UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” INSTITUTO DE ARTES DA UNESP Programa de Pós-Graduação em Artes

Deise Santos de Brito

CASAMENTO DE PRETO: UM ESTUDO A RESPEITO DO CORPO NEGRO A PARTIR DE JOSEPHINE BAKER E GRANDE OTELO

São Paulo 2019

DEISE SANTOS DE BRITO

CASAMENTO DE PRETO: UM ESTUDO A RESPEITO DO CORPO NEGRO A PARTIR DE JOSEPHINE BAKER E GRANDE OTELO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista – UNESP, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.

Área de Concentração: Artes Cênicas Linha de Pesquisa: Estética e Poéticas Cênicas Orientadora: Prof.a Dr.a Marianna Francisca Martins Monteiro

São Paulo 2019

Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Artes da UNESP

B862c Brito, Deise Santos de, 1981- Casamento de preto: um estudo a respeito do corpo negro a partir de Josephine Baker e Grande Otelo / Deise Santos de Brito. - São Paulo, 2019. 270 f.: il.

Orientadora: Profa. Dra. Marianna Francisca Martins Monteiro Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes

1. Teatro brasileiro (Comédia). 2. Negros nas artes cênicas. 3. Diáspora africana. 4. Corpo como suporte da arte. 5. Grande Otelo - 1915-1993. 6. Baker, Josephine - 1906-1975. I. Monteiro, Marianna Francisca Martins. II. Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. IV. Título.

CDD 792.0981

(Laura Mariane de Andrade - CRB 8/8666)

ERRATA

BRITO, Deise Santos de. Casamento de preto: um estudo a respeito do corpo negro a partir de Josephine Baker e Grande Otelo / 2019. 270 f. Tese (Doutorado em Artes) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes. São Paulo, 2019.

Folha Linhas Onde se lê Leia-se Agradecimentos 81,82,83 Por fim e essencial O presente trabalho foi para este resultado, realizado com apoio da agradeço à CAPES por Coordenação de Aperfeiçoa- conceder Bolsas de mento de Pessoal de Nível Pesquisa para os meus Superior - Brasil (CAPES) - estudos no Brasil e para a Código de Financiamento 001. realização do Programa de Doutorado Sanduíche no exterior.

Dedico esta tese a minha Família-Amiga e as(aos) Amigas(os)-Família.

AGRADECIMENTOS

Celebro as energias do Orum e do Aiê que inspiram as minhas criações e sopram a força que há em mim. Obrigada Olorum ! Laroiê, Exu! Agradeço a Iemanjá, senhora do meu interior. Obrigada meu paizão Ogum por me proteger e acompanhar nas minhas estradas internas. Curvo, também, o meu “corpo-agradecimento” diante de Oxum, Oxóssi, Obaluaê, Xangô, Iansã, Oxalá e Ibejis. Louvo a presença espiritual dos meus avós em minha vida. Elas(es) que são contadas(os) e (re)contadas(os) nos corpos dos meus pais. Assim, celebro in memorian: Hilda Maria Ribeiro de Brito e Durval Faustino de Brito; Joana Bispo dos Santos e Manoel dos Santos.

Saúdo as memórias de Josephine Baker e Grande Otelo por me permitirem adentrar em suas experiências e escrever sobre seus corpos. Obrigada pelos legados, passagens no Aiê, por me inspirarem e respirarem durante esses 10 anos. Axé às(aos) antepassadas(os). Gratidão a todas(os) intelectuais negras(os) que ocuparam os espaços acadêmicos antes de mim. Obrigada por iniciarem caminhos.

Agradeço e festejo a minha Família-Amiga, “o pé do meu samba e o chão do meu terreiro”, em especial: minha mãe-mentora-pedagoga Maria de Lourdes Bispo dos Santos, que me gerou e (re)gerou-me quando eu precisei nascer de novo; meu pai-generoso-teimoso Durval Faustino de Brito Filho. Meus irmãos de todos os momentos, Luiz Gustavo Brito Santos e Diógenes Brito Santos. Minha irmã-dinda Ana Carla dos Santos; meu tio Carlos Bispo, pelo seu coração grande e sincero; Jaci de Sousa Silva e Andréia Cristina de Sousa Silva, pelas correntes de fé. Minhas tias, Alice Bispo, Clarice Bispo, Dinacelia Ribeiro de Brito, Dinailda Ribeiro de Brito, Delamira Ribeiro de Brito. Meus sobrinhos e sobrinhas - Rita Manuela, Luiz Felipe, Vitor Rodrigo, Luiz Gabriel, Diógenes Júnior, Nicole e Guilherme - para vocês, “todo amor que houver nessa vida”.

“Viver sem amigos é como tentar tirar leite de um urso para o café da manhã. Dá muito trabalho e não vale a pena.” (Zora Neale Hurston).

Obrigada Amigas(os)-Família: Juliana Bittencourt (in memoriam), Felipe Bittencourt, Dona Antônia, Seu Zé, Val Conceição, Tom Conceição, Andreia Fernandes, Paula Salles, Thaís Magalhães, Ilda Andrade, Lilian Rúbia Rocha, Kanzelumuka, Juliana dos Santos, Inessa da Silva, Marina Klautau, Fabiane Mie, Dalila D´Cruz, Lucimar de Santana, Jussileide Barbosa, Douglas Iesus, Anelise Mayumi, Fredyson Cunha, Rafael Lemos, Vânia Santos, Talita Bonfim, Juliana de Souza, Conrado Carmven, Mônica Cardim, Evandro Henriett e Júlia dos Santos Chaves (afilhada querida!). Saúdo meu território de axé. Gratidão a Mãe Creonice de Obaluaê, Mãe “pequena” Joelma e as minhas irmãs e irmãos da Casa Ilê Axé Obaiê. O que seria da vida sem os encontros e as partilhas? Agradecimentos as contribuições de: minha orientadora Dra. Marianna Francisca Martins Monteiro; Dr. Salomão Jovino da Silva e Dra. Yaskara Donizeti Manzini, pelas sugestões na banca de qualificação e em conversas extras que iluminaram muito os aspectos desse trabalho; meus co-orientadores no exterior, Dr. Nefertiti Burton e Dr. Humbert Baron Kelly; a toda equipe de funcionários e estudantes do Departamento de Teatro da Universidade de Louisville, em especial, Jéssica Key, Charles Nasby, Bridgte Kim, LaShondra Hood, Sidney Edwards, Kala Ross, Brittany Patillo, Manuel Viveiros; corpo docente do instituto de Artes da UNESP, em particular, Dra. Lúcia Regina Vieira Romano, Dr. Mário Fernando Bolognesi, Dr. Juliano Casimiro de Camargo Sampaio; Amailton Magno Azevedo; Wanderson Chaves; Fernando Camargo Ferraz; Leticia Leonardi; Valéria Alencar; Ricardo Freitas; Ariane Molina; Maria Cristina Francisco; Mauricio Barbosa; Gisele Silva; Monilson dos Santos Pinto; e alunas(os) da Oficina “Devolve meu quadril?” e o CRD-SP - Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo; Grupo Terreiro de Investigações Cênicas: Rituais, Brincadeiras e Vadiagens; GEINXS; Comissão de Direitos Humanos do Instituto de Artes da UNESP, divisor de águas nas minhas vivências unespianas; estudantes ingressantes no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UNESP de 2015; técnicas(os)-administrativo e funcionárias(os) terceirizadas(os) da UNESP, que sustentam a universidade cotidianamente, dedicando-se com integridade e comprometimento; equipe da secretaria do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da UNESP, em especial a funcionária aposentada Angela Lunardi; participantes do I Fórum de Criação Convivial da Cia Sansacroma e Gal Martins; Fórum Permanente de danças Contemporâneas:

corporalidades plurais; equipe do Núcleo de Educação Étnico Racial-SME-SP de 2016. Ser grupo é se re-fazer em movimento. Obrigada aos coletivos que me ensinaram e ensinam: Companhia de Teatro Popular Cirandarte (BA); Núcleo Vênus Negra (SP); Ouvindo Passos Cia de Dança (SP). Obrigada as Mestras e Mestres do meu invólucro: Nadir Nóbrega, Roquedélia Santos, Taynã Andrade, Ângela de Castro Reis e Luís Bandeira. Afetos construídos em arquivos desconhecidos. Obrigada a equipe de funcionárias(os): Biblioteca do Instituto de Artes da UNESP; Biblioteca Mário de Andrade; Biblioteca do Centro Cultural São Paulo; Biblioteca Nacional; Centro de Documentação da Funarte; Museu da Imagem do Som do Rio de Janeiro; Museu da Imagem do Som de São Paulo; Ekstrom Library – Universidade de Louisville; New York Public. Library - Schomburg Center for Research in Black Culture; New York Public. Library for the Performing Art; Biblioteca do Congresso; Stuart A. Rose Manuscripit, Archives, and Rare Book Library – Emory University; Missouri Historical Society – Library & Research Center. Obrigada à Banca composta para esse rito de passagem: Dra. Andreia Fernandes Oliveira (suplente); Dra. Juliana de Souza Mavoungou Yade (suplente); Dra.Liliane Pereira Braga (suplente); Dra. Leda Maria Martins; Dra. Luciane da Silva; Dra. Marianna Francisca Martins Monteiro; Dr. Reginaldo Carvalho da Silva; Dr. Salomão Jovino da Silva. Por fim e essencial para este resultado, agradeço à CAPES por conceder Bolsas de Pesquisa para os meus estudos no Brasil e para a realização do Programa de Doutorado Sanduíche no exterior. Axé!

“O amor pressupõe conhecimento”. Beatriz Nascimento

“Por medo, empoleirada Sofria. A esperança empoeirada perecia, temia, caía. Se confundia. Acabou! Do puleiro saltou Da gaiola se libertou, Empoderada voou.” Andreia Fernandes

Resumo

A tese tem como proposta pensar princípios comuns de corpo, identificados em duas pessoas negras: a artista estadunidense Josephine Baker (1906-1975) e o ator brasileiro Grande Otelo (1915-1993), a partir de paradigmas negro-africanos em diáspora. Tal proposta partiu da localização de uma reportagem na Revista O Cruzeiro de julho de 1939, que evidenciava um trabalho artístico realizado pelos dois no Rio de Janeiro. A ideia de um Casamento de Preto foi apresentada no Cassino da Urca por Josephine Baker e Grande Otelo, além de um elenco composto por pessoas negras. Tal cena foi citada por ele algumas vezes, inclusive durante entrevista ao programa Roda Viva, em 1987. A partir da ampliação de coleta documental, em arquivos no Brasil e nos Estados Unidos, a pesquisa apresenta estudo que arrisca compor uma conceituação de corpo negro, a partir de aspectos comuns – encontrados nas experiências desses dois artistas. A pesquisa não se limita a examinar os modos corporais, nos limites do campo cênico, estende o olhar para as realidades subjetivas fora do palco. Tendo isso em vista, foram elaborados quatro princípios: Deslocamento, Invólucro, Desobediência e Ocupação. É interessante reforçar que o princípio do deslocamento é o elo que permite a retroalimentação dos outros três e, ao mesmo tempo, é muitas vezes difícil abordá-los isoladamente.

Palavras-chave: Artistas negros. Corpo negros. Decolonial. Diáspora negra. Entretenimento.

Abstract

The dissertation aims to think common principles of body, identified in two black personalities: the American artist Josephine Baker (1906-1975) and the Brazilian actor Grande Otelo (1915- 1993), based on black-African paradigms in diaspora. Such approach unfolded from the sourcing of an article from O cruzeiro magazine, dating back to July 1939, which highlighted an artistic collaboration between the two that took place in Rio de Janeiro. The idea of a Casamento de Preto (Black Wedding) was presented at Urca’s Casino by Josephine Baker and Grande Otelo, alongside an entirely black ensemble. This scene was quoted by Grande Otelo a few times, including during his interview in brazilian TV’s famed program Roda Viva, in 1987. From the broadening of the documental sourcing from archives in Brazil and in the United States, this research dares to yield a conceptuation of black body based on shared patterns - found in the experiences of these two artists. Not limited to examining their body manners and within the scenic spectrum, but also looking into their subjective realities off-stage. With this in mind, four principles were brought up from the patterns found shared between the two: Displacement, Covering, Disobedience and Occupation. Importantly, it must be stressed that the Displacement principle is the link which enables the feedback to the other three principles, and at the same time it’s often difficult to tackle each of them separately.

Keywords: Black artists. Black body. Black diaspora. Decolonial. Entertainment.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Josephine Baker e Grande Otelo juntos. Revista O Cruzeiro ...... 22

Figura 2: Imagem Original ...... 27

Figura 3: Imagem Reajustada...... 27

Figura 4: Josephine Baker, Grande Otelo e outros artistas ...... 29

Figura 5: Grande Otelo em anúncio (1939) ...... 38

Figura 6: Grande Otelo em “Foot-Ball em Família” (1939) ...... 38

Figura 7: Anúncio da Exposição Nacional do Estado Novo, Globo, 1939...... 41

Figura 8: Desenhos dos figurinos de Josephine Baker para apresentações do número “O que é que a baiana tem?” no Cassino da Urca em 1939...... 54

Figura 9: Sequência de Imagens da Apresentação de Baker no Jantar dançante do Cassino da Urca .. 55

Figura 10: Quituteira ...... 56

Figura 11: , s/d...... 57

Figura 12: Imagens de Baker no Terreiro de Mãe Adédé em julho de 1939 ...... 58

Figura 13: Letra de “O que é que a Baiana Tem?” com anotações prováveis de Josephine Baker ...... 59

Figura 14: Letra de “Maria Boa” ...... 60

Figura 15: Anúncio do show de Josephine Baker no Cassino da Urca ...... 66

Figura 16: Letra da música “Boneca de Piche” /parte que Josephine Baker cantava ...... 71

Figura 17: Letra da música “Boneca de Piche” com anotações prováveis da Josephine Baker...... 72

Figura 18: Pentagrama com adição à canção “Boneca de Piche” ...... 73

Figura 19: Pessoas confinadas em porões de um Navio Negreiro ...... 106

Figura 20: Parte do elenco da Companhia Negra de Revistas, 1926 ...... 142

Figura 21: Elenco da Revue Nègre, 1925 ...... 143

Figura 22: Elenco do espetáculo Shuffle Along, 1921 ...... 148

Figura 23: As Tiller Girls, 1928 ...... 148

Figura 24: Representação do pássaro Sankofa ...... 152

Figura 25: Monumento a Tubman (frente) ...... 152

Figura 26: Monumento a Tubman (costas) ...... 152

Figura 27: Folder de The Hungry Heart ...... 181

Figura 28: Foto de escultura - Baker ...... 181

Figura 29: Fotografia de Grande Otelo ...... 181

Figura 30: Josephine Baker no Quadro Plantation. Álbum do Folie-Bérgère (1927) ...... 188

Figura 31: Baker em cena, encaixe do quadril, 1951. EUA ...... 190

Figura 32: Baker em desalinhamento de coluna, 1951. EUA ...... 193

Figura 33: Baker em getdown, 1951. EUA...... 194

Figura 34: A “boca de flor” ...... 196

Figura 35: Escultura do Povo Chockwe – Luanda, Angola ...... 201

Figura 36: Escultura ioruba. Artista não identificado Seated Female Shrine Figure ...... 201

Figura 37: Baker em cena, década de 50 - Olhos ...... 203

Figura 38: Baker, década de 50. Imagem recortada focando os olhos ...... 204

Figura 39: Grande Otelo, olhos ...... 205

Figura 40: Atriz Rita Hayworth, 1946 ...... 214

Figura 41: Josephine Baker - saiote de bananas no Álbum do Folie Bergère (1926-27) ...... 216

Figura 42: Josephine Baker na capa do Folie-Bergère ...... 216

Figura 43: Josephine Baker na foto interna da capa do Folie Bergère ...... 217

Figura 44: Baker no Folies-Bergère, 1926-27...... 220

Figura 45: Josephine Baker vestida com plumas no Álbum do Folie Bergère (1926-27) ...... 221

Figura 46: Linopovska e Pouliguen em destaque, seminuas no Álbum do Folie Bergère (1924) ...... 222

Figura 47: A dançarina Lila Nicolska no Álbum do Folie Bergère (1927) ...... 222

Figura 48: Cartaz do show Josephine Baker e Companhia ...... 232

Figura 49: Baker com uma banana na mão e o provável figurino de “Don´t Touch my tomatoes” 1964 ...... 233

Figura 50: Josephine Baker em preparação para o show no Cassino da Urca, Jornal Globo, 1939 .... 239

Figura 51: Josephine Baker com homem não identificado, s/data e s/local ...... 240

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

CICLO 1 DESLOCAMENTO: O (RE)CONHECIMENTO ...... 22 1.1 1939: Reverberações de um casamento entre pretos ...... 22 1.1.1 A ideia de Grande Otelo ...... 37 1.1.2 A visita de Josephine Baker ...... 46 1.1.3 Boneca de Piche ...... 64 1.2 Metodologia Sincopada: Josephine Baker e Grande Otelo inspirando possibilidades para uma abordagem decolonial do corpo ...... 74

CICLO 2 DESLOCAMENTO: OS SENTIDOS PARA O CORPO NEGRO ...... 89 2.1 Refazer-se em movimento ...... 89 2.2 Invisível ...... 97 2.3 Dor ...... 99 2.3.1 Deslocamentos forçados ...... 101 2.4 Envolvimento ...... 108

CICLO 3 DESLOCAMENTO: O INVÓLUCRO ...... 111 3.1 Primeiros sinais – primeiros invólucros ...... 111 3.2 Atitude de fronteira: por que é preciso nomear o corpo?...... 120 3.2.1 Negros invólucros em Negras fronteiras: a reivindicação pela Zona do Ser ...... 137 3.2.2 Revistas negras ou Negras revistas...... 140 3.3 Ancestralidade ...... 151 3.3.1 Tumpy e Pratinha ...... 162 3.3.2 Aprendizagem em movimento ...... 163 3.4 Síncopa ...... 169

CICLO 4 DESLOCAMENTO: DESOBEDIÊNCIA ...... 175 4.1 Um olhar para o corpo a partir das esculturas ...... 180 4.2 Pés: agilidade, suporte e improviso ...... 185 4.3 Coluna e Quadril: desencaixe para encaixar o mundo ...... 189 4.4 A voz: dança das palavras no silêncio que grita ...... 194 4.5 Os olhos: dança no espaço, pois o movimento é a coluna ...... 200

CICLO 5 DESLOCAMENTO: OCUPAÇÃO ...... 207 5.1 Comicidade, Ancestralidade e Corpo Negro ...... 209 5.2 Relações entre tipos, fenótipos e estereótipos ...... 213 5.2.1 Provocando o estereótipo ...... 226 5.3 O direito à controvérsia e à polêmica ...... 236

CONSIDERAÇÕES FINAIS: ou a carta de despedida ao meu Casamento de Preto ... 245

REFERÊNCIAS ...... 249

ANEXOS ...... 262

13

Achar a própria voz não é somente o ato de contar as próprias experiências. É usar estrategicamente esse ato de contar - achar a própria voz para também poder falar livremente sobre outros assuntos. (HOOKS, 2013: 199)

Introdução

Os super-heróis e as super-heroínas nunca me fascinaram. Sempre tive afeto inexplicável pela controvérsia. A ideia de pouca fragilidade nunca me arrebatou; pelo contrário, sempre admirei filmes, espetáculos e estórias nos quais os personagens eram contraditórios, eles já indiretamente me provocavam. Na minha maturidade constato que eles eram alusivos, ou melhor, referências às realidades das relações cotidianas. Durante o período em que me dediquei ao Mestrado, cujo tema tinha como recorte a trajetória do artista Grande Otelo no Teatro de Revista, lembro-me de que no decorrer da leitura de biografias sobre ele, produzidas por autores brancos, incomodava-me (e encantava-me ao mesmo tempo) a forma como expunham a relação dele com a militância negra. Prevalecia o Grande Otelo que acreditava na “integração das raças”, uma vez que a princípio discordasse da forma de combate ao racismo proposta por Abdias do Nascimento (MOURA, 1996: 50 e CABRAL, 2007: 54). A crença numa possível integração soava-me, de forma subentendida, como uma postura combativa peculiar se pensarmos num país, como o Brasil, com desigualdades extremas, políticas de genocídio e conservadorismo. No entanto, relevar as posições divergentes entre Otelo e Abdias repercutiu como tática conveniente para desviar atenção de um assunto caro: o racismo. Compreendo que não havia interesses por parte dos autores em aprofundar essa vertente, limitando-se a opiniões mais superficiais. Por outro lado, eu idealizava Grande Otelo, desenhava uma pessoa antes mesmo de conhecê-la. Quando comecei a enxergá-lo na realidade, evoluiu em mim a forma como desejo cunhar o riso e o ativismo na minha vida. Beatriz Nascimento, já havia escrito:

É preciso haver um mito, é preciso haver um herói, é preciso haver essa libertação da morte. Essa libertação da morte. Você tem que saber as falhas do mito. Que [é] só assim que você cresce, quando você destrói os seus mitos. Quando você descobre que eles são iguais a você. (NASCIMENTO, 1989, apud RATTS, 2006: 76)

Necessitamos de referenciais e, em certa medida, eles podem funcionar como mitos. Essa necessidade é importante para serem desenvolvidos padrões, paradigmas que ofereçam as mãos nos trajetos, que doem suporte para inspirações e respirações. 14

Desviando de modo algum desse consenso, Nascimento (1989), numa posição dialógica, acena que também é fundamental implodir esse campo referendado, borrando-o, desestabilizando-o por dentro para conhecê-lo e reconhecer-se. Idealizar alguém pode até ressaltar qualidades, sublinhar belezas, exaltar virtudes, mas também trai a inteireza do que esse alguém é ou pode vir a ser. A idealização é estática e inabitável, nada tem a ver com a pessoa. No entanto, as consequências ou reverberações de ser controverso são diferentes para brancos e não brancos. É como se esse estado – genuinamente humano – para a população branca fosse inquestionável, não passível de observações ou ressalvas, uma situação normal. Ao mesmo tempo em que os controversos me fascinam, tenho consciência de que para nós, negras e negros, a polêmica tem valor altíssimo, porque uma máquina sistemática com válvulas e fios racistas-sexistas cunhou-nos como o “não ser” e, nesse pacote, recebemos contra a vontade o direito de não sermos controversos. Impuseram-nos a estática, a não dinâmica, o reducionismo, a estereotipia; podaram a liberdade de expressão do nosso corpo ajustando-o em potes bem fechados e mofados pela falta de luz impregnada pelo gerador do Iluminismo repleto de cegueira e reducionismo. Como nas obras “Jazz” e “Black” de Basquiat1, somos enclausurados em caixas. Tampouco me empolga o anti-super-herói, pois essa me parece ser uma perspectiva da mesma falácia branca que produz o super-herói. Prefiro Exu2, nem mito, nem lenda; ele é a dinâmica de cada pessoa, é o movimento entrelaçado ao movimento, desarrumando a ordem para que, no desordenado, as ideias sejam percebidas pela dialética e entre locais, numa cruza e encruza de estados transversos, perversos, reversos e por versos. Inserida em campo configurado por compassos em desordem, esta tese tornou-se delicioso desafio na minha vida. Josephine Baker e Grande Otelo são, dentre infinitos exemplos, trajetos que responderam, com a iluminação do àse3, a obscuridade da ordem colonial. À desumanidade

1 Jean-Michel Basquiat (1960-1988), nasceu nos Estados Unidos na cidade de Nova York. Foi um artista plástico negro com origens haitianas e porto-riquenhas. Durante a carreira “Além dos jogadores, Basquiat também homenageou músicos negros, especialmente Charlie Parker e Miles Davis, uma reverência distintivamente provada nas obras Discografia I e Discografia II, ambas de 1983. O artista continuou a dedicar trabalhos ao tema do jazz até a sua morte.” (EMMERLING, 2005: 25). 2 Divindade africana que atua na comunicação entre os mundos visível (humanos) e invisível (orixás, ancestrais). Cultuado na África entre o povo ioruba, Exu chega às Américas através dos corpos de pessoas sequestradas no comércio escravocrata transatlântico. Essa divindade constitui a significação da dinâmica e o trânsito entre aspectos, como a tradição e a inovação; a ordem e a contra-ordem. Exú é, ainda, “a confusão equilibrada e ordenada da cosmologia Iorubá.” (ÀJÀYÍ, 1998: 40). Na cultura do povo fon ele é chamado de Vodum Legba ou Elegbara. Segundo os pensamentos dos povos que cultuam Exú, só é possível a realização das coisas e da criação com ele. Sua presença é indispensável. Ele tem caráter altamente transformador. 3 Palavra da língua ioruba que significa energia, poder, força. É a energia emanada para agilizar os acontecimentos. 15

eles responderam com humanidade repleta de deslocamentos por fissuras. Eles foram reais. Não eram os personagens daqueles filmes a que eu tanto gostava de assistir, mas sim os meus antepassados, os que chegaram antes de mim na arte do palco, caminhando por chãos muito mais pedregosos dos que nós percorremos hoje. Nesse círculo, o desafio também se torna audácia – já que acentua a complexidade –, pois “Aproximar-se de alguém que estará inexoravelmente distante no mundo sensível é um esforço de reconhecimento e ao mesmo tempo de afastamento.” (RATTS, 2006: 80). Ao propor uma intersecção entre corpo negro, história e gêneros cênicos, inclinados ao entretenimento, a partir de perspectiva decolonial4, busca-se acessar as subjetividades desses corpos, conforme seus campos de visão. Esta tese propõe-se a um modo decolonial pelos seguintes motivos: apoia-se em exposições teóricas que fluem com os dados documentados e não em exposição tradicional de marco teórico; usa fontes distintas, inclusive orais, para elaboração do discurso acerca dos dois artistas; intersecciona as experiências de Baker e Otelo com percepções da própria vida. Ainda, entenda-se decolonial como um modo de se relacionar com conhecimentos, diluindo hierarquias e contestando obediências a uma certa ordem de escrita hegemônica. Ser decolonial não é apenas a exposição de epistemologias não branco centradas, mas sim a forma como se envolve com tais conteúdos e restaura formas de apresentá-los. Essa denominação vem a ser uma rede teórica, gestada entre o final dos anos 90 e início da década de 2000, via intelectuais da América Latina, residentes nessa região ou radicados em países europeus e norte-americanos (BALLESTRIN, 2013). No entanto, segundo essa mesma rede, a posição decolonial assume sua existência bem antes do surgimento da nomenclatura (BERNADINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016). Formas e conteúdo decolonizantes emergem com movimentos socioculturais que apontam outras possibilidades de viver o mundo, diferentemente da lógica de desumanização colonial. Em suma, uma postura decolonial é resistência ao projeto de epistemicídio das cosmogonias negras e ameríndias, encontrada em ações artísticas e acadêmicas que procuram não apenas abordar temas, mas também modos de dizer e criar. A linha decolonial permite que a pessoa que investiga provoque o próprio contexto e a subjetividade, de modo que a pesquisa dialogue com as reflexões pessoais. Além de “dinamitar” a noção de objeto, nessa proposta, investigadora ou investigador também são investigados.

4 Termo usado por teóricas(os) que investigam epistemologias para descolonização (Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel, Catherine Walsh e Luciana Balestrin, dentre outras(os). 16

Por isso, neste trabalho, acesso também o lugar do meu discurso, a forma como abordo Josephine Baker e Grande Otelo com todas as minhas controvérsias, pois como já foi dito por uma ancestral intelectual negra: “Devemos fazer a nossa História, buscando nós mesmos, jogando nosso inconsciente, nossas frustrações, nossos complexos, estudando-os, não os enganando” (NASCIMENTO, 2018: 48 e 49). Daí a proposta instrumentalizar-se com abordagem decolonial; escolhendo narrativa e método de pesquisa contra hegemônicos. Assim, em resumo, este trabalho propõe, através dos exemplos de Josephine Baker e Grande Otelo, instaurar a abordagem decolonial no exame das experiências de corpos de artistas negras(os) que atuaram em performances cênicas voltadas ao entretenimento. Nesse sentido, a investigação pretende responder, como e sob quais formas circunstanciais, as articulações entre as cosmologias corporais de culturas negro africanas em diáspora nutriram a educação de Josephine Baker e Grande Otelo, além de estabelecer mapeamento do gesto, do movimento, da atitude que identifique esses processos nutricionais, bem como a manipulação e (re)significação desses mesmos processos por parte desses artistas. O trajeto deste estudo orienta-se por – e ao mesmo tempo propõe – quatro princípios “SULteadores”5, que conceituariam o corpo negro. São eles: deslocamento, invólucro, desobediência e ocupação. É assim que me posiciono como pesquisadora negra e latino- americana, pertencente a uma complexidade diaspórica que re-atualiza princípios africanos de corpo, em movimentos contínuos e repletos de dinamicidades, em consonância e provocações com o contexto específico do território sul-americano, especialmente o Brasil. Esse “Sul” também toca produções que apresentam concepções peculiares nos modos de elaboração e reflexão acerca das condições de produção de conhecimento no mundo ocidental. A construção de tais princípios (Deslocamento, Invólucro, Desobediência e Ocupação) envolve a articulação do olhar desta autora com proposições e estudos de diferentes pesquisadoras(es), em especial, investigadoras(es) negras(os). Os quatro princípios são utilizados para compreender como as matrizes corporais africanas, principalmente, as culturas centro africanas bantos6 e oeste africanas iorubas operam

5 Em oposição a norteadores; posto que é o olhar interpretativo da América do Sul a respeito de referências diversas, incluindo as produções teóricas negras localizadas na América do Norte. 6Apesar dos perigos que tais termos possam implicar, considerando a historicidade colonial que os abarca e disseminou no mundo transatlântico, utilizaremos essas denominações (banto e ioruba) a partir das considerações do antropólogo Kabengele Munanga. Esse estudioso pontua que a cultura do povo ioruba ou nagô com as populações jêje, fons, ewê e fanti-ashshanti cobririam os territórios dos atuais países: Nigéria, Benim, Togo, Gana, e Costa do Marfim. (MUNANGA,2009). É necessário pontuar que antes da criação da Nigéria em 1919 a chamada Iorubalândia se estendia ao longo da costa oeste africana, até o Benin e o Togo, segundo Ájàí (1998). Assim, pessoas iorubas podem ser encontradas na Nigéria, Togo e Benim, além da diáspora africana. Tendo em vista isso, quando a denominação ioruba for sinalizada neste trabalho, ela se refere à cultura de um povo. O termo banto perpassa por outro caminho. Refere-se primeiro a um lugar linguístico. Ele foi cunhado pelo linguista alemão 17

nas trajetórias de Josephine Baker e Grande Otelo, assim como são usadas como lentes para a interpretação documental acerca dos dois artistas. É interessante reforçar que o princípio do Deslocamento é o elo que permite que os outros três retroalimentem-se, já que dificilmente são abordados separadamente. Tendo em vista isso, há dois grandes desafios neste trabalho. O primeiro foi tentar identificar como os aspectos cosmogônicos de corpo foram compartilhados pelas pessoas centro africanas bantos e oeste africanas iorubas, durante as redes relacionais embrionadas na diáspora, a partir de uma literatura contemporânea. O outro foi verificar como a descendência negra, especialmente Grande Otelo e Josephine Baker, arguiram corporalmente esses compartilhamentos em recortes cênicos específicos no campo do entretenimento e fora dele. Dessa forma, o objetivo geral da pesquisa é propor análise contra hegemônica e evidenciar correlações, do ponto de vista estético-filosófico não ancorado em matrizes branco- eurocentradas, mas sim em matrizes negro-africanas que se ressignificaram na diáspora. Ao buscar esse aspecto, os objetivos específicos constituem: identificar como manifestações culturais afro-estadunidenses e afro-brasileiras articulam aspectos cosmogônicos estéticos africanos, por intermédio das experiências de Josephine Baker e Grande Otelo, com pensamentos e ritmos negros americanos; investigar como as conexões entre essas cosmologias agem nos corpos negros em diáspora, especialmente Josephine Baker e Grande Otelo; tecer mapeamento historiográfico-estético corporal do gesto, do movimento e da atitude, elucidando os processos nutricionais africanos e afro-diaspóricos a partir do material documental disponível; discorrer acerca de como Baker e Otelo conjugavam suas referências corporais oriundas de práticas culturais de matrizes africanas, como o jazz e o samba, com as estruturas cênicas do Teatro de Revista, cabaré, music-hall, teatro de variedades, cinema e televisão. Josephine Baker e Grande Otelo comungaram alguns aspectos em suas trajetórias, e, ao mesmo tempo, distanciaram-se por condições de gênero, nacionalidade e experiências. Cada

