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JOSÉ CALASANS Canudos – origem e desenvolvimento de um arraial

Publicado nos Anais do VII Simpósio Nacional dos Professores Universi- tários de História (Belo Horizonte, 2 a 8 de setembro de 1973), São messiânico Paulo, 1974, pp. 461-81; republicado em: Revista da Aca- demia de Letras da , n. 34, Salvador, janeiro de 1987, pp. 47-63; Cartografia de Canudos, Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo, Conselho Estadual de Cultura, EGBA, 1997.

or volta de 1870, nos sertões da então província

da Bahia, existiam duas pequenas localidades

denominadas Canudos – o lugar Canudos, tam- pbém mencionado como o “deserto dos Canudos”, em terras da freguesia de Nossa Senhora da Graça do Morro do Cha-

péu (1), e a “fazenda de Canudos”, referida nos limites entre as

freguesias do Santíssimo Coração de Jesus de Monte Santo e

Santíssima Trindade de Massacará (2).

O primeiro lugar continuou sendo, até os dias presentes, um

1 Felisberto Freire, História pequeno povoado, sem história, com uma população de 90 habitan- Territorial do Brasil (Bahia, Sergipe, Espírito Santo), vol. I, tes, segundo os dados oficiais de 1957 (3). O outro, porém, obscura Rio de Janeiro, Tip. do Jornal do Comércio, 1906, pp. 235- 8. fazenda em origens, ganhou projeção nacional entre 1893 e 1897, 2 Idem, ibidem, p. 238. quando foi destruído pela guerra e pelo fogo após uma sangrenta 3 Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, Rio de Janeiro, Ins- luta de alguns meses, tornando-se ponto de história do Brasil. tituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1958, 4, XXI, p. 50. A fama da localidade começou a surgir quando, em junho de

72 REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 oscem sertões anos

1893, ali chegou e se estabeleceu, acompa- nhado de milhares de seguidores, o “mes- sias brasileiro mais conhecido e estudado”

(4), Antônio Vicente Mendes Maciel, An- tônio Conselheiro de alcunha, também cognominado Bom Jesus Conselheiro e

Santo Conselheiro.

Segundo a tradição recolhida no meio de velhos moradores da área, as terras da fazenda pertenceram à gente da Casa da

Torre, que as obtivera de sesmaria. Em

1856, possuíam quinhões de terras no lu- gar denominado Canudos, segundo o re- gistro efetuado perante o vigário da fregue- sia de São João Batista de , padre

Joaquim Inácio de Vasconcelos, os senho- res Lázaro Pereira Leal, Sebastião José Qua- dros e Vitorino José de Santana. Canudos, então, limitava-se ao nascente com a fazen- da Cocorobó, ao norte com a Canabrava, para o poente com a Barra e para o sul com

o Rosário (5). Ao tempo dos históricos acon- Casa de Cultura , São José do Rio Pardo tecimentos que celebrizaram o arraial, as fa- zendas próximas, Cocorobó e Velha, eram das do Cambaio, do Calumbi ou do Rosá- 4 Maria Isaura Pereira de rio, de Massacará, de Jeremoabo, caminhos Queiroz, O Messianismo no propriedades da família do dr. Fiel de Car- Brasil e no Mundo, São Paulo, Editora da Universidade de valho, que também parece haver possuído abertos à penetração do Rio São Francisco. São Paulo, 1965, p. 203. um quinhão em Canudos (6). De Canudos, na direção do oeste, partiam 5 Livro de Registro dos Exempla- res das Terras da Freguesia da as estradas de Uauá e da Canabrava, atra- Vila de Jeremoabo, conforme Localizado à margem do Vaza-Barris, determina o Decreto 1.318, de 30 de janeiro de 1854. Livro numa região onde correm alguns afluentes vés das quais se completavam as caminha- 52, fls. 34, reg. 80 e fls 36, regs. 84 e 85. Encontrado no do citado rio – os riachos Mamuquem, do das dos sertões banhados pelo “rio da uni- Arquivo Público da Bahia. 6 Manuel Benício, O Rei dos Ja- Mota, da Providência e o Rio Sargento –, o dade nacional”. gunços. Crônica Histórica e Costumes Sertanejos sobre pequeno povoado desfruta de posição pri- Ponto de encontro de várias estradas, Acontecimentos de Canudos, Rio de Janeiro, Tip. do Jornal vilegiada. É que por ali passavam as estra- Canudos tornou-se pouso obrigatório de do Comércio, 1899, p. 166.

REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 73 viajantes que aí pernoitavam e tratavam de sua ocupação pelo Santo Conselheiro, teria suas montarias, dando ensejo à atividade “cerca de cinqüenta capuabas arruinadas”, de ferreiros, consertadores de ferramentas admitiu Euclides da Cunha (8). Cerca, por- de animais. O criatório de bode, muito di- tanto, de 250 habitantes, conjeturamos, fundido nas redondezas, era o principal admitindo uma média de cinco pessoas para esteio da pequena economia, por causa de cada casebre. As casinholas ficaram, na sua couro vendido para Cumbe (Euclides da maioria, numa espécie de praça ali existen- Cunha atual) e Monte Santo. Plantava-se te, onde havia um barracão, conforme nos cana nas margens do rio e seus afluentes, declarou Manuel Ciríaco (9), homem dos para a rapadura destinada ao consumo lo- tempos do Conselheiro. Os casebres de cal. Nas grandes fazendas, criava-se tam- Euclides da Cunha não devem ser entendi- bém o gado vacum. dos no rigor da expressão. Havia alguma Surgida em pleno sertão, distanciada dos coisa além das “capuabas arruinadas”. Uma núcleos maiores de povoamento, a fazenda pequena capela e umas duas ou três casas de criar cedo passou a ser um centro de de melhores condições. A casa de Antônio reunião de gente “suspeita e ociosa”, con- da Mota era uma delas, sem dúvida algu- forme informou a Euclides da Cunha o ma. Negociante de couro, chefe de nume- padre Vicente Ferreira dos Passos, antigo rosa família, Antônio da Mota possuía uma vigário da freguesia de Jeremoabo que, em casa regular, segundo ouvimos de diversos 1876, andara em desobriga na zona. Regis- sobreviventes da guerra. Ficava situada na trando notas manuscritas em seu poder, praça, perto da capelinha levantada em anos escreveu o autor de Os Sertões: “Já em 1876, mais recuados. Antônio Conselheiro, quan- segundo o testemunho de um sacerdote, que do esteve no arraial pela primeira vez, pro- ali fora, como tantos outros e nomeadamen- meteu a Antônio da Mota, de quem era com- te o vigário do Cumbe, em visita espiritual padre, que edificaria uma igreja maior, pro- à gentes de todo despeadas da terra, lá se messa cumprida em 1893. O velho aglomerava, agregada à fazenda, popula- Macambira, antigo morador do povoado, ção suspeita e ociosa, armada até os den- negociante e pequeno criador, também de- tes” e “cuja ocupação, quase exclusiva, via possuir uma moradia melhor do que as consistia em beber aguardente e pitar uns palhoças referidas por Euclides da Cunha. esquisitos cachimbos de barro em canudos O centro do arraial, evidentemente, es- de metro de extensão cujos tubos eram tava situado na praça que alguns denomi- naturalmente fornecidos pelas solanáceas nam das “igrejas” e outros chamavam das (canudos de pito) vicejantes, em grande “casas vermelhas” ou ainda “do comércio”. cópia, à beirada do rio” (7). A primeira denominação vem do fato de ali Vimos confirmadas as informações do estarem, uma diante da outra, a Igreja de padre Vicente Ferreira dos Passos num Santo Antônio, cuja edificação parece ha- documento assinado pelo delegado de po- ver sido concluída em 1893, e a do Bom lícia de Monte Santo no qual constava que Jesus, de maiores proporções, ainda em certo criminoso possivelmente estava ho- construção na época da guerra. A outra de- miziado em Canudos, onde não era fácil signação é originada de um “correr” de casas chegar a ação dos representantes da lei. de telha, no lado oposto às igrejas, perten- Do exposto, podemos concluir que a fa- centes ao comerciante Antônio Vila Nova, zenda Canudos, depois arraial de Canudos, e João Abade, o “chefe do povo”. Eram as 7 Euclides da Cunha, Os Sertões, Rio de Janeiro, Laemmaert, chamado povoado do Belo Monte pelo Con- mais confortáveis de toda a localidade, le- 1902, p. 187. selheiro, após sua chegada ao lugarejo, era vantadas depois da chegada do Bom Jesus 8 Idem, ibidem. um local dos sertões baianos, como inúme- Conselheiro. “Do comércio”, por causa da 9 Ouvimos, mais de uma vez, a ros outros, aliás, que apresentava condições loja de Vila Nova. declaração de Manuel Ciríaco a respeito do barracão onde favoráveis ao desenvolvimento de um pon- Partindo da praça, um número elevado ficara Antônio Conselheiro, em to de reação ao poder constituído. de casebres, levantados apressadamente à sua primeira passagem por Canudos. O arraial, em 1890, três anos antes de proporção que iam aparecendo os fanáti-

