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: Um Muro, Duas Cidades∗

André Luis Oliveira Pereira de Souza Universidade Federal de Sergipe – Brasil

Índice Francisco – CHESF, que foi o que impul- sionou o surgimento do município. Desse 1 Resumo 1 modo o vídeo e o texto, percorrem os ca- 2 Introdução 2 minhos históricos da região, identificando os 3 Objetivos 2 cenários, personagens e acontecimentos que 4 Desenvolvimento 2 juntos contribuíram para a construção desta 4.1 A Região ...... 2 trama, apresentando os fatos e preparando o 4.2 A Cidade ...... 4 espectador, antes da chegada do tema cen- 4.3 O Acampamento CHESF e a tral. Apesar de não aprofundar as relações Vila Poty ...... 6 entre o urbanismo e a formação da identi- 5 Memorial Descritivo 10 dade cultural da cidade, este estudo lança 6 Metodologia 10 algumas linhas de interpretação a respeito 7 Conclusão 18 do tema, e o vídeo funciona como um su- 8 Referências Bibliográficas 19 porte para a pesquisa etnográfica, já que 8.1 Bibliografia Consultada ..... 19 as relações comunicativas nos dias de hoje 9 Anexos 20 passam pelo visual, a imagem vinculada à 9.1 Textos Off ...... 21 pesquisa etnográfica ganha um valor sim- bólico, fazendo surgir novos modelos tex- tuais de representação. O vídeo intitulado 1 Resumo Paulo Afonso: Um muro, duas cidades, uti- liza as características do filme documentário O tema central deste projeto é a história da analisadas por Manuela Penafria, do Biodo- formação da cidade de Paulo Afonso – BA, cumentário uma das categorias do cinema e a existência de um muro que a dividiu em direto analisado por Canevacci e do Vídeo dois bairros por mais de trinta anos. O traba- experimental analisado por Patrícia Silveiri- lho se apresenta em antes e depois da ins- nha, estes elementos são o ponto de partida talação da Companhia Hidrelétrica do São do vídeo em questão. ∗Projeto Experimental realizado como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Co- municação Social habilitação em Radialismo e Tele- visão, sob a orientação da professora Lílian Cristina Monteiro França. 2 André Luis Oliveira Pereira de Souza

2 Introdução cidade de Paulo Afonso – BA. A escolha do tema surgiu espontaneamente Objetivos Específicos no decorrer da passagem do aluno pela Uni- Realizar um levantamento acerca da histó- versidade, o ingresso no curso de Ciências ria de Paulo Afonso – BA; Sociais e a inclinação para a pesquisa etno- Identificar moradores que possam, através gráfica, se cruzaram coincidentemente, no da história oral, servir como fontes para con- curso de Radialismo, com a disciplina Te- tar essa história; oria da Comunicação III (Antropologia da Comunicação) onde além das questões liga- Analisar a influência do muro que divi- das às relações entre comunicação e cultura, diu a cidade em suas origens, e suas con- aprofundou-se também a linguagem do filme seqüências na formação de uma identidade documentário, como uma possibilidade de para seus habitantes; trazer para o âmbito da pesquisa etnográ- Contar a história de Paulo Afonso – BA, fica, uma proposta de trabalho prático, am- através da produção de um vídeo documen- pliando as potencialidades de representação tário que tem como mote a presença de um visual do objeto estudado. muro divisor entre a área destinada à mora- A cidade de Paulo Afonso foi escolhida, dia dos trabalhadores da CHESF e dos de- pelo fato de representar um sentimento nor- mais habitantes. destino, em seu estágio maior, pois nela a soma de características culturais de vários estados da região, além de promover a for- 4 Desenvolvimento mação de um caráter único, serviu para o for- 4.1 A Região talecimento do homem que vive no eterno combate pela sobrevivência numa das re- A ! Paulo Afonso! O abismo! giões mais secas do país. A briga colossal dos elementos! Este trabalho justifica-se pela importância Castro Alves da cidade para o nordeste, sua função estra- tégica no processo de aceleração industrial A luta entre o homem e a natureza sempre desta região, como projeto nacional de re- foi uma constante na região, a força dos ele- versão das diferenças econômicas e sociais mentos da natureza sempre exigiu de quem entre o norte e o sul do país, a pouca infor- nela habitasse um certo esforço. Pelo que se mação sobre o tema, e principalmente, o des- sabe, os primeiros habitantes da região foram caso em relação à preservação da memória povos ameríndios, muitos vieram do litoral na cidade, motivaram a realização deste pro- fugindo dos portugueses, que “descobriram” jeto. o Rio São Francisco no dia 04 de outubro de 1501, para os índios o grande fio d’água 3 Objetivos era o “Opará”, que significa rio-mar, os colo- nizadores o batizaram com o nome de “São Objetivo Geral Francisco”, por ter sido descoberto no dia do Produzir um vídeo documentário sobre a santo católico. Hoje, entretanto, são poucas