Willhem Bleek para designar um conjunto de línguas centro africanas nas quais a palavra “bantu” possuía o mesmo significado: pessoas ou seres humanos. Sabendo-se que as populações falantes dessas mesmas línguas partilhavam aspectos culturais e filosóficos comuns, o termo estendeu-se para denominar esses povos, oferecendo o perigo de uma história única e linear para populações que são heterogêneas entre si, pois segundo Munaga compreende “numerosas etnias que cobrem países da África central e austral (Camarões, Gabão, Congo, República Democrática do Congo, Zâmbia, Zimbábue, Namíbia, Moçambique e África do Sul.)” (2009: 92). No Brasil, temos experiências culturais importadas, principalmente, da “área geográfico cultural Congo-Angola” (MUNANGA, 2009). Consciente que o termo carrega, também, ampla diversidade, o uso do termo banto, nesta pesquisa, dá-se principalmente pela partilha de aspectos comuns entre povos da África Central e sua importância na civilização das Américas, especialmente no Brasil. Acredita-se que, em diáspora, essa designação construída a partir de aspectos linguísticos foi sendo (re)significada em um complexo cultural amplo, no qual unidade e diversidade co- habitam. Assim, os nomes banto e ioruba dizem respeito também a como as sociedades que estão diretamente a eles relacionados pensam culturalmente o corpo. Mediante isso será usada a grafia eleita por Munanga: banto e ioruba. 18

qual, a seu modo, vivenciou uma caminhada diaspórica que se friccionava com modos particulares, signos e estereótipos sobre o ser negra ou o ser negro. Num acesso às biografias, mesmo que superficial, pode-se concluir que se aproximam em muitas situações, no que se refere a essa condição de estereotipia. Nessa rede de deslocamentos, o trabalho parte do ângulo de uma pesquisadora brasileira, portanto de um específico terreno no qual a diáspora negra contorna-se com linhas próprias e, ao mesmo tempo, em unidade com outras. O interesse central é desbravar locomoções simbólicas entre Brasil e Estados Unidos, a partir dos trânsitos corporais que se qualificam e (re)qualificam nas experiências de Baker e Otelo. Isso é essencial realçar, pois ela, estadunidense de nascimento, mudou-se para a França em 1925, residindo lá até o falecimento em 1975. Em 1937, ao casar-se com Jean Lion, adquire cidadania francesa abdicando de manter a cidadania de origem. No entanto, sua relação com o país foi constantemente revivificada, ora por certo saudosismo, ora por repúdio às políticas de segregação. A artista visitou países na Europa, na América Latina, Ásia e África e, nesses trajetos, ser uma entertainer negra estadunidense, residente na França, era uma espécie de ponto de partida para reinventar seus caminhos por esses continentes. Os Estados Unidos não renunciaram à Josephine Baker; pelo contrário, acompanharam- na minuciosamente, principalmente na década de 50, quando a ativista Baker questionou mundialmente os limites democráticos daquele país. Grande Otelo não teve vida profissional tão internacionalizada quanto a dela; mesmo assim, seus deslocamentos simbólicos são tão potentes entre fronteiras que é como se ele tivesse adentrado em vários mundos numa única vida, através das narrativas corporais. Ressaltando o encontro com Baker como um dos mais importantes períodos da carreira, o ator instigou-me a (re)conhecer o elo ancestral que a síncopa propicia, seja pelos laços entre o samba e o jazz, seja pelas conexões complexas entre os ritmos negros brasileiros e ritmos negros estadunidenses. A relação desse artista com o Brasil foi entrelaçada por tensões, negociações e idealizações, construindo sua cidadania brasileira em subcondições que se opunham a um estado de fluência digna dentro dessa mesma cidadania. Entre essas duas polivalências culturais, as relações corporais que contornam Baker e Otelo em modalidades do entretenimento, especificamente entre Brasil e Estados Unidos, permitem deslocar afirmações insuspeitas e abrir espaço para nuances que até então não poderiam ser sentidas. 19

A reflexão teórica envolveu intelectuais, a maior parte negras e negros, que vinculam suas investigações, acerca da pessoa negra ou comunidade negra, aos estudos de diáspora e africanidades, operando decolonialmente nas bases acadêmicas. As duas pesquisadoras que lideram e transversalizam organicamente essa equipe são Beatriz do Nascimento e Brenda Dixon Gottschild. A escolha de Nascimento se dá porque ela, junto a outras pessoas do seu tempo, exerce epistemologia decolonial antes mesmo de tal termo aparecer nas ambiências acadêmicas. Além disso, ela impulsionou os estudos dos trânsitos e territórios negros contidos nas investigações a respeito da diáspora. Tais estudos friccionam conceitos e métodos hegemônicos, instituídos na área da História, e podem ser estendidos a outras áreas. O convite a Brenda Dixon Gottschild decorre porque, mesmo sob perspectiva estadunidense, ela apresenta algumas trilhas para os estudos do corpo negro interseccionalizando raça e gênero, a partir de artistas e das artes cênicas com matrizes africanizadas. Essa artista-investigadora toma como paradigma as perspectivas africanistas; além de ter publicações no campo da dança, apresenta sua contribuição para o teatro de variedades dos Estados Unidos. Tal contribuição pode sugerir possíveis caminhos às abordagens no Brasil para as pesquisadoras(es) negras(os) e artistas que desejam seguir com os estudos a respeito dos gêneros cênicos populares. Além disso, o contato com estudos de Dixon possibilitaram acessar Robert Farris Thompson, pesquisador africanista, cujo trabalho African Art in Motion foi a base fundamental para considerações em apontamentos nesta tese, principalmente nos ciclos 4 e 5. A tese é estruturada em cinco ciclos, cada um denominado de “Deslocamento”, com subtítulos que os tonalizam e localizam. A preferência pelo uso da palavra ciclo e não capítulo se dá pelo sentido de renovação que ela sugere, assim como a ideia de continuidade, mesmo com narrativas fragmentadas. Cada ciclo desta tese não pretende constituir-se como divisão; pelo contrário, mantém relação de interdependência em si e com os outros. O Ciclo 1 – “Deslocamento: o (re)conhecimento”, parte em que é abordado o ponto de partida da ideia da pesquisa. Como o encontro entre Josephine Baker e Grande Otelo reverbera na produção de sentidos epistemológicos e afetivos, no processo de construção da investigação. É apresentada a base fundante – a ideia de um Casamento de Preto no Cassino da Urca em 1939, além de apontar a linha metodológica edificada no processo, conformado com o que se acredita ser um caráter decolonial de pesquisa.

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No Ciclo 2 – “Deslocamento: os sentidos para o corpo negro” são abordadas as locomoções dos artistas para discutir o significado dos deslocamentos – sejam eles regionais, nacionais ou internacionais – para o corpo negro, retornando ao contexto das primeiras travessias que compuseram a diáspora negra nas Américas. Nesse sentido, são pontuadas trocas e articulações durante os trajetos transatlânticos e pós-transatlânticos. O Ciclo 3 intitula-se “Deslocamento: o invólucro”, que compreende a gestação de redes por parte de Baker e Otelo com outras pessoas negras, além da relação dos dois com a ancestralidade e a síncopa rítmica presente, tanto em expressões musicais negras brasileiras, quanto estadunidenses. Nesse ciclo, também é abordada a ressignificação da palavra negro, como atitude de fronteira que possibilita um tornar-se negro para recuperar a dimensão humana solapada pela colonização. O Ciclo 4 – “Deslocamento: desobediência” – é um mapeamento de gestos e atitudes corporais dos artistas, através das experiências nos gêneros cênicos, reintegrando as vivências dos dois com diálogos desobedientes; e, por fissuras, em relação às propostas hegemônicas de uso da presença negra em cena. Examinaram-se trabalhos, de Baker e Otelo, a partir de composição filmográfica, através da qual foi possível organizar uma estrutura analítica de quatro pontos corporais: os pés, o quadril, a voz e os olhos. O Ciclo 5 nomeia-se “Deslocamento: ocupação” e é voltado para uma discussão em torno das relações complexas entre comicidade, ancestralidade e corpo negro. Nessa etapa, são abordados, também, as relações entre tipos, fenótipos e estereótipos, a partir das experiências de Josephine Baker e Grande Otelo. Por fim, nas Considerações Finais ou “a carta de despedida ao meu casamento de preto” é trazido um sintético retrospecto de todos os ciclos, de forma não usual, quer dizer, mais pessoalizada, na medida em que aborda mais diretamente os afetos produzidos entre Baker, Otelo e minha escrita investigativa, perpassando pelas impressões acerca dos desafios da pesquisa documental, principalmente no Brasil. Serão mantidas as ortografias originais da documentação sem realizar alterações segundo regras ortográficas mais recentes. Algumas grafias ao longo da pesquisa documental foram encontradas sob diferentes formas, como é o caso da palavra “Pixe” e “Piche”, nesse sentido, salvo nos momentos em que a palavra aparece alocada em recortes textuais de documentos, a grafia utilizada será “Piche”. Material videográfico acompanha este trabalho e mostra execuções corporais dos dois artistas. Em determinadas partes dos Ciclos 4 e 5 serão sugeridos, nos parágrafos (entre parênteses), os momentos nos quais é interessante acessar o documento. 21

Este trabalho foi um importante caminho para o meu autoconhecimento. Em sintonia com Josephine Baker e Grande Otelo, ri, chorei, aplaudi e silenciei algumas vezes, a fim de que o meu ímpeto não os julgasse. Esse “casamento de preto”, idealizado por Grande Otelo e cultuado no meu imaginário, levou-me para um compromisso radical com o que eu sou e os meus desejos. Estou numa estrada desconhecida agora, ainda tenho receios, mesmo assim sinto que tenho mais pulso. Por essa razão, é contínuo o meu agradecer a Baker e a Otelo que mantêm a corporalização das suas memórias nas minhas escritas sentidas e imaginadas. Todo casamento parte de um primeiro encontro. Assim, convido a leitora e o leitor a aterrissar no Ciclo 1 que apresenta o ponto de partida. Espero que a leitura seja tão provocadora e aliviante para quem ler este trabalho quanto foi a escritura dele.

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Entre o tempo fraco e o forte, irrompe a mobilização do corpo, mas também o apelo a uma volta possível, ao que de essencial se perdeu com a diáspora negra. (SODRÉ, 1998: 67)

CICLO 1 DESLOCAMENTO: O (RE)CONHECIMENTO

1.1 1939: Reverberações de um casamento entre pretos

Figura 1: Josephine Baker e Grande Otelo juntos. Revista O Cruzeiro Fonte: Acervo MASP

Em 2009, eu estava na biblioteca do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, conhecido pelo acrônimo MASP, realizando uma busca em edições do periódico O Cruzeiro. Minha meta era coletar documentação que auxiliasse com informações acerca da atuação do ator Grande Otelo no Teatro de Revista, quando encontrei a imagem (Figura 1), em publicação de julho de 1939.

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Ela era uma entre muitas, correspondentes a um acontecimento que Otelo tinha relatado no Programa Roda Viva, gravado em 1987 na TV Cultura: o momento no qual ele e Josephine Baker contracenaram no Cassino da Urca, lugar voltado para o jogo e o entretenimento, localizado no bairro da Urca da cidade do Rio de Janeiro e fechado em 1946. Antes de assistir à entrevista, eu não tinha conhecimento da existência de Josephine Baker muito menos do seu legado artístico cultural. No momento em que eu vi essa imagem não houve nenhum tipo de arrebatamento, no entanto a sensação que algo mobilizador tinha sido encontrado presentificou-se. Na foto, é possível observar a atração, o entreolhar-se e como se tocam. Ainda que seja um instante registrado, há uma dinâmica memória perpetuada, a reminiscência corporal, de longe homogênea, que atravessa a geração de Otelo e Baker, assim como a minha geração. A minha relação com esse registro – que pode conter uma, duas ou várias memórias de corpo, ao mesmo tempo, rastreia respostas a partir de indagações que se transformam continuamente nas sementes presenteadas pela ancestralidade. À vista disso, a partir desse ciclo, ciente dos riscos e deleites desse processo, compartilho argumentações. Entre o dia em que a imagem foi identificada e o momento em que esta tese começa a ser redigida somam-se quase dez anos (re)fazendo e (re)questionando os significados desse encontro. Essas ações não acontecem de forma análoga ou ordenada, muito menos programada, elas se realizam na medida em que o submerso nessa imagem revela-se em mim. Se relacionados às convencionadas fases de vida de qualquer pessoa, educada em orientações temporais ocidentais, dez anos são quase o final de um período infante e o início da pré-adolescência. Aqui não se concretiza a concepção de infância, construída sob a perspectiva de que a criança é um pote vazio e deve ser preenchido, e sim segundo os prismas que defendem uma cultura da criança, ou seja, um lugar social com práticas autônomas e versáteis7. Dessa maneira, quando ingressamos em inéditas experiências já trazemos algo anterior conosco, que qualifica a percepção e “perfiliza” a conexão com esses novos contextos. Ademais, essa idade quase pré-adolescente é constituída por certo ímpeto que funciona como chave para entender nuances que eu não conseguia depreender dez anos atrás.

7 Cohn (2005) aponta as seguintes perguntas “O que é ser criança? O que é criança? Como vivem e pensam as crianças? O que significa a infância? Quando ela acaba?”, a autora segue a discussão a partir dessas provocações pautando estudos sobre o tema que priorizem o ponto de vista ou lugar de fala da criança tensionando as informações comuns, como a consideração de criança como “tabula rasa” ou “demoniozinho a ser domesticado”. 24

Antes de debruçar-me sobre os volumes da Revista O Cruzeiro, o artista Grande Otelo tinha se assomado a minha vida através do Teatro de Revista, especialmente por meio das referências disponíveis acerca da Companhia Negra de Revistas. Esse gênero teatral é uma das poucas lembranças “subversivas” que trago da minha experiência de graduação em Teatro. Por intermédio da professora Ângela de Castro Reis conheci a forma cênica revisteira, popularizada entre as plateias advindas de diversos estratos sociais e étnicos, entre o final do século XIX e metade do século XX. A dramaturgia da Revista baseia-se no recurso da alusão (VENEZIANO, 1996), satiriza o contexto social em que ela se inscreve nas múltiplas instâncias, ou seja, momento político, desenhos conviviais, tensões raciais, moda, gestualidades cotidianas e sonoridades são algumas das matérias primas para as(os) trabalhadoras(es) desse teatro. Essas pessoas têm, nas relações diárias interclasses e étnicas, seus laboratórios de investigações – executadas com regras e lógicas próprias, diferentes das encontradas nas convenções de teatro hegemônicas8. Inicialmente, nos primórdios do gênero, essa alusão esteve presente no repasse dos principais acontecimentos anuais; e, paulatinamente, esse aspecto cedeu lugar a abordagens temáticas, sem perder o caráter de conexão com a sociedade. Esse estágio, com fermentação pós Primeira Guerra Mundial, foi o que Grande Otelo vivenciou, trabalhando nesse tipo de teatro até o “aparente” decrescimento9. Assim como a burleta, o teatro de variedades, o cabaré, o café-concerto e o music-hall, o Teatro de Revista foi incluído no pacote dos gêneros ligeiros10, com conexão direta ao entretenimento e ao compromisso com o riso. Numa síntese consensual, a maior parte das pesquisas a respeito do tema acorda que o Teatro de Revista foi gestado na França, no século XVIII, com matriz e origem nas feiras parisienses, em dois aspectos: essência contestadora e satírica da ordem social estabelecida

8 Quando cito a palavra hegemônica neste trabalho, quero chamar atenção para ideologias, epistemologias e temas relacionados à cultura dominante, por isso respaldadas por matrizes curriculares, mercado editorial e circuitos sociais privilegiados. Por exemplo, História do Teatro Grego, certos momentos do Teatro Moderno e Drama constituem-se como matérias obrigatórias na maior parte dos currículos dos cursos de artes cênicas. 9 Acrescento o termo “aparente”, pois acredito que elementos do Teatro de Revista, assim como do music hall e teatro de variedades estão presentificados em boates e espaços de entretenimento LGBT. Para exemplificar, cito as boates “Louca” e “Blue Space”, além do Bar dos Amigos, próximo à praça da República. Todos esses espaços são localizados na cidade de São Paulo. Há também a atuação de profissionais como Sivetty Montilla e Nany People que se aproximam muito da performance presente nesses gêneros. Além disso, Veneziano (2013) ressalta que o travestismo é um dos elos de continuidade com o Teatro de Revista, o que descarta seu desaparecimento ou decadência, e sim alteração e modelação em relação às configurações da indústria cultural e cultura de massa. 10Esse termo ficou conhecido, no Brasil, a partir da primeira metade do século XIX – comportava estilos cênicos populares como o Teatro de Revista, o music hall, teatro de variedades, cabaré, comédias de costumes entre outros. Ver: MENCARELLI, Fernando Antônio. Cena aberta. A absolvição de um bilontra e o teatro de revista de Arthur Azevedo. Campinas: UNICAMP, 1999. Atualmente esse termo é problematizado por muitas pesquisadoras e pesquisadores por ele desmerecer a potência artística dessas modalidades. 25

extraída de manifestações artísticas de rua; e diretriz básica para a linha de interpretação dos artistas retirada da commedia dell’arte. Contudo, acredito que elementos desse consenso devem ser interpelados sob a ótica das estéticas africanas disseminadas no mundo transatlântico através da dispersão forçada de pessoas do continente África via escravidão entre os séculos XVI e o século XIX. É necessário que a historiografia do Teatro, não só do Teatro de Revista, mas também dessas outras formas de entretenimento, considere uma revisão investigativa a partir da ideia dos trânsitos corporais-culturais entre as zonas portuárias que interligavam conexões mercantis entre Europa, Américas e África, para averiguar como as culturas negras reformaram-se em contato com culturas de outros territórios e, ao mesmo tempo, formularam novos contornos por onde eram obrigadas a transitar11. O objetivo desta tese não é revisar os caminhos historiográficos dos gêneros cênicos voltados ao entretenimento, bem como a influição das africanidades ou diásporas negras em suas origens. Deseja-se aqui ressaltar, a partir dos exemplos de Josephine Baker e Grande Otelo, como as noções corporais africanas nutriram o processo de composição de personagens, atuações e performances desses estilos, incluídas as reverberações em outras linguagens, por exemplo o cinema. Para tal, boa parte das referências constituem relatos e pesquisas, principalmente de pessoas negras, senão acerca, pelo menos próximas ao tema. Na medida em que, nas minhas buscas profissionais e acadêmicas, constituía-se o desbravamento a respeito da atuação de Grande Otelo, um envoltório era vagarosamente descortinado. Nas estradas da investigação, a fim de detectar o desempenho do artista, conheci outras(os) negras(os) da mesma época ou que o antecediam. Abrindo caminhos, Otelo apresentou-me as existências de Rosa Negra, Ascendina Santos, Mingote, Déo Maia, Déo Costa, Araci Cortes, Bugrinha, De Chocolat, Watusi (BRITO, 2011) dentre outras pessoas negras. A lista, certamente, não caberia nas páginas desta tese. Não eram só aparições, eram profissionais negras(os) em épocas nada generosas, que imprimiam nesse tipo de fazer cênico códigos culturais negro-diaspóricos que alteravam configurações eurocênicas de modo improvisado e efêmero.

11O trabalho da pesquisadora Anita Gonzalez é substancial nesse sentido, ao discutir a introdução dos menestréis nos Estados Unidos com base nos deslocamentos portuários entre Liverpool (Inglaterra) e Virginia (Estados Unidos). No livro Black Performance Theory (DE FRANTZ E GONZALEZ, 2014), a autora traz as complexas transformações contidas nas redes diaspóricas ao longo dos séculos, incluindo as múltiplas relações com os povos não negros. No seu estudo ela analisa as representações negras apropriadas por irlandeses a partir de meados do século XIX, como estratégia para desviar a atenção do fato de que eles não eram considerados tão brancos assim, reforçando o estigma sobre a pessoa negra através do uso do black face. 26

Se podemos constatar tais presenças negras, no contexto brasileiro e estadunidense, muito possivelmente há algo nesse argumento consensual sobre as origens do Teatro de Revista, apontado anteriormente, que deve ser (re)problematizado. Posto isso, localizar a imagem de Josephine Baker com Grande Otelo comprova o que o ator já havia sinalizado em declarações. A sensação foi de que naquele contexto havia mais princípios subjacentes, além dos já mencionados. E eu precisava compreendê-los. No entanto, esse sentido não se apresentou de forma objetiva para mim, tanto que no final da elaboração da dissertação de mestrado12, por algum motivo ilusório, considerei que minha aproximação com a obra de Grande Otelo já havia se esgotado. Ilusão. Mesmo com as recomendações do professor Dr. Elias Thomé Saliba, um dos membros da banca, para que eu investisse na pesquisa acerca das relações entre Josephine Baker e o ator, meus anseios naquele momento estavam focados no descanso e no desejo de iniciar uma pesquisa com outro recorte. Entre a pós-defesa e 2014, momento no qual ingressei no doutorado, uma turbulência se formava em mim, movendo ainda mais as fundamentações submersas. O ano de 2012 foi o divisor de águas e é, nesse período, imersa em reveses pessoais, que retorno ao encontro de Baker e Otelo ao remirar a imagem da Josephine com os seus sessenta anos e as suas olheiras de nascença. Nessa ocasião, estabeleci aproximação imediata daquela reprodução com a minha aparência, na época, marcada por 54 quilos e olheiras resultantes de constantes insônias, provocadas por muitas interrogações: uma delas referente a minha condição de mulher, negra e artista. Em meio ao meu regresso a esse “casamento de preto”, pois era dessa forma que Otelo se referia ao trabalho em conjunto com Baker13, apesar de não ter encontrado nenhum material de divulgação que comprovasse o termo como título, o retrato no qual constam os dois sorrindo, um para o outro, tornou-se a artéria principal desse conjunto de escrituras e inscrituras. Sorrisos que ilustram cumplicidade que evoca um mundo invisível, sincopado e assentado. Logo, foi a partir dessa expressão de afabilidade que teci perguntas com respostas a longo prazo. Ele, um homem. Ela, uma mulher. Essas demarcações os definem? Vamos começar de novo. Ele, um homem negro. Ela, uma mulher negra. É suficiente? Passemos a uma terceira tentativa. Ele, um homem artista brasileiro negro. Ela, uma mulher artista estadunidense negra.

12 “Um Ator de Fronteira: A Trajetória do ator Grande Otelo no Teatro de Revista Brasileiro do Século XX”, defendida na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em novembro de 2011. 13 Ele cita a expressão no depoimento ao Programa Roda Viva gravado em 1987. 27

O que o imaginário traz? Ausência, presença? De quais tipos? Uma presença fixa, estável e rígida ou, talvez, uma ausência deslizante, sutil e ao mesmo tempo gritante? E se nomeássemos os sujeitos das sentenças? Grande Otelo, um homem artista brasileiro negro. Josephine Baker, uma mulher artista estadunidense negra. A ausência e a presença soam, agora, de formas conflituosas. Os desenhos da imaginação trazem caretas, choros, frases, risos, incômodo. Depois se transformam em novas perguntas que não só dizem respeito a Otelo e Baker, mas também àquelas(es) que viveram antes, assim como a artistas das posteridades. Na verdade, foram mais provocações do que perguntas, e provavelmente foram mais percepções do que respostas e, nesse seguimento, uma ideia de corpo deslocou-se e esculpiu-se no centro de tais verificações. A Figura 1 foi extraída de uma sequência de imagens nas quais é possível identificar outros artistas negros. É presumível que houve preocupação em posar para o fotógrafo através de certa posição do tronco, do olhar direcionado para um caminho oposto ao que se está indo, no entanto reconhece-se que há interação espontânea. Ao observar mais, percebe-se que a inclinação dos corpos é acentuada pela inclinação da câmera, o que torna Baker maior que Otelo (Figura 2).

Figura 2: Imagem Original Fonte: Acervo MASP Figura 3: Imagem Reajustada Fonte: Acervo MASP 28

Além disso, o ponto de vista do fotógrafo é de cima para baixo. Para isso, com a ajuda da fotógrafa e pesquisadora Mônica Cardim, “reajustou-se” a imagem sem inclinação da câmera (Figura 3) com base na linha branca, localizada no chão, atrás dos artistas. Na imagem “reajustada”, tanto Grande Otelo, quanto Josephine Baker vestem trajes formais num clima de celebração. O ator, menor, inclina o tronco para trás e projeta a pélvis em direção à dela com o auxílio dos joelhos dobrados. Baker, por sua vez, corresponde: inclina ligeiramente o corpo inteiro para ele. Ambos de braços abertos um para o outro e ao mesmo tempo para a zona frontal da fotografia, provavelmente em direção ao fotógrafo. Apesar de estática, a fotografia não deixa de ser um registro “de movimento” como se esse prosseguisse dali para as formas que lembram o jongo, o samba, o swing14, o maxixe e suas variações rítmicas sincopadas. Evidentemente que outras fotografias, acrescentadas ao depoimento do ator para o Programa Roda Viva, assim como alguns aspectos do olhar de quem escreveu a reportagem e fotografou, ajuda a concluir que o clima era bem sambístico. Além de tudo, o leque criptográfico, sugerido pelas gestualidades dos dois artistas, estimula a escavar o que circunda essas corporalidades. Para tanto, é cauteloso considerar que há diferenças entre o discurso visual, apresentado na revista O Cruzeiro, e as informações disponíveis textualmente. A sequência fotográfica (Figura 4), que ocupa duas páginas, indica a preocupação em relevar a notícia, além de o espaço dedicado à fotografia ser maior que o disponível para acolher o texto. Ambas observações demonstram o grau de importância para aquele encontro, já que essa revista pautava-se, então, por linha mais cosmopolita, com predomínio de assuntos internacionais; ela conectava o Brasil ao mundo moderno e intencionava claramente educar o leitor para o “novo país que se formava.” (CHIARADIA, 2011: 159). Nesse sentido, a reunião de artistas negros brasileiros com uma artista negra de alcance internacional, como Josephine Baker, era mecanismo de visibilidade potente para o periódico que, bastante popularizado, produzia conexão entre o Brasil e Estados Unidos/ França, representado ali, em destaque, por Grande Otelo e Josephine Baker respectivamente. Além do mais não só O Cruzeiro, mas também outras revistas apresentavam essa mesma prática: “As revistas ilustradas determinavam o tamanho das fotos ‘de acordo com sua importância nos termos da ênfase da notícia’.” (CHIARADIA, 2011: 152).

14 É um estilo de jazz, popularizado nos anos de 1930, que fez desse ritmo um “grande sucesso comercial” conforme Joachim Berendt (2014). Ele era tocado por grandes orquestras, as big bands, que estimulavam musicalmente pessoas a dançarem em pares. 29

No entanto, apesar de conectados, a produção de sentidos e a construção de narrativas, entre as fotografias tiradas por Medina e o texto escrito por Edgar Morel, apresentam alguns aspectos incongruentes. Na sequência fotográfica, nota-se que a imagem destacada no início deste tópico é a de maior tamanho, focalizando o jogo corporal entre os artistas. A única foto onde não consta Baker ou Otelo, é a segunda – na qual está um homem sorrindo e segurando um chekerê. O fotógrafo parece estar abaixo dele. Todas as outras fotos, nas quais aparecem Josephine Baker, indicam que os registros foram efetuados frontalmente, em leve diagonal.

Em três delas o foco do olhar da artista sinaliza que ela interage com outra pessoa desviando do sentido de visão do grupo. Otelo está em cinco fotos e, ao contrário dela, seu olhar interage na mesma direção dos demais, e também denota mais espontaneidade. Em uma das imagens, Otelo e Baker olham sorrindo para o chekerê. Nesse caso, a fotografia parece ter sido tirada de perto. Em outra, a artista segura um “atabaque” olhando em direção à câmera.

Figura 4: Josephine Baker, Grande Otelo e outros artistas (4a a 4f) Fonte: Revista O Cruzeiro, acervo MASP. 30

Figura 4A

Figura 4b

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Figura 4c

Figura 4d

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Figura 4e

Figura 4f

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Josephine Baker é única mulher no grupo e, exceto um homem branco sem paletó, todos os outros integrantes são negros. A maior parte dos musicistas usam paletó, terno e gravata, assim como Grande Otelo. Josephine Baker usa saia longa, camisa de mangas e lenço na cabeça. Pela não nitidez da imagem, não há como confirmar se ela usa calçado de salto ou não. A maior parte do grupo está sorrindo, reunido em um pequeno bloco. Ao deslocar para a leitura do texto, percebe-se intenção de tom fictício para descrever aquele encontro, citando referências negro-diaspóricas do Brasil ou Estados Unidos num tom pitoresco, espetacular e exagerado: Josephine anda louca pelo samba. O seu corpo esbelto, à luz dos refletores, faz meneios de serpente. É o ritmo do samba empolgando a negra que não conhecia a favela. E os sambistas fartos de “Os teus cabelos não negam” estão cantando “ Jê t´aime”. O mundo virou. Está perdido...

Josephine entusiasmada pelo samba e os nossos sambistas, até o “Caruso da Saúde”, aprendendo francês. - Merci, Madame

Naquela sala, todos se falam e poucos se entendem, Josephine canta Boneca de Pixe e, os negros, alheios ao compasso da batuta do Heitor dos Prazeres, o demônio dos terreiros cariocas, estão de olhos arregalados nas pernas das girls. O “Grande Otelo”, o negro mais feio do mundo e um grande artista, está no mundo da lua. - E’ muito bienjoli... “Henricão”, não compreende o francês de Benedicto e retruca: - Prá cima de moi... O maestro grita: - Atenção. - Um, dois, três.

As cuícas roncam e dos tambores saem ritmos estranhos. E o coro começa: Nego quando cava Nego quando canta Nego quando pula Nego quando toma Nego quando grita Nego quando dança Nego quando brinca Nego quando zomba

Sente gana de chorá

Nego quando cresce Nego quando luta Nego quando corre Nego quando sobe Nego quando desce Nego quando veste Nego quando morre Nego pena sem pará 34

Os batuques transformam Josephine Baker. Os ritmos veementes e dominadores empolgam a estrela de fama universal. E quando “Henricão” levanta as mãos para os céus, chamando pelo “Pai Santo”, Josephine transfigurada de sua sensibilidade é uma cabocla.

E canta: Nego pondo ponta em Umbanda Ginga tonto bomba em Umbanda Nego ponta ô Nega nua nua em Umbanda Toma benção lua em Umbanda Sampa Nua ô

O batuque cada vez mais forte vai vencendo a maravilhosa negra. Os seus pulos vão diminuindo e a voz morrendo suavemente. O batuque atinge o momento culminante. Josephine vacila e estonteia. Os sambistas fazem roncar desesperadamente as cuícas e batem com toda força nos tambores. Josephine é tomada em transe e cai ao chão.

