PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP

Carlos Pereira Gonçalves

CINEMA BRASILEIRO NA ESTRADA Identidade, Mitologia e Cultura Contemporânea no Gênero Road Movie (Anos 1990-2000)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2011 2

Carlos Pereira Gonçalves

CINEMA BRASILEIRO NA ESTRADA Identidade, Mitologia e Cultura Contemporânea no Gênero Road Movie (Anos 1990-2000)

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Ciências Sociais, área de concentração em Antropologia, sob a orientação da Profa. Doutora Silvia Helena Simões Borelli.

SÃO PAULO

2011 3

Banca Examinadora

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À queridíssima mãe, exemplo maior da minha vida 5

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora Profa. Silvinha, pelo entusiasmo por este trabalho de jornada tão longa. Muito obrigado pelo carinho e dedicação!

À minha namorada Adriana que me acompanhou com tanto amor e compreensão.

Aos meus irmãos, Sílvia e Sérgio, pelo carinho de sempre.

Aos professores da PUC, em especial, Edgard de Assis Carvalho e Carmen Junqueira, por tantos ensinamentos inesquecíveis.

Aos professores da minha banca de qualificação, Bernadette Lyra e Edmilson Felipe, obrigado pela recepção positiva do trabalho e orientações tão valiosas.

Aos colegas da PUC e UNISA, um abraço de agradecimento pela força e dicas sempre bem acolhidas.

À minha família, Cris, Regina, Dona Bárbara, Débora, primos e tios, quanta vibração positiva!

E a CAPES pelo apoio financeiro à pesquisa.

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RESUMO

Esta pesquisa analisou a significação social e cultural que o gênero narrativo road movie (filme de estrada) adquire na produção nacional Pós-Embrafilme (décadas de 1990-2000). O corpus da pesquisa compõe-se de 11 (onze) longas-metragens de ficção realizados nesse período, entre eles C entral do Brasil, O caminho das nuvens, Cinema, aspirinas e urubus . O trabalho enfatizou a compreensão da noção de cultura contemporânea, suas articulações com o imaginário social e simbólico - mitologia, identidade cultural e alegorias, assimilado e expresso pela narrativa, com a perspectiva do entendimento da dimensão histórica do espaço social no qual esse cinema é produzido. A tese utiliza-se, em sua estruturação, de uma abordagem teórica das ciências sociais e, conforme conceitos, análises e interpretações que se propõe a realizar, apoia-se também nas áreas de conhecimento da comunicação social, cinema, literatura e música, buscando, assim, uma metodologia interdisciplinar de estudo. O eixo teórico central do trabalho articula-se por meio de duas correntes: os Estudos Culturais Ingleses e Latino- Americanos e a Teoria da Complexidade. Os resultados da pesquisa confirmam a configuração estilística do gênero cinematográfico road movie na filmografia nacional, a despeito da sua condição numericamente pouco representativa, semelhante à verificada, em pesquisa exploratória, na produção mundial. O gênero narrativo estudado possui mediação histórica com a chamada hipermodernidade , na qual a figura estrada é um dos seus elementos-chave de significação simbólica; estes, articulados em valores, discursos e imagens como mobilidade social, individualidade, fragmentação e reordenação do tempo e espaço. Identificou-se uma característica abordagem ontológica nos filmes pesquisados, bem como uma marcante criticidade social. As análises também afirmam a pertinência da temática da identidade cultural em plena era de globalização econômica e mundialização da cultura.

Gênero filme de estrada; novo cinema brasileiro; identidade cultural; mitologia moderna; cultura contemporânea.

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ABSTRACT

This research has analyzed the social and cultural significance that the road movie narrative genre acquired in the Post-Embrafilme national production (between 1990 and 2000). The core of the research is composed of 11 (eleven) fiction motion pictures produced within this period, among them Central do Brasil, O Caminho das Nuvens, Cinema, aspirina e urubus. The paper has emphasized the understanding on the concept of contemporary culture, its articulations with the symbolic and social imaginary – mythology, cultural identity and allegories, assimilated and expressed by the narrative, considering the perspective of the understanding of the historic dimension of the social environment in which this cinema is produced. As to its structuring, the thesis utilizes a theoretical approach of social sciences and, according to concepts, analysis and interpretations that it aims to achieve, it also relies on the areas pertaining to social communication, cinema, literature and music, thus attempting an interdisciplinary approach of study. The central core of the theoretical work is presented in two main streams: Latin American and English Cultural Studies and the Complexity Theory. The results of the research have confirmed the stylistic configuration of the national road movie genre despite its numerical inferiority which was also verified in exploratory research in film production worldwide. The narrative genre which was studied possesses historic mediation with the so called “hypermodernity” in which the road figure is one of the key elements of symbolic significance: and these are articulate in values, speeches and images with social mobility, individuality, fragmentation and reordering of time and space. A characteristic ontological approach, as well as a remarkable social criticism, was identified in the films studied. The analysis also asserts the relevance of the theme of cultural identity in the era of economic and culture globalization.

The road movie genre; new Brazilian cinema; cultural identity; modern mythology; contemporary culture.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 11

PARTE I: O LUGAR E O TEMPO DE PARTIDA

1. O CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: CULTURA, MERCADO 22 E CARACTERÍSTICAS FICCIONAIS

1.1 Imagens do moderno, anos 1960-80: o nacional midiático, 23 a mundialização da cultura e a produção Embrafilme

1.2 A recomposição do campo cinematográfico e suas mediações com a 37 nova filmografia brasileira, anos 1990-2000

1.3 Apontamentos temáticos e narrativos do Novo Cinema Brasileiro 55

PARTE II: MAPAS E ENCOMENDAS: A PREPARAÇÃO

2. CULTURA E IDENTIDADE NO SÉCULO XXI: A POLIFONIA SOCIAL 71 DAS COMUNIDADES IMAGINADAS – O LOCAL, O NACIONAL E O GLOBAL

2.1 Identidades culturais em trânsito: em busca de uma definição 75 contemporânea do conceito

2.2 A revolução cultural e as novas identidades planetárias pós-1950 98

3. NA FLORESTA DA INDIVIDUALIDADE: A MITOLOGIA MODERNA E 105 O CINEMA DE ESTRADA

3.1 Narrativas da mitologia moderna 109

3.2 Itinerários do tempo: arquétipos e comportamentos míticos nos filmes 121 de viagem

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4. O GÊNERO ROAD-MOVIE : ORIGEM, FORMATO E FILMES DE 139 REFERÊNCIA

4.1 Breve história social do road movie no cinema norte-americano, anos 146 1930-2000

4.2 Definindo uma moderna tradição narrativa: o gênero filme de estrada 172 no cinema brasileiro, anos 1950-1980

PARTE III: RELATOS DA VIAGEM

5. A NOVA FILMOGRAFIA NACIONAL DE GÊNERO ROAD-MOVIE : 194 IMAGINÁRIO, MEDIAÇÕES COMUNICATIVAS E IDENTIDADE CULTURAL

5.1 O cinema brasileiro contemporâneo de estrada: autoria, enredos e 195 estruturas narrativas – anos 1990-2000

A década de 1990

5.1.1 A grande arte (Walter Salles, 1991) 200

5.1.2 Terra estrangeira (Walter Salles, 1995) 204

5.1.3 Os matadores (Beto Brant, 1997) 210

5.1.4 Central do Brasil (Walter Salles, 1998) 213

A década de 2000

5.1.5 Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2003) 224

5.1.6 O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003) 228

5.1.7 Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003). 232

5.1.8 Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004) 237

5.1.9 Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005) 244

5.1.10 Árido movie (Lírio Ferreira, 2006) 249

5.1.11 O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006) 257

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5.2 À escuta dos sons e da poesia do lugar: as trilhas sonoras da 260 filmografia brasileira road movie

Viagem ao centro do sertão e outras paragens

5.2.1 Caminhos cruzados 266

5.2.2 O luar acústico e eletrônico do sertão 271

5.2.3 Distante, tão perto 276

5.2.4 Pedras verdes de agreste e mar 279

As duas margens do São Francisco

5.2.5 Nascentes à esquerda 286

5.2.6 Uma trilha de nuvens, cabelos e rosas 294

5.2.7 Matizes do Brasil popular 301

Fronteiras

5.2.8 O estrangeiro 308

5.2.9 Exílios de mar e terra 313

5.2.10 Caminhos mestiços do interior 315

5.2.11 Nuestro otro lado del rio 321

5.3 Mitos, identidades e alegorias: o imaginário social e simbólico no 328 cinema brasileiro de estrada – anos 1990-2000

5.3.1 O sopro-engenho do deslocamento 328

5.3.2 Chão e céu, água e terra: encantamento e realidade 336 nas narrativas de estrada

5.3.3 O ser e o lugar deslocado: as alegorias da filmografia brasileira 348 road movie - 1990-2000

CONSIDERAÇÕES FINAIS 364

REFERÊNCIAS 373

ANEXOS 396

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O mito é o nada que é tudo O mesmo sol que abre os céus É um mito brilhante e mudo - O corpo morto de Deus Vivo e desnudo Mensagem, Ulisses, Fernando Pessoa

e começo aqui e meço aqui este começo e remeço e arremesso e aqui me meço quando se vive sob a espécie da viagem o que importa não é a viagem mas o começo da por isso meço por isso começo escrever ... Galáxias, Haroldo de Campos

Confira Tudo que respira Conspira Caprichos e Relaxos, Paulo Leminski

INTRODUÇÃO

As imagens do mar aparecem revoltas por aventura, temor, perda e liberdade. Ao som de uma gaita escocesa e de tambores, o personagem de função tutor no filme começa a contar à sua aluna adolescente, em inglês, a história de vida de Carlota Joaquina, da passagem de infanta espanhola a rainha de Portugal.

Esse narrador onisciente marca o ponto de vista pelo qual se organiza a trama do filme Carlota Joaquina , Princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati: olhar de estranhamento, ironia, humor e proximidade. A exposição inicial, de tom quase solene, ganha logo os contornos nítidos de narrativa cômica, estilo dominante nessa leitura sobre um dos momentos fundamentais da formação do país: a vinda da família real ao Brasil.

Esse filme representa um marco na receptividade de público para a nova fase do cinema nacional (anos 1990-2000), fase esta que a mídia impressa e os pesquisadores acadêmicos nomearam de Cinema da Retomada, Novo Cinema Brasileiro, Cinema Brasileiro Contemporâneo ou produção Pós-Embrafilme. Essa película, primeiro longa-metragem de Carla Camurati, atingiu 1.286 mil espectadores (1995) – desempenho de bilheteria único no período, caracterizado pela baixa produção do setor, ocorrida nos anos que se seguiram à extinção da Embrafilme (1990), principal entidade de fomento e de distribuição do cinema nacional nas décadas de 1970-80. 12

Terra Estrangeira (1995), de Daniela Thomas e Walter Salles, outro representante emblemático da fase inaugural do chamado Novo Cinema Brasileiro, primeira e segunda experiência em longa-metragem, respectivamente, desses cineastas, também alude à questão de nossa identidade cultural , utilizando-se igualmente da referência histórica, porém, a partir de outros registros narrativos.

Nele, a história recente do país, a curta fase do governo Fernando Collor de Mello (1990-92), é apresentada por meio de uma narrativa híbrida composta pelos gêneros melodrama, policial e road movie . O filme tem como tema central as condições sociais dos migrantes brasileiros na Europa, fruto do deslocamento impulsionado pelo agravamento da crise econômica no Brasil, ocorrida a partir do final da década de 80 e acirrada com o insucesso do plano de controle de inflação de Collor.

As imagens do mar e da estrada aparecem, nesse filme, com marcante importância simbólica, remetendo tanto a questões existenciais dos protagonistas como a valores contemporâneos de nossa identidade cultural. Um mar que separa geograficamente dois territórios políticos e culturais: Portugal e Brasil. O primeiro, a Terra Estrangeira , que rejeita, na ficção, seus exilados próximos; o segundo, o Brasil, que nega aos protagonistas as condições mínimas de subsistência estimulando o seu périplo.

Trata-se de uma viagem a um dos territórios de origem que acaba em um fim trágico para os personagens principais do filme. Atravessando a cancela da linha fronteiriça em alta velocidade, o protagonista Paco (Fernando Alves Pinto) morre ao lado de Alex (Fernanda Torres), outra figura central do longa- metragem, no interior do veículo. Nesta penúltima sequência-chave para o desfecho do filme, vê-se o automóvel correndo pela estrada, num plano aéreo, e ouve-se a música Vapor barato , de Macalé e Waly Salomão, cantada por Alex, seguida da adição da interpretação emocionante de Gal Costa.

A estrada, aqui, espelha duas leituras sobre a questão da identidade cultural: o ethos da juventude rebelde pós-anos 1960 e a questão da identidade nacional. 13

Na mencionada penúltima sequência do filme, a letra da música Vapor barato retrata o famoso píer erguido na praia de Ipanema nos anos 1970 e o universo de valores de contracultura desse lugar, considerado um dos prediletos dos jovens cariocas da chamada geração desbunde : “[...] Com minhas calças vermelhas, meu casaco de general, cheio de anéis, vou descendo por todas as ruas e vou tomar aquele velho navio [...]”.

Os protagonistas do filme, Paco e Alex, não são necessariamente jovens rebeldes. Mas essa canção nostálgica de um certo período do Brasil, em que certa parcela da juventude vivia ainda uma aura de rebeldia e de utopia delineada nos acontecimentos culturais dos anos 1960 (movimento hippie, feminismo, liberalismo nos costumes, etc.), geração contemporânea aos diretores, reflete ainda a inquietação política destes com a crise social e econômica da passagem das décadas 1980 e 1990.

Como se pode perceber nestes dois filmes representantes da primeira fase da produção Pós-Embrafilme – Carlota Joaquina e Terra Estrangeira –, apesar das diferenças de narrativas cinematográficas e propostas temáticas, a figura do mar e da estrada representam, simbolicamente, o processo existencial e antropológico da viagem, modo de descoberta ou reencontro com o “outro”, ou de autoconhecimento, não obstante as motivações arbitrárias de viagem para os protagonistas de ambos os filmes.

Segundo a pesquisadora do cinema brasileiro contemporâneo Lúcia Nagib (2002), apesar da diversidade de temas e estilos adotados pelos novos e veteranos diretores responsáveis por esse recente ciclo do cinema brasileiro, observam-se algumas características em comum. Os temas adotados demonstram uma nítida busca de uma identidade nacional/cultural por parte de seus realizadores; politicamente, afastam-se de um cinema de questionamento contundente às estruturas sociais; e, formalmente, mostram-se amplamente adeptos da narratividade, ou seja, do chamado cinema de gênero.

Na mesma direção de apontamentos, o crítico de cinema Luiz Zanin Oricchio (2003) afirma que o Cinema da Retomada dá continuidade ao projeto 14 cinemanovista de construção de uma identidade nacional, evidentemente, sem o mesmo caráter revolucionário característico da ideologia e das práticas políticas dos anos 1960. No âmbito da linguagem, o autor observa que a filmografia dos anos 1990/2000 articula uma hibridização entre as linguagens do cinema, televisão e publicidade, disseminando, assim, um novo imaginário audiovisual.

Mas por que essa busca da identidade cultural torna-se recorrente na nova filmografia brasileira? Como esse processo se desenvolve, tendo em vista o contexto das transformações socioeconômicas em andamento no país, na esfera da globalização e hipermodernidade, que se movimentam na direção da cultura-mundo? Esses são alguns dos questionamentos que nortearam a elaboração da presente tese de doutorado.

Desenvolvimento do tema

Rememorando os primeiros passos de concepção da presente tese, concentrada no estudo da significação social e cultural que o gênero cinematográfico road movie (filme de estrada) adquire nos longas-metragens realizados por diretores brasileiros após a extinção da Embrafilme (ano de 1990), observa-se que parte da motivação do tema nasce durante a elaboração do mestrado deste autor, realizada na virada dos anos 2000.

A pesquisa denominada Cinema brasileiro, anos 90: recepção, mediações e consumo cultural dos paulistanos (2001), sob orientação da Profa. Dra. Silvia Helena Borelli, apropriou-se da discussão teórica das mediações - desenvolvida por Jésus Martín-Barbero (1997), que se especializou no estudo de recepção do meio televisão -, adequando-a ao campo do cinema e, assim, concebendo uma proposta metodológica peculiar que levou em consideração as características de estruturação econômica e social desse mercado de bens simbólicos.

O filme de referência para pesquisa foi O primeiro dia (1999), de Walter Sales e Daniela Thomas. Nele, conforme a proposta de Martín-Barbero de articulação 15 comunicativa entre produção e recepção, realizou-se uma análise de fundamentação da obra desses diretores, recorte denominado, no trabalho, de Mediações gêneros ficcionais , que, na época, dizia respeito aos filmes A grande arte (1991), Terra estrangeira (1995) e Central do Brasil (1997) .

Apesar de o filme pesquisado - O primeiro dia – se tratar um drama social, narrando o universo urbano da cidade do , identificou-se, no referido estudo preliminar das narrativas da obra dos diretores, o gênero de estrada . Criou-se, assim, um dos primeiros elos entre a concepção do tema e a tese, apesar da não-intenção, à época, de elaborar trabalho acadêmico sobre o assunto.

Nesse estudo preliminar do gênero, a partir da obra de Walter Salles em especial, foi observada a influência do diretor Wim Wenders. Personagens em crise de identidade e sua visão humanista de mundo ficaram retidas nesse inventário como características do diretor alemão no obra do brasileiro. Além disso, a referência do diretor alemão acionava uma memória afetiva geracional, compartilhada, também, por parte do presente autor da tese, reavivando a recepção de filmes contemporâneos muito significativos como o road movie Paris, Texas (1984) ou o poético Asas do desejo (1987).

Na primeira versão do projeto de pesquisa da tese, em 2005, propunha-se um estudo do cinema brasileiro contemporâneo, anos 1990-2000, em continuidade do período histórico e área de pesquisa iniciada no mestrado, porém, agora, focada na análise de produção, como ponto de partida da pesquisa. Nesse projeto, colocava-se a proposta de trabalho com foco no recorte identidade cultural. E nele as perguntas, os problemas de pesquisa, mencionados anteriormente, a respeito da reflexão do tempo e espaço contemporâneo e do entendimento da cultura brasileira nesse contexto.

Tendo em vista a amplitude da filmografia no período, a produção Pós- Embrafilme, que compreendia, à época da concepção final da proposta de pesquisa da tese (2007), mais de 300 longas-metragens realizados – 1990- 16

2007, passou-se a pensar em outro recorte que pudesse dar cabo dos problemas elaborados sobre identidade cultural na primeira versão de projeto.

E dessa busca de definição de corpus de pesquisa em uma dimensão viável, com foco na investigação do conceito identidade cultural, somada ao conhecimento dos estudos de gêneros cinematográficos iniciado no mestrado, resolveu-se firmar a pesquisa na narrativa filme de estrada. A safra de filmes de estrada esteticamente interessantes lançados naquele período, como Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), Árido movie (Lírio Ferreira, 2006), O céu de Suely (Karim Ainouz, 2006), também colaboraram para essa escolha.

A questão da mitologia e do estudo do imaginário simbólico por meio de outras representações do mundo social foi consequência do desenvolvimento do trabalho. Em especial, quanto ao estudo dos mitos tradicionais e modernos, cabe destacar a importância da disciplina realizada no doutorado sob responsabilidade da antropóloga Carmem Junqueira, focando tal abordagem. Encerrei a atividade, realizando paper que levantava a hipótese da leitura de temas e comportamentos míticos no cinema, especialmente, na narrativa r oad movie. Tal apontamento foi incorporado, assim, ao protocolo metodológico da presente pesquisa.

Objetivos, corpus de pesquisa e abordagem teórica

Esta pesquisa tem como objetivo principal analisar a significação social e cultural que o gênero narrativo road movie (filme de estrada) adquire na produção Pós-Embrafilme, que tem sido denominada de Cinema da Retomada ou Novo Cinema Brasileiro (décadas de 1990-2000).

O trabalho enfatizou a compreensão da noção de cultura contemporânea, suas articulações com o imaginário social e simbólico, especialmente abordando mitologia, identidade cultural e alegorias, expressas nos temas sociais e valores etnográficos e assimiladas pela materialidade narrativa – enredo, 17 composição de imagens e sonoridades – com a perspectiva do entendimento da dimensão histórica do espaço social no qual esse cinema é produzido.

Para alcançar tal objetivo, outros específicos colocaram-se necessários:

• Pesquisar a origem e formação do gênero road movie , seus principais autores - estrangeiros e brasileiros -, sua história social e cultural de relevo, para delimitar um modelo de análise de caráter sociológico e antropológico para a narrativa;

• Investigar os principais temas e gêneros ficcionais que caracterizam o Novo Cinema Brasileiro produzido na última e na atual década, a fim de apoiar a elaboração de roteiro de leitura dos filmes road movie selecionados e estabelecer conexões analíticas entre estes e seu universo;

• Analisar a recente filmografia brasileira no âmbito das transformações sociais e culturais em andamento no país, que dizem respeito às questões teóricas emergentes nos estudos das ciências sociais voltados à pesquisa dos meios de comunicação, tais como modernidade, hipermodernidade/modernidade líquida e globalização.

O corpus principal da pesquisa compõe-se de 11 (onze) longas-metragens de ficção realizados nesse período, quais sejam:

• Década de 1990: A grande arte (Walter Salles, 1991); Terra estrangeira (Walter Salles, 1995); Os matadores (Beto Brant, 1997) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998).

• Década de 2000 (até o ano 2008): Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2003); O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003); Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003); Diários de motocicleta (Walter Salles, 18

2005); Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005); Árido movie (Lírio Ferreira, 2006); O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006).

Esse rol de filmes foi levantado durante o processo de análise da filmografia de longas-metragens de ficção Pós-Embrafilme, ao longo do percurso de preparação do trabalho (2005-8), com base em dados oficiais de produção disponibilizados pela Agência Nacional do Cinema (ANCINE) e pelo banco de dados da Cinemateca Brasileira. Eventuais filmes foram incorporados no período de redação da tese (2009-11), conforme ajustes dos critérios estabelecidos para definição e reconhecimento da narrativa nessa filmografia.

A tese insere-se no campo de conhecimento das ciências sociais – sociologia da cultura e antropologia cultural e urbana – e, conforme conceitos, análises e interpretações que se propõe a realizar a partir do corpus de pesquisa, apoia- se também das áreas epistemológicas da comunicação social, cinema, literatura e música, buscando, assim, uma metodologia interdisciplinar de estudo. O eixo teórico central do trabalho articula-se por meio de duas correntes: os Estudos Culturais Ingleses e Latino-Americanos (Williams, Hall, Martín-Barbero, García Canclini e Ortiz) e a Teoria da Complexidade (Morin).

O elo epistemológico entre essas escolas, tratado na estruturação do desenvolvimento da tese, diz respeito a dois aspectos metodológicos convergentes. O primeiro, o caráter interdisciplinar recorrente nos estudos voltados aos meios massivos, objeto predominante destas linhas de pesquisa (no caso de Morin, notadamente na primeira fase de sua obra) com ênfase na leitura da história, sociologia e antropologia.

Mesmo autores vindos do campo da literatura, como Raymond Williams, ou de trajetória intelectual iniciada na filosofia e semiótica, como Jésus Martín- Barbero, partem para análises da comunicação e da sociedade a partir de crivo crítico, numa abordagem de base do materialismo histórico marxista de desdobramento heterodoxo, como o conceito de hegemonia elaborado por Antônio Gramsci, e conforme os paradigmas da nova esquerda elaborados na segunda metade do século XX. 19

O segundo elo diz respeito à valorização da análise do imaginário social e simbólico, perspectiva de análise receptiva nos Estudos Culturais, porém mais central na obra de Edgar Morin, nas duas fases de sua obra, que se inicia a partir do seu trabalho sobre o imaginário do cinema e da produção massiva, desenvolvido nos anos 1950-1970, construindo um inventário próprio da mitologia moderna. Essa chave de valorização do universo simbólico apropriado na cultura contemporânea continuará sendo uma perspectiva importante para ele, dentro da construção da teoria da complexidade, de articulação de saberes múltiplos, arquitetada na obra O método . Essa fase foi iniciada nos anos 1970, na qual o pesquisador continua perseguindo a tese do pensamento duplo , concebida na primeira fase de sua obra, numa clave de entendimento do homem e sua produção cultural e social.

O pensamento humano é definido como complexo, na medida em que se articula entre o simbólico/mitológico/mágico e o empírico/técnico/racional, caracterizando, assim, o conhecimento humano a partir da análise de diversos períodos históricos e de sociedades tradicionais ou primitivas ou modernas, em que as duas naturezas do saber são, ao mesmo tempo, o uno e o duplo. É essa articulação que justifica, na tese, o estudo da mitologia e as análises de articulação entre o universo tradicional dos mitos e do mundo contemporâneo.

Se a imagem, no pensamento empírico/racional, é representada como imagem da realidade, no pensamento simbólico/mitológico, apresenta-se como realidade da imagem. No primeiro caso, a dominância da disjunção, isolamento e tratamento dos objetos e forte controle empírico exterior; no segundo, a conjunção entre real e imaginário, das relações sociais comunitárias e o forte controle do vivido no interior. Para nossa sorte, o pensamento simbólico e mitológico continua vivo e influenciando a trajetória humana em pleno século XXI, mobilizando seu potencial criativo. Firma-se, nessa trajetória, a visão de otimismo complexo defendida por Morin, que articula uma ética e a vontade de transformação social e política do mundo, notadamente quando este se mostra demais preso à sua irracionalidade tecnicista e destruidora da diversidade ecológica e cultural do planeta.

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É, portanto, com Edgar Morin que articulo, no trabalho, e justifico teoricamente, dentro do campo das ciências sociais, a interpretação do imaginário simbólico, o mosaico de estudos mais amplo a que se propõe a presente tese, tendo em vista os recortes principais de relevo – mitologia, identidade cultural e alegoria –, utilizando-se de autores de campos de conhecimento e vertentes variadas como Mircea Eliade, Joseph Campbell, Carl Gustav Jung, Gaston Bachelard, Jacques Le Goff, Paul Ricouer, Walter Benjamin, entre outros.

Assim sendo, com base nas duas correntes teóricas – Estudos Culturais e Complexidade –, metodologicamente, o presente trabalho propõe-se a analisar os sistemas complexos de mediação social e histórica que se articulam a partir da materialidade social e nas representações simbólicas da cultura contemporânea. Tal conexão é articulada nas análises e interpretações do objeto de pesquisa – a produção do cinema de filmes brasileiros inseridos no gênero filme de estrada –, com recorte no período dos anos 1990-2000, enfatizando a narratividade expressa nos enredos, composições de imagens e sonoridades dessa filmografia.

Estruturação do trabalho

O trabalho foi organizado em três partes que articulam cinco grandes capítulos. A primeira parte: O lugar e o tempo de partida engloba o capítulo 1 – O cinema brasileiro contemporâneo: cultura, mercado e características ficcionais , no qual são estabelecidas análises preliminares do ciclo de cinema de referência neste estudo, a fase chamada, pelos pesquisadores do campo, de Pós-Embrafilme, Cinema da Retomada ou Novo Cinema Brasileiro.

Alem disso, comentam-se, nessa parte, as articulações históricas e sociais do período, a saber, o início mais definido do processo de globalização econômica no Brasil, estruturado em outras partes do mundo na década de 1980 (Europa, EUA, Japão e Tigres Asiáticos), as articulações entre localismo e mundialização da cultura nesse processo, e sistema social contemporâneo, enfim, o ambiente histórico chamado de modernidade líquida (Bauman) ou 21 hipermodernidade (Lipovetsky) com o qual os filmes de estrada pesquisados dialogam intensamente.

A parte II: Mapas e encomendas: a preparação – trata-se da parte teórica nuclear da tese. Compõe-se de três capítulos que abordam três conceitos ou recortes de pesquisa fundamentais no trabalho, ou seja, identidade cultural, mitologia e gênero narrativo road movie (filme de estrada). Os capítulos que incorrem, respectivamente, nessas análises são: Capítulo 2 - Cultura e identidade no século XXI: a polifonia social das comunidades imaginadas – o local, nacional e global ; Capítulo 3 - Na floresta da individualidade: a mitologia moderna e o cinema de estrada ; e o Capítulo 4 - O gênero road movie: origem, formato e filmes de referência.

A parte III: Relatos da viagem , a despeito de registrar apenas um capítulo, o quinto, nomeado - A nova filmografia nacional de gênero road-movie: imaginário, mediações comunicativas e identidade cultural -, compreende a parte mais extensa, comparativamente às outras, uma vez que apresenta as análises e interpretações dos 11 (onze) longas-metragens em foco na tese.

Os subtítulos são 5.1 – O cinema brasileiro contemporâneo de estrada: autoria, enredos e estruturas narrativas – anos 1990-2000 ; 5.2 - À escuta dos sons e da poesia do lugar: as trilhas sonoras da filmografia brasileira road movie ; e 5.3 Mitos, identidades e alegorias: o imaginário social e simbólico no cinema brasileiro de estrada – anos 1990-2000.

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1. O CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO: CULTURA, MERCADO E CARACTERÍSTICAS FICCIONAIS

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1.1. Imagens do moderno, anos 1960-80: o nacional midiático, a mundialização da cultura e a produção Embrafilme

Oficialmente, as filmagens do mar e da orla do Rio de Janeiro, realizadas pelo italiano Affonso Segreto, em 19 de junho de 1898 – Uma vista da baia da Guanabara –, constituem-se nas imagens de iniciação dessa longa viagem do cinema brasileiro, percorrida nas ondas de inúmeros ciclos, crises e retomadas e que dialoga permanentemente com o desigual processo de modernização do país durante o século XX.

Um país nasce com as imagens do cinema. Do movimento geograficamente disperso dos chamados ciclos regionais das primeiras décadas (1910-30) ao esboço de seu projeto nacional, em que imperam inicialmente duas contingências locais (1940-50): o cinema carioca das comédias musicais, com destaque para a vertente denominada chanchada, da produtora Atlântida, cujo sucesso comercial está associado a Luiz Severiano Ribeiro, então dono do maior circuito exibidor brasileiro e futuro proprietário desta (AUGUSTO, 1989), e o cinema paulista de arquitetura industrial , da Vera Cruz (GALVÃO, 1981) .

Duas filmografias criadas na concepção do cinema popular e na perspectiva de atingirem o mercado e a recepção nacional. Há um imaginário midiático de identidade brasileira em gestação, iniciado pelo rádio, com o qual tanto a Atlântida quanto a Vera Cruz passam a dialogar intensamente, e que será consolidado posteriormente com a televisão, sobretudo a partir da década de 1960. Uma modernidade de tom latino-americano fortemente mediada pela tradição cultural popular (ORTIZ, 1985, 1988; MARTÍN-BARBERO, 1997 e GARCÍA CANCLINI, 1990).

Essa comunidade de identidade nacional é construída ao longo do século XX, de modo intencional pelo Estado, por meio de seus mecanismos tradicionais – escola, burocracia, rituais simbólicos e discursos (hino, bandeira, soberania, etc.) –, passando pelo ideário moderno dos agentes industriais e comerciais emergentes do período e sedimentada, especialmente, pelos meios massivos, cuja primeira experiência ideológica na relação Estado/meios de discurso 24 nacional é estruturada de modo estratégico durante o governo Getúlio Vargas, 1930-45 (ANDERSON, 2008; ORTIZ, 1988).

No final dos anos 1950, a identidade nacional elaborada no cinema produzido no país ganha novas perspectivas sociais e políticas: nasce a filmografia cinematovista, notabilizada por diretores como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues e Glauber Rocha, e vinculada ao realismo crítico e de forte influência marxista (BERNADET, 1978; AVELLAR, 1986; XAVIER, 1993).

Os tipos sociais retratados pelo cinema nacional ganham uma exposição ficcional e buscam uma interpretação que adentra na crítica direta ao modelo de desenvolvimento social do país. Não se pode esquecer que tal tema é pauta de circulação mais ampla na sociedade brasileira do período, evidenciando-se em metas e ações dos governos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) ou João Goulart (1961-1964), não obstante, diga-se de passagem, por meio de perspectivas políticas bastante diferenciadas (FAUSTO, 1995).

Esse vetor ideário de crítica social, emergente no país ao longo das décadas de 1950-60, inseriu-se ao contexto mundial da Guerra Fria, pós-Segunda Guerra Mundial, que confrontou os impérios políticos e econômicos dos EUA e da antiga URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (HOBSBAWM, 1995), o então chamado, de modo cristalino, mundo capitalista versus socialista/comunista.

Tal momento histórico é retratado no filme de estrada Diários de motocicleta (2004), de Walter Salles. Ele narra a viagem de iniciação, em 1952, do então estudante de medicina argentino Ernesto Guevara de la Serna (Gael García Bernal), futuro líder revolucionário latino-americano a ser conhecido como Che Guevara, realizada com seu amigo Alberto Granado (Rodrigo de la Serna), por vários países da América do Sul. Descobrem uma geografia continental, em paragens de região Andina e Amazônica, mergulhada na pobreza, mundo esse distante do cotidiano de classe média vivenciado por ambos na próspera Buenos Aires de meados do século passado. 25

Imagem 1: Diários de motocicleta (Walter Salles , 2004)

Retomando a análise das transformações da Indústria Cultural nacional do período, ressalta-se que os dois referidos elementos característicos de formação da cultura moderna brasileira, a expressiva contribuição da tradição popular e o desnível acentuado entre classes socioeconômicas , atravessarão também a fase de sua consolidação a partir dos anos 1960-70. Trata-se de uma modernidade nascida de longo processo latino-americano de hibridação cultural (GARCÍA CANCLINI, 2000), compondo o contraditório arranjo social de uma aberta mestiçagem étnica, ao lado da condição econômica díspar, de injusta distribuição de renda, entre grupos e classes sociais (RIBEIRO, 2001),

Desse modo, nota-se que a evolução dos meios massivos no Brasil contribui para criar um imaginário social moderno próprio, resultando na construção da narrativa do nacional e outras representações de mentalidade, na convivência simultânea do mundo arcaico e moderno – nosso moderno tropical. E vão elaborar configurações de produção cultural advindas de demandas desses grupos e classes sociais diversos, com posicionamento antagônico em termos de relações de poder e base econômica, porém, consumidos, compartilhados, muitas vezes, em igual espaço de apropriação, consumo.

Pormenorizando um pouco mais essa leitura da polêmica questão da mobilidade social e da apropriação cultural em nosso país, verifica-se que a característica expressão oral das práticas culturais das camadas baixas é fato na afirmação, legitimidade, da música brasileira como manifestação artística de maior identidade nacional, ao longo do século XX, apresentando uma condição 26 de recepção notadamente interclasse. Tal enunciação da oralidade popular pode ser constatada, ainda, em formatos midiáticos de grande audiência, como os programas de auditório de rádio e as telenovelas.

Por outro lado, a criticidade do mundo letrado - das classes média e alta (ressalta-se, estamos analisando o Brasil de meados do século XX), provenientes da escola, do consumo dos jornais e livros, em sintonia com o arco planetário de ideias e projetos de embate político contestatório como o comunismo e socialismo, e dos, então, embrionários movimentos sociais -, ecológico, feminista, das minorias sexuais, entre outros, acaba por mediar, ainda, a produção cultural massiva, cujo ideário pode ser reconhecido com clareza na produção musical do tropicalismo ou no cinema novo .

O nacional político cinemanovista e a mundialização pop dos anos 1960

Diferentemente das chanchadas e da produção da Vera Cruz, a produção cinematovista , firmada na década de 1960, mostra-se bastante envolvida, conforme mencionado acima, com certas demandas sociais, culturais e políticas que apontam para o aumento geral da escolaridade, da ampliação expressiva do meio universitário e da influência da mentalidade de esquerda, articulado por partidos e movimentos culturais.

Surge fortemente politizada e experimental em termos de proposta de linguagem, em comunhão com as vanguardas cinematográficas da Europa – nouvelle vague francesa e o neo-realismo Italiano –, vinculando-se ao universo cultural de classe média com a qual dialoga também em termos de público, o de mesmo capital social e cultural, apesar de sua proposta de cinema de consciência “de” e “para” as massas.

Tem-se, aqui, uma proposta cultural popular-nacional que tem duas vertentes politicamente opostas: a de esquerda , do Cinema Novo, da produção do Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, e de outras manifestações artísticas politizadas do país – música, teatro, literatura e artes plásticas – e a de direita ou liberal , aderente ao projeto de desenvolvimentismo conservador e autoritário 27 do regime militar (1964-1985). Tendo em vista o claro posicionamento de cinema político, de esquerda, e a qualidade estética de boa parte da produção cinematovista , ressalta-se que esta será, a partir de então, referência obrigatória de toda produção de cinema brasileiro posterior que enseja uma abordagem de crítica social.

Imagem 2: Árido movie (Lírio Ferreira , 2006).

Da safra recente, a marcante abordagem humanista desenvolvida nos filmes brasileiros de estrada dos anos 1990-2000, uma das suas características mais evidentes, ora irão traçar propostas de aproximação de ideário, ora serão ponto de partida para revisão de parâmetros políticos e culturais como ocorre nos longas-metragens O céu de Suely (Karim Ainouz; 2006) ou Árido movie (Liro Ferreira; 2006).

A marcante abordagem humanista desenvolvida nos filmes brasileiros de estrada dos anos 1990-2000, uma das características mais evidentes da safra recente, ora irá traçar propostas de aproximação de ideário, ora será ponto de partida para revisão de parâmetros políticos e culturais como ocorre nos longas-metragens O céu de Suely (Karim Ainouz; 2006) ou Árido movie (Liro Ferreira; 2006).

Ao final dos anos 1960, surgem mais duas filmografias que dão o tom de modernização e matizam o imaginário cultural produzido e mediado pelo meio, influenciando, assim, o cinema contemporâneo das próximas décadas: o cinema marginal – elaborado pelos diretores Rogério Sganzerla, Julio Bressane, João Silvério Trevisan, Ozualdo Candeias, entre outros (MIRANDA, 28

1990; JAIRO, 2000) –, que obteve circulação restrita, e o cinema juvenil-pop de massa , protagonizado por Roberto Carlos (RAMOS, 1995).

O cinema marginal , dialogando com a filmografia europeia, sobretudo da nouvelle vague francesa, e o cinema juvenil-pop , com os programas musicais de televisão, ambos captam, em comum, as transformações da cultura urbana no Brasil do período. Além disso são influenciados também pelo aumento da distribuição e recepção global da indústria de bens simbólicos norte-americana ao longo da década, notadamente cinema e música – esta representada pelos, então, novos gêneros rock e pop – o que ajuda a estabelecer um padrão planetário de cultura jovem a partir desse momento . Vale resgatar que essa produção massiva é marcada, à época, pelos movimentos de posicionamento contracultural que percorrem o mundo: hippie, feminista, homossexual, etc.

O cinema marginal e o cinema juvenil-pop de massa dos anos 1960, inseridos em universos sociais distintos, são exemplos, portanto, de uma tendência de mundialização da cultura (Ortiz), que se torna muito visível nas décadas seguintes no país e que pode ser percebida em outros meios massivos, criando, assim, um novo modo de vida de cultura cosmopolita a ser compartilhado com outras formas de estilo de vida mais tradicionais ou de pertença nacional, dando o diverso tom da modernização cultural em processo.

Com o acirramento da ditadura militar no final dessa década, dos novos cenários de mentalidade advindos da consolidação da Indústria Cultural no país e da modernização da vida urbana, entre outras motivações, observa-se que o cinema brasileiro também muda de abordagem temática e política, criando, assim, um novo ciclo de produção e recepção cinematográfica.

29

1.1.2 Os anos Embrafilme (1969-1990)

A filmografia denominada de forma abrangente, aqui, de Embrafilme , desenvolvida ao longo dos anos 1970-80, incorpora tanto os diretores do cinema novo como os do cinema marginal e os do cinema pop-juvenil surgidos nos anos 1960 e que continuaram a exercer a atividade, formando a nova geração de cineastas responsáveis por uma quantidade, nunca vista antes em território nacional, de longas-metragens produzidos – são lançados, em média, ao ano, 76 filmes ao longo dessas duas décadas.

Nos anos 1970, o público interno do cinema brasileiro atinge um crescimento muito expressivo, único para sua longa história, que acompanha o aumento de sua produção (ver gráfico 1 adiante), sintonizando-se com a consolidação da Indústria Cultural como um todo no país. Nessa década, em média, 20% do total dos ingressos emitidos estão relacionados à filmografia nacional. Em 1971, esta captação é inicialmente de 14% e passa para 29% ao final do período. Neste ano de 1979, são 56 milhões de espectadores voltados ao consumo do nosso produto cinematográfico.

Em termos das motivações que explicam tal desempenho, em primeiro lugar deve-se salientar que esse aumento expressivo do público de cinema brasileiro é consequência do sucesso da política de investimento estatal no setor, adotada pelo regime militar, bem como da aplicação de medidas de proteção ao mercado interno que foram propiciadas por entidades de investimento e regulamentação criadas nessa fase, como a Embrafilme (responsável pelo fomento e distribuição), a Fundação do Cinema Brasileiro e o Conselho Nacional de Cinema – (documentação e controle).

Além disso, outros fatores também são fundamentais e dizem respeito a uma tendência geral da filmografia Embrafilme de criar um cinema nacional popular de massa, em sintonia com a ampliação do mercado exibidor (constituído de 2.154 salas, em 1971, e que passa para 2.937, em 1979) e da mudança de perfil da população brasileira, que se torna majoritariamente urbana e com um número crescente de famílias pertencentes às classes médias. 30

Gráfico 1: Produção de Filmes Brasileiros – 1950-2008 Valor absoluto total por década

% 1000 782 729 800

600 442 436 335 400 142 200

0 1950 1960 1970 1980 1990 2000

Obs.: Os dados de 1950 a 1970 têm por base Silva Neto (2002). A década de 2000 foi aferida até o ano de 2008. FONTE: Ancine/Abraplex/FilmeB/Embrafilme/Silva Neto (2002).

Avaliando-se a primeira metade da década 1970-74, verifica-se que os grandes campeões de bilheteria são dominados por filmes infanto-juvenis e demonstram uma relação de star system audiovisual entrelaçando o cinema e a televisão (dinâmica de mercado que vai continuar no período Pós-Embrafilme): Robin Hood, Trapalhão da Floresta (74) captou 2.977.968 espectadores; Independência ou Morte , 2.974.476; Roberto Carlos a 300 km por hora (71), 2.785.232; O grande xerife (72), 2.692.862; e Roberto Carlos e o diamante cor- de-rosa (70), 2.639.174 (GONÇALVES, 2001).

Na segunda metade dessa década, ainda investigando as maiores bilheterias, pode-se observar uma progressiva ampliação de público com a incorporação de narrativas adultas, que se somam aos filmes dos Trapalhões e, consequentemente, são atingidas cifras bem mais elevadas que as do primeiro período: Dona flor e seus dois maridos (76), que obteve 10.735.305 espectadores (a segunda maior bilheteria documentada do cinema brasileiro até o momento); A dama do lotação (78), 6.508.182; Lúcio Flávio, passageiro da agonia (77), 5.768.757; Os trapalhões na guerra dos pla netas (78) 5.082.064; e O Cinderelo trapalhão (79), 5.021.990. 31

Renato Ortiz (1988) reflete, em seu mapeamento da história da Indústria Cultural no Brasil, que a década de 1970 representa o ápice da expansão de certos segmentos de bens culturais, como o mercado fonográfico e o cinema nacional, e da enorme propulsão de outros – o mercado editorial e a televisão:

[...] Se tomarmos a curva de evolução de salas como correlata à frequência, observamos que é entre 1975 e 1976 que se atinge um pico de espectadores. Isto significa que o processo de expansão do público, que foi variado nos diversos países, atingindo um máximo em 1946 nos Estados Unidos, 1955 na Itália, 1957 na França, só ocorreu no Brasil em meados da década de 1970 (ORTIZ, 1988:26).

Uma das razões desse expressivo crescimento da Indústria Cultural no país encontra-se no aumento da população nas cidades, fomentado, à época, pelo boom econômico desenvolvimentista – indústria, comércio e serviços. Durante a década de 1970, o PIB anual médio cresce 8,7%; em 1974, seu ápice: 14% (base de dados IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

No ano de 1970, o meio urbano supera o rural em termos de acolhida da população brasileira, 56% ante 45% de 1960. Comenta-se que, vinte anos antes, em 1950, as cidades abrigavam apenas 36% do total de habitantes do país. Veja-se quadro a seguir com informações de 1950-2005:

Quadro 1: População urbana e rural no Brasil – 1950-2005 População Brasil (em mil População Brasil (em %) Ano habitantes) Total Urbana Rural Total Urbana Rural 1950 51.944 18.783 33.162 100 36 64 1960 70.992 32.005 38.988 100 45 55 1970 94.509 52.905 41.604 100 56 44 1980 121.151 82.013 39.137 100 68 32 1991 146.917 110.876 36.042 100 75 25 2000 169.591 137.756 31.835 100 81 19 2005 189.820 158.453 31.368 100 83 17

Fonte: IBGE; Censo Demográfico; PNAD, 2005.

O período também é de forte elevação dos níveis de audiência da televisão no Brasil, com a ascensão e configuração da hegemonia da Rede Globo nesse campo, cujos programas de maior popularidade, novelas e o 32

Jornal nacional , atingem picos de audiência nunca mais alcançados em décadas posteriores (BORELLI; PRIOLLI, 2000). Por esse meio, o imaginário nacional atinge uma cobertura massiva, compartilhando tal perspectiva com o rádio, com seu produto principal: a música popular brasileira.

A história de sucesso da Rede Globo está entrelaçada com o crescimento do mercado de televisão no Brasil e do sucesso de público do formato da grade de programação que lhe deu credibilidade no mercado publicitário, com a combinação, em seu horário nobre noturno, de novelas com seu produto jornalístico de maior audiência:

Uma análise histórica do telejornal mais popular do país evidencia a existência de alguns focos constantes de investimentos [...] a inserção do cenário e debate político nacional; a priorização do investimento tecnológico como padrão casado de qualidade e confiabilidade; e a promoção da identidade nacional (seja no que há nela de específico, seja em sua contextualização global). [...] Ensanduichado entre novelas, no Jornal Nacional, a imagem do povo era aquela da nação brasileira integrada, falando em uníssono, ainda que não houvesse, de fato, qualquer pretensão ao bel-letrismo (Borelli; Priolli, 2000:50).

Essa relação de popularidade do Jornal nacional é atravessada pela questão ideológica. Durante esse período, suas imagens priorizam enaltecer os feitos do desenvolvimento econômico do país, protagonizados pelos militares, retirando cirurgicamente quaisquer aspectos de crítica ao modelo, como o problema da distribuição de renda desigual ou a liberdade de expressão motivada pela censura institucionalizada aos meios massivos e do pacto de interesses entre o meio, o governo e a elite econômica do país.

33

Imagem 3: O road movie Bye bye Brasil (Cacá Digues; 1979)

Independentemente das várias discussões e apontamentos políticos em que tal questão incorre, o fato é que o Brasil estava mudando, tornando-se urbano e industrial, e contemplando novos hábitos de cultura (o filme de estrada Bye bye Brasil – 1979 –, de Cacá Digues, capta, de forma brilhante, tal embate cultural). Ver televisão , ao lado da audição do rádio, torna-se, inegavelmente, consumo dos mais acessíveis à população mais ampla a partir da década de 1970. Entre o primeiro ano desta e 1980, a penetração da televisão nos lares do brasileiro passa de 24% para 56% do total. Em 1990, 74%. E atinge o patamar de 91% em 2005.

O impacto desse consumo de televisão sobre o de cinema é sentido com maior força na década de 1980, quando a situação é agravada com a crise econômica que se instala no país. É uma fase de forte transição política e social. Do modelo autoritário passa-se para o primeiro governo civil depois de duas décadas, com a eleição indireta de Tancredo Neves para presidente e posse de José Sarney (1985-90), após falecimento daquele alguns meses depois da vitória no Congresso. E o povo elege diretamente o próximo candidato, Fernando Collor de Melo (1990-92), ao posto máximo do país, depois de aproximadamente trinta anos sem a população exercer o ato democrático de escolha presidencial.

34

Quadro 2: Evolução de domicílios com televisão no Brasil - 1970-2005

Domicílios Domicílios Total de Ano com TV com TV Domcílios (em mil) (em %) 1970 17.629 4.250 24 1980 25.210 14.143 56 1990 35.418 26.226 74 2000 44.777 39.060 87 2005 53.114 48.533 91

Fonte: Borelli; Priolli, 2000; IBGE; Censo Demográfico e PNAD.

No plano imaginário, a identidade nacional perde seu poder simbólico com as mudanças de sentidos que essa narrativa de sentimento de pertença construiu com os agentes envolvidos – o povo, classe dominante e Estado – nas últimas décadas, e que combinou tradição e modernidade com nacionalismo, notadamente do governo Juscelino Kubitschek à gestão militar, resultado de transformações profundas do país.

Esse declínio da representação social do nacional no Brasil é consequência dessa crise econômica interna e matizada pela ascensão do modo de vida mundializado. Tal condição se revigora com o novo ciclo de crescimento dos países desenvolvidos e no ritmo acelerado dos emergentes asiáticos pós- colapso da crise do petróleo de 1973-4, capitaneados, naquele momento, por Japão, Tigres asiáticos – Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan –, China, EUA e países europeus, com a geração do novo modelo econômico e social convencionalmente chamado de globalização e sua política denominada neoliberal (prefiro o termo liberalismo conservador , uma vez que o liberalismo econômico foi dominante no planeta mesmo com a ascensão do comunismo, socialismo e social-democracia durante o século XX até o período).

Assim sendo, a década de 1980 simboliza o período de inflexão desse crescimento do mercado de cinema no país, obtido ao longo da década de 1970. A produção cai vertiginosamente. Dos 93 filmes produzidos no ano de 1980, há uma queda para 17 longas-metragens em 1989. A demanda interna 35 também decresce, pois, dos 51 milhões de espectadores do início da década, passa-se a 20 milhões em seu final, sendo acompanhada pela crise do sistema exibidor, que passa de 2.354 salas para 1.520 cinemas durante a década (GONÇALVES, 2001).

Gráfico 2: Crescimento Anual do PIB Brasileiro - 1970-2008 por % média de cada

% 20

15 8,7 10 3,7 2,9 5 1,6

0 1970 1980 1990 2000

Obs.: A década de 2000 foi aferida até o ano de 2008. FONTE: IPEA.

Gráfico 3: Evolução do Número de Salas de Cinema no Brasil – 1971-2007

Salas 3.276 3500 3000 2.120 2500 1.893 2.365 2000 2.154 1.488 1.480 1500 1.428 1.335 1000 500 0 1971 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2007

Obs.: Os dados de 1970 não estão disponíveis na base Embrafilme. FONTE: Ancine/Abraplex/FilmeB/Embrafilme. 36

Gráfico 4 - Público de Cinema de Filmes Brasileiros - 1971-2007 Número de expectadores (em milhões) por ano

Expectadores 60 49 51

50

40

30 28 20 22 8 8 10

10 10 0 3 1971 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2007

Obs.: Os dados de 1970 não estão disponíveis na base Embrafilme. FONTE: Ancine/Abraplex/FilmeB/Embrafilme. 37

1.2 A recomposição do campo cinematográfico e suas mediações com a nova filmografia brasileira, anos 1990-2000

O processo de globalização, que tem como uma das características estruturais a marcante diminuição do papel do Estado no funcionamento da sociedade, pode ser observado no Brasil a partir das duas últimas décadas do século XX. A extinção da Embrafilme, em 1990, pode ser considerada um exemplo dessa tendência de redução da intervenção do Estado. Dado o seu forte impacto sobre o volume de filmes produzidos, esse acontecimento representa um divisor de águas para o campo cinematográfico brasileiro contemporâneo.

A essa medida, assinada por decreto pelo então presidente Fernando Collor e implementada de maneira arbitrária (demissão sumária de todos os técnicos da entidade, cancelamento de lançamento de filmes já concluídos, etc.), soma-se o fechamento de outras entidades de fomento e de fiscalização do cinema, além de várias outras instituições da área cultural, como a Fundação Nacional de Arte – Funarte.

Essa reforma profunda da estrutura estatal, responsável pela regulamentação e fomento do cinema nacional, resultou na queda da produção cinematográfica durante os cinco primeiros anos da década de 1990. Porém, dessa desorganização total do sistema produtivo e distributivo do cinema brasileiro, ocorrido no começo da década de 1990, surge, aos poucos, um novo modelo de gestão e fomento da atividade do setor. Trata-se dos incentivos fiscais à área cultural, intermediado pela iniciativa privada. Esse modelo é amparado por medidas protecionistas do Estado, com a aplicação indireta de recursos.

A retomada do apoio do Estado no fomento da atividade cultural é decorrência da movimentação dos agentes culturais contra a política do presidente Collor para o setor. Em dezembro de 1991, ainda sob gestão deste, é sancionada a Lei de Incentivos Culturais (Lei Rouanet), permitindo às empresas que investirem na produção cultural do país deduzir parte do Imposto de Renda devido. Em 1993 é promulgada a Lei do Audiovisual, sob o governo do 38 presidente Itamar Franco, que prevê incentivos fiscais complementares ao cinema (KOSSOY, 1996).

A distribuição e o sistema de exibição são os segmentos econômicos do campo que mais se transformaram nessa fase Pós-Embrafilme:

A partir do início da década de 1990, a reorganização da infraestrutura da indústria cinematográfica brasileira tornou-se um marco histórico. Entenda-se que a distribuição e exibição são os ramos que mais foram alterados neste quadro, justamente por serem os mais dinâmicos da indústria no Brasil e os que se encontram conectados de maneira direta com o estágio de expansão do capital internacional naquele momento ( GATTI, 2007:101) .

Em relação ao novo formato do tripé do sistema produtivo de cinema – produção/distribuição/exibição – em construção durante os primeiros anos da década de 1990, cabe destacar o papel de acessibilidade e promoção do Novo Cinema Brasileiro efetuado pela distribuidora RioFilme e pelas salas de exibição Estação Botafogo, no Rio de Janeiro, e Espaço Nacional (atual Unibanco), em São Paulo.

A Riofilme é criada por meio de lei municipal da cidade do Rio de Janeiro em 1991, com o objetivo de constituir-se uma empresa exclusiva de distribuição do cinema nacional. Para se ter uma noção de sua importância para o desenvolvimento da filmografia Pós-Embrafilme, de 1992-2000, vale lembrar que a Riofilme foi responsável pela distribuição de 98 filmes, dos quais 94 eram títulos inéditos, representando, assim, mais de 50% de um total de 170 filmes brasileiros lançados no mercado durante esse período (GATTI, 2003).

Em relação ao sistema exibidor, os anos 1990 são marcados pelo ápice da crise estrutural do cinema no mundo pós-1970, em função da emergência da televisão e do formato concorrente – vídeo/dvd –, bem como da ampliação da oferta do mercado de bens culturais. A esta questão deve-se ponderar a crise econômica do país, notadamente no final da década de 1980 e início de 1990. Em 1993, o número de salas de cinema no Brasil caiu para 1.250 unidades ante 1488 de 1990. 39

Mas esse quadro é alterado ao longo da década, sobretudo em sua segunda metade. A partir desse período, afirmam-se dois circuitos de exibição. Um deles, o cinema de shopping , que nasce em 1966 e se desenvolve em larga escala a partir dos anos 1990, reformulado pelo formato multiplex trazido dos EUA. Esse sistema de exibição caracteriza-se por apresentar um número elevado de salas de cinema na mesma instalação, em torno de oito a quatorze salas, e boa qualidade técnica dos equipamentos de som e image. O outro é o segmento de arte/alternativo , que surge nos anos 1940 com os cineclubes e cresce a partir de salas especiais do circuito comercial desde a década de 1960, sendo capitaneado pelos grupos Estação e Cinearte, respectivamente, situados em São Paulo e Rio de Janeiro neste período mais recente (GONÇALVES, 2001).

O Estação Cineclube Botafogo é criado em 1992 por um grupo de cineclubistas, conhecido no meio exibidor como grupo Estação, com a pretensão de exibir as filmografias contemporâneas de apelo menos comercial por meio de salas de exibição melhor estruturadas tecnicamente, em comparação às precárias instalações dos cineclubes do período (GONZAGA, 1996).

O atual Espaço Unibanco, à época Espaço Nacional, é inaugurado em 1993, tendo como objetivos, segundo seu fundador Adhemar de Oliveira, além de tornar mais profissional a atividade cineclubista, na tentativa de abandonar seu perfil de associação cultural para adotar uma estrutura empresarial e sobreviver no competitivo mercado exibidor (GONÇALVES, 2001) 1.

São conjuntos de salas situados nas duas maiores cidades do país, que foram fundamentais para acolher a pequena produção de cinema brasileiro do período – meados da década anterior –, que já vinha passando por um

1 Desde 1996, as salas de cinema da rua Augusta de São Paulo mudaram o patrocínio e nome de Nacional para Espaço Unibanco de Cinema. Adhemar em parceria com esta instituição bancária criou uma rede de salas de cinema, sob as denominações Espaço Unibanco de Cinema e Unibanco Arteplex (combinando a programação mais comercial de shopping center com a restrita do circuito alternativo), passando a atuar, além de na capital paulista, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Fortaleza e Salvador. 40 processo de acentuada diminuição de seu público desde o final da década de 80, portanto, antes mesmo do fechamento da Embrafilme.

Imagem 4: Carlota Joaquina, princesa do Brasil (Carla Camurati , 1995)

Mas esse cenário negativo possui um ponto de inflexão ocorrido a partir do sucesso de público atingido por Carlota Joaquina, princesa do Brasil (Carla Camurati), entre outros filmes lançados no ano de 1995, conforme atesta Adhemar de Oliveira, em depoimento realizado em 1999:

Em 1994, o primeiro filme nacional que eu passei na sala foi “Era uma vez”, um filme infanto-juvenil, depois “Alma Corsária”, ”Lamarca”, e vai numa sequência de oito filmes brasileiros, passados naquele ano, que representaram um público de 35.000 espectadores. (...) Em 1995, começa a dar resultado o nosso trabalho. Porque 1994 representa um ano em que se conseguiu quebrar um pouco um fator negativo da mídia, principalmente, de oposição da mídia ao cinema brasileiro, que ainda estava deglutindo a questão da “Embrafilme”, de modelo de cinema que representou este órgão, até o começo dos anos 90. Isto ajudou a quebrar a resistência da classe média em aceitar novamente o cinema brasileiro. (....) Em 95, que acontece o “boom”, em termos do resultado, da quebra da rejeição (GONÇALVES, 2001:48 ).

Se forem analisados os dados de lançamentos anuais de filmes brasileiros ao longo da década de 1990, nota-se que o ano 1995 é o ponto de inflexão , o que motiva a criação do termo “ retomada do cinema brasileiro “ para caracterizar esses primeiros anos de aquecimento do mercado cinematográfico, efetuado por meio de novas formas de financiamento: as leis de incentivo.

Depois da forte recessão econômica do campo de cinema, causada pelo fechamento da Embrafilme , por Collor, em 1990, a produção nacional altera a 41 curva decrescente de evolução negativa. No pior ano dessa fase, 1992, são lançados no mercado 4 longas-metragens. Em 1995, a produção atinge 12 filmes, perfazendo 3 milhões de espectadores. A partir desse ano, os números de filmes lançados crescem ano a ano e atingem 78 longas-metragens, pouco mais de dez anos depois, em 2007.

Boa parte dessa produção nacional é acolhida também no circuito nacional de shopping centers. O crescimento deste está diretamente associado à entrada, no mercado exibidor brasileiro, das empresas estrangeiras Cinemark do Brasil S.A . e UCI do Brasil S.A ., que introduzem, em 1997, o padrão de instalação denominado multiplex.

A Cinemark do Brasil S.A. é a empresa que introduz, pela primeira vez no Brasil, em São José dos Campos, o sistema multiplex. Sob a ótica empresarial, visa à integração do consumo do cinema com outras atividades de entretenimento de shopping centers (praças de alimentação, boliche, jogos eletrônicos, etc.), além do consumo de suas próprias e amplas bombonieres.

É a terceira maior operadora de salas de exibição dos EUA e a maior da América Latina, e administra 272 salas em todo o país (2007). A UCI do Brasil S.A., pertencente ao grupo Universal-Paramount, é também uma das maiores redes de cinema do mundo. Em 2007, gerenciou 111 salas no território nacional.

Há duas mediações sociais e culturais que se pode apreender da análise do tripé econômico do cinema – produção, distribuição e exibição –, especificamente abordando o campo no Brasil a partir da década de 1990. Duas tendências que ilustram os valores circulantes de qualificação e identidade da cultura contemporânea e que potencializam novos rumos da sociedade como um todo.

Cultura e mercado tornam-se mediações permanentes em todos os segmentos do campo. Isso pode ser observado na formação dos chamados cinema de arte ou cinema de shopping , por exemplo, mesmo que haja uma força contrária, 42 também ativa, do mercado de bens simbólicos – literatura, música, etc. – no sentido de sua autonomização (BOURDIEAU, 1992), contrastando propostas estéticas de distinção, como os modelos “arte pela arte” e “de mercado”. Assim sendo, quando se analisa essa polaridade da produção no campo cinematográfico, nota-se que ambas são diretamente atingidas com a aproximação do fator econômico e a configuração dos aspectos mercadológicos da produção artística.

No caso Pós-Embrafilme, a formação dos circuitos de cinema de arte/alternativo e de shopping, bem como a produção distinta representada por filmes de gênero com maior apelo comercial, comédia ou melodrama, ou daquela mais autoral e atenta com a inovação/experimentação de linguagem e sua criticidade, são, ao mesmo tempo, expressão de capitais culturais e simbólicos distintos em luta no campo cinematográfico.

Para compreensão deste vetor de estreitamento da relação cultura e mercado, deve-se ter em perspectiva a tendência mundial nos últimos anos da difusão da cultura de massa no planeta pós-1960. Mas é necessário atentar, nos casos brasileiro e latino-americano, para a influência maior desta sobre a formação cultural em comparação ao capital letrado de base escolar, se comparados com as sociedades mais desenvolvidas, sobretudo em países europeus – França, Inglaterra, Alemanha (ORTIZ, 1991,2006).

Outro aspecto de ordem socioeconômica que resulta nas referidas transformações do campo Pós-Embrafilme diz respeito à mudança do perfil social e cultural da população brasileira nas últimas duas décadas. Percebe-se uma combinação de certo aumento do poder aquisitivo geral, obtido notadamente, desde meados da década de 1990, com o acentuado aumento do nível de escolaridade – o capital cultural na concepção de Bourdieu (1992). Apenas ficando com os dados de instrução de nível superior, observa-se que, em 1990, o Brasil possuía 4,0 milhões de pessoas com 3 o grau completo (2,8 % do total). Dez anos depois, passamos a ter 8,5 milhões (4,3%) e, em 2007, são 10,3 milhões de cidadãos com formação superior (6,5%).

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Quadro 4 – População com nível superior de instrução no Brasil – 1990-2007 Por número absoluto e participação % do total

População com Participação % no nível superior de Ano total da população instrução Brasil (em milhões)

1991 4.079 2,8 2000 5.911 4,3 2005 8.587 5,6 2007 10.333 6,5

Fonte: IBGE; Censo e PNAD.

Isso tem influenciado, certamente, o aumento do interesse por e consumo de bens culturais diversificados no país, como, por exemplo, revistas e jornais (a tendência geral de mercado deste meio em países desenvolvidos foi de retração de consumo nos últimos anos) ou livros não-didáticos. O consumo de cinema está dentro dessa conjuntura associada à referida elevação de renda e de capital cultural da população brasileira, especialmente nas décadas de 1990-2000.

Se avaliarmos a produção do cinema brasileiro, a partir de 1995 até o ano recente de 2007 (quadro 5), por gêneros – filme de ficção, documentário e animação –, vamos encontrar certos resultados que apontam para um cenário cultural complexo e que dizem respeito às mediações comunicativas e sociais do período discutidas anteriormente – a relação cultura/mercado e a elevação do capital cultural, sobretudo, e econômico da população – que influenciam tanto a produção como sua distribuição e exibição do campo Pós-Embrafilme.

Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que a produção total do cinema nacional salta de 14 longas-metragens, lançados no ano de 1995, conhecido no meio cinematográfico como o início da fase de retomada do cinema brasileiro , para 78, em 2007. No período aferido de treze anos são realizados 460 longas- metragens.

44

Mas se a produção de filmes de ficção compreende a maior parte do conjunto, como é de se esperar (68,5%), o volume de documentários criados no período é inusitado para a história do cinema brasileiro. São realizados 120 longas- metragens nesse formato, o que representa 26,0% do total. Em 2007, dos 78 filmes lançados no mercado, 32 longas-metragens são documentários, atingindo, portanto, 40% do total da produção nacional daquele ano.

Quadro 5 – Produção de filmes brasileiros – 1995-2007 Por gêneros - filmes de ficção, documentário e animação

Filmes de Docu- Filmes de Ano (em %) (em %) (em %) Total (em %) Ficção mentários Animação

1995 11 31,0 3 21,4 0 0,0 14 100,0 1996 17 72,2 1 5,6 0 0,0 18 100,0 1997 19 62,2 2 9,5 0 0,0 21 100,0 1998 21 66,3 2 8,7 0 0,0 23 100,0 1999 24 56,8 4 14,3 0 0,0 28 100,0 2000 21 66,3 2 8,7 0 0,0 23 100,0 2001 21 36,6 8 24,0 1 3,3 30 100,0 2002 19 29,9 10 34,5 0 0,0 29 100,0 2003 26 60,0 4 13,3 0 0,0 30 100,0 2004 33 41,0 15 29,4 1 2,0 49 100,0 2005 32 44,1 12 25,4 1 2,2 45 100,0 2006 46 42,8 25 34,1 1 1,4 72 100,0 2007 44 36,6 32 39,7 2 2,6 78 100,0 Total/ 334 68,5 120 26,0 6 1,3 460 100,0 Média %

Fonte: ANCINE

Vale observar que essa produção documental tem sido distribuída normalmente em salas do circuito alternativo/arte ou em mostras de cinema. O público médio dessas películas está abaixo de 20 mil espectadores, segundo dados da Agência Nacional de Cinema - ANCINE. Porém alguns filmes têm melhor distribuição nacional, inserindo-se, inclusive, no circuito de shopping, e geram um público maior, como o documentário Vinícius de Moraes , de Miguel Faria Junior, que atingiu 271.979 espectadores; Pelé eterno , de Aníbal Massaini, 257.932; Surf adventures, de Artur Fones, 200.853; Janela da alma , de João Jardim e Walter Carvalho, 143.360; e Edificio Master , de Eduardo 45

Coutinho, 86.483. Uma análise mais detalhada dessa produção será efetuada no próximo capítulo.

Há outras questões de análise de campo que devem ser elucidadas. Na década de 2000, apesar do aumento ascendente de filmes produzidos, o número de público cresce pouco – de 7,2 milhões de espectadores no ano de 2000 para pouco mais de 10,3 milhões em 2007. Em contrapartida, como já frisado anteriormente, a produção cresce de modo expressivo – 225% - durante o período, principalmente a partir de 2004.

Afora os filmes de documentários, boa parte da produção de ficção também tem atingido um público muito restrito, o que demonstra, inicialmente, que o setor de distribuição tem sido negligenciado e recebido pouco investimento por parte do governo ou da iniciativa privada. Na fase Embrafilme, esta se encarregava tanto do fomento da produção nacional como dessa importante atividade do campo.

Mas, evidentemente, a demanda do cinema brasileiro tem sido pequena. A identificação do público de cinema geral perpassa por questões de ordem variada – econômica, social, cultural e ideológica –, debate antigo no campo do cinema brasileiro. Analisando o período 1995-2007 (quadro 6), observa-se que 2/3 da sua produção obtêm menos de 50 mil espectadores, ou melhor, cerca de 35% dos filmes lançados no período têm menos de 10 mil espectadores - 162 longas-metragens; e aproximadamente 28% ficam entre 10 e 50 mil espectadores – 128 filmes. Esses 290 longas-metragens representam 3,3% do total de público do período, contemplando apenas 3,5 milhões de espectadores.

Por outro lado, 30 filmes de ficção que atingem mais de um milhão de espectadores e são responsáveis por cerca de 64% do público geral do cinema nacional do período 1995-2007, obtendo uma bilheteria, em seu conjunto, de 69 milhões de ingressos. Pode-se explicar tal captação elevada de público, a princípio, por fatores estruturais de distribuição, divulgação e exibição específicos do mercado cinematográfico Pós-Embrafilme e, evidentemente, por 46 uma complexa gama de mediações culturais e sociais e de caráter individual, que motivaram o interesse por filmes de perfil muitas vezes bastante distintos, como o mais visto Dois filhos de Francisco , de Breno Silveira, ou a segunda maior bilheteria, Carandiru , de Hector Babenco, que alcançaram, respectivamente, 5,3 e 4,7 milhões de espectadores.

Quadro 6 – Produção de filmes brasileiros – 1995-2007 Por faixa de público

Produção em Produção em Público total por Público total por Faixas de público longa-metragem longa-metragem faixa faixa (em%) (em%)

Acima de 1 milhão 30 6,5 68.799.428 63,9 De 500 a 1 milhão 25 5,4 18.341.045 17,0 De 100 a 500 mil 62 13,5 13.948.073 12,9 De 50 a 100 mil 45 9,8 3.083.660 2,9 De 10 a 50 mil 128 27,8 3.004.713 2,8 Abaixo de 10 mil 162 35,2 570.854 0,5 N.D. 8 1,7 - - Total 460 100,0 107.747.773 100,0

Fonte: ANCINE

Mas o que há, em comum, nesses dois filmes de alta bilheteria do período, há a associação das produtoras responsáveis por cada película com a empresa , no que concerne à promoção/divulgação e ao suporte comercial com as empresas distribuidoras envolvidas no aparato econômico. A maioria das 30 maiores bilheterias do cinema no período tem esse tipo de parceria comercial. Nota-se como o campo de cinema torna-se, desde a década de 1970, extremamente dependente da televisão, no caso da TV Globo, para viabilizar sua adesão a um público de maior amplitude.

Isso demonstra a inconsistência da política cultural voltada ao cinema brasileiro, desenvolvida pelos dois governos do período – Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva –, que tem deixado somente para a iniciativa privada o cuidado com a distribuição e o acesso aos canais de exibição dos filmes nacionais – salas de cinema comerciais e especiais e outros formatos –, dvd e televisão, negligenciando o prisma social mais amplo 47 dessa recepção. Note-se, principalmente, o fato concreto de que as camadas baixas ficam praticamente fora do circuito comercial à medida que os cinemas de bairros desaparecem, desde a década de 1980, e o ingresso médio eleva-se de modo a tornar-se proibitivo para esse extrato social.

Se o prisma mercadológico restrito – qual filme dá mais audiência ou lucro? – é o que norteia os agentes do mercado, distribuidores, exibidores e outras empresas do setor, vale afirmar, mesmo que pareça uma obviedade à primeira vista, que é natural que assim assumam essa posição, tendo em vista o ambiente econômico capitalista. Mas não é possível admitir que os governos ditos democráticos ou sociais continuem pensando que fomentar a produção seja suficiente para uma política do setor, desconsiderando a criação de mecanismos afirmativos de democratização do acesso aos bens culturais, tendo em vista os aspectos socioeconômicos impeditivos desse consumo.

A empresa Globo Filmes foi criada em 1998 e, desde sua criação, tem participado do processo de comercialização de vários filmes com alta bilheteria, que podem ser exemplificados, além dos filmes já mencionados, por Cidade de Deus , Se eu fosse você , Lisbela e o prisioneiro , e Cazuza , o tempo não para, entre outros. Ao todo, participa da produção de mais de 70 longas-metragens, formando parcerias com mais de 40 produtores independentes. 2

Segundo a empresa, suas atividades pretendem apoiar produções de longas- metragens de ficção ou documentários sob certa proposta, que pode ser sintetizada no termo potencial comercial :

O objetivo da Globo Filmes , além de aumentar a sinergia entre o cinema e a televisão, é o de contribuir para o fortalecimento do mercado audiovisual brasileiro através da comunicação de massa, pois o crescimento do público de filmes médios, isto é, de 100 a 300 mil espectadores, é fundamental para o desenvolvimento do mercado 3.

2 Ver Folha de S. Paulo, Ilustrada, 4 de março de 2009. 3 Ver Globo Filmes. Quem Somos. Globo Filmes . Disponível em: http://globofilmes.globo.com/GloboFilmes/0,,5363,00.html>. Acesso em: 15 mar 2009.

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O outro aspecto de dependência do cinema brasileiro com a televisão para atingir grandes plateias está na formação do seu star system. Ao contrário dos EUA, que contam com um casting próprio do cinema, as nossas estrelas são normalmente oriundas de novelas ou programas infanto-juvenis da rede Globo , como Os trapalhões ou , e têm uma identificação com o público, fundamental para consolidar o apelo comercial que essa produção de maior bilheteria obtém no período, uma aproximação desses meios massivos firmada no Brasil desde a década de 1970 durante a fase Embrafilme .

Imagem 5: Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes , 2003)

Independente da discussão sobre a qualidade e o estilo dominantes dos filmes apoiados pela empresa, se atentarmos para o balanço da filmografia do período Pós-Embrafilme, ainda utilizando a série 1995-2007, vamos verificar que, das 20 maiores bilheterias, a média de público eleva-se consideravelmente a partir do ano de fundação da empresa Globo Filmes, chamando atenção para 2003 (quadro 6). Naquele ano tem-se a maior participação do produto nacional no total de bilheteria de cinema, participação não aferida desde 1988: são 12 milhões de ingressos que representam 22% do total.

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Quadro 7 – Produção de filmes brasileiros – 1995-2007 Vinte maiores bilheterias

Filme Diretor Bilheteria Ano

Dois Filhos de Francisco: Breno Silveira 5.319.677 2005 Carandiru Hector Babenco 4.693.853 2003 Se Eu Fosse Você Daniel Filho 3.644.956 2006 Cidade de Deus Fernando Meirelles 3.370.871 2002 Lisbela e o Prisioneiro Guel Arraes 3.174.643 2003 Sandra Werneck e Cazuza 3.082.522 Walter Carvalho 2004 Olga - Filme Jayme Monjardim 3.078.030 2004 Os Normais José Alvarenga 2.996.467 2003 Paulo Sergio Almeida e Rogério 2.657.091 Gomes 2001 Tropa de elite José Padilha 2.417.754 2007 Paulo Sérgio Almeida e Tizuka Xuxa Pop Star 2.394.326 Yamasaki 2000 Maria, Mãe do Filho de Deus Moacyr Góes 2.332.873 2003 Paulo Sergio Almeida e Rogério Xuxa e os Duendes 2 2.301.152 Gomes 2002 Sexo, Amor e Traição Jorge Fernando 2.219.423 2004 Moacyr Góes 2.214.481 1999 O Auto da Compadecida Guel Arraes 2.157.166 2000 Xuxa Requebra Tizuka Yamazaki 2.074.461 1999 A grande família - O filme Maurício Farias 2.035.576 2007 O Cupido Trapalhão Paulo Aragão e Alexandre Boury 1.758.579 2003 Simão, O Fantasma Trapalhão Paulo Aragão 1.658.136 1998

Fonte: ANCINE

Porém, observa-se, ainda, que, apesar dessa intervenção positiva da Globo Filmes no fortalecimento do aparato comercial do cinema brasileiro, cujo crescimento do mercado está também associado a diversos outros fatores como a qualidade dos filmes produzidos, a retomada do hábito de ver filmes brasileiros, o aumento da oferta de salas de cinemas (de 1.480 salas, em 2000, para 2.210, em 2007), entre outros, desde 2004, o patamar do público brasileiro está estacionado, embora se verifique aumento no consumo do cinema em geral no período 2004-2007.

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Gráfico 5 – Evolução da Participação dos Filmes Brasileiros no Total de Bilheteria (Market Share): 1971-2007 – em % por ano

% 35 31 30 25 18 24 20 16 15 12 15 14 10

5 5 3 0 1971 1975 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2007

Obs.: Os dados de 1970 não estão disponíveis na base Embrafilme. FONTE: Ancine/Abraplex/FilmeB/Embrafilme.

Novamente é preciso apontar para a falha política pública para o setor, cujo investimento, hoje realizado principalmente por meio das leis de incentivo, concentra-se exclusivamente na produção e desconsidera a distribuição e o acesso. Além disso, temos que considerar que o produto nacional sempre esteve numa situação mercadológica desfavorável frente a seu concorrente principal – a produção norte-americana de Hollywood –, tanto aqui como em boa parte do planeta, inclusive em países desenvolvidos como França, Inglaterra e Itália, o que justifica a continuidade de medidas específicas de proteção à produção nacional.

Mas, afinal, que cinema brasileiro é esse feito ao longo deste período? Quais principais temas têm mobilizado seus autores? Como a questão da identidade cultural é espelhada nessa filmografia? Essas são algumas das questões a serem tratadas no próximo capítulo, contribuindo, assim, para a continuidade desta primeira parte da tese, com o objetivo de contextualizar a produção específica road movie dos anos 1990-2000 a ser analisada no capítulo quarto.

Antes da reflexão sobre as características de narratividade envolvendo o Novo Cinema Brasileiro e suas conexões com a filmografia específica a ser analisada 51 neste trabalho, cabe, ainda, nesta parte do trabalho, avaliar alguns aspectos das condições de produção desta, ou seja, de longas-metragens circunscritos ao gênero filme de estrada ( road movie ), abordando a questão da distribuição e de aspectos importantes de posição e distinção cultural dos agentes no campo cinematográfico em estudo, conforme conceituação de Bourdieu (1992; 1996).

Esse filósofo e cientista social francês buscou, em sua obra, a comprovação da tese central relacionada à produção cultural e à estruturação do espaço social como um todo: há uma permanente luta, jogo entre agentes de cada campo social, na busca de distinção destes em função das diferenças de capital tanto econômico como cultural, social e simbólico. Bourdieu entende que a cultura é território de domínio/poder das classes sociais motivadas pela acumulação desse capital de natureza variada. O conceito campo possibilita visualizar a posição dos grupos e suas relações no espaço social, ou, detalhadamente, em cada campo específico – comunicação, segmentos econômicos, etc. (suas pesquisas normalmente partem de base de comprovação empírica) –, evidenciando como a ordem social é representada nos sistemas capitalistas.

Como poderá ser verificado a seguir, conforme dados disponibilizados no quadro 7, a participação da Riofilme é majoritária na função de distribuidora de filmes relacionados ao gênero de estrada durante a década de 1990, ou seja, no caso de Terra estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Os matadores (Beto Brant, 1997) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998). Afinal, conforme discussão anterior, tal empresa, gerida pela prefeitura do município do Rio de Janeiro, preenche inicialmente a lacuna de mercado do cinema brasileiro em seu território para esta atividade após o fechamento da Embrafilme . A produtora pode desempenhar, assim, um papel de conciliação das diversas demandas de ordem econômica e de mercado, uma vez que o campo encontra-se, naquela altura, retomando um papel simbólico importante que havia perdido desde a década de 1980, bem como atinge patamares de produção ainda baixo comparativamente ao período anterior.

Nos anos 2000, revelando a afirmação da filmografia brasileira em termos mercadológicos e seu referido crescimento (são produzidos, na atual década, 52 mais que dobro da anterior) pode-se notar a presença da Globo Filmes na produção de três filmes de bilheteria de patamar alto/mediano para os padrões do período – Lisbela e o prisioneiro , com o registro de cerca de 3,2 milhões de espectadores, Deus é brasileiro , (Cacá Diegues, 2003), com 1,6 milhão, e O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003), com público aproximado de 215 mil espectadores. Informa-se, ainda, que estes longas-metragens são distribuídos pelas empresas estrangeiras ligadas ao domínio de negócios de Hollywood, respectivamente, a Fox Film do Brasil, Columbia TriStar, e Buena Vista International (pertencente à Walt Disney Studios Entertainment).

Além disso, outros dados desta filmografia específica tratada aqui também são reveladores do processo de diversificação de mercado relativos ao segmento das distribuidoras, notadamente na atual década, apoiando, também, a viabilidade de uma produção de cinema mais autoral e mais distanciada das demandas estéticas de um cinema de forte apelo popular. Cabe ressaltar que são tensões do campo cinematográfico – “arte/cultura versus mercado” – que se confrontam, também, na arena dos agentes da ponta produção e recepção.

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Quadro 8 – Filmes de estrada (road movies) de diretores brasileiros – dados de produção, distribuição e público – 1990-2007

Companhia(s) Companhia(s) Co- Título Diretor Ano Distribuidora(s) Público Produtora(s) Produtora(s)

Alpha Filmes Walter A Grande Arte 1991 Produções – SP; J&M - Art Filmes N.D. Salles Entertainment Walter Salles e Videofilmes; Terra Estrangeira 1995 Movi-Art Riofilme 112.840 Daniela Animatógrafo Thomas

Os Matadores Beto Brant 1997 Casa de Produção Mobile Light Riofilme 27.014

Videofilmes; Riofilme ; MACT Productions; Walter Central do Brasil 1998 E.S.R. Films Ltd.; N.D. Riofilme 1.593.967 Salles Cinematográfica Superfilmes Buena Vista Globo Filmes ; Internacional; O Caminho das Vicente Megacolor; Riofilme ; Buena Vista 2003 Produções C. LC 214.830 Nuvens Amorim Quanta; Lereby International Barreto Ltda.; Filmes Produções do Equador Ltda. Rio Vermelho Filmes Columbia Tristar Ltda.; Columbia Tristar Filmes do Brasil; Luz Cacá Columbia Deus é Brasileiro 2003 Filmes do Brasil; Mágica Produções; 1.635.212 Diegues TriStar Globo Filmes ; Teleimage; Globo Petrobras Filmes

Lisbela e o Globo Filmes ; Fox Film do Guel Arraes 2003 Natasha Filmes 3.174.643 Prisioneiro Estúdios Mega Brasil

Southfork Pictures; Diários de Walter FilmFour; Tu Vais Vo ir Buena Vista 2004 ---- N.D. Motocicleta Salles Productions; Senator International Film Produktion GmbH

Cinema, REC Produtores Marcelo Aspirinas 2005 Associados; Dezenove Quanta Imovision. 105.526 Gomes e Urubus Som e Imagens

Combogó Filmes; Megacolor Lab.. Europa Filmes; Árido Movie Lírio Ferreira 2006 Cinema Brasil Digital Cinematográfico; 21.729 M.A. Marcondes Estúdios Mega; Quanta VideoFilmes Produções Artísticas Karim O Céu de Suely 2006 Ltda.; Celluloid Fado Filmes VídeoFilmes 73.892 Ainouz Dreams; Shotgun Pictures

Fonte: Cinemateca Brasileira/ANCINE

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Na atual década, os filmes de estrada com o perfil mais aderente à proposta autoral foram distribuídos pelas empresas brasileiras de atuação independente (não vinculadas às produtoras de Hollywood e próximas aos circuitos de cinema alternativos/de arte) 4.

Imagem 6: Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes , 2005)

Exemplos disso são Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes), longa- metragem comercializado junto às salas e redes de cinema pela Imovision (fundada em 1987 e pertencente a Jean Thomas Bernardini, proprietário também do espaço de exibição paulistano Reserva Cultural); Árido movie (Lírio Ferreira), operado pelas empresas Europa Filmes (1990) e M.A. Marcondes (2002); e O céu de Suely (Karim Ainouz), por meio da VídeoFilmes (1987; produtora e distribuidora de propriedade dos irmãos cineastas João Moreira Salles e Walter Salles) .

Estes apontamentos que dizem respeito a autoria, demandas de mercado e público, inovação estética e inserção política e cultural dos realizadores são questões prementes ao campo do ponto de vista das relações de produção analisadas até aqui, neste primeiro capítulo, como transitam também no universo de referências sociais e culturais das obras produzidas, como será discutido no próximo capítulo, a partir de uma breve análise de temáticas e de outras características ficcionais da filmografia do período 1990-2000, no qual está inserido o corpus de pesquisa desta tese.

4 Os dados de perfil das distribuidoras foram levantados no site da empresa Filme B, especializada em dados de mercado de cinema. Disponível em: . Acesso em: 16 fev. 2009. 55

1.3 Apontamentos temáticos e narrativos do Novo Cinema Brasileiro

A primeira questão que surge nesta empreitada de traçar um apanhado de características gerais da filmografia Pós-Embrafilme diz respeito à própria dimensão do trabalho, ou seja, têm-se em relevo mais de 450 filmes em formato longa-metragem de ficção desenvolvidos nestas últimas duas décadas em estudo. Deve-se, também, considerar que foram realizados pouco mais de 150 documentários em formato maior, cujos realizadores, muitas vezes, estiveram nas duas frentes de elaboração audiovisual, como Lírio Ferreira ou Walter Salles, citando apenas dois diretores que estão implicados com a narrativa ficcional de estrada.

O tempo histórico aqui refletido, com seu ritmo acelerado das transformações sociais, políticas e culturais do país, ao longo das décadas de 1990-2000, demonstra que certos temas e procedimentos narrativos são mais relevantes a certos períodos desse quadro temporal. Como salientam Oricho (2003, 2008), Bucher (2005) e Nagib (2002), a produção dos anos 1990, chamada, à época, de Cinema da Retomada, pauta-se, por um lado, pelo contorno de enunciação de estrangeirismos (Bucher, 2005:29) e, de outro, pela redescoberta da pátria (NAGIB, 2002:14), da cultura nacional/regional.

A primeira tendência, a de mais curta duração, caracterizada por filmes com histórias em que os protagonistas são estrangeiros e os diálogos, construídos para a trama como um todo, falados em inglês (estes filmes visavam tanto ao mercado interno como ao externo), com resultados artísticos bastante irregulares, traduz valores de identidades deslocados de sentido mais coerente e mostra-se em sintonia com parte do imaginário social que caracterizou o período Collor (1990-1992) e o mandato de Fernando Henrique Cardoso (1994- 2002) – estes primeiros arautos do processo de globalização em nosso país.

Tal abordagem ficcional pode ser percebida nas obras A grande arte (Walter Salles, 1991), primeiro filme do diretor com narrativa alinhada aos gêneros policial e filme de estrada , Jenipapo (Monique Gardenberg, 1995) e Bela donna 56

(Fábio Barreto, 1998). A segunda vertente, a redescoberta da cultura nacional/regional, ainda retratando os anos 1990, certamente a mais profusa e diversificada em termos de características narrativas e temáticas, bem como do seu prisma político/ideológico, firma-se em filmes de recorte histórico ou da realidade social contemporânea.

Imagem 7 - O que é isso companheiro? (Bruno Barreto ,1997)

Lamarca (Sérgio Resende, 1994), Carlota Joaquim, Princesa do Brasil (Carla Camurati, 1995), O que é isso companheiro? (Bruno Barreto, 1997), Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), Bocage – o triunfo do amor (Djalma Limongi Batista, 1998) e Tiradentes (Oswaldo Caldeira, 1999) revisitam a história do país, distanciando-se de uma discussão política mais ideológica desse passado, mesmo em filmes cujos temas estão relacionados diretamente ao período de chumbo – os filmes de Resende e Barreto –, evidenciando, assim, a marca narrativa e social mais comum dessa filmografia, ou seja, a exploração ficcional da individualidade dos protagonistas, a esfera hegemônica do drama privado, mesmo em temas políticos ou de denúncia social.

Ao encontro do entendimento desta característica política da produção Pós- Embrafilme, a pesquisadora de cinema Ivana Bentes (2001) vem desenvolvendo um conceito polêmico nos últimos anos que tem circulado no meio acadêmico e na imprensa especializada de cinema. Trata-se da cosmética da fome , que alude à proposta estética explicitamente politizada de Glauber Rocha e que sintetiza o esvaziamento do conteúdo crítico da recente filmografia brasileira, voltada à abordagem direta de problemas sociais, por meio de uma proposta estética e ideológica da televisão e da publicidade, com 57 a realização final de um cinema com preocupações meramente mercadológicas, segundo suas avaliações críticas.

A meu ver, tal conceito provocativo de Bentes não se mostra adequado para interrogar o inegável esvaziamento crítico dessa filmografia - crise do pensamento político que atingiu não só a proposta dos cineastas do período, mas amplas esferas da sociedade civil no país e no mundo, pois tenta requentar o ideário político marxista ortodoxo dos anos 1960 , não abrindo, portanto, possibilidades para a necessária reavaliação dos parâmetros do pensamento político notadamente de esquerda. A construção da desejável sociedade comunista, à época do Cinema Novo, mostrou-se historicamente um caminho antidemocrático – a ditadura do proletário do projeto marxista concretizou-se, na implantação do socialismo real , de uma estrutura vitalícia da classe burocrática estatal.

Mas o gênero drama social, sob a linha do tempo de sua tradição moderna, construída desde o Cinema Novo e resignificada durante a fase da Embrafilm e (os vinte anos de produção do cinema deste período recente costumam ser negligenciados para o entendimento do Cinema da Retomada , da qual herda, por exemplo, a construção dessa narrativa nos limites do cinema policial em vários filmes do período) aparece na produção de cineastas veteranos ou iniciantes da década anterior, como Capitalismo selvagem (André Klotzel, 1993), A causa secreta (Sérgio Bianchi, 1994), O cego que gritava luz (João Batista de Andrade, 1996), Navalha na carne (Neville d'Almeida, 1997), ou, ainda, de estreantes, como Os matadores (Beto Brant, 1997), Central do Brasil (Walter Salles, 1997), Doces poderes (Lúcia Murat, 1997) e Kenoma (Eliane Caffé, 1998).

