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E CULTURA· POPULAR CARIOCA

Hermano Vianna

. estariam sendo vítimas de uma cruel estra- esde o início dos anos 70 o funI<, tégia de marketing que buscaria afastá-los musical inventado por negros da "verdadeira" cultwa "popular" carioca

• • • norte-amencanos.amma um numero (? fUlebol?), forçando-os a consumir impressionaole de festas realizadas no Rio um produto impórtado ("de baixa qualida­ de Janeiro e freqüentadas por jovens que de" e "alienador") que nada tem a ver com percencem às camadas mais pobres da po­ a sua "realidade". pulação. Hoje, se�undo pesquisa que O funk seria condenável por, enlTe ou­ realizamos em 1987, acónleCem cerca de tros motivos, não farer parte da chamada seiscentas festas funI< (conhecidas como cultura popular carioca. Mas como já disse . bailesfunk) por defim semana, atraindo um com segundas intenções, ofunI< é "uma das • público de mais ou menos um milhão de diversoes mais populares da cidade". O jo- pessoas. ESles números colocam o baile go de palavrasprelendia despertaraseguin­ funI< como uma das diversões mais "popu­ te pergunta no leitor: mas, armal, popular lares" da cidade. S6 a praia parece atrair, aqui significa aquilo que é consumido pelo com essa freqüência, um público "fiel" maior número de pesSoas ou, seguindouma • • ffimor. certa tradição intelectual que teve (melhor: Aparentemenle, tal" fenômeno poderia lem tido) grande popularidade (no primeiro ser interpretado como mais uma "imposi­ sentido) no Brasil, aquilo que é autêsltico, ção" da indústria cultural, aqui repre­ isto é, produzido pelo povo, para O povo, sentada pelas multinacionais do , na sem inlermediários, com ou sem intençOes sua lentativa maquiavélica de homogenei­ de "resistência" popular (discutiremos cada zar toda a cultura do planeta, destruindo um desses pontos mais adiante)? E, mais aquilo que ainda resta de autêntico e "dife­ finalmente ainda, o que vem a ser a tal da renle" nas popula�s "dominadas". Os jo­ "cultura popular carioca"? Quem determi­ vens do que dançam funk na o que é autêntico e o que não é? E se o •

&tudos Hi.1r6ricN.Rio de Janeiro. vol. 3, n. 6. 1990, p. 244-253. FUNK E CULTtJIIA POPUUR CARIOCA