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 3 as reservas indígenas, em Paulo Afonso atu- brasileiro, e fica no chamado “polígono da almente na reserva ecológica Raso da Cata- seca” do alto sertão nordestino. rina vivem os índios da tribo Pankararé. O maior fascínio dos viajantes pela região Alguns registros afirmam que em 3 de ou- sempre esteve ligado aos acidentes geográfi- tubro de 1725 o sertanista Paulo de Vivei- cos, como os cânions e a Cachoeira de Paulo ros Afonso teria recebido uma sesmaria nas Afonso, o poeta Castro Alves, que não che- terras da província de Pernambuco, cujos li- gou a conhecê-la, dedicou-lhe um poema, mites chegavam as Quedas D’água conhe- “Cachoeira de Paulo Afonso” que intitulou cidas como “Cachoeira Grande”, “Forqui- um de seus livros, no dia 20 de Outubro de lha” (pelo seu formato) ou “Sumidouro”, an- 1859 o então imperador D. Pedro II e sua co- tes desta data não existe nenhum registro no mitiva, também conheciam a tão falada Ca- Brasil ou Portugal que cite a cachoeira sob choeira. o nome de Paulo Afonso. O sesmeiro te- Como fazia parte da trilha do Cangaço, a ria fundado no lado baiano das terras uma área da Cachoeira também serviu de escon- pequena tapera conhecida como “Tapera de derijo para Lampião, as cavernas do Cânion Paulo Afonso”, onde hoje fica o bairro Cen- conhecidas como, as “Furnas do Morcego”, tenário, que seria o primeiro núcleo habitaci- abrigou o cangaceiro e seu bando, fato que onal da cidade. segundo o historiador Antônio Galdino ainda é questionado. A região sempre serviu de rota para vi- Mas foi no onde Lam- ajantes, a travessia do rio era feita na ci- pião viveu por muito tempo. Foi lá tam- dade de Santo Antônio das Glórias, atual- bém onde Lampião conheceu e casou-se com mente “Nova Glória”, da qual Paulo Afonso Maria Bonita, que nasceu num povoado cha- fazia parte (e que só viria a se emancipar em mado da caiçara no Riacho (Paulo 1958), por ali passou a “rota dos bois” no pe- Afonso), porta de entrada da reserva ecoló- ríodo de colonização, “Curral dos bois” foi o gica Raso da Catarina. nome dado à região e “rio dos currais” era O jornalista Luiz Maciel Filho em uma como chamavam o São Francisco neste pe- matéria para a revista “Os Caminhos da ríodo, que servia de pouso de boiadas nas Terra”, assim o descreveu, “o Raso da Cata- longas viagens, os viajantes e seu gado ma- rina é seco e esquecido como um deserto..., tavam a sede e o cansaço nas margens do rio, não tem cidades, nem estradas. É uma man- era caminho dos colonizadores que povoa- cha branca no mapa da ” (Galdino – ram e cultivaram as terras dos sertões. Mascarenhas, 1995:112), um vazio entre o Nesta região, onde geograficamente se en- rio Vaza Barris e o São Francisco, habitado contram os estados da Bahia, Pernambuco, pelos índios da tribo Pankararé e menos de Alagoas e Sergipe (além de estar muito pró- uma dezena de homens, foi no Raso que ximo de outros estados nordestinos como Lampião reinou durante anos sem ser pego. e Paraíba), o São Francisco assume A abertura da reportagem “Raso da Cata- uma importância estratégica, pois ajuda a di- rina – O sertão do sertão” escrita por Cláudio minuir os agravantes índices desta que é uma Bajunga para a revista Good Year “traz uma das áreas mais secas e pobres do território opinião contundente: ‘Deus estava zangado www.bocc.ubi.pt 4 André Luis Oliveira Pereira de Souza quando criou a caatinga mais braba da terra, o primeiro presidente da empresa, o enge- marcada por três guerras de fim de mundo – nheiro Antônio José Alves de Souza, que ti- , a Coluna Prestes e o Cangaço – e nha como objetivo imediato a construção da onde a vida, a morte, as lendas se entrelaçam primeira usina do complexo, a usina “Paulo num deserto sem serventia” (Galdino – Mas- Afonso I”, aprovada a linha de crédito para carenhas, 1995:112). instalação e construção, as obras iniciam um Em toda a história da região, nenhuma ano depois em 1949. das figuras foi mais importante que Delmiro O cenário desértico da caatinga passa a re- Golveia, pois ele enxergou no rio a possi- ceber diariamente toneladas de material im- bilidade de exploração do potencial energé- portado que descarregava no porto de Glória tico da Cachoeira, aliado a um programa de a caminho da área onde começavam as obras desenvolvimento da região, com a constru- de Paulo Afonso, no lugar só existiam alguns ção da Usina Angiquinho em 1913, de onde poucos moradores com suas casas “vernácu- saiam 1.500 HP de energia que alimentavam las”1 de sopapo ou taipa, como eram chama- a Companhia Agro-Fabril Mercantil e a vila das as primeiras habitações. de operários no município de Pedras (atual Os moradores viam sua rotina se modificar Delmiro Golveia) do lado Alagoano da Ca- radicalmente com o início das construções, choeira, trazendo o progresso para a região, os sertanejos e os estrangeiros “travaram as mas os planos de Delmiro acabaram sufoca- primeiras lutas efetivas pela emancipação dos por interesses estrangeiros e pelo desa- econômica do nordeste” (Jucá, 1982:59). O feto político, em 1917 foi assassinado, aos texto abaixo de Joselice Jucá nos dá algumas 54 anos. Seu projeto inovador serviria 40 pistas sobre a incorporação de novos valo- anos depois como modelo para a construção res por parte dos estrangeiros e sertanejos, do do complexo Hidrelétrico de Paulo Afonso. que mais tarde viria a se chamar “O Homem de Paulo Afonso”. 4.2 A Cidade “Os estrangeiros perderam temporaria- Mas a cidade não é feita de pedras é feita mente as características de origem, os de homens. sulistas, suas ligações afetivas com a re- Não é a dimensão de uma função, é a gião de onde provinham, os nordestinos dimensão da existência. fortaleceram a sua fibra, enquanto a sua Marcílio Ficino inteligência plástica se amoldava de ma- neira surpreendentemente criativa às so- A Companhia Hidrelétrica do São Fran- fisticadas técnicas e máquinas importa- cisco – CHESF, recebe no dia 09 de outubro das para o seu mundo e o seu universo de 1945, autorização para a organização da empresa, com uma área de ação num círculo 1Segundo Carlos Lemos, a “arquitetura vernácula de 450 km de raio, cujo centro seria a Cacho- é aquela feita pelo povo, por uma sociedade qualquer, com seu limitado repertório de conhecimentos num eira de Paulo Afonso. Em 1948 o então pre- meio ambiente definido, que fornece determinados sidente Eurico Gaspar Dutra convoca a as- materiais ou recursos em condições climáticas bem sembléia constitutiva da Chesf, onde é eleito características” (Lemos, 1996:15).

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mental. Como substitutivo da intermitên- de modernidade, impulsionada pelo desen- cia do trabalho no leito da caatinga em volvimento tecnológico, ela deveria ser um sua cotidiana, estéril, repetitiva labuta, o núcleo de civilização modelo para as cidades nordestino fundia-se com a força maior do sertão nordestino. da natureza – as águas – estabelecendo- se profunda interação que viria a resul- Mesmo estando localizada em terras baia- tar no desabrochar do potencial criativo, nas, Paulo Afonso sempre teve uma grande na capacidade de adaptação, na inte- influência cultural de outros estados, das po- ligência criadora, inesgotável da mão- pulações que no processo de migração trou- de-obra sertaneja. Sequiosos por novas xeram seus costumes, de Pernambuco vem a alternativas de trabalho, empunhando a maior contribuição, ou a mais forte, o fato fé e o estoicismo como bandeiras em de na cidade os altos funcionários serem em sua luta pela sobrevivência, o nordestino sua maioria pernambucanos influenciou bas- comprovou não apenas a sua legendária tante, pois era esta a classe que ditava o com- fortaleza, mas, nesse sentido, nordestini- portamento social, que era copiado por to- zou a tempera daqueles que acorreram dos, os carnavais eram embalados ao ritmo às margens do São Francisco, numa per- das bandas de frevo, no sotaque local ainda feita simbiose de sacrifícios e de dedi- se percebe uma influência pernambucana, cação à obra pioneira de Paulo Afonso” como o uso do pronome “tu”, da Paraíba vi- (Jucá, 1982:58). eram ritmos como o forró e o xaxado, o pas- toril e o reisado vindos de Alagoas e Sergipe O conceito de Massimo Canevacci (2001) respectivamente, e de acordo com o historia- sobre culturas “glocais”, reforça as obser- dor Antônio Galdino, só a partir da década de vações feitas por Joselice Jucá a respeito 80 é que começam a ser incorporadas as pri- das misturas culturais ocorridas em Paulo meiras manifestações da cultura baiana, esta Afonso, “esta é, ao mesmo tempo, glo- miscigenação cultural fez de Paulo Afonso o bal e local, participa, simultânea e con- retrato do nordeste e de seu povo, que na ci- flitantemente, das ampliações globalizantes dade deram início ao sonho de emancipação e das restrições localizadoras” (Canevacci, e reconstrução de suas vidas. 2001:19), que na falta de valores tradicionais próprios, acabou incorporando velhos e no- vos valores, fruto da mistura das populações Paulo Afonso habita o mesmo universo que a construíram. das sociedades que deixaram de ser entendi- O fato de Paulo Afonso ter surgido na me- das como “aquele ‘conjunto complexo’ uni- tade do século XX, teve grande influência tário e homogêneo de crenças e visões de na formação de sua identidade, a CHESF foi mundo – cuja matriz também é oitocentista criada para ser um pólo exportador de ener- – mas como culturas plurais; tanto dentro gia, fazia parte do projeto nacional de desen- como fora de um determinado contexto. Cul- volvimento iniciado com Gétulio Vargas, em turas fragmentarias e competitivas, dissipa- meados da década de 40, a construção da ci- doras e descentralizadas, conjuntas e confli- dade, portanto, acompanhou este sentimento tantes”(Canevacci, 2001:19). www.bocc.ubi.pt 6 André Luis Oliveira Pereira de Souza

