As Lutas Pela Memória Da Escravidão E Os Discursos Dos Juristas* Ruy
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DOI: 10.5102/unijus.v26i2.3553 Ruy Barbosa e a queima dos arquivos: as lutas pela memória da escravidão e os discursos dos juristas* Ruy Barbosa and the burning of files: the struggles for the memory of slavery and the discourses of legal scholars Evandro Piza Duarte1 Resumo 2 Guilherme Scotti O presente artigo explora o incidente conhecido como “A Queima dos Ar- Menelick de Carvalho Netto3 quivos da Escravidão por Ruy Barbosa”. Todavia, não pretende estabelecer uma verdade sobre qual seria o autor da decisão que levou à queima das matrículas dos escravos. Ao invés disso, com base no debate surgido no julgamento do Habeas Corpus n° 82.424/RS do Supremo Tribunal Federal sobre a Imprescritibilidade do Crime de Racismo e da recente criação da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil pela OAB (2015), intenta compreender como os discursos sobre a escravidão se inserem na retórica dos juristas sobre as demandas por reconheci- mento dos negros (afrodescendentes). A importância desse debate decorre do fato de que as demandas por reconhecimento propõem, grosso modo, construções so- bre fatos no presente (recurso à apresentação empírica e à interpretação sociológi- ca) e no passado (recurso à historiografia e às interpretações sobre a constituição das relações raciais). O “episódio” sinaliza primeiro um problema estrutural das demandas dos negros: o modo como a historiografia oficial sobre a construção da nacionalidade inseriu sua presença e suas lutas por reconhecimento. Sinaliza tam- bém as razões pelas quais a ideia de “apagamento da memória” constitui-se como elemento decisivo dos padrões de desrespeito para com esse grupo. Palavras-chave: Racismo. Constituição. Escravidão. Ruy Barbosa. Queima de ar- quivos. História. Memória. Direto constitucional. Abstract This article explores the incident known as “The Burning of the Slavery Archives by Ruy Barbosa.” However, establishing the truth about who is the au- * Recebido em: 31/08/2015. thor of the decision which led to the burning of slaves enrollment documents is Aprovado em: 15/09/2015. not intended. Instead, from the debate that emerged in the Habeas Corpus deci- 1 Doutor em Direito, Estado e Consti- tuição pela Universidade de Brasília sion n ° 82.424/RS of the brazilian Supreme Court about the imprescriptibility of (UnB). Professor Adjunto de Direito the crime of racism and the recent creation of the Truth Commission for the Black Penal, Processo Penal e Criminologia Slavery in Brazil by the Brazilian Bar Association (2015), it tries to understand da Universidade de Brasília (UnB). Autor de Criminologia e Racismo. how the discourses about slavery fall into the rhetoric of lawyers on the demands Juruá, 2002. E-mail: evandropiza@ for recognition of black people (of African descent). The importance of this deba- gmail.com. te stems from the fact that demands for recognition propose, roughly, the recons- 2 Doutor em Direito, Estado e Consti- tuição pela Universidade de Brasília truction of present (use of empirical presentation and sociological interpretation) (UnB). Professor Adjunto de Teoria e and past (use of historiography and interpretations of the constitution of race Filosofia do Direito da Universidade relations ) facts. Firstly, the “episode” signals a structural problem of the demands de Brasília (UnB). E-mail: gscotti@ of black people: the ways official historiography on the construction of nationali- unb.br. 3 Doutor em Direito pela Universida- ty inserted their presence and their struggles for recognition. And, secondly, the de Federal de Minas Gerais (UFMG). reasons why the notion of “memory erasure” was established as a key element of Professor Associado de Direito the patterns of disrespect toward this group. Constitucional da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: menelickc- Keywords: Racism. Constitution. Slavery. Ruy Barbosa. File burning. History. [email protected]. Memory. Constitutional right. Evandro Piza Duarte, Guilherme Scotti, Menelick de Carvalho Netto 1 Introdução 2 Como lembramos: tradição negreira na histó- ria brasileira Este artigo explora o incidente conhecido como “A Queima dos Arquivos da Escravidão por Ruy Bar- Há algumas décadas, um livro compunha a estan- bosa”. Todavia, não pretende estabelecer uma verdade te de livros de muitas casas: Crestomatia Cívica: Uma só sobre qual seria o autor da decisão que levou à queima Pátria, Uma só Bandeira – O Brasil Novo e Seus Proble- das matrículas dos escravos. Ao invés disso, com base mas, por meio de excertos de escritores da atualidade, no debate surgido no julgamento do Habeas Corpus n° apresentado a consideração e carinho da juventude das 82.424/RS do Supremo Tribunal Federal sobre a impres- escolas”, editado, em Porto Alegre, pela Livraria do Glo- critibilidade do crime de racismo, intenta compreender bo, em 1938. Em texto intitulado “Os Escravos no Brasil”, como esse “fato” se insere na retórica dos juristas sobre lia-se o seguinte: as demandas por reconhecimento dos negros (afrodes- Não é nosso intento fazer a apologia da