funJcé popuJar(no primeirosentido) sem ser ces, artesanatoe outrasmanifestações artís­ popular(no segundo), o que "deu errado" ticas"iletradas") que exprime o "esplrilD de na auJenticidade carioca? Trata-se de um um povo determinado".Já em Herder esUlo modismo passageiro, sem conseqüências? presentes OS pressupostos ing&IUOS a que Oudeumaannadilhamultinacional,produ­ aludimos no parágrafoanJerior. São eles: o zidaem laboratórios fonográficose armada primitivismo,o purismoe o comuniJarismo pelos meios de commlicação (jemassa, na da cultura popular. qual os adolescentes cariocas caíram irio� Burke invalida esses plessu postos de centemente? uma maneira implacável (Burke, O objetivo principaldeste artigo é mos­ 1981:216-26 e 1989). Como argumento trarque a maneiraesquemática e preconcei­ contrao primitivismo,ele se refae às mu­ tuosacomo são percebidasas relaçOesentre danças constanJespelas quaisp assou a cul­ a "cultura popular" e a "indúsJriacultural" tura popular das várias etnias européias impede a compreensão de vários fenôme­ mesmo duranJe a Idade Média. Para derru­ nos de extrema importância que têm lugar bar o pressuposto do purismo, Burke mos­ em nossas sociedades complexas contem­ tra que, ao contráriodo que os "defensores porâneas O baile é um exem­ da cultura popular" imaginam, os campo­ plo bastante rico de como elementos neses europeus pré-capitalistas sempre culturais de procedênciasdiversas, "autên­ misturaram tradições diferentes e muiJos ticos" ou não C�artificiais" ou não, "impos­ deles já eram letrados o bastanJe para se tos pela indúsJria cultural" ou não), podem apropriarde elementos da "culturaerudita". secombinar de maneiras inusiJadas, geran­ Contra o comunitarismo (isto é, a idéia de do novos modosde vida e afastandoa hipó­ que a cultura popular seria sempre uma tese apocalíptica(Eco, 1979) da homoge­ criação coletiva, sem a separação entre ar­ neização cultural da humanidade. tista e platéia e sem interferências exter­ nas), Burke lembra que bem antes da televisão e mesmo da Revolução Industrial, muitos produtos artlsticos populares já A arllladllha popular eram criados "para o povo" por agenJes externos, como a Igreja, e sua aceitaÇão A fragilidadedo conceito de cultura po­ estava mais regida pelas"forças do merca­ pularjá foi demonstradapor vários autores. do" do que pelaimposição desses agenJes. LuísF ernando DuarJe(I 986: 126), em seu A análise de Burke sobrea Bib/iolheqU/! livro Da vida nervosa,aponta a imprecisão B/eU/!, um exemplo da literaturapopular da do termo "povo"como razão suficiente pa­ França do século XVII, exemplifica as crí­ ra tomarmos cuidado na aplicação de cate­ ticas anJeriores e chega, nas suas conclu­ gorias como "dasses populares". Outros sões,a recomendaçõesextremamente úteis autores, mesmo mantendo a utilização do para o estudo dos efeitos dos produtos das conceito "cultura popular", já fizeram uma "mídias de massa" atuais: "Quais fOlllm os crítica radical dos pressupostos ingênuos efeitos da Bibliolheque B/eU/!? O que ela que quase sempre o acompanham. significava paraseus leitores urbanos e ru­ Peter Burke mostra que o romantismo rais? Nós não devemos assumir que ela alemão, representado principalmenJe pelo significava a mesma coisa nas cidades e nos escritore fUósofoJohann Gottfried Herder, campos, ou mesmo para os diferenJes gru­ foi responsável pela criaçãO da idéia de pos de uma mesma vila" (Burke, .981: cultura popular, entendendo por isso um 220). Se já havia essa possibilidade de re­ todo (fo"Bado pela música, dança, crendi- cepções heterogêneas na "cultura popular" lAO ES11JDOSHISTÓRICOS. 1990/6

de três séculos atrás, não devemos nos es­ A visão daindústria cultural como ins­ panrar ao encontrá-la rarnbém em nossas trumento maquiavélico de dominação pode cada vez mais fragmentadas metrópoles ser exemplificada pela seguinte passagem contemporâneas. do livro O que écultura popular,de Amô­ EssasafmnaçOes nãosão tão evidentes nia Augusto Arantes (1983: 44): assim. Pelo menos é essa a dúvida que podemos ter ao nos deparar com grande "Refletindo sobre anossa sociedade,so­ parteda reflexão sobre culturapopular feita bressaem a esse respeito, de ime

produzido para o povo, não podendo haver • qualquer intercâmbio entre os dois tipos de Por essa linha de raciocínio, acabaría- produção. mos chegando à conclusão de que a il)dús­ tria cultural, produtora da homogeneização, Asduas posiçõesidentificadas por Mag­ é incapaz 'de lidar com a heterogeneidade. nani acabam, no limite, desprezando inte­ Veremos, com o exemplo dofunk,que (co­ gra1mente os produtosda indústria cultural, mo diz O lugar-comum) tudo é muito mais entenruda quase que como um aparelho complicado. ideológico de dominação. É esse desprezo que encontramosnos seguintes argumentos de Francisco Weffon: "O nordestino que chega a São Paulo, se portador de uma cultura regional de alcance nacional, chega De volta ao funk a um mundo dotado de uma cultura urbana extremamente pobre, praticamente vazio, A existência do mundo/unk cariocacon­ onde um capitalismo predatório e seivagem traria em vários pontos as teses anteriores destruiu a cultura regional tradicionale não ,, sobre o funcionamento da indústria cultural foi capaz de criar nada em seu lugar 2 no Brasil. O consumo de funk no Rio não (citado por Magnani, 1981: 27). pode de maneira alguma ser considerado Mesmo que deixemos de lado a questão uma imposição dos meios de comunicação de se saber se a cultura regional foi real­ de massa. Pelo contrário: parece até haver mente destruída,devemos concordar com a um complô (para usar, sem pretensão de afirmação de que a cultura urbana é vazia? seriedade, um termo maquiavélico) dessas Música "brega" é nada? Funk é nada? Te­ míruas com O objetivo de ignorar O fenôme­ lenovela é nada? no. FUNK E CULTURA POPULAR CARiOCA 247