74 REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 cos, tomava o nome de “ruas”: Campo das dias, procedentes de diversos pontos da Abóboras, da Caridade. A única perfeita- Bahia e de Sergipe. Vinham, sobretudo, mente alinhada era a do Monte Alegre, que daqueles lugares por onde peregrinara, ia terminar na Estrada de Uauá. As demais durante mais de vinte anos, o Santo Conse- eram “pura ênfase dos seus moradores”, lheiro. Gente do Tucano do , de observou Sílvio Rabelo (10). Olhando a Entre Rios, de , do Conde, de “Tróia de taipa” do alto da trincheira “Sete Pombal, de Monte Santo, de , de Setembro”, Euclides da Cunha nos le- de Massacará, de Jeremoabo, de Curaçá, gou a descrição que se segue. de Campos, de Itabaianinha, de Vila Cristina, do Geru. Pessoas de recursos, que “Do alto da trincheira ‘Sete de Setembro’, vendiam sua terra e seu gado. Homens e erguida num contraforte avançado do mor- mulheres paupérrimos. Índios do aldeamento ro da Favela, quem observa tem a impres- de Mirandela e , certamente locali- são inesperada de achar-se antes uma cida- zados na Rua dos Caboclos; pretos liberta- de extensa, dividida em cinco bairros dis- dos pela Lei Áurea, conhecidos por “13 de tintos e grandes, revestindo inteiramente o Maio”, que deviam predominar na “rua dos dorso das colinas. negros”. Doentes mentais, aleijados, inca- É um quadro surpreendente, o deste acervo pacitados que viviam das esmolas do Bom incoerente de casas – todas com a mesma Jesus e esperavam seus milagres. Todos atra- feição e a mesma cor, compactas e unidas ídos pelo poder de Antônio Conselheiro, no centro de cada um dos bairros distantes, pelos seus conselhos, pelo lenitivo que ele esparsas e militarmente dispostas em xa- lhes podia proporcionar. drez nos intervalos entre eles. Não há propriamente ruas, que tal nome “Quem quiser remédio santo não se pode dar às vielas tortuosas, cruzan- Lenitivo para tudo 10 Sílvio Rabelo, Euclides da Cu- do-se num labirinto inextrincável – e as duas Procure o Conselheiro nha, Rio de Janeiro, Coleção Estudos Brasileiros da Casa do únicas praças que existem, excetuada a das Que ele esta lá nos Canudos” (15). Estudante do Brasil, 1948, p. igrejas, são o avesso das que conhecemos: 169. O verdadeiro nome da rua parece que era Campo – dão elas os fundos de todas as casas, são “Da ‘Meca’ do Conselheirismo, os fiéis Alegre e não Monte Alegre. um quintal em comum” (11). convocaram novos adeptos, chamando os 11 Euclides da Cunha, Canudos. parentes e amigos para a ‘nova barca de Diário de uma Expedição, Rio de Janeiro, José Olympio, Frei João Evangelista do Monte Marcia- Noé’ que outra não era senão o Belo Mon- 1939, p. 86. no, que visitou o Belo Monte no ano de 1895, te” (16) . Euclides da Cunha anotou, numa 12 João Evangelista do Monte Marciano, Relatório… ao em pleno desenvolvimento do arraial mes- das páginas de sua Caderneta de Campo, Arcebispado da Bahia sobre siânico, encontrou “casinholas toscas, frase de um dos jagunços, definidora do Antônio Conselheiro e seu Sé- quito no Arraial dos Canudos, construídas de barro e cobertas de palha, de proselitismo praticado em canudos: “toca- Bahia, Tip. do Correio das porta sem janela e não arrumadas. O inte- ram a me mandar cartas” (17). Notícias, 1895, p. 4. rior é imundo, e os moradores que, quase Favila Nunes obteve e divulgou missi- 13 Idem, ibidem. nus, saíam fora a olhar-nos, atestavam no vas de jagunços, bem significativas dos 14 Idem, ibidem, p. 6. aspecto esquálido e quase cadavérico as apelos, endereçadas aos parentes, aos com- 15 José Calasans, No Tempo de Antônio Conselheiro, Salva- privações de toda espécie que curtiam” (12). padres, aos amigos. José Mendis (sic) dos dor, Liv. Progresso Editora, s.d., O frade viu, ainda em cerca de duas ho- Reis mandou perguntar a Benedito Pereira p. 62. ras, a passagem de oito enterros, o que lhe de Souza: “Agora aparece por cá uma no- 16 Barreto Dantas, Última Expedi- ção a Canudos, Porto Alegre, disseram depois ser fato comum na locali- tícia que o concelero diz que quem não for Francisco Irmão Ed., 1898, p. 16. dade (13). Como indagava, numa das suas daqui até agosto que não entra mais hentão 17 Euclides da Cunha, Caderne- práticas, quem era o responsável por aquela eu lhe mando pedir a Vem, que ci for serto ta de Campo, manuscrito guar- mortandade, ouviu uma voz lamuriosa, par- eu saber diretamente disto” (18). dado no Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, 023, tida do seio dos assistentes: “é o Bom Jesus Do Belo Monte, José Felix, apelidado o lata 383. que os manda para o Céu” (14). Taramela, que gozava da confiança do 18 J. P. Favila Nunes, Guerra de Superior ao número dos mortos, eram Santo Conselheiro, respondeu a Romão Canudos, vol. I, fasc. 3, Rio de Janeiro, Tip. Morais, 1898, os grupos de adeptos que surgiram todos os Soares dos Santos: “Recebi sua estimada p. 31.

REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 75 carta, e sobre ela respondo-lhe que Vm ten- Tucano, onde os conselheiros enfrentaram e do vontade e gosto de vir faça por vir o mais venceram uma tropa da polícia baiana, o dr. breve que lhe seja possivel, com sua famí- Salomão de Souza Dantas, promotor públi- lia pois a marca do Senhor já esta para os co em Itapicuru, encontrou o Bom Jesus na Christãos que quizerem gozar de sua Santa fazenda Olhos d’Água. A propósito do ines- Companhia” (19). perado encontro, disse o dr. Salomão: Muitos outros exemplos poderiam ser indicados. Os trechos referidos, porém, são “O mulherio constituía, então, a parte mais suficientes para dar uma idéia dos chama- numerosa do pessoal fanático, podendo ser mentos partidos do arraial “sagrado” do calculado em dois terços do bando que Belo Monte, onde os republicanos, os pro- acompanhava o Conselheiro. Em Olhos testantes e os maçons eram renegados. Estes d’Água, este disporia, aproximadamente, não podiam pisar o chão abençoado, por- de cem a duzentos homens de combate, com que Antônio Conselheiro não os queria. Daí, os quais fez a proeza de Masseté, ganhan- as advertências contidas em algumas car- do, daí em diante, prestígio e poderio incal- tas; “Lá na Freguezia já tem muito gente culáveis em todo o sertão da Bahia e esta- com o carimbo do anticristo e o meu Com- dos limítrofes” (24). padre Conselheiro não quer que esta gente entri acui” (20). Ou então: “Não traga gen- O bom êxito das hostes de Antônio te que Vma ver que é fora do gosto do Sr. Vicente animou os partidários, que ocorre- Conselheiro” (21). ram de vários pontos, dispostos a todos os A história do crescimento populacional sacrifícios. Em pouco tempo, a imprensa de Canudos é composta de algumas etapas, noticiava que cerca de duas mil pessoas 19 Idem, ibidem. que julgamos hajam sido as seguintes: haviam tomado a direção de Canudos acom- 20 Idem, ibidem, p. 34. 1) os primitivos moradores do arraial; panhando o messias (25). Os seiscentos 21 Idem, ibidem, p. 31. 2) os seguidores de Antônio Conselhei- acompanhantes aumentaram para dois mil, 22 “Antônio Conselheiro”, in Diá- ro com ele chegados; dos quais somente quinhentos seriam váli- rio de Notícias, Bahia, 16/ set./1896. 3) as levas de sertanejos, procedentes dos, adiantava, em setembro, o correspon- 23 Lélis Piedade, Histórico e Rela- de vários municípios, que se transportaram dente do Diário de Notícias, gazeta de Sal- tório do Comitê Patriótico da vador, noticiando a presença do Conselhei- Bahia, Lito – Tip. e Enc. Reis & para o Belo Monte entre 1893 e 1896; Cia., 1901, p. 182. 4) homens e mulheres que, iniciada a ro em Canudos, que ele determinara pas- 24 Salomão de Souza Dantas, As- guerra, quiseram ir para o lado do Conse- sasse a ser Belo Monte, como desde então pectos e Contraste: Ligeiro Es- tudo sobre o Estado da Bahia, lheiro no intuito de defendê-lo e com ele os jagunços obedientemente o fizeram (26). Rio de Janeiro, Tip. Revista dos sofrem as terríveis agruras daqueles mo- Aboletados de qualquer forma, os recém- Tribunais, 1922, p. 146. mentos difíceis. chegados trataram de construir suas palho- 25 “Monte Santo”, in Diário de No- tícias, Bahia, 1/jul./1893, p. A população autóctone seria pequena, ças, preparar suas plantações e roças, fican- 1, c.7. como já constatamos noutro ponto desta do o grupo da “guarda católica” encarrega- 26 Manuel Benício, op. cit., p. comunicação. Às vésperas do início da do das medidas de defesa do arraial ameaça- 166 campanha, o capitão Jesuíno Lima, nego- do pela troca de linha colocada à disposição 27 João Evangelista do Monte Mar- ciano, op. cit., p. 6. ciante expulso do arraial pelos jagunços, do governador Rodrigues Lima, para vingar 28 Nertan Macedo, Memorial de falou numas “seis ou oito famílias” da ter- o malogro do riacho Masseté. A força fede- Vila Nova, Rio de Janeiro, Ed. ral que se deslocou até o município de Ser- O Cruzeiro, 1964, p. 70. ra, minoria inexpressiva (22). Relaciona- dos menores abrigados pelo Comitê Patrió- rinha terminou sendo recolhida aos seus 29 Wolsey, Libelo Republicano Acompanhado de Comentários tico da Bahia, no fim da luta fratricida, o quartéis, em Salvador, sem que se soubesse sobre a Campanha de Canu- dos, Salvador, Tip. do Diário jornalista Lélis Piedade menciona pou- exatamente a razão do recuo. da Bahia, 1899, p. 29. quíssimos nomes de crianças nascidas no Afastado o perigo da intervenção arma- 30 Henrique Duque Estrada povoado (23). A grande massa humana da, o Belo Monte começou a viver uma Macedo Soares, A Guerra de Canudos, Rio de Janeiro, Tip. provinha de pontos próximos ou distancia- existência própria sem nenhuma obediên- Altina, 1902, p. 35. dos dos sertões nordestinos. cia ao poder público estadual, unicamente 31 Dantas Barreto, Destruição de Em maio de 1893, pouco antes do com- mantendo suas relações com a Igreja atra- Canudos, Pernambuco, Jornal do Recife, 1912, p. 295. bate de Masseté, no município baiano de vés do vigário do Cumbe, que aparecia para