E os negros cantam em surdina: - Nega nua nua em Umbanda - Toma benção lua em Umbanda - Samba nua ô – E o coro vai morrer bem longe. Josephine Baker recebeu o diploma de honra da macumba15

A menos que esse texto tenha sido construído, em momento diferente do apresentado nessas fotos, evidencia-se que imagem e escritura produzem sentidos díspares. A articulação de leitura referente aos corpos negros em cena é, no mínimo, constituída de picos com referências ao exótico - “O seu corpo esbelto, a luz dos refletores faz meneios de serpentes” - cria interlocução com o olhar curioso sobre relações comportamentais que parecem também ser construídas num âmbito idealizado, para não dizer tendencioso. E, nesse quesito, a pessoa negra não tem nome próprio, apenas pele/pertencimento étnico ou a função –“É o ritmo do samba empolgando a negra que não conhecia a favela. E os sambistas fartos de ‘Os teus cabelos não negam’ estão cantando ‘Jê t´aime’”. Há também, imbricada, a negação em outra esfera que atribui juízo de valor ao corpo com base em padrões eurobrancos e racistas - “O ‘Grande Otelo’, o negro mais feio do mundo e um grande artista, está no mundo da lua” – descrevendo uma ação que não corresponde com o real posto na fotografia: um Grande Otelo celebrativo e envolvido no grupo.

15MOREL, Edmar. A Sambista Josephine Baker. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 de julho de 1939, n 35, p.8. Fonte: Acervo Masp. 35

Enquanto o discurso visual orienta um sentido de total envolvimento do grupo, em coletividade de celebração, apesar da subjacente exibição programada, o texto sugere ação/ relação promíscua e de masculinidade desrespeitosa: “ Josephine canta Boneca de Pixe e, os negros, alheios ao compasso da batuta do Heitor dos Prazeres, o demônio dos terreiros cariocas, estão de olhos arregalados nas pernas das girls”. Segundo a fotografia não havia outras mulheres, além de Josephine Baker. Nessa perspectiva, a artista é encarnada numa figura que não tem posse de si, uma pessoa numa espécie de transe, em inconformidade com a mulher que consta nos retratos, ou seja, alguém em interação constante, triangulando com o público:

O batuque cada vez mais forte vai vencendo a maravilhosa negra. Os seus pulos vão diminuindo e a voz morrendo suavemente. O batuque atinge o momento culminante. Josephine vacila e estonteia. Os sambistas fazem roncar desesperadamente as cuícas e batem com toda força nos tambores. Josephine é tomada em transe e cai ao chão.16

Ao orquestrar narrativa a respeito de um encontro entre pretos, Morel usa termos bantos, como “umbanda”, “batuque”, “cuíca” e “batuta”; projeta não só lugares idealizados, mas também atributos que geram sentido bizarro e imagens inertes a respeito dos corpos. Essa leitura, imbuída de complexo histórico racializado na diáspora, em solos americanos, contribui na construção de aspectos e orientações acerca da presença negra na cena do entretenimento. No entanto, o documento (aspecto textual e visual), abordado dialogicamente, pode apresentar-se como propulsor que elucida a postura e o processo de inserção do artista na cultura do divertimento, que preenchia os principais palcos não só do Brasil, como de outros países no final dos anos 30. Mesmo nessa narrativa interrompida que informa e ao mesmo tempo deforma – por exemplo o aparte no qual se diz que Josephine estava cantando Boneca de Piche - visualmente, as posições dos artistas nas imagens podem ser manejadas como instrumentos potentes para esquematizar uma presença artística negra. Isso é possível, se esses documentos forem submetidos aos discursos dos próprios artistas e outras pessoas negras relacionadas ao grupo. Tal articulação pode ser evidência oposta ao que se está escrito. Os versos cantados pelo coro acendem uma perspectiva com diálogos, imbricados um ao outro, entre uma espécie de festejo, a partir do contexto da cena, e uma denúncia. São expressadas diferentes ações interligadas pela situação difícil e penosa da pessoa negra em meio às adversidades condicionantes dos ambientes opressores.

16 MOREL, Edmar. A Sambista Josephine Baker. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 de julho de 1939, n 35, p.8. Fonte: Acervo Masp. 36

Nego quando cava Nego quando canta Nego quando pula Nego quando toma Nego quando grita Nego quando dança Nego quando brinca Nego quando zomba Sente gana de chorá Nego quando cresce Nego quando luta Nego quando corre Nego quando sobe Nego quando desce Nego quando veste Nego quando morre Nego pena sem pará

O fragmento foi extraído do poema “Toada do Negro Banzo” do escritor e poeta Murilo Araújo17. Ao serem analisados no contexto da cena, identifica-se que, assim como há disparidade entre o discurso textual e o visual, existe também uma nota destoante no que se refere a esse trecho dentro da tendência discursiva que seguia o texto de Morel. Não é possível afirmar que Edmar Morel não tenha introduzido originalmente o fragmento, até porque o editorial da revista O Cruzeiro era conhecido por operar com narrativas sensacionalistas e fictícias com base em acontecimentos culturais. (CHIARADIA, 2011). Todavia, pode-se arriscar que o fragmento realmente tenha sido musicado pelos artistas e, assim, introduzido no texto de Morel como algo que realmente ele tenha ouvido. Nessa lógica, a proposta desta tese ficou mais nítida. “Casamento de Preto: um estudo a respeito do corpo negro a partir de Josephine Baker e Grande Otelo” aborda as relações entre os universos corporais desses dois artistas, assim como suas fundamentações de corpo negro- africanas as quais, também, dão suporte para descortinar o conhecimento implícito no que se configurou sócio-historicamente como corpo negro, concepção consonante e, ao mesmo tempo, dissonante em si – se nos debruçarmos para a literatura de dança e teatro produzida por pensadoras(es) brancas(os) e negras(os).

17 Murilo Araújo (1894-1980), poeta brasileiro, integrante do grupo Festa – no qual havia ainda Cecília Meireles e José Cândido de Andrade. É considerado um dos expoentes do Modernismo no Brasil. 37

1.1.1 A ideia de Grande Otelo

O primeiro elo ilustrado, identificado entre os dois, é a situação cênica cujo título transcrevi na dissertação (BRITO, 2011) como “Casamento de Preto”. No entanto, no decorrer da investigação doutoral, algumas informações foram revistas, inclusive o próprio depoimento de Otelo (RODA VIVA, 1987) que não afirmou que o quadro cênico era intitulado “Casamento de Preto”, apenas usou esse termo para descrever uma ideia, segundo uma espécie de roteiro esquematizado por Luiz Peixoto18. “O Luiz Peixoto armou um casamento de preto onde eu era o noivo e os outros negros eram os convidados.” (OTELO, 1987). Outro dado sugerido na investigação anterior é que a ideia da cena teria sido de Luiz Peixoto, todavia essa é mais uma informação que merece certa reconsideração, mesmo porque a pessoa que “arma” compreendida, nesse caso, como aquela que “organiza” um contexto cênico não necessariamente é quem o idealiza. Por outra perspectiva, há outro depoimento no qual Otelo revelou, dois anos após a performance cênica, que teria sido própria a idealização do encontro entre ele e Baker, argumentando que teria dito a Luiz Peixoto que poderia cantar “Boneca de Piche” com a artista, a partir do momento que tomou conhecimento de que ela estaria na cidade do Rio de Janeiro prestes a cantar músicas brasileiras:

Quando soube, pelos jornais, que Josephine Baker ia cantar músicas brasileiras, tive uma ideia, que eu considero, se me permite, genial. Tinha que fazer uma dupla com ela. Fui a Luis Peixoto. Disse a ele que eu podia cantar “Boneca de Pixe” com Josephine. Luis Peixoto achou interessante. E eu, então comecei a subir. Hoje tenho um excelente contrato. Pelo menos, até 1944 estou com emprego garantido19.

Essa informação – de que ele teria sido o autor da ideia do encontro com Josephine Baker para cantar “Boneca de Piche” – aciona um aspecto a ser citado aqui. Otelo tinha ciência de que “Boneca de Piche”, composição de e Luiz Iglesias20 - que originalmente se

18 Luiz Peixoto (1889-1973), letrista, teatrólogo, poeta, pintor, caricaturista e escultor, realizou vários trabalhos no Teatro de Revista brasileiro e music hall. 19 WAINER, Samuel. O Grande Othelo não tem culpa. Revista Diretrizes, Rio de Janeiro, 1941. Fonte: Biblioteca Nacional. Em outros depoimentos, Otelo não dá totais garantias de que o contrato com o Cassino da Urca era realmente “excelente”, porque recebia valores diferenciados, ainda que atuasse igualmente a outros artistas. 20 Luiz Iglezias (1905-1963) teve experiência significativa no circuito dos espetáculos, trabalhando em adaptação, autoria, direção e colaboração. Foi casado com Eva Todor, famosa atriz de comédias e Teatro de Revista. Ary Barroso (1903-1964) foi compositor brasileiro, além de radialista e apresentador de programa de calouros. Compôs, além de Boneca de Piche, outras músicas famosas que ficariam conhecidas por constantes exaltações ao Brasil, à miscigenação entre as etnias e as belezas naturais. Uma de suas composições mais famosas é “” (1939), escrita na mesma época que “Boneca de Piche”. 38

denominava “Namoro de Preto” – “era uma caricatura” (OTELO, 1987), ou seja, um exagero da realidade afetiva entre pessoas negras a partir do olhar de dois homens brancos. Porém, ele se apropria da circunstância do momento. Josephine Baker, artista negra estrangeira, de grande visibilidade no Brasil, disposta a cantar músicas em português; ele, artista negro brasileiro, que teve êxito com a interpretação da música “Boneca de Piche”, atuando em parceria com outra artista negra, Déo Maia. Além de, naquele momento, sua imagem ser exibida no cinema na produção “Foot-Ball em Família”. No que diz respeito a isso, anúncios em cuja ilustração consta a imagem de Otelo (Figuras 5 e 6) circulavam no Jornal Globo para divulgar jogos e promoções com o intuito de divulgar o lançamento do filme.

Figura 5: Grande Otelo em anúncio (1939) Figura 6: Grande Otelo em Foot-Ball em Familia Fonte: Biblioteca Nacional (1939) Fonte: Biblioteca Nacional

Nota-se interesse publicitário em destacar Grande Otelo, como artista em crescente evidência, além de aliar sua figura de homem negro para difundir um drama social fictício cinematográfico sobre futebol, um ano após ao torneio da Copa do Mundo, na França. Por esse ângulo, a fusão da imagem do ator com propaganda de filme cuja temática era o futebol não foi acidental, decorreu de vinculação com bases já estereotipadas. Por outro lado, Otelo enxerga, nesse conjunto circunstancial (sua imagem e a de Josephine Baker), a oportunidade de um retorno satisfatório, para não dizer em alto estilo, ao Cassino da Urca, local no qual ele já havia trabalhado em 1938 até um desentendimento, em clima nada amistoso, com Joaquim Rolla, empresário do estabelecimento. Talvez Grande Otelo previsse que, para o Cassino, seria rentável ter dois artistas em sintonia, até mesmo porque, sob perspectiva internacional, a evidência de Baker era mais ampla. 39

Essa espécie de captura de conjuntura, legitimada a seu favor, seria repetida em outros momentos, como quando ele convence Herivelto Martins a criar a melodia para a letra da composição “Praça Onze” (1941), um dos seus sambas mais conhecidos. Ao relatar esse episódio, Otelo ressalta a persistência na persuasão a Martins durante a convivência de ambos nos trabalhos artísticos noturnos, assim a composição teria ganhado o substrato melódico no decurso de uma travessia de barca entre Rio de Janeiro e Niterói. Insistência parece ter sido um dos alicerces do artista que considerava o encontro com Josephine Baker um dos momentos mais importantes da carreira, senão o divisor de águas, reprisando testemunhos acerca dele em vários episódios,

Josephine Baker foi um dos momentos mais importantes da minha vida. Porque quando eu trabalhei com Josephine Baker no Cassino da Urca, trabalharam mais 12 outros negros, em um cassino onde eu entrava pelas portas do fundo porque não podia entrar pela porta da frente. Negro não entrava na porta da frente. E quando o negro foi contratado para trabalhar no palco, isso pra mim foi um orgulho muito grande [...]. (OTELO, 1987)

O relato de Otelo revela um sentido de pertencimento ao episódio, estabelecendo empatia com Josephine Baker e os outros 12 artistas que compuseram o evento cênico. É um processo de identificação não só a partir de aspectos culturais, pensando as interconexões entre as experiências afrodiaspóricas, mas ainda a partir da noção a respeito de lugares de recusa, discriminação e sítios de subalternização do corpo negro. Como comentado anteriormente, Otelo já tinha trabalhado no Cassino da Urca. Em 1938, ele apresentou shows com a atriz Déo Maia na temporada de Carnaval daquele ano. Não há como comprovar que eles eram os únicos artistas negros naquele momento ou que foram os primeiros artistas negros a se apresentarem lá. O fato é que a experiência com Baker e os outros negros artistas marcou a memória de Otelo, pela quantidade de pessoas negras reunidas ao mesmo tempo num único palco desde o seu ingresso na Companhia Negra de Revistas em 1926. Nesse sentido, condição, experiência e noção de coletividade intercruzam-se, provavelmente, agem sobre o ato cênico e alimentam agentes envolvidos nele. Outra importante pontuação a fazer, a partir desse depoimento, é que ele oferece indícios para entender o contexto das relações raciais no Brasil, naquele período, complexificando as alocuções identitárias em prol de uma brasilidade ou “ser brasileiro”. O discurso ufanista tão recorrente em múltiplas instâncias (cultural, social e econômica), aliado a uma propaganda de bem-estar social, constituíam-se em manipulações que acobertavam desigualdades profundas sob os ângulos de raça, gênero e classe. 40

Os corpos de pessoas, com pigmentação escura, eram atravessados por uma estrutura social cada vez mais edificada, segundo o projeto político do período. Nesse contexto, uma ideia de corpo brasileiro intensificava-se e a temática da miscigenação era cada vez mais visitada. Em suma, era um meio de a cultura branca elitista brasileira gerar novos marcadores de dominação nos corpos dos dois outros povos constituintes: as populações negra e indígena. Essa idealização estava distribuída em várias instâncias, assim como na semeadura da propaganda nacionalista que fazia de conta que aceitava toda e qualquer forma de existência não branca. Ela era legitimada pelo Departamento Nacional de Propaganda do Estado Novo21.O governo federal, na época sob a administração de Getúlio Vargas, tinha esse setor como uma espécie de fábrica de comunicação com a sociedade. Eram bem-vindos ou promovidos pelo departamento todos os eventos que correspondessem a uma percepção de cultura brasileira, valorizando belezas naturais, propriedades dos territórios ou aspectos ligados às três raças fundadoras. Uma ocorrência constante era a Exposição Nacional do Estado Novo (Figura 7) com o intuito de divulgar os Estados, algumas de suas principais cidades e o perfil econômico de produção, por exemplo: São Paulo era apresentada como a cidade das fábricas, a representação do progresso industrial e da modernidade.

21“O Departamento Nacional de Propaganda foi criado em 1938, especificamente para difundir as políticas varguistas e sua ideologia no seio da classe operária. O DNP originou-se do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural – DPDC (1934). Esse órgão atuava perante a imprensa oficial e era o responsável pelo rádio, cinema entre outros. Em 1938, o DPDC foi reorganizado e criado o DNP, dirigido por Lourival Fontes. O DNP assumiu diversas funções como: editar a “Hora do Brasil”; realizar a personalização da propaganda; fazer a abertura da Sessão de Cinema (que tinha como objetivo divulgar aspectos positivos do Brasil no estrangeiro e no interior do país); criação da Sessão de Turismo (com o propósito de receber visitantes brasileiros, editar cartazes e folhetos sobre o país). Mas sua função principal era a de realizar a educação cívica. O DNP era destinado à formação educativa dos operários. Era uma espécie de manual pedagógico, elaborado pelos intelectuais do governo Vargas e ministrado pelos líderes do movimento sindical dos trabalhadores conformados com a política estadonovista. O operário deveria ser instruído, dentro e fora de seu local de trabalho, para viver incondicionalmente para o trabalho. Os discursos do presidente Getúlio Vargas foram todos publicados e organizados nas cartilhas do Departamento Nacional de Propaganda. A coleção se intitulava Nova Política do Brasil e era destinada às instituições classistas para a formação do pensamento uniforme sobre a construção da nova política brasileira em desenvolvimento com o advento do Estado Novo” Retirado de http://www.histedbr.fe. unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_dnp.htm. Acesso em 20.ago.2016. 41

Figura 7: Anúncio da Exposição Nacional do Estado Novo, Globo, 1939. Fonte: Biblioteca Nacional

Havia outros tipos de iniciativas que se conformavam às metas estadonovistas, ampliando as possibilidades para a sintetização de uma arte com formação nacional que robustecesse a ideologia do povo único, de uma nação original com corpo próprio, este bem brasileiro e miscigenado. As investigações da bailarina e coreógrafa Eros Volusia22 em torno de um “Bailado Brasileiro” evidenciam parte dessa concepção:

Anunciando a sua palestra sobre “A creação do bailado brasileiro” que se realizara na próxima quinta-feira, às 17 horas, no teatro Gymnastico, ilustrada com estilizações coreographicas de sua autoria. Eros Volusia marcha para a objectivação do grande sonho de arte que enche de belleza a sua vida. Ella que já há muitos anos conseguiu quebrar o tabú que fechava as portas do municipal à possível dansa do Brasil, pretende crear um bailado nosso, no qual se traduzam em rythmo e gestos as paizagens da terra e as angustias da gente desde os tempos em que estes elementos se associaram historicamente para a formação nacional. A tarefa é arrojada porque neste campo tudo ainda se precisa fazer. É um trabalho duplo: de creação e divulgação. Eh os não encontrou para a sua sensibilidade tão exquisita caminhos abertos. O que por ahi já existia eram as contrafacções da arte que ela deseja reahabilitar: maxixadas que recusavam o primado espiritual e esthetico, simples expressões de acrobacia. Estas dificuldades não lhe diminuíram o enthusiasmo . Ella foi buscar pelo Brasil afora tudo aquilo que precisava para “marcar o movimento da sensibilidade de uma raça”; ela que tivera a infância ligada a dois polos desta mesma raça: negros e índios que lhe deram a emotividade virgem o deslumbramento colorido e sensual dos seus ritos. A dansa que ella trouxe para o encanto da platea que a

22Eros Volusia (1914-2004) foi uma dançarina e coreógrafa brasileira que pesquisou acerca de uma dança “original” brasileira a partir do cruzamento das matrizes culturais constituintes do Brasil; Ibérica, Indígenas e Africanas. Foi professora do Serviço Nacional de Teatro. Uma de suas alunas que se destacou posteriormente no cenário da dança foi a dançarina e coreógrafa Mercedes Baptista, pioneira do que viria a ser conhecido no Brasil como Dança-Afro. 42

aplaudiu sem poder explicar naquela quasi menina o milagre de tão forte originalidade, expressava nos seus gestos toda a alma brasileira que sera agora contar, numa palestra que será rica de belleza e singularidades, o que tem feito, o que está fazendo e o que ainda fará e tudo se pode esperar dessa inteligência robustecida por tamanha coragem – pelo bailado brasileiro, dizendo ao mesmo tempo o que elle é e no que elle poderá se tornar para maior renome da arte nacional. A segunda parte da vesperal de quinta-feira no Gymnastico para a qual se encontram os ingressos na casa “Arthur Napoleão”, constará do seguinte programma: “Ansia de Azul” – dansa clássico expressionista. Inspirada em musica Debussy. “Dansa selvagem” –suice indígena, em quatro expressões. Fúnebre, festiva, guerreira e religiosa, sobre motivos musicaes folk-loricos.“Batuque” – dansa afro-brasileira. Música de Nepomuceno. “No terreiro de Umbanda” – dansa convulsiva afro- brasileira, em dezoito “corimas”.23(Grifo nosso).

Os grifos do referido texto indicam o engajamento de Eros na pesquisa em dança, especificamente aquela edificada em solos brasileiros, a partir de contextos regionais. Sinalizam também como o trabalho dessa bailarina dialogava com um propósito de Estado no qual “As diversas manifestações afro-brasileiras, passam então a ocupar um espaço próprio, no projeto de um estado nacional, ao mesmo tempo que vão sendo engolidas pela máquina mercante” (MONTEIRO, 2011: 4). Conforme o texto, há intenção de reabilitação de certas danças negro- diaspóricas as quais, na visão do autor do artigo, tinham carências estéticas. Além disso, ao verificar os adjetivos escritos para as danças indígenas e afro-brasileiras, como “selvagem” e “convulsiva”, pode-se pontuar que ambos traduzem como os corpos negros e indígenas eram administrados na narrativa dominante, sendo interessantes para um projeto artístico nacional que produzia uma inferiorização imaginária, conveniente, acerca dessas estéticas de dança. É inegável a contribuição da Eros Volúsia aos caminhos da linguagem da dança no Brasil e não se pretende contestar tal asserção. Todavia o seu trabalho era desenvolvido num contexto apologético que respondia positivamente à proposta ufanista de governo, “A filha de Gilka Machado, nome a que se não precisa mais juntar qualquer adjectivo, criou-se, porém num ambiente de exaltação do Brasil e quis continua-lo pondo a seu serviço todas as suas emoções, toda a graça do seu talento artístico24.” Nesse sentido, a pesquisa de Volúsia se construía em contexto político aparentemente enaltecedor da dança brasileira, entrelaçado à apropriação simbólica e cultural das performances negro-diaspóricas presentes em outros discursos artísticos.

23“Eros Volusia vae falar sobre o bailado brasileiro”, Jornal o Globo, 18 de julho de 1939, p.2. Fonte: Biblioteca Nacional. 24 “Creadora Explosão do bailado brasileiro em plena aula!”, Jornal o Globo, 20 de julho de 1939, p.2. Fonte: Biblioteca Nacional. 43

A própria presença de Grande Otelo, em espetáculos de revista, apresenta esse perfil. Na Companhia Jardel Jércolis, por exemplo, ele atuou, em 1935, nos seguintes trabalhos: “Goal”, “Carioca” e “Rio-Folies” (BRITO, 2011: 79). Os três espetáculos traziam o samba como cartão de visita, numa exaltação ao Rio de Janeiro, que já era colocado midiaticamente como representação do Brasil. Nessas instâncias faces dos redutos negro-diaspóricos iam sendo embrulhadas num sentido único, reduzindo o caráter polissêmico. Enquanto pessoas negras, fazedoras de artes afro-brasileiras tinham espaços e alcances de aparição cada vez mais diminuídos, artistas brancas(os) adornavam-se mais de símbolos com fundamentos afrodiaspóricos, adaptados a um olhar mercantilista, saudosista e simultaneamente branquializado. Com base nisso, relembremos que Carmen Miranda, portuguesa de nascimento, a partir de 1939 começa a fomentar sua projeção25 nos Estados Unidos com a repercussão da interpretação da música “No Tabuleiro da Baiana”, apresentando-se no Pavilhão Brasil na Feira de Nova York com o Bando da Lua26 “para o qual foram especialmente contratados”. Nesse clima favorável a uma política de governo com anseios por conexões econômicas e sociais em nível internacional, a imagem da cantora foi se cristalizando no exterior. Ao se apresentar com o Bando da Lua, Carmen Miranda paramentava-se em trajes inspirados espetacularmente na personagem da Baiana, convenção no Teatro de Revista e com estímulo (apropriação) em quituteiras, mulheres negras. A ideia de brasilidade significada, tanto na experiência de Eros Volúsia, como em Carmen Miranda, também era articulada a uma ideologia de “bem-estar social” pertencente ao painel político de 1930 (SKIDMORE, 2010: 63), na qual se destaca o presidente/ditador Getúlio Vargas:

O golpe de 1937 por fim estabelecera a direção do caminho histórico que o Brasil trilharia num ponto crítico. Os objetivos de bem-estar social e nacionalismo econômico, muito debatidos no começo da década, agora seriam buscados sob a tutela autoritária. O resultado foi um aprofundamento da dicotomia entre um estreito constitucionalismo que negligenciaria questões sociais e econômicas, e um nacionalismo voltado para o bem-estar social que se tornara inequivocamente antidemocrático.

25 Em 1939 Carmen Miranda viaja aos Estados Unidos para se apresentar no Pavilhão do Brasil na Feira de Nova York, “Carmen Miranda e o Bando da Lua no theatro norte-americano!”, Jornal Globo, 30 de maio de 1939, p.6. Fonte: Biblioteca Nacional. 26Conjunto vocal masculino que existiu de 1929 a 1955, ano da morte de Carmen Miranda. Quando a cantora foi para os Estados Unidos em 1939 fez uma exigência contratual que o Bando da Lua a acompanhasse em suas apresentações. O grupo atuou com ela em oito filmes, além de participar de vários espetáculos. O Bando da Lua gravou muitas músicas carnavalescas nos anos 30. 44

As iniciativas desse “nacionalismo voltado para o bem-estar social”, introjetado de paternalismos e projetos de brancuras disfarçados em panoramas de miscigenação e democracias, formavam o próprio manual orgânico, transversal e diverso, presente em diferentes categorias da sociedade inclusive no ramo do entretenimento. Esse “bem-estar social” transitava com a necessidade de unificação do país, forjada diante dos parâmetros modernos das civilizações economicamente ricas, respondendo a uma política econômica externa com presságio imperialista estadunidense. Nessa linha, exibições icônicas internacionais, conforme o exemplo de Carmen Miranda e o Bando da Lua nos Estados Unidos ou de atrações estrangeiras em cassinos do Rio de Janeiro, faziam parte desse contexto, interligado cuidadosamente. As interações interculturais, nos espaços de divertimento da elite, podem revelar aspectos comuns, nas relações socioculturais no Rio de Janeiro, além de evocar perguntas a respeito de presenças e ausências de pessoas negras nesses mesmos territórios. Ao afunilar para a vivência de Grande Otelo no Cassino da Urca sobre o qual o ator expôs que “Negro não entrava pela porta da frente” e que na época da cena com Josephine Baker trabalharam mais 12 outros negros, é possível identificar que havia uma limitação da presença negra nesse estabelecimento. No Cassino da Urca os bastidores e os trabalhos subalternos eram lugares de mais presenças negras, enquanto a cena ainda tinha uma predominância localizada, como é o caso das orquestras geralmente alocadas em frente ao palco numa espécie de fosso, esquematização física semelhante aos teatros que abrigavam espetáculos de Revista (BARROS, 2005) e (BRITO, 2011). O Cassino era uma espécie de music hall, uma inspiração em modelos de cassinos parisienses27 e estadunidenses. Era uma casa de jogos, autorizada e legitimada pelo governo do período, tanto que a senhora Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas, frequentava o local e

27 Um estabelecimento, dentro do perfil do music hall, apresentava um quadro de atrações variadas sem qualquer tipo de conexão entre si. Desfilavam pelos palcos ginastas, mágicos, pantomimas, marionetes, acrobatas, atletas, palhaços, animais selvagens adestrados, cantoras(es), dançarinas(os), comediantes. Além de farsas, operetas e comédias. O Folie Bergère(1869) na França foi um dos music-halls mais famosos da história. Os cassinos absorveram essa atmosfera. (MENCARELLI,1999) e (BRITO, 2011). No caso dos cassinos parisienses e estadunidenses, a partir da década de 20, há uma inclinação cada vez mais potente em direção ao luxo e a espetacularidade, com base em tecnologias disponíveis na época. Atrelado a isso, a nudez feminina (principalmente em Paris) era um fato. No caso, especificamente dos cassinos, o jogo era o “divertimento-eixo” e as atrações variadas um bônus para as pessoas que frequentavam. No Cassino da Urca, havia setores variados caracterizados de acordo com as condições financeiras dos visitantes (NORONHA, 1998). O perfil de cada setor dizia que tipos de atrações e jogos estariam disponíveis para os frequentadores. Josephine Baker trabalhou, na década de 20, tanto no Folie Bergère quanto no Cassino de Paris. 45

aproveitava para realizar eventos de caridade na alta sociedade28. O mineiro Joaquim Rolla – com quem Otelo teve animosidades – era dono do Cassino; antes, teria conseguido reunir uma renda milionária para comprá-lo trabalhando como fazendeiro e empreiteiro de estradas (CABRAL, 2007). Durante o Carnaval de 1938, Grande Otelo e Déo Maia fizeram números de cortinas29 no Cassino. Um dos momentos coincidia com a hora do jantar dos frequentadores que, por isso, não concentravam muito atenção na dupla. Houve um dia em que Rolla estaria na plateia e ficou insatisfeito com a baixa empolgação do público. Ao reclamar com Otelo e Maia sobre seus desempenhos, o primeiro o enfrentou argumentando que a escolha do horário para apresentação é que estava equivocada, não a qualidade dos artistas. Cabral (2007) afirma que, num segundo episódio, durante a discussão, Rolla teria verbalizado ofensas raciais a Otelo, o qual por sua vez reagiu verbalmente. Em outro momento, Otelo descumpriu acordo em que os artistas – vinculados à Urca tinham de apresentar-se em outros cassinos do Rio de Janeiro, incluídos no patrimônio comercial de Rolla. Otelo, por alguma razão, não gostava de apresentar-se no Cassino do Tênis Clube de Petrópolis, e faltava constantemente. Então, fosse pela programação ou por desempenho de trabalho, as discussões levaram o sócio de Joaquim Rolla a impor a dispensa de Otelo como condição para a manutenção da sociedade. Somado a isso mais pronunciamentos preconceituosos tinham sido transbordados, e a demissão ocorreu. Grande Otelo voltaria ao Cassino um ano depois para contracenar com Josephine Baker. Nesse mar de entraves raciais, o jovem Otelo construía-se no Rio de Janeiro, jogando com o paternalismo, introduzido no mundo negro e no branco desde a infância em Uberlândia. Teceu, a sua maneira, a percepção sobre as percepções outras a respeito do seu corpo e da sua imagem. Como ele relatou “(...) giz preto, no meio de um monte de giz branco, se destaca. Eu aproveitei aquele destaque com a minha cabeça e fui caminhando.” (OTELO, 1985)30. Sua caminhada, seu constructo corporal articulou negociações para viver “na selva” por meio de insistência, conivência, resistência e recusas. As duas últimas são colocadas na maior

28 Exemplo foi o show da vedete francesa Mistinguett em 1939 que aconteceu com suposta finalidade de arrecadar ajuda financeira para um abrigo de crianças. ”Mistinguett será a estrela! O festival em benefício do Abrigo Redemptor a realizar-se no Cassino da Urca.”, Jornal Globo, 04 de julho de 1939, p.4. Fonte: Biblioteca Nacional. 29 O número de cortina era caracterizado por papéis episódicos, atrações musicais, quadros cômicos que não dependiam de cenários. Ele acontecia geralmente à frente da cortina que se abria horizontalmente após o pano de boca fechar completamente o palco. Este permanecia para marcar o início e o fim do show ou revista. É uma estrutura também encontrada no Teatro de Revista e tem como finalidade preencher a atenção do público. É bem provável que no Cassino da Urca, esses números funcionassem como espécie de “entre” atrações principais. Sobre o número de cortina em teatro de revista ver Veneziano (2013) e sobre o número de cortina no Cassino da Urca ver Brito (2011). 30 Entrevista de Grande Otelo ao MIS-RJ em 1985. 46

parte da sua biografia como indisciplina ou fuga, termos que não dimensionam o caráter complexo reativo, impresso na experiência dele como sujeito negro e artista. Tramando caminhadas entre lugares, a sua pele, a sua estatura e o seu fenótipo iam se tornando os limítrofes de uma fronteira para determinados acessos, mas eram também zonas de potência para garantir seus deslocamentos, assegurar sua comunicação com o mundo. Logo, a ideia de um possível “casamento” cênico de preto com Josephine Baker pode ter sido, de fato, calcada por ele nesse terreno – que, localizado entre o social e o racial – era movediço. A experiência de Otelo era similar às de outras pessoas negras, as quais tinham três opções: denunciar com faca e foice, como de fato alguns movimentos fizeram; silenciar-se por completo e mergulhar numa profunda autonegação e distorção extrema de imagem, como aconteceu e acontece; ou encontrar aberturas estreitas de insistência, estar num entrelugar (MARTINS, 1995) para tentar ser, na medida de tais possibilidades

1.1.2 A visita de Josephine Baker

Josephine Baker esteve no Brasil significativamente, dentre as visitas, com comprovação substancial, algumas ocorreram em 1929, 1939 e 1952. Ao longo desses períodos podemos vislumbrar uma mulher artista com diferentes atributos e uma fisionomia determinada. Em 1929, em meio a uma incursão na América Latina, ela vem ao Brasil cumprindo agenda gerenciada minuciosamente por ela e a equipe, que na época contava também com o seu marido-empresário Pepito Albatino. Segundo biógrafas(os) de Baker, ele foi uma figura atuante no que concerne a divulgação da própria imagem para outros países europeus, além dos sul-americanos. No entanto Baker já agenciava o próprio corpo, a sua exibição, desde antes da mudança para Paris. Se a receptividade e a contratação de Josephine Baker não eram arbitrárias, imersas em conjuntura socio-histórica do entretenimento – que escavava o modernismo do final dos anos 20 – a aceitação da artista para estar em solo brasileiro também não era despropositada. Josephine, além de investir na internacionalização do seu trabalho, parecia desejar uma submersão em outros códigos culturais, mesmo que simultaneamente fosse quase abduzida por estruturas brancas de apropriação. Em 1929 o “saiote de bananas” dá sinais da aposentadoria, embora ainda fosse um acessório que a artista utilizava; em 1952, o corpo de Josephine Baker dança através da voz, ao denunciar a falsa democracia estadunidense e a segregação racial nos Estados Unidos por meio 47

de encontros com a imprensa, com militantes negros31 e de palestra proferida na Biblioteca Municipal de São Paulo32. Entre 1929 e 1952, especialmente em 1939, ela vem para mais uma temporada de trabalho em territórios sul-americanos. A turnê de Josephine Baker na América do Sul foi possibilitada por negociações com cassinos que nesse período tinham presença significativa na cultura do entretenimento em países, como Argentina, Uruguai e Brasil. Além disso, artistas europeus e norte-americanos33 eram sempre figuras comuns nessas casas de jogos, principalmente aquelas mais elitizadas e aristocráticas como o Cassino da Urca. A circulação de artistas negros internacionais, no Cassino da Urca, é um dado a ser checado, assim como, o trânsito de artistas negras(os) brasileiras(os) ou do próprio Grande Otelo em Cassinos de outros países da América do Sul. Até o momento, o que se percebe é que houve experiências expressivas de artistas negras brasileiras em Paris34 e que Josephine Baker foi a mais destacada artista negra internacional a apresentar-se no Cassino da Urca; ou pelo menos a única artista negra estrangeira a estar lá até então. O fato é que a passagem pelo continente sul-americano, especialmente o Brasil, em 1939, parece ter sido eloquente no imaginário e na vida profissional de Josephine Baker. Para além das suas apresentações no Cassino da Urca, esse mesmo estabelecimento concordou contratualmente que ela performasse números musicais na primeira experiência de transmissão televisiva da cidade do Rio de Janeiro, que foi exibida na “Feira de Amostras e na Exposição de Televisão”. Ela seria o destaque “à realização da iniciativa original de uma prova pública da novidade de televisão...”35. Devido ao seu ofício, é crível que ela tenha criado uma rede de contatos com personalidades expressivas do círculo cultural e jornalístico, preparando organicamente um terreno que propiciou relações profissionais mais de treze anos depois, em 1952.

