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CANDOMBLÉ E (RE)AFRICANIZAÇÃO: UM ESTUDO SOBRE A RELIGIÃO TRADICIONAL YORÙBÁ NO MATO GROSSO DO SUL

CARLOS EDUARDO ELIAS DA SILVA ∗

Formação e Estruturação do Candomblé de matriz Yorùbá

Os yorùbá começaram a chegar ao Brasil, na condição de escravizados, entre os séculos XVIII e XIX, sendo de várias procedências como Ketu, Oyó, Ijexá, Ekiti, etc. Foram um dos últimos povos a serem escravizados e, por isso, sua cultura acabou sendo a mais difundida na formação da cultura afro-brasileira, pois os escravizados de outras origens étnico-culturais africanas tinham se esquecido de grande parte de sua memória ancestral africana, principalmente os de origem banto, oriundos de Angola, Cabinda, Congo e Moçambique. Dessa forma, os yorùbá acabaram por influenciar as outras culturas africanas aqui estabelecidas, em um processo de assimilação cultural mútua com predominância nagô. O próprio idioma yorùbá acabou por tornar-se a língua geral entre os negros de Salvador no século XIX. Uma vez introduzidos no Brasil, os yorùbá passaram a ser chamados genericamente de nagôs, um nome que os franceses atribuíam aos yorùbá ainda na África, em contraposição aos daomeanos (fons, ewes, mahis) que eram também chamados no Brasil pelo nome, genérico e pejorativo, de jejes.

A cultura yoruba foi a mais importante das culturas negras trasladadas ao Brasil (RAMOS, 1979, p. 189) Religiões e cultos, folclore, música e dança, cultura material, língua... todos esses elementos culturais foram transportados para o Brasil pelos negros nagôs, dominando as outras culturas negras aqui introduzidas. (RAMOS, 1979, p. 190)

∗ Graduando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, CCHS, sob orientação do Prof. Dr. Jérri Roberto Marin.

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A chegada dos daomeanos, chamados jejes no Brasil, deu-se durante os dois últimos períodos, enquanto a dos nagôs-iorubás corresponde sobretudo ao último. (VERGER, 1987, p.10 apud PRANDI, 2000, p.56)

No Brasil, a cultura yorùbá sofreu adaptações e ressignificações de forma que pudesse resistir e sobreviver. A religião enquanto elemento cultural, também sofreu tal processo. Também contribuiu para a diluição das diferenças étnicas, as dispersões internas que ocorreram devido à compra de escravizados de uma mesma família ou origem por senhores diferentes, do agrupamento de escravizados de origens distintas em um mesmo local e do tráfico escravista interno entre diferentes províncias. Dessa forma, esses processos fizeram com que vários cultos, de diferentes regiões da Iorubalândia 1 e que lá eram concebidos de forma separada, cada um em seu templo específico de sua respectiva região ou cidade, fossem aqui agrupados em um mesmo lugar. O Ilè Àse, chamado popularmente de terreiro, passou a reproduzir as estruturas básicas de cultura, sociedade, religião e família africanas que haviam se perdido na diáspora, criou-se, por exemplo, a noção de família de santo, estruturada a partir das relações iniciáticas. Os templos de Candomblé constituíram-se verdadeiras representações da África no Brasil, tornando-se culturas e sociedades paralelas. A iniciação no Candomblé vai muito além de iniciar-se para uma divindade africana, é também uma iniciação cultural e social. Os sacerdotes, iniciados e devotos de cada culto, começaram a trocar seus conhecimentos e diferentes divindades passaram a ser cultuadas em um mesmo espaço. Assim, foram desaparecendo as diferenças de estrutura sacerdotal dos diferentes cultos e um mesmo sacerdote passou a conhecer todos os cultos e a ser sacerdote de todos os Orixás detendo o título de Babalorixá no caso dos homens e de Iyalorixá no caso das mulheres, que significava “Pai de Orixá” e “Mãe de Orixá”. Na língua portuguesa foi traduzido como “Pai de Santo” ou “Mãe de Santo” devido ao sincretismo com os santos católicos.