o Alguns dadospodem comprovar nossas E uma prática comum rasgar o rótulo do afumaçOeS. Os que mais fazem su­ disco para que nenbuma equipe rival 0bte­ cesso nos bailes, na maioria absoluta dos nha o mesmo sucesso,transformando-o nu­ casos, nao. são lançados no Brasil.As emis­ ma "exclusividade" da primeira equipe que soras de rádio e televisão qllase nao dao O descobriu. espaço paraa música funJc. Os jornais mo A existência do mundo funJc no Rio é anunciam os bailes que, apesarde tudo isso, desconhecida pelas gravadoras que traba­ permanecem lolados. O desejo por funk lham com esse tipo de música nos Eslados parece algo interno à comunidade carioca Unidos (no caso excepclbnal de venderem que o consome, sem depender da ajuda ou discos para todas as equipes cariocas, isso do incentivo de instituiçOes externas. não vai somar um numero maior do que Os orgartizadores dos bailes cariocas seiscentos exemplares). Portanto, elas nao desenvolveram várias estratégias para con­ acionam qualquer política de marketing vi­ seguir os discos que nao sao encontradosno sando seduzir O público carioca, coisaeco­ 3 mercado brasileiro. A principal delas foi a nomicamente impossível para o tamanho criaçao de um comércio clandestino de dis· dessas empresas. Além disso, o mercadode cos importados, vindos dos Estados Unidos funk dos bailes cariocas tem características especialmente para animar o circuito de bem diferentes do mercado de funk norte­ funk do Rio. Tudo é muito precário: mo americano. Músicas Cjue fazem Sucesso es­ existem pessoasexplorando de uma maneio trondoso nas pistas de dança nova-iorqui­ o ra regular esse comércio. E preciso primei- nas não têm a menor repercussão nos bailes ro enconuar alguém que possa viajar para cariocas, e vice· versa.Os dois circuitos mu­ Nova York ou Miami (geralmente com pas­ sicais funcionam com dinâmicas bem dife­ sagens aéreas mais baratas conseguidas rentes. através de amigos que trabalham em agên­ Essas diferenças sao notáveis mesmo cias de turismo) e que aceite ser pago para para quem não tem a menor familiaridade comprar e trazer quilos de discos, devida­ com as subdivis6es da cultura pop intema� mente escondidos da alfândega brasileira, cional. Basta ir a duas festas de : (o para os bailes cariocas. Esses discos sao funk eletrônico dos anos 80 que faz sucesso geralmente lançados por pequenas e obscu­ nos bailes cariocas), uma no Rio e outraem rasgravadoras independentesnorte- ameri­ Nova York ou Miami: algumas músicas canas e só podem ser encontrados em lojas (poucas) sao as mesmas, mas as danças,as especializadas. É difícil até obter informa­ roupas e até o modo como o equipamento çOes sobre os novos lançamentos de funJc de som ocupa o espaço sao inteiramente • aqui no Brasil. distintos nas duas cidades. Essas difkuldades não parecem desani­ Nos Estados Unidos, o hip hop é tam­ mar os funkeiros (quem gosta de funk, na bém um modo de se vestir, o estilo B-Boy gíria "nativa") cariocas. Parecemesmo que (o uso "exagerado", culminando na adora­ as dificuldades tomam ainda mais excitante çao de marcas esportivas como Adidas ou o jogo de conseguir os novos sucessos. As Nike), e um modo de dançar (a break dan­ informaçOes sobre os discos e os próprios ce). No Rio, os freqUentadores dos bailes discos sao disputados por centenas de funk compuseram uma outra bricolagem "equipes de som" (o grupo de proprietários estilística. Suas roupas, principalmente as do equipamento que sonori7.3 os bailes, co­ dos homens, sao innuenciadas basicamente mo o Furacão 2000 e o Soul Grand Pcix, pelamaneira de se vesti r dos surfistas (coisa para cilar as equipes mais conhecidas) e inadmissível para um B-boy norte-ameri­ muitas vezes escondidos umas das outraS. cano). Suas danças sao coreografias com- 248 ES'TUDOS HlSIÓRlCOS• 1990/6