31“Josephine Baker em São Paulo: desenvolve a estrela uma campanha contra a discriminação racial “Brasil exemplo de absoluta democracia” , S/N, 1952. Fonte: New York Public Library - Shomburg Center for Research in Black Culture. Nesse documento há o registro do encontro de Josephine Baker com o movimento Legião Negra, além de informações acerca da fundação no Brasil da sua associação internacional contra discriminação. 31 Atualmente o local é conhecido como Biblioteca Mário de Andrade. 32 Em 1935 trabalharam artistas estrangeiros no Cassino da Urca, são alguns deles: Raquel Meller, Phyllis Cameron e Shirley Rhodes. Programa do Cassino da Urca, 1935. Fonte: Biblioteca Nacional. 33 Houve Miss Bartira cuja vida e obra ainda não foi abordada, sendo muito difícil encontrar documentação a seu respeito. No entanto, sabe-se da sua existência através de uma entrevista realizada pelo jornal O globo à sua família no Brasil, em 1939. Nesse período Bartira fazia sucesso em Paris como vedette. Fica difícil saber, pela má qualidade do registro, quando exatamente a artista mudou-se para a França ou dados mais específicos acerca da vida pessoal. Outra artista é Watusi. Intérprete, bailarina e cantora brasileira. No final da década de 70 e início da década de 80 do século XX, a artista trabalhou no Moulin Rouge sendo um dos destaques dessa casa de music-hall no período. 35 “Desvenda-se para a cidade um milagre da sciencia! ... – Josephine Baker vae ser vista e ouvida por todos graças à realidade da televisão”, Jornal Globo, 10 de junho de 1939, p.4. Fonte: Biblioteca Nacional. 48

Além de tentativas posteriores evidenciadas por trocas de cartas diretas com o diretor de “O Globo”, Roberto Marinho, em 1958, negociando cachê e gastos de uma possível temporada de trabalhos no Rio de Janeiro. A temporada não se realizou pela recusa do grupo Globo em providenciar um contrato que se conformasse com os valores cobrados pela artista, tal relutância é apontada na carta devido a algumas mudanças no cenário do music-hall e cabaré brasileiro. Segundo Marinho “Os diretores da maioria das casas de shows e cabarés se abstiveram de contratar artistas estrangeiros que só tocam shows com artistas brasileiros”36. Outro documento que ilustra interlocuções da artista com o Brasil, após 1939, é o telegrama para o Ministro das Belas-Artes solicitando um encontro para tratar de assunto artístico que particularmente a preocupava, em 1963: “Estou indo em breve para o seu belo país, vou pedir-lhe uma entrevista para falar de um assunto artístico que me concerne em particular”37. Tais documentações elucidam uma inclinação significativa da entertainer em ter consciência da construção da imagem e respectiva repercussão, consolidando uma autoridade sobre si para negociar, exigir e comunicar. Por outro lado, refletindo a partir de uma óptica do imaginário, acredita-se que o deslocamento para a América do Sul, propiciou conjuntura complexa de entendimento da perspectiva étnico-racial nessa parte do continente americano. A configuração segregacionista estadunidense era o parâmetro para classificar outras experiências de racismo nos outros países visitados. Em 1925, mudou-se para a França, país cuja cidadania adquiriu em 1937, dispensando assim a estadunidense38. Josephine Baker retorna aos Estados Unidos, em 1936, encontrando ambientes de segregação ainda mais radicais e uma imprensa não receptiva a sua performance no Zigfield Folies39.

36 Tradução livre. “Les directeurs de la plupart des music-halls et cabarets s´abstiennent d engager des artistes étrangers, se limitant a monter des spectacles avec des artistes bresiliens”. Carta de Roberto Marinho a Josephine Baker, Rio de Janeiro, 25 de julho de 1958. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - Emory University. 37 Tradução livre. “Venant Bientot dans votre magnifique pays je me permetraia lors de vous demander une entrevue pour parler d´une affaire artistique qui me concerne particullierment”. BAKER, Josephine. Telegrama de Josephine Baker ao Ministro das Belas Artes do Brasil. Lima, Perú, 19 de maio de 1963. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library – Emory University. 38 Jean Lion que tinha descendência judaica casou-se com Josephine Baker em 1937. A imprensa estadunidense constantemente apresentava Baker como a entertainer que teria descartado a cidadania estadunidense para se tornar uma cidadã francesa, principalmente na década de 50, quando ela começou a proferir palestras pelo mundo criticando a falsa democracia dos Estados Unidos e os linchamentos contra pessoas negras. 39 Foi uma série de produções de teatro de revista com período de trabalho entre 1907 e 1957. O produtor, na época em que Josephine Baker trabalhou, era Lee Shubert, e nessa ocasião as apresentações ocorreram no Winter Garden Theatre. 49

Alguns jornalistas comentavam sobre uma dança sem grandes novidades40 – diferentemente das exaltações parisienses a “dança exótica”, como eles nomeavam no periódico – e ao seu desempenho vocal, pois nesse período ela já se arriscava a cantar com mais frequência. No entanto, sua voz foi considerada “pequenina demais”41 para uma mulher negra cuja voz de “pardal”42 não se conformava ao imaginário da recepção branca acerca dos negros nos Estados Unidos. O simples ato de caminhar na mesma calçada ou frequentar o mesmo estabelecimento que os brancos, sem olhares de recusa ou repulsa, era uma vivência atípica para Baker, como é descrito em uma de suas biografias (WOOD, 2000). Ela, uma pessoa oriunda do sul dos Estados Unidos, tinha a assinatura racista desse país em seu corpo que tomava a experiência segregacionista estadunidense como termômetro para sentir outras perspectivas discriminatórias. Tanto é que após essa turnê, considerada não satisfatória, Josephine retorna à França tendo alto acolhimento por parte do público parisiense, potencializando ainda mais a relação de conforto em ser uma artista negra em Paris. No lugar onde nasce a pessoa negra, registram-se memórias de construção familiar, de edificação social e afetiva. Ao viver o infortúnio do racismo nesse espaço natal, o corpo registra sutilezas, na medida em que experiências racistas com pessoas, canais e situações são mediados por gestos, linguagem visual, expressão verbal ou silêncio. Ao deslocar para outro campo, território, e verificar outras experiências racistas, novas questões revelam-se, principalmente se envolve distinção de classe ou se uma pessoa negra ascende socialmente. Essas experiências de diferentes condições de ser negro tecem teias complexas a respeito dos distintos racismos enfrentados na terra natal ou em diáspora. No documentário “Eu não sou o seu negro”, James Baldwin cita a experiência dele com a França, como argumento para exemplificar sua falta de liberdade como homem negro nos Estados Unidos: “Eu precisei ir para Paris para confirmar que o que eu sofria no Estados Unidos não era coisa da minha cabeça”43. Posição muito próxima a de Baker, no que diz respeito à relação com a sociedade parisiense e o racismo estadunidense.

40TUCKER, Richard. “New plays in Manhattan”.Time, fevereiro de 1936. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 41GILBERT, W. Gabriel. “The Folies, 1936”. N.Y American, New York, fevereiro de 1936. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 42 GILBERT, W. Gabriel. “The Folies, 1936”. N.Y American. 43 Transcrito do documentário “Eu não sou o seu negro” (2016), de Raoul Peck. O documentário é baseado num livro que nunca chegou a ser terminado pelo autor James Baldwin, denominado Remember This House, cujo enredo gira em torno de uma série de relatos acerca da vida e assassinatos de: Martin Luther King Jr., Medgar Evers e Malcom X. 50

Em palestra, na Biblioteca Mário de Andrade, Baker fez questão de enfatizar que ela acreditava que o Brasil seria a “concreta realização” do seu ideal de fraternidade. A partir dessa visão certamente equivocada, é possível entender que o país foi uma das inspirações para a sua “tribo arco-íris” (suas filhas e seus filhos adotivos). “Eu me maravilho e estou encantada por ter encontrado aqui no Brasil a perfeita resposta para o meu ideal e sonho. Este ideal em minha opinião representa o futuro do mundo44.” Essa expectativa de Baker acerca do Brasil seria uma dissidência da sua visita em 1939, quando o país vivia a situação ilusória de uma política de “bem-estar social” entre as diferentes etnias – a mesma política que paradoxalmente negligenciava e mantinha populações negras e indígenas sob históricas vulnerabilidades. Além da sólida presença de um filtro de miscigenação, que exaltava aportes das culturas afrodescendentes, enquanto perseguia pessoas negras em seus ambientes de trabalho, divertimento e militância45. Como artista estrangeira e mulher negra de pele não tão escura consoante com a mulatice propagandeada pelo Estado Novo, pela cooptação de composições barrosianas e convenções do Teatro de Revista (a personagem “mulata”), Baker pode não ter desfrutado de privilégios. No entanto, foi-lhe permitido melhor tratamento e mais mobilidade em espaços aos quais a maior parte dos negros brasileiros não tinham acesso. Josephine Baker tinha ascendido socialmente, do ponto de vista financeiro, e isso também filtrava a forma de enxergar as complexidades raciais em diferentes territórios. Acredito que Baker tenha sentido as ausências negras em determinados espaços brasileiros, ainda que sua origem estadunidense e residência parisiense tenham interferido na análise feita por ela sobre presenças negras na cultura do entretenimento. Mesmo porque o cenário era muito revelador: de um lado, um clima sociocultural no qual a França era mantida com saudosismo e considerada referência no teatro musical e de variedades; de outro, um contexto pré Segunda Guerra, que favorecia cada vez mais os alicerces imperialistas estadunidenses. Como artistas e, mais, artistas negras(os) poderiam marcar suas presenças? Aliás, quem era branco no Brasil para Josephine Baker? Como ela via as relações pigmentocráticas na plateia que a assistia? Em que medida, ela como mulher negra estrangeira, reconhecia o tratamento dado aos negros no Cassino da Urca, conforme a colocação do ator Grande Otelo?

44BAKER, Josephine. Brazil. São Paulo, 30 de julho de 1952 [Discurso]. Fonte: New York Public Library – Schomburg Center for Research in Black Culture. Tradução livre. I Marvel and am enchanted to have found here in Brazil the perfect answer to my ideal and dream. This ideal in my opinion represents the future of the world. 45 A citar , a Frente Negra Brasileira, com fundação oficializada em 1931 e minada pelo golpe Varguista em 1937. 51

Acredito que, apesar do seu deslocamento ter-lhe escondido nuances, teria lhe revelado algumas realidades também. É bem possível que ela tenha percebido que o Rio de Janeiro não era o paraíso para todas as raças. Contudo, ela não deixou de ser induzida por uma maquiagem de convívio articulada ao crescente mito da democracia racial brasileira, somada a sua experiência nos Estados Unidos, segregada deliberadamente e a sua vivência “mais libertadora” na França. Dessa forma, experienciar complexidades raciais brasileiras, em 1939, devem ter promovido uma mistura de sensações no corpo da artista que, passando um pouco mais de quatro meses a trabalho, no Rio de Janeiro, arriscou cantar músicas em Português dentro de um contexto de negociações com o Cassino da Urca. Cantar em outros idiomas seria um dado curioso e notificado pela imprensa que divulgava a imagem de Baker como a entertainer negra que cantava em diversas línguas – espanhol, português, francês, inglês e italiano – tal ênfase aparece na documentação e evidencia interesse em apresentar de forma pitoresca a figura negra que se apresentaria nos palcos46. Essa curiosidade seria enfatizada ao longo da carreira, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, quando ela passa a “dançar menos” e cantar mais – acumulando a experiência dos trânsitos na década de 20 e 30 por vários países. Todavia o mais importante disso tudo é considerar a prática de aprendizagem de um novo idioma como disponibilidade para introduzir, transitar e traduzir novas realidades culturais. Mesmo assim, tal disponibilidade pressupõe possibilidades de errar, uma vez que a habilidade para se comunicar, em uma língua estrangeira, não é construída em etapas rápidas e exatas. Existe na aprendizagem a desordenação subjetiva, ao tentar apreender os códigos com os quais se toma contato, pode-se não captar as realidades das codificações informadas e reformadas nos corpos. Entende-se que, nessa recorrência, a tradução pode também acompanhar certa distorção do que é visto e sentido. Ao mesmo tempo em que o distorcido alinha-se com as experiências acumuladas nas culturas dos novos idiomas e reformula novas concepções. Essa ideia é enriquecida, se considerarmos a noção negro-africana-diaspórica de linguagem dentro da conjuntura sobre o que se entende aqui como ancestralidade. A maior parte dos povos africanos que povoaram as Américas, sob condições drásticas, eram poliglotas por terem sido criados em imersões de trânsitos dentro do próprio continente africano (HEYWOOD, 2010) durante intercâmbios culturais, comerciais e diplomáticos. Esses

46“Josephine Baker: world´s top exotic”. S/N, 1951. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 52

contextos já eram realidade, antes mesmo do transporte transatlântico que dinamizou diferentemente essa prática, obrigando a pessoa escravizada a apreender as línguas do colonizador e de outras(os) escravizadas(os) de diferentes etnias, a fim de sobreviver para viver. Dessa maneira, quando Baker desbravava o idioma através da música não significava apenas acumular habilidade, isso se convertia também no exercício de um contínuo ancestral, que caminhava em conjunto com a descoberta de novos ritmos, novos gestos e com os reencontros com outras síncopas vocais diaspóricas. Na medida em que ela apreendia as línguas, assim como conhecia os lugares por onde transitava, ela galgava a liberdade dos seus deslocamentos em espaços negociados. Só que, devido a uma narrativa opressora colonial, esses trajetos idiomáticos nunca são plenos em si, são atravessados por elementos que reprimem ou disfarçam as realidades durante todo o tempo. Assim, naquele período – cinquenta e um anos pós-abolição da escravatura e o crescente mito da democracia racial no Brasil; o frenesi suspeito parisiense em relação às culturas negras; e a lei segregacionista Jim Crow nos Estados Unidos – não havia como Josephine Baker identificar completamente os palanques das relações racialistas brasileiras. Todas essas circunstâncias se debatiam entre si somadas a posição de fama internacional que Baker alcançara até aquele momento. Ao estrear no Cassino da Urca na noite de 10 de maio de 1939, Baker tinha, segundo a imprensa, no seu repertório a exibição de “danças exóticas” e “danças árabes”:

A estréa de Josephine Baker, hontem, no Cassino da Urca, foi um dos mais ruidosos sucessos ali registrados nestes últimos mezes. A célebre cançonetista negra, desde os primeiros momentos conquistou o selecto auditório que tomava todas as dependências do elegante grill-room. Muita gente se comprimia nos cantos da ampla sala para apreciar a afamada “soubrette”, que vem de conquistar um dos maiores triumphos em sua carreira artística, na recente temporada de Buenos Aires. Josephine Baker confirmou, hontem sobejamente, tudo quanto se dissera sobre a sua arte. Nas dansas exóticas, principalmente, Josephine é inexcedível. Deu disso hontem prova exuberante, ao executar a Dansa Arabe, que arrancou fartos e prolongados aplausos da assistencia, que não se cansava de reclamar a sua volta ao proscênio. 47

Poucas semanas depois da sua estreia, Baker desloca-se um pouco do seu show habitual, interrompe a chamada “danças exóticas” e inicia a preparação para um novo trabalho, que teria

47“Extraordinario o sucesso da Venus de Ébano, hontem no Cassino da Urca”. Jornal Globo, 11 de maio de 1939, pág. 4. Fonte : Biblioteca Nacional. 53

como carro-chefe a composição “O que é que a baiana tem?”, de Dorival Caymmi48. A música seria interpretada em língua portuguesa por ela:

A direção do Casino da Urca acaba de nos informar que Josephine Baker, querendo demonstrar a sua admiração pelas coisas de nossa terra, vae incluir em seu repertorio “O que é que a bahiana tem” a notavel criação de Carmen Miranda, apresentada todas as noites com ruidoso successo aos frequentadores do Casino da Urca durante a sua recente temporada.

Conforme a nota revela, Carmen Miranda, antes de viajar aos Estados Unidos, apresentou no Cassino da Urca o número musical “O que é que a baiana tem”, gravando a mesma composição para o filme “Banana da Terra”, em 1939. O intuito na experiência de Baker era criar um quadro com a música referida que abordasse o comportamento da “baiana”, levando o número para Paris e incluí-lo numa revista musical daquela cidade. Parece que a própria Carmen Miranda apoiou a iniciativa, “Agradeço seu interesse pela música regional brasileira, felicitando grande ideia de tornar conhecido o samba em Paris”49. Contudo, tal projeto não seguiu adiante, as produções em music hall foram afetadas pela entrada da França na Guerra (1939-1945) (WOOD, 2000). Além disso, Josephine Baker prestou serviços como espiã e artista contra o gerenciamento ideológico nazista tanto que, em novembro de 1942, foi considerada em óbito – desmentido pelo jornalista negro, Ollie Stewart50, que “a descobriu viva e ativa, fazendo serviço secreto para as tropas aliadas, no Marrocos, colônia francesa”51. O interessante a ser observado é que “O que é que a Baiana Tem”, assim como outras canções como “Boneca de Piche”, “Maria Boa”52, parecem ter sido algumas das composições brasileiras, registradas no repertório da artista. As letras foram encontradas entre papéis pessoais53 de Josephine Baker no seu castelo na Les Milandes, o qual foi obrigada a deixar em 1967, por dificuldades financeiras.

48Dorival Caymmi (1914-2008) nasceu em Salvador-BA, e estabeleceu residência no Rio de Janeiro desde 1938. Era cantor, compositor e violonista. Seu trabalho tinha como inspiração principal os costumes e hábitos do povo baiano. 49 “Josephine Baker vae lançar em Paris o samba-canção do Brasil”. Jornal Globo, 23 de maio de 1939. Fonte: Biblioteca Nacional. 50Ollie Stewart foi um dos primeiros jornalistas afroestadunidenses a ser designado pelo Departamento de Guerra dos Estados Unidos a trabalhar na Segunda Guerra Mundial, atuando no Norte da África e na Europa. 51Tradução livre: A colored repórter named Ollie Stewart discovered her alive and kicking, doing underscover work for the allied armies in French Marocco. Fragmento encontrado na coluna de Langston Hughes para o jornal New York Post. “Josephine”. New York Post, New York, 27 de março de 1964. Fonte: New York Public Library – Schomburg Center for research in Black Culture. 52Composição de Assis Valente (1911-1958). 53Material adquirido em 2003 pela Emory University de Atlanta, Geórgia. 54

Acrescente-se que, provavelmente, “Boneca de Piche” tenha sido incorporada na sua turnê pelos Estados Unidos, entre 1951 e 195254, num retorno ao país depois de 16 anos.

Apesar de receber artistas internacionais e incentivar a música estrangeira, o Cassino da Urca, pela lógica do Estado Novo (1937-1945), na esteira rolante do nacionalismo, incentivava os artistas a cantarem as “coisas da terra”. Josephine Baker releu a situação e empenhou-se em surpreender quem achava que ela apenas dançava com saiote de bananas. Ensaiou dia e noite, segundo a reportagem do Jornal Globo:

Figura 8: Desenhos dos figurinos de Josephine Baker para apresentações do número “O que é que a baiana tem?” no Cassino da Urca em 1939. Jornal Globo, Fonte: Biblioteca Nacional

(...) Depois de ouvir um disco de Carmem Miranda animei-me, o samba tem muito do meu rhythmo próprio, muito da minha alma americana formada na visão complexa do Harlem. Dahi nasceu a idea do meu novo número. Até ahi não houve dificuldade nenhuma. Estava resolvido que eu faria um número brasileiro e eu me dispuz a fazê-lo. Marquei os ensaios e comecei a aprender as musicas.‘O que é que a bahiana tem’ e ‘’. Mas foi muito difícil. Tenho ensaiado dias inteiros aqui neste palco, muitas vezes com sacrifício até do meu jantar. Mas venci. O número está prompto e vae ser levado depois de amanhã, sexta-feira, no show do jantar-dansante. (...) Os scenarios feitos para o meu número são deslumbrantes. Somente nos grandes theatros da Europa vi coisa parecida. A casa da Siberia teve a gentileza de

54“La Baker is back”. s/n, 1952. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 55

confeccionar o riquíssimo vestido de bahiana que usarei nas minhas apresentações.55

Josephine Baker, mesmo com sotaque francês, parece enegrecer a figura da “baiana” novamente, articula um conjunto entre o que ela identificou como “ritmo próprio”, certa sincopação vivida e a introdução do turbante ou do pano das costas no seu figurino, cujo tecido parecia ser de renda (Figura 8). É interessante pensar que esse conjunto correspondia mais à figura das quituteiras de acarajé do período (Figuras 9 – A a C; e 10), do que à baiana plástica apresentada por Carmen Miranda (Figura 11).

Figura 9A: Imagem da Apresentação de Baker no Jantar dançante do Cassino da Urca. Fonte: Jornal Globo, 1939. Biblioteca Nacional

55 “O que é que a bahiana tem no Cassino de Paris”. Jornal Globo, 24 de maio de 1939, p.2. Fonte: Biblioteca Nacional 56

Figura 9B: Figura 9C Fonte: Jornal Globo, 1939. Biblioteca Nacional

Figura 10: Quituteira Fonte: Instituto Moreira Salles56

56 Disponível em https://ims.com.br/por-dentro-acervos/o-tabuleiro-da-baiana/. Acesso em 11.fev.2019. 57

Figura 11: Carmen Miranda, s/d. Fonte: Instituto Moreira Salles

Através do Cassino da Urca e pela empatia da imprensa brasileira, em relação a sua imagem, Josephine Baker nos apresenta alguns deslocamentos interessantes nesse depoimento. Primeiramente, ao relacionar o samba com seu ritmo próprio – a saber a música negra dos Estados Unidos – ela retorna ao elo ancestral que une o samba e o jazz fazendo referência a sua vivência durante o movimento Harlem Renaissance, que reuniu e fomentou um celeiro de poetas, músicos, artistas de variedades e escritoras(es) na década de 20 instituindo uma escola orgânica transversal nas culturas negras estadunidenses da atualidade (LOCKE, 1997). O processo de imersão e tentativa de tradução de Baker na cultura negro-brasileira, como a circulação pelo terreiro de Mãe Adédé57 (Figura 12), meses depois do referido número, e observações cotidianas no mundo branco e mundo negro sugerem que a autoridade de Josephine Baker sobre si e suas negociações, nesse processo de interpretação dos códigos impressos nas letras das músicas (Figuras 13 e 14), levaram-na a ter participação significativa na criação da plasticidade do número, seja no aspecto visual, como no movimento. Por essa análise, digamos que Josephine Baker deslocava-se dentro da era dos nacionalismos e de um Brasil nacionalista movendo e confundindo as regras desse jogo.

57 “Josephine dansou na macumba!” Revista O Cruzeiro, 08 de julho de 1939. Fonte: Acervo MASP. 58

Figura 12: Imagens de Baker no Terreiro de Mãe Adédé em julho de 1939. Fonte: Acervo MASP

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Figura 13: Letra de “O que é que a Baiana Tem?” com anotações prováveis de Josephine Baker Fonte: Stuart A. Rose - Manuscripit, Archives and Rare Book Libray – Emory University

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Figura 14: Letra de “Maria Boa” Fonte: Stuart A. Rose -Manuscripit, Archives and Rare Book Libray – Emory University

Muitas dessas canções são inspirações negro-diaspóricas, escritas por imaginários de homens brancos, que se tornam válvulas criativas para intérpretes brancas(os), nos números de revista ou variedades. Quando interpretadas por artistas negras(os), mesmo que estrangeiras, como o caso de Josephine Baker e “O que é que a Baiana Tem”, a criação congelada na música (e na performance de artistas como Carmen Miranda), ganha um recorte mais palpável, menos fixo e com mais nuances. Conforme sinalizado previamente, a “baiana” foi personagem tipo de Teatro de Revista. Essa convenção foi inspirada na história de uma vendedora de laranjas chamada Sabina, mulher negra e ex-escravizada. Segundo Veneziano (2013) não há consenso histórico a respeito de qual espetáculo teria inaugurado a personagem; tanto na Revista “República” de Arthur Azevedo, 61

quanto na “O Bendegó” de Oscar Pederneiras e Figueiredo Coimbra – ambas estreadas nos inícios de 1889, no Rio de Janeiro – já existiam duas personagens respectivamente que referendavam a Sabina. As atrizes que interpretavam a “baiana”, em cada uma das peças, eram brancas – Ana Manarezzi, grega; e Aurélia Delorme, brasileira. A respeito da performance da artista que performou o papel em “República”, Veneziano aponta:

A velha baiana real, a feia e gorda Sabina, no teatro, transformara-se em um papel especial com o qual a atriz grega enlouquecia as plateias, requebrando os quadris com desenvoltura escandalosa, ao som do tango. (VENEZIANO, 2013: 180).

De forma preconceituosa e acrítica o texto da pesquisadora respalda o desempenho da atriz que interpretou a baiana ressaltando sua execução corporal e repercussão. O “uso dos quadris”, apropriado dos circuitos corporais africanos, parece ter gerado impacto na plateia. A equação que envolve Sabina, Ana Manarezzi e a personagem é um tanto complexa e elucidativa, consideradas as interfaces entre raça e gênero. No texto de Veneziano há um respaldo em informar que a imagem de Sabina, mulher negra, que serviu de inspiração para a personagem, foi evoluída para a mulher grega e branca, quando esta interpretava a baiana no palco. Haveria, então, desvantagem à imagem da mulher negra, em relação à mulher branca, que ocupa um lugar de privilégio ao apropriar-se de “personagem negro” na cena. A personagem criada a partir de uma mulher negra, ia compondo um imaginário que cruzava com o real, aludia a ele, mas também dele destoava. Sabina vendia laranjas na rua da Misericórdia junto à Santa Casa, no Rio de Janeiro, em 1888. Segundo Tinhorão (apud VENEZIANO, 2013), por “irreverência” dirigida à carruagem da princesa imperial por parte de estudantes de Medicina que, geralmente, reuniam-se em frente ao tabuleiro dela, o chefe da polícia imperial ordenou que Sabina se retirasse do local, impedindo-a de vender sua mercadoria. Ainda segundo o autor, parece que os estudantes, imbuídos de espírito republicano, realizaram passeata contra a polícia imperial e utilizaram como principal argumento a proibição dirigida à vendedora Sabina, que também participava do ato: “(...) fechando o desfile, a preta Sabina, de turbante branco, camisa de babados de renda, saia de roda, balangandãs e chinelinho...” (VENEZIANO, 2013: 178). O ato propiciou arrecadamento financeiro que foi destinado a Sabina. Tal acontecimento repercutiu na época, período difícil para o regime imperial que já indicava sinais da sua dissolução oficial. No entanto, o caráter político-racial que circunda a situação de Sabina parece 62

ter sido dissolvido na personagem, inspirado em sua realidade e interpretado por uma mulher branca, a qual só ressalta os meneios corporais daquela. Dessa forma, acredita-se que, apesar da alusão, ocorre também distorção localizada num conflito expresso entre a presença e ausência. Há a presentificação de Sabina, como elemento simbólico que inspira a personagem; e a ausência, quando se ressalta seu possível constructo corporal de forma idealizada e possivelmente exagerada. Não há relatos de que Sabina rebolasse “escandalosamente os quadris”, e sim que ela “pesadona, bamboleia-se, entre dois calouros que a levam, de braço” (TINHORÃO apud VENEZIANO, 2013: 178). Ao retomar fragmentos da notação de José Ramos Tinhorão citado por Veneziano (2013) vê-se que há também uma curadoria fenotípica, quando se delega a personagem para atrizes que não correspondem ao biótipo de Sabina. Isso porque o corpo real era considerado indesejável para interpretar a personagem em plena pré-república pós-abolição, que se iniciava com meandros racialistas. Se a revista se baseava no recurso da alusão e não da ilusão, como podemos explicar essa discrepância contornada por higienização racial? A baiana da revista alterou seu perfil para outra personagem importante nessa discussão, a partir da década de 1920: a mulata. Essa, também, interpretada por mulheres brancas, segundo Veneziano, em suas primeiras aparições. No entanto, a Companhia Negra de Revistas contraria essa tendência, já que na estreia em 1926 traz essa personagem interpretada por artistas negras. Outras mulheres sucederam essas primeiras, consolidando alguma presença negra na cena, como foi o caso de Déo Maia, também parceira cênica de Grande Otelo. Apesar da fusão com a mulata, a baiana continuou a alimentar imaginários, principalmente de compositores brancos que se destacariam no cenário musical com tonalidades ufanistas e divulgadas pelas revistas e cassinos. Esse mesmo contexto promoveria cantoras como Carmen Miranda, mas também apresentaria estreitos espaços pelos quais artistas negras se colocavam. Em 1937, Grande Otelo e Deó Maia atuaram na temporada de um espetáculo cujo título era similar à música que o havia inspirado: “No Tabuleiro da Baiana”58. Essa composição foi premiada no carnaval carioca daquele ano. Aproveitando o sucesso do momento, Jardel Jércolis e Nestor Tangerini criaram uma revista carnavalesca com o mesmo título.