Ainda dentro da perspectiva da redescoberta da pátria, pontuada por Nagib (2002), cujo movimento centrífugo manifesta-se muitas vezes numa tendência à revalorização da cultura regional, de investigação cinematográfica do sertão nordestino a partir de diversos registros políticos e de estilos narrativos. Nos filmes como Central do Brasil (1997), Walter Salles, A guerra dos Canudos (1998), Sérgio Rezende, O Auto da Compadecida (1999) e Eu, tu, eles (2000), 58

Andrucha Waddington, as imagens do árido sertão nordestino aparecem filtradas ora pela narrativa melodramática, que expõe o foco no drama individual e familiar, ora no gênero cômico, no qual as manifestações festivas da cultura nordestina ganham espaço, abrindo, assim, a desejável, por parte dos realizadores, comunicação direta com um público mais amplo.

Imagem 8 - O Auto da Compadecida (Guel Arraes; 1999).

Não se pode deixar de considerar neste apontamento que o melodrama e a comédia representam os dois gêneros ficcionais mais populares dentro do campo audiovisual – cinema e televisão . São territórios de ficcionalidade que enunciam a competência cultural circulante entre receptores e produtores, desempenhando, assim, o papel de mediações comunicativas , e que manifestam a materialidade social e a expressividade das práticas culturais contemporâneas (MARTÍN-BARBERO, 1997).

Mas há outras produções como O sertão das memórias (José Araújo, 1997), e também em filmes realizados na atual década, exemplificado em Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), Árido movie (Lírio Ferreira, 2005) e O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006) que retratam o sertão nordestino com uma exposição sociocultural bastante específica. Essa abordagem diferenciada sobre o tema explica-se, em boa medida, em função da condição de naturalidade desses cineastas - provenientes do Ceará e , abarcando experiências de vida de vínculos estreitos com essa região que marca a geografia e a cultura dos seus estados de origem 5.

5 Araújo nasceu em Miraíma, Ceará em 1952; Aïnouz na capital do mesmo estado - Fortaleza, em 1966; Gomes, em 1964, e Ferreira, em 1965, ambos no Recife, Pernambuco. . 59

Outro aspecto que chama a atenção dessa abordagem cinematográfica diz respeito à construção narrativa de Cinema, aspirinas e urubus, Árido movie e O céu de Suely . Seus diretores optam por desenvolver suas histórias ficcionais com base nos gêneros road movie , drama social e cômico, num diálogo narrativo direto com o Cinema Novo, apesar do enunciado político totalmente diferenciado. As estradas que cruzam o sertão nordestino nestes filmes dão passagem às personagens que buscam uma nova identidade individual e social, como será discutido no quarto capítulo da tese - A nova filmografia nacional de gênero road movie: imaginário, mediações comunicativas e identidade cultural.

Nagib (2002) afirma que esteticamente os novos cineastas deste período da chamada Retomada mostram-se amplamente adeptos da narratividade , ou seja, gravitando na formulação do cinema de gênero . Essa tendência já é marca da filmografia Embrafilme, de seu distanciamento do cinema experimental e de vanguarda que caracteriza parte da filmografia dos anos 1960-1970 – o cinema de invenção – que engajou realizadores do Cinema Novo (Glauber Rocha é referência inconteste neste aspecto), bem como do Cinema Marginal , com destaque para os cineastas Rogério Sganzerla ( O bandido da luz vermelha , 1968) e Júlio Bressane ( Matou a família e foi ao cinema , 1969).

Mas os dois cineastas mencionados do Cinema Marginal continuam suas carreiras ao longo das décadas recentes sem abandonar seu cinema de experimentação/inovação de linguagem que caracteriza suas obras como demonstram os filmes Miramar (1997), São Jerônimo (1999) e Dias de Nietzsche em Turim (2002) de Sganzerla e O mandarim (1995) e O signo do caos (2008) de Bressane. Entre os novos cineastas, a linguagem de inovação pode ser notada em poucos trabalhos com destaque para Crede-mi (Bia Lessa e Dany Roland, 1997) e Lavoura arcaica (Luiz Fernando Carvalho, 2001).

De fato a nova geração opta pela linguagem cinematográfica narrativa tradicional – a estrutura do cinema clássico – porém, parte dela tenta investir na inovação desta, como nos já mencionados filmes que retratam o sertão 60 nordestino Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005) e O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), os dois últimos no diálogo com os gêneros filmes de estrada, drama social e cômico, e na abordagem urbana percebida em Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1997), Um copo de cólera (Aluísio Branches, 1999), A Via Láctea (Lina Chamie, 2007), O cheiro do ralo (Heitor Dhalia, 2007) e Feliz natal (Selton Mello, 2008).

O refluxo do cinema pornográfico da Boca

Outro aspecto sobre o qual se deve refletir, quanto a essa fase, diz respeito à documentação da filmografia dos primeiros anos da década de 1990, pouco antes de o termo Cinema da Retomada ser amplamente referido pela impressa e crítica acadêmica, sobretudo a partir do sucesso de público, à época de Carlota Joaquina, Princesa do Brasil , em 1995. Com o desmantelamento dos órgãos estatais de controle aos filmes exibidos em salas de cinema no ano 1990, durante o mandato do governo Collor, tal registro oficial torna-se irregular até meados da década. E o resgate dessa filmografia dos primeiros anos tem levado a uma identificação de obras produzidas, muitas vezes, em levantamentos de resultados díspares na comparação dos dados oficiais e dos pesquisadores do cinema brasileiro.

O levantamento de Silva Neto (2002), e Gatti (2005) aponta para o início da década de 1990 com resultado de filmes finalizados ainda expressivo para os anos 1990-91. Ao todo, Silva Neto registra 93 longas-metragens e Gatti, 62 filmes, somente nesses dois anos iniciais. Isso contrasta com a leitura da Secretaria para o Desenvolvimento Audiovisual do governo Fernando Henrique Cardoso (SALEM, 1999) de que a produção chegou a níveis baixíssimos nesse período antes do início da chamada fase da Retomada (ver quadro adiante comparando estes levantamentos de pesquisa).

Olhando mais atentamente essa produção do início dos anos 1990, percebe-se que muitos filmes já estavam sendo produzidos desde o final da fase Embrafilme, e a maioria pertence à produção pornográfica realizada na chamada Boca do Lixo. E essa praticamente desaparece a partir dos anos 61

1993, pondo fim a uma crise do mercado que acontecia concomitante à decadência do sistema exibidor da região central de São Paulo e de outras cidades de acolhida dessa produção e à afirmação do concorrente mercado de vídeo (RAMOS, 1995; SIMÕES, 1981,1990).

Quadro 8 – Produção de filmes brasileiros – década de 1990 Dados Oficiais (Ministério da Cultura) e de levantamentos dos pesquisadores André Piero Gatti e Antônio Leão da Silva Neto

Ministério da Levantamento Levantamento ano Cultura Gatti Silva Neto

1990 - 34 57 1991 - 28 36 1992 2 3 15 1993 4 4 9 1994 7 12 13 1995 14 17 19 1996 18 13 37 1997 21 22 34 1998 23 21 30 1999 28 26 37 Total 117 (*) 180 287

(*) Valor Total Parcial – 1992-99

Fonte: Ministério da Cultura (Secretaria para o Desenvolvimento Audiovisual – série 1992-94 / ANCINE – série 1995-99); GATTI (2005); SILVA NETO (2002)

Mas o mercado de vídeo também alça certa produção de filmes populares em formato longa-metragem, de baixo custo, pastiche do cinema de gênero norte- americano e brasileiro, que vem sendo denominada por alguns pesquisadores de Cinema de Bordas (SANTANA; LYRA, 2006), classificação que pretende abranger também outras categorias de filmes alinhados ao cinema trash/ filme B, que pode ser exemplificada na produção do diretor Afonso Brazza, realizador dos longas Santhion nunca morre (1988), Inferno no gama (1993) e Gringo não perdoa, mata (1994), entre outros. Brazza, que aprendeu o ofício do cinema na região paulistana da Boca, está, hoje, situado na cidade satélite de Gama, Distrito Federal.

De qualquer forma, os dados de filmografia dos três levantamentos mencionados aqui – do Ministério da Cultura, de Gatti (2005) e Silva Neto 62

(2002) - demonstram que a produção de cinema brasileiro declina consideravelmente nos anos 1992-93, fruto do desmantelamento do sistema produtivo construído nas duas décadas anteriores (Embrafilme) e do declínio do Cinema da Boca, cujos resultados mais auspiciosos só serão obtidos a partir do final dos anos 1990, quando o impacto do novo sistema amparado nas leis de incentivo poderá torna-se uma realidade estável, não obstante a dificuldade em manter o mesmo nível de crescimento, em relação à demanda durante a década posterior.

Uma cidade brasileira ante-pós-moderna

Imagem 9: O invasor (Beto Brant , 2001)

Dando continuidade ao mapeamento das principais características do Novo Cinema Brasileiro, é pertinente salientar que o espaço físico regional/local que predomina nas imagens produzidas por essa filmografia dos anos 1990/2000 está inserido na geografia física e humana das maiores metrópoles do país, as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Há dois filmes que configuram uma boa amostra dessa filmografia ao retratar essas duas metrópoles, respectivamente, O Invasor (2001), de Beto Brant, e Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles.

A narrativa do filme O invasor inicia-se a partir de uma voz sem rosto . Percebe- se que ela vem da direção da lente da câmera em função da movimentação dos olhares e gestos dos protagonistas Gilberto (Alexandre Borges) e Ivan (Marco Ricca): eles miram tanto a pessoa dessa voz como o espectador. O local dessa sequência inicial é um bar situado em algum lugar paupérrimo da periferia da Zona Sul paulistana.

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Eles estão contratando os serviços de Anísio (Paulo Miklos) para matar o sócio majoritário da construtora que possuem, Estevão (George Freire) . Consumado o assassinato, que envolveu também a esposa deste, Anísio torna-se O Invasor , pois passa a chantagear os mandatários do crime, frequentando voluntariamente o ambiente de trabalho deles, na posição de novo funcionário, e envolvendo-se, também, afetivamente, com a filha do sócio morto.

A geografia da cidade de São Paulo é mostrada, nesse filme de narrativa dramática, em diversas filmagens externas para salientar contrastes sociais gerados pela concentração de riqueza no espaço físico da metrópole: os bairros ricos e de classe média mais centrais e a carente periferia. Mas apesar do delineamento bastante claro das diferenças sociais entre os protagonistas do filme, os conflitos de classe serão arranjados numa outra disposição de clímax dramático: a abordagem ética. Na sequência final, vê-se o arrivista Gilberto confrontando-se moralmente com Ivan, arrependido de ter mandado matar seu outro sócio e aliando-se ao marginal Anísio.

Uma análise sobre as formas narrativas desse filme pode apreender um aspecto muito importante para entendimento das significações sociais e culturais do cinema nacional Pós-Embrafilme: a influência da televisão na formação cultural desses realizadores e do atual público de cinema brasileiro. Pode-se abordar, preliminarmente, essa discussão sobre gêneros ficcionais a partir da perspectiva de interpretá-los como mediação comunicativa e cultural (MARTÍN-BARBERO, 1997) das transformações do campo audiovisual brasileiro dessas últimas décadas.

Em O Invasor , assim como se observa também num outro filme brasileiro recente de tom bastante realista, Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, constata-se um estreitamento do diálogo entre as narrativas dramáticas que enfatizam a crítica social e o gênero policial. Essas fusões narrativas são elaboradas sob a influência tanto do cinema norte-americano como da produção de programas de gênero policial na televisão brasileira desde a década de 1970.

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De acordo com análise de José Mário Ortiz Ramos (1995) sobre os filmes policiais realizados na fase da Embrafilme (1969-1990), como Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), de Hector Babenco, até chegar aos filmes policiais do final desta fase do cinema brasileiro, como Faca de Dois Gumes (1989), de Murilo Sales, Doida Demais (1989), de Sérgio Rezende, e A Grande Arte (1991), de Walter Salles, esta produção é marcada pela influência reiterada entre a televisão e o cinema brasileiro produzido na época. São filmes que adquirem um discurso de denúncia social contra a corrupção e o envolvimento em ações ilegais de policiais/delegados, políticos e empresários nas grandes cidades brasileiras, incorporando, também, uma construção narrativa que enfatiza a ação e a aventura, elementos-chave para a elaboração de um cinema de apelo popular.

1.3.3 A favela e o novo imaginário audiovisual

Imagem 10: Cidade de Deus (Fernado Meirelles, 2002)

Essa mesclagem entre o gênero policial e o drama torna-se mais intensa e dominante nos filmes brasileiros produzidos nas décadas de 1990/2000, que se notabilizaram pela intenção de seus realizadores em formular uma clara denúncia do atual quadro social e ao mesmo tempo voltar-se para um público mais amplo. Cidade de Deus (Fernando Meirelles, 2002) representa um filme em que essas relações comunicativas, culturais e políticas se dão de maneira exemplar.

Para Oricchio (2003), Cidade de Deus , que descreve a evolução da criminalidade na favela carioca homônima, desde os anos 60 até os dias de 65 hoje, marcado pelo ascendente e rentável tráfico de drogas, representa um filme histórico de inflexão para a filmografia brasileira contemporânea:

[... ] Este filme incorpora, sem pruridos, técnicas da publicidade e do videoclipe. Dialoga com a televisão. Coloca o espectador no centro de suas preocupações e se esforça para não entediá-lo. Procura se comunicar com os jovens, que são a parcela maior do público cinematográfico. Estes filmes podem ser sociais ou políticos em sua temática, mas não abrem mão dos recursos do espetáculo para sua forma. Enfim, negam, criativamente, a distinção liminar entre arte pura e entretenimento (ORICCHIO, 2003: 224) .

O crítico expõe também outros aspectos de análise sobre o filme que merecem ser salientados. Um deles diz respeito à espetacularização da violência no filme, traço estético e de comunicação ética que caracteriza também outras produções brasileiras recentes e que tem, como principal referência, o cinema norte-americano contemporâneo, exemplificado na obra de diretores como Peckinpah, Coppola e Scorsese, e, da produção recente, Tarantino, realizador dos filmes Cães de Aluguel (1992) e Pulp Fiction (1994). Como sugere Oricchio (2003:157-158), a violência nas imagens desses diretores parece que se torna divertida , e, nela, a busca pelo estético na destruição, na guerra, na morte transforma a condição insuportável da dor humana em espetáculo .

Outra crítica de Oricchio sobre o filme aborda uma possível leitura da estrutura narrativa do filme, já definida no livro homônimo de Paulo Lins, na qual as transformações urbanas dessa favela carioca são descritas exclusivamente a partir do ponto de vista interno desse microcosmo social - a história de vida de dezenas de personagens originários dela, desconsiderando, assim, as conexões com o mundo externo, ou seja, o contexto social e econômico responsável pela geração desse apartheid .

Apesar dessas ressalvas em relação à significação social e política da abordagem temática e da estrutura narrativa adotadas no filme, não se pode deixar de salientar que Cidade de Deus atinge um padrão técnico e artístico para o cinema brasileiro contemporâneo – montagem, fotografia, roteiro e direção de atores - que representa um marco, sintonizando-se com o ambiente 66 cultural moderno gerado pela era da informação/tecnologia (CASTELS, 2002) em processo no país, e, consequentemente, aproxima-se do público potencial de cinema, especialmente as camadas jovens. Como observa o crítico José Geraldo Couto:

[... ] é um filme de vigor espantoso e de extrema competência narrativa. Seus grandes trunfos são o roteiro engenhosamente construído (sim, à maneira americana, sem gordura nem pontos sem nó) e a consistência da “mise-en-scène” [...] sem falar da hábil assimilação de técnicas da publicidade e do videoclipe com propósitos narrativos essencialmente cinematográficos [...] (COUTO, 2002)

Reitera-se que essa interação entre as linguagens narrativas do cinema e a televisão tornou-se uma forte característica dos filmes produzidos pelos novos diretores discutidos anteriormente, como Carlota Joaquina (Carla Camurati), O Auto da Compadecida (Guel Arraes), O Invasor (Beto Brant) e Cidade de Deus (Fernando Meirelles) 6. Essa tendência da nova filmografia brasileira, mas certamente não a única, coloca-se ainda em formação e gera discussões e posicionamentos estéticos e político-culturais, às vezes, bastante diferenciados entre críticos e cineastas.

6 Cabe ressaltar que a maioria dos novos diretores tem passagens, várias delas de notório reconhecimento, na produção de programas de televisão e cinema de publicidade ( ALMEIDA; OLIVEIRA, 2003; NAGIB, 2002). 67

O cinema moderno e comercial da Globo Filmes

Imagem 11: Se eu fosse você (Daniel Filho; 2006)

Não se pode deixar de comentar nesse balanço geral de temáticas e características estilísticas do cinema contemporâneo Pós-Embrafilme, sem discutir o cinema produzido/patrocinado pela empresa Globo Filmes . De acordo com o capítulo anterior a respeito das transformações do campo cinematográfico dos anos 1990 e 2000, essa empresa, criada em 1998, tem tido participação muito ativa no processo de produção e comercialização de vários filmes com alta bilheteria, estrategicamente calcada na construção do cinema de gênero de apelo mais popular e, conforme configuração histórica do campo audiovisual mais recente, focado nas narrativas do melodrama , comédia e policial.

O gênero policial articulado de modo próprio em nossa filmografia, desde a fase Embrafilme, sob forte influência do cinema norte-americano e da concepção de drama social, oriundo de parte do cinema novo , pode ser observado nos longas-metragens com base em produções apoiadas pela Globo Filmes, Cidade de Deus (Fernando Meirelles; 2002) ou Tropa de elite 2: o inimigo agora é outro (José Padilha, 2010), o maior sucesso de bilheteria do cinema nacional dos últimos quarenta anos (Sousa, 2010), perfazendo cerca de 11 milhões de espectadores (as estatísticas do período anterior ao ano de 1970 são deficientes para uma análise comparativa mais completa).

O melodrama e a comédia, gêneros que fundamentam a narrativa das telenovelas da TV Globo, são nitidamente reconhecidos em longas-metragens como Se eu fosse você (Daniel Filho, 2006), Sexo, amor e traição (Jorge 68

Fernando, 2004), e o filme que dialoga com o gênero road movie , conforme adaptação do texto original de Osman Lins para o cinema, dirigido por Guel Arraes, Lisbela e o prisioneiro (2003).

Se eu fosse você traz, no elenco, dois atores dos mais conhecidos na atuação de novelas efetuadas pela maior rede de televisão do país, , que faz o personagem Cláudio, e Glória Pires, sua esposa, Helena. O filme explora, ficcionalmente, dilemas típicos do cotidiano de um casal de classe média alta. Ele é um publicitário bem sucedido e ela, professora de música, ambos veem- se envolvidos em certa crise conjugal, que se desdobra na ocorrência da situação inusitada de troca de sexo entre eles após uma noite de sono. Comenta-se, assim, o atual papel social de homens e mulheres e a sexualidade, empregando um tom brejeiro; afinal, trata-se de uma comédia. O filme é dirigido por Jorge Fernando, reconhecido diretor de programas televisivos.

Tal star system formado por atores do casting da TV Globo certamente representa uma das razões de sucesso de público desse filme e dos outros mencionados acima. A título ilustrativo dessa composição, informa-se que Sexo, amor e traição contou, em seu elenco, com Malu Mader, Murilo Benício, Fábio Assunção, entre outros, e Lisbela e o prisioneiro foi estrelado por Selton Mello, Débora Falabella, e Bruno Garcia. Esses também foram dirigidos por dois diretores consagrados da televisão, Jorge Fernando e Guel Arraes.

Além do apelo do estrelato vinculado ao universo da TV Globo, é, também, na abordagem narrativa e temática que se consolida a forte identificação de público que os filmes produzidos pela Globo Filme têm estabelecido com o público majoritário, hoje, frequentador das salas de cinema no Brasil, formado, principalmente, pela classe média. Afere-se tal dado com a avaliação do ambiente social onde estão situadas essas salas, os shopping centers, cujas redes exibidoras atuantes têm praticado valores de ingressos coerentes à sua lógica de mercado, porém verifica-se que os valores cobrados são proibitivos, ou muito caros, à maior parte da população (GONÇALVES, 2001). 69

A mescla de melodrama e comédia de Se eu fosse você e Sexo, amor e traição, a ambientação de classe média dos personagens, o estilo naturalista das interpretações e o clima leve dos dramas familiares suscitados em ambos os filmes assemelham-se à dramaturgia e à mise-en-scène de muitas das telenovelas da TV Globo (registra-se aqui apenas uma tendência geral desse produto televisivo, com base em sua tradição de linguagem). Cabe, ainda, uma reflexão para o entendimento das características da comunicação televisiva que estão presentes nos dois referidos longas-metragens produzidos pela Globo Filmes: não dispondo do espaço e tempo de atenção concentrada do cinema, da sala escura, a televisão acaba por prender o espectador por meio da evocação de seu cotidiano, da realidade familiar, buscando produzir sensações e sentimentos de simultaneidade entre a recepção e a mensagem, o meio, a partir do discurso direto, coloquial. Por isso, o uso de uma linguagem sustentada na “simplicidade, clareza e economia narrativa” segundo análise de Jesús Martín-Barbero (1997:295).

Ainda segundo esse autor, a televisão almeja uma magia de ver enquanto o cinema compreenderia a fruição, distanciada, da magia da imagem :

Por retórica do discurso direto entendemos o dispositivo que organiza o espaço da televisão sobre o eixo da proximidade e da magia de ver , por oposição, ao espaço cinematográfico dominado pela distância e pela magia da imagem. No cinema, a função comunicativa central é a poética – e isto, ao menos como intenção, até nos filmes mais baratos -, quer dizer, a transfiguração arquetípica da realidade. Daí, que, embora preso pelo argumento e fascinado pelos rostos em primeiro plano, o espectador permanece distante. Os objetos, as ações e os rostos no cinema estão carregados de valor simbólico (MARTÍN- BARBERO, 1997 :294).

Apesar de grande concordância em relação aos apontamentos colocados por Martín-Barbero 7 a respeito das funções básicas e sentidos da linguagem do

7 Ver trabalho de mestrado com base na teoria das mediações de Jésus Martín-Barbero - GONÇALVES , Carlos Pereira. Cinema brasileiro, anos 90: recepção, mediações e consumo cultural dos paulistanos . Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2001. 70 cinema e televisão, conforme configuração social de seus rituais e práticas, o presente autor desta tese resiste em entender a linguagem da televisão sempre em busca do próximo e o cinema, do distante. Em muitos trechos de filmes e telenovelas ou séries de televisão, tais abordagens da linguagem não podem se apresentar com resultados invertidos? A condição de maior reflexão do espectador de cinema não cria uma fruição imaginária, psicológica e emocional que enuncia, também, estruturas simbólicas e míticas de proximidade? A prática da audiência do cinema em salas de exibição não é muitas vezes uma ação ritualística configurada na magia de ver e ouvir ?8

Mas convém deixar, por ora, estas discussões a respeito da função social e comunicativa do cinema, dos elementos de composição de sua linguagem, uma vez que serão aprofundados adiante nos capítulos 4 e 5. Efetuada esta preliminar discussão do contexto social e mapeamento das principais temáticas e características ficcionais do Novo Cinema Brasileiro, nota-se que, conforme menção a vários dos filmes de estrada ao longo do primeiro capítulo, muitas destas perspectivas estilísticas também são comuns à filmografia específica em estudo no presente trabalho, indicando que o gênero configura padrões de enunciação narrativa, mas também variações de linguagem, de marca de autoria, de representação cultural e estética singulares.

Antes de uma investigação mais minunciosa dos 11 (onze) longas-metragens que compõem o corpus de pesquisa desta tese, a ser realizada no capítulo 5, cabe aprofundar três conceitos/categorias-chave para o desenvolvimento de análise proposta neste trabalho, a saber: identidade cultural , mitologia moderna e a própria concepção de gênero cinematográfico. Caminhos a serem percorridos nos próximos três capítulos.

8 Cabe agregar a abordagem dos sentidos da audição para falar da linguagem do cinema (poderíamos estender também à televisão), relembrando a condição audiovisual de ambos. No caso do cinema, do ponto de vista de uma análise fílmica, a chamada banda sonora, abarca tanto a prosódia das falas, dos diálogos, como a trilha sonora incidental propriamente dita, composta de efeitos, peças instrumentais e de canções – letra e música ( BERCHMANS , 2006). 71

2. CULTURA E IDENTIDADE NO SÉCULO XXI: A POLIFONIA SOCIAL DAS COMUNIDADES IMAGINADAS - O LOCAL, NACIONAL E GLOBAL 72

A era planetária

Reconhecimento, comunidade, memória, pertença, diversidade, permanência e unicidade. São palavras normalmente associadas à identidade cultural , quando algum artista ou intelectual se encaminha na difícil tarefa de comentá-la ou defini-la. Tal trabalho torna-se mais difícil se o objeto de exposição se referir ao espaço e tempo presentes: nossa aldeia conectada à fluida e mutável modernidade global.

Falar de identidade cultural nos dias de hoje, no Brasil, México, Japão ou Irã, pode parecer, a princípio, algo infundado. Se examinarmos, à primeira vista, algumas características da vida social nesse mundo envolto em constantes mudanças de valores morais, culturais e políticos, formas de prover riquezas e trabalho e mediação de novos aparatos tecnológicos que interferem sobremaneira no modo de viver o cotidiano, as relações de sociabilidade e afetividade – a galáxia cibernética aos nossos olhos –, o tema não se sustenta.

Mas será que essas transformações de toda ordem - em andamento nesta era pós-moderna 9, em que o tempo tende cada vez mais ao veloz, ao instantâneo e ao descontínuo, e o espaço , ao extraterritorial, ao transnacional, à virtualidade, ao não-lugar - alteraram substancialmente as relações sociais e culturais em que se assenta o hegemônico sistema capitalista? Essas mudanças são as mesmas em todo lugar? Como ficam as comunidades ou nações contemporâneas, os laços afetivos comuns e os costumes compartilhados nesse cenário planetário que se movimenta no esgarçar de tradições e da história coletiva ?

Assim, pretendo discutir, adiante, o tema da identidade cultural , inicialmente a partir do entendimento do que seja o tão referido mundo social pós-moderno ou – utilizando os termos-conceitos e, consequentemente, sua teoria e visão de

9 O termo pós-moderno foi plenamente aceito e conceituado por vários cientistas sociais, desde a década de 1970, destacando-se Jean François Lyotard (1993); David Harvey (1989); Frederic Jameson (1996); Stuart Hall (1997) e Michel Maffesoli (2004). 73 mundo, que adoto e defendo nesta tese - modernidade líquida (BAUMAN, 2000, 01, 03, 05, 07) e hipermodernidade (LIPOVETSKY, 2004).

A meu ver, tais termos nomeiam, com mais precisão, os tempos atuais, uma vez que captam as mudanças estruturais profundas do sistema capitalista em andamento, mais salientes após os anos 1950, mas não excluem sua história – o tempo passado - e a permanência das lógicas de sustentação de poder e riqueza e reprodução social, como alude, a priori imageticamente, o prefixo pós – ou seja, uma leitura muitas vezes funcionalista da realidade, na frágil comunicação de apaziguamento das diferenças sociais.

Pensar na identidade cultural – o que não deixa de ser uma reflexão às perguntas: O que é cultura? Qual a diferença entre cultura e identidade? Qual o papel destas na contemporaneidade? Como as sociedades latino-americanas vivem e reinventam a cultura em meio à hibridização de tradições e modernidades tão desiguais? – não posso deixar de registrar que é uma preocupação especial minha e uma das razões de escolha do corpus desta tese: filmes brasileiros contemporâneos de narrativa de estrada.

Essa discussão de identidade cultural será desdobrada no penúltimo e último capítulo, nos quais serão analisados o gênero road movie e os filmes brasileiros produzidos nos anos 1990 e 2000. Adianta-se que a tese trabalha com a hipótese de que o gênero cinematográfico é uma criação vinculada à história mundial recente, pós-1950, enunciando novos atores sociais de identidade contemporânea e, no caso da produção nacional, refletindo também a tradição moderna que forma o atual imaginário social, marcado pela hibridação (GARCÍA CANCLINI, 2000). Tal mestiçagem é tensionada/aglutinada por aspectos de produção cultural regional e nacional, bem como da hegemônica cultura midiática audiovisual (norteada pela televisão).

Para tanto abordarei, neste mapeamento teórico, parte 2.1, Identidades culturais em trânsito: em busca de uma definição contemporânea do conceito , as principais problemáticas e tendências das transformações sociais da 74 modernidade tardia e o processo de globalização, enfatizando a esfera da cultura, a partir dos seguintes autores: Zygmunt Bauman, Stuart Hall, Michel Maffesoli, Arjun Appadurai e Benedict Anderson. No segundo item desta parte, tal tema será argumentado por meio dos latino-americanos Jésus Martín- Barbero, Nestor García Canclini e Renato Ortiz.

Em 2.2, A revolução cultural e as novas identidades planetárias pós-1950 , será dada continuidade a essa discussão teórica do tema com base em Hobsbawm, Lipovetsky e Castels, buscando destacar as possíveis mediações comunicativas entre o imaginário social deste recente período histórico, caracterizado pela intensa transformação da infra e superestrutura, e a formação do gênero filme de estrada, foco principal de análise no capítulo posterior.

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2.1 Identidades culturais em trânsito: em busca de uma definição contemporânea do conceito

Tendências contraditórias: a mundialização da cultura e o retorno ao comunitarismo

As análises de Zygmunt Bauman (2000, 01, 03, 05, 07) sobre o desenvolvimento do processo de globalização têm salientado a marcante fragmentação da vida social com sua proposta do referido termo-conceito modernidade líquida . O sociólogo, de origem polonesa, vislumbra, assim, uma radical mudança do estado das coisas entre a primeira modernidade – a consolidação do capitalismo industrial –, até meados do século XX, e o recente período histórico em que a riqueza se alavanca, principalmente por meio do terceiro setor econômico, na profusão da base tecnológica e numa cadeia mundial produtiva descentralizada. E, para tanto, utiliza-se de expressões metafóricas contrastantes que definem essas duas modernidades: do sólido e pesado para o leve e líquido.

O tema identidade aparece, de modo especial, em sua entrevista ao jornalista italiano Benedetto Vecchio (BAUMAN, 2005). Como já havia apontado em Modernidade líquida (BAUMAN, 2001), paralela à tendência hegemônica ao individualismo de caráter consumista nas sociedades contemporâneas, temos uma causalidade contra-hegemônica expressa na emergência do comunitarismo , do qual extraí, além do aspecto cultural da questão, certo apontamento político: há uma reação ao crescente desequilíbrio entre a liberdade e as garantias individuais (BAUMAN, 2005, p.195), resultante da política conservadora liberal implementada com o processo de globalização durante os anos 1990-2000.

Tomando como base de análise as ideias de Kracauer (apud Bauman, 2005), o autor separa dois tipos de comunidades às quais as identidades se referem como sendo as entidades que as definem:

Existem as comunidades de vida e de destino, cujos membros (segundo a fórmula de Siegfried Kracauer) “vivem juntos numa ligação absoluta”, e outras que são “fundidas unicamente por 76

ideias ou por uma variedade de princípios” (BAUMAN, 2005, p.17).

Essa concepção sobre comunidade e identidade abre caminho para compreender melhor o tema, tendo em vista certas características das sociedades complexas. Afinal, encaminhar-se para analisá-la em sociedades marcadas pela fragmentação social – trabalho, crenças, práticas culturais, sociabilidades cotidianas, etc. – não se demonstra, à primeira vista, uma abordagem muito coerente.

Se a tendência ao individualismo em sociedades capitalistas, tanto na modernidade sólida como líquida , é estimulada por suas próprias instituições sociais – uma de suas lógicas internas mais ativas –, deve-se também ponderar que estas promovem, paralelamente, formas de sociabilidade notadamente gregárias, representando, assim, mecanismos diversificados de reproduzir a ordem social – família, escola, trabalho, religião, etc.

Ou seja, se esse individualismo ou os mecanismos sociais de afirmação de individualidade forjados no sistema capitalista podem ser entendidos como antinômicos à vida coletiva ou à tradição, eles acabam por arrefecer suas forças com a investida diversificada das lógicas e ideologias de igualdade e ordenamento promovidas pelas instituições sociais – num cenário de conflitos, crises e construção de novas mediações sociais e culturais, mediante a polarização indivíduo/sociedade acirrada, notadamente, nesse período pós- moderno/moderno líquido.

A vida social torna-se ainda mais diferenciada na modernidade, à medida que o campo da cultura se amplia, por meio da educação formal de massa e expansão do espectro político com a difusão de ideias ou a variedade de princípios , como aponta Bauman, citando Kracauer, para caracterizar comunidade ou identidade , conforme comentado anteriormente. Estas, portanto, descolam-se, aos poucos, do plano territorial imediato – o referido modelo de comunidade dos que vivem juntos numa ligação absoluta – e projetam-se como imaginadas, à medida que o mundo cria formas de ampliar a 77 circulação de ideias, informações e produção cultural com o suporte dos meios de comunicação de massa (essa abordagem será melhor discutida adiante por meio das concepções de Anderson).

Por outro lado, Bauman problematiza um pouco mais esse campo de formação de vida comunitária moderna ou de identidades, ao se reportar às profundas mudanças entre as modernidades sólida e líquida :

É nisso que nós, habitantes do líquido mundo moderno, somos diferentes. Buscamos, construímos e mantemos referências comunais de nossas identidades em movimento – lutando para nós juntarmos aos grupos, igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo (BAUMAN, 2005, p. 32).

À medida que as comunidades são interagidas pelo movimento de diferenciação das identidades individuais e que são ampliadas na difusão comunicativa e educacional e na vivência do cotidiano em meio a constantes transformações econômicas e tecnológicas, as mediações coletivas também se diversificam ou se segmentam com a formação de novas comunidades.

As identificações culturais tornam-se permanentemente móveis e instáveis entre o movimento social de caos e ordem, ruína e construção, realidade e simulacro. A fragmentação acelerada e o desenraizamento das tradições nesse mundo líquido são, certamente, fatores de desconexão ou distanciamento da vida social comunitária e de suas identidades decorrentes.

Porém, paralelamente, estas se recriam ou reavivam, nesse mundo de incertezas, por meio do movimento contra-hegemônico do comunitarismo (BAUMAN, 1999, 2001, 2003) e do reforço (ou continuidade) das identidades locais (HALL, 1997, 1998), gerado, em boa medida, em reação ao movimento de globalização e mundialização da cultura, a provável paisagem ambivalente da hipermodernidade .

Stuart Hall (1997) também argumenta que a modernidade tardia da segunda metade do século XX acelerou a formação de novas identidades criadas a partir de mudanças estruturais profundas nas sociedades contemporâneas. 78

Para o autor, o sistema de representação cultural, chamado identidade nacional, está em crise num mundo em que a cultura transnacional conquista um espaço que se pretende hegemônico, amparada pela força da nova economia de trocas amplamente internacionais.

Este importante teórico dos Estudos Culturais Ingleses afirma que as diversas transformações sociais e culturais em andamento estabelecem um novo tipo de sujeito e identidade: o sujeito pós-moderno , definido como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente . Há um duplo movimento de deslocamento na noção de indivíduo: de si mesmo e do lugar de pertença no mundo social e cultural (HALL, 1997, p. 12-13).

Essa órbita individual, que gira, não mais de forma newtoniana e, sim, quântica, sem núcleo definido ou determinante, é produto histórico e coloca-se perceptível a partir da década de 1960, período de importantes inovações no campo da revolução do sujeito , da ampliação do campo das subjetividades:

Não podemos mais conceber o individual como totalidade, centralidade, Ego estável, completo e autônomo, eu racional. O eu é concebido como mais fragmentado e incompleto, composto de múltiplos eus ou identidades em relação aos diferentes mundos sociais que habitamos, alguns com uma história produzida, em processo. O sujeito é determinante colocado ou posicionado por variados discursos e práticas (HALL, 1998, p. 17).

A meu ver, o que há de interessante nessa revolução do sujeito pós-moderno , identificada por Hall, é que ela possuía, a princípio, uma longa duração – produto do capitalismo do fim do Século XIX – e foi experimentada, inicialmente, no campo da alta cultura – filosofia e arte – e da ciência (animando o mundo, por exemplo, com as manifestações artísticas das vanguardas europeias e de outras partes do mundo como o surrealismo, o impressionismo, o abstracionismo das artes plásticas, o romance moderno, o cinema, etc.) e, depois de décadas, tornou-se de massa , em meio à revolução da educação, da comunicação e dos novos valores culturais decorrentes do modo de vida predominante urbano e cosmopolita pós-anos 1960, notadamente no mundo ocidental. 79

Apesar dessa ascensão do sujeito individual , o pesquisador representante dos Estudos Culturais Ingleses não indica um quadro de tendências em que os sujeitos coletivos tornaram-se figurantes nesse mundo pós-moderno. Há, aqui, uma ideia política importante ponderada por Stuart Hall (1998). A dispersão da imagem do social – sua fragmentação ou autonomização (BOURDIEU, 1992) – tem levado a falsas abordagens dos Novos Tempos como o fim da História, das lutas de classes, da ideologia, como desejam ardentemente os adeptos do liberalismo conservador, do pensamento único, que imperou no planeta nas últimas décadas.

Porém é inevitável perceber que o campo político está em crise e, como observa Hall, no sentido de questionar o pensamento político de esquerda, falta a este perceber essa nova realidade em que os sujeitos individuais são importantes protagonistas: a esfera da cultura é um campo central da produção da vida social, tanto quanto o campo econômico . Mais ainda: que este não deve ser lido apenas do ponto de vista ideológico a mascar os conflitos sociais que oprimem as classes populares, uma noção nostálgica de classe impregnada de estereótipos. É necessário admitir que esses sujeitos individuais têm transformado profundamente os sujeitos coletivos.

O viajante e a estrada tornam-se figuras alegóricas desse mundo em transformação constante, ensejado na segunda metade do século XX. Exemplo de novos sujeitos sociais, do sujeito pós-moderno sublinhado por Stuart Hall, pode ser percebido na caracterização psicológica e social da protagonista do road movie O céu de Suely (Karim Aïnouz; 2006). Hermilla é uma jovem cearense, nascida na região do sertão, que retorna a casa em situação provisória. Vinda da cidade de São Paulo, onde acabara de ter um filho, aguarda o seu namorado para recompor projeto de vida, com vista a novo deslocamento, assim que vencidas as dificuldades financeiras que a fizeram voltar à cidade natal. 80

Imagem 12: O céu de Suely (Karim Aïnouz; 2006)

Conforme transcorre o enredo, fica-se sabendo que o marido não voltará. Na busca de meios para angariar dinheiro suficiente, a fim de iniciar o novo périplo, que deverá ser sem o pai de seu filho, pois a iniciativa de reintegrar-se à vida social do local não se mostrou um projeto feliz, ela acaba criando a personagem fictícia Suely, rifando seu corpo por uma noite de prazer ao sorteado.

Ao experimentar essa fantasia, na ambiguidade entre o desejo e a repulsa, Hermila acaba por refletir de modo intenso, consciente, sobre sua história de vida, feita da invenção permanente de novas formas de pertença e construção renovada de laços afetivos, cujo apanhado individual espelha, também, numa leitura de contexto, boa parte da vida social daquela pequena cidade do interior do nordeste, que transita entre a forte herança da tradição da região e o acolhimento da modernidade dos novos tempos (no capítulo 5 tudo isso será discutido em detalhes).

O tecido social múltiplo e uno das tribos urbanas

Maffesoli (2004, 2006) possui uma visão bastante idiossincrática da vida social na pós-modernidade. Na inversão do conhecido esquema de Durkheim sobre os mecanismos de coesão entre indivíduos e as instituições sociais com a confrontação das sociedades primitivas (marcadas pela solidariedade mecânica) e as sociedades capitalistas (construídas na solidariedade orgânica – consequência do progresso e da racionalização da vida moderna), o autor argumenta que o modernismo instalou, ao contrário, uma solidariedade 81 abstrata, racional e desencantada, portanto previsível e mecânica, e inversa à proposta por Durkheim para as sociedades capitalistas.

A modernidade trouxe, assim, a dominação do logos e afastou os indivíduos da alegria da vida encontrada nas comunidades mais arcaicas. Aqui o sociólogo francês retoma a figura de Dionísio, sua centralidade subterrânea, emocional e subjetiva, como o fizera Nietzsche, no final do século XIX, ao criticar vigorosamente a moral judaico-cristã de sua época. Maffesoli afirma – polemicamente – que a pós-modernidade traz o declínio do individualismo nas sociedades de massa, à medida que temos a afirmação da vida coletiva revigorada por seu simbolismo trinário, policultural que:

[...] permite fazer ressaltar o paradoxo, o estilhaçamento, o dilaceramento, o contraditório em ação em uma palavra, a pluralidade constitutiva desse neotribalismo contemporâneo. Dessa maneira, à sonhada Unidade está se sucedendo uma espécie de unicidade: o ajustamento de elementos diversos. À imagem de sinestesia que sabe integrar, no quadro de uma harmonia conflitual, os funcionamentos e os disfuncionamentos corporais, a noção do Terceiro acentua o aspecto fundador da diferença [...] (MAFFESOLI, 2006, p.172).

Esse novo cenário social pós-moderno, em que as identidades se tornam frágeis tanto quanto os indivíduos, em função das múltiplas identificações vivenciadas organicamente em cada tribo/grupo, é alicerçado na sinergia de fenômenos e mitologias arcaicas provenientes desse novo coletivismo.

O presente autor entende que Maffessoli propõe um cenário utópico. Ele mesmo afirma que tais investigações são projetivas, sem ter, necessariamente, lastro empírico e, ao mesmo tempo, mediador da ressignificação da produção do social e da expressão da cultura nesse mundo hipermoderno.

Convém ressaltar que, a meu ver, o individualismo é ainda um dos grandes mitos da modernidade e está completamente arraigado no imaginário desses novos tempos. Mas é necessário pensar sua dupla condição: uma, emancipadora, vinculada à racionalidade crítica, sensível aos vínculos gregários, à alteridade; e a outra, de regressão social, que se atola na 82 hipertrofia do espaço privado e do materialismo consumista tão em voga nesta era de globalização politicamente conservadora.

Também não se acredita, infelizmente, na decadência da dominação do logos. Essa me parece estar, ainda, muitíssimo urdida nos poderes das instituições sociais que continuam a utilizar o discurso racional em contrainvestida às forças descentralizadoras da economia e da vida social pós-moderna por meio de sua forma instrumental.

Mas vislumbram-se certas tendências sociais e culturais para descrever a pintura da pós-modernidade e sua lógica de ambivalências , algumas delas ressaltadas por Maffesoli: o revigoramento dos localismos e também do nacionalismo, paralelo à homogeneização global da cultura (sua norte- americanização?); a difusão do hedonismo corporal/estético e, ao mesmo tempo, dos movimentos de reencantamento do mundo com base nas antigas e novas crenças espirituais e religiosas.

Em relação ao localismo, Appadurai (1997) salienta uma importante característica do mundo contemporâneo que, em boa medida, contribui para o enfraquecimento da identidade nacional nos dias de hoje: a separação entre soberania e territorialidade, motivada, em grande parte, pelos movimentos migratórios transnacionais, solicita novas formas políticas e culturais para acomodar a questão da identidade na confluência entre as referências da comunidade de origem e de destino , que ele chama de translocalidade .

Para o antropólogo de origem indiana, o Estado-Nação, que tende a demandar um povo homogêneo, com conjuntos padronizados de direitos, sempre construiu uma ideologia cultural de discriminação entre diferentes categorias de cidadãos. Este sustenta a ideia equivocada de que fronteiras territoriais poderiam manter uma singularidade étnica nacional. Porém esta organização compacta e isomorfa de território, etnia e aparato governamental conviveu permanentemente com o refluxo de movimentos étnicos regionais/locais.

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Observa-se que o mundo assiste a um fenômeno migratório sem precedentes em termos de sua dispersão planetária. As disputas entre os grupos de diásporas e os Estados de acolhimento estão criando novas formas de arranjos culturais, sociais e políticos. Segundo Appadurai, essa geografia pós-nacional deveria ser melhor estudada na academia. Concorda-se com a proposta, mas o termos pós-nacional não parecem ser adequados para descrever a real situação dessa instituição enfraquecida com a globalização, mas de poder estruturante ainda enorme na definição dos rumos da vida social e das identidades culturais do planeta.

Com a liberação econômica e cultural, muitos cidadãos reinvestem seu capital e retomam laços culturais com a sua nação de origem, criando um novo contexto de identidade cultural – a translocalidade . Exemplo disso são os indianos não-residentes (Non-Resident Indian – NRI), que gozam de direitos especiais no país de origem. Appadurai aponta que o mundo contemporâneo articula cada vez mais disjunções entre noções de espaço, lugar, cidadania e nacionalidade, criando uma separação entre Estado e nação. Esta última está, frequentemente, vinculada aos discursos de lealdade e afiliação, de caráter linguístico, étnico ou religioso, mas, muito raramente, de ordem territorial.

Há uma nova cartografia nacional, na qual as instâncias de “éthos” e “demos” estão desigualmente espalhadas pelo mundo e o mapa das nacionalidades atravessa as fronteiras nacionais existentes e cruza-se com outras formações “translocais”; exemplos: palestinos, curdos e sikhs. Essa população gerada por movimentos de refugiados ou migrantes em busca de condições materiais mais favoráveis situa-se em cidades que possuem vínculos frágeis com o ambiente nacional, mas permanentes com interesses transnacionais.

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Imagem 13: Terra estrangeira (Daniela Thomas e Walter Salles; 1995).

Essa geografia pós-nacional, da translocalidade, pode ser visualizada e ouvida no filme Terra estrangeira (Daniela Thomas e Walter Salles; 2005). Na segunda parte do filme, transcorrida em Lisboa, personagens de nacionalidade brasileira e caboverdiana, portanto provenientes de países de passado histórico comum a Portugal, terra matriz da língua compartilhada, vivem como cidadãos de segunda categoria. Por isso o cotidiano apartado em grupos, tribos, reproduzindo práticas de sociabilidade da terra natal, reinventando, assim, a nação imaginária de origem .

Mestiçagens de tradições e modernidades: cultura e identidade na América Latina

Mas como é vivido ou imaginado esse novo cenário social e cultural na América Latina atravessada pela globalização e por intensas transformações tecnológicas? É possível falar, ainda, de identidade cultural em meio a essas mudanças da vida social? Escosteguy (2001) afirma que a questão da identidade é tema central para os estudos culturais nessa parte do planeta. Duas visões e autores são destacados para sintetizar esse debate: o descentramento (Martín-Barbero) e a hibridação (García Canclini).

Jesús Martín-Barbero (1987, 2006) possui uma trajetória acadêmica diversificada, iniciada na filosofia, passando pela semiótica até a sua atuação na área de comunicação e cultura. Em sua obra observa um apontamento central: os meios massivos transformaram-se nos mediadores sociais da superestrutura mais influente da cultura em países latino-americanos ao longo do século XX. Portanto, para compreensão da identidade nacional ou cultural 85 nessa parte do planeta, é fundamental, evidentemente não exclusiva, a análise da produção e recepção dos meios massivos – rádio, mídia impressa, cinema, televisão e internet e suas mediações culturais e sociais mais amplas .

Anderson (2008), ao estudar a gênese do sentimento nacional moderno na Europa, também destaca a importância dos meios massivos na formação dessa identidade. Para o autor inglês, a representação imaginária de nação é consequência de um longo processo de mudança de mentalidade; do enfraquecimento de dois sistemas culturais: a comunidade religiosa e o reino dinástico; da formação de novas sociabilidades oferecidas nas cidades industriais – o nascimento das massas –; e da experiência do consumo ritualístico de romances e jornais a partir dos séculos XVIII/XIX:

[...], pois estas formas [o romance e o jornal] proporcionaram meios técnicos para “re-presentar” o tipo de comunidade imaginada correspondente à nação.[...] o desenvolvimento da imprensa como mercado é a chave para criação de ideias inteiramente novas sobre a simultaneidade [...] estamos simplesmente no ponto em que se tornaram possíveis às comunidades de tipo “horizontal-secular, transtemporal” [as nações] (ANDERSON, 2008, p.55 e 71).

Essa nova noção de tempo – efêmero e simultâneo –, o predomínio do momento presente, o enevoar da memória coletiva e a bricolagem de referências espaciais diversas (este não é o mesmo tempo fluido pós- moderno?) são produtos da clivagem do tempo cosmológico tradicional e da história que funda a modernidade e passam a ser constituídos e imaginados por intermédio dos meios massivos.

O autor inglês argumenta, ainda, que os meios de comunicação impressa têm papel central no processo de vernaculização/nacionalização das línguas na Europa Moderna. A nação traz, portanto, uma contradição fundadora da modernidade, ao moldar sua identidade: a homogeneização linguística e étnica que se contrapõe à mediação entre cultura tradicional (identidades locais eletivas) e moderna (as ideias e sentimentos de progresso e mudança social).

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No outro lado do Atlântico, ao reconstituir a história do massivo e da modernidade na América Latina, Martín-Barbero (1997) também aborda a formação do Estado, bem como o papel dos meios de comunicação na configuração das culturas nacionais e, entre outras questões, as relações entre massificação e populismo, citando o cinema mexicano, o radioteatro argentino e a música brasileira como mediadores na constituição dessas novas experiências populares e urbanas.

A apreensão do tempo simultâneo e da modernidade por parte da mídia impressa, como analisou Anderson para entender a gênese da identidade nacional na Europa, deve ter, como referência, outros meios para análise da questão na América Latina (na direção da oralidade, pois a massa populacional é notadamente iletrada durante essa fase de formação do imaginário nacional ): o rádio, o cinema e a televisão. Nota-se, portanto, que a consolidação efetiva das identidades nacionais só ocorreu ao longo do século XX (MARTIN- BARBERO, 1997; GARCÍA CANCLINI, 1990; ORTIZ, 1988).

Martín-Barbero (1997) dedica-se especialmente ao estudo da constituição da linguagem e do consumo da televisão, na perspectiva de entender como esse meio e a cultura tornam-se esferas sociais tão próximas na América Latina. Sua proposta de entendimento dessas mediações culturais e comunicativas implica analisar tanto a ritualidade da recepção como os formatos industriais dos meios massivos (discurso, gêneros, programas e grades), além da contextualização das matrizes culturais dos receptores ( as culturas e identidades diversas: étnicas, de gênero, classe, locais, etc .) e do processo histórico de hegemonia/contra-hegemonia do campo comunicativo (suas relações de poder entre os meios massivos e as classes e grupos sociais ao longo do tempo histórico).

Para o autor de origem espanhola e naturalizado colombiano, há, no meio audiovisual televisivo, a constituição de narrativas impregnadas da percepção do tempo e espaço simultâneo, cujo imaginário social latino-americano representado pode ser sintetizado pela mestiçagem cultural que se evidencia no fluxo de matrizes nacionais e, ao mesmo tempo, regionais/locais e 87 transnacionais, no pastiche, na bricolagem estética, no popular e na cultura das classes médias.

O descentramento salientado por Escosteguy (2001) para qualificar a percepção da identidade cultural por parte de Martin-Barbero tem, nessa condição plural e circular de produção e recepção da comunicação, sua abordagem central: os meios massivos instalam um sensorium marcado pelas experiências da simultaneidade, do instantâneo e do fluxo (Martin-Barbero, 2006, p.35) e transformam profundamente a cultura latino-americana na contemporaneidade e sua noção de identidade.

Conforme discutido no primeiro capítulo, uma das características marcantes do Novo Cinema Brasileiro é a influência do estilo e da linguagem da televisão, em especial da produção da TV Globo, o que sinaliza a forte mediação social desse meio audiovisual na cultura contemporânea latino-americana, como salienta Martín-Barbero. A televisão torna-se provedora tanto de valores culturais como de identidade coletiva. Tal fluxo comunicacional dos meios televisão e cinema pode ser observado, por exemplo, nos filmes de estrada Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes; 2003) ou O caminho das nuvens (Vicente Amorim; 2003).

A hibridização do gênero de estrada com as narrativas de apelo popular tradicionais da televisão – melodrama e comédia –, a interpretação naturalista dos atores, em aproximação à fala prosaica, cotidiana, a temática da família nuclear gregária, o star system de reconhecimento em todo o rol de protagonistas, a trilha sonora ancorada em artistas de sucesso do cancioneiro da MPB, espelhando a experiência da valorização do formato canção de origem nativa na perspectiva do crossover (meio audiovisual e mercado fonográfico), são alguns dos elementos que aproximam o estilo e a comunicação da televisão – novelas e seriados – da forma própria do cinema. Tal apontamento será aprofundado nas análises desses filmes a serem realizadas no último capítulo da tese.

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Imagem 14: O caminho das nuvens (Vicente Amorim; 2003)..

Os caminhos complexos da modernidade tropical

Essa discussão sobre a cultura contemporânea latino-americana, sua mestiçagem e o longo processo histórico de formação social de nossa identidade, construída entre conflitos e demandas de classes, etnicidades, tradições e modernidades diversas, foi também tratada por García Canclini e sintetizada de modo exemplar no conceito hibridação (1990).

O antropólogo argentino discute o conceito no livro Culturas híbridas (1999), para caracterizar as sociedades latino-americanas como tais, não somente em função da evidente abordagem à mestiçagem étnica que diz respeito às matrizes africanas, ameríndias e europeias, mas também devido às condições sociais e econômicas específicas de formação dessas nações, que engendraram uma modernização diversa e desigual.

Nessa parte do continente americano, a cultura erudita desenvolveu-se do ponto de vista da vida social de forma pouco distinta, definindo-se, assim, muito mais pelos seus aspectos estéticos do que pela produção e apropriação de um extrato numericamente relevante, uma vez que a população letrada é absolutamente infama, nessa região, até meados do século XX.

Por sua vez, a cultura massiva ocupa um espaço de comunicação amplo – produção, circulação e recepção –, um dos principais responsáveis pela constituição das identidades nacionais nos países latino-americanos ao longo do século passado. Essa produção borra fronteiras entre o popular e o erudito 89 pela própria dinâmica intrínseca de mediação que os meios de comunicação de massa realizam em todas as esferas sociais, com o aprofundamento desse processo de hibridismo de matrizes , especialmente com a consolidação da Indústria Cultural (pós-década de 1960), com destaque para a popularização do consumo do audiovisual televisivo.

Esse conceito desqualifica qualquer análise sobre a cultura da América Latina, por parte de García Canclini, que seja essencialista , concepção essa que propõe o isolamento das tradições, mas aponta para uma perspectiva que enfatiza a interpretação da diversidade de sentidos e as especificidades das transformações históricas da cultura; e essas tornam-se muito mais complexas, à medida que se caminha para uma globalização da vida urbana , com seus modos, muitas vezes, descontínuos e multitemporais de produção da materialidade social:

[...] Hoje concebemos a América Latina como uma articulação mais complexa de tradições e modernidades (diversas, desiguais), um continente heterogêneo formado por países onde, em cada um, coexistem múltiplas lógicas de desenvolvimento. Para repensar essa heterogeneidade, é útil a reflexão antievolucionista do pós-modernismo, mais radical que qualquer outra anterior. Sua crítica aos relatos onicompreensivos sobre a história pode servir para detectar as pretensões fundamentalistas do tradicionalismo, do etnocentrismo e do nacionalismo, para entender as derivações autoritárias do liberalismo e do socialismo (GARCÍA CANCLINI, 1990, p. 188).

Essa provocação do autor atesta a tentativa de uma visão crítica e concomitantemente aberta aos novos tempos, tendo, como foco, a globalização e o entendimento das diferentes transformações sociais em curso; porém, como esse processo é muito recente, estamos no olho do furacão . Essa análise pendular, que ora se coloca como uma abordagem afirmativa ora assume uma posição de crítica negativa, tende a apresentar um tom mais incisivo, ao ressaltar os aspectos de desigualdade e conflito que ainda definem a realidade do continente americano de colonização ibérica e que pode ser percebido nos trabalhos mais recentes do antropólogo argentino.

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García Canclini afirma que, diferentemente do conceito cultura , não é possível definir identidade com rigor como objeto de estudo. Em sua concepção, cultura é o conjunto de produção, circulação e consumo de significações na vida social (García Canclini, 2008, 78). Por outro lado, as narrativas denominadas como identidades incorrem numa definição vaga e não fornecem:

[...] um conjunto de traços que possam ser apontados como a essência de uma etnia ou de uma nação, e sim uma série de operações de seleção de elementos de diferentes épocas articulados pelos grupos hegemônicos numa narração que lhe dá coerência, dramaticidade e eloquência (GARCÍA CANCLINI, 2003, p. 78).

Preciso, aqui, discordar do autor. O tal rigor de análise sobre a cultura, em parte, é assegurado em função do levantamento de dados empíricos do objeto de pesquisa – nível descritivo. Mas ele se torna, a seguir, um campo de representação e abstrações variadas, à medida que é filtrado pela visão de mundo e teoria do pesquisador – nível interpretativo. E aí se tem um campo de leituras contraditórias. Deve-se ponderar que o próprio objeto apreendido no nível descritivo é mutável e, portanto, as generalizações são necessárias para a criação de conceitos razoavelmente sintetizadores dos particularismos e das transformações desse universo social.

A condição imprecisa da identidade cultural é evidenciada, à medida que o lastro da tradição se enfraquece e os aspectos de mutabilidade da vida moderna se evidenciam na contemporaneidade. Mas, como estudou Anderson (2008), é possível pensar a identidade nacional como um sistema de representações de uma comunidade imaginada, construída historicamente pelos Estados num contexto de mudança social que caracteriza a modernidade.

E, aqui, não temos a essência de um povo, mas uma representação seletiva, de homogeneização, de um território formado por inúmeras etnias e grupos sociais. Apesar da arbitrariedade, não se pode excluir que tal representação é influente na vivência e nas significações da cultura para tal povo e que seus conteúdos são tão artificiais à realidade social de referência. 91

Por outro lado, fica claro que as identidades nacionais tornaram-se referências culturais restritas para representar exclusivamente os sentimentos de pertença à vida social contemporânea – móvel, instável, mestiça, multicultural e em constante fragmentação – e a formação de comunidades locais ou tribos urbanas diversas. Mas será mesmo que não existem discursos, imagens ou símbolos de síntese das características e sentimentos de compartilhamento das comunidades atuais? As identidades nacionais de fato tornaram-se obsoletas e sem sentido? É possível pensar a convivência de várias identidades culturais filtradas pelos sujeitos individuais? Ou temos aí apenas identificações sociais?

Antes de continuar com tais questionamentos sobre a pertinência do conceito identidade, pretendo abordar ainda a compreensão da sociedade contemporânea por meio das análises do sociólogo brasileiro Renato Ortiz. O autor tem trabalhado, nos últimos anos, com o conceito mundialização da cultura para abordar o processo de globalização e suas consequências na esfera da superestrutura.

No balanço sobre a formação da nação brasileira e de sua modernização ao longo do século XX, Ortiz (2000) nota uma ruptura, a partir da década de 1930, com o surto industrial ao longo do governo Getúlio Vargas (1930-1945), além da consolidação de uma sociedade urbano-industrial, inicialmente, em centros mais dinâmicos, como São Paulo e Rio de Janeiro. Durante esse período ocorre a expansão do ensino primário de modo massivo e a afirmação do rádio e do cinema como meios populares de massa, bem como a incorporação de aspectos da cultura popular pelos meios de comunicação.

A partir da década de 1950 dá-se, efetivamente, a consolidação de um mercado de bens culturais na esteira do forte desenvolvimento do período: a Indústria Cultural torna-se nacional com o crescimento intenso dos mercados televisivo, fonográfico e editorial. No âmbito da cultura, constata-se a redefinição do popular: “o popular agora denota o que é mais consumido”. Configura-se, assim, “ a cultura popular de mercado ou massa no Brasil” (Ortiz, 2000, p. 203). 92

A partir das décadas de 1960-70, a produção de comunicação massiva torna- se crescente em diversas regiões do planeta e o processo de mundialização, tendo a cultura norte-americana contemporânea como padrão hegemônico, cria também uma outra variante de mediação social desse mercado de bens simbólicos: a cultura internacional-popular :

[...) fast-foods, jeans, tênis, músicas pop, estrelas de cinema, etc. Somos penetrados por estes objetos e imagens em todos os lugares. Essa singularidade de costumes denota a existência de um padrão civilizatório mundializado. Diversos grupos sociais partilham até mesmo um imaginário coletivo comum (ORTIZ, 2000, p. 207).

No tocante à identidade cultural, Ortiz afirma que a identidade nacional nesse período é arrebatada tanto no nível interno – emergência de identidades locais, movimento negro ou indígena – como no panorama mundial, o discutido enfraquecimento da dominação do Estado-Nação.

Apesar da emergência da mundialização da cultura, Ortiz questiona o alcance de tendências sobre o tema, como a integração mundial por meio tecnológico, a chamada sociedade em rede: um mundo conectado não é um mundo integrado (2006, p. 81). Como argumenta de modo lúcido, comunicação não pode substituir cultura: o modo de vida da produção social mais ampla de uma comunidade. E ressalta: para haver integração social, são necessárias instituições, processos socializantes e padrões culturais compartilhados.

O autor não está de modo algum negando a formação de um sistema integrado mundial de informações cada vez mais abrangente e influente no mundo contemporâneo. Mas, conectado a este, estão as instituições sociais produzindo e reproduzindo a ordem social. Daí se retira a alentada proposta ideológica – uma das mais poderosas crenças da globalização e ainda bastante difundida e aceita gratuitamente – de que tecnologia, por si só, traz, de imediato, a democratização da sociedade (não há aqui qualquer adesão ao pensamento da crítica negativa de Adorno, no que diz respeito à sua demonização da técnica no sistema capitalismo. Afinal, para ele, toda relação social de produção e recepção massiva é ideológica em sua totalidade). 93

Outra crença criticada por Ortiz, sobre o processo de poder hegemônico da mundialização da cultura, diz respeito à percepção do espaço, território, fronteiras. Com a globalização econômica em que as trocas sociais no sistema econômico se embaralham – produção, circulação e consumo – há a falsa ideia de uma aproximação sem limites entre os agentes sociais planetários. Novamente temos, aqui, a premissa funcionalista da integração social harmônica e da retirada de conflitos sociais de toda espécie.

Com a mundialização, sobretudo com a cibercultura, o perto e o distante, o interno e o externo são relativizados ou condensados no fluxo da informação em que o “espaço é atravessado e não penetrado como uma sucessão de níveis inter-relacionados (local, nacional e global)” (Ortiz, 2006, p. 107). Desse modo, a cultura torna-se uma só, uma vez que os espaços e territórios rompem definitivamente as fronteiras. As culturas locais e nacionais, o desenvolvimento econômico, a modernidade, a distinção das classes tornam-se ilusoriamente os mesmos.

Aqui o tema cultura ou identidade cultural ganha contornos políticos inevitáveis:

Uma coisa é exprimir a partir da Europa e dos Estados Unidos, outra da América Latina. O mundo é o mesmo, seus dilemas comuns, mas o cosmopolitismo conhece uma graduação de cores devido às matizes que marcam os seus intérpretes, ou como dizia Foucault, a fala encontra-se sempre inscrita num lugar, todo discurso se enuncia “a partir de” [....] (ORTIZ, 2006, p. 113).

O sociólogo brasileiro relembra que o tema identidade nacional foi utilizado como instrumento programático de luta política entre os países periféricos dos anos 1960, com variantes à esquerda e à direita, sendo retomado recentemente, como enfatiza também Castells (2002), ao abordar o poder da Identidade na era da informação. Este marca também o ideário dos grupos ou populações historicamente discriminados, como os movimentos feminista, negro, homossexual, etc. das décadas recentes, que têm construído narrativas de pertença comunal (a discussão mais detalhada sobre essas novas identidades planetárias será foco de discussão do próximo capítulo). 94

Identidades imaginadas: em busca da definição do conceito

Essa discussão sobre identidade cultural com base nos autores propostos – cientistas sociais, filósofos ou comunicólogos selecionados, preferencialmente, por terem se debruçado na árdua tarefa de entender a cultura contemporânea no contexto do processo de globalização – resulta em algumas pistas interessantes na caracterização dessa contraditória era chamada por nomes diversos, como pós-modernidade, modernidade líquida ou hipermodernidade.

O tema ganha nítido relevo nas discussões sobre as novas formas de sociabilidade desse mundo em processo de diversificação econômica e cultural; porém não é nem um pouco consensual o posicionamento sobre o conceito. Como registrado anteriormente, Maffesoli e García Canclini, autores de fundamentação teórica distinta – ligados ao estudo do imaginário e estudos culturais, respectivamente – caminham para um ponto de vista de descrédito sobre a importância da pesquisa de identidade.

Maffesoli aborda o esgarçamento, tanto do individualismo como da identidade, em função da formação e emergência do coletivismo das tribos urbanas na contemporaneidade. Canclini questiona o rigor dos estudos que envolvem tal perspectiva, uma vez que eles não têm consistência fora das construções históricas em que foram inventadas e dos processos em que se decompõem ou se esgotam (GARCIA CANCLINI, 2003, p. 78).

Entretanto, como o próprio autor afirma, o estudo da cultura também recai em procedimentos metodológicos pouco avessos à precisão, cujos argumentos reproduzo em forma de questionamento: O que é possível mensurar e verificar nos processos culturais? Quanto da pesquisa não fica entregue ao caráter polissêmico da interpretação?

Além disso, não seria equivocado desconsiderar o estudo de identidades, apenas porque temos, como base “principal” de pesquisa, o plano do imaginário? Tal argumento não desqualificaria o estudo da ideologia, da 95 mitologia ou de quaisquer outras representações sociais de condensado discurso simbólico?

Por outro lado, no caminho das análises dos autores aqui apresentados – Bauman, Hall, Anderson, Apadurai, García Canclini, Martín-Barbero e Ortiz –, a identidade cultural configura-se como temática muito importante para caracterizar certos aspectos da cultura contemporânea, bem como espelhar os dilemas políticos da globalização, essa era de hipermodernidade.

Nota-se que ela ganha relevância nesse momento de crise do sistema capitalista, decorrente do boom econômico da globalização dos anos 1980-90 e dos diversos conflitos estruturais relacionados a essa nova etapa de produção e reprodução da vida social e que pode ser expressa em abordagens que protagonizam seus antigos dilemas, como igualdade e diferença, modernidade e tradição, particularismo e universalidade, integração e individualismo.

Entende-se que a identidade cultural só faz sentido em sociedades marcadamente desiguais e diversificadas, pois, em culturas primitivas/arcaicas, o nível de compartilhamento da produção social é notadamente equilibrado e os padrões culturais e crença são bastante confluentes e afirmativos da vida comunitária particular e global.

Em nossa sociedade complexa, com foco no presente período histórico, verifica-se que, à medida que a globalização enfraquece – porém longe de extinguir sua hegemonia, as culturas e identidades nacionais –, temos uma revitalização de culturas e identidades de etnias, de comunidades locais e tribos urbanas. Somam-se a esse mosaico de referências o cosmopolitismo, a cibercultura e os movimentos planetários que fundem cultura e política, como o ecológico.

O local, nacional e global parecem igualmente ativos e encaminham-se em luta de afirmação de espaços de acumulação de capitais diversos (econômico, cultural, social e simbólico - BORDIEAU, 1992), protagonizados por grupos e 96 classes em cada esfera, sob a égide do sistema capitalista, em sua volúpia de penetrar e transformar os diversos modos societários do planeta.

Mas a vivência da cultura e a construção da representação das identidades também enveredam por outros aspectos da vida: a vontade de transcender o plano individual e coletivo, o pulso existencial de desejos e espiritualidades inerentes à condição humana e que podem ser observados de modo especial nas narrativas mágicas, religiosas, criativas e artísticas produzidas pelo homem contemporâneo (MORIN, 1967, 1979, 1997; CAMPBELL, 1990, 2002, 2006).

Somos arcaicos, modernos e pós-modernos nesse mundo de culturas e identidades inumeráveis. Pode-se dizer, portanto, que a identidade cultural, nos dias de hoje, torna-se muito mais pluralizada, fragmentada e deslocada de núcleos duros de identificação tradicional – etnia, língua, religião, classe e nação – e mescla-se ou soma-se a outras, emergentes, de caráter mundial – feminismo, ecologia, culturas jovens, cibercultura, etc.

Estou aqui conceituando identidade cultural como narrativa compartilhada de sentimento de pertença a uma comunidade, cultura ou crença e materializada em discursos, representações, imagens ou símbolos. Estas são construídas historicamente por grupos ou instituições sociais de modo intencional ou voluntário. Sua mediação com a ideologia, as relações de poder e o imaginário social mais amplo destes grupos ou comunidades é permanente.

A respeito da diversificação cultural e mudança social questionadas ao longo deste capítulo, retorno que não me parece ser incoerente, ou excludente, ligar- se ou referir-se a diversas comunidades ou identidades ao mesmo tempo para se definir coletivamente (viver num país mestiço e desigual torna bem mais fácil aderir a tal assertiva), mesmo que estes possuam elementos de oposição ou sejam contraditórios. Afinal não são os sujeitos individuais que devem buscar e dar sentido final às identidades coletivas, reprocessando estas e criando assim sua própria identidade? 97

No filme Árido movie (Lírio Ferreira; 2003), a tipificação do protagonista Jonas (Guilherme Weber) remete simbolicamente ao Jonas bíblico, que passou três dias na barriga de um grande peixe, num mergulho psicológico mítico nas forças do inconsciente. Quando se acompanha a trajetória desse personagem e também a caracterização psicológica e social do grupo de amigos do período escolar passado no Recife – apresentados abertamente como usurários de maconha e de comportamento ligado a um ethos juvenil contracultural –, observa-se que o cenário figurado e representado na banda sonora e visual é de marcante hidridação de identidades e referencial artístico.

Imagem 15: Árido movie (Lírio Ferreira; 2003),

A reaproximação acontece em função da morte do pai, que os leva ao interior do Pernambuco, à cidade fictícia do Rocha. No projeto fílmico desejado e composto por Ferreira, há um recorte múltiplo, que enuncia uma perspectiva geracional, ligada à trajetória de vida do diretor, contemporâneo ao movimento artístico pernambucano dos anos 1990 conhecido como manguebeat , com a mediação intencional entre a cultura regional e o universo jovem internacional- pop.

Esse registro de referenciais é flagrante na trilha sonora e na comentada caracterização dos protagonistas, bem como no fluxo narrativo do enredo, que se encerra distante dos padrões convencionais, revelando, assim, a marca do cinema de autor que vem sendo construída na obra deste jovem cineasta brasileiro. No capítulo 5, tais abordagens serão devidamente analisadas, mas fica, aqui, exemplo fílmico de origem nacional em que o gênero road movie é 98 acolhedor de novos atores e identidades sociais, ligadas à revolução cultural da segunda metade do século XX.

2.2 A revolução cultural e as novas identidades planetárias pós-1950

A emergente sociedade de consumo e a nova família

A partir do término da segunda Guerra Mundial, o planeta viveu um crescimento econômico extraordinário, acompanhado de grandes transformações sociais e culturais, período chamado por Hobsbawm (1995, p.257) de Era de Ouro , com destaque para os anos 1950-70. Nesse período, a título de uma sintética mensuração quantitativa da produção de riquezas desse ciclo histórico, observa-se que a produção industrial quadruplicou e o comércio aumentou dez vezes em todo o planeta.

Dos anos 1980/90 em diante, o mundo assistiu a outro ciclo econômico marcante , cuja influência da tecnologia cibernética está intimamente relacionada à Era da Globalização , ainda em pleno desenvolvimento. Porém cabe ressaltar que as bases da revolução social e cultural vivenciadas neste período recente estão alicerçadas naquela fase do capitalismo tardio , a Era de Ouro , como Hobsbawm a chamou, sobremaneira nos anos 1950-70.

As explosivas taxas de crescimento dos setores secundário e terciário da economia mundial realimentaram o aumento do êxodo rural, movimento social de longa duração do sistema capitalista, gerando, assim, o fenômeno demográfico que o historiador inglês, mencionado acima, chamou de morte do campesinato , designando a queda brusca da participação da mão-de-obra rural no conjunto total da população. Esse fenômeno foi vivenciado, durante aquele período, sobretudo nos países desenvolvidos e mesmo em países atrasados economicamente, como o Brasil, cujo boom industrial atingiu seu auge na década de 1970 e onde a população rural declinou de 64% do total registrado, em 1950, para 44%, em 1970, e chegou a 17%, em 2005 (IBGE).

99

Do ponto de vista social, há ainda três aspectos fundamentais que caracterizam a Era de Ouro e que acarretam a formação de uma cultura urbana comum de compartilhamento global cada vez mais influente nas décadas posteriores:

1) A disseminação dos bens de consumo e midiáticos (geladeira, televisão, carro, discos, etc.) no cotidiano das camadas médias, inicialmente, e do estrato mais baixo, em seguida, possível pelo alargamento da produção, apoiado na revolução tecnológica do período e na otimização dos insumos das matrizes energéticas - petróleo e eletricidade; 2) A expansão da escolarização num movimento de massa, com destaque à esfera do ensino de nível superior (universitário); 3) A transformação da estrutura da família: a. alteração profunda do papel social de gênero; b. ascensão da mulher no mercado de trabalho e no meio escolar; c. aceitação de práticas e partilha civis de pares homossexuais; 4) E a configuração de cultura e de identidade juvenil.

Essa revolução social e cultural revelou uma diversificação de valores e comportamentos sociais consolidada na criação de novos hábitos e usos da cultura, a partir dessa segunda metade do século XX – uma reformulação de valores sociais, que atinge o referencial do ethos de compartilhamento comum, e também uma transformação de caráter universal, que aponta para o alvorecer da era planetária (MORIN, 1995), com a característica ocidentalização moderna do mundo. Paralelamente a esse aumento da complexidade da vida social urbana em âmbito mundial, oriundo do desenvolvimento da base material do sistema capitalista, assiste-se ao avanço cada vez maior da midiatização e mercantilização da cultura .

O processo de entrelaçamento entre a cultura e a comunicação de massa torna-se tão profuso, nesse período, que, muitas vezes, os termos são colocados, equivocadamente, como sinônimos, ao anunciar sua total unicidade. 100

Afinal, a cultura contemporânea deve ser lida como resultado de mediações sociais e individuais , historicamente, constituídas a partir do compartilhamento global de instituições que compõem as sociedades complexas, como o trabalho, a escola, a família, a religião, o Estado, etc., e jamais a partir da exclusividade de sua produção material e cultural massiva.

Como será discutido à frente, no capítulo 4, O gênero road movie: origem, formato e filmes de referência , o cinema moderno das décadas de 1950 e 1960 cria uma nova estética que reflete essa mudança de mentalidade dos novos tempos, percebida claramente na filmografia da nouvelle vague francesa, do cinema independente norte-americano e da nova Hollywood , especialmente aquela representada pela geração sexo-drogas-rock'n'roll (BISKIND, 2009), vertentes que deverão mediar intensamente a formação do gênero filme de estrada, exemplificado de modo modelar em Sem destino (Easy rider, Dennis Hopper, 1969).

No Brasil, a perspectiva das novas identidades culturais pode ser flagrada, em parte, na obra do Cinema Novo, do Cinema Marginal e do cinema jovem de apelo popular do período. Mas tal mediação na formação do gênero filme de estrada, no cinema brasileiro contemporâneo, só será perceptível a partir de Bye Bye Brasil (Cacá Diegues, 1979) e, notadamente, na produção Pós- Embrafilme, como em Terra Estrangeira (Walter Salles, 1995), Árido movie (Lírio Ferreira, 2006) ou O céu de Suely (Karim Ainouz, 2006). O filme de estrada possui outras variantes de significado social e cultural que devem ser consideradas e que serão refletidas no referido capítulo.

Gilles Lipovetsky (2004) vem denominando, recentemente, esse período histórico pós-1950 de hipermodernidade , em detrimento do termo pós- modernidade . O autor caracteriza esse atual período da história da humanidade a partir dos seguintes apontamentos de transformações do espaço e tempo social:

[...] rápida expansão do consumo e da comunicação de massa, enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares; surto de 101

individualização; consagração do hedonismo e do psicologismo; perda da fé no futuro revolucionário [...] (LIPOVETSKY, 2004, p. 52).

Para o filósofo francês, conhecido pelas obras A era do vazio (1989) e O império do efêmero (1989), a chamada pós-modernidade , assim denominada por ele à época, sobretudo nos anos 1980/90, tem como paradigmas o efêmero, a sedução e a autonomia subjetiva . Porém, sem negar esses apontamentos, vem reavaliando essa terminologia, conceituada também por autores como Lyotard (1993), Jameson (1996) e Harvey (1989), entre outros, como o melhor modo de definir tal período histórico contemporâneo.

Justifica que, ao reexaminar o espaço social desse alvorecer do novo milênio, vê que os paradigmas da primeira modernidade continuam sendo exatamente os mesmos do período pós-1950, ou seja, o mercado, a eficiência técnica e o indivíduo (LIPOVETSKY, 2004) . Mas, evidentemente, há uma qualidade diferenciada no modo como esses elementos são disseminados, ampliados, nessa segunda era moderna ou hipermoderna.

Há uma nítida tendência à frouxidão do poder disciplinar das instituições sociais – família, escola, Estado, etc. –, um movimento de embaralhamento de identidades coletivas e individuais que acaba por desenhar, às vezes, modos de vida mais livres, lema tão caro à modernidade, mas também por acolher o caótico, o atomizado, a ventania insana de sentidos.

O cenário social hipermoderno é ainda caracterizado por uma sociedade do medo (BAUMAN, 2003), sendo atravessado pela problemática socioeconômica trazida pelo modelo do capitalismo conservador que marcou as décadas de 1980 e 1990, refletindo o aumento da violência urbana, com estatísticas assustadoras do ponto de vista do crescimento de índices de assaltos, sequestros e homicídios. Tal quadro ajuda a justificar essa sensação de falta de segurança generalizada, experimentada pelas populações viventes, especialmente nas metrópoles hipermodernas , esse espaço social mergulhado em incertezas de toda ordem.

102

Frente a esse ambiente, muitas vezes hostil, de sociabilidades, a busca pelas identidades coletivas, a revalorização do comunitarismo, da religiosidade, de elos coletivos mais estáveis e compartilhados de forma harmônica configuram- se como resposta ao caos que se instala. Nota-se uma tendência social na direção da busca da unidade perdida . A meu ver, a ética volta a ser uma preocupação que circula em várias formas de comunicação e efetivação (especialmente a partir da década de 1990), abrangendo desde a coisa pública até o modo de organizar o consumo por parte das empresas, dos mecanismos de regulação da sociedade civil. Os anos 2000 são caracterizados por uma crise do referido modelo econômico socialmente conservador, que muitos chamam de neoliberal , adotado nas duas décadas anteriores, muitas vezes, como o canto dos cisnes dos novos tempos – Estado mínimo, privatização, desregulamentação, morte da história, fim das ideologias e outras cantilenas.

Nesse cenário, a questão da identidade cultural torna-se potencialmente política. Mas há de se colocar a mudança de qualidade nesta questão apontada pelo autor de A era do vazio :

...na presente situação, a filiação identitária é tudo menos instantânea ou dada em definitivo; ela é, isto sim, um problema, uma reivindicação, um objeto de apropriação dos indivíduos. Meios de constituir-se e dizer o que se é, maneira de afirmar-se e fazer-se reconhecer, a filiação comunitária vem acompanhada de autodefinição e autoquestionamento... hoje, é preciso tornar posse daquilo que outrora se tinha naturalmente. Antes institucionalizada, a identidade cultural se tornou aberta e reflexiva, uma questão individual suscetível de ser retomada infinitamente (LIPOVETSKY, 2004, p. 95)

A identidade cultural, nesse sentido, torna-se projeto/processo de identificação, distanciando-se, assim, de uma condição essencial, estável, permanente que, muitas vezes, lhe é atribuída. Mas aqui cabe uma pergunta: é possível conceber a identidade coletiva que não seja como processo em construção permanente de significados, mesmo que o objeto de análise sejam comunidades extraídas do contexto social da primeira modernidade ou de períodos históricos anteriores?

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A antropologia clássica nos informa que, nas sociedades arcaicas, a plasticidade cultural transcorre num tempo largo, no qual as identificações entre os atores sociais e o sistema simbólico também são muito mais perenes. Em tempos hipermodernos , o que se constata é que o movimento acelerado das coisas impele a memória, facilitando o simulacro, o desaparecimento do passado, da tradição. Mas os indivíduos em meio ao difuso e ao efêmero também estão em busca de referências de pertencimento coletivas ou particulares.

E, aqui, pensar na identidade como construção – individual e coletiva – é fundamental do ponto de vista de uma análise das ciências sociais, como discute Castels (2002) para tentar narrar o contemporâneo: na modernidade tardia , a estruturação dos sistemas simbólicos é atravessada diretamente pelos processos de individuação que se mostram cada vez mais complexos.

Há um movimento de fragmentação, protagonizada pelos sujeitos individualizados, evidenciados na emergente sociedade em rede , como denomina o sociólogo espanhol, para sintetizar o espaço social, de hoje, de países desenvolvidos ou participantes da economia globalizada e de base informacional. Apesar desse movimento, a identidade apresenta-se, ainda, como formadora de significação social fundamental:

Identidades são fontes mais importantes de significado do que papéis [sociais], por causa do processo de autoconstrução e individuação que envolvem. Em termos mais genéricos, pode-se dizer que identidades organizam significados, enquanto papéis organizam funções. (CASTELS, 2002, p. 23).

Especificamente em relação à sociedade informacional, o autor defende a ideia de que os significados sociais organizam-se em torno de uma identidade primária, uma identidade que estrutura as demais, autossustentável ao longo do tempo e do espaço. Ainda segundo Castels, existem três formas ou origens de construção de identidade que ocorrem sempre em contextos marcados por relações de poder . São elas identidades legitimadora , de resistência e de projeto . A primeira é aquela articulada pelas instituições dominantes – Estado e religiões, por exemplo. As identidades de resistência, as que se colocam a 104 partir de atores sociais que se sentem em posição inferior ou desvalorizados pelo sistema simbólico dominante. As de projeto dizem respeito às novas identidades , como o feminismo e o movimento homossexual, cujo objetivo de articulação envolve a mudança das estruturas sociais.

A análise do gênero filmes de estrada pós-Embrafilme demonstra que essa produção simbólica ilustra abertamente esse cenário cultural contemporâneo, ora vinculado à representação das identidades de resistência – Terra estrangeira (Walter Salles, 1995) – ou de projeto - Árido movie (Lírio Ferreira, 2006) e O céu de Suely (Karim Ainouz, 2006) –, ou por ambas as construções narrativas de pertencimento - Diários de motocicleta (Walter Salles) –, abordagem que se torna bastante compreensível, quando se considera o desenvolvimento econômico tão desigual que permeia as sociedades latino- americanas. 105

3. NA FLORESTA DA INDIVIDUALIDADE: A MITOLOGIA MODERNA E O CINEMA DE ESTRADA

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...O mito é a terra natal de inspiração das artes...

... é nas artes que as energias criativas de um povo são mais bem- expostas e podem ser mais bem medidas . Mitologia da vida moderna (Joseph Campbell)

...os fenômenos estéticos mágicos são potencialmente estéticos e fenômenos estéticos são potencialmente mágicos... O enigma do homem (Edgar Morin)

Fantasia, maravilha, segredo, revelação, visão, encantamento, negrume estelar, mito... Utopia, magia, heroísmo, quimera, imaginação, brilha o crepúsculo... Num mundo sustentado pelo poder do lógos científico, dos falsos avatares tecnológicos, do antigo som mecânico do relógio digital, que encharcam o cotidiano, será possível admitir, perceber, que o mito ainda vive entre nós?

Esta pergunta possui raiz numa árvore de tronco cujos anéis cravam círculos longínquos, atravessam civilizações. Esse modo de pensar-sentir a natureza, o homem, vida e morte, e o mito que resplandece de tudo isso possui origem retida em tempo e espaço possíveis de reconhecimento; na encruzilhada de rotas de mercadores, militares, engenheiros, matemáticos, sacerdotes e aedos, provenientes da Ásia, Europa e África, nasce a filosofia grega, na cidade- Estado de Mileto (região da Ásia Menor, atual Turquia), século VI a.C, matriz do pensamento ocidental.

Segundo o historiador e antropólogo Jean-Pierre Vernant (2010b), com a produção intelectual pré-socrática oriunda das terras de Mileto, formada pela geração de Tales, Anaximandro e Anaxímenes – a Escola Jônica –, iniciou-se, no mundo ocidental, uma fissura entre o pensamento selvagem mitológico e o nascente conhecimento racional, dialógico, conceitual, abstrato e laicizante.

Esse processo de racionalização do mundo, originário no referido pensamento filosófico da Escola Jônica, deverá manter-se como tendência dominante da 107 filosofia do período clássico da Grécia Antiga – Sócrates, Platão e Aristóteles –, bem como mediar o debate político da pólis da época, cujo lampejo clareia, com seu estrondo inquietante, o céu do mundo ainda hoje:

Na história do homem, as origens geralmente nos escapam. Entretanto, se o advento da filosofia na Grécia, marca o declínio do pensamento mítico e o começo de um saber do tipo racional, podem ser fixados a data e o lugar de nascimento da razão grega e estabelecido seu estado civil. É no princípio do século VI, na Mileto jônica, que homens como Tales, Anaximandro, Anaxímenes inauguram um novo modo de reflexão concernente à natureza que torna por objeto uma investigação sistemática e desinteressada, de uma história , da qual apresentam um quadro de conjunto, uma theoria (VERNANT, 2010b, p.109)

Por sua vez, Mircea Eliade (1972) apresenta uma análise do processo de ascensão e queda do pensamento mítico na Grécia Antiga, ressaltando os matizes da ambiguidade inerentes à questão, apontamento compartilhado pela estudiosa da história do pensamento filosófico Marilena Chauí (2002). Se, por um lado, temos o desenvolvimento de um lógos que enseja sua independência das esferas sagradas, por outro, o mito aloja-se de modo prolixo e latente na produção artística, religiosa e filosófica do período clássico, e, portanto, na vida cotidiana dos cidadãos, sobretudo na cidade-Estado de Atenas. O mito está em todo lugar da cultura clássica grega :

Em nenhuma parte vemos, como na Grécia, o mito inspirar e guiar não só a poesia épica, a tragédia e comédia, mas também as artes plásticas, por outro lado a cultura grega foi a única a submeter o mito à penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente “desmitificado”. A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia “clássica”, tal qual ela é expressa nas obras de Homero e Hesíodo (Eliade, 1972, p.130)

Em meio a essa trilha de interpenetração entre mito e lógos – em que nascem a reflexão sobre o extraordinário e o prosaico-cotidiano, o caos e a ordem, as forças inseparáveis entre a natureza e o homem, as percepções do tempo, do corpo, da memória, enfim, o deslindamento dos desejos e da inquietude humana em relação à vida e à morte presentes no pensamento e na cultura grega – é que se pretende abordar essa complexa questão a respeito da perenidade do mito no interior do mundo moderno . E tal questão coloca-se 108 como fundamental aqui, uma vez que se parte da hipótese de que há, no gênero cinematográfico filme de estrada – essa construção ficcional consumada no bojo do cinema moderno do século passado –, temas e comportamentos de narrativa mítica.

Conforme será esclarecido ao longo do presente capítulo da tese, não se trata de tentar comprovar que a narrativa ficcional de referência seja, rigorosamente, uma peça mitológica, abrangendo, por extensão, qualquer filme com o tema de estrada, mas, sim, que muitos filmes do gênero possuem temas tipicamente consagrados aos modelos narrativos dos mitos. Portanto temos, em relevo, uma discussão do campo das trocas sociais e simbólicas que aponta, necessariamente, para a condição universal e transtemporal desses elementos socioculturais aqui em discussão – arquétipos, mitos e inconsciente coletivo e imaginário.

Organizou-se esta reflexão em dois subtítulos da tese. Em 3.1 Narrativas da mitologia moderna , por meio de textos selecionados dos mitólogos Mircea Eliade e Josef Campbell, bem como de análises de Carl Gustav Jung e Edgar Morin, apresentam-se as principais discussões teóricas do assunto: as conexões entre a mitologia tradicional e moderna e os temas, estruturas e comportamentos da narrativa mítica. Em 3.2 Itinerários do tempo: arquétipos e comportamentos míticos n os filmes de viagem , elenca-se uma tipologia mitológica de reconhecimento na narrativa cinematográfica filme de estrada. Serão utilizados, como corpus de discussão, alguns filmes de referência mundial do gênero, escolhidos por critérios exploratórios de pesquisa. Tal tipologia será aplicada novamente para análise dos onze filmes brasileiros de longa-metragem que constituem o corpus de pesquisa do estudo a serem analisados no último capítulo.

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3.1 Narrativas da mitologia moderna

Funções e comportamentos míticos

Segundo Campbell, uma mitologia tradicional possui funções variadas que não se circunscrevem apenas às manifestações do sagrado tão profundamente arraigado na vida social das sociedades arcaicas. A primeira delas é a “reconciliação da consciência com as precondições de sua própria existência” (Campbell, 2002, p.237), ou seja, a percepção, as projeções simbólicas e as narrativas da morte, dos ciclos da vida, dos entes sagrados, de Deus ou Deuses – o mysterium tremendum deste universo. A segunda, aquela da formulação e da apresentação de uma imagem do universo. A terceira função diz respeito à validação e manutenção de alguma ordem social específica. Por fim, a quarta, a função psicológica, implica na aceitação de referências e metas sociais no plano individual – introspecção – por meio de crenças e valores espirituais dos grupos sociais de pertença e que se transformam ao longo da vida, do nascimento à morte.