plicadas repetidas, ao mesmo tempo, por qUentadas por um público que pretende es­ grupos de dezenas depessoas Os dançari­ tarna vanguardada modain ternacional) de nos cariocas preferem as ersões v inslru­ Londres (a capital dos modismos juvenis mentais que sempre são incluídas nos durante todos os anos 80) e Nova York. O discosde hipIrop (sem o rap, canto impro­ mesmo nlIoaconteceu no Rio. O JUpIrop foi visado e quase falado, que caracterizaesse contaminado pelo estigma suburbano (Zo­ estilomusical), compondo refrões em por­ na Norte da cidade) e por isso deve ser ruguês(g eralmentepornográficos ou fazen­ evitado por lugares que pretendam atrair dorimas com o nome da oubairro de uma clientela dezona-sulistas. A juventude S onde veio o grupode dançarinos que canta) da classe média carioca esteve envolvida, paraseus sucessos preferidos. durantetoda a última década, com seupró­ Um fato interessante aconteceu depois priomovimento de rock, estilo musical que depublicannos o livro sobreOS bailesfunk tem características,bem diferentes, àsvezes do Rio. Em SlIo Paulo, o mesmo tipo dé até conflitantes, se comparadocom o funk. música, o JUpIrop, foi adotado por várias Mas isso não é motivo suficiente para a turmas de jovens, também oriundos das recusa integral do JUpIrop. camadas "populares" e dos subúrbios da Mais um fato recente pode esclarecer cidade,como no Rio. S6 que o casopaulista essa última colocação.Outro estilo defunk, tinhamais semelhançascom o JUpIrop nor­ criado na cidade de Chicago e conhecido te-americano do que com o. carioca. Na como Irouse, tambémpassou a desfrutar de estaÇoo do metrô São Bento, ponto de en­ um enormeprestigio nas boates das grandes contro dos funkeiros de São Paulo, rudo metrópoles do primeiro mundo. Em pouco seguia o padroo nova-iorquino: havia a tempo, a Irouse também !Omou conta das • break dance, as roupas dos b-boys e até boatesda ZonaSul carioca (mas não teve a mesmo o rap em português uatando dos menor repercussãonos bailesfunksuburba­ mesmos temas privilegiados pelo JUpIrop nos, que continuaram 'fiéis ao hip ·Irop). de Nova York, isto é, crise econômica, re­ Imediatamente as emissorasde FMque an­ laçõesraciais e elogios de quem canta para tes dedicavam suaprogramaçoo musical ao quem canta. Isso mosua que existem várias rock (e que se recusavam a tocar JUphop) maneiras de um mesmo dado cultural ser passaram a tocar Irousee a Rede Globo de apropriado porouuas culturas.Os funkeiros TelevisAo, por intermédio da sua compa­ do Rio poderiamtambém ter imitadoo mo­ nhia de discos que cuida dastrilhas sonoras delo nova- iorquino, mas a maioria deles d� telenovelas, lançou coletâneas de gran­ (porque nos bailes cariocas também existe des sucessos de house. As acusações que uma minoria de b-boys que tenta há anos antes se faziam ao JUp hop (de ser uma "catequizar". semsu cesso, osoutros dança· música pobre, repetitiva, com "insuportá­ rinos) preferiu seguir um outro caminho, veis" riunos eletrônicos) poderiam ter sido criando um estilo p'r6prio a partir daquilo ativadas também contra a house. Mas nlIo � que "vem de fora". foram. Issoprova que a aceitação de deteJ'­ Essa adoção do funk porjovens subur· minado estilo musical não depende neces­ banos (principalmente os mais pobresentre sariamente de características intrínsecas os suburbanos) e favelados do Rio parece desse estilo (afinal, a house, riunicamente dificultar a penetraçoo dessa música entre e melodicamente, tem muito mais seme­ OS jovens das camadas médias cariocas. lhanças com o JUpIrop do que com o rock), Recentemente, o JUp Irop se transformou mas sim do contexto social e cultural onde num dos estilos musicais mais executados ela acontece. No caso do Rio, a divisa0 da nas boates mais sofisticadas (isto é, fre- cidade em grupos (principalmente aqueles FUNK E CULTlJRACARIOCA POPULAR 249