No tabuleiro da baiana será o reflexo do carnaval carioca com todas as suas atrações e seduções. As mais deslumbrantes e animadas marchas, os mais provocantes sambas serão interpretados de maneira surpreendente pela

58Composição de Dorival Caymmi. 63

cantora regional máxima que é Déo Maia, a maior revelação do teatro, nestes últimos tempos59.

Déo Maia foi destaque nessa produção cantando a música em parceria com Grande Otelo. Dois quadros nessa revista seriam constantemente reprisados, durante a carreira do ator, com diferentes atrizes: “No Tabuleiro da Baiana” e “Boneca de Pixe”, que já tinha sido incluída em 1930, na revista “Diz Isso cantando”, de Oduvaldo Viana e Luiz Iglezias. Infelizmente ainda não foi localizado registro no qual se aprecie a performance de Déo Maia e Grande Otelo, mas é possível extrair algumas considerações desses deslocamentos de artistas negras(os) cantando músicas populares de compositores brancos. Mesmo em contato com percepção suspeita acerca das culturas negras, artistas negras(os) perfuravam estigmas e incrementavam, a partir da experiência vivida, as interlocuções culturais diaspóricas. Isso pode ser visto, ao assistir Grande Otelo apresentando a cena “No Tabuleiro da Baiana”, em parceria com outras artistas

Quadro: “No Tabuleiro da Baiana”60

Ele – No tabuleiro da baiana tem Ela – Vatapá, oi; Caruru, oi; Munguzá, oi; Tem Umbu, oi; Prayoyô.

Ele – E se eu pedir você me dá O seu coração, Seu amor de Yayá

Ela – No coração da baiana tem Ele – Sedução; Canjerê; Ilusão; Candomblé

Ela – Pra você Ele – Juro por Deus; Pro meu sinhô do Bonfim Quero você, Baianinha inteirinha pra mim

Ela – Sim, mas depois O que será de nós dois Seu amor; É fugaz; Enganador

Ele – Tudo já fiz; Fui até no canjerê Pra ser feliz; Meus trapinhos juntar com você

Ela – Vou me passar; Vai ser mais uma ilusão No amor, quem governa é o coração61.

59S/T, Correio da Manhã, 5 de janeiro de 1937, p.09. Fonte: Biblioteca Nacional. 60Ver Imagem do Vídeo I. A cena é do filme Carnaval Atlântida (1953) no qual o ator interpreta o número “No tabuleiro da Baiana” com a atriz Eliana Macedo, é interessante observar a intimidade de Grande Otelo com a dança remetendo ao cortejamento do Mestre-Sala à Porta-Bandeira. 61BARROSO, 1937 apud “‘No tabuleiro da baiana’, a música vitoriosa do ano que findou”. Diário Carioca, 10 de janeiro de 1937, p.18. Fonte: Biblioteca Nacional 64

Partindo do imaginário construído acerca da figura da vendedora na Bahia, citam-se referências negras-diaspóricas do ponto de vista culinário e religioso (Vatapá, Mungunzá, Canjerê, Candomblé). Na performance de Otelo com Gal Gosta, por exemplo, em 198162, podemos identificar – além de um manuseio cômico – os usos sincopados de voz e corpo, dimensionados em passos e dinâmicas vocais. Inscrições de certa tradução de quem se (re)apropria de algo que foi manipulado por cognições de branquitude em sua origem. É o caso de músicas populares compostas por homens brancos, que referenciam certa cultura negra em suas letras. Déo e Otelo repetiram as interpretações das tipificações que apresentavam na Companhia do Jardel Jércolis, apresentando o mesmo número em 1938 para a plateia da Urca: duas personagens relacionadas ao universo popular carioca – particularmente, a atmosfera que rodeava os batuques, as festas e o cotidiano das pessoas que dele faziam parte. Nesse quesito, há forte tessitura improvisacional, que não é só mérito do contexto dos gêneros cênicos tidos como populares, mas também do sistema de improvisação requintado, no qual as estéticas centro africanas bantos e oeste africanas iorubas são desenvolvidas, ou seja, a partir de compreensões nas quais o corpo é uma estrutura fundamental na complexa construção do saber em cena. Analisar e criar narrativa para esses artistas, não é só imaginar comportamentos a partir de documentos e relatos disponíveis, é considerar essa transmigração ancestral em “territórios negros fragmentados pela diáspora” (RATTS, 2006: 69) realocando o que se deve e movimentando imagens estáticas impostas por sistemas branqueados.

1.1.3 Boneca de Piche

Ao analisar as informações a respeito da performance que Grande Otelo e Josephine Baker realizaram em conjunto, é necessária profunda atenção aos elementos reunidos, porquanto alguns deles não sejam discursos construídos pelos artistas. O que se tem até então: os relatos de Grande Otelo, as fotografias de Medina na revista O Cruzeiro, cópias da canção Boneca de Piche e o texto do repórter Edmar Morel. Por conseguinte, é necessário cautela ao tecer narrativa a respeito desse encontro em conformidade com a investigação estética e para corroborar com as demandas dos corpos negros em diáspora.

62. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=K9G3daDFszE&feature=related > Acesso em 05.out.2010.

65

Afinal, a letra da canção denota profundos estigmas de gênero e raça, aplicados à época na qual ela foi construída, bem como problematizadas nas discussões contemporâneas, que se tornam potentes a cada momento. Parte-se da ideia de que não é a letra da música, mesmo que com nítidas apropriações de elementos culturais negros brasileiros, que está contida num sistema complexo negro- diaspórico e sim os contornos e subtextos que os intérpretes aplicam a ela. Nesse caso, Josephine Baker e Grande Otelo com os outros participantes da cena que foi performada no Cassino da Urca. Assim, segue-se o desafio de descortinar, apesar dos limites documentais, as possíveis interferências que as(os) atuantes da situação cênica realizaram, tentando transplantar-se para aquela atmosfera, a fim de examiná-los como protagonistas de experiências. Tarefa pretensiosa, se considerarmos a delicadeza e a efemeridade do ato cênico, compreendendo que a música escrita por Ary Barroso e Luiz Iglézias, em 1939, é caricatura baseada num determinado ângulo, acerca das relações afetivas entre pessoas negras. Isso significa que ela está impressa de construção imagética com alicerces em preconceitos arraigados, relacionados às subjetividades do homem negro e da mulher negra. Para tal, trago algumas pontuações a respeito de como “Boneca de Pixe” pode ter sido capturada por Baker, Otelo e músicos supondo como se reverberou o tema da música nos seus imaginários. Nesse sentido, analiso as pequenas transformações ocorridas na letra original, a partir de comparação feita entre a gravação de Carmen Miranda e Nestor Amaral (1939), e Josephine Baker (1951). Além de comparar grafias extraídas do espetáculo “No Tabuleiro da Baiana” da Companhia do Jardel Jércolis, do booksongs de Ary Barroso – que se entende como escrita mais próxima da composição matriz - e dos papéis de Baker, onde encontramos pequenas anotações significativas que nos aproximam de como o quadro foi performado. Conforme justifiquei inicialmente, “Casamento de Preto” não era o título do número e sim o tema eixo de uma ideia a partir da música “Boneca de Pixe”, que já havia sido interpretada por Grande Otelo e Déo Maia na revista “No Tabuleiro da Baiana”. “Boneca de Pixe” fora gravada por Carmen Miranda em 1939, antes de Josephine Baker e Otelo a interpretarem no Cassino da Urca, em 23 de junho de 1939, conforme anúncio (Figura 15) que publicava: “No show apresentação do novo e excepcional quadro de Josephine Baker: “Batuque da Senzala” e “Boneca de Pixe”63. Indica-se, por meio dos relatos de Otelo e do período (julho/1939) referente

63 Anúncio no Jornal O Globo, 23.06.1939. Fonte: Biblioteca Nacional. 66

a matéria produzida pela revista O Cruzeiro, que essa tenha sido a data na qual Josephine Baker e Grande Otelo estiveram juntos em cena pela primeira vez. Não se tem exatidão do impulso específico que inspirou Ary Barroso e Luiz Iglesias a compor “Boneca de Pixe”; sabe-se que esse título é o mesmo de um conto popular a respeito de um macaco que roubava bananas num sítio. Até que um dia o dono do lugar começou a pregar-lhe armadilhas. Sem sucesso, o animal escapava facilmente. Assim, o dono do sítio resolveu construir na beira do rio uma boneca feita de piche. O macaco aproximou-se e começou a galanteá-la; ela obviamente continuava muda. Ao se despedir da boneca, encostou- lhe uma mão e esta ficou grudada, assim como todos os outros membros do seu corpo na medida em que tentava desfazer-se da armadilha.

Figura 15: Anúncio do show de Josephine Baker no Cassino da Urca. Fonte: Biblioteca Nacional.

É claro que, como qualquer conto popular, “Boneca de Piche” tem suas variantes e não se sabe ao certo onde e quando surgiu. Piche é uma substância de cor preta utilizada para a preparação do asfalto e, na estória, ela é manipulada como uma tinta na boneca, a fim de atrair e prender o macaco.

Já na letra de Barroso e Iglezias temos a seguinte estória:

Ele: Venho danado com meus calos quente Quase enforcado no meu colarinho Venho empurrando quase toda gente Ela: Eh !Eh! Prá ver meu o benzinho, prá ver o meu benzinho

Ela: Nego tu veio quasí num arranco 67

Cheio de dedo dentro dessas luva Bem que o ditado diz: “nego de branco” Ele: Eh! Eh! Ela: “É sinar de chuva! É sinar de chuva! É sinar de chuva!”

Ele: Da cor do azeviche, da jabuticaba Boneca de piche, é tu que me acaba Sou preto e meu gosto Ninguém me contesta Mas há muito branco com pinta na testa Ela: Tem português assim nas minhas água Que culpa eu tenho de sê boa mulata Nego, si tu aborrece as minhas mágoa

Ele: Eh !Eh! Eu te dou a lata, eu te dou a lata Eu te dou a lata.

Ele: Não me farseia, ó muié canaia Si tu me engana vai haver banzé Eu te sapeco um rabo de arraia

Ela: Eh !Eh!

Ele: E te piso o pé, e te piso o pé E te piso o pé

Ela: Da cor do Azeviche, da jaboticaba Boneca de Piche, sou eu que te acaba Tú é preto e teu gosto Ninguém te contesta Mas há muito branco com pinta na testa Tú é preto e teu gosto ninguém te contesta Mas há muito branco Com pinta na testa64

Por meio de uma relação estabelecida entre o conto e a letra da música, é possível identificar que há uma personagem feminina como uma das figuras principais, senão central, a tomar pela intitulação da música. O “piche” marca o corpo dessa personagem, e essa demarcação é desencadeada por um conjunto de características consideraras próprias no imaginário de quem o cria. De algum modo, o dono do sítio acreditou que a boneca de piche atrairia o macaco.

64 Cópia da versão original retirada do Songbook- Ary Barroso. A série Songbook foi criada em 1988 com ineditismo, porque reproduz de forma minuciosa música e letra – revisadas pelos próprios autores. No caso do referido Songbook, indica-se que a revisão das letras foi realizada por Jairo Severiano. A 1ª edição com dois volumes, dedicada a Ary Barroso, foi lançada em 1994. Não há comprovação evidente de que essa versão seria idêntica à canção original, que inicialmente teria o título “Namoro de Preto”, segundo o depoimento de Grande Otelo ao Programa Roda Viva, em 1987. 68

Na música, boneca de piche e mulata são sinônimos em um mesmo significante, apesar de o termo mulata aparecer no vocabulário para descrever a mulher que é filha de uma relação inter-racial, constituinte de uma pigmentação menos escura. Inclusive tanto a Boneca de Piche do conto quanto a da música são apresentadas como objeto de desejo. Esse não é só vinculado à demarcação da cor pele, mas sim a todo um corpo de pensamentos duros atribuídos à mulher negra e sua ancestralidade africana que, através da engenharia colonial, passa a ser considerada promíscua e sexualizada, quando não bizarra. Temos aí, também, uma referência – senão imbricação – com a personagem da “mulata” versão mais contemporânea da baiana e acrescida de caráter mais pernóstico no Teatro de Revista (VENEZIANO, 2013). Ambas as estórias também evocam ideias atravessadas por um clima de virilidade masculina. O macaco é ardiloso, ladrão e galanteador. O homem que é galanteador, violento, sabe dos seus atributos como negro, mas tem receio da ameaça da sedução do homem branco em relação à parceira. Situação também encontrada no universo revisteiro na qual a Boneca de Piche, assim como a mulata, tem o seu coração disputado entre o “português” e o “malandro”, ambas personagens-tipo de Teatro de Revista. Não é por acaso que, na versão cantada por Grande Otelo e Déo Maia, na Companhia do Jardel Jércolis, há alterações em relação à canção original. A parte “ Não me farseia, ó muié canaia/ Si tu me enganas vai haver banzé/ Eu te sapeco um rabo de arraia/ E te piso o pé, e te piso o pé.” é substituída por “Nega, danada, tu não me falseia/ Si tu me enfezar vai haver folia/ Eu te sapeco um rabo de arraia/ Quebro a padaria, quebro a padaria.” (ANTUNES, 1996: 240 e 241.) Padaria seria um território ícone relacionado à pessoa portuguesa, em especial ao homem português, em piadas e imaginários brasileiros. Banzé, palavra de raiz quicongo significa “rolo, confusão, gritaria e tumulto” (LOPES, 2012) e seria trocado por folia, denotando o mesmo significado. Outra particular relação que se pode fazer, que a princípio não demonstra ter aproximação imediata por desconhecer as reais bases inspiradoras da composição, é a comum comparação da pessoa negra a um macaco, o que se configura em uma ofensa racial por colocar em xeque o lugar de inteligência do indivíduo, comparando-o a um ser considerado irracional. E, segundo, por associar fenotipicamente a pessoa negra a um não humano. Tanto em um contexto quanto no outro, há profundo anseio em diminuir a qualidade humana da pessoa negra. Subjacentemente não é equivocado arriscar que a letra musical pode ter sido composta num mix de inspiração no conto, contato com comunidades negras e nas personagens-tipo de Teatro de Revista, como os referendados no parágrafo anterior. 69

Por outro lado, na letra musical “Boneca de Piche” é apresentada uma relação de construção de afeto em processo, condensando uma situação na qual empatia, amor e atração coexistem. No entanto, tanto no conto, quanto na música, a pessoa branca está presentificada, seja à espreita – como a criadora da armadilha para o macaco –, seja na ameaça ao relacionamento pré-conjugal: “Tem Português assim nas minhas águas”. Por sua vez, na letra isso é colocado através da voz da mulher negra que sinaliza seu lugar como objeto de desejo branco, consequentemente uma possível ameaça ao homem negro. Na voz do homem negro também ocorre o testemunho de violência que é, por assim dizer, um vício: “Eu te sapeco um rabo de arraia e te piso o pé65”, um modo de dizer que a mulher sofrerá consequências físicas, se trair o parceiro. Ao articular esses elementos, para interpretar a cena, pensando em Josephine Baker e Grande Otelo como seus protagonistas, surgem inúmeras suspeitas a respeito de uma orientação estigmatizada, no âmbito da análise, uma vez que se supõe a prática esquematizada por Luiz Peixoto - um diretor branco. Se a ideia era um “casamento de preto”, não apenas um casamento, mas um casamento de preto, muito do imaginário da outridade branca se revelou. É presumível supor que as mentes, fundadas em princípios burgueses, racistas e eurocêntricos, considerem um casamento de preto como “vulgar, cômico, descontrolado, indisciplinado e mais do que tudo promíscuo.” (GOTTSCHILD, 1996:9) pois não é celebrado, pelo que se entende na opinião comum, com as formalidades, pomposidades e regras das famílias brancas aristocráticas. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, toda essa construção pode ser revertida em entretenimento para a cultura branca, se enquadrada em lugar que não interfira radicalmente na estrutura de privilégios, como os palcos de cassinos. Os participantes da cena tinham certa ciência desse imaginário e para eles aquele show era a possibilidade de jogar com a plateia de forma irônica. Usavam-no como subterfúgio para confundi-la, iludi-la, porque o contexto do music hall oferece significativos engendramentos para isso. Por meio do improviso também se revela a fundamentação negro-diaspórica. Assim, esse encontro, a despeito dos constructos brancos, foi metamorfoseado para uma possibilidade, um espaço deslocado no qual podemos reconhecer correspondências ancestrais.

Baker fez o papel da noiva, e Otelo representou o noivo. Além dessas duas personagens, havia os convidados e os músicos da festa completando mais ou menos um elenco de 12 a 14 pessoas, todas negras. Dentre os músicos estavam

65“Rabo de arraia” é um movimento praticado na Capoeira , uma espécie de rasteira que pode ser executada nesta prática para derrubar o adversário ou adversária. 70

nomes conhecidos como Heitor dos Prazeres, Geraldo Pereira e Armando Maçal. (BRITO, 2011: 113)

E pela primeira vez, no palco do Cassino da Urca, estaria em cena um elenco formado só por artistas negras e negros. Esse “estar” de artistas negros no palco do Cassino da Urca constituía uma desobediência à lógica racista, um deslocamento por uma rachadura, aproveitando adequadamente o momento de desatenção branca, do espaço aristocrático- burguês. Esse deslocamento desobediente também constitui inscrituras culturais negras, na medida em que os participantes realizam uma espécie de releitura do que é dito. Ao comparar pequenas modificações na letra da música entre a versão original e as versões encontradas na coleção de Baker pode-se verificar interessantes interlocuções. A Figura 16, contém apenas a parte cantada por Josephine Baker; na Figura 17 notam-se grifos, rabiscos e acréscimos de escritos como o “Hê Hê ...” já presente na versão original cantada por Carmen Miranda e Nestor Amaral. Contudo, aparecem divisões e interferências – o que sugere acréscimos, na medida em que a proposta foi artisticamente praticada. Por exemplo o termo “canaia” (presente na letra original) é substituído por “danada” na versão de Baker.

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Figura 16: Letra da música “Boneca de Piche” /parte que Josephine Baker cantava. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library – Emory University.

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Figura 17: Letra da música “Boneca de Piche” com anotações prováveis da Josephine Baker. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - EmoryUniversity.

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Figura 18: Pentagrama com adição à canção “Boneca de Piche” Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - EmoryUniversity.

Em outro documento (Figura 18) tem-se um pentagrama, desenhado e preenchido pela nota que se refere à seguinte frase “Ah! Ô nêga vamo saravá ... Ubanda....”. Nesse caso, identifica-se a importante presença de elementos que não aparecem na versão da letra original ou da cantada por Carmen Miranda, em 1939. Essa expressão pode ter sido colocada ao longo dos ensaios entre a turma de artistas negros que se preparavam para o show junto com Baker. “Saravá” – uma bantuização da expressão “saudar” ou “salvar” (LOPES, 2012) e “Ubanda” que supõe ser “Umbanda”, termo que significa “religião afro-brasileira de base africana, resultante da assimilação de diversos elementos a partir do ancestrismo banto e do culto aos orixás” (LOPES, 2012: 250). Tanto Baker, quanto Otelo, imprimem esses termos em suas versões, separadamente, após a experiência no Cassino da Urca. Em gravação (1951), Josephine inovou na letra, e sua performance vocal, ao final da música, apresenta “ooo..iiii..uuu...” cadenciado, além de um “Umbanda”. Pode-se identificar o mesmo nas gravações do número musical de Otelo, em parceria com outras artistas. O ator, geralmente, sobrepondo os textos das parceiras, canta-fala: “Vamo 74

Saravá” “Umbanda”, num tom cadente, tonal e agregado a outras expressões que o artista utiliza durante momentos improvisados66. Essas acessões garantiriam para a cena assinatura própria, acrescida posteriormente ao que se considera a versão original. Ao pesquisar, no Google67, “Boneca de Pixe”, esses termos aparecem na música e são encontrados em outra gravação (1942) de Carmen Miranda e Nestor Pascoal, diferente da versão de 1939. No entanto, a forma como é cantada por Baker e Otelo não foi cooptada, pois existe aí um apelo vocal ancorado em subjetivação sincopada que antecede e atravessa os dois com elementos fundantes que aprenderam e aprendem a subverter processos colonizantes na cultura do divertimento. Este argumento respalda a possibilidade de inserção em espaços excludentes em conjugação com o exercício de correspondências ancestrais. E é disso que trataremos a partir de agora estabelecendo a tentativa de sistematizar essas variáveis da experiência negra no campo do entretenimento, a partir de um paradigma negro e diaspórico, buscando um recorte para um pensamento a respeito do corpo negro.

1.2 Metodologia sincopada: Josephine Baker e Grande Otelo inspirando possibilidades para um método decolonial na abordagem do corpo negro

Numa proposição para desenvolver uma historiografia do negro, Beatriz Nascimento (2018) aponta como dificultosa a tarefa de encontrar um campo metodológico que não se conforme com as conceituações que correspondam “a posição do dominador frente aos seus dominados”, tão comum na história. A pesquisadora, através do seu artigo, mobiliza a inferir que o ato de concebimento de uma abordagem contra hegemônica é, antes de tudo, perceber a forma como concepções dominantes aparecem e são administradas num processo de busca. Nascimento com três conceitos exemplos preenche seu apontamento:

A “aceitação”, a “integração”, a “igualdade” são pontos de vista do dominador. Tomando como exemplo estes três conceitos poderemos demonstrar como se torna difícil para o negro, que se propõe estudar a discriminação racial (e não só ela em si, mas toda a história do negro brasileiro). Conceituar do seu ponto de vista sua situação e suas aspirações dentro da sociedade dominante. Torna-se ainda mais difícil a metodização

66 Isso fica explícito na interpretação com Mara Abrantes, em 1955, no espetáculo “A Grande Revista” cuja gravação da música citada está disponível em https://www.youtube.com/watch?v=A_kW7rx-EPA; além de ser notado na parceria com Bety Faria em 1979, em número apresentado na TV Globo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AACQFmmW2bM 67 Site que hospeda e desenvolve uma série de serviços e produtos baseados na Internet. 75

deste estudo, pois impregnado de uma cultura em todos os sentidos branca e europeizada se faz necessário perguntar-se a si próprio se determinados termos correspondem à sua perspectiva, se não são somente reflexos do preconceito, repetidos automaticamente sem nenhuma preocupação crítica. Ou seja, se não estamos somente repetindo os conceitos do dominador sem nos perguntarmos se isto corresponde ou não à nossa visão das coisas, se estes conceitos são uma prática, e caso fossem uma prática se isto é satisfatório para o negro. Somos aceitos por quem? Para quê? O que muda ser aceito? O que é ser igual? A quem ser igual? É possível ser igual? Para que ser igual?( NASCIMENTO, 2018: 55)

Logo, a autora provoca que conceito e método em certa medida são partes indissociáveis, se aplicarmos um ou outro a estudos, sejam históricos ou não, que narrem trajetos e projetos da população negra, em campos teóricos ou empíricos. Sem dúvida dirigir a escrita acerca de memórias negras que tenham caráter concêntrico com seus círculos históricos e filosóficos é, em princípio, exercício de maturidade e retomada de si, principalmente quando a autora ou o autor dessas teias narrativas é também uma pessoa negra. Nesse contorno, Beatriz do Nascimento auxilia este trabalho apoiando o seu deslocamento para focos de visão, localizados em outras extensões – menos visíveis, na área acadêmica; e íntimas, nas relações extra universidades – onde métodos se contornam com costuras sutis e inteligentes. Refiro-me ao aprendizado em terrenos afro-religiosos onde escutar a si é sabedoria ancestral, que conclama o respeito aos medos para entendê-los, defronta a dor para nela não sucumbir e usa a raiva para seguir na mudança, confluindo com Audry Lorde (1981). Infelizmente nem sacerdotisas de religiões afro, nem Nascimento, nem Lorde, são intelectuais cujos discursos são compartilhados nas faculdades de história ou de artes cênicas, porém existem pesquisadoras(es) negras(os) – ou não – cujas investigações desobedecem à hegemonia curricular, compartilhando outras possibilidades epistemológicas com estudantes em sala de aula, inclusive abordando as intelectuais citadas. Por razões, ainda coloniais, metodologias – mesmo as ditas contemporâneas – parecem ser criadas em prol de uma pesquisadora “neutra”, educada a não ouvir a própria ideia para caçar a tal dura erudição. Esta segue empurrando para reforçar conceitos que, em superfície e profundidade, só calam vozes e, quando essas são femininas e negras, a imposição é ainda mais severa, porque aí ela encontra nova meta que é aniquilar qualquer raiva que destonalize os patriarcalismos cientificistas. É lúcido recapitular que, durante o mestrado, eu estava capturada por um perfil acadêmico substanciado pela ideia de que o distanciamento em relação ao objeto de pesquisa 76

era eficaz para um resultado preciso, imparcial, e que esse pressuposto ajudaria no alcance de análise sólida. Naquela ocasião, havia a necessidade de legitimar por parte de uma teoria moderna de investigação caracterizada pelo hiato entre teoria, prática e experiência vivida. Contexto que dificulta a passagem da emotividade/afetividade da pesquisadora ou pesquisador no seu discurso. Já que este, se atravessado por tais aspectos, arrisca-se numa não validação acadêmica. Lembro-me de que, quando comecei a investigar a trajetória de Grande Otelo no Teatro de Revista, recusava penetrar mais estruturalmente nas relações étnico-raciais do seu tempo. Defendia que ao situar de forma transversal esse assunto, meu objetivo central seria desviado. Não foi falta de atenção ao tema, o qual inclusive foi a base da minha educação em artes cênicas com artistas engajados68. A realidade era que ingressar radicalmente nesse quesito seria infiltrar em mim. Tentava seguir a todo custo as normas disciplinares das ciências ocidentais colonizantes, procurava ser obediente epistemicamente (MIGNOLO, 2008). Sem questionar certas conceituações, ao contrário do que incita Nascimento (2018), seguia ancorada numa perspectiva de teatro brasileiro, na qual a abordagem do processo de racialização do país aparece de forma irrelevante para as questões da estética.69 Quando o assunto era tratar algo da vida pessoal de Otelo, principalmente ao perpassar a problemática racial e sua relação com o artista, não conseguia discuti-la devidamente, evitava questão, embora ela já estivesse posta; afinal, era um artista negro no palco. Mesmo nessa pseudo negação, através de Otelo, concluí que a presença negra nos gêneros cênicos populares (circo, teatro de revista, teatro de variedades) parecia mais presente que em qualquer outro estilo teatral.70

68Desde 1998 tenho a oportunidade de trabalhar com artistas negros e negras que são fundamentais para o meu processo em contínua formação, em particular cito três profissionais fundamentais no início da minha caminhada na cidade de Salvador/BA: a atriz e diretora Taynã Andrade; a dançarina e coreógrafa Nadir Nóbrega; e o diretor Luís Bandeira. Além disso, trabalhei durante seis anos na Cia de Teatro Popular Cirandarte-BA, onde tive o privilégio de conviver com pessoas que se preocupavam com a intrínseca relação entre arte e política. 69No contexto de pesquisas referentes ao teatro de revista, por exemplo, cito dois trabalhos importantes que não consideram a questão racial como ponto transversal ou apenas a apontam de forma superficial: VENEZIANO, Neyde. Não adianta chorar. Teatro de revista brasileiro... oba! Campinas: UNICAMP, 1996; RUIZ, Roberto; BRANDÃO, Tânia. O Teatro de revista no Brasil: das origens à primeira guerra mundial. Rio de Janeiro: INACEN, 1984. Todavia, é interessante ressaltar o trabalho acerca da Companhia Negra de Revistas realizado pelo historiador GOMES, Tiago de Melo. Um espelho no palco. Identidades sociais e massificação da cultura no Teatro de Revista dos anos 20. Campinas: Unicamp, 2002 e o de MENDES, Miriam. A personagem negra no teatro brasileiro. São Paulo: Ática, 1982. Ambos apresentam um olhar que caminha na perspectiva investigativa acerca da presença negra e/ou de artistas negras e negros nos palcos brasileiros. Além disso, há MARTINS, Leda Maria. A cena em Sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995. Essa pesquisa estabelece relações entre as experiências negras do teatro brasileiro e estadunidense. 70Conferir o Capítulo 1 do trabalho de BRITO, Deise Santos. Um Ator de Fronteira: A Trajetória do ator Grande Otelo no Teatro de Revista Brasileiro do Século XX. 162 p. Dissertação (Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. No tópico 1.3, cito informações a respeito 77

A documentação que confirmava a atuação de Otelo, no Teatro de Revista, foi encontrada e a descrição da sua trajetória nesse estilo ia se finalizando; contudo algo, ainda, precisava ser dito. Como a maioria das personagens que Otelo interpretava tinha relação com o samba, havia uma carência de subsídios teóricos para prestar assistência às minhas análises, por isso fui levada à leitura da pesquisa de Claudia Matos (1982) sobre o discurso malandro que foi fundamentado, na etapa final da escrita da dissertação, pelo contato com o livro “Samba, o dono do corpo” de Muniz Sodré. O autor ressoou o que se privava naquele momento, era importante respaldar o vínculo de Otelo com o samba, expressão cultural com a qual o ator tinha intimidade, afeto, vivência e participação ativa. Sodré (1998), ao discorrer sobre samba, alerta para a importância da síncopa, processo rítmico presente também em jazz e blues, o que me auxiliou na construção da trilha para uma compreensão mais analítica do encontro do ator com a atriz Josephine Baker, em 1939. Síncopa é “a ausência no compasso da marcação de um tempo (fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte” (SODRÉ, 1998, 11); ela incita quem ouve o samba ou jazz, por exemplo, a preencher o tempo vazio com a marcação corporal ou qualquer outra dinâmica de movimento (SODRÉ, 1998). Essa dinâmica aparece numa espécie de entre lugar sonoro movimentando-se policentricamente, com versos e reversos do corpo que se prontifica em atitudes assimétricas seja na sua instância gestual ou vocal. O entre lugar, situado pelo autor, foi desenvolvido por Matos (1982) numa configuração que ela denominou fronteira. Ela conceitua esse termo a partir de uma perspectiva da filosofia do malandro que se desloca por entre lugares opressores e oprimidos mantendo-se na guarda do morro, do lugar que é subalternizado71. “Sua poética está na fronteira entre o carnaval e o meio do ano, é uma poética de dialogia” (MATOS, 1982: 52). Lugares revelados pelo corpo em exercício, enunciando o que se diz e como se diz por meio de gestualidades, ritmos, atitudes, crenças, modos de dizer, formas de fazer, territórios de viver, caminhos de construção de afetos. Essa atitude de fronteira assume caráter fluido, e ao mesmo tempo quebrado por limites e demarcações próprias; ajustadas, tanto numa presentificação territorial de classe, como em aportes físicos -corporais e culturais. Esses são modelados, enquanto se modelam em

de algumas artistas como Rosa Negra e Ascendina Santos. É pertinente ver, também BARROS, Orlando de. Corações de Chocolate – A História da Companhia Negra de Revistas (1926-27). Rio de Janeiro: Livre Expressão, 2005. O autor escreve a respeito da trajetória da Companhia Negra de Revistas tratando de informações importantes acerca de integrantes do grupo. 71Após contato com os estudos de Cláudia Matos e Muniz Sodré, eu assumi a palavra fronteira no título da minha dissertação de mestrado, eu denominei o artista Grande Otelo um ator de fronteira. 78

contranarrativas, normas subversivas, confundido o interlocutor e negociando incessantemente com o meio através de pequenas possibilidades, numa transmigração entre locais que – além de serem constructos pautados na condição econômica – são, também, racializados. Nesse sentido, esse gesto de fronteira revestido de síncopa, engendrada numa fusão dos pensamentos de Matos com os de Sodré toca a ideia de fronteira, abordada pela rede de intelectuais decolonialistas72, que defende “pensamento de fronteira” gerido entre zonas demarcadas pela diferença colonial (que produziu e produz dinâmicas discriminatórias fabricadas por uma indústria mental hiper organizada). Para as(os) decolonialistas – não só a rede que se configurou nos anos 2000 mas também as bases que lhe sustentam - intelectuais negras(os) – o século XVI é o período no qual a invasão da América e assunção dos impérios espanhol e português fermentam o discurso moderno que criou e subalternizou populações africanas, indígenas, judaicas e muçulmanas (BERNADINO- COSTA; GROSFOGUEL, 2016). Tal discurso é a fundamentação do sistema “mundo-moderno-colonial”, e ele é permeado em sua totalidade por dois princípios organizadores: o racismo e o sexismo. Ambos sustentados em capturar lugares de corpos decidindo a respeito de quem pensa, quem publica e quem existe. Assim, um lado dessa fronteira é ocupado pelos discursos hegemônicos sustentados pela ideologia colonial, ou seja, o saber e o ser, processados como verdades únicas; o outro seria a parte subalterna constituída por povos e conhecimentos que foram inferiorizados pelas estruturas discriminatórias criadas pelo colonizador. O colonizado viveria num espaço simbólico transitando entre esses lugares com dinâmicas reações a sistemas de capturas executadas por padrões comportamentais brancos- europeus. Como populações que foram subjugadas, em particular as populações negra-africana e negra-diaspórica, essa caminhada reativa longe de ter um caráter linear, teria o seu trajeto formulado por tempos e contratempos.