Em suma, nas palavras do autor:

A primeira função da mitologia tradicional, eu a chamaria então de mística ou metafísica ; a segunda, de cosmológica , e a terceira de sociológica . A quarta, que se encontra na raiz de todas as três com seu fundamento e sustentação, é a psicológica [...]. (Campbell, 2002, p.239 10 ).

O famoso e profícuo estudioso de mitologias de diversos cantos do mundo, do ocidente e do oriente, vai nos advertir de que as funções “cosmológica” e “social” são as que mais sofrem impacto com as mudanças históricas. Na modernidade, a ciência entra em cena como elemento desestabilizador desse universo imaginário por duas razões: porque apresenta um novo mapa cosmológico e também porque, junto do capitalismo, fomenta o processo que o sociólogo Max Weber qualificou de desencanto do mundo , interferindo, portanto, na percepção e produção simbólica e mítica da primeira função – “a mística e metafísica”.

10 Os grifos são do presente autor da tese. 110

O sagrado reflui perante a razão científica que invade o cotidiano das sociedades capitalistas e isso expõe o inevitável conflito entre a tradição cultural e as lógicas da modernidade. Mas tal qual como ocorreu na Grécia Antiga, mesmo com o florescimento do lógos na filosofia e na política (democracia) do período clássico e da evolução dos conhecimentos da física e biologia à época, as narrativas míticas e as religiões continuaram a estar presentes no imaginário, no céu e no chão cotidiano dos indivíduos.

Sem dúvida nenhuma há sinais nítidos de que a percepção e as práticas de rituais de caráter místico e metafísico são renovadamente celebradas nas sociedades contemporâneas neste alvorecer do século XXI. As grandes religiões do planeta – cristã, mulçumana, budista e hinduísta –, todas de base mitológica, continuam a sensibilizar o homem no caminho da espiritualidade, e seus adeptos são ainda muito numerosos. Também produzem suas marcas profundas nos valores de comportamento e na identidade social não só nos grupos religiosos aos quais pertencem, mas na regulação normativa mais geral, bem como no imaginário contemporâneo.

A função psicológica do mito, aquela que diz respeito ao desenvolvimento físico e mental do homem ao longo de sua jornada – infância, maturidade e envelhecimento –, a consciência e projeção simbólica dos seus processos mentais mais interiores em cada uma dessas fases de vida, o universo da memória e do inconsciente – os desejos e sonhos – são latentes e visíveis na tez e no coração da modernidade, e, de modo especial, na produção artística – literatura, teatro, artes plásticas, quadrinhos e cinema.

Há temas e comportamentos míticos impregnados em diversas narrativas ficcionais, como os de aventura, policiais, fantásticos, de terror e de ficção científica (esta questão de narratividade e mitologia será discutida mais detalhadamente no próximo capítulo).

Mas não só na religião ou na produção artística é possível observar a presença do mito entre nós, na vida social do terceiro milênio. Os grandes atletas do 111 esporte, que se juntam às estrelas de cinema e aos astros musicais, são exemplos de um universo mitológico latente, cujas façanhas extraordinárias se ampliam com o desejo de busca de referências heróicas acomodadas nos arquétipos do inconsciente coletivo (JUNG, 2000).

Mircea Eliade (1972) argumenta também que é possível observar, na cultura contemporânea, “comportamentos míticos”, uma vez que alguns aspectos e funções do pensamento mítico são constituintes do ser humano. Desse modo, temáticas típicas da mitologia tradicional, como os mitos e ritos de renovação, de origem, escatológicos, da memória e esquecimento, podem ser ressignificadas em produções socioculturais diversas da modernidade, como, por exemplo, no ideário do movimento marxista (a figura do redentor Justo) ou nos heróis fantásticos da ficção de massa dos contos de fada, das histórias em quadrinhos ou da narrativa policial.

Arquétipos e o inconsciente coletivo

Se Campbell e Eliade consideram que há uma mitologia moderna própria contida notadamente na produção artística, fica, ainda, a pergunta: Por que elementos socioculturais arcaicos, como os mitos, continuam a perdurar em sociedades capitalistas, cujo pensamento hegemônico é baseado no lógos científico ? É sustentável considerar que há elementos do imaginário simbólico que sejam comuns entre as sociedades desenvolvidas em tempos históricos distintos?

Jung (1998, 2000) vai encontrar resposta a esses questionamentos a partir dos conceitos de inconsciente coletivo e arquétipos . Segundo o autor, arquétipos são conteúdos mentais da psique humana, modelos básicos do comportamento instintivo situados no inconsciente e que convivem, paralelamente, com o inconsciente e consciência pessoal. Além disso, são de natureza atemporal, ou seja, seu conteúdo é pré-formado, manifestando-se nas criações simbólicas, no sonho ou no mito, por exemplo, desde as primeiras formações societárias, o período pré-histórico.

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A seguir algumas afirmações importantes do fundador da psicologia analítica sobre o tema:

O inconsciente coletivo é uma parte da psique que pode distinguir-se de um inconsciente pessoal pelo fato de que não deve sua existência à experiência pessoal, não sendo, portanto, uma aquisição pessoal [...] Enquanto o inconsciente pessoal consiste em sua maior parte de complexos , o conteúdo do inconsciente coletivo é constituído essencialmente por arquétipos [...] O conceito arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia do inconsciente coletivo, indica a existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar (JUNG, 2000, p. 87). 11

Jung vai argumentar que arquétipos foram denominados, anteriormente à sua própria e original formulação, na pesquisa mitológica, por meio de “motivos” ou “temas” dos mitos ou por outros caminhos de conhecimento dos povos primitivos, mais precisamente a partir de conceitos como “categorias da imaginação” ou “pensamentos elementares ou primordiais”.

Imagem 16 Vênus de Willendorf (paleolítico superior, 25 mil anos; Naturhistorisches Museum, Áustria)

Exemplo de arquétipo, a figura da grande mãe foi transformada simbolicamente, pelo mito, em variações de imagem que refletem desde a mulher associada à reprodução até entes mágicos, como a fada ou a bruxa – alusivas, respectivamente, ao bem e ao mal. O herói, a criança, o velho sábio são outro apanhado imaginário primordial na constituição da psique humana.

11 Os grifos são do presente autor da tese. 113

Deve-se considerar, também, que, na esfera do inconsciente, ocorre uma alquimia imagética e instintiva fundamental para a vida humana, operada pelo sujeito e que diz respeito à sexualidade. Na justaposição entre o inconsciente pessoal e o coletivo , entram em cena dois componentes de ordem sexual que colaboram para a estruturação da personalidade e são denominados, por Jung, de anima (os arquétipos do feminino contidos na psique do homem) e animus (o masculino primordial na mulher).

A principal fonte dos arquétipos são os sonhos retidos no inconsciente pessoal. O outro, em menor participação, é a imaginação ativa , ou seja, o contato estimulado, consciente, com material repleto de arquétipos – mitos ou rituais sagrados. Aqui, Jung cria uma possibilidade de transferência dos arquétipos da esfera da consciência para o inconsciente pessoal. De qualquer forma, cabe frisar, o inconsciente coletivo deve reapresentar-se nesse universo pessoal numa condição de projeção simbólica , não criando, portanto, trocas de conteúdo entre essas esferas da psique. Como expresso há pouco, o autor entende que os arquétipos têm condição atemporal, destituídos, portanto, do tempo histórico.

Nesse sentido, fica o entendimento de que “os arquétipos são determinados quanto à forma e não quanto ao conteúdo” (JUNG, 2000, p. 91), ou seja, os arquétipos como o herói ou o velho sábio são os mesmos e estão presentes em culturas e tempos históricos diversos, mas possuem representações formais e culturais específicas, conforme o referencial social em cada manifestação.

As narrativas míticas ou simbólicas respondem a essa complexa atividade da psique humana, repleta de instinto, fantasia, percepção, sentimento e pensamento, e expressam tanto as atividades do inconsciente coletivo – os arquétipos – como os processos sociais de constituição do consciente impessoal – o conteúdo social da psique.

O eu consciente , elaborado durante a passagem da fase infantil à adulta, possui, por sua vez, outras projeções imagéticas na psique. O forte vínculo 114 inicial que a criança estabelece entre o eu consciente e o consciente impessoal – o conteúdo social adquirido no processo de sociabilidade com os pais –, a rede interpessoal de primeira ordem, bem como a permanente atividade do inconsciente coletivo primordial, retida sobremaneira nos sonhos, nas forças ativas, instintivas, do anima e animus , formam a persona .

Não obstante, o processo de construção da identidade pessoal – a individuação , como conceitua Jung – deve ser forjado na resistência à exclusividade da persona para a constituição de uma psique madura. Além disso, ele afirma: “o desenvolvimento de uma individualidade nunca pode efetivar-se apenas mediante a relação pessoal; ela requer também a relação da psique com o inconsciente e vice-versa” (1998, p. 154).

Esse processo psicológico de formação da individualidade – individuação – possui seu ápice quando da percepção e experiência do self, a unidade plena da psique, que simboliza o equilíbrio transcendente entre o inconsciente – pessoal e coletivo – e o consciente pessoal do homem com a natureza. O self é também um arquétipo, pois representa o princípio unificador mais poderoso dentro da complexa psique humana, representado na forma de círculo como a imagem da mandala (que significa círculo em sânscrito).

Por essas colocações sobre o inconsciente coletivo de Jung podemos concluir que os arquétipos são temas ou imagens primordiais do universo onírico do homem, matrizes arcaicas que preenchem a esfera simbólica da condição humana e possuem penetração cultural universal, ou seja, mudam as representações míticas ou simbólicas em cada época ou lugar, mas os significados elementares são os mesmos. Há, portanto, um elo possível de comparação entre a mitologia arcaica e moderna por essa perspectiva apoiada na tese da onipresença dos arquétipos na psique humana desde a formação primordial do homo sapiens , na pré-história .

Quanto à conexão entre a mitologia tradicional e a moderna, Mircea Eliade faz certas considerações que vale a pena serem comentadas. Faz-se, neste momento, reflexão sobre o livro Mitos, sonhos e mistérios (2000). 115

Como o título alude, o mitólogo deslinda, na obra, a questão da relação entre sonhos e mitos suscitada a partir da análise dos fundadores da psicologia das profundidades, iniciada com Freud e continuada por Jung, ou seja, autores contemporâneos que tentaram desvendar o imaginário simbólico retido nos sonhos, na enunciação notadamente do inconsciente.

Ele afirma que partilha da ideia desenvolvida por Freud e Jung de continuidade entre o universo onírico e o mitológico, uma vez que:

[...] existe homogeneidade entre as figuras e os fatos dos mitos e as personagens e os fatos dos sonhos. Demonstrou-se igualmente que as categorias de espaço e do tempo são modificadas, nos sonhos, de uma forma que lembra, numa certa medida, a abolição do tempo e do espaço dos mitos. Mais ainda: salientou-se que os sonhos e os outros processos do inconsciente apresentam como uma “aura religiosa”; não só as suas estruturas se deixam comparar com as da mitologia, como também a experiência vivida de certos conteúdos do inconsciente, seria, aos olhos dos psicólogos das profundidades, comparável à experiência do sagrado (ELIADE, 2000, p.11).

Temos postas acima duas questões que aproximam e distanciam o mito do mundo arcaico e moderno. Se as “estruturas e formas religiosas, por mais rudimentares que sejam, participam neste regime ontológico”, respondendo a inquietações do ser, em qualquer época histórica (o que corresponde à quarta função do mito, conceituada por Campbell – a psicológica ou pedagógica), para a definição de Mircea, o sagrado deve enunciar-se em qualquer narrativa mítica, ou seja, em cosmologias atemporais ou situações em que o sobrenatural e a magia são acolhidos. Por essa razão, ele vai afirmar que o mundo moderno não é rico de mitos, mas, por outro lado, que comportamentos e figuras simbólicas dos mitos elaborados no mundo arcaico estão presentes na produção cultural do mundo industrial e tecnológico.

Temos, portanto, perguntas ontológicas primordiais elaboradas pelos mitos do mundo das sociedades primitivas – o mistério da existência da vida e percepção da temporalidade, da morte, da transcendência do espírito, da origem do mundo, da ascese espiritual, etc. –, sendo recolocadas no imaginário simbólico das sociedades complexas: 116

O mito nunca desapareceu por completo: faz-se sentir nos sonhos, nas fantasias e nostalgias do homem moderno, e a imensa literatura psicológica do homem moderno habituou-nos a reencontrar a grande e pequena mitologia na atividade inconsciente e semiconsciente de cada indivíduo (Mircea, 2000, p.19).

Imagem 17 Toca do Boqueirão da Pedra Furada – Serra da Capivara, Piauí, Brasil.

O homem imaginador

Homem e animal, ser vivo/biológico, imerso em afetividade, linguagem, vontade, imaginação. A condição humana permeia uma linha tênue, inseparável entre cultura e natureza, de potente criação, que caracteriza esse primata de espécie chamada homo-sapiens. Um ser complexo, sábio e louco, sapiens-demens , de totalidade bio-psico-social, como definiu Edgar Morin em Enigma do homem (1979) .

Esse livro é fundamental na obra do autor, espécie de rito de passagem para a longa empreitada que se inicia nos anos 1970 com a composição de sua teoria da complexidade , uma proposta de conhecimento polissêmico e transdisciplinar, consolidada nos seis volumes que compreendem a obra O método 12 . Naquela obra, O Enigma do homem , há o embrião de uma fértil crise intelectual que engendrará uma transformação epistemológica profunda do autor, de questionamento dos paradigmas das ciências à época, da

12 Tal proposta de grande fôlego intelectual está detalhada no primeiro volume da obra. Ver MORIN, Edgar. O método 1: a natureza da natureza . Porto Alegre: Sulina, 2002. 117 fragmentação, da especialização excessiva, enfim, da cristalização filosófica dos saberes.

Há uma tese no referido livro que importa sobremaneira aqui: com decolagem da imaginação simbólica , mágica ou mitológica, iniciada com os rituais de sepultamento e da criação pictórica da arte rupestre no período pré-histórico, na fase do período paleolítico superior, há cerca de 50 a 100 mil anos, começa também a aventura humana na direção da complexidade da consciência, objetiva e subjetiva (pode-se dizer também da complexidade da psique), da formulação da individualidade, representando em linguagem o seu mundo interior, o tecido social, os outros seres vivos, as forças naturais incompreensíveis.

Edgar Morin (1979) vai propor que a busca do entendimento da vida ou da morte vai reforçar o tema do duplo , que acompanha o imaginário do homem desde os seus primórdios. Os primeiros homo-sapiens, provavelmente, já se sentiam acompanhados pela representatividade de sua existência em fatos corriqueiros, como as imagens da sombra do corpo, no desdobramento destas nos sonhos, no seu reflexo na água:

Para compreender mais profundamente como uma imagem pode ter acesso à existência como “duplo”, é preciso compreender que todo objeto tem, a partir de então, para o sapiens, uma dupla existência. Por meio da palavra, do sinal, da inscrição, do desenho, esse objeto adquire uma existência mental até mesmo fora de sua presença. Assim a linguagem já abriu a porta à magia [...] (Morin: 1979, p. 107).

O registro de imagens portadoras de representação simbólica e expressão estética, portanto, acompanha o homem, desde os tempos pré-históricos, nessa lida com os vários mistérios da existência, para abrigar o “duplo”, dialogando, assim, com o seu mundo interior (não seria nesse momento histórico, primordial da humanidade que os arquétipos começariam a estruturar 118 a complexa psique humana, como em certo momento da evolução humana a proibição do incesto contribuiu para a passagem entre natureza e cultura?13 )

Essa brecha entre a visão objetiva e subjetiva do homem, que será preenchida pela imaginação, repleta de visões oníricas, de imagens simbólicas, arquétipos, de mito ou imagens mágicas. Na intimidade, na solidão, o homem dialoga reflexivamente e numa alteridade imaginária ininterrupta. Consciente, inconsciente. Inquieto, criativo e dominador do sapiens , temeroso e desejoso de seu mundo demens.

Em O método 3 – conhecimento do conhecimento, escrito nos anos 1980, Edgar Morin (2005) continua a perseguir a tese do pensamento duplo - o simbólico/mitológico/mágico e o empírico/técnico/racional - para caracterizar o conhecimento humano de todas as épocas, destacando, assim, duas naturezas do saber, que são, ao mesmo tempo, uno e duplo.

As sociedades arcaicas e complexas desenvolveram, cada uma mais que outra, certa condição de conhecimento, mas não suprimiram a outra esfera do tecido social e do organismo mental, como, aparentemente, muitas vezes, se supõe:

Relacionados em yin-yang, os dois pensamentos, ainda que incompreensíveis um para o outro, completam-se, parasitam-se e conjugam-se, não somente nas sociedades arcaicas, antigas ou exóticas, mas também nas nossas sociedades e espíritos. MORIN, 2005, p. 191.

Se a imagem, no pensamento empírico/racional, é representada como imagem da realidade , no pensamento simbólico/mitológico, apresenta-se como realidade da imagem. O primeiro, a dominância da disjunção, isolamento e tratamento dos objetos e forte controle empírico exterior; o segundo, a

13 Como já referido, Jung não colocou, como hipótese de pesquisa, que há um período específico de construção social e histórica dos arquétipos. Vislumbra uma origem atemporal e metafísica. Trata-se, desse modo, de uma mera especulação do presente autor sobre o tema. Ver, a respeito da origem dos arquétipos, JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo . Petrópolis: Vozes, 2000. Em relação à importância do incesto para estruturação do inconsciente e da cultura, na concepção de Freud, ver KOTAI, Caterina. Totem e tabu, um mito freudiano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

119 conjunção entre real e imaginário, das relações sociais comunitárias e o forte controle do vivido no interior. Para nossa sorte, o pensamento simbólico e mitológico continua vivo e influenciando a trajetória humana em pleno século XXI, mobilizando seu potencial criativo. Firma-se, nessa trajetória, a visão de otimismo complex o defendida por Morin, que articula uma ética e a vontade de transformação social e política do mundo, notadamente quando este se mostra demais preso à sua irracionalidade tecnicista e destruidora da diversidade ecológica e cultural do planeta.

Narrativas do mundo contemporâneo

Essa necessidade de entender os significados da vida ou do sagrado está, portanto, na origem da construção do imaginário do homem pré-histórico, quando ele teve que lidar, por exemplo, com a morte, criando rituais mágicos para aplacar o medo desse mistério, e reproduz tal interpretação da vida em rituais ou em imagens como as conhecidas pinturas rupestres. Mas focando a arte contemporânea, que evidencia a floresta da individualidade que se move privilegiadamente para o futuro, que função mágica terá essa manifestação simbólica?

Campbell (2002, p.245) discorre sobre certos artistas, como Thomas Mann e James Joyce, que escolheram trilhar um caminho criativo autêntico, que se situa, segundo sua própria opinião, no sentido contrário à ordem autoritária das religiões. Esse caminho de autenticidade deve levar em conta não primeiro as formas e depois a experiência, mas a experiência primeiro e depois as formas. Aqui o autor está opondo arte moderna e religião, notadamente, em função do aspecto sociológico. Como ele ressalta, é necessário ler os mitos que ressoam nas religiões, como poesia, pois sua cosmologia e moralidade tornam-se incompatíveis, numa interpretação direta e literal, com os padrões societários que se modificam ao longo da história. Ao reforçar a importância do papel espiritual que a arte desempenha nas sociedades contemporâneas, afirma: os poetas de hoje são os profetas de ontem (2002, p.214).

120

Por sua vez, Eliade (1972), numa análise a respeito do mito e seu significado para a produção artística do século XX, notadamente em relação à produção popular-massiva, salienta que o romance e as histórias em quadrinhos vão retomar muito das questões ontológicas imersas nas narrativas mitológicas arcaicas. Em seu entender, a “prosa narrativa, especialmente o romance, tomou, nas sociedades modernas, o lugar ocupado pela recitação dos mitos e dos contos nas sociedades tradicionais e populares” (Eliade, 1972, p.163).

No mesmo sentido de conexões, Morin (1967, 1997) observa no cinema o poder da magia da imagem e sustenta que este construiu um novo Olimpo, imaginário habitado por deuses-estrelas, atores e atrizes carismáticos (Chaplin, James Dean, Marilyn Monroe) e que representam um heroísmo moderno de natureza mítica.

Se também partilharmos da hipótese da possível camuflagem do mito em figuras e narrativas cinematográficas e aplicarmos, especificamente, aos filmes de estrada, inevitavelmente certas questões virão à tona: Que tipo de aventura heróica experimenta seus protagonistas? Pode-se dizer que buscam o caminho criativo autêntico descrito anteriormente por Campbell? Quais temas e personagens míticos tradicionais se articulam nos filmes desse gênero? Nas próximas linhas, uma tentativa de resposta para essas perguntas. 121

3.2 Itinerários do tempo: arquétipos e comportamentos míticos nos filmes de viagem

Nos chamados filmes road movies , as rodovias de asfalto ou os caminhos de terra desempenham o cenário empírico e simbólico central, concomitantemente externo e interno, para o desenvolvimento narrativo e performance dos protagonistas. À margem do caminho, a paisagem natural é outro elemento imagético de reiteração, independente das diversas encenações em ambientes fechados. Cultura e natureza estão expostas na tela numa representação real e imaginária inseparável.

Estrada, a vida passando como rio. Nesse tipo de narrativa cinematográfica, a viagem exerce para os protagonistas uma função formadora ou de aprendizagem do deslocamento, de ordem psicológica ou cultural. Ao longo da trama, deverão modificar radicalmente o rumo de suas vidas; se esta não é possível, a morte será o desfecho necessário; neste tipo de história, o destino cede a máscara do heroísmo trágico.

Campbell (2002: p. 137) afirma que existem duas espécies de heróis nas narrativas míticas e que “alguns escolhem realizar certa empreitada, outros não”. A respeito destes últimos, informa que “é o tipo de aventura em que o herói não tem ideia do que está fazendo, mas de repente se surpreende num mundo transformado”.

No gênero road movie, os protagonistas são, na maioria das vezes, dessa segunda espécie de natureza heróica: “nessas histórias [na qual o herói não possui uma missão definida a priori], a aventura para a qual o herói está pronto é aquela que ele de fato realiza. A aventura é simbolicamente uma manifestação do seu caráter” (Campbell, 2002: p.138). Mas qual é a mensagem atingida? Que significados míticos tem a estrada?

Investigando os temas comuns que povoam os mitos das culturas tradicionais e daqueles que abordam as sociedades modernas ou complexas, conforme 122 bibliografia de referência neste trabalho, é possível especular alguns eixos temáticos recorrentes à narrativa de estrada:

1) a jornada heroica em busca do caminho autêntico (o herói visionário, anti-herói, o velho-sábio); 2) o mito fundador de retorno às origens; 3) a ritualização da passagem dos ciclos da vida; 4) a morte iniciática; 5) a natureza como elo primitivo, essencial e transcendente do homem; 6) o embate destino e individualidade.

Adiante será realizada uma breve análise de alguns desses temas, utilizando, como base de análise, uma pequena amostra de filmes de referência mundial do gênero (LADERMAN, 2002; COHAN e HARK, 1997), escolhidos por critérios exploratórios de pesquisa. Especificamente, serão utilizados três filmes, pertencentes à base analítica do próximo capítulo, que enfatizará uma breve história social da filmografia norte-americana e brasileira, quais sejam, Sem destino (Dennis Hopper, EUA, 1969), Thelma e Louise (Ridley Scott, EUA, 1991) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979), e mais três provenientes de outras partes/nacionalidades do planeta – Morangos silvestres (Ingmar Bergman, Suécia, 1957), Priscila, a rainha do deserto (Stephan Elliott, Australia, 1994) e Gosto de cereja (Abbas Kiarostami, Irã, 1997).

Metodologicamente, reforço, desse modo, a tese da universidade e transtemporalidade do gênero de estrada, abordagem, a meu ver, que não desconsidera – e não torna incongruente com a leitura dos aspectos da historicidade da narrativa – apontamentos socioculturais que serão salientados no próximo capítulo 4 e retomados na última parte da tese. Afinal, entende-se que os gêneros de ficção podem ser analisados tanto como “estratégias de comunicabilidade” quanto “fato cultural e modelos, articulados às dimensões históricas do espaço em que são produzidos e apropriados” (BORELLI, 1996, p. 183).

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A jornada heroica em busca do caminho autêntico (o herói visionário, o anti- herói, o velho-sábio)

Quando se analisa o gênero de filme de estrada, observa-se que os filmes que percorrem essa narrativa trazem enredos cujas motivações para a proeza da viagem de seus protagonistas são de natureza diversa – econômica, de fuga por crime ou relacionamento afetivo, por prazer/hedonista, por razões políticas, etc. –, fato este que pode, a priori, dificultar bastante uma leitura em busca da identificação de elementos imaginários comuns (modelos).

Se a narrativa se presta a enunciar uma característica comum – a função formadora de aprendizagem do deslocamento , em que pesa o contexto sociocultural de consolidação estrutural do gênero cinematográfico , segunda metade do século XX, período de revolução cultural e social (ver capítulo – 2.2 A revolução cultural e as novas identidades planetárias pós-1950 ) –, certos filmes do gênero trazem, em realidades sociais distintas, uma construção heroica, em que o caminho da individualidade está em sintonia com a construção de um novo ethos , no qual o mito do herói pode adquirir um papel de anti-herói, ou herói visionário, aos antigos valores sociais – aqui temos , em geral , filmes com protagonistas jovens ou adultos-jovens.

O gênero r oad movie mantém um paralelo com o chamado romance de formação ( bildungsroman ), nascido na fase da literatura romântica alemã, a partir da obra de Goethe Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister ; no alvorecer do mundo capitalista, e amplamente difundido na literatura moderna do século XX, perceptível na análise psicológica de personagem, cujo modelo estilístico de reconhecimento pode ser observado em enredos que narram o ritual de passagem para maturidade do herói ficcional, acompanhado de crise existencial e também de crítica social (MAZZARI, 1999) .

Especificamente neste cinema de estrada, o tema da juventude está atrelado à formação das novas identidades e subjetividades da contemporaneidade, resultantes da transformação das estruturas sociais e de sentimento, expressas em marcantes movimentos culturais do século XX – feminismo, transgenerismo 124

(lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais), ecológico e dos jovens urbanos vinculados à contracultura.

Para esse tipo de enredo , cabe citar , certamente , Sem destino (Easy Rider, Dennis Hopper, EUA, 1969) ou Priscila, a rainha do deserto (Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, Stephan Elliott, Australia, 1994). Porém não apenas em road-movies com protagonistas em idade juvenil ou no começo da maturidade a experiência do caminho autêntico pode ser observada. Filmes com personagens maduros , como o professor de medicina Isak Borg, apresentado com 78 anos de idade, em Morangos silvestres (Smultronstället , Ingmar Bergman, Suécia, 1957), utilizam a jornada na estrada para metaforizar a linha contínua da vida e revelá-la com sabedoria e mistério a partir da ponta mais avançada desta.

Imagem 18 - Morangos silvestres (Smultronstället , Ingmar Bergman, Suécia, 1957)

Em Morangos silvestres , o protagonista Isak Borg (Victor Sjöström), em viagem feita em automóvel, rememora sua vida por meio dos diversos sonhos que o acolhem no caminho à cidade de Lund, onde ganhará um título honorário compartilhado com a jovem e bela nora Mariane (Ingrid Thulin) e mais três adolescentes (a garota do trio desempenha o mesmo papel da personagem homônima do primeiro amor relembrado em sonhos, Sara – Bibi Andersson). Revê-se, ao fim dessa pequena jornada, o quanto sua vida, em busca cega do ideal profissional, afastou-o do lado simples, leve e poético da vida, repousado em sua infância feliz, da felicidade amorosa perdida, ao encastelar-se num comportamento rígido de “indiferença, egoísmo e falta de consideração”. 125

O arquétipo do velho-sábio é atualizado no filme, ao sabor das mudanças de costumes dos anos 1950, pelo célebre diretor sueco. A referida figura mítica é acompanhada de outras imagens simbólicas, ensejando o rico movimento imagético de arquétipos e comportamentos míticos ao longo da duração desse lindíssimo filme: sonhos, relógios, espelhos, a donzela-musa, a mãe-velha- bruxa-opressora, a renovação da vida em frutos, água corrente, fio da memória...

Em Priscila, a rainha do deserto (Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, Stephan Elliott, Australia, 1994), a natureza – em princípio hostil, apresentando a geografia seca e quente do deserto australiano, o chamado Outback , isolado, primitivo – é fertilizada com a presença de uma pequena caravana de personagens inusitados que ocupam o ônibus Priscilla: três performáticas e coloridas drag queens , os travestis Anthony/Mitzi (Hugo Weaving) e Adam/Felicia (Guy Pearce), e a transexual Ralph/Bernadette (Terence Stamp), numa jornada de convívio conflituoso e intenso, de reflexão e afirmação de novos padrões sexuais e afetivos, em contraponto ao contato com os moradores das pequenas e tradicionais cidades do itinerário.

Imagem 19 - Priscila, a rainha do deserto (Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, Stephan Elliott, Australia, 1994),

Morador da moderna e cosmopolita cidade de Sidney, o trio é contratado para realizar um show-performático num recanto turístico distante dali, cujo acesso por terra cruza o imenso deserto australiano. O ônibus é batizado de Priscilla. Ao final fica-se sabendo que quem contratou o trio foi uma antiga companheira da drag queen Anthony, Marion (Sarah Chadwick), e que os dois têm, juntos, um filho de 8 anos. 126

Priscilla é um velho ônibus, sem glamour aparente, mas que retém abrigo afetuoso aos protagonistas. Acolhimento feminino de ventre da máquina- animal, a imagem simbólica faz alusão ao mito bíblico de Jonas que, por três dias, esteve preso na barriga de um peixe/baleia. Retornando, assim, metaforicamente, ao ventre materno, Jonas deseja ser protegido para, nutrindo-se das “águas da placenta”, renovar suas energias para o enfrentamento do hostil mundo externo, para o mergulho no universo do inconsciente.

Em comentário do referido mito vislumbrado por Moyers, numa cena do filme Guerra nas estrelas , em O poder do mito (1990), na qual os personagens estão numa lixeira sendo comprimidos por grossas paredes, o interlocutor Campbell diz que:

[...] o acolhimento da barriga é o lugar escuro onde acontece a digestão e uma nova energia é criada. A história de Jonas na barriga da baleia é um exemplo de tema mítico praticamente universal: o herói é engolido por um peixe e volta, depois, transformado. É uma descida às trevas. Psicologicamente, a baleia representa o poder de vida contido no inconsciente. Metaforicamente, a água é o inconsciente, e a criatura na água é a vida ou energia do inconsciente, que dominou a personalidade consciente e precisa ser desempossada, superada e controlada (Campbell, 1990, p. 145).

Bachelard, em A terra e os devaneios do repouso , dá atenção especial à história de Jonas, entendido como arquétipo (no sentido junguiano do termo), vislumbrando nela uma imagem simbólica da intimidade da terra-casa . Para ele, as figuras – gruta, estômago, ventre, porão, desfiladeiro – trazem “a lei do isomorfismo das imagens da profundidade” (BACHELARD, 1990, p. 195), retidas na imaginação material do elemento terrestre (o autor trabalha com a premissa de que o inconsciente é projetado nas imagens alusivas à água e também à terra).

Além disso, conforme a imagem registrada na página anterior, indica-se uma importante sequência do filme Priscilla – em que a personagem Adam/Felicia (Guy Pearce) é mostrada em cima do ônibus, soltando sua energia vital e espiritual ao som de uma ópera, com o longo vestido dançando ao vento, um sopro-esguicho saído do ônibus-baleia –, em relação à qual vale comentar 127 certa leitura da história de Jonas , feita por Bachelard, que reforça a condição de mito iniciático dessa narrativa. Essa uma sequência condensa esse significado simbólico:

Um elemento do mito também é frequentemente esquecido pela psicanálise. Esquecem que Jonas é restituído à luz. Independentemente da explicação dos mitos solares, há nessa saída uma categoria de imagens que merece atenção. A saída do ventre é automaticamente regresso à vida consciente e mesmo a uma vida que quer nova consciência. É fácil relacionar essa imagem da saída de Jonas com os temas do nascimento real – com os temas do nascimento do iniciado após a iniciação – com os temas alquímicos de renovação substancial (BACHELARD, 1990, p.118-119).

Da água da placenta do ônibus-baleia, trafegando no mar-terra do Outback, os três protagonistas da história de Priscilla, rainha do deserto vão afirmar suas individualidades em meio a duras provações no caminho. E, nesse difícil aprendizado propiciado pela estrada, vão, também, modificar os outros personagens da história que compartilharam a busca de autoconhecimento desses heróis/heroínas pelo caminho à experiência complexa e totalizadora do self (o arquétipo do equilíbrio pleno das energias entre o inconsciente e consciente individual atingido ao longo do processo de individuação segundo Jung 14 ).

O mito fundador: o retorno às origens

Do apanhado mitológico ocidental e oriental, os mitos de origem e cosmológicos são provavelmente os mais constantes em diversas culturas e povos. A imagem mítica de origem está imbricada no mistério da criação, do sopro iniciático gerador do mundo, do ser. E esse começo original é percebido universalmente como começo absoluto (ELIADE, 1972, p.38).

Os mitos de origem guiam-se pelo desejo humano arquetípico de voltar atrás, ao paraíso perdido, à inocência perdida, conforme professam, por exemplo, os mitos de origem contidos nas religiões judaico-cristãs. Reviver o passado do

14 Ver JUNG, C. G. Tipos psicológicos . Petrópolis: Vozes, 1991. 128 começo dos tempos é reintegrar-se à plenitude inicial e transcender ao tempo cronológico, num perpétuo movimento cíclico de eterno retorno, em sintonia ao pulso criador, caótico e sistêmico da natureza.

Voltar atrás ilumina as experiências do presente e prepara o vivente para o enfrentamento do destino, acaso, devir: a memória para o indiano, o conhecimento que conduz à saúde , baseia-se na memória (ELIADE, 1992, p. 40). Reviver a origem está, também, no princípio terapêutico da psicanálise, por meio da ativação da memória, das vivências do começo da vida, da infância.

Esse tempo mítico da memória ativa as forças mágicas do inconsciente. Na Teogonia, o mito de origem é possível pelo canto de encantamento das Musas ao ouvido de Hesíodo (2007). Elas são entidades divinas de filiação a Zeus e Mnemosyne , a deusa que personifica a memória.

Relembrar o começo de tudo pela força mágica da palavra cantada do poeta, na constelação de mitos que constitui a Teogonia, deveria restaurar, aos ouvintes da Grécia arcaica em que viveu o aedo Hesíodo (século VIII-VII), o mundo sagrado de origem – um período histórico sem pólis, alfabeto ou moeda, no qual a palavra cantada embalava uma memória coletiva viva e numinosa (sagrada):

[...] O poeta, portanto, tem na palavra cantada o poder de ultrapassar e superar todos os bloqueios e distâncias espaciais e temporais, um poder que lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne ) através das palavras cantadas (Musas). (HESÍODO, 2007, p.16; texto introdutório à Teogonia realizado por Jaa Torrano)

A modernidade também criou narrativas míticas cosmológicas. O mito do bom selvagem é, por exemplo, um mito de origem. A conhecida máxima do iluminista Rousseau – o homem é bom por natureza; é a sociedade que o corrompe – sintetiza um ideal humanista de seu tempo, mas que também denota que “o inconsciente dos ocidentais não renunciara ao velho sonho de 129 redescobrir contemporâneos que tivessem ficado para trás, num paraíso terreno” (ELIADE, 2000 p.34).

A visão cosmológica numinosa que está contida no mito do bom selvagem também está presente em outra narrativa moderna: o mito fundador da nação . Se, em tese, a nação é formada por um povo que vive num território e compartilha um passado histórico comum, essa narrativa de cunho ideológico, normatizador e coercitvo, movida na perspectiva da junção de várias etnias, classes e indivíduos, num mesmo coletivo homogêneo, sustenta, na realidade desse discurso arbitrário e unificador, uma vertente simbólica relacionada aos mitos cosmogônicos.

Para viver a nação, analtecê-la, torná-la um ente imortal, é preciso mais do que falar racionalmente na comunicação de fatos históricos reais. É preciso criar heróis nacionais, cujas realizações precisam obter uma proeza extraordinária, quase inimaginável. É preciso criar uma narrativa de origem, da fundação de um povo que seja épica. É preciso cantá-la em hinos, canções, poemas, romances e filmes. É preciso falar muito mais ao coração, ao inconsciente, do que à mente, em vigília.

Essa perpétua nostalgia de origem contida na narrativa da nação moderna pode ser observada em dois filmes de estrada – Sem destino (Easy Rider, Dennis Hopper, 1969) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues) –, nos quais o mito fundador da nação é apropriado, porém, a partir de um prisma não convencional. 130

Em busca da origem perdida

No capítulo 4, será discutido como o gênero faroeste , que se caracteriza pela evocação do mito fundador da nação norte-americana, elaborou alguns temas comuns ao road movie de todos os tempos, – o protagonista que se aventura na estrada como errante, sem morada fixa ou futuro previsível –, e também como essa mesma geografia, situada no imaginário da fronteira do cinema western , é representada em Sem Destino , não obstante à luz do ideário da contracultura dos anos 1960.

Imagem 20 - Sem destino (Easy Rider, Dennis Hopper, 1969)

Nesse filme, a memória da nação é resgatada com base numa montagem ficcional e simbólica de registro conflitante entre a tradição e a ruptura, lapidando uma “epopeia moderna cuja viagem de volta não é o lar: o retorno está em aberto, no fluxo do tempo, apesar do desejo e busca de origem”. Sentido de indeterminação, acaso, que já marcavam a modernidade do gênero western e que são ampliados no arco de influências sociais e culturais da galopante hipermodernidade em gestação nos anos 1960 (ver a este respeito, no capítulo 2 – Cultura e identidade no século XXI ). Em Sem destino , o caminho é feito da vontade de aprendizado da estrada, numa atualização cinematográfica e contracultural, do espírito do romance de formação, em sintonia com uma época que respira profundamente utopias e revoluções, alargando o contorno errante dos heróis .

Em contradição ao movimento posto para o futuro, da utopia, temos, paralelamente, um movimento para trás. Essa nostalgia de origem , no filme, possui certos significados que devem ser comentados: a ressignificação do 131 mito fundador da nação, embalada pela vertente revolucionária da contracultura norte-americana à época (a bandeira nacional aparece impressa no capacete e tanque de combustível do protagonista Wyatt – Peter Fonda; e, em várias outras situações, à guisa da ironia e de imagens alegóricas à qual o marcante nacionalismo norte-americano não é negado plenamente).

E mais: a viagem iniciática pessoal dos três protagonistas em meio à natureza ainda selvagem do oeste norte-americano, a representar a busca do paraíso perdido, da terra prometida, desejada pelos movimentos libertários dos anos 1960, notadamente da tribo urbana hippie à qual os personagens estão ligados; a viagem lisérgica que resulta na lembrança delirante da infância de Wyatt (ele será filmado em posição fetal, clamando por sua mãe, em efeito catártico). Se o futuro é incerto, em função da vontade de transformação ontológica e social radical dos heróis, é preciso abrigar-se numa origem imaginária acolhedora e o mito de origem pode apaziguar os efeitos dessa destruição criativa.

Imagem 21 - Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979)

Em Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979), a viagem dos quatros heróis mambembes , a caravana de circo ambulante chamada Rolidei, em direção ao norte e nordeste do país, produz um sentido também de nostalgia de origem que se assemelha, em alguns significados simbólicos, ao referido acima road movie norte-americano.

O contexto político e histórico é bem outro – o Brasil da fase pós-utópica em relação ao espírito revolucionário dos anos 1960, numa fase terminal do autoritário processo desenvolvimentista dos governos militares (o filme foi 132 lançado durante o período de passagem entre os governos Ernesto Geisel e João Figueiredo). Não obstante, sopram ventos velozes de transformação da realidade social e cultural naqueles anos do chamado milagre brasileiro – anos 1970.

Os quatro heróis adentram o nordeste do país, partindo da divisa entre e , pressionados pela mudança advinda da modernidade que chega do sudeste/sul, da acelerada locomotiva industrial daquele momento. Rumam em busca da terra prometida, que possa responder às necessidades materiais e espirituais desses românticos mambembes. Diferentemente de Sem destino , a mudança é muito mais um efeito retroativo, do aprendizado da estrada, de perspectiva psicológica, do que a vontade de transformação social mais radical.

Aqui a terra prometida é construída a partir de certa imagem simbólica que o meio geográfico nordestino e a região amazônica traduzem, à época, aos realizadores. Desde a fase do cinema brasileiro de cangaço dos anos 1950 e 1960, e passando pelo Cinema Novo, o nordeste, especialmente a região do sertão, passa a ser representado pelos cineastas brasileiros como um território imaginário mítico , de coesão de identidade idealizada, de um novo centro de formação da nação.

Marilena Chauí, no artigo O mito fundador do Brasil (2000), comenta os vários estágios da genealogia do mito de origem nacional entranhado na cultura de modo secular e que ajuda, aqui, a pensar nas relações entre o mito e o discurso da nação em Bye bye Brasil (como ocorre em Sem destino , refletir, imaginar o revolto presente, de modo cinematográfico, acaba por alinhar uma narrativa de volta para trás ).

Vejamos este pequeno trecho, no qual Chauí extrai o mito na longa jornada da construção da identidade nacional:

Vivemos na presença difusa de uma narrativa da origem. Essa narrativa, embora elaborada no período da conquista, não cessa de se repetir, porque opera como nosso mito fundador. Mito no sentido 133

antropológico: solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade. Mito na acepção psicanalítica: impulso à repetição por impossibilidade de simbolização e, sobretudo, como bloqueio à passagem à realidade. Mito fundador porque, à maneira de toda "fondatio", impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa, que não permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente. (CHAUÍ, 2000, p.28).

A autora afirma que o mito fundador brasileiro, baseado numa visão de matriz cultural do tempo judaico-cristão, notadamente católico, exprime diversas dimensões de sua cosmogonia, enunciando um tempo complexo em termos de sedimentação de narrativas, mas que se firma num tempo de sentido bem direcionado, nas quais se destacam as condições providencial (unitária e contínua, com finalidade), profética (marcada pela esperança do futuro) e escatológica (somente no fim a promessa será plenamente cumprida) desse mito de origem. Uma tradição cultural portuguesa, europeia, de longa data, que contorna, molda a nascente modernidade, nos primeiros séculos de pré- formação nacional, de modo bastante próprio nestas paragens, como em outros países latino-americanos (HOLANDA, 2000).

Entre o milenarismo medieval e português, o mito do bom selvagem, a visão do paraíso do colonizador branco, a natureza luxuriante e encantada de Pedro Vaz de Caminha, e a realeza, guia suprema dos monarquistas, do período colonial, o Brasil edificou um mito fundador pautado em forte contorno religioso e místico, e que facilitou uma relação de dominação autoritária como ressalta oportunamente Chauí .

Um imaginário ordenador que se atualiza na contraditória modernidade brasileira ao longo do século XX, por meio da figura predominante do líder carismático e populista de nossos políticos e governantes (os pais e mães do povo). Em plena ascensão do poder laico e racional, trazidos pela vida urbana e do mundo industrial, a cultura e a política brasileira estão, e continuam, bastante influenciadas pelos mitos de origem e pela escatologia (devir), que se elevam do chão longínquo e próximo do período colonial.

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Mas, se esse mito fundador que se aninha na vertente mais conservadora do poder, como descreve a filósofa, não podemos deixar de salientar que o chamado pensamento de esquerda brasileiro construído nos anos 1960-70, de base marxista, a qual Chauí e o diretor Cacá Diegues estão vinculados, também constrói um discurso e imaginário caracterizado numa dialética de esclarecimento de um lado, e por outro, no espelhamento do universo simbólico dos mitos tradicionais de origem e salvação.

Essa conexão em que o mito e a política interagem profundamente, mesmo na modernidade, foi analisada por Eliade com base no mito do redentor do Justo , cuja associação com o ideário marxista pode ser observada abaixo:

Quanto ao comunismo marxista, suas estruturas escatológicas e milenaristas foram devidamente assinadas. Já observamos que Marx retomou um dos grandes mitos escatológicos do mundo asiático- mediterrâneo: o papel redentor do Justo (hoje, o proletariado), cujos sofrimentos são invocados para modificar o status ontológico do mundo. (ELIADE, 1972, 158).

No cinema de estrada de Bye bye Brasil , tal concepção do mito fundador e escatológico – pares constantes na mitologia – pode ser observada. A busca do paraíso perdido está no registro da imagem de perfeição e salvação que o povo adquire no filme de Cacá Diegues, uma tradição imaginária elaborada pelo Cinema Novo nos anos 1960 e que ainda é marcante no cinema brasileiro das décadas posteriores (esta leitura será detalhada no próximo capítulo, com a leitura dos filmes de estrada na virada do século XXI).

Esse povo escolhido está, inicialmente, na perspectiva da história do filme, no nordeste – região onde nasce o mito fundador brasileiro – ou no paraíso representado pela selva amazônica – lugares distantes da urbanização desenfreada das grandes cidades do sudeste, sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro, símbolos do milagre econômico dos anos 1970. Uma terra prometida (devir) que deveria ser encontrada nesses lugares de tecido social mais tradicional à época (origem).

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No final da história de Bye bye Brasil , os mitos de origem e escatológicos desencontram-se no trajeto percorrido e voltam a se comunicar na promessa do futuro. Vemos que o turbilhão das mudanças culturais e sociais que a televisão sublinha chega ali, na terra prometida, também dissolvendo a magia e a esperança do quarteto da caravana Rolidei, que se separa em Brasília. Porém a ruptura que se apazigua na felicidade reinante do quarteto é demonstrada no último encontro e sequência do filme, nos quais a nostalgia do passado idealizado cede à criação imaginária da profecia escatológica do futuro pleno.

A morte iniciática

Imagem 22 - Thelma e Louise (Thelma and Louise, Ridley Scott, EUA, 1991)

Nos filmes de narrativa road-movie , os heróis estão normalmente envolvidos em situações limite de vida, nas quais a transformação profunda da consciência – a morte simbólica – é atingida seja na mudança completa de trajetória ou na própria morte física. Esta ocorre, por exemplo, com os protagonistas dos filmes norte-americanos Sem destino (Dennis Hopper) e Thelma e Louise (Ridley Scott).

Segundo Campbell (2006: p.61), na literatura ocidental que apropria o mito do viajante visionário, observado na Odisseia, de Homero, ou em A divina comédia, de Dante, a morte ganha contornos individuais, e nela os heróis podem falar com as sombras dos que acabaram de morrer:

[...] No Oriente, por outro lado, nos infernos e nos céus dos hinduístas, dos budistas e dos jainistas, não encontramos essa continuidade de traços pessoais reconhecíveis; pois na morte a máscara do papel 136

terreno cai por terra e a de uma vida pós-vida é colocada. Campbell (2006, p.61).

Ou seja, vida e morte são igualmente portadoras, nas sociedades ocidentais, da individualidade. No caso específico dos filmes mencionados acima, respectivamente com os protagonistas Billy e Wyatt ( Sem Destino ) e Thelma e Louise (Thelma e Louise ), essa individualidade torna-se somente concretizável na sublimação da mensagem a partir da morte física, uma vez que o padrão societário hegemônico conservador que cerca esses personagens apresenta- se como um muro intransponível para acolher as experiências e as transformações mais inovadoras. A morte física nesses dois filmes é de comportamento mitológico iniciático.

Vejamos outro longa-metragem de estrada em que a imagem da morte está presente, do começo ao final da trama ficcional, e cria uma densa alegoria da vida espiritual. Em Gosto de cereja (Ta'm e guilass, Abbas Kiarostami, Irã, 1997), as frutas referidas no título significam a renovação da vida e a reflexão da morte é elemento par temático, como também em Morangos silvestres , de Ingmar Bergman.

No filme de Kiarostami, a morte é meta a ser atingida de modo intencional. Badii (Homayoun Ershadi), cidadão iraniano com cerca de 50 anos, perambula pela periferia de Teerã em busca de alguém que possa enterrá-lo depois de cometer o suicídio.

Imagem 23 – Gosto de cereja (Ta'm e guilass, Abbas Kiarostami, Irã, 1997)

O filme passa a maior parte do tempo nas estradas desses arredores da capital, narrando as tentativas de agenciamento, por parte de Badii, junto aos 137 transeuntes, para que alguém possa, no dia seguinte, enterrá-lo e confirmar sua morte a ocorrer após a ingestão de remédios. Depois de muitas tentativas sem êxito, um cientista que trabalha no laboratório do Museu de História Natural aceita a incumbência – Bagheri (Abdolrahman Bagheri).

Esse personagem é fundamental para a evolução da história. É quem mais consegue falar a fundo ao coração opresso de Badii, um homem maduro, de expressão permanentemente taciturna, de cuja vida passada absolutamente nada se sabe, muito menos dos motivos do desejo de morte. Para demovê-lo da empreitada do suicídio, o cientista narra uma história pessoal sobre a experiência profunda com o cheiro e o gosto silvestre de amoras , a qual o fez desistir do suicídio, quando jovem. E ainda lhe conta uma piada alegórica:

Um turco foi ao médico e disse: Quando toco meu corpo com o dedo, dói. Quando toco minha cabeça, dói. Quando toco minha perna, minha barriga, minha mão, dói. O médico examina e diz: Seu corpo está ótimo, mas seu dedo está quebrado. Continua Bagheri: Oh, meu caro, sua mente está doente. Não há nada de errado com você. Mude sua perspectiva. 15

Ao final, a narrativa linear do longa-metragem, realizada como parábola, é interrompida por uma cena de metalinguagem que retira, em parte, a carga emocional da trama, mas amplia os significados metafóricos de Gosto de cereja . Nela vemos, com base em formato de vídeo, Kiarostami e sua equipe gravando uma cena de um grupo de soldados em marcha e, em outra, o ator que interpreta Badii oferecendo um cigarro ao diretor. Depois de dizer “corta”, a filmagem em vídeo continua mesmo assim, enquadrando os jovens soldados que agora estão descansando ao lado de uma árvore. E, ao fundo, ouvimos uma versão instrumental, em ritmo de marcha, de Summertime (verão), de George Gershwin.

Não sabemos se o protagonista morreu de fato. Mas temos certeza de que as várias mensagens para mudança de perspectiva do protagonista, se não impediram o suicídio dele, ficaram em nossa memória. A encenação da natureza árida do começo do filme transfigura-se no colorido das sequências

15 Diálogo transcrito da versão em dvd do filme - Gosto de cereja. Distribuição Cult Filmes. 138 do final, com a entrada em cena de Bagheri, que colabora para projetar as intenções humanistas do roteirista e diretor; os soldados desarmados ao final, também.

Temos a estrada, que metaforiza o fio corrente da vida, e a enunciação da renovação da vida por meio das frutas silvestres – amora/cereja –, bem como da reiterada imagem da árvore, que projeta uma simbologia de ascese espiritual (além da cena final, ela aparece em vários momentos em que o protagonista, pedagogicamente, demonstra como deseja ser enterrado, ou seja, ao lado de um arbusto).

Vejamos o que diz Eliade (2000) a respeito desta figura mítica:

[...] os principais significados do simbolismo da árvore – aliás, bastante complexo – são solidários com a ideia de renovação periódica e infinita, de regeneração, de “fonte de vida e juventude”, de imortalidade e realidade absoluta. (ELIADE, 2000, p.13).

Essa pequena síntese da leitura do autor para o significado da árvore, encontrado em vários mitos e religiões, ajuda-nos a compreendê-la no filme, em que a individualidade do herói, transfigurada simbolicamente em árvore, figura reiterada até o final e torna a morte uma passagem iniciática, de ascese ontológica para plenitude atemporal, da queda da máscara do papel terreno do herói para a vida imortal.

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4. O GÊNERO ROAD MOVIE: ORIGEM, FORMATO E FILMES DE REFERÊNCIA 140

Primeiros sinais da fronteira

Qual é a origem dos road movies ? Certamente temos, aqui, um problema de pesquisa de difícil equacionamento. Primeiro, porque a própria função elementar do cinema é de produzir imagens e sons em movimento. A viagem imaginária permeia, de modo sanguíneo, as artérias das narrativas cinematográficas de todos os tempos e lugares. O cinema é expressão de identidade cultural e artística da modernidade, da razão nômada (ROUANET, 1993), que emerge na complexa vida urbana planetária desde o final do século XIX.

O crítico inglês Edward Buscombe (2005), ao tratar da análise da narratividade no cinema, salienta três questões importantes de esclarecimento teórico- metodológico, sintetizadas nas formulações colocadas adiante: Como definir os gêneros? Qual a sua função? O que os faz surgir? Para responder a tais perguntas, utiliza-se como objeto ilustrativo o cinema americano a partir do gênero do qual é especialista – o western.

Coloco inicialmente tais problemas de pesquisa acerca dos gêneros cinematográficos, pois eles mediam, justamente, umas das abordagens nucleares do presente trabalho: qual o significado social e cultural do road movie , tomando em consideração o contexto histórico de seu momento de configuração mais visível e estruturado, ou seja, a partir da segunda metade do século XX?

Tendo em vista que o formato contemporâneo do road movie (pós-1960) possui um processo gerativo relacionado à história social do cinema norte-americano, configurando-se, assim, numa recriação moderna de suas convenções narrativas – o cinema clássico representado, por exemplo, no western – desejo, a seguir, apresentar mais alguns argumentos de Buscombe a respeito da narratividade, uma vez que se mostram estratégicos para esta etapa da pesquisa de definição do gênero road movie .

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É fundamental ressaltar que não se deseja provar, nesta tese, que o gênero road movie seja originário dos EUA, mas que a constituição de um modelo narrativo de reconhecimento no cinema mundial contemporâneo configura-se de modo influente, a partir da produção norte-americana dos anos 1960. E também que tal modelo de referência pode ser observado na produção brasileira em estudo (anos 1990/2000), independente dos aspectos de mediação histórica e singularidade cultural, bem como de idiossincrasia estilística dos autores que serão discutidos no último capítulo.

Apesar da apropriação da estrutura homogênea e linear da narrativa clássica, os enredos dos filmes de estrada refletem, muitas vezes, uma negação crítica ao sentido social e político normativo circunscrito àquele. E esta abordagem fica bastante clara, quando se analisa, por exemplo, o filme Sem destino ( Easy rider; 1969), dirigido por Dennis Hopper – longa-metragem modelar – para caracterizar e situar, historicamente, o desenvolvimento do gênero road movie.

Neste longa-metragem, dois protagonistas aparecem do começo ao fim do filme (são três ao todo): Billy (o também diretor Hopper) e Wyatt (Peter Fonda), que saem de motocicleta de Los Angeles, estado da Califórnia, para se dirigirem à festiva New Orleans, Louisiana, localizada na foz do rio blues Mississipi, cidade-porto banhada pelo mar Atlântico.

Entre essas grandes cidades dos EUA, caracterizadas por sua mentalidade aberta, o filme desenha uma longa viagem dos protagonistas , que passam a maior parte do tempo pelo conservador território das pequenas cidades do interior rural da região sudoeste. Ao longo desta jornada, iremos conhecer o terceiro protagonista do filme, George Hanson (Jack Nicholson), advogado e militante político local, de espírito libertário, que encontra suas afinidades eletivas na dupla de hedonistas hippies a cavalgar de motocicletas pelas planícies ainda selvagens da região, neste filme realizado no final da década de 1960.

Uma paisagem geográfica que, historicamente, do ponto de vista da construção da identidade cultural e do mito moderno de origem dos EUA, elaborada 142 notadamente em sua produção cinematográfica, foi acionada anteriormente, desde as décadas de 1910, por outro gênero: o cinema clássico western (VUGMAN, 2006). Os dois gêneros – o faroeste e o filme de estrada –, portanto, trazem, como eixo fabular, a estrada, a fronteira, o caminhar no desconhecido, o selvagem, o (re)encontro das personagens com a sua subjetividade que a condição de viagem possibilita, adensada em um ambiente geográfico solitário como o do velho oeste .

Retomando Buscombe e sua análise sobre a narratividade no cinema, o autor cadencia uma abordagem do faroeste norte-americano que enfatiza a leitura da iconografia , as convenções visuais (no diálogo direto à pergunta: Como definir os gêneros?). Para ele, a própria seleção desses elementos visuais por parte dos criadores – produtores, diretores ou roteiristas – acabaria por conformar, influenciar, prover temas, enredos e abordagens estilísticas dos filmes acolhidos por tal narrativa.

Desertos, montanhas, planícies, florestas captados nas locações externas; saloons , cadeias, tribunais, ranchos, hotéis, bordéis visualizados internamente; homens de jeans, com chapéus de abas largas, botas de salto alto e esporas; mulheres com saias largas e corpetes justos, ou, às vezes, de modo masculino à época, com jeans e camisa, conectam imediatamente o público ao universo comum de identidade cinematográfica e cultural dos filmes de faroeste.

Deste modo, ainda segundo a opinião do crítico inglês, o registro histórico inscrito no universo dos protagonistas cowboys – a fase de expansão territorial dos EUA, sobretudo durante o século XIX, em direção do leste do rio Mississipi ao estado da Califórnia e outros limites a oeste – mostra-se uma chave menor ao reconhecimento do gênero do que os elementos visuais que se reiteram, conforme exemplificado anteriormente.

A estrutura da narrativa, apesar de temas e enredos comuns – a guerra final contra os índios selvagens, por exemplo –, também não se coloca como abordagem analítica que possa selecionar elementos comuns de fácil identificação; as histórias dessa filmografia são diversas o suficiente para 143 dificultar esse caminho de busca de definição do chamado western. Mas será que a leitura das convenções visuais de determinado filme de estrada poderá representar também a chave principal para definição do gênero, como Buscombe discute no western ?

Afinal, existem, de fato, elementos imagéticos comuns entre road movies produzidos em diferentes períodos históricos e regiões do planeta, como, por exemplo, nos longas-metragens O Movimento em falso (Wim Wenders, Alemanha Ocidental, 1975), Bye bye Brasil (Cacá Diegues, Brasil, 1979), Priscila, a rainha do deserto (Stephan Elliott, Austrália, 1994), E sua mãe também (Alfonso Cuarón, México, 2001), ou Família rodante (Pablo Trapero, Argentina, 2004)?

Em termos mais gerais, é possível apontar que os filmes de estrada, normalmente, possuem locações externas situadas em regiões mais desertas ou selvagens dos países nos quais essa narrativa é apropriada: pampa, interior nordestino, deserto ou região semiárida da Austrália ou México, exemplificando com base nos filmes mencionados. Não obstante, numa abordagem sociológica e antropológica mais acurada, tanto a geografia física como a humana atingem uma cartografia tão diversa, envolvendo sociedades e culturas específicas, o que fragiliza a constatação de uma possível unidade visual para o gênero.

Por outro lado, deve-se apontar que a intenção dramática na escolha dessas regiões mais desabitadas, inóspitas, de natureza selvagem mais preservada não é aleatória para os enredos desses filmes de ficção. Na discussão desenvolvida mais adiante, nos subcapítulos 3.2.1 O road movie no cinema norte-americano – 1930-2000 e 3.2.2 O gênero filme de estrada no cinema brasileiro – anos 1950-1980 , na tentativa de mapear as fronteiras do gênero e sua caracterização, será possível constatar que um dos temas recorrentes no filme de estrada é a questão da identidade cultural no mundo contemporâneo (a produção brasileira mais recente, 1990-2000 – corpus primário de pesquisa da tese – será analisada no capítulo posterior) .

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Metaforicamente, a estrada significa passagem – entre a terra de morada e o lugar estrangeiro, entre um ser e o outro –, mudança, transição, sensível apreensão da rota do destino, fluxo da vida; figura que se assemelha às imagens poéticas e filosóficas, por excelência, relacionadas à água – rio e mar. Muitas vezes, a viagem na estrada pode compreender um ritual de passagem, alteração radical do estado das coisas, sinalizando o fato de que a identidade individual é móvel e está em constante construção. Uma obra em aberto.

No gênero road movie , os motivos pelos quais os protagonistas se lançam na estrada podem advir de demandas diversas, ora de natureza pessoal ora de ordem econômica (esta, normalmente, é um liame para tramar a outra). Mas o que esses filmes têm em comum é que os seus protagonistas, ao atingirem o término da jornada, estão profundamente modificados pelo aprendizado social e cultural do percurso, refletido em novos sentidos e significados que seus destinos adquirem no processo da viagem.

Nos filmes de estrada, o herói ou anti-herói lança-se numa trajetória de caminhos incertos, acolhido por um destino inexplicável, apesar de certa explicitação dos acontecimentos cruciais vivenciados ao longo do percurso, criando, assim, uma fabulação de jogo oscilante entre a razão e o imponderável. Uma narrativa que pode ser comparada a um rito de passagem, herdeira da tradição das histórias de iniciação, ressoando, remotamente, à narrativa heróica da epopeia, à Odisseia de Homero – um dos primeiros textos de narrativa de viagem do mundo ocidental.

A viagem desempenha, desse modo, uma função formadora do deslocamento , como salienta o filósofo Michel Onfray (2009), ao comentar que tal perspectiva é um projeto desejável desde a Antiguidade grega:

Viajar conduz inexoravelmente à subjetividade. Dividida, fragmentada, espalhada ou compacta, é sempre diante dela que acabamos por chegar, como diante de um espelho, que nos convida a fazer o balanço de nosso trajeto socrático: o que aprendi de mim? O que posso saber com mais certeza do que antes da minha partida? Os filósofos da Antiguidade sabiam a função formadora do deslocamento. Todos percorreram a bacia 145

do Mediterrâneo, abandonaram a Europa pela África, viajaram até o Oriente Próximo, depois até o Extremo Oriente: Líbia, Egito, Mesopotâmia, China ou mesmo Índia [...] (ONFRAY, 2009, p. 81)

O filme de estrada combina, ao mesmo tempo, esse caráter de rito, de iniciação, contido na tradição das narrativas de viagem – o que essa revela ao herói sobre si mesmo e sobre o lugar onde transcorre a jornada –, sua consciência individual refletida, confrontada, por um lado, com o imaginário coletivo e mítico e, por outro, com os valores da cultura de mobilidade dos tempos atuais, intrínsecos à dinâmica social do sistema capitalista.

O intenso desenvolvimento dos meios de transporte, o contexto social do capitalismo tardio ou, mais recentemente, do chamado período de globalização, representam sua conexão histórica (veja no anexo uma breve filmografia do gênero road movie – anos 1930-2000 – e sua profusão produtiva no mundo nas últimas décadas, conforme apanhado cronológico).

Desse modo, como afirma Borelli (1996, p. 183) numa mesma linha teórica de perspectiva metodológica interdisciplinar sobre o entendimento das narratividades ficcionais adotadas nesta tese, os gêneros podem ser analisados tanto como “estratégias de comunicabilidade” quanto “fato cultural e modelos, articulados às dimensões históricas do espaço em que são produzidos e apropriados”.

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3.1 Breve história social do road movie no cinema norte-americano, anos 1930-2000

Imagem 24: A grande jornada (Raoul Walsh, 1930).

Atravessando a recessão

A estrada tem sido sempre um persistente tema da cultura americana. Seu significado está mergulhado na mitologia popular e história social, no retorno ao ethos da fronteira nacional, mas foi transformado pela tecnologia inserida no movimento das imagens e dos automóveis no século XX. (COHAN E HARK, 1997, p. 23)

Durante a década de 1930, período marcado pela Grande Depressão econômica, gerada pela famosa crise da Bolsa de Nova York, de 1929, e pela gradual retomada de crescimento que acompanha o longo governo Franklin Roosevelt (1933-45), e também atrelado à aplicação da política estatal do New Deal (KARNAL et al., 2007), foram produzidos alguns longas-metragens cujo tema estrada apareceu em contextos históricos e narrativos bastante distintos.

Pode-se observar tal diversidade em longas-metragens dos primeiros tempos da fase sonora de Hollywood , como A grande jornada ( The big trail , Raoul Walsh, 1930), Aconteceu naquela noite (It happened one night, Frank Capra, 1934), O mágico de Oz ( Wizard of Oz , Victor Fleming, 1939) e No tempo das diligências ( Stagecoach, John Ford, EUA, 1939).

O filme de Capra - Aconteceu naquela noite - alinhava uma típica comédia romântica dentro do contexto do cinema clássico de Hollywood. Ellie Andrews (Claudette Colbert), filha de um milionário, de personalidade mimada, sai de 147 casa quando seu pai não aceita que se case com um pretendente de perfil boa vida . Fugindo num ônibus com destino a Nova York, ela tem, como colega de viagem, Peter Warne (Clark Glabe), repórter de jornal. Ao longo do percurso, no qual os dois se aproximam e têm um relacionamento amoroso, eles também pegam carona de automóvel em certos trechos.

Imagem 25: Aconteceu naquela noite (Frank Capra, 1934).

A estrada surge como símbolo de modernidade, espaço de liberdade, e funciona como elo de acesso à desejável vida urbana. O caminho através do mundo rural é apenas pretexto para alcançar os novos valores de comportamento especialmente encontrados nas grandes cidades. Este filme é uma comédia romântica com a marca do diretor Capra: ...”otimista e confiante na democracia americana, que acertou em cheio no espírito do povo, nos anos difíceis da Depressão e do “New Deal” de Roosevelt” (EWALD FILHO, 2001, p.37) .

O filme de Walsh – A grande jornada (1930) – é um western , no qual John Wayne atua na condição de protagonista, aos vinte e três anos de idade, e conta a história dos pioneiros , cuja trama aborda famílias de formação puritana que partem do rio Mississipi em direção oeste dos EUA, em busca de uma nova condição de vida, aludindo, assim, à passagem bíblica da terra prometida.

Outra típica narrativa heróica de faroeste é o clássico do gênero, realizado por John Ford, No tempo das diligências (1939). Protagonizado também por John Wayne, no papel do cowboy Ringo Kid, o filme conta a história de um grupo de viajantes pelo Velho Oeste , que inclui a prostituta Dallas (Claire Trevor), um 148 médico bêbado (Thomas Mitchell) e o xerife Curly (George Bancroft), entre outros.

No meio do caminho pelas terras áridas do Arizona, eles se deparam com Ringo, que fugiu da cadeia depois de ser acusado de assassinato. O delegado Curly desarma-o e mantém-no sob custódia até precisar de sua ajuda para deter o ataque de índios apaches, sendo salvos definitivamente pela chegada da cavalaria . Durante a empreitada, Kid e Dallas iniciam um romance. No desfecho, quando, sob a conivência do xerife Curly, Kid vinga a morte do seu pai e de seu irmão, motivo principal de seu périplo pela região da fronteira, Kid parte com Dallas para uma vida nova em seu rancho no México.

Estas duas epopeias dos pioneiros norte-americanos na região oeste do país, produzidas na década de 1930, demonstram certa conexão com o formato do road movie moderno/contemporâneo, pós-anos 1960, quando passa a ser reconhecido como gênero ou estilo cinematográfico por parte de realizadores e críticos (vejam análise adiante desta fase).

Imagem 26: No tempo das diligências (John Ford, 1939).

Apesar das convenções moralistas e ideológicas do western – o homem branco, macho/viril, civilizando o hostil ambiente das fronteiras (pode-se projetar metaforicamente para o mundo) dominadas por índios selvagens e mexicanos bandidos – e da propagação da cultura da violência, com a onipresente iconografia de armas de fogo ou branca – revólver, rifle, faca, 149 machado, canivete, etc. –, elementos que vão tramar, com outras formas cinematográficas, parte dos valores da identidade nacional norte-americana ao longo do século XX, o faroeste elabora alguns temas comuns ao road movie de todos os tempos: o protagonista que se aventura na estrada como errante, sem morada fixa ou futuro previsível, e a natureza como imagem mítica e transcendente.

Analisando mais um dos longas-metragens sonoros norte-americanos, associados ao gênero road movie, dos anos 1930, vermos que o tema percorre outro significado em O mágico de Oz (Wizard of Oz, Victor Fleming, 1939). Trata-se de uma fábula infantil, adaptada à geografia e ao período histórico moderno – o interior rural norte-americano, no Kansas, região centro-oeste –, na qual a vida rural é valorizada pela força dos seus valores morais. A garota protagonista, Dorothy (Judy Garland), levada por um tornado a uma terra fantástica, habitada por bruxas e fadas, e seus companheiros de caminhada a pé: o leão covarde, o espantalho sem cérebro e o homem de lata sem coração.

Imagem 27: O mágico de Oz (Victor Fleming, 1939).

A procura pelo mágico de Oz e seu poder extranatural ocorre ao longo de um trajeto de cor amarela, no qual a natureza ao redor mostra-se misteriosa, fantástica. Neste filme, o mundo urbano inexiste e, com a sua supressão, afirma-se a vontade de fuga da adversidade do cotidiano. O tom moralista e otimista desta fábula infantil combina com o desejo coletivo de superação do período de Depressão em que mergulharam os EUA durante a década de 1930. O trajeto é, portanto, acesso ao mundo de plena fantasia, acolhido na natureza encantada que ilumina o caminho dos viajantes que nela adentram.

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A viagem como fuga: o road movie noir

No período concomitante à Segunda Guerra Mundial (1939-1945), e logo após seu término, surge uma série de filmes de estrada dentro de um estilo muito peculiar, o filme noir . Alguns exemplos: Dentro da noite ( They drive by night , Raoul Walsh, 1940), Curva do destino ( Detour , 1945, Edgar G. Ulmer), O Desesperado ( Desperate , Anthony Mann, EUA, 1947), Mortalmente perigosa (Gun crazy , Joseph Lewis, EUA, 1950) e O mundo odeia-me (The Hitch-Hiker , Ida Lupino, EUA, 1953).

Personagens e temas típicos desse gênero/estilo/atmosfera do cinema policial norte-americano – mulher fatal e agressiva, o herói masculino alienado e obcecado, paixão, violência e fatalismo (MATTOS, 2000) – dão o tom que ressoa ao redor dos caminhos de asfalto que aparecem nesses longas- metragens:

Metaforicamente, o crime noir seria o destino de uma personalidade psíquica e socialmente desajustada, e, ao mesmo tempo, representaria a própria rede de poder ocasionadora de tal desestruturação. A caracterização eticamente ambivalente de quase a totalidade dos personagens noir , o tom pessimista e fatalista, e a atmosfera cruel, paranóica e claustrofóbica dos filmes, seriam todos manifestação desse esquema metafórico de representação do crime como espaços simbólicos para problematização pós-guerra (MASCARELLO, 2006, p. 181).

Para Cohan e Hark (1997), existem três grandes ciclos de histórias de filmes de estrada com protagonistas fora de lei/rebeldes: o dos anos 1940, com seu diálogo com o filme noir – Dentro da noite ( They drive by night, 1940, Raoul Walsh), Curva do destino (Detour , 1945, Edgar G. Ulmer) –; o dos anos 1960, período de revolução cultural e política antiautoritária, representado em filmes como Bonnie e Clyde (Bonnie and Clyde , Arthur Penn, 1967) e Sem destino (Easy rider , Dennis Hopper, 1969); e o dos anos 1990, que lança um novo olhar sobre a sexualidade – Garotos de programa ( My own private Idaho , Gus Van Sant, 1991), Thelma e Louise ( Thelma and Louise , Ridley Scott, 1991) e Assassinos por natureza ( Natural born killers , Oliver Stone, 1994).

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Se o meio urbano se torna socialmente ameaçador, as autovias retratadas representam apenas um meio de fuga para tal situação; mas elas não poderão fornecer uma solução, pois, depois de cada trajeto, há sempre uma nova cidade com todos os mesmos problemas daquela de origem. A paisagem rural, da mesma maneira que a cidade – esta, encenada preferencialmente à noite, sob uma iluminação precária –, simboliza, nestes road movies de estilo noir, um mundo incompreensível.

Esse estado de espírito pode ser apreendido na última fala, em off , do protagonista masculino, Al Roberts (Tom Neal), de A curva do destino, pouco antes de sua prisão, na sequência derradeira, em função de seu envolvimento em dois crimes ocorridos de modo acidental: “sim, o destino, ou uma forma misteriosa, pode aprontar para você ou para mim sem nenhum motivo”16 .

Imagem 28: Curva do destino (Edgar G. Ulmer, 1945) .

Outro aspecto muito importante de análise desta produção road movie noir diz respeito à questão da sexualidade, dos papéis sociais e de identidade masculina e feminina. Afinal, esta produção cinematográfica norte-americana das décadas de 40/50 passa a apresentar protagonistas masculinos com personalidades nitidamente ambíguas, refletindo, assim, valores morais e de comportamentos hesitantes. Edgar Morin designa-os como good-bad-boys , rudes justiceiros que realizam uma “síntese entre o antigo bruto bestial e o justiceiro bondoso”, personagens estes encontrados no cinema americano anterior à Segunda Guerra Mundial (MORIN, 1989, p.15).

16 Trecho retirado dos diálogos de A curva do destino , versão legendada em português . DVD, Distribuição Aurora. 67min. Preto e brando. 152

O cinema de estrada e rebelde de O selvagem (1953)

Imagem 29 - O selvagem (Laslo Benedek, 1953) Marlon Brando

O cinema de Hollywood do pós-Guerra incorpora, aos poucos, um dos temas do cinema contemporâneo mais recorrentes: a juventude. James Dean (Juventude transviada, Rebel without a cause , Nicholas Ray, 1955) e Marlon Brando ( O selvagem, Wild one , Laslo Benedek, EUA, 1953) são os atores que melhor personificaram, de modo cinematográfico, a rebeldia e as angústias da nova geração que viveu naquele país ao longo dos anos 1950.

O selvagem é uma produção única desse período, que antecipa uma série de filmes de estrada envolvendo motociclistas, realizada na década de 1960; capta os anseios de grupos juvenis que não se enquadram às regras e práticas sociais estabelecidas da cultura norte-americana do período: cada vez mais jovens expressam a vontade de transformar a linha da existência traçada pela ordem de classe, da tradição, da família.

O visual de Marlon Brando, no filme, estabelece um elo forte de identidade com a primeira juventude rock and roll a aflorar: vestido com jaqueta de couro e jeans (apesar dessa associação com esse gênero musical, a trilha sonora orquestral é baseada no jazz). Compunha seu figurino peculiar de motoqueiro de ar blasé , pilotando uma vistosa thunderbird, um largo boné de aba preta. Segundo Kid Vinil (2008, p. 16), “O selvagem é o filme responsável pela estética padrão do rock and roll e ditou moda com suas jaquetas de couro, o blue jeans e os topetes”. 153

Johnny Strabler (Marlon Brando) lidera uma gangue de motociclistas que olha, angustiado e colérico, os habitantes de uma pequena e tranquila comunidade da Califórnia, por onde resolve passar, em busca de diversão. O numeroso grupo invade a cidade com a intenção de participar de uma festa que deverá ocorrer no final de semana. Lá, fazem do Café Bleeker, propriedade do progressista xerife local, Harry Bleeker, sua melhor parada: tomam cerveja à mão cheia e dançam ao som de uma jukebox , pernoitando no estabelecimento, após horas de farra. A estrada aparece, no filme, como espaço de mobilidade indeterminada que acolhe e possibilita o modo de vida hedonista por excelência dos jovens levados pela delinquência e pelos conflitos de gangue.

A garçonete do bar, Kathie (Mary Murphy), é a filha do proprietário e apaixona- se pelo lacônico e rude John. No dia seguinte, a trama ganha tensão depois da chegada, à cidade, do líder de outra gangue rival, liderada por Chino (Lee Marvin). Depois de um tumulto entre os grupos, Chino termina preso. Entra em cena, nesse momento, o personagem Charlie Thomas (Hugh Sanders), que simboliza a cultura conservadora da região; não contente com as providências tomadas pelo xerife, chama os outros moradores para expulsarem os motoqueiros de modo violento.

Capturado pelos moradores, colegas de Thomas, Johnny tenta fugir da cidade, mas é atingido por uma chave de roda arremessada de propósito, numa das reviravoltas do cerco. Desequilibrado, ele atinge um morador e o mata. Passado o apuro da prisão preventiva, consegue ser absolvido com a intervenção do xerife Harry Bleeker. Solto, deixa a cidade e interrompe bruscamente o relacionamento com Kathie. De certa maneira, essa não consumação do happy end amoroso e, especialmente, o tema da juventude rebelde indicam o início à subversão temática da narrativa clássica do cinema de Hollywood, que a geração sexo-drogas-rock´n´roll (BISKIND, 1998) irá tramar profusamente na década posterior.

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A estrada como espaço de experimentação

Para a história do cinema norte-americano, os anos 1960 representam um período marcado pela transição e inovação, associadas à revolução cultural e social que sacudiu o mundo: período de crise dos grandes estúdios, motivada pela concorrência da televisão e da crise financeira do sistema e agravada com as mudanças do monopólio produção/distribuição/exibição; solo fértil à filmografia que se alinha em diversas frentes na chamada Nova Hollywood ou Novo Cinema Norte-Americano.

Ao longo da década, os vários movimentos culturais e políticos que surgem – feminismo, dos direitos civis, estudantil e dos jovens da contracultura/hippies – abalam radicalmente o establishment norte-americano. É o momento delicado da Guerra Fria, que coloca em eminência a explosão da bomba atômica. O presidente democrata e liberal John Kennedy (1961–1963), que foi assassinado, depara-se, logo no segundo ano de seu mandato, com a chamada crise dos mísseis de Cuba, ocorrida em outubro de 1962, colocando o embate ‘mundo capitalista versus comunista’ muito próximo de casa.

Mas é a Guerra do Vietnã, em que os EUA estiveram envolvidos de 1965 a 1973, iniciada durante o mandato do também democrata Lyndon Johnson (1963-69), o evento bélico que move multidões em busca da perspectiva pacifista e antinuclear. Entre democratas, comunistas e anarquistas, o grupo de jovens cabeludos e de roupas coloridas chama a atenção da mídia e da opinião pública à época: a flower power (o poder das flores – slogan do movimento que expressa simbolicamente a posição de resistência pacífica e a ideologia de não-violência) movia-se por todos os lados, sobretudo a partir da segunda metade da década de 1960, e evidenciava-se nas roupas, música, filmes, atitude e comportamento de muitos jovens, especialmente nas grandes cidades do país.

Goffman e Joy (2007) destacam que é no período de 1964-67 que o movimento hippie torna-se efetivamente visível no cotidiano das grandes cidades e na produção cultural de massa – música, televisão e cinema – em vários países 155 do mundo, notadamente na parte ocidental. Nos EUA, as cidades de São Francisco e Nova York formam o núcleo de gestão de ideias do movimento contracultural dos anos 1950, onde o movimento literário beat o antecede e representa uma de suas fontes de formação de ideário.

Desse ambiente de renovação cultural emerge uma nova safra de cineastas, a geração sexo-drogas-e-rock-n´roll (Biskind, 2009), imbuída do espírito de rebeldia da época (Robert Altman, Hal Ashby, Peter Bognovich, Francis Coppola, Dennis Hopper, etc.). E dela surgem novos filmes de estrada muito peculiares, cujas histórias dão contorno ao formato contemporâneo configurado a partir de um núcleo de abordagem temática central: a estrada, como espaço de experimentação e reflexão existencial e cultural – abordagem crítica à identidade de gênero (masculino/feminino), geracional e da matriz cultural nacional/regional.

Tal perspectiva pode ser observada em Faster, Pussycat! Kill! Kill! (Russ Meyer, 1966), Os anjos selvagens (The wild angels , Roger Corman, 1966), Bonnie e Clyde – uma rajada de balas (Bonnie & Clyde , Arthur Penn, 1967) e Sem destino (Easy rider , Dennis Hopper,1969).

O road movie de gangsters Bonnie e Clyde (1967) constrói, com os protagonistas fora de lei/rebeldes, uma trama que se movimenta de modo ágil entre sequências, cujo tom dominante de humor e ironia dá relevo à intenção dos realizadores de glamourizar a violência que marca a história real dos jovens delinquentes dos anos 1930, sintetizado na sangrenta encenação final em que os heróis são mortos sob uma forte rajada de metralhadoras, em câmera lenta, para acentuar a dramaticidade do ato.

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Imagem 30 - Bonnie e Clyde (Arthur Penn, 1967)

Além do modo irreverente da narrativa e das cenas de violência que sinalizam a atualidade do filme à época, Bonnie e Clyde inova, ao tratar da identidade sexual do protagonista. Fazendo o papel de homem durão junto àqueles que se colocam como obstáculo a seus crimes, Clyde mantém uma relação romântica com sua parceira, mas, durante boa parte do filme (a exceção é a sequência que antecede à emboscada mortal), demonstra ser incapaz de consumar a relação sexual, revelando a sua impotência física ou psicológica. No roteiro original, Clyde (Warren Beatty) deveria participar de um ménage à trois com Bonnie (Faye Dunaway) e seu comparsa C.W . Moss (Michael J. Pollard), porém tal situação foi alterada a pedido dos produtores e do ator principal (BISKIND, 2009 p. 28-32).

Evidentemente a incorporação da temática juventude e marginalidade no cinema não é exclusividade do cinema norte-americano do período. Cabe lembrar, por exemplo, que tal abordagem é pauta também da filmografia de um grupo de diretores da Europa que inovou a estética cinematográfica mundial, influenciando diretamente o novo cinema norte-americano dos anos 1960: a nouve-vague francesa (Truffaut foi o primeiro diretor a ser cogitado para dirigir Bonnie e Clyde ).

Em O acossado ( À bout de souffle ; 1959), de Jean-Luc Godard, Os incompreendidos ( Les quatre cents coups ; 1959) e Jules e Jim : uma mulher para dois ( Jules et Jim ; 1962), ambos de François Truffaut, os protagonistas são figuras juvenis captadas numa linguagem intimista que registra ora o seu movimento descompromissado pelas ruas da capital francesa ora o discurso inquieto do mundo interior dessas personagens. As ruas ganham um 157 significado especial de mudança, de liberdade e de novas identidades comunitárias, como deverá representar a estrada para boa parte da nova produção cinematográfica desse período.

Imagem 31 - Sem Destino (Dennis Hopper, 1969)

A epopeia hippie de Sem Destino

Faz quarenta anos que o filme dirigido pelo norte-americano Dennis Hopper, Sem Destino ( Easy rider ; 1969), veio ao mundo e trouxe novas perspectivas culturais ao cinema contemporâneo; pelo registro social da contracultura em toda a sua narrativa, representa uma das produções audiovisuais mais emblemáticas do movimento hippie, caracterizado pelo comportamento juvenil de rebeldia, ideário libertário e contestação política que irrompe também por outros caminhos da vida social dos anos 1960.

Em Sem Destino , o ambiente externo de relevo não se constitui do meio urbano moderno, cosmopolita, mas, sim, do das estradas e da paisagem árida do oeste norte-americano, acolhendo suas pequenas comunidades – uma região que fora explorada, à profusão, pelo cinema de Hollywood com o gênero western /faroeste. E, ali, no filme feito sob influência da nova cultura jovem dos EUA, a viver intensamente os anos rebeldes , a memória da nação é reativada numa aproximação conflitante entre a tradição e a ruptura do presente, constituindo-se, assim, em uma epopeia moderna, cuja viagem de volta não é o lar: o retorno está em aberto, no fluxo do tempo, apesar do desejo e busca da origem.

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Dois dos protagonistas do filme (são três ao todo), Billy (o também diretor Dennis Hopper) e Wyatt (Peter Fonda), aparecem, no começo do filme, negociando cocaína na cidade de Los Angeles, obtida, pouco antes, no norte do México. O fruto do bom negócio é guardado no tanque da moto de Wyatt: notas são enroladas e protegidas do combustível numa mangueira. Rumam para o leste para participar da festa do carnaval – mardi gras ( terça-feira gorda ) – de New Orleans. Eles têm cabelos compridos, usam vários tipos de drogas – cocaína, maconha e LSD – e possuem uma forma libertária de viver, simbolizada pelo cotidiano nômade transcorrido na estrada.

O roteiro foi escrito pelos protagonistas Fonda e Hopper e por Terry Southern – o mais experiente do grupo, especificamente no que diz respeito a esse ofício 17 –, mas a ideia original foi mesmo do primeiro. Em 1967, Peter Fonda, acomodado num hotel de Toronto para divulgação do road movie Os anjos selvagens (The wild angel; 1966) 18 , dirigido pelo lendário diretor de filmes B Roger Carman, e do qual ele participa como ator principal, observa o material de divulgação do filme e tem um insight, em que “visualiza dois hippies viajando através dos Estados Unidos em motocicletas e vivenciando plenamente a liberdade da estrada” [...] (HILL, 2000, p. 15).

Antes de avançar na análise do filme, cabe uma consideração de caráter metodológico. Conforme discutido no início deste capítulo, Easy rider representa o modelo contemporâneo de reconhecimento da narrativa de estrada. Desse modo, resolveu-se ampliar um pouco mais a exposição do seu enredo e suas características narrativas, em relação aos outros longas- metragens abordados nesta breve história social do gênero nos EUA. Após isso, serão pontuados os elementos narrativos de reconhecimento desse gênero cinematográfico, cuja análise será reposta na próxima parte da tese, que diz respeito à filmografia brasileira no período das décadas de 1950-1980.

17 Terry Southern trabalhou como roteirista de longas-metragens como Dr. Fantástico ( Dr. strangelove or: how I learned to stop worrying and love the bomb ; 1964), de Stanley Kubrick, Cassino Royale (1967), Barbarella (1968), entre outros (HILL, 2000). 18 Os anjos selvagens - retrata a tribo urbana de motociclistas Hell's Angel , que usa, como vestimenta característica, jaquetas pretas, e que foi associada, notadamente naquele período, à violência e à contravenção. Esse mesmo grupo volta a ser representado cinematograficamente, um ano depois, no filme de estrada Demônios sobre rodas (Hell´s Angels on wheels ; 1967), cujo protagonista, dessa vez, é Jack Nicholson. 159

Para transmitir o experimentalismo existencial dos personagens de Sem destino , aguçado pelas drogas que utilizam ao longo da história, e que ocorre tanto na ficção como na vida real (HILL, 2000; BISKIND, 2009), foi produzida uma linguagem audiovisual ousada à época, com destaque para a fotografia e edição, que culmina na psicodélica sequência em New Orleans, em que Billy e Wyatt viajam sob efeito de LSD. A trilha musical, envolvendo os gêneros tradicionais blues e country e o novo rock-pop , é outro elemento cinematográfico fundamental para narrar os anseios e valores sociais dessa nova geração de tendência contracultural surgida nos anos 1960.

Na saída de Los Angeles, em meio ao cenário árido da Califórnia, Wyatt atira fora seu relógio e, junto de Billy, lança-se na estrada, tendo como trilha sonora de fundo Born to be wild (Nascido para ser selvagem ), interpretada pela banda de rock Steppenwolf e apoiada em seu conhecido riff de guitarra. Na primeira parada da jornada, em um motel, ambos são mal recebidos pelo dono do estabelecimento e são obrigados a dormir à beira da estrada. No dia seguinte, procuram e encontram apoio de dois fazendeiros para conserto da moto de Billy, realizado em um celeiro.

As imagens que alternam cenas do conserto da ferradura de um cavalo, que era executado pelos fazendeiros no momento da chegada de Billy e Wyatt, e da roda, por parte deles, constroem um paralelismo entre as figuras do animal e da moto, criando, assim, uma metáfora da continuidade temporal que gravita entre o chamado velho oeste selvagem/distante (wild west / far west ) e o tempo presente em ebulição social (os anos 1960).

Desta vez, ao contrário da primeira tentativa de pousada, a recepção dos moradores do local é positiva. Esse encontro amigável estende-se para o convite do almoço: o fazendeiro de tez branca, europeia, que compõe a maioria étnica norte-americana naquele momento, é casado com uma mexicana de traços indígenas. Possuem muitos filhos que, fisicamente, aparentam uma mestiçagem bastante nuançada. A vida simples e a integração harmoniosa da família são celebradas por Wyatt em diálogo. Como se vê em vários episódios 160 de Sem destino , tanto a cultura latino-americana como a afro-americana são tratadas, no filme, ao mesmo tempo, como o território externo a ser penetrado com reverência e como um olhar curioso de quem se atira numa trilha exótica: sinal dos tempos, afinal o país havia, há pouco, mudado suas leis de segregação racial e dado direito ao voto para negros, acionado por meio do conhecido movimento dos direitos civis atuante nos anos 1950 e 1960, com destaque para a luta pacifista de Martin Luther King (1929-1968).

Na volta à estrada, os protagonistas dão carona a Jack (Robert Walker), um viajante de vestes coloridas, que os levará a uma típica comunidade hippie . Acampados em várias tendas, das quais a maior abriga homens, mulheres e crianças convivendo com animais. Reproduzem-se cenas ilustrativas do ideário e das práticas sociais do movimento: alimentação naturalista, culto religioso sincrético (ocidente/oriente), uso de drogas, experiências sexuais distantes das convenções, vida simples em busca do prazer e da felicidade coletiva.

Novamente o lacônico Wyatt mostra-se o mais sensível da dupla, ao observar os diferentes modos de convivência social que encontram nas novas e velhas comunidades situadas ao longo da estrada. Antes de saírem da comunidade hippie, ele ganha do anfitrião, para o qual havia dado carona, um papelote de LSD e este diz de modo visionário: “Quando estiverem no lugar certo, com pessoas certas... repartam isto. Este poderia ser o lugar certo... mas seu tempo está acabando ”. Billy interrompe bruscamente a conversa e chama-o para continuar a viagem.