4.3 O Acampamento CHESF e a Pensando na análise do teórico Giulio Vila Poty Carlo Argan sobre o urbanismo ideológico de Gropius, permite que utilizemos algu- A primeira decisão da CHESF foi a de deli- mas de suas interpretações que se fazem per- mitação da área de ação da empresa, como tinentes ao projeto urbanístico do acampa- os cálculos da construção da nave já ha- mento da CHESF, “sua ideologia da técnica viam sido feitos, a empresa então delimi- traduziu-se na construção imaginária de um tou a área onde seria construída a vila e espaço ideológico, isto é, de um espaço do- suas divisões comerciais, administrativas, re- tado de uma funcionalidade, ou dinâmica sidenciais e de lazer. Segundo Foucault, “a interna próprias, e capaz de transformar a fixação espacial é uma forma econômico- sociedade que a habitasse, mas, ao mesmo política que deve ser detalhadamente estu- tempo, de eximir essa sociedade do dever de dada” (Foucault, 1979:212), “outro ponto transformar-se” (Argan, 1998:218). que se deve levantar, em relação à arqui- Antes da chegada da CHESF, na região tetura, é que os detentores do poder sem- existiam apenas algumas casas de “sopapo”, pre estiveram atentos a certas propriedades para abrigar a nova população, a empresa manifestas da constituição espacial” (França, construiu sua vila operária seguindo as nor- 1992:31), uma delas é a capacidade de domi- mas da arquitetura e urbanismo, onde antes nar pelas dimensões. era quase um deserto. Construída na metade Tentarei levantar algumas questão ligadas do século XX, a “cidade CHESF”2 teve uma a fixação espacial em Paulo Afonso, sobre- certa influência do urbanismo ideológico, o tudo do projeto urbanístico da vila residen- clima “cosmopolita” da vila contagiava seus cial da CHESF e suas diferenças em relação moradores, bem como as regalias que eram a vila Poty. oferecidas: distribuição gratuita dos servi- O projeto inicial do acampamento da ços de água e energia elétrica, rede de es- CHESF previu a construção de alojamentos goto, serviços de saúde, padaria, mercado, para funcionários solteiros e três vilas resi- escolas, vantagens que se valorizavam ainda denciais, uma para engenheiros e altos funci- mais, se percebidas as condições em que vi- onários, outra para mão-de-obra qualificada viam os moradores do outro lado do acam- e uma terceira para famílias de operários, se- pamento. O fato é que por pior que fos- parando por bairros cada categoria de classe. sem as condições de trabalho impostas pe- Foi necessária a instalação de uma infra- los dirigentes da empresa, as vantagens ofe- estrutura que oferecesse aos funcionários recidas pareciam compensatórias, gerando transporte, energia e comunicações, além um sentimento de acomodação, impedindo da implantação de serviços de saneamento, saúde, educação, segurança e lazer. Como os 2 “Como ficou conhecido o acampamento da altos funcionários estavam deixando o con- Companhia”, que “mereceu o apelido de ‘cidade’; forto de suas antigas moradas, a CHESF considerando-se a distância dos centros urbanos mais próximos e a magnitude da obra em execução” (Jucá, construiu uma cidade preparada para abrigar 1982:68), que dispunha de serviços diversificados e provir todas as necessidades dos novos mo- como saúde, educação e lazer, além de contar com radores. uma sólida infra-estrutura.

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 7 por muito tempo qualquer manifestação con- rios solteiros, desta forma “a família operária traria aos interesses da empresa, a CHESF será fixada, será prescrito para ela um tipo de adotou essa postura paternalista, provavel- moralidade, através da determinação de seu mente pensando nas vantagens de ter seus espaço de vida”(Foucault, 1979:212). funcionários morando dentro de seus limites, Dentro da empresa existiam dois grandes como forma de controlá-los, o que por muito clubes privativos, o COPA – Clube Operário tempo aconteceu. Paulo Afonso – que ficava entre os bairros Segundo Sílvia Carvalho Josephson, a Alves de Souza e a vila Operária, e o CPA casa “deve ser vista também como um ele- – Clube Paulo Afonso – que ficava no bairro mento de fixação que permitia conhecer os Eng.o Oliveira Lopes, a direção do CPA era indivíduos, controlá-los e vigiá-los, tarefa rígida em relação a entrada de não-sócios, impossível de ser realizada com a população enquanto os moradores do bairro Eng.o Oli- nômade e desconhecida das ruas” (Joseph- veira Lopes tinham livre acesso ao COPA, son, 1997:145). Dessa forma os funcionários somente alguns funcionários de nível mé- da CHESF foram fixados na área residencial dio e técnico eram autorizados a freqüentar dividida em três grandes bairros, “traçados o CPA. No restaurante da CHESF também segundo a máxima higienista de ‘um lugar existia esta divisão, alguns antigos funcioná- para cada coisa e cada coisa em seu lugar’ – rios afirmam que existiam três pratos e as- procurou evitar aglomerados, separando fí- sentos diferentes dentro do restaurante, que sica e moralmente os elementos que, jun- seguiam as divisões sociais da empresa e que tos, aproximariam tradições sociais e políti- só viriam mudar depois das reivindicações cas explosivas e perigosas, e que precisavam dos funcionários. ser controladas” (Josephson, 1997:147), es- A vegetação da caatinga ganhou novos tes três bairros possuíam cada um, acesso rá- tons, quando a direção da CHESF trabalhou pido às obras das hidrelétricas, aos setores fi- na mudança do microclima da área da em- nanceiros, administrativos e serviços auxili- presa, um dos diretores da empresa Amaury ares, como forma de facilitar o deslocamento Menezes foi o grande responsável por uma e otimizar o trabalho dos funcionários da em- “consciência ecológica” na companhia, os presa. jardins eram muito bem cuidados, a empresa A vila Operária era onde moravam os fun- criava suas próprias mudas, muitas árvo- cionários com menor instrução, o bairro Al- res e sementes foram plantadas nessa época ves de Souza ficava ao lado da vila operária como, eucaliptos, craibeiras, amendoeiras, e abrigava os funcionários de nível médio e pau-brasil, etc. Foram construídas também técnico, suas casas eram um pouco maiores praças e mais de 50 lagos artificias no in- que as do bairro operário, já o bairro Eng.o tuito de amenizar o calor da região, esta é Oliveira Lopes ficava separado dos dois ou- uma das grandes diferenças entre a Chesf e tros bairros e tinha grandes casas em estilo a Poty, vistas por cima percebe-se a divisão “fazenda”, nele moravam os funcionários de pela quantidade de verde nas áreas da em- nível superior, os engenheiros das obras e al- presa. guns professores, existiam ainda espalhados Dentro da CHESF também foi formada pelos três bairros alojamentos para funcioná- uma milícia privada, para garantir segurança www.bocc.ubi.pt 8 André Luis Oliveira Pereira de Souza aos seus moradores e principalmente ao seu “funções segundas” (conotadas), as já cita- patrimônio. A notícia da construção das das por Foucault e Josephson, formas de obras atraiu centenas de pessoas, vindas de vigiar, controlar e em alguns casos, punir todos os lugares, entre elas imigrantes fu- os funcionários. Para Luiz Fernando Motta gindo da seca (cujo destino seriam as gran- Nascimento (1988), o muro seria uma forma des cidades do sudeste), ex-cangaceiros e de disciplinar e educar as pessoas na cidade, aventureiros, a vila Poty nesta época ainda por isso a empresa exigia um controle muito não contava com um policiamento efetivo, rígido em Paulo Afonso. segundo os entrevistados, neste bairro eram Os imigrantes que chegavam diariamente altos os índices de violência. em caminhões, paus de arara, caminhone- A empresa construiu uma cerca de arame tes, iam se agrupando ao redor dos limites da farpado, delimitando a área de ação da área da CHESF, na expectativa de conseguir CHESF, garantindo a segurança dos morado- alguma vaga na empresa. res e de seu patrimônio, as histórias de vio- Os cassacos4 responsáveis pelas cons- lência na Poty, levaram a direção da empresa truções das hidrelétricas e edificações da a substituição das estacas de madeira por es- CHESF (assim como os Candangos de Bra- truturas de concreto, e em seguida, por um sília), eram em número superior aos lugares muro de pedra e arame farpado com aproxi- disponíveis, somando-se a isso o aumento madamente 1,5 m de altura, apelidado de “o da taxa de imigração, fizeram com que, aos muro da vergonha” numa alusão ao muro de poucos fosse surgindo o novo núcleo cita- Berlim. dino de Paulo Afonso, o bairro Poty, que re- A existência do muro barrava o fluxo de cebeu este nome por causa do cimento Poty informações entre os bairros, a preocupa- utilizado na construção da barragem e rea- ção da direção da CHESF em transmitir para proveitado como cobertura no telhado das seus funcionários uma educação citadina, casas de taipa. acompanhada de uma padronização compor- “Os cortiços e as construções feitas de ve- tamental, não se transferiu para os moradores lhas tábuas e chapas não isolavam seus mora- da Poty, ressaltando suas diferenças, trans- dores da vista do público. Ao contrário, suas mitidas de geração a geração. vidas transcorriam de forma mais ou menos Para Eco, o signo arquitetônico (neste aberta para a coletividade: as necessidades caso o muro), pode denotar uma função ou fisiológicas eram feitas na maior parte das conotar certa ideologia da função, as “fun- vezes nas próprias ruas; as refeições, às vis- ções primeiras”3 (denotadas) do muro eram tas de quem passasse; a roupa era lavada e as de limitação da área e de segurança dos secada ao ar livre” (Josephson, 1997:145), moradores e patrimônio da empresa, já as este tipo de comportamento trouxe a desqua- lificação da população que vivia nas ruas, de 3 “Subentendendo-se ... que as expressões “pri- seus hábitos e moradias, “a massa de pessoas meiras” e “segundas” não tem valor de discriminação axiológica (como se uma fosse mais importante que que as habitavam, passaram a ser representa- as outras), mas de mecânica semiológica, no sentido de que as funções segundas se apoiam na denotação 4 Cassacos era o nome dado aos operários de Paulo das primeiras” (Eco, 2001:204). Afonso, que vieram de todos os lugares do nordeste.