1 Iorubalândia: Termo utilizado para referir-se ao território ancestral iorubá, localizado no que hoje corresponde ao sudoeste da Nigéria e leste do Benin, na região de fronteira com a Nigéria.

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O sincretismo com o catolicismo foi outro aspecto marcante. O culto às suas divindades africanas e dos santos católicos foram associadas. Com isso, Oyá foi sincretizada a Santa Bárbara, Oxalá a Jesus, Obaluwaiye a São Lázaro, (ou Oxóssi dependendo da região do Brasil) a São Jorge. Exú, que ainda na África tinha sido identificado pelos europeus como o Diabo, acabou sendo sincretizado também ao Diabo no Brasil. As imagens dos santos católicos eram então colocadas nas casas de culto afro-brasileiras, as próprias divindades africanas passaram a ser chamadas de Santos e era comum a participação de negros em Candomblés e em confrarias católicas simultaneamente. Também há de se reiterar os processos sincréticos com outros grupos étnicos aqui introduzidos, como as de origem banto e jeje. A cultura e os cultos de origem banto, que acabaram por serem designados de forma generalizada como Nação Angola, já sem a maior parte de suas referências religiosas ancestrais, acabaram por absorver toda a forma e estrutura de culto dos Candomblés de origem nagô, nomeadamente da Nação Ketu. Mantiveram, como elementos distintivos em relação ao Ketu, o culto aos Minkisi/Jinkisi (divindades bantos), as línguas de origem banto e outras peculiaridades de rito e fundamento. As etnias de origem jeje, por sua vez, mantiveram-se mais reclusas, porém o processo de intercâmbio e sincretismo com as Nações de origem yorùbá, já iniciado desde a África, continuaram aqui no Brasil e, dessa forma, pode-se observar o uso de termos da língua fongbe (o idioma dos jejes) em cultos nagô, assim como o uso de termos do idioma yorùbá em cultos jeje, além dos próprios panteões, dos Voduns daomeanos e dos Orixás yorùbá, serem mesclados até determinado ponto. A cultura e a religião yorùbá se sobrepôs às demais culturas africanas aqui introduzidas anteriormente e que já estavam sem referências, porém nesse processo de intercâmbio mútuo, as outras etnias também influenciaram, porém em menor proporção:

De todos os cultos africanos, (a religião yorùbá) foi e é o mais influente no Brasil, falando religiosamente. A primeira vez que este veio ao nosso país foi em meados do século XVIII, com a vinda de escravos africanos de origem Nàgó (yorùbá, ìjèsà, igbó, ègbá, etc), através do tráfico escravista. Chegando aqui, pela diferença cultural, o mesmo teve que ser readaptado as nossas terras e a cultura existente, nascendo aí o

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Candomblé, um culto afro-brasileiro, mas de matriz africana. Então, muito desta tradição religiosa perdeu-se e muito de outras culturas religiosas foi agregado a esta, originando o Candomblé que conhecemos hoje. (LECHINSKI – Website Religião Indígena Yorùbá, acessado em 22/04/2014 às 06:06)