72 Em 2015, a partir de uma participação como pesquisadora no II Encuentro Latinoamericano de investigadores/as sobre el cuerpo y corporalidades em las culturas (Colômbia), eu passo a ter conhecimento da existência da rede de pesquisadores decoloniais. Naquela ocasião, eu participei como ouvinte do GT: Cuerpo Y Literatura e foi em uma das comunicações que a ideia de pensamento de fronteira foi citada como conceito gestado nesse grupo de investigador(a)es, a(o)s quais em sua grande maioria latino-americana(o)s. Quanto a isso, dois momentos seguintes ao primeiro contato com a literatura decolonial foram importantes. Ainda em 2015, iniciei minhas atividades como artista educadora no Núcleo de Educação Étnico-Racial da prefeitura da cidade de São Paulo e, dentre muitos presentes, fui agraciada com a leitura do texto “Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir, e re-viver” de Catherine Walsh, cuja perspectiva teórica caminhava em direção aos estudos descoloniais – pedagogias que transpassam, deslocam e invertem práticas e conhecimentos hegemonicamente herdados e tornam possíveis outras epistemologias acerca do ser e do saber (WALSH, 2009). 79

Se tomarmos o exemplo de Grande Otelo, no final dos anos 30, como experiência vívida desses contínuos coloniais, veremos que ele criou condições para respaldar-se nas fronteiras constituídas por meio das próprias fronteiras subjetivas. Isso porque ele estava inserido em contexto no qual as regras do jogo eram ditadas por monopólios de uma elite racista, autoritária e populista – o que, sob diversas configurações, atravessava os discursos artísticos, populares ou não. Por conseguinte, a articulação entre fronteira e sincopação sinalizou-me os elos ancestrais entre Baker e Otelo e criou uma óptica particular para estudar seus corpos. Tal olhar é distante daquele do momento do Mestrado, no qual eu recusava descortinar a questão racial imbricada, na crença de que, sem abordá-la, a retórica seria aceita pelos quadrados brancos acadêmicos vigentes, construídos segundo geometria colonial. Agora, numa espécie de reintegração da pesquisa as minhas subjetividades – que incluem traumas, amores e dores – a síncopa não é apenas compreendida como conexão de ancestralidade para o entendimento dos corpos dos dois artistas. Ela é tomada como caminho eleito que cursa em fronteiras, a fim de compreender o que é palpável e o que está invisível, mítico nessa investigação. Entre o tempo fraco e o tempo forte existe uma prolongação, o que considero aqui como aspecto revelador de heterogeneidade, movimento e (re)assimilação de si. É “um pulo”, é “algo no ar” (SILVA, 2018)73 e aparentemente “menos enraizado” corroborando com o que Sodré (1998) escreve, citando Duke Ellington: “uma terceira pessoa que não está ali.” Quando as primeiras ideias desta pesquisa foram delineadas há seis anos, procurava-se analisar as corporeidades de Josephine Baker e Grande Otelo, mediante documentos disponíveis acerca dos dois artistas: bibliografias, videografias, periódicos e depoimentos registrados. Assim, para a realização de tal desejo um objetivo geral foi estabelecido: evidenciar as correlações entre as corporeidades cênicas desses artistas. A partir dessa meta, quatro objetivos específicos foram elaborados: 1) analisar como as manifestações culturais afro-estadunidenses e afro-brasileiras fomentaram cenicamente os seus corpos; 2) discutir como Josephine Baker e Grande Otelo conjugavam suas referências corpóreas, oriundas de práticas culturais de matrizes africanas (banto e ioruba), como o jazz e o samba, com estruturas cênicas dos gêneros ligeiros franceses, orientando-se pelas ideias de ancestralidade e entrelugar (MARTINS, 1995) e investigando indicativos de resistência e (re)

73 Conversa com a musicista Gisele Silva, em 18 de outubro de 2018. Nesse diálogo, a percussionista descreveu metaforicamente o que seria o efeito da síncopa para ela. Nesse depoimento ela descreve o processo rítmico como algo que pula, que está “menos enraizado” e “mais no ar”. 80

existência nessas corporeidades; 3) localizar situações de dupla fala (MARTINS, 1995) em seus discursos cênicos; e 4) reunir intersecções entre as duas corporeidades analisadas. Entretanto, sabe-se que um projeto – apesar de conter pontos que orientam o caminho da pesquisa – está vulnerável a encontros nesse trajeto. Uma espécie de verdade prospecta é surpreendida por dialogias que desestabilizam a seguridade do plano. Nesse sentido, protoverdades foram questionadas reforçando necessárias revisões. As ideias de ancestralidade, entrelugar e dupla fala (MARTINS, 1995) cederam espaço para o desenvolvimento das noções de deslocamento, invólucro, desobediência e ocupação. Essas noções foram construídas a partir do contato com a documentação que aborda as experiências de Josephine Baker e Grande Otelo. Das ideias iniciais (ancestralidade, entrelugar e dupla fala), o aspecto da ancestralidade foi realocado como nutriente para a noção de invólucro. Vale ressaltar que, organicamente, as outras duas antigas ideias (entrelugar e dupla fala) continuam a pulsar nesses novos princípios gerindo subjacentemente seus movimentos conceituais, em conjunto com outros aspectos negro-diaspóricos (síncopa e atitude de fronteira) e africanistas. Desse conjunto alguns serão enfatizados, a partir de experiências localizadas nos traços de Baker e Otelo. Na rota investigativa, a palavra corporeidade foi dispensada. A preocupação da pesquisa concentrou-se em dirimir e descortinar a ideia de corpo negro dentro de uma conjuntura epistemológica crítica e negra. Assim, deslocamento, invólucro, desobediência e ocupação tornaram-se sustentáculos para o entendimento desse corpo compreendendo que na própria nomenclatura – corpo negro – há uma fronteira que demarca epistemologia particular. O mais relevante é apresentar que os constructos biográficos e teóricos, acerca de Josephine Baker e Grande Otelo, estimularam ação revisitativa às antigas noções centrais encontradas no projeto de pesquisa. Ela e ele nasceram em ambientes onde a pobreza, o racismo e o sexismo entrelaçavam-se num jogo inteligente e perverso. Tanto uma quanto o outro viviam em fronteiras no lado demarcado para a subalternidade, aquela na qual estavam delineadas e difundidas as construções a respeito do corpo negro, todas essas perpassadas e pensadas pelo olhar branco e europeu em sua raiz. Ao penetrarem incisivamente na profissão de artista, Baker e Otelo crescentemente se distanciam da situação da pobreza no que se relaciona a uma experiência vivida, mesmo assim o racismo e o sexismo permanecem restaurando as configurações de controle acerca da ideia de corpo negro, ou seja, apesar do trânsito entre territórios, permanecia uma fronteira simbólica 81

dimensionada por cor, fenótipo e gênero. Nos campos artísticos em que os dois circulavam, veremos que essas configurações tinham evidências muito especificas. Diante desse aspecto passou-se a acreditar que as experiências de Otelo, assim como as de Josephine Baker, inspira a revisar as regras das ambiências coloniais artísticas e como as pessoas de origem subalterna internalizaram seus princípios nos corpos, “Porém, os sujeitos coloniais que estão nas fronteiras físicas e imaginárias da modernidade não eram e não são passivos. Eles podem tanto se integrar ao desenho global das histórias locais que estão sendo forjadas como podem rejeitá-las.” (BERNADINO-COSTA e GROSFOGUEL, 2016) Para identificar tais práticas que revelassem aspectos tensionais por parte de Baker e Otelo, em relação aos circuitos vividos, em vez de somente indicar atitudes de conformação, foi necessária a reelaboração do meu olhar para os documentos existentes a respeito dessas experiências. A fase do meu Estágio de Doutorado Sanduíche74 nos Estados Unidos foi fundamental para a consolidação dessas revisões. O objetivo principal do projeto no exterior era coletar documentos relacionados a vida e obra de Josephine Baker. Todavia, uma primeira coleta de materiais já tinha sido realizada em julho de 201575. Nesse período, tive o primeiro contato com escritos pessoais da artista, assim como jornais com textos publicados acerca dos seus trabalhos, além de uma vasta lista de biografias76. Em 2017, novamente em território estadunidense, antes de retornar à coleta documental referente a Baker, optei por organizar os documentos achados na primeira viagem. Filtrando a organização com informações que sinalizassem aspectos relacionados ao corpo. Até ali havia variados tipos de documentos coletados: discursos de Josephine, fotografias, jornais, além de vídeos e gravações fonográficas feitas pela artista, que tinham sido encontrados na plataforma do Youtube. Nessa primeira etapa de catalogação dos documentos, já que meu objetivo era identificar a conjugação das referências de matrizes africanas de Baker com os gêneros artísticos nos quais ela trabalhava, estabeleci duas macropastas. Na primeira, constavam os discursos de Baker, em primeira pessoa; na segunda, discursos de outras ou de outros a respeito dela. Considero o sentido de discurso segundo uma multiplicidade de formas e veiculações de informações e

74Foi possibilitada devido ao financiamento cedido pela CAPES, entre agosto de 2017 e março de 2018 75 Realizei uma viagem apara Nova York, com financiamento próprio, a fim de investigar documentação na New York Public Library - Shomburg Center – Research for Black Culture . 76Registram-se mais de 10 biografias. 82

impressões a respeito de si, da outra/do outro, assim como a respeito de assuntos ou interesses vinculados a quem fala em primeira pessoa ou acerca/em nome de alguém. Assim, na primeira pasta constavam: romances escritos pela artista, cartas manuscritas, cartões postais, cartas datilografadas, textos para imprensa, textos para palestras. Nela, também, estavam inclusas as autobiografias construídas em parceria com outras pessoas. Já na segunda foram separadas seções por tipo de documentação: biografias, vídeos, filmes, fotos, desenhos, reportagens de jornais e revistas. Todas elaboradas a respeito dela por terceiras ou terceiros. Nessa fase catalográfica foi identificada quantidade significativa de pessoas brancas com discursos textuais a respeito da Josephine Baker e do corpo dela (e o mesmo padrão foi percebido na documentação referente a Grande Otelo). Isso explicitava, nesse primeiro momento, a relação próxima que Baker estabelecia com grupos de artistas brancos, principalmente depois de mudar para Paris, em 1925. A identificação étnico-racial dos jornalistas foi possível visto que alguns periódicos traziam as fotografias dos autores ao lado das colunas, principalmente a partir da década de 50. Tal verificação foi também devido à posição política do jornal e de uma imprensa negra estadunidense que pôde ser localizada na coleção NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor), antiga entidade militante negra cujos documentos encontram-se reunidos na Biblioteca do Congresso. Ao mesmo tempo, a partir da leitura de uma das biografias, The Josephine Baker Story de Ean Wood, listei artistas negras e negros que foram próximos a ela, tanto no sentido profissional quanto pessoal. Nessa ocasião ocorreu o que metaforicamente denomino de sincopação na pesquisa. Entre a presença (tempo forte) dos documentos, escritos por brancos, e a ausência (tempo fraco) de documentos escritos por negros, algo pulsou invisivelmente, e a primeira provocação documental revelou-se. Como outras artistas negras, pensadores, pessoas que tiveram mínima relação com ela, percebiam Josephine Baker? Senti falta de depoimentos a respeito de Baker por parte de outras pessoas negras, inclusive as da família. Assim, quando retornei aos arquivos esse foi o recorte para coletar material. Num primeiro contato com o que eu denomino de “fontes negras”, notei que havia nuances significativas que poderiam ajudar no meu entendimento a respeito do corpo da artista, aproximando-me mais das bases negro-diaspóricas, já que a imprensa branca e os colegas brancos de Josephine Baker apresentavam-me uma dinâmica de percepção que girava em torno de um exotismo a respeito dos atributos do seu corpo e da sua dança. 83

A artista exibiu-se com o saiote de bananas nos anos 20, no seu contínuo artístico notou- se dinâmica importante no perfil de profissional voltado ao music hall, delegando atenção para voz e performance no palco. A exoticidade aplicada ao corpo por parte de pessoas brancas, por meio de saia e movimentos, parece ter sido transferida como meio para analisar a personalidade dela, considerada pitoresca e controversa77. Quando ela segue e amplia o repertório com canções em outros idiomas, além do Inglês e do Francês, a exoticidade é estendida: “Provavelmente a entertainer mais bem paga do mundo, La Baker, 45 anos, irá agora compartilhar seu exótico repertório com a América e a amada Paris.”78 Além disso, a objetificação do seu corpo também é exposta quando a citam com frequência como toast of Paris que num sentido de tradução literal seria “a torrada de Paris” ou fazem questão de sublinhar como o News week escreveu “La Bakhair – que primeiro ganhou fama por não usar roupas...”79. Na imprensa estadunidense há oscilante relação. Entre a década de 30 e 50, ela é anunciada em boa parte dos periódicos como “a performer que deixou os Estados Unidos pela França em 1920” ou a que desistiu da cidadania estadunidense para ter a cidadania francesa, após se casar com um francês. Na década de 60, pós participação na Marcha de Washington80 com o quadro político transformado, ela volta a ser uma “American Singer”81, divulgada como a artista que conquistou Paris por apresentar o Charleston no Folie Bergere82. Por sua vez, na imprensa brasileira, especificamente em 1939, há um olhar tão virilizado, a partir das próprias percepções do setor da imprensa em relação ao corpo negro, quanto a influência de reclames internacionais :

Josephine Baker, o cartaz permanente de Paris, a bailarina bronzea – que há 20 annos tem feito fremir de enthusiasmo os novayorkinos inquietos e os londrinos sisudos, está novamente de passagem pelo Rio, em viagem para

77“The Banana girl: Josephine Baker: a lion abroad but more like a Lamb at home”. The National Observer, 06 de abril de 1964. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 78Tradução livre. “ Problaby the world´s highest-paid entertainer, La Baker, 45, will from now on share her exotic repertoire with América and her beloved Paris.” “Josephine Baker: world´s top exotic” .S/N, 03 de julho de 1951. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 79“La Bakhair – who first won fame by wearing no clothes…” Tradução livre. In “La Bakhair Returns”, Newsweek, 12 de fevereiro de 1964. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 80 Manifestação política ocorrida em 28 de agosto de 1963, organizada por ativistas que lutavam a favor de direitos civis para a população negra e contra a segregação racial nos Estados Unidos. Dentre as pessoas que organizaram a marcha, estava Martin Luther King Jr, advogado e pastor. O evento ocorreu na cidade de Washington D.C e contou com mais de 250 mil pessoas. 81“Josephine Baker´s Chateau for orphans faces closing”. New York Times, 02 de junho de 1964. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 82“Man about Town”. The Evening Bulletin, 28 de fevereiro de 1964. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 84

Buenos Aires onde vae cumprir um contrato de um mez, no Casino da capital argentina. Sua presença a bordo do “Massila “, hoje entrado de Bordéos e escalas, atrahiu os jornalistas e photographos aos quaes ella recebeu com aquelle “It” todo seu, feito de attitudes e de gestos rhythimicos, griphados pelo seu sorriso acariciador. Criavada de perguntas e de pedidos para pousar, Josephine foi dizendo no seu francez pontilhado de exclamações, da alegria com que revia a capital do Brasil e os amigos e admiradores que ella fez, na curta temporada de alguns annos atrás, entre nós. (...) Eu voltarei diz Josephine Baker – A’ hora em que estiver circulando a ultima edição do Globo, Josephine Baker, debruçada á amurada do “Massilia”, com uma vaga tristeza nos olhos, vê desaparecer, ao longe, a areia branca de Copacabana, os edifícios altos que se levantam para o céo, afirmando o nosso progresso. Mas Josephine voltará . Voltará para queimar mais ainda a sua pelle bronze sob o sol quente do Brasil. Voltará para sorrir aos cariocas com seus dentes muito claros, que annunciam permanentemente uma pasta dentifrícia qualquer ... Voltará mas não cantará mais “Yes, Welove Bananas”. Voltará para mostrar ao Rio os sucessos maiores de Paris e Nova York. O sorriso de Josephine para a objectiva do Globo é uma promessa formal: “ Oui, jereviendrai”.83

A notícia acerca da chegada de Josephine Baker circulava com êxito, e a divulgação da sua imagem expondo a aparência, seguia em conjunto com a notícia: o “sorriso”, “os dentes muito claros”, “a pelle de bronze”. Além disso, eram ressaltados “attitudes e gestos rhythimicos” impregnados na comunicação corporal de Baker. Ao eleger o discurso de Josephine Baker sobre si e o discurso de outras pessoas negras a respeito dela, como recorte documental principal, senti que estaria mais próxima dos meus objetivos nesta pesquisa. Além de me propor uma abordagem realmente decolonial na investigação. Essa experiência na busca documental referente ao trabalho de Baker indicou que eu deveria fazer o mesmo com os documentos que já coletados acerca de Grande Otelo no Brasil. Foi importante reorganizar e até mesmo buscar novos documentos a respeito dele, segundo essa nova perspectiva. Quando avaliamos a relação da imprensa com Grande Otelo, a configuração se altera, pois o sentido “exótico”, por exemplo, não aparece diretamente ou em constância. Porém mantém-se um padrão fazendo referências ao fenótipo do artista, sua cor e estatura, como documentado na revista O Cruzeiro de julho de 1939. Nesse periódico ele é descrito como o

83“Baker cantará no Brasil”. Jornal Globo, 27 de março de 1939. Fonte: Biblioteca Nacional. 85

“´Grande Otelo´, o negro mais feio do mundo e um grande artista...”84; e três anos antes no Diário Carioca “O preto Otelo como uma das novidades de Jardel Jércolis.”85 Após os anos 60, há um empenho da imprensa em elucidar o ator como patrimônio nacional, anunciando seus novos e antigos trabalhos, assim como as homenagens a seus prolongados anos de carreira. Há, também, uma espécie de “denúncia”, ressaltando as dificuldades econômica e emocional do ator, usando seus depoimentos. Isso pode ser evidenciado através de alguns títulos: “Othelo in Revista: Ele é considerado patrimônio artístico brasileiro, mas não recebe o preço justo de sua arte”86 ; “Grande Otelo, 60 anos”87; “Grande Otelo – 60 anos de vida, 52 de carreira”88; “Grande Otelo não quer ser uma peça de museu”89 Ele passa a se configurar como uma espécie de patrimônio histórico das artes cênicas brasileiras com imagem impressa num ator com amplo e dinâmico currículo: experiente no Teatro de Revista e ingressante numa filmografia variada participando do movimento do Cinema Novo90. Ao mesmo tempo era fixado numa moldura, sem conseguir desfrutar das regalias como artista legitimado. Nas décadas de 80 e 90 acentua-se a instabilidade na carreira, ocasionando papéis com quase nenhuma expressividade, como é o caso do seu personagem – Eustáquio - na Escolinha do Professor Raimundo, dirigida e roteirizada por Chico Anísio91. Além disso, as duas biografias conhecidas a respeito do ator foram escritas por homens brancos, sem contar o conjunto de teses e dissertações que foram elaboradas por pessoas não negras92. Considerar apenas as percepções dessas visões para responder às perguntas da minha

84Morel, Edmar. A Sambista Josephine Baker. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 de julho de 1939, n 35, p.8. Fonte: Acervo MASP. 85 Coluna “ Theatro”, Diário Carioca, 18 de maio de 1935. Fonte: Biblioteca Nacional. 86 “Othelo in Revista: Ele é considerado patrimônio artístico brasileiro, mas não recebe o preço justo de sua arte”. Jornal Última Hora, 22 de fevereiro de 1972. Fonte: Biblioteca Mário de Andrade. 87 “Grande Otelo, 60 anos”. Jornal do Brasil, 17 de outubro de 1975. Fonte: Biblioteca Mário de Andrade. 88 “Grande Otelo – 60 anos de vida, 52 anos de carreira”. O Globo, 18 de outubro de 1975. Fonte: Biblioteca Mário de Andrade. 89 “Grande Otelo não quer ser uma peça de museu”. S/N, 02 de setembro de 1980. Fonte: Biblioteca Mário de Andrade. 90 Grande Otelo atuou em produções como “Rio Zona Norte” (1957) e “Macunaíma” (1969) 91Programa transmitido pela Rede Globo a partir de 1990. Muitos atores e atrizes desse programa tinham atuado em décadas anteriores no Teatro de Revista, cinema ou rádio, são alguns deles: Costinha, Zezé Macedo e Chico Anísio, que era o idealizador e protagonista da série com o personagem Professor Raimundo. 92Grande Otelo e Josephine Baker já foram biografados com distintas abordagens. Em primeira instância, existem as biografias que servem de base para posteriores trabalhos acadêmicos: “Grande Othelo – um artista genial”, de Roberto Moura (1996); “Grande Othelo – uma biografia”, de Sérgio Cabral (2007); “A cleopatra do jazz: Josephine Baker e seu tempo”, de Phylis Rose (1990), sendo esta última obra a única referência biográfica localizada em língua portuguesa referente a atriz Josephine Baker. No âmbito acadêmico, acerca do ator Grande Otelo encontram- se quatro dissertações e uma tese: “Fazer rir , Fazer chorar: arte de Grande Otelo” (2005), no qual a autora Ana Karicia Dourado escreve sobre a trajetória do artista desenvolvendo uma abordagem sobre a construção do processo de interpretação do humor e do trágico em sua carreira; “Grande Otelo/Sebastião Prata: caminhos e desafios da memória”, de Tadeu Pereira dos Santos (2009), neste trabalho é evidenciado a relação patrimonialística 86

tese seria incongruente com as conceituações que podem emergir desses dois corpos, percebi que terminaria ressaltando uma percepção hegemônica em relação ao corpo negro. Mesmo com algumas abordagens problematizadoras (HIRANO, 2013; SANTOS, 2009), me pareceu que a perspectiva dominante ainda estaria sustentando um certo padrão de análise. Assim, como prolongamento de um tempo que repercute em outro, pulando invisivelmente, e numa estratégia de sincopação com demarcadores que se apresentaram diante do contato com as fontes, foi se desenvolvendo um método sincopado. Ele é uma abordagem em relação aos documentos que rearticula lugares de fala, reconstrói mundos e recria antigos caminhos, estes disponíveis a novas percepções cênicas e sonoras. Essa atitude, que mobilizou o foco documental, atenta-se para a verticalização do deslocamento dos lugares de fala da perspectiva hegemônica para a artística subalterna, sendo fundamental ressaltar que “Pensamos lugares de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (RIBEIRO, 2017: 66). Nesse sentido, é seguida a travessia na qual muitas(os) intelectuais negras(os) já estavam, fluindo na crescente necessidade e importância de escrever e nos dizer. Diante desse novo olhar, pude elaborar pensamento a respeito do corpo negro, especificamente desses dois artistas, dialogando com os documentos a partir de referenciais teóricos, em sua maioria, de autoras e autores negros; além de alguns aspectos de culturas africanas. Essas são as escolhas dos lugares nos quais as subjetividades negras são extraídas, para além de uma questão de pele, é uma noção de experiência, constituindo o que em alguns círculos intelectuais negros consolidou-se como epistemologia da afrodescendência93. Assim como os discursos de Josephine Baker e Grande Otelo, a respeito de si e das sensações de outras pessoas negras acerca dela e dele, as bases teóricas de pensadoras e pensadores negros relacionadas ao corpo, diáspora e ancestralidade também representam

da cidade de Uberlândia com o ator; “Um ator de fronteira: uma análise da trajetória do ator Grande Otelo no teatro de revista brasileiro entre as décadas de 20 e 40” (2011), escrita por Deise de Brito e concentrada na atuação do artista no teatro musicado de revista, assim como na relação do mesmo com o samba; “Grande Otelo: um pícaro na cena brasileira” (2012), de Camila Delfino da Silva, que discute a atuação do artista nas suas passagens pelo teatro e cinema; e a tese “Uma interpretação do cinema brasileiro através de Grande Otelo: raça, corpo e gênero em sua performance cinematográfica” (2013), de Luis Felipe Kojima Hirano. 93 Metodologia da Afrodescendência é articulada por um grupo de pesquisadores negras e negros do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará, um dos seus principais interlocutores é o intelectual Henrique Cunha Jr. Para ele, a pesquisa afrodescendente é uma metodologia que relaciona a ação e a investigação, almejando uma dialética entre ação – pesquisa-ação. O ponto de partida é o campo e o conhecimento sobre o campo escavando a construção explicativa teórica como consequência e não exatamente como fonte. Para conhecer mais, conferir um de seus textos de trabalho: Metodologia Afrodescendente de Pesquisa (CUNHA JÚNIOR, 2006). 87

nuances perpassadas por afetos, tradução de raiva, indignação e microprojetos de emancipação intelectual. Contudo, de forma alguma, essas escolhas representam pensamento homogêneo no seu conjunto, pelo contrário, cada documento, referencial teórico, assim como experiência de corpo (a de Baker e Otelo), dialogam num processo de fricção. Porque quando se impõem uma estática e uma não heterogeneidade à produção intelectual e artística de certos grupos humanos, especificamente os de pessoas negras, acontece, também, o racismo. E por ser ele um dos elementos estruturantes de um pensamento colonial, é necessário reinventar formas e caminhos de recusá-lo. Ao instaurar um diálogo entre corpo negro e história, ancestralidade e documentos, riscos apresentam-se, haja vista que o corpo vive trajetos de invenção e reinvenção constantemente, articulando-se aos lugares, ambiências e ideologias sob infinitas variáveis. Os documentos sejam eles textuais, iconográficos, fonográficos ou videográficos são importantes para a estruturação e reescritura de ideias sobre o corpo, mas eles têm limites epistêmicos que necessitam ser levados em consideração. Assim, alguns questionamentos surgem: como relacionar a variada rede documental acerca dos artistas com pensamentos negro-diaspóricos focando na discussão do corpo e para o corpo? Como relatar a respeito dos corpos negros de Josephine Baker e Grande Otelo sem cair nas armadilhas de um debate “colonial-racista-sexista” que considera o lugar do corpo não branco como algo estático, estereotipado e sem nuances? Dentre os muitos documentos coletados, quais devem ser os eleitos para atingir os objetivos do trabalho? Como deve ser realizada essa seleção? Nessa tessitura, verificou-se que os discursos de fontes negras sobre os dois, especificamente, colegas de trabalho e familiares, mostravam-se mais dinâmicos e não estáticos sem referências a exotização, estigma ou patrimonização, pelo contrário a maior parte mostrou diversidade de opiniões. Dos colegas de Josephine Baker, selecionei alguns escritos de Geofrey Holder, Newell Jonhnson, Langston Hughes, Roseta Lenoire e da sua irmã Margaret. Quanto aos interlocutores de Grande Otelo, surgiram os depoimentos de Abdias do Nascimento, Elisete Cardoso, Watusi, Jacyra Silva, e Haroldo de Costa. Cabe ressaltar que mapear esses relatos foi uma tarefa árdua pois a maior parte deles não estão reunidos no mesmo acervo. Alguns nem estão disponíveis em documentação escrita, mas em entrevistas e comentários, principalmente no caso de Grande Otelo. 88

Quanto aos discursos sobre si, foram priorizadas as entrevistas, cartas, depoimentos e autobiografias compartilhadas, como é o caso de Josephine Baker que escreveu seis e Grande Otelo que parece ter acompanhado e participado da sua primeira biografia em conjunto com o pesquisador Roberto Moura (1996 ), além de ter escrito um livro de poemas e composições de samba, ambas as tipologias também consideradas como documentos. Vale notar que não foram descartados “registros de autores brancos” a respeito dos artistas. De outro modo, alguns deles foram utilizados para identificar informações gerais sobre os estilos dos gêneros de entretenimento nos quais eles trabalharam, assim como, foram usados para coletar informações de ano e localidade a respeito dos espetáculos. Além disso, ocorreu o uso de fotografias e videografia, fundamentais para as narrativas do Ciclo 4 e Ciclo 5. Por fim, após a exposição da construção metodológica do trabalho, caminhemos para a discussão acerca de cada princípio do corpo negro, elaborado na investigação: deslocamento, invólucro, desobediência e ocupação. Por conter o caráter que interliga os outros, o princípio de deslocamento é o tema do próximo ciclo.

89

Minha última prece: ô meu corpo, faça sempre de mim um homem que questiona! (FANON, 2008: 191)

CICLO 2 DESLOCAMENTO: OS SENTIDOS PARA O CORPO NEGRO

O ato de deslocar-se, o deslocamento, tem sentidos peculiares para as pessoas negras. Se pudermos listar aspectos que esse termo implica, no contexto de homens negros e mulheres negras, nas Américas, veremos que é preenchido de variados significados e interpretações. Ao ter na sua trajetória marcas violentas de pedagogias que o desumanizaram, o corpo negro encara o deslocamento como choque gerado pela travessia forçada. Porém, é pela necessidade de se desconectar de um sistema que não lhe respeita, que ele imprime diferentes percepções no seu “deslocar-se”. Essa capacidade de ressignificar o deslocamento implica também restaurar a importância do movimento no contexto africano. Ao deslocar-se e ter como bagagem presenças do mundo invisível – antepassados que teceram estórias e modos de viver – a pessoa negra formula o seu interagir com o mundo pelo movimento. Assim, em movimento, ela se desloca, encontra pares, aproxima-se de diferentes perspectivas e cultiva uma zona de envolvimento relacional que pulsa cada vez mais forte como invólucro pleno. Atrelado à palavra diáspora, o deslocamento qualifica essa ideia com significações que flutuam, entre o passado e o presente, suscitando diversos eixos: refazer-se em vida de movimento; o invisível; a dor; o envolvimento. Assim, a partir das experiências de Josephine Baker e Grande Otelo, este ciclo propõe-se a discorrer sobre tais dimensões.