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 9 das como perigosa, promíscuas e ameaçado- ram amenizadas. A existência do muro ape- ras” (Josephson, 1997:145). nas reforçava o sentimento de separação, a O projeto urbanístico da vila da CHESF perda de sua função em 1986, ajudou a re- privilegiava a individualização proveniente duzir as tensões geradas pelas divergências de um projeto higienista de modernidade entre os dois bairros. (para evitar manifestações em massa), as di- Enquanto a CHESF dispunha de água tra- ficuldades enfrentadas pelos moradores na tada, rede sanitária, energia, ruas projetadas Poty, apontavam para um sentimento de e outros serviços, a Poty cresceu desordena- ajuda mútua, de coletividade. damente, sem planejamento algum, depen- A abertura de ruas e avenidas na CHESF dendo da água de três chafarizes e sem ener- permitiam a formação de blocos, que além gia elétrica (mesmo estando ao lado de um de facilitar a divisão dos bairros dentro da grande complexo hidrelétrico, a energia só empresa, previa também o aumento do fluxo chegaria em 1958-59), as casas de sopapo de automóveis. Ao contrário dos pequenos foram substituídas aos poucos por casas de e sinuosos espaços das ruas da vila Poty que alvenaria. O que antes parecia uma favela, aproximavam as casas, e eram um convite a vai dando lugar ao comércio, que aos poucos um convívio mais íntimo, na CHESF a lar- vai se fortalecendo, numa relação de auto- gura das ruas possuíam distâncias que garan- poiesis com a CHESF, que passa a depen- tiam a privacidade entre os vizinhos, man- der da variedade dos serviços do comércio tendo índices saudáveis de interação e den- da vila Poty, que por sua vez dependia dos sidade, uma quantidade adequada de envol- salários dos chesfianos para sua manutenção. vimento, respeitando as distâncias pessoais A cidade não parou de crescer, graças ao mínimas para o bom convívio social. seu desenvolvimento, em 30/12/1953, por As festas realizadas nos dois bairros re- força da lei estadual de n.o 62, passa a dis- presentam bem este sentimento, servindo de trito, em 1958 a população de Paulo Afonso exemplo; na CHESF as festas, em sua mai- era superior a 13.000 habitantes e a Chesf oria, eram realizadas em clubes fechados, já contava com 4.500 habitantes, o que fez com na vila Poty a maior característica eram as que a cidade se emancipasse politicamente “festas de largo”, onde se concentravam mul- de “Nova Glória”, antiga Santo Antônio das tidões. Glorias, em 28 de julho do mesmo ano. Quanto maior eram as diferenças entre a O muro foi por muito tempo, ponto de dis- CHESF e a Poty, maior o sentimento de su- cordia entre chesfianos e moradores da Poty, perioridade dos chesfianos, em relação aos e só viria perder sua função em 1986, quando moradores da Poty, “nesses espaços privati- o então prefeito de Paulo Afonso Abel Bar- zados e exclusivos observa-se um leque de bosa loteou um terreno que pertencia a pre- valores que se pode articular com um nar- feitura a 1 metro de distância do muro, onde cisismo coletivo, instaurado neste ambiente atualmente se encontra o calçadão da Av. de convivência entre iguais ou semelhantes” Getúlio Vargas com lojas comerciais. (Josephson, 1997:152), sentimento que só Ironicamente em 2002, toda a área do diminuiu com o passar do tempo, a medida acampamento da CHESF passou a ser de que as diferenças econômicas e sociais fo- responsabilidade da administração da Prefei- www.bocc.ubi.pt 10 André Luis Oliveira Pereira de Souza tura Municipal de Paulo Afonso, a revanche • Registro fotográfico das casas da Poty e histórica pôs um ponto final nas desigualda- da Vila da CHESF des, unindo aqueles que cresceram separada- mente. 3a Etapa – de Junho de 2002 a 05 de De- zembro de 2002 5 Memorial Descritivo • Finalização das gravações de imagens e Este trabalho de pesquisa vem sendo desen- entrevistas volvido desde 2001 e tem conclusão prevista para o final do semestre 2002/2, até o dia 19 • Seleção de material para o vídeo (ima- de março de 2003. O projeto está dividido gens e trilha de áudio) em quatro etapas, desde o começo das leituras ate a finalização do projeto teórico e • Elaboração do projeto teórico e roteiri- edição do vídeo: zação do vídeo

a 1 Etapa – de 2001/2 a Abril de 2002 4a Etapa – de 09 de Dezembro a Janeiro de 2003 • Reuniões com a orientadora a prof.a Lí- lian França • Edição e finalização do vídeo • Definição e delimitação do objeto de pesquisa • Finalização do trabalho teórico

• Pesquisas de campo e contatos com a Pref. de Paulo Afonso (PMPA) e 6 Metodologia CHESF No livro intitulado O Filme Documentário, • Levantamento bibliográfico e sistemati- Historia, identidade, tecnologia(1999), a au- zação de leituras tora Manuela Penafria faz uma trajetória da evolução da prática documentarista, a his- • Locação de equipamentos tória da produção documental, o desenvol- vimento de sua identidade, e a introdução 2a Etapa – de 03 de maio a 24 de maio das inovações tecnológicas e suas implica- de 2002 ções no documentário moderno. Partindo do princípio de que o documentá- • Elaboração do pré-projeto rio ao abordar diferentes temas, torna expli- cita uma característica importante, “a de que • Realização de entrevistas o filme documentário não se constitui pela • Registro visual de arquivos pessoais e apresentação de um, digamos, ‘retrato’ total arquivos da PMPA e CHESF do tema que trata. O documentário tem a par- ticularidade de tratar aprofundadamente uma • Gravação de imagens da cidade temática especifica”. (Penafria, 1999:24)