Candomblé significava festa/reunião e era utilizado para se referir a todas as reuniões de negros que aconteciam no Brasil, dentre elas, as reuniões religiosas. Apesar das misturas e dos intercâmbios entre as diferentes etnias africanas introduzidas no Brasil, estas eram agrupadas linguística-culturalmente em diversas Nações de acordo com sua origem na África. Dessa forma, o Candomblé também acabou por ser dividido em Nações conforme a procedência e referência étnico-linguística-cultural-teológica. Até os dias atuais têm-se as Nações Angola, de origem banto, as Nações Jeje, de origem daomeana e as Nações de origem yorùbá como a Ketu (que é a mais popularizada) e as Nações Ijexá, e Efon. Com relação aos cultos afro-brasileiros, além do Candomblé, também houve a formação de cultos similares com outras nomenclaturas e identidades independentes em outros Estados, como os Xangôs em Pernambuco e o Batuque no Rio Grande do Sul. Embora diversas subetnias yorùbá tenham sido introduzidas no Brasil e suas tradições tenham se mesclado, predominou as cidades de Ketu e de Oyó. A maior e mais popular Nação do Candomblé de matriz iorubana leva o nome de Ketu, cujo patrono ou Rei é o Orixá Oxóssi, cujo culto é também originário da cidade yorùbá de Ketu. Por ser a maior e mais popular Nação do Candomblé de matriz iorubana é utilizada como a referência neste artigo. Como influência da tradição de Oyó, observa-se no Candomblé Ketu a grande importância atribuída a Xangô e aos Alafin de Oyó como Dadá, Bayanni e Afonjá que são cultuados como avatares ou como qualidades de Xangô. A tradição Oyó influenciou no formato iniciático baseado no culto de Xangô, a presença da roda de Xangô e a presença de cargos que originalmente eram pertencentes ao culto de Xangô e a títulos políticos, sociais e honoríficos da cidade de Oyó, como o cargo de Ekeji, e os cargos dos Obás e Mogbás Xangô, Oju Obá, etc.

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É na Bahia que estão localizadas as casas mais tradicionais de Candomblé Ketu, chamadas por sua vez de Casas Matrizes, sendo as mais conhecidas: Casa Branca do Engelho Velho, Gantois (Gantuá), Ile Oxumarê, Ile Alaketu e Opo Afonjá. Essas casas fundaram as diferentes tradições ou raízes de axé do Candomblé Ketu, através da formação de casas descendentes. Ainda no que tange à instalação religiosa de matriz yorùbá no Brasil, temos o culto de , que instalou-se em separado do culto aos Orixás, na Ilha de Itaparica – BA. No Brasil, passaram a ser cultuados menos de 20 Orixás, geralmente 16, em contraposição às centenas cultuados na Iorubalândia. Orixás de culto próprio como Airá, Oke, , Bayanni, Erinlé, Otin, , Olosa, , Jagun, Opará, etc, deixaram de ser cultuados ou foram acoplados como avatares/qualidades de Orixás parecidos ou da mesma família. O culto de Orunmilá-Ifá juntamente com a figura do Babalawo deixaram de ser cultuados passando a ser utilizado somente o Merindinlogun, ou jogo de búzios, que, no entanto, também foi ressignificado por Bamgbose Obitiko e seu método divinatório utilizado na leitura dos búzios, embora existam outros métodos desenvolvidos e utilizados. Com isso, no Brasil, o culto aos Orixás passou a sobreviver sem a centralidade reguladora do culto de Orunmilá-Ifá verificada na África yorùbá. Em suma, no Brasil houve um intenso processo de sincretismo, adaptação, ressignificação e reestruturação dos cultos africanos em geral causado pelas condições aqui encontradas, muito diferentes daquelas encontradas nas terras nativas africanas da Iorubalândia, originando-se os Candomblés e outras religiões similares, como os Xangôs e o Batuque já citados, sendo que tal processo histórico-cultural deu aos cultos africanos no Brasil uma identidade própria, não mais africana e sim afro-brasileira.

A (re)africanização no Mato Grosso do Sul

O primeiro passo para a (re)africanização veio da dessincretização, iniciada na segunda metade do século XX, em que os santos católicos e sua associação com as divindades africanas, foram abolidos do Candomblé. Atualmente, no local onde ficavam as imagens dos