76 REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 celebrar missas, fazer batizados e casamen- do estado, exceção da cidade de Salvador. O tos, até que afinal entrou em divergência cálculo é evidentemente irreal. com a jagunçada que lhe não respeitava a A segurança do povoado ficava entre- autoridade espiritual. gue à “guarda católica”, também denomi- A população de Canudos continuou nada “Santa Companhia”, “Companhia do aumentando com a chegada de homens e Bom Jesus”, com a incumbência de defen- mulheres de várias procedências. Em 1895, der o arraial e o líder dos sertões. Permanen- quando lá esteve a missão dos capuchinhos temente, revezando-se de quatro em quatro da Piedade, frei João Evangelista calculou horas, os homens da Companhia mantinham que mais de seis mil pessoas haviam assis- guarda ao “Santuário”, residência de Antô- Antônio tido a sua pregação, admitindo, porém, que nio Conselheiro, localizado ao lado de uma a maior parte era gente de fora (27). das igrejas. Os membros da organização Conselheiro Talvez, na mesma época, tivesse Antô- nio Conselheiro feito o comentário recolhi- do por Honório Vila Nova, que o transmitiu a Nertan Macedo: “Quando Jesus Cristo andou pela terra foi acompanhado de cinco mil pessoas. No meio delas havia mais gente detestada do que boa. Ao lado do Bom Jesus já tem o mesmo número de pessoas” (28). A fase da guerra iniciada em novembro de 1896 deu um impulso novo ao movi- mento migratório. A notícia de que o Santo Conselheiro estava ameaçado mobilizou milhares de sertanejos. Os jornais falam seguidamente nos numerosos grupos en- contrados nas estradas de Canudos, arma- dos como podiam, anunciando que iam “cortar soldados”, liquidar com a “fraque- za do governo”, como era chamada a força estadual. Tudo indica que, em poucos me- ses, os habitantes do Belo Monte tornaram- se muitos milhares. “Uma povoação de mais de vinte mil almas”, escreveu César Zama, terminado o conflito (29). A estimativa do tenente Macedo Soares é mais elevada. Par- ticipante da derradeira expedição, obser- vando a “Tróia de taipa”, o jovem oficial de infantaria declarou: “seis mil e quinhentas habitações viam-se e trinta mil seres nelas se agitavam promiscuamente” (30). Havia exagero no cálculo das casas, con- seqüentemente no cômputo dos moradores. Ao final da refrega, as casas foram “cuida- dosamente contadas” por comissão oficial nomeada para tal fim. Eram cinco mil e duzentas (31). Aceitando-se uma média de cinco pessoas por morada, o que julgamos razoável para famílias sertanejas, teríamos vinte e seis mil habitantes. Tal população, vale observar, era superior a qualquer outra

REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 77 eram mantidos pelo Bom Jesus e possuí- misola azul, no centro da qual destacava-se am fardamento próprio. Frei João Evange- um vulto magro de cor macilenta, barba lista nos legou uma informação interes- longa e grisalha, cabelos compridos e sante a respeito do grupo garantidor do esparsos em desalinho pelos ombros, ves- Bom Jesus Conselheiro: “Os homens en- tido de uma túnica branca e segurando um tão sempre armados dia e noite montam bastão, que lhe servia de arrimo aos vaci- guarda a Antônio Conselheiro; parecem lantes passos. Os 12 homens de camisola idolatrá-lo e cada vez que ele transpõe o azul, atada à cinta por um grosso e compri- 32 João Evangelista do Monte Mar- limiar da casa em que mora é logo recebi- do cordão arrematado por duas bolas, ten- ciano, op. cit., p. 5. do com ruidosas aclamações e vivas à San- do sobre a cabeça um gorro da mesma cor, 33 Pedro Batista do Espírito Santo, “A Vila Bom Conselho Assalta- tíssima Trindade, ao Bom Jesus e ao Divi- são os de sua maior confiança e por isto têm da por Antônio Conselheiro”, in Diário da Bahia, Salvador, no Espírito Santo” (32). a denominação de Apóstolos e como tais 12/dez./1895, p. 2, c. 5/ O “povo da Companhia”, no modo de são tidos e havidos” (33). 6. dizer dos primitivos moradores do arraial, 34 Henrique Duque Estrada Macedo Soares, op. cit., p. 38. constituía uma espécie de elite da comuni- Macedo Soares fez um levantamento dade. Sustentada pelo Conselheiro, sem- nominal de alguns membros da “guarda ca- pre pronta para entrar em ação, vestindo-se tólica”, que não parecem ser exatamente os de modo característico, a gente da “guarda tais “apóstolos”. João Abade, Pajeú, Joa- católica” desfrutava de indiscutível prestí- quim Macambira são os nomes citados (34). gio. Havia, entre os seus integrantes, um São também mencionados: Antônio Vila pequeno grupo mais importante. Chama- Nova, Antônio Beatinho, José Félix, o vam-no os “12 apóstolos”. O juiz Taramela. Não apuramos, realmente, quais preparador de Bom Conselho (Bahia), teriam sido os “apóstolos”, nem também o Pedro Batista do Espírito Santo, que des- papel exato que desempenhavam no arraial creveu a entrada solene do Conselheiro em missionário. Com segurança, sabemos ape- sua cidade, fixou para a imprensa de Salva- nas da posição de João Abade, o “coman- Batalha dor os “12 apóstolos”: dante da rua”, o “chefe do povo”. Era o homem forte da comunidade, tendo somen- patriótica “[…] densa nuvem de poeira, a primeira te de prestar obediência ao Santo Conselhei- Moreira Alves ala composta de 12 homens vestidos de ca- ro. Cabia-lhe a chefia da “guarda”, a direção da guerra. Organizava os piques, escolhen- do jagunços de sua confiança para as incum- bências de ordem militar, punia os crimino- sos aplicando-lhes “bolos” com palmatória, prendendo-os na “poeira”, como se deno- minava a cadeia local. Ao seu lado, contudo, havia outra figura importante, seu vizinho de casa, pelo que sabemos seu amigo pesso- al. Era o cearense Antônio Vila Nova, nego- ciante de balcão, proprietário da loja mais acreditada de Canudos, onde trabalhava seu irmão Honório. Abade e Vila Nova, em face de tudo quanto lemos e, sobretudo, ouvi- mos, formavam a dupla de poder decisório na sociedade do Belo Monte, sobretudo a partir do começo da guerra. O Conselheiro, porém, jamais abdicou do direito de dizer a palavra final. Os outros “apóstolos” teriam influên- cia menor. Talvez não passassem de fiéis