representados por quem mora na Zona Sul mente (menos aos domingos), das 5 às 7 • e na Zona Norte) que pretendem estabele­ horas da tarde, pela Manchete FM.Este é cer entresi tantas marcas de distinçllo pare­ um horário muito importante para as emis­ ce também dividir a cidade em territórios soras,pois tem glandeaudiblcia (o público musicais excludentes, que raras vezes (c0- está saindo do tnlbalho) e antecedea inter­ mo foi O caso da "febre" das discotecas no rupçllo do jornal A Hora do Brasil, trans­ final dos anos 70) dançaram · os mesmos missão obrigatória para todo o rádio ritmos. brasileiro. Quase todas as emiSSllias esc0- Um bom exemplo desse "apor/heUi" lhem esse horário para "paradas de suces­ musical carioca foi a trajetória do disco so", onde tocam as músicas mais pedidas Funk Brasil, lançado em 1989 (portanto, pelos seus ouvintes. Mesmo assim, o PiO­ dois anos depoisque encerramosnosso tra­ grama de hip hop do DJ Marlboro é o que balho de campo nos bailes funk cariocas) tem maior audiência. Portanto, é o progra­ pelo DI(disc-jÓQuei) Marlboro. A gravado­ ma mais importantedo horário maisimpor­ ra do disco, Polygram, não fez qualquer tante da rádio carioca. esforçopara divulgar seu novoproduto. Na Um marciano que pousasse com seu mesma época, estava sendo lançado o LP disco voador no Rio de Janeiro e tivesse Burguesia, do cantor de rock Cazuza,e todo acesso aos boletins do Ibope que divulgam ' o esquema promocional da gravadora esta­ os índices de audiências das emissoras de • va empenhadoém vender esteúltimo disco. rádio cometeria um erro ao generalizar es- Para surpresa do pessoalda Polygram(ape­ ses dados afrrmando, ao voltar ao seu pla­ nas um de seus diretores, aquele que con­ neta, que "a música preferida pelos cariocas tratou Marlboro, acreditava que um disco é o hip hop". O sucessodo programado DJ de hip hop brasileiro pudesse ser sucesso), Marlboro nlladeve ser interpretado como o as vendagens do disco FunkBrasil supera­ sinal de uma aceitaçlla mais ampla dofunk. J!IllI por meses aquelas do Burguesia, che­ Nossomarciano teria que ter uma imagina­ gando até a superar a marca das cem mil ção antropológica mais sutil para descon­ cópias vendidas, número que no Brasil fiar dos dados estatísticos e penetrar nos equivale ao "disco de ouro". becos culturais da cidade maravilhosa. Esse sucesso inédito (foi o primeiro • disco de hip hop carioca) e imprevisto não facilitou em nada a divulgaçlla do LP Funk Brasil. Asrádios (com exceçl10da Manche­ Só a fragmentaçao nos une teFM, onde o próprio DI Marlboro tem um programa) não tocaram suas músicas e a • televisllo nllo gravou videoclipes com elas. E preciso questionar as teorias que pen- . Mesmo assim, nasruas do Rio, era possível sam a indústria cultural como uma institui- ouvir várias pessoas cantarolando a Me/ô ção absolutamente coerente que busca damulher f eia ou a Melá do bêbado,glan­ transmitir um conjunto de valores pré-esta­ des sucessos do Funk Brasil. Onde essas belecidos (os valores da "ctasse dominan­ músicas oram f escutadas? Apenas no pro­ te") através de todos seus produtos. Como grama de rádio do DJ Marlboro? Nos bai- mostraO caso dofunk carioca,existem pro­ 1es? Então é possível existir um sucesso de dutos bem diversos colocadosno "mercado massa ignorado pelos meios de comunica­ cultural", que podem ser consumidos de • ção de massa? maneiras diferentes por grupossociais dife­ O programa de rádio do DJ Marlboro é rentes e que podem circular (até mesmo um caso à parte. Ele é transmitido diaria- internacionalmente) por caminhos pouco >50 ESnJOOS IDSTÓRlCOS·Im,.