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Santos católicos na Casa de Oxumarê (Salvador-BA), estão localizadas estatuetas tradicionais africanas. Na maioria dos templos de Candomblé, atualmente, não se encontra mais nada que lembre os santos católicos, muito menos imagens, embora seja inegável a permanência de outros traços sincréticos. Os estudos africanistas de Pierre Fatumbi Verger e de Altair Togun também contribuíram para o pontapé inicial do movimento de (re)africanização. Apesar do Candomblé ter se constituído como uma religião e cultura com identidade própria, distinta da africana, a partir de 1980 alguns sacerdotes iniciaram uma busca por uma originalidade que estaria na África, particularmente na Nigéria e no Benin, no caso yorùbá. Esse processo começou no Estado de São Paulo, onde hoje está inclusive localizado o maior templo yorùbá do país na cidade de Mongaguá, o Templo , dirigido pelo sacerdote africano yorùbá Bàbá Sikiru Salami. A distância em relação à Bahia, onde estão localizadas as casas matrizes de Candomblé Ketu, contribuiu para essa busca, pois havia uma impressão de “fundamento perdido” nos Candomblés paulistas, que os levava a buscá-los na Bahia. Porém, esse intercâmbio não ocorria de forma satisfatória, sendo os anciãos baianos acusados de não passarem muitos de seus conhecimentos, ou de que muito havia se perdido ou deturpado-se. Como decorrência, os paulistas tendo interesse, tempo e dinheiro começaram a realizar peregrinações à Nigéria e ao Benin em busca da originalidade nagô. Outra estratégia também utilizada foi a de financiar a vinda de sacerdotes africanos para o Brasil, isso quando os mesmos não vinham por conta própria, interessados em um mercado religioso promissor no país que é o que mais cultua Orixás no mundo. A interação com os sacerdotes africanos, em busca da originalidade nagô, fez com que muitos brasileiros fossem iniciados no culto de Ifá e em cultos de Orixás diversos, utilizando- se fundamentos africanos. Voltou a ser cultuado no Brasil Orunmilá-Ifá, ressurgiu a figura do Babalawo e os métodos divinatórios do Ikin-Ifá, -Ifá e do Merindinlogun utilizando-se o método dos 16 Odu-meji de Ifá, diferente do jogo desenvolvido por Bamgbose Obitiko e outros sacerdotes no século XIX. Cultos de Orixás como Olokun, Aje Saluga, etc, foram reintroduzidos e o próprio culto de Egungun, deixou de ser exclusividade da Ilha de Itaparica, com a iniciação de muitos brasileiros africanizados nesse culto por mãos africanas, que

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ensinaram-lhes aspectos diferentes daqueles ensinados no Brasil pela tradição afro-brasileira. Atualmente, o processo de (re)africanização vive o seu auge no Estado de São Paulo, com muitos Iles Ifá e Ilesin Orixá abertos não somente na capital e arredores, mas também no interior do estado, e já espalhando-se por outras regiões, particularmente do centro-sul do país. Os Candomblés sul-mato-grossenses estão ligados aos Candomblés paulistas em sua maioria e, quando não, são pelo menos influenciados. Dessa forma, os cultos de Ifá e Orixá tradicional yorùbá, expandiram-se para o Mato Grosso do Sul pelo Estado de São Paulo, a partir da década de 2000. Ou seja, é um fenômeno recente e poucas casas aderiram. A casa pioneira da africanização no MS foi a Ile Ifasina Ifadipé Agbole Obemo. Seu sacerdote, Uilson Américo, originalmente foi iniciado no Candomblé Jeje, para o Vodun Azansu, cultuado como o Orixá Obaluwaiye no panteão yorùbá, decorrente do sincretismo jeje-nagô esclarecido anteriormente. Sua iniciação no Candomblé ocorreu em 1993 e assim permaneceu até o ano 2000, quando então adquiriu seu Oye, a maioridade candomblecista, tornando-se então um Babalorixá e continuando sua busca religiosa. Conforme o relato de seu filho biológico e também praticante da religião, André Ogungbemi, Baba Uilson conheceu o culto de Ifá, yorùbá, em Agosto de 2002 através de um irmão de religião que trouxe um sacerdote africano de São Paulo. Sua identificação com Ifá foi imediata e ele tomou seu Isefá 2, começando sua trajetória no culto de Orunmilá-Ifá e a transição para o sistema yorùbá de culto. Seus sacerdotes eram, e são até hoje, o Babalawo Aragba Salau Adisá Arogundade e o Babá Adekunle Aderonmu Ogunjimi, ambos oriundos de Abeokuta, Nigéria e pertencentes à família Agbole Obemo. No Brasil, estão sediados em São Paulo – SP onde possuem seu Ilê Ifá. Dessa forma, a casa de Babá Ifadipé, em Campo Grande, segue a tradição de Abeokuta, do povo Egbá e particularmente da família Agbole Obemo, pois na Iorubalândia a Religião Tradicional Yorùbá é formada por diferentes tradições de acordo com as regiões, cidades e