A próxima parada visualizada no longa-metragem ocorre numa pequena cidade do Texas. Eles já ultrapassaram os estados de Arizona e Novo México e estão, agora, próximos da divisa de Louisiana, estado que abriga New Orleans. Sua entrada na cidade texana coincide com uma parada escolar. São presos por instigar a desordem. Na cela, conhecem o advogado Hanson (Jack Nicholson), que dormira ali por causa do seu estado de bebedeira.

Apesar do seu comportamento que se desenhará excêntrico, a princípio, Hanson aparenta ser uma pessoa aderente às convenções sociais: tem 161 cabelos curtos e veste-se de terno e gravata, como manda a etiqueta da profissão e do lugar. Saberemos que pertence a uma família tradicional e abastada da região e, por outro lado, é de mentalidade progressista: trabalhara na União Americana de Liberdades Civis. Recebe logo, com simpatia, os dois cabeludos e tira-os do xadrez e da provável tesoura a ser aplicada pelos policiais em seus longos cabelos.

Na saída, Billy chama-o para ir junto com eles passar o carnaval. Aceito logo o convite, Hanson tira do paletó uma garrafa de whisky e brinda ao escritor e pintor modernista D. H. Lawrence, imortalizado pela obra O amante de lady Chatterley. No primeiro pernoite, o advogado experimenta, pela primeira vez, maconha, junto à fogueira acesa numa clareira.

No dia seguinte, a viagem transcorre diante de uma paisagem física e humana de contrastes. O terno arranjo musical de Don't bogart me , interpretado pelo grupo de rock Fraternity of man, acompanhando a descontração gaiata dos três, ao longo da jornada, é interrompida repentinamente pela pungente guitarra e voz gutural de Jimi Hendrix, com a canção If six was nine (“[ ... ] Tudo bem, porque eu tenho o meu próprio mundo para observar [...] E eu não vou copiar você”) 19 .

E com essa música adentramos uma cidade texana de porte médio a conviver com suas marcantes diferenças sociais. A longa sequência, sem diálogos e sob a música ainda tocada ao fundo pelo grupo The Jimi Hendrix, Experience, cria um mosaico de imagens de difícil encaixe: cenas de um cemitério com túmulos suntuosos, pouco depois as elegantes casas-grandes, brancas, situadas em extensas alamedas, o centro urbano, o pequeno comércio e o primeiro plano com enquadramento da bandeira nacional; o outro lado da cidade, o cemitério de condição modesta a preencher vazios, as casas de madeira com crianças negras brincando na varanda, as ruas de terra e negros adultos olhando quem

19 Utilizou-se a versão em português da canção cantata por Cássia Eller. Ver If six was nine (Jimi Hendrix). Letras.music.br . Disponível em: . Acesso em: 10 nov. 2010.

162 passa. São imagens registradas de modo documental que tornam tênue a linha entre a realidade e a ficção desenhada em Sem destino .

Na sequência posterior, vamos acompanhar a irada recepção destes viajantes por parte de moradores numa lanchonete da periferia da cidade. Após várias expressões verbalizadas de repúdio ao modo de vestir dos três e aos cabelos compridos de Wyatt e Billy, eles se retiram do estabelecimento rapidamente, pois a explosão da violência é iminente. À noite, abrigados de novo à natureza, no momento em que todos já estão adormecidos, são atacados de forma brutal. O advogado não resiste e morre. Os companheiros de viagem enterram- no ali mesmo.

Evidente que a morte de Hanson abala sobremaneira os dois. A primeira forma de aplacar a dor da perda é evadi-la pelo prazer: jantam num restaurante requintado de New Orleans e vão ao bordel chamado Madame Tinkertoy. A filmagem desta parte quase final do longa-metragem amplia, aos poucos, a fragmentação da montagem, adensando os elementos simbólicos tratados e prenunciando, assim, a futura viagem lisérgica. Billy e Wyatt, mais as prostitutas Mary (Toni Basil) e Karen (Karen Black), saem para aproveitar o carnaval de rua.

A multidão acompanha os carros alegóricos que exibem grandes bonecos fantasiando expressões humanas. Pouco depois, entram no cemitério para consumir o LSD guardado desde a parada na comunidade hippie. Ali se inicia uma longa encenação psicodélica, que tenta reproduzir os delírios da droga. O fim de Sem destino ocorre na estrada. Os dois são abordados de forma jocosa por uma dupla de caminhoneiros em pleno movimento. Mostrando indiferença à agressão verbal, Billy recebe um tiro vindo da boleia e cai morto. Wyatt vai atrás do caminhão e, quando o alcança, também é baleado. O desfecho mostra sua moto incendiada à beira do caminho, num plano aéreo que metaforiza o sentido da morte daqueles motociclistas hippies.

Essa leitura mais alongada de Sem destino tem um objetivo claro: entender por que este longa-metragem é um modelo para caracterizar e situar, 163 historicamente, o desenvolvimento do gênero road movie. O filme deverá imprimir certas especificidades narrativas e temáticas que podem ser apreendidas na maioria das produções norte-americanas do gênero pós-1960, bem como de outras nacionalidades – a análise pode ser estendida à filmografia brasileira dos anos 1990-2000, corpus de pesquisa primário desta tese, assim sintetizadas:

• A viagem ficcional – eixo central da narrativa – desempenha uma função formadora do deslocamento para os protagonistas; ao longo da trama, deverão modificar radicalmente o rumo de suas vidas; se esta não é possível, a morte será o desfecho necessário. Esse clímax do herói trágico também é observado em Bonnie e Clyde (1967), Louca escapada (Sugarland Express, Steven Spielberg, 1974), Thelma e Louise (Thelma and Louise , Ridley Scott, 1991) ou no filme brasileiro Terra estrangeira (Walter Salles, 1995). • Trata-se de filmes nos quais os personagens principais, normalmente, pertencem à faixa etária do jovem ou do adulto jovem. Ressalta-se, neste sentido, que o gênero road movie mantém um paralelo com o chamado romance de formação , apreendido no texto literário de Retrato do artista quando jovem (James Joyce), A montanha mágica (Thomas Mann) ou o marco da geração beat , de estreita ligação narrativa com o filme Easy rider , o livro On the road (Jack Kerouac). Observa-se que, nas últimas duas a três décadas, há uma tendência de ampliação do espectro etário dos heróis da estrada, sinalizando as mudanças sociais presentes na hipermodernidade. • O tema da juventude deve ser compreendido dentro do contexto histórico da revolução social e cultural eclodida a partir dos anos 1960 (ver capítulo 2 do presente trabalho), no qual novas identidades e subjetividades , resultantes da transformação das estruturas de sentimento, são formadas e expressas em movimentos culturais – feminismo, transgenerismo (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais), ecológico e dos jovens urbanos vinculados à contracultura. • Do ponto de vista da estrutura ficcional, nota-se a presença de poucos personagens e tramas paralelas. Há uma primazia do foco narrativo 164

do(s) protagonista(s), em geral formando uma dupla de heróis/heroínas – amigo ou casal/namorado –, sendo que os outros agentes da ficção estão sempre diretamente ligados a estes. Esta condição narrativa minimalista é coerente com a referida perspectiva da função formadora da história, o foco narrativo individual do(s) herói(s), sua epopéia. • O gênero filme de estrada compreende uma produção ficcional, cujo enredo de viagem transcorre na ligação geográfica entre núcleos urbanos, atravessando, assim, a paisagem natural/rural normalmente por meio de autoveículo – automóvel de passeio, motocicletas, caminhão, etc. • Limita-se, assim, sua abrangência, tendo em vista a busca de uma classificação da narrativa cinematográfica que possa distingui-la de outros gêneros de forte mediação com este, conforme examinado anteriormente, como o western , os filmes de viagem/aventura ou o filme de cangaceiro em relação à produção brasileira (esta associação será tratada no capítulo adiante). • Apesar da função formadora notadamente individual do road movie , assim como ocorre com o romance de formação – seu prisma individual –, a viagem pela estrada, muitas vezes, possui uma perspectiva de crítica social a respeito do lugar onde transcorre tal deslocamento (essa perspectiva é majoritária na filmografia brasileira). • Nesse sentido, verifica-se, em vários filmes de estrada, uma incorporação da linguagem do documentário, evidenciando o prisma de realismo crítico que os realizadores desejam captar (em Easy rider – ver a sequência comentada sob a canção composta por Jimi Hendrix, If six was nine , entre outras cenas). • A violência urbana, um dos temas hegemônicos do cinema norte- americano pós-1960, é retratada em muitos dos filmes de estrada norte- americano, observada tanto pelo aspecto de sua mediação com o filme policial, Os implacáveis - fuga perigosa (The Getaway, Sam Peckinpah, EUA, 1972), Louca escapada (Steven Spielberg), etc., ou do drama social e de juventude marginal/delinquente em Drugstore cowboy (Drugstore Cowboy, Gus Van Sant, EUA, 1989); A violência urbana, um 165

dos temas hegemônicos do cinema norte-americano pós-1960, é retratada em muitos dos filmes de estrada norte-americano, observada pelo aspecto de sua mediação tanto com o filme policial, Os implacáveis - fuga perigosa (The Getaway, Sam Peckinpah, EUA, 1972), Louca escapada (Steven Spielberg), etc., como com o drama social e o de juventude marginal/delinquente em Drugstore cowboy (Drugstore Cowboy, Gus Van Sant, EUA, 1989). • Em certos filmes da produção road movie , a natureza física retratada ganha dois significados importantes: o político , pela óptica de caráter ecológico – crítica ao universo social urbano industrial ( Easy rider , 1969) –, e o transcendente ou mítico – a natureza como elo primordial da existência humana, notada em Na natureza selvagem (Into the Wild, Sean Penn, 2007), ou ainda nos filmes brasileiros Árido movie (Lírio Ferreira, 2006) e Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004). • O baixo orçamento da maioria dos road movies possibilita que muitos destes sejam realizados dentro de uma proposta mais autoral de cinema (o assunto será tratado logo no início do próximo tópico), com o alinhamento criativo nas mãos do diretor, em detrimento de demandas comerciais de produção.

O road movie contemporâneo norte-americano – anos 1970-2000

A primeira metade dos anos 1970 representa, para o cinema norte-americano, um período ainda financeiramente delicado para os grandes estúdios de Hollywood; a reviravolta virá a partir de meados da década, com o início da fase do cinema de aventura espetacular , com seus filmes blockbusters voltados para o público infanto-juvenil e família, cujas películas de Steven Spielberg são sua expressão mais eloquente – Tubarão (1975), E.T. - O extraterrestre (1982) e a série iniciada com Os caçadores da arca perdida (1981).

Por outro lado, o novo cinema norte-americano é concretizado com filmes de orçamento mais modesto ou de temáticas sociais mais densas. É a partir dele que se firma a chamada produção independente (ou indie ). Tal caracterização diz respeito a duas concepções de cinema diferentes, que podem estar 166 articuladas idealmente juntas: “uma baseada na maneira como os filmes são financiados, outra com foco sobre os aspectos artísticos como inovação ou autoria” (SUPPIA, PIEDADE E FERRARAZ, 2008, p. 236).

Além da produção dos denominados pela crítica como filmes B e exploitation movies , exemplificados, respectivamente, na obra de Roger Corman e Ed Wood, ou do cinema experimental, ligado ao circuito de arte - Andy Warhol e companhia -, o cinema independente e autoral dos anos 1960/70 tem, na figura de Cassavetes, sua voz mais reconhecida em termos de qualidade artística. Nas décadas recentes, essa filmografia indie tem sido associada a diretores como Abel Ferrara, os irmãos Coen, Jim Jarmusch, Spike Lee, Gus Van Sant, Steven Soderbergh, Quentin Tarantino, Robert Rodrigues, Hal Hartley, Paul Thomas Anderson e Wes Anderson.

Paralelamente, surgem novos diretores vinculados ao cinema de Hollywood, que apresentam grande inventividade narrativa – Martin Scorsese, Francis Coppola e Hal Ashby, David Lynch, entre outros. É, justamente, esse conjunto de cineastas de verve mais autoral do cinema norte-americano, independente ou atrelado direta ou indiretamente aos grandes estúdios, que será responsável por boa parte dos filmes de estrada elaborados no período pós-1960.

Na virada dos anos 1970, Francis Coppola faz o road movie Caminhos mal traçados (The Rain People,1969), cuja safra pode ser também observada nos longas-metragens Os implacáveis - fuga perigosa (The Getaway, Sam Peckinpah, EUA, 1972), A última missão ( The Last Detail, Hal Ashby, 1973), Alice não mora mais aqui (Alice Doesn't Live Here Anymore, Martin Scorsese, 1974) e Louca escapada (Sugarland Express, Steven Spielberg, EUA, 1974).

Os filmes citados de Peckinpah e Spielberg possuem certas semelhanças narrativas, apesar das marcantes diferenças de autoria (o primeiro, o esteta da violência , já registrava uma obra consagrada, quando o futuro criador de Tubarão iniciou sua carreira). Os filmes de ambos foram construídos sob a ótica do gênero policial e retratam histórias de criminosos com passagem em prisão, no estado do Texas, cujas esposas os acompanham, ao longo da 167 história, na condição também de protagonistas. A estrada simboliza, em princípio, o meio de fuga por razões ligadas à vida marginal e, ao mesmo tempo, o encontro com os conflitos conjugais e com a reflexão da individualidade. O privado projeta-se como metáfora social maior, refletindo a crise moral e ética da sociedade norte-americana à época.

Além disso, nestes filmes – Os implacáveis (1972) e Louca escapada (1974) –, os casais protagonistas, Doc McCoy e Carol McCoy e Lou Jean Poplin e Captain Harlin Tanner, alimentam outro tema contemporâneo já sustentado de modo relevante em Bonnie e Clyde (1967): o papel, o poder e o comportamento masculino em pleno trânsito de transformações frente às mudanças sociais engendradas no mundo moderno pós-revolução cultural dos anos 1960.

Imagem 32 - Os implacáveis (Sam Peckinpah, 1972)

Independente da abordagem mais específica desses filmes – o conflito conjugal e as novas identidades de gênero masculino/feminino –, cabe apontar que as histórias de vida envolvendo foras da lei continuam sendo uma das temáticas mais comuns dos road movies realizados nos EUA nas últimas décadas, dando continuidade à hibridização narrativa com o gênero policial, alinhada desde a fase noir dos anos 1940-50.

Tal geografia ficcional pode ser observada também em Drugstore cowboy (Drugstore Cowboy, Gus Van Sant, 1989), E aí, meu irmão, cadê você? (O Brother Where art Thou?, Joel Coen, 2000) ou em Estrada para perdição (Road to Perdition, Sam Mendes, EUA, 2002). No Cinema Pós-Embrafilme, essa 168 conexão é visualizada na produção inicial de dois diretores importantes do período: A grande arte (1991), de Walter Salles, e Os matadores (1997), de Beto Brant.

Imagem 33 - Alice não mora mais aqui (Martin Scorsese, 1974)

O novo olhar feminino desse tempo domina a caracterização da protagonista de Alice não mora mais aqui, de Martin Scorsese. Moradora do estado do Novo México, oeste dos EUA, aos trinta e cinco anos e com um filho adolescente, Tommy (Alfred Lutter), Alice Hyatt (Ellen Burstyn) precisa dar um novo rumo à sua vida depois que o marido, caminhoneiro e de comportamento brutalizado, morre em um acidente de transito.

Desgovernada, quanto ao que fazer do presente e do futuro, com pouco dinheiro, ela almeja voltar à cidade natal de Monterey, Califórnia, para reavivar a carreira de cantora, que iniciara de forma amadora quando mais jovem, antes do casamento. A primeira parada dessa viagem, transcorrida num velho automóvel de passeio, ocorre em Phoenix, Arizona, onde consegue emprego num piano bar. Nesse lugar, ela conhece e se envolve afetivamente com um rapaz mais jovem, Ben Everhardt (Harvey Keitel), casado e de temperamento violento.

Paralelamente ao drama de Alice, vamos conhecendo seu inquieto e inteligente filho, que tem muita dificuldade em adaptar-se à nova e dura realidade. Deixando a cidade de Phoenix de chofre, após acesso de ira de Ben, Alice retoma a jornada para Monterey e seu próximo paradeiro será a cidade de Tucson, onde aceita trabalho de garçonete com o objetivo de acumular capital e financiar sua grande viagem. 169

No restaurante, que vive sempre cheio e garante o trabalho para mais duas garçonetes, ela convive com a colega Flo, a excelente atriz Diane Ladd, que a trata inicialmente de forma agressiva. Mas a convivência diária das agruras e a troca de confidências a respeito da nova aventura amorosa de Alice aproximam-nas. Ela conhece David (Kris Kristofferson), um fazendeiro divorciado que costuma frequentar o restaurante. Hesitando em se envolver com outro homem, ela é conquistada aos poucos por David que, estrategicamente, ganha a sua confiança ao se aproximar do filho Tommy. Embora o novo namorado revele, ao poucos, ter uma difícil personalidade, os dois se apaixonam e resolvem aventurar-se num novo casamento. E Alice troca a viagem e o sonho de cantora pela vida a dois novamente.

Imagem 34 - Thelma e Louise (Ridley Scott, 1991)

Em Thelma e Louise (Thelma and Louise, Ridley Scott, 1991), a temática feminista ganha contornos mais contundentes. O filme retrata a vida de duas mulheres adultas, a dona-de-casa Thelma (Geena Davis) e a garçonete Louise (Susan Sarandon), que, inseridas num ambiente masculino de relacionamentos afetivos machistas (a caracterização lembra o drama de Alice), resolvem pegar a estrada num fim de semana. O que era para ser uma rápida escapada do imbróglio do cotidiano torna-se uma grande aventura de muitos incidentes inesperados, entre eles, uma derradeira perseguição policial, que se encerra na sequência em que as vemos atirando-se de carro em um precipício. Este final lembra o desfecho fatídico de Easy rider , simbolizando, como no outro, a visão cética quanto à real possibilidade de mudança social dos EUA. Mas, desta vez, a estrada (a nação) é habitada por mulheres em busca de voz própria.

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Há mais três diretores que merecem destaque nesta fase recente do cinema norte-americano, décadas de 1980-2000, ampliando o significado social do road movie , que traduz uma relação importante no desenvolvimento do estilo narrativo destes em suas obras, cuja estrada retratada está envolta num mundo marginal composto por drogados, homossexuais pederastas, músicos fracassados, boêmios e personagens beirando o nonsense , quais sejam: Jim Jarmusch, Gus Van Sant e David Lynch.

Há mais três diretores que merecem destaque nesta fase recente do cinema norte-americano, décadas de 1980-2000, ampliando o significado social do gênero: Jim Jarmusch, Gus Van Sant e David Lynch. A estrada retratada está envolta num mundo marginal composto por drogados, homossexuais pederastas, músicos fracassados, boêmios e personagens beirando o nonsense ,

Jarmusch, associado, no início da carreira, ao cinema independente de Nova York, realizou, nos anos 1980, dois longas-metragens que são uma referência para esta vertente: Estranhos no paraíso (Stranger Than Paradise , 1984) e Daunbailó (Down by Law, 1986). Muito do mundo social alternativo do período está inserido na caracterização das personagens outsiders , que andarilham nas ruas das cidades ou na estrada, contando com a colaboração multimídia do ator e músico de jazz John Lurie, que protagonizou os dois filmes e fez a trilha sonora de Estranhos no paraíso , e também, na lírica, do músico Tom Waits, que faz trio com Roberto Benigni em Daunbailó e assina as canções deste. Em 2005, Jarmusch volta ao gênero com o retrato de um solteirão maduro em busca das Flores Partidas (Broken Flowers, 2005) de sua vida.

Imagem 35 - Estranhos no paraíso (Jim Jarmusch, 1984).

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Estrada, drogas e homossexualismo estão presentes em Drugstore cowboy (Drugstore Cowboy, 1989) e Garotos de programa (My Own Private Idaho, 1991), do talentoso diretor Gus Van Sant. O realizador do filme que encenou brilhantemente a vida do ativista gay Milk (2008) tece um retrato denso da vida das camadas baixas envolvidas com o submundo das drogas, no primeiro filme mencionado, e com a prostituição masculina, como alude o título do outro.

O iconoclasta David Lynch, autor de uma obra feita de personagens bizarros e de encenação narrativa fragmentada, na qual os seres que o habitam parecem retidos num mundo de plena fantasia surreal, percorre sua imaginação peculiar pela estrada de Coração selvagem (Wild at Heart , David Lynch, EUA, 1990). Como Jarmusch, Lynch faz também um balanço da maturidade, num registro narrativo linear e longe do nonsense, no comovente road movie Uma história real (The Straight Story, 1999). Nele, o idoso Alvin Straight, ao saber do enfarte de seu irmão, resolve visitá-lo e parte, fazendo uso de um pequeno veículo (cortador de grama). Toda a fragilidade da condição de vida da personagem ganha grandeza na capacidade de superação de Alvin, ao percorrer o distante trajeto e ao enfrentar os sentimentos conflituosos com o irmão retidos no tempo.

Imagem 36 - Uma história real (David Lynch, 1999).

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3.2 Definindo uma moderna tradição narrativa: o gênero filme de estrada no cinema brasileiro – anos 1950-1980

Imagem 37 - Sai da frente (Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, 1952).

O levantamento exploratório da filmografia brasileira de longa-metragem, efetuado especialmente para a presente tese, focando o período 1950-2000 (ver relação de filmes no anexo), revela a existência de poucas obras classificadas como pertencentes à narrativa de filme de estrada, cujo resultado, evidentemente, está relacionado às condições de desenvolvimento econômico desse período no país.

Afinal, como foi discutido em relação à história social dessa filmografia nos EUA, o gênero é produto de mediações culturais e sociais próprias do ambiente urbano moderno , da existência e evolução do mercado automotivo atrelado a este, da expansão da malha viária ao longo do território – aqui e lá, de dimensões continentais –, apenas abordando algumas informações elementares de contextualização dessa produção simbólica.

Esse cenário tornar-se-á uma realidade de proporções massivas no Brasil somente a partir da segunda metade do século XX. No governo Juscelino Kubitschek (1956-61), inicia-se a montagem do parque automobilístico no Estado de São Paulo: em 1956, na cidade interiorana de Santa Bárbara d'Oeste, a Indústrias Romi S.A começa a fabricação do primeiro automóvel de passeio produzido no Brasil, o Romi-Isetta (com nível alto de nacionalização de suas peças); em 1959, no município de São Bernardo do Campo, instala-se a montadora Volkswagen.

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No começo dos anos 1950, fase de gestação do boom industrial verificado no governo JK e sustentado no regime militar (1964-1985), surgem os primeiros filmes de estrada. O tema é ilustrado, por um lado, na abordagem urbana da comédia Sai da frente (Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, 1952) e no drama social A estrada (Oswaldo Sampaio, 1956), e, por outro, pode ser percebido em longas-metragens do chamado gênero filmes de cangaço ou nordestern (CAETANO, 2005) Lampião, o rei do Cangaço (Fouad Anderaos, 1950), O cangaceiro (Lima Barreto, 1953) e O primo do cangaceiro (Mário Brasini, 1955).

O filme de estrada na terra da Vera Cruz

Sai da frente (Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, 1952) é uma comédia de época realizada pela produtora Companhia Cinematográfica Vera Cruz, instalada na região do futuro principal polo automobilístico do país, cidade de São Bernardo do Campo, e é o primeiro longa-metragem de Amácio Mazzaropi. Oriundo de circo, teatro e rádio, o ator comediante, imortalizado posteriormente na figura do Jeca Tatu, protagoniza um motorista de caminhão mantido em péssimas condições, apelidado de Anastácio. É acompanhado por seu fiel cão Coronel, viajando em cima da caçamba.

Isidoro (Mazzaropi) é contratado por Eufrásio (A. C. Carvalho) para transportar sua mobília para Santos, iniciando uma atrapalhada aventura. Sai de seu ponto, próximo ao Mercado Municipal de São Paulo, localizado na área central, e atravessa a cidade na direção sul. No caminho, ele se envolve em alguns incidentes inevitáveis com outros motoristas, uma vez que o caminhão anda lento e está sem nenhum alinhamento – as rodas estão tão tortas que ele acaba andando em ziguezague.

A mobília é amontoada no caminhão e o grupo parte, finalmente, para Santos: o motorista Isidoro, Eufrásio, o cachorro Coronel e uma noiva. Ela fugira de um carro, depois que o grupo de viajantes se metera em discussão junto a um cortejo de casamento, e escondera-se, sorrateiramente, em um guarda-roupa. 174

Descoberta ainda antes de pegarem a estrada, ela pede a Isidoro para levá-la até o seu verdadeiro amado, em Santos.

A descida feita pela via Anchieta, em desengonçado traçado do caminhão, ao som dos ritmos xote e baião (a trilha sonora é de Radamés Gnatalli), antecipa o clima das novas aventuras na cidade destino da baixada: cenas de demagogo político em campanha, o bode que come o dinheiro recebido pelo trabalho da mudança e o roubo do cão Coronel, que vai parar num circo. O caminhão de Isidoro volta a São Paulo com Anastácio, Coronel e mais dois convidados circenses: o homem-fera enjaulado e a sedutora Dalila (Leila Parisi). Apesar do assédio de Dalila, com a intervenção da voz do anjo de Isodoro, o filme encerra com o retorno dele à sua esposa, na vila Beco do Conforto.

Vidas de estrada

O mundo moderno, filtrado pela óptica das classes mais baixas, também é a condição social dos protagonistas de A estrada (Oswaldo Sampaio, 1956). Porém o tom brejeiro e satírico de Sai da frente é substituído pela abordagem do drama social ressoando a influência do neo-realismo italiano; nele temos a história de um grupo de caminhoneiros que se revolta contra a abertura de uma estrada pavimentada que, a princípio, deveria favorecer grandes empresas.

O filme é estrelado por Miro Cerni (Gringo), um dos atores principais da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, e Vera Sampaio (Dolores), esposa do diretor. Destacam-se, ainda, do elenco, os atores, por ordem alfabética: Agnes Fontoura (Maria), Eugenio Kusnet (Tomás), Paulo Geraldo (Romero), Milton Moraes (Pedro) e o humorista Pagano Sobrinho.

O realizador Oswaldo Sampaio, roteirista contratado pela produtora Vera Cruz, foi assistente de direção do filme Sinhá moça (1953), com Tom Payne, e perseguiu a ideia de filmar a vida dos caminhoneiros por anos, mas não conseguiu concretizar o projeto nessa companhia cinematográfica. Associado com o produtor Moacyr Peixoto, funda a Mayara Filmes, onde produz o drama social A estrada. 175

O filme obteve, no Brasil, à época, reconhecimento crítico – Prêmio Saci de Melhor Filme, Diretor, Fotografia e compositor (Cláudio Santoro) e Prêmio Governador do Estado de São Paulo, em 1956 – e certa repercussão internacional:

O filme conta, pela primeira vez no Cinema Brasileiro, a vida difícil dos motoristas de caminhão, seus amores e problemas [...] foi convidado para o Festival de Moscou, onde fez muito sucesso, ficando mais de três anos em cartaz por lá. Não chegou a concorrer porque chegou atrasado e passaram um documentário no lugar. Outro que gostou muito foi Vitório de Sica, que teria afirmado que era um filme para ser admirado pelo mundo, pela honestidade do trabalho. (SILVA NETO, 2002, p. 319, apud de Rubens Ewaldo Filho).

O caminho errante do cangaço

Como discutido no capítulo relativo à evolução do road movie norte-americano, além dos primeiros longas-metragens de temática de estrada vinculados ao mundo social urbano, como Aconteceu naquela noite (Frank Capra, 1933) ou Dentro da noite (Raoul Walsh, EUA, 1940), há, nessa fase de f ormação do gênero , a participação da dinâmica produção de filmes de westerns , que se ambientam no período histórico de expansão territorial para a região Oeste, ocorrida no século XIX .

No Brasil, surge, na década de 1950, um gênero cinematográfico, abordando o mundo rural, no qual a estrada também é tema: os filmes de cangaço. Entre o western e os filmes de cangaços há semelhanças e grandes diferenças narrativas. Como ocorre nos EUA, com a travessia no Velho Oeste, aqui, no Brasil, tendo como pano de fundo o mundo social do sertão nordestino da segunda metade do século XIX e começo do XX, cria-se uma produção cinematográfica desses gêneros que capta uma geografia física e humana que será revisitada pela produção contemporânea do gênero road movie em cada um desses países. Em ambas as produções, sustenta-se um imaginário cinematográfico de caráter alegórico e mítico que atravessa gerações

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Historicamente, o cangaço foi um fenômeno social nordestino ocorrido também no século XIX, mas que se estendeu até as décadas de 1930/1940, atingindo o governo Getúlio Vargas. Sob o contexto da economia agrária da região do sertão nordestino à época, caracterizado pela extrema pobreza e concentração fundiária nas mãos dos chamados coronéis, os cangaceiros formavam grupos de bandidos, normalmente sem morada fixa, que assaltavam fazendas e saqueavam pequenos povoados.

Imagem 38 – Lampião, o rei do cangaço (Benjamin Abrahão, 1936)

Em 1936, o mascate e fotógrafo libanês Benjamin Abrahão produz o clássico documentário brasileiro sobre o bando do célebre cangaceiro Lampião – Virgulino Ferreira da Silva (1998-1938) –, intitulado Lampião, o rei do cangaço (1936). Na década de 1990, sua história é parcialmente resgatada no filme Baile perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), que incorpora, na trama ficcional, trechos do filme de Abrahão (em 2006, Ferreira dirige o filme de estrada Árido movie , onde mergulha também na memória coletiva do sertão nordestino, mas desta vez a partir de um personagem de enredo contemporâneo).

Pouco antes da produção de Lampião, o rei do cangaço , na fase muda do cinema brasileiro, o tema de cangaço é retratado em Filho sem mãe (Tancredo Seabra, 1925), Sangue de irmão (Jota Soares, 1926) Lampião, o banditismo no nordeste (1927), de autor desconhecido, e Lampião, a fera do nordeste (José Nelli, 1930). Os dois primeiros foram realizados em Pernambuco e o último, na – este é considerado o primeiro filme de ficção realizado no estado natal de Glauber Rocha (MIRANDA, 2005).

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Imagem 39 – O cangaceiro (Lima Barreto, 1953)

Mas o filme modelo para o gênero de cangaço é o premiado internacionalmente O cangaceiro (Lima Barreto, 1953), realizado pela produtora paulista Vera Cruz (Prêmio de Melhor filme de aventura e Menção honrosa pela música no Festival de Cannes, 1953). O filme é resultado do esforço geral da companhia cinematográfica de realizar longas-metragens que pudessem agregar qualidade artística e técnica a desempenho de bilheteria.

O cangaceiro obtém grande sucesso no Brasil e no exterior, sendo distribuído pela Columbia Pictures. A história é uma típica narrativa clássica que une aventura e melodrama. Na primeira parte é apresentado ficcionalmente o violento líder de cangaceiros Capitão Galdino (Milton Ribeiro), com a invasão e saque de uma pequena comunidade situada na região do sertão. Lá, eles raptam a bela professora Olívia (Marisa Prado), que será mantida entre os comparsas para o pedido de resgate.

A personagem feminina é o pivô do conflito principal da trama, uma vez que o braço direito do líder cangaceiro Galdino, Teodoro (Alberto Ruschel), apaixona- se e foge com ela. O acampamento dos jagunços é mostrado em várias cenas da vida cotidiana do grupo – entre as novas personagens destaca-se Mané Mole (Adoniran Barbosa) e Maria Bonita (Vanja Orico) –, incluindo momentos de descontração de dança e cantoria. A trilha sonora é composta de canções regionais, entre elas, Minervinha , Lua bonita , Meu pinhão e Sodade, meu bem, sodade , sendo as três últimas compostas por Zé do Norte.

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Teodoro e Olívia fogem e realizam uma longa jornada no sertão. Galdino e seu bando perseguem-nos até alcançá-los, quando já estão muito próximos do destino final. Teodoro permite que ela fuja até a cidade, mas pouco antes, confessa sua paixão a Olívia, que diz compartilhar do mesmo sentimento; por outro lado, ele também diz que a proposta de vida a dois não é viável, pois, para assumi-la, teria que viver longe da vida errante de cangaceiro, que tanto preza. A morte anunciada de Teodoro ocorre após Galdino armar um tiroteio com todo o grupo. A encenação final é semelhante à abertura: a cavalo, o grupo caminha sobre um monte cantando a música conhecida nacionalmente, Mulé rendêra.

A filmografia de estrada dos anos 1960: o cinema de aventura e as novas narrativas do drama social

Com a construção da nova capital Brasília, o crescimento expressivo do parque industrial e da estrutura de base – usinas siderúrgicas e hidrelétricas –, a expansão do sistema rodoviário e de comunicações, enfim, com o sucesso econômico do projeto desenvolvimentista iniciado no governo Juscelino Kubitschek, o Brasil entra, na década da revolução cultural que sacudiu o mundo – os anos 1960, notadamente a partir da sua segunda metade em diante –, ainda subverso em seu mundo social caracterizado pela extrema pobreza e desigual distribuição de renda.

Além desse, outros focos de mudança também podem ser observados: a população urbana, que representava 45% do total, no início dessa década, torna-se majoritária ao seu término: 56% (IBGE). A televisão vai, aos poucos, adentrando o cotidiano das famílias brasileiras e torna-se um concorrente ao hábito de assistir a filmes em salas de cinema (na próxima década – 1970 – cresce de 24% a 56% o número total de domicílios com televisão – BORELLI; PRIOLLI, 2000). São sinais do processo de modernização em curso e da consolidação da indústria cultural – cinema, televisão, mercado fonográfico e mídia impressa –, efetivado de modo massivo durante o regime militar (1964- 1985).

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Nesse cenário de modernização desigual e grande transformação social, cultural e política surge uma nova filmografia de grande poder inventivo: o Cinema Novo. Apesar da proposta dramática central, focada no chamado realismo crítico dos diretores do Cinema Novo, com evidentes diferenças de estilos e utilização de outras linguagens cinematográficas, pode-se perceber a presença da temática de estrada, vinculada ao mundo rural, em longas- metragens como Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) e Os fuzis (Ruy Guerra, 1964).

Por outro lado, o mundo moderno das estradas pavimentadas desse período, situadas nas regiões mais ricas do país, é apropriado nos filmes de aventura policial O vigilante rodoviário (1962), O vigilante contra o crime ( 1964), O vigilante e os cinco valentes (1965) e O vigilante em missão secreta (1967), dirigidos por Ary Fernandes. Trata-se de uma série realizada, originalmente, para televisão, em formato de 35 milímetros, da qual parte foi lançada comercialmente no circuito exibidor como os longas-metragens mencionados.

A viagem como descoberta crítica do mundo

Depois de vários filmes retratando o universo urbano sob a lente da crítica social, na virada dos anos 1960, o Cinema Novo realiza alguns filmes sobre a realidade rural, cuja abordagem é impregnada da visão revolucionária marxista, com foco na consciência das camadas baixas – as classes dominadas pelo sistema capitalista, ponto de vista político de esquerda, compartilhado por boa parte do meio artístico e intelectual do país, no período.

Imagem 40 – Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964)

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A junção da narratividade ficcional do drama social com o registro documental em vários filmes do movimento – que, certamente, é uma das características marcantes do Cinema Novo, na passagem da tradição narrativa entre períodos históricos distintos –, pode ser notada em filmes de estrada contemporâneos, exemplificados em Iracema – uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1976), Central do Brasil (Walter Salles, 1997) ou Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2007).

Mas, por que os protagonistas dos filmes do Cinema Novo, Os fuzis , de Ruy Guerra, que abarca um grupo de militares liderado por Mário (Nelson Xavier) e pelo caminhoneiro Gaúcho (Átila Iório), e Deus e o diabo na terra do sol , de Glauber Rocha, protagonizado pelo casal Manoel (Geraldo Del Rey) e Rosa (Yoná Magalhães), estão andando ou trafegando no leito ou margem das estradas, veredas do sertão?

A princípio, a razão externa é preponderante – situar geograficamente e descrever, de modo minucioso, a realidade social dos personagens, como se fosse um documentário com a proposta de denúncia social (o sertão nordestino, para o Cinema Novo, cristaliza-se como a região símbolo da exploração rural das camadas baixas, do povo). Porém, a ficção amplia seus significados, à medida que a denúncia social do registro descritivo do local narra também os processos internos de (re)construção de identidade e de consciência social adquiridos, na jornada, pelas personagens notadamente de origem humilde. E a consciência vem da experiência individual deles, sem interferência de outras camadas sociais, como propõem estes filmes do Cinema Novo.

O desenlace da alienação que a dura realidade impõe emerge a consciência individual e racional dessa condição e o reencontro com a subjetividade perdida - uma percepção interior limitada ao tempo da fratura do coletivo. Assim, cabe ao herói agir e assumir sua função transformadora: a rebelião de Gaúcho e do povo que saqueia o armazém, em Os fuzis , ou a fuga para a utopia do sertão virando mar, no filme de Glauber, metáfora da latente revolução que permeia o horizonte dos realizadores. 181

Outro aspecto que se extrai do significado social e cultural da estrada, nesse movimento cinematográfico, é a leitura da natureza obtida, nos dois longas- metragens analisados, a partir das imagens da geografia física e humana do sertão: elas representam , para os realizadores , um território imaginário mítico , de coesão de identidade idealizada, que se explica , em boa medida , em função do contexto de pensamento nacional-popular que pauta a visão cultural do Cinema Novo. As condições socioeconômicas de precariedade e de arcaísmos políticos, sociais e culturais são interpretadas a partir da leitura questionadora, enraizada no espírito da modernidade e , ao mesmo tempo , embrenham-se na tessitura de camadas da tradição ali representadas.

O olhar de encantamento com o povo humilde e a natureza agreste do sertão de várias cenas, que se alterna com os momentos de crítica negativa, reflete o que Eliade (1972: p.159) nomeou, ao estudar as funções dos mitos de várias tradições – oriente e ocidente –, de nostalgia da perfeição universal. O movimento narrativo das imagens, palavras e música deseja manifestar , nesse cinema , o mundo autêntico , resplandecendo , em sua projeção subjetiva , o mito de origem . Rompe-se , assim , a noção histórica de fundação do país, uma vez que esta se situa no domínio aristocrático do estrangeiro português, expropriando os habitantes nativos indígenas e migrantes – negros e brancos – do período colonial. Ou seja, os filmes desenham a vontade épica de uma nova fundação da nação brasileira.

Sem querer dar conta de uma das questões de política contemporânea mais complexas, aludidas acima, comenta-se, apenas, que a abordagem temática desse cinema está imbuída de um forte nível de idealização sobre a percepção da realidade social por parte dessas camadas humildes, o que traduz, em boa medida, a inserção de classe e o elevado capital cultural dos realizadores.

Tempos contraditórios

A segunda metade dos anos 1960, no país, é marcada pelo recrudescimento da censura e por outras violências, por parte dos governos militares dos 182 generais Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967) e Artur da Costa e Silva (1967-1969), contemplados nos chamados Atos Institucionais, alterando o texto constitucional e pondo fim ao Estado de direito, ambiente social democrático. O mais contundente deles foi o AI-5, que concentrava grandes poderes na mão do executivo, como a autoridade para o fechamento do Congresso, demissão de funcionários públicos, decretação de estado de sítio, etc., sem qualquer satisfação aos outros poderes – judiciário ou legislativo –, bem como à sociedade civil. Ele ainda proibia as manifestações políticas, limitação do "habeas corpus" para crimes considerados contra a segurança nacional, etc. (FAUTO, 1995).

Os anos de Chumbo estavam instalados de modo indubitável. Evidentemente que, nesse clima de terror e censura, a produção artística sofreu um grande baque, alterando o rumo do Cinema Novo ou de outras produções que sustentavam uma visão crítica da sociedade, como a produção do chamado Cinema Marginal (Rogério Sganzerla, Júlio Bressane João Silvério Trevisan, Geraldo Veloso e Ozualdo Candeias) ou do movimento musical Tropicalista.

O final da década de 1960 também foi pontuado pela revolução cultural que varreu o planeta, com o surgimento dos movimentos contra cultural hippie e estudantil em várias regiões do mundo – o jovem universitário passa a possuir, cada vez mais, um papel importante na formação de opinião, culminando na revolta de maio de 68 , ocorrida em Paris, com a greve de operários e de estudantes secundaristas e de ensino superior.

Além disso, na sociedade brasileira, que se tornava mais urbana, industrial e midiática , cresce, enormemente, o mercado de cinema, televisão e veículos impressos, em função do boom econômico do período militar, que impõe novos padrões societários com a mudança de comportamento não só dos jovens, mas de homens e mulheres adultos que passam a viver papéis sociais mais diversificados daquela identidade monocromática desenhada na tradição patriarcal.

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Esse ambiente cultural em transformação é incorporado à nova fase do cinema brasileiro, denominada, de forma abrangente, fase Embrafilme (1969-1990), que deverá incorporar tanto a maioria dos diretores cinemanovistas que continuaram a exercer a atividade , como a nova geração de cineastas que foram responsáveis por uma elevada quantidade de filmes produzidos – em média, foram lançados 76 longas-metragens ao ano no período (GONÇALVES, 2001).

Dessa filmografia, destacam-se dois filmes de estrada: Iracema – Uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Brasil / Alemanha Oc. / França, 1976) e Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979). Neles, cruzamos o país na fronteira norte , por meio de estradas rodoviárias, como a recém-construída Transamazônica, que começa no município litorâneo de Cabedelo, Paraíba, e vai até Lábrea, Amazonas, ou outras vias de regiões do nordeste e centro- oeste, no caso específico de Bye bye Brasil, Alagoas, Pernambuco e Distrito Federal.

O Brasil retratado é um país em grande transformação econômica e social, que, politicamente, se distancia da revolução marxista desenhada no pensamento de esquerda dos anos 1960 e expressa no Cinema Novo da primeira fase, e trafega sob as lentes do realismo crítico e documental de Bodanzky e Sena – retomando procedimentos narrativos daquele, bem como o hibridismo ficcional de Diegues. Afora o drama social, percebe-se o cômico, o erótico e o gênero road movie. 184

Na trilha do documentário

Imagem 41 – Iracema - Uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1976)

Iracema – Uma Transa Amazônica (1976) levou anos para ser lançado comercialmente no circuito exibidor. Trata-se de uma coprodução com a TV alemã, que só foi liberada pela censura e exibida comercialmente no Brasil em 1981. Participou de diversos festivais de cinema internacionais, sendo premiado em Cannes (1976) e Berlim (1975). Em 1980, recebeu os prêmios de Melhor Filme; Melhor Montagem; Melhor Atriz, para Edna de Cássia (Iracema), e Melhor Atriz Coadjuvante, para Conceição Senna, no Festival de Brasília.

Realizada pelos então documentaristas Jorge Bodanzky (também fotógrafo, assina a direção de fotografia no longa-metragem – um dos pontos fortes de Iracema ) e Orlando Senna (que dirige os atores e é responsável pelo roteiro). O filme conta a história da adolescente Iracema (Edna de Cássia), que muda o rumo de sua vida, depois que participa das festas religiosas do Círio de Nazaré, em Belém, vinda, com sua família, do interior ribeiro do Amazonas.

No tumulto das festas, desgarra-se da família e acaba se envolvendo com a prostituição. Conhece, na boate onde trabalha exercendo essa atividade, o motorista de caminhão de origem gaúcha Tião Brasil Grande (Paulo César Peréio). A personagem deste incorpora a mentalidade da maioria da população que se empolga com a política desenvolvimentista do período militar, sem consciência ou conhecimento da repressão e supressão do Estado de direito que vive o país à época, repetindo os slogans ufanistas da política populista do regime militar, como ninguém segura este país.

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Além disso, esse filme de estrada desenha, no drama de Iracema, a situação social de miserabilidade encontrada nos rincões mais distantes, e, na caracterização de Tião Brasil Grande, codinome de contorno tão irônico que os governos militares quiseram jogá-lo para baixo do tapete, a partir da censura aos meios de comunicação e à opinião pública. O longa-metragem é, no todo, um antidocumentário oficioso ao estilo Amaral Neto, que produziu reportagens de contorno ideológico chapa branca para a televisão Globo, durante os anos 1970. Não fica difícil entender a lógica de sua censura oficial, quando ficou pronto.

Durante a carona, vamos conhecer o universo de identidades destas personagens atravessado pela dura realidade que enfrentam, sobretudo no caso de Iracema. Nas primeiras paradas, o filme informa que Tião vende madeira ilegal. Eles acabam se envolvendo afetivamente, mas por pouco tempo. Logo ele a deixa em um lugarejo distante da capital Belém, em meio à rodovia transamazônica, em seu trecho ainda não asfaltado.

Depois de vários episódios em que, na esteira dos descaminhos de Iracema, o retrato social e ecológico da região se manifesta – o desmatamento sem fiscalização, as más condições de trabalho e saúde dos camponeses, atingindo o limite do trabalho escravo –, o longa-metragem encerra-se com o último encontro entre ela e Tião Brasil Grande.

Nessa sequência, ela está em meio à estrada, pouco mais velha, em termos cronológicos, mas física e psicologicamente embrutecida pela vida errante de idas e vindas, sem rumo certo, que trama para sobreviver nas condições de prostituta. Tratada ironicamente, ela ainda tenta vender-se de qualquer jeito, anestesiando seus sentimentos e amor próprio. Mas todo o constrangimento da situação é interrompido pelo retorno de Tião ao caminhão, que, em disparada, produz uma intensa poeira que rodeia o corpo e alma de Iracema, sem distinção.

O filme retoma o procedimento, comum ao cinema moderno brasileiro da segunda metade dos anos 1950 em diante, de incorporar, na linguagem 186 ficcional do drama social, trechos de enunciação documental, na linha que Fernando Ramos chama de “encenação-locação” – ações explicitadas previamente à tomada e em “circunstância de mundo onde o sujeito que é filmado vive a vida” (RAMOS, 2008, p. 42) .

Da análise, ainda, desse pesquisador brasileiro do cinema, ao discutir a questão da incorporação da linguagem do documentário em longas-metragens de ficção, a qual não considera efetivamente uma mestiçagem de gêneros, resgata-se a afirmação de que Iracema – uma transa amazônica “constrói uma ficção inteiramente absorvida no acontecer indeterminado da vida na tomada” (RAMOS, 2008, p. 45) . Ou seja, a insistência na abordagem da captação documental, nos filmes de estrada, por parte dos realizadores, desde a fase Embrafilme até a mais recente, anos 1990-2000, acompanha também o desejo dos cineastas de criar ficções que possam adentrar no fluxo da subjetividade própria da experiência da viagem.

Desse modo, constata-se que a construção do gênero filme de estrada , no cinema brasileiro, cria, aos poucos, um procedimento-padrão narrativo de explorar histórias que possam ser desenvolvidas na estrada, circunscrita à intenção do realismo crítico , a partir do uso parcial da linguagem do documentário – esse desejo incontido de ampliar a enunciação do real para o território da ficção. Tal procedimento poderá ser observado em Bye bye Brasil (1979), sendo que, no caso deste filme, num menor grau de incorporação documental, mas apresentando a experiência da observação participante na estrada (aquela que não é mostrada explicitamente, mas acontece ao redor da criação), que é fundamental para a elaboração de um roteiro – enredo e diálogos.

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Uma moderna tradição narrativa

Imagem 42 – Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979)

O cineasta Cacá Diegues possui extensa obra, composta por dezoito longas- metragens. Nasceu em Maceió, em 1930, e mudou-se com a família, ainda menino, para o Rio de Janeiro. Sua primeira produção, Cinco vezes favelas (1961), foi lançada na, então, capital federal, quando tinha apenas 21 anos de idade. O filme contou com a colaboração, nos outros episódios, de quatro diretores, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges, e representa um dos marcos inaugurais do Cinema Novo.

Posteriormente, Cacá Diegues desenvolveu uma filmografia preocupada em abordar a questão da identidade cultural , que se alterna entre perspectiva histórica e representação do contemporâneo ( Ganga Zumba , 1964; Quando o carnaval chegar , 1972; Joanna Francesa , 1973). Ressalta-se que essa temática atingiu também o diálogo maior com o grande público nos filmes Xica da Silva (1976), com o registro de quatro milhões de espectadores, e Bye Bye Brasil, dois milhões (GONÇALVES, 2001). O realismo crítico persiste e refrata- se em novas perspectivas políticas, mesclando-se a outras abordagens e mediações narrativas afora o drama social, como o cômico, o erótico e o gênero filme de estrada.

O filme Bye bye Brasil (1979) retrata uma trupe de artistas mambembes que viaja pelas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste do país. Um caminhão pintado de cores vivas carrega a caravana Rolidei e suas principais atrações – Salomé (Betty Faria), a Rainha da Rumba, e Lorde Cigano (José Wilker), o Imperador dos Mágicos e dos Videntes. 188

Numa pequena cidade do Nordeste, à beira do São Francisco, rio que divisa o estado de origem de Cacá Diegues, Alagoas, com Sergipe, eles aceitam um voluntário que passa a fazer parte da trupe, o sanfoneiro Ciço (Fábio Júnior), que traz com ele sua esposa Dasdô (Zaira Zambelli). Aos poucos, eles vão tomando consciência de que é necessário viajar rumo às regiões mais pobres do interior do país, na direção norte, uma vez que há uma forte concorrência da caravana com a televisão, que encontram por toda a parte, prenunciada por suas antenas, que chamam de "escamas-de-peixe".

Depois de várias paragens em lugares de condições bastante modestas, Ciço apaixona-se por Salomé. Enquanto isso, o caminhão da caravana Rolidei atravessa o vale do São Francisco, o litoral nordestino, o árido sertão, a inóspita estrada Transamazônica e os rios Xingu e Amazonas até chegar a Belém, ponto final de agregação do grupo.

Ciço e Dasdô vão tentar a vida em Brasília, onde, depois de algum tempo, o sanfoneiro começa a se tornar famoso. É aí, nessa nova fase da vida do casal, que Salomé e Lorde Cigano reaparecem, convidando-os para uma nova aventura pelo interior do país, rumo à região norte. Mas estes recusam o convite, uma vez que já não precisam mais da caravana Rolidei para sobreviver. Na verdade, a própria atividade mambembe anterior já não é a mesma, constituindo-se, agora, de uma espécie de bordel eletrônico e moderno , mas sem deixar sua condição ambulante .

Percebe-se, nessa breve síntese do enredo, que Bye Bye Brasil constitui-se de um filme de estrada que tenta revelar o país com um olhar de certa perplexidade, sem dispensar o humor e o erotismo desenhados pelos outros gêneros que dominam a narrativa. Um cenário social do final da década de 1980, no qual temos a consolidação da Indústria Cultural no país, representado na película pela referência permanente à televisão e que é investigado por uma trama ficcional que faz alusão também às transformações das culturas locais e à influência da cultura norte-americana. O popular e a cultura de massa são mostrados numa composição que parece estar em desarranjo de sentidos.

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Segundo o diretor, o filme suscita muitas interpretações que envolvem uma temática que pode ser sintetizada na questão da identidade cultural e aborda o processo de modernização na América Latina, cujas transformações se aceleram ao longo da segunda metade do século XX:

[...] O curioso é que, embora tenha sido bem recebido em todo mundo, o filme não é visto da mesma forma nos diferentes países por onde passou. Para a crítica europeia, sobretudo francesa e italiana, por exemplo, tratava-se de um triste filme sobre o fim de uma cultura e suas tradições populares. Mas para os latinos e norte-americanos, Bye bye Brasil era um canto luminoso a um novo país em via de nascer. Essa recepção contraditória contém verdades nas duas vertentes e é mais uma virtude do próprio filme (DIEGUES, 2004, p. 128).

Essa fala do cineasta remete, diretamente, a um conceito muito importante para entendimento da realidade social e cultural dos países da América de colonização ibérica: hibridização, de Nestor García Canclini. De acordo com a reflexão já efetuada no capítulo 2.1 Identidades culturais em trânsito: em busca de uma definição contemporânea do conceito, cabe retomar que o conceito pretende caracterizar as sociedades latino-americanas como mestiças, não somente em função da evidente abordagem étnica, que diz respeito às matrizes africanas, ameríndias e europeias, mas também devido às condições sociais e econômicas específicas de formação dessas nações, que engendraram uma modernização diversa e desigual.

O fato é que latino-americanos vivenciam esse estado de transformação permanente da tradição cultural, desde o período de pré-formação nacional (e por que não dizer os norte-americanos fundados num sistema colonial, não obstante as notórias diferenças econômicas decorrentes desse regime entre regiões), cujo movimento de transformação social é revigorado tanto em novos fluxos migratórios, recebidos na virada do século XIX e XX, como no processo de modernização.

É, portanto, razoável que o filme Bye bye Brasil possa ter sido visto de modo positivo, luminoso , como se refere o diretor, ao traduzir a recepção de parte do público e crítica, em países do continente americano caracterizados pela condição histórica de mobilidade/plasticidade cultural , não obstante – é sempre 190 importante matizar – as grandes diferenças de estrutura social entre os países inseridos nesta parte do planeta, bem como a intensidade dos processos de miscigenação e convívio entre etnias/povos.

O filme revela outra questão de análise muito interessante, que diz respeito à história social do gênero road movie no Brasil e que, de certo modo, ajuda a explicar também certa recepção positiva. Dos filmes identificados neste trabalho com temática de estrada, é o primeiro a retratar protagonistas provenientes das camadas baixas em movimento de ascensão econômica: o quarteto principal torna-se pequeno burguês ao final da história, aludindo simbolicamente ao período de prosperidade econômica dos anos 1970.

Há, no traçado dinâmico da perspectiva sociocultural dos protagonistas, uma clave para compreender a transformação do gênero de estrada no Brasil: o filme desenrola-se na linha do drama privado das personagens, afirmando o foco narrativo nessa rota da individualidade, não obstante as ações em meio à geografia encenada de franca miserabilidade, explicitando, assim também, a leitura de crítica à realidade social do ambiente vivenciado. Trata-se, a meu ver, do primeiro road movie brasileiro dentro de uma perspectiva de caracterização contemporânea do gênero, como discutido no longa-metragem norte-americano Sem destino.

Diferenças e semelhanças narrativas do gênero

Adiante, conforme efetivado com a análise do road movie dirigido por Dennis Hopper, pretende-se comentar certas especificidades narrativas e temáticas que podem ser percebidas no filme Bye bye Brasil e que se reiteram na filmografia brasileira do gênero dos anos 1990-2000:

• Em comum, entre os filmes analisados das produções brasileira e norte- americana do gênero pós-1960, temos o apontamento de que a viagem ficcional deve desempenhar a chamada função formadora do deslocamento . Este, talvez, seja o ponto convergente que melhor revela o gênero em seu formato contemporâneo (na produção nacional, tal 191

característica torna-se fator reiterativo a partir da fase pós-Embrafilme, como poderá ser observado, em detalhes, na análise desta fase efetuada adiante). • Do ponto de vista da estrutura ficcional, como ocorre com a filmografia norte-americana, nota-se a arquitetura de poucas personagens e tramas paralelas. Há, portanto, uma primazia do foco narrativo dirigido ao(s) protagonista(s), com o desenvolvimento da trama de aspectos psicológicos/subjetivos destes. • Apesar de a função formadora voltar-se principalmente para a enunciação do mundo interior dos protagonistas, a viagem pela estrada possui sempre – no caso desta produção brasileira contemporânea – a perspectiva de explicitar a crítica social a respeito do lugar onde transcorre tal deslocamento. • Nesse sentido, o drama social torna-se, nesta filmografia, um registro predominante de mediação; o gênero cômico , sempre paralelamente àquela, representa a outra enunciação narrativa mais presente nestes filmes de estrada. Observa-se tal comicidade em Bye bye Brasil, 1979, Deus é brasileiro , 2003, Cinema, aspirinas e urubus , 2005 e Árido movie , 2006. • O registro documental é procedimento comum que se agrega à construção do drama social (ver tal incorporação da tomada documental em Central do Brasil , 1998, e Cinema, aspirinas e urubus , 2005 - entre outras). • A figura da estrada sustenta uma alegoria do movimento de transformação da identidade cultural em tempos de globalização – virada dos séculos XX/XXI – em diversos planos dessa representação coletiva: o o regional ( Árido movie , 2006; Cinema, aspirinas e urubus , 2005); o a nação (Bye bye Brasil , 1979; Terra estrangeira , 1995; Deus é brasileir o, 2003; O caminho das nuvens , 2003); o o continente latino-americano ( Diários de motocicleta ). 192

• A representação social dos protagonistas refere-se, normalmente, às camadas baixas (exceto em A grande arte , Árido movie e Diários de motocicleta , inseridos na condição de estratos médios, relativos, respectivamente, às profissões de fotógrafo, médico e apresentador de programa de televisão, bem como caracterização social das famílias de origem). Além disso, constata-se o predomínio da utilização de personagens jovens ou adultos jovens como nos road movie norte- americanos. • A contingência da produção de baixo orçamento e a proposta mais autoral de cinema são também características que definem as condições de produção e o alinhamento cultural e artístico desta produção de filmes de estrada, bem como de seus realizadores, tomando a obra deles como um todo.

A fase final da Embrafilme

Imagem 43 – Jorge, um Brasileiro (Paulo Thiago, 1988)

Nos anos 1980 , além da forte crise que marca a economia do período , tratada por vários estudiosos desta área como a década perdida , o cinema brasileiro também enfrenta uma queda de produção e demanda, sobretudo em sua segunda metade (RAMOS, 1995). Além disso , é o momento de franco crescimento do mercado de vídeo, que se alinha com a expansão do mercado de televisão (passamos de uma penetração de 56% do total de domicílios com aparelho de tv para 74%).

A produção de filmes de temática de estrada continua diversa em termos de estilos adotados: o cineasta vinculado ao Cinema Marginal , Ozualdo Candeias , 193 produz o drama social, focando a vida simples de um grupo de mulheres que se prostitui, em A opção (Ozualdo Ribeiro Candeias, 1981); Paulo Thiago realiza o melodrama Jorge, um brasileiro (1988); e o diretor e ator Werner Schünemann , a comédia juvenil O Mentiroso (1988), premiado no Festival de Brasília (Filme – Júri Popular e Oficial; Direção; Melhor Ator e Melhor Atriz Coadjuvante).

Independente das diferenças temáticas, estruturas e abordagens ficcionais destes três longas-metragens , o fato é que serão necessárias mais duas décadas para que a produção de filmes “na estrada” possa atingir um conjunto de filmes de padrão reconhecível , conforme discussão, há pouco, sobre as especificidades narrativas de Bye bye Brasil, obra que faz uma ponte direta com a produção contemporânea do gênero dos anos 1990-2000.

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5.0 A NOVA FILMOGRAFIA NACIONAL DE GÊNERO ROAD MOVIE : IMAGINÁRIO, MEDIAÇÕES COMUNICATIVAS E IDENTIDADE CULTURAL

195

5.1 O cinema brasileiro contemporâneo de estrada: autoria, enredos e estruturas narrativas – 1990-2000

Tendo como base o conjunto da filmografia brasileira dos anos 1990-2000, com recorte até 2008, em função do período de elaboração do texto do presente trabalho – 2009/11, foram identificados onze longas-metragens com estrutura narrativa de filmes de estrada (ver quadro com relação de títulos e dados de referência registrados após esta introdução).

A primeira característica a ser comentada diz respeito à geração dos diretores. Excetuando Cacá Diegues, expoente do Cinema Novo, que completou 70 anos em 2010, os seis diretores nasceram, justamente, durante o período de florescimento desse movimento – a segunda metade da década de 1950 e primeira dos anos 1960 (quando aquele lançou seu primeiro filme, Cinco vezes favela , aos 21 anos) – e iniciaram a carreira profissional em longa-metragem na presente fase pós-Embrafilme.

Posto isso, certas perguntas emergem deste corpus de pesquisa: Por que o interesse da geração recente pelo gênero? Há semelhanças de proposição entre estes realizadores e Diegues? Como a questão da identidade cultural atravessa tais filmes e a trajetória destes diretores? Como os elementos de análise – história de vida dos autores, enredos, gêneros narrativos e realidade social mimetizada – se entrecruzam?

O segundo aspecto de abordagem introdutória à filmografia a ser analisada remete à própria questão narrativa. As histórias imaginadas por meio de personagens em viagem por estradas pelo Brasil, América do Sul e Portugal inserem-se em padrões estruturais do gênero road movie , mas também dialogam com o gênero drama social, evidenciando a intenção, em maior ou menor grau, de realismo crítico desses diretores.

Além dessas narrativas, dependendo do estilo de cada autor, as histórias contadas movem-se também pelos caminhos da comédia – Deus é brasileiro 196

(Cacá Diegues), Árido movie (Lírio Ferreira) e Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes) -, do melodrama – Central do Brasil (Walter Salles) e A caminho das nuvens (Vicente Amorim) -, do policial – A grande arte (Walter Sales), Os matadores (Beto Brant) e Terra Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas) – ou simplesmente, compõem-se num registro narrativo que sublinha as afinidades de caracterização do filme de estrada e do gênero drama social – Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes), O céu de Suely (Karim Aïnouz) e Diários de motocicleta (Walter Salles). Ou seja, observa-se nessas narrativas a exposição em relevo de conflitos de classe ou de caráter socioeconômico auxiliados, em parte, por base documental.

O reconhecimento dos gêneros narrativos é apenas uma pista inicial de entendimento do significado social e cultural desses longas-metragens. O texto a seguir pretende aprofundar tal apontamento com a caracterização do gênero road movie , por meio da leitura da peculiaridade de cada enredo, a tipificação dos protagonistas, a criticidade autoral, o desvendamento de elementos audiovisuais marcantes – planos, registros fotográficos, trilha sonora 20 – e o detalhamento da geografia física e humana representada.

Segue, portanto, a proposta de análise e interpretação do material audiovisual em relevo, conforme discussão teórico-metodológica realizada na introdução do trabalho. Em linhas gerais, o protocolo da pesquisa propõe-se investigar as relações socioculturais e históricas estabelecidas/mediadas no gênero narrativo road movie , especialmente da recente filmografia brasileira – anos 1990-2000, bem como leitura do plano simbólico do imaginário social de contexto.

20 A análise e a interpretação da banda sonora serão aprofundadas no subcapítulo seguinte - 5.2. À escuta dos sons e da poesia do lugar: as trilhas sonoras da filmografia brasileira road movie 197

Quadro 9: Filmes brasileiros de estrada – 1990-2008: diretores, dados de referência e síntese da caracterização narrativa.

Anos 1990

Filme Diretor/ Origem (Dir.) Ambiente Principais Gêneros Ano de Geográfico Narrativos Nascimento Ficcional A Grande Walter Salles Rio de Cidade do Rio de Filme de estrada , policial Arte (1956) Janeiro Janeiro, Mato e drama social (1991) (RJ) Grosso, Bolívia e África Terra Walter Salles Rio de Cidades de São Filme de estrada , policial Estrangeira (1956) Janeiro Paulo e Lisboa e drama social (1995) Daniela (RJ) Thomas (1959) Os Matadores Beto Brant São Paulo Cidade do Rio de Filme de estrada , policial (1997) (1964) (SP) Janeiro e região de e drama social fronteira com o Paraguai Central Walter Salles Rio de Cidade do Rio de Filme de estrada , policial do Brasil (1956) Janeiro Janeiro e sertão e drama social (1998) (RJ) pernambucano

Anos 2000

Deus é Cacá Diegues Maceió (AL) Alagoas, Filme de estrada , Brasileiro (1930) Pernambuco e comédia e drama social (2003) Tocantins A Caminho Vicente Viena, Rio de Paraíba, Ceará, Filme de estrada , das Nuvens Amorim Janeiro (RJ) Bahia e Rio de melodrama e (2003) (1966) Janeiro drama social

Lisbela e o Guel Arraes Recife (PE) Zona da mata Filme de estrada , Prisioneiro (1953) pernambucana comédia e romance (2003)

Diários de Walter Salles Rio de América do Sul, de Filme de estrada e drama Motocicleta (1956) Janeiro (RJ) Buenos Aires a social (2004) Caracas

Cinema, Marcelo Recife (PE) Sertão do Filme de estrada e Aspirinas e Gomes Pernambuco drama social Urubus (2005) (1964)

Árido Movie Lírio Ferreira Recife (PE) Sertão/agreste Filme de estrada, (2006) (1965) pernambuco drama social e comédia

O Céu de Karim Aïnouz Fortaleza Sertão do Ceará Filme de estrada e Suely (1966) (CE) drama social (2006)

198

Filmes brasileiros de estrada dos anos 1990

Do ponto de vista social, político e cultural, essa foi uma década de grande transformação e de transição econômica: adentra-se na economia global e afirma-se o Plano Real (1994), que estabilizou a moeda e trouxe a retomada do crescimento econômico, o qual repercutiu nas décadas posteriores. Não obstante observa-se, também, por todos os cantos do país, que a herança social desigual, injusta, ainda é tônica e resiste brutalmente.

No cinema, como discutido no capítulo 1, a Embrafilme (1969-1990) foi extinta por decreto durante o curto governo Fernando Collor (1990-1992). O impeachment deste, motivado por corrupção, torna-se um alento às esperanças perdidas com o naufrágio do processo de redemocratização política e social, durante a conservadora e decadente gestão, do ponto de vista econômico e social, do presidente José Sarnei (1985-1990).

No governo Itamar Franco (1992-1995), pós-impeachment , a economia retoma impulso e é decretado o bem sucedido Plano Real (1994). Durante seu mandato, começa a ser implementado o novo modelo de produção de cinema que vigora até o presente momento: produção baseada nas leis de incentivo fiscal. A Lei do Audiovisual (1993), que se soma à Lei Rouanet (1991), criada no governo Collor, viabiliza a maior parte das produções do cinema brasileiro de ficção e documentário nas duas últimas décadas.

Em 1995, o filme de Carla Camurati, Carlota Joaquina, rainha do Brasil , amparado nas leis de incentivo, marca o início do ciclo denominado pela imprensa e crítica especializada de Cinema da Retomada. Em relação à safra de filmes de estrada que surgem antes e no bojo desse ciclo, observa-se que o período é caracterizado pelo surgimento e confirmação da carreira, em longa- metragem de ficção, do cineasta Walter Salles. São três películas road movies desse autor que serão analisadas adiante: A grande arte (1991), Terra estrangeira (1995) e Central do Brasil (1997). Beto Brant, outro expoente do chamado Cinema da Retomada, estreia em longa-metragem com Os matadores (1997). 199

Há algumas características narrativas e temáticas em comum nessa safra de filmes de estrada dos anos 1990. Todos os filmes possuem forte conexão com os gêneros policial e drama social e a maioria deles traz enredos nos quais os protagonistas viajam além dos limites geográficos do território nacional.

Narrar a fronteira por meio da investigação subterrânea do mundo do crime, feito de assaltos e homicídios, foi, neste período, um modo de fotografar um país imerso na violência extrema, herança histórica das diferenças sociais gigantescas e, ao mesmo tempo, emergir o pêndulo da individualidade que caracteriza as sociedades contemporâneas e o eixo ficcional das personagens em filmes no registro do gênero road movie.

Quadro 10 – Produção de filmes brasileiros de estrada – década de 1990 Dados de produção – roteiro e fotografia

FILMES DE ESTRADA DIRETORES ROTEIRO FOTOGRAFIA

A grande arte Walter Salles Rubem Fonseca José Roberto Eliezer (1991)

Walter Salles; Daniela Terra estrangeira Thomas; Marcos Walter Salles Walter Carvalho (1995) Bernstein; Millor Fernandes Beto Brant, Fernando Os matadores Beto Brant Bonassi, Victor Navas; Marcelo Durst (1997) Marçal Aquino João Emanoel Central do Brasil Walter Salles Carneiro; Marcos Walter Carvalho (1998) Bernstein 200

5.1.1 A grande arte (1991)

Imagem 44 - A grande arte (Walter Salles, 1991)

Walter Salles, um dos maiores responsáveis pela afirmação de público e de crítica do chamado, à época, Cinema da Retomada – anos 1990 – lança A grande arte , seu primeiro filme, em 1991, aos trinta e cinco anos de idade (o diretor nasceu em 1956). Antes disso, o cineasta já havia consolidado uma carreira de forte visibilidade na televisão (GONÇALVES, 2001).

Carioca, filho de Elisa Margarida Gonçalves e do embaixador e banqueiro Walter Moreira Salles, pertence à família que detém o controle do grupo Unibanco. É irmão do cineasta João Moreira Salles e do banqueiro Pedro Moreira Salles, e meio-irmão do editor Fernando Roberto, filho do primeiro casamento de seu pai.

Salles foi criado no Brasil até os seis anos. Permaneceu fora do país com a família até os 13 anos, morando em Paris e Washington. Estudou economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e fez mestrado em comunicação audiovisual na Universidade de Artes Cinematográficas da Califórnia.

Para se ter uma ideia das atividades desenvolvidas pelo cineasta na fase anterior à sua dedicação ao cinema de ficção, ressalta-se que, nos anos de 1983 e 1985, dirigiu o programa de entrevistas Conexão Internacional , exibido pela antiga Rede Manchete. Em 1986, foi responsável pela produção de um documentário de cinco horas sobre os conflitos entre tradição e modernidade no Japão. 201

No ano seguinte, realizou outro documentário, agora sobre a China, premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), também exibido na TV Manchete. Ainda para a televisão, filmou musicais veiculados pelo mesmo canal, entre eles, Marisa Monte (1988), seguido dos documentários Chico – no país da delicadeza perdida , em coprodução com a França (1989), e João e Antônio , sobre a bossa nova, com João Gilberto e Antônio Carlos Jobim (1992), este exibido na TV Globo. Durante o período entre os anos de 1983 e 1995, trabalhou ativamente no campo publicitário.

Walter Salles realizou, até o presente momento, nove longas-metragens (1991- 2010). Além da já mencionada primeira produção – A grande arte (1991) – assinou a direção de Central do Brasil (1998), Abril despedaçado (2001), Diários de motocicleta (2004) e Água negra (2005), e codirigiu, com Daniela Thomas, Terra estrangeira (1995), O primeiro dia (1999) e Linha de passe (2008). No momento trabalha na pré-produção cinematográfica da adaptação do livro de narrativa de estrada beatnik , On the road , de Jack Kerouac.

O primeiro filme do diretor Walter Salles conta a história do americano Mandrake (Peter Coyote), que prepara um ensaio fotográfico sobre o universo social na região central do Rio de Janeiro, envolvendo mendigos, meninos de rua, bandidos e prostitutas. Na passagem pela capital carioca, esse protagonista acaba conhecendo a garota de programa Gisela (Giulia Gam), que, no desenrolar desse episódio, é cruelmente assassinada. Para enunciar a sua autoria, o homicida escreve, com a ponta da faca, a letra “p” no rosto da vítima.

Num outro trecho do filme, o fotógrafo americano presencia uma briga entre bandidos numa rua do centro da cidade. Nessa cena, Hermes (Tcheky Karyo) aparece manipulando habilmente uma faca e é salvo por Mandrake, que o avisa de um golpe inesperado. Hermes, posteriormente, acaba ensinando ao fotógrafo o uso dos punhais. Esse conhecimento será aplicado em sua defesa pessoal, no final de A Grande Arte , quando Mandrake mata o chefe da organização criminosa responsável pela morte de Gisela.

202

Até o desfecho do filme, assistimos ao desenvolvimento de uma trama repleta de cenas de ação e suspense, concebida para ilustrar a trajetória do protagonista na busca da elucidação do crime ocorrido com a personagem Gisela. Por exemplo, numa parte do filme, Mandrake sai do país e vai até a Bolívia, em decorrência de sua perseguição a um dos participantes de uma rede de tráfico de drogas e armas. Nota-se, assim, que a estrutura narrativa dialoga, do começo ao fim, com as referências do cinema policial 21 .

O protagonista mantém-se em constante deslocamento e, em certo momento, chega a dizer à sua namorada, Marie (Amanda Pays), arqueóloga de profissão, que nos últimos sete anos já estiveram em sete países. Assim, à mencionada viagem de Mandrake entre o Rio de Janeiro e El Alto, Bolívia, feita de trem até Corumbá, Mato Grosso do Sul, e de lá até aquele país, por ônibus, junta-se o derradeiro périplo, sem destino, ao norte da África, motorizado de jeep, registrado na cena final. Esse permanente deslocamento da personagem principal em todo o filme anuncia claramente que estamos na carona de um road movie.

No livro de Rubem Fonseca, em que se baseia o roteiro do filme A Grande Arte , o personagem principal é um advogado-detetive . Porém, na versão cinematográfica, dirigida por Walter Salles, há uma mudança da estrutura narrativa com a adequação desse protagonista para o papel de um fotógrafo norte-americano. A nova profissão pensada para o personagem adequava-se melhor à intenção do diretor de construir um filme que falasse d a condição de estrangeiro , dando oportunidade à reflexão sobre a questão da identidade

21 Da fase pioneira do cinema nacional até a década de 60, a ficção policial continua a ser utilizada de forma reiterada, porém observa-se que, especialmente no período Embrafilme (1969-1990), sua presença será ainda mais significativa (AUGUSTO, 1982; ORTIZ, 1995). De acordo com análise de José Mário Ortiz Ramos (1995) sobre os filmes policiais realizados nesse período, como Lúcio Flávio, o passageiro da agonia (1977), de Hector Babenco, até chegar aos filmes policiais Faca de Dois Gumes (1989), de Murilo Sales, Doida demais (1989), de Sérgio Rezende, e A grande arte (1991), de Walter Salles, nota-se uma produção marcada “pela relação entre a televisão e o cinema, e por características distintas que este gênero adquire nas produções da Boca do Lixo e dos filmes de autores mais cultos” (RAMOS, 1995, p.179). O termo cineastas cultos tem como intenção analítica confrontar a produção cinematográfica de autores mencionados acima com a realizada por cineastas vinculados às produtoras sediadas na região da Boca do Lixo da cidade de São Paulo, tais como David Cardoso e Tony Vieira. Nesses filmes, a combinação com o gênero erótico/pornográfico é fundamental para as narrativas construídas.

203 cultural no mundo de hoje, consolidada na construção de narrativa híbrida entre o policial e o road movie.

A respeito das referências cinematográficas que mais influenciaram, principalmente, esse primeiro filme de Walter Salles, enfocando a análise do gênero road movie, cabe destacar a filmografia do diretor alemão Win Wenders. Sobre o diálogo que a filmografia de Wenders estabelece com o gênero road movie , cujas referências culturais e cinematográficas dizem respeito também à incorporação dessa matriz narrativa aos filmes de Walter Salles, tanto no primeiro trabalho, A Grande Arte , como nos filmes posteriores, Terra Estrangeira , Central do Brasil e Diários de motocicleta , afirma Rogério Pereira:

Depois das desconstruções e das fragmentações narrativas da década de 60 e início de 70, o cinema de Wenders aparece com uma recuperação da narrativa tradicional, da continuidade, marca registrada do cinema americano [...] No mundo da racionalidade e funcionalidade técnica, as individualidades estão deslocadas. Os personagens de Win Wenders estão geralmente em trânsito, errantes, desenraizados, em busca de suas verdadeiras identidades [...] (PEREIRA, 1995, p. 92).

A grande arte possui certos procedimentos estilísticos que demonstram o quanto o diretor Walter Salles ainda se mostra imaturo para o desenvolvimento de uma linguagem de cinema própria, apesar do domínio técnico apreendido em sua experiência anterior como documentarista e realizador de filmes para publicidade. A bela fotografia (Walter de Carvalho) e a direção de arte (Tulé Peake) são seu maior trunfo.

Mas deve-se ponderar que as condições de produção de perfil globalizado também não ajudam. O filme é uma coprodução internacional que tem parte do elenco formado por atores oriundos dos EUA, além de ser falado em inglês, português e espanhol. Tudo isso contribui para um artificialismo de linguagem que se soma à opção do diretor em flertar com o padrão narrativo elementar do cinema policial daquele país.

204

Oscilando entre o glamour da violência, evidenciado nas cenas elegantes de lutas de faca, e a denúncia social, o filme não consegue criar um enredo consistente, mesmo tentando articular nuances da transformação interior do protagonista no longo percurso de viajante. Exemplo disso – a hibridização forçada de gêneros – é a passagem do filme que procura registrar, de modo documental, mendigos à procura de alimentos em um depósito de lixo, tendo a música minimalista de Philip Glass ao fundo. No conjunto, a cena demonstra apenas uma mera citação de crítica social que fica totalmente deslocada da composição do gênero policial que domina a narrativa deste primeiro longa- metragem de Walter Salles.

5.1.2 Terra estrangeira (1995)

Imagem 45 - Terra Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995)

O filme situa-se, em sua primeira parte, na cidade de São Paulo. Concebido todo em preto e branco, a metrópole ganha formas de rara beleza plástica, obtida pelo fotógrafo Walter de Carvalho. Essa abordagem visual revela-nos uma sensação ambígua de nostalgia e modernidade que impregna o lugar e o tempo narrativos. É nesse contexto de materialidade visual que é contada, paralelamente, a história de Paco (Fernando Alves Pinto), de 21 anos, que mora na capital paulista, e de Alex (Fernanda Torres), 28 anos, emigrante brasileira vivendo em Lisboa. Na segunda parte do filme, Paco irá conhecer Alex em Portugal.

Segundo os diretores, Terra estrangeira foi realizada na intenção de retratar ficcionalmente o período Collor, abordando o tema da emigração e da falta de perspectiva da juventude no futuro do país, à época (GONCALVES, 2001). A questão da identidade nacional é um tema igualmente importante , colocado, de 205 modo irônico, no próprio título e refletivo em inúmeras partes do enredo e na rica concepção imagética e sonora concebida pelos diretores e sua equipe técnica.

Trata-se do segundo longa-metragem do diretor Water Salles e o primeiro em codireção com Daniela Thomas - realizaram juntos também O primeiro dia (1998) e Linha de passe (2008). A cineasta nasceu no Rio de Janeiro em 1959. É filha do cartunista Ziraldo. Antes de se consagrar como diretora de cinema, iniciou carreira como cenógrafa nos anos 80, compondo conhecida parceria em grande parte das criações do diretor Gerald Thomas, com quem foi casada e de quem herdou o sobrenome artístico.

O primeiro plano de Terra Estrangeira é construído com o enquadramento do prédio em que Paco mora com sua mãe, Manuela (Laura Cardoso), e do viaduto chamado pelos paulistanos de minhocão . É noite e Paco está recitando Fausto de Goethe. Prepara-se para um teste de teatro.

No plano posterior, o mesmo prédio, locado pela produção exatamente onde está a conhecida propaganda de calcinhas da marca Hope 22 , é fotografado de maneira totalmente diferente do primeiro enquadramento. Antes, o prédio resulta numa visualidade sombria, em conexão com o texto do poeta romântico alemão. Neste segundo, há uma sensualidade nas formas obtidas pela filmagem, onde a sinuosidade do viaduto lembra um rio imaginário remetendo aos sonhos de transformação de Paco ou ao fluxo vital da cidade.

Thomas, ao comentar o filme 23 em entrevista, diz que a intenção fotográfica deste segundo enquadramento é dar a sensação de que o prédio está ancorado no viaduto, do mesmo modo que um navio está encalhado numa praia, conforme imagem a ser mostrada no início da análise de Terra estrangeira e que inspirou o enredo.

22 Ver entrevista dos diretores registrada na parte de extras do DVD Terra Estrangeira . 23 Ibidem. 206

Na sequência posterior, Manuela é fotografada na rua sob o viaduto e, depois, subindo com dificuldade a escada do prédio onde mora com Paco. Ouve-se a seguinte mensagem de televisão, que vaza no corredor: “ a pedido do presidente Collor de Mello, foi decretado feriado bancário... O mercado vê com grande apreensão a medida ...” (some o som).

Ela é descendente de espanhóis, ou melhor, de bascos, e está juntando dinheiro para viajar à sua cidade natal, San Sebastian, com o filho. Ele não demonstra ter qualquer interesse por esse projeto tão sonhado por sua mãe.

Do outro lado do Atlântico, o brasileiro Miguel (Alexandre Borges), namorado de Alex, toca trompete e tem uma fria acolhida da plateia do bar onde trabalha. Senta-se, depois, ao lado de um amigo do casal, o português Pedro (João Lagarto), que o consola. Este é dono de uma loja de partituras e livros sobre música.

Alex, que trabalha como garçonete, chega atrasada e o casal tem uma discussão. A relação dos dois é de permanente atrito. Além de músico, Miguel contrabandeia drogas e outras mercadorias ilícitas. São elementos do enredo que vão tecendo o gênero policial, que se torna mais visível à medida que avança a história marcada, inicialmente, pela narrativa dramática.

Em São Paulo, após cena emblemática em que a ministra da economia, Zélia Cardoso de Mello, comunica na televisão – em imagens reais de vídeo – a troca de moeda e o congelamento dos valores disponíveis em contas bancárias por 18 meses, Manuela sofre um grande choque e morre de infarto. Depois de anos juntando dinheiro com o trabalho árduo de costureira, seu sonho acaba de lhe escapar do horizonte.

Os comentários dos diretores Walter Salles e Daniela Thomas sobre as condições de produção do filme são bastante esclarecedores quanto à conexão entre os gêneros drama e os fatos reais a que o longa-metragem quer intencionalmente remeter:

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Quisemos, conscientemente, contar uma história que partisse de um fato documental recente – o caso resultante do Plano Collor – para depois desaguar numa ficção. [...] Mas há algo de fascinante na possibilidade de fazer um filme urgente, que fale de algo que mudou um país. Esse sentido de urgência determinou a linguagem adotada. Assim, o super 16 mm não foi utilizado por uma questão de custos – embora ajude nesse aspecto – mas porque a câmera mais leve, orgânica a esse tipo de história, aproxima-nos dos personagens. Da mesma forma, o preto-e-branco insere o filme imediatamente num tempo histórico, tem a faculdade de datar um evento .24

Paco, evidentemente, sofre muito com essa perda inesperada. Dias depois, andando a esmo no centro da cidade, resolve entrar no bar Brahma. Lá conhece Igor (Luís Melo), proprietário de um antiquário em São Paulo. Ambos ficam próximos e Paco recebe, posteriormente, um convite para levar um objeto de arte a Lisboa. O valor a ser recebido pela entrega viabilizaria sua ida a San Sebastian, viagem tão sonhada por sua mãe e que ele resolve realizar em sua homenagem. Ele desconhece a verdadeira razão dessa transação comercial: no estojo do violino transportado, acondicionadas, num fundo falso, escondem-se pedras preciosas.

Ao chegar em Portugal, Paco dirige-se para o chamado hotel dos Viajantes. Ele e Alex têm suas vidas entrecruzadas, brevemente, em função do caso das pedras preciosas contrabandeadas, pois o intermediário do mencionado esquema de contrabando, em Lisboa, é Miguel (Alexandre Borges), companheiro de Alex.

Dias depois de sua chegada, Miguel é assassinado. Paco encontra um cartão, na escadaria de seu prédio, com o endereço de Alex e vai ao seu encalço, a fim de tentar obter algum contato para entrega da mala. Como se pode apreender nesse trecho do enredo em Lisboa, o filme tem suas narrativas mescladas, passo a passo, entre o drama, que domina a parte inicial, e o gênero policial.

Ao voltar para o hotel, o proprietário deste diz que a mala fora retirada por um amigo seu e entrega-lhe também um bilhete cuja mensagem diz que Paco tem

24 Revista IstoÉ, 23 abril 2000 208 um encontro, à noite, numa casa noturna. Ele é recebido por dois desconhecidos que lhe pedem a mala em troca da recompensa. A conversação é apoiada por Igor, que aparece inesperadamente. Paco começa a declamar um texto teatral e sai em fuga desesperada.

Após ter despistado o grupo, o rapaz vai atrás de Alex, pois desconfia de que foi ela quem roubou a mala. Negando tal fato, ela resolve sair da cidade com Paco, com ajuda de Pedro, que lhes empresta seu carro. Armam a fuga para o norte de Portugal e, de lá, para a entrada na Espanha.

A partir desse momento, a narrativa policial, cuja fotografia em preto-e-branco faz alusão ao filme noir , mescla-se ao gênero filme de estrada e ao drama – fio condutor do enredo. Paco e Alex iniciam a viagem numa relação distanciada, mas as contingências do trajeto acarretam uma nova perspectiva do relacionamento e enfeixo narrativo.

A viagem permite que se conheçam mais. Ao pernoitarem à beira de estrada, eles transam no carro. No dia seguinte, o filme esclarece, pelas imagens, que o carro está estacionado próximo a uma praia. Nela, um barco degradado pelo tempo está retido na areia (cena registrada no cartaz de divulgação do filme, com eles também abraçados), compondo uma paisagem simbólica que remete à crise de identidade dos personagens e do próprio país. Alex, que tinha a intenção de ficar em alguma cidade após passarem pela fronteira, resolve seguir com Paco para San Sebastian.

O filme termina numa fuga desesperada. Ao retornarem da tentativa de cruzar a divisa da fronteira entre Portugal e Espanha, onde avistaram vários policiais, param num restaurante à beira de estrada e são surpreendidos pela chegada de Igor e seu capanga. Pedro confessara o roteiro do casal após ter sido violentamente espancado em Lisboa.

Paco blefa que a mala está no carro e que suas chaves estão na bolsa de Alex (que contém uma arma). Acompanhado do parceiro de Igor até o veículo, ele o mata, mas sofre, antes, o revide do capanga, que o deixa muito ferido. 209

Concomitantemente, Alex fere Igor com um garfo e, depois, com uma garrafa e sai ao encontro de Paco. Ela arrasta seu corpo para o carro e sai em disparada.

Atravessando a cancela da linha fronteiriça em alta velocidade, Paco morre ao lado de Alex, no interior do veículo. Nesta penúltima sequência chave para o desfecho do filme, vê-se o automóvel correndo pela estrada, num plano aéreo, e ouve-se a música Vapor Barato , de Macalé e Waly Salomão, cantada por Fernanda Torres e, depois, com a adição da versão emocionante de Gal Costa.

Terra Estrangeira termina com as imagens de uma estação de metrô de Lisboa. Na última sequência do filme, um cego toca o violino que havia sido roubado da mala de Paco. Por acidente, o estojo, colocado para acolher esmolas dos passantes, cai e dele surgem as pedras preciosas contrabandeadas, que são pisoteadas pelos anônimos transeuntes da estação.

A estrada, aqui, espelha duas leituras sobre a questão da identidade cultural: o ethos da juventude rebelde pós-anos 1960 e a questão da identidade nacional. Na mencionada penúltima sequência do filme, a letra da música Vapor barato retrata o famoso píer erguido na praia de Ipanema, nos anos 1970, e o universo de valores de contracultura desse lugar, considerado um dos prediletos dos jovens cariocas da chamada Geração Desbunde : “[...] Com minhas calças vermelhas / Meu casaco de general / Cheio de anéis / Vou descendo por todas as ruas e vou tomar aquele velho navio [...]”.

Paco e Alex não são, necessariamente, jovens rebeldes, mas esta canção nostálgica de um período do Brasil, em que certa parcela da juventude vivia ainda uma aura de rebeldia e de utopia delineada nos acontecimentos culturais dos anos 1960 (movimento hippie, feminismo, liberalismo nos costumes, etc.), da geração contemporânea aos diretores, reflete ainda a inquietação política destes com a crise social e econômica da passagem das décadas 1980 e 1990.

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Por outro lado, enquanto acompanhamos os percursos dos personagens Paco e Alex, do Brasil a Portugal, a viagem, interrompida de modo trágico, adquire a significação de utopia nacional desgarrada , contextualizada no período logo após os anos de chumbo da história recente do país (1964-85), com uma nação em crise de identidade e sem perspectiva de futuro, à época:

A questão central do filme, a da orfandade essencial dos protagonistas, a falta de uma casa, seja familiar, seja nacional, a busca de um novo “pai/país” como dizem Salles e Thomas citando o psicanalista Contardo Calligaris, já se apresenta plenamente no enredo Jornal (LABAKI, 1998).

Essa abordagem da identidade nacional será novamente retratada por Salles em seu filme posterior, Central do Brasil (1997), porém, por meio de outra perspectiva. A viagem proposta pelo enredo será realizada sob o olhar de encantamento do ambiente social retratado – as camadas populares, com afirmação da tradição cultural. O autor sintoniza também o estado de espírito otimista do país ao final dos anos 1990, fundamentado no pragmatismo liberal do então governo Fernando Henrique Cardoso.

5.1.3 Os matadores (1997)

Imagem 46 - Os matadores (Beto Brant, 1997)

Estamos na região fronteiriça entre Brasil e Paraguai. Dois homens de idades aparentemente distintas chegam de automóvel a um bar de estrada. O jovem, Toninho (Murilo Benício), masca chicletes e não esconde que está bastante nervoso. O mais velho, Alfredão (Wolney de Assis), tenta acalmar seu mais novo colega de profissão. Eles são parte do trio de protagonistas de Os matadores (1997), primeiro longa-metragem de Beto Brant.

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Os dois , enquanto esperam o enviado do líder do grupo , Carneiro (Adriano Stuart) , tentam se aproximar e conversam um pouco sobre a vida de cada um, quando Alfredão começa a narrar, em flash back , a história do melhor pistoleiro que a região já teve: Múcio (Chico Diaz). Mas a primeira sequência não se passa no bar de fronteira. Encenada no Rio de Janeiro, vemos Toninho assaltando um carro que será levado até o Paraguai. Lá conhecerá Carneiro, que entra na vida de Alfredão de modo imprevisto: recebe a encomenda de matá-lo. A razão será revelada somente no final do filme.

Outra personagem importante do filme é Helena (Maria Padilha) , mulher do chefe Carneiro. Ela foi amante de Múcio , razão da eminência de sua morte, durante a passagem final do filme. Até o desfecho, quando sabemos que quem matou Múcio foi seu colega e grande amigo Alfredão, assistimos Toninho fracassar na tentativa de tornar-se um matador profissional, poupando a vida deste último. Constrói-se, aí, uma narrativa que passa de modo claro pela linguagem do cinema policial contemporâneo.