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Segundo a autora nos anos 20 é que o filme através da voz em off de um narrador” (Pena- documentário delineia-se como gênero, so- fria, 1999:59). Que mesmo estando ausente bretudo com as produções de duas corren- da imagem, “torna-se presente pela sua voz tes, com o americano Robert Flaherty (1884- omnipotente” (Penafria, 1999:59). 1951) e Dziga Vertov (1895-1954), na União O documentário de exposição foi conce- Soviética, com os filmes Nanuk, o esquimó bido pela escola Griersoniana (Jonh Grier- (1922) e O homem da câmera (1929) respec- son) britânica, eles acreditavam que os fil- tivamente. Flaherty e Vertov lançam as bases mes “deveriam desempenhar uma função de do filme documentário e do papel do docu- educação pública” (Penafria, 1999:59). “Os mentarista na produção de imagens em mo- filmes então realizados desenrolavam-se no vimento, porém “o aparecimento e utiliza- sentido da apresentação da solução para o ção dos termos documentário e documenta- problema (social ou econômico) abordado” rista e a efetiva afirmação e desenvolvimento (Penafria, 1999:59). de uma produção de documentários por pro- A criatividade era utilizada, neste tipo de fissionais do gênero, liga-se, inegavelmente” filme, para “encontrar forma de evitar mos- (Penafria, 1999:45) ao movimento documen- trar que essa solução era a de quem patroci- tarista britânico da década de 30, “a esse mo- nava os filmes” (Penafria, 1999:59), pondo vimento e à sua figura emblemática: o es- em desacordo as questões da “objetividade” cocês John Grierson (1898-1972)” (Penafria, (e “imparcialidade”) e independência do do- 1999:45) ao qual o filme documentário ficou cumentarista em relação a sua produção, pejorativamente associado. subjugando-o à postura do patrocinador do “São três os princípios pelos quais a iden- filme. tidade do documentário se pauta: a obri- “Ao trabalhador enquanto indivíduo gatoriedade de registrar/captar e fazer-se era-lhe apenas dado o destaque do close- uso de imagens obtidas in loco; a explora- up. A expressividade do seu rosto foi ção das temáticas a partir de um determi- o mais significativo contributo destes fil- nado ponto de vista/abordagem”; e por ul- mes para um empenho social mais ativo” timo, “exige-se que todo e qualquer docu- (Penafria, 1999:60). mentarista trate/apresente as imagens e/ou sons dos filmes com criatividade” (Penafria, Desta categoria do filme documentário, 1999:16). o uso do texto off foi uma das caracterís- Manuela Penafria aponta então quatro ticas empregadas no vídeo Paulo Afonso: possibilidades de estilo na prática do filme Um muro, duas cidades, os textos pertencem documental dividida em: documentário de aqueles que poderiam ser enquadrados como exposição, documentário de observação, personagens participantes da trama que é o documentário interativo e de reflexão. vídeo Paulo Afonso são eles Castro Alves e , o trecho em off de Eu- Documentário de Exposição clides é o que o escritor descreve o arraial de canudos (região que esta muito próxima “A característica principal deste tipo de de Paulo Afonso), no vídeo ele ilustra o sur- filme é a utilização de um texto apresentado gimento da vila Poty (A urbs monstruosa www.bocc.ubi.pt 12 André Luis Oliveira Pereira de Souza de barro definia bem..), outro trecho de “Os personagens (a voz in), ou das composições Sertões” aparece gravado na vinheta cassa- musicais, que tem fundamental importância, cos, a famosa “O sertanejo é antes de tudo seja na ligação entre os blocos, na marcação um forte...”, os offs restantes foram retira- das vinhetas, que se desenvolvem a partir da dos do livro A Cachoeira de Paulo Afonso de música ou da força da letra em relação ao Castro Alves, onde o poeta descreve a região tema tratado. e suas belezas, são os poemas “O São Fran- cisco”, “A Cachoeira”, “Crepúsculo Serta- Documentário de Observação nejo” e “Loucura divina”. O off é usado nas vinhetas, numa tentativa de construção de ví- deo poesia, o comentário exposto é poético, “O autor do filme de observação tem em nenhum momento o off apresenta ou ex- como princípio absoluto nunca intervir põe soluções para os problemas abordados. nos acontecimentos que está a filmar. O Canevacci assim descreve, a utilização do comentário, as entrevistas, as legendas off: e as reconstruções não são utilizados. O som síncrono salvo raras exceções, “a voz off5, invisível autoridade ex- é uma constante, sendo a utilização de terna, possui com freqüência o poder de planos-sequência uma das suas princi- apresentar-se com a força auto-evidente pais características”(Penafria, 1999:61). de uma objetividade incontestável; de tal forma que o ponto de vista ético esta- O “estilo indireto” também é uma ou- belece uma relação ambivalente com o tra característica do filme de observação, visível, onde o observado é muitas ve- “as pessoas não falam para a câmera; zes relegado a mero pano de fundo de relacionam-se umas com as outras. Como há documentário, para uma cenografia es- ausência de comentário, a ênfase coloca-se crita sempre em ‘outro lugar’ que o ob- no aqui e agora, no imediato, no íntimo, no jeto das tomadas precisa apenas ‘re- particular, no pessoal” (Penafria, 1999:61). chear’, ao invés de emergir “subjetiva- “O documentarista limita-se (o que não mente”(Canevacci, 2001:167). é pouco) àquilo que ocorre natural e es- pontaneamente frente à câmera de filmar. No caso particular do vídeo Paulo Afonso, A riqueza do comportamento humano e há uma alta rotatividade dos pontos de vista, a propensão das pessoas para falarem entre o texto off e a voz in, o áudio quase sobre as suas vidas, são as razões do sempre é tomado pela voz dos próprios sucesso deste tipo de filme” (Penafria, 5Enquanto a voz off representa o comentário ex- 1999:63). terno (diretor), a voz in, representaria o comentário interno, dos atores participantes, ou seja, dos entre- A escolha dos planos fechados (no vídeo vistados que possuem um ponto de vista “êmico” dos Paulo Afonso) apenas reforçam essa intima acontecimentos. Os textos em off do vídeo poderiam estar enquadrados na categoria voz in, visto a relação ligação entre o documentarista e o espaço próxima entre os autores dos textos e o tema abor- recôndito do entrevistado, o nível de envol- dado. vimento dos dois culmina no momento da