2Isefá: Pronuncia-se Ixefá. Trata-se da primeira intervenção ritual dentro do culto específico de Orunmilá-Ifá.

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famílias. O processo de africanização desse templo, concluiu-se, segundo André Ogungbemi, há 4 anos atrás, em 2010, quando Babá Ifadipé submeteu-se então ao ritual iniciático do Itefá, próprio do culto de Orunmilá-Ifá, vindo a tornar-se um Babalawo. Atualmente, o Ile Ifasina Ifadipé Agbole Obemo já se encontra totalmente no sistema yorùbá de culto, desde a sua estrutura, passando pelo atendimento com o Opele-Ifá, liturgias, trabalhos espirituais, iniciações e louvações. Outro templo africanizado em Campo Grande é o Ilesin Ase Orisa, ou Santuário dos Orixás, da Iyalorixá Leoni. Iniciada no Candomblé Ketu em 1997, Iya Leoni ou Mãe Léo, como costuma ser chamada, interessou-se por estudar o Candomblé, indo até suas origens na África, conhecendo então o culto yoruba, que em sua opinião é a verdadeira religião dos orixás. Fez seu Isefá em 2012 com Babás africanos de Ibadan, Nigéria, recebendo o nome ritual de Ifawunmi e desde então segue a religião indígena yorùbá, tendo modificado o seu Ilesin para o sistema de culto yorùbá e atendendo com o Merindinlogun-Ifá, o jogo de búzios em sistema africano já referido anteriormente nesse artigo, que se difere dos métodos afro- brasileiros. Há ainda um terceiro templo de Isese 3, identificado em Três Lagoas, da família Orilempe, dirigido pelo Babalawo Ifadolá Fatobi Orilempe Sangosanya e pela Iyalaje Iyewatobi Eniola Orilempe, esta oriunda de Araçatuba-SP. O templo chama-se Ilè Asé Orisa Iyewá ni Elempé e, segundo Iya Iyewatobi, segue totalmente o sistema yoruba. Esses sacerdotes constantemente viajam a São Paulo-SP para atender clientes e filhos, fazendo assim intercâmbio com o meio africanista paulista, além de já estarem localizados na divisa com SP. Por último, tem-se o Babalorixá Rodrigo de Oxalá, de São Paulo - SP, que migrou para Campo Grande – MS em busca de novas oportunidades em seu ramo comercial. Posteriormente retornou para São Paulo, porém continua em atividade na cidade a fim de