Pela agilidade da narrativa, diversidade de personagens principais – e a consequente fragmentação dos núcleos ficcionais, bem como a glamourização da violência –, o filme lembra a gramática do diretor de Cães de Aluguel ( 1992) e Pulp fiction - tempo de violência (1994), Quentin Tarantino. Mas, se o enredo mostra-se afinado a esta linha do policial norte-americano, exemplificada com o retrato moral ambíguo das personagens – Alfredão irá trair seu grande amigo Múcio –, o filme encerra-se com um clímax anti-Tarantino: Toninho afrouxa sua sanha viril pela violência e, numa atitude humanista, poupa a vida de Alfredão.

Neste sentido, o filme aproxima-se do road movie : o ritual de formação do deslocamento, no qual o percurso deve levar a uma grande transformação interna da personagem. E esta normalmente associa-se a uma afirmação ética e progressista da vida social. Além disso, este final alinha-se com a proposta do diretor de criar uma narrativa que possa efetivar uma crítica social do lugar onde o herói viaja. A realidade social de violência física e econômica da fronteira transforma-se numa alegoria maior: a nação.

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O filme de Beto Brant, realizado em 1997, dá continuidade à linha do policial construída na fase do cinema Embrafilme, dos cineastas cultos (RAMOS, J.M., 1995), como Hector Babenco, Sérgio Rezende, Murilo Salles, entre outros, produção que incorpora, ao mesmo tempo, as intenções de retrato/denúncia social desses diretores e também a construção narrativa que enfatiza a ação e a aventura, elementos-chave para a elaboração de um cinema de apelo popular.

A narrativa de estrada nasce do desejo de filmar uma história que, inicialmente, se desenha como um típico policial, mas que incorpora a perspectiva da enunciação do realismo crítico que a geografia de uma região imersa em problemas sociais de toda ordem pode possibilitar. O longa-metragem foi filmado na região meridional do Mato Grosso do Sul, com locações feitas principalmente na cidade de Bela Vista, vizinha do município Ponta Porã (AXT; SHÜLER, 2010).

Além disso, o filme busca explorar ficcionalmente as nuances subjetivas dos protagonistas, cujo roteiro foi baseado no conto homônimo de Marçal Aquino, conforme afirma o diretor Brant, em depoimento: “buscamos a densidade psicológica para o personagem. O matador não deveria ser mau, ou um santo, tinha que ser ambíguo, ter uma perversidade misturada com generosidade (NAGIB, 2002, p.122)”.

Ressalta-se que a conexão narrativa entre o filme de estrada, o policial e o drama social pode ser observada, também, nas três produções de Walter Salles, realizadas nos anos 1990, A grande arte (1991), Terra estrangeira (1995) e Central do Brasil (1998) – filmes, com exceção deste último, que têm a peculiaridade de descrever heróis em viagens que ocorrem no Brasil e além dos limites territoriais do país.

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5.1.4 Central do Brasil (1998)

Imagem 47 - Central do Brasil (Walter Salles, 1998)

A famosa estação de trem do Rio de Janeiro – Central do Brasil - é frequentada, principalmente, pela população pobre da metrópole que vive nos bairros e cidades dos arredores. Lugar de intensa passagem, de sujeira e manutenção precária de suas instalações, de pessoas opressas pelo cotidiano, viajando em vagões lotados, mas que guardam suas alegrias e sonhos muito próximos dessa dura lida.

A primeira imagem do filme homônimo de Salles é, justamente, o registro dessa multidão desembarcando de trem. O enquadramento altera a noção de distância entre os vagões e as paredes da estação e intensifica a sensação de confinamento daquelas pessoas. Na outra sequência, em close , uma mulher de origem humilde, Maria do Socorro Nobre, 25 narra, profundamente comovida, um acontecimento fictício de sua vida.

Na vida real, ela é uma ex-presidiária. Quando ainda encarcerada, ao descobrir a obra do artista plástico Frans Kracjberg, um escultor que transforma a madeira queimada em obra de arte, resolve enviar-lhe cartas. Essa história levou Walter Salles a produzir o documentário, em curta-metragem, Socorro Nobre (1995) e inspirou-o a realizar o filme Central do Brasil.

25 Ver entrevista de Walter Salles em revista Cinemais, no. 9, jan./fev. 1998, na qual ele desenvolve a gênese do enredo de Central do Brasil com base na história real de Maria do Socorro Nobre. 214

Em meio àquela multidão, sucessivamente, vão surgindo expressivos rostos e histórias que preenchem o horizonte da ficção que se realiza, em boa parte, com base no registro documental. Como informa Salles, em entrevista à época do lançamento do longa-metragem, muitos daqueles depoimentos foram obtidos espontaneamente no set de gravação e incorporados ao filme.

Professora primária aposentada, Dora (Fernanda Montenegro) trabalha diariamente na famosa estação ferroviária do Rio de Janeiro, na redação de cartas ditadas por seus clientes que não dominam a escrita. Duas mazelas sociais do Brasil de hoje colocadas lado a lado: a profissional da educação, que não deveria estar ali para complementar seus modestos rendimentos (o que esboça o descaso de décadas de governos com o ensino público), e aqueles analfabetos ou pouco letrados que representam milhões de pessoas no país.

Num destes depoimentos, o terceiro na sequência cronológica do filme, Dora é solicitada por Ana (Soia Lira), que está acompanhada de seu filho, Josué (Vinícius de Oliveira), para que escreva uma carta ao pai do menino, Jesus, com o intuito de promover o encontro dos dois. No episódio, sabemos que o pai mora no sertão de Pernambuco.

No final do dia, Dora despede-se de Pedrão (Otávio Augusto), supervisor da segurança do local, e passa-lhe uma certa quantia em dinheiro, provável “comissão ilegal” pelo uso do local público. De volta para casa, situada num prédio de subúrbio ao lado da linha do trem, Dora é recebida por sua grande amiga, Irene (Marília Pêra), que ganha a vida como prostituta.

Nesse trecho do filme, vão se delineando traços importantes da personalidade de Dora. As duas – Dora e Irene - leem as cartas redigidas no dia e dão fim a elas, como no juízo final: a lata de lixo, a gaveta do purgatório ou o correio celestial. Irene intercede sempre para que todas ganhem seu destino correto, enquanto Dora, em fria e sarcástica avaliação, deseja o contrário. A carta de Josué fica, com muito custo, guardada na gaveta.

215

No outro dia, Ana e Josué voltam à estação. Ela pede a Dora que mude a forma da primeira carta, pois percebeu que havia sido muito agressiva. Ela havia sido abandonada por Jesus há muitos anos e a tentativa de aproximação do filho com o pai compreendia também uma possível reconciliação com ele.

Imediatamente após sua saída da estação de trem, a mãe de Josué é atropelada por um ônibus. Desorientado, ele acaba pernoitando no próprio local. No dia seguinte, Dora convida-o para dormir em sua casa. Ela articula esta aproximação porque, conforme acordo com o supervisor da segurança da estação ferroviária – Pedrão –, ambos pretendem vendê-lo a uma quadrilha envolvida com tráfico de órgãos.

Como é característica comum da filmografia de Walter Salles, desde seu primeiro longa-metragem, A grande arte , baseado no romance de Rubem Fonseca, a primeira parte do filme, ambientado no Rio de Janeiro, desenvolve- se por meio da hibridização de certas narrativas de predileção: a trama dramática, sustentada no realismo crítico, mescla-se – explicitando-se principalmente até o término desta fase condicionante da futura viagem dos protagonistas – com gênero policial.

Entregue, no outro dia, ao grupo criminoso, que informa, de modo dissimulado, que o menino seria adotado por alguma família, Dora e Pedrão recebem, cada um, mil dólares. À noite, assistindo à televisão comprada com o dinheiro ilegal, Irene deduz como o novo aparelho, que está na sala, foi adquirido. Dora é duramente criticada por ter entregado o menino à quadrilha.

Dora, porém, acaba se arrependendo e promove um resgate heróico de Josué das mãos da organização criminosa. Eles fogem para o Nordeste, desesperadamente, em busca do pai desaparecido:

[...] À medida que se embrenha com ele pelo interior do país, Dora descobre outra ordem de valores, ao mesmo tempo mais primitivos e mais íntegros. A crispação urbana afrouxa, as relações interpessoais se suavizam, abre-se espaço para a esperança – o que se reflete sutilmente na linguagem audiovisual do filme. Além de alongar os planos e tornar o ritmo 216

mais compassado, Walter Salles (com a ajuda da excepcional fotografia de Walter Carvalho) procede de um esclarecimento da imagem. Se os planos do início eram em geral escuros e saturados de elementos (e encharcados por uma música sentimental e excessiva), eles se tornam cada vez mais limpos e luminosos. (BUTCHER, 1998)

Temos, portanto, um segundo momento do filme, cuja nova abordagem fotográfica (Walter de Carvalho), musical (Antônio Pinto e Jaques Morelembaum) e de montagem, mencionada acima, é acompanhada pela mudança de gêneros narrativos de sua estrutura. O drama social urbano, predominante da primeira, transforma-se, em função dos novos temas e elementos audiovisuais adotados para contar essa fase da história transcorrida na estrada.

A reconciliação familiar de Josué, a crise e a transformação de identidade de Dora, bem como o vínculo crescente de fraternidade entre os dois protagonistas, dentro do novo ambiente social a ser conhecido, são contados a partir desse momento do filme, com base nas estruturas dos gêneros road movie , do drama social e do melodrama.

Na rodoviária carioca, Dora compra passagem para o fictício município de Bom Jesus, no sertão de Pernambuco. Sua relação com Josué continua sendo de extremo conflito: o menino ainda desconfia dela e trata-a de modo rude. Em certo trecho, diz, de modo veemente: “ você não vale nada”.

Ela, amargurada pela história de vida de poucos momentos alegres, tem grande dificuldade para filtrar seu passado. A atuação de ambos é uma das grandes qualidades desse belo filme da fase da retomada do cinema brasileiro dos anos 1990, no qual a interpretação de Fernanda Montenegro e a direção de Salles foram premiadas no Festival de Berlim (1998).

Oricchio expressa bem essa densa relação entre Dora e Josué, cuja composição de personagem deve ser lida não só no texto, mas na riqueza de expressões de olhares e gestos, atingida pela performance dos atores e qualidade profissional da equipe técnica responsável por esta: 217

Dora é também uma mulher seca, embotada na luta pela sobrevivência, que terá uma ou duas coisinhas a apreender com o garoto que tem sob sua precária guarda. Salles não cai naquele facilitário melodramático usual – “criança dá lição de vida e ajuda adulto a recuperar pureza perdida, etc.”. Ao contrário. A relação entre os dois é tensa, porque tanto a mulher quanto o menino são pessoas duras, sofridas; uma é desencantada; o outro, precocemente amadurecido. O relacionamento entre eles é feito de um misto de atração e repulsa. Estão sempre juntos querendo separar-se e, separados, buscam um ao outro. [...] (ORICCHIO, 2003, p. 136)

No meio do caminho, Dora tenta se desvencilhar do menino numa das paradas, mas ele logo percebe e desce também, deixando sua sacola com dinheiro no ônibus que parte sem ambos. Eles são obrigados a pegar carona e conhecem o caminhoneiro César (Othon Bastos). Ele, bastante religioso, acolhe-os calorosamente.

O som instrumental, com base em referencial da tradição musical nordestina rural e do movimento Armorial (no próximo subcapítulo – 5.2, a trilha sonora será analisada em detalhes), e a paisagem árida informam que estamos no interior do Nordeste. Dora tenta seduzi-lo num restaurante, depois de já terem percorrido bom pedaço de estrada, mas César, tímido e muito evangélico, sente-se constrangido pela iniciativa.

Dali, seguem de caminhão, que está carregado de populares da região, até a cidade de Bom Jesus, cantando hinos religiosos. Salles e seu fotógrafo, Walter de Carvalho, filmam demoradamente aqueles tipos humanos, numa linguagem limítrofe do documentário e do drama ficcional dos protagonistas.

Antes de entrar na cidade, Josué e Dora são filmados do alto de um morro, a partir do qual se avista a ampla paisagem do sertão. Bom Jesus está repleta de barracas e prepara-se para uma procissão que deverá ocorrer à noite. Durante o evento, Dora desentende-se novamente com Josué e infiltra-se entre os populares que cantam e rezam. Com fome e inebriada pela emoção fervorosa da multidão, ela desmaia. Ao amanhecer, deitada no chão e encostada em Josué, é acordada docemente pelo menino (episódio que será registrado no 218 cartaz do filme). É o momento de inflexão na relação dos dois. A partir dessa passagem, ambos são filmados em comunhão de afetos. A casa para a qual a mãe, Ana, havia destinado a carta escrita no Rio de Janeiro, e que serviu de guia até ali, já não pertence ao pai de Josué. Seu novo morador diz que Jesus a vendeu a ele e informa o novo endereço.

Este fica num conjunto habitacional popular. Depois de algumas buscas sem sucesso, em meio a casas tão parecidas, Isaias (Matheus Natchergaele) ouve, do alto de uma delas, onde trabalha como pedreiro, que eles estão à procura do pai do menino. Passando como amigos dele a visitar a região, Isaias insiste que sejam recebidos em sua casa. Lá está o outro irmão de Josué, Moisés (Caio Junqueira).

Como o pai, Moisés é marceneiro e trabalha em sua oficina nos fundos da casa. Isaías pede que Dora leia uma carta enviada por Jesus a Ana, sua segunda esposa, com quem teve o terceiro filho, Josué, que, portanto, é meio- irmão daqueles. Ele diz que havia viajado ao Rio de Janeiro à procura da mulher depois de anos de sofrimento de separação. Isaias comenta que o pai passou a beber, parou de trabalhar e perdeu a primeira casa por dívidas.

O interessante, nessa informação do enredo, é que ela atenua o julgamento categórico de Dora, proferido no Rio de Janeiro e no começo da viagem, no qual ela sentenciava de modo amargo e cínico para o menino: “ seu pai é um bêbedo” . Ela tenta, a todo custo, dissipar a ternura do menino, pois também fora abandonada pelo pai em sua infância, como conta durante a viagem.

A carta de Jesus diz ainda que, como não a encontrara no Rio de Janeiro, supunha que ela tivesse ido ao seu encontro, mas avisava que iria demorar, pois estava se dirigindo a um garimpo, mas desejava ver seus filhos reunidos e tê-la de volta como esposa. Esta parte da história parece pouco verossímil e inventada por Dora para dar aos filhos de Jesus o conforto da ilusão.

O filme se encaminha para seu término com a saída de Dora, durante a madrugada, da casa dos irmãos de Josué. Ela coloca o vestido azul, presente 219 de Josué, e se pinta silenciosamente. Deixa a carta enviada por Jesus e a ditada por Ana antes de sua morte, no Rio de Janeiro, uma ao lado da outra, embaixo do quadro com a reprodução fotográfica do casal na parede da sala.

As cenas finais intercalam a sequência de Josué correndo na tentativa de alcançar Dora e ela redigindo uma carta a ele durante a viagem de ônibus, profundamente emocionada. Pede para que ele não a esqueça. E diz, em sua última fala: “tenho saudade de meu pai, tenho saudades de tudo”. Após a música instrumental, a trilha sonora encerra-se com Cartola cantando Preciso me encontrar , de Candeias.

O caráter melodramático deste trecho do filme de Walter Salles – “etimologicamente, melodrama significa canto com música” (OROZ, 1992: p. 32) – é construído em meio a cenas, em primeiríssimo plano, das personagens Dora e Josué, vertendo copiosas lágrimas ao se depararem com o sentimento de separação.

Ao longo desta trama ficcional, percebe-se uma tensão de comunicabilidade e de matrizes culturais às quais essas narrativas estão vinculadas (análise que pode ser estendida a toda a filmografia do diretor). Se, no gênero policial, o cinema de Walter Salles tem, como referências estéticas, o cinema comercial norte-americano – gênero dominante em A grande arte (1991) e Água negra (2005) –, as formas melodramáticas de Central do Brasil dialogam com o político neorrealismo italiano, a filmografia de Nelson Pereira dos Santos e de Cacá Diegues, oriundos do Cinema Novo , e o cinema brasileiro autoral de Hector Babenco.

Dos nove longas-metragens de Walter Salles, Central do Brasil é o filme em que o melodrama aparece com maior amplitude. O fato de que este terceiro longa-metragem do diretor representou o filme não-infanto-juvenil de maior bilheteria da década de 1990, totalizando um público de 1,6 milhão de espectadores, só confirma a comunicabilidade popular do filme e do gênero.

220

Em relação ao drama social do filme, pode-se dizer que Salles sinaliza, em Central do Brasil , para o diálogo com a filmografia cinemanovista , ao assumir um realismo crítico, quase documental, e ao retratar o universo social do subúrbio carioca, enfatizando, assim, o cotidiano das camadas mais baixas, como fez Nelson Pereira dos Santos em Rio 40 graus (1955) e Rio zona norte (1957), no final dos anos 1950, e também ao abordar o sertão nordestino em Vidas secas (1963), na década posterior .

Este diálogo pode ser estabelecido também com os filmes de Cacá Diegues, cujo tema favela foi desenvolvido já em seu primeiro longa-metragem, Cinco vezes favelas (1961), assunto que foi tratado no quarto longa-metragem de Walter Salles, em codireção com Daniela Thomas, O primeiro dia (1999). A seguir, reproduz-se um depoimento de Walter Salles, em que ele comenta essas influências logo após realizar Central do Brasil :

[...] Eu me encantei com o afeto, a dignidade e simplicidade – dentro da carência – daquelas pessoas do Sertão. E me encantei com a beleza seca e rude daquela geografia. Principalmente da geografia humana, aqueles rostos tão significantes que eu conhecia da época do Cinema Novo. O Cinema Novo fez uma coisa maravilhosa que foi colocar o rosto do brasileiro nas telas. Tive vontade de me aproximar disso e botar novamente o rosto do brasileiro nas telas, 40 anos depois, sem a pretensão de me aproximar daqueles clássicos de qualidade inatingível. Aprendi com eles e continuo aprendendo. 221

Filmes brasileiros de estrada dos anos 2000

O primeiro apontamento que cabe fazer a respeito da produção road movie do período – ano 2000 - é que ela possui características estilísticas bastante diversas , em comparação à década anterior, constatação que se sustenta, em parte, pela maior presença do gênero de estrada no conjunto total da filmografia realizada. E isso se torna mais compreensivo, ainda, se levarmos em conta a história social da narrativa no cinema moderno e contemporâneo, conforme discutido no capítulo 4.

Por um lado, os filmes de estrada aventuraram-se em histórias otimistas, enveredadas na comédia ou em melodrama familiar, como o que se vê e se ouve no trio de longas-metragens lançados em 2003: Deus é brasileiro (Cacá Diegues) , O caminho das nuvens (Vicente Amorim) e Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes). A aproximação da linguagem da TV nesses filmes é outra característica visível dessa produção que reflete, como discutido no capítulo 1 da tese, uma tendência estética de boa parte da filmografia brasileira dos anos 2000. Aqui estamos nos referindo, evidentemente, à interação produtiva e comercial da empresa Globo Filmes.

Um intercâmbio polêmico que tem gerado certo debate teórico de pontos de vista, às vezes, opostos – afirmação/negação da qualidade estética ou cultural dessas obras. O presente autor busca encontrar um caminho de análise e interpretação fora do eixo apocalíptico e integrado, bem e mal, observando que a pluralidade cultural e artística é a trilha mais democrática a ser percorrida. O Brasil precisa consolidar uma produção cinematográfica própria e diversa que compreenda tanto filmes de maior apelo popular como aqueles de franca proposta de experimentação de linguagem. Afinal, reforçando o óbvio, as demandas não devem partir de apenas um único ponto e tipo de sujeito receptor.

O denso e poético Diários de motocicleta (2004), de Walter Salles, demonstra outra variação de abordagem ficcional da narrativa nessa fase. Salles representa, certamente, a grande referência do gênero no Brasil – relembrando 222 que o autor trafegou por essa linguagem cinematográfica por meio de três longas-metragens nos anos 1990: A grande arte (1991), Terra estrangeira (1995) e Central do Brasil (1998). No momento, prepara a adaptação do clássico romance beat On the road (Jack Kerouac) para o cinema, cujo gênero de estrada deverá novamente ser o caminho narrativo a ser trilhado, tendo em vista a temática do texto original.

O terceiro núcleo de filmes com características de produção e proposta estética comuns é aquele realizado por jovens cineastas originários do nordeste – Recife e Fortaleza –, quais sejam, Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005); Árido movie (Lírio Ferreira, 2006) e O céu de Suely (Karim Ainouz, 2006).

Como será possível constatar, a partir das análises e interpretações registradas adiante, é uma safra de filmes de forte marca autoral, cuja circulação no meio cinematográfico gerou (tem possibilitado) uma acolhida positiva da crítica especializada. Os diretores mencionados – Gomes, Ferreira e Ainouz – constroem, gradualmente, uma obra cinematográfica na perspectiva da renovação da linguagem do cinema brasileiro contemporâneo, que não se restringe à produção do gênero de estrada. Exemplo deste reconhecimento, informa-se, preliminarmente, que o road movie Cinema, aspirinas e urubus foi premiado como melhor filme da prestigiada Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2005.

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Quadro 11 – Produção de filmes brasileiros de estrada – década de 2000 Dados de produção – roteiro e fotografia

FILMES DE ESTRADA DIRETORES ROTEIRO FOTOGRAFIA E DIRETORES

João Ubaldo Ribeiro, Cacá Diegues, João Deus é brasileiro Cacá Diegues Emanuel Carneiro e Affonso Beato (2003) Renata de Almeida Magalhães O caminho das nuvens Vicente Amorim David França Mendes Gustavo Habda (2003) Lisbela e o prisioneiro Guel Arraes; Jorge (2003) Guel Arraes Furtado; Jorge e Pedro Uli Burtin Cardoso Diários de motocicleta Walter Salles José Rivera, Eric Gautier (2004)

Cinema, aspirinas e Marcelo Gomes, Paulo Marcelo Gomes Mauro Pinheiro urubus (2005) Caldas e Karim Aïnouz Lírio Ferreira, Hilton Árido movie Lacerda, Sérgio Lírio Ferreira Murilo Salles (2006) Oliveira e Eduardo Nunes Maurício Zacharias, O céu de Suely Karim Ainouz Felipe Bragança e Walter Carvalho (2006) Karim Aïnouz 224

5.1.5 Deus é brasileiro (2003)

Imagem 48 - Deus é Brasileiro (Cacá Diegues, 2003)

Cacá Diegues (Maceió, 1930), que possui longa carreira profissional, como detalhado no capítulo 4, com a análise do filme Bye bye Brasil (1979), continuou a filmar nos anos 1990, superando a forte crise do segmento, registrada no início da década, com a produção de filmes que se aproximam da linguagem das telenovelas, com foco nos gêneros do melodrama e da comédia, apropriando-se também do star system da TV Globo para protagonizá-los.

Exemplo desta concepção de estilo, que visa à construção de um cinema popular (escrevo isto sem querer atribuir demérito à proposta), pode ser percebido em Tieta do agreste (1996), Orfeu (1999) e, no segundo road movie do autor, Deus é brasileiro (2003) – filmes que foram sucesso para os padrões de bilheteria do período.

Apesar da diversidade de gêneros ficcionais que se mesclam em todo o enredo de Deus é brasileiro, como será salientado na exposição do enredo a seguir , Cacá Diegues afirma , em entrevista , que o filme foi concebido intencionalmente para ser um filme de estrada :

Eu adoro esta estrutura de filme de estrada. Eu sou um fã incondicional de filme de estrada. Uso muito esta estrutura mesmo em filmes meus que não são aparentemente filmes de estrada, que passam em uma estrada. Sei lá. “Um Trem para as Estrelas”, que se passa todo no Rio de Janeiro, para mim é meio filme de estrada; esta estrutura de trajetória, que não tem uma história só, mas várias histórias que vão sucedendo e ligadas por alguma coisa que une uma às outras; em fim esta base de filme 225

de estrada que é a passagem de uma coisa para outra com muita naturalidade, com muita facilidade 26 .

Deus é brasileiro possui certo elo narrativo e temático com o filme referencial do cinema de estrada da década de 1970, Bye Bye Brasil (1979). Ambas as histórias possuem personagem que partem do estado de origem de Diegues, Alagoas, narrando o que ele denomina de margem esquerda do São Francisco, a geografia física e humana que abrange a maior parte do nordeste e do norte do país.

No filme feito na década de 2000, o diretor reverbera uma visão amplamente otimista de nação, ao contrário dos matizes variados de Bye bye Brasil, que ora se recente pela perda da autenticidade do país popular, dos rincões distantes da cultura massiva ora olha afirmativamente para a modernidade. Mas, em ambos, mantém o seu tema onipresente desde os primeiros filmes vinculados ao Cinema Novo dos anos 1960: a valorização da cultura popular, notadamente de sua música.

O retorno de Deus

No escuro ouvimos o som de apito de trem. A estação que visualizamos , em seguida , tem uma fotografia distorcida. Taoca (), um dos protagonistas do filme, está tendo um pesadelo. Perseguido, foge da mira da espingarda de seu desafeto, a quem havia aplicado um golpe de estelionato. É acordado por seu pai. Eles estão numa casa ao lado de uma borracharia à beira de estrada, numa região litorânea.

A cena de abertura, da estação, relembra tanto o início de Central do Brasil (Walter Salles, 1997), conexão que remeto ao plano simbólico comum – estações de trem, metáfora das passagens marcantes da vida –, como a O Auto da Compadecida (Guel Arraes, 2000). Neste caso, com a construção de personagem e de gênero ficcional vinculada a este num mesmo registro – o tom cômico, acentuado pela picardia , do qual cabe destacar a semelhança da

26 Entrevista registrada na parte de extras do DVD Deus é Brasileiro . 226 encenação de tom fantasioso do trecho em que o gaiato João Grilo tenta se livrar da condenação de Cristo, apoiado por Nossa Senhora.

Taoca , de Deus é Brasileiro , criado originalmente pelo escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, e João Grilo , de O Auto da Compadecida , desenhado a partir do livro de Ariano Suassuna, possuem a mesma verve malandra, essa rica tradição literária nacional do pícaro, que os aproxima de Macunaíma , de Mario de Andrade, cuja obra foi adaptada ao cinema , nos anos 60 , por Joaquim Pedro de Andrade.

Deus (Antônio Fagundes) aparece para Taoca , pela primeira vez , na foz do rio São Francisco, quando este vaga, a esmo, numa canoa, fugido de seu desafeto . O pai supremo reflete sério e irônico sobre a humanidade, mas sem revelar ainda sua intenção de visita à Terra. Conta-lhe apenas que procura pela cidade ribeira e alagoana de Penedo, situada ali próxima, à margem esquerda 27 .

Os dois personagens, Deus e Taoca, demarcam, na trama ficcional, o cômico, narrativa contrastada pela terceira protagonista , Madá (Paloma Duarte), cujo encontro com os outros dois ocorre num velório em Penedo. Os gestos e a fala de Madá , em todo o longa-metragem , aninham-se no melodrama. Tem-se , assim , uma história de viagem colorida ou suavizada pelas narrativas que são tradicionalmente de apelo ao grande público – comunicabilidade que tem sido a marca do cinema de Cacá Diegues desde os anos 1970 , como assinalado anteriormente.

O autor constrói, desse modo, um filme comercial de qualidades concentradas na cuidadosa escolha de locações e fotografia de Afonso Beato, precisa direção de atores e rica trilha sonora – Lenine, Djavan, Mestre Ambrósio, Cordel Encantado, entre outros. O seu roteiro convencional, que fica pequeno quando se leva em consideração que se trata de um diretor de enorme

27 Cacá comenta, em entrevista registrada no DVD Deus é Brasileiro , o levantamento de elementos da cultura local para produção do filme: “Eu filmei Deus, em Tocantins, Pernambuco e Alagoas. Eu estava filmando na margem esquerda do São Francisco. Então vamos fazer um filme que seja nos costumes da margem esquerda do São Francisco”. 227 experiência e cultura cinematográficas, ganha frescor com a diversidade de narrativas que ele propõe em torno do enredo central – road movie , comédia, melodrama, romance, drama documental e fantástico.

Destacam-se , ainda, a meu ver, alguns momentos de inventividade de seu texto – o roteiro foi escrito inicialmente por João Ubaldo Ribeiro e Cacá Diegues, e finalizado por este, João Emanuel Carneiro , e Renata de Almeida – quando , ao longo do filme , assistimos a cenas discretas e muito bem encenadas, de sedução e romance entre Deus e Magda, alusão ao possível caso amoroso de Cristo e Madalena.

Em Penedo, Deus conta a Taoca que está procurando por Quincas das Mulas , a quem gostaria de destinar a sua representação na Terra e, assim, tirar férias. Ao encalço deste, os outros dois protagonistas rumam em um caminhão roubado para o bairro de Brasília Teimosa, na cidade do Recife. As palafitas e a população local são filmadas numa captação realista quase documental.

Em outra cidade pequena do interior do nordeste, encravada no sertão, Deus resolve criar números de mágica, a fim de angariar dinheiro para manutenção da viagem em busca de seu assistente mundano. As imagens de rua retomam o gênero fantástico do início: um coqueiro saindo da cartola e o voo suave de Madá até o último andar de um casarão.

Depois de terem passado por Palmas , no Tocantins , pegam carona para o Jalapão, conhecido por suas dunas de areia avermelhadas. Lá encontram Quincas das Mulas, que trabalha com a educação de índios da região. Ateu convicto , nega terminantemente a Deus o convite para que seja seu representante na Terra.

De volta ao ponto original da viagem, descendo o Rio São Francisco até a sua foz, Deus resolve voltar para os seus passeios pelas galáxias e mundo celestial. Taoca enamora-se de Madá e , numa belíssima sequência final , os dois , deitados numa canoa , giram suavemente pelo rio ao som da canção 228

Melodia sentimental, música de Heitor Villa-Lobos, que foi letrada por Dora Vasconcelos, cantada de forma maviosa por Djavam.

5.1.6 O caminho das nuvens (2003)

Imagem 49 – A caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003)

Romão (Wagner Moura) é pai de cinco filhos. Tem um temperamento introspectivo e rude, acentuado pela pouca instrução e por sua condição social de miserabilidade. Mantém um sonho permanente, o qual compartilha com sua esposa Rose (Cláudia Abreu): conseguir um trabalho que possa dar conta de certo conforto a suas necessidades materiais.

Essa é a família de paraibanos que protagoniza o road movie O caminho das nuvens , de Vicente Amorim, e que segue, em bicicletas, pelas estradas do Nordeste e Sudeste, em direção ao Rio de Janeiro , buscando a realização do sonho de melhores dias. Serão cerca de 3.500 quilômetros de estrada, percorridos em seis meses.

O filme é baseado na história real de Cícero Ferreira Dias, um caminhoneiro desempregado que, junto com sua mulher e seus cinco filhos, pedala desde o estado da Paraíba até a capital carioca. Para construção do texto de ficção, o diretor e seu roteirista , David França Mendes , atravessaram cinco estados e sua pesquisa gerou também um outro rebento: o documentário 2000 nordestes , 2001 (BEZERRA, 2006).

Amorim, nascido em 1965, possui uma longa experiência cinematográfica – são pouco mais de vinte anos de carreira. Antes da realização dos filmes aqui mencionados , foi assistente de direção em 23 longas-metragens. Esteve ao 229 lado de diretores como Leon Hirszman ( Imagens do inconsciente , 1986) – com o qual se inicia na profissão na condição de estagiário –, Hector Babenco (Brincando nos campos do senhor , 1991) e Cacá Diegues ( Tieta do agreste , 1996), entre outros. Uma aproximação com essa arte estabelecida desde a sua infância:

Meu pai, Celso Amorim, embora diplomata, é mais um cinéfilo, ele é um conhecedor de cinema, tanto do ponto de vista artístico, quanto do prático. Ele foi assistente de direção de Os cafajestes, do Ruy Guerra, “ Pedreira de São Diogo ”, do Leon Hirszman; e depois foi presidente da Embrafilme . Vi quase todos os filmes do Chaplin em Super-8 em casa quando eu era criança. Até Pudovkin e Eisenstein vimos em Super-8. Conversar e pensar sobre cinema eram uma coisa natural em casa desde cedo. Meu padrinho, Arnaldo Carlo, foi um dos fundadores do Cinema Novo. Estavam sempre na casa dos meus pais o Barreto, o Glauber... Este ambiente, obviamente, foi um grande incentivo para que eu acabasse querendo fazer cinema (BEZERRA, 2006).

A família de Romão e Rose na estrada

Esse conhecimento e aprendizado no set de cinema, por parte de Vicente Amorim, estão evidenciados no apuro técnico que acompanha toda a produção final de seu primeiro longa-metragem de ficção . O filme começa num sobrevoo entre nuvens. Uma música instrumental emotiva anuncia o tom de melodrama que se reitera ao longo da narrativa. As imagens pousam num trecho de estrada, onde se lê , numa placa , a seguinte inscrição: praça no meio do mundo .

Estamos no estado da Paraíba. A família de retirantes leva poucos pertences nessa viagem ao Sudeste, realizada em quatro bicicletas. Mas, antes de aprumar o rumo ao Rio de Janeiro, eles se dirigem à cidade do padroeiro Padre Cícero, Juazeiro do Norte, no interior do Ceará, para que sejam abençoados nessa difícil missão.

Logo, em uma das sequências iniciais, Romão diz uma frase que será repetida diversas vezes ao longo do filme, ou outras de sentença próxima: “eu preciso de um emprego de 1.000 real por mês”. Por todos, a quem diz tal afirmação, é 230 recebido com um olhar incrédulo; afinal, o montante está bem acima do salário normalmente obtido por pessoas como ele, que possuem baixa escolaridade e pouco conhecimento técnico de alguma profissão.

A paisagem até Juazeiro é formada pela seca . Eles pedalam e cantam alegremente um trecho de uma canção de Roberto Carlos , Eu sou terrível . Na próxima sequência, num restaurante à beira de estrada, Rose e um dos filhos , que a acompanha ao violão , cantam mais uma canção do popular artista brasileiro , Como é grande o meu amor por você .

As canções de Roberto Carlos dão o tom de ternura que se contrasta com a aridez da paisagem do lugar e da dura condição de retirantes daquela família. Drama social e melodrama são os gêneros compartilhados intencionalmente neste filme de estrada , de Vicente Amorim, cuja conjunção de narrativas e da temática comum – miserabilidade e desestruturação familiar – lembra Central do Brasil , de Walter Salles.

Ainda antes de chegar a Juazeiro do Norte, temos uma das inúmeras cenas de conflito entre Romão e seu filho mais velho, Antônio (Ravi Lacerda). Há uma provocação mútua, o choque de temperamentos e tensões edipianas, com a investida jocosa do pai sobre a imaturidade do filho e, por outro lado, a cobrança indireta , ou, às vezes, explícita , deste pela situação de penúria em que a família se encontra.

Na cidade paraibana de São Bento, eles são recebidos pelo vereador da cidade. O político oferece emprego para Rose na oficina de redes de sua esposa. A remuneração proposta é baixa, o padrão local: após dia intenso de trabalho , ela consegue a soma de nove reais. Isso aumenta a insatisfação de Romão com o lugar, incentivando sua vontade de errar pelas estradas.

Ao chegar à cidade do padroeiro Padre Cícero, ouve-se mais uma conhecida canção de Roberto Carlos , Jesus Cristo . Diante da religiosidade da mãe e do pai, o filho Antônio põe-se a olhar tudo aquilo com ceticismo. A multidão, concentrada nas ruas estreitas, em prece, produz uma profusão de gestos e 231 sons de torpor, êxtase. O pai tenta e consegue levantar uma pesada mesa que pertenceu ao Padre Cícero e desmaia, depois, em meio ao cansaço, fome e fé 28 .

Característica comum na filmografia das décadas de 1990-2000, como já exemplificado anteriormente, entre os realizadores oriundos do Nordeste, a religião não é mais apresentada como “ópio do povo”, em sua concepção marxista em sentido lato , mas é abordada como conhecimento ou visão de mundo a ser reconhecido como verdadeiro.

De Juazeiro, eles partem , finalmente , para a capital carioca, atravessando os estados de Pernambuco e Bahia e passam pela turística cidade de Porto Seguro. Lá, são agenciados pelo personagem Panamá (Sidney Magal) , que os contrata para participarem, como dançarinos, de um pseudo-show folclórico , cuja proposta é apresentar danças indígenas autênticas da região.

O pai desiste, no meio do show, sentindo-se ridículo naquele papel, sobretudo quando é atravessado pelo olhar de censura de seu filho Antônio, que está na plateia. Este resolve ficar ali mesmo , em Porto Seguro. Após alguns contratempos, Antônio abandona o lugar e volta à estrada , alcançando a família. É recebido por sua mãe com grande emoção e com indiferença , evidentemente , por parte de Romão.

Na divisa dos estados de Espírito Santo e Rio de Janeiro, o rompimento familiar anunciado, finalmente, concretiza-se: Antônio é empregado como pedreiro numa obra, por intermédio de Romão, sob aprovação entusiasmada do filho. Pouco antes, o pai havia recusado o mesmo emprego, pois entendia que este não estava à “sua altura”. Antônio se separa definitivamente da família.

Ao chegarem à capital carioca, passam pelos bairros pobres da periferia da cidade , o que produz grande decepção, refletida no questionamento de Rose:

28 Esta encenação remete ao trecho do filme Central do Brasil (1997), de Walter Salles, que mostra a chegada à ficcional cidade de Bom Jesus, ao retratar a religião católica e a conhecida devoção dos habitantes do interior do Nordeste de modo reverencial. 232

“Isto aqui é o Rio de Janeiro?”. Foram seis meses de viagem, desde seu início na Paraíba. O emprego de mil reais não se concretiza. E eles acabam trabalhando como camelôs e cantores pedintes no Corcovado.

A televisão ligada próximo deles transmite um especial de Roberto Carlos, cantando Nas curvas de Santos 29 . Antônio assiste ao programa e relembra de sua família. Nas cenas seguintes, Romão pergunta a um visitante qualquer daquele ponto turístico carioca: “Depois daquela ponte, é ali que se vai a Brasília?”. Rose ouve e rejeita, de modo terminante, pegar de novo a estrada. Romão olha sem rumo. O filme termina ao som de Roberto Carlos, num movimento de câmera ascendente, que registra o Corcovado até atingir a altura das nuvens.

5.1.7 Lisbela e o prisioneiro (2003)

Imagem 50 - Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003)

A sessão de cinema vai começar e os figurinos e o estilo arquitetônico da sala trazem-nos a sensação de que estamos vendo um filme que transcorre em outro tempo, provavelmente na década de 1950 ou 1960. O casal de noivos, Lisbela (Débora Falabella) e Douglas (Bruno Garcia), busca o melhor lugar para ver o fictício seriado Metamorfoses da alma , feito em preto e branco.

A noiva comenta, antes de iniciar a projeção da película, que deverão assistir a “uma comédia romântica com aventura”. Nos créditos de abertura, onde

29 Em entrevista, Amorim esclarece sobre a utilização das músicas de Roberto Carlos no filme: A família na qual me inspirei para fazer o filme era fã do Roberto Carlos. Eu sou fã dele. O Roberto Carlos é um dos únicos artistas brasileiros que toca da mesma forma desde retirantes nordestinos a dondocas do Morumbi e moderninhos da zona sul – ele é parte da amálgama do Brasil. BEZERRA, Op. cit, p.21. 233 aparecem os nomes dos atores, não do filme fictício projetado e sim de Lisbela e o prisioneiro , e na continuada fala dela a respeito da descrição de personagens, vinculados ao gênero romântico, arma-se, gradualmente, uma narrativa metalinguística, que correrá paralela à trama da história contada. Uma abordagem intertextual que transcorre despretensiosa , como bem avaliou o crítico de cinema Almir Freitas (2003).

Alem disso, insere-se, nesse quadro de hibridismo narrativo e discursivo – romance, comédia e metalinguagem, conforme adaptação para cinema da peça teatral de Osman Lins, realizada pelo cineasta Guel Arraes –, a linguagem do road movie de cores, vibrando o ponto de vista otimista, conforme salienta também Freitas:

Lisbela e o Prisioneiro , de Guel Arraes, e O Caminho das Nuvens , de Vicente Amorim, são mais dois filmes que, de maneiras diversas, põem em cena esse povo que desafia interpretações. O que os aproxima é a filiação a uma corrente, cada vez mais crescente no Brasil, dos road movies otimistas, que retratam de uma maneira terna o homem comum, aquele que sonha, individualmente e de forma mais complexa que a vista nos clichês, com uma vida melhor. Nessa linhagem se inserem, notadamente, o recente sucesso de público Deus é Brasileiro , de Cacá Diegues (que ecoa um pouco o seu Bye Bye Brasil , embora esse seja um pouco datado) e, principalmente, Central do Brasil , de Walter Salles, que, mal ou bem, renovou o gênero (FREITAS, 2003)

Consagrado no meio da crítica especializada por inovar a linguagem da televisão nos anos 1980 (MACHADO, 2000), a partir de produções como o programa juvenil Armação ilimitada (1986-89) e o cômico TV Pirata (1988), Guel Arraes, nascido em 1953, em Recife, filho do ex-governador de Pernambuco Miguel Arraes, já havia estreado nas salas de cinema duas adaptações de seriados exibidos na TV Globo – da qual é dirigente de núcleo criativo – em formato de longa-metragem: O Auto da Compadecida (2000) e Caramuru – a invenção do Brasil (2001) . Lisbela e o prisioneiro é, portanto, seu primeiro projeto audiovisual feito especialmente para o cinema.

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Como ocorreu em O Auto da Compadecida , baseado na peça de Ariano Suassuna, escritor nascido na Paraíba e pernambucano por adoção, Lisbela e o prisioneiro é também um filme com roteiro adaptado de outro consagrado literato nordestino, Osman Lins, nascido na cidade de Vitória de Santo Antão, distante a 50 km do Recife. Ou seja, o autor/diretor volta às suas origens culturais, para compor sua cinematografia, criada também a partir de experiências variadas na televisão, notadamente no formato seriado.

Retomando a história do filme, no desenrolar da parte inicial, entrecruzando o enredo de Metamorfoses da alma , narram-se, também, as aventuras do protagonista Leléu (Selton Mello). Ele é um artista mambembe e dirige um colorido e velho caminhão. Em cada pequena cidade que visita, situada na região da Zona da Mata Pernambucana, Leléu investe num número artístico ou comercial diferente: vendedor do chamado sulfato ferroso calcinado , um falso estimulante sexual; ator de peça teatral na figura de Jesus Cristo; vidente/cartomante; e apresentador da atração A mulher monga (Paula Lavígne).

Lisbela pode ser definida, facilmente, como romântica e sonhadora; seus diálogos, entre o narrativo e o discurso metalinguístico, do começo ao fim, colaboram para esta caracterização. Por outro lado, Leléu mostra-se um tipo social malandro e mulherengo, e que fala sem parar – representando, em boa medida, a cultura oral do povo. Antes de aparecer na cidade de Vitória de Santo Antão, vai se envolver com várias mulheres solteiras e casadas, dentre elas a sedutora Inaura (Virgínia Cavendish), esposa do temido justiceiro Frederico Evandro (Marco Nanini).

Leléu foge, depois de ser pego em flagrante na cama de Evandro. O justiceiro por profissão vai ao encalço dele e o acha, depois de muitas tentativas, na cidade onde mora Lisbela. Ela conhece Leléu no circo onde ele passa, temporariamente, a ser o mestre sala do número A mulher monga. Logo que se conhecem, apaixonam-se avassaladoramente.

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A trilha sonora é recheada de canções de diversos estilos da MPB e será comentada em detalhes no próximo capítulo. Adianta-se que a canção de maior impacto, tratada na trilha como leitmotiv em construção , é a romântica Você não me ensinou a te esquecer (Fernando Mendes), interpretada por Caetano Veloso, tema do casal de protagonistas Leléu e Lisbela.

O romance evidentemente é condenado pelo pai da moça, chefe de polícia local, Tenente Guedes (André Mattos). Apesar de preso pela polícia, numa sequência em que é quase morto por Evandro, Leléu liberta-se com sua malandragem e a conivência do cabo Citonho (Tadeu Mello), e ruma em direção do programado casamento de Lisbela e Douglas.

Leleu veste-se de coroinha e seduz a noiva em cena hilária. Porém, ao entrar na sacristia e ver os vários presentes da noiva, cai em si , e desiste do plano de fuga, num primeiro momento. Em seguida, Lisbela, que lhe afirma sua enorme paixão, em nova investida convence-o a ficarem juntos. E, numa outra mudança de rumo da história, ele volta a ser preso.

Quando chegam à prisão, Leléu, Lisbela, Douglas e o pai encontram o matador Evandro a espera de todos. Prende o séquito na cela e leva Leléu para fora, com o objetivo de encerrar sua vida à bala, vingando, assim, sua traição. Nesse momento, retoma-se a narrativa metalinguística. Utilizando a encenação do filme Metamorfose da alma , passam-se dois finais: o irreal, em que Lisbela atira e mata Evandro, e o real, no qual vemos Inaura matando seu marido.

A penúltima sequência fecha-se no apontamento da aventura e do road movie. O casal está na estrada, em meio aos canaviais típicos da Zona da Mata Pernambucana, e conversa com a plateia para despedirem-se após um beijo de cinema . Correm os letreiros e ouve-se a música O amor é filme (João Falcão e André Moraes), cantada por Lirinha (ex-Cordel do Fogo Encantado):

O amor é filme / Eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que dá quando a gente ama / Eu sei porque eu sei muito bem como a cor da manhã fica / Da felicidade, da dúvida, dor de barriga / É drama, aventura, mentira, comédia romântica 236

[...] / É quando as emoções viram luz, e sombras e sons, movimentos / E o mundo todo vira nós dois / Dois corações bandidos / Enquanto uma canção de amor persegue o sentimento / O Zoom in dá ré e sobem os créditos / O amor é filme e Deus espectador!

Como será discutido no próximo capítulo, a trilha sonora também colabora para afirmar a variada proposta de hibridismo de linguagens de Lisbela e o Prisioneiro , característica na obra audiovisual de Guel Arraes. A aventura do texto original transpõe-se, como percebido, em filme de estrada .

Seu reconhecimento, evidentemente, não está às claras, uma vez que o gênero está muito mais conectado a um dos personagens, Leléu (ver os primeiros trinta minutos do filme), apesar do final, no qual o casal de protagonistas projeta uma vida mambembe na estrada. Por sua vez, Lisbela, conforme argumentado ao longo da análise, identifica-se com o mundo do romance. A comédia, o humor e a divertida abordagem intertextual alinham, por sua vez, toda essa mestiçagem narrativa e cultural do conjunto.

Arraes diz que desejava fazer um filme a respeito do que denomina de nordeste pop ou suburbano 30 , tendo como base as cidades da Zona da Mata Pernambucana, na confluência do mundo rural e urbano, da influência da cultura moderna trazida pela próxima metrópole Recife. Por fim, cabe ressaltar a inteligência dos diálogos e as interpretações sensíveis do casal de protagonistas. O filme emociona.

30 Ver depoimento do diretor na parte dos extras contidos na versão em DVD de Lisbela e o prisioneiro. 237

5.1.8 Diários de Motocicleta (2004)

Imagem 51 - Diários de motocicleta (Walter Salles, Argentina, EUA, Alemanha, México, Chile, Peru e França, 2005)

Estamos na cidade de Bueno Aires e no mês de janeiro de 1952. Ernesto Guevara de la Serna (Gael García Bernal) , o futuro famoso revolucionário Che Guevara, prepara-se para uma grande viagem de iniciação por diversos países da América do Sul. Sua voz, inicialmente em off , narra seu diário; em certo trecho, resume qual a estratégia principal pensada para atingir o extenso roteiro: a improvisação .

Com 23 anos, prestes a finalizar o curso de medicina, vive numa família típica de classe média. Será acompanhado, na viagem, por seu amigo, Alberto Granado (Rodrigo de la Serna), bioquímico, de 29 anos. Ao contrário do temperamento introspectivo de Ernesto, seu parceiro é bonachão, tagarela e mulherengo, ou seja, um autêntico malandro latino-americano.

O meio de transporte é uma velha moto Norton 500, pertencente a Alberto, cuja alcunha é a poderosa . Ainda em off, Ernesto sintetiza a identidade comum destes dois grandes amigos de tipos físicos e personalidades bastante distintos: “nossa inquietude e espírito sonhador”.

A meu ver, a exposição da geografia moral de Che Guevara, no filme, consolida, sem ser necessariamente o desejo maior de Walter Salles, o mito criado em torno dele, sobretudo em função de sua morte trágica. Afinal, até que ponto a recriação de seu diário revela a dimensão real do que passou com o futuro guerrilheiro nesse momento de formação?

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Mas a trajetória desse casto Guevara, como salienta o crítico de cinema José Geraldo Couto, reflete importante aspecto da história social contemporânea, denominado, por ele, de mito moderno da juventude :

Na trajetória de Ernesto Che Guevara (1928-1967) sobrepõem- se duas mitologias: a cristã e a da esquerda. Entre as muitas analogias evidentes entre Jesus Cristo e o Che, estão o martírio pelo bem da humanidade, a pureza de princípios e a ideia de missão. Assim como Jesus, Che Guevara é uma espécie de gabarito moral diante do qual medimos nossos defeitos e fraquezas .[...] A essa dupla matriz o filme “Diários de Motocicleta”, de Walter Salles (e que será apresentado amanhã no Festival de Cannes) acrescenta uma terceira: o romance de formação ou, melhor dizendo, o mito moderno da juventude. A viagem, a aventura, a busca de identidade, a descoberta do mundo - eis os elementos centrais desse mito 31 .

Esse ímpeto de transformação do estado das coisas, a inquietação juvenil diante de injustiças sociais e padrões morais e de comportamento que incendiaram a cultura na década de 1960, período da consolidação da revolução cubana e dos movimentos de contracultura, estabelecem condições de relevo da construção do ethos do jovem rebelde , que compreenderá traços de identidade de caráter planetário a partir de então, cuja narrativa road movie emerge como espelho ficcional dessa transformação.

O itinerário desenhado prevê a saída de Buenos Aires com destino à Patagônia e, a seguir, pela Cordilheira dos Andes, até Machu Picchu. De lá, atingir o leprosário de San Pablo, Amazônia, Peru – ponto principal da jornada onde os dois pretendem executar trabalhos voluntários. O fim: a península de Guajira, Venezuela.

Guevara sofre de constantes ataques de asma. Isso só aumenta as preocupações de sua mãe, Célia de la Serna (Mercedes Morán); afinal, ele enfrentará enormes mudanças climáticas ao longo do percurso. Na despedida, diante da família de Ernesto, eles saem numa moto esfumaçada e atulhada de

31 O presente autor acredita que Couto exagera em sua crítica de que o filme está sedimentado em demasia no aspecto cristão de registro, menosprezando, assim, os aspectos de esquerda e do mito da juventude, retratados também por Salles e reconhecidos como elementos definidores da narrativa pelo crítico. Ver COUTO, José Geraldo. Che Guevara de Walter Salles é herói assistencialista. Folha de S.Paulo , 18, maio 2004 .

239 malas pelas ruas de Buenos Aires, prenunciando que, de fato, a viagem será improvisada.

Efetivamente o primeiro destino é Miramar, local da fazenda onde mora a então namorada de Guevara, Chichina Ferreyra (Mía Maestro). A casa principal é enorme. Pela recepção, percebe-se claramente que a família rejeita aquele namoro. Dormindo em barracas ao redor da casa, os aventureiros partem para a região dos Andes, após quase uma semana de permanência não muito hospitaleira, porém, com uma romântica despedida.

Eles cruzam a vasta e fértil região dos pampas argentinos. Mas os tempos são difíceis. A precariedade das condições de viagem não se refere apenas à condução feita na velha Norton: levam consigo pouquíssimo dinheiro e tentam pousar e fazer refeições em casas da região, tendo, como moeda de troca, seus conhecimentos na área médica.

Nesses contatos, a lida com a sobrevivência coloca em cheque a diferença de valores morais e de temperamentos dos dois aventureiros. Após ser apresentado como médico por Granado, Che examina um fazendeiro que possui um tumor. Investido de sua característica honestidade, assinalada pelo filme, ele diz diretamente que este está com câncer e que nada pode ser feito.

Granado tenta argumentar, ardilosamente, que seu colega não tem certeza do diagnóstico e que podem tentar alguns procedimentos para resolver o problema. Che reafirma, resoluto, seu diagnóstico. O clima de mal estar é geral, pois o fazendeiro fica, de certo modo, ofendido com tal exame tão franco e não retribui com a esperada hospedagem.

De volta à estrada, Alberto recrimina Guevara duramente, criticando a sua suposta excessiva transparência e honestidade. Tais desavenças ocorrem também por outro motivo nesse momento: apesar de estar passando fome, Che não quer disponibilizar o dinheiro ganho de Chichina para outras finalidades. Granado fica transtornado.

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Atravessados os amplos campos argentinos, a paisagem muda por completo: sobem, lentamente, as montanhas que formam as cordilheiras dos Andes, inseridas na região da Patagônia. Nas partes mais altas, as intermitentes nevascas reduzem ainda mais o andamento da viagem.

As mudanças de características geográficas impõem-se como elementos visuais que colaboram para narrar o que importa: a transformação interna dos personagens. E essas duas mudanças devem também alterar a criação narrativa, estreitando, assim, o diálogo entre a ficção e o real, como comenta Walter Salles num artigo escrito para refletir sobre a genealogia do gênero road movie 32 :

Pelo fato de que road movies procuram registrar a transformação interna dos seus personagens, a maioria dos filmes que pertence a esse gênero não é sobre aquilo que pode ser verbalizado, mas sobre aquilo que deve ser sentido - sobre o invisível que complementa o visível. [...] Em filmes de estrada, um momento de silêncio é geralmente muito mais importante do que a ação mais elaborada. Depois de dirigir três filmes de estrada ("Terra Estrangeira", em colaboração com Daniela Thomas; "Central do Brasil" e "Diários de Motocicleta"), compreendi que o aspecto que melhor define essa forma narrativa talvez seja a palavra "imprevisibilidade". Não se pode e não se deve antecipar aquilo que será encontrado na estrada, mesmo que se tenha mapeado uma dezena de vezes o território a ser atravessado. Deve-se, antes de mais nada, estar em sincronicidade com a natureza. Se nevar em pleno verão, como aconteceu na Patagônia em "Diários de Motocicleta" deve-se incorporar a neve. Se chover, deve-se incorporar a chuva.

Ao atingir Bariloche, Che tem um grave ataque de asma depois de nadar num lago gelado; entrara ali em busca de um pato selvagem morto a tiros por Granado. É acometido de febres intensas e sua recuperação demora alguns dias. No retorno à empreitada, dirigem-se à fronteira entre a Argentina e o Chile, trafegando a barco num belíssimo lago.

Vencido esse trecho difícil, a próxima parada é a litorânea e ensolarada cidade de Valparaíso, no Chile. No posto do correio, ambos conseguem retirar dinheiro

32 Ver SALLES, Walter. Anotações sobre road movies. New York Times Syndicate. New York, 19 nov. 2007. Disponível em: < http://cinema.uol.com.br/ultnot/2007/11/19/road_movie.jhtm >. Acesso em: 10 jan. 2008. 241 enviado por suas famílias e Che recebe uma carta de Chichina. Sua reação de contrariedade antevê o motivo.

No Chile, ambos são retratados num jornal como ilustres médicos argentinos a cumprir uma jornada heróica pelo continente e gozam de certa notoriedade. Deslocando-se na direção norte do país, começam a ter contato com a América Latina profunda , distante da realidade da então próspera e cosmopolita cidade de Buenos Aires.

Numa das cidadelas de passagem, o quase médico formado, Guevara, atende uma urgência: uma senhora idosa e pobre do local passa muito mal. Apesar de constatar que esta não sobreviverá à doença, ele a trata com muita ternura e receita-lhe um remédio paliativo. As cenas e as falas em off do diário vão dando conta do olhar social que se amplia, à medida que eles avançam nas regiões mais pobres do continente americano.

Em dois episódios vemos, também, que Guevara vai se recuperando da separação amorosa e torna-se um rapaz menos sério e introspectivo. Numa pequena cidade, são bem recebidos por um mecânico do local que se prontifica a cuidar da moto sem cobrança, pois vira a reportagem em que ambos aparecem como médicos famosos. Che tenta seduzir sua mulher durante o baile em que vão se divertir à noite. O fim de tudo é uma saída atrapalhada do local, onde o marido, em estado de bebedeira, acompanha o grupo que afugenta os dois forasteiros.

Em outra cena de sedução, os amigos encontram duas jovens chilenas que entram em um bar e restaurante de outro povoado da região. Com ajuda de Granado, ao contrário do que ocorrera em outras ocasiões, Che blefa com desenvoltura também e conseguem ganhar bebida e comida gratuita, assumindo os personagens de “ilustres médicos argentinos”.

Mas, nessa cidade, recebem uma má notícia: a moto de Granado não tem mais condições de ser pilotada e servirá apenas para desmanche. A solução é continuar a pé, pegando carona. Estão próximos do deserto de Atacama, norte 242 do Chile. Novamente a paisagem muda, como também se transforma a consciência social dos viajantes.

Apesar da aridez do solo, a terra mais abaixo é rica de minérios e também plena de problemas sociais. Na noite da chegada, conhecem um casal de mineiros declaradamente comunistas que lhes contam sobre as agruras do trabalho pesado que executam sob remuneração mínima.

Na manhã seguinte, eles acompanham o casal a um local de recrutamento de mão de obra. Che discute com o capataz e adverte-o da brutalidade do tratamento com os mineiros que acabara de contratar. É ameaçado de expulsão, mas, mesmo assim, joga uma pedra no caminhão, quando o capataz se retira do local.

A aridez do cenário modifica-se com a entrada deles no Peru e com a subida, novamente, pelas cordilheiras dos Andes, até chegar a Machu Picchu. No caminho, encontram alguns agricultores de origem indígena que foram expulsos de suas terras por latifundiários.

Na antiga capital inca, Ernesto reflete sobre a riqueza cultural dessa civilização diante de sua monumental arquitetura e questiona como seria a América sem a invasão dos espanhóis. Em Cuzco, faz contatos com os miseráveis da região, representados pela população de origem ameríndia.

De lá, o destino é Lima, ao encontro do Dr. Hugo Pesce, chefe do programa de tratamento de lepra do Peru. A aproximação é feita previamente por Granado, a partir de Buenos Aires. Homem culto e de esquerda, Dr. Hugo passa para Che um livro do revolucionário José Carlos Mariátegui, fundador do partido comunista daquele país. Alberto recebe proposta de trabalho na Colômbia e resolve aceitar somente após ambos terem concluído o itinerário previamente planejado.

No caminho para o leprosário de San Pablo, Walter Salles insere, nesse trecho do filme, o que fará ainda no final, uma montagem-painel de grupos da 243 população pobre da região, de caráter multirracial, cujas cenas em preto e branco, quase sem movimento, envolvidas por trilha sonora instrumental, lembram a fotografia humanista de Sebastião Salgado.

A mudança narrativa desta sequência cria uma digressão de imagens e sons que condensam o universo social ao qual Che deverá tributar um projeto coletivo de transformação radical, oito anos depois, em Cuba, e que passa a ser familiar a partir dessa viagem de iniciação.

A colônia do leprosário de San Pablo possui 600 pacientes e está localizada às margens do Amazonas. O rio separa duas partes desse centro médico: de um lado, os doentes em início de tratamento, e, do outro, aqueles com lepra mais desenvolvida. O centro é administrado por uma equipe médica dotada pelo poder público do Peru e por membros de uma congregação religiosa católica.

Che e Granado criam uma relação de amizade íntima com esses doentes mais afetados pela lepra, o que gera certos momentos de ciúmes por parte das religiosas, que se sentem ameaçadas pela possível quebra de poder pautada na disciplina dura com seus pacientes. O primeiro atrito vem do fato de que os dois se negam a usar luvas no contato com os leprosos. Em outro, rejeitam frequentar missas aos domingos, obrigatórias para quem quer almoçar no dia.

Porém, a intensa dedicação dos jovens acaba por diluir tais desavenças. Na despedida, passadas três semanas, Guevara ganha uma animada festa para comemorar seu aniversário de 24 anos. Lá estão todos, médicos, enfermeiros e religiosas, celebrando ao som do mambo.

Em certo momento da festa, ele faz um discurso em que salienta seu desejo de ver uma “América Unida”, do México à Argentina. Profundamente emocionado, Che lembra os doentes do “outro lado do rio” e nada corajosamente até chegar à margem oposta, no limite de suas forças.

O filme finaliza com a separação de Che e Granado na Colômbia. Eles estão em Caracas, no dia 26 de julho de 1952, sete meses depois do início da 244 viagem em Buenos Aires. Che retorna de avião. Granado – real e idoso – acena para seu amigo. E novamente a montagem-painel da população pobre latino-americana de caráter multirracial movimenta sua mensagem com os tipos humanos que mudaram a vida de Guevara.

5.1.9 Cinema, aspirinas e urubus (2005)

Imagem 52 – Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005)

Trata-se do longa-metragem de estreia de Marcelo Gomes, que nasceu no Recife em 1965. Aqui temos mais um filme de estrada, dirigido por jovens pernambucanos, que procura retratar o sertão nordestino com uma exposição sociocultural diferenciada, na qual elementos de história de vida se misturam com a verve crítica dos autores, reinventando, imageticamente, essa região mítica da filmografia brasileira, explorada tanto pelos filmes comerciais de cangaço , que se proliferam principalmente nos anos 1950-7033 , como também pelo Cinema Novo dos anos 1960, do qual se destacam, como referências permanentes, Vidas secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e Deus e o diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha.

Esta narração afetiva do sertão lembra outro filme produzido recentemente pelo estreante diretor cearense, José Araújo, O sertão das memórias (1997). O longa-metragem mistura o real e a ficção (os protagonistas são os próprios pais do diretor, Antero e Maria), num enredo que retrata a volta do diretor à sua cidade de origem, Miraíma, no interior do estado.

33 Ver MIRANDA, Luis Felipe. Cinema e cangaço – história. In: CAETANO, Maria do Rosário Caetano (Org.). Cangaço: o nordestern no cinema brasileiro. São Paulo, Avatar, 2005. p. 93- 110. 245

A religiosidade da população local filmada por Araújo ganha uma leitura de proposição etnográfica e distancia-se da concepção política de conotação ideológica marxista, comumente refletida nos filmes do Cinema Novo , que lhe atribui o significado exclusivo de alienação . Oricchio (2003, p.130-31) discute essa conflituosa relação entre religião e política e o peculiar tratamento ao tema efetuado pelo diretor cearense:

Não se surpreende que a função religiosa configure a essência deste filme todo particular e constitua a terceira lâmina deste tríptico imaginário. Mas não porque Araújo busque na transcendência uma saída que não vê pela ação política. Não há escapismo e nem mesmo aquela conhecida figura da alienação nesta opção pelo espiritual que permeia todo espaço de O sertão das memórias . O artista vê esta relação do sertanejo com o misticismo como algo intrínseco à sua condição [...] (ORICCHIO, 2003, p.130-31) .

Essa abordagem, que busca uma nova leitura do sertão , realizada por estes três jovens cineastas oriundos do Nordeste, que iniciaram sua carreira em longa-metragem nos anos 1990 (Lírio Ferreira e José Araújo) e 2000 (Marcelo Gomes), explica-se , em boa medida , em função da condição de naturalidade destes, abarcando experiências de vida de vínculos estreitos com essa região que marca a geografia e a cultura dos seus estados de origem 34 . Por outro lado, temos também uma visão política diferenciada do marxismo revolucionário que caracterizou o Cinema Novo . As estradas que cruzam o sertão nordestino nestes filmes dão passagem a personagens que buscam uma nova identidade marcadamente de caráter individual .

O diretor do road movie Cinema, aspirinas e urubus, premiado como melhor filme da Mostra Internacional de Cinema de 1995, Marcelo Gomes, nasceu no Recife em 1964. Como seu conterrâneo Lírio Ferreira, desenvolveu uma carreira focada na produção de curtas e documentários que certamente influenciam o modo de ver o cinema e sua profissão:

Fui estudar comunicação quando morava em Recife, porque era o curso mais próximo de cinema. Na mesma época, fundei um

34 Araújo nasceu em Miraíma, Ceará em 1952; Gomes e Ferreira, no Recife, Pernambuco, respectivamente em 1964 e 1965. Ver ALMEIDA e OLIVEIRA. Op. cit. 246

cineclube por lá. Tinha ansiedade pelo cinema. Quando acabou a faculdade, ganhei uma bolsa para estudar cinema na Inglaterra. Quando voltei, abri uma produtora de curtas, a Parabólica Brasil. Depois eu vim para São Paulo fazer documentários para a TV e fiquei preparando este projeto. No meio tempo, fui trabalhar no roteiro de "Madame Satã" [ dirigido pelo cearense Karim Aïnouz] e voltei para o Recife para rodar o filme ( KLINGER, 2005) .

Gomes conta, ainda nessa entrevista, que a história do filme nasceu dez anos antes de sua produção final, quando seu tio-avô , Ranulpho, lhe contou que vendia aspirinas e exibia filmes no sertão nordestino, na década de 1940. Na ficção, o diretor reelabora este mote do enredo em conjunto com Paulo Caldas (codiretor do primeiro filme de Ferreira, Baile perfumado ) e Karim Aïnouz, seu produtor associado, adicionando um personagem alemão que fica com o papel de vendedor de aspirinas no roteiro final.

A viagem de Johann e Ranulpho pelo sertão

Cinema, aspirinas e urubus desenrola-se no ano de 1942, à época da Segunda Guerra Mundial e do governo Getúlio Vargas, pelas estradas do árido interior do nordeste, situado de forma ficcional no sertão de Pernambuco , e narra o encontro dos protagonistas , Johann (Peter Ketnath), caixeiro viajante alemão, e Ranulpho (João Miguel), retirante dessa terra das secas à procura da melhor rota que o leve à próspera cidade do Rio de Janeiro, então capital do país.

O filme inicia numa sequência em que a luz está totalmente estourada: o branco luminoso invade por completo a tela , ao som de Serra da boa esperança , de Lamartine Babo, cantada por Francisco Alves. Enxerga-se , apenas no lado direito e superior , o contorno de um rosto cercado de outros traços inacabados. Lentamente a canção lírica embala o acerto de foco e luz que descobre um homem barbudo refletido no retrovisor.

No lado esquerdo e na parte inferior, temos a sensação de que o som contribui para que surja , aos poucos , a silhueta de galhos que se misturam à intensa alvura do lugar. Por alguns segundos, a paisagem aparenta, como num sonho, o acúmulo sutil de neve em queda. Mas a vegetação que aparece depois , de 247 formas nítidas , encerra o mistério: estamos numa estrada cortando a caatinga por meio de um caminhão dirigido pelo alemão Johann.

O veículo serve de apoio à comercialização de aspirinas e transporta também equipamentos de projeção de cinema para divulgação desse produto. Johann conhece Ranulpho em uma das diversas caronas cedidas aos moradores do local.

Desse encontro nasce uma relação de amizade , que se desperta pelo desvendamento de alteridades, de conflitos e proximidades, de afetos e culturas, em que o sertão é narrado como cenário externo e interno , conforme comenta o diretor Marcelo Gomes sobre a escolha do ambiente de locação:

O sertão foi eleito o cenário por se prestar bem para fazer o contraponto com o momento do filme, que marca a chegada da industrialização, e também por minha ligação afetiva com a região, quis retratá-lo com o impacto registrado na minha memória de criança – um sertão onde a luminosidade do dia “cega” a vista e as noites são escuras como o breu, sem vestígio de energia elétrica, fazendo com que a luz do cinema, na película, tenha este mesmo poder de “cegar ” (LACERDA, 2005) .

Logo após a sequência inicial do filme, no momento em que Johann viaja ainda sozinho pela caatinga, ouve-se , em certo trecho , o som do repórter Esso , conhecido programa de jornalismo transmitido pela rádio Nacional , que informa que, no dia 18 de agosto de 1942, o Brasil estava oficialmente entrando na guerra, ao lado de outros países aliados, contra a Alemanha.

Em seguida, acompanha-se o primeiro retirante pedindo carona que a película nos faz conhecer. Taciturno , ele sai às pressas do caminhão , pouco depois , para atirar em algo. Desconfiado , Johann segue em frente e pede ajuda a outros transeuntes, para que o orientem sobre a direção correta da cidade de seu destino ali: Triunfo, sertão de Pernambuco. Os diversos atores que vão compondo a geografia humana do filme demonstram ser da própria localidade, intenção documental do diretor, reforçada pela captação realista do lugar de locação. 248

Os constantes enquadramentos do rosto de Johann e daqueles que o acompanham na viagem , como Ranulpho , lembram os planos de Gosto de cereja (1997), do diretor iraniano Abbas Kiarostami. Numa perspectiva semelhante à de Gomes, Kiorostami filma a gente de sua terra em sintonia com os ensinamentos do neorrealismo italiano dos anos 1940-50, a utilização de atores amadores e o desejo de construir um cinema humanista. Mas o cinema desses diretores expressa, ainda, um intenso e delicado lirismo pessoal que não desconsidera a poesia brotando deste cotidiano.

Ranulpho é introduzido no filme no caminho de Triunfo. Ele pergunta para o alemão sobre o lugar de onde este está vindo. E Johann responde que iniciou sua viagem três meses atrás , na cidade do Rio de Janeiro. O retirante nordestino contra-argumenta que é justamente para lá que pretende ir.

Após algumas conversas, Johann questiona o temperamento de Ranulpho: “você é sempre assim , áspero?” O som do rádio é permanente em toda a viagem. A comunicação midiática produzida na cidade grande do sudeste vai tecendo o imaginário de uma nação cuja população é majoritariamente rural.

Ranulpho questiona o comerciante alemão a respeito do modo como ele pretende convencer “este povo atrasado” a comprar o novo remédio. A resposta vem depois que ele lhe mostra a projeção cinematográfica de cenas da cidade de São Paulo e da propaganda de aspirinas da Bayer numa sala de cinema montada de improviso. Mais uma vez a modernidade é suscitada no filme, em contraste ao ambiente arcaico.

As vendas são um sucesso e Ranulpho torna-se seu ajudante, o que o faz adiar sua viagem ao Rio de Janeiro. Mas uma notícia do programa repórter Esso altera por completo os acontecimentos: o governo brasileiro decreta guerra à Alemanha. A empresa Bayer , entre outras empresas daquele país , está sob intervenção federal a partir daquele momento.

Johann fica transtornado, revela sua posição pacifista e decide ir à Amazônia, cujo governo local procura angariar mão de obra barata nos confins do sertão 249 nordestino. Largam tudo, o caminhão de “cinema e aspirinas”, e dirigem-se a uma estação de trem com destino a Fortaleza.

A estação de trem está cercada de retirantes e urubus. Ranulpho auxilia Johann a despistar a vigília dos capatazes do local, uma vez que, agora, é um estrangeiro foragido. Este entrega ao seu companheiro nordestino as chaves do caminhão. O alemão consegue subir no trem sem ser notado e Ranulpho parte alegre na paisagem intensamente luminosa da caatinga até desaparecer na brancura plena que finaliza Cinema, aspirinas e urubus.

5.1.10 Árido movie (2005)

Imagem 53 – Árido movie (Lírio Ferreira, 2005)

Os personagens dos filmes de ficção de Lírio Ferreira estão sempre em trânsito: circulando entre a paisagem litorânea do Recife e o ambiente árido do sertão, o moderno e o arcaico, o popular e a cultura de massa, o regional e o planetário. Estrada , música e água são os elementos simbólicos privilegiados em suas narrativas e trafegam pelas ambiguidades da questão da identidade cultural dos dias de hoje.

Em 1996, Lírio lança seu primeiro longa-metragem, Baile perfumado , realizado em codireção com Paulo Caldas. Ambos frequentaram o curso de jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco, onde conheceram a produção dos cineastas pernambucanos que os antecederam (anos 1970), responsáveis pela realização de 150 filmes em formato super-8, e participaram ativamente da chamada primavera dos curtas , importante fase da filmografia nacional criada para esse formato durante a década de 1980 e início de 1990 (NAGIB, 2002).

250

Dez anos depois, Ferreira consegue estrear seu segundo longa-metragem no circuito exibidor nacional, desta vez, sem dividir a autoria na direção, Árido movie (2006) . O filme é um retrato contemporâneo da sociedade pernambucana e confirma a tendência de seu cinema de ficção, já frontalmente colocada em Baile perfumado, de abordar temas regionais do estado de origem e, ao mesmo tempo, salientar os traços sociais híbridos , contraditórios dessa cultura, sobretudo decorrentes da questão da modernidade que emerge numa sociedade marcadamente tradicional:

Tanto eu quanto o Paulo – que somos oriundos da cultura popular pernambucana, que engloba uma diversidade muito grande --, querendo ou não, acabamos influenciados por tudo isso, música, artes plásticas. Na cultura pernambucana, há uma base sólida interagindo com as coisas modernas, contemporâneas, que existem não só no Brasil, mas no mundo. Este diálogo, esse modo de cruzar o regional e o moderno resultou em Baile Perfumado, que reflete um pouco a realidade que se está vivendo hoje (NAGIB, 2002, p.238).

Este primeiro longa-metragem de Lírio Ferreira retrata a vida do jovem libanês, Benjamin Abrahão (Duda Mamberti), radicado no nordeste, que realizou a proeza de filmar o cangaceiro Lampião (Luís Carlos Vasconcelos) e seu bando na década de 1930. Amigo íntimo do padre Cícero (Jofre Soares), acreditava que esse registro de imagens do temido cangaceiro pudesse mudar por completo sua situação financeira de mascate.

O filme leva-nos a conhecer essa engenhosa aventura do estrangeiro de origem libanesa, desde a fase preparatória, no Recife, onde Abrahão consegue dinheiro emprestado para a compra da câmera de filmagem e inicia seu percurso itinerante pelos difíceis caminhos do sertão nordestino, durante o qual trava contato direto com a rede de poder dos coronéis da região, até localizar o famoso cangaceiro e convencê-lo de seu projeto.

Em 2007, Lírio Ferreira lança, no mercado, seu terceiro longa-metragem, o documentário Cartola – música para os olhos , que tem codireção de Hilton Lacerda. Finaliza, em 2008, outro documentário, O homem que engarrafava nuvens , sobre a vida e a obra do compositor, advogado e deputado federal, Humberto Teixeira, também conhecido por ser o autor de clássicos da música 251 popular em companhia de Luis Gonzaga, o rei do baião , entre eles, Asa branca. Temáticas de retrato histórico, documental, que denotam a forte ligação do diretor com a tradição cultural brasileira, intencionalidade que marca também a representação social do filme de estrada Árido movie.

A trajetória de Jonas

O segundo longa-metragem do diretor pernambucano conta a história de vida de Jonas (Guilherme Weber), o personagem principal de Árido movie (2006). Nascido no fictício município de Rocha (nome criado em homenagem a Glauber Rocha) 35 , terra natal da família de seu pai Lázaro (Paulo César Pereio), após a separação conjugal deste, vai morar com a mãe Stela (Renata Sorrah) no Recife. No início de sua fase adulta, muda-se para São Paulo, onde trabalha como apresentador de previsões do tempo num canal de televisão.

Na abertura do filme, Jonas aparece preparando-se para entrar no ar. Seu rosto está totalmente fora de foco. De acordo com a montagem de criação do paralelismo temporal, assistimos, em seguida, à encenação de festa, realizada em um bar à beira de estrada. Seu pai está tentando seduzir a jovem Wedja (Suyane Moreira), garçonete do local.

O elo perdido de ligação entre pai e filho, ainda desconhecido pelo espectador, afrouxado pelo tempo e distância, encontra uma simetria de sentido nesse trecho: a identidade atual de Jonas, representada na imagem sem definição, que será retomada durante sua aparição no programa de televisão, e o universo familiar e social de infância esquecido. A crítica ao meio de comunicação de massa desenha-se indiretamente e será reiterada em alguns momentos do filme.

Lázaro leva Wedja até o hotel da cidade. Está completamente bêbado. O irmão da jovem, Jurandir (Luiz Carlos Vasconcelos), desafeto daquele, fica sabendo do fato e vai ao seu encalço, levando consigo uma arma. Lázaro é

35 Ver BEZERRA, Júlio. Pernambuco Pop. Revista de Cinema , São Paulo, n. 64, p. 28-30, mar. 2006. 252 assassinado, após discussão, diante de Wedja e da atendente do estabelecimento.

Filmagem em sobrevoo da cidade do Recife. Lentamente a imensidão da água do mar vai ao encontro da terra continental. O tom azul esverdeado preenche toda a tela. Do mar para os rios, ilhas, mangues e a terra firme. O mar invade a cidade, com seu cheiro e permanente fertilidade. O mar projeta-se imaginariamente sobre o sertão, sobre Rocha, invertendo os termos da proposição dialética e, em diverso apontamento político e social que o emblemático trecho final de Deus e o diabo na terra do sol , de Glauber, propôs, na década de 1960: o mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar.

Obrigado a voltar a Rocha, por causa do assassinato do seu pai, Jonas inicia uma longa viagem de retorno às origens (paralelamente, esta situação ocorre com o cineasta Lírio Ferreira, tendo em vista os ambientes selecionados de locação 36 ), passando pela capital pernambucana, onde reencontra sua mãe e três colegas de escola – Vera (Marina Lima), Falcão (Gustavo Falcão) e Bob (Selton Mello) – e seguindo pelas estradas que cortam as amplas paisagens da região da caatinga, filmadas no vale do Catimbau, próximo ao município de Buíque (PE), acompanhado, posteriormente, pelo trio de amigos.

A caminho de Rocha, viagem feita inicialmente por ônibus, conhece, numa paragem, Soledad (Giulia Gam), documentarista que lhe oferece carona. Antes de se dirigir à cidade, ela passa em Deserto Feliz (nome do filme de Paulo Caldas, codiretor de Baile perfumado ), lugarejo onde habita certo agricultor que consegue encontrar água por meio de forquilha e de sua clarividência.

Durante o percurso, ela diz a Jonas que pretende fazer um documentário que possa dar conta do “discurso mítico e político da água; uma leitura sobre o embate da falta d´água”. Por sua vez, ele desabafa suas expectativas e angústias motivadas pela viagem inesperada, afirmando que vê com distância todo aquele lugar, mas “não se considera um estranho neste mundo.”

36 BEZERRA , op. cit. 253

De Deserto Feliz , o destino é Rocha . Um dos pneus fura perto da cidade e eles conhecem, acidentalmente, o bar onde esteve seu pai antes da morte e o amigo de seu assassino: Zé Elétrico (José Dumont). Dono da oficina e do posto, ele possui, ao lado, o bar, cujo atendimento é feito por Wedja.

A sequência que narra a partida de Jonas daquele posto testemunha o desencontro dele com a viagem dos amigos de infância: a trupe – Falcão, Bob e Vera– chega logo após, num opala vermelho e conversível. Desde o Recife, a caracterização desses personagens caminha pelo cômico e ironia. Usuários de maconha, são retratados em diversas e longas cenas, desde o Recife, no preparo e consumo da droga. O diálogo dos três, sobretudo de Bob, é pontuado por gírias e deboche. Permanecem no bar, desde o fim da tarde, bebendo, ouvindo música e dançando numa alegria gaiata, quase adolescente (ao longo da noite, seu amigo deverá aparecer no local), e adormecem por lá.

Em Rocha, Jonas é acolhido por sua avó, dona Carmo (Maria de Jesus Bacarelli), que está decidida a convencê-lo de que deve vingar a morte de seu pai, lavando, assim, a honra da tradicional e poderosa família da região (pedido feito a ele no dia seguinte). Terminado o longo velório, todos o aguardam há horas. Jonas acompanha o enterro, parecendo pouco abalado emocionalmente pela perda, mas perplexo pela aproximação daquela gente de sua distante terra natal.

À noite, Jonas, acompanhado de Soledad, reencontra os colegas de escola do Recife, no bar de Zé Elétrico, e fica amigo do proprietário. Como o assassino de seu pai, Jurandir, e sua irmã, Wedja, ele é mestiço, de origem indígena, branca e negra. Jonas desconhece que Zé Elétrico está acobertando, ali próximo, num esconderijo na parte montanhosa do município, o autor do crime.

No café da manhã, depois de se ter colocado refratário ao intento de sua avó, Carmo, que lhe entrega uma arma, Jonas sai atordoado e volta ao bar. Jurandir leva-o às montanhas e faz com que ele conheça pormenores da geografia, história e cultura dos arredores. Após ter preparado certo chá, essa incursão é efetuada, em boa parte do tempo, sob efeito de ervas alucinógenas. 254

Esse momento do filme faz alusão à matriz moderna do road movie , Sem destino , do norte-americano Dennis Ropper. O clímax dramático do filme também é registrado em planos e fotografia que mimetizam a alteração de sentidos e consciência causada pelo consumo de entorpecentes.

Paralelamente à incursão de Jonas à terra profunda (o retorno psicológico ao território de origem e de sua identidade individual), Soledad mergulha no imaginário místico da água do profeta Seu Velho (José Celso Martinez Corrêa). Ela o encontra na Fazenda Riacho Seco. Lá é recebido por seu assistente, na vida real, o jovem poeta e músico pernambucano Lirinha. Seu Velho, de longas barbas brancas, diz que é filho direto do pai da terra e seu mensageiro e conta à Soledad, com base em narrativa de estrutura mitológica, sobre o nascimento do mundo que, segundo ele, ocorreu ali mesmo, no Vale do Rocha. E explica, ainda, a origem da água mimosa , líquido de efeitos milagrosos, conforme interpretação compartilhada pelos moradores da região.

Com essas longas falas de Jurandir e Seu Velho, temos aí o discurso político e místico/religioso sobre a terra e a água, cuja conjunção dos elementos e abordagens marca não só o filme de Ferreira, mas outros filmes de estrada a serem analisados adiante.

Após volta atrapalhada, ao Recife, do trio cômico do filme, que se perdera na caatinga em busca de plantação de maconha, e, agora, retorna perseguido pelo capataz e por assistentes da família de Jonas, e também após o lento e delirante retorno, a pé, do protagonista pelas terras da região, o filme faz um grande corte temporal e espacial. Pouco antes, o filme informa o assassinato de Jurandir pelos capangas de sua família

Estamos de volta à cidade de São Paulo. Dois jovens, numa conversa tresloucada sobre o mundo de Íon – nosso endereço do amanhã – descem as escadas de acesso subterrâneo de movimentada via (locação feita na rua da Consolação, em frente ao cine Belas Artes ).

255

Acompanhando os jovens, o filme nos coloca no meio de uma vernissagem que comemora a vídeo-instalação de Soledad. Entre modelos vivos, televisões, areia, baldes, etc., vê-se a inscrição “ excesso de informação, falta d´água”. Na última fala de Árido movie , Soledad pergunta a Jonas: “o que ele está fazendo?”. “Não sei, mas, quando ele acabar, alguma coisa vai acontecer...”

Resgatando elementos de análise etnográfica ainda não comentados, pode-se apontar que, tanto em Árido movie (2006) como no primeiro longa-metragem, Baile perfumado (1996), a música elaborada pela geração pernambucana , conhecida como manguebeat , durante os anos 1990, cujo componente mais eloquente foi o cantor e compositor Chico Science, é fundamental para o entendimento do universo cultural, social e geracional em que se cria o imaginário fílmico de Lírio Ferreira.

Com Árido movie (2006), a metáfora água traduz, em parte, a situação de escassez dessa substância líquida essencial encontrada na caatinga nordestina, instalando, assim, uma crítica direta às relações de poder que dizem respeito a seu acesso, mas também apreende uma leitura sobre o manancial da diversidade cultural e étnica da região.

Vale aqui retomar dois conceitos fundamentais para entendimento de contexto de Árido movie , e, por extensão, da cultura contemporânea, alinhavada particularmente no Brasil, apoiando, assim, a explicitação dos significados da reiterada figura água e do conflituoso contexto da identidade cultural dos dias de hoje: culturas híbridas ou hibridismo, conceito sistematizado por Néstor García Canclini (1990), e modernidade líquida , discussão central dos últimos livros de Zygmunt Bauman (2001-8), para tratar da emergente sociedade global.

Nesse sentido, podemos notar uma transição na significação da imagem água que está presente nos dois filmes e que acompanha a crítica do cineasta ao seu território de origem e aos tempos atuais, criando um rico painel de representatividade social: da materialidade visual de fertilidade, excesso e 256 fluidez ( Baile perfumado , 1996) para as imagens de essencialidade, transformação e poder ( Árido Movie , 2006).

Como foi mencionado sobre os dois longas-metragens de ficção de Lírio Ferreira, tanto as referências da história e das matrizes populares do seu território de origem – Recife/Pernambuco – como a música e o cinema jovem internacional expressam uma pertença a valores sociais e culturais heterogêneos, resultando, assim, numa fluidez permanente desses valores que formam a identidade de contexto de seu autor.

Mas esse movimento fluido da identidade , notadamente da cultura contemporânea brasileira, abarca também conflitos sociais e políticos entre as esferas do local, do nacional e do mundial, essa articulação complexa de tradições e modernidades da realidade latino-americana, discutida no conceito hibridismo , de Canclini, como, evidentemente, na crítica negativa sustentada em modernidade líquida, de Bauman.

São conflitos que, a meu ver, foram evidenciados e criticados negativamente, de modo mais incisivo, em Árido movie (2006), em comparação com o filme de estreia de Lírio Ferreira, diga-se de passagem, lançado no mercado dez anos antes. Esse fato pode sinalizar uma maior maturidade pessoal e reflexiva do diretor, mas também pode acolher o movimento de ideias de revisão da recepção tão imediata da onda liberal conservadora que atravessou o período de realização destes longas-metragens – anos 1990-2000, ao qual o meio acadêmico, a mídia impressa e outros setores de formação de opinião se realinham numa posição de maior questionamento quanto a resultados sociais regressivos do processo da globalização em pleno andamento – concentração de renda, desmantelamento de redes de proteção e assistência, imperialismo/hegemonia cultural, etc.

257

5.1.11 O céu de Suely (2006)

Imagem 54 - O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006)

A estrada, em O céu de Suely , está presente, visualmente, em todo o filme: nas cenas iniciais, em que somos apresentados à protagonista Hermilla (Hermilla Guedes – os personagens têm o mesmo nome dos atores); em seu retorno à cidade de Iguatu, sertão do Ceará, sua terra natal; durante sua estadia na cidade, onde, em diversas sequências, é vista nos entroncamentos rodoviários circunscritos ao limite urbano, em passagens sobre a linha férrea que cruza a cidade ou em passeios pelos arredores; e no desfecho, com a cena similar à sua chegada, vista de dentro do ônibus em retirada, cujo destino projeta-se bem longe dali.

Uma primeira leitura da história de Hermilla, criada pelo diretor cearense Karim Aïnouz, talvez não favoreça o reconhecimento do gênero filme de estrada – o longa transcorre o tempo todo no município de origem da personagem, porém existem outros elementos narrativos que dialogam intensamente com o gênero. Sua iconografia ostensiva à imagem da estrada nos vários momentos mencionados acima, encenando, simbolicamente, a crise de identidade da personagem, advinda do retorno ao lar, que se mostra de fato um lugar estrangeiro, acaba implicando numa enunciação de seu drama pessoal, que pode ser sintetizado na situação de pertença inscrita na transitoriedade. No transcorrer da história de Hermilla/Suely podemos encontrar, pelo menos, uma das claves de reconhecimento do road movie : a função formadora do deslocamento.

Adentrando pouco mais nessa história, ficamos sabendo que a protagonista é uma moça com pouco mais de vinte anos, que retorna à cidade cearense de 258

Iguatu com seu filho pequeno, depois de ter passado dois anos na capital paulistana. Inicialmente ela fica na casa da avó (Zezita Matos) , que mora com sua tia. Aguarda o marido Mateus , que conhecemos logo nas primeiras cenas (eles são vistos abraçados ao som da sentimental versão de Everything I own , Tudo que eu tenho , cantada por Diana). O retorno é justificado pela dificuldade em manter-se, financeiramente, na grande cidade.

O esperado marido não chega, apesar de ter anunciado falsamente essa viagem numa das ligações telefônicas que mantém com Hermilla. A partir dali, ela tenta retomar sua vida na própria Iguatu, empregando-se num posto de gasolina e restabelecendo contato com o antigo namorado João (João Miguel). Mas a insatisfação com a nova vida é grande, por isso ela leva adiante a ideia de sua amiga, a prostituta Georgina ( Georgina Castro), de rifar seu próprio seu corpo para um “programa”, inventando a alcunha de Suely, pois, com o dinheiro obtido, poderia comprar passagens de ônibus para longe e iniciar vida nova.

A narrativa da vida de Hermilla, seu céu de sonhos e o ambiente social do sertão luminoso e festivo são filmados de modo a incorporar também os silêncios e vazios que tanto a geografia como a vida interior da personagem ilustram. E é nesse pulso lento e íntimo que somos aproximados da gramática cinematográfica do cearense Karim Aïnouz, que estreou em longa-metragem com Madame Satã (2002), produção esta fotografada primorosamente por Walter de Carvalho, o mesmo deste segundo filme.