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 13 revelação do entrevistado, num ato de reme- retor do vídeo ter crescido na cidade (Paulo morações e confissões dos acontecimentos, Afonso) que escolheu para gravar, aponta podendo a qualquer momento redirecionar uma relação estreita entre o autor e seu tema. toda a analise e ênfase do documentarista, “aqui, não há qualquer tentativa de controlar “O filme Chronique dún été (1960), rea- os acontecimentos ou as pessoas” (Penafria, lizado na França por Jean Rouch e Ed- 1999:63). gar Morin, lançou as bases para a sua Em relação à montagem Penafria afirma, afirmação e futuras variações” (Pena- “O documentário de observação é, dentre to- fria, 1999:65). “Tal como Vertov, Rouch dos os documentários, aquele que mais im- acreditava que a câmera era capaz de re- pulsiona o gênero no sentido da exploração velar um nível mais profundo de verdade. daquilo que é, no meu entender, a sua faceta Jamais o olho humano poderia conse- mais interessante e estimuladora, ou seja, a guir vislumbrar tal profundidade, sem a construção de significados a partir das ima- ajuda da câmera” (Penafria, 1999:65), gens recolhidas num ou mais locais” (Pena- “as pessoas em frente de uma câmera fria, 1999:64), sem a interferência da voz off revelam-se”, “só a principio pretendem do narrador. dar uma boa imagem de si próprias; após O cuidado com os depoimentos foi a algum tempo começam a pensar em si e maior contribuição desta categoria para nas suas vidas. É então que expressam o vídeo Paulo Afonso: Um muro, duas os seus sentimentos e pensamentos” (Pe- cidades, a etapa das entrevistas foi onde o nafria, 1999:65). diretor enfrentou os maiores dificuldades, de dez pessoas entrevistadas, apenas três Neste filme “a ‘verdade’ a que se re- foram utilizadas no vídeo, pois as entrevistas fere não é a válida para toda a humanidade, (mesmo as utilizadas) apresentaram alguns mas resulta dos próprios interesses de Rouch defeitos técnicos. enquanto antropólogo/documentarista e da sua ”leitura” dos acontecimentos” (Penafria, Documentário interativo 1999:65). “A fé excessiva no que é dito afasta-se de uma averiguação histórica rigo- Este documentário é “aquele em que o au- rosa. A fidelidade histórica à volta de teste- tor do filme é visível na ação, intervém nela, munhos de apenas algumas pessoas” (Pena- faz parte dela” (Penafria, 1999:64), é o cha- fria, 1999:67), dando voz aos participantes mado “cinema verdade” francês. do filme e lançando ao espectador a respon- “Neste tipo de filme há a salientar a re- sabilidade pela conexão entre o que é enun- lação próxima entre o autor e o tema do ciado e sua relação com a realidade. filme. Esta relação passa pela presença fí- De todas as categorias do filme docu- sica do autor no próprio filme. O grau mentário, esta seria a que mais se aproxima de ausência/presença pode variar: pode ser do vídeo “Paulo Afonso: Um muro, duas ouvido, visto ou apenas marcar a sua pre- cidades”, apesar de acreditar que o vídeo sença através dos títulos e legendas” (Pena- seja uma soma de elementos das outras cate- fria, 1999:64). Neste sentido o fato de o di- gorias, a intimidade com o tema permite ao www.bocc.ubi.pt 14 André Luis Oliveira Pereira de Souza diretor trabalhar com uma certa liberdade, o tov e seu filme “O homem da câmara” pode- vídeo não trata apenas da história da cidade, riam estar enquadrados, de acordo com Pe- mas sim a forma como o autor percebe essa nafria, o “filme-sinfonia” “era uma autêntica história. sinfonia de imagens e sons interligados sobre um determinado tema, em geral uma cidade” Documentário reflexivo (Penafria, 1999:48). No Livro Antropologia da Comunicação Manuela Penafria utiliza o conceito de re- Visual no capítulo intitulado “Uma tipolo- flexividade de Jay Ruby que, “assenta no se- gia de pesquisa sobre a comunicação Visual” guinte esquema: Produtor – processo – Pro- Massimo Canevacci (2001) analisa a publici- duto. Deste modo, é possível alargar as ma- dade, o cinema e a antropologia Visual para nifestações reflexivas a toda a produção fíl- desenvolver sua metodologia da Comunica- mica (ficção, documentário, etc.)” (Penafria, ção Visual, para este trabalho focalizei suas 1999:69). analises a respeito do cinema, sobretudo do Em relação ao documentário, “ser refle- cinema direto. xivo é estruturar um produto de modo que produtor, processo e produto sejam um todo Canevacci divide o cinema em três catego- coerente” (Penafria, 1999:69), “na sua maior rias: Cinema Direto, Científico ou de Docu- parte, os autores de um filme apresentam mentário, Cinema de Ficção e Cinema Sin- apenas o último momento do esquema citado crético ou Indireto. e não os dois primeiros”(Penafria, 1999:69). “No cinema direto, por uma metodologia O fato do vídeo “Paulo Afonso” estar vincu- visual voltada para a representação da rea- lado a produção acadêmica, como projeto de lidade, a relação fundamental se estabelece conclusão de curso, obriga o produtor a re- entre sujeito e objeto: entre a câmera do su- fletir a utilização dos diversos elementos em jeito que filma, do pesquisador que possui sua produção, revelando assim o processo no uma visão de mundo ‘ética’ da tomada, deli- qual o vídeo esta estruturado, aproximando- neada e delimitada do ponto de vista do ob- o do documentário reflexivo. servador, e o objeto da tomada, aquele obser- “Ainda segundo Jay Ruby, ser reflexivo vador que possui um ponto de vista ‘êmico’, é revelar que todos os documentários são, ou seja, dos valores internos da cultura es- não um mero registro autêntico e verdadeiro tudada, e que não somente pode como deve do mundo, mas uma construção e articu- transformar-se, por sua vez, em sujeito” (Ca- lação estruturada do seu autor” (Penafria, nevacci, 2001:162). O cinema direto esta- 1999:71), que também é um intérprete de seu ria sub-dividido em sete categorias, com di- mundo. versas metodologias possíveis, são elas: ci- Foram utilizadas muitas tomadas de nema direto “sujo”, cinema direto “puro”, ci- planos-seqüência, de imagens gravadas num nema direto “milante”, cinema direto “par- carro em movimento, que unidas aos sons ticipante”, cinema direto “ficção”, biodocu- das músicas instrumentais, aproximam o ví- mentário e videoarte, para o vídeo “Paulo deo a um outro tipo de filme, o chamado Afonso: Um muro, duas cidades” me inte- “filme-sinfonia”, onde o diretor Dziga Ver- ressam as abordagens levantadas sobre o bio-

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 15 documentário, objeto de pesquisa (e prática) mentações visuais das artes de vanguarda e dos antropólogos Sol Worth e John Adair. dos recursos eletrônicos do uso do compu- O Biodocumentário parte do “pressuposto tador na reelaboração das imagens, no vídeo de que as imagens visuais não oferecem experimental moderno. “As novas tecnolo- um reflexo da realidade, mas são sempre gias tornam possível uma produção infinita interpretações de uma parte da realidade, de imagens sem que nenhuma delas pree- inverte-se o sentido tradicional da relação xista como tal. A sua imaterialidade permite- imagem-pesquisa: ‘a pesquisa não acon- lhes uma actualização potencial nos diversos tece com o auxilio das imagens, mas se de- meios. Isto provoca uma ruptura em relação senvolve sobre as próprias imagens’; Dessa aos antigos conceitos de reprodutibilidade, forma, ‘passa-se de uma antropologia visual cópia e original” (Silveirinha, 1999:02-03). a uma antropologia da comunicação visual’ A autora aponta três características do vídeo (Worth, 1979, Chiozzi, 1993)” (Canevacci, experimental que são as vocações antitelevi- 2001:165-166). Este tipo de filme é “feito são, narcisista e formalista. por uma pessoa para representar o que essa O fato de a televisão trabalhar com o pessoa sente de si e de seu mundo” (Ca- realismo (assim como o cinema de massa nevacci, 2001:166). “Aqui também, com americano e o pouco espaço para as ex- efeito, observa-se uma confusão experimen- perimentações nestes dos meios) “o vídeo tal entre sujeito e objeto. O observado é o tenta demarcar-se e automizar-se, explo- próprio observador e vice-versa”(Canevacci, rando uma serie de estratégias que passam 2001:166). O Biodocumentário reforça a por uma critica acérrima aos próprios meca- análise do Documentário Interativo feita por nismos e processos da televisão de massas, Penafria, os dois estão muito próximos da- instituindo-se como uma “anti-televisão” quilo que o autor pretendia alcançar no vídeo (Silveirinha, 1999:04-05). em questão. Porém a natureza eletrônica do vídeo ex- O vídeo documentário “Paulo Afonso: perimental, o aproxima da televisão, sobre- Um muro, duas cidades” tem como obje- tudo nos canais pagos (TV fechada), que é tivo maior apresentar fragmentos da reali- onde as técnicas do vídeo vêm se desenvol- dade, utilizando os conhecimentos da lingua- vendo, pelo fato de possuir um publico eli- gem documental e inserindo experimentos li- tista decodificador e/ou apenas consumidor gados a vídeo-arte, numa tentativa de fusão dessas novas relações visuais. entre a objetividade realista do documentá- A segunda vocação do vídeo segundo Sil- rio e a subjetividade artística do vídeo expe- veirinha, é a “vocação narcisista”, que “ad- rimental. vém do fato de o próprio meio, devido as Em texto publicado na internet no site da suas características técnicas e funcionais, biblioteca virtual da Universidade Beira do permitir o estabelecimento de uma relação Interior www.bocc.ubi.pt, intitulado A Arte pessoal e autônoma entre o utilizador e a tec- Vídeo, Processos de abstracção e domínio nologia, dispensando qualquer intervenção da sensorialidade nas novas linguagens vi- de terceiros” (Silveirinha, 1999:07). A por- suais tecnológicas(Silveirinha), Patrícia Sil- tabilidade dos equipamentos utilizados, além veirinha fala sobre a introdução das experi- de reduzir os gatos com equipe, possibilitam www.bocc.ubi.pt 16 André Luis Oliveira Pereira de Souza ao diretor/autor uma noção de totalidade no ao caráter da consciência histórica caracte- processo de realização do vídeo, foram uti- rístico da pós-modernidade. O vídeo pode lizados na produção de Paulo Afonso: 1 câ- tratar o tempo como uma configuração espa- mera Super-Vhs, 1 tripé e 1 máquina fotográ- cial, atribuindo uma nova acepção de con- fica digital Mavica, permitindo que o olhar creto ao nosso sentido de instantaneidade e do realizador esteja presente em quase todo simultaneidade. De fato, a capacidade do ví- processo, somando-se a este os outros olha- deo para espacializar o tempo esta inscrito no res presentes no vídeo como o dos compo- próprio sistema, visto que a frame em vídeo sitores das músicas utilizadas, dos diretores é uma discreta unidade de tempo” (Silveiri- dos filmes usados, do cine-jornal da Chesf, nha, 1999:24). do documentário e das tomadas aéreas re- tiradas do filme “O Baile Perfumado”, dos Patrícia Silveirinha referenciando os es- textos de Euclides da Cunha, das poesias de tudos de Frederic Jameson de um livro in- Castro Alves e Wlademir Dias Pino e das titulado – Surrealism without the unconsci- imagens e telas de artistas plásticos. ous – onde ele analisa os mecanismos e efei- Manuela Penafria também analisa a intro- tos utilizados pelos vídeos experimentais, na dução das novas tecnologias como algo po- obra AlieNATION (1979) de Edward Ran- sitivo para a renovação do gênero, “entendo kus, Jonh Manning e Barbara Latham, a au- que o equipamento portátil foi uma lufada de tora aponta que Jameson “salienta o papel ar fresco para o documentário e a confirma- da montagem visual de ‘retalhos’ (colagem), ção do que lhe é inerente e que Grierson re- e da justaposição de material ‘natural’ (as conheceu, ou seja, as suas potencialidades no seqüências filmadas) e de material artificial tratamento dos mais variados temas dos mo- (imagens que já foram misturadas pela ma- dos mais diversos” (Penafria, 1999:88-89). quina), onde o ‘natural’ é ‘pior’ do que o ar- O filme documentário passa por uma trans- tificial, operando aqui uma inversão; o na- formação, “o registro de sons e imagens e a tural já não conota a vida quotidiana segura organização dos mesmos foram modificados de uma sociedade humana, mas antes “os si- com o novo equipamento. Situações, pes- nais ruidosos e baralhados, o inimaginável soas ou acontecimentos puderam ser apre- lixo informacional, da nova sociedade dos sentados de diferentes modos, assim como media” (Silveirinha, 1999:24). “Por outro novas estratégias, novos estilos” (Penafria, lado opera-se uma mistura de signos de vá- 1999:89) e novos pontos de vista, possibili- rios sentidos e de vários meios (música, pin- tando o surgimento de uma indústria caseira tura, escultura). O efeito de alucinação é um na produção de vídeos, com o barateamento resultado da colagem aleatória, da rapidez de e acesso às novas tecnologias. montagem, da intertextualidade, instituindo Por último Silveirinha destaca a “voca- um ‘tempo de delírio’ onde o mundo objeto ção formalista” do vídeo, onde o artista e é desfragmentado, desconectado“ (Silveiri- sua produção subjetiva estariam condiciona- nha, 1999:24-25). “A memória é anulada, dos as estratégias formalistas no uso da tec- o conteúdo é abandonado e o significante nologia e suas potencialidades. Onde in- torna-se pouco mais do que uma memória tê- clusive a “espacialização do tempo se opõe nue de um signo anterior e, sem dúvida, da