2.1 Refazer-se em vida de movimento

Nos materiais autobiográficos, biográficos e de depoentes relacionados a Josephine Baker e Grande Otelo percebi que, além de movimentos e gestualidades corporais, a passagem e o trânsito migratório entre cidades eram situações presentes nas respectivas experiências. Baker também vivenciou prática migratória, com alcance internacional da vida, obra e imagem mais extenso do que a de Otelo. Dentro dos Estados Unidos, antes de ingressar no espetáculo Shuffle Along, Josephine Baker participou de grupos de variedades que se apresentavam em cidades de norte a sul do país, vivenciando o estado errante de artista e o enfrentamento de dinâmicas e diversas faces da 90

segregação. No início da carreira na França, ela percorreu algumas capitais europeias apresentando performances, danças, em paralelo aos ecos estrondosos de suas aparições na Revue Nègre. Durante a Segunda Guerra transitou de fronteira a fronteira, articulando sutilmente a saída de perseguidos pela Alemanha Hitleriana, através das negociações nos altos estratos sociais que frequentava. Em 1952 circulou durante meses por países da América Latina denunciando a falácia que era a democracia estadunidense. A sua fala crítica, problematizando a segregação racial dos Estados Unidos, estava incorporada na sua voz que paria palavras da menina de 12 anos, que viu e sentiu sua comunidade ser vítima da violência de grupos supremacistas brancos em Saint Louis (BAKER, BOULION, 1977). Nesses interpercursos, percebemos a destreza de uma mulher em comunicar-se com as várias frentes sociais, aristocráticas, burguesas ou militantes. No decorrer da vida, a imagem de Baker transformou-se em seu cartão de visita; seu sorriso, sua arma; e as palavras, uma espécie de munição. Seria muito reducionista dizer que Grande Otelo saiu de Uberlândia para São Paulo e desta capital foi para o Rio de Janeiro onde fixou sua morada. Podemos considerar que essas três cidades são locais que nos ajudam a entender a história do seu corpo; certamente elas não quantificam seus trajetos, tampouco são suficientes para nos mobilizar a construir uma reflexão sobre a complexidade desses trânsitos. Não são os pontos de chegada ou saída que importam aqui, mas sim os passos percorridos entre um e outro. As fugas de Otelo dos seus tutores, as faltas em sets de filmagem, a busca nos morros cariocas para um refúgio e vida noturna significam mais do que os termos possam conotar e denotar, é preciso penetrar no que está submerso. Josephine Baker falece, ou encerra o seu ciclo no mundo visível, em 12 de abril de 1975 na França. A despedida de Grande Otelo desse mesmo mundo ocorre em 26 de novembro de 1993, num aeroporto em Paris. Ele receberia um prêmio pela carreira de ator no cinema, no Festival de Nantes. Agrada-me a ideia de pensar que, talvez, ele tenha ido abraçar, uma última vez, a energia de Josephine Baker ou (re)encontrá-la, como símbolo de uma recepção de boas- vindas para o plano invisível. São apenas narrativas-tentativas, eu sei que a força vital é circundada por mistérios e segredos que nos deslizam em agradáveis surpresas. Portanto, este ciclo preocupa-se em tratar dos sentidos dos deslocamentos, aqueles que estão ao meu alcance e posso acessar, partindo da minha intuição. Os ingressos, tanto dele quanto dela, em equipes Mambembes que podiam ser companhias de Revista, de melodrama e de teatro de variedades, são entrelaçados a travessias 91

ou a “formas de ser” permitidas e condicionadas pelos processos desses dizeres artísticos. O Variedades, por exemplo, tinha algo particular, e essa peculiaridade refere-se à aceitação de habilidades, práticas ou talentos diversos que estivessem em interlocução direta com o público, sem quartas paredes ou psicologismos, apesar de não excluir completamente esses últimos em certos números ou apresentações dependendo de recursos interpretativos e repertório de cada artista (ROCHA, 2017). Adestradores de animais, mágicos, apresentação de grupo musical, troupe de anões, dançarinas(os) de Maxixe94 (Brasil), malabaristas, dançarinas(os) de Cakewalk95 e Sapateado (Estados Unidos), entre outros. Cada um poderia ser um tipo especial de atração para a plateia que se mantinha fiel, de acordo com seu interesse, no desempenho do artista cujo celeiro de ideias deveria estar em atualização, segundo necessidades políticas e climatização sociocultural do momento. As companhias que apresentavam peças, revistas ou números de variedades, de cidade em cidade, lidavam com o acaso, com a vulnerabilidade das caminhadas, com as surpresas de cada lugar, onde faziam suas paradas, além do inexato contexto que iriam encontrar. Apesar de parecer um quadro instável, é absolutamente inegável o que essa cultura da não segurança proporciona para a(o) artista, formando uma cátedra de intelectuais que se especializam em administrar o próprio corpo e suas possibilidades cênicas criando interlocuções entre seus pares e o público. Quando imagino artistas negras(os) inseridos nesse contexto, não vejo só pessoas formadas por esse panorama, mas sim presenças que funcionam como cimento e acabamento que possibilitam a concretude do que é esse mundo cênico tão cheio de fragmentação e improviso, lançados para plateias agitadas e heterogêneas (ROCHA, 2017).

94 Dança gestada por negros no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Teve grande repercussão entre o final do século XIX e início do século XX. Dentre suas influências estão a polca, o lundu e a habanera. Esse é um gênero musical cubano, também chamado de Tango – Habanera. O Maxixe foi considerado pelas famílias brancas como dança promíscua e lasciva. Também conhecida como “tango brasileiro”, exerceria influência no surgimento do samba. A denominação “Maxixe” é referência a um fruto, cuja origem vem de uma planta rasteira. Por essa razão, o nome foi realocado para a dança já que ela era considerada uma dança excomungada por ter sido criada e dançada pela população negra (EFEGÊ, 2009). 95 Dança cuja combinação perpassa pela sátira de danças formais europeias e pelo uso de movimentos ou passos de danças africanas. Ela foi gestada entre a população negra escravizada no sul dos Estados Unidos. Era uma das danças mais apreciadas pelas famílias escravocratas, que promoviam competições entre cativas(os) e davam um pedaço de bolo para cada vencedora e vencedor. O bolo era um alimento raramente consumido por quem era escravizada(o). Por isso, o nome Cakewalk. Cake=bolo e walk=passo. O mais interessante de se verificar no cakewalk é que quem dançava fazia gestos exagerados e imitações das maneiras de pessoas brancas. Algumas vezes, as pessoas que dançavam esse estilo, carregavam um balde de água na cabeça (GLASS, 2007). O cakewalk originaria outro estilo musical, entre o final do século XIX e início do século XX, o Ragtime. 92

Eram comuns, no início do século XX, artistas negras(os) que participavam de companhias de variedades (GOMES, 2004) cujo caráter nômade, se realocado num contexto brasileiro pós-abolição, acompanha a necessidade de reconfiguração de um corpo negro oficialmente liberto, embora não socialmente livre. Quando sai de Uberlândia, cidade de nascimento, Otelo desloca-se por quase todo o sudeste brasileiro com a Companhia Abigail Parecis e, posteriormente, chega a trabalhar com as companhias Miguel Marx, Sebastião Arruda, Zaíra Cavalcante, além da já citada Cia Negra de Revistas. Só perto da maioridade inicia os trabalhos na Companhia Jardel Jércolis, mudando-se definitivamente para o Rio de Janeiro, em 1935. Numa experiência semelhante a de Otelo, Josephine, nos Estados Unidos, a partir de Sain´t Louis, começou a viajar desde muito nova para muitos lugares no início da carreira. Ela foi assistente da cantora de blues Clara Smith e com a The Jones Family Band, com quem trabalhou durante algum tempo, apresentava números de dança em show de variedades. Nos anos 20 com as reverberações do jazz, Josephine chegou a New Orleans e outras cidades do sul estadunidense, num período de intensa migração da população negra do Sul para o Norte, principalmente dos homens negros que já atuavam como escritores, letristas, músicos e empresariavam grupos, como é o caso de Eubie Blake, Noble Sissle e Flourney Miller, responsáveis pelo espetáculo Shuffle Along, a primeira revista a apresentar-se na Broadway com o elenco inteiramente negro. Relacionado a esse contexto, nota-se que o homem negro estava ansioso por não só narrar ludicamente seus trajetos e ironizar o seu entorno, ele desejava praticar a oficial autonomia sobre o seu corpo,

Um escravo nas plantações da Georgia, a não ser que fosse vendido ou fugisse, geralmente nascia, crescia para a vida adulta e morria na Georgia. Para ele toda a América se resumia a Georgia, e ele teria de se conformar unicamente com o que ele tinha experienciado. St.Louis, Houston, Shreveport, New Orleans, simplesmente não existiam (e certamente nem Nova York). Mas agora para muitos negros havia uma vida de movimento do campo para o campo ou da cidade para a cidade. As alternativas sociais e emocionais limitadas das canções de trabalho não davam mais conta de conter a noção crescente deste país, à qual os negros começaram a responder 96. (JONES, 1963: 62)

96 Tradução livre. A slave on a Georgia plantation, unless he was sold or escaped, usually was born, grew to manhood and died right in Georgia. To him, the whole of America would be Georgia, and it would have to conform strictly to what he had experienced. St. Louis, Houston, Shreveport, New Orleans, simply did not exist (and certainly not New York) . But now for many negroes there was a life of movement from farm to farm or town to town. The limited social and emotional alternatives of the work song could no longer coutain the growing experience of this county that negroes began to respond to. (JONES, 1963: 62) 93

Conforme a observação de Leroi Jones97 ou Amiri Baraka considera-se que, para o homem negro, era mais do que simplesmente viajar, ou locomover-se, era constituição da possibilidade de “vida de movimento”, já que os aspectos estruturantes da escravidão eram eticamente contrários a isso. Logo, esse acesso recriado à “vida de movimento”, por parte de pessoas que antes tinham seus passos vigiados, subjugados e limitados, instiga-nos a conceber que o tempo, “durante” esses trânsitos, está longe de ser uniforme e pleno de satisfações. Verifica-se um deslocamento mais expressivo dos homens negros do que das mulheres negras. Era distinta a busca por uma sensação de liberdade, presente tanto no corpo feminino quanto no masculino. O deslocamento que significava “vida de movimento” era também a busca para um “tornar-se” que tinha inflexões distintas, em homens e mulheres, estas últimas em diálogo com outras demandas. Esse “tornar-se” inclui, de um jeito peculiar, o processo discutido por Neuza Souza Santos (1983) a respeito do “torna-se negro”, ou seja , uma tomada de consciência de si, um a (re)aproximação positiva com a própria imagem e corpo. Ao longo das suas andanças com a The Jones Family Band, Baker continuava experienciando o racismo antinegro reforçado pela Ku-Klu-Klan98 e sancionado pela lei Jim Crow (1876-1965) aplicada aos estados localizados no sul dos Estados Unidos e que determinava lugares de negros e lugares de brancos. Essas forças racistas segregavam o convívio doméstico e público entre um grupo e outro, além de subordinar e criminalizar a população afro-estadunidense. Josephine também era exposta – e não só ela – a uma ambiência dominadora, masculina, que legitimava assédios e roubava a tomada das principais decisões e a possibilidade de negociar a carreira. No entanto, apesar dos distintos níveis de necessidades entre a experiência do homem negro e a da mulher negra, seja nos Estados Unidos ou Brasil, as ressonâncias das relações entre “senhor” e escravizado, ainda que com variadas vibrações eram o ponto de convergência no encontro das diferentes realidades que ainda reivindicavam a dimensão de humanidade. Otelo, pelos interiores do Brasil, provava do amargo caldo coronelista e de um lugar servil oferecido pelas próprias companhias na qual ele ingressava. Não são raros os testemunhos de maus tratos, inclusos nos depoimentos acerca de sua trajetória. Otelo deixa Uberlândia em mais ou menos 1923; segundo ele, “Mamãe me deu de papel passado para Dona Isabel Gonçalves, mãe de Dona Abigail” (BARBOZA, 2003: 41). Abigail Parecis era atriz e cantora lírica em companhia intitulada com seu nome.

97 Tornou-se Amiri Baraka em 1968 após se converter mulçumano. 98 Três movimentos que defendem posições extremistas, reacionárias e de supremacia branca nos Estados Unidos. O primeiro parece ter surgido na segunda metade do Século XIX. Essas correntes são presentes na atualidade. 94

Nesse grupo, também trabalhava João Manoel Gonçalves que era ponto99 da companhia e esposo da tutora de Otelo, Dona Isabel. Com Otelo, a família mudou-se para São Paulo e tinha costume de apresentar-se por várias cidades, inclusive o interior paulista.

Nessas andanças, em Campinas mesmo, aconteceu um fato muito interessante. Criança, minha função era, ao chegar no hotel, tirar a roupa da mala e mandar passar, enquanto seu Manoel Gonçalves ia para o botequim tomar as timbucas dele. Um dia um garoto me convidou para brincar. Eu queria brincar mesmo. Fui brincar e não mandei passar a roupa. Levei uma surra que até hoje não esqueço. (BARBOZA: 2003: 54) (Grifo nosso)

A partir do relato de Otelo observa-se que a tutoria tinha seus custos. Otelo não era uma criança, ele era uma criança negra com tutoria branca. Mesmo numa ambiência artística, supostamente lúdica, os brancos costumes das relações escravocratas não tinham desaparecido. Há um episódio que exemplifica a perversidade disfarçada em tutoria: sob custódia de Manoel Gonçalves, no Rio de Janeiro, Otelo apresentou-se em números de variedades. Esse trabalho era remunerado, o que Otelo não sabia, pois Gonçalves ficava com todo o dinheiro. “Soube depois que ganhava duzentos mil réis por noite. Eu mesmo não sei, porque nunca vi a cor desse dinheiro.”100 Compreende-se que, ao permitir que Otelo fosse tutelado por Dona Isabel Gonçalves, Maria Abadia de Souza estivesse esperançosa de que seu primogênito tivesse mais condições de exercer o movimento de sua vida, além de transitar por caminhos nos quais os limites e as restrições de uma sociedade injusta pudessem ser burlados. O pai de Otelo, seu Francisco Prata tinha sido assassinado. A mãe, além das dificuldades econômicas, vivia o luto da perda do parceiro com filhos pequenos. Ela tinha se tornado a única provedora e chefe da família, fazendo serviços domésticos e outras atividades a seu alcance. Dentro de um contexto de desesperação, Abadia de Souza precisou reaprender a ter expectativas para que, pelo menos, seus filhos pudessem ter uma vida menos perversa. Não deve ter sido emocionalmente fácil entregar o filho aos cuidados de outra família. Mas era esse o feixe de luz que se apresentava. A mãe dele sabia que o trajeto não seria retilíneo, mas Otelo também reaprenderia a resistir desde cedo. Na época do episódio da surra, a família de Parecis iria para a Itália a convite do maestro Felipe Aléssio. “... quando eles foram viajar, eu estava fugido de casa e não viajei para a Itália.”

99 “Ponto” era um tipo de profissional do teatro, cuja função correspondia a “assoprar”, em voz baixa, as falas que deviam ser repetidas, em voz alta, por atores e atrizes da peça. O objetivo era assegurar a continuidade da obra caso alguma parte do texto fosse esquecida. Geralmente o ponto ou a ponto ficava instalada(o) numa espécie de alçapão no centro-baixo do palco. A proteção era curva justamente para projetar o som de sua voz sussurrada. 100 WAINER, Samuel. O Grande Othelo não tem culpa. Revista Diretrizes, Rio de Janeiro, 1941. Fonte: Biblioteca Nacional. 95

(BARBOZA, 2003: 54). Otelo fugiu da violência, ou melhor, deslocou-se para seguir a vida de movimento sem impeditivos. Contudo, esses não desapareceriam completamente e desafiariam o ator a (re)criar saídas durante a própria caminhada na cena e externamente a ela. O sentido de deslocamento, paradoxalmente reconfigurou-se, tanto para as(os) escravizadas(os) negras(os), como para os sucessores, segundo os exemplos de Josephine Baker e Grande Otelo, tal qual os princípios africanos em diáspora. Nesse contexto, o ser foi reestruturado, à medida que se deslocava; e, ansioso por viver livre, ele precisava agir com parcimônia, pois nessa circunstância e ainda hoje “A liberdade precisa ser conquistada devagar, pois se não ela voa.”101 (OTELO, 1987). A liberdade em questão não é aquela canonizada pela Revolução Francesa, e sim a relacionada com a mudança de condição. A alteração da condição acontece, porque existe uma necessidade concreta de se refazer durante a locomoção. Ressalve-se a reação original, coletiva, ao perfil desumano (intrínseco à combinação escravocrata). Como Gottschild (1996) relembra, as populações de comunidades africanas podem ter sido apartadas de suas organizações e estruturas sociais, mas não de seus sistemas culturais, os quais estavam enviesados em seus corpos. A recuperação da vida de movimento, através dos deslocamentos, era ao mesmo tempo necessidade e fator motriz, indispensável a uma matriz que perpassa várias instâncias vitais. Aspecto de uma âncora cosmogônica distinta daquela encontrada na perspectiva colonizadora: “Na visão clássica europeia, o movimento existe para produzir o (resultado) trabalho; na visão africanista o trabalho existe para produzir o movimento102.” (GOTTSCHILD, 1996: 09). Por isso, não havia sentido para Otelo creditar o cargo-título que as organizações Globo, especialmente a televisão, atribuíram-lhe na última fase da carreira: “ Eles me batizaram de patrimônio, acho que patrimônio não pode...tem que ficar num lugar só... (OTELO, 1987). O ator disse essa frase num tom bem-humorado, que não oculta o fato de que havia a crença inteligível de que ser fixado aquele tipo saudosista de “patrimônio” é, antes de qualquer elogio ou privilégio, uma restrição às possibilidades de locomoção ou movimentação, tanto físicas quanto simbólicas. Sem condições para transformar-se e (re)criar-se. Outras pesquisadoras já abordam os múltiplos sentidos contidos nos deslocamentos de pessoas negras. Dentre elas citamos relato de Franciane Salgado de Paula (Kanzelumuka) que,

101 Grande Otelo pronunciou essa frase no Programa Roda Viva (1987). Ela corresponde à fala do personagem “Justo”, que muito lhe agradou interpretar na novela “Sinhá Moça” (1986) de Benedito Rui Barbosa. 102 Tradução livre. In the classical europeanist view, the movement exists to produce the (finished) work; in the Africanist view the work exists to produce the movement. (GOTTSCHILD, 1996: 09). 96

ao escrever sobre o corpo negro, para potencializar discussão entre as presenças negras na Dança Contemporânea paulistana das artistas Gal Martins e Eliana de Santana, bem como o próprio trabalho, compartilha:

Minha experiência familiar, tanto materna como paterna, prova que o deslocar-se é um modo como mulheres e homens buscam para transformar- se. Num primeiro momento, estão à procura da melhora de sua condição socioeconômica, quando decidem sair da roça e seguir para a cidade à procura de trabalho na indústria, no terceiro setor ou para estudarem (caso vivido por meus familiares paternos e por mim, quando mudo de cidade para estudar e depois trabalhar; uma história muito parecida com as das famílias de Gal Martins, que sai do norte de Minas Gerais, e de Eliana de Santana, cuja mãe vem de Pernambuco para São Paulo num caminhão pau-de-arara). (DE PAULA, 2016: 33)

De Paula ressalva a transformação da condição socioeconômica como válvula para a mudança de lugar, numa primeira instância, que desembocará numa alteração de si e restauração dos fundamentos antepassados – cruzando-se com outras maneiras de viver, conforme se identifica no decorrer da sua pesquisa. Num momento anterior, Beatriz Nascimento em seu legado poético-intelectual deixa pistas de como os caminhos são percorridos para uma vida de movimento - implícita, tanto nas experiências de De Paula e outras protagonistas de sua pesquisa, quanto nas de Baker e Otelo. Para não esquecer as demais experiências de vidas negras em diáspora: Quantos caminhos percorro A quantos choros recorro Ao fim de cada cansaço

O que é aquela cama Que daqui observo? Vazia e desfeita Como o acontecido?

Quantas perguntas me faço

Se certo ou errado, ou pura desatenção? Se procedente ou contrário Sem chegar à decisão De abandonar de uma vez Sonho há muito acumulado

O que é aquela cama no escuro? Manchada de tantas culpas Que caminham como víboras E sugam aos poucos meu corpo? Quem saltará sobre ela Para ir em meu socorro?

Quantos caminhos vivi 97

Em quantas veredas sofri A ânsia de ser feliz? Como me encontro agora Errantes como sempre foram As sendas que escolhi. (NASCIMENTO, 2018: 73)

Nascimento evoca as tensões contidas em si; a partir do eu-lírico, ela poetiza a história e historiciza a poesia do deslocamento. No seu incansável mergulho no entendimento do sentido de corpo, para as pessoas negras em diáspora ela pergunta: “Quantos caminhos vivi. Em quantas veredas sofri a ânsia de ser feliz?”. Para ressaltar que se encontra numa posição errante, sem lugar fixo ou residência consolidada. A autora motiva a entender que é mais urgente compreender como foram as travessias dos deslocamentos dos nossos corpos, do que abordar somente os encontros, as partidas e os pontos de chegada. A ideia despertada da poesia de Nascimento conforma com os aspectos explícitos e subjacentes na vida de movimento apontada por LeRoi Jones.

2.2 Invisível

Ao verificar o sentido etimológico da palavra “deslocar”, há significações que implicam em movimentar-se para diferentes direções. Ampliando a percepção, podemos dizer que em uma situação estática é possível, também, o movimento, pois a respiração permanece. A respiração pode não ser um ato de deslocar, embora esteja interligada a um organismo que bombeia, circula, transfere, articula, pulsa. No entanto a fim de que a interação permaneça em prioridade, essas ações são fundantes para os nossos sentidos e percepções (que mudam de lugar ou deslocam constantemente nosso estar no mundo). A respiração ainda é o emí103, o sopro da vida, a dinâmica vital de cada um. Ela cria aparições e reaparições dentro do corpo numa cumplicidade com tudo que nele habita. No sentido africano, esse habitar “é” concomitante “estar sendo” em movimento e atitude. Thompson (1974) converge nesse sentido, ao explanar acerca da experiência de uma pessoa com um expert104 africano. O autor conta que, quando o expert queria explicar para a outra pessoa que ela era muitas outras, ele lembrava a existência do lado esquerdo, do lado direito, da região frontal e de trás. Essa observação demonstra que direções, sutis orientações de possíveis realocações do corpo estão conectadas a uma circundação invisível de presenças

103 Palavra ioruba que significa a força da vida soprada em cada ser humano. O emí é invisível e intangível e dá vida ao corpo. 104 O autor designa esse termo aos conhecedores e entendedores radicais em arte africana. Todos os experts pertencem às comunidades nas quais Thompson desenvolveu sua pesquisa. 98

outras. E mais uma vez coincidimos com um “ tornar-se” em movimento, em atitude. Um tornar-se ao deslocar-se. Através do movimento em dança, os ancestrais, sejam mikisi ou orixás105, revelam-se ao mundo visível. Essa movimentação se constitui em faces múltiplas. Além de estar no gesto da dança do ancestral, ela é corporalizada na manipulação da erva para o banho; no preparo da comida; na voz que canta-reza; na brincadeira invisível de erê; e nos sonhos que parecem reais. Otelo escreveu um poema denominado “Estrada” que agita parte do que foi exposto nesse parágrafo: Quando cheguei, olhei, não vi mais nada. A gente jovem é sempre apressada, E às vezes não continua na mesma estrada Foi assim que eu perdi teu rastro Olhei até lá no horizonte, não vi nada Então desandei a estrada Voltei sozinho ao ponto de parada. (OTHELO, 1993: 75)

Numa narrativa de chegadas, partidas, andanças e “desandanças”, Otelo relata certa ansiedade que ocasiona a mudança de rumo, inicialmente tomado, “E às vezes não continua na mesma estrada”. É possível contemplar o que está à frente, quando se tem pressa? Existe a possibilidade de ver ou sentir a perda de si antes de isso ocorrer? A perda não impossibilita seguir o curso na estrada que rege o retorno ao início para recuperar o que se perdeu. Nesse “lugar” de início um re(encontro) é envolvido,

Ao ponto de sua parada Ao ponto de nossa parada Ao ponto que te encontrei na estrada Isso é tudo é tudo e não é nada É só conversa de estrada Mais nada, só conversa de estrada Estrada caminhada, andada Estrada descaminhada Estrada andada e desandada (OTHELO, 1993: 75)

Estrada é território físico de movimento. E se ela fosse uma metáfora para o corpo? Teríamos de escutar Otelo, quando ele oferece a encruza dos opostos, “Isto é tudo e não é nada” ou refletir a respeito das caminhadas, andadas e descaminhadas desse corpo, que parece estar sempre num sentido de (re)começar para ser “o ser que habita outras(os)”. Dessa maneira, o

105Na tradição ioruba, orixás são deusas(es) que receberam de Olodumare ou Olorum (ser supremo) o compromisso de criar e governar o mundo. Cada orixá está interligado a um aspecto da natureza, dimensão da vida e condição humana. (PRANDI, 2001). Mikisi é o plural de Nkisi cuja significação é similar a ideia de orixá na cultura ioruba. Nesse caso, mikisi faz parte do panteão dos povos de língua quimbunda. Para esses povos a divindade suprema é Nzambi. Enquanto orixás são cultuados no Candomblé Ketu, Mikisi são louvados no Candomblé de Angola. 99

encontro é sempre um desejo possível, e o desencontro organiza-se num ato libertador para continuar novos inícios.

2.3 Dor

É crível que, para realocar o sentido de deslocar na diáspora negra das Américas, as considerações anteriores sejam ligadas a uma cadeia inicial. Nesse sentido, a contextualização não pode ser feita de forma tradicional, vista apenas como o pano de fundo dos acontecimentos e das aparições do corpo. Ela deve ser considerada como conjunto de crenças, ideias, princípios, situações nas quais as corporalidades estão estritamente entrelaçadas, ou seja, é necessário tentar penetrar no que está “subterrâneo”, com tentativas preenchidas de imaginação – logo, propícias a riscos e possíveis equívocos – e, ao mesmo tempo, providenciais para reestruturar novas maneiras de análise. Acredito que, nesse caminho, o lugar de quem fala e/ou escreve mostra-se imprescindível. A minha interpretação/imaginação, como mulher negra, a respeito das subjetividades (inerentes aos deslocamentos dos corpos dos meus artistas antepassados, Josephine Baker e Grande Otelo), não totaliza (nem tem esse propósito) o que eles foram. Apenas apontam alguns lugares submersos, comungados pela experiência da travessia dolorosa no Atlântico Negro, que ainda reverbera sob minha epiderme. Sabendo que o nível vibratório da dor e do trauma varia de acordo com a tonalidade da pele, na medida em que ela vai “escurecendo”. O meu lugar de fala negro é a ressonância das minhas experiências familiares negras, tanto maternas, quanto paternas. Elas ecoam e acompanham-me para escrever as histórias, pois as cruzas não são meras coincidências. Por essa razão, ressalto aqui que esta análise não deseja ser representativa tampouco única, porque só isso seria antiético e incongruente com as experiências negro-diaspóricas. Assim como outros lugares de falas negras, a respeito dos corpos negros em deslocamentos, a exemplo dos trabalhos de Franciane de Paula e Beatriz do Nascimento, ela reivindica prioridade de escuta em discussões e debates a respeito do assunto. Eu tinha mais ou menos 10 anos, quando aconteceu um pequeno acidente com a minha mãe. Na época, em deslocamentos contínuos entre os trabalhos domésticos e os trabalhos na área da saúde, minha mãe tinha os horários muito apertados. Era o estado de tripla jornada tão presente desde tempos longínquos coloniais na vida de muitas mulheres negras e ainda 100

recorrentes nos tempos contemporâneos, como bem reforça Sueli Carneiro (CARNEIRO, 2003) para endossar a razão da diferença entre as demandas de mulheres negras e brancas. Minha mãe, Dona Lurdinha106, não contava com o privilégio da contratação de babás ou empregadas domésticas; assim, ela e meu pai tentavam revezar algumas funções em casa, o que sempre foi de forma desequilibrada, pendendo o excesso de atividades para ela. Era lavar roupa, enquanto cozinhava; auxiliar meus irmãos e eu com as lições, enquanto ia ao mercado; supervisionar nossos afazeres domésticos, enquanto tentava manter nosso momento criança. Era tudo ao mesmo tempo, não uma tarefa após a outra. Nas ausências de mãe e pai, nós cuidávamos um dos outros, com pontuais ajuda de parentes, geralmente outras mulheres, um envoltório matriarcal. Eis que um dia, por volta de 11 horas, estendendo roupa no varal, minha mãe caiu da escada ou do banco (não me lembro exatamente) e deslocou o ombro direito. Vagamente me vem a imagem dela sentindo muita dor, mesmo assim tentando manter o controle para não me desesperar. Não me recordo de ter visto lágrimas. Meus irmãos estavam na escola, e eu me preparava para ir ao colégio no turno da tarde. Após assegurar a minha ida à escola, ela foi para o “Orto”, uma antiga clínica de ortopedia localizada no bairro vizinho. Ao chegar da aula, vi que minha mãe já estava com o ombro envolto por uma atadura. Ela ficou durante um tempo com o ombro enfaixado para rearticular, recompor, “sarar”. Antes, segundo os atuais relatos dela acerca daquela situação acidental, o médico necessitou realocar o ombro novamente para a posição de origem, ação que não foi menos dolorosa do que a queda. Só após isso o ombro foi protegido pelo invólucro; e, com a devida proteção, procedimentos e analgésicos, as dores foram diminuindo. A recomendação era que ela ficasse com as ataduras por mais de um mês, sempre retornando ao hospital para revisões e manutenções durante esse período. Contudo ela não teve condição de ficar em casa e, mesmo com o braço enfaixado, tinha de trabalhar. Não havia escolha, consideração em relação à saúde dela, por parte da chefia do hospital onde trabalhava. Após retirar o envoltório, foi recomendado que ela começasse sessões de fisioterapia, e para isso havia dois movimentos: ou perdia dias de trabalho, arriscando a diminuição do salário, ou seguia disciplinadamente as sessões. Pelas nossas condições econômicas, ela escolheu o emprego. Hoje minha mãe tem 69 anos e tem dores no ombro constantemente. Quando me preparava para tecer as minhas primeiras considerações sobre o sentido de deslocamento para o corpo negro, palavra já algum tempo presente em estudos que faço, essa

106 Seu nome completo é Maria de Lourdes Bispo dos Santos. 101

experiência corporal da minha mãe me veio à cabeça. Ela ilustra para mim de forma mais tangível o que é a sensação mais próxima do corpo quando este é forçado ou impelido a percorrer um trajeto. Assim, essa história funciona como possível metáfora para discutir o sentido de deslocamento – trazido neste trabalho e de acordo com Nascimento (2018), ao insinuar que ele seria um dos princípios para conceituar e entender os corpos negros em diáspora. Como uma das dimensões do deslocamento, a dor ou o transtorno pode acontecer em pequenas ou grandes proporções. O corpo precisa ser realocado para reestruturação ou restauração, processo (realocação) que não garante a exclusão de efeitos dolorosos. Trajetos, travessias, caminhadas, mudanças são presentes em muitas vidas negras, antigas e contemporâneas. Nesses deslocamentos, princípios de corpos são transformados e refundados num diálogo dinâmico com o tempo, numa apaixonante luta pela vida e na recriação de verbos corporais. Na arte isso pode ser visto de forma mais radical, se olharmos para a experiência de artistas negros como Baker e Otelo, cujas trajetórias foram recheadas de deslocamentos com as companhias de artes cênicas ou teatros nos quais trabalharam. Podemos considerar que em tais companhias, como artista negra(o) ou não, a experiência do deslocamento era aspecto comum: percorrer cidade em cidade, apresentar em lonas, palcos ou pequenos tablados e fazer das experiências cotidianas a matéria prima para o improviso, no texto do movimento ou no movimento do texto. Não acredito que o sentido desse deslocamento tenha a mesma igualdade de significância para todos. Assim, como podemos identificar o sentido de deslocamento para as(os) artistas negras(os), em especial Otelo e Baker? Como, e em que medida, a dor da realocação e mudança ressoa na atividade desses artistas que trabalhavam com gêneros do entretenimento? Creio que o riso era o espaço para a dor em sua ampla transgressão, e essa combinação (riso e dor) já é em si um deslocamento simbólico.