escravi- cendentes). dão, cujos horrores principalmente macularam o homem branco e sobre ele recaíram. Mas a es- A importância desse debate decorre do fato de cravidão no Brasil foi para os negros a reabilita- que as demandas por reconhecimento propõem, grosso ção deles próprios e trouxe para a descendência modo, construções sobre fatos no presente (recurso à deles uma pátria, a paz e a liberdade e outros bens que pais e fi lhos jamais lograriam gozar ou apresentação empírica e à interpretação sociológica) e no sequer entrever no seio bárbaro da África.5. passado (recurso à historiografi a e às interpretações sobre Esse pequeno trecho resume a primeira parte do a constituição das relações raciais). O “episódio” sinaliza problema abordado neste texto: o modo como a histo- primeiramente um problema estrutural das demandas riografi a dominante integrou simbolicamente a presença dos negros, o modo como a historiografi a ofi cial sobre a dos “negros” à sociedade brasileira, durante e após a es- construção da nacionalidade inseriu sua presença e suas cravidão. Quanto a isso, deveria ser sufi ciente a advertên- lutas por reconhecimento. Sinaliza também as razões pe- cia de Clóvis Moura para quem: las quais a ideia de “apagamento da memória” constitui- os estudos sobre o negro brasileiro, nos seus diver- -se como elemento decisivo dos padrões de desrespeito sos aspectos, têm sido mediados por preconceitos para com esse grupo4. acadêmicos, de um lado, comprometidos com uma pretensa imparcialidade científi ca, e, de ou- Nesse contexto, sugere-se que a retórica da “im- tro, por uma ideologia racista racionalizada, que possibilidade da memória” deve ser superada por inter- representa os resíduos da superestrutura escravis- ta, e, ao mesmo tempo, sua continuação [...]”6. pretação constitucional que reconhece o pluralismo da De fato, daquele trecho se infere elementos de Constituição como proposta de releitura dos direitos fun- uma ideologia em voga em períodos nacionalistas, na damentais, admitindo passado de uma sociedade molda- Ditadura Vargas e na Ditadura Militar de 19647, e que da a partir da escravidão, do colonialismo e do racismo, e subjazem (ou convivem amigavelmente) com o “mito da um presente de exclusões deles decorrentes. Portanto, em democracia racial”8: a) a escravidão era um mal africa- vez de um confi namento hermenêutico da Ordem Cons- no, logo foi a América que trouxe a liberdade aos negros; titucional da Cultura e do esquecimento dos dispositivos b) eles foram emancipados de suas sociedades bárbaras que tratam da presença dos negros em nossa história, im- e de sua própria natureza bárbara com a escravidão no põe-se ao intérprete a releitura dos direitos fundamentais Brasil; c) a incorporação à sociedade brasileira (apesar de com base nesse ponto estrutural da nossa trajetória cons- titucional. 5 TABORDA, Radagasio. Crestomatia cívica: uma só pátria, uma só bandeira! Porto Alegre: Livraria do Globo, 1938. p. 97. 6 MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988. p. 17. 7 CHAUÍ, Marilena de Sousa. Conformismo e resistência: as- 4 De fato, a preocupação com a memória e seus usos sociais pectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, fundamenta a criação da Comissão da Verdade da Escravi- 1986; CHAUÍ, Marilena de Sousa. Brasil: mito fundador e dão Negra no Brasil pela Ordem dos Advogados do Brasil sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abra- Universitas JUS, v. 26, n. 2, p. 23-39, 2015 26, n. 2, p. JUS, v. Universitas (2015) que representa oportunidade para refl exão sobre as mo, 2000. violações de direitos fundamentais reforçados por narrati- 8 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 24 vas históricas hegemônicas. São Paulo: Brasiliense, 1994. Ruy Barbosa e a queima dos arquivos: as lutas pela memória da escravidão e os discursos dos juristas forçada) foi o auge de uma expectativa de “destino” da nefícios secundários com sua escravidão (os fi lhos eleitos raça negra; d) ela lhes garantiu sua incorporação à pátria de Maria, segundo Padre Antônio Vieira, sofredores na ou à nação; e) de fato, quem efetivamente sofreu com a terra, mas purifi cados para o céu); b) os negros seriam as escravidão foram os brasileiros (brancos em geral), obri- vítimas de si mesmos, de suas incapacidades e, portan- gados a conviverem com a marca do atraso em suas rela- to, a ideia de guerra justa não necessitava se apoiar numa ções econômicas e não conseguiram desenvolver todo o reação concreta defensiva, bastando a condição de ser potencial; f) enfi m, a escravidão foi um mal para o Brasil negro para justifi cá-la11; desse modo, a existência de uma e para os próprios senhores de escravos, mas não foi um “culpa originária” e a necessidade de “emancipação de seu mal tão grande para os “bárbaros negros”. ser pela violência” compuseram o cerne das representa- A fonte mais remota dessa tradição negreira de ções negreiras sobre os “negros”. Não por acaso, Frantz representação dos negros na história “nacional” encon- Fanon12, em os “Condenados da Terra”, ao descrever as tra-se no que Henrique Dussel denunciou como o “Mito dimensões subjetivas da violência empreendida pelos da Modernidade”.