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 17 função formal daquele signo já extinto” (Sil- se a pura desordem” (Eco, 2000:53), a ma- veirinha, 1999:25). neira encontrada de balancear os elementos O reatamento com a realidade se dá atra- artísticos e documentais do vídeo foi o de vés da entrada dos depoimentos dos perso- apresentá-los alternadamente, assim depois nagens reais (a voz in), o vídeo propõe uma de cada depoimento surge uma vinheta, que Entropia entre as várias informações, insti- é a representação subjetiva da informação tuindo uma “rotação constante de elemen- apresentada pelos entrevistados, a vinheta tos, de forma a que estes mudem de lugar a reforça a informação do depoimento, e vice- cada instante” (Silveirinha, 1999:24), esteja versa. o vídeo retratando o mundo real ou propondo A análise de Eco sobre a função estética uma visão distorcida desta própria realidade. da mensagem coincide com uma das carac- O vídeo esta dividido em blocos, consti- terísticas do documentário Interativo, neste tuídos por depoimentos e vinhetas, os de- ponto submerge a maior característica do ví- poimentos seriam representantes da objeti- deo, sua interatividade, a rotatividade de ele- vidade documental, assim como o uso do mentos oferece ao espectador múltiplas com- cine-jornal da CHESF e documentário sobre binações e o convida à interpretação, o re- Lampião e Maria Bonita (retirado do filme ceptor passivo, passa a ser um decodificador O Baile Perfumado) que dão ao vídeo uma ativo da informação observada. maior veracidade. O documentário digital (e a edição não- As vinhetas são a parte “artística” do ví- linear utilizada na finalização) instaura uma deo, nelas há uma predominância da fun- maior interatividade em oposição a lineari- ção estética6 da linguagem, “estruturada de dade narrativa imposta pelo sistema analó- modo ambíguo em relação ao sistema de ex- gico, é perceptível uma certa aceleração nar- pectativas que é o código” (Eco, 2000:52). rativa, a “evolução” do suporte técnico im- Segundo Eco (2000), “uma mensagem total- pulsiona também o “tratamento criativo da mente ambígua manifesta-se como extrema- realidade” (Penafria, 1999:96), alguns efei- mente informativa porque me dispõe a nu- tos de distorção do texto, da divisão da tela merosas escolhas interpretativas, mas pode (Inserts) e da entrada do cine-jornal foram confinar com o ruído, isto é, pode reduzir- possíveis, graças a utilização dos recursos disponíveis na edição não linear, através do 6Umberto Eco baseia-se no modelo proposto por programa Adobe Premiere 6.0. Jakobson (e já assimilado pela teoria semiológica), A utilização do insert acompanha o tema cuja “mensagem pode desempenhar, isolada ou con- central da pesquisa, da divisão dos dois bair- juntamente, as seguintes funções” da linguagem: re- ros separados pelo muro, da luta Homem X ferencial, emotiva, imperativa, fática ou de contato, metalinguística e estética. “A mensagem assume homem. Alguns dos efeitos usados no vídeo uma função estética quando se apresenta estruturada como o strobe, foram processados a medida de modo ambíguo e auto-reflexiva, isto é, quando que, a filmadora registrava as imagens. pretende atrair a atenção do destinatário primordi- Foram usados basicamente temas musi- almente para a forma dela mesma” (Eco, 2000:52). “Numa só mensagem podem coexistir todas essas cais regionais (instrumentais), com exceção funções, ...embora uma das funções predomine”(Eco, de My Weakness do americano Moby e O 2000:52). combate entre Lúcifer e o arcanjo Miguel de www.bocc.ubi.pt 18 André Luis Oliveira Pereira de Souza