Aïnouz é formado em arquitetura e urbanismo pela Universidade de Brasília; tem mestrado em história do cinema pela Universidade de Nova York. Trabalhou nos EUA como assistente de montagem e direção em vários longas. Foi um dos corroteiristas de Abril despedaçado , de Walter Salles , e participou , como já dito anteriormente , do roteiro de Cinema, Aspirinas e Urubus , de Marcelo Gomes. Lançou no ano passado o road movie Viajo porque preciso, volto porque te amo (2009), em codireção com esse diretor pernambucano.

O realizador informa, em entrevista, que desejou recriar, em O céu de Suely, um ambiente social distante do retrato normalmente idealizado da cultura 259 popular sertaneja retida no registro estático do autêntico e da plasticidade cultural mínima:

O que me interessou de verdade é a circularidade da migração contemporânea. As distâncias são menores, e quando eu viajei pelo sertão vi que tem muita gente que já morou em São Paulo, vão e voltam, como se não tivessem mais casa, como se não pudessem mais ter. Eu queria redesenhar a narrativa não do filho pródigo, mas da pessoa que vai embora. As pessoas se desadequam. É o imigrante contemporâneo que está em curso [...] Outra coisa que me interessava é como você consegue falar de uma classe que não é a hegemônica, que é a classe subalterna mesmo do Brasil, e trata isso sem falar só da questão econômica. É engraçado: a mulher da Variety , quando viu o filme, não entendia porque a Hermilla queria ir embora se estava tudo tão bem ali. É como se você olhasse para determinada camada populacional, que possui os bens materiais, e entendesse que aquilo fosse suficiente. Quando na realidade, porra, não é suficiente. O filme tenta ver onde reside o sonho numa camada social na qual não é muito o caso da pessoa ter sonhos (HESSEL, 2006).

Como no caso dos outros dois jovens diretores nordestinos retratados – Lírio Ferreira e Marcelo Gomes –, Karim Aïnouz filma o sertão com um resultado que se distancia da imagem produzida pelo Cinema Novo, no qual o foco nas condições de miserabilidade produzidas pelas diferenças de classe subtrai qualquer outra leitura das relações de sociabilidades vindas das camadas baixas que não seja a da consciência política perante a dominação sistêmica, o que , certamente , projetou o desejo real muito mais de grupos pertencentes à classe média intelectual e politizada dos anos 1960, exemplificada pelos próprios realizadores dessa filmografia, do que das camadas sociais retratadas.

Evidentemente estamos em outro momento histórico e com outra realidade econômica, social e cultural do ponto de vista mundial e local. O traço pobreza é ainda preponderante nesta parte interiorana do nordeste. O filme certamente registra tal condição sem nenhuma tentativa de encobri-la. Mas , como já anunciava Diegues em Bye bye do Brasil , no final da década de 1970, a vida sociocultural do país está em larga transformação, não permitindo leituras monocromáticas sobre essa realidade.

260

5.2 À escuta dos sons e da poesia do lugar: as trilhas sonoras da filmografia brasileira road movie

[...] Qualquer um de nós tem em casa discos e fitas em que se combinam música clássica e jazz, folclore, tango e salsa, incluindo compositores como Piazzola, Caetano Veloso, Rubén Blades, que fundiram esses gêneros cruzando em suas obras tradições cultas e populares ( Culturas híbridas , GARCÍA CANCLINI, 2000, p. 18).

[...] E talvez em nenhum outro país da América Latina como o Brasil a música tenha permitido expressar de modo tão forte a conexão secreta que liga o ethos integrador com pathos , o universo de sentir [...] ( Dos meios às mediações , MARTÍN- BARBERO, 1997, p. 238)

O som em movimento pós-Embrafilme

Para realizar esta analise das trilhas sonoras dos filmes de estrada realizados ao longo dos anos 1990 e 2000, é necessário considerar alguns apontamentos iniciais sobre o conceito de trilha sonora em cinema e contextualizar aspectos tecnológicos e socioculturais que dizem respeito à evolução das condições técnicas de produção e recepção do som na filmografia brasileira do período recente.

Além disso, merece ser comentada a importância da representativa simbólica da música popular nessas trilhas, especialmente no formato canção, o que denota a forte identificação social, por parte da sociedade brasileira, com essa produção cultural, repercutindo de modo especial para a construção do imaginário nacional moderno 37 . Vale, enfim, detalhar a metodologia de análise centrada a partir do ponto de vista de uma sociologia e antropologia do corpus de pesquisa de base audiovisual.

37 A música popular nativa, comparativamente à produção realizada fora do país, continua hegemônica no meio audiovisual brasileiro – televisão e cinema. Segundo o relatório anual da ABPD - Associação Brasileira dos Produtores de Discos, intitulado Mercado Brasileiro de Música - 2009, do total das vendas de áudio (em unidades) deste ano, 66,4% das vendas corresponderam a produtos nacionais, 30,8% foram representados por produtos internacionais e 2,8% ficou com a venda de música clássica. Este patamar de consumo do produto nacional, em torno de 2/3, manteve-se ao longo da década de 2000, conforme dados disponíveis da referida entidade. 261

Por convenção estabelecida na área do cinema, a trilha sonora, também denominada de banda sonora, abrange, conforme a boa síntese teórica elaborada pela pesquisadora Márcia Carvalho:

[...] música, efeito sonoro (sons reconhecíveis e irreconhecíveis, ou ruídos) e voz (falas e narrações). A trilha sonora, portanto, diz respeito aos códigos de composição sonora, ou em outras palavras, aos agenciamentos sintagmáticos dos elementos auditivos entre si. As músicas, os efeitos sonoros, e as vozes intervêm simultaneamente com a imagem visual, e é essa simultaneidade que os integram à linguagem cinematográfica (CARVALHO, 2007, p.2 38 ).

Apesar da importância central da magia da imagem para celebrar e referendar a linguagem do cinema, a narrativa cinematográfica só se completa, interativamente, na composição da banda sonora, que inclui as falas e narrações, como aborda Carvalho. A recepção de cinema diz respeito, portanto, ao ato sensorial e ritualístico de ver e ouvir um filme. No Brasil, dada a condição econômica subdesenvolvida que acompanha a evolução da nossa filmografia nacional, o cuidado e toda intervenção sonora de modo moderno e profissional (captadores, gravadores, sonoplastas, editores e mixadores, montador, diretor de som e o produtor de trilha) sempre esteve muito aquém dos moldes industriais de Hollywood.

Hernani Heffener (2000), conservador da Cinemateca do MAM, diz que as condições de som, desde a qualidade das cópias à reprodução nas salas de exibição, têm gerado reações iradas de públicos dos mais variados no Brasil. Ainda segundo o autor, a partir do uso do sistema de gravação e reprodução dolby stéreo na filmografia nacional, desde a película Lili, a estrela do crime (Lui Faria, 1988) e da renovação do parque exibidor, nos anos 1990 (ver capítulo 1 da presente tese a este respeito), alcançamos um patamar de qualidade do aparato sonoro que deverá colaborar consideravelmente para o impacto da recepção do Cinema da Retomada.

38 A respeito desta definição e abrangência da linguagem da trilha sonora cinematográfica ver, também, BERCHAMANS (2006) e MÁXIMO (2003). 262

Se o som da filmografia Embrafilme era analógico , o Novo Cinema Brasileiro das últimas duas décadas é caracterizado pelo registro e reprodução em som digital (CARVALHO, 2009). Concomitante a essa melhoria das condições técnicas de produção e exibição do cinema, ressaltando aqui a parte sonora, vê-se surgir uma nova geração de produtores de trilha sonora, como André Abujamra, Antonio Pinto, Jaques Morelenbaum, Chico Neves, Berna Ceppas, Kamal Kassin e André Moraes, entre outros.

Antenados com a tendência, na música popular brasileira, de incorporação parcial de programação eletrônica nos arranjos, naquele período, observa-se que boa parte da nova geração de produtores de trilhas sonoras apoia-se nesse procedimento para a montagem da banda sonora produzida. No entanto, diga-se de passagem, esse uso do material eletrônico não é totalmente novidade para o cinema brasileiro contemporâneo, uma vez que a geração de produtores de trilhas de cinema, que despontou nos anos 1980, já o fazia por meio de outros recursos musicais, com a utilização dos sintetizadores Roland, Yamanha e Korg (RAMOS L, 2000).

Seguindo a tradição das trilhas sonoras no Brasil, apesar da presença da música incidental de base orquestral própria, em muitos filmes produzidos no período, o uso da canção popular é bastante recorrente nessa filmografia (MÁXIMO, 2003; RAMOS L., 2000). Segundo Márcia Carvalho (2009), temos uma celebração, sobretudo, da MPB tradicional, de consagrados cancionistas, nessa produção pós-Embrafilme, apesar de novos compositores e músicos que também são requisitados.

BERCHAMANS (2006) salienta a valorização da música original para cinema – instrumental e de canções especialmente compostas – por parte dos novos realizadores. Sinal da tônica emergente de maior cuidado técnico que marca a nova filmografia – fotografia, produção de arte, roteiro, etc. –, sintonizando-se com a produção mundial de cinema do período (a despeito do ocaso do cinema de invenção/experimental em todos os cantos).

263

As trilhas sonoras de estrada

Para dar conta da proposta, foi elaborada uma sequência de análises desses filmes, trançando um território ficcional próprio, com base nas tramas e geografias imaginárias de cada película: iniciamos com as viagens de trajetórias menores até os caminhos mais extensos que atravessam as fronteiras do espaço físico nacional.

Esta narrativa recriada começa pelos longas-metragens dos diretores pernambucanos Lírio Ferreira ( Árido Movie ), Marcelo Gomes ( Cinemas aspirinas e urubus ), Guel Arraes ( Lisbela e o prisioneiro ) e do cearense Karim Aïnouz ( O céu de Suely ), que percorrem ficcionalmente o próprio estado de origem, fixando-se na abordagem de representação social de sua porção interiorana, o mítico sertão e o agreste nordestino , e também da região da zona da mata, limítrofe entre aquela e a linha litorânea, cujas análises foram agrupadas na parte Viagem ao centro do sertão e outras paragens .

Em seguida, cruzamos diversos estados que compõem as regiões Nordeste e Centro-Oeste por meio do filme Deus é brasileiro, do alagoano Cacá Diegues, iniciando a parte As duas margens do São Francisco . Com A caminho das nuvens (Vicente Amorim), partimos da Paraíba até chegarmos à região Sudeste, à cidade do Rio de Janeiro. Dessa capital, voltamos para o Nordeste, com Central do Brasil (Walter Salles), e, de novo transitando pelo território fabulado pelos realizadores, estamos, ao seu término, no sertão de Pernambuco.

Na terceira e última parte – Fronteiras – pegamos carona primeiramente no filme de Beto Brant, Os matadores , e atravessamos os limites do território nacional com o Paraguai. No primeiro filme de Salles, A Grande Arte, a trama diegética permite viajarmos do Rio de Janeiro até a Bolívia, e, ao fim, do Brasil até a África.

Com o segundo filme do referido diretor, Terra Estrangeira , realizado em codireção com Daniela Thomas, alçamos voo a partir de São Paulo e 264 atravessamos o mar Atlântico até Portugal, e, de lá, utilizamos as estradas desse país até atingirmos as terras da Espanha. A partir de Diários de motocicleta , também de Walter Salles, adentramos em países latino- americanos próximos, acompanhando a primeira grande viagem do jovem Ernesto Guevara, da Argentina à Venezuela.

A seguir, quadro sintético dos filmes a serem analisados com o registro dos respectivos produtores musicais:

Viagem ao centro do sertão e outras paragens

Filmes de Estrada Diretor Produtor Musical Cinema, aspirinas e urubus (2005) Marcelo Gomes Tomás Alves Souza Árido Movie (2006) Lírio Ferreira Otto; Berna Ceppas; Kamal Kassin; O céu de Suely (2006) Karim Aïnouz Berna Ceppas; Kamal Kassin Lisbela e o prisioneiro (2003) Guel Arraes João Falcão; André Moraes

As duas margens do São Francisco

Filmes de Estrada Diretor Produtor Musical Chico Neves; Hermano Viana; Deus é brasileiro (2003) Cacá Diegues Sérgio Mekler O caminho das nuvens (2003) Vicente Amorim André Abujamra Central do Brasil (1998) Walter Salles Antonio Pinto; Jacque Morelenbaum

Fronteiras

Filmes de Estrada Diretor Produtor Musical A grande arte (1991) Walter Salles Jurgen Kneiper; Todd Boekelheide Terra estrangeira (1995) Walter Salles Paulo Tatit; José Miguel Wisnik Os matadores (1997) Beto Brant André Abujamra Diários de motocicleta (2005) Walter Salles Gustavo Santaolalla

Do ponto de vista analítico, privilegiou-se a abordagem das trilhas das canções . Esse material mostrou-se estratégico para compor uma análise mais focada e consistente em relação aos dois recortes fundamentais da tese: identidade cultural e mitologia moderna . Ressalta-se, novamente, que a abordagem que se faz do corpus de pesquisa da tese, a filmografia brasileira de gênero de estrada da década de 1990/2000, parte de uma leitura sociológica e antropológica do material audiovisual, apesar da utilização de uma literatura multidisciplinar em toda a tese. 265

A relação completa de canções e peças instrumentais utilizadas nos filmes consta no anexo. A base de informação é o banco de dados da Cinemateca Brasileira acrescido do registro de créditos dos filmes, em versão DVD ou VHS, disponível no acervo do presente pesquisador. O conjunto panorâmico é amplo – mais de 150 peças musicais.

Apesar de todas terem sido pesquisadas com base na literatura musical disponível (bibliografia e webgrafia), para evitar que o conjunto de análises – nível descritivo e interpretativo – torne o resultado muito extenso, selecionou-se parte do conjunto das peças para avaliação por critério de importância narrativa do material musical para o filme como um todo ou do entendimento da significação social e cultural que o gênero cinematográfico road movie adquire nessa filmografia específica, buscando, assim, uma reflexão da dimensão histórica do espaço social no qual esse cinema é produzido. Boa leitura ou viagem!

266

Viagem ao centro do sertão e outras paragens

5.2.1 Caminhos cruzados

Serra da boa esperança / Esperança que encerra / No coração do Brasil / Um punhado de terra / No coração de quem vai / No coração de que vem / Serra da boa esperança / Meu último bem / Parto levando saudades / Saudades deixando / Murchas, caídas na serra / Bem perto de Deus / Oh, minha serra / Eis a hora do adeus / Vou-me embora / Deixo a luz do olhar / No teu luar / Adeus! [...] (BABO, Lamartine. Serra da boa esperança 39 ).

A canção de Lamartine Babo, cantada por Francisco Alves, executada pela Orchestra Vitor Brasileiro e editada em 1937, adquire, na abertura de Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), uma dupla função narrativa: constrói, em termos musicais, assim como o restante da trilha sonora, o período histórico distante contido na trama (ficcionalmente, estamos em 1942) e, ao dispor do lirismo de sua letra e da delicada linha melódica, antecipa a sensação de conflito a ser experimentada pelo espectador ao longo do filme, por meio das imagens que se sucedem – a dura realidade social da região da caatinga nordestina e o campo de embate, de visão de mundo e personalidades dos dois protagonistas.

Além de outras canções da época retratada, virada das décadas de 1930/1940, cantadas por Carmen Miranda, Linda Batista e o referido Francisco Alves 40 , conhecido como o Rei da Voz (MELLO; SEVERIANO, 2002a), a inserção, em vários momentos do filme, do programa radiofônico Repórter Esso (1941- 1968), transmitido pela Rádio Nacional, difundindo notícias da Segunda Guerra Mundial, sublinha a questão da modernidade, por meio dos retratos da influência desse meio massivo do cotidiano na vida dos moradores do tradicional e economicamente atrasado interior do nordeste da década de 1940. Reforçando esse aspecto, discretamente, aparece também o cinema, transportado no caminhão do caixeiro viajante alemão Johann (Peter Ketnath).

39 BABO, Lamartine. Serra da boa esperança . Disponível em: . Acesso em: 10 out. 2010. 40 A trilha sonora foi produzida por Tomas Alves Souza. Ver dados completos no anexo B da tese. 267

Retomando sumariamente a história ficcional, o simpático Johann conhece o taciturno Ranulpho (João Miguel), retirante daquela terra das secas , durante o trajeto dele à cidade de Triunfo, interior de Pernambuco. Ele conduz um caminhão e vende aspirinas. Para atrair o público, projeta cenas da cidade de São Paulo e da propaganda de aspirinas da Bayer numa tenda/sala de cinema montada de improviso.

Imagem 55 – Rádio Nacional - Emilinha Borba e Marlene dividem o microfone da esquerda com César de Alencar

Nessa fase histórica, o rádio significava o meio de comunicação de massa de maior amplitude social e territorial. A geração das rainhas do rádio , exemplificada, o filme, por Carmen Miranda e Linda Batista, e do Rei da Voz , Francisco Alves, ilustra o momento de crescente profissionalização que a música popular vive à época, fomentado pelo aumento do mercado fonográfico e consolidação do referido meio no Brasil. É o período que os historiadores da área chamam de Época de Ouro – 1929/30-1945 (ALBIN, 2003; MELLO; SEVERIANO, 2002a; SOUZA, 2003; TATIT, 2008) – e que coincide com a primeira e longa fase do governo Getúlio Vargas.

Dentre as principais emissoras de rádio da região sudeste desse período – Mairynk Veiga (Rio de Janeiro, 1926), Record (São Paulo, 1927), Jornal do Brasil (Rio de Janeiro, 1935) e Tupi (Rio de Janeiro, 1935) – a Nacional (1936) foi a primeira a ter alcance em praticamente todo o território do Brasil. Ela foi 268 estatizada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, em 1940, transformando-se na rádio oficial do governo brasileiro 41 .

Segundo Sérgio Augusto (1989), a Rádio Nacional representou um fator de integração e de modulação da identidade nacional à mercê da máquina de comunicação de massa e ideológica getulista, ordenado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Por outro lado, também representava um Brasil moderno e criativo, apresentando notável qualidade artística em sua programação, papel artístico, cultural e político semelhante ao que a Rede Globo exerceria no período militar de 1964-1985:

Com uma estrutura financeira e administrativa então sem paralelo no nosso meio radiofônico, pôde fazer o melhor uso possível dos seus potentes transmissores, integrando o país de norte a sul. Brasileiros de todos os quadrantes a sintonizavam a toda hora – e com imenso prazer. Beneficiada por uma equipe competente de técnicos, um naipe de artistas de imenso prestígio e uma programação de notável empatia popular, a Nacional foi na era do rádio o que a Rede Globo seria na era da televisão (AUGUSTO, 1989, p. 19).

Das ondas da Rádio Nacional, captadas no caminhão do viajante alemão Johann, de Cinema, aspirinas e urubus , ouve-se um cancioneiro moderno que brota da nascente sociedade urbano-industrial, cujas temáticas, muitas vezes, deitam raízes no mundo rural. Serra da boa esperança , música que abre o filme, constitui-se de um samba-canção (SEVERIANO E MELO, 2002, p. 159), desenvolvendo-se estilisticamente rumo aos apelos românticos do gênero, cujo extremo é a seresta. Conforme destaca Luiz Tatit (2008), a seresta é um dos muitos caminhos possíveis dessa narrativa musical – o samba – que dominou a canção brasileira durante o século XX em suas diversas variações formais. Cabe comentar que, no outro extremo, temos a vasta produção das canções de carnaval com seu andamento acelerado.

São variações do samba, ritmo que representa o primeiro gênero musical nacional (TATIT, 2008; VIANNA, 2010) e, provavelmente até hoje, a meu ver,

41 Ver A História do Rádio no Brasil. Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2010 269 frente à sua constante inserção na cultura brasileira, ao longo do século XX e começo do atual, o gênero musical de maior identificação com a narrativa do nacional , como ocorre certamente com o tango na Argentina42 .

Com essa flexibilidade de temáticas, andamento, pulsação rítmica e tratamento melódico-harmônico, o samba tornou-se:

[...] o modo de dizer predileto dos artistas da era de Getúlio Vargas, chamando a atenção de políticos, poetas, músicos eruditos, antropólogos e pensadores de modo geral. Nunca o Brasil chegara a uma expressão estética tão representativa de sua tradição e, ao mesmo tempo, tão moderna no sentido de adequação às novas tecnologias e de atendimento às demandas populares. (TATIT, 2008, p. 154).

Esse caminho cruzado entre tradição e modernidade, inerente à transformação do gênero samba na direção da ascensão do mundo urbano-industrial, em sintonia com a evolução técnica e artística do meio de comunicação de massa rádio, também encontra, no cinema, um vasto campo de produção e afirmação do gênero.

De manifestação musical típica das camadas populares, em sua origem, para sua atual condição interclasse – popular de massa –, há um longo processo de mudança de status que o gênero percorreu ao longo do século XX. Sua formação inicial está relacionada com as festas e danças dos negros escravos na Bahia do século XIX, cuja migração à cidade do Rio de Janeiro gerou as comunidades lideradas pelas chamadas “tias”, dentre elas a famosa Tia Ciata (Salvador, 1854; Rio de Janeiro, 1924), cuja casa foi frequentada pela nata da música brasileira à época, como Pixinguinha, Donga, Villa-Lobos, etc. (SOUZA, 2003; TATIT, 2008; VIANNA, 2010).

Uma outra leitura importante da Época de Ouro da MPB (1930-1945), a que a trilha sonora de Cinema, Aspirinas e Urubus faz alusão, com gravações originais da época, salientando, assim, seu exercício de construção histórica de

42 Na análise do filme - Diários de motocicleta - será aprofundada esta discussão a respeito dos gêneros musicais eletivos da narrativa do nacional, abordando o tango argentino, com o devido comentário e citação bibliográfica sobre o tema. 270 caráter mimético, contempla a rede de mediações sociais e culturais (MARTIN- BARBERO, 1997) dessa produção cultural e sua circulação midiática – rádio, cinema e imprensa – sob o contexto da construção da narrativa da nação operada ao longo do século XX no Brasil 43 .

Exemplo dessa construção da narrativa do nacional, amparada pela produção cultural massiva do período em referência, a formação moderna da comunidade imaginada de Benedict Anderson (2008), é o gênero cinema musical celebrado pelas produtoras cariocas Cinédia (1930) e Atlântida (1941- 62). Elas estabeleceram diálogo estreito e permanente com os grandes artistas do rádio, servindo de apoio à divulgação do samba ao grande público e de outros ritmos circulantes naquele momento, como choro, valsa, toada, baião, bolero.

Vicente Celestino, Francisco Alves, Orlando Silva, Carmen Miranda, Mário Reis e Dorival Caymmi, entre outros, ou aparecem nesses filmes cantando seus sucessos ou possuem emprestadas suas vozes para compor a trilha sonora; e com eles, também os atores vindos do teatro de revista, como Oscarito, Grande Otelo e Dercy Gonçalves, que se tornaram figuras emblemáticas do cinema musical do período.

Essa produção ascendente da cultura popular de massa , mediada pelo rádio e cinema, interessou, sobremaneira, a Getúlio Vargas, no seu ímpeto de fomentar uma política cultural de Estado que pudesse equilibrar o moderno com as tradições do país, favorecendo a base ideológica de seu projeto nacionalista mais amplo. As ondas da rádio Nacional, comentadas no filme Cinema, aspirinas e urubus na voz do Rei da Voz, Francisco Alves, demonstram a força da música popular nesta construção da narrativa do nacional nas décadas de 1930 e 1940, atingindo os rincões mais distantes do país.

43 Ver análise de Jesús Martín-Barbero a respeito da importância do rádio e cinema para construção da identidade nacional na América Latina durante o século XX in MARTÍN- BARBERO. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 1997. . 271

5.2.2 O luar acústico e eletrônico de Lírio Ferreira

A trilha sonora de Árido movie (1996) tem duas fontes para sua paisagem musical pop : em uma parte afluente, faz homenagem às bandas e cantores da música brasileira dos anos 1960 e 1970, ligados ao movimento jovem guarda – Renato e seus Blue Caps (Rio de Janeiro), Os Incríveis (Rio de Janeiro) e Pholhas (São Paulo) – e vincula-se aos personagens oriundos de Rocha (cidade ficcional do interior do Pernambuco).

Imagem 56 – LP Especial (Renato e seus Blue Caps, 1968; CBS).

Noutra, a música popular mais atual, vinculada ao movimento cultural pernambucano manguebeat e à nova música carioca dos anos 2000, acompanha o protagonista e o trio de amigos do Recife. A trilha sonora é assinada por Otto (ex-integrante das bandas ligadas ao referido movimento musical Nação Zumbi e Mundo Livre S/A), Pupillo (Nação Zumbi), Berna Ceppas e Kamal Kassin (estes dois são membros do conjunto de gafieira carioca Orquestra Imperial 44 ).

Os grupos musicais Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S.A, chamados pela imprensa de manguebeat , surgiram no Recife no início da

44 A Orquestra Imperial foi formada em 2002, com a proposta de ser um conjunto musical de gafieira; composta pelos cantores Rodrigo Amarante, Moreno Veloso, Nina Becker, Wilson das Neves e Thalma de Freitas, além dos músicos Berna Ceppas (teclados e ruídos), Kassin (contrabaixo e arranjos), Domenico (bateria), Felipe Pinaud (flauta), Rubinho Jacobina (teclado), Max Sette (trompete e flugelhborn), os trombonistas Bidu Cordeiro, Mauro Zacharias, Marlon Sette, os guitarristas Nelson Jacobina, Rodrigo Bartolo, Pedro Sá e os percussionistas Stephane San Juan, Bodão e Leo Monteiro, além do DJ Marlboro. Seu repertório mistura samba, choro, eletrônico, bolero e vários outros ritmos dançantes. Ver Orquestra Imperial. Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível em: < http://www.dicionariompb.com.br/orquestra-imperial/dados-artisticos>. Acesso em: 15 set. 2010. 272 década de 1990 e tornaram-se referência nacional para a música jovem, feita, a partir de então, com uma concepção de hibridismo de elementos regionais característicos de Pernambuco – embolada, maracatu, ciranda, frevo, etc. –, com gêneros marcadamente internacionais, como rock, pop e eletrônico, numa proposta de “fusão seletiva” de aspectos constituintes da tradição e da modernidade musical.

Imagem 57 – CD Afrociberdelia (Chico Science & Nação Zumbi, 1995; Chaos/Sony Music)

Em termos de reconhecimento da crítica especializada e, em certa medida, da formação de público, o sucesso de grupos como Chico Science & Nação Zumbi e Mundo Livre S.A. extrapolou a cena musical e repercutiu em outras esferas da produção artística e cultural da cidade em que vivia, então, o diretor de Árido movie , Lírio Ferreira:

[...] As pessoas que moravam em Recife estavam sentindo uma necessidade muito grande de renovar a cultura da cidade. Quando surgiu o manguebeat, elas abraçaram a nossa causa. A gente ganhou amigos. Os produtores de vídeo, o pessoal da fotografia, das artes plásticas, do teatro foram aceitando a ideia, trabalhando conosco, e isto permitiu que o movimento estourasse fora da cidade (Depoimento de Chico Science ao jornal Folha de S. Paulo, 1996, apud TELES, 2000, p.329).

O movimento possui um manifesto escrito por Fred 4, cantor, compositor e líder do grupo Mundo Livre, cuja publicação foi registrada no encarte do primeiro trabalho de Chico Science, de 1993, Da lama ao caos . O autor apresenta o movimento como um conjunto de ideias ou uma cooperativa cultural que propunha levar a cultura de Pernambuco para o mundo. Justifica o uso do nome mangue como metáfora do ecossistema, considerado um dos mais ricos 273 do planeta, pelo número de espécies e, por extensão, por contemplar um caráter múltiplo de organização.

Essa trama de relações sociais que se estabelece entre música e cinema, na análise dos filmes de Lírio Ferreira, tende a refletir não só referências regionais, mas também o debate crítico e os anseios específicos de caráter geracional , de formação de grupo (WILLIAMS, 1980), dos produtores culturais da cidade do Recife, na década de 1990. Traz, também, um perceptível tema onipresente na produção do movimento e da filmografia desse autor: a identidade cultural .

Em Árido movie , uma combinação de identidades coletivas latentes e contraditórias é articulada entre o eixo temático juventude e a questão do embate tradição/modernidade, cuja trilha adquire uma mediação especial para tal propósito, o que se assemelha, em termos conceituais e de performance, ao articulado no primeiro longa-metragem de Lírio Ferreira, Baile perfumado (1996). Informa-se que, neste, a banda sonora foi realizada totalmente com integrantes da formação manguebeat , como Chico Science, Fred 4, Siba, Lúcio Maia e Paulo Rafael, no momento histórico auge desse movimento (TELLES, 2000).

Numa das cenas de Baile perfumado , antes de mergulharmos no sertão e seu universo social rudimentar em que se encontram Lampião e seu bando, há uma tomada bastante impressionante de imagens aéreas e grandiosas das águas do rio São Francisco e suas falésias, contornadas ao som manguebeat de Chico Science e Nação Zumbi, que evidencia a guitarra e os tambores de ritmos pernambucanos.

A passagem condensa imageticamente o encontro ou conflito entre a tradição e a modernidade, a localidade e o internacionalismo, que o filme quer realçar, da história real do estrangeiro de origem libanesa, Benjamin Abrahão, que adentra o sertão com sua câmera de filmagem em busca do famoso cangaceiro. Esse cenário torna-se metáfora de fertilidade com o registro da música manguebeat e das águas do São Francisco, que se transformam em elementos de renovação. O território árido transmuta-se em sertão líquido , como denominou 274 o crítico de cinema, Luiz Zanin Oricchio (2003:133), ao sintetizar o filme Baile perfumado .

Lírio Ferreira persegue, no filme de estrada Árido movie, o mesmo estilo pop, amparado em referencial de valorização de elementos regionais, análogo ao sustentado pelo movimento manguebeat. Nesta trilha sonora, o cantor e compositor Otto desempenha papel central, num momento em que já se firmara como autor inventivo dentro do pop nacional dos anos 1990/2000, em carreira solo, com trabalhos nos quais mistura a música eletrônica com gêneros de marcante sotaque brasileiro – emboladas, ciranda, samba, etc. – em discos bem recebidos pela crítica (ABRAMO, 2002), a exemplo de Samba pra Burro (1998) e Condom Black (2001).

A mencionada vertente de sertão líquido, o retrato do nordeste contemporâneo, a tentativa de entender a mobilidade cultural e social da região entranhando-se em suas contradições, podem ser observados no enredo, imagens e trilha sonora desde as primeiras cenas de Árido movie . Após o assassinato do pai do protagonista Jonas (Guilherme Weber), no interior do Pernambuco, dominado pela sonoridade da Jovem Guarda – ouve-se Quando a cidade dorme e Se você soubesse , tocadas, ao vivo, por Renato e seus Blue Caps –, a moderna e antiga cidade do Recife é mostrada em plano aberto, filmada em sobrevoo, com imagens grandiloquentes do mar.

Paisagem sem cidade, visão de água em abundância. O mar de acentuado verde, com o uso de filtros para ampliar ainda mais a tonalidade típica da orla do local, produto do represamento de arrecifes. O mar que deseja fertilizar o sertão como diz a letra da canção Amaré ouvida neste trecho:

Quando as chuvas passaram o mar se formou / Há muito tempo que as águas baixaram / Há muito tempo que o mar secou / Há muito tempo que estou “de cara” / Há muito tempo que eu vou... /E meu sonho se realizou / O sertão virou mar / E o mar virou sertão / E o mar virou sertão... (Amaré , de OTTO; PUPILO; KASSIN, Kamal; CEPPAS, Berna)

275

A canção é tocada em paralelo ao fluxo dos créditos registrados logo na abertura. Por fim, as letras do título Árido movie fixam-se por certo tempo, ondulando sua contradição entre a mensagem verbal, que enseja com a palavra árido, e a comunicação visual totalizante do elemento líquido, significados tencionados com a justaposição do ápice da canção, que se apoia nos versos “o sertão virou mar / E o mar virou sertão / E o mar virou sertão”.

Só após esse mergulho aéreo e marítimo, sob o som de arranjo pop em estilo experimental de Amaré – música e letra amparadas nos instrumentos órgão, sintetizadores, baixo, bateria e voz –, o espectador avista o marco zero da cidade, com seu casario imponente da região do antigo porto. Em terra, Jonas é filmado num táxi dirigindo-se ao apartamento de sua mãe, situado no bairro de Boa Viagem (itinerário ficcional, pois não faz muito sentido vir do aeroporto e passar pelo centro do Recife para atingir esse bairro da zona sul do Recife).

Desse modo, pode-se dizer que as imagens, música e letra construídas sobre o elemento água, nesta primeira parte do filme, metaforizam os anseios de transformação social e estética do cineasta e do movimento de jovens produtores culturais de Pernambuco da década de 1990. Além disso, certo dado da filmografia de Lírio Ferreira, conforme registrado no capítulo 5.1, colabora para ampliar pouco mais o discutido papel simbólico e cultural que a música brasileira possui para a expressão de identidade coletiva no cinema de Lírio Ferreira, conexão essencial para sua poética narrativa, seja utilizando o universo musical pop regional contemporâneo e também o da jovem guarda , como nos dois primeiros filmes de ficção comentados acima, seja na feitura de documentários que adentram na memória nacional de sua moderna tradição musical.

Trata-se dos longas-metragens Cartola - música para os olhos (2006) e O homem que engarrafava nuvens (2009), este a respeito do renomado parceiro de Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, autor dos clássicos Asa Branca e Assum preto, entre outros. São filmes que traçam o perfil da história de vida de duas grandes estrelas ligadas ao cancioneiro do século XX de recepção nacional. E 276 são autores – Cartola e Gonzaga – que serão revisitados em filmes de estrada realizados nas décadas de 1990/2000 a serem analisados adiante.

5.2.3 Distante, tão perto

Em O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), a personagem principal, Hermila (Hermila Guedes), é apresentada ao espectador por meio de uma montagem bastante criativa entre imagens, fala e música . Primeiro somente as imagens, editadas sem incorporação de banda sonora – diálogos e trilha musical – focadas somente em Hermila , que corre alegremente num amplo terreno baldio.

Pouco depois, em contraste à comunicação silenciosa, ouve-se a terna voz em off da protagonista, contando dois acontecimentos especiais de sua vida: sua gravidez e o encontro, a promessa de felicidade selada com seu parceiro Mateus (Mateus Alves). Simultaneamente, enxerga-se o movimento afetuoso dos corpos do casal em rodopio e abraços. Retêm-se, no arranjo das imagens, os rostos de contentamento, o tom de mansidão daquele laço amoroso.

Preparada em andamento mais lento que o padrão, a cena produz a sensação de que o fluxo do tempo escapa ao cronológico e aproxima-se da desordem psicológica, da memória reavivada. Dela, revela-se uma cor especial para a existência do filme, o azul, visto na camiseta de Hermila (Hermila Guedes) e no céu luminoso, e também verbalizado pela heroína na menção ao cobertor de lã azul escuro em suas primeiras falas, confluindo, assim, uma simbologia de sonho, profundidade, inteireza, esperança.

Encerrando a sequência inaugural numa passagem sem qualquer tipo de diálogo entre atores, na dispersão do entendimento onisciente da protagonista (de Mateus, não se ouve uma só palavra), a enunciação do romance condensa-se e irrompe na versão emocionante da canção Tudo que eu tenho (Everything I Own, de David Gates; versão: Rossini Pinto, 1972) 45 , cantada por

45 A música foi lançada no disco Diana, de 1972, com direção musical de Raul Seixas. Ver discografia completa no site oficial da cantora: www.diana.co.nr/. 277

Diana. As imagens e sons funcionam como flashback para a personagem Hermila, mas também como retorno ao passado musical da região ali retratada.

Imagem 58 – LP Diana (Diana, 1972; CBS; produzido por Raul Seixas)

A carioca Diana nasceu Ana Maria Siqueira Iório e hoje se chama artisticamente Diannah. Criada no bairro de classe média Leblon, começou carreira sob influência da jovem guarda, no final dos anos 1960 (à época, sua grande referência artística foi Wanderleia). A guinada para a fase de grande sucesso de público ocorreu a partir da produção de discos feita por Raul Seixas no começo dos anos 1970 (foram 4 discos/LPs sob sua orientação artística), firmando, assim, seu estilo romântico de grande apelo popular. Casou-se, separando-se posteriormente na mesma década, com outro mito da música cafona do período: Odair José (ARAÚJO, 2010).

A comovente cena comentada de O céu de Suely , propiciada pela dramaticidade da performance de uma artista representante do cancioneiro chamado cafona ou brega dos anos 1970 46 , sustenta a perspectiva do diretor de adentrar minuciosamente no universo cultural popular massivo, que circunda o meio social da protagonista, marcado, do ponto de vista de uma análise sociológico/antropológica, por traços de hibridismo (GARCIA CANCLINI, 2000) e de mundialização da cultura (ORTIZ, 1994).

46 A respeito da música cafona/brega brasileira dos anos 1970, ver, principalmente, ARAÚJO, Paulo César. E u não sou cachorro não: música cafona e a ditadura militar . Rio de Janeiro: Record, 2010. Para entendimento do gênero tecnobrega com base no cancioneiro mais recente produzido na região norte/nordeste, vale consulta à tese de SILVA, Expedito Leandro.. D o bordel às aparelhagens: a música brega paraense e a cultura popular massiva . 2009. 237 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2009. 278

São mestiçagens culturais da contemporaneidade que foram sublinhadas intencionalmente na tessitura sonora por essa e outras músicas da trilha produzida por Berna Ceppas e Kamal Kassin. Como dito na análise do filme Árido movie , cuja produção musical dividem com Otto e Pupilo, Ceppas e Kassin são integrantes do conjunto carioca de gafieira Orquestra Imperial, que mistura , em seu repertório , samba, choro, bolero, música eletrônica e outros ritmos dançantes.

Circulando do romântico cafona dos anos 1970 aos gêneros tecnobrega e eletrônico dos anos 2000, a trilha sonora expõe conflitos, apropriações, mediações entre o popular regional/nacional e o popular mundializado/global (ou também denominado de internacional-popular por parte de Renato Ortiz - 1994). Para ele, o termo abarca traços da cultura contemporânea pós-anos 1960, mediados pela ampliação de alcance social da produção massiva em âmbito planetário, especialmente por conteúdos produzidos pelos EUA e intermediado pelas sociabilidades, ritos e símbolos de juventude – jeans, rock, fast-food, coca-cola, shopping center , etc.

Além da adaptação de Everything I own , em português, cantada por Diana , ouve-se o grupo Aviões do Forró, executando a versão, em forró eletrônico, do hit da cantora australiana Natalie Imbruglia, Torn , transformada em Blá blá blá , além de uma música incidental eletrônica minimalista do alemão Lawrence/Peter M. Kersten, Somebody told me , e outras canções regionais de Lairton e Aves de Rapina 47 , selecionadas pelo próprio diretor Aïnouz, conforme entrevista realizada para o jornal O Globo :

(...) Queria saber qual era o hit do Nordeste em julho de 2005 (época das filmagens). Tinha três músicas chicletes, mas a que tocava em todas as cidades do interior era Não vou mais chorar , do Aviões do Forró (...) É impressionante a quantidade de versões de músicas americanas transformadas em forró ou no chamado tecnobrega. Acho uma provocação pegar um hit americano e transformar em outro produto, muitas vezes com letras totalmente diferentes das originais. E por que não chamar esta música de autêntica na cultura nordestina? ( KLEINPAUL, O Globo Online , 28.11.2006).

47 Dados completos da trilha sonora em anexo. 279

Pode-se dizer, com base na perspectiva do enredo construído para a história de vida de Hermila, que a referência musical que o canto de Diana, por exemplo, atinge/funciona no filme não tem nada a ver com uma motivação irônica, que possa tocar na discussão de gosto de classe por arte, como uma intervenção em busca do kitsch , ou seja, a enunciação de elementos do gosto popular/mediano elevado ao status de apreciação de arte culta.

O mesmo pode ser dito em relação ao uso do gênero cinematográfico melodrama . A marca autoral que o jovem cineasta Karim Aïnouz vem desenvolvendo em sua pequena obra até o momento – Madame Satã (2002), O céu Suely (2006) e Viajo porque preciso, volto porque te amo (2010) 48 – está diretamente envolvida na exploração ficcional de dramas passionais, daqueles sentimentos vindos à flor da pele e que se amalgamam à marcante crise existencial que enfrentam os heróis desses filmes – Madame Satã, Hermila e José Renato, respectivamente –, sem buscar a paródia e, sim, o realismo poético , aliado ao realismo crítico. O que vemos, ressalta-se, é de grande beleza cinematográfica e fornece material para uma investigação etnográfica de farta leitura sociocultural do país em pleno século XXI, sem falar do profundo olhar humanista que enseja.

5.2.4 Pedras verdes de agreste e mar

Depois da viagem ao centro do sertão , possibilitada pelas narrativas de filmes de estrada realizados por diretores de origem nordestina, como o cearense Karim Aïnouz e os pernambucanos Lírio Ferreira e Marcelo Gomes, vamos acompanhar outro importante representante do Novo Cinema Brasileiro, Guel Arraes (Recife, 1953), em sua versão cinematográfica da peça teatral de seu conterrâneo de estado da federação, Osman Lins (1924-1978), o filme Lisbela e o prisioneiro (2003).

48 O filme foi codirigido com Marcelo Gomes. Percorre claramente as trilhas da ficção tanto do road movie como do melodrama. Não constam, nesta tese, em função do recorte temporal que foi necessário estabelecer para a definição do corpus de pesquisa – longas-metragens produzidos até 2007.

280

Relembrando o enredo, o protagonista do filme, Leléu (Selton Melo), conduz um velho caminhão de atividade econômica mambembe por pequenas cidades do interior da zona da mata pernambucana, até certa paragem, na cidade de Vitória de Santo Antão, que mudará completamente o rumo de sua vida, bem como da outra personagem principal, a romântica Lisbela (Débora Falabella).

Como já comentado no capítulo 5.1, a trama ficcional do longa-metragem foi construída no diálogo entre os gêneros road movie – além das narrativas nucleares para o desenvolvimento do enredo elaboradas no texto original – comédia e romance , para retratar o universo social e cultural dessa região nordestina, situada geograficamente entre o mar e o agreste 49 .

Lins é natural da ficcional e real Vitória de Santo Antão, cidade localizada a cerca de 50 km da capital de Pernambuco, núcleo urbano onde passa boa parte da história da peça teatral e também da adaptação para o cinema realizada por Arraes. Da peça, cujo texto foi escrito no ano de 1960, mantém- se, no filme, o tempo histórico ali retratado, dando-lhe, portanto, a feição de filme de época na nova versão . Numa região de traços sociais tipicamente tradicionais, a modernidade chega de modo especial, pelo cinema e pela música , como também fora observado em Cinema, aspirinas e urubus , com seu retrato da vida cotidiana sertaneja dos anos 1940.

Para criar um filme de época, porém mediador dos traços sociais e culturais contemporâneos, na mira da boa recepção de público (o filme é coproduzido com a empresa Globo Filmes e realizado por um diretor responsável por importante núcleo criativo da televisão), a trilha produzida pelo diretor teatral João Falcão e pelo músico André Moraes buscou sonorizar o que Guel Arraes denomina de nordeste pop ou suburbano , tendo como base as cidades da Zona da Mata Pernambucana, na confluência do mundo rural e urbano, onde se dá a influência da cultura moderna trazida pela próxima metrópole Recife.

49 Grosso modo, há três grandes divisões geográficas no Estado de Pernambuco, em função das questões geográficas – clima e topografia: a zona da mata , o agreste e o sertão . Ver Perfil dos Estados - Pernambuco. Fisiografia e recursos naturais. Banco do Nordeste. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2010.

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A canção de maior impacto, tratada na trilha como leitmotiv em construção , com a inserção de pequenos trechos da base instrumental que antecipam a parte cantada, é a romântica Você não me ensinou a te esquecer (Fernando Mendes), interpretada por Caetano Veloso, tema do casal de protagonistas Leléu e Lisbela.

Imagem 59 – LP Fernando Mendes (Fernando Mendes, 1978; EMI Music Brasil)

Sucesso comercial à época da veiculação da versão original por parte do compositor e cantor Fernando Mendes (ARAÚJO, 2010; CABRERA, 2007), em 1978, e também, quando do lançamento do filme na voz de Caetano Veloso, vinte e cinco anos depois, sua letra expõe contornos claros da veia lírica melodramática bem ao estilo deste outro representante da denominada fase ca fona da música popular brasileira dos anos 1970, como pode ser observado neste trecho da canção: “... Agora, que faço eu da vida sem você? / Você não me ensinou a te esquecer / Você só me ensinou a te querer / E te querendo eu vou tentando te encontrar / Vou me perdendo...”.

Fernando Mendes é natural da cidade de Conselheiro Pena, , e tornou-se famoso nacionalmente com a música Cadeira de rodas (1975), composta com seu parceiro José Wilson – “Sentada na porta / Em sua cadeira de rodas ficava /... Aquela menina era a felicidade / Que eu tanto esperei / Mas não tive coragem e não lhe falei...”. Entre outras músicas de sucesso de público, cabe mencionar ainda A desconhecida e Sorte tem quem acredita nela , que participou da trilha sonora da novela Duas vidas , em 1976, produzida pela TV Globo.

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Segundo Araújo (2010), isso é fato raro, uma vez que os cantores da chamada música cafona ou brega , a despeito das altas vendagens de disco ao longo da década de 1970, não frequentavam as trilhas de novela, apesar de sua presença constante em programas de televisão de auditório, como Bolinha, Chacrinha, Sílvio Santos, Raul Gil ou Barros de Alencar (CABRERA, 2007).

Em geral, Mendes e Diana ( Tudo que eu tenho ; Porque brigamos ; Estou completamente apaixonada ), assim como outros colegas cafonas/bregas de geração – Gilliard ( Uma noite de amor ), Martinha ( Eu daria a minha vida ), Waldick Soriano ( Eu não sou cachorro não ), Odair José ( Uma vida só ; Pare de tomar a pílula ) e Reginaldo Rossi ( Mon amour, meu bem, ma femme ) – são identificados pelo repertório de canções, quase exclusivamente, de forte apelo passional, por apresentarem arranjos musicais e letras de construção bastante simples e também por estarem ligados à recepção de público mais humilde, vinculado a profissões do tipo empregada doméstica, operário da construção civil, faxineiro, etc., e que foi, de certo modo, beneficiado pelo crescimento econômico do período militar (1965-1985), caracterizado pela expressiva ampliação do consumo de bens culturais, como discos ou fitas cassetes, as mídias fonográficas da época. Araújo (2010) explica que boa parte dessas estrelas de grande popularidade capilar também possui origem modesta e exerceu, antes de consolidar sua carreira profissional, também funções de trabalho de staff mais baixo.

Um conjunto de artistas que continua a desafiar os critérios estéticos da crítica musical especializada (e de seu público leitor), que tem como cânone a linha evolutiva de MPB, traçada a partir da Bossa Nova (CAMPOS, 2003) e desenvolvida à mão cheia por novos caminhos criativos pela geração da Era dos Festivais (anos 1960/1970), notabilizada pela canção crítica (NAVES, 2010), a canção de autor (TATIT, 2008), a exemplo do próprio Caetano Veloso, de Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque, Edu Lobo, João Bosco e Djavan, entre tantos outros.

Particularmente Veloso, desde a fase da tropicália, com a gravação de Coração materno (Tropicália, 1968) , de Vicente Celestino, ao cantar com Odair José, em 283

1973, num show no Maracanãzinho, o hit Pare de tomar a pílula, e com as canções de Peninha, registradas em discos distintos – Sonhos ( Cores e nomes , 1982) e Sozinho (Prenda minha , 1998) – e ainda com a música de Mendes, lançada em CD próprio com toda a trilha sonora do filme, flerta, de modo programático, estético, com o universo popular massivo de registro social diverso, conforme propõe claramente o movimento tropicalista (CALADO, 2004), ao qual ele se mantém fiel até hoje. Evidentemente, não se pode deixar de colocar que tal postura se vincula a interesses mercadológicos bem delineados.

As outras canções que compõem a banda sonora de Lisbela e o Prisioneiro , que homenageia a Jovem Guarda, a canção romântica norte-americana dos anos 1950/60 e correntes variadas da MPB, são: A dança das borboletas (Zé Ramalho e Alceu Valença), interpretada por Ramalho e ; Dama de ouro (Maciel Melo), Zéu Britto; Para o diabo os conselhos de vocês (Carlos Imperial e Neméo), Os Condenados; Espumas ao vento (Acioly Neto), Elza Soares; Oh Carol (Neil Sedaka e Howard Greenfield), Caetano Veloso e Jorge Mautner; O amor é filme (João Falcão e André Moraes), Lirinha; e Lisbela (Caetano Veloso e José Almino), executada por Los Hermanos 50 .

Comentam-se, a seguir, duas dessas canções – A dança das borboletas e O amor é filme – que ajudam a entender o significado cultural e social do nordeste pop proposto por Guel Arraes e que são materializadas pela narrativa musical, cuja proposta conceitual assemelha-se bastante a dois filmes anteriormente analisados – Árido movie e O céu de Suely.

A primeira canção citada acima foi gravada originalmente no primeiro LP do paraibano Zé Ramalho, em 1978, disco no qual se encontram músicas de seu repertório que se tornaram bastante famosas, como Avôhai , Vila do Sossego e

50 Na trilha sonora constam, ainda, as peças instrumentais: O Amor é filme , O matador e O boi , compostas p elos produtores da trilha João Falcão e André Moraes e A deusa da minha rua (Jorge Faraj e Newton Teixeira), interpretada por Geraldo Maia e Yamandú Costa. Ver Lisbela e o prisioneiro. Discos do Brasil. Natasha Records. CD. 2003. Disponível em:. Acesso em: 21 ago. 2010.

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Chão de giz. A versão realizada especialmente para o filme oferece uma dupla inusitada, juntando o cancioneiro tradicional da MPB com o rock pesado, heavy metal , do internacional Sepultura.

Imagem 60 – Zé Ramalho (Zé Ramalho, 1978; CBS)

A letra, com imagens de inventivo apanhado metafórico, característico na poesia de Zé Ramalho, cria uma paisagem psicodélica, surreal, e entrosa-se perfeitamente com o som potente da bateria de Igor Cavalera, com a guitarra de Andreas Kisser e com a voz de Derrik Green, componentes do grupo Sepultura no ano de gravação do disco (2003):

[...] As borboletas estão invadindo /Os apartamentos, cinemas e bares / Esgotos e rios e lagos e mares / Em um rodopio de arrepiar / Derrubam janelas e portas de vidro / Escadas rolantes e nas chaminés / Se sentam e pousam em meio à fumaça / De um arco-íris se sabe o que é.... / Se sabe o que é.... se sabe o que é! ( A dança das borboletas ; RAMALHO, Zé)

André de Moraes, um dos responsáveis pela trilha sonora, também participa da canção tocando guitarra e cítara. Ele já havia trabalhado com Igor Cavalera e Andreas Kisser na produção da trilha sonora para o filme de seu pai, Geraldo Moraes, No Coração dos Deuses , articulando sons tribais e rock. Esse experimentalismo musical foi testado pouco antes, em Roots (1996), considerado um dos melhores discos de rock brasileiro dos anos 1990 (RIBEIRO, 2002), o qual funde heavy metal com música indígena e afro- brasileira. Nele há a participação de uma tribo xavante e do baiano Carlinhos Brown.

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A música O amor é filme (João Falcão e André Moraes), cantada por Lirinha, apresenta um arranjo musical familiar ao estilo do grupo ao qual esteve vinculado há pouco e lhe deu visibilidade profissional – Cordel do Fogo Encantado. Natural do interior de Pernambuco, município de Arcoverde, situado a 250 km de distância do Recife, região limite entre o agreste e o sertão, o grupo surgiu em 1997, a partir de um espetáculo de teatro musical.

Com base na tradição musical sertaneja, manteve-se ativo até 2010, com a mistura de ritmos típicos do interior do estado, como o coco, o reisado, a embolada e a música dos cantadores. 51 O grupo apresentava uma proposta musical próxima à desenvolvida pelo Mestre Ambrósio, cujo expoente mais conhecido é o cantor e músico Siba, guitarrista e rabequista, conjunto que resgata as práticas culturais da Zona da Mata, como Cavalo Marinho, e pertencente ao movimento manguebeat dos anos 1990 (TELES, 2000).

São, portanto, grupos de existência recente, originários de Pernambuco e que se distanciam das influências dos gêneros rock, pop e eletrônico, marcantes em Chico Science, Nação Zumbi ou Otto, e assumem forte sotaque da tradição musical regional, de base instrumental acústica, numa linha de referenciais comum a Antonio Nóbrega ou ao conjunto Quinteto Violado, estes dois últimos tributários do movimento Armorial dos anos 1960-1970, idealizado por Ariano Suassuna 52 .

Traço musical de parte da atual produção pernambucana que pode ser lida do ponto de vista sociológico ou antropológico, como resultado de uma tendência à valorização do localismo, de elementos identitários comunitários, processo sociocultural este que vem sendo investigado por vários cientistas sociais debruçados a entender a contraditória era da globalização em curso, como Stuart Hall (1997), Zygmunt Bauman (2003) ou Manuel Castells (2002), conforme discussão detalhada levada a cabo no capítulo 3 deste trabalho.

51 Ver Cordel do fogo encantado. Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível em: < http://www.dicionariompb.com.br/cordel-do-fogo-encantado>. Acesso em: 16 nov. 2010. 52 Há uma discussão complexa a respeito da proposta estética musical Armorial, conflitante com a adotada pelo movimento manguebeat, que será levada adiante na análise do filme Central do Brasil. 286

As duas margens do São Francisco

5.2.5 Nascentes à esquerda

Além do samba, que cruza as fronteiras entre o sudeste e o nordeste por meio das ondas radiofônicas de emissoras de alto alcance, como a Rádio Nacional, outro gênero começa a despontar, nos anos 1930/1940, diversificando a matriz regional da composição de uma cultura musical popular de abrangência nacional em formação, ainda bastante vinculada ao universo social carioca (primeiras décadas do século XX) e que se insere, de modo especial, na trilha de Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2003). Trata-se do ritmo baião.

Na história de nacionalização desse ritmo típico nordestino e de outros próximos – xaxado, toada, quadrinha, aboio, xote e coco, conjunto de gêneros comumente denominados de forró – é inconteste a figura inovadora do pernambucano Luiz Gonzaga – 1912-89 (SOUZA, 2010) – como artista maior desse feito. Foi ele brilhante estilista dos gêneros sertanejos tradicionais do nordeste, notadamente o baião, cuja boa recepção de público, nos grandes centros urbanos do país, transformou-o em moda entre os anos 1946-52 (SEVERIANO E MELO, 2002a, p. 241), constituindo, assim, a sua primeira fase de construção de legitimidade de popularidade de massa e de penetração nacional. 53

Não à toa que, na trilha de Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2003), um inventário diversificado de mais de 30 canções, notadamente do nordeste e norte, há o hit A vida do viajante (“Minha vida é andar / Por esse país / Pra ver se um dia / Descanso feliz...”), de Luiz Gonzaga e Hervê Cordovil 54 , tanto interpretada, na famosa gravação de 1981, por seu filho Gonzaguinha, como na versão mais recente, por Lenine. A música foi um dos temas da série para televisão do road movie Carga pesada em sua primeira versão (1979-1981).

53 Em relação à referida moda do baião/forró dos anos 1940-1950, não se pode esquecer de mencionar outro notório artista, contemporâneo a Luiz Gonzaga, virtuoso músico do pandeiro, e com a mesma forte aproximação com a cultura e música tipicamente nordestina, especialmente o coco, o paraibano Jackson do Pandeiro – 1919-82 (FERREIRA, 2010). 54 A canção foi gravada originalmente em 1953 por Luiz Gonzaga, em disco solo. Ver site oficial do artista - www.luizluagonzaga.com.br. 287

Imagem 61 - LP Daquele jeito ... (Luiz Gonzaga; 1974; Odeon)

Com a indefectível comunicação visual de cangaceiro de suas roupas e acessórios – chapéu de couro, gibão e alpercata –, utilizados, de modo predominante, em suas apresentações a partir de meados da década de 1940, Luiz Gonzaga foi sucesso de audiência nos programas de rádio e na venda de discos logo que assumiu sua identidade sertaneja/nordestina. Além disso, ele iria, como outros artistas de sua época, utilizar do expediente do popular e crescente mercado do cinema brasileiro, notadamente da fase Atlântida (1941- 62) e Vera Cruz (1949), para afirmar sua arte.

O pernambucano Luiz Gonzaga e os paraibanos Jackson do Pandeiro e Zé do Norte (1908-1979), este último responsável por parte das canções utilizadas em O cangaceiro (1953), prêmio de melhor filme de aventura e de melhor trilha sonora no Festival de Cannes, constituem notável trio de músicos surgidos nas décadas de 1940/50, cantores e compositores ligados à tradição musical do interior do nordeste que ajudaram a tornar os gêneros típicos dessa região um legado musical , que os fez transitar do meio rural de origem para o mundo industrial das grandes cidades e, até hoje, representa uma memória musical compartilhada por muitos em todo o país.

A produção musical de Deus é brasileiro esteve a cargo de Chico Neves, Hermano Vianna e Sérgio Mekler. Para retratar as passagens do protagonista Deus , da foz do rio São Francisco até o norte do país e seu retorno ao ponto de origem, a trilha compreende nomes consagrados da chamada MPB nacional e regional, inclusive de conjuntos ou artistas com produção instrumental – 288

Djavan, Hermeto Paschoal, Quinteto Armorial, Naná Vasconcelos, Pena Branca e Xavantinho e os mencionados Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro.

Imagem 62 - LP Sua majestade, o rei do ritmo (Jackson do Pandeiro, 1954; Copacabana)

Dos mais novos – do registro mais experimental ao de forte apelo comercial –, até artistas de expressão local, a extensa trilha passa pela performance musical de Mestra Virgínia, Cordel do Fogo Encantado, Chico Science & Nação Zumbi, Laílton e seus teclados e Araketu, entre outros (ver detalhes da trilha no anexo desta tese).

Ainda dessa seleção destacam-se duas músicas de Villa Lobos: Feliz aniversário , que possui letra de Manuel Bandeira e é interpretada, ao violão, por Cláudio de Almeida, e Melodia sentimental , extraída da obra A floresta do Amazonas , com poema de Dora Vasconcellos e cantada por Djavan ( Acorda, vem ver a lua / Que dorme na noite escura / Que surge tão bela e branca; Derramando doçura; Clara chama silente; Ardendo meu sonhar ...).

Melodia sentimental encerra o filme Deus é brasileiro , compondo uma das mais bonitas cenas do longa-metragem. Como se pode observar, pela quantidade de cantores e músicos contidos na trilha, o filme tem como tema principal a celebração da cultura popular brasileira, sobretudo a produção musical , com a adição de manifestações que circulam de vertentes mais próximas ao registro erudito, bem como ao folclore e à musica pop de larga difusão midiática. Sua proposta é espelhar a diversidade cultural do país.

Cacá Diegues possui forte ligação com a música popular nacional desde os anos 1960. Foi casado com a cantora Nara Leão, com quem teve dois filhos, 289

Isabel e Francisco. Dirigiu filmes, como, por exemplo, Bye bye Brasil (1979) e Xica da Silva (1976), que estão apoiados em canções homônimas, que foram grandes sucessos de execução, compostas, respectivamente, por Chico Buarque e Roberto Menescal (cantada por Buarque) e Jorge Ben (versão do próprio). São hoje clássicos da MPB e criaram, em seus filmes, elementos de forte identificação com seu público por meio da temática da cultura popular brasileira, da questão do nacional, pauta central à fase do cinema Embrafilme (1969-1990).

O grupo que assina a trilha de Deus é brasileiro consolida trânsito profissional diverso no cinema, televisão e cena musical – Chico Neves, Sérgio Mecker e Hermano Vianna 55 –, chamando a atenção à presença do antropólogo e pesquisador musical Vianna (1960; Brasília). Notório agitador cultural dos anos 1990/2000, possui doutorado em Antropologia Social pelo Museu Nacional/ UFRJ, com a tese que se transformou num livro de referência na área, O mistério do samba (VIANNA, 1995). Foi redator de programas para a televisão, a maioria relacionada à musica popular contemporânea, como Programa legal, African pop, Além-mar, Brasil legal, Central da periferia e Música do Brasil. Segue abaixo seu interessantíssimo comentário sobre a encomenda da trilha, por parte de Diegues, cujo registro colocado aqui, embora um pouco extenso, vale a pena ser lido com atenção:

Quando Cacá Diegues conversou pela primeira vez conosco (eu, Sergio Mekler e Chico Neves) sobre a música de Deus é brasileiro , ele brincou seriamente: “gostaria de ouvir a trilha sonora da margem esquerda do rio São Francisco.” [...] Então começamos a misturar tudo o que está “do outro lado” do São Francisco. Primeiro como se fosse uma estação de rádio ideal, tocando num caminhão que trafega desgovernado pela “margem

55 Chico Neves (1960; Rio de Janeiro) é um dos mais solicitados produtores de discos no momento e iniciou sua carreira em 1978 nos estúdios da EMI-ODEON. Um dos pioneiros a utilizar o recurso eletrônico do sampler na MPB nos anos 1990. Destaca-se nesse cenário por atuar em meio a artistas novos e consagrados (Rappa, Lenine, Skank, Los Hermanos, Arnaldo Antunes, etc.). Sérgio Mekler (1963; Rio de Janeiro) registra passagens na televisão e cinema como editor de imagens, montador e produtor musical. Começou a carreira em 1994, na televisão, em Programa Legal . Editor de videoclips foi o vencedor da categoria por quatro anos seguidos (de 1995 a 1999) do prêmio de melhor edição no VMB (Video Music Brasil), promovido pelo canal MTV. Já montou diversos longas-metragens dos anos 1990/2000, inclusive o próprio filme Deus é Brasileiro , sendo assim responsável por dupla função neste – montador e produtor musical.

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esquerda”. [...] Como na cena da ponte do Recife, onde se ouve a guitarra de carimbó eletrônico de Pio Lobato, músico que mora em Belém. Mas também incluímos lado a lado, numa feira de Alagoas, Sonic Junior e Magníficos, sem respeitar aquelas outras fronteiras que teimam separar a música “de qualidade” daquilo que o povo gosta. [...] O sertão nordestino da rabeca de Siba, da percussão de Naná Vasconcelos, das flautas e do marimbau de Fernando Pintassilgo, se junta com o sertão mineiro/goiano das violas de Paulo Freire (profundo conhecedor da região do Urucuia, afluente “esquerdo” do São Francisco), através dos computadores e efeitos eletrônicos do estúdio de Chico Neves. Tudo abençoado é claro pela voz alagoana de Djavan, pela voz pernambucana de Lenine, pelo road-baião de Luís Gonzaga e pela melodia sentimentalíssima de Villa-Lobos 56 .

O que revela Vianna está na base programática, de seletividade de repertório, de todas as trilhas até aqui analisadas. A despeito de o gosto musical dos realizadores se identificar, muito provavelmente, com a MPB traçada na linha evolutiva a partir da Bossa Nova e da canção crítica , de autor , marcada na Era dos Festivais, ou com o trabalho de artistas que misturam essa tradição com experimentalismos eletrônicos ou a música pop e rock de origem norte- americana ou britânica – Orquestra Imperial, Lenine e os grupos do movimento manguebeat , por exemplo –, observa-se que os produtores das trilhas sonoras pesquisadas acabam por incorporar, também, muitas canções do universo mainstream , promotoras das grandes vendagens de discos, constituindo a lista das mais tocadas em rádios ou programas de auditório de televisão, ou seja, a música mais consumida hoje no Brasil por todas as classes sociais, apesar da riqueza da tradição musical brasileira constituída por ritmos e estilos tão diversos.

Desse mercado de consumo, consolidado durante os anos 1990-2000, período este concomitante ao aparecimento do Cinema Pós-Embrafilme, de referência norteadora para esta tese, cabe destacar gêneros musicais como o tecno- brega paraense, forró-eletrônico nordestino e axé baiano – cuja produção se vincula aos estados da federação à margem direita do rio São Francisco

56 Deus é brasileiro . Globo Filmes . Release. 6. A música do filme: à margem esquerda do São Francisco. Por Hermano Vianna. Disponível em:. Acesso em: 17 ago. 2010.

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(utilizando a criativa divisão territorial do país por parte de Cacá Diegues, desafiando a ordem cultural hegemônica do eixo Rio-São Paulo) – e também, o funk carioca, o sertanejo-pop e o pagode , vindos das terras da margem direta.

Além disso não se pode deixar de falar da música religiosa , bem como do rock e do pop , sem identificação regional de reconhecimento, que, segundo pesquisas regulares efetuadas na década de 2000, patrocinadas pela Associação Brasileira dos Produtores de Discos (ABPD), estão no rol dos gêneros musicais predominantes no consumo de discos. Desde o ano de 2001, a ABPD elabora o chamado Perfil do consumidor brasileiro de música , por meio de pesquisa de dados primários coletados pelo Instituto Franceschini de Análises de Mercado.

Os dados disponíveis da última pesquisa, em relação ao consumo informado por gêneros musicais, são de 2004. Esta é uma síntese do resultado dessa pesquisa, aqui colocada com o intuito de indicar alguns parâmetros quantitativos a respeito do consumo de música hoje no Brasil: os gêneros pop/rock atingiram 34% deste consumo de discos; sertanejo, 13%; religiosos, 13%; pagode/samba, 11%; regional/forró, 10%; MPB, 8%; axé music, 4%; infantil, 2%; clássicos e outros, 2%. Para o levantamento, foram entrevistadas cerca de 800 pessoas, em nove das principais cidades do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Curitiba, Salvador, Fortaleza, Recife e Brasília. Segundo relatório da ABPD, “essas regiões juntas representam 73% do mercado consumidor brasileiro”. 57

57 A pesquisa tem como margem de erro máxima da pesquisa 3,5%. Os dados deste relatório de 2004 revelam os resultados, comparativamente de 2001, 2002 e 2003, e demonstram que não se registram mudanças significativas nesta composição, muito menos posição de ranking. Mas a pesquisa deixa perguntas: o critério de classificação como rock/pop não invade o campo de gêneros como o sertanejo ou axé music? A provável resposta, com base nos critérios de seletividade de cada entrevistado, não leva vieses de seleção, quando se assumem padrões de classificação de um pesquisador da área ou critérios mercadológicos previamente estabelecidos? Se os percentuais indicam uma coleta de resposta única, não seria melhor utilizar respostas múltiplas? Os dados do consumo, que contemplam também a produção internacional, não distorcem essa análise, caso tenhamos somente como base o consumo da produção nacional? Também cabe refletir sobre o fato de que a pesquisa informa sobre o perfil do consumidor de CD e não daquele que ouve/consome música por meio de rádio ou televisão ou por práticas não-idiáticas. Ver Mercado Brasileiro de Música – série: 2004-2010. Associação Brasileira dos Produtores de Discos . Disponível em: < http://www.abpd.org.br/downloads.asp>. Acesso em: 15 set. 2010. 292

Retomando a análise das trilhas sonoras dos filmes de estrada pesquisados neste trabalho, nota-se, na fala de Hermano Vianna, a preocupação de mediar o gosto musical de pertença contemporânea das camadas mais baixas circundantes aos universos sociais dos protagonistas, em que se destaca a predominância de personagens oriundos ou passageiros de cidades de pequeno porte. Isso, tomando como base os cinco filmes até o presente momento analisados, envolvidos com o retrato da realidade cultural das regiões nordeste e norte.

Uma banda sonora, ou boa parte dela, que tenta refletir, portanto, o gosto musical do consumo massivo, cujas canções têm se dirigido a dois eixos estilísticos principais – os ritmos dançantes e a retórica passional –, e que se conjuga com linha histórica de tradição musical melodramática, do ponto de vista da evolução da canção brasileira moderna, desenvolvida desde o samba- canção dos anos 1940-50, sob influência do ritmo latino-americano bolero, oriundo de Cuba e consagrado mundialmente no México (BONFIL, 2002), tendo Altemar Dutra como modelo de referência mais conhecido.

Essa retórica passional é flagrante na canção cafona dos 1970, como exemplificado nas canções postas em filmes de estrada como O céu de Suely, com Tudo que eu tenho , interpretada por Diana, e Lisbela e o Prisioneiro , com Você não me ensinou a te esquecer , de Fernando Mendes e cantada por Caetano Veloso. Uma vertente ultrarromântica revitalizada dentro da produção e do consumo de massa por meio da música sertaneja 58 .

Luiz Tatit argumenta que tal manifestação passional derramada do sertanejo incorpora, em boa medida, o estilo brega dos anos 1970, e que tal manifestação comportamental, de gosto, está também em vários ritmos de difusão massiva recente, como o samba, o funk e o rock, ensejando, assim, uma condição simbólica de natureza cultural arraigada na cultura brasileira:

58 O sertanejo-pop está presente nos filmes que serão analisados adiante - C entral do Brasil, A Grande Arte, Terra Estrangeira, Os matadores. 293

O gênero [o sertanejo] recebeu nova roupagem, modernizou-se visual e tecnicamente e, sob a designação de música sertaneja, atingiu picos de venda que ultrapassam as cifras, até imbatíveis, de Roberto Carlos. A simplificação musical das composições, dos arranjos e singelezas dos temas retratados nessas composições radicalmente passionais contribuíram para criar um lugar bem definido de classificação desse velho estilo, já chamado em outros tempos de kitsch , cafona ou simplesmente romântico: o estilo brega. Se na década derradeira do século a música sertaneja encarnou o brega, outros gêneros, como samba o funk ou o rock , não mais esconderam o uso, com maior ou menor intensidade, do elemento brega, como algo já arraigado ao gosto brasileiro (TATIT, 2002, p.32).

Não obstante todos estes apontamentos sobre o registro da música de gênero dos anos 1990-2000, observa-se, também, similar ao que ocorre em trilhas sonoras de telenovelas até hoje, a incorporação de vertentes mais autorais da MPB com autores e grupos como Luiz Gonzaga, Cordel do Fogo Encantado ou Djavan – haja vista a trilha do filme Deus é brasileiro – e que adquirem importância narrativa igualmente importante, informando, assim, desníveis contrastantes de capital cultural entre os realizadores e o universo ficcional dos heróis narrados, mas que possibilitam espaços de mediação comunicativa e de criação artística, muitas vezes, bastante inventivas. 294

5.2.6 Uma trilha de nuvens, cabelos e rosas

Se você pretende saber quem eu sou Eu posso lhe dizer Entre no meu carro na estrada de Santos E você vai me conhecer Roberto Carlos e Erasmo Carlos

Estamos agora à margem direita do rio São Francisco. Revendo a história de vida de certo famoso cantor e compositor brasileiro da segunda metade do século XX e que dispõe de nada menos do que oito canções inseridas na trilha sonora de O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003), vamos nos deparar com inesquecível rito de passagem, ocorrido a partir da cidade interiorana de Cachoeiro de Itapemirim, estado do Espírito Santo.

Transportando-nos para esse lugar, imaginado em outro tempo, já sentimos no rosto os ventos inspirados pelos movimentos juvenis, vindos de longe, especialmente das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, naqueles anos que correm da segunda metade da década de 1950. Num itinerário comum, jovens artistas migram de pequenas cidades de diversos rincões do território nacional em busca de novas oportunidades e experiências de vida nas grandes cidades do sudeste.

Imagem 63 - LP Roberto Carlos em ritmo de aventura (Roberto Carlos, 1967; CBS)

No meio deles, no ano da posse do carismático e moderno presidente Juscelino Kubitschek, em 1956, está o adolescente e futuro Rei da música romântica brasileira, Roberto Carlos (1941), que sai da cidade natal e passa a morar com sua tia na cidade de Niterói, separada da então capital federal apenas pela baía da Guanabara (PILAGALLO, 2008).

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Nesse momento, a bossa nova e o cinema novo estão em formação. Mas há outro movimento, em seus primeiros passos, que marca profundamente a musica popular brasileira , este gênero artístico, de origem sociocultural, ao mesmo tempo tão híbrido e impar, tradicional e moderno, que, ao longo do século XX, se confirma como a expressão de identidade cultural maior do país, cuja ligação com a embrionária ascensão da comunicação de massa hegemônica da televisão torna-se determinante.

Ao lado do futuro Rei da música jovem e romântica, Roberto Carlos, seu parceiro de longa data, Erasmo Carlos, e Wanderléa compõem um trio de cantores de grande visibilidade midiática (rádio, televisão e cinema) e que protagoniza a chamada jovem guarda , movimento amadurecido nos anos 1960 por um rol de artistas bastante numeroso – Celly Campelo, Ronnie Von, Eduardo Araújo, Silvinha, Paulo Sérgio, Trio Esperança, Os Incríveis, Renato e Seus Blue Caps, Golden Boys, Trio Esperança e The Fevers, entre outros.

As canções de Roberto Carlos representam o primeiro eixo musical da trilha sonora do road movie O caminho das nuvens , produzida pelo músico e cantor paulista André Abujamra. As oito músicas são, em sua maioria, compostas pela famosa dupla formada com Erasmo Carlos: Como é grande o meu amor por você , Eu sou terrível e Por isso eu corro demais (lançadas no disco Roberto Carlos em ritmo de aventura ; 1967); Se você pensa (O inimitável ; 1968); As curvas da estrada de Santos (Roberto Carlos ; 1969), Jesus Cristo (Roberto Carlos ; 1970); Detalhes (Roberto Carlos ; 1971); e Amor sem limites (Amor sem limites ; 2000). 59

Essa costura da banda sonora em O caminho das nuvens , por meio do cancioneiro de Roberto Carlos, tem, no filme, várias funções narrativas. Estas, de certo modo, estão articuladas com as fases da trajetória musical do cantor e compositor: o Roberto inquieto, renovador da música popular brasileira (CAMPOS), o da jovem guarda (1960) e da fase black/soul music (na virada

59 O registro do título de disco e ano de referência das canções foi efetuado conforme consta como primeira versão lançada comercialmente em sua discografia oficial. A única canção composta somente por Roberto Carlos é Amor sem limites (2000). Disponível em: < http://robertocarlos.globo.com>. Acesso em: 29 out. 2010. 296 dos 1960/1970), e o Roberto conservador (nos dois sentidos da palavra – da preservação da tradição cultural ou religiosa, e de postura política e comportamental de acomodação, de adoção automática dos valores do establishment ), retido em sua mais estensa fase musical, dos anos 1970 para cá, construindo, assim, o mito de Rei, o mais popular cantor romântico brasileiro da segunda metade do século XX e começo do XXI.

Não se pode deixar de comentar que o Roberto criativo está presente também na fase romântica, sobretudo nos discos lançados no final da década de 1960 e durante os anos 1970. A partir de 1980, sua música fica a reboque de certo padrão estagnado de construção poética e musical, indicando uma nítida queda de qualidade artística de suas canções (PILAGALLO, 2008). A seleção dessas músicas, no filme, perpassa todas estas fases do bossa-rock-soul- bolerista-romântico Roberto Carlos, com ênfase à referida safra mais inventiva do artista.

No filme, analisando uma das funções narrativas do cancioneiro escolhido desse mais popular cantor brasileiro contemporâneo, esse lado inquieto e criativo das canções funciona como “grito de guerra” para a família de Romão e Rose, contra as inumeráveis adversidades que enfrentam no trajeto de cerca de 3.000 km de pedaladas. Exemplifica-se, a seguir, sequência em que tal função narrativa da música é saliente.

No momento de preparação da viagem da Paraíba ao Rio de Janeiro, eles partem para Juazeiro do Norte, Ceará, para tomar benção na terra do padroeiro Padre Cícero. O caminho é feito atravessando a paisagem da caatinga, mas, apesar do esforço ampliado pelo clima quente e seco, eles pedalam e cantam alegremente um trecho de uma canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos – Eu sou terrível , do disco Roberto Carlos em ritmo de aventura , de 1967 (“Eu sou terrível e é bom parar / De desse jeito me provocar / Você não sabe de onde eu venho / O que eu sou e o que tenho / Eu sou terrível, vou lhe dizer...”) 60 .Numa outra cena próxima, Rose e um dos filhos, que a acompanha

60 Roberto Carlos em ritmo de aventura , de 1967, é também título homônimo do longa- metragem dirigido por Roberto Farias . 297 ao violão , tentam levantar algum dinheiro para comida num restaurante à beira de estrada. E cantam, docemente, uma das melhores canções românticas da dupla, lançadas comercialmente no mesmo referido disco de 1967, Como é grande o meu amor por você (“... Nunca se esqueça nem um segundo / Que eu tenho o amor maior do mundo / Como é grande o meu amor por você / Mas como é grande o meu amor por você”).

Narrativamente, as canções de Roberto Carlos dão o tom de ternura e emotividade em contraste com as mazelas sociais de contexto de seus protagonistas. Do ponto de vista cinematográfico, em seu conjunto – sons, imagens e texto – observa-se que os gêneros drama social e melodrama são compartilhados, intencionalmente, neste filme de estrada de Vicente Amorim, o que torna o filme, inevitavelmente, de recepção mais popular. Uma conjunção de gêneros ficcionais de temática comum – miserabilidade e desestruturação familiar – que lembra Central do Brasil , de Walter Salles, o próximo filme a ser analisado neste capítulo.

Relembrando, o cancioneiro de Roberto Carlos se reitera, no filme, com a adição de nada menos do que oito músicas. Sustenta, portanto, uma função de apelo popular que se conjuga com a abordagem melodramática geral do enredo, mas também apreende certa condição de mediação interna que o universo social e cultural retratado aponta. Como já registrado no capítulo 5.3, o diretor Vicente Amorim afirma, em entrevista, que a família na qual ele se inspirou para fazer o filme “era fã do Roberto Carlos” ( BEZERRA, 2006, p.21). É, portanto, uma trilha sonora da família do mundo real e do público idealizado, como receptor do filme, pelos realizadores.

Apesar da importância central do cancioneiro de Roberto Carlos na banda sonora do filme O caminho das nuvens , a trilha não é constituída somente por esse fio condutor. O seu responsável, o paulista André Abujamra, compôs a música incidental instrumental – nela, a peça com o tema do leitmotiv que mistura o erudito com o popular regional –, e escolheu outras canções para marcar a contemporaneidade do filme em contraste com a viagem musical ao passado enunciada naquela. 298

Abujamra é um dos mais requisitados produtores de trilha do novo cinema brasileiro, fase pós-Embrafilme, assinando a produção musical, por exemplo, do emblemático longa-metragem do período, Carlota Joaquina, princesa do , (1995), de Carla Camurati 61 . É responsável pela trilha sonora do road movie O s matadores , de Beto Brant, (1997), a ser analisado adiante.

Imagem 64 – CD Mafaro (Antônio Abujamra, 2010; Tratore)

Multi-instrumentista, também cantor e ator, passa pela formação, em duo, com Mauricio Pereira, chamada ironicamente de Mulheres Negras, com a qual produz dois discos, em 1988 e 1990, realizando uma música cujo estilo lembra traços característicos da chamada vanguarda paulistana surgida no início da década de 1980 (o canto falado, poesia piada modernista, metalinguagem e teatralidade). Também lidera o grupo musical Karnak, banda que apresenta como “tendência básica a mistura de ritmos de várias regiões do mundo” 62 , o que reflete uma performance bastante eclética, pop e experimental em sua carreira musical.

Em sua carreira-solo, seu último e terceiro álbum individual chama-se Mafaro (2010), alegria, na língua do Zimbabwe, no qual o artista permanece fiel à perspectiva world music típica do coletivo Karnak. 63 Por meio de heterônimo, denominado de modo histriônico Fat Marley, nome do personagem que

61 Quem é quem. Trilha Sonora. André Abujamra. Filme B . Disponível em: < http://www.filmeb.com.br/quemequem/html/QEQ_profissional.php?get_cd_profissional=PE28>. Acesso em: 20 out. 2010. 62 Karnak. Dicionário Cravo Albin da música popular brasileira. Disponível em: < http://www.dicionariompb.com.br/karnak/dados-artisticos>. Acesso em: 20 out. 2010. 63 Ver FERRAZ, Marcos Grinspum. “Em novo CD, André Abujamra mistura influências e soa global sem querer ”. Folha de São Paulo . Ilustrada. 03.04.2010. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u715670.shtml>. Acesso em: 20 out. 2010. 299 interpretou no filme Durval discos , de Anna Muylaert, lançou o álbum New old world, future sun (2003), sustentando, neste, a aproximação do eletrônico com o universo do reggae. A música Shake your pocotó, assinada por Fat Marley, está inserida no filme O caminho das nuvens.

Na trilha, em relação às canções apropriadas, Abujamra juntou, ainda, além das músicas de Roberto Carlos e daquele referido heterônimo, o grupo paraibano de forró eletrônico procedente do estado de origem dos protagonistas Rose e Romão, Banda Magníficos (são tocadas seis canções desse conjunto), o conhecido grupo baiano de axé music , Banda Mel, e a formação funk carioca, Bonde do Tigrão, entre outros. Como se pode notar nessa nova relação de artistas, os grupos foram escolhidos para narrar musicalmente os lugares de paragem dos protagonistas em seu périplo da Paraíba ao Rio de Janeiro, passando pela música popular de massa da década de 2000, reforçando, assim, seu lado contemporâneo.

Segundo o produtor musical, a trilha incidental, outro elemento que compõe a banda sonora do filme, foi composta por ele na tentativa de criar uma música híbrida entre o regional e o pop/universal, onde ele perpassa também pelo universo erudito:

"Foi um trabalho de criação muito intenso. Além da partitura, fiz de tudo: toquei zabumba, baixo, guitarra, bateria. Trabalhei com sintetizadores modernos e também com "enceradeira" ou "rumble", um sintetizador de frequência mais grave. [...] Sou apaixonado por música russa desde criança - adoro Stravinsky, Prokofief. Dessa junção meio maluca, fiz um tema forte para a família em modo Lídio e resultou uma música nordestina alegre com algo russo no meio: uma música brasileira meia prokofniana, com uma parte nordestina meio erudita em uma tonalidade menor. Fiquei muito feliz com o trabalho no qual usei tudo que conheço. Acho que foi a trilha mais bonita que já fiz" 64 .

Desta banda sonora instrumental, temos o leitmotiv utilizado logo na primeira sequência do filme. Acompanhando as imagens do branco pleno até o movimento de nuvens esparsas, ouve-se o referido som de sintetizadores

64 “Notas da produção. O Caminho das nuvens”. Webcine . Disponível em: < http://www.webcine.com.br/notaspro/npcamnuv.htm >. Acesso em: 25 out. 2010.

300 numa tonalidade bastante grave, de trovoada seca, de clima etéreo. Pouco depois, ainda em meio às formações plúmbeas, a melodia, levemente triste, melancólica, é desenhada por violinos e acompanhada do violoncelo.

O motivo musical é reiterado nos trechos de passagem entre cidades, na estrada, em meio à paisagem rural e ensolarada, sonorizando o caminho da família que roda sobre bicicletas. Em outros momentos da trilha, a zabumba e o baixo trazem o clima de festa da música tradicional sertaneja do nordeste. Mas a música da sequência final, transcorrida no Rio de Janeiro, no platô do Corcovado, não é nenhuma dessas pequenas peças instrumentais compostas por André Abujamra: do cancioneiro de Roberto Carlos, ouve-se As curvas da estrada de Santos (1969). A sonoridade original resgata o ímpeto juvenil que está no olhar sonhador de Romão e também coloca certas sensações contraditórias ao espectador, de distanciamento e proximidade que a memória coletiva e a familiaridade da música nos faz experimentar. Apesar da advertência pé no chão da esposa Rose, reprimindo a ideia de se engajarem em novo projeto de viagem, desta vez a Brasília, Romão segue na estrada, pelo menos em sua imaginação, em meio a fotogramas de nuvens-sonhos que se erguem no horizonte em que se encerra ou continua o filme.

301

5.2.7 Matizes do Brasil popular

Esta viagem condutora de análise da filmografia da tese continua num ponto do itinerário que está, a princípio, longe das terras do rio São Francisco. A cidade do Rio de Janeiro é o lugar de partida. Como se pode notar, o trajeto será, geograficamente, o inverso de O caminho das nuvens ; desta vez, do sudeste em direção ao sertão nordestino. Uma situação de deslocamento que surge aos protagonistas de Central do Brasil (Walter Salles, 1998) não de modo desejado, projetado, e sim ao sabor da trama de vicissitudes, do imperativo dos acontecimentos adversos que são alinhados durante o transcorrer da história ficcional.

A mencionada linha territorial imaginária, construída na tese com base na geografia e mundo social real mediado pelos longas-metragens pesquisados nesta segunda unidade do capítulo As duas margens do rio São Francisco , será atravessada pela dupla de personagens principais – a carioca e professora aposentada Dora e o menino Josué, nascido num lugarejo do interior do nordeste, mas que mora no Rio de Janeiro quando nos é apresentado no começo do longa-metragem.

Os gêneros drama social, melodrama e policial, que contornam a trama ficcional da primeira parte, mesclam-se à narrativa de estrada da segunda parte, comunicando, cinematograficamente, o referido périplo não planejado do Rio de Janeiro até a cidade idealizada pelos realizadores – Bom Jesus de Nazaré, no interior do estado de Pernambuco. A fotografia e a trilha sonora são trabalhadas a serviço de esclarecimento da história que é contada, e a intenção dos realizadores foi criar um filme eminentemente brasileiro , como afirma o diretor Walter Salles em entrevista disponível na versão em DVD do longa- metragem.

Este filme emblemático da chamada Retomada do Cinema Brasileiro da década de 1990, que, junto de Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati, configura síntese exemplar do que estética e socialmente este ciclo de cinema representou, carrega consigo uma proposta muito clara da 302 parte de seu encenador. Central do Brasil é um dos exemplos mais contundentes, em relação aos road movies brasileiros aqui analisados, em que a questão da identidade cultural aparece como tema plenamente explicitado (a começar pelo título). Ou, nas palavras do próprio Walter Salles, a questão da busca da identidade nacional, ensejando o seu entendimento contemporâneo, do Brasil pós-período militar, em meio ao processo veloz de globalização que adentrou, ao final do século XX, na vida social do país, tema este tão caro ao diretor, especialmente na primeira fase de sua filmografia ( Terra estrangeira , de 1995, a ser analisado adiante, é outro filme em que a referida questão possui a mesma centralidade).

O mundo social retratado em Central do Brasil é eminentemente popular. Interessa ao diretor retratar o povo brasileiro com foco direto nas camadas baixas, num resgate da tradição do realismo crítico do Cinema Novo, porém sob outra perspectiva dramática frente ao mundo social e político mediado dos anos 1990, partindo da articulação político-econômica estruturalista do marxista para a investigação social com ênfase no mundo privado, das nuances psicológicas das personagens, das estruturas de sentimento (WILLIANS, 1980).

No filme, a câmera em primeiro plano, muitas vezes em close , mostra pessoas de origem bastante humilde, que se observa na simplicidade do jeito de falar ou nas marcas de sofrimento em seus rostos ou nas histórias narradas, de base ficcional ou real (cabe relembrar que Walter Salles afirma que 90% das cartas ditadas no filme são de transeuntes incorporados ao set de filmagem – ver detalhes da trama registrada na primeira parte deste quinto capítulo).

Tal mundo das camadas sociais mais baixas do país, inseridas numa condição econômica de miserabilidade, é facilmente identificado tanto nas cenas que representam o universo da periferia urbana das metrópoles , cujos componentes frequentam a famosa estação de trem do Rio de Janeiro, como nas que mostram a vida interiorana das pequenas cidades sertanejas do nordeste, mediadoras da vida rural de estrutura mais tradicional, encenadas na segunda parte do filme. 303

A trilha sonora do longa-metragem Central do Brasil foi realizada com base num conjunto de 15 (quinze) peças de música instrumental, a maioria composta pelos mesmos responsáveis pela produção musical geral, Antonio Pinto e Jacques Morelenbaum. Ao contrário dos outros longas-metragens já comentados aqui, o conjunto de canções populares com versos/letra é bem restrito.

Ao longo da película são executadas apenas quatro músicas nesse formato canção: Mama África , de Chico César, com performance do próprio; Ruínas da Babilônia (Fauzi Beydoun), cantada por Tribo de Jah ; É Deus por nó s (Fátima Leão e Alexandre Neto), interpretada por Zezé di Camargo e Luciano; e Preciso me encontrar (Candeia), ouvida na voz inesquecível de Cartola.

As canções cantadas por César – (“Mama áfrica, a minha mãe / É mãe solteira / E tem que fazer / Mamadeira todo dia / Além de trabalhar / Como empacotadeira / Nas casas Bahia...”) – e pelos irmãos Camargo – (“... Se o grito pela vida é a porta de saída / Por que calar essa voz / A esperança está aqui / Mesmo cada um por si / É Deus por nós”) – remetem ao universo musical popular massivo do período, não obstante as acentuadas diferenças de estilo autoral e receptividade de ambas. São canções que foram bastante executadas nas rádios à época em que o filme foi produzido – o ano de 1996. Com o auxílio do registro de certa criticidade de suas letras em relação às mazelas sociais, nos dois casos, crava-se também a condição de contemporaneidade da narrativa.

Preciso me encontrar , a única canção a ter a sua execução completa, encerrando o filme após ouvirmos, pela última vez, o marcante leitmotiv instrumental de autoria de Antonio Pinto, peça musical cujo nome é homônimo ao título do filme, alude ao papel histórico e social do samba , à questão da construção da identidade nacional, que merece ser discutida aqui (adiante será efetuada, também, uma análise mais detalhada da parte instrumental da trilha).