convencionais, independentes dos grandes (o termo "nativo" para se referir aos vários meios de comunicação de massa. salões), trocando de ritmo musical de ma­ Nossa hipótesede trabalho (poispreten­ neira aleatória demos desenvolver outros estudos nessa Outrobom exemplo da segmentaçãodo área) é que, longe de buscar a homogenei- rádio carioca foi a recente "explosão da 7J!çAo de valores e a visão de mundo em lambada". Apesar de todos os canais de escalaplan etária, hoje a tendênciamais im­ televisão divulgarem exaustivamente a ? portantedo funcionamento da indústria cul­ "nova música e dança" e de terem sido tural é justamente uma tentativa de se abertas boates especiali7J!das em lambada adaptarà heletogeneidade de seus diversos por toda a cidade e para todos os tipos de públicos, segmentando-se ao extremo para público (do Banana Café ao Forro do Cate­ satisfazer gostos diferentes e para possibi­ te), a maioria das rádios cariocas recusou litar trocas culturais entre grupos bem de­ aderir aomodismo, alegando que seu públi­ terminados, sem precisar para isso lançar co nãogosta "desse tipo de ritmo". Precon­ mão de abstrações como "o gosto brasilei­ ceito? Ou estratégia de segmentação? ro" ou mesmo na preferência carioca". Por O mundo funk carioca poderia ainda isso, O fato de o programa de funJc do Dl fazer ressurgir a velha teoria do imperialis­ Marlboro ocupar o primeiro lugar das rá­ mo cultural norte-americano. Contra essa dios cariocasnão significa que "os cariocas interpretação levantaremos apenas dois estão gostando de funJc". &se índice quer pontos. Primeiro, é pouco provável que o direr apenas que um grupo numeroso de imperialismo ianque se interesse em impor cariocasgosta de funk, mas nadafala sobre a outrospovos um estilomusical que tantos .s as preferências musicais de outros milhões problemas lhe causa em seu país Segun­ de cariocas que podem nunca ter ouvido do: outros exemplos, fornecidos poroutras funkem suas vjdas. cidades brasileiras, podem nos mostrar que A tendência em direção à segmentação o parceiro dessas trocas interculturais de é evidente no rádio do Rio de Janeiro. Exis­ música não precisa ser necessariamente os tem emissoras que só tocam rock e house Estados Unidos. O caso da lambada teve (Rádio Cidade e Rádio Transamérica), início com a adoção, porparte de músicos existe uma emissora que só lOCa paraenses, de ritmos das antiJhas francesas (Rádio Tropical), a Rádio Globo e a Rádio (devidamente misturados com o carimbó Panorama pretendem atingir um público local). Em São Luís, Maranhão, existe um sofisticado (programando jazz, MPB "de circuito de bailes semelhante ao do funJc qualidade", rock "idem"), a FM 105 traba­ carioca onde só se escuta o reggaejamaica­ lhana linha brega (músicas românticas� até no. O reggae, mesmo sem ser divulgado mesmo cantores sertanejos), a Jornal do pelas gravadoras brasileiras (que lançam Brasil FM toca "música ambiente". Não é pouquíssimos discos do gênero) também possívelafumar que o público-alvo de uma faz enonne sucesso nas festas realizadas determinada rádio só escute aquele tipo de nos bairros mais pobres de Sal vador. Exis­ música. Um freqUentador de baile funk po­ te, então, um imperialismojamaicano? Ou detambém ir a shows de pagodeou de rock. um imperialismo antiJhano? Muitos bailes, tomando partido do ecletis­ Os exemplos, que não precisam ser ape­ 6 m0 musical de seu público, são divididos nasmusicais, se multiplicam ao sairmos do 9 em diversos ambientes: vários equipamen­ Brasil. Em Kinshasa, a capital dp Zaire, tos são montados em salõesdiferentes para existe uma comunidade de ponugueses (re­ tocarestilos musicais diferentes. Os dança­ fugiados da revolução angolana) que rece­ rinos circulam entre os vários "ambientes" be pelo correio, semanalmente,videocasse- FUNK E CULTURAPOPULAR CARIOCA 251