2.3.1 Deslocamentos Forçados

Dessa maneira, deslocar parece ter dupla significância e, assim como se muda de lugar para articular-se a algo, desarticula-se de outro. A mudança que gera essa desarticulação pode ocorrer por variados motivos, dentre eles: o próprio objetivo de mudar; o excesso de mudança ou o excesso de esforço para a mudança; a mudança forçada ou compelida. Esta última é o ponto com o qual se relacionam os macros deslocamentos obrigados, que constituíram a diáspora negra nas Américas sob a patente da dominação colonial. 102

Esses deslocamentos desarticularam comunidades das partes Central e Oeste do continente Africano para os Americanos, a partir do século XVI. Desconjuntaram estruturas de existência e traumatizaram pessoas. Segundo Munanga (2009) esses deslocamentos forçados traduzidos em tráfico de pessoas constituíam cinco momentos:

1) captura dos nativos no interior da África; 2) transferência para os portos na costa africana; 3) armazenamento nesses portos, onde os negros aguardavam a chegada dos navios negreiros; 4) transporte para outros países nos navios tumbeiros; e 5) armazenamento nos portos de desembarque, onde eram recuperados para serem vendidos. (MUNANGA, 2009: 81)

Essas mesmas pessoas que eram capturadas, transferidas, armazenadas e transportadas, por diversos caminhos, retornaram simbolicamente aos lugares de origem para reestruturar seus corpos, já que a movimentação era restringida por espaços violentos e impositivos. As situações impostas podiam ser coesas em si tramitando outra ideia de deslocamento que não correspondia à aprendizagem do “trabalho para o movimento”. Porém, entre o deslocamento para “não-ser” e o deslocamento para “ser”, cada escravizada(o) constituía presenças invisíveis, além de outras companhias numa mesma condição. O “não-ser” é aquilo que Frantz Fanon apontou como zona ou “região extraordinariamente estéril e árida” (FANON, 2008: vinte e seis) e o ser é acrescentado aqui como uma (re)apropriação de si, como pessoa. Ao contrário do ombro da minha mãe que foi realocado, provavelmente por uma médica ou médico branco, essas populações se apoiaram umas nas outras e realocaram-se por si. E esse suporte mútuo começou ainda durante os microdeslocamentos dentro do próprio continente africano, devido ao processo intensificado de escravização. É o que podemos constatar com descrição exemplo de Heywood ao tratar das travessias comerciais de escravidão, ainda dentro da África,

Por volta de 1520 os portugueses e outros da ilha mantinham um número razoável de centro-africanos em trânsito em São Tomé. A maioria provinha da bacia do baixo rio Zaire, juntamente com os sobreviventes de outros capturados trazidos até ali do Benin. (HEYWOOD, 2010: 32)

A partir desse texto pode-se deduzir que o início de uma rede relacional para sobrevivências, no processo escravocrata, não são os porões do Navio Negreiro, mas sim as primeiras trocas de olhares, o toque pele a pele nas filas, o escutar das primeiras respirações desesperadas de si, das outras e dos outros, a sensação do movimento contido por amarras e correntes no próprio corpo e nos dos outros. A rede já se configurava, na medida em que o corpo era sequestrado. 103

No entanto, é preciso escapar de qualquer explicação linear para pensar nos desenhos dessas redes relacionais corporais e avolumar o imaginário com impressões mais orgânicas.

Havia as longas-difíceis marchas pós capturas e as esperas para serem entregues aos seus captores que pagavam pelos seus corpos. “Os escravos ficavam instalados em cercados ou grandes armazéns rudimentares, dormindo no chão ou sobre esteiras. Nesses depósitos conhecidos em inglês por barracoons, os homens-mercadoria eram devidamente vigiados e, em alguns casos, trabalhavam no fabrico de cestos e outros artigos de palha, enquanto aguardavam pelo embarque, que poderia ser célere ou demorar meses. (FUNDAÇÃO MARIO SOARES, 2016: 21)

Imagina-se que a espera, mesmo num estado de aflição, incerteza, choque, ansiedade ou desespero, foi rearticulada a um estado de observação coletivo, o que proporcionou o processo de mútua identificação pela situação imposta. Ou seja, o corpo objetificado e coisificado autorreconfigurava enxergando na(o) outra(o) mais que uma pessoa com um idioma distinto, isto é, veiculava-se a aproximação pelas intempéries no decorrer das atividades e trabalhos que lhe eram exigidos. Durante toda a minha educação básica, dentre os raríssimos conteúdos referentes às matrizes africanas do Brasil, compartilhados por professoras e professores em sala de aula, sempre escutei uma fala comum que dizia que os portugueses colocavam povos de diferentes etnias com diferentes “dialetos” (termo que as educadoras e educadores usavam) num mesmo navio, pois dessa forma seriam evitadas rebeliões e diluídos possíveis sentidos comunitários. Quase sempre era esse um dos argumentos dos docentes para justificar, de forma direta ou indireta, a completa ausência de citações a protestos negros contra a escravidão. Quando não havia a necessidade de argumentar sobre esse fato, a História da África e dos Africanos resumia- se àquele apontamento. Ou, quando era situado algum exemplo de luta pela libertação negra no Brasil, o quilombo de Palmares aparecia timidamente como referência datada e não como experiência que apresentou “estrutura social interna, autônoma e articulada com o mundo externo.” (NASCIMENTO, 2018). Os exemplos principais de insurreição negra eram as organizações estadunidenses a partir dos movimentos liderados por Martin Luther King, na década de 60 do século XX. Segundo as(os) professoras(es) a segregação racial era realidade quase que exclusiva dos Estados Unidos e da África do Sul, onde o Apartheid era ainda oficializado pelo governo107. Hoje extraio duas percepções dessa experiência, a primeira de que a heterogeneidade de grupos africanos (a maioria da parte Central da África), numa máquina internacional

107 O período que eu frequentei a educação básica está compreendido entre 1987 e 2000. 104

escravocrata, significava heterogeneidade de inteligências/habilidades, lucrativas para as empresas de escravaturas. O outro ponto é que, se houve a estratégia colonial de “dividir para dominar”, felizmente ela falhou em vários segmentos, posto que reações africanas organizadas aconteceram antes, durante e depois das travessias. (FUNDAÇÃO MARIO SOARES, 2016; e MUNANGA, 2009). Além disso, foram as articulações, efetivadas no convívio, que impregnaram sentidos de longo prazo, e isso só foi possível pelas vivências de corpo, compartilhadas não só no local da circunstância cativa, mas também entre similaridades e diferenças nas formas de pensar o mundo. Acrescentaria a construção de outros territórios de afeto, coadunando com desafetos recorrentes em relações humanas. No entanto essa configuração analítica é tensionada, se atentarmos ao fato de que os primeiros povos africanos que civilizaram as Américas foram arrancados da África Central. Essas populações já tinham contatos, em níveis variados, com a cultura lusitana – o que seria significativo na habilidade de lidar com o sistema escravocrata europeu nas Américas:

Durante o século XVIII, os africanos que faziam parte da cultura afro-lusitana em desenvolvimento, e que eram vendidos como escravos, levaram elementos dessa cultura para fazendas, minas e centros urbanos das Américas. A cultura crioula que emergiu entre as sociedades escravistas nas Américas tinha raízes profundas na África Central. Essa contribuição centro-africana foi especialmente dominante durante os séculos XVIII e XIX, quando os povos dessas regiões representavam significativa maioria dos escravizados que vieram para as américas. (HEYWOOD, 2010:122)

Ao imaginar a espera, antes da travessia através do oceano, penso que Heywood indica laços culturais que já eram comuns para as populações africanas do centro do continente de língua Quimbundo e Quicongo, por exemplo. Esses aspectos comuns interpenetravam-se às condições que lhes eram impostas, desenvolvendo redes e distanciamentos. Os grupos poderiam (ou não) sair dali, com unicidade de luta planejada, mas a resposta a essa espera criava um fluxo de cumplicidade subjetiva. Mulheres e homens teciam novas construções sobre si, em meio ao cotidiano pré-travessia. As linhas das fronteiras entre o circuito do “ser” e o circuito do “não-ser” cada vez mais intensificavam seus traços:

Após a difícil marcha até os portos de embarque onde chegavam exaustos e famintos, os africanos escravizados eram sujeitos a operações destinadas a restaurar a sua condição física, não por razões humanitárias, mas para responder aos objetivos econômicos dos proprietários. A alimentação era melhorada e frequentemente eram esfregados com óleo de palma para revigorar a sua aparência física, permitindo assim subir os preços e angariar lucros mais elevados para os seus captores. (FUNDAÇÃO MARIO SOARES, 2016: 20) 105

A materialidade do óleo não se conformava com os múltiplos sentidos que preenchiam o corpo de cada pessoa aprisionada. O uso para fins específicos, lucrativos, duros, retos e ásperos, sem significação vital, abatia as populações em cárcere. Perdia-se o pensamento (corpo) para alguns, que buscavam oportunidade para saídas no mundo invisível, a morte. Para outras(os) configurava-se a ideia de que o que colonizador/criminoso tinha sobre eles, mantinha-os de fato na zona do “não-ser”. A subsequente compra no mercado humano e o destino na passagem pelo Atlântico autenticariam esse processo nos seus corpos – estes já estavam marcados na pele, com sinete de brasa. Somado a isso havia o registro da venda (proprietário); as régias que comprovavam o pagamento de impostos; as marcas de distinção entre si (pois se destinavam a proprietários diferentes); e espécies de carimbo corporal para serem identificados nos navios. Falamos e escrevemos muito a respeito daqueles e daquelas que sobreviveram à travessia; pouco falamos sobre as pessoas que ficaram nas submersões oceânicas. Elas também fazem parte da rede ou das redes afetivas costuradas em diáspora. Quando se jogavam ao mar não era a recusa à vida, mas sim uma escolha pelo direito ao movimento em outro espaço. As(os) jogadas(os) ao mar pelos capatazes dos navios eram doentes, descartáveis, não sobreviventes à terrível viagem. Quase nunca falamos a respeito do que aconteceu durante essas passagens pelo Atlântico e, sobre isso, a estudiosa Lêda Maria Martins em mesa de debate, chamou a atenção: “Não podemos imaginar, não se iludam, não podemos!”108. Sei que tais perversidades são impossíveis de mensurar a partir do exemplo do deslocamento do ombro de minha mãe, mas os delicados sentidos cognitivos do corpo podem servir de relatos para abordar esse tema. A tentativa de ver esse doloroso contexto não encerra a definição do que viria a ser corpo negro, mesmo assim é necessário para compreender o porquê do significado de movimento, bem como todo o seu legado de proteção, é uma agenda comum na vida de pessoas negras. Nos porões, a mobilidade era radicalmente quase inexistente, o que tornava o ambiente pesado e adoecedor para culturas nas quais o movimento é elemento essencial. Os homens viviam agrilhoados uns aos outros, separados de mulheres e crianças. Estas, apesar de terem acesso a espaço maior, em outra área, ficavam vulneráveis aos abusos sexuais dos tripulantes.

108 A intelectual Lêda Maria Martins pronunciou essa frase entre cantos de congada, quando falava a respeito das travessias. Ela estava palestrando no evento Canjica Histórica II: as musicalidades afro-diaspóricas no diálogo entre Brasil e Estados Unidos. Tal evento fez parte do projeto Garimpar em Minas Negras – Cantos de Diamante, promovido pela Ponte Elemento Per e Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. A mesa de debates contava também com os pesquisadores Rafael Galante e Lloyd Bricken. O encontro aconteceu em 05 de julho de 2018, no Instituto de Artes da UNESP. 106

Esses porões eram escuros, com mínima ou nenhuma luminosidade; então, as vítimas experienciavam o distinto daquele vivido em suas comunidades, nas quais o brilho dos adornos (joias) ou a envernização dos tambores (principalmente para os iorubas e os chokwes de Angola), eram o reforço para a potência em dança. A luminosidade na dança significa “chutar a escuridão” (THOMPSON, 1974), seja bailando para os vivos ou para os mortos. Os escravocratas, para obterem mais lucros em menos tempo, levavam mais pessoas do que realmente o navio suportava, situação bastante recorrente no período de ilegalidade do comércio de escravizadas (os) (FUNDAÇÃO MARIO SOARES, 2016). Isso quer dizer que os corpos ficavam literalmente abarrotados uns aos outros em posição horizontal, situação contraditória, por exemplo, à tradição de pensamento do povo Akan que credita a permanência nessa posição uma referência à escuridão e à morte (THOMPSON, 1974). Ao viver numa imposta intenção de desconstrução das tradições corporais, as pessoas pensavam suas vidas antes dali, agonizavam o durante e temiam o que viria do outro lado do oceano. Os corpos eram tratados como cargas. E como se carrega uma? De que modo se transporta, quais os usos do espaço para “acomodá-las”, se delas dependem os lucros? Na minha percepção, é possível que elas fossem mais bem tratadas que as pessoas – colocadas em navios (Figura 19) para serem comercializadas em outros países das Américas. Tais cargas, excetuados os animais, não têm vida, diferente das pessoas que foram trazidas neles.

Figura 19: Pessoas confinadas em porões de um Navio Negreiro Fonte: https://www.theprogressivesinfluence.com/2014/09/callous-racism-from-pennsylvania-news.html

Os relatos acerca das durações das viagens variam de três semanas a dois meses, dependendo do século e circunstâncias tecnológicas do período. Contudo os maus-tratos parecem ser um dado invariável:

Foram milhões de homens e mulheres arrancados de suas raízes que morreram nas guerras de captura na própria África, nas longas caminhadas para os litorais de embarque, nas condições de confinamento, falta de comida e 107

higiene nos armazéns humanos construídos nos portos de embarques da carga humana , na travessia, enfim, nas condições de trabalho e de vida reservadas a eles nos países de destinos que ajudaram a construir e a desenvolver. (MUNANGA, 2009: 921)

O trauma e a necessidade de realocação simbólica, num contexto de mudança de lugar forçada, não paralisaram no momento em que o transporte criminoso de povos africanos começou a ser proibido no século XIX. Elas continuam nos corpos negros contemporâneos, agentes e regentes das diásporas, através dos dedos que escrevem esta tese, do ombro de minha mãe, das caminhadas da família de Franciane de Paula, nas andanças e “desandanças” de Grande Otelo e na desobediência do quadril de Josephine Baker. Somos micro exemplos da infinitude e complexidade que é a diáspora, cujo termo em si já traz profundas relações com a palavra deslocamento. Nessa perspectiva, Gilroy (2007: 152) apresenta uma conformadora noção na qual diáspora:

(...) identifica uma rede relacional, produzida de modo característico pela dispersão forçada e pela saída às pressas e relutante. (...) não é apenas uma palavra de movimento, embora o movimento desesperado e determinado seja integral a ela. (Grifo nosso)

Baseando-se nisso é importante atentar que uma rede relacional pressupõe conjunto, experiências coletivas não necessariamente ordenadas. No caso das relações entre pessoas da diáspora negra há um impulso primeiro resultante da obrigação de um movimento macro de mudança em que exploração, angústia, inquietação, ansiedade – por um desejo de libertação emergido e relutância a condições indignas permeiam passos e direções. A rede de afetações, narrada anteriormente e a pontuada por Gilroy, transformava-se em invólucro, enquanto o desenvolvimento ocorria. As “ataduras” desse envolvimento eram/são a preservação de visões de africanidades, mantidos nos corpos, como memórias, além da identificação coletiva gerada pela imposição do corpo à desumanidade. Esse conjunto, assim como as ataduras que enfaixaram o ombro de D. Lurdinha, transformou as dores de uma dura travessia em ações de vivências subversivas a bordo ou nos territórios estrangeiros ecoando nas vidas corporais das gerações descendentes. Nessa acepção, pelos processos de deslocamentos, as pessoas instauram organicamente espaço de manutenção e fomento comunitário. Isso é evidenciado em levantes durante a própria travessia; em organizações cotidianas, durante os trabalhos em lavouras e plantations109; em

109 Sistema agrícola baseado em monocultura ou cultivo de um só produto; mão de obra escrava; além do uso do latifúndio. Por exemplo, durante a escravidão nos Estados Unidos, o algodão era produto vastamente cultivado, assim como a cana-de-açúcar no Brasil, entre os séculos XVI e XVII. 108

quilombos, candomblés e spirituals110 de tradição negra (estes implantados em igrejas de origem anglo-saxônicas. Além de também presentificar-se nas rodas comunitárias de samba e nos improvisos do jazz dançados, versados ou instrumentalizados.

2.4 Envolvimento

O deslocamento de pessoas negras constrói uma zona envoltória que mantém, fomenta e protege vidas corporais. Essa zona não é um território físico, tampouco palpável. Por ser lugar de proteção, estrategicamente é atemporal. Ele se espalha e insere-se cruzando pontes e manipulando as fronteiras. Ressoando em notas graves ou agudas, cria estéticas e subverte-as ao mesmo tempo. Por exemplo, quando concebo a jovem Josephine Baker aceitando o convite para ir a Paris trabalhar na Revue Négre, vejo uma mulher de 19 anos com passos temerosos apesar de uma escolha feita. Todavia não houve certeza do que encontraria. Simultaneamente, ao fazer o inventário da vida dela até ali, ela relembrava a severa pobreza em Sain’t Louis. Sua condição remetia às mulheres da família, como referências de abandono afetivo e o medo de perder o próprio corpo. Seus pares já estavam num processo de adoecimento, em estado de coerção que se estendeu para os momentos seguintes: “Eles vão dormir com medo nos corações; eles acordam com medo nos corações; eles não sabem em quem acreditar, porque eles vivem em constante medo111,” relatou a artista na década de 50. Nesse período, os Estados Unidos ainda geravam o mesmo temor em Baker como na época da sua infância e juventude. Nos anos 20, quando saiu do país, ela estava em cartaz no clube noturno, de plateia mista, denominado Plantation apresentando-se com êxito. Mesmo assim, talvez tenha pensado: será que não há um lugar onde eu possa “tornar-me” sem receios constantes? Além disso, há outra questão, ao atravessar de navio a rota Nova York-Paris. Essa sua travessia, como a dos antepassados, era ainda uma cruzada para o desconhecido, ainda que com esperança de tornar-se livre e não com a certeza de torna-se escravizada.

110 Canções cristãs negras que se remetem a passagens bíblicas, mesclando-as com as dificuldades enfrentadas durante a escravidão nos Estados Unidos. Esse estilo recebeu grande influência da oralidade e musicalidade africanas. 111 BAKER, Josephine. Brazil. [Discurso] 30 de julho de 1952. Fonte: New York Public Library – Schomburg Center for Research in Black Culture. Fala extraída do discurso proferido na Biblioteca Municipal de São Paulo (Mário de Andrade). Tradução livre. They go to sleep with fear in their hearts; they wake up with fear in their hearts; they do not know who to believe in for they live in constant fear. 109

Naquele navio estavam mais 24 pessoas negras procurando o mesmo que ela. Certa vez, num relato sobre si, acerca dessa fase, ela pontuou: “(...) Josephine era uma garota que saiu de St. Louis para vir a Europa encontrar a liberdade” (BAKER, 2009)112. Ela, suas companheiras e companheiros, bem como outras pessoas negras que tinham imigrado para Europa, intensamente após 1918, não estavam apenas indo disseminar o jazz e o charleston. Além dessas enciclopédias rítmicas, o grupo estava se transportando em um invólucro com múltiplos tempos, apoiando-se uns nos outros, mesmo que não fossem grandes amigos ou amigas, entre si, ou que não proferissem grandes conversas e confraternizações em conjunto. Aquele grupo tinha um elo no campo do invisível, eles buscavam Paris para continuarem a “torna-se”, porque queriam exercer o fluido caminhar dos seus movimentos. Langston Hughes, não estava nessa viagem, mas, viveu em Paris durante quase um ano, publicando na década de 60 um texto em que abordava sinteticamente a atração de personalidades negras estadunidenses para aquela cidade: “Há outras cidades, claro, outros países, outros mundos, mas não há nenhum como Paris. Por quê? Eu penso apenas porque Paris combina com você, seja você quem for.”113. Essa observação deslumbrada de Hughes ajuda a suscitar um outro ângulo. Intelectuais e artistas pré-era Revue Négre também tornaram Paris, ou melhor, edificaram um território com ideias, sons, vozes, imagens (próprios) infiltrando o invólucro diaspórico. Movimentando-se para um país que eles negrificariam, mesmo que esse processo exigisse preços exorbitantes a longo prazo. Boa parte dessas pessoas fixou raízes na França, outras retornaram para os Estados Unidos. Em outra colocação, Baker criou uma metáfora a respeito da sua mudança definitiva para Paris: “Ela foi uma transplantação. Uma árvore começa a vida em uma parte da terra. As raízes se espalham em outra parte. Mas é sempre a terra de Deus e é sempre a árvore de Deus. O mais importante das coisas é que se cresça forte e bonito, dando frutas ou prazer, seja qual for a natureza destinada para isso.114” A partir dessa construção metafórica, Josephine Baker nos abre

112 Entrevista de Josephine Baker exibida no documentário “The 1st Black superstar” (2009) 113 HUGHES, Langston. Negroes Abroad. New York Post, Nova York, 13 de novembro de 1964. Fonte: New York Public Library – Schomburg Center for Research in Black Culture. Tradução livre. There are other cities, of course, other countries, no doubt other worlds, but there is none like Paris. Why? I think solely because Paris become you, whoever you are. 114 Fala citada por Rosetta Lenoire no primeiro ano de aniversário da morte de Josephine Baker. Lenoire discursou na igreja St. Malachy. LENOIRE, Rosetta. [Texto do discurso]. 1976. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. Tradução livre. It was transplatation. A tree starts life in one part of the earth. The roots take hold in another part. But it´s always god´s earth and it´s Always god´s tree. The important thing is that it grows strong and beautiful, giving fruit or pleasure whatever nature intended for it. 110

a percepção para um contínuo distribuído. Em adição, um enraizamento que não exclui perspectivas grupais e simbologias ancestrais de proteção. Assim, em deslocamento e através dele, uma teia de envolvimentos vai sendo construída, cultivando um invólucro que se radicaliza em potência. Essa espécie de envoltório constitui mecanismos de proteção, aprendizagem, concordâncias, e discordâncias e conflitos. Por estar em deslocamento, o envolvimento é heterogêneo e complicado propositalmente, confundindo o discurso dominante cujas desatenções são expostas. Essa dimensão do envolvimento - em consonância com os aspectos do refazer, do invisível e da dor - impulsiona alternativas para existir/ resistir em gestos, palavras e ações que rompem limites impostos pelo discurso dominador. Assim, propiciam possibilidades que se situam em ocupação, desobediência e invólucro. A respeito do invólucro, vale destacar que este surge, “desaparece” e reaparece em diferentes lugares, como se fossem as raízes da árvore, que crescem em outras direções, conforme a citação de Baker.

111

Assim, a cor de um indivíduo nunca é simplesmente uma cor, mas um enunciado repleto de conotações e interpretações articuladas socialmente, com um valor de verdade que estabelece marcas de poder, definindo lugares, funções e falas. (MARTINS, 1995: 35)

CICLO 3 DESLOCAMENTO: O INVÓLUCRO

O invólucro funciona como lugar simbólico que, além de propiciar o cobrir e o envolver, é caracterizado por sua capacidade de criar, recriar e curar. Nesse sentido, invólucro pode entrelaçar diferentes tempos e similares maneiras de dizer o mundo. Essa ideia é compatível a uma sintetização do significado de invólucro para o corpo negro. Para decorá-la, com acessórios próprios de um corpo que se constrói em diáspora, é indiscutivelmente importante abordar suas molas propulsoras e identificar a matéria que a forma. Neste trabalho, tal abordagem e identificação são feitas a partir das experiências relatadas numa ponte forjada entre Brasil e Estados Unidos. Atitude de fronteira, ancestralidade e síncopa são elementos que formam e, ao mesmo tempo, restauram e alimentam o invólucro. São fundamentais nas trajetórias dos corpos negros e, ainda que estejam aparentemente “externos” a eles, servem-lhes de companhia e, de forma imprescindível, formam-nos e transformam-nos. No ciclo 3, elabora-se a fundamentação desses aspectos.

3.1 Primeiros sinais - primeiros invólucros

O termo invólucro surge como reflexão no meu percurso acadêmico em 2017, sugerido como translação das redes de contatos estabelecidas entre artistas negras(os) nas três primeiras décadas do século XX, constituindo-se em “(...) envoltório onde teias são criadas pelas(os) e entre artistas negras(os) que, pelas frestas de uma sociedade construída via tragédia colonial, se protegem e se retroalimentam” (BRITO, 2017: 118). Portanto, invólucro tem relação com pessoas, artistas negras e negros e suas interações proativas num circuito interlocucional, isto é, num lugar onde afetos, anseios e divergências são partilhados num círculo convivial e, muitas vezes, comunitário. Um primeiro exemplo concreto dessa rede ou circuito de interlocução são os encontros tecidos, no Rio de Janeiro, entre jovens e mais velhos na casa da família daquele que viria ser 112

um musicista bastante conhecido no Brasil: Pixinguinha. Essas(es) jovens seriam, mais tarde, artistas das artes cênicas e da música, como os casos das irmãs Aracy Cortes e Dalva Spíndola. As duas costumavam participar, com o pai, das rodas de choro que aconteciam na casa da família de Pixinguinha, o qual já arriscava tocar sua flauta em conjunto com os irmãos China e Henrique. Anos depois, já num circuito profissional, Aracy, China, Henrique e Pixinguinha passam a trabalhar no grupo musical “Os oito batutas”. Pixinguinha, também, conviveria profissionalmente com Dalva Spíndola na Companhia Negra de Revistas, que na sua segunda fase tem a participação da criança Grande Otelo. O território das revistas musicadas, no Brasil, era um local ocupado por artistas negras(os) que se popularizaram na década de 20 do século XX, tal qual a história de Ascendina dos Santos115 que trabalhou na Companhia Carioca de Burletas e foi um destaque importante no gênero revisteiro do período (BARROS, 2005). Ela inspirou um quadro na peça “Pirão de Areia” (1926) denominado “Ascendices”. Esse quadro tinha como protagonista a atriz, cantora e dançarina Rosa Negra que liderava um grupo de coristas, as Black Girls (BARROS, 2005). Rosa Negra seria convidada depois para ser uma das estrelas da Companhia Negra de Revistas. Outro nome bastante conhecido no meio da revista e do jornalismo foi José do Patrocínio Filho “o Zeca” (filho do abolicionista negro José do Patrocínio) que, por sua vez, trabalharia com Aracy Cortes, já que ele também escrevia revistas. Caminhadas cruzaram-se e foram orientadas por sinais de intimidade e, ao mesmo tempo, coabitação que deslizou na ocupação territorial artística, construindo maneiras de dizer e intercambiando “descobertas”, visões e sensações. A costura das trocas entre essas pessoas é interpretada como um “(...) retorno a si configurado em conexões sutis desses artistas uns com os outros, mesmo no circuito branco.” (BRITO, 2017: 121). Para além disso, o momento que Ascendina Santos, Rosa Negra e a Companhia Negra de Revistas invadem a cena, é identificado como o período que se estabelecia através de disputas de identidade (GOMES, 2004), nas quais a pessoa negra, ou melhor, a mulher negra, reclamava presença na constituição da identidade brasileira.

115 Pelo menos não há documentação que evidencie. Até agora, infelizmente, há pouca documentação encontrada que tanto comprove o encontro profissional entre as duas atrizes, assim como dados de abrangência referentes às duas artistas. Barros (2005) parece ser um dos primeiros pesquisadores a trazer informações acerca de Rosa Negra e Ascendina Santos. 113

Ao realizar uma escavação à procura de um contexto similar que evidencie o invólucro entre a comunidade artística negra estadunidense, encontramos a experiência de um movimento proliferador na mesma década em que a Companhia Negra de Revistas aparece no Brasil. Tal movimento permeou diferentes linguagens artísticas, além de ter atravessado o campo da literatura e da poesia revelando, para gerações futuras e várias partes do mundo, nomes como o de Josephine Baker, Langston Hughes, Florence Mills, Noble Sissle, Eubie Blake e Zora Neale Hurston. Essa efervescência cultural conhecida como Harlem Renassaince tornou-se um complexo criativo em artes, literatura e intelectualidade negra semeando e frutificando ideias, tanto voltadas para uma contestação das condições aplicadas a população negra, incluindo o quadro segregacionista, quanto aquelas direcionadas ao entretenimento, conforme a aparição em 1924 de Shuffle Along, concebida e dirigida por Eubie Blake, Noble Sissle e Flournoy Miller. As práticas artísticas aconteciam no bairro do Harlem, localizado na parte uptown de Manhatan, região norte da cidade de Nova York. Essa localidade abrigava brancos estadunidenses, imigrantes e uma quantidade significativa de pessoas negras que, mesmo sob condições precárias de trabalho e baixos salários, produziam expressividades desde a música até a poesia (GOTTSCHILD, 2000). Artistas que circulavam nessa dinâmica, assim como no Rio de Janeiro, também se entrelaçavam num ritmo de troca interpenetrando-se radicalmente. Profissionais do Teatro de Variedades e das Revistas trabalhavam em estabelecimentos dirigidos e produzidos por homens brancos, como o Teatro Apollo e a casa noturna Cotton Club. Nele, era permitida a presença de um público misto ou interracial; nela se constituía um contexto no qual artistas, majoritariamente negras(os), apresentavam-se para plateia branca (GOTTSCHILD, 2000). Enfrentando diferentes políticas internas de segregação, nas casas de entretenimento ao longo do território estadunidense, artistas aceitavam status quo branco e tentavam assimilá-lo para sobreviver. Ao mesmo tempo, esforçavam-se para manter, preservar e desenvover identidade separada (GOTTSCHILD, 2000: 08), fortalecendo-se dentro das comunidades negras. Estas, mesmo com recursos limitados, criaram infraestruturas com heterogeneidade de profissionais e serviços – recusados para as pessoas negras. Eram essas mesmas comunidades que recepcionavam artistas ajudando com comida e estadia, quando grupos itinerantes estavam na estrada (GOTTSCHILD, 2000). 114

Assim, mesmo num espaço deliberadamente segregado e atravessado por interdições, foi possível desenvolver uma arte com terreno para interações mais peculiares que continuariam em períodos sucessores. Por exemplo, o escritor Langston Hughes viu Josephine Baker em Shuffle Along (1921) e Chocolate Dandies (1924), essa conexão produziu registros, e o autor escreveu a respeito de Baker em suas colunas, em década posterior116, quando trabalhava para o jornal New York Post. Hughes também foi cogitado pela própria Josephine de participar da criação de um filme a respeito da vida e da família dela. O intuito de Baker era, através da sua experiência com as crianças que ela tinha adotado, abordar a ideia de irmandade entre diferentes etnias. “Eu estou te escrevendo sobre uma possibilidade de fazer um filme sobre a história da minha vida, além de um dos meus filhos do mundo117”. Numa carta anterior a de Baker, Hughes já teria mostrado o seu interesse em realizar algum projeto biográfico a respeito da vida da artista:

Eu gosto muito dela e eu sou grato a você por me repassar o interesse dela na minha participação no seu projeto de filme (...) Algumas vezes no passado eu fui abordado de uma forma ou outra a respeito de filmes ou biografias sobre senhorita Baker. Alguns anos atrás Jose Ferrer tinha em mente criar um musical a respeito da vida dela. Mas nada disso se concretizou.118.

Numa carta endereçada a um dos articuladores para a construção do filme, Dr.Goodlett, Hughes expressa seu carinho por Josephine, ressaltando seu interesse em projetos biográficos acerca da artista, bem como a construção de um musical. Por razões não encontradas, assim como o musical