304

A canção de Candeia, gravada por Cartola em 1976, sintetiza, em sua letra, a profunda experiência do rito de passagem da heroína Dora (“Deixe-me ir/ preciso andar / Vou por aí a me encontrar...”). Em Central do Brasil, como na sequência final do filme O caminho das nuvens, com a canção As curvas da estrada de Santos (1969), temos novamente uma música de outro período histórico para marcar o clímax derradeiro do filme. Em ambos os casos, os diretores contam com uma memória musical nacional para a recepção das narrativas.

Imagem 65 – LP Cartola (Cartola, 1976; Marcus Pereira)

Se o cancioneiro de Roberto Carlos possui seu reconhecimento social e geracional inconteste, potencializada pela longeva e bem sucedida carreira, Cartola, falecido em 1980, simboliza, em Central do Brasil (1997), o resgate musical de um dos mais notáveis compositores de samba de todos os tempos. A inserção de Preciso me encontrar é, em última instância, uma homenagem por parte dos realizadores à tradição da música brasileira em seus momentos criativos mais inspirados.

A canção de Candeia foi gravada por Cartola no segundo disco inteiramente seu, produzido pela gravadora independente Marcus Pereira, em 1976. Nesse clássico álbum da MPB, temos o registro das famosas composições do autor O mundo é um moinho e As rosas não falam.

O primeiro álbum do sambista pertencente ao grupo de fundadores da Escola de Samba da Mangueira foi lançado no mercado, pelo mesmo selo musical, dois anos antes, em 1974, ano em que completou 65 anos de idade. Depois 305 desse, foram gravados mais dois discos, ainda na década de 1970, antes de sua morte em 1980.

Essa consagração tardia do famoso sambista, de longa carreira iniciada nos anos 1930, com canções gravadas por Francisco Alves, Carmem Miranda e Araci de Almeida, entre outros, é marcada por uma trajetória de vida de grandes dificuldades financeiras. Em 1956, segundo seus biógrafos, Cartola foi encontrado pelo cronista carioca Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, lavando carros no bairro de Ipanema. O jornalista foi responsável pela revitalização de sua carreira, reaproximando-o do meio musical. 65

O característico lirismo de suas letras (“as rosas não falam, simplesmente exalam o perfume que roubam de ti”), a beleza de suas elaboradas melodias, e o modo calmo e delicado de se comunicar e cantar acabaram por arranjar a aura de nobreza que representa hoje o artista. Não à toa que a interpretação de Cartola para “ Preciso me encontrar ”, de Candeia, foi escolhida para encerrar (poeticamente) o filme Central do Brasil.

Mas a parte instrumental da trilha, que compreende quinze pequenos trechos/peças musicais, a maior parte delas composta por Antonio Pinto e Jacques Morelenbaum, tem uma função especial para narrar o filme – sua história e o referido universo social urbano e rural relacionado ao povo brasileiro mais humilde. A primeira das peças, Central do Brasil , de Antonio Pinto, firmou-se, com o tempo, como uma lembrança indelével do filme.

Na fase estrada da história que cruzamos, as duas margens do rio São Francisco , adentrando o sertão nordestino, ritmos e instrumentos típicos da região, como a rabeca, ganham projeção. O músico Siba, ex-integrante do grupo da geração manguebeat Mestre Ambrósio, também presente na trilha do

65 Cabe, ainda, comentar que, em 1964, Cartola casou-se com a Dona Zica da Mangueira, abrindo com ela, no mesmo ano, o restaurante Zicartola, no centro do Rio, que se tornou um ponto de encontro musical de referência. Nessa década, a bossanovista Nara Leão gravou "O Sol Nascerá", composta por ele e Elton Medeiros. Cartola participou como cantor de alguns discos coletivos de sambistas até conseguir, finalmente, a primeira gravação em disco inteiramente seu, em 1974 (OLIVEIRA, 2010).

306 road movie de Cacá Diegues, Deus é brasileiro , toca instrumento de origem medieval e árabe, a rabeca, em várias peças da trilha e na música instrumental de Capiba (1904-1997), a série de cinco versões de Toada e desafio. A escolha da música não deixa de ser uma homenagem a um dos maiores compositores pernambucanos, notabilizado por suas canções de frevo e, indiretamente, ao grupo musical idealizado por Ariano Suassuna, Quinteto Armorial.

Imagem 66 – Do romance ao galope nordestino

Os instrumentos, repertório e estilo musical desta parte instrumental de Central do Brasil lembram bastante a sonoridade criada por esse excelente grupo musical surgido nos anos 1970, que juntou a música erudita e o cancioneiro secular nordestino, remetendo às influências da música ibérica medieval e renascentista. Vale comentar que o dançarino, ator, músico e compositor Antonio Nóbrega fez parte dessa formação musical.

O Quinteto Armorial organizou-se na cidade do Recife, nos finais da década de 1960, dentro do projeto cultural maior de Suassuna, chamado de Movimento Armorial, abrangendo manifestações artísticas diversas como teatro, literatura, artes plásticas e música (VICTOR; LINS, Juliana, 2007). Da formação da Orquestra Armorial saiu o Quinteto Armorial. Lançaram quatro discos pelo selo Marcus Pereira, a mesma produtora independente que gravou pela primeira vez Cartola.

307

Em seu disco de estreia, de 1974, intitulado Do romance ao galope nordestino (1974) 66 , o grupo incorpora a referida Toada e desafio , de Capiba, no repertório de 12 peças gravadas. Saudado de modo entusiástico, à época do lançamento do disco, por José Ramos Tinhorão, o famoso pesquisador musical comenta a formação do grupo e o seu estilo peculiar:

“Ao som da viola sertaneja do compositor Antônio José Madureira, da rabeca e violino de Antônio Carlos Nóbrega de Almeida, do violão de Edílson Eulálio, do pífano e flauta de Egildo Vieira e do marimbau de Fernando Torres, composições como Revoada e Ponteio acutilado transportam numa ponte de quatro séculos a Renascença para o Nordeste, para repetir a experiência fantástica da fusão da plangente monodia do marimbau dos cegos com a polifonia do violão, esse descendente do alaúde, enquanto o viola soa cortante e metálica com um clavicórdio”.

Essa combinação do erudito e do arcaísmo musical sertanejo nordestino da concepção do Quinteto Armorial, elaborada nos anos 1970, ressoa na trilha de Antonio Pinto e Jacques Morelenbaum (a música de Capiba, Toada e desafio , revela-se como o elo mais aparente dessa influência) e funciona como apoio à narrativa de Central do Brasil no sentido de criar um território imaginário de tempo e espaço complexo. Uma trilha que deseja sonorizar o mundo interior e exterior das personagens, acompanhando o deslocamento entre a moderna cidade do Rio de Janeiro e o primitivo interior nordestino, traduzindo, assim, o reencontro com o Brasil profundo ensejado por Walter Salles na ideia original do filme.

É uma banda sonora elaborada na busca de evidenciar os contrastes: de um lado os sons do mundo urbano – excessivamente ruidoso e caótico – ouvidos na primeira parte do longa-metragem, transcorrida na capital carioca, na qual também as imagens são editadas de modo a obter pouca definição na ilustração dos ambientes, não obstante a valorização da expressão humana por meio do primeiro plano e closes , conforme projeto fotográfico desenhado por Salles e Walter Carvalho; por outro lado, a mansidão minimalista e

66 Os outros discos produzidos pelo selo Marcus Pereira do Quinteto Armorial foram Aralume (1976), Quinteto Armorial (1978) e Sete flechas (1980). 308 contemplativa da segunda parte, na estrada, com o retrato da vida cotidiana de pequenas cidades do interior nordestino.

5.2. 8 Exílios de mar e terra

Nessa nova etapa da viagem, teremos que atravessar os limites territoriais do país além mar. São Paulo e Lisboa são os espaços urbanos de centralidade geográfica deste segundo filme de viagem de Walter Salles, o primeiro em codireção com Daniela Thomas, feito em preto e branco a partir do registro fotográfico de Walter de Carvalho. A trilha sonora foi composta pelo músico, poeta e professor universitário, especializado em literatura brasileira moderna, José Miguel Wisnik.

Segundo os diretores 67 , o longa-metragem foi realizado em preto e branco para narrar o sentido de urgência ensejado em sua crítica social e geracional ao governo Collor – período emblemático do início do processo de globalização no Brasil – e para homenagear cineastas de influência que produziram filmes de juventude nesse tipo de abordagem fotográfica, como Wim Wenders, autor do road movie Alice nas cidades (1974), e a constelação cinematográfica da nouvelle vague – O acossado (A Bout de Souffle, 1959), de Jean-Luc Godard, Os incompreendidos (Les Quatre Cents Coups, 1959) de François Truffaut, entre outros.

Ou seja, sai o cinema comercial norte-americano como referência estilística para o então diretor recém-debutante em longas-metragens de ficção, e entra o cinema autoral europeu como modelo. Ao contrário do primeiro filme de Salles, no qual o enredo tentava recriar o mundo policial elaborado, originalmente, pelo escritor Rubem Fonseca no romance A grande arte (1991), com muitas deficiências estilísticas, colado excessivamente ao padrão de cinema norte- americano do gênero policial e na construção estética e narrativa de certa glamourização da violência, Terra estrangeira (1995) avança na densidade dramática e no realismo crítico (também pretendido no outro), atingindo um

67 Ver depoimento do diretor em DVD de Terra estrangeira. 309 resultado final que lhe confere a condição de disputar a lista dos melhores filmes brasileiros da década de 1990.

A banda sonora produzida por José Miguel Wisnik tenta captar o clima melancólico e pessimista do período Collor no que tange ao mundo social, notadamente no entendimento do universo jovem. Registra-se, à época, um forte processo de migração já saliente no governo anterior, de José Sarney (1985-1990), o primeiro pós-período militar, devido à crise econômica generalizada – recessão e hiperinflação (FAUSTO, 1995).

A base musical, predominantemente instrumental, ou é realizada pelo piano solo de Wisnik ou feita por meio de pequeno conjunto orquestral. O violino é um dos instrumentos mais escutados nesta base, sendo que ele exerce papel icônico e metafórico importante no desfecho do longa-metragem (ver enredo descrito no capítulo 5.1 da tese). Temos, portanto, uma sonoridade de matriz erudita ao fundo de boa parte das sequências de Terra estrangeira . Cabe assinalar que não há necessariamente um leitmotiv musical como em Central do Brasil .

Além disso, há um conjunto significativo de canções que exercem uma enunciação de caráter étnico bem representativo neste road movie brasileiro contemporâneo. Nas cenas de Lisboa, ouve-se o fado Estranha forma de vida (Alfredo Rodrigo Duarte e Amália Rodrigues), interpretado por Maria João, bem como grupos musicais de origem luso-africana, especificamente de Cabo Verde, como Bulimundo, Os Tubarões e Livity 68 .

Na primeira parte do filme, passada em São Paulo, a única canção inserida em toda a banda instrumental é Pensa em mim (Douglas Maio; José Ribeiro; Mário Soares), interpretada pela famosa dupla sertaneja Leandro e Leonardo – “... Pense em mim, chore por mim / Liga pra mim, não, não liga pra ele... Quero fazer você feliz! / Vamos pegar o primeiro avião / Com destino à felicidade / A felicidade pra mim é você”.

68 Ver site Música e cabo-verdianos em Lisbo a. Disponível em: < http://www.caboindex.com/musica/>. Acesso em: 18 dez. 2010. 310

A música é tocada quando o protagonista Paco conhece o contrabandista e dono de antiquário, Igor, numa cena gravada no tradicional bar paulistano Brahma, situado no centro da cidade. Ela funciona para marcar a contemporaneidade do filme e servir de ponte para uma comunicação de intertextual variada: traduz o espírito solitário de Paco, tenciona significados de tipificação de personagem de Igor – esnobe e pretensamente erudito (a música é cantada por uma dupla do sertanejo-pop que traz o estigma de brega , popularesco , de pouco valor estético, para certos grupos sociais, dentre eles, o potencial receptor do filme) – e faz alusão ao plano que está sendo arquitetado para o transporte ilegal de joias, dentro de um violino, do Brasil para Portugal, a viagem em potência.

Na passagem em Lisboa, temos, ainda, uma música instrumental importante para sonorizar parte do espírito narrativo do filme e que ajuda a caracterizar o personagem Miguel (Alexandre Frota), músico, viciado em heroína e ponte entre o submundo de São Paulo e Lisboa. Trata-se de Fran dance ( Put your little foot right out ), de Miles Davis. A música é executada pelo Miles Davis Quintet e conta com o líder da banda tocando trompete e com o saxofone tenor dedilhado por nada menos que outro famoso virtuoso do jazz, John Coltrane. A formação e o referido tema musical dão o contorno ao gênero de jazz moderno denominado bebop , estilo este ligado à juventude rebelde e intelectualizada norte-americana (e planetária) dos anos 1940/1950 (HOBSBAWM, 2008).

Com sua característica musical de longas sessões de improvisação, as chamadas jam sessions, obtidas por excepcionais músicos (além dos já citados, vale mencionar Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Thelonious Monk), representou a trilha sonora ideal da geração literária beat (Allen Ginsberg, William S. Burroughs, Jack Kerouac, entre outros), aquela que pegou a estrada na pista da poesia e prosa experimental, no compasso dos ventos do ideário da contracultura pós-Segunda Guerra Mundial, e está visceralmente ligada ao mundo das drogas (GOFFMAN, 2007). 311

Imagem 67 - LP Gal a todo vapor (Gal Costa, 1971; Philips)

Esse ethos juvenil contracultural, que informa parte importante da tipificação dos protagonistas, especialmente no caso do rebelde Miguel (em Paco e Alex se observa uma identificação próxima a esse universo cultural, porém não de modo integral), está retido também na canção de maior impacto do filme, Vapor barato (Jards Macalé e Waly Salomão, 1970), tendo em vista a concentração de significados e sua função de clímax narrativo posto na sequência final de Terra estrangeira.

Vejamos adiante a letra da canção para melhor entendimento de certos comentários a serem efetuados a seguir:

Oh, sim, eu estou tão cansado / mas não pra dizer / que eu não acredito mais em você / com minhas calças vermelhas / meu casaco de general / cheio de anéis / vou descendo por todas as ruas / e vou tomar aquele velho navio /eu não preciso de muito dinheiro / (graças a Deus) / e não me importa, honey / oh, minha honey baby / baby, honey baby / oh, minha honey baby / baby, honey baby... (Jards Macalé e Waly Salomão, 1970).

“Talvez a capacidade de duração do filme no tempo, muito da força da cena final vem desta música”, afirma a diretora do filme, Daniela Thomas, em entrevista registrada no DVD comemorativo dos dez anos do longa-metragem (2005). O interessante é que a canção entra na trilha por acaso. Conta o outro diretor, Walter Salles, na mesma entrevista, realizada em forma de duplo depoimento, que, nas filmagens feitas em Portugal, Fernanda Torres, descansado de um se t, começa a cantarolar a música de modo meramente diletante.

O canto improvisado foi motivo de insight criativo para os diretores, que foi levado à cena final. Nesta, Paco (Fernando Alves Pinto), baleado e 312 ensanguentado, deitado no colo da personagem Alex (Fernanda Torres), e dentro do carro, é observado em primeiro plano enquanto a atriz entoa Vapor barato novamente, como numa balada de ninar.

Na sequência imediata, em tomada ampla, aérea, ouve-se a mesma canção, em emenda sonora, na voz dramática de Gal Costa, preenchendo os vários tempos e espaços simbólicos que a cena constrói: a dor da perda, a esperança em suspenso, a vida encaminhada a esmo, refletidas na solidão da geografia rural ibérica, de elementos físicos desérticos, impressão sugerida pela locação escolhida para narrar imageticamente o desfecho do filme.

A letra da canção retrata a chamada geração desbunde dos anos 1970 – o vapor referido no título é metáfora de viagem , apoiada nas figuras semânticas de barco e fumaça, esta produzida por certas drogas, como a maconha, no ato do consumo. A palavra barato também reforça a mensagem de hipersensibilidade, de experiências extremas com o corpo, mas também com seu duplo, a alma/espírito. Insinua a leitura poética sobre a vontade de viver intensamente, mesmo em torno de coisas tidas como não-nobres/polidas, ou permitidas, numa apologia à vida simples (este não será uma dos temas recorrentes de cinema de estrada contemporâneo?).

Metáfora da trajetória de uma geração de jovens brasileiros, em geral universitários e de classe média, morando em grandes centros urbanos, experimentando novos comportamentos, modificando padrões morais vigentes no cotidiano de suas tribos urbanas (MAFESOLLI, 2006) e viajando, ainda, no sonho utópico da revolução cultural dos anos 1960, na pressão da lona pesada da política, da ditadura militar e do pensamento conservador hegemônico à época (DIAS, 2003; BAHIANA, 2006) – uma memória acesa da geração dos seus realizadores no arco temporal dos anos 1990 do Cinema Brasileiro da Retomada. 313

Fronteiras

5.2.9 O estrangeiro

O primeiro longa-metragem de Walter Salles, uma coprodução Brasil/EUA, foi lançado no mercado nacional em 1991 durante o governo Collor. É um projeto cinematográfico marcado pela tentativa de elaborar um produto bastante focado na linguagem do cinema do gênero policial, aclimatado à realidade tropical brasileira por força da dramaturgia de referência: a obra do escritor carioca Rubem Fonseca, que é também o roteirista do filme.

A mudança do papel social originalmente esboçado - de advogado-detetive para fotógrafo do protagonista Mandrake (Peter Coyote), denota, nessa transposição, a influência do cinema autoral de Wim Wenders e Michelangelo Antonioni, cujas filmografias adensam-se na trajetória de personagens em crise de identidade.

Na versão cinematográfica, o personagem principal, de origem norte- americana, está de passagem no Rio de Janeiro para desenvolver um ensaio fotográfico. O filme é falado em inglês e parte em português e espanhol, ou seja, é um filme-produto globalizado na esteira do que isso podia significar de moderno e interessante ao mundo das artes, ao meio intelectual brasileiro, enfim, como resposta à marcante crise econômica da década anterior, os anos 1980, de produção beirando a estagnação.

A nova profissão de Mandrake, portanto, colabora para abordar o tema da condição de estrangeiro que marca a história de vida do cineasta Walter Salles, filho de embaixador, e conecta-se ao momento histórico do Brasil, que entra na era da globalização, na virada dos anos 1990, sob a promessa de modernidade cosmética de Fernando Collor.

Como dito na primeira parte do capítulo 5, A grande arte é um filme de estilo autoral ainda em formação, de Walter Salles, o cineasta de maior projeção internacional do Novo Cinema Brasileiro, ao lado de Fernando Meirelles. A bela 314 fotografia (José Roberto Eliezer) e a direção de arte (Marlise Storchi, Rita Ivanissevich e Nico Faria) são seu maior trunfo. O longa conta com locações feitas na cidade do Rio de Janeiro e região fronteiriça de Mato Grosso e Bolívia.

A trilha sonora é de Jürgen Knieper e Todd Boekelheide. Knieper 69 , de origem alemã, desenvolveu a trilha de vários dos principais filmes de Wim Wenders, entre eles Asas do desejo (1987), O amigo americano (1977) e Movimento em falso (1975). O norte-americano Boekelheide começou a trabalhar no cinema em 1974 como um membro da produtora American Zoetrope, pertencente a Ford Coppola e situada em San Francisco. Desde a década de 1980, Todd é produtor de trilhas para cinema e televisão nos EUA. 70

A banda sonora destaca-se pelos efeitos de sonoplastia e conta com a base orquestral própria e inserção de pequeno rol de canções e músicas instrumentais realizadas por terceiros. Coerente à tradição das trilhas da filmografia norte-americana, a banda sonora desempenha uma ação bastante funcional na narrativa, de criação de climas e sensações emocionais, solicitadas pelo gênero policial e suspense.

Facas, portas, socos, passos, gemidos, ruídos e sons da movimentação de corpos e objetos mais diversos são ouvidos de modo, às vezes, excessivo ou editados em volume muito alto, colaborando para a recepção crítica comum do filme (STRECKER, 2010), que ressalta a superficialidade dramática da obra em meio ao primor estético de mero espetáculo sem causa ou simbolismo mais consistente . A postura humanista que caracteriza a obra de Walter Salles é articulada em determinadas imagens ou diálogos que não contaminam a obra com um todo. A meu ver, o problema está na base do texto original de Rubem Fonseca, que se empolga demais com a filosofia que deseja apreender na luta-arte das facas, com jogo de erudição ornamental que tenta enobrecer artificialmente a

69 Jürgen Knieper. Win Wender. Disponível em: http://www.wim- wenders.com/bio/juergen_knieper_bio.htm. Acesso em: 10 fev. 2011. 70 Todd Boekelheide. Disponível em: http://butteamericafilm.org/butte-america/credits>. Acesso em: 05 fev. 2011. 315 narrativa do romance e do filme (relembra-se que é o próprio escritor o responsável pelos diálogos deste).

Coerente com o mosaico de referências que caracteriza A grande arte, de Walter Salles, de condição de produção e estilo globalizado, como já dito, percebe-se que a parte musical incidental é também igualmente heterogênea.

Imagem 68 – Sony Music Entertainment Inc.

Ouve-se a minimalista The photographer (A Gentleman's Honor ), de Philip Glass, executada por seu conjunto The Philip Glass Ensemble, inserida numa longa sequência sem diálogos, narrando os moradores paupérrimos do centro carioca 71 , a romântica canção norte-americana de Cole Porte – I`ve got a rick out of you – na voz de Sarah Chrétien, o sóbrio Concerto for cello strings and continuo in E minor , de Antonio Vivaldi, e a canção sertaneja de letra melodramática, História da minha vida (Paiozinho e Salvador M. Biscardii), interpretada por Tonico e Tinoco.

5.3.10 Caminhos mestiços do interior

O longa-metragem Os matadores (Beto Brant) foi lançado no mercado em 1997, no período de afirmação do chamado ciclo do Cinema da Retomada, que transcorreu concomitante ao primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso (1994-98). Como no filme Central do Brasil (Walter Salles), que seria visto pelo público das salas de cinema menos de um ano depois, temos aqui

71 O modo de combinar imagem e sons em movimento, sem nenhum diálogo em toda a narrativa, com base na temática de denúncia ambiental e social, dialogando com a linguagem de documentário, remete aos trabalhos que Philip Glass realizou em parceria com o diretor Godfrey Reggio - Koyaanisqatsi (1982) e Powaqqatsi (1988). 316 também uma obra cinematográfica nacional cuja viagem de estrada deverá penetrar no mundo social dos interiores do país.

Como discutido no capítulo 1 da tese, uma das temáticas desse cinema pós- Embrafilme dos anos 1990 é somar o reconhecimento da tradição e da história do país por parte dos seus realizadores, a busca de identidade cultural, com o entendimento do Brasil contemporâneo vivido não apenas nas grandes cidades.

Se Salles se dirige ao mítico sertão nordestino , por vezes romantizando a percepção da nação profunda, imerso na retenção do simbólico paraíso perdido, Brant desvenda um cenário geográfico de outro sertão em direção ao oeste, retratando a zona fronteiriça entre Brasil e Paraguai na porção meridiana do estado de Mato Grosso do Sul, caracterizado por dispor do bioma do cerrado.

O esclarecimento psicológico e social do que há por trás das balas dos justiceiros é a perspectiva narrativa desejada pelo diretor paulista, auxiliado pelo escritor e roteirista Marçal Aquino, ao tratar da vida bandida das fronteiras em Os matadores. Mas, como disse em entrevista, cujo trecho é transcrito adiante, a percepção do idílico do campo, do interior, essa imagem tão brasileira e interessantemente genérica refletida na palavra sertão , está profundamente presente na concepção e realização do filme, apesar do crivo crítico em desenraizá-la:

Então fomos [Beto Brant e Marçal Aquino] para a fronteira do Brasil com o Paraguai, perto de Ponta Porã, uma região muito violenta por ser uma fronteira seca, onde há muito contrabando de grãos, de gado, de armas, de carros e máfia muito forte, muito poderosa, que se elege para cargos públicos. [...] O que mais me motivava a fazer esse filme era a ideia de que aquilo que eu tinha acalentado no início da minha vida, a concepção do campo como um lugar de harmonia, de paz, de serenidade, de respeito, de cumplicidade, de colaboração, se desfazia diante da brutalidade de uma terra sem lei, onde os cidadãos são reféns de quem exerce o poder na cidade. [...] Redescobrir aquele 317

lugar, reinventá-lo na minha memória, é isto o que move o filme 72 . [...] (AXT; SHÜLER, 2010, p. 366)

A trilha de Os matadores colabora para tornar viva essa ambiguidade, de crítica negativa e de acolhimento mítico do interior/sertão mencionado por Brant. O povo brasileiro, que é visto e ouvido no longa-metragem que possui locação principal na cidade de Bela Vista, vizinha do município Ponta Porã, diz respeito às duas matrizes regionais de formação nacional denominadas por Darcy Ribeiro (2001) de o Brasil Caipira e os Brasis Sulinos. Ressalta-se que a região possui forte influência indígena, sobretudo guarani (kaiwá e nhandéwa) 73 .

A trilha produzida por André Abujamra explora a sonoridade do cancioneiro típico da região, que sofreu influências da música caipira paulista e mineira: os ritmos do sul ( milonga, vanerão e rancheira ) e do Paraguai ( polca paraguaia, o chamamé e a guarânia ).

Exemplificando esse apanhado musical, ouvem-se, na banda sonora, as canções compostas pela dupla Délio e Delinha (Maracaju, MS) – O sol e a lua e Prazer do fazendeiro. Os artistas são primos de parentesco e formaram casal, com carreira artística e profissional iniciada nos anos 1950. São considerados grandes divulgadores do ritmo rasqueado , estilo do gênero sertanejo tradicional bastante difundido em Mato Grosso do Sul. Ambas as músicas são interpretadas por Correinha (Dourados, MS), que começou a tocar ainda garoto, nos anos 1970, sendo conhecido pela imprensa local como O rei do chamamé. 74

72 Beto Brant filmou principalmente na cidade de Bela Vista. Vive lá um tio-avô seu. Isso explica, em parte, o conteúdo da afirmação “reinventá-lo na minha memória” (AXT; SHÜLER, 2010). 73 Conforme mapa de etnias elaborado pela entidade FUNAI, encontra-se ainda hoje no estado de Mato Grosso do Sul, os seguintes povos além dos mencionados guaranis: terena, guató, kadiwéu, kamba, kinikinawa, ofaié e xiquitano. Ver Terras indígenas. Funai . Disponível em: Acesso em: 10 fev. 2011. 74 Ver reportagem sobre o artista “Cantor Correinha lança CD na fronteira e em Aquidauana”, Jornal o Pantaneiro, 2008. vhttp://www.opantaneiro.com.br/noticias/eventos/70360/cantor-correinha-lanca-cd-na-fronteira- e-em-aquidauana 318

Imagem 69 - LP Prenda querida (Délio & Delinha; 1961)

De Praense (Cambé-PR, 1943), cantor e compositor de música sertaneja, o produtor Ambujamra selecionou quatro músicas de sua autoria, todas realizadas com parceiros e nenhuma executada por ele. Prisão de papel (em coautoria com Lorival Camacho) é interpretada por Os dois mineiros. As canções Paixão secreta , cantada pela dupla Luiz Henrique e Carlos Rossi, e Amor fantasia, na performance de Stalone e Randalf, foram compostas em parceria com Rui Rosário.

Camisola preta , feita em coautoria com Carlos Barbosa, é interpretada pelo próprio, no filme. Trata-se de cancioneiro pertencente à fase da música sertaneja moderna , produzida dos anos 1970 em diante, que irá incorporar instrumentos do universo pop à nova produção do gênero – baixo, guitarra e telhado elétricos (NEPOMUCENO, 2005).

Praense, José Dercídio dos Santos, é autor de mais de 400 canções e começou a carreira formando a dupla Ado e Praense, no Paraná dos anos 1970. Locutor de rádio em Londrina, em 1975, teve programa musical sertanejo de grande audiência, sendo ouvido até na região da fronteira com o Paraguai, exibindo sucessos comerciais da época – Milionário e Zé Rico e Juliano e Jardel, entre outros. 75

75 A segunda dupla de Praense, a mais famosa de sua carreira, foi a Peão Carreiro e Praense, que durou de 1978 a 1984. O autor e cantor participou também da formação Peão do Vale e Praense, em 1989, que durou pouco, e a Peão e Praense, iniciada em 2005, na capital paulista, onde mora hoje e possui uma churrascaria. O referido último Peão é filho de Peão Carreiro.

319

Merece ser comentada ainda, em relação à trilha das canções de Os matadores , a presença da música paraguaia, como nas duas composições de José Asunción Flores (1904-1972) – Mburicaó , interpretado por Alberto de Luque – e Che pecazumi , feita em parceria com Eladio Martinez e tocada por Oscar Quiñonoez (harpa paraguaya) e Eugenio Quiñonez (chitarra).

Flores é o responsável pela estilização e divulgação massiva do gênero guarânia em seu país e América do Sul (MELLO; SEVERIANO, 2002). Este gênero paraguaio exerceu forte influência na música sertaneja, sobretudo entre os anos 1940 e 1960, no Brasil (NEPOMUCENO, 2005), sendo divulgado por artistas importantes do gênero, como Raul Torres, Ariovaldo Pires, Mário Zan, Nhô Pai, Cascatinha e Inhana e Milionário e José Rico.

Imagem 70 - LP Índia - Cascatinha e Inhana (1967)

Índia (José Asunción Flores e Manuel Ortiz Guerrero) talvez seja sua canção mais conhecida no Brasil. Teve versão em português de Zé Fortuna (“Índia seus cabelos nos ombros caídos/ Negros como a noite que não tem luar...”) e foi cantada por expoentes da música caipira/sertaneja, como Cascatinha e Inhana, os chamados Os sabiás do sertão , com gravação feita pela primeira vez em 1952. A canção também ficou conhecida na voz de Gal Costa, com registro fonográfico realizado no disco homônimo de 1973.

Os matadores é um filme que transita, além do referido hibridismo social e cultural, por meio da mestiçagem de narrativas cinematográficas em seu plano ficcional, como os gêneros narrativos de estrada, policial e drama social. E mais uma vez temos um duplo cenário de viagem refletido pelo gênero road movie : por um lado a referida modernidade tropical , do mundo social desigual 320 da fronteira e, por outro, o diálogo simbólico e universal com o mundo natural mítico e transcendente, em certas cenas, apoiado pela trilha sonora.

Descobre-se, no filme, uma natureza e vida humana que se revelam por arestas da ambiguidade, como deseja a narrativa elaborada pelos realizadores do filme, conforme foi comentado no início da análise de Os matadores . Da terra vermelha e seca do cerrado mato-grossense vê-se e ouve-se a brutalidade das balas, a mansidão e drama do movimento dos afetos, as imagens e música de penetração telúrica, extraídas daquele pequeno povoado perdido na zona da fronteira, uma aldeia de reconhecimento tão global ao mundo contemporâneo. 321

5.2.11 Nuestro otro lado del rio

Adiós, muchachos, compañeros de mi vida, barra querida de aquellos tiempos. Me toca a mí hoy emprender la retirada, debo alejarme de mi buena muchachada. Adiós, muchachos. Ya me voy y me resigno. Contra el destino nadie la talla Se terminaron para mí todas las farras, mi cuerpo enfermo no resiste más. ( Adiós muchachos ; Julio César Sanders e César vedan, 1927)

Este conhecido tango argentino, Adiós muchachos, está inserido na banda sonora do filme Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004), mais precisamente, na sequência da despedida de Buenos Aires, o início da longa viagem dos dois protagonistas, o então estudante de medicina Ernesto Guevara de la Serna (Gael García Bernal), futuro líder comunista Che Guevara, e Alberto Granado (Rodrigo de la Serna), realizada por vários países andinos.

A canção é interpretada pelo próprio ator que faz o personagem de Alberto Granado. Sua letra remete a um dos temas comuns do tango, a celebração da vida boêmia (FERNANDES, 2000), mimetizando parte do perfil psicológico arquitetado, no filme, para ele: uma personalidade bonachona e pícara, de comportamento mulherengo, em contraste com o romântico e tímido Ernesto Guevara.

A trilha sonora foi concebida pelo produtor Gustavo Santaolalla (1951), músico e compositor argentino, com carreira iniciada em grupos de rock nativo, nos anos 1970, atuando, hoje, em conjunto formado por integrantes nascidos na região rio-platense – Bajofondo Tango Club –, que busca a união da tradição musical argentina/uruguaia – tango e milonga – com a música eletrônica e pop internacional. 76

Santaolalla tem também uma carreira bem sucedida na produção musical para o cinema, confirmada com a conquista de dois Oscars na categoria de melhor

76 Para auxiliar o reconhecimento da sonoridade do grupo Bajofondo, informa-se que canção Pa' bailar , do álbum Mar dulce foi abertura da novela da TV Globo A favorita (2008/2009). 322 trilha-sonora original – O Segredo de Brokeback Mountain (Ang Lee; EUA/Canadá; 2005) e Babel (Alejandro González Iñárritu; México/EUA; 2006). 77

Em meio a arranjos com ênfase em instrumentos de corda acústicos – violão, guitarrón, ronroco e charango –, em busca de sonoridades de sotaque sul- americano, a trilha instrumental possui uma concepção intimista, reflexiva e lírica, sonorizando o mundo interior do personagem Ernesto Guevara, colaborando, desse modo, para a narrativa geral do ritual de passagem para o mundo adulto e para o seu projeto político futuro que o filme se propõe descrever.

A produção musical tem participação do pianista Oscar de Elia, flautas de Don Markese, cajón (instrumento de percussão) de Bráulio Barrera e violino de Javier Casalla. O multi-instrumentista Santaolalla toca guitarras, guitarrón, ronroco, charango, caja, pipes, percussão, vibes, flautas e baixo.

O outro tango que compõe o conjunto de canções de Diários de motocicleta é o sentimental Mala junta (Julio de Caro, Pedro Blanco Laurenz e Juan Miguel Velich), interpretado ao piano por Oscar de Elia. Ele é ouvido em uma cena ocorrida na realizada fazenda da namorada de Guevara, Chichina (Mía Maestro), transcorrida na região do pampa argentino.

Este tango-canção é tocado de modo dançante numa sequência musical em que se ouve também o choro-baião Delicado , de Waldir Azevedo. Na cena em que tais músicas são executadas, a família e convidados estão em clima de festa, momento em que podemos perceber os dotes para bailar de Granado e a total falta de gingado de Guevara.

77 Santaolla realizou a trilha sonora dos dois primeiros filmes do diretor mexicano Alejandro González Iñárritu - Amores brutos (México; 2000) e 21 Gramas (EUA; 2003). A trilha sonora de Diário de motocicleta (2004) foi realizada no intervalo desta produtiva parceira com o referido diretor mexicano. 323

Imagem 71 - LP Waldir Azevedo - Delicado - 1967

O choro Delicado foi lançado no mercado brasileiro em 1950, dois anos antes do tempo fictício em que se passa a história do filme, e um ano depois da estreia fonográfica de outra conhecida música do célebre cavaquinista - Brasileirinho (1949) –, também em formato de disco 78 rpm. A ideia original era que fosse um choro em ritmo de bolero, mas acabou saindo sob influência de outro gênero de grande recepção nas rádios brasileiras do período e que marcou a trajetória de Luiz Gonzaga: o baião.

A música fez um sucesso arrebatador no Brasil, a despeito do formato instrumental de seu trabalho (Waldir Azevedo foi um grande vendedor de discos, competindo com estrelas do cancioneiro nacional), obtendo também acolhida de ampla recepção na Argentina, o que acarretou várias excursões do músico ao país vizinho, sendo tratado por eles como estrela popular , apesar de sua performance feita por típico grupo regional de choro (CAZES, 2010) 78 .

Essa troca de repertório musical entre os países latino-americanos traduz uma interculturalidade possível pelo crescimento do mercado fonográfico pós- Segunda Guerra Mundial na América Latina e Caribenha , bem como da indústria cultural como um todo – cinema, rádio e televisão (GARCÍA CANCLINI, 2000; MARTÍN-BARBERO, 1997; OROZ, 1991; ORTIZ, 1988).

78 Waldir Azevedo, em 1951, grava outra música famosa - Pedacinhos do céu . Por conta do sucesso de Delicado , o músico excursionou também na Europa e Oriente Médio. A música foi gravada posteriormente em versão letrada por Ary Faria, cujos versos comentam as suas características rítmicas: “Queremos um baiãozinho/ Que seja bem gostosinho/ Que seja delicadinho/ Escute com atenção/ Aqui está o baião/ Falando lá o coração/ Veja como ele é tão delicado/ Faz até pensar/ No amor que ficou no passado...”. 324

Observa-se que são inúmeros os exemplos de tangos, guarânias, rancheiras e, sobretudo, boleros, gravados por estrelas da canção brasileira ao longo do século XX (MELLO; SEVERIANO, 2002a, 2002b; NEPOMUCENO, 2005).

Completando esse comentário sobre o intercâmbio musical transnacional latino-americano, não se pode deixar de mencionar os ritmos caribenhos, como merengue (Haiti/República Dominicana), calypso (Trinidad e Tobago), mambo (Cuba), salsa (Porto Rico/EUA) e o reggae (Jamaica), bastante influentes na música popular contemporânea do norte e nordeste do Brasil, como o brega do Pará ou o axé music/samba-reggae baiano, entre outros estilos musicais (DELANNOY, 2003; GUERREIRO, 2010; SILVA 2009). As trilhas sonoras dos outros filmes de estrada anteriormente analisados puderam exemplificar, em vários momentos, esse hibridismo sonoro mediado pela filmografia Pós- Embrafilme.

Esse intercâmbio musical e cultural abriga afinidades de pertença desses povos, com sua história social de aspectos estruturais comuns, a evidente hibridação étnica, bastante diversificada, e o onipresente modelo econômico de interação social desigual, herdado do período colonial (POZO, 2009). Uma realidade complexa que permite captar três variantes de identidade cultural vislumbrada por Manuel Castels (2002) para ler a cultura contemporânea, conforme comentado no capítulo 2: a identidade legitimadora (articulada pelas instituições dominantes), a de resistência (buscada por atores sociais em posição inferior ao sistema simbólico dominante) e a de projeto (protagonizada pelos novos sujeitos coletivos, tribos urbanas).

A trilha sonora e a fotografia de tratamento etnográfico, o olhar crítico e humanista do diretor de Diários de motocicleta para adaptar o texto de referência do filme, criam uma obra cinematográfica que enuncia as identidades de resistência e de projeto . Vejamos mais algumas características da trilha sonora que ajudam a sustentar essa afirmação.

Voltando à análise das canções, além dos já mencionados tangos argentinos Adiós muchachos e Mala junta , ouve-se, no trecho da viagem transcorrido no 325

Chile, a divertida música, no ritmo nacional cueca 79 , El Chipi Chipi (Gabriel Rodriguez), interpretada por Maria Esther Zamora, cantora ligada à música folclórica desse país. Na cena dessa audição, Ernesto Guevara flerta uma mulher casada numa festa dançante (ele já havia recebido carta de rompimento de seu noivado). Os acontecimentos venturosos da viagem, a companhia de Granado e o desenlace amoroso começam a transformar aquele jovem tímido que partiu de Buenos Aires.

No Peru, depois da passagem em Machu Picchu e Lima, seguindo ao encontro do Dr. Hugo Pesce, chefe do programa de tratamento de lepra do país, e de lá, com a viagem por barco, até o leprosário de San Pablo, situado às margens do rio Amazonas, a trilha dominante é a instrumental, com a inserção das músicas Montana ; Jardín ; Procesión ; La salida de Lima , entre outras, compostas por Santaolalla.

Na festa de despedida, da qual participam os médicos e enfermeiras do leprosário, o ritmo que domina a pista de dança é o mambo . O artista homenageado, nesse momento, pelo produtor musical é Damaso Pérez Prado (1916-1989), considerado o maior divulgador desse ritmo cubano mambo em âmbito mundial DELANNOY, (2003). Dele, ouvem-se dois grandes sucessos: Mambo No. 5 e Qué rico el mambo , compostos e interpretados pelo próprio músico.

Imagem 72 - CD Prez – Pérez Prado (Damaso Pérez Prado)

79 Ver Maria Esther Zamora. Músicapopular.cl. Disponível em: < http://www.musicapopular.cl/3.0/index2.php?op=Artista&id=1658>. Acesso em: 18 dez. 2010.

326

Do tango argentino Adiós muchachos aos mambos do cubano Pérez Prado ouvidos à beira do rio Amazonas, na porção peruana, a trilha de canções de Diários de motocicleta projeta o futuro de Guevara, da sua trajetória de vida aberta à descoberta de novos laços compartilhados, como o que será vivido ao lado dos cubanos revolucionários liderados por Fidel, ao final da década de 1950, na ilha de Cuba.

Por fim, a derradeira canção, ouvida na passagem dos créditos finais do filme, é El otro lado del rio , do uruguaio Jorge Drexler, cuja letra reflete, de modo metafórico, sobre a sequência anterior, vivida pelo protagonista nos confins da selva amazônica, após a referida festa dançante e a travessia heróica feito a nado, entre a margem do alojamento médico, onde comemorava seu aniversário, e o outro lado do rio, dos leprosos, de origem social bastante humilde.

A cena aquática, aludida metaforicamente na canção de Drexler (um dos fios correntes referenciais do texto final da música), que mostra a travessia a nado empreendida pelo protagonista, a qual envolveu um esforço físico enorme dos braços/remos de Ernesto (relembra-se que ele sofria de asma) funciona como ápice do ritual de passagem, de amadurecimento e aprendizado político do jovem Guevara, durante a longa viagem que empreende por toda a América do Sul:

Clavo mi remo en el agua / Llevo tu remo en el mío / Creo que he visto una luz al otro lado del río / El día le irá pudiendo poco a poco al frío / Creo que he visto una luz al otro lado del río / Sobre todo creo que no todo está perdido /Tanta lágrima, tanta lágrima y yo, soy un vaso vacío /Oigo una voz que me llama casi un suspiro / Rema, rema, rema-a / Rema, rema, rema-a […] (El otro lado del rio, de Jorge Drexler)

Mas antes da audição da última canção, nessa parte final do filme, numa passagem de emenda sonora, logo após a partida derradeira do protagonista de Caracas, Venezuela, para a Argentina, de avião, separando-se de Granado (só se reencontraram oito anos depois em Cuba), é tocada a belíssima música instrumental que antecipa imediatamente El otro lado del rio , a peça De 327

Usuahia a la Quiaca (são os locais de extremo geográfico, ao sul e norte, da Argentina).

Destaca-se o solo de cordas de ronroco do produtor Santaolalla, o qual articula a linha melódica principal. A música dialoga diretamente com as imagens, em primeiro plano, numa aproximação da linguagem do documentário (essa expressão audiovisual tão cara à filmografia de Walter Salles), de vários populares, em grupo, que simbolizam a América profunda percorrida na viagem de iniciação do herói – mítico e revolucionário - Guevara.

328

5.3 Mitos, identidades e alegorias: o imaginário social e simbólico no cinema brasileiro de estrada – anos 1990-2000

5.3.1 O sopro-engenho do deslocamento

[...] o tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal [...] ( Tempo e narrativa , RICOEUR, 1994, v.1, p.15)

Na literatura ocidental, não há tema mais antigo e preclaro que o da viagem. Com Homero, tivera definida um certo topos , o de mais nobre extração. Principiada em um porto familiar ao viajante, ele cumpriria o máximo périplo até retornar ao ponto de partida [...] (LIMA, 1989, p. 336)

O canto da estrada

Partir, viajar, distanciar-se do lugar nativo, seguro, natal. Sair de dentro, adentrar o mundo afora, interiorizá-lo na fronteira entre o ser, cultura, razão, mito, desconhecido, nada. Viver o ser outro, o mundo estranho-distante, bem de perto. A narrativa cinematográfica de estrada reflete certos dilemas ancestrais da vida humana, a respeito da narração dos espaços e tempos que circundam sua existência, atualizando-os em registro contemporâneo, ao mundo moderno-líquido em que vivemos.

Como discutido nos capítulos 3 e 4, os filmes de estrada feitos em diversos lugares do mundo, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, comungam, acompanhando a trajetória dos seus heróis-protagonistas, de um sentimento comum de busca de liberdade, de transformação existencial (principalmente) e coletiva frente ao mundo social com que se deparam.

Deslocar-se pode acontecer, para alguns personagens, de modo apático, inerte, casual, condição que se mantém praticamente a mesma ao final da história, porém, para maioria, mesmo em situações inesperadas em que a viagem surge, os seres que nela habitam, modificam-se à procura da plena transformação, e aplicam-se em existir com projeto de vida próprio, afastando- 329 se da má-fé 80 , do falso ser (SARTE, 1997). A estrada significa, nesses filmes, um canto de liberdade, de emancipação.

Por essa perspectiva observa-se que a narrativa de estrada possui um ponto de vista político, em geral, de caráter progressista. Os personagens, ao humanizarem-se em seu mergulho existencial, reintegrando-se à sua condição de homem complexus (Morin), adentrando na floresta mítica da individualidade , tomam atitudes de reflexão ontológica que não deixam de ser uma forma de consciência e de ação contra o movimento de coisificação veloz do mundo- mercadoria da contemporaneidade. Por outro lado, ao embrenharem-se no mundo social das pequenas cidades ou na geografia natural que permeia boa parte dos espaços de vivências dos heróis dos filmes de estrada, também abrem trilhas de viés de crítica social e ambiental. Afinal, a condição da viagem permite tornar o espaço e o tempo do ser outro, acolá, mais próximos, abrindo possibilidades de encontros verdadeiramente fraternos. E esses encontros, conforme quadro social que se vislumbra no cenário de estrada, especialmente do cinema brasileiro, foco da presente pesquisa, resultam de motivações que são apenas acidentais, como podem sugerir, muitas vezes, seus enredos, uma vez que sustentam arcos mais amplos de significação social e simbólica.

Se modernidade instala a razão nômade (ROUANET, 1993), vivida com mais intensidade nas metrópoles cosmopolitas do final do século XIX e da primeira metade do século XX, e acompanha-se da experiência da liberdade e de criação de novas formas de sociabilidade, no atual mundo global hipermoderno (LIPOVETSKY, 2010) e líquido (BAUMAN, 2001), estruturado numa economia articulada às cegas na razão instrumental , no consumismo exacerbado e na

80 Para Sarte, conforme feliz definição conceitual de Oswaldo Goiacoia Junior (2006, p. 119) - “má-fé é aplicada à atitude existencial por meio da qual se pretende denegar a consciência e o fato da liberdade e da radical contingência da existência, assim como a angústia que nelas tem origem, transferindo para fatores condicionantes situados no passado – por exemplo, a herança biológica e psicológica, o caráter da personalidade, as determinações sociais e culturais a responsabilidade pelas próprias escolhas”. Portanto, a vida do ser está envolvida em criar projeto da existência individual, que está inserido, sempre, em situação (contexto social). Ou seja, a escolha de meu projeto não pode desconsiderar os limites do projeto do outro. A partir dessa mediação indivíduo/coletivo, Sartre, posteriormente, fará a conexão teórica de sua proposta existencialista com o marxismo. Ler, a esse respeito, ensaio Questão de método , encontrado na coleção Os pensadores – Sartre (1978), seleção de texto de José Américo Mota Peçanha. 330 sociedade de risco – o qual traz, efetivamente, a coletivização dos prejuízos econômicos em seus momentos de crise sistêmica e das demandas ambientais, e em contrapartida a concentração elevada de riquezas em classes ou grupos, ou seja, a implantação de uma política social regressiva -, assiste- se à transformação das grandes cidades, muitas vezes, em espaços de asfixiante prisão social e existencial.

Não obstante, cabe ressaltar que o cenário urbano que se move no mundo contemporâneo é mais complexo do que o exposto, e acolhe, para nossa sorte, também, outras possibilidades muito mais bem resolvidas, ou em curso de experimentação, de aposta no risco e erro, em direção da felicidade de convivência humana de trocas de fato verdadeiras 81 .

Para os protagonistas de dois longas-metragens brasileiros de estrada que foram analisados anteriormente, Dora e Josué, de Central do Brasil (Walter Salles, 1998), e Taoca e Madá, de Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2003), a saída ou a continuidade fora das grandes cidades representa a busca de vida mais integral, entre o homem e a natureza, ou uma vida social mais gregária, distante do mundo caótico e violento que caracteriza as metrópoles do país de hoje.

Nota-se que, em outros road movies de produção nativa e contemporânea, o mundo em desequilíbrio está tanto no ambiente urbano como no campo ou nas cidades pequenas. Relembra-se, aqui, a marca de tal registro em A grande arte (Walter Salles, 1991) e Os matadores (Beto Brant). No longa-metragem Terra estrangeira (Walter Salles, 1995), os personagens principais, Paco e Alex, não encontram paz ou vida comunitária e cidadã mesmo num país de estreitos laços de identidade cultural com o Brasil, como o destino Portugal. Nota-se que a maioria desses filmes mencionados anteriormente, com personagens que circulam em crise nostálgica e manifestam uma forte insatisfação com o mundo social das metrópoles globalizadas de hoje, foram realizados ao longo da

81 Não desejo, com estes apontamentos, simplificar e dar conta da questão social do mundo das cidades de hoje, pois estas são apenas reflexões genéricas, de conexão argumentativa ao tema principal da presente pesquisa. 331 década de 1990. Há uma considerável mudança desse olhar na produção nacional road movie dos anos 2000.

Em Árido movie (Lírio Ferreira, 2005) e O céu de Suely (Karim Ainouz, 2006), o que motiva os heróis-protagonistas, respectivamente, Jonas e Hermila/Suely, a prolongar o tempo de suas viagens, inicialmente geradas por razões de infortúnio, não é a fuga da vida hipermoderna das grandes cidades, mas sim a vontade de alterar a trajetória da existência social excessivamente programada (o que não deixa de constituir elo de contradição à ordem da sociedade atual). A natureza é ser-espelho que reflete o sereno da inteireza almejada.

Pode-se dizer o mesmo do filme O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003) em relação à leitura da cidade grande. Em movimento migratório contrário ao transcorrido em Central do Brasil, verifica-se que a família protagonista, liderada pelos pais Romão e Rose, deseja se libertar das limitações sociais e econômicas impostas a partir da região distanciada do eixo Rio-São Paulo, no interior da Paraíba, um local economicamente mais atrasado, porém acolhedor da cultura popular que sofre menor influência da cultura massiva. Nesse longa, a música pop e romântica de Roberto Carlos, presente em oito canções, adquire a função precisa de mediar o contexto social de referência e musicar, versejar, os sonhos de felicidade daquela família.

Guevara, de Diários de motocicleta (Walter Salles, 2004) e Johann, Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), além dos já mencionados Mandrake de A grande arte (Walter Salles, 1991), e Toninho, em Os matadores (Beto Brant, 1997), são personagens que se deslocam em busca de aventura ou novas formas de vivência, desde a fase preparatória de partida para suas pequenas epopeias. Temos, aqui, figuras de ficção que representam atores sociais de diversas épocas do século XX - relembra-se que Johann e Guevara estão envolvidos em histórias de vida que passam, respectivamente, na década 1940 e 1950, e Mandrake e Toninho, situam-se nos anos 1990, no período em que os filmes foram produzidos.

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Em todos os quatro longas-metragens mencionados acima, a estrada acaba por significar espaço e tempo de experimentação existencial. A viagem desempenha, desse modo, uma função formadora do deslocamento , como conceitua Michel Onfray (2009), para falar da importância da viagem para a reflexão filosófica.

Conforme já discutido no capítulo 4, a narrativa cinematográfica de estrada assemelha-se ao romance de formação ( bildungsroman ), que se caracteriza pelo desenvolvimento ficcional voltado ao herói individual, cujo primeiro protótipo foi criado na obra romântica de Goethe - Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1821) e difundido amplamente no alto e baixo modernismo por autores como James Joyce, Thomas Mann, Hermann Hesse, Guimarães Rosa, Günter Grass, Peter Handke 82 ou Jack Kerouac (MAZZARI, 1999; BOLLE, 2004). Muitos desses autores criaram romances com histórias de personagens em condição de viagem. Afinal, o tema da mobilidade torna-se lugar comum ao mundo das artes no século XX.

Willi Bolle (2004) propõe, no livro Grandesertão.br , a tese de filiação da obra Grande sertão, veredas (Guimarães Rosa) à vertente contemporânea do romance de formação (BOLLE, 2004, p.376), acompanhando a inovação do gênero literário produzido durante o século XX, no qual “a história de um indivíduo tem também características marcantes de um romance social (BOLLE, 2004, p.376)”. Ora os road movies estudados possuem, certamente, essa diretriz mediadora , diria central, na filmografia brasileira de estrada dos anos 1990-2000, entre o amplo desenvolvimento da exposição da individualidade e da crítica social.

82 Peter Handke (1942), poeta e prosador nascido na Áustria, foi roteirista de importantes filmes de Wim Wenders, como A angústia do goleiro na hora do pênalti (1971), Movimento em falso (1975) e As asas do desejo (1987). Na versão cinematográfica de seu romance Movimento em falso , o protagonista é um escritor em crise de identidade e chama-se Wilhelm Meister , que vaga por estradas e cidades da Alemanha Ocidental, sob o olhar contracultural próprio aos anos 1970, criando uma paródia à figura heróica romântica do protótipo personagem homônimo do romance de formação de Goethe . Ver referido filme disponível em versão DVD e dados biográficos do escritor in: Peter Handke. Wim Wenders . Disponível em: http://www.wim- wenders.com/bio/peter_handke_bio.htm>. Acesso em: 17 jan. 2010.

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O filme ainda não mencionado, dos onze longas-metragens em foco nesta tese, é Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003). Com Lisbela e Leléu, os caminhos trilhados apontam para a memória coletiva e as narrativas da aventura e do melodrama romântico. Desejosos de viver intensamente os caminhos da existência, eles arriscam-se a compor elo amoroso, a despeito das diferenças de formação social de cada um, mesmo que isso signifique, para ela, o rompimento familiar. Leléu é o que menos tem a perder, em comparação ao sacrifício de Lisbela, uma vez que a sua vida está sustentada no eixo da errância, é impulsionado por seu temperamento inquieto e criativo, e originário de condição social precária.

A viagem na estrada, em Lisbela e o prisioneiro e em muitos filmes analisados, significa também a memória coletiva reavivada que permeia a questão da identidade cultural, independente do fato de que a trama imaginária seja, também, vinculada à trajetória pessoal dos realizadores. A peça e o filme transcorrem nos anos 1960 - período de passagem da infância à adolescência do diretor Guel Arraes -, no Recife, cidade próxima daquela ilustrada pelo escritor Osman Lins, Vitória de Santo Antão, e narrada no filme. Com a cassação do pai pela ditadura militar, em 1969, aos dezesseis anos, o diretor, nascido em 1953, foi com a família para o exílio na Argélia, onde morou por três anos 83 , desgarrando-se, forçosamente, portanto, da vida social que o formara.

Como já salientado nas análises do filme, apresentadas nos subitens 5.1 e 5.2, o enredo, as imagens e sonoridade de Lisbela e o prisioneiro , amparados em cancioneiro tradicional e atual da MPB - este, de extração mais nacional do que regional - captam esse passado recente do país como liame - alegoria histórica - para entender o contemporâneo, narrado a partir da representação da cultura popular da Zona da Mata Pernambucana, região ao redor de Vitória de Santo Antão e Recife, na busca do que Guel Arraes chama de retrato do Brasil suburbano.

83 Ver perfil do diretor no site oficial da TV Globo. Guel Arraes. Memória Globo – Rede Globo Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYP0-5271- 257140,00.html >. Acesso em: 17 jan. 2010. 334

Desse modo, o regional e o nacional, o passado e o presente são articulados em conjunto no sentido de vislumbrar uma cultura contemporânea composta desse processo histórico de hibridismo de matrizes – massiva e popular - e da contribuição de regionalismos e de linguagens audiovisuais variadas – cinema, rádio e televisão. 335

Quadro 11: Filmes brasileiros de estrada – 1990-2008: Dados de referência e relação de protagonistas.

Anos 1990

Diretor / Ano de Ambiente Filme Protagonistas/Atores Nascimento Geográfico Ficcional A Grande Walter Salles Cidade do Rio de Mandrake (Peter Coyote) Arte (1956) Janeiro, Mato (1991) Grosso, Bolívia e África Terra Estrangeira Walter Salles Cidades de São Paco (Fernando Alves (1995) (1956) Paulo e Lisboa Pinto). Daniela Thomas Alex (Fernanda Torres) (1959) Os Matadores Beto Brant Cidade do Rio de Toninho (Murilo Benício) (1997) (1964) Janeiro e região de Múcio (Chico Diaz) fronteira com o Alfredão (Wolney de Assis) Paraguai Central Walter Salles Cidade do Rio de Dora (Fernanda do Brasil (1956) Janeiro e sertão Montenegro) (1998) pernambucano Josué (Vinícius de Oliveira)

Anos 2000

Deus é Brasileiro Cacá Diegues Alagoas, Taoca (Wagner Moura) (2003) (1930) Pernambuco e Madá (Paloma Duarte) Tocantins A Caminho das Vicente Amorim Paraíba, Ceará, Romão (Wagner Moura) Nuvens (1966) Bahia e Rio de Rose (Cláudia Abreu) (2003) Janeiro

Lisbela e o Guel Arraes Zona da Mata Lisbela (Débora Falabella) Prisioneiro (1953) Pernambucana Leléu (Selton Mello) (2003)

Diários de Walter Salles América do Sul, de Ernesto Guevara (Gael Motocicleta (1956) Buenos Aires a García Bernal) (2004) Caracas Alberto Granado (Rodrigo de la Serna) Cinema, Marcelo Sertão do Ranulpho (João Miguel) Aspirinas e Gomes Pernambuco Johann (Peter Ketnath) Urubus (2005) (1964)

Árido Movie Lírio Ferreira Sertão/agreste Jonas (Guilherme Weber) (2006) (1965) pernambuco

O Céu de Suely Karim Aïnouz Sertão do Ceará Hermila (Hermila Guedes) (2006) (1966)

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5.3.2 Chão e céu, água e terra: encantamento e realidade nas narrativas de estrada

Após essa síntese das histórias de filmes brasileiros road movies dos anos 1990-2000, focando os conflitos ou motivações ficcionais para o deslocamento dos heróis-protagonistas, que deixam o porto-seguro, a terra natal ou aquela escolhida para perdurar, em direção ao desconhecido e à instável pertença, pretende-se aprofundar, adiante, a análise da representação social e cultural que se pode ler nessas narrativas, por meio do entendimento dos temas e comportamentos míticos que a narrativa de estrada pode enunciar. No próximo subitem tal corpus fílmico será interpretado por intermédio de outra construção do imaginário simbólico: a alegoria.

Retoma-se, nesta parte, a análise feita no capítulo 4 - Na floresta da individualidade: a mitologia moderna e o cinema de estrada , na qual, com base no estudo de temas comuns que povoam os mitos das culturas tradicionais e daqueles que abordam as sociedades modernas ou complexas, foram selecionados eixos temáticos mitológicos recorrentes à narrativa de estrada com base em pesquisa exploratória realizada no tópico. Eis o resumo do apanhado:

1. a jornada heroica em busca do caminho autêntico (o herói visionário, anti-herói, o velho-sábio); 2. o mito fundador (o retorno às origens); 3. a ritualização da passagem dos ciclos da vida; 4. a morte iniciática; 5. a natureza como elo primitivo, essencial e transcendente do homem; 6. o embate destino e individualidade.

A seguir pretende-se utilizar essas temáticas selecionadas para uma a nálise específica da filmografia principal da pesquisa que articula a aproximação entre mito e cinema, entre o pensamento selvagem e o pensamento moderno, contemporâneo. 337

Para entendimento maior dessa articulação da dinâmica social e cultural de dimensão antropo-histórica, dos liames entre sociedades ditas primitivas, tradicionais, e complexas ou modernas, incorpora-se a proposta teórico- metodológica da teoria da complexidade de Edgar Morin (2005), destacando, assim, duas naturezas do saber que são transtemporais, o que ele denomina de pensamento complexo - ao mesmo tempo, uno e duplo : o simbólico/mitológico/mágico e o empírico/técnico/racional.

Os ritos de passagem dos heróis de estrada: o caminho autêntico

Na exposição síntese realizada anteriormente para falar das motivações da estrada dos heróis-protagonistas – a despeito do contexto econômico da nossa modernidade tropical, geradora de constantes ciclos migratórios em função de carências profundas, que move, por exemplo, a família de Romão e Rose, em O caminho das nuvens , com a travessia de 3.000 km em bicicletas, ou de razões sócio-econômicas assemelhadas, que acarretaram a viagem de Dora e Josué ( Central do Brasil ), em direção geográfica contrária ao movimento da referida família, neste segundo filme, seguindo do sudeste ao nordeste – a jornada heroica em busca do caminho autêntico é o sentido que domina, norteia, o clímax narrativo exposto ao fim dos filmes (especialmente em relação aos protagonistas adultos Dora e Romão).

Ao contrário de muitos filmes de caráter mais político do Cinema Novo ( Deus e o diabo na terra do sol , Glauber Rocha; Vidas secas , Nelson Pereira dos Santos; Os fuzis , Ruy Guerra; entre outros), em que as agruras sociais são expostas de modo tão brutal, a ponto de neutralizar, por completo, a subjetividade dos narradores de origem social mais humilde, os protagonistas, em ambos os longas-metragens de estrada contemporâneos mencionados, passam por mudanças, do ponto de vista psicológico, muito intensas.

Pode-se alegar que os filmes estão negligenciando o contexto social e político, a partir de abordagens discursivas de caráter aderente ao modelo econômico que vicejam seu cinema, ou seja, abordagens funcionalistas, mas, não se pode negar que os filmes de estrada dos anos 1990 e 2000 acabam por dar voz 338 individual que não se escuta no cinema de base marxista ortodoxa dos 1960 - reafirmo, ecoa-se, nestes, efetivamente, a consciência de classe dos realizadores projetada nesses personagens mais humildes.

A Dora, do início do filme, está completamente distante do papel do arquétipo do velho-sábio, mas a jornada lhe permite associar-se a essa figura ao seu final. Seu par de estrada, o menino Josué, sai da dormência fraturada pela dura lida que lhe impõe a orfandade precoce e reconquista a inocência quase perdida.

Em outro road movie , Romão, após duras provas da viagem, não corrompe seu sonho de ter uma vida melhor e nega-se a sujeitar sua força de trabalho, a qualquer preço, às acomodações ordinárias que lhe oferece a realidade mais comum, colocando, inclusive, seu casamento com Rose em grande conflito.

Como foi afirmado no começo da parte 5.3.1 O sopro-engenho do deslocamento , a viagem significa espaço e tempo de experimentação existencial para a maioria dos protagonistas dos filmes ro ad movie das décadas de 1990 e 2000. Aqui temos uma faceta da máscara do herói visionário mítico , cuja projeção imaginária fica saliente nas figuras dos personagens Guevara, de Diários de motocicleta, ou Jonas, de Árido movie , este vivenciando a mesma comunhão simbólica do personagem homônimo bíblico.

A experiência visionária de caráter mítico pode ser identificada também na jornada dos heróis de Árido movie e Diários de motocicleta. Neles, a natureza representada comunga dos momentos de clímax espiritual dos viajantes. Ela é mais do que realidade apreendida pela percepção. A natureza, nesses filmes, fala de modo encantado.

A barriga da baleia, onde ocorre a renovação das energias vitais e espirituais, no caso da história do personagem Jonas, fabulado por Lírio Ferreira em Árido movie , é transcriada no espaço do sertão/agreste nordestino – reveja-se a 339 passagem/sequência de ascese na gruta, onde ele, junto do mestiço Zé Elétrico, na persona de pajé provedor do rito, experimenta um chá alucinógeno.

Em Diários de motocicleta , há um duplo espaço físico de experimentação espiritual – as terras dos Andes e a Floresta Amazônica, onde Guevara atravessa o rio/mar a nado, em enorme esforço corporal, cujo epifania da luz- esguicho é atingida na margem do O utro lado del rio , conforme clama emotivamente a canção de Jorge Drexler, que faz alusão metafórica a este momento especial do filme .

A imagem da flor haicai: a natureza em rito

Nessas passagens emerge outro tema mítico comum aos filmes de estrada: a natureza como elo primitivo, essencial e transcendente do homem. As imagens cinematográficas da natureza aproximam-se da linguagem poética como num haikai de Bashô - “a armadilha do polvo, sonhos flutuantes, lua de verão” (LEMINSKI, 1990, p. 102) - ou em versos de apanhado telúrico e mágico, a exemplo daqueles que Manuel de Barros (1916) costuma criar: “silêncios e gerânios, iluminadamente, aves de ilhas trazem perfumes vermelhos” (BARROS, 1989, p. 62).

Remeto tais leituras possíveis para interpretação de cena selecionada, primeiramente, de Terra estrangeira , e depois, de O céu de Suely. Numa sequência do filme de Walter Salles e Daniela Thomas, Paco e Alex estão sentados num platô rochoso e miram o mar Atlântico. Acabaram de se conhecer e conversam sobre a condição contingente de estrangeiros, do exílio de mar e terra que vivenciam em Portugal. Olham o vasto horizonte como um corpo-farol que deseja guardar o mar em ordenamento luminoso.

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Imagem 73 – Paco e Alex em Terra estrangeira (1995)

Sentados num solitário pedaço limite do continente europeu, em atitude contemplativa, em acariciamento da matéria líquida, movida por ímpeto físico de tempo circular, Paco e Alex vão, aos poucos, abrindo-se a outra percepção de suas histórias individuais, e, como num ritual mágico, seus dilacerantes conflitos de identidades de toda a ordem adquirem uma dimensão pequena, quase nula, naquele momento. O mar experimentado dissipa a voz de Narciso e reflete outras ondas da existência guiadas pela ninfa Eco. A passagem reacende a memória coletiva do mítico embate destino e individualidade.

De O céu de Suely, escrevo sobre cena cinematográfica parcialmente ilustrada na foto a seguir. A heroína está na estrada, inicialmente sozinha, num alvorecer de paisagem sertaneja, com enquadramento de seu corpo inteiro. Ouve-se, ao fundo, a música incidental eletrônica minimalista do alemão Lawrence/Peter M. Kersten, Somebody told me, que amplia a sensação introspectiva da sequência.

A natureza, como na cena descrita de Terra estrangeira , é também filmada em grande amplitude. No outro, o mar, neste, a vegetação semiárida do sertão cearense e o sol captado em momento de pouca hostilidade, se comparado às altas temperaturas que gera quando está a pino. Em lento nascer, o sol sertanejo despertado estende uma mão acolhedora e acaricia a alma solitária de Hermila.

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Imagem 74 – O personagem Hermila em O céu de Suely (1995)

“Lento e exato” como no famoso poema 84 do “sol escarlate” poente descrito por Wladimir Maiakóvski (1985), a poesia visual e sonora da cena O céu de Suely mostra, por sua vez, uma natureza de delicada iluminação, de voo de pássaro, flagrando a passagem dos males da heroína. O sol de “brilho eterno”, de existência plena, desperta sonolento a dor da solidão de Hermila/Suely (como na estadia de veraneio do poeta russo), clareando a estrada da vida, que continua.

A metamorfose ontológica da matéria líquida

A estrada, nesses filmes, retomando apontamentos já realizados no capítulo 3 a respeito da estrutura e enunciação do gênero road movie , significa mudança, transição, rito de passagem, de sensível apreensão da rota do destino, fluxo da vida; figura que se assemelha às imagens poéticas e filosóficas por excelência relacionadas à água – rio e mar. Não à toa que essas figuras estão presentes em vários dos longas-metragens de estrada analisados, reforçando o sentido de metamorfose ontológica vivido pelos heróis em filmes do gênero.

Afora as sequências-rito, envolvendo rio e mar, dos protagonistas Paco e Alex (Terra estrangeira ) e Guevara ( Diários de motocicleta ), relembra-se que Deus é brasileiro encerra-se com o lento vagar, em rodopio, de Romão e Rose no leito

84 Trata-se do poema A extraordinária aventura vivida por Wladimir Maiakóvsk no verão na datcha. Datcha é casa de veraneio em russo. Seu final possui os seguintes versos que lhe deram visibilidade no Brasil: “[...] brilhar pra sempre, brilhar como um farol, brilhar com brilho eterno, gente é pra brilhar, que tudo o mais vá pro inferno, este é o meu slogan e do sol”. Tradução de Augusto de Campos (MAIAKÓVSK, 1985, p. 86-90). 342 do rio São Francisco, ao som de Melodia sentimental, de Villa Lobos, na versão letrada por Dora Vasconcelos e cantada por Dvajan, captando, assim, o tempo circular característico do tempo mítico.

Comenta-se, ainda, a onipresença do elemento água no filme Árido movie . O longa-metragem começa e termina abordando o tema. O mar esverdeado do Recife preenche, sem pressa, toda a tela em cena de abertura e reverbera a alegoria utópica da expressão retórica - “o mar vai virar sertão e sertão vai virar mar”, em nova leitura, aludindo ao texto de Os sertões e à iconografia de Deus e Diabo na Terra do Sol .

Paralelamente à incursão de Jonas à terra profunda (o retorno psicológico ao território de origem e de sua identidade individual), a investigação da matéria líquida, protagonizada pela personagem feminina Soledad, é tratada, de modo mágico, na persistente procura e no encontro da fonte das águas mimosas , de efeitos misteriosos, guardadas pelo arquetípico Seu Velho (José Celso Martinez Corrêa), que reencarna o espírito profético de Antonio Conselheiro.

A narrativa de estrada e o tempo cíclico

Guevara, Hermila, Paco, Alex, Taoca, Madá, Romão, Rose, Lisbela, Leléu, Ranulpho, Johann e Jonas são personagens de idade jovem. Como característica comum aos filmes road movie , conforme discutido no capítulo 4, narrar rituais de passagem à vida madura é uma situação que caracteriza boa parte dos filmes realizados no registro ficcional do gênero.

Essa tese tem ressaltado, em várias partes do texto, que as passagens dos ciclos da vida na era da hipermodernidade são muito fluentes, num quase rompimento das fronteiras etárias. Trazer a temática dos ritos de passagem, da vida infantil à adulta, da maturidade à velhice, é responder, em termos simbólicos e narrativos, a conflitos sociais e psicológicos do mundo real, à semelhança do que realizaram (ou continuam a fabular) os mitos em diversas culturas primitivas.

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Narrar esses rituais de passagem da vida humana, como opera o gênero de estrada, representa uma forma de apaziguamento interior, no plano do imaginário, do esgarçamento social que a vida hipermoderna impõe, em sua voragem de mudança e futuro, sem lastro de seletividade ou interiorização reflexiva. Capta-se, desse modo, uma percepção de tempo circular, do fluxo do cosmo, da natureza e da vida humana tão presentes nas narrativas míticas.

Para clarear um pouco mais esse ponto, exponho, a seguir, uma feliz definição de Marilena Chauí a respeito da função social do mito :

[...] é essencialmente uma narrativa mágica ou maravilhosa, que não se define apenas pelo tema ou objeto da narrativa, mas pelo modo (mágico) de narrar, isto é, por analogias, metáforas e parábolas. Sua função é resolver, num plano imaginativo, tensões, conflitos e antagonismos sociais que não têm como ser resolvidos no plano da realidade. A narrativa os soluciona imaginariamente para que a sociedade possa continuar vivendo com eles, sem destruir a si mesmo (CHAUÍ, 2002, p. 36).

Se as histórias de estrada estão destituídas de seres extraordinários que podem estar numa história de ficção científica ou em filmes de terror, cuja quimera explicita evidente o seu reconhecimento, na direção da similaridade fabular do fantástico, a narrativa de estrada, em boa parte dos filmes brasileiros e contemporâneos pesquisados, acolhe, projeta uma dimensão simbólica do tempo transcendente e circular que se encontra na expressão da poesia.

É nessa clave de enunciação de um realismo poético , similar ao tempo e ao comportamento mítico, que se deve interpretar a jornada do jovem herói dos filmes de estrada, quando se depara com as mais diversas provações que marcam seu rito de passagem à vida espiritual adulta, em busca do caminho autêntico, a exemplo das histórias de Guevara, Hermila, Jonas, Mandrake e Johann, entre outros.

Apesar do povoamento de personagens jovens (Guevara, Johann e Hermila) ou de idade cronológica que podemos denominar de adulto jovem (Jonas e Mandrake) nos filmes road movies, a narrativa de estrada pode prover o rito de (re)nascimento espiritual também de personagens maduros como Dora 344

(Central do Brasil ) ou Alfredão ( Os matadores ). Numa mediação da realidade social, esses longas-metragens versam sobre a mitigação da ética no mundo contemporâneo.

O mito fundador e a morte iniciática

Por último, dos seis temas ou comportamentos míticos que podem ser identificados numa narrativa de estrada, conforme síntese exposta no começo desta parte, falta, ainda, abordar, além do tema da morte iniciática, como certas histórias do gênero remetem à narrativa simbólica dos mitos de origem.

No subitem - 3.2 Itinerários do tempo – desenvolveu-se a análise a respeito da conexão dos filmes de estrada Easy rider (1969) e Bye bye Brasil (1979) com os mitos de fundação. No filme de Cacá Diegues, a busca do paraíso perdido de origem, que motiva a viagem dos quatro heróis na estrada em direção a regiões menos urbanizadas do país - numa possível leitura do plano simbólico desta trama ficcional - constrói uma imagem de perfeição, bem como uma escatologia de salvação ligada ao universo marxista, que confluem na figura do povo brasileiro mais humilde. Uma tradição imaginária elaborada pelo Cinema Novo nos anos 1960 e que ainda é marcante no cinema brasileiro contemporâneo.

Essa imagem de redenção, por meio do povo mais simples, é evidente em Central do Brasil . Não se pode deixar de comentar que os personagens do filme possuem nomes bíblicos, a exemplo de Josué, o menino protagonista, e seus irmãos Isaías e Moises. No registro bíblico, relembra-se que os dois últimos mencionados são profetas que conduziram o povo judeu do Egito à terra prometida , Canaã, atual Estado de Israel, em duradoura peregrinação. No filme de Salles, a terra prometida é o paraíso perdido reencontrado , simbolicamente, na região semiárida do interior nordestino.

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Imagem 75 – O personagem Josué em Central do Brasil (1998)

O filme, como foi retratado em vários outros filmes do Cinema Novo e da fase Embrafilme, deseja, metaforicamente, refundar o Brasil, atingindo seu centro profundo, sua essência, por meio de utópica identidade nacional, em que elementos de pertença de expressão de brasilidade são mesclados a ideais de tradição do pensamento de esquerda, refluindo mitos e apanhado religioso de redenção.

Além disso, indiretamente, Central do Brasil também trata do contexto histórico da globalização, criando uma visão de crítica negativa a esse sistema econômico e social, à medida que elabora uma encenação cinematográfica – visual e sonora – dualista: de rejeição ao mundo urbano das metrópoles, espaço e tempo da hipermodernidade e, em contrapartida, de afirmação do mundo idílico que se aproxima do universo rural, da natureza, da tradição cultural, retido no mundo social do sertão.

Aqui se constroem duas alegorias históricas e que serão analisadas no próximo subcapítulo – o da nação e da era hipermoderna. No filme de Salles, há uma grande tensão dessas imagens simbólicas, porém não é a mesma dimensão de sentidos que vamos encontrar em outros filmes de estrada, uma ambiguidade própria das alegorias.

O filme anterior de Walter, Terra estrangeira , realizado em conjunto com Daniela Thomas, também percorre elementos de significação da figura da estrada que se assemelham a Central do Brasil . Naquele, filmado no Brasil e em Portugal, em vez da afirmação e refundação da nação deste, no mítico 346 sertão nordestino, temos o cenário de crise, ruína e nostalgia do tempo e do espaço desgarrado.

A alegoria da era hipermoderna é enunciada com imagens agonizantes. A morte de dois protagonistas – Miguel e Paco - caminha para suplantar e sublimar toda dor coagulada. A música e letra da canção Vapor Barato , por meio da marcante interpretação de Gal Costa, colaboram para tornar esse clímax derradeiro, que encena a morte trágica de Paco, uma viagem que não termina.

A busca do caminho autêntico, não necessariamente posta na história de vida de Paco, ou de Miguel, mas presente na voz dos realizadores , só poderia se concretizar na morte de parte dos protagonistas, que adquire o simbolismo da morte iniciática, pois é nela que se realiza a utopia do mundo coletivo harmonioso. Ressalta-se que essa condição mítica da morte dos protagonistas é tema fundamental para compreensão dos enredos dos road movies Easy rider e Thelma e Louise (ver capítulo 4) .

A remissão ao mito fundador é reconhecida com clareza também em outros dois filmes, Deus é brasileiro e O caminho das nuvens , que compõem o itinerário denominado no subitem anterior de As duas margens do Rio São Francisco . A longa jornada a ser vencida pelos heróis de ambos contribui para criar uma imagem de êxodo e peregrinação espiritual - a religião é enunciada no enredo por meio das figuras de Deus e Madalena, no filme de Cacá Diegues, e Padre Cícero e o Cristo Redentor, no road movie dirigido por Vicente Amorim. Além disso, as viagens de extenso percurso geográfico salientam a condição de façanha extraordinária, envolvendo grande esforço físico e psicológico para superar as diversas provações. São, portanto, viagens de dimensão épica.

A paisagem humana visualizada em Deus é brasileiro e A caminho das nuvens , obtida na variedade regional por onde passam os heróis, sobretudo nos rincões distantes do mundo metropolitano, criam matéria real e figurada do Brasil profundo, do povo brasileiro, enfim, do lugar e tempo de origem da nação 347 imaginada. Como se discutiu na análise das trilhas sonoras, a farta amostra de canções nativas contidas nesses longas-metragens colabora para expressar a alegoria da brasilidade de gesto brejeiro e cordial.

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5.3.3 O ser e o lugar deslocado: as alegorias históricas da filmografia brasileira de estrada – anos 1990 e 2000

Definições, usos e apropriações da alegoria

Dando continuidade à análise do imaginário social e simbólico que a narrativa de estrada pode expressar nos filmes brasileiros em estudo, após a interpretação de temas e comportamentos míticos, pretende-se, a seguir, aplicar uma ferramenta de análise pautada no universo da linguagem das alegorias do mundo contemporâneo. Antes da avaliação do corpus de pesquisa, cabe realizar algumas definições e considerações teóricas sobre o tema.

A alegoria representou para Walter Benjamin (1892-1940) um estilo de análise do tempo histórico e da produção cultural, de reabilitação da leitura do simbólico na trama do mundo social, fundamental. Ela está presente como categoria analítica em sua tese de livre docência apresentada na Universidade de Frankfurt – Origem do drama barroco Alemão (1984) – bem como consta, de maneira explícita ou articulada a outras formas de interpretação, nos seus ensaios e na outra obra basilar do crítico alemão, Passagens (2007).

Jeanne Marie Gabnebin (1994) afirma que o uso da alegoria por parte de Benjamin trouxe a “reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao ideal de eternidade que o Símbolo encarna”. Gabnebin faz breve genealogia do tema e aponta a pouca importância dada pelos gregos na Antiguidade para a leitura alegórica, tendo em vista a jornada de afirmação do lógos , com seu apogeu no período clássico do século IV a.C.

Nesse percurso histórico temos a valorização do gesto interpretativo alegórico da tradição cristã amplamente difundida na Idade Média e seu ocaso com o triunfo do pensamento científico a partir do Renascimento Europeu e a criação de uma “nova ciência do histórico”, que busca a fidelidade dos documentos e das exigências da razão e da moral.

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No Romantismo, a alegoria perde espaço para o símbolo, na trama do gênio individual que comunga com a imagem da “plenitude espontânea do símbolo” (GABNEBIN, 1994, p.40). Não obstante, na Idade Moderna, Benjamin vai observar condição privilegiada da expressão alegórica para o movimento artístico Barroco, que captou seu contexto histórico, marcado pela intensa encenação das contradições sociais, exemplificado nos potentes debates políticos e religiosos travados na Reforma/Contra-Reforma, da ascensão do pensamento científico e, ao mesmo tempo, reafirmação da mentalidade religiosa (não são estes também os dilemas enfrentados pelo homem na modernidade?).

Benjamin não só vai reabilitar a importância da alegoria na leitura da produção artística do Barroco e do período histórico a este correlacionado, mas também preservar a condição expressiva do símbolo para ler a modernidade, apreendendo daquela certa experiência mística contida nos textos sagrados.

Paisagens alegóricas da modernidade

Esta leitura da alegoria será amplamente retratada por Benjamin na obra Passagens (2007). Segundo Buck-Morss, ele se apropria do modo alegórico para narrar a modernidade por meio de imagens da cidade e das mercadorias – posto de gasolina, luvas, etc. –,tornando-os emblemas modernos assim como as imagens naturais expressavam as alegorias barrocas – um cão, uma pedra, mulher velha, caveira.

As alegorias da modernidade em Benjamin oscilam entre as imagens de contemplação extasiada e a decadência, a desintegração, a ruína. A alegoria possibilita a reordenação do tempo numa contemplação retrospectiva, na tentativa de recompor o presente instantâneo do ponto de vista da história, apreendendo a temporalidade fugaz que reina na metrópole:

“O ponto em questão para Benjamin baseava-se em que, tanto em sua expressão alegórica (como passagem eterna) como simbólica (como eternidade fugaz), a temporalidade entra em toda a experiência, não só abstratamente, como Heidegger o queria 350

em sua “historicidade” do Ser, mas concretamente. Aquilo que é eternamente verdade, só pode, assim, ser capturado nas imagens transitórias e materiais da própria história (BUCK-MORSS, p.43- 44)”.

Sérgio Paulo Rouanet (1993), ao comentar a obra de Walter Benjamin e a questão da modernidade, afirma que o eminente autor da Escola de Frankfurt nega análise clássica de Weber, que propõe que o capitalismo trouxe uma racionalização cultural e social radical, gerando o pleno processo de desencanto do mundo – secularização e declínio do pensamento mítico- religioso:

Ele recusa a descrição [de Weber], dizendo que a modernidade tal como ela se deu historicamente representa o reino do mito e não o do desencantamento. Em vez de despertar o homem do seu sonho mítico, a modernidade capitalista o mergulhou numa nova mitologia (ROUANET, 1993, p.67).

Benjamin desenvolve a tese de que o capitalismo é uma religião sem dogmas, apoiada na fé da razão e da ciência. Uma visão crítica da modernidade que se aproxima daquela elaborada, em Dialética do esclarecimento, por Adorno e Horkheimer, seus colegas do núcleo de estudos de Frankfurt, na qual analisam a dissimulação da lógos no mito grego, e como esse ressurge no mundo moderno, por meio da razão burguesa que paralisa a crítica social (ideologia) e aprisiona os sujeitos com a produção fetichista da Indústria Cultural – o animismo havia dotado a coisa de uma alma, o industrialismo coisifica as almas (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 40).

Na referida obra, para compor a tese de amalgama entre mito e razão, cria-se uma minuciosa análise da Odisseia, de Homero, cuja famosa passagem do canto das Sereias 85 , em que a tripulação de Ulisses se vê obrigada, por conselho de Circe, filha do Sol (Hélios), a tampar os ouvidos com cera doce, para não ouvir as vozes enfeitiçadas e traiçoeiras daqueles entes femininos de natureza humana e animal (pássaro), e pede que o amarrem ao mastro, mas

85 Segundo o tradutor Carlos Alberto Nunes, as sereias são seres meio humanos e meio aves e não peixes, associação que se costuma fazer em outras versões realizadas para o mito. Detalhes da encenação do mito estão baseados na versão em português de Nunes para o poema Odisseia (HOMERO, 2000). 351 com os ouvidos livres, para difícil provação mítica, pressagiando, assim, alegoricamente a dialética do esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 45). Por essa imagem e interpretação, o homem deve afastar-se do mito, da natureza desconhecida, incompreensível, para o domínio da vontade, dos instintos e da natureza pela razão.

Não obstante essa aproximação deles com Benjamin, no que tange à visão de base teórica marxista, de crítica negativa ao sistema e civilização capitalista, constata-se que o autor de Passagens (2007) constrói uma hermenêutica bastante distinta para aprofundar sua análise da modernidade. A alegoria torna-se uma ferramenta analítica fundamental para Benjamin, acomodando sua visão ambígua, dilacerada, melancólica, nostálgica e, paradoxalmente, de saudação da vida moderna, do mundo fluido e inebriante que permeia as entranhas da metrópole.

As galerias , o cinema, o flauneur , as prostitutas, a multidão, a fotografia, a fábrica, o colecionador fascinam e causam espanto, rejeição em Benjamin, as quais ele cria imagens polifônicas da cidade, da vida moderna, a exemplo, da criação visual alegórica do filme expressionista de Fritz Lang (1890-1976), Metrópolis (1927), produzido na Alemanha e numa época comum.

Imagem 76 - Metrópolis (Fritz Lang, 1927)

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Ler o autor de Passagens e de A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica é acompanhá-lo num fluxo de pensamento labiríntico e nômade, como num filme de estrada percorrendo a densa geografia urbana, humana:

[...] O mágico e o cirurgião estão entre si como o pintor e o cinemagrafista [...] a imagem do pintor é total, a do operador é composta de inúmeros fragmentos, que se recompõem segundo novas leis. Assim, a descrição cinematográfica da realidade é para o homem moderno infinitamente mais significativa que a pictórica, porque ela lhe oferece o que temos o direito de exigir da arte: um aspecto da realidade livre de qualquer manipulação pelos aparelhos, precisamente graças ao procedimento de penetrar, com os aparelhos, no âmago da realidade (BENJAMIN, 1994, p.187).

Outras leituras da alegoria

Para Ismail Xavier (2004) a alegoria deve ser compreendida, não só como uma figura de linguagem ou retórica, de proximidade à metáfora e hipérbole, mas também como expressão do símbolo de um complexo sistema de significação que se articula em tempo prolongado, expressando, assim, o imaginário social e simbólico de um povo ou período histórico.

As alegorias estão presentes e articulam-se no conjunto de imagens, símbolos, discursos e narrativas construídos na produção da literatura, artes, mitologia e religiões da Antiguidade e da Idade Média, em geral, de convivência harmoniosa com o pensamento e narrativa mitológica, e mantiveram-se ativas na produção filosófica, artística e cultural (incluindo a dos meios massivos), realizada nos tempos Modernos e Contemporâneos.

Ismail Xavier (2004), apoiado na interpretação que Walter Benjamin faz do conceito de alegoria, afirma que ela é um dos processos de significação mais manifestos da mediação social. Ao mapear a noção histórica da alegoria, comenta seu sentido elementar na tradição clássica: “etimologicamente allos (outro) + agoreuein (falar em lugar público), como tipo de enunciação na qual alguém diz algo, quer dizer algo diferente, ou manifesta algo para aludir a uma outra coisa” (XAVIER, p. 345).

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Discute, ainda, no referido ensaio intitulado A alegoria histórica (2004), sua importância para leitura de textos de simbologia mítica das religiões judaico- cristã e sua utilização, em tempos modernos, nos campos da teoria literária e do cinema, nos quais ela ganha uma noção interpretativa que aproxima o processo alegórico do processo cultural, ou seja, da trama das mediações sociais do contexto histórico. O crítico de cinema exemplifica os processos de alegorias citando as alegorias do tempo, nos mitos da Grécia Antiga, do bem e do mal, em diversas culturas, e da nação, nas sociedades modernas, entre outros exemplos.

O estudioso da literatura brasileira João Adolfo Jansen (2006) elaborou importante obra para compreensão dos usos e definições de alegoria, dissertando, sobretudo, a respeito da linguagem verbal e enfatizando a produção cultural e artística clássica Greco-Romana dos padres e teólogos da Idade Média e de pintores e poetas do Renascimento Europeu (Florença). O autor parte da premissa da existência de duas naturezas de alegoria: a alegoria dos poetas e dos teólogos , comuns aos períodos históricos e lugares de referência, mas que podem ser interpretadas em outros tempos.

A alegoria dos poetas apresenta a técnica metafórica de representar abstrações, de criar sentido figurado, a partir da busca de caminhos diversos para a função mimética da linguagem. Constitui-se de expressão verbal retórica, de ornamento do discurso, envolvendo a semântica das palavras. Exemplificando, afirma o autor que, no clássico épico Eneida , de Virgílio, que narra a longa viagem do herói Enéias, de Tróia à atual Itália, a referência ao mito de Orfeu compreende a “alegoria do percurso da alma humana pela vida ativa, enquanto se prepara para tornar-se instrumento da ação divina e atingir a beatitude da vida contemplativa” (JANSEN, 2006, p.11).

A alegoria dos teólogos , que percorreu denominações variadas como figura, figural, tipo, antítipo, tipologia , constitui-se na interpretação ou hermenêutica simbólica e espiritual dos textos sagrados. Apresenta-se como suposta realidade revelada, num simbolismo natural, por meio de quatro níveis de sentido, na leitura do texto bíblico: literal, alegórico, tropológico (figurado) e 354 anagógico (místico). Desse modo, na leitura de uma parábola bíblica, encontram-se elementos de sentido literal, de ilustração social cotidiana, que se misturam às imagens simbólicas construídas a partir da narrativa criada em busca de sentido revelado, sagrado, místico.

No renascimento, com base na experiência florentina, observa-se uma construção alegórica que antecipa os caminhos modernos dos séculos XIX e XX e na qual a expressão e a interpretação alegóricas são convergentes, a partir de operação de uso múltiplo: “técnica da invenção e interpretação de enigmas, ela ocorre como composição de emblemas, divisas, e rebus; como arte combinatória mágica, como ornamento verbal e plástico, etc.” (JANSEN, 2006, p. 140).

As alegorias contemporâneas da estrada

Feitas essas considerações preliminares sobre alegoria, passa-se, a seguir, a desvendar o ser e o lugar deslocado das narrativas de road movie . A estrada como figura simbólica de significação complexa pode conter diversos processos alegóricos enfeixados.