3 Isese ou Esin Ibile Yoruba: Nomes, em yoruba, do que no Brasil é chamado de Religião Tradicional Yoruba.

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atender os filhos e os clientes. Ele ainda não possui casa aberta em Mato Grosso do Sul até o momento, sendo esse um projeto em andamento. Baba Rodrigo é um caso peculiar. Iniciou-se no Candomblé Ketu, tradição de Axé Muritiba, filho de Pai Marco e neto de Mãe Juju, vindo posteriormente a iniciar-se no Isese no culto do Orixá Obatalá e no culto de Oxum, sendo, pelo Isese, filho do Babá Sikiru Salami (Babá King) do Templo Oduduwa. Contudo, Babá Rodrigo não abandonou totalmente o Candomblé, pois prefere a agregação, isto é, agregar conhecimentos através do culto yorubá, ao passo em que mantém-se fiel à sua tradição de Candomblé, onde é iniciado do Orixá Oxaguiã. Dessa forma, Babá Rodrigo preserva a estrutura do Candomblé e os ensinamentos de sua família de axé candomblecista, ao passo em que traz do Isese mais conhecimentos teológicos e rituais, supostamente perdidos no Candomblé. Ele atende utilizando o Merindinlogun-Ifá em sistema africano, para citar uma das situações em que faz uso de seu conhecimento adquirido no Isese, ou religião tradicional yoruba. Todos esses sacerdotes, exceto Pai Rodrigo de Oxalá, tem em comum a busca pela originalidade nagô, pelo fundamento perdido no Brasil e que estaria preservado na África. Acreditam e pregam que a religião tradicional yorùbá é o culto mais autêntico aos Orixás, o original, e que o Candomblé estaria deturpado e muito distante de suas origens. Pai Rodrigo difere-se pela crença de que é preciso cautela frente a tal discurso de originalidade, pois o Candomblé também é um culto de Orixá autêntico, porém adaptado ao Brasil e que diz respeito aos brasileiros e que, nesse caso, a atitude mais prudente seria a de aproximar-se da religião tradicional yoruba no sentido de agregar e não de abandonar a ancestralidade brasileira. O campo das religiões africanas é objeto de inúmeras relações de forças, de lutas pelo poder, de tensões entre instituições, entre os diferentes agentes e entre esses e os consumidores de produtos desse mercado. O capital simbólico é desigualmente distribuído entre aqueles que o detém, ou seja, um especialista, aquele que tem autoridade, que vende um produto e, no outro extremo, os destituídos de capital simbólico, os leigos, os consumidores de um ou mais produtos. “Essa distribuição desigual do capital simbólico determina a

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estrutura do campo, que é definida pelo estado entre as forças (agentes, instituições, especialistas, leigos) presentes nele” (OLIVEIRA, 2003, p. 179). Esses agentes, que detém um capital simbólico específico e vendem um produto, disputam com a concorrência o mercado de bens simbólicos. Assim, combatem aos concorrentes, às novas ideias e os pensamentos divergentes a fim de legitimarem as suas posições e manterem-se no poder e no mercado. O objetivo é excluir e deslegitimar a concorrência a fim de conquistarem o domínio completo do trabalho do outro. Enfim, o campo das religiões de matriz africana é marcado por conflitos, tensões e lutas pelo poder. A (re)africanização significa a oferta de um novo produto, mais competitivo, num mercado que é disputadíssimo. A defesa da originalidade trazida pelo Isese, ou pelo culto de Ifá no Brasil, funciona como estratégia de marketing, tanto por parte de africanos que, sabendo que o Brasil é um país com grande fé nos Orixás e imigram para o Brasil, quanto dos adeptos brasileiros, que financiam a vinda de sacerdotes africanos iorubas ou vão à África, investindo em sua formação religiosa. Essa proximidade da África lhes garante a propaganda de que seus serviços são melhores, especialmente em relação aos serviços oferecidos pelas religiões afro-brasileiras, atraindo filhos e clientes, conquistando um mercado que em um passado próximo era disputado principalmente entre a e o Candomblé no cenário afro-religioso. Agora, no Brasil, tem-se mais um produto religioso: a Religião Tradicional Yoruba ou Culto de Ifá. Outros adeptos optam por manterem-se fiéis ao Candomblé, vendo a (re)africanização como uma incoerência e um desrespeito ao que os ancestrais afro-brasileiros construíram em duras épocas, como é o caso de Pai Air de Ogun e da Iyawo Geisseli de Yemanjá, ambos do Ile Ase Ogun, casa de Candomblé Ketu, descendente do Ile Oxumarê, em Campo Grande. A ideia de originalidade trazida pela (re)africanização do Candomblé é questionável. A cultura e a religião yorùbá sofreu adaptações e transformações tanto no Brasil como em território africano. A Iorubalândia sofreu invasões muçulmanas e europeias que, além de terem convertido a maioria da população ao Islamismo ou ao Cristianismo, influenciaram a cultura e a religião. O próprio tráfico transatlântico de escravizados fez com que muitos