tes com a gravação dos últimos capítulos lnstitute of Technology) Commission on das telenovelasbrasileiras e dos mais recen­ Industrial Productivity (Comissão de Pr0- tes jogos de futebol realizados no Brasil. dutividadeIndustrial) decreta obsolescên­ a Nessa mesma cidade existe também um cia de todaprodução industrial de massa'· mercado negro de roupas assinadas pelos nomes mais famosos da vanguarda da alta "A prodUÇão de massa, que já foi um costura internacional. Alguns dos adoles­ poderoso motor de crescimento, agora centes mais pobres de Kinshasa, conheci­ enfraquece a indústriados EstadosUni­ dos como sapeurs organizam concursos dos. Num mundo competitivo onde os para saberquem é o mais bem-vestidoentre consumidores desejam produtos espe­ eles. Hoje, suas grifes preferidas são as cializados e de alta qualidade, asempre- japonesas Yojhi Yamamoto e Comme des sas norte-amencanas• precIsam• Garçons. recuperar as tradições de 'produção sob Essas trocasde produtos culturais entre encomenda" (citado na revista Tec/vw­ gruposque vivem em localidades distantes logy Review, de ago./sel. 1989). do planeta ficam facilitadas com o desen­ volvimento cada vez mais rápido dos trans­ Não se trata de acreditar ou não nesses portes e dos meios eletrônicos de diagnósticos-profecias, mas de constatar comunicação. Videocassetes, fax, antenas que a idéia da fragmentação (e não da im­ parabólicas, redes de comunicação por posição de um padrão de consumo comum computador: todas essas ferramentas, que a todos os públicos) já é uma espécie de estão a cada dia menores e mais baratas, lugar-comum, mesmo dentro dos altos es­ facilitam muito o acesso a informações de calões da indústria (cultural ou não). De todos os tipos, não mais filtradas pelos alguma maneira, essa idéia está ligada a meios de comunicação de massa,podendo, uma aceitação da complexidade (ver Velho portanto, atender às necessidades de cada & Viveiros de Castro, 1980:11-26) das so-· grupodiferente de consumidores. ciedades contemporâneas. Ou, radicalizan­ A comunicação de massa pode estar do esse conceito de complexidade, podería­ mesmo com seus dias contados. Pelo menos mos dizer que a indústria cultural parece essa é a opinião de Rupert Murdoch,um dos querer tomar partido de uma realidade so­ principais executivos da televisão mundial: cial totalmente descentralizada,isto é, sem um centro irradiador de valores e estilos de "Nós vimos nos anos 80 o que vai acon­ vida homogeneizantes. sem a "mão invisí­ tecer nos anos 90. Vai haver mais do vel" que dá coerência e sustentação à tota­ mesmo: fragmentação. (... ) As redes de lidade social. televisão serão as últimas mídias de Uma sociedade sem "centro", fragmen­ lO massa. Sua parcela no mercado está di­ lada, não pode ser pensada como uma minuindo e isso vai continuar. (... ) Já se mônade independente do resto do mundo e pode ver isso na revista Time,capaz de com fronteiras precisas separando aquilo publicar diferentes publicidades para di­ que eslá "dentro" daquilo que está "fora". 11 ferentes assinantes. As mídias vão ser Tudo pode ser "nosso" e do "outro" ao interativas" (depoimento dado à revista mesmo tempo. Nenhum fenômeno social é Forlune, 26 mar. 1990). "puro". A preocupação com a autenticida­ de, com a determinação do que é autêntico A profecia da fragmentação não atinge e do que não é (que está na base da criação apenas os meios eletrônicos de comunica­ da idéia de cultura popular), deixa de fazer ção. Um relatório da MlT (Massachuseus sentido. A separação entre os produtos da 252 ESruooslDSTÓRlCOS - 1990/6