Arrigo Barnabé, a tématica regional aparece tropologia da Dissolução”, que nasce dos também revestida de tons eletrônicos, como “cruzamentos entre a mudança cultural, a no caso das músicas do Chico Science e da complexidade social e a comunicação vi- Nação Zumbi. No vídeo, além de My Weak- sual” (Canevacci, 2001:264) “três coordena- ness onde se percebem ecos cantados por um das úteis para definir a dimensão visual como coro, só três músicas possuem letras, Paulo aquele conjunto caracterizado pela reprodu- Afonso de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, que tibilidade técnica que emite signos, símbo- não poderia faltar, a visão ufanista da obra e los, sinais (Leach,1981) com uma relação as expectativas do que ela representava para polifônica entre sujeito filmado, emissor e o povo nordestino, a introdução poética de destinatário, esses sinais e símbolos sofrem Senhor Cidadão de Tom Zé, e por último uma tradução polissêmica nas leituras quo- Tu’alma Sertaneja de Anvil Fx e Lex Lilith, tidianas dos espectadores que selecionam ‘a texto inspirado em Câmara Cascudo numa seu bel-prazer’ entre os diversos códigos ver- homenagem a Luiz Gonzaga, o trecho esco- bais, corporais, musicais, expressivos” (Ca- lhido fala da mudança do cenário nordestino nevacci, 2001:265). com a chegada do progresso. O autor op- Paulo Afonso: Um muro, duas cidades tou pela pouca presença de temas musicais foi concebido para que as diferenças hie- cantados, temendo o aumento do grau de de- rárquicas entre o autor, os personagens em sordem que estes poderiam gerar, pois em cena e o espectador, fossem reduzidas ao má- muitos momentos a musica serve de cená- ximo, em oposição a tradição mecanicista do rio para a mensagem que é transmitida pelas século XIX, onde um emissor remete uma imagens. mensagem a um destinatário, “O texto visual deve ser visto como o resultado de um con- 7 Conclusão texto inquieto que envolve sempre esses três participantes, cada qual com seus papéis du- A autora portuguesa Manuela Penafria re- plos de observados e observadores: autor, in- ferencia Brian Winston e sua preocupação formante e espectador são atores do processo com a renovação da linguagem do filme do- comunicativo” (Canevacci, 2001:08), a auto- cumentário, defendendo um documentário ridade do autor é descentralizada e partilhada “pós-Griersoniano”, numa tentativa de rup- com os outros sujeitos. tura com os estereótipos aos quais o docu- Tendo como guião o compromisso ético mentário esteve vinculado, sobretudo da in- com o objeto observado e com o especta- fluência da escola britânica da década de 30, dor, o vídeo percorreu dois universos a prin- este seria um documentário estimulado pelas cípio contraditórios, a tentativa de concilia- transformações vividas nestes últimos tem- ção entre a veracidade da linguagem docu- pos. mental e a subjetividade fantástica da vídeo- Vivemos hoje um momento de redimensi- arte, mostrando ser possível a produção de onamento dos velhos modelos e valores cul- um vídeo documentário com tais caracterís- turais, Massimo Canevacci na busca de um ticas, sem contudo esquecer dos princípios melhor delineamento dessa fase de transi- do filme documentário apontados por Pena- ção para novos modelos, defende uma “An- fria: a obrigatoriedade de registrar/captar e

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 19 fazer-se uso de imagens obtidas in loco; a Jucá, J. CHESF – 35 Anos de História. Re- exploração das temáticas a partir de um de- cife, 1982. terminado ponto de vista/abordagem, e o tra- tamento/apresentação das imagens e/ou sons Penafria, Manuela. O Filme Documentário, dos filmes com criatividade. História, identidade, tecnologia. Lis- No mais, esta conclusão só diz respeito ao boa: Edições Cosmos, 1999. fim do projeto enquanto trabalho acadêmico, pois o vídeo ainda terá um longo e incerto ca- Silveirinha, Patrícia. A Arte Vídeo, minho a percorrer, começando pela exibição Processos de abstração e domínio na cidade que ele e sua limitação formalista da sensorialidade nas novas lingua- não contemplam, nem na mais otimista das gens visuais tecnológicas. internet intenções. www.bocc.ubi.pt, 1999.

8 Referências Bibliográficas 8.1 Bibliografia Consultada Argan, Giulio Carlo. História da Arte como historia da cidade. São Paulo, Martins Alves, Castro. Poesias Completas. Rio de Fontes, 1998. Janeiro: Ediouro, n 71313.

Canevacci, Massimo. Antropologia da Co- Batista, Euclides. Nós Fizemos Paulo municação Visual. Rio de Janeiro: Afonso. Paulo Afonso, 1999. DP&A, 2001.

Eco, Umberto. A estrutura Ausente. São CODEVASF. Almanaque – Vale do São a Paulo: Ed. Perspectiva, 2001. Francisco. 1 ed. Brasília, 2001.

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Galdino, Antônio – MASCARENHAS, Sá- Lemos, Carlos. História da casa brasileira. vio. Paulo Afonso: de pouso de boiadas São Paulo: Contexto, 1996. a redenção do nordeste. Paulo Afonso 1995. Nascimento, Luiz Fernando Motta. Paulo Josephson, Silvia Carvalho. Espaços Ur- Afonso: Luz e força movendo o nor- banos e Estratégias de Hierarquização. deste. Salvador: EGBA/Aché, 1988. Saúde e Loucura no 06 – Subjetividade – Org. Antonio Lancetti, São Paulo, Ed. Weimer, Gunter. A Arquitetura. Porto Ale- Hucitec, 1997. gre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999. www.bocc.ubi.pt 20 André Luis Oliveira Pereira de Souza

9 Anexos • O Baile Perfumado de Paulo Caldas e Lírio Ferreira Músicas

• O Carimbó – Nação Zumbi Textos

• Quilombo Groove – Chico Science e Nação Zumbi • Poesia processo “Elementos” de Wla- demir Dias Pinto ou Pino • O combate entre lúcifer e o arcanjo Mi- guel – Arrigo Barnabé • Os Sertões – Euclides da Cunha • Antônio das Mortes – Sérgio Ricardo e • A Cachoeira de Paulo Afonso – Castro Glauber Rocha Alves • Acauã – Nouvele Cousini Imagens • Tu’alma Sertaneja – Anvil FX

– Nana Vasconcelos • Velho Chico, uma viagem pictórica de Otoniel Fernandes Neto • Emerê – Tom Zé

• Senhor cidadão – Tom Zé • “Os Sertões”, uma homenagem ao cen- tenário de Canudos, Otoniel Fernandes • Xiquexique – Tom Zé Neto • Paulo Afonso – Luiz Gonzaga • Pesca Milagrosa de Raimundo de Oli- • Zé Esteves – Tieta veira

• Construção da casa – Tieta • Delmiro Golveia de Hilson Costa • My weakness – Moby • Imagens retiradas do livro Literatura Entrevistas Brasileira, Faracó e Moura

• Euclides Batista Filho • Violeiros, cordel de J.Barros

• Antônio Galdino • Retirantes, de Portinari • Maria de Jesus Mattos • Lampião fazendo o diabo chocar um Filmes ovo, cordel de José Costa Leite

• Cine-Jornal da Chesf – década de 50 - • Ilustração de caribe para Morte e Vida Arquivo Memorial da Chesf Severina

www.bocc.ubi.pt Paulo Afonso: Um Muro, Duas Cidades 21

9.1 Textos Off Um mugido soturno rompe as trevas... Tremem as lapas dos titães coevas! Trecho de “Os Sertões” de Euclides da Co’a serpente no dorso parte o touro... Cunha. O Homem, capítulo V – A urbs Assim dir-se-ia que a caudal gigante monstruosa de barro definia bem a civita - Larga sucuruiúba do infinito – sinistra do erro. O povo novo surgia, dentro Co’as escamas das ondas coruscantes de algumas semanas, já feito ruínas. Nascia Ferrara o negro touro de granito! velho... (P. 158) E medonha a suar a rocha brava As pontas negras na serpente crava! Trecho de “Os Sertões”, gravado do livro A cachoeira! Paulo Afonso! O abismo! “Literatura Brasileira” – Faracó e Moura, A briga colossal dos elementos! Ed. Ática, 10 edição – São Paulo, 2000. O Relutantes na dor do cataclismo Sertanejo é antes de tudo um forte... (p. 242) (p. 181-182) Trechos e fragmentos dos poemas de Castro Alves retirados do livro: A Cachoeira de Paulo Afonso, obras completas de Castro Alves da ediouro.

“Crepúsculo Sertanejo” A tarde morria! Crepúsculo sertanejo Do átomo à estrela Do verme à floresta! Talvez um silêncio! Talvez uma orquestra! (p.178)

“Loucura divina” As estrelas palpitam! Reza um órgão nos céus! Que turíbulo enorme – Paulo Afonso! Que sacerdote – Deus...

“O São Francisco” Longe bem longe, dos cantões bravios, Abrindo em alas os barrancos fundos; Dourando o colo aos perenais estios, Que o sol atira nos modernos mundos; (p. 180-181)

“A Cachoeira” Mas súbito da noite no arrepio www.bocc.ubi.pt