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elementos culturais e religiosos que lá se alteraram tivessem permanecido no Brasil e em Cuba. Assim sendo, pode-se afirmar que a África Yorùbá de hoje, já não é mais a África Yorùbá dos tempos da escravidão no Brasil. Muitos pais de santo defendem que o caminho mais sensato seja o de uma reaproximação para fins de intercâmbio e agregação de conhecimentos. Entre eles, o Pai Rodrigo e a Casa de Oxumarê em Salvador – BA, uma das grandes casas matrizes do Candomblé. Em anos recentes, o Babalorixá Pecê de Oxumarê e a Iyalorixá Ana de Ogun, juntamente com uma comitiva da Casa de Oxumarê, viajaram até a Iorubalândia a fim de conhecer a terra de seus ancestrais, retratando a viagem com muita emoção na página do templo na internet. A partir daí, estabeleceu-se contato entre representantes de uma das casas mais antigas de Candomblé, com grandes nomes da sociedade indígena yorùbá. Em agosto de 2014, um momento histórico, o Alaafin 4 de Oyó, Adeyemi III, e sua Comitiva Real, juntamente com o alto sacerdócio do culto de Xangô, próprio dessa cidade, visitou os terreiros tradicionais da Bahia, como a Casa de Oxumarê, Casa Branca do Engelho Velho, Gantois, Alaketu, Opo Afonjá, etc. Na ocasião, foi feito um acordo de patrimônio histórico e cultural comum Brasil-Nigéria. Esse ato foi altamente simbólico, no sentido de firmar a nova relação estabelecida entre a Iorubalândia e o Brasil, de reconhecimento mútuo de tradições e patrimônios comuns. No entanto, essa relação estabelecida entre as casas tradicionais da Bahia, particularmente a Casa de Oxumarê, e os iorubas, não visava a (re)africanização em um sentido de desmantelamento do Candomblé em favor da adoção plena da religião yoruba, mas sim visa ao intercâmbio e agregação. Na passagem do Alaafin pelo Axé Opo Afonjá, consta que:

Para ele foi impactante encontrar do outro lado do Atlântico uma história que foi extraída de sua origem de forma violenta séculos atrás, e que hoje é perpetuada por descendentes brasileiros e que lutam para preservação deste patrimônio. (...) O rei saiu daqui maravilhado com tudo que viu. Por diversas vezes, ele falava do orgulho

4 Alaafin: Título tradicional do Rei (Obá) de Oyó.

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que sentia em ver tudo aquilo de perto. Da perpetuação da tradição e similaridade dos elementos. (AZEVEDO, 2014, p. única)

Temos no Brasil um legado yorùbá autêntico, isso é fato, e a reaproximação com a África também é outro fato, muito interessante e louvável, pois é a primeira vez que esse fenômeno está ocorrendo desde os tempos da escravidão no século XIX e o melhor é que atualmente está ocorrendo em condições de liberdade, sendo facilitada também pela mundialização, encurtamento das distâncias, velocidade de difusão da informação e acessibilidade a ela. A oficialização simbólica do intercâmbio entre as casas matrizes baianas de Candomblé e a Iorubalândia, chama atenção para um processo inevitável que é o de (re)africanização, mas o impacto desse fenômeno a médio e longo prazo ainda é difícil de ser analisado, principalmente levando em conta um Candomblé paulista cada vez mais autônomo em relação à Bahia. Hoje, já podemos afirmar que, se até a década de 1980 a nível nacional, e até a década de 2000 a nível regional em Mato Grosso do Sul, o Candomblé era a referência do que se tinha mais próximo da África no Brasil, atualmente temos a concorrência da chamada Religião Tradicional Yorùbá, Ifá ou Isese, que vem cada vez mais firmando seu espaço no cenário afro-religioso brasileiro.

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