indústria cultural, da cultma popular e da 4. Queremos deixarclaro aqui que nãovalo- "alta cultma" deixam de ter importância_ O rizamosmais a carioca, do que videoclipede Madonnarouba idéias visuais a "imitação"paulista. 5. Vamos generalinT facetas do comporta­ dos sWlcslistas do início do sécu­ mento de alguns grupos que compõem essa ju­ lo e acaba influenciando a música cerimo­ ventude. Reconhecemos que nem todos os nial (elétrica) dos ioru� na Nigéria_ jovens da clas� média carioca se comportam Por muito tempo, os antropólogos acre­ dessa maneira. ditaram (com argumentos muito parecidos 6. Um ecletismo tambémexistente, segundo com aqueles utilizados pela teoria Peter Burke, entre os leitores da Bibliothique tica da indústria cultural) que o mundo ca­ Bleue: "Nós precisamos lembrar tambémque a minha para a homogeneização definitiva_ Bibliotheque Bleue era somenteparte da cultura Porisso a pressa de estudar as outras cultu­ de, mesmo, os camponeses mais letrados. Seus valores podem ser conformistas,mas havia ou­ ras'antes que elas desapaIeçam, antes que trasmaneiras de expressar o protesto, dos versos tudo fique igual para sempre_ O estudo de satíricose charivaris contraos coletoresde taxas fenômenos como o mundo funk carioca até a revolta total" (Burke, 1981:221). mostra que novas diferenças podem ser 7. Que foi "descoberta;' pelos nossos meios criadasa qualquer momento, mesmo dentro • de comunicação de massadepois deuma década de uma realidade "controlada" pelas multi- de sucesso "de massa" no Norte e Nordeste do nacionais·do disco e da televisão_ Talvez país e principalmente depois de ter se transfor­ seja a hora de deixar de lado os preconceitos mado em sucesso "de massa" intercontinental, e a procura da pureza perdida_ PaIa isso, com auxHio do marketingde empresários fran­ ceses. Isso mostra como um aspecto da "cultura basta seguir o velho e bom conselho de popular brasileira", que já era uma apropriação Lévi-Strauss: "é preciso também estar de ritmos caribenhos, pode transformar-se em pronto para considerar sem surpresa, sem "cultura nacional" com a mediação da indústria repugnância e sem revolta o que essas no­ cultural européia. vas fOllnas sociais de expressão não pode­ 8. Vide asrecentes declarações racistas feitas rão deixar de oferecer de inusitado" por integrantes do Public Enemy, um grupo de (Lévi-Strauss, 1976:328-366). hip hop, ou as penalidades, por pornografia, aplicadas aos membrosda dupla Two Live Crew, o grupo preferido dos fu nkeiroscariocas. 9. Onde estivemos realizandoum programa de televisão chamado African Pop, que, foi Notas transmitido no Brasilpela Rede Manchete. 10. É importante deixar bem claro que a fragmentação não é produzida pela indústria 1. Os resultados dessa pesquisa estão publi­ cultural. Pelo contrário, a fragmentação é um cados no livro O mundofunk carioca (ver Vian­ processo social mais amplo que escapa ao <:on­ na, 1988). trole dessa indústriae ao qual os meios eletrôni­ 2. Nesses argumentosencontramos o eco das cos de comunicação sempre foram forçados a se seguintes palavras deRichard Hoggart no clás­ adaptar. sico The usesof literacy: "As velhas f011 nas da 11. Algumasdessas idéias podem ser aplica­ culturade classecorrem perigo de serem substi- das a outras sociedades que não a ocidental. . tuídas. por um tipo mais pobre de cultura sem Segundo Graham Townsley, está ficando rapi­ classe, oupor aquilo que descrevi. anteriormente damenteclaro nos estudos amazônicosque esta­ como sem face, e isto deve ser lamentado" remos interpretando mal a natureza desses . . . . , . (Hoggart, 1958:343). SIstemas SOCIaIS se contmuarmos com a SUPOSI- 3. Essas estratégias e outras características ção, declarada ou não, de que eles são grupos dos bailes funk foram descritas em detalhes no étnicos delimitados claramente ou sem "ambi­ livro O mundo funk carioca (Viarma, 1988). güidades" (Townsley, 1988:5). FUNK E CULTURAPOPULAR CARIOCA 253

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MAGNANI, José Guilhelllle C, 1981. "Cultura Bibliografia popular: rontrovérsias e perspectivas", BIB, n. 12. VELHO, Gilbetto& VIVEIROS DE CASTRO, S, Antônio Augusto. 1983. O que é Eduardo. 1980. ''O ronceito de cultura e o culturapopular. São Paulo, Brasiliense. estudo dassociedades romplexas". Espaço­ BURKE, Peter. 1981. 'The 'disrovery'of popu- Cadernosde Cultura USU, ano2, n. 2. lar culture", em SAMUEL, Raphael, (ed.), VIANNA, Hellllano. 1988. O mundo fu nk ca­ • People's history and socialist theory, Lon- rioca.Rio de Janeiro, Jorge Zahar. dono Routledge & Kegan Paul. TOWNSLEY,Graham. 1988. ldeasoforderand

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