Tomando como base de análise especificamente os filmes road movies brasileiros das décadas de 1990 e 2000, corpus de pesquisa central da tese, destacam-se os dois grandes apanhados alegóricos que serão analisados adiante, a saber: as alegorias da nação e da era hipermoderna e global.

Carnaval e hipertextos: narrativas da brasilidade em tempos de globalização

A alegoria da brasilidade, uma das facetas da nossa alegoria nacional, é certamente questão central para entendimento da produção cultural – cinema, música, literatura, teatro e artes plásticas - do século XX e continua a ser no XXI. Ela alimenta o nosso imaginário social cotidiano e expressa, em parte, a enunciação das narrativas da identidade cultural que caminha para a mestiçagem, a hibridização, a carnavalização.

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A temática foi centro de discussão fundamental para os modernistas da Semana de 1922, ilustrada exemplarmente na obra literária de Mário de Andrade ( Macunaíma ) e Oswald de Andrade ( Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande ), com visões diferentes das artes e cultura brasileira do começo do século XX, mas sintonizados na vontade radical do entendimento novo, singular, descolonizado do Brasil moderno.

De Oswald, repercute, até hoje, na produção cultural nativa, o seu ideário expresso no texto do Movimento Antropofágico (1928), no qual propõe um nacionalismo aberto ao mundo, anárquico e carnavalesco , sintetizado na imagem do rito do canibalismo praticado por certos povos indígenas: “Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (ANDRADE, O. 1987, p.34).

O movimento musical Tropicalista, o Cinema Marginal e parte da produção do Cinema Novo (Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e Arnaldo Jabor, entre outros) voltam a revitalizar o tema da brasilidade numa perspectiva de continuidade ao ideário do primeiro modernismo. A devoração da carne-espírito de fora, na direção das vanguardas europeias por parte dos primeiros modernistas, volta-se, nos anos 1960, para a produção pop e contracultural vinda dos EUA, França e Inglaterra (RAMOS, F. 1987; XAVIER, 1993).

No Tropicalismo, na Poesia Concreta e no Cinema Marginal, o imaginário de alegorias da brasilidade na produção artística está na direção da miscigenação cultural radical , da transnacionalidade, do hibridismo de matrizes – cultura de massa, popular e erudita –, no movimento da bricolagem estética e social, na direção no experimentalismo modernista de Oswald Andrade.

A referida produção cinemanovista apoia-se numa visão mais essencialista da cultura popular, em certa medida na direção do nacionalismo de Mário de Andrade, ressaltando a sua autenticidade intrínseca e as sociabilidades de expressão e gesto brejeiro, cordial, erótico e carnavalesco.

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Aqui, mais uma visão do imaginário moderno brasileiro que se conecta com a construção da alegoria de brasilidade ao longo do século XX, cuja dimensão histórica da cultura foi estudada em obras clássicas da antropologia e sociologia, em sintonia com o primeiro modernismo artístico de 1922, como Casa grande & senzala , publicado em 1933, de Gilberto Freyre (1994), e Raízes do Brasil - 1936, de Sérgio Buarque de Holanda (1993).

Dessas obras emergem análises importantes à questão alegórica em foco, como a afirmação da miscigenação étnica em Freyre e a leitura das ambiguidades do homem brasileiro cordial em Holanda, com foco no estudo do período colonial, apontando para as mediações sociais da modernidade ensejada no século XX.

Das últimas décadas, destacam-se, na ótica do presente autor, três obras fundamentais para compreender a cultura contemporânea no Brasil da segunda metade do século XX, refletindo as mediações conflituosas entre tradição e modernidade, numa conexão da história social e apoiada na tradição dos estudos da antropologia e sociologia, quais sejam: Carnavais, malandros e heróis , publicado em 1979, de Roberto DaMatta (2002), A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural - 1988, de Renato Ortiz (1995) e O povo brasileiro -1995, de Darcy Ribeiro (2001).

Os antropólogos DaMatta e Ribeiro atualizam o análise do Brasil contemporâneo numa forte conexão e continuidade teórica da investigação social tratada por Holanda e Freire na primeira metade do século XX. Ortiz, sociólogo da cultura, adentra tal questão investigando a história social ligada à consolidação da Indústria Cultural, da formação da cultura popular massiva , seguindo os passos dos Estudos Culturais Ingleses .

O cenário popular-nação da estrada

Nos filmes brasileiros road movies efetuados nas últimas duas décadas, a cultura popular, muitas vezes, assume a alegoria da nação. Como já discutido em vários momentos da tese, essa visão tributaria no Cinema Novo mantêm-se 357 viva nessa filmografia. Cabe considerar que a estrada, nos filmes pesquisados, possui dupla filiação de projeção simbólica – a nação e o mundo globalizado. Essa dicotomia é expressa de modo dilacerante em Terra estrangeira (1995) e assume um lado de referência privilegiado de caráter nacional, notadamente, em Central do Brasil (1997) , Deus é brasileiro (2002) e O caminho das nuvens (2003) .

Em filmes que retratam a cultura regional, zona fronteiriça do Mato Grosso do Sul, em Os Matadores (1997), e estados da federação de Pernambuco e Ceará, representados em Lisbela e o prisioneiro (2003), Cinema, aspirinas e urubus (2005), Árido movie (2006) e O céu de Suely (2006), a expressão e o gesto de brasilidade tornam-se uma enunciação filtrada em toda a linguagem cinematográfica da narrativa - enredo, fotografia, música e prosódia -, remetendo, portanto, à alegoria da nação. Porém, ao contrário da fase anterior Embrafilme, a brasilidade captada tem tempero e sotaque brejeiro e cordial.

A chave dessa alegoria da nação passa distante da expressão corporal de erotismo e carnavalização que marcou nosso cinema nacional dos anos 1960 a 1980. Como discutido no capítulo 1, essa tem sido também uma característica da filmografia geral Pós-Embrafilme. Em parte, esse caráter moralista dos gestos e modos de expressar as sociabilidades narradas explica-se em função da necessidade, no começo dos anos 1990, de confrontar-se com a fase anterior do cinema nacional, marcado pela crise de produção e pelo auge do gênero pornochandada, que, de certo modo, estigmatizou essa produção em relação ao grande público (GONÇALVES, 2001).

Era necessário, naquele momento, realizar longas-metragens com temática nacional, mas com cara de filme estrangeiro , ou melhor, com características da cinematografia norte-americana. Por isso o paradigma de qualidade da produção se torna hegemônico - fotografia, direção de arte, som, etc. O road movie A grande arte expressa perfeitamente essa realidade, no limite do exagero, da expressão do artificialismo artístico e social.

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Além disso, essa mudança explica-se também pela alteração do perfil de espectadores que frequentam as salas de cinema, cujo consumo anterior mesclava-se entre as camadas baixa e média. O atual público, que tem circulado no hegemônico circuito exibidor principal – os chamados cinemas de shopping - apresenta condições de renda mais elevada em relação ao padrão geral.

Mas a questão continua intrigante. Muitas vezes o erotismo está muito mais vivo em telenovelas do que no cinema nacional. Talvez o Novo Cinema Brasileiro tenha aburguesado seus costumes na rota do espelho da cultura puritana de classe média norte-americana, do estilo de vida American way of life . Por outro ângulo da questão, observa-se, portanto, que Dionísio anda longe das estradas da filmografia nacional dos anos 1990 e 2000.

Comenta-se, ainda, nessa análise de éthos e estilo de vida do universo social dos filmes de estrada, que são poucos os filmes em que personagens com características mais contraculturais, na narrativa do desvio das normas sociais padrão, a exceção de Árido movie (2006) e, parcialmente, em Terra estrangeira (1995) e O céu de Suely (2006).

Independente desses apontamentos, cabe afirmar que, tendo em vista o perfil social dos protagonistas dos filmes de estrada, o universo popular é certamente o mais visitado. Afinal, filmar o Brasil, de dimensão continental, do ponto de vista de todos os cineastas aqui pesquisados, é enxergá-lo de modo crítico (a despeito dos matizes político-ideológicos dos realizadores), revelando suas profundas mazelas sociais, seu subdesenvolvimento – a viagem como descoberta crítica do mundo , bem como a força da cultura popular, seu modo de vida peculiar, especialmente nos lugares distantes das metrópoles. Aspectos que alimentam o imaginário social da alegoria da nação brasileira.

O sertão-nação e a plêiade de retratos do Brasil

O povo brasileiro mais humilde e o sertão constituem duas realidades, geográfica e humana, que se somam numa alegoria de nação que se manifesta 359 no cinema de estrada em seis longas-metragens 86 analisados neste trabalho. Esse é um ponto que já foi bastante desenvolvido anteriormente, tanto nas análises dos filmes como na avaliação dos mitos de fundação. Deseja-se, aqui, apenas alinhavar algumas ideias da base social e intelectual desse imaginário e comentar suas origens.

Reafirma-se que tal alegoria expressa no cinema de estrada é uma tradição vinda do Cinema Novo e que este herda da literatura, do chamado romance social regional, tal construção simbólica. Ela nasce com a crítica social pré- moderna do Brasil alinhavada pelo extraordinário romance reportagem, épico, Os sertões , de Euclides da Cunha, publicado, pela primeira vez, em 1902, compondo uma plêiade de retratos do Brasil, e continuada em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., etc., como alinhava Willi Bole para tratar do romance - Grande Sertão, Veredas - 1956, de Guimarães Rosas (MG), na conexão deste com os ensaios críticos do Brasil que o precedem.

Esta série moderna de retratos históricos do país inaugura-se a partir da narração das mazelas sociais do sertão nordestino com Euclides da Cunha. O eixo de análise da formação social do Brasil inscrito de modo crítico alimentou diversos romances regionais sobre o árido sertão, literatura que repercutiu por gerações, destacando A bagaceira – 1928, José Américo de Almeida (PB), O quinze – 1930, Raquel de Queiroz (CE), São Bernardo – 1934, e Vidas secas – 1938, de Graciliano Ramos – 1939 (AL).

É, nessa tradição intelectual e artística que soma as ciências sociais com a literatura, o cinema com música popular, que se cria uma alegoria do Brasil a partir do sertão. Ressalta-se que essa é a região em que se forma, de modo moderno, a base crítica social do país. O cinema brasileiro continua a retratá- lo, a exemplo da produção de estrada dos anos recentes, sobretudo realizada na última década. Central do Brasil (1998); Deus é brasileiro (2003); O caminho das nuvens (2003); Cinema, aspirinas e urubus (2005); Árido movie (2006); O

86 Os filmes em que o cenário do sertão aparece são: Central do Brasil (1998); Deus é brasileiro (2003); O caminho das nuvens (2003); Cinema, aspirinas e urubu s (2005); Árido movie (2006); O céu de Suely (2006) 360 céu de Suely (2006) possuem visões, enredos e narrativas muito diversas a despeito do gênero comum road movie . Mas todos alimentam, justamente com suas contradições, a alegoria moderna do Brasil iniciada com Euclides da Cunha, exposta na imagem do sertão-nação .

A era da mobilidade e a coesão narrativa de estrada.

“Os monumentos ‘maravilhosos’ da Idade Média, que deixaram uma imagem mítica no imaginário europeu são essencialmente a catedral e o castelo medieval” (LE GOFF, 2009, p. 49). Cada período histórico possui realizações que sintetizam, simbolicamente, as ações do homem no processo de transformação da natureza, e desta sobre o homem, as relações de poder, a expressão cultural, enfim, a vida social perfilhada.

A Idade Média tem como representação o castelo e a catedral, conforme aponta o historiador Jacques Le Goff, um dos herdeiros mais célebres da corrente da História dos Anais. A Idade Moderna pode ser representada por meio de imagens, que muitas vezes são construídas de modo alegórico: a cidade, o livro e as embarcações. A Idade Contemporânea compõe-se, provavelmente, de um número maior de realizações humanas que a simboliza: a fábrica, as metrópoles, bem como os meios de transporte e comunicação de massa – o carro, avião, cinema, televisão e internet .

O carro e o cinema, a estrada de asfalto comunicam-se nesse conjunto de símbolos e narrativas da modernidade que emerge na expressão social e cultural do gênero cinematográfico road movie. Nas imagens simbólicas associadas às estradas modernas, às rodovias, temos algumas ideias-chave que frequentam o imaginário social contemporâneo: tecnologia, velocidade, mobilidade e liberdade.

O cinema de estrada invade as fronteiras daquilo que os analistas sociais denominam de modernidade ou, como nas análises realizadas por Maffesoli (2004, 2006), Bauman (2000, 01, 03, 05, 07), Lipovetsky (2004, 2011) e Morin (2005), usando outras denominações para falar do tempo histórico 361 contemporâneo, de pós-modernidade, modernidade líquida, hipermodernidade e era planetária.

Apesar do realismo, da abordagem mimética, narrando o mundo social contemporâneo, que marca os filmes de estrada pesquisados, os enredos criados articulam-se numa condução narrativa não-fragmentária, tendendo ao tempo contemplativo, lento, cíclico, mítico, próprio ao sentido da viagem existencial que promovem os heróis fabulados.

Alem disso, notadamente no caso da filmografia brasileira road movie (evidente que não exclusiva desta - ver capítulo 4), soma-se, à motivação de caráter ontológico, a viagem de sentido crítico do mundo. Mas a visão que temos do conjunto é feita de olhares múltiplos, na rota de ambiguidade, às quais nascem as alegorias da era global retratadas nessa filmografia.

A viagem de Dionísio, Apolo e Narciso no mundo hipermoderno

Retomando discussão efetuada no capítulo 2, Mafessoli (2006) afirma que a modernidade trouxe a dominação do logos , da transparência, do mundo diurno, sob a inspiração da luz de Apolo, afastando, em contrapartida, os indivíduos da alegria da vida encontrada nas comunidades mais arcaicas. Aqui o sociólogo francês retoma a figura de Dionísio, sua centralidade subterrânea, emocional e subjetiva, como o fizera Nietzsche no final do século XIX ao criticar vigorosamente a moral judaico-cristã de sua época.

Na pós-modernidade, pós-1960, a fragmentação do tecido social é acompanhada pela revitalização do localismo, portanto da vida social gregária, por meio do fenômeno que chama de tribalismo urbano . Michel Maffeso afirma, polemicamente, que o período contempla o declínio do individualismo nas sociedades de massa, à medida que se afirma a vida coletiva, do simbolismo trinário, policultural , que acentua o aspecto da diferença (MAFFESOLI, 2006, p.172).

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Se tomarmos os trabalhos de Bauman (2000, 01, 03, 05, 07) e de Lipovetsky (2004, 2011), com a análise do mesmo período histórico, mas por meio de outros termos, modernidade líquida e hipermodernidade , chegaremos à conclusão de que o tempo presente é marcado pelo embaralhamento desses polos de forças anímicas e da vida social, a despeito do pensamento comum de ambos sobre a tendência de forte mercantilização, padronização e estetização da cultura-mundo. Aqui nota-se uma diferença entre a cultura de circulação planetária, que se caracteriza pela referida uniformidade, e a cultura local, comunitária, tradicional, que permanece viva.

Por meio desses autores, o mundo contemporâneo está em tensão de forças, com o predomínio da ação de Apolo, alimentando a dialética do esclarecimento, como analisaram Adorno e Horkheimer. Além dele, há um semideus da mitologia grega que também lança seu voo rasante ao mundo de hoje, com seu olhar autodirigido, surdo à alteridade: Narciso.

A estrada pela qual circulam os heróis dos filmes analisados passa por essa paisagem-mundo, em meio a imagens alegóricas que mimetizam a matéria do tempo e espaço de hoje – líquida, fluida, livre, instável, fragmentária, simultânea, desequilibrada, desenraizada, transcultural, híbrida.

As alegorias do mundo global: as metrópoles narradas pela estrada

A leitura das grandes cidades que se pode obter nos filmes de estrada analisados, com domínio da paisagem e referencial das metrópoles São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, é bastante diversa, como já salientado na parte 4.3.1 – O sopro-engenho do deslocamento . Mostram-se elas, por um lado, caóticas e estranguladoras da vida social gregária, em Central do Brasil, Terra estrangeira e Deus é brasileiro, e por outro lado, fluidas, nômades, libertárias e criativas, em Árido movie e O céu de Suely. Ressalta-se que, são nestes dois filmes, que as alegorias da hipermodernidade aparecem por uma perspectiva mais positiva, afirmativa, porém, não simplista, para representar a realidade social que retrata. Interessante notar que essas produções foram realizadas por dois 363 diretores originários de cidades do nordeste, mais exatamente do Recife, Lírio Ferreira, de Árido movie , e Fortaleza, Karim Aïnouz, de O céu de Suely.

Os dois longas-metragens renovam a abordagem cinematográfica nacional dos temas clássicos da vida social dominante no sertão nordestino e tornam os temas sociais de teor de localidade, regionalismo, uma leitura crítica, nuançada da era hipermoderna, conforme os enredos e a caracterização dos heróis protagonistas – Hermila e Jonas em seus complexos percursos – ver análise dos filmes nos sub-capítulos - 5.1 e 5.2. A alegoria do mundo híbrido e hipermoderno é atravessada pelo mito do herói em busca do caminho autêntico.

Nos mencionados filmes de Walter Salles e Cacá Diegues, crava-se uma crítica ao mundo global, à modernidade sólida a respeito da modernidade líquida , ao sabor do que realizam, na área das ciências humanas, Zygmunt Bauman ou Gilles Lipovetsky. Cabe comentar, ainda, que, nos filmes Os matadores , O caminho das nuvens , Cinemas, aspirinas e urubus e Lisbela e o prisioneiro , estes dois últimos com histórias transcorrendo, respectivamente, nas décadas de 1940 e 1960, a alegoria da era global está pouco presente. Neles, emergem outras representações com maior poder simbólico - a nação e a brasilidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A presente pesquisa buscou analisar a significação social e cultural que o gênero narrativo road movie (filme de estrada) adquire na produção Pós- Embrafilme, que tem sido denominada de Cinema da Retomada ou Novo Cinema Brasileiro (décadas de 1990-2000). O corpus da pesquisa compõe-se de 11 (onze) longas-metragens de ficção realizados nesse período. 87 Para tanto, do ponto de vista de seus objetivos e de uma estratégia de pesquisa para leitura do material audiovisual a partir do campo de conhecimento das ciências sociais – sociologia e antropologia, a tese enfatizou a compreensão da noção de cultura contemporânea, suas articulações com o imaginário social e simbólico.

Especialmente foram abordados os temas/recortes de pesquisa - identidade cultural, mitologia moderna e alegoria histórica, expressas nos temas sociais e nos valores etnográficos e assimiladas pela materialidade narrativa –, o enredo, a composição de imagens e sonoridades, com a perspectiva do entendimento da dimensão histórica do espaço social no qual esse cinema é produzido.

Os resultados da pesquisa confirmam a configuração estilística do gênero cinematográfico road movie na filmografia nacional contemporânea, a despeito da sua condição numericamente pouco representativa, semelhante à da produção mundial, verificada em pesquisa exploratória realizada no capítulo 4 do trabalho.

A pesquisa demonstrou que o gênero narrativo estudado se conjuga diretamente com a mediação histórica da chamada hipermodernidade , na qual a figura estrada é um dos seus elementos-chave de significação simbólica;

87 Os longas-metragens estudados foram: Década de 1990: A grande arte (Walter Salles, 1991); Terra estrangeira (Walter Salles, 1995); Os matadores (Beto Brant, 1997) e Central do Brasil (Walter Salles, 1998). Década de 2000 (até o ano 2008): Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2003); O caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003); Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003); Diários de motocicleta (Walter Salles, 2005); Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005); Árido movie (Lírio Ferreira, 2006); O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006).

365 estes, articulados em valores, discursos e imagens como mobilidade social, individualidade, fragmentação e reordenação do tempo e espaço.

Como discutido no capítulo 4, os filmes de estrada feitos em diversos lugares do mundo, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, comungam, acompanhando a trajetória dos seus heróis-protagonistas, de um sentimento comum de busca de liberdade, de transformação existencial (principalmente) e coletiva frente ao mundo social com o qual se deparam.

Deslocar-se pode acontecer de modo apático, inerte, casual, para alguns personagens, condição que se mantêm praticamente a mesma ao final da história, porém, para maioria, mesmo em viagens surgidas de situações inesperadas, os seres que as enfrentam modificam-se à procura da plena transformação, e aplicam-se em existir com projeto de vida próprio. A estrada significa, nesses filmes, um canto de liberdade, de emancipação.

Identificou-se, desse modo, uma característica criticidade ontológica e social nos filmes do gênero road movie , comportamento de modelo universal do gênero que pode ser observado com facilidade nos enredos e no percurso narrativo dos protagonistas dos filmes brasileiros. Em relação ao corpus de pesquisa, especificamente no cinema de estrada brasileiro dos anos 1990- 2000, verifica-se o marcante diálogo do gênero com as narrativas drama social e de linguagem do documentário.

Conforme apontamentos temáticos sobre a produção Pós-Embrafilme realizados no capítulo 1 da tese, o gênero insere-se na perspectiva de um cinema social dessa filmografia, notadamente em relação aos temas da violência urbana e do mundo cotidiano das favelas, que mantêm ainda acesa a tradição do Cinema Novo, apesar dos novos olhares e posicionamentos políticos do seu tempo, bastante distantes de críticas contundentes às estruturas econômicas.

O prisma dominante é privado, não obstante ganha-se nessa nova filmografia, e o cinema de estrada aqui analisado é um bom exemplo disso, uma 366 investigação do universo subjetivo dos personagens, que a referida produção dos anos 1960, muitas vezes, deixou de lado, tendo em vista uma abordagem esquemática, de forte viés ideológico, de aplicação empobrecida da teoria marxista na tela, devotando, assim, um papel político excessivo ao cinema, ou deslocando-o de sua real função. Mas é preciso ponderar as circunstâncias históricas, o período de chumbo (1964-1985), as idiossincrasias da vontade daquele inspirado período revolucionário – político e cultural, que representou o ambiente histórico em que se desenvolveu o Cinema Novo.

Pela perspectiva humanista da narrativa de estrada afirma-se pelo posicionamento político de caráter progressista. Os personagens, ao humanizarem-se em seu mergulho existencial, reintegrando-se à sua condição de homem complexus (Morin), embrenhando-se na floresta mítica da individualidade, tomam atitudes de reflexão ontológica que não deixam de ser uma forma de consciência e de ação contra o movimento de coisificação veloz existente no mundo-mercadoria da contemporaneidade.

Por outro lado, à medida que se adentra no mundo social das pequenas cidades ou na geografia natural que permeia boa parte dos espaços de vivências dos heróis dos filmes de estrada brasileiros, também se abrem trilhas de viés de crítica social e ambiental. Afinal, a condição da viagem permite tornar o espaço e o tempo do ser outro, acolá, mais próximos, abrindo possibilidades de encontros verdadeiramente fraternos. E esses encontros, conforme quadro social que se vislumbra no cenário de estrada, especialmente do cinema brasileiro, foco da presente pesquisa, resultam de motivações que são apenas acidentais, como podem sugerir, muitas vezes, seus enredos, uma vez que sustentam arcos mais amplos de significação social e simbólica.

Dentro de uma definição mais universal do gênero filme de estrada, pode-se afirmar que a viagem ficcional – eixo central da narrativa – desempenha uma função formadora do deslocamento para os protagonistas; ao longo da trama, estes deverão modificar radicalmente o rumo de suas vidas; se esta não é possível, a morte trágica será o desfecho necessário, o que poucas vezes acontece. 367

Trata-se de filmes nos quais os personagens principais normalmente pertencem à faixa etária jovem ou de adulto jovem; ressalta-se, neste sentido, que o gênero road movie mantém um paralelo com o chamado romance de formação . Porém observa-se que, nas últimas duas a três décadas, há uma tendência de ampliação do espectro etário dos heróis da estrada, sinalizando as mudanças sociais presentes na era da hipermodernidade.

O tema da juventude deve ser compreendido dentro do contexto histórico da revolução social e cultural eclodida a partir dos anos 1960 (ver capítulo 2 do presente trabalho), no qual novas identidades e subjetividades, resultantes da transformação das estruturas de sentimento, são formadas e expressas em movimentos culturais – feminismo, transgenerismo (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais) –, ecológicos e dos jovens urbanos vinculados à contracultura.

Não obstante, nota-se que os filmes road movies analisados compõem-se de personagens com estilo de vida dentro de um universo de sociabilidades padrão, hegemônico, exceto em Terra estrangeira (Walter Salles, 1995) e Árido movie (Lírio Ferreira, 2006), com a explícita abordagem ao mundo das drogas. Não se registram personagens homossexuais no rol de protagonistas.

Com base nos onze filmes pesquisados, afirma-se que a maioria dos heróis brasileiros de estrada são oriundos das classes mais baixas, caracterização fabular, esta, coerente com a perspectiva de crítica social dos realizadores comentada anteriormente. Num registro menor, é possível dizer que, em três filmes, os protagonistas podem ser inseridos no ambiente econômico de classe média, em função da posição social das profissões que exercem ou por outros dados de histórias de vidas dos enredos, como o fotógrafo Mandrake ( A grande arte , 1991), o apresentador de televisão Jonas ( Árido movie , 2006) e o estudante de medicina Ernesto Guevara ( Diários de motocicleta, 2005).

Do ponto de vista da estrutura ficcional, nota-se a presença de poucos personagens e tramas paralelas; há uma primazia do foco narrativo do(s) protagonista(s), em geral formando uma dupla de heróis/heroínas – amigo ou 368 casal/namorado –, estando os outros agentes da ficção sempre diretamente ligados a estes. Esta condição narrativa minimalista é coerente com a referida perspectiva da função formadora da história, o foco narrativo individual do(s) herói(s), sua pequena epopeia.

O gênero filme de estrada compreende uma produção ficcional cujo enredo de viagem transcorre na ligação geográfica entre núcleos urbanos, atravessando, assim, a paisagem natural/rural, normalmente por meio de auto-veículo – automóvel de passeio, motocicletas, caminhão, etc. Limita-se, assim, sua abrangência, tendo em vista a busca de uma classificação da narrativa cinematográfica que possa distingui-la de outros gêneros de forte mediação com este, como o western, os filmes de viagem/aventura ou o filme de cangaceiro em relação à produção brasileira.

Continuando a analisar os resultados da pesquisa, constatou-se também, na produção road movie brasileira contemporânea, uma abordagem diversa de temas e gêneros na perspectiva da hibridização narrativa , a despeito do reconhecimento estilístico do gênero, a partir de mediações com o drama social e/ou comédia, melodrama, narrativa policial e a linguagem do documentário.

Alem disso, nota-se uma receptividade projetada, hipotética da filmografia de estrada dos anos 1990-2000, com base em dados sobre o número de espectadores dos filmes, registrados no capítulo 1, e nas características de linguagem audiovisual, conforme análises do capítulo 5, do diálogo alternado com o público mais amplo, a exemplo de Deus é brasileiro (Caca Diegues, 2003) e Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003), porém restrito de capital cultural diferenciado, produção autoral e experimental, como em Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005) ou O céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006), o que reflete, em boa medida, a complexidade da cultura contemporânea no país, suas articulações com uma matriz plural - massiva, erudita e popular.

A identificação de formas variadas de representação social, como mitologia, identidade cultural e as alegorias históricas, em conexão com a narrativa 369 cinematográfica road movie, confirma a tese de que a cultura contemporânea expressa a complexidade da natureza humana, seu tempo múltiplo, na qual o pensamento simbólico e mitológico continua vivo, a despeito das hegemônicas estruturas do sistema capitalista, em plena era de hipermodernidade, pautada no individualismo e lógos instrumental mercantil.

O cinema, valorizado pelo prisma ontológico do gênero de estrada, confirma sua função de acolhimento da imaginação criadora (Gaston Bachelard) e faz- nos lembrar, refletir, com sabor de alegria e encantamento, em meio ao cotidiano de experiências mecânicas e de excessiva luz racional, que somos um animal symbolucum (Ernest Cassirer) e complexus (Edgar Morin). Um ser complexo, sábio e louco, sapiens-demens , de totalidade bio-psico-social, como definiu Morin (1979) . Segundo concebe o autor da teoria do pensamento complexo, o homem articula-se entre uma visão objetiva e subjetiva perante o mundo, conforme a natureza de seu pensamento duplo - o simbólico/mitológico/mágico e o empírico/técnico/racional, ao mesmo tempo, uno e duplo.

Preenchido pela imaginação, o homem repleto de visões oníricas, de imagens simbólicas, vive o mito, a magia. Na intimidade, na solidão, o homem dialoga reflexivamente e numa alteridade imaginária ininterrupta. Consciente, inconsciente. Inquieto, criativo e dominador do sapiens , temeroso e desejoso de seu mundo demens.

Nessa condição de similitude entre o pensamento selvagem (Claude Lévi- Strauss) e o pensamento racional moderno é que se pode compreender a pertinência da localização de temas e comportamentos míticos verificados nos filmes estudados. Destes, destacam-se seis abordagens de natureza mítica: 1) a jornada heroica em busca do caminho autêntico (o herói visionário, anti-herói, o velho-sábio); 2) o mito fundador (o retorno às origens); 3) a ritualização da passagem dos ciclos da vida; 4) a morte iniciática; 5) a natureza como elo primitivo, essencial e transcendente do homem; 6) o embate destino e individualidade.

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Somos arcaicos, modernos e hipermodernos neste mundo de culturas e identidades inumeráveis. Pode-se dizer, portanto, que a identidade cultural, nos dias de hoje, torna-se muito mais pluralizada, fragmentada e deslocada de núcleos duros de identificação tradicional – etnia, língua, religião, classe e nação – e mescla-se ou soma-se a outras, emergentes, de caráter mundial – feminismo, ecologia, culturas jovens, cibercultura, etc.

Por esse caminho de entendimento de identidade cultural, foi estudado tal tema nessa filmografia. Nessa abordagem foi fundamental a apanhado teórico dos Estudos Culturais Ingleses e Latino-Americanos (Williams, Hall, Martín- Barbero, García Canclini e Ortiz). As análises e interpretações dos onze filmes pesquisados afirmam a plena pertinência desta temática em plena era de globalização econômica e social e de mundialização da cultura.

Conceituou-se na tese, capítulo 2, que identidade cultural é entendida, por parte do presente pesquisador, como narrativa compartilhada de sentimento de pertença a uma comunidade, cultura ou crença e materializada em discursos, representações, imagens ou símbolos. Estas são construídas historicamente por grupos ou instituições sociais de modo intencional ou voluntário. Sua mediação com a ideologia, as relações de poder e o imaginário social mais amplo desses grupos ou comunidades é permanente.

A respeito da diversificação cultural e mudança social do mundo contemporâneo, afirma-se que referir-se a diversas comunidades ou identidades ao mesmo tempo, para se definir coletivamente (viver num país mestiço e desigual torna bem mais fácil aderir a tal assertiva), não é motivo para excluir a temática do universo atual social. Afinal não são os sujeitos individuais que devem buscar e dar sentido final às identidades coletivas, reprocessando estas e criando assim sua própria identidade?

Outro aspecto tratado na tese foi a identificação de alegorias históricas nos filmes estudados. Afinal, o viajante e a estrada tornaram-se figuras alegóricas, por excelência, desse mundo em transformação constante, ensejado na segunda metade do século XX. A alegoria deve ser compreendida, não só 371 como uma figura de linguagem ou retórica, de proximidade à metáfora e hipérbole, mas também como expressão do símbolo, de um complexo sistema de significação, que se articula em tempo prolongado, expressando, assim, o imaginário social e simbólico de um povo ou período histórico. Walter Benjamin é a principal referência teórica adotada na tese para tratar de alegoria histórica.

Tomando como base de análise especificamente os filmes road movies brasileiros das décadas de 1990 e 2000, corpus de pesquisa central da tese, destacam-se dois grandes apanhados alegóricos que foram analisados no capítulo 5, a saber: as alegorias da nação e da era hipermoderna e global.

Nos filmes brasileiros road movies efetuados nas últimas duas décadas, a cultura popular, muitas vezes, assume a alegoria da nação. Como já discutido em vários momentos da tese, esta visão tributaria, no Cinema Novo, mantêm- se viva nessa filmografia. Cabe considerar que a estrada, nos filmes pesquisados, possui dupla filiação de projeção simbólica – a nação e o mundo globalizado. Essa dicotomia é expressa, de modo dilacerante, em Terra estrangeira (1995) e assume um lado de referência privilegiado de caráter nacional, notadamente, em Central do Brasil (1997) , Deus é brasileiro (2002) e O caminho das nuvens (2003) .

Em filmes que retratam a cultura regional, a zona fronteiriça do Mato Grosso do Sul, em Os Matadores (1997), e os estados da federação de Pernambuco e Ceará, representados em Lisbela e o prisioneiro (2003), Cinema, aspirinas e urubus (2005), Árido movie (2006) e O céu de Suely (2006), a expressão e o gesto de brasilidade tornam-se uma enunciação filtrada em toda a linguagem cinematográfica da narrativa - enredo, fotografia, música e prosódia, que remete à alegoria da nação .

O povo brasileiro mais humilde e o sertão são duas realidades, geográficas e humanas, que se somam numa alegoria de nação e que se manifestam no 372 cinema de estrada por meio de seis longas-metragens88 . Este ponto já foi bastante desenvolvido na tese, tanto nas análises dos filmes como na parte relativa à avaliação dos mitos de fundação.

Reafirma-se que tal alegoria expressa no cinema de estrada é uma tradição vinda do Cinema Novo, e que este herda da literatura, o chamado romance social regional, tal construção simbólica. Ela nasce com a crítica social pré- moderna do Brasil, alinhavada pelo extraordinário romance reportagem, épico - Os sertões , publicado pela primeira vez em 1902, de Euclides da Cunha, compondo uma plêiade de retratos do Brasil, continuada em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., etc.,

É nessa tradição intelectual e artística, que soma as ciências sociais com a literatura, o cinema e a música popular, que se cria uma alegoria do Brasil a partir do sertão. Ressalta-se, ela é a região por onde se forma, de modo moderno, a base crítica social do país.

O cinema brasileiro continua a retratá-la a exemplo da produção de estrada dos anos recentes, sobretudo realizada na última década. Central do Brasil (1998); Deus é brasileiro (2003); O caminho das nuvens (2003); Cinema, aspirinas e urubus (2005); Árido movie (2006); O céu de Suely (2006) possuem visões, enredos e narrativas muito diversas a despeito do gênero comum road movie . Mas todos alimentam, justamente com suas contradições, a alegoria moderna do Brasil iniciada com Euclides da Cunha, exposta na imagem do sertão- nação .

88 Os filmes em que o cenário do sertão aparece são: Central do Brasil (1998); Deus é brasileiro (2003); O caminho das nuvens (2003); Cinema, aspirinas e urubu s (2005); Árido movie (2006); O céu de Suely (2006). 373

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Nº. 30 - Bonnie e Clyde (Arthur Penn, 1967), p.156. Disponível em: < http://www.imdb.pt/media/rm863213568/tt0061418 >. Acesso em: 05 ago. 2010.

Nº. 31 - Sem Destino (Dennis Hopper, 1969) , p. 157. Disponível em: < http://www.imdb.pt/media/rm606374144/tt0064276 >. Acesso em: 25 set 2010.

Nº. 32 - Os implacáveis (Sam Peckinpah, 1972), p.167. Disponível em: < http://www.imdb.pt/media/rm3302530816/tt0068638 >. Acesso em: 25 set 2010.

Nº. 33 - Alice não mora mais aqui (Martin Scorsese, 1974), p.168. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/alice-nao-mora-mais-aqui/>. Acesso em: 01 out. 2010.

Nº. 34 - Thelma e Louise (Ridley Scott, 1991), p.169. Disponível em: < http://cinemacafri.tempsite.ws/links/filme/thelma_louise/thelma_louise/thelma_lo uise.jsp >. Acesso em: 01 out. 2010.

Nº. 35 - Estranhos no paraíso (Jim Jarmusch, 1984), p.170. Disponível em: < http://www.contracampo.com.br/50/jarmusch.htm >. Acesso em: 05 out. 2010.

Nº. 36 - Uma história real (David Lynch, 1999), p.171. Disponível em: < http://4.bp.blogspot.com/_EhPA3zYtS5c/S- jsLhXDVgI/AAAAAAAAGsc/XVkjwzG6Oco/s1600/204922.1020.A.jpg >. Acesso em: 05 out. 2010.

392

Nº. 37 - Sai da frente (Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, 1952), p.172. Disponível em: . Acesso em: 05 out 2010.

Nº. 38 - Lampião, o rei do cangaço (Benjamin Abrahão, 1936), p.176. Disponível em: . Acesso em: 02 set 2010.

Nº. 39 - O cangaceiro (Lima Barreto, 1953) , p.177. Disponível em: < http://www.filmreference.com/Films-Ca-Chr/O-Cangaceiro.html>. Acesso em: 15 set 2010.

Nº. 40 - Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), p.179. Disponível em: . Acesso em: 26 set 2010.

Nº. 41 - Iracema - Uma Transa Amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, 1976) , p.184. Disponível em: < http://www.etudoverdade.com.br/2006/busca/detalhes.asp?id=5458&lingua=>. Acesso em: 26 set. 2010.

Nº. 42 - Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979), p.187. Disponível em: < http://coversblog.wordpress.com/2009/08/12/bye-bye-brazil/ >. Acesso em: 01 set. 2010.

Nº. 43 - Jorge, um Brasileiro (Paulo Thiago, 1988), p.192. Disponível em: < http://laranjapsicodelica.blogspot.com/2010/07/jorge-um-brasileiro-1988.html>. Acesso em: 08 set. 2010

Nº. 44 - A grande arte (Walter Salles, 1991), p.200. Disponível em: < http://cineminha.com.br/perfil.cfm?id=107853 >. Acesso em: 10 out. 2010.

Nº. 45 - Terra Estrangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), p.204. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/terra-estrangeira/trailers- e-imagens/ >. Acesso em: 10 out. 2010.

Nº. 46 - Os matadores (Beto Brant, 1997), p.210. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/matadores/trailers-e-imagens/#31201>. Acesso em: 10 out. 2010.

Nº. 47 - Central do Brasil (Walter Salles, 1998), p.213. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/central-do-brasil/trailers-e-imagens/>. Acesso em: 30 out. 2010.

Nº. 48 - Deus é Brasileiro (Cacá Diegues, 2003), p.224. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/deus-e-brasileiro/trailers-e-imagens/>. Acesso em: 30 out. 2010.

393

Nº. 49 - A caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003), p.228. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/caminho-das-nuvens/trailers-e- imagens/#11196>. Acesso em: 20 out. 2010.

Nº. 50 - Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003), p.232. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/lisbela-e-prisioneiro/trailers-e- imagens/#28979 >. Acesso em: 30 out. 2010.

Nº. 51 - Diários de motocicleta (Walter Salles, Argentina, EUA, Alemanha, México, Chile, Peru e França, 2005) , p. 237. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/diarios-de-motocicleta/trailers-e-imagens/>. Acesso em: 01 nov. 2010.

Nº. 52 - Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005), p.244. Disponível em: . Acesso em: 15 nov. 2010.

Nº. 53 - Árido movie (Lírio Ferreira, 2005), p.249. Disponível em: < http://www.ufmg.br/online/arquivos/005066.shtml >. Acesso em: 15. nov. 2010.

Nº. 54 - O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006) , p.237. Disponível em: < http://www.adorocinema.com/filmes/ceu-de-suely/trailers-e-imagens/#12340>. Acesso em: 15 nov. 2010.

Nº. 55 - Rádio Nacional - Emilinha Borba e Marlene dividem o microfone da esquerda com César de Alencar , p.267. Disponível em: < http://dedinhasp.blog.uol.com.br/arch2005-10-01_2005-10-31.html>. Acesso em: 15 nov. 2010.

Nº. 56 - LP Especial (Renato e seus Blue Caps, 1968; CBS), p.271. Disponível em: < http://www.musicapopular.org/renato-blue-caps/ >. Acesso em: 15 nov. 2010.

Nº. 57 - CD Afrociberdelia (Chico Science & Nação Zumbi, 1995; Chaos/Sony Music), p. 272. Disponível em: < http://www.revistaogrito.com/page/blog/2009/07/14/galeria-anos-90- pernambucanos>. Acesso em: 15 nov. 2010.

Nº. 58 - LP Diana (Diana, 1972; CBS; produzido por Raul Seixas) , p. 277. Disponível em: < http://cdsgratis.com.br/wp- content/uploads/2010/08/Diana-mp3.jpg>. Acesso em: 15 nov. 2010.

Nº. 59 - LP Fernando Mendes (Fernando Mendes, 1978; EMI Music Brasil), p.281. Disponível em: < http://faclubepotiguardofernandomendes.blogspot.com/2009_09_01_archive.ht ml>. Acesso em: 15 nov. 2010.

394

Nº. 60 - Zé Ramalho (Zé Ramalho, 1978; CBS) , p.284. Disponível em: < http://en.wikipedia.org/wiki/Z%C3%A9_Ramalho_(album) >. Acesso em: 15 nov. 2010.

Nº. 61 - LP Daquele jeito ... (Luiz Gonzaga; 1974; Odeon) , p.287. Disponível em: < http://www.luizluagonzaga.mus.br/index>. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 62 - LP Sua majestade, o rei do ritmo (Jackson do Pandeiro, 1954; Copacabana) , p. 288. Disponível em: < http://300discos.wordpress.com/2009/03/13/064-jackson- do-pandeiro-sua-majestade-o-rei-do-ritmo-1954/ >. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 63 - LP Roberto Carlos em ritmo de aventura (Roberto Carlos, 1967; CBS) , p.294. Disponível em: < http://300discos.wordpress.com/2010/05/21/ln05- %e2%80%93-roberto-carlos-em-ritmo-de-aventura-1967/ >. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 64 - CD Mafaro (Antônio Abujamra, 2010; Tratore), p.298. Disponível em: < http://blogdomauroferreira.blogspot.com/2010_04_04_archive.html >. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 65 - LP Cartola (Cartola, 1976; Marcus Pereira), p.304. Disponível em: < http://300discos.wordpress.com/2010/05/31/ln21-%e2%80%93-cartola-cartola- 1976/>. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 66 - Do romance ao galope nordestino , p.306. Disponível em: < http://300discos.wordpress.com/2010/12/12/mp29-quinteto-armorial-do- romance-ao-galope-nordestino-1974/>. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 67 - LP Gal a todo vapor (Gal Costa, 1971; Philips), p.311. Disponível em: < http://beto.ziriguidum.fotoblog.uol.com.br/photo20050911105602.html>. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 68 - Sony Music Entertainment Inc., p.315. Disponível em: < http://orchestralworks.blogspot.com/2008/06/philip-glass-photographer.html>. Acesso em: 10 dez. 2010.

Nº. 69 - LP Prenda querida (Délio & Delinha; 1961), p.318. Disponível em: < http://www.saudade-da-minha-terra.com/?cat=197>. Acesso em: 15 jan. 2011.

Nº. 70 - LP Índia - Cascatinha e Inhana (1967), p.319. Disponível em: < http://www.recantocaipira.com.br/cascatinha_inhana_discografia.html>. Acesso em: 15 jan. 2011.

Nº. 71 - LP Waldir Azevedo - Delicado - 1967, p. 323. Disponível em: < http://canguleiro.blogspot.com/2010/11/waldir-azevedo-delicado.html>. Acesso em: 15 jan. 2011.

Nº. 72 - CD Prez – Pérez Prado (Damaso Pérez Prado), p.325. Disponível em: < http://www.laventure.net/tourist/prez_bio.htm>. Acesso em: 15 jan. 2011. 395

Nº. 73 - Paco e Alex em Terra estrangeira (1995), p. 340. Disponível em: < http://cinemaoftheworlds.blogspot.com/2010/11/walter-salles-daniela-thomas- terra.html>. Acesso em: 16 jan. 2011.

Nº. 74 - O personagem Hermila em O céu de Suely (1995) , p. 341. Disponível em: < http://umajanelapromundo.blogspot.com/>. Acesso em: 16 jan. 2011.

Nº. 75 - O personagem Josué em Central do Brasil (1998), p. 345. Disponível em: < http://365filmes1ano.blogspot.com/2011/02/central-do-brasil-30.html>. Acesso em: 16 jan. 2011.

Nº. 76 - Metrópolis (Fritz Lang, 1927) , p. 351. Disponível em: < http://goodmovieslist.com/list/1920-1929.html>. Acesso em: 18 mar. 2011.

398

O caminho das nuvens (2003) Direção: Vicente Amorim

ROTEIRO : David França Mendes

FOTOGRAFIA : Gustavo Habda

DIREÇÃO DE ARTE : Jean Louis Leblanc

MÚSICA : André Abujamra

EDIÇÃO : Pedro Amorim

PRODUTORES : Luiz Carlos Barreto, Lucy Barreto, Bruno Barreto, Ângelo Gastal e Daniel Filho

PRODUÇÃO : Filmes do Equador / Miravista / Globo Filmes / Lereby Produções

ELENCO : Wagner Moura (Romão), Cláudia Abreu (Rose), Ravi Lacerda (Antônio),Sidney Magal (Panamá), Cláudio Jaborandy (Gideão), Franciolli Luciano (Callado), Manoel Sebastião Alves Filho (Rodney), Felipe Newton Silva Rodrigues (Clevis), Cícera Cristina Almino de Lima (Suelena), Cícero Wallyson A. Ferreira (Cícero) e Cícero Wesley A. Ferreira (Cícero).

DURAÇÃO : 87 min.

Deus é brasileiro (2003)

DIREÇÃO : Cacá Diegues

ROTEIRO : João Ubaldo Ribeiro, Cacá Diegues, João Emanuel Carneiro e Renata de Almeida Magalhães, baseado em conto de João Ubaldo Ribeiro

FOTOGRAFIA : Affonso Beato

DIREÇÃO DE ARTE : Vera Hamburguer

MÚSICA : Chico Neves, Hermano Viana e Sérgio Mekler

EDIÇÃO : Sérgio Mekler

PRODUTORES : Rio Vermelho Filmes / Globo Filmes / Columbia TriStar Filmes do Brasil.

PRODUÇÃO : Filmes do Equador / Miravista / Globo Filmes / Lereby Produções

ELENCO : Antônio Fagundes (Deus), Wagner Moura (Taoca), Paloma Duarte, (Madá), Hugo Carvana, Stepan Nercessian, Bruce Gomlevsky, Castrinho, Chico de Assis, Susana Werner e Toni Garrido

DURAÇÃO : 92 min.

399

Lisbela e o prisioneiro (2003)

DIREÇÃO : Guel Arraes

ROTEIRO : Guel Arraes, Jorge Furtado e Pedro Cardoso, baseado em peça teatral de Osman Lins

FOTOGRAFIA : Uli Burtin

DIREÇÃO DE ARTE : Cláudio Amaral Peixoto

MÚSICA : João Falcão e André Moraes

PRODUTORES : Paula Lavigne

PRODUÇÃO : Natasha Filmes / Fox Film do Brasil / Globo Filmes / Estúdios Mega

ELENCO : Débora Falabella (Lisbela de Nogueira e Lima), Selton Mello (Leléu Antônio da Anunciação), Marco Nanini (Frederico Evandro), Virginia Cavendish (Inaura) Bruno Garcia (Douglas) Tadeu Mello (Cabo Citonho) André Mattos (Tenente Guedes) Lívia Falcão (Francisquinha) Paula Lavigne (Monga) Aramis Trindade (Jurado)

DURAÇÃO : 1 hr 50 min.

Diários de Motocicleta (2004) Direção: Walter Salles

ROTEIRO : José Rivera, baseado nos livros de Che Guevara e Alberto Granado

FOTOGRAFIA : Eric Gautier

DIREÇÃO DE ARTE : Laurent Ott

MÚSICA : Gustavo Sataolalla

MONTAGEM : Daniel Resende

PRODUTORES : Michael Nozik, Edgard Tenenbaum e Karen Tenkhoff

PRODUÇÃO : Senator Film Produktion GmbH

ELENCO : Gael García Bernal (Che Guevara), Rodrigo de la Serna (Alberto Granado), Susana Lanteri (Tia Rosana), Mía Maestro (Chichina Ferreyra) e Mercedes Morán (Celia de la Serna)

DURAÇÃO : 126 min.

400

Cinema, aspirinas e urubus (2005) Direção: Marcelo Gomes

ROTEIRO : Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Karim Aïnouz, inspirado em relato de viagem de Ranulpho Gomes

FOTOGRAFIA : Mauro Pinheiro

DIREÇÃO DE ARTE : Marcos Pedroso

MÚSICA : Tomás Alves de Souza

EDIÇÃO : Karen Harley

PRODUTORES : Sara Silveira, Maria Ionescu e João Vieira Jr.

PRODUÇÃO : Dezenove Som e Imagens / Rec Produtores Associados

ELENCO : Peter Ketnath (Johann), João Miguel (Ranulpho) e Hermila Guedes (Jovelina).

DURAÇÃO : 90 min.

Árido movie (2006)

Direção: Lírio Ferreira

ROTEIRO : Lírio Ferreira, Hilton Lacerda, Sérgio Oliveira e Eduardo Nunes

FOTOGRAFIA : Murilo Salles

DIREÇÃO DE ARTE : Renata Pinheiro

MÚSICA : Otto, Berna, Ceppas, Kassin e Pupilo.

EDIÇÃO : Vânia Debs

PRODUTORES : Murilo Salles e Lírio Ferreira

PRODUÇÃO : Cinema Brasil Digital

ELENCO : Guilherme Weber (Jonas), Giulia Gam (Soledad), Gustavo Falcão (Falcão), Selton Mello (Bob) , Mariana Lima (Vera), José Dumont (Zé Elétrico) ,Suyane Moreira (Wedja), Luiz Carlos Vasconcelos (Jurandir), Aramis Trindade (Márcio Greyck), (Salustiano), Maria de Jesus Bacarelli (D. Carmo) , Renata Sorrah (Stela), Paulo César Pereio (Làzaro), Magdale Alves (Dedé) , José Celso Martinez Corrêa (Meu Velho)

DURAÇÃO : 115 min.

401

O Céu de Suely (2006)

DIREÇÃO : Karim Aïnouz

ROTEIRO : Maurício Zacharias, Felipe Bragança e Karim Aïnouz, baseado em argumento de Maurício Zacharias e Karim Aïnouz

FOTOGRAFIA : Walter Carvalho

DIREÇÃO DE ARTE : Marcos Pedroso

MÚSICA : Berna Ceppas e Kamal Kassin

EDIÇÃO : :Isabela Monteiro de Castro e Tina Baz Le Gal

PRODUTORES : Walter Salles, Maurício Andrade Ramos, Hengameh Panahi, Thomas Habërle e Peter Rommel

PRODUÇÃO : VideoFilmes

ELENCO : Hermila Guedes (Hermila), Georgina Castro (Georgina), Maria Menezes (Maria), João Miguel (João), Mateus Alves (Mateuzinho), Gerkson Carlos (Mateuzinho) e Zezita Matos (Zezita Marcélia Cartaxo)

DURAÇÃO : 88 min. 402

ANEXO B: FICHA TÉCNICA DA TRILHA SONORA DO CORPUS DE PESQUISA CONFORME ORDEM DE ANÁLISE DO CAPÍTULO 5.2 À ESCUTA DOS SONS E DA POESIA DO LUGAR: AS TRILHAS SONORAS DA FILMOGRAFIA BRASILEIRA ROAD MOVIE : PRODUTORES, CANÇÕES, PEÇAS INSTRUMENTAIS E OUTROS DADOS DE GRAVAÇÃO 89

VIAGEM AO CENTRO DO SERTÃO E OUTRAS PARAGENS

Cinema, aspirinas e urubus (Gomes, Marcelo; 2005)

Produção musical : Souza, Tomás Alves;

Canções/peças : Título: Serra da boa esperança (1937) ; Autor da canção: Babo, Lamartine; Intérprete : Alves , Francisco e Orchestra Vitor Brasileiro;

Título: Valsa da meia noite (1928); Autor da canção: Desconhecido; Intérprete: Romani, Nulo;

Título: Tudo é Brasil (1941); Autor da canção: Paiva, Vicente e Róris, Sá; Intérprete: Batista, Linda;

Título: Veneno para dois (1938); Autor da canção: Barro de, João e Ribeiro, Alberto; Intérprete: Miranda, Carmen;

Título: Esmagando rosas (1941); Autor da canção: Nasser, Daniel e Pires, Alcyr; Intérprete: Alves, Francisco;

Título: Deixa comigo (1939); Autor da canção: Valente, Assis; Intérprete: Miranda, Carmen;

Título: Vivo bem na minha terra (1941); Autor da canção: Vianna, Gastão e Faraj, Jorge; Intérprete: Alves, Francisco.

Árido Movie (Ferreira, Lírio; 2006)

Produção musical : Otto; Ceppas, Berna; Kassin, Kamal; Pupilo;

Canções/peças : Título: Quando a cidade dorme; Autor da canção: Leno; Intérprete: Renato e seus Blue Caps; Título: Se você soubesse ; Autor da canção: Barros, Renato e Pinto, Rossini; Intérprete: Renato e seus Blue Caps;

89 O l evantamento tem como base de informações o banco de dados da filmografia brasileira disponível no website oficial da Cinemateca Brasileira/Ministério da Cultura – www.cinemateca.com.br . Dados complementares foram identificados nos créditos registrados nos filmes de referência e que foram pesquisados em versão VHS/DVD. O ordenamento sobrenome/prenome segue o padrão editorial do banco de dados da Cinemateca. 403

Título: Amaré; Autor da canção: Otto; Pupilo; Kassin, Kamal e Ceppas, Berna; Intérprete: Otto - voz; Instrumentista: Lafayette - órgão; Ceppas, Berna - guitarra, sintetizadores efeitos e programação; Kassin, Kamal - baixo e escaleta; Pupilo - bateria e percussão;

Título: Amigos bons ; Autor da canção: Barreto, Junior; Intérprete: Barreto, Junior;

Título: Cabidela ; Autor da canção: F, Felipe/China; Intérprete: Grupo Mombojó;

Título: Sativação ; Autor da canção: Otto; Intérprete: Otto - voz; Instrumentista: Luiz, Pedro - cavaquinho; Kassin, Kamal - baixo; Pupilos - bateria e percussões; Pupilo, Otto e Ceppas, Berna - palmas;

Título: Nebulosas ; Autor da canção: Otto; Intérprete: Otto;

Título: Radistae ; Autor da canção: Trummer, Fábio; Intérprete: Banda Eddie;

Título: Procurando Wedja ; Autor da canção: Pupilo; Kassin e Ceppas, Berna; Instrumentista: Lafayette - órgão e clavinete; Ceppas, Berna - guitarra tema, programação e samples; Maia, Lúcio - guitarras; Kassin - baixo; Pupilo - bateria e panderola;

Título: Choro de Betina ; Autor da canção: Otto, Pupilo, Kassin, Kamal e Ceppas, Berna; Instrumentista: Otto - voz e percussão; Ceppas, Berna - sintetizadores efeitos e programação; Kassin - baixo e sintetizadores; Pupilo - bateria e percussões;

Título: Arido song ; Autor da canção: Pupilo, Amabis, Rica e Dengue; Instrumentista: Amabis, Rica - programação;

Título: Baixo dengue ; Instrumentista: Pupilo - programação e percussões; Ceppas, Berna - programação adicional e efeitos; Título: Czardas ; Intérprete: Incríveis, Os;

Título: Beira mar ; Autor da canção: Ramalho, Zé; Intérprete: Ramalho, Zé;

Título: Impossível acreditar que perdi você ; Autor da canção: Greyck, Márcio e Cobel; Intérprete: Greyck, Márcio;

Título: Bilionário, O; Autor da canção: Pupilo, Kassin e Ceppas, Berna; Instrumentista: Ceppas, Berna - orgão, syntetizadores panderola e programação; Kassin - guitarras e baixo; Pupilo - bateria;

Título: Imaginar a vida ; Autor da canção: Otto e Pupilo; Intérprete: Otto;

Título: O velho ; Autor da canção: Ceppas, Berna; Intérprete: Otto;

Título: My mistake ; Autor da canção: Santisteban, Helio e Malagutti, Oswaldo; Intérprete: Pholhas;

Título: Cara de cachorro ; Autor da canção: Ceppas, Berna; Instrumentista: Ceppas, Berna - sintetizador, programação e efeitos; 404

Título: Jurando vingar ; Autor da canção: Pupilo, Otto e Ceppas, Berna; Instrumentista: Ceppas, Berna - efeitos e programação; Pupilo - reco reco e tambor;

Título: Jurema ; Autor da canção: Pupilo, Maia, Lucio, Kassin e Ceppas, Berna; Instrumentista: Maia, Lucio - guitarras; Kassin - baixo; Pupilo - bateria e percussões; Ceppas, Berna - efeitos e edições;

Título: Naquela sala ; Autor da canção: Bittencourt, Sergio; Intérprete: Otto – voz; Instrumentista: Lafayette - orgão e sintetizador; Ceppas, Berna - guitarras; Kassin - baixo; Pupilo - bateria e percussões.

O céu de Suely (Ainouz, Karim; 2006)

Produção musical : Ceppas, Berna; Kassin, Kamal;

Canções/peças : Título: Tudo que eu tenho ; Autor da canção: Pinto, Rossini; Intérprete: Diana;

Título: Blá blá blá; Autor da canção: Almeida, Solange de; Intérprete: Aviões do Forró; versão original; Torn, interpretada pela cantora australiana Natalie Imbruglia, autoria: Phil Thornalley com Scott Cutler e Anne Preven;

Título: Coração ; Autor da canção: Dantas, Dorgival; Intérprete: Aviões do Forró;

Título: Somebody told me ; Autor da canção: Lawrence; Intérprete: Lawrence;

Título: Eu não vou mais chora r; Autor da canção: Dantas, Dorgival; Intérprete: Aves de Rapina;

Título: Tontos e loucos ; Autor da canção: Duran, Kelvis; Intérprete: Aves de Rapina;

Título: Gemendo ; Autor da canção: Santos, Gabriela Amaral dos; Intérprete: Amarantos, Gabi;

Título: Muito Mais; Autor da canção: Tomas, Gabriel; Intérprete: Autoramas;

Título: Suely, o amor é lindo ; Autor da canção: Barroso, Lucas Duque; Intérprete: Lopes, Daniel;

Título: Dois ; Autor da canção: Sullivan, Michael e Ricardo, Paulo Intérprete: Lairton.

405

Lisbela e o prisioneiro (Arraes, Guel; 2003)

Produção musical : Falcão, João; Moraes, André;

Dados adicionais de música: Instrumentistas: Ferreira, Alex - bateria; Campolina, Dener - contra-baixo; Duarte, Denis - percussão; Trentini, Eduardo – percussão;

Canções/peças : Título da música: Você não me ensinou a te esquecer ; Música de: Mendes, Fernando; Wilson, José e Lucas; Intérprete(s): Veloso, Caetano;

Título da música: A dança das borboletas ; Música de: Ramalho, Zé e Valença, Alceu; Intérprete(s): Ramalho, Zé e Sepultura;

Título da música: Dama de ouro ; Música de: Melo, Maciel; Intérprete(s): Britto, Zéu;

Título da música: Para o diabo os conselhos de vocês ; Música de: Imperial, Carlos e Neméo; Intérprete(s): Os Condenados;

Título da música: Espumas ao vento ; Música de: Acioly Neto; Intérprete(s): Soares, Elza;

Título da música: A deusa da minha rua ; Música de: Faraj, Jorge e Teixeira, Newton; Intérprete(s): Maia, Geraldo e Costa, Yamandú;

Título da música: Oh Carol ; Música de: Sedaka, Neil e Greenfield, Howard; Intérprete(s): Veloso, Caetano e Mautner, Jorge;

Título da música: O amor é filme ; Música de: Falcão, João e Moraes, André; Intérprete(s): Lirinha;

Título da música: Lisbela ; Música de: Veloso, Caetano e Almino, José; Intérprete(s): Los Hermanos;

Título da música: O matador (instrumental); Música de: Falcão, João e Moraes, André;

Título da música: O boi (instrumental); Música de: Falcão, João e Moraes, André;

Título da música: O amor é filme (instrumental); Música de: Falcão, João e Moraes, André. 406

AS DUAS MARGENS DO SÃO FRANCISCO

Deus é brasileiro (Diegues, Cacá; 2003)

Produção musical : Neves, Chico; Viana, Hermano; Mekler, Sergio;

Arranjos musicais: Morelembaum, Edu

Dados adicionais de música: Instrumentistas: Siba - rabeca; Pintassilgo, Fernando - marimbau, pifes e ocarina; Freire, Paulo - violas de 10 e viola de cocho; Vasconcelos, Naná - percussão; Morelembaum, Jacques - cello; Morelembaum, Edu - teclado, clarinete e clarone; Monteiro, Leo - bateria; Veloso, Moreno - trumpete; Sá, Pedro - baixo; Quarteto Bessler - cordas; Medeiros, Ricardo de - contra baixo acústico; Assieri, Itamar - piano;

Canções/peças : Título da música: Melodia sentimental ; Música de: Villa- Lobos, Heitor e Vasconcellos, Dora; Intérprete(s): Djavan; Regente Maestro: Morelembaum, Edu – arranjo; Instrumentista: Assieri, Itamar - piano; Morelembaum, Jacques - cellos e teclados;

Título da música: Vida de viajante ; Música de: Gonzaga, Luiz e Cordovil, Hervê; Intérprete(s): Lenine; Instrumentista: Neves, Chico - programação, baixo e teclado; Freire, Paulo - viola de 10; Pintassilgo, Fernando - pife; Vasconcelos, Naná - vocais;

Título da música: Loa de abertura - domínio público; Intérprete(s): Djavan; Instrumentista: Neves, Chico - rabeca;

Título da música: Ô biá-tá-tá ; Música de: Altavila, Jayme de e Tavares, Heckel; Intérprete(s): Lavadeiras de Piaçabuçu;

Título da música: Feliz aniversário ; Música de: Villa-Lobos, Heitor e Bandeira, Manoel; Instrumentista: Almeida, Cláudio – violão;

Título da música: Mundo animal ; Música de: Dinho; Intérprete(s): Moura, Wagner - voz;

Título da música: Foi Deus que me fez assim ; Música de: Lino, Cícero; Intérprete(s): Lino, Cícero e Grupo Caçuá;

Título da música: Ô menina , de Cícero Lino; Música de: Lino, Cícero; Intérprete(s): Lino, Cícero e Grupo Caçuá;

Título da música: Folia de Urucuia - domínio público; Música de: Freire, Paulo - versão;

Título da música: Anjos caídos ; Música de: Lirinha; Intérprete(s): Cordel do Fogo Encantado;

Título da música: Vá com Deus ; Música de: Miranda, Roberta; Intérprete(s): Miranda, Roberta;

407

Título da música: Canto da ema ; Música de: Cavalcanti, Alvetino; Viana, Ayres e Vale, João; Intérprete(s): Pandeiro, Jackson do;

Título da música: Masseira - domínio público; Intérprete(s): Interpretada por Banda Ôxe;

Título da música: Na rede ; Música de: Mosca, Bruno e Banda Ôxe; Intérprete(s): Banda Ôxe;

Título da música: Vida ; Música de: Kedyh, Roger e Juçá, Maria; Intérprete(s): Araketu;

Título da música: Cair em si ; Música de: Djavan; Intérprete(s): Djavan;

Título da música: Divino - domínio público; Intérprete(s): Cacuriá de Dona Teté;

Título da música: Festa na lua ; Música de: Pascoal, Hermeto; Intérprete(s): Pascoal, Hermeto;

Título da música: Acelerou, bateu ; Música de: Juninho e Aldo; Intérprete(s): Sonic Junior;

Título da música: Lycra limão ; Música de: Santtana, Lucas e Ribeiro, Quito; Intérprete(s): Santtana, Lucas;

Título da música: Com a mão na frente e outra atrás ; Música de: MC Vanessinha; Intérprete(s): MC Vanessinha;

Título da música: Matilde ; Música de: Mourão, Chris, Cachaça e Duani; Intérprete(s): Forróçacana;

Título da música: Ô papai - domínio público; Intérprete(s): Comadre Florzinha;

Título da música: Rio, pontes e overdrives ; Música de: Science, Chico e Zero Quatro; Intérprete(s): Chico Science & Nação Zumbi;

Título da música: Psicocúmbia ; Música de: Lobato, Pio; Intérprete(s): Lobato, Pio;

Título da música: Bringa/fuloresta do samba ; Música de: Siba;

Título da música: Para um dub no Recife ; Música de: DJ Dolores;

Título da música: Morango do nordeste ; Música de: Afogados, Walter de e Alves, Fernando; Intérprete(s): Laílton e seus teclados;

Título da música: Baião lo-fi ; Música de: DJ Chico Corrêa; Intérprete(s): DJ Chico Corrêa;

Título da música: Eu vi as nuvens girando ; Música de: Mestra Virgínia; Intérprete(s): Mestra Moraes, Virgínia de e Erivaldo;

408

Título da música: Luar do sertão ; Música de: Paixão Cearense, Catulo da e Pernambuco, João; Intérprete(s): Branca, Pena e Xavantinho;

Título da música: Ironia ao rico ; Música de: Madureira, A. J.; Intérprete(s): Quinteto Armorial;

Título da música: A vida do viajante ; Música de: Gonzaga, Luiz e Cordovil, Hervé Intérprete(s): Gonzaga, Luiz.

O caminho das nuvens (Amorim, Vicente; 2003)

Produção musical : Abujamra, André;

Dados adicionais de música: Regente Maestro: Abujamra, André; Orquestração: Abujamra, André;

Instrumentista: Abujamra, André - baixo, guitarra e samplers; Stolarski, Kuki - bateria em "Rock do padinho"; Cunha, Alexandre Xavier da - violino; Brito Jr., Simplicio Soares de - violino; Santos, Eduardo Luiz Bello dos - violoncelo; Caverni, Davi Risse – viola

Canções/peças : Título da música: Shake your pocotó - música de boate ; Música de: DJ Fat Marley;

Título da música: Te quiero - música mexicana; Música de: Gonzales, Ruan;

Título da música: Adorella (a minha dor) ; Música de: DJ Dolores e; Orquestra: Orquestra Santa Massa;

Título da música: Amor sem limites ; Música de: Carlos, Roberto;

Título da música: Como é grande o meu amor por você ; Música de: Carlos, Roberto; Intérprete(s): Roberto Carlos;

Título da música: Detalhes ; Música de: Carlos, Roberto e Carlos, Erasmo; Intérprete(s): Roberto Carlos;

Título da música: Se você pensa ; Música de: Carlos, Roberto e Carlos, Erasmo; Intérprete(s): Roberto Carlos;

Título da música: Jesus Cristo ; Música de: Carlos, Roberto e Carlos, Erasmo; Intérprete(s): Roberto Carlos; Título da música: Eu sou terrível ; Música de: Carlos, Roberto e Carlos, Erasmo; Intérprete(s): Roberto Carlos;

Título da música: As curvas da estrada de Santos ; Música de: Carlos, Roberto e Carlos, Erasmo; Intérprete(s): Roberto Carlos;

Título da música: Por isso eu corro demais ; Música de: Carlos, Roberto; Intérprete(s): Roberto Carlos;

Título da música: Verdadeiro amor ; Música de: Marcelo, Washington; Intérprete(s): Banda Magníficos; 409

Título da música: Sonho lindo ; Música de: Alves, Dinarte; Intérprete(s): Banda Magníficos;

Título da música: Dois amores ; Música de: Alves, Nanado e Patricio, Paulo; Intérprete(s): Banda Magníficos;

Título da música: Juro que te quero ; Música de: Marcelo, Washington; Intérprete(s): Banda Magníficos;

Título da música: Brilho do luar ; Música de: Alves, Dinarte; Intérprete(s): Banda Magníficos;

Título da música: Viver uma paixão ; Música de: Neno; Rainundo e Cavalcante, Ilmar; Intérprete(s): Banda Magníficos;

Título da música: Toque xote ; Música de: Cotta, Enio; Intérprete(s): Swing de Palha;

Título da música: À beira-mar ; Música de: Cotta, Enio; Intérprete(s): Swing de Palha;

Título da música: Mel da sua boca ; Música de: Conceição, Carlinhos e Rubinho; Intérprete(s): Acarajé com camarão;

Título da música: Cerol na mão 2 ; Música de: Tigrão; Intérprete(s): Bonde do Tigrão;

Título da música: Coisas de nós dois ; Música de: Moraes, Cacá e Silva, Gonzaga da; Intérprete(s): Ramos, Adilson;

Título da música: Vou seguir meu coração ; Música de: Flores e Diniz, André; Intérprete(s): Ramos, Adilson;

Título da música: Sexo ; Música de: Xela, Alez; Intérprete(s): Pagod'Art;

Título da música: Festa na Bahia ; Música de: Copque, Tonho e Fredson Intérprete(s): BamdaMel.

Central do Brasil (Salles, Walter; 1998)

Produção musical : Pinto, Antonio; Morelenbaum, Jacques;

Dados adicionais de música: Instrumentistas: Morelenbaum, Jacques - violoncelo; Morelembaum, Edu - piano; Pinto, Antônio - piano; Suzano, Marcos - percussão; Siba - rabeca; Brasil, Luiz - violão, viola, bandolim e cordas; Bessler, Marie Christine S. - viola; Almeida, João Daltro de - violino; Pareschi, Giancarlo - violino spala; Bessler, Bernardo - violino; Malard, Marcio Eymard - cello. Campolina, Denner de Castro - contrabaixo acústico; Silva, Ricardo Amado da - violino; Bessler, Michel - violino; Perrotta, Paschoal - violino, arregimentação das cordas; Ranevsky, Jorge Kundert (Lura) - cello; Passaroto, Jesuína Noronha - viola; Silva, José Alves da - violino; Hack, Walter – violino; 410

Canções/peças : Título da música: Toada e desafio ; Música de: Capiba; Intérprete(s): Quinteto da Paraíba;

Título da música: Preciso me encontrar ; Música de: Candeia; Intérprete(s): Cartola;

Título da música: Mama África ; Música de: César, Chico; Intérprete(s): César, Chico;

Título da música: Ruínas da Babilônia ; Música de: Beydoun, Fauzi; Intérprete(s): Tribo de Jah;

Título da música: É Deus por nó s; Música de: Leão, Fátima e Alexandre Neto; Intérprete(s): Zezé di Camargo e Luciano.

411

FRONTEIRAS

A grande arte (Salles, Walter, 1991)

Produção musical : Kneiper, Jurgen; Boekelheide, Todd;

Canções/peças : Título da música: The photographer (A Gentleman's Honor - instrumental ); Música de: Glass , Philip; Intérprete(s): The Philip Glass Ensemble;

Título da música: I`ve got a rick out of you ; Música de: Porter, Cole; Intérprete(s): Sarah Chrétien;

Título da música: Galloping ; Música de: Les Rita Mitsouko; Intérprete(s): Les Rita Mitsouko;

Título da música: História da minha vida ; Música de: Paiózinho e Biscardi, Salvador M.; Intérprete(s): Tonico e Tinoco;

Título da música: Concerto for cello strings and continuo in e minor ; Música de: Vivaldi, Antonio; Intérprete(s): Pierre Fournier.

Terra estrangeira (Salles, Walter; 1995)

Produção musical : Tatit, Paulo; Wisnik, José Miguel;

Dados adicionais de música: Arranjos musicais: Wisnik, José Miguel; Música original: Wisnik, José Miguel

Canções/peças : Título da música: Morena ; Música de: Neto, Jorge; Intérprete(s): Livity;

Título da música: Medley terra (compadre, disispero, terra bô sabé ); Música de: Grupo Cola; Intérprete(s): Os Tubarões;

Título da música: Fran dance ( Put your little foot right out ); Música de: Miles Davis; Intérprete(s): Miles Davis e John Coltrane;

Título da música: Pensa em mim ; Música de: Maio, D.; Ribeiro, J. e Soares, M.; Intérprete(s): Leandro e Leonardo;

Título da música: Djam brancu DJA ; Música de: Bulimundo; Intérprete(s): Bulimundo;

Título da música: Sperança ( Tchub a); Música de: Dias, Beto; Intérprete(s): Dias, Beto;

Título da música: Estranha forma de vida ; Música de: Duarte, Alfredo Rodrigo e Rodrigues, Amalia; Intérprete(s): João, Maria;

Título da música: Vapor barato ; Música de: Macalé, Jards e Salomão, Waly; Intérprete(s): Costa, Gal 412

Instrumentista: Wisnik, José Miguel - Teclados e piano; Morelenbaum; Jacques - Violoncelo Solo e Regência de Cordas; Bessier, Marcelo - Violino solo; Tagliaferri, Fabio - Viola solo; Swami Jr. - Violão; Altman, Ronen - Bandolim; Farias, Cláudio - Trumpete e Proveta - Saxofone

Os matadores (Brant, Beto; 1997)

Produção musical : Abujamra, André;

Dados adicionais de música: Instrumentista: Lemos, Renato (violoncelo, viola), Ferragute, Toninho (acordeão), Quiñonez, Oscar (harpa paraguaya), Quiñonez, Eugênio (chitarra);

Canções/peças : Título da música: O sol e a lua ; Música de: Délio; Delinha; Intérprete(s): Correinha;

Título da música: Dama de vermelho ; Música de: Benatti, Ado e Mineiro, Zeca; Intérprete(s): Fernandes, Jane;

Título da música: Prazer do fazendeiro ; Música de: Délio e Delinha; Intérprete(s): Correinha;

Título da música: Entre Paraguay e Corrientes ; Música de: Vilamayor, Alejandro e Valdovinos, Nestor Romero; Intérprete(s): Luque, Alberto de;

Título da música: Mburicaó ; Música de: Flores, José Asunción; Intérprete(s): Luque, Alberto de;

Título da música: Indio Guarani ; Intérprete(s): Quiñones, Oscar e Quiñones, Nino;

Título da música : Che Pecazumi ; Música de: Martinez, Eladio e Flores, J. A.; Intérprete(s): Quiñones, Oscar e Quiñones, Nino;

Título da música: Coração de bronze ; Música de: Gracino; Jota Wilson; Intérprete(s): Dois mineiros, Os;

Título da música: Prisão de papel ; Música de: Praense e Camacho, Lourival; Intérprete(s): Dois mineiros, Os;

Título da música: Paixão secreta ; Música de: Praense e Rosário, Ruy; Intérprete(s): Henrique, Luiz e Rossi, Carlos;

Título da música: Homem perfeito ; Música de: Santos, Fernando A. dos e Deise; Intérprete(s): Pioneiras, As;

Título da música: Amor fantasia ; Música de: Praense e Rosário, Ruy; Intérprete(s): Stalone e Randalf;

Título da música: Camisola preta ; Música de: Barbosa, Carlos e Praense Intérprete(s): Barbosa, Carlos.

413

Diários de motocicleta (Salles, Walter; 2004)

Produção musical : Santaolalla, Gustavo ;

Dados adicionais de música: Instrumentistas: Santaolalla, Gustavo - guitarras, guitarrón, ronroco, charango, caja, pipes, percussão, vibes, flautas e baixo; Markese, Don - flautas; Barrera, Bráulio - cajón; Casalla, Javier - violino;

Canções/peças : Título da música: Adiós Muchachos ; Música de: Veldani, César Felipe; Sander, Julio César; Intérprete(s): Serna, Rodrigo de la;

Título da música: Mala Junta ; Música de: Caro, Julio; Laurenz, Pedro Blanco, Velich, Juan Miguel; Intérprete(s): Elia, Oscar de;

Título da música: Delicado ; Música de: Azevedo, Waldir; Intérprete(s): Elia, Oscar de;

Título da música: Jardín ; Música de: Santaolalla, Gustavo; Intérprete(s): Santaolalla, Gustavo;

Título da música: El Chipi Chipi ; Música de: Rodriguez, Gabriel;

Título da música: Felíz cumpleaños ; Música de: Hill, Mildred J.; Hill, Patty S .; Intérprete(s): n/d;

Título da música: Mambo no. 5 ; Música de: Prado, Dámaso Pérez; Intérprete(s): Prado, Dámaso Pérez;

Título da música: Qué rico el mambo ; Música de: Prado, Dámaso Pérez; Intérprete(s): Prado, Dámaso Pérez;

Título da música: Tomando Café ; Música de: Rivas, Wello; Intérprete(s): Prado, Dámaso Pérez;

Título da música: De Usuahia a La Quica ; Música de: Santaolalla, Gustavo; Intérprete(s): Santaolalla, Gustavo;

Título da música: Al otro lado del río ; Música de: Drexler, Jorge; Intérprete(s): Jorge Drexler y Leo Sidran Grabada y Mezclada.

414

ANEXO C: BREVE CINEMATOGRAFIA MUNDIAL DE TEMÁTICA/GÊNERO FILME DE ESTRADA ( ROAD MOVIE ), ANOS 1930-2000

A listagem abaixo tem como fonte a Biblioteca da Universidade da Califórnia, Berkeley (EUA) 90 pesquisada de modo eletrônico. Foram dispostos por data crescente de produção. Os dados divulgados aqui são: títiulo em português, título na língua original, diretor, país e ano de produção. Alguns longas- metragens foram acrescentados conforme bibliografia específica do presente trabalho e indicado nesta listagem com o sinal asterisco (*). Os títulos brasileiros foram registrados conforme consta da relação da referida fonte de pesquisa. A filmografia do gênero western , correlata ao tema estrada, foi mencionada somente apropriando-se da produção das décadas de 1930/40, e, evidentemente, trata-se das principais obras do período.

Década de 1930

A grande jornada (The Big Trail, Raoul Walsh, EUA, 1930) * Wild boys of the road (William A. Wellman, EUA, 1933) Aconteceu naquela noite (It Happened One Night, Frank Capra, EUA, 1934) Her uncle Sam (red salute) (Sidney Lanfield, EUA, 1935) O mágico de Oz (Wizard of Oz, Victor Fleming, EUA, 1939) No tempo das diligências (Stagecoach, John Ford, EUA, 1939)

Década de 1940

Vinhas da ira (Grapes of Wrath, John Ford, EUA, 1940) A sereia das ilhas (Road to Singapore, Victor Schertzinger, EUA, 1940) Dentro da noite (They Drive by Night, Raoul Walsh, EUA, 1940) Thieves like us (Robert Alman, EUA, 1940) A tentação de Zanzibar (Road to Zanzibar, Victor Schertzinger, EUA, 1941) Contrastes humanos (Sullivan's Travels, Preston Sturges, EUA, 1941) A sedução do Marrocos (Road to Morocco, David Butler, EUA, 1942) Um conto de Canterbury (A Canterbury Tale, Michael Powell e Emeric Pressburger, Inglaterrra, 1944) Curva do destino (Detour, 1945, EUA, Edgar G. Ulmer) Dois malandros e uma Garota (Road to Utopia, Hal Walker, EUA, 1946) O desesperado (Desperate, Anthony Mann, EUA, 1947)

Década de 1950

Mortalmente perigosa (Gun Crazy, Joseph Lewis, EUA, 1950) O mundo odeia-me (The Hitch-Hiker, Ida Lupino, EUA, 1953) O selvagem (Wild One, Laslo Benedek, EUA, 1953) Na rota do inferno (Hell Drivers, Cyril Raker Endfield, Inglaterra, 1957)

90 O material foi pesquisado em: http://www.lib.berkeley.edu/MRC/roadmovies.html 415

Década de 1960

Carbid e Sorrel (Karbid und Sauerampfer, Frank Beyer, Alemanha Oriental, 1963) O demônio das 11 Horas (Pierrot Le Fou, Jean-Luc Godard, França, 1965) Faster, Pussycat! Kill! Kill! (Russ Meyer, EUA, 1966) Os anjos selvagens (The Wild Angels, Roger Corman, EUA, 1966) Bonnie e Clyde - uma rajada de balas (Bonnie & Clyde, Arthur Penn, EUA, 1967) Os demônios sobre rodas (Hells Angels on Wheels, Richard Rush, EUA, 1967) Um caminho para dois (Two for the Road , Stanley Donen, EUA, 1967) Sem destino (Easy Rider, Dennis Hopper, EUA, 1969) Hell's Belles (Maury Dexter, EUA, 1969) O estranho caminho de São Tiago (La Voie Lactée, Luis Buñuel, França / Alemanha Ocidental / Itália, 1969) Caminhos mal traçados (The Rain People, Francis Ford Coppola, EUA, 1969)

Década de 1970

Gas-s-s-s!: Or, It Became Necessary to Destroy the World in Order to Save It (Roger Corman, EUA, 1970) Corrida sem fim (Two Lane Blacktop, Monte Hellman, EUA, 1971) Corrida contra o destino (Vanishing Point, Richard C. Sarafian, EUA, 1971) Uma mulher da rua (Boxcar Bertha, Martin Scorsese, EUA, 1972) Os implacáveis - fuga perigosa (The Getaway, Sam Peckinpah, EUA, 1972) Viagens com a minha tia (Travels with My Aunt, George Cukor, EUA, 1972) Terra de ninguém (Badlands, Terrence Malick, EUA, 1973) A última missão (The Last Detail, Hal Ashby, EUA, 1973) O imperador do norte (Emperor of the North Pole, Robert Aldrich, EUA, 1973). Alice não mora mais aqui (Alice Doesn't Live Here Anymore, Martin Scorsese, EUA, 1974) Alice nas cidades (Alice in den Städten, Wim Wenders, Alemanha Ocidental, 1974) Harry and Tonto (Paul Mazursky, EUA, 1974) Louca escapada (Sugarland Express, Steven Spielberg, EUA, 1974) Movimento em falso (Falsche Bewegung, Wim Wenders, Alemanha Ocidental, 1975) Esta terra é minha terra (Bound for Glory, Hal Ashby, EUA, 1976) No decurso do tempo (Im Lauf der Zeit, Wim Wenders, Alemanha Ocidental, 1976) Bye bye Brasil (Carlos Diegues, Brasil, 1979) Mad Max (Mad Max , George Miller, Austrália, 1979) *

416

Década de 1980

Mad Max 2 - a caçada continua (The Road Warrior, George Miller, Austrália, 1981) Paris, Texas (1984) Wim Wenders; Estranhos no paraíso (Stranger Than Paradise , Jim Jarmusch, EUA, 1984) A grande aventura de Pee Wee (Pee-Wee's Big Adventure, Nnegest Likke, EUA, 1985). Os renegados (Sans toit ni loi, Agnes Varda, França, 1985) Daunbailó (Down by Law, Jim Jarmusch, EUA / Alemanha Ocidental, 1986) Rain man (Rain Man, Barry Levinson, EUA, 1988) O silêncio do lago (Spoorloos, George Sluizer, Holanda | França, 1988) Ariel (Ariel, Aki Kaurismaki, Finlândia, 1989) Drugstore cowboy (Drugstore Cowboy, Gus Van Sant, EUA, 1989) Cowboys de Lenigrado vão para a América (Leningrad Cowboys Go America, Aki Kaurismaki. Finlândia | Suécia, 1989) Uma estrada sem limites (PowWow Highway, Jonathan Wacks, EUA, 1989)

Década de 1990

Coração selvagem (Wild at Heart , David Lynch, EUA, 1990) Urga - uma paixão no fim do mundo (Urga , Nikita Mikhalkov, França | União Soviética, 1991) Delusion (Carl Colpaert, EUA, 1991) Garotos de programa (My Own Private Idaho, Gus Van Sant, EUA, 1991) Thelma e Louise (Thelma and Louise , Ridley Scott, EUA, 1991) Living end. (Gregg Araki, EUA, 1992) Lolita (Lolita, Adrian Lyne, EUA / França, 1992) Caro diário (Caro Diario, Nanni Moretti, Itália | França, 1993) Kalifornia (Kalifornia, Dominic Sena, EUA, 1993) O silêncio do lago (The Vanishing, George Sluizer, EUA, 1993) Amor à queima-roupa (True Romance, Tony Scott, EUA, 1993) Priscila, a Rainha do Deserto (Adventures of Priscilla, Queen of the Desert, Stephan Elliott, Australia, 1994) Assassinos por natureza (Natural Born Killers, Oliver Stone, EUA, 1994) Pidä huivista kiinni, Tatjana (Aki Kaurismaki, Finlândia / Alemanha, 1994) O beijo da borboleta (Butterfly Kiss, Michael Winterbottom, Inglaterra, 1995) Guantanamera (Guantanamera, Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, Cuba | Espanha | Alemanha, 1995). Para Wong Foo, obrigada por tudo! Julie Newmar (To Wong Foo, Thanks for Everything, Julie Newmar, Beeban Kidron, EUA, 1995) Alles moet weg (Jan Verheyen, Bélgica, 1996) Freeway - sem saída (Freeway, Matthew Bright, EUA, 1996) Marcha sobre Washington (Get On the Bus, Spike Lee, USA, 1996). Western (Manuel Poirier, França, 2007) Medo e delírio (Fear and Loathing in Las Vegas, Terry Gilliam, EUA, 1998) Sinais de fumaça (Smoke Signals , Chris Eyre, Canadá | USA, 1998) Em qualquer outro lugar (Anywhere But Here, Wayne Wang, EUA, 1999) 417

Blues brothers 2000: o mito continua (Blues Brothers 2000, John Landis, 1999) Livre para amar (Tumbleweeds, Gavin O'Connor, EUA, 1999) Uma história real (The Straight Story, David Lynch, França | Inglaterra | EUA, 1999) *

Década de 2000

Drole de Felix (Olivier Ducastel e Jacques Martineau, França ,2000) Im Juli (Fatih Akin, Alemanha, 2000) E aí, meu irmão, cadê você? (O Brother Where art Thou?, EUA, Joel Coen, 2000) E sua mãe também (Y Tu Mamá También , Alfonso Cuarón, México, 2001) Estrada para perdição (Road to Perdition, Sam Mendes, EUA, 2002) Nain souruzu (Toshiaki Toyoda, Japão, 2003) Koktebel (Boris Khlebnikov e Aleksei Popogrebskii, Rússia, 2003) À tout de suite (Benoît Jacquot, França, 2004) Aaltra: a road movie (Gustave de Kervern e Benoit Delépine, França | Bélgica, 2004) Exílios (Exiles, Tony Gatlif, França | Japão, 2004) A grande viagem (Le Grand Voyage, França | Marrocos, 2004) Los muertos (Lisandro Alonso, Argentina | França | Holanda | Suíça, 2004) Histórias mínimas (Historias Mínimas, Carlos Sorin, Argentina | Espanha, 2004) Família Rodante (Familia Rodante, Pablo Trapero, Argentina, 2004) Sideways (Sideways, Alexander Payne, EUA, 2004) Diarios de motocicleta (Walter Salles, Argentina | EUA | Inglaterra | Alemanha | México | Chile | Perú | França, 2004) Flores partidas (Broken Flowers, Jim Jarmusch, EUA, 2005) Uma vida iluminada (Everything is Illuminated, Liev Schreiber, EUA, 2005) Transamérica (Transamerica , Duncan Tucker, EUA, 2005) Viva Cuba (Viva Cuba, Juan Carlos Cremata Malberti, França | Cuba, 2005) Borat - o segundo melhor repórter do glorioso país Cazaquistão viaja à América (Borat: Cultural Learnings of America for Make Benefit Glorious Nation of Kazakhstan, Larry Charles, EUA, 2006) Pequena Miss Sunshine (Little Miss Sunshine, Jonathan Dayton e Valerie Faris, EUA, 2006) Na natureza selvagem (Into the Wild, Sean Penn, EUA, 2007) * The Lucky Ones (Neil Burger, EUA, 2008)

418

ANEXO D - BREVE CINEMATOGRAFIA BRASILEIRA DE TEMÁTICA/GÊNERO FILME DE ESTRADA ( ROAD MOVIE ), ANOS 1950- 2000

A listagem abaixo tem como fonte a bibliografia específica do presente trabalho. Foram dispostos por data de produção e de modo crescente. Os dados divulgados aqui são: títiulo, diretor e ano. A filmografia do gênero de cangaço, correlata ao tema estrada, foi mencionada somente apropriando-se da produção principal da década de 1950.

Década de 1950

Lampião, o rei do cangaço (Fouad Anderaos, 1950) Sai da frente (Tom Payne e Abílio Pereira de Almeida, 1952). O cangaceiro (Lima Barreto, 1953) O primo do cangaceiro (Mário Brasini, 1955) A estrada (Oswaldo Sampaio, 1956)

Década de 1960

O vigilante rodoviário (Ary Fernandes, 1962) Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) O vigilante contra o crime (1964) Os fuzis (Ruy Guerra, 1964) O vigilante e os cinco valentes (1965) O vigilante em missão secreta (1967)

Década de 1970

Iracema - uma transa amazônica (Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Brasil / Alemanha Oc. / França, 1976) Bye bye Brasil (Cacá Diegues, 1979)

Década de 1980

A opção (Ozualdo Ribeiro Candeias, 1981) Jorge, um brasileiro (Paulo Thiago,1988) O mentiroso (Werner Schünemann, 1988)

419

Década de 1990

A grande arte (Walter Salles, 1991) Terra estrangeira (Walter Salles, 1995) Os matadores (Beto Brant, 1997) Central do Brasil (Walter Salles, 1998)

Década de 2000 (até o ano 2008)

Deus é brasileiro (Cacá Diegues, 2003) O Caminho das nuvens (Vicente Amorim, 2003) Lisbela e o prisioneiro (Guel Arraes, 2003) Diários de motocicleta (Walter Salles, Argentina | EUA | Alemanhã | Mexico | Chile | Peru | França, 2004) Cinema, aspirinas e urubus (Marcelo Gomes, 2005) Árido movie (Lírio Ferreira, 2006) O céu de Suely (Karim Ainouz, 2006)