Casa de Cultura Euclides da Cunha, São José do Rio Pardo cumpridores de ordens, de elementos en-

78 REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 carregados de missões de pequena signifi- da “guarda”, na assistência aos doentes e cação. O caso de Joaquim Macambira ilus- necessitados, provinham das “doações” e tra a nossa hipótese. Antigo morador do das “esmolas”. Distingamos. As “doações” lugarejo, vivendo da vaqueirice e do co- eram feitas por pessoas do lugarejo e das mércio, Macambira, chefe de prole nume- redondezas, muitas vezes ricas, que vinham rosa, mantinha contatos com proprietários espontaneamente trazer suas ajudas. As e autoridades dos lugares próximos, entre esmolas eram obtidas pelos beatos do Con- os quais desfrutava de bom conceito. selheiro, que saíam, devidamente autoriza- A “santa companhia”, pensa Maria dos, para pedirem, levando, não raro, car- Isaura Pereira de Queiroz, formada por ho- tas neste sentido. Antônio Conselheiro era mens e mulheres, seria antes uma confraria um missivista humilde, que escrevera mui- do que uma guarda (35). A observação da tas epístolas solicitando dinheiro, bois, coi- socióloga paulista levou-nos à indagação sas outras de que “tinha precisão”. Conhe- entre sobreviventes do episódio Canudos. cemos algumas cartas suas e temos conhe- Embora não chegássemos à resposta con- cimento da existência de outras. Pedrão clusiva, estamos inclinados a acreditar que contou-nos suas viagens para angariar re- havia diferença entre a “Companhia do Bom cursos. Numa delas, naturalmente rendo- Jesus” e a “guarda católica”, podendo a sa, o compadre Antônio Conselheiro deu- primeira, bem mais ampla, congregando lhe 20$000, importância de valor, numa homens e mulheres, ser apontada como uma época em que um “boiote” custava 40$000. confraria, enquanto a segunda, constituída José Venâncio, ora referido como beato, de representantes do sexo masculino, ar- ora como clavinoteiro, também andou re- mados, prestando serviços específicos, colhendo dinheiro. Joaquim Macambira pagos pelo Conselheiro, era uma guarda. igualmente o fez, segundo colhemos na Na “companhia” estavam os beatos, na tradição oral, que aponta o vaqueiro como “guarda”, os clavinoteiros, os jagunços pro- homem de posses e conceito. priamente ditos. José Beatinho, Antônio Frei João Evangelista disse que os adep- Beatinho, José Félix, o velhinho Paulo José tos do Conselheiro deviam dispor dos seus da Rosa, primeiro beato a acompanhar bens, entregando o produto ao “Messias de Antônio Conselheiro, constituíam o grupo Quixeramobim”, não reservando para si dos rezadores, cantores de ladainhas, mais de um vintém em cada cem mil réis “tiradores” de terço. Muitos tinham “cora- (36). O informe carece de fundamento. Tal ção mole” e não se envolviam nas refregas, não sucedia, de forma alguma. Os morado- trabalhando em íntima ligação com as bea- res de Canudos conservavam seus bens, tas, que não eram poucas. Teriam vindo dando simplesmente aquilo que queriam das sacristias das igrejas, enquanto os ou podiam. Em verdade, ficavam pobres famanazes do clavinote haviam sido recru- porque vendiam, por qualquer preço, o que tados em setores bem diferentes. No cangaço lhes pertencia onde moravam e levavam o desenfreado dos sertões, nos quartéis de apurado para seus gastos pessoais no arrai- polícia, entre perseguidos, egressos das pri- al do Vaza-Barris, onde dificilmente en- sões, envolvidos nas malhas da justiça. A contrariam como aplicar o dinheiro que história de Canudos, Canaã dos sertões possuíam. Muitos, aliás, homens remedia- baianos, onde as terras dos barracos se con- dos. Lélis Piedade observou, baseado em verteriam em cuscuz e as águas do Vaza- informações de oficiais, que a maioria dos Barris em leite, reflete muito bem a presen- papéis encontrados em Canudos eram es- ça e a ação dos seus beatos e clavinoteiros, crituras de compra e venda de casas e ter- em meio à massa enorme de sertanejos ras, revelando a situação da economia de fanatizados, que ouviram os conselhos do famílias jagunças (37). Nos levantamentos 35 Maria Isaura Pereira de Queiroz, op. cit., p. 214. peregrino cearense e o seguiam cegamente. a respeito dos menores encontrados após o 36 João Evangelista do Monte Os recursos do Conselheiro, emprega- conflito, há referências bem elucidativas Marciano, op. cit., p. 5. dos nas obras das igrejas, na manutenção da posição de negociantes e lavradores que 37 Lélis Piedade, op. cit., p. XI.

REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 79 haviam sido atraídos pela pregação que alguns as construíram para tal fim. O messiânica. Em mais de uma oportunida- sargento Jacinto Ferreira da Silva mandou de, lemos que os pais dos menores eram dizer a Rumão Suaris (sic) dos Santos: “i “abastados negociantes ou agricultores”. venha para comprar as 3 casas minhas que Enganam-se redondamente aqueles que estou a sua Espera para sermos vizinhos” afirmam ter ido para Canudos apenas a ralé (40). dos sertões. Antônio Marciano dos Santos, Antes do Belo Monte, quando Antônio apelidado Marciano de Sergipe, que com- Conselheiro fez seu primeiro povoado, o bateu até os derradeiros instantes morren- de Bom Jesus, no município de Itapicuru, do heroicamente, era parente do coronel uma senhora da confiança do Santo, a ve- Siqueira Menezes (38). Perante o general lha Benta, edificou algumas casinhas, que Artur Oscar, Barnabé José de Carvalho, foram negociadas na ocasião em que o pe- “um chefe de segunda linha”, declarou que regrino e seu séquito abandonaram a loca- “não era um matuto largado. Era casado lidade, segundo informações do ancião com uma sobrinha do capitão Pedro Celes- Marcos Dantas de Menezes, residente na te, do Bom Conselho…” (39). cidade de Crisópolis. Outros exemplos poderiam ser invoca- Pelo que averiguamos, o Conselheiro dos no sentido de demonstrar a participa- construiu em Canudos duas igrejas e um ção de gente de recursos, de pessoas per- cemitério. Seriam estes os traços de sua ação tencentes a “famílias de bem” nos sertões construtiva. A primeira igreja, sob a inven- nordestinos, entre o povo de Antônio Con- ção de Santo Antônio, teria sido concluída selheiro. em 1893, com muita solenidade. Presença Aos recém-chegados, facilitava-se o do padre Sabino, vigário do Cumbe, gran- terreno para a construção dos seus case- de número de batizados e casamentos, bres. O chão, pelo que apuramos, era dado música e foguetório. Às festas do Conse- de graça. Manuel Ciríaco asseverou-nos que lheiro, conforme nos relatou Marcos Dantas as terras de Canudos, numa área de uma de Menezes, que o conheceu no arraial do légua em quadra, pertenciam à capela de Bom Jesus, hoje cidade de Crisópolis, não Santo Antônio desde tempos remotos. Não faltavam música e foguete. No período de esclareceu, porém, a origem desse encape- Crisópolis, contratava-se filarmônica em lado. Garantiu-nos, todavia, que o Conse- Sergipe, para abrilhantar as festividades. O lheiro permitia aos novos habitantes a foguetório era freqüente nas manifestações edificação de suas moradias, desde que não da gente do Belo Monte, mencionando as houvessem dúvidas quanto às suas convic- crônicas da época um certo Antônio ções monarquistas e católicas. Não havia Fogueteiro, que morava à margem direita guarida para os “abomináveis” republica- do Vaza-Barris. Por ocasião da entrega da nos, maçons e protestantes, enxotados do chave da igreja de Santo Antônio, peça arraial quando suspeitadas suas tendências. guardada no museu do Instituto Geográfi- Tais constrangimentos sofriam, por igual, co Histórico da Bahia, o Conselheiro dei- os viajantes que por ali passavam e eram tou pregação, tendo chegado até o texto do pessoas ligadas à máquina político-admi- discurso, incluído no livro manuscrito do nistrativa do Estado. Bastava ser eleitor do famoso chefe carismático, publicado pelo governo, haver exercido um cargo qual- professor Ataliba Nogueira. Um segundo quer, juiz de paz, delegado de polícia, mem- templo, de maiores proporções do que o bro de mesa eleitoral, para ser o cidadão primeiro, erguido na mesma Praça das Igre- imediatamente expulso do povoado e de jas, ainda não estava terminado quando do seus arredores. A imprensa registrou mui- início da guerra. 38 Lélis Piedade, op. cit., p. XXV. tos desses casos. Experimentado construtor e restaurador 39 Euclides da Cunha, Os Sertões, de capelas e muros de cemitérios, que es- op. cit., p. 624, nota 6. Como já dissemos, o direito de proprie- dade estava assegurado. Os donos das ca- palhou pelos sertões de Sergipe e da Bahia, 40 J. P. Favila Nunes, op.cit., p. 34. sas podiam vendê-las. Parece-nos mesmo Antônio Vicente Mendes Maciel dirigia

80 REVISTA USP, São Paulo, n.54, p. 72-81, junho/agosto 2002 pessoalmente as obras em Canudos. Ma- chegar ao Belo Monte. A ausência dos re- drugador contumaz, logo cedo deixava o presentantes do erário estadual era bem “santuário” onde vivia, para ver, fiscalizar aceita pelos negociantes do povoado, en- e orientar os trabalhos de construção. Dan- quanto seus colegas das vizinhanças viam do o bom exemplo de madrugar na tarefa no fato um grave prejuízo aos seus próprios edificadora, o Conselheiro como que obri- interesses, protestando contra a concorrên- gava os de sua grei ao mesmo comporta- cia dos comerciantes estabelecidos no cen- mento. Os operários entravam em ação às tro messiânico do Belo Monte, onde a volta primeiras horas do dia. Mestre de obras e de dom Sebastião era confusamente anun- entalhador de altares, Manuel Faustino, que ciada, sem que possamos afirmar o acompanhava o Conselheiro desde o arrai- envolvimento pessoal do Bom Jesus na al de Bom Jesus, era seu principal auxiliar. difusão de tal crença. O povo admirava as rosas douradas por ele Canudos ou Belo Monte teria sido, em esculpidas no altar da igreja, recordou curto prazo, o maior movimento messiânico Honório Vila Nova (41). da história do Brasil. O fenômeno padre Além das obras das igrejas, o Conse- Cícero, reunindo uma grande população em lheiro pregava aos seus fiéis, o que fazia , criando na alma do povo maiores com freqüência. Eram os “dias de conse- raízes, desenvolveu-se durante mais dila- lho”. Conhecedor da Bíblia, ledor da Mis- tado espaço de tempo. No arraial do Vaza- são Abreviada, livro de larga divulgação Barris, porém, os fatos se sucederam apres- no interior do Brasil, o Conselheiro falava sadamente e a migração de caráter messiâ- sobre os mandamentos, condenava os pe- nico para ali encaminhada criou problemas cados, aconselhava para o bem, citando, muito sérios de segurança, de higiene, de não raro, frases latinas. Depois da Procla- nucleamento humano, de abastecimento. mação da República, porém, as questões Acreditando nos milagres do Bom Jesus, políticas foram entrando no desenvolvi- mais anunciados pelos seus partidários do mento de suas falações. Em Canudos, como que por ele próprio, muito preocupado em já tivemos ensejo de dizer, Antônio Vicente assegurar que não era Deus, mas sim um estava inteiramente voltado para o comba- peregrino, um miserável pecador, milhares te ao regime implantado a 15 de novembro de brasileiros, pobres e remediados, homens de 1889, numa hostilidade franca e decidi- e mulheres, velhos e meninos, brancos, ín- da ao governo constituído. As declarações dios, negros, mestiços deixaram suas terras, nesse sentido são sobejamente conhecidas. abandonaram seus bens, afastaram-se dos O barão de Jeremoabo (42) e frei João seus parentes, dos seus compadres e afilha- Evangelista (43) dele ouviram afirmações dos e foram viver, matar e morrer num lon- contundentes a respeito da República. Os gínquo chão sertanejo, numa fazenda de criar escritos do Santo não deixavam a mais leve em decadência, rapidamente transformada sombra de dúvida quanto à sua orientação num verdadeiro centro humano, num autên- e aos rumos que traçava para seus fanati- tico formigueiro de gente. Os casebres de- zados acompanhantes. O próprio nome da salinhados, surgidos da noite para o dia, forma de governo era significativo: re-pú- diariamente numa média de doze, em certa blica, dizia ele, separando as sílabas. Não fase, formavam um intrincado de ruelas, reconhecia o governo, impedia o pagamento uma mistura de quintais e portas de frente, onde se foram localizar milhares de seres 41 Nertan Macedo, op. cit., p. dos impostos. Verberava contra o casamen- 69. to civil, a separação da Igreja do Estado, a humanos na esperança de melhores dias, 42 Barão de Jeremoabo, “Antônio secularização dos cemitérios. Dificultava, que chegariam, certamente, com a volta do Conselheiro”, in Jornal de No- tícia, Salvador, 4/ abr./ senão mesmo proibia, que o dinheiro emiti- Príncipe, anunciada nas profecias de frei 1897, p. 2, c. 6. do depois de 1889 tivesse curso entre os Vital, confirmada pela palavra oracular do 43 João Evangelista do Monte jagunços. Nem o fisco nem a polícia podiam Conselheiro. Marciano, op. cit ., p. 4.

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