direitos, não de forma legal, mas precária, ou seja, não direitos de autor (regulados pela lei), mas direitos de “personagem”, como ele disse, então inventados por ele mesmo. Abelardo era para Puig “sin proponérselo un verdadero creador, que es lo que pretendemos todos” (apud ROMERO, p. 264). Para dissolver mais ainda as fronteiras entre autor e personagem/entrevistado, Puig escreveu em carta à família: “la novela nueva con problemas pero tiene partes que son lo mejor que he escrito en mi vida, creo, ese albañil fue un genio” (2006, p. 331). A constante fusão e confusão entre pessoa, personagem e autor não é estranha ao universo Puig, onde a fantasia e a realidade já se misturavam naquele cinema de General Villegas. Mesmo trabalhando sempre na beira da não ficção e com materiais da realidade, nunca renunciou à ficção, pois é nela que depositava a maior confiança e a maior aposta da sua literatura. Como se continuasse sendo aquele menino na sala de cinema, Puig brinca que Abelardo é um personagem inclusive “na vida real”. Se tivéssemos que pensar em uma ars narrandi de Puig seria a de uma literatura de personagens: cada romance é uma investigação, uma análise de algum personagem, que parece falar sem nenhum tipo de mediações, sem “narrador”: aquilo que Speranza chama de “coartada Puig” (2000, p. 8), o esvaziamento da figura tradicional do narrador (SPERANZA, 2000, KOZAK, 2007), uma operação consistente e efetiva (de alguma maneira, nós, leitores caímos sempre na armadilha) que apaga a voz do narrador e a dissolve na de seus personagens. “Escribo novelas porque hay algo que no entendo en la realidade – diz–. Lo que hago es localizar ese problema especial en un personaje literario. Es más fácil” (apud ROMERO, 2006, p. 297). E falando de El beso de la mujer araña, adiciona: “como siempre en mi narrativa, la experiencia vivida dictó la novela” (apud ROMERO, p. 340). 68

Sangre de amor correspondido compartilha, por outro lado, as temáticas e o tratamento ficcional que Puig já tinha feito em seus romances anteriores: a absurda importância da sexualidade na construção da identidade, a necessidade de se libertar de papéis fixos sobretudo na questão de gênero. No monólogo desequilibrado de Josemar vemos seu aspecto defensivo de frente à imposição de ser “macho”, o galã mulherengo, e as mentiras de todos os clichês do machismo na submissão sexual das mulheres pela força de dominação masculina, quase animal. Mas o romance não interessou nem à crítica nem ao público. Talvez porque aquilo que o leitor de Puig poderia ter esperado no seu primeiro romance “carioca” não aparece, como o gozo do tropicalismo ou stars exportadoras de brasilidade como uma Carmen Miranda 24 , ou um tratamento kitsch e exotizante ao que a cidade maravilhosa está acostumada nos filmes hollywoodianos, ou a inclusão de letras da sensual e potente música brasileira –misturando samba, bossa nova e MPB... Isso tudo aparece negado: em Sangre de amor correspondido não há correspondência com a expectativa do leitor. Não há o olhar romantizado da cidade, nem sequer do Brasil. Não está hipercodificado de cultura brasileira, pelo menos não a partir de um desejo estrangeiro que se dispõe a ver no Brasil apenas o que procura achar. Não há praias, não há alegria descompromissada, felicidade e liberdade em uma exuberante e glamorosa vida tropical. Há, porém, rígidas hierarquias sociais e raciais, uma sexualidade machista e conservadora que atinge tanto mulheres quanto homens. O Rio mostra no romance uma cara conhecida para os cariocas, mas que não é tão familiar para os argentinos. Ao gravar e trabalhar com a fala de Abelardo, totalmente imerso na sua realidade brasileira, Puig apaga o próprio “olhar estrangeiro”, porque, na verdade, opera com um “ouvido estrangeiro”. Fascinado pelo português do Rio, e especificamente o português falado por Abelardo, é atraído pelo seu colorido e plasticidade: a gênese do romance encontra-se em um amor/interesse linguístico. Sangre/ Sangue de amor correspondido é uma utopia literária da pura voz do outro, uma declaração de amor à língua brasileira. Em todas as entrevistas que concedeu sobre o romance, Puig não deixou de mencionar o impacto que produziu nele a língua: “Llego a Río de Janeiro y empiezo a descubrir una música y un colorido en el lenguaje…” (PUIG apud ROMERO, 2006, p. 474).

24 Não quero deixar de mencionar que a capa de Seix Barral do romance Cae la noche tropical trazia a foto em preto e branco de Carmen Miranda com frutas na cabeça. 69

O ritmo da fala – com suas repetições e intensidades – e a dicção tingida pelo vocabulário e gramática da língua oral estão em destaque no romance e lhe dão uma particular força linguística. Bella Jozef coloca que Puig eleva “o coloquial à categoria literária e lhe empresta uma carga de densidade, buscando vencer o preconceito que faz a distinção entre linguagem literária e oral” (1993, p. 143). Em conversa con Jorgelina Corbatta, lembra Jill-Levine, Puig admitiu: “En Brasil cayó mal que yo escribiese una cosa sobre un lenguaje popular del lugar. Una cosa que parece que no se había hecho” (PUIG apud LEVINE, 2001, p. 89). O que representava no Brasil este romance escrito com a língua de um pedreiro? Quanto de inusitado teve aquilo na literatura brasileira do começo dos anos 80? O artifício era bem conhecido para o leitor argentino — ele reconhecia o registro da língua oral, sobretudo a feminina: era (ainda é) a marca da literatura de Puig. Mas, como foi lida aquela voz fortemente brasileira, carregada de “erros” e de informalidades linguísticas no Brasil? 25 A recepção e a repercussão da obra não foi a que Puig esperava. Sempre a par das críticas e resenhas que recebia (o que amargurou sua vida no exílio, esperando o reconhecimento argentino), o autor disse: “Con mi último libro salido aqui, Sangre de amor correspondido, hubo problemas enormes. El libro fue mal leído, o leído con aprehensión. No recibí el tipo de lectura desprejuiciada que yo pretendería que recibiera cualquier novela mía” (em entrevista a Gillio, 1984, p. 39) A crítica argentina não soube o que fazer com aquilo que era diferente das procuras estéticas de Puig, enquanto a crítica brasileira não soube o que fazer com o que era a continuação delas. Ou seja: uns rejeitaram o que tinha de diferente e os outros, o que tinha de igual. Mas afinal, qual é a história que se conta? Qual o enredo? Na verdade não há uma história, porque trata-se justamente de um romance sobre as distintas versões e formas de narrar a história da própria vida. A narrativa está escrita em terceira pessoa, embora ao longo das páginas fica claro para o leitor que é o mesmo Josemar quem conta. Sua voz é imprecisa e ambígua, os fatos se contradizem, a históeira é contada uma e outra vez de formas diferentes. Mas o uso da terceira pessoa dá um efeito de objetividade. Mistura estranha entre narrador onisciente da sua

25 Devido à complexidade e magnitude do tema que excede esta tese, fica para outra pesquisa um ponto que acho interessante: uma sorte de “paixão sinestésica” do Puig pela fala brasileira o leva a fazer um trabalho que, de alguma forma, é livre dos preconceitos linguísticos dos próprios brasileiros em relação ao português. 70

própria vida e monólogo interior, ele conta a história da sua saída de Cocotá 26 quando adolescente para São Paulo e depois para o Rio, em busca de um trabalho que lhe permitisse a sonhada ascensão social e uma despreocupada vida de garanhão, o que não se torna possível. Josemar conta, afinal, a história de frustração de suas aspirações tanto profissionais quanto românticas, mas isso não aparece até a segunda metade da narrativa. Ele não quer admitir a série de fracassos: sua narrativa é cheia de contradições que buscam construir uma imagem de homem bem-sucedido, cercado de mulheres e com promessas de pronta ascensão social como jogador de futebol profissional. A narrativa é constantemente interrompida por vozes femininas que contestam a versão de Josemar. São vozes sem corpo, que, além de fazer avançar a narrativa e fazer periclitar o relato principal, revelam, em última instancia, a matéria ficcional com a que são construídos os discursos sobre a própria vida. Com um pano de fundo de mentiras e frustrações de um drama social, racial e sexual, desenham-se as versões sobre o relacionamento entre ele, Josemar, e a jovem namorada Maria da Glória. A primeira versão desenvolvida por Josemar é a de que ele a teria “deflorado”, abandonando-a depois, e ela teria enlouquecido esperando sua volta. O enigma sobre a veracidade deste simples fato vai fazendo avançar a trama. Uma voz, que parece ser a de Maria da Glória, abre o romance e pede detalhes da história27:

— Qual foi a última vez que você me viu?

Ele viu ela pela última vez há dez anos atrás, oito anos atrás. Depois nunca mais. Foi em Cocotá, Estado do Rio. Encostada na praça, ao lado da igreja, né? ela veio ao encontro dele, tinham encontro marcado, ou como foi? Aí saíram juntos até o Clube Municipal, para dançar uma noitada. E que mais aconteceu com ela? Aí tiveram naquela noite no baile até duas e meia da madrugada, depois foram pro hotel ter umas transas, certo?, naquela noite.

— Mas ninguém percebeu que uma garota de quinze anos estava entrando no hotel?

No clube tinha muita gente, a cidade não era muito grande, umas seis mil pessoas, seis mil habitantes. Mas dava para ir no hotel, tranquilo, aí não, o hotel é em outra cidade vizinha, certo? aí chegaram lá, tomaram uns chopinhos e tal. Foram de carro, na época ele tinha um Maverick, naquela época, aí

26 Como analisarei mais adiante, Puig muda todos os nomes de pessoa e de lugares. Assim, a Laje do Muriaé de Abelardo passa a ser a Cocotá de Puig. 27 Para as citações nesta parte do capítulo, utilizarei a versão em português, Sangue de amor correspondido. 71

depois ele caiu, e nunca mais teve carro. Agora ano que vem ele vai comprar um financiado, se Deus quiser. (9)

Nesta dinâmica de pergunta, relato e réplica não é possível saber o que aconteceu naquela primeira experiência sexual ou nos fatos que Josemar relata. Várias vezes se contradiz a cena de sexo: onde e quando aconteceu? No hotel, no mato, no quarto dos fundos? Jamais aconteceu? Obsessionado pelo sexo e pelas mulheres (“As garotas vibravam, muitas mulheres que gostavam dele lá, amigas dela, aquelas colegas todas gostavam de falar com ele, de namorar com ele” (p. 18)), Josemar abandona Maria da Glória depois daquele primeiro encontro. Pensa sair de Cocotá, procurar trabalho em outra cidade: “¡yo quiero viajar, tengo que abrirme camino en la vida! Después sí voy a volver. Pero no volvió nunca más. En todo este tempo no fue por aquellos lados más que una vez, de paseo, ¿no?” (p. 11). Em outros momentos, a voz feminina suspeita ou se opõe abertamente à versão dos fatos segundo Josemar, mas em seguida ele a desaprova, usando a loucura como argumento28:

— Você não veio, nesse domingo, para comer a galinha e os camarões. Ninguém tinha convidado você.

Quem sabe se ela se lembra de todas essas coisas, com a doença que ela pegou. [...] Mais tarde foram na casa dela comemorar.

— Isso não é verdade, em minha casa não os deixavam entrar, disso estou certa. (17)

Mas a da Maria da Gloria não é a única voz que Josemar “ouve”. Há várias vozes femininas que às vezes se tornam difíceis de distinguir: a mãe, outra namorada, a primeira espousa... As vozes vão desconstruindo o relato e põem em dúvida o que ele diz. É como se o travessão com a pergunta “cutucasse” o narrador. As contradições de Josemar são recolhidas pelas vozes que o interpelam. Josemar dá informações diferentes relacionadas sobretudo com a primeira noite com Maria da Glória (no hotel, no mato ou no galpão), o trabalho da mãe (trabalha em casa ou para fora), os carros que ele tem (Maverick, Gordino ou nenhum), sua participação como jogador de futebol (em Cocotá, outras cidades), as datas (da suas viagens, saída e volta à cidade) e até sua própria idade (28 ou 31

28 Como no filme Gaslight, de 1944, dirigida por George Cukor, e protagonizada por Ingrid Bergman e Charles Boyer (no Brasil, À meia luz), o protagonista homem faz um truque de ligar e desligar as luzes, o que faz ela duvidar da sua sanidade. Hoje em dia, o vocablo “to gaslight” está relacionado com as práticas micromachistas: quando o homem invalida a palavra de uma mulher dizendo que é louca. 72

anos). As vozes incomodam a narração ambígua e proliferante de Josemar ao mesmo tempo que lentificam o relato, geram suspense e quebram o fluxo do “monólogo interior”. Bacarisse lê nessa sorte de diálogos a condição paranoide do protagonista: “Josemar es un caso clásico del paranoico atormentado por vergüenza (pero sin ningún sentido de culpabilidad) que juzga todo y luego, intencionada y falsamente, reconstruye un pasado” (1991, p. 476). A ambiguidade é a verdade do texto e não a história que conta, pois nunca saberemos na certa o que se passou. Em Sangre de amor correspondido aparecem todas as frustrações e limitações do personagem para acessar a sua verdade. Josemar é filho de um homem duro e severo, de campo, e de uma mãe trabalhadora que embora esteja frágil e doente, também é vistapoelo filho como uma mulher controladora (em uma das versões dos fatos, ela impediu o encontro sexual entre ele e Maria da Glória). O protagonista mora em uma cidade pequena, limitada para alguém tam ambicioso, e, dado importante em um romance de Puig, é o mais bonito dos seus irmãos. Puig volta assim aos temas do começo da sua carreira de escritor: a cidade do interior, os dramas familiares, o foco no relacionamento entre pai e o filho, a opressão machista, a sexualidade, a hipocrisia e a manipulação até o ponto de enlouquecer o outro ou tornar sua vida desesperadora. Pode que não tenha trabalhado com a cultura de massas como nos outros romances, mas aparecem todos os elementos de um verdadeiro folhetim puiguiano. Sangre de amor correspondido é um paralelo tropical a Boquitas pintadas. A paisagem vazia dos pampas se transforma no mundo profundo e vegetal da mata atlântica. Por outro lado, Josemar reelabora o Juan Carlos em chave brasileira. Semelhante àquele galã pueblerino, ele é um homem de uma beleza que desentoa no contexto, sua beleza “branca” atrai às mulheres e lhe dá poder29. Josemar é o protótipo de beleza em uma sociedade não apenas hipócrita como a de Boquitas pintadas, mas racista: “El tercer hijo era más blanco, no tenía cara de índio como todos los demás, era más lindo todavía que los hijos del dueño del campo, que eran blancos como el Josemar” (p. 30). O pai tinha raiva disso: o romance insinua que Josemar não é seu filho legítimo, mas o filho do dono do campo. Como diz Maria da Glória: “O fazendeiro, o dono do campo, era o homem mais bonito que eu tinha visto em minha vida [...] tirava o chapéu para comprimentar, e então eu ficava pensando que você era ainda mais bonito do

29 Porém, na “ética” do romance, Juan Carlos morre tuberculoso e Josemar não passa de um pobre sujeito que acaba sem nada. 73

que ele” (p. 52). Mas se no caso de Juan Carlos sua beleza propiciava nas mulheres uma forma de fuga imaginária da mesmice do interior, a beleza de Josemar serve apenas para fugir imaginariamente da própria realidade. Sabemos que Sangre de amor correspondido está baseada no depoimento de Abelardo, e que Puig constrói sobre ele seu drama folhetinesco. Mas a história que conta o romance tem uma similitude chamativa com aquela que Elia Kazan leva para o cinema em Splendor in the Grass30. No filme, de 1961, os protagonistas adolescentes sofrem pela hipocrisia de uma sociedade que controla os corpos e sua sexualidade. Estamos em (mais) uma cidade do interior, Kansas. Eles (Bud, estréia de Warren Beaty, e Deany, a já famosa Natalie Wood) querem ter sexo pela primeira vez, mas ela recebe da mãe a advertência de não fazê-lo, enquanto ele é aconselhado pelo pai de ir a um burdel, de forma de não deixar ela grávida e ter que casar com alguém mais pobre. Ele a abandona por causa da recusa constante de Deany e ela acaba enlouquecendo. Os pais dela a enviam a um hospício e ele casa com outra mulher e vira fazendeiro. O romance de Puig mantém a mesma estrutura melodramática do filme, insistindo na loucura dela, o abandono dele e as regras sociais. Puig transforma a fala do Abelardo em um relato folhetinesco, dramático... mas será que ele também “ouve” aquele filme na fala do pedreiro? Por isso, para Puig, Abelardo não é uma testemunha mas um personagem. O filme, obviamente, não aparece mencionado na narrativa: Abelardo, conta Puig, era um homem sem acesso à cultura urbana, e longe do mundo de consumo da classe média. Porém, de todo modo, o filme ressoa ao longo do romance. Outra referência à cultura de massas (neste romance supostamente “despovoado” de cultura), desta vez, brasileira, é a menção às músicas de Roberto Carlos. Duas composições dele musicalizam o romance: “À distância” e “Folhas de outono”. Grande ícone da música pop romântica em América Latina, Roberto Carlos gravou também alguns clássicos em espanhol. Embora não seja hoje muito conhecido na Argentina, no começo dos anos oitenta, Roberto Carlos era sem dúvidas um dos maiores ídolos do momento. “Folhas de outono”, composta por Francisco Lara e Jovenil Bastos, apareceu em 1967 no disco Roberto Carlos em ritmo de aventura; o disco em espanhol foi lançado em 1968. “À

30 No Brasil, o título foi traduzido pelo mais explícito Clamor do sexo, apagando a citação do poema de Woodsworth. O roteiro do filme é de William Inge, que ganhou um Oscar por esse trabalho. 74

distância” está no álbum À janela, de 1972 e sua versão em espanhol foi lançada no álbum Por amor, de 1973. Naquela época, Roberto Carlos cantava para o público hispano-falante com sua voz aveludada:

Nunca más oíste tú hablar de mí/ en cambio yo seguí pensando en ti/ de toda esta nostalgia que quedó/ tanto tiempo ya pasó/ y nunca te olvidé/ Cuántas veces yo pensé en volver/ y decir que de mi amor nada cambió/ pero mi silencio fue mayor/ y en la distancia muero día a día sin saberlo tú. (1973)

Em Sangre de amor correspondido (em espanhol), versão o próprio Puig realiza a partir do português, lemos o seguinte trecho que inclui a letra da música:

Nunca más oíste hablar de mí... pero yo continué viéndote, en toda esta nostalgia que quedó... tanto tempo ya pasó... pero nunca te olvidé... Cuántas veces yo pensé en volver y decirte que mi amor nada cambió... pero el silencio fue mayor y en la distancia muero cada día sin que llegues a saber... (p. 168, a ênfase é minha).

Comparando as duas versões em espanhol podemos ver as diferenças. Por que Puig não se utilizou da versão que já era conhecida pelo público hispano-falante? A que se devem as eleições de tradução? (E como cantar a segunda versão?) Na diferença entre estas duas versões em espanhol está em jogo uma das operações mais interessantes do romance de Puig. Se, como foi analisado anteriormente, o romance desestabiliza em vários níveis a construção narrativa tradicional, como a categoria de autor, narrador e personagem, veremos em seguida que também o faz no nível da tradução como operação literária.

3.2 As línguas da história: Sangre e Sangue

Uma tensão, uma subversão atravessa a versão do romance que Puig faz em espanhol, como mostrando o quanto uma versão em uma língua é um romance diferente do escrito em outra31. As versões em espanhol e português são quase idênticas estruturalmente. Há algumas diferenças, às vezes um parágrafo a mais, uma oração. Mas a tradução que Puig realiza para o espanhol é, assim como o romance original, uma experimentação.

31As versões do romance serão identificadas como Sangue de amor corrrespondido (versão em português) e Sangre de amor correspondido (versão em espanhol). 75

Se Puig escreve seu primeiro romance brasileiro em “carioquês”, como é construída a voz de Josemar em espanhol? O primeiro que salta aos olhos na leitura é que há no espanhol uma dicção típica do português oral do Brasil: Puig sublinha na sua tradução certas marcas sintáticas e lexicais do português, no uso, sobretudo, de marcadores discursivos conversacionais, que dão para o texto o tom de uma conversa em português brasileiro, na sua variante carioca. Vejamos como isto funciona na seguinte citação, passagem na que Josemar fala de sua atuação como jogador de futebol. Cito primeiro a versão em português e depois a versão em espanhol, na qual marquei as construções que “calcam” o português brasileiro oral:

Os caras acharam que ele era um excelente atleta. Acharam que ele era um dos melhores atletas que tinham passado pela cidade, por aquele time. Aí ele disse que vivia jogando em outros times, em outros clubes, das grandes cidades. Aí o coroa disse o seguinte, ele mesmo, o pai dela, sabia nada nessa época, mas aí o pai dela virou pra ele na hora que entrou no campo, “Olha, você joga bem aberto, ponta esquerda bem na beira do campo, que eu gosto de ver ponteiro assim, você tem as características que eu gosto no futebol”. Mas não sabia que a filha dele estava gostando de alguém, não sabia o coroa na época. Aí ele jogando no campo o pessoal que já tinha visto ele seguindo ela pro ginásio e pra casa, e falando com ela por ali naqueles lugares, quando ele pegava na bola o pessoal dizia aos gritos, “Isso aí é o genro do Rossi, o treinador do time.” Porra, aí o coroa ficou grilado, “Porra! Será que esse cara tá gostando da minha filha, e não sei o quê?” e tal. Aí depois que terminou a partida de futebol ele fez três gols naquele dia, foi o craque do time mesmo, né? (48)

Agora, a versão em espanhol:

La opinión de ellos fue que él era un excelente atleta. Les pareció que él era uno de los mejores atletas que habían pasado por ese pueblo, por ese equipo. Ahí les dijo que se había pasado la vida jugando en un equipo y el otro. Ahí el padre de ella, el mismo padre, le dijo lo siguiente, que todavía para entonces no sabía nada, pero ahí se le dirigió a él y le dijo, “Usted juegue bien aberto, punta izquierda bien al borde del campo, porque a mí me gusta el puntero así, usted tiene las características que a mí me gustan en el fútbol”. Pero el viejo no sabía que a la hija le estaba gustando alguien, no lo sabía por entonces. Ahí al jugar en el equipo la gente que lo había visto siguiéndola al gimnasio y a la casa hablando con ella por ahí por esos lugares, la gente cuando él agarraba la pelota la gente gritaba, “Ese es el yerno del viejo Rossi, el entrenador del equipo”. Qué joder, ahí el tipo quedó con la sangre en el ojo, “¡Carajo, será posible que este tipo esté rondando a mi hija! Yo no sé nada”. Y esto y lo otro. Ahí después que terminó el partido ese día él hizo tres goles, en ese día, fue el crack del equipo mismo ¿verdad? (50).

O romance inteiro faz esse movimento de estranhamento através do efeito da repetição, o que cria uma sonoridade particular, uma aproximação do português oral a partir do espanhol. “Aí” “certo?” e “o seguinte” são algumas construções gramaticais com alta frequência de recorrência muito usuais no português oral do Brasil. São marcadores do discurso 76

sequenciadores, aqueles que dão continuidade textual. Os marcadores do discurso são unidades lingüísticas invariáveis sem nenhuma função sintática cujo propósito no discurso é “guiar, de acuerdo con sus distintas propiedades morfosintácticas, semánticas y pragmáticas, las inferencias que se realiza en la comunicación” (PORTOLÉS, 1998, p. 23-24). Outra estrutura do português recorrente na versão em espanhol é a tendência ao sujeito pronominal pleno, que contrasta com a propensão ao sujeito pronominal nulo do espanhol, em português encontramos mais repetição dos pronomes pessoais (por exemplo, o uso de “eu”, “ele”, etc. no discurso) enquanto no espanhol a tendência é não usá-los. Também encontramos em português um uso mais frequente de sujeitos pronominais no caso dos possessivos, como por exemplo no sintagma “o pai dele”, mais frequente que o sintagma “seu pai”, enquanto em espanhol é mais frequente o segundo caso, “su padre”. No romance em espanhol, Puig escolhe as estruturas mais parecidas com o português, então achamos constantemente sintagmas como “el padre de él”. Puig elabora sua tradução em um limite: embora as frases não sejam agramaticais em espanhol, são estranhas, têm outra respiração linguística, como se fizesse a língua original “reverberar” na tradução, como dizia Benjamin no seu clássico ensaio sobre a tarefa do tradutor (1992, p. 77). O português é “acolhido” no espanhol e estranha a língua da tradução, que não renuncia ao português do Brasil: pelo contrário, opera a partir das interferências linguísticas. Assim, longe de fazer “fluir” o texto da tradução, faz visível o trabalho do tradutor (VENUTTI, 2008, p. 1). A experimentação de Puig tanto na tradução quanto no mesmo trabalho de escrita é possível justamente por se tratarem de duas línguas “singularmente estrangeiras”. A permeabilidade entre línguas em uma situação de contato pode gerar transferências, mas elas podem não ser agramaticais. Como coloca a linguista Neide González,

el no cumplir determinadas “reglas” o convenciones vigentes en una lengua [espanhol ou português] no conduce inevitablemente a formas agramaticales o inaceptables, sino más bien a valores y a efectos de sentido no previstos o identificables por el interlocutor, que pueden desembocar en problemas aún más sérios que los provocados por la simple “incorrección”, o, como recuerda Fanjul (1999, p. 139), pueden producir un sentido incompleto o un sinsentido para los oídos de un hablante nativo (GONZALEZ, 2001, p. 242)

A questão do espanhol para a tradução era uma das dificuldades que Puig encontrou quando estava preparando o romance e a solução que propõe: 77

Al pasar estas transcripciones de la cinta magnética, toda hecha en portugués, me encontré con que este lenguaje no podía corresponder a ningún modelo reconocible de lenguaje popular, no podía traducirlo a un lunfardo, el lenguaje porteño, o a una lengua popular pampeña [sic]. No tenía otra salida que inventar un lenguaje ficticio, pero que podía corresponder a la imagen verbal del personaje. (apud ROMERO, 2006, p. 265, a ênfase é nossa).

Qual é essa linguagem fictícia? O que quer dizer “imagen verbal del personaje”? Ao longo destes capítulos tentaremos responder estas perguntas. Se em Sangue de amor correspondido é possível achar as marcas da oralidade do português brasileiro de Abelardo, em Sangre de amor correspondido quase não achamos as marcas do espanhol do Puig. Em um interessante e pioneiro trabalho, a doutora Andreia dos Santos Menezes analisou minuciosamente o espanhol da tradução de Sangre de amor correspondido32. Em sua pesquisa, Dos Santos Menezes descobre várias estratégias das que Puig se utilizou para fazer sua tradução em uma sorte de espanhol neutro. Não há vocábulos que “ancorem” o texto como um texto escrito na variante argentina de espanhol nem o uso de “vos” como segunda pessoa do singular. Se não há voseo, então qual é o pronome de segunda pessoa? Tú ou usted33? Em Sangre de amor correspondido achamos as marcas da segunda pessoa de tratamento informal, tanto em pronomes quanto em conjugações, mas não é tão fácil perceber que não há uma decisão pelo uso de “tú” nem de “vos”: a tradução recorre apenas às conjugações e construcões compartilhadas entre ambos pronomes. Através de um exaustivo trabalho com estratégias gramaticais, cambalhotas da linguagem e um enorme controle do texto, Puig escolhe não escolher nenhuma variante no nível tanto sintático quanto lexical. Mantém-se em um “entre”, um vaivém entre línguas e culturas. Sangre de amor correspondido não renuncia à origem linguística brasileira mas também não se rende ao espanhol argentino do seu autor. São muitas as formas das que Puig lança mão para evitar escolher uma variante de espanhol. Puig recorre a um conhecimento e memória de um espanhol para além do espanhol do Rio da Prata, sabemos que morou no México e viajou por vários países hispanofalantes. Mas a

32 Dissertação de mestrado titulada Sangue de amor correspondido X Sangre de amor correspondido: Análise de um caso emblemático de contato entre o PB e o E, apresentada em 2011 na Universidade de São Paulo. Dos Santos Menezes faz uma exaustiva lista das marcas do português no espanhol e vice-versa. Neste trabalho, vamos utilizar alguns dos seus exemplos para argumentar nossas hipóteses críticas. 33 “Usted” é o pronome de tratamento formal de segunda pessoa em espanhol, e é o pronome que Puig usa na tradução de Maldición eterna a quien lea estas páginas. 78

tradução para o chamado de “espanhol neutro” tem suas armadilhas e inconsistências, que todo tradutor para o espanhol conhece bem e das quais não conseguimos escapar. Assim, por exemplo, para traduzir a palavra “carro”, ao invés de usar a variante lexical “auto”, utilizada na Argentina, Puig escolhe “automóvil” ou “coche”; ou no caso de “ómnibus” (ao invés de “colectivo”), e “refresquito” (para nossa “gaseosa”). No caso de palavras em português cuja tradução compromete muito a eleição, Puig escolhe não traduzi-las:

Aí quando vem a chuva, o filho no Rio não vê nada, olha para cima, é só ver cair água e tal, entre aqueles prédios altos, atrapalha tudo, o tráfico fica do caralho, mas pro pessoal da roça é ótimo quando chove, tá claro? Para eles se chovesse o ano todo era ótimo, aí dava alimento. Dava maçã, uva, banana, essas coisas assim, arroz, feijão”. (p. 165)

Enquanto a tradução para o espanhol diz: “Si llueve, cuando el hijo va a trabajar por los barrios con edifícios altos de Río de Janeiro, el tráfico se pone del carajo, pero en las chacras todo el mundo se pone contento, porque la lluvia da manzanas, uva, banana, arroz” (p. 166). Vemos a elipse da palavra correspondente a “feijão” em espanhol (que pode ser traduzida dependendo da região como “poroto”, “frijol”, “alubia”, “haba”, “judía”, “habichuela”, e que deixaria em evidência uma eleição por um localismo). Porém, mesmo tentando evitar a eleição, há certos momentos que o texto não escapa do “argentinismo”: é o caso de “pileta” (“piscina” ou “alberca” em outros países de fala hispana), e que encontramos bem no começo do romance: “También había otros lugares para ir a noviar, estaba la pileta de natación, para unos señores baños y las cascadas” (p. 10). Ou neste outro exemplo: “Vamos a jugar un poco a la pelota que te voy a enseñar como se hace para gambetear” (p. 192), que significa “driblar” e têm várias possibilidades de tradução em diferentes variantes do espanhol. Por outro lado, Puig tenta driblar a questão da escolha da segunda pessoa singular através de diferentes estratégias. Primeiro, vejamos em que construções gramaticais achamos diferenças entre o uso de “vos”e “tú” em espanhol

1) Pronome reto e uso de pronome complemento precedido de preposição: Ex.: vos/ tú Ex.: con vos/ contigo 79

para vos/ para ti por vos/ por ti

2) No Presente do Indicativo: Ex.: vos soñás / tú sueñas (exceto o verbo “estar”: vos estás / tú estás)

3) No Imperativo Afirmativo: Ex.: vení (vos) / ven (tú)

Já no resto dos modos e tempos verbais, pronomes possessivos (“tu casa” o “el hijo tuyo”) e no pronome de objeto direto oblíquo (“te quiero”) não há diferenças entre estas duas formas. Nos casos onde o “voseo” ou o “tuteo” se impõem ao tradutor, Puig recorre a outras formas gramaticais para evitar a decisão. Vejamos agora, com base no trabalho de Dos Santos Menezes, exemplos da mudança que Puig faz estas estruturas:

1. Pronomes retos e complemento precedido de preposição: Em caso de que apareça “você” / “com você”/ “contigo” na tradução encontramos:

- omissão do pronome ou reformulação: “Pô, você, hein! Se seconde tão bem! (p. 57) “¡Ay, qué tipo este! ¡qué bien se sabe esconder! (p.57)

-Uso de “usted” (como forma expressiva e muito familiar em espanhol de repreender alguém ou de dar importância). “Tu tem uma porrada de mulher aí”. (p. 78) “Usted tiene un montonal de mujeres”. (p. 78)

- Reformulação da frase. Por exemplo, usando Modo Subjuntivo, como no caso da música de Roberto Carlos: “sem saber você” (p. 167) 80

“sin que llegues a saber” (p. 168)

“Olha minha filha aí, preciso falar contigo” (p. 41) “M’hijita no te vayas, tengo que hablarte de algo” (p. 42)

2. Presente do Indicativo: no caso da ampla utilização do tempo Presente do Modo Indicativo na segunda pessoa, há várias estratégias de tradução. Ele muda para as seguintes estruturas:

- Uso do verbo “haber” ou do impessoal com “se”: “Como é que tu consegue?” (98) “ Como hay que hacer para tener tantas mujeres? (101)

- Perífrases com o verbo “estar”

“Ah, você não quer sair por causa das mulheres que estão passeando por aí” (p. 101) “¡Ah, estás escondido por todas esas mujeres que andan passeando por ahí!” (p. 102)

- Perífrase “ter + que” em português pela perífrase impessoal “haber + que” em espanhol: “...você tem que dizer a verdade, embora isso lhe faça doer (p. 149) “...Hay que decir la verdade, aunque te joda.”(p. 149)

- Construções com verbos de dizer com subjuntivos “acho que você deve ter confiança em mim”(13) “creo que me merezco confianza”(14)

“Olha se lembra daquela noitada?”(14) “yo siempre acordándome de aquella noche”(14)

- Pretérito Perfeito ou Presente do Subjuntivo “Aquela outra garota me dá o que você não me dá, você tem mas não me dá” (p. 77) “La Azucena me da lo que nunca me diste, no porque no tengas, sino porque nuna me quisiste dar” (p. 81)

- uso do verbo “estar” “você não quer sair” (101) “estás escondido” (104) 81

3. Imperativo Afirmativo:

-Troca por usted: “Foda-se e cale a boca, porra!” (130) “¡Jódase y cállese, mierda!” (131)

- Verbo de dizer: “Jure me dizer a verdade, eu lhe peço” (p. 113) “Te pido que jures decirme la verdad” (p. 117)

- Reformulação: “Deita aqui” (14) “¡A acostarse se ha dicho!” (15)

- Mudança do modo ou tempo verbal em espanhol: “Se levante! Não quero ouvir uma palavra sua” (p. 57) “¡Todavía no te has levantado! No quiero oír más una palabra tuya (p.60)

Através do uso destas estratégias, Puig escreve em uma espécie de “paraíso do espanhol neutro da tradução”. Várias vezes os tradutores para o espanhol lançamos mão destes recursos devido às imposições do mercado editorial local que quer vender traduções para a maior quantidade de países hispano-falantes. Quem traduz na Argentina muitas vezes deve traduzir usando um espanhol “neutro”, uma sorte de criatura feita de pedaços de outros espanhóis, sempre utilizando o “tú” e evitando todos os localismos argentinos. Daí a destreza do tradutor para escrever um texto cujas construções sintáticas, frases ou léxico não “destoem” no texto com palavras vindas de outros contextos, de modo a fazer a tradução mais fluída. Se bem na tradução de Puig o esforço linguístico e o controle sobre o fluxo oral do romance é admirável, não tem como objeto fazer uma tradução fluida, ao contrário: definitivamente, Sangre de amor correspondido está escrito em uma língua estranha propositalmente. Por um lado, o romance em espanhol está cheio de “contaminações” do português: Puig está fascinado com o português e experimenta na beira das duas línguas. É a mistura de oralidade do português brasileiro e do espanhol argentino, sem nunca ser nem um nem o outro, a combinação de um trabalho extremamente detalhista com uma fuga. Muito acertadamente, Delfina Cabrera chama de “zonas 82

de tradução” ao trabalho de tradução de Manuel Puig como uma experiência mais ampla do que a tradução clássica: “En Puig la traducción excede el traspaso de una lengua a otra para convertirse en una praxis creativa que se manifiesta desde sus primeros textos y que recorrerá toda su producción” (2017, p. 34) Como aponta Cabrera, Puig “no trabaja yendo de una orilla a otra sino con lo que queda suspendido en la lengua” (p. 193). Em ambas versões há inconsistências linguísticas e contaminações. Na versão em português há marcas do espanhol no nível lexical, como vemos no seguinte exemplo na versão em português: “O carro parado, ele do lado, o radiozinho do Maverick aceso” (p.45). Aqui vemos claramente a interferência do espanhol, pois em português o correto seria “ligado”. Na versão em espanhol lemos: “el automóvil parado, él al lado, la radio del Maverick encendida” (p. 48), Aparecem também termos que o português e o espanhol compartilham e têm o mesmo significado mas que são diferentes em relação ao registro formal/informal. Na versão em português aparecem vocábulos que em português são de uso culto e que não concordam com a fala informal do pedreiro sobre a qual está construído o romance. Assim, vemos exemplos de palavras ou marcas sintáticas como: “tampouco” (p. 33) “houve o seguinte” (p. 16). Por outro lado, encontramos casos de um português estranhado sintática e lexicalmente, como nos seguintes exemplos: “a casa de você” (p. 108), “se jubilasse” (p. 178) e até um objeto direto preposicionado: “Se assaltarem a ele hoje” (73). A alta permeabilidade entre o português e o espanhol deixa suas marcas nas versões do romance. Respeito disso, Dos Santos Menezes afirma que “Puig lançou mão, ao compor suas obras, de conhecimentos mais intuitivos do que lhe parecia o português brasileiro” (p. 91). Por que encontramos essas inconsistências na fala do Abelardo? O revisor deixou passar, “se distrajo”, como Puig dizia que acontecia com seus vários tradutores? Para estudar o porquê dessas inconsistências, deveremos tentar entender como foi o processo de escrita e tradução, ler o que o romance em suas duas versões já publicadas não nos deixa ver: abramos, então, o arquivo.

3.3 As vozes do arquivo 83

Em 1989, Manuel Puig deixou o Rio de Janeiro rumo a Cuernavaca. Levou poucas coisas com ele nessa nova mudança internacional. Os apartamentos do Leblon ficaram com a mobília e parte da biblioteca foi doada ao Consulado argentino no Rio. Mas com ele ia seu arquivo de escritor: além de seus livros publicados junto com suas traduções, levou do primeiro dos seus cadernos onde começou a rabiscar La traición de Rita Hayworth até a ultima revisão da tradução dos seus romances. A data dos documentos ia de 1956 a 1990, quer dizer, toda sua carreira: as diferentes etapas de escrita do processo que o converteram no famoso escritor que ele era –as colagens e montagens de ideias, de histórias, de línguas, revisões, traduções e provas. Sem dúvidas, um capricorniano de lei. Assim que mudou para a nova e elegante casa em Cuernavaca, onde decidiu residir com a mãe, começou a arrumar seu arquivo. A cena traz à memória a famosa passagem de Benjamin desempacotando a biblioteca, mas Puig desempacota não uma biblioteca de escritor colecionista de livros, mas a extensa coleção de fitas e seus papéis caprichadamente arrumados e organizados em pastas. É conhecida sua obsessão pela arrumação dos seus papéis. Preservou cada papel datilografado, as diferentes versões até chegar à final, as traduções e até as provas de impressão com notas nas margens. Em “Archivo Manuel Puig: Antecedentes”, a pesquisadora argentina Graciela Goldchluk, que cuida do arquivo, afirma que Puig tratou “sus papeles de trabajo como memoria escrituraria” (2011, p. 2). Na seguinte fotografia –tirada no seu estúdio na Cidade do México, por Marta Merkin, fotógrafa argentina, também exilada– vemos como chamativamente as prateleiras das estantes que aparecem no fundo, do lado da mesa de trabalho, contêm apenas papéis e não livros.

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Figura 3 - Puig no México

Fonte: fotografia Marta Merkin, 1979

Nesta fotografia, assistimos uma das tantas performances que Puig oferecia para seus amigos, dessa vez no seu estúdio, no meio do arquivo e da escrita (é possível ver sua máquina de escrever e, penduradas na parede, as folhas A4 típicas que encontramos no seu arquivo). Alguns meses depois da mudança, Puig foi levado para o hospital da cidade a causa de uma intensa dor abdominal. A cirurgia de vesícula era urgente e podia ser feita no DF, mas ele preferiu ficar no pequeno hospital de Cuernavaca, onde a probabilidade de um bom atendimento não era muito alta. Aos poucos dias, em 22 de julio de 1990, morreu de insuficiência cardíaca em virtude de uma reação à anestesia. 85

O irmão, Carlos Puig, viajou imediatamente e encontrou dois trabalhos em andamento: a escrita de novos textos e o processo de arrumação e organização do arquivo. Puig havia finalizado um roteiro, Vivaldi, e estava iniciado um novo romance. Carlos guardou os papéis (romances, cartas e resenhas críticas) da forma mais fiel à organização original e resolveu deixá- los aos cuidados da biblioteca da Universidade de Princeton. Em 1994, as caixas foram levadas para Buenos Aires e ficaram na casa da mãe de Puig, Male. Quando ela morreu, em 2006, separaram o material pessoal do autor e enviaram o arquivo para a Universidad Nacional de La Plata. Com mais de 20.000 documentos em 920 pastas distribuídas em 18 caixas, o arquivo Puig é um dos maiores arquivos que se conservam de um escritor argentino. O arquivo contém anotações, versões completas (ou quase) de cada romance, transcrições, traduções, revisões de traduções, provas de impressão, materiais consultados, resenhas críticas, entrevistas e cartas. Carlos Puig, que virou herdeiro da obra do irmão 34 e um grupo de pesquisadores organizaram o material, e em 2006 começou a digitalização a cargo de sua filha, Malena Puig, e de Pedro Gergho. O arquivo continua sendo digitalizado, e parte dele pode ser consultado na internet, na página Web da Universidad de La Plata35. Na época em que o arquivo chegou a Buenos Aires, um grupo de pesquisa coordenado pelo Dr. José Amícola, da Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación da Universidad Nacional de La Plata, e formado pelas professoras Graciela Goldchluk, Roxana Páez e Julia Romero dedicou-se à pesquisa e organização do arquivo. Dali surgiram importantíssimas edições e trabalhos críticos que acrescentaram o número de publicações de Puig na Argentina, como Materiales iniciales para La traición de Rita Hayworth (1996), primeiro estudo genetista da obra de Puig; a edição crítico-genética de El beso de la mujer araña (1998) com um apêndice crítico e um CD-ROM com manuscritos do romance; peças de teatro inéditas, como Bajo un manto de estrellas, Triste golondrina macho (1997) e La tajada e Gardel, uma lembrança (1998); roteiros de cinema, como Un destino melodramático. Argumentos (2004) e Los 7 pecados tropicales y otros guiones (2004); dois volumes de cartas à família Querida familia: Tomo 1 Cartas europeas (2005) e Querida familia: Tomo 2 Cartas americanas (Nueva York Río 1963-1983) (2006).

34 Carlos Puig é o caso de um herdeiro “puntilloso”, como aponta a jornalista Natalia Paez, ele “cuidaba hasta la exasperación de los editores todo lo que se consignara sobre su hermano en lo literario pero también todo lo que se escribía sobre su vida privada. Pedía corregir contratapas y solapas de cada edición y solía pedir modificación de las biografías que incluían algún detalle de la vida social del autor de Boquitas pintadas” (2017). 35 O link é: http://www.fahce.unlp.edu.ar/biblioteca/institucional/archivo-puig 86

Houve ainda publicações que visam ao estudo crítico, como Puig por Puig: imágenes de un escritor (2006) de Julia Romero — que reúne entrevistas, resenhas e críticas que estavam no arquivo do escritor —, e até livros mais híbridos, como Álbum Puig, de María Eugenia Rasic (2018), que mistura imagens do arquivo com textos próprios. Ao reunir e guardar o material da sua obra, Puig também propiciou novas publicações de sua obra: artigos, livros, esta tese... Diante do arquivo de um escritor, os pesquisadores experimentamos a alegria de ter achado um tesouro ao perceber a marca da letra, a textura do papel. Podemos ler a forma que o escritor foi tecendo e descobrindo o livro que ele queria escrever, assim como suas tentativas e fracassos. Sabemos também que uma das coisas mais interessantes a se fazer com um arquivo é pesquisar ou fazer hipóteses sobre a cronologia do processo de construção de determinada obra, a feitura de um livro. Como se as vacilações e mudanças nos contassem muitas histórias simultâneas, e essa multiplicidade (talvez mais prazerosa para o pesquisador do que para o próprio autor) permitisse alongar a conversa com o texto e repensar hipóteses de leitura. Trabalharemos com algumas ferramentas e conceitos da crítica genética para extrair questões que possam ser interessantes para analisar Sangre/Sangue de amor correspondido em relação com as linhas principais deste trabalho. Seguindo a definição de Goldchluk, um arquivo de escritor sería, en primera instancia, un conjunto organizado de documentos, de cualquier fecha, carácter, forma y soporte material, generados o reunidos de manera arbitraria por un escritor a lo largo de su existencia, en el ejercicio de sus actividades personales o profesionales, conservados por su creador o por sus sucesores para sus propias necesidades o bien remitidos a una institución archivística para su preservación permanente (2010).

O arquivo revela as formas de escrita de Puig, seus procedimentos. O autor confeccionava notas com ideias sobre a realidade experimentada, sentimentos e sucesos referidos por cada personagem e “simultáneamente iba generando notas sobre el orden del discurso: tanto de cada uno de los personajes como del discurso del macrotexto” (ROMERO, 1996, p. 270). No arquivo de Puig podemos ver também os materiais com os quais construía seus romances — por exemplo, para The Buenos Aires affair consultou livros de medicina forense. Mas além dos diversos materiais, no arquivo achamos diferentes vozes. Se um arquivo de escritor é a história da busca da própria voz (GOLDCHLUK, 2010), a de Puig seria a busca de várias vozes: dois dos seus romances foram feitos a partir da voz de outra pessoa, como o caso de Sangre de amor 87

correspondido. O trabalho com o arquivo então é importantíssimo para entender o processo de transformação que opera Puig entre a palavra oral e a escrita. Como afirma a especialista em crítica genética Élida Lois, os arquivos tratam-se de “los testimonios de un proceso creativo” (2001, p.142). Etapas escriturais, as edições crítico-genéticas “dan protagonismo al texto pero además brindan información y los recursos imprescindibles para hacer leer la génesis” (p. 143, a ênfase é da autora). Podemos ver os movimentos da letra e da leitura nos processos da gênese escriturária: retificações, vacilações, supressões, interpolações e, logicamente, a interpretação. Surgem novos dados que revelam aspectos desconhecidos do perfil intelectual do autor. Assim, o arquivo pode ser uma fonte de respostas que desmentem ou apoiam o que o autor disse sobre seu trabalho. Nesse sentido, o trabalho com o arquivo é tanto de relevamento quanto de interpretação. Elida Lois sugere que

La memoria es un espacio narrativo que nunca es ingenuo, y en sus selecciones y registros ya marca un camino hacia una interpretación: archivar e interpretar son, en realidad, actividades complementarias: seleccionar, clasificar, abrir la posibilidad de interconectar, es brindar propuestas de lectura, y con esto se está adelantando un primer intento de interpretación (2001, p. 145).

A crítica e gramática argentina Ana Maria Barrenechea, em um texto fundamental não só da crítica de Julio Cortázar, mas da crítica genética, analisa o Cuaderno de bitácora, o texto pré- redacional de Rayuela. Ela desenvolve dois conceitos interessantes para analisar um arquivo em relação com a obra: a “matriz” e o “núcleo gerador”. A matriz seria um microtexto mais bem estático, “que ostenta una estrutura homóloga a la estrutura central del macro-texto y que la revela mejor por su menor escala y su mayor simplicidad” (1994, p.556), enquanto o núcleo gerador, continua, é “um microtexto cuyos componentes combinados y transformados producen por el trabajo de escritura el desarrollo de otros núcleos encadenados”. No caderno de Cortázar, ela lê as eleições que “llegan a cuajar en la obra publicada” (p. 557), aquelas que vão se revelar depois e as hesitações. Tanto Cortázar quanto Puig foram escritores que procuraram uma renovação narrativa, que tomaram consciência de um lugar de escritor na Argentina e seus arquivos dão conta daquele pensamento ao tempo que documenta sua lenta maduração. Embora fossem dois escritores muito 88

diferentes em relação com a forma em que construíram sua imagem de escritor e seu arquivo 36, podemos achar neles a vontade de quebrar com os paradigmas do romance tradicional: fazer algo realmente único. Há uma batalha no interior do arquivo: a força narrativa e expressiva de algumas ideias por sobre outras e a busca visceral do autor pelo livro que esteja à altura do seu posicionamento estético. É um arquivo que rejeita qualquer tipo de material externo – comparemos com o caderno de Cortázar!–, ou seja, é composto exclusivamente pelas necessidades de um romance baseado na voz de uma pessoa. Tal o exercício radical e o enorme esforço de autocontrole narrativo, tal o sacrifício absoluto da própria voz na voz do outro. Tentarei organizar uma leitura do arquivo referente especificamente a Sangre/Sangue de amor correspondido trabalhando tanto com algumas micro-estruturas quanto com a matriz e os núcleos geradores, oscilações e alternâncias, e aquilo que não apareceu depois na publicação: a construção dos personagens e a seleção e ordenamento das sequências do romance. Para começar, podemos ver que a parte do arquivo relacionado com o romance está dividido em:

1) Transcrição da entrevista (197 folhas, em português) 2) Pré-textos pré-redacionais (papéis avulsos) 3) Pré-textos redacionais em espanhol (3 versões – capítulos 1 a 11) 4) Pré-textos redacionais em português (capítulo 10 e epílogo) 5) Versão em inglês 6) Versão em italiano (primeira versão e provas) 7) Versão em francês

A maioria das folhas que compõem o arquivo são folhas de tamanho A4 (há, em menor quantidade, outros papéis de formato diferente). São folhas usadas: no anverso vemos que são programas de cinema, cartas da universidade, convites, uma homenagem a Lilian Gish, e cópias da versão em inglês de Maldición a quien lea estas páginas. As duas primeiras partes do arquivo constam de:

36 Se o caderno de Cortázar está cheio de anotações “pedantescas” ou reflexões e preocupações estéticas, as folhas de Puig está cheias de notas em diferentes línguas, e comentários sobre stars e filmes. 89

1) Transcrições: Puig gravou as conversas com Abelardo Marinho em oito fitas e depois mandou transcrever. As fita casetes não foram achadas ainda, talvez fossem reutilizadas ou se perderam. Mas as transcrições, como todo o material escrito do autor, foi conservado. Comparando as duas versões finais com as transcrições, podemos ver que Puig usou quase a totalidade do material. Na transcrição da conversa podemos ver como Abelardo desmente com naturalidade o que já disse, as ambiguidades da sua fala. As idades ficam misturadas, os detalhes, as datas. Quando foi a primeira vez com a namorada, se no mato, se no hotel, se na garagem. Nelas podemos ver também como Abelardo é muito expressivo contando sobre suas aventuras e seu cotidiano e imaginamos sem dificuldade por que chamou tanto a atenção de Puig. Nas transcrições podemos ler a dinâmica da conversa, os momentos em que Abelardo não quer falar: “Mas peraí, Puig, depois eu falo contigo, isso não é papo para gravação” (NG5.0083_(10)) ou se entusiasma: “agora é um assunto bom para sua gravação” (NG4.0054 (1)). O escritor fala português, mesmo que em um nível rudimentar, mas na conversa surgem alguns maus entendidos, inclusive há vezes que a pessoa que transcreve também não entende, como veremos mais adiante. No romance, como vimos, Puig não se aparta da dicção da voz de Marinho, do seu ritmo, copiando a repetição de palavras, a respiração. Mas ao ler o arquivo isso se torna tão evidente que parece mentira: como afirmou Link, Sangre de amor correspondido “fue leída siempre como un ‘experimento fallido’ precisamente porque Puig no pudo convencer a sus lectores de que sus diálogos no eran inventados [...] como si no hubiera alcanzado a vaciar del todo la categoría de autor” (2004). Como exemplo, podemos ver esta passagem na que Abelardo conta da briga com o pai depois de que ele, ainda menino, matasse uma vaca: 90

Figura 4 - Exemplo da transcrição

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 4.0067_(14)

As transcrições foram feitas por uma pessoa que falava português fluentemente, pois não há os erros ortográficos que achamos em outros materiais escritos por Puig em português. Também, além de texto datilografado há também desgravações escritas a mão que não se correspondem com a letra de Puig. No total, são oito fitas cassete organizadas com os títulos A, B, C, D, E , F e Zarah, (pela star Zarah Leander) o que rendeu 197 folhas de transcrição, todas numeradas e respeitando a ordem que Puig deu ao material. 91

Em muitas margens da transcrição há notas meta-escriturárias em espanhol e português do mesmo Puig. Aquelas marcas são típicas no arquivo Puig, e Romero as chama de “anotaciones en collage” (1996, p. 450). São indicações da estrutura que terá o romance, trechos destacados, palavras que não entende, assim como partes que irão para a versão em espanhol e para a brasileira.

2) Pré-textos: Segundo os estudos de crítica genética, os “pré-textos” são o conjunto de textos, documentos que antecedem à fase de redação de uma obra e que estão em relação de inclusão ou de identidade com o texto (ROMERO, p. 452). É o material “pré-redacional” do romance, os temas que Puig anotou para desenvolver depois, listas, referências às fitas, reflexões estruturais e o que adicionou criativamente ao material da entrevista.

Figura 5 - Conteúdo das fitas

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 16.0217 R 92

Dentro dos pré-textos, pré-redacionais, achamos as ideias de Puig a respeito da estrutura do romance em relação com a inclusão das vozes, quer dizer, a ideia central da estrutura do romance:

Figura 6 - papel avulso: pré-texto

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 190241 R

Ocorre aqui uma importante “troca de personagens”. Diferentemente dos romances nos quais usou a técnica do gravador ou da entrevista mecanografada, as perguntas de Puig não são reproduzidas como as perguntas que faria um personagem para o outro dentro do romance. Será, antes, uma voz, ou um conceito: “um diálogo entre o feminino e o masculino. O feminino é tudo perguntas”, diz a anotação de Puig. Entre os documentos pré-redacionais, achamos também a lista de músicas que seriam uma sorte de “trilha sonora” do romance: 93

Figura 7 - Lista de músicas

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.17.0226 R

Puig está procurando as músicas que incluiria no romance a partir do que Abelardo conta. Suas notas são interessantes, é como se estivesse procurando as letras ao mesmo tempo que as aprende. Há transcrições que o mesmo Puig faz de duas músicas de Roberto Carlos (ainda que com alguns pequenos erros em português37), escritas também para testar:

37 Por exemplo, escreve “mais” por “mas” e também correções que faz sobre seu português: como “ja” (sem acento) por “ya”. 94

Figura 8 - Músicas de Roberto Carlos

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.17.0224 R

Podemos ver a partir destas duas partes do arquivo que o material inicial do autor não são suas próprias notas e ideias, mas, pelo menos no começo, o contrário: é o texto alheio que provoca ideias no autor, que depois faz um trabalho de montagem e edição. Há várias mudanças que Puig faz na transcrição da fita para criar a primeira versão do romance. Obviamente, há a mudança dos nomes das pessoas envolvidas na história e os topônimos, para proteger a identidade das pessoas reais. Da mesma forma que fez nos romances La traición de Rita Hayworth ou em Boquitas pintadas, preservou a identidade dos verdadeiros Juan Carlos, Nené, etc. Inclusive a proteção da identidade foi uma cláusula do contrato que Puig 95

e Marinho fizeram, quem não poucas vezes reclamou do problema que trouxe para ele ter contado essas histórias38. Pelo que pode ser lido nas entrevistas, Puig não conheceu nenhuma das pessoas da história que Marinho conta, nem sequer viu uma foto –nas entrevistas sempre diz que que vai levar para ele ver, mas sempre esquece–. Se por um lado, como vimos, este romance se aproxima muito de Boquitas pintadas, por outro, é o oposto: enquanto ele conhecia bem ou pelo menos tinha ouvido falar bastante dos personagens daqueles romances, agora não sabe nada, apenas o que Abelardo conta deles. É como se Puig tivesse procurado histórias de cidadezinha, fofocas, dramas, e tudo o que gostava dos anteriores romances, agora no Brasil. Mas não deixam de ser intimidades. Nesse sentido, Goloboff afirma que

El surgimento del lenguaje del cual se sirve Puig (y que parece darnos a leer) es interior, familiar, viene desde la intimidad, y hasta llega a actuar en niveles distintos simultáneamente, con autocensuras, con cosas que se piensan pero no se dicen, que se dicen pero no se escriben, que se escriben pero no deben leerse (1997, p. 74).

No caso de Sangre de amor correspondido, trata-se da intimidade familiar de Abelardo reconstruída na intimidade familiar de Josemar. Ao abrir o arquivo Puig, abre-se também um arquivo pessoal, e a proteção desaparece. À abertura segue-se o diálogo com outros arquivos, arquivos enormes, como os que encontramos na internet: porque podemos comparar a descrição que Abelardo faz da sua cidade com as imagens do Google maps, para acabar descobrindo que concordam. Nas redes sociais (inusitadas e por vezes delirantes formas nas quais as pessoas constroem e compartilham seu arquivo pessoal) podem ser achadas várias das pessoas que ele nomeia, os filhos, tios, etc., (e tenho para mim que achei uma foto de Abelardo mesmo). Mesmo querendo trocar seus nomes para proteger as identidades, a criação dos novos nomes não escapa às vacilações, como podemos ver nas três versões do romance em espanhol e nas anotações e riscos que Puig faz nas folhas: o nome do protagonista passa de Avellar, Altair, Antonio e Feliciano até chegar, finalmente, no Josemar. Trata-se de um nome usual no Brasil

38 Maria Moreno trabalha muito bem este ponto: “¿Fue expropiado X al quedar anónimo en Josemar, o protegido? Manuel Puig entendió que había un conflicto cuando decidió compartir con él y por contrato las ganancias de Sangre de amor correspondido, pero X prefirió una suma fija; luego reclamó más dinero, afirmando que la novela lo había perjudicado e incluso había recibido amenazas de muerte. Quizá no era mero oportunismo sino un modo de hacer saber que entendía la radicalidad del procedimiento y su precaria resolución jurídica.” (2010). 96

(segundo o IBGE, ele atinge sua máxima popularidade justamente no ano de 1980, quando era escrito o romance), mas é, sem dúvidas, um nome folhetinesco, não tem como não soar a bolero mexicano. Neste sentido, vemos na eleição do nome um gesto que veremos em outras eleições: a sutil inclinação da narrativa do pedreiro para uma história melodramática e absolutamente puiguiana. No seguinte exemplo, podemos ver a nota que Puig adiciona a mão: “OJO, por acá ya revelar repliegue tierno de él, gran vulnerabilidad”:

Figura 9 - Indicações narrativas na margem

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 22.0280R (29)

Em relação aos outros protagonistas e demais personagens do romance, vemos por exemplo a Maria do Socorro Naccarati convertida em Maria da Glória Rossi (mantendo, porém, a origem italiana do sobrenome) e a Floriscema ser Açucena/Azucena, mantendo também o sentido de “flor”. Porém, uma miríade de personagens secundárias mudam seu nome segundo a versão em espanhol ou em português. Dos Santos Menezes fez um relevamento deles, e, é possível dizer, com ela, que por trás de tal diferença poderia estar o efeito “brasileiro” que poderiam dar os nomes escolhidos na versão em espanhol, na procura de “acentuar uma brasilidade no texto em 97

espanhol” (2007, p. 96). Assim, na versão em português os nomes das personagens se transformam na versão em espanhol: de Leila a Delfina, da professora Aneci a Valseí, de Macarrão a Macarrón, de Clarinha a Zelinha, de Dona Luisa a Doña Olinda, de Antonio a Paulo, de Lourdes a Fernanda, de Otávio a Zé, de Verônica a Deusa, entre outros. É interessante salientar que Valseí (a professora de escola da qual Josemar fica apaixonado) é o verdadeiro nome da professora; ou seja, em português, Puig respeitou a confidencialidade, mas em espanhol é fiel à realidade. Talvez pela sua sonoridade? De todo modo, Puig considerou que em espanhol já podia usar os nomes reais. Outra questão importante neste ponto são os topônimos. A história tem lugar em Laje do Muriaé, uma cidade do interior do Rio de Janeiro. No romance, a cidade passa a se chamar Cocotá, que de fato é um bairro do Rio de Janeiro, na ilha do Governador. Os topônimos que Puig escolhe existem, embora os trastoque. Assim, na história de Abelardo, ele mora em Campo Grande, mas o bairro onde mora Josemar é Santíssimo, contíguo a Campo Grande. Além de mudar nomes e alterar dessa forma o material original, Puig também trabalha o material fazendo uma verdadeira montagem de partes e vozes. Ao lermos a transcrição e as sucessivas versões nas duas línguas, vemos como o autor foi tirando partes diferentes da entrevista para montar o romance. Ele mesmo anota diretrizes a respeito disso, como por exemplo no cabeçalho do capítulo dois, quando escreve: “evitar look lineal”. Como as montagens de filmes que fazia em vídeos, Puig faz uma montagem de fitas. Em geral, a ordem do romance mantém a orden das entrevistas. Mas há páginas que são pura montagens de trechos diferentes de várias fitas. Este procedimento é achado com mais frequência na segunda parte do livro, o que nos leva a pensar que Puig começou a escrita do romance em simultâneo às entrevistas. Mais tarde, com maior quantidade de material, o autor teve mais opções e liberdade de usar diferentes partes para a construção do romance. No exemplo seguinte, é possível ver as notas na margem que indica a que fita pertence cada parte do texto. Neste caso se trata de trechos das fitas D e E e também está determinado o número de página da transcrição:

98

Figura 10- Notas de número de fitas

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 24.0301_R (50)

Como foi dito anteriormente, Puig achava que aquelas fitas seriam apenas material para algum trabalho futuro. É a partir do material narrativo que Puig obtém nas primeiras entrevistas com Abelardo que surge nele a ideia de escrever um romance. A primeira fita inicia com uma conversa já “começada”, cujos temas foram pactados previamente. Ali, nas primeiras palavras da entrevista, encontramos o microtexto “matriz”, a cena que dá estrutura ao romance: a última vez que os amantes se viram. Esta é constante ao longo do 99

livro e aparece como contraponto da primeira vez que se encontraram. Entre seu primeiro encontro e o último adeus está o encontro sexual, que nunca acaba de ser definido — e nem o entrevistado, entrevistador, escritor, personagem ou leitor poderão dizer como aconteceu de verdade e se aconteceu mesmo. Vejamos a primeira folha da transcrição da entrevista, que provém da fita 1 lado A. Ela contém a primeira entrevista na que Abelardo narra aquela primeira cena. Logo depois veremos como foi o trabalho de Puig: 100

Figura 11 - Primeira folha da transcrição da entrevista

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.1.0001_(1) 101

Vejamos agora a versão em português, que no arquivo figura como “epílogo”, mas na verdade é uma primeiríssima versão do primeiro capítulo:

Figura 12 - Primeira versão em português

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.63.0737

A primeira versão em espanhol e português do romance começa com a mesma cena da entrevista (que é a que abrirá também o romance publicado nas duas versões). No documento podemos começar a ver as mudanças que Puig vai fazendo no material (sabemos que é Puig por causa dos erros de português), como a condensação de certas partes e o espaço em branco em relação com o nome da cidade onde terá lugar a história. Vejamos agora a primeira versão em espanhol: 102

Figura 13 - Primeira versão em espanhol

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.20.0254 R_(1)_CM

Aqui já vemos a inclusão de uma voz em primeira pessoa que faz perguntas, e a resposta em terceira pessoa. Vemos, no entanto, que a voz que pergunta está em terceira pessoa, mas Puig risca e adiciona por cima o verbo conjugado em segunda pessoa. Aqui já troca o nome da cidade para Cocotá. Quando comparamos com as versões finais, podemos entender finalmente o interessante processo de escrita:

Versão em espanhol:

— ¿Cuál fue la última vez que me viste? Él la vio por última vez hace diez años, ocho años. Después, nunca más. Fue en Cocotá, Estado de Río. En la plaza, del lado de la iglesia ¿verdad? (p. 9)

Versão em português:

— Qual foi a última vez que você me viu? Ele viu ela pela última vez há dez anos atrás, oito anos atrás. Depois nunca mais. Foi em Cocotá, Estado do Rio. Encostada na praça, ao lado da igreja, né? (p. 9) 103

O que foi corrigido na versão em espanhol passa para a versão em português. A partir de estas amostras podemos perceber que Puig não faz uma “autotradução” do seu romance, mas escreve os dois romances em simultâneo. Ou seja: traduz ao mesmo tempo. Primeiro, do português de Abelardo para o espanhol, e depois do espanhol para o português no caso das mudanças que tenha incorporado na versão em espanhol. Daí, então, as inconsistências e contaminações linguísticas entre o português e o espanhol em ambos romances. Tarefa excessiva e dificultosa, em seu excesso, o “romance” é quem manda, e às vezes a língua acompanha, e às vezes não39. Mas o desejo do romance é o desejo da língua. Já a partir da primeira entrevista que Puig começa a idear a estrutura do romance que está sendo gestado pois podemos ver nas perguntas que ele faz a Abelardo o tipo de material que Puig está procurando para seu romance. Ao longo das sessões, Puig está constantemente pedindo mais informação, mais detalhes sobre aquele último encontro. Nesse sentido, o romance não se baseia em uma ideia que surge após a série de entrevistas, mas há uma série de ideias que, se bem não “criam” o texto, estão, sim, causando-o. Como afirma Maria Moreno:

su mayor intervención es durante la grabación, a través de preguntas que interrumpen una y otra vez el giro del relato para exigir que éste se detenga en los detalles, forzándolos por sistemática inducción. Como si Puig se propusiera extraer la escritura del relato oral en directo, cada pregunta permite la emergencia de lo que aún no es texto, frase por frase (2004).

Puig pede continuamente para Abelardo descrever com detalhe certas coisas, como a roupa, a paisagem, dados, o que eles fizeram, de como ela ficava na espera... pequenas cenas, imagens. Como se tirasse as cenas da memória (ou da invenção) da sua personagem, o escritor foi tecendo o texto que ele quis ao longo das entrevistas, pois ia perguntando para o Chefao as partes da história e detalhes que precisava. Por isso, nos romances lemos momentos de digressão total, que mistura partes de outras fitas. Um exemplo disto são as longas descrições. Na descrição do mato, por exemplo, utiliza partes nas que Abelardo fala sobre coisas que pensa:

39 O trabalho requeria um altíssimo nível de disciplina e esforço. Nas cartas conta que “me viene el terror de paralizarme un día, como sucedió con la [novela] anterior.” (2006, p. 342). Fala de Sangre de amor correspondido. 104

Havia muitas flores-do-campo, amarelas, bem bonitas. Representam cores do Brasil, dá para entender? Verde são as folhas das matas, a bandeira brasileira, e aquelas faixas de pedras brancas compunham as estrelas brasileiras. Pra roupa ele não gosta do amarelo, mas adora flores amarelas. Vamos supor, se for para ele chegar numa loja comercial de roupas, ele nunca compraria uma roupa amarela.” (p. 58).

Por exemplo, ao longo da conversa entre Abelardo e Puig há muitos momentos em que não se entendem. Às vezes Abelardo não explica as referências de aquilo que está falando, ou mesmo as palavras que usa. Não leva em conta que Puig acaba de chegar no Rio, e que não está familiarizado com o vocabulário ou os lugares ou coisas. Mas quando Puig pergunta, ele inventa muitas respostas, com a mesma naturalidade com que conta os fatos. Naquela primeira entrevista, podemos ver já esta dinâmica, a dinâmica entre escritor e personagem:

P- Aquela última, última noite, procure lembrar como foram as coisas, com todos os detalhes que puder. Tudo. R- Todos os detalhes que puder daquela noite? Então, na época ela trajava um vestidão verde e eu me trajava com uma calça lee, que tinha surgido na época, e um blusão volta ao mundo, certo? P-Hum? R- Um blusão volta ao mundo. P- Volta ao mundo! Que coisa é essa? R-Era uma camisa da época. P- Como era? R- Era uma camisa que era muito linda, bem poucas pessoas tinham esse tipo de camisa. Cara, entendeu? Era... custava cara. P- E por que chamava-se volta ao mundo? R- Era o lançamento do mundo na época, então chamava: volta ao mundo, entendeu? (da transcrição NG 1.0005_(5))

Abelardo procura respostas muitas vezes estapafúrdias. Não sabe a resposta e inventa, Puig o segue no seu fluxo. O interessante da fala de Abelardo é justamente esta capacidade de inventar, de fantasiar. A verdade é que “volta ao mundo” era uma marca de camisas caras, como contam no blogue “Caríssimas catrevagens”:

lá pelos idos Anos 60 e 70 era uma novidade só! Eram vendidas exclusivamente nas melhores lojas de fazenda (tecidos) e de roupas prontas (Butiques) no centro da cidade. Era tudo muito encantador e super mega prático, pois não precisava passar ferro. Era só 40 enfiar no tanque, lavar, pendurar no varal e... Pronto! Já se podia usar.

40 E continua com um dato não menor: “Uma fagulha de fósforo, ou mesmo um cigarro descuidado, eram suficientes para provocar um incêndio. E assim, nas noites do Brasil, brasileiros na última moda pegavam fogo nos primórdios do Techdressing”. 105

Agora, vejamos a tradução para o espanhol da primeira versão:

Ella se apareció con un vestido nuevo verde y él no se quedó atrás, apareció con un pantalón Lee que había salido en esa época y una camisa Vuelta al Mundo. Era una camisa muy linda, poca gente la tenía, de precio, ¿está claro? el porqué del nombre vaya a saber, la habían lanzado en esa época en todo el mundo, sería por eso que se llamaba Vuelta al Mundo. (p. 12)

Dessa forma, Puig introduz modulações da conversa, “el porqué del nombre vaya a saber” — é a voz do escritor que não acaba de crer na resposta de Abelardo. Ao mesmo tempo introduz uma frase típica da oralidade em espanhol: “vaya a saber”, que lhe dá fluidez à fala de Josemar, imitando por um lado o registro oral da fala do pedreiro. Quando vamos para a versão em português, vemos que introduz as mudanças da versão em espanhol, traduzindo-as, e adiciona ainda algumas palavras:

Ela trajava um vestidão novo, verde, e ele pintou também todo avoado, ele se trajava com uma calça Lee que tinha surgido na época, e um blusão Volta ao Mundo. Era uma camisa que era muito linda, bem poucas pessoas tinham esse tipo de camisa, custava cara, né? Porque chamava-se assim, sabe-se lá, era o lançamento do mundo na época, então chamava Volta ao Mundo. (p. 12)

Nas suas respostas, Abelardo não quer demorar-se em explicações, mas há muitas palavras, frases ou usos do português que aparecem ao longo da conversa e que Puig não conhece. São muito interessantes os momentos em que isso acontece. Não só porque há momentos em que parecem não se entender de jeito nenhum (e podemos perceber nas palavras o tom cansado da voz de Puig), mas também porque ele vai utilizar esses momentos de perguntas e respostas no romance. Abelardo tenta explicar palavras ou expressões do português, mas não tem muita sensibilidade linguística para explicá-las, e esquece que Puig não é falante nativo e não entende. Como por exemplo, o caso de chamar os avós de senhor ou senhora, o que chama muito a atenção de Puig:

P — Você disse o Sr. e Sra.? R — Sempre é Sr. e Sra. Nunca é você. O tratamento meu para qualquer pessoa é sempre Senhor e Senhora, desde pequeno. P — Com os pais é assim? 106

R— Com os pais é assim. P — Aqui no Brasil? R — Aqui no Brasil. Normalmente aqui é assim. Mas não é todo o pessoal, não. Da minha época. Agora é tudo diferente. Agora é você, é isso, é palavrão. (NG 4.0069_(16))

E no romance: Por qué le decías señora a tu mamá? No la querías tampoco a ella? Siempre señor y señora, desde chico él dijo a todos señor y señora.y todavia ahora. En aquella época era así y ya no más, ahora todo es diferente, se tutea a todo el mundo, y se dicen palabrotas” (p. 37).

Mas há outros momentos em que Puig pergunta e a resposta é simples (e vaya a saber se Puig entendeu... sendo “abusado” um substantivo com um significado bem diferente ao que tem em português):

P — Folgado o que é isso? R — Folgado é abusado. Em brasileiro, abusado e folgado é a mesma coisa. (NG4.0061_(8))

Há inclusive momentos em que não se compreendem, e nem mesmo quem transcreve a fita entende o problema de comunicação e transcreve do jeito que ouve.

Figura 14 - Dificuldade de compreensão

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG4.0061_(8)

A incompreensão se deve à falta de nasalização de “mãe” quando Puig fala, pois o que ele está tentando dizer é “de mães diferentes” que, aos ouvidos brasileiros de Abelardo e da pessoa 107

que faz a transcrição se torna na frase “demais diferentes”. (É uma pena não ter as fitas, mas podemos ver que alguns sons do português ele ainda não domina, como o nasal). Há outros momentos, como vimos com o exemplo do nome da camisa, que Abelardo inventa as explicações que Puig pede a respeito de palavras ou frases que ele não entende:

P — Bicho pega, como é que é isso? R — Bicho pega ela, mas ela briga logo de uma vez comigo e diz que não quer mais me vê na frente dela. P — Que quer dizer o bicho pega? R— Bicho pega? É que eu fiquei imprensando ela como se fosse um bicho, já tava atacando agressivamente. Aí ela disse pra mim: po. Aí ela falou, o problema é o seguinte... Aí um dia eu falei: Olha, hoje à tarde, procura um tempozinho. (NG10.0151)

Mas Puig, como seu personagem, muitas vezes também inventa. Nas folhas da transcrição há muitas palavras marcadas porque não sabe seu significado e depois em geral ele traduz como quer. Na seguinte folha, encontramos na transcrição da fala de Abelardo uma palavra que chama a atenção de Puig e ele marca com um ponto de interrogação: “futuramente” (talvez achou que Abelardo estivesse inventando uma palavra porque em espanhol não existe?). Vejamos na transcrição, onde prestaremos atenção a duas palavras, “carrasco”e “enrolada”: 108

Figura 15 - Indecisões de tradução (I)

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 3.0047 (13) - Fita B

Na primeira versão para o espanhol, podemos ver que Puig deixou em português as palavras “enrolada” e a traduz, por cima à lápis no primeiro caso, de uma maneira muito particular, assim como o faz com “carrasco”, já datilografado: 109

Figura 16 - Indecisões de tradução (II)

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG22.0278 R 27 110

No caso de “carrasco”, Puig traduz a palavra como “cascarrabia” (rabugento) e não como verdugo, palavra que mantém o significado do original. É provável que Puig não soubesse o significado da palavra em português; por outro lado, “carrasco”, em espanhol, é um sobrenome usual. Provavelmente o autor decidiu-se apelando à similaridade do som de “carrasco” com a palavra “cascarrabias”. Embora não tenha nada a ver com a palavra original, a eleição não destoa no contexto do relato, afinal de contas as duas palavras apontam para um julgamento negativo da figura do pai. Daí que a palavra (e o texto) acabou se transformando. É interessante apontar que, na versão em português, logicamente a palavra “carrasco” é mantida (p. 49). Isto é uma bela, e um tanto extrema, confirmação de quanto uma versão em uma língua é diferente à versão em outra. Mas é mais do que isso, é um dado da particularidade e excesso do projeto de Puig na escrita destes romances: o próprio autor não sabe o que escreveu. Por outro lado, dissemos que encontramos na tradução da fala de Abelardo a palavra “enrolada”, que Puig decide não traduzir por enquanto41, mas ele risca a palavra datilografada em português e adiciona por cima a lápis a palavra “conquistada”. Além de estar longe do significado também nos dá a ideia de que Puig embora consiga se defender em português, ainda não sabe palavras fundamentais da oralidade. Em uma segunda versão da versão em espanhol, achamos o seguinte:

41 Uma prática usual dos tradutores literários é deixar as palavras que não sabemos em língua original, o que pode ser muito perigoso, pois nem sempre salta aos olhos que a palavra não foi traduzida. 111

Figura 17 - Indecisões de tradução (III)

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 33.0413 R_31

Puig deixa um espaço em branco (outra prática usual na hora de traduzir) e completa depois a lápis: “creída”. E escreve por cima, quase como uma palavra fantasma, o original: “enrolada”. Ainda na terceira versão continua duvidando, datilografa “zurelada”, uma palavra que não é do espanhol, mas se decide por “creída”, que é a palavra que aparecerá finalmente na versão em espanhol. Como vimos no caso anterior, Puig manterá em português a palavra original de Abelardo e cujo significado desconhece: 112

Figura 18 - Indecisões de tradução (IV)

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.51.0599_(33)

Outro caso muito interessante é o da palavra “avoado”. Como vemos na imagem a continuação, na versão em espanhol Puig duvida: o que significa “avoado”? Aparece escrita a palavra “emperifollado” e por cima o original em português:

Figura 19 – Indecisões de tradução (V)

Fonte: Arquivo Puig. Folha NG 51.0593_(27)

Neste caso, a incompreensão gera também versões diferentes nas duas línguas. Lemos na versão em português: “Ele se olhou no vidro do bar, os cabelos compridos até os ombros, barba, 113

todo avançado, todo avoado, andando todo à vontade” (p. 39, o grifo é nosso). No entanto em espanhol diz: “Él se miró en el vidrio del bar, el pelo largo hasta la espalda, barba, un tipo de avanzada, bien a la moda, todo emperifollado, andando por donde se le daba la gana” (p. 41, o grifo é nosso). É mais do que interessante a escolha da palavra, já que “emperifollado” nada tem a ver com “avoado”. Uma tradução possível de emperifollado seria “emperiquitado”, trata-se de uma palavra de um uso bastante antigo no espanhol argentino, é até engraçada, da época dos folhetins no rádio. Em definitiva, uma palavra de Puig, ou, claro, dos personagens de Puig. Podemos ver então que nos seus romances o processo de tradução envolve múltiplas decisões, nem sempre relacionadas com o significado mesmo da palavra, mas com as exigências da narrativa puiguiana. Por isso, na dúvida, como tradutor para o espanhol, Puig é mais fiel ao seu projeto de escritor do que a seu projeto como tradutor. Ou seja, como autor em espanhol, fica com suas escolhas, que acabam se impondo, mas como autor em português, é a voz do Abelardo que, mesmo sem o autor entender tudo o que ela diz, é quem controla sentidos na narrativa. O não entendimento do português também deixa ver como o romance foi composto. Nas folhas do arquivo podemos ver através de alguns exemplos que ele faz as entrevistas ao mesmo tempo que ele traduz e escreve. Tomemos por caso a palavra “cachoeira”, que ele deixa em português na primeira versão (procedimento que, como vimos, costumava fazer) e depois corrige a mão, escrevendo “cascada”. Não sabemos quando fez a correção ou como soube do significado, mas na fita B, quando Abelardo volta a descrever a paissagem e usa a palavra “cachoeira”, Puig pergunta sobre o significado. Então Abelardo dessa vez explica e diz: “cascata”. A partir da semelhança da palavra cascata com o termo espanhol cascada, Puig finalmente entende. Quer dizer, Puig estava escrevendo o romance no tempo entre uma entrevista e outra, pois no momento da escrita da primeira versão não sabia o que significava “cachoeira”. Podemos ver que Puig então não autotraduziu seu romance do português para o espanhol, mas traduziu apenas o “documento” no qual se baseia o romance (só que neste caso, não se trata de um personagem que é, para seu autor, uma testemunha, nem se trata apenas de um documento mas de um romance inteiro!) Se há operações de autotradução é do português para o espanhol. Vejamos no seguinte exemplo: - Transcrição (fala de Abelardo): “Quando eu chego ao lugar, a vaca vem me pega, me chifra todinho” (NG4.0058-(5)). 114

- Versão espanhol: “Ni bien él llega al lugar, la vaca fue y lo atacó, lo corneó por todas partes” (p. 31) - Versão português: “Mal ele chegou ao lugar, a vaca vem pegar ele, chifrar ele todinho” (p. 31) Assim, o texto em português acaba sendo transformado (embora como vemos neste caso, minimamente) pela versão em espanhol, na que Puig trabalha mais à vontade. Também vemos nessa transformação que aparecem as inconsistências, que mencionava anteriormente Dos Santos Menezes, de registro formal/informal ou as interferências do espanhol no texto em português. Puig foi montando as fitas e os temas na versão em espanhol, versão que tem como base a tradução da fala de Abelardo, enquanto a versão em português é a versão mais “en crudo” da fala e corrigida com as mudanças que Puig fez na versão em espanhol. A partir do material da entrevista, Puig traduz para o espanhol ao mesmo tempo que trabalha a construção ficcional do texto, seja incorporando novas vozes ou elementos, ou editando. Depois, traduz para o português o texto que tinha incorporado usando como base os depoimentos de Abelardo. Assim, a versão em português é, de alguma maneira, a primeira e a última. Em carta à família, diz em relação a Sangre/Sangue de amor correspondido: “salgo con la novela lista (ajustaré algo en galeras) y la traducción al portugués terminada aunque no corregida” (p. 346, carta do dia 14 de outubro de 1981). Efetivamente, para Puig a tradução era para o português. A escrita do romance foi um trabalho paralelo de entrevista, pesquisa, transcrição, edição e tradução, na que foi se tramando a estrutura do romance como ficção, embora no arquivo vejamos os papéis organizados e numerados. Pois há dois processos de escrita: o da tradução e o da construção ficcional, além de uma interessantíssima indagação, tentativa e criatividade na língua estrangeira. Assim, mais do que traduzir, no sentido clássico do termo, Puig teria escrito o romance a duas línguas. Puig conta e traduz, e traduz e conta, e assim vai dissolvendo o par original/tradução. Pois afinal de contas, qual é o original neste trabalho de tradução? Seguindo a leitura de Mario Goloboff,

Para que la literatura de Puig ofrezca la impresión de reflejar fielmente los procesos del habla parecen necesarias numerosas operaciones de traducción. En primer lugar, naturalmente, de la voz a la escritura, y luego, en lo escrito, de aquello que se cree que 115

es, o se presume que debe ser el habla cotidiana de determinado medio, de determinado ambiente, a lo que verosímilmente se acepta como tal. (1997, p.72)

E no caso da utilização da voz de Abelardo, esta ideia fica “sobressaturada”:

Por último (si es verdad que cada escritor crea su propio lenguaje), se traduciría desde esa generalidad aceptada a una generalidad urdida, compuesta, elaborada por el narrador, de acuerdo no solo con sus modos de captar o percibir una lengua sino también con su modo particular de textualizarla, con las necesidades de su ritmo, con los motivos y con los objetivos conscientes e inconscientes de su obrar. (GOLOBOFF, 1997, p.72, a ênfase é nossa).

Na tradução que Puig fez do português de Abelardo – já não no sentido amplo que Goloboff dá à escrita mas no sentido da mera “tradução interlinguística” da que habla Jakobson, ou seja a tradução “propriamente dita” (1992, p. 145) –, o autor está textualizando a tradução ao seu modo particular de escrita. Como mencionei anteriormente, Puig nunca deixa de ser fiel ao seu projeto artístico. Puig não usou o material inteiro nem copiou exatamente o relato de Abelardo. Também adicionou cenas, como, por exemplo a do final do romance. Josemar relata o momento de despedida de Maria da Glória: “Al irse él se daba vuelta por la calle y miraba la ventana de ella, estaba como siempre, despidiéndose con la mano, hasta que él doblaba por la calle de los árboles aquellos más altos todavía que él, bastante más altos que él” (p. 204). Esta cena não aparecia nas transcrições das entrevistas, mas apenas a menção de que havia árvores mais altas do que ele (Abelardo). Então Puig usou esta imagem bem bonita para construir uma cena mais melodramática para o final do romance. Do mesmo jeito, há outras questões que o autor “trama” no meio da fala de Abelardo. Uma delas é o drama racial no interior da história e a outra é a relação conflitiva com a mãe. A partir da segunda parte, o drama adquire mais intensidade e densidade, e a estrutura que o texto mantinha, enlouquece. Comparando com as transcrições, há nesses capítulos (do 7 em diante) uma montagem muito maior e mais complexa das falas de Abelardo. O texto deixa de acompanhar tão de perto a sequência da fala para fazer aparecerem outras vozes que interrogam e questionam o relato de Josemar; além da Maria da Glória, agora aparecem a mãe dele e seu amigo Zilmar. 116

Já no capítulo 9 é como se a narrativa ficasse absolutamente em mãos de Puig: a todo o vapor, a mãe de Josemar conta as fofocas de Cocotá. Por sua parte, o texto em espanhol tem menos rastos do português. Se bem a linguagem de Abelardo é de um registro muito informal, nos romances podemos encontrar momentos de violência verbal que não aparece nas entrevistas. Estos insultos são em geral contra as mulheres da história, sobretudo a mãe. Estes momentos que se distanciam do relato de Abelardo aparecem marcados textualmente pois o personagem abandona o uso da terceira pessoa, quer dizer, perde o controle do relato e passa a usar momentaneamente a primeira pessoa: Él no le contestó a la madre, ni le va a contestar, porque si le empieza a hablar le va a decir cualquier cosa que le venga a la cabeza. — Es que yo sé lo que te pasa, y es que no me vas a perdonar nunca que venda la casa y te deje sin nada, aunque la culpa no es mía... y yo me voy a morir de la pena, eso va a ser peor que cualquier enfermedad. ¡Vieja de mierda! ¡Vieja puta! ¡Vieja sarnosa y la puta madre que te parió! que la culpa de todo es tuya, vieja inmunda, ella estaba entrando al galpón, ella me quería, ella estaba decidida esa noche, y yo la iba a preñar ¡bien preñada! ¡ése era mi plan! Ya después los padres no iban a poder decir nada. Pero ese día la asustaste, se arrepintió, ¿no te diste de cuenta de eso? Y la hiciste sentir como una puta [...] ¡muérase de una vez! (p. 193).

Josemar está passando fome (as limitações econômicas, o problema de saúde da mãe e a perda da casa são temas que Abelardo traz recorrentemente na conversa) e enlouquece. Nas entrevistas, Puig pergunta várias vezes sobre a sua relação com a mãe, mas Abelardo é muito evasivo. Ali, nos silêncios dele, Puig cria seu verdadeiro personagem. E cria, de alguma maneira, uma “verdade” para o texto: a mãe que Josemar tanto queria era a culpada do fracasso do encontro sexual com Maria da Gloria. Outra pergunta que Puig faz com frequência nas entrevistas e que Abelardo não responde é sobre sua cor da pele. A questão racial será importante na trama do romance, já que tudo faz indicar que Josemar, o mais branco e o mais bonito dos irmãos, é filho natural do fazendeiro. Aqui Puig introduz outra importante modificação na narrativa de Abelardo, tecendo no romance um drama racial (bem na linha inaugurada pelo romance Cecilia Valdes, onde a protagonista é a mais branca entre as negras). No romance, é a beleza branca de Josemar o que atrai às mulheres, enquanto no relato de Abelardo, ele próprio aponta sempre para sua inteligência como o fator principal de conquista. Por fim, Puig troca certa informação relacionada à raça dos personagens. No romance, a Maria da Glória é branca, enquanto a Açucena (a namorada que ele só quer para ter sexo) é índia. 117

Na narrativa de Abelardo as coisas são bem diferentes: a mulher que ele quer (e na qual é baseada Maria da Glória) é índia enquanto a loira é a mulher que seria a Açucena. É apenas, sutilmente, nessas mudanças no que diz respeito da relação mãe/filho e a origem étnica dos personagens que achamos a ficcionalização do relato do pedreiro (como se encontrássemos o romance de Puig) e podemos abandonar finalmente a ideia de que o romance não passa de uma transcrição de um depoimento.

118

4 O FIM DO ROMANCE NA NOITE TROPICAL

Cinco anos depois da publicação de Sangre de amor correspondido, Puig publicou um novo romance: Cae la noche tropical. Levou muito tempo para o escritor voltar à escrita de um romance, tal foi o impacto nele das críticas negativas a respeito do seu anterior romance. Porém, aqueles não foram anos de infertilidade, pois nessa etapa Puig se dedicou à escrita de teatro: depois do sucesso da sua adaptação para teatro de El beso de la mujera araña em 1980, escreveu Bajo un manto de estrellas (1981); Gardel, (uma lembrança) (1987); El misterio del ramo de rosas (1987); Un espía en mi corazón (1988), e Triste golondrina macho (1988). Puig demorou a ser conhecido na Argentina como dramaturgo. As peças só foram publicadas no país na década do 2000 (pelas editoras Entropía e Beatriz Viterbo). “Puig dramaturgo no ha terminado aún su exilio”, afirmou o critico de teatro Jorge Dubatti no prólogo ao Teatro reunido de Puig (2009, p. 7). Cae la noche tropical é um romance liminar em vários sentidos: é, sabemos, o último romance que Puig publica antes de morrer. Por um lado, o tema central é a velhice e a morte, e o Rio que retrata é um Rio que está deixando de existir, o ocaso de um paraíso tropical que estava dando lugar a uma cidade violenta. Por outro, Puig volta a trabalhar em espanhol, mas trata-se de um espanhol que também estava morrendo, com palavras e giros linguísticos de uma “língua de avós”. Porfim, é um romance liminar porque no ano seguinte à publicação, Puig abandonou Rio rumo a México. Desencantado com a cidade, impossibilitado de fazer o que mais gostava —nadar no mar— por causa da poluição das praias, com medo do AIDS e da crescente insegurança a fines dos anos de 1980, decidiu deixar o Rio. May Lorenzo Alcalá contava assim sua decisão:

Las razones conscientes fueron resumidas por Manuel mientras me acompañaba a mi auto, después de una sesión de video: lo maravilloso de esta ciudad era la playa y la naturalidad con la que se hacía el amor. Ahora las playas están contaminadas y, con el asunto del SIDA... Lo cierto es que había tenido que cambiar la playa de Leblon por la pileta del Sheraton a causa de unos golondrinos rebeldes, que le salieron por el alto nivel de coli de las aguas en que le gustaba nadar. Los forúnculos eran tan empecinados que temió que se tratara de un síntoma de SIDA (1992, p. 109).

E continua: 119

Sin embargo, playa y amor restringidos no eran, me parece, la única causa del deseo de mudarse a México. Durante los primeiros años de su residencia en Brasil había sido mimado por la crítica y los escritores. Con el correr del tiempo, Manuel dejó de ser una novedad para convertirse en una figura cotidiana que, además, competía por el mercado local (p. 110).

Uma das preocupações de Puig era a saúde da mãe, que estava velhinha e já não se sentia tão bem no Rio. Em carta a Lorenzo Alcalá, do México, Puig escreve:

Te diré una grandísima confidencia que no tengo un buen recuerdo de Río, aparte de la parte galante que fue divina. Del ambiente literario nada quedó, gente huidiza y envidiosa, y para qué hablar del periodismo, en Río por desgracia dominado por el JB, que bien sabes cómo trata a nuestra nacionalidad. Estoy feliz de haber salido, FELIZAZO de veras, y mamá se puede salvar aquí y pasar unos buenos años; desde el 87 más o menos, ella empezó a decaer allí, entre la pérdida de la playa y el frío del invierno (1992, p. 112).

Porém, no seu último romance, Puig escreveu sobre um Rio de Janeiro que podia ser ao mesmo tempo a recuperação da saúde, da liberdade e a possibilidade de transformação para suas personagens.

4.1 Falar/Fofocar

Cae la noche tropical reúne no Rio de Janeiro a duas irmãs argentinas de oitenta e poucos anos: uma delas mora na cidade e a pocos metros de distância de um filho “casado con su carrera” (já podemos imaginar em quem está baseado o personagem) e a outra perdeu uma filha há pouco tempo. Uma é romântica e procura dar explicações sentimentais de tudo, a outra prefere os argumentos mais racionais. As duas conversam, sem cessar, da juventude, dos amores do passado, das perdas de entes queridos, e, sobretudo, da vizinha. Ambientado no finais dos anos de 1980 no Rio de Janeiro, o romance é quase por inteiro a extensa e comovente conversa entre duas irmãs velhinhas no apartamento de Leblon onde mora uma delas, Luci, que recebe a visita de Nidia, ainda de luto pela morte da filha. No prédio, Luci tem uma amiga, a Silvia, psicanalista argentina e exilada. Nidia fofoca com a irmã sobre todos os detalhes da vida amorosa da Silvia, e, junto com Luci, que faz todas as perguntas, vão 120

construindo um personagem ao mesmo tempo que a narrativa do romance. Talvez a Silvia seja, junto com as duas velhas, um dos personagens mais memoráveis da literatura de Puig – mais pelo que dizem dela do que outra coisa. Novamente, Puig deixa seus personagens contarem a história. Volta ao tipo de construção narrativa dialógica de El beso de la mujer araña e de Pubis angelical, mas dessa vez o tema não são nem filmes nem stars, mas a tão simples quanto cativante vida da vizinha. Também, como em Boquitas pintadas e The Buenos Aires Affair aparecem troços de outros discursos, como cartas, matérias do jornal, informes policiais, poemas, etc., um verdadeiro “mosaico de escritura” como o descreveu Bella Jozef (1999, p. 143). O romance se abre com o diálogo já começado42, uma fofoca in media res, como se entrássemos um poquinho tarde na conversa mas felizmente no momento em que ainda há muito assunto para contar. No diálogo, as irmãs querem falar dos amores da vizinha, sobretudo da relação com um Ferreira: “Contame del viaje de ellos dos, después me contas del tuyo, si querés” (p. 93), reclama Nidia. O que começamos a saber da Silvia através de Luci e Nidia é que ela tenta fugir da solidão de todas as formas possíveis. Separada, e com um filho que mora longe, não parece restar para ela mais do que as vicissitudes de amores não correspondidos e desenganos sentimentais. Nas fantasias de conexão e amor de Silvia, elas vão tecendo seus próprios sentimentos a respeito da solidão, a melancolia da velhice e o amor nos laços familiares. Há momentos muito “picantes”, cenas eróticas, como os encontros sexuais da vizinha com o Ferreira, e inclusive dramáticos, como as crises nervosas da Silvia, e sua tentativa de suicídio. E se Luci é mais empática com ela e Nidia a julga mais, há momentos verdadeiramente hilariantes na conversa entre as as duas sobre a vida e obra da Silvia:

— Esa mujer termina mal, Luci. — No me asustes por favor. — En el fondo me da lástima ¿para qué recuperó la salud si no puede aprovechar? — El diablo le puso ese hombre en el camino, Nidia. (p. 71)

O romance põe em funcionamento a dinâmica da fofoca como uma arte narrativa. Luci é mestre ao gerar suspense e tensões na construção do relato da vida da vizinha:

— Lo que le pasó es muy raro, Nidia.

42 Lembremos da primeira página do arquivo de Sangre de amor correspondido, e entenderemos a lógica total da escrita de Puig. 121

— ¿Por qué? (p. 31)

Mas, além da Silvia, tudo cabe na conversa e pode ser misturado com os amores da vizinha: as opiniões sobre a cidade, os passeios pela praia, o filho de Luci em Berna, a morte da filha de Nidia, a juventude, os amores passados. Os temas são sempre recursivos, em qualquer momento voltam. Em uma narrativa cheia de ternura e melodrama, são os temas prediletos de Puig: a desilusão amorosa, a expetativa dos outros e a desobediência aos mandamentos sociais (encarnados, neste romance, em Nidia). Como no romance anterior, a verdade de cada uma também é elusiva. Elas procuram “uma verdade” da vida da vizinha, se metem, inventam:

— A él no le contó la verdad, ¿y a vos sí te la cuenta? — Yo sé bien lo que hace, hasta le puedo controlar la ventana del dormitorio (p. 79).

Sabem, inclusive, o que os outros escondem:

— En sus adentros él tendría la pretensión de compararse con el viento, pienso yo. — No creo, yo me lo imagino más bien apocado. — Por eso mismo, su otro yo. Libre como el viento y completamente irresponsable, que va arrasando con todo y no se da vuelta para ver los destrozos. (p. 98)

As cenas são reconstruídas no diálogo, por exemplo ao contar da viagem que Silvia e Ferreira fazem a Ilha Grande: no diálogo mesmo a história é reconstruida. Nidia e Luci narram o romance a duas vozes:

— ¿Estaba vestido? — No me lo dijo. — Al llegar de toda la noche pescando se habrá bañado. — Entonces estaría sin ropa, Nidia. ¿No te dio ningún detalle? — No me acuerdo. — ¿No se había afeitado todavía? — No me lo dijo, porque ese fue un momento tan importante por otras cosas que se ve que a ella se le olvidaron los detalles. Es que él le pidió que se acercara a la cama y se sentara al lado de él. — Entonces él estaría tapado con la sábana. — Seguramente. Ella se sentó y él le pidió que le diera la mano, no, las dos manos, y le dijo que nunca en la vida podría agradecerle lo que había hecho por él. (p. 103)

Nesse relacionamento estranho que é o de ser vizinhos, achamos uma lógica de aproximação e distância com o outro: uma “paradoja de cercanía y desconocimiento que pone en 122

juego la relación de vecindad”, como afirma Pauls (2007), e mais adiante cotinua: “la prodigiosa adicción al otro que padecen Nidia y Luci no es un hallazgo tardio de Cae la noche tropical; es uno de los leit motivs más persistentes de la obra de Puig” (2007). No circuito da fofoca entra também a escuta psicanalítica, e, como o fazem em todos os romances de Puig, os personagens zombam dos psicanalistas.

— ¿Ella [Silvia] por qué vino a Río? —Se fue de la Argentina en la época de Isabelita y la Triple A, que vino esa campaña de que todos los psicoanalistas eran de izquierda. Aunque ella no es psiconalista, el título es de psicóloga. — Eso nunca lo entendí, esos diplomas antes no había. — Cuando yo estudié no existía esa carrera, si no yo la hubiese seguido. Había que hacer toda Medicina, y después la especialidad en Psiquiatría. — Sí, eso me acuerdo, Luci. — Bueno, y después crearon la carrera de Psicología, que no te obliga a estudiar Medicina, y de ahí salen todas esas charlatanas, que me perdone pobre Silvia, conmigo no ha tenido más que amabilidades. — Y a las psicoanalistas te las dejaste en el tinteiro. — Mirá, el título es de psicóloga, claro que como psiquiatra sonaba un poco antiguo, los que sí siguieron Medicina empezaron a hacerse decir psicoanalistas, según esta Silvia mismo. Algo así. —A ver si entendí. Los psiquiatras son los que estudiaron Medicina primero, y los psicólogos no estudiaron nada. Y los psicoanalistas son los que por hache o por be quieren ponerse ese nombre. (p. 13/14).

A psicanálise é, segundo a lógica das irmãs e do romance, uma das formas de tentar saber tudo do outro, até Luci, a grande fofoqueira do texto, queria ter estudado a carreira. A Silvia também quer sabê-lo tudo: “Estaba sedienta de saber todo, hasta el último recuerdo que él cargaba en la memoria. Todo del pasado y todo del presente” (p. 102), hipérbole, segundo o romance, da mulher apaixonada, interessada, ou mais bem controladora (confusão que atinge às mesmas irmãs). Na segunda parte do romance, Nidia deve deixar o Rio para acompanhar o filho em uma nova cidade, Berna. Mas as fofocas continuam por carta. “este chico [Ronaldo] me ha tomado mucha confianza y me hizo prometer no contarte a vos pero en fin, allá lejos no podes chimentarle a nadie más, así que te lo cuento sin ningún remordimiento” (p. 153). A fofoca continua através das cartas, e os detalhes só melhoram quando Nidia descobre que a Silvia tinha outros amantes. Mas Luci morre no meio desta “conversa” mediada pela distância, e Nidia continua, embora falando sozinha sem saber. Depois da morte de Luci, outros personagens, outras vozes, 123

aparecem na conversa: os filhos. A voz das velhas e da Silvia contrasta com o tom do filho da Luci, e do filho de Nidia, que escrevem mensagens muito curtas, burocráticas. Há então um desentendimento, são aqueles que não compartilham o gênero. Nidia quer ficar no Rio, contrariando os desejos do filho, que tenta convencê-la de voltar para Buenos Aires, mas ela se recusa. Até a Silvia “Yo creo que nada mejor que transcribirle ese texto para que usted comprenda qué es lo que actualmente siente la señora Nidia” (p. 172). Não é a única vez que uma voz cita outra voz. Se Silvia cita a Nidia é porque a compreende, porque ela está envolvida na sua lógica, mas no outro caso veremos que é o filho quem reproduz para o primo as palavras de Nidia: “su respuesta fue terminante, que se encuentra muy bien, en vías de total fortalecimento, que según mi primo fueron las palabras que ella empleó. ¡Total fortalecimento!” (p. 148). Em uma entrevista em vídeo de meados dos anos noventa, Alan Pauls faz um belo depoimento sobre a literatura de Puig:

Yo me di cuenta de que hay en Puig algo mucho más importante que todo ese trabajo con los géneros menores y con la propiedad en la literatura [...] que son como argumentaciones teóricas, me parece que Puig logró una música. Hay algo en esa literatura totalmente anónima que es como una música que no existe en ninguna otra parte en ningún otro lugar en la literatura argentina y que él haya sido capaz de destilar esa música que crece como un yuyo sonoro entre esos adoquines que son las voces, y las mujeres y esos secretos íntimos que intercambian las personas en su casa ha hecho crecer esa música en medio de ese tejido de anonimatos me parece siempre como una experiencia estética extraordinaria como una música muy asordinada, muy menor, que al mismo tempo coquetea con la muerte de lo artístico y al mismo tempo es el colmo de lo artístico. Haber tocado el corazón de lo no literario y haber descubierto ahí la quintaesencia de la literatura (1995).

Depois da morte de Luci, Nidia conhece vários outrso personagens que serão a razão para ela ficar: o porteiro e sua namorada. Ela quer ajudar à menina a se juntar com ele no Rio, mas há tantos erros na comunicação, há tantas coisas que Nidia não consegue captar, que as coisas não saem como esperadas e ele acaba roubando seu dinheiro e fugindo com a sua empregada. Assim, ela volta para Buenos Aires, desiludida. Mas é o pedido da Silvia, o desejo dela de se encontrar, a promessa de afeto em uma outra família onde a comunicação (baseada na fofoca e na linguagem exagerada dos sentimentos) flui. E Nidia volta. Mas não é nenhuma delas quem comunicam o regresso, mas um informe da aerolínea, que relata o roubo de uma manta no voo de Buenos Aires a Rio. Belíssimo final, talvez um dos mais comoventes da literatura de Puig. Como sugere Cesar Aira, 124

si en la novela que creo que es la culminación de su genio, Sangre de amor correspondido, elevó a su último estadio la expresión del horror del destino en la figura de la madre, en la última, Cae la noche tropical, logró algo tan inusitado como desprender a la madre del sistema familiar y hacerla girar sola y libre en otra dimensión. Es como si una débil luz de esperanza se encendiera al final, a pesar de todo (1990).

4.2 Aproximações/ distâncias (III)

Se em Sangre de amor correspondido Puig faz da sua relação com o Rio uma experimentação literária, em Cae la noche tropical é a reflexão sobre a vida nesta cidade, onde entra também a língua. A cidade entra na conversa não como longas reflexões mas como pequenas observações, em um diálogo que tem aquela natureza múltipla, arborescente:

— En Buenos Aires también hay confiterías con mesas en las veredas. Eso yo extraño de allá, que a cada paso haya un bar para sentarse. — Luci, menos mal que le reconocés algo a Buenos Aires. Según vos no existe otra cosa que Río de Janeiro en el mundo. — Nidia, no seas exagerada. Es que Buenos Aires me trae malos recuerdos, nada más. Pensá que allá tenía mi regia casa, y la perdí. A vos eso no te tocó, perder la casa y hasta el último centavo. — Mucha gente perdió todo, en estos años. — Pero los extranjeros cuando van a Buenos Aires salen de allá encantados. Les gusta sobre todo eso, la cantidad de confiterías para sentarse. Y podés estar horas con un pocillo de café y ningún mozo te viene a presionar que dejes la mesa libre o que pidas algo más. Es la costumbre, de allá nada más, de pasarse horas sentado conversando. [...] — Un día llevame a una confitería, no conozco ninguna en Río. — Yo te llevo pero no es lo mismo. Son más para tomar cerveza, y por eso es toda juvntud, o si no hombres solos. Pero señoras no van, y es un bochinche loco. Río no es para gente mayor, ya viste que en la playa somos nosotras las únicas. — ¿Y donde se meten los viejos? — Qué sé yo... Están encerrados en la casa, Nidia. Se deben crer que yo soy una loca, en la calle todo el día. (23)

O diálogo nos faz lembrar os reclamos de Arlt, procurando aquilo que encontra facilmente em Buenos Aires. Depois das duas experimentações em diferentes tipos de espanhol, neste romance volta ao espanhol da Argentina. E essa é uma tarefa que faz com cuidado, pois teme estar perdendo o 125

espanhol, e estar “naturalizando” o português. Por exemplo, em uma das folhas pré-redacionais do seu arquivo, Puig risca a palavra “aqui” e muda por “acá” como vemos na seguinte imagem:

Figura 20 - Espanhol de Cae la noche tropical

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.H.60048 R_(10)

Às vezes o romance mesmo tematiza a mistura de línguas, um problema que Puig via com preocupação. Como conta Luci:

Eso ella [Silvia] me lo explicó todo en portugués, repitiendo los términos de los médicos de acá. Ella mezcla mucho el portugués con el argentino, el castellano quiero decir. Yo mucho no le entendí. Es que lleva algunos años en Río. Yo también cuando hablo con alguien que tiene tempo acá voy mezclando muchas palabras de portugués, sin querer. (p. 10)

As diferenças linguísticas também são tema de conversa, com a cota de humor caraterística de Puig: “Ferreira se escribe con i latina, no con i griega, como en la Argentina, y encima después no la pronuncian la i, dicen Ferrera, son locos” (54). Também, confrontada com a aprendizagem do português e com as particularidades da vida brasileira, Nidia conta:

Yo me traje el televisor a la pieza nuestra, el aparato de vídeo no, porque así me obligo a ver la televisión de acá y practicar el português. Por suerte el oído no lo he perdido y te diré que cada día entendo más. Así también tengo un poco más de tema si me encuentro con alguno, porque todas las senhoras acá ven las telenovelas de la tarde. Yo les hablo 126

en castellano, pero me entienden todo, el chico igual, aunque con él no me da verguenza y me largo a decir cualquier macanazo en português (p. 158, a ênfase é nossa).

De alguma forma, estamos no lado oposto da experimentação que Puig faz entre o português e o espanhol em Sangre de amor correspondido. Ao invés da mistura linguística, no texto procura-se que uma das línguas se detenha ante a outra, seja através da reflexão ou como veremos, da hipertradução. No capítulo 4, Luci lê um jornal brasileiro antes de dormir. O texto aparece recortado, com espaços em branco, pontos de reticência, como simulando a leitura da própria Luci, que vai picotando e na leitura, como na conversa delas, vai entrando tudo e das formas mais variadas. O material do jornal que aparece no capítulo é real, Puiga retoca apenas algumas coisas. A matérias pertencem aoo Jornal do Brasil, do dia 3 de janeiro de 1987. São matérias sobre moda, literatura, arquitetura, bandas de rock e viagens. Na versão em espanhol lemos –junto com Luci– que haverá um show de rock, “otra promesa de los Guardabarros del Éxito” (p. 61) tradução para o espanhol da banda “Paralamas do Sucesso”. Também, ele traduz nomes, por exemplo João VI, por Juan VI, ou São Sebastião por San Sebastián. Em um momento, até a própria narrativa é quem traduz: “Y por eso la llamada Angra dos Reis, o sea Ancla de los Reyes...” (p. 65). Neste sentido, é importante lembrar que Angra dos Reis será o cenário da história de amor e desilusão da vizinha. Há uma nota à mão do Puig que diz : “Reescribir de manera fascinante la ilha” (N.H.8.0074 R_(32)). Como se mostrasse primeiro o cenário (como o filme Antes do atardecer de Richard Linklater), preparando o leitor para conhecer e imaginar o espaço onde se passará a história. Se por um lado, o texto impede o avanço do português sobre o espanhol, há momentos que há não só interferências do português (palavras que não foram “traduzidas” e que ficaram como no original: “Ahora que el rock es parte integrante y expresiva” (p. 61) “la lata de basura de la historia” (p. 62) “suponen que el fuego haya sido causado por...” (p. 60)), mas há casos nos que ele mesmo troca algumas palavras por outras mais aportuguesadas, como “garantida” (p. 61) e “fenecer” (p. 60). É possível que os anos no Brasil tenham “contaminado” seu espanhol. Mas também podemos pensar que são momentos de mistura e experimentação que acontecem quando o romance exige a aparição da outra língua. Pois no resto do romance não há nenhuma mistura. 127

Puig articula uma outra forma de sua condição de escritor estrangeiro: dessa vez são personagens argentinas que olham, comparam, percebem as diferenças. O olhar é parte fundamental do romance: o texto mesmo é o olhar delas sobre o Rio de Janeiro e os cariocas. É o olhar delas que inscreve a cidade do Rio no texto, elas veem a cidade e comparam com Buenos Aires. Mas seu olhar não é preconceituoso, felizes pela liberdade que a distância de Buenos Aires lhes permite. O olhar também está tematizado na história do relacionamento amoroso entre Silvia e Ferreira:

— Pero ¿en qué se parecia? — En la mirada. La misma mirada. Unos ojos negros un poco de chico, un poco huidizos, que no miraban mucho de frente. — Esa es mirada que no dice la verdad. — No, no. Ella dice que es mirada de persona que necesita un amparo, como de un chico que perdió la madre. (p. 16)

Um dos pontos importantes da história de amor da Silvia é o olhar de Ferreira, que faz ela lembrar do olhar de outro homem que ela amou, um mexicano, Avilés: “Si hay algo que me gustaría todavia hacer en esta vida y es explicarle lo que significaba esa mirada de Avilés” (34). O mesmo acontece na comparação com a Argentina e a projeção dos próprios temas nos olhos dos outros:

— Cuando lo vi ahora pensé una cosa, que tiene algo en los ojos como el hombre de la vecina. — No me fijé. — Luci, cómo no te fijaste en los ojos que tiene ese muchacho? — No sé, debe ser que en Río hay tanta gente linda que ya me acostumbré. — Tiene una mirada muy triste, pobre chico. Y se va a pasar toda la noche en vela, pensando en quién sabe qué. Debe tener una pena muy grande. (p. 74)

O olhar das velhas é a intepretação do que veem no olhar dos outros. Puig inscreve em espanhol o olhar sobre o Rio de Janeiro, mas em um espanhol que quase já não se fala, que está deixando de existir, como a cidade que retrata. Um dos núcleos do romance é a morte da filha de Nidia, Emilsen, por causa de um câncer. Luci tem de atravessar a dor da perda e acha na irmã e em Silvia uma forma de continuar com a vida. Nas cartas que Puig se escrevia com a mãe, lemos com certa frequência o nome de 128

Susana43, uma prima do Puig e que morreu de câncer, e sobre quem falavam na correspondência. A mãe e a tia eram muito unidas e a morte da sobrinha abalou a família. Sabemos que, na época que ele escreve o romance, a mãe e a tia de Puig eram, como Nidia e Luci, duas senhoras de uns oitenta anos, uma morava no Rio (a um quarteirão de distância do filho) e a outra em Buenos Aires. Podemos dizer que Puig dedica seu último romance à voz da mãe e da tia, voltando (e encerrando) assim ao seu experimento literário inaugurado em La traición de Rita Hayworth.

4.3 O escritor forasteiro

Podemos pensar a Puig como escritor estrangeiro, escritor exilado, escritor viajante... há muitos modos de ser estrangeiro, para usar as palavras de Néstor Canclini (2009). Todas estas categorias caberiam para falar da relação dele com os países nos que morou fora de Argentina. Como aponta Graciela Speranza,

No faltan en las artes y en la literatura del siglo XX figuraciones dramáticas de la experiencia de la diáspora, el desplazamiento y el exilio. En un tempo signado por las deportaciones masivas, las migraciones forzosas y las desposesiones colectivas, artistas y pensadores han alumbrado grandes obras pensando en las pérdidas, intentando mitigar el dolor del alejamiento o suturar las heridas de la distancia. Pero la inadecuación forzada del emigré o outsider, su condición marginal y excéntrica, como lo demuestran Duchamp o los dadaístas exiliados, pueden convertirse en ocasión de una inesperada libertad que cambia el signo de la experiencia y trastoca la pérdida en insospechada ganancia. (2009, p. 68)

Puig entra, sem lugar a dúvidas, neste grupo de artistas. Como exilado e estrangeiro em uma língua que mal falava, não escolhe o “silêncio” do qual fala Julia Kristeva no belo Estrangeiros para nós mesmos. Tudo o contrário, seu trabalho é puro desejo de língua. Como vimos, realiza uma experimentação radical com a língua estrangeira, uma aproximação quase total à língua do outro, um aprender e trabalhar a língua dentro da língua. Puig traduz para escrever e, escrevendo, aprende o português e conhece o Brasil. Delfina Cabrera (2016) e José Luis de Diego (1997) propõem o conceito de “emigré”, de Edward Said, para falar do exílio em Puig. Ou seja, alguém que bem pode ser “un exiliado

43 No arquivo pré-redacional, a primeira mençao à filha de Nidia é com o nome de “Susana”. Mas vemos que aparece riscado e por cima Puig escreveu a mão “Emilsen”, o nome que finalmente fica. (NH5.0040R_(2)) 129

político que ha dejado de serlo y decide continuar vivendo en el exterior” (DE DIEGO, 1997, p.231). Porém, mais do que a figura do exilado, ou a do emigré, proponho ler a partir da produção brasileira a Puig como um “estrangeiro” no sentido que Georg Simmel deu como uma “particular structure composed of distance and nearness, indifference, and involvement” (1950). De todo modo, continua havendo um excesso em Puig nessa dinâmica de aproximação e distância, pois ele faz um gesto de inserção em uma língua e um sistema literário diferente do qual ele provém, ao mesmo tempo que experimenta na sua própria língua. É então que a categoria do “forasteiro” se apresenta como mais produtiva, na medida que ela traz uma ideia de sujeito ativo em dois espaços: mais do que um escritor estrangeiro morando no Brasil ou um escritor argentino vivendo no exterior, Puig encontra-se em uma posição muito mais lábil, menos definida, em um “entre”. Apropria-se da língua na que vive no cotidiano, com a qual não tem uma história pessoal prévia e intervêm no circuito literário local se tornando muito rapidamente em escritor em língua portuguesa. O que é esse excesso? Algo que não se limita à “estrangeirice”, mas que aponta para uma coisa mais complexa, tensionada na inscrição em dois espaços simultâneos. Apropria-se da língua na que vive no cotidiano e intervem no circuito local. Há uma tensão no conceito de “forasteiro”, que a crítica Laura Demaria desenvolve em seu recente livro Buenos Aires y las provincias:

El forastero es quien está en un lugar al que no pertenece, pero, que a pesar de ello, puede trazar sobre ese espacio un lugar en el que literalmente “está” [...] A diferencia del “extranjero”, el forastero comparte ciertos códigos cone se “estar” al que no pertenece, y, por ende, llega a pertenecer pero a su modo y a pesar de su ajenidad. (2014, p.481)

E continua:

En el forasteiro, mirada y oído se interrelacionan en ese lugar de enunciación entre, un lugar que por estar cercapero lejos, adentro pero afuera, permite descobrir los matices sepultados bajo la cotidianeidad e interrogar – como pide Perec – las cosas comunes. Un modo de estar y pertenecer que no se cierra en aquí versus allá, sino que se conjuga como un espacio entre que permite salir de los binarismos. (p. 483)

Esse modo de “estar”, esse excesso de Puig no modo de “estar” no Brasil habilita uma escrita que articula o brasileiro e o argentino e os confronta em uma dinâmica de aproximações e 130

distâncias, sem nunca resolver a tensão. Um gesto duplo que olha ao mesmo tempo para dentro e para fora e os modifica na relação. Esse excesso o aproximaria mais de uma figura como Gombrowicz. Menos dramática, mas igualmente produtiva, a passagem de Puig pelo Brasil não o transforma em brasileiro, mas como forasteiro é brasileiro na medida que não o seja completamente. Sua brasilidade não se mede por graus, mas pela distância e aproximação no seu trabalho entre culturas e línguas. Esta capacidade de articular a diferença de uma forma original, de uma forma nem exótica nem estrangeira, é onde a literatura de Puig mostra mais uma vez sua habilidade de dissolver os limites. No seu passo pelo Brasil, Puig levou ao extremo o trabalho com a história do outro e com a experimentação formal, dessa vez não apenas na estrutura do romance (o uso de diálogos, ou da cultura de massas) mas também na experimentação linguística. E, apesar do rigoroso trabalho formal, conseguiu escrever com uma extrema liberdade e com uma força narrativa única. 131

CONCLUSÃO

Se a análise da tese se centrou na forma em que o Brasil e o Rio entram e se articulam na literatura de Puig, seria interessante continuar o trabalho se preguntando na forma em que a literatura de Puig entra no Rio de Janeiro e no Brasil: uma possível continuação deste trabalho seria estudar a recepção de Puig no Brasil. Como muitos escritores translíngues, Puig confronta com sua escrita a própria ideia de sistemas literários nacionais. Decide pela instabilidade, da língua, da casa, escrevendo o português e o espanhol como línguas estranhadas. Qual é o lugar de Puig na “literatura brasileira”? Poderiamos incluir Puig como parte da literatura brasileira do século XX? Que implicações teria para o sistema literário brasileiro um autor “forasteiro”? Vale a pena, com Puig, experimentar, e este trabalho é apenas uma primeira tentativa. A organização do arquivo e a digitalização permitiram, e continua permitindo, novas publicações sobre a obra de Puig. Como vimos, foi chave para a análise de Sangre de amor correspondido. Sem o arquivo, apenas teríamos hipóteses sem fundamentos. Novos trabalhos estão sendo feitos na Argentina a partir deste arquivo. A análise aprofundada dos seus romances brasileiros pode propiciar um novo interesse pelo Puig no Brasil e uma renovação da figura do autor como “autor brasileiro”. Sangue de amor correspondido só teve uma edição (a primeira, pela Nova Fronteira) e é achada em sebos –e com dificuldade. A mesma coisa acontece com Cae la noche tropical, que foi traduzida para o português imediatamente após a publicação em espanhol (dessa vez não por Puig, mas por Sieni Maria Campos). Por que o Rio foi esquecendo de um dos seus escritores mais famosos? Por que os críticos de Puig não abordaram seus anos cariocas? Talvez o experimento Puig tenha sido um fracasso. E talvez parte desse fracasso se deva à aceitação passiva de nossa distância em marginalizações mútuas e incompreensões. O sucesso ou o fracasso destes seus romances brasileiros depende de como os continuemos lendo e que os continuemos lendo: por isso, outra possível continuação deste trabalho seria a de relançar em português os romances brasileiros de Puig. 132

Figura singularíssima na literatura argentina, e ao mesmo tempo indiscutivelmente canônico, Puig é um escritor inesgotável. Mesmo quando parece que já nada pode ser dito sobre seus escritos, a enorme generosidade da sua literatura abre novos espaços de leitura e linguagem. 133

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APÊNDICE - Páginas do Arquivo Puig

A ideia de incorporar à tese mais imagens do Arquivo Puig é a de dar à leitora ou leitor uma maior aproximação não apenas da construção do romance de Puig, mas da “materialidade” da sua escrita, que, como toda materialidade, segundo o historiador Roger Chartier, gera sentidos (2008, p. 9). Aqui vemos questões interessantes da dinâmica da conversa, as transcrições das entrevistas, a montagem dos temas e os papéis que usava para escrever.

Figura 21 - Montagem e articulação de temas e fitas

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.15.0211 R 141

Puig elabora os capítulos a partir do conteúdo das fitas. Nesta folha, podemos ver como prepara a “Segunda versão” do romance (há uma consciência do processo inteiro de criação do romance). Vemos que a última fita, titulada Zarah (embora correpondesse segundo a ordem a letra G) já foi transcrita. Vemos também a mistura de línguas nas que faz suas notas, em frases como “chapter begins”, por exemplo. 142

Figura 22 - Entrevista: dinâmica da conversa

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.12.0187_(6)

Ao longo da entrevista, Puig vai perguntando coisas específicas, detalhes da narrativa de Abelardo. Mas, como podemos ver neste exemplo, também pede “mais fantasia”. 143

Figura 23 - Entrevista fita B (I)

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.3.0041_(7)

Aqui vemos escrita a mão uma intervenção de Puig que já introduz a voz da mãe. Na folha da transcrição já começam a conviver a voz do pedreiro e a de um personagem. 144

Figura 24 - Entrevista fita B (II)

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.3.0053_(19)

Nesta folha podemos ver a nota de Puig a mão que seleciona um trecho da entrevista: “Usar!”. Na linha final achamos a pregunta sobre o significado de “cachoeira”, no exemplo seguinte está a resposta de Abelardo. 145

Figura 25 - Entrevista fita B (III)

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.3.0053_(19) 146

Figura 26 - Título tentativo e nome de autor

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.31.0382 R

Umas das coisas fascinantes de trabalhar com o arquivo são as pequenas “epifanias” que podem acontecer. Na primeira vez que Puig dá o título ao romance e escreve seu “nome de autor”, do outro lado, no reverso da folha, um outro autor aparece: Kurt Vonnegut (ver próxima 147

imagem). Puig desestabiliza a categoria de autor não para renunciar a ela nem apagá-la mas para criar um lugar médio entre testemunha e ficção, autor e personagem. 148

Figura 27 - Nome de autor

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.G.31.0382 V

O escritor american Kurt Vonnegut iria visitar um seminário de escrita na Universidade de Columbia, onde Puig dava áulas de escrita criativa. 149

Figura 28 - Notas de Cae la noche tropical

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.H.4.0033 R

Nesta folha, que parece ser uma publicidade, Puig escreveu algumas notas avulsas sobre Cae la noche tropical. Puig escrevia literalemente em qualquer lugar. É interessante notar a mistura entre o português e o espanhol: “Si pudiera pedir conselho ao seu pai”. 150

Figura 29 - Notas de Cae la noche tropical (II)

Fonte: Arquivo Puig. Folha N.H.2.0012 R

Este é outro exemplo de espaços materiais de escrita que usava Puig para seus romances. No caso das notas para Cae la noche tropical, usou a correspondência da agência de notícias que chegava a sua casa. Aqui vemos convivendo no papel seu endereço no Rio e sua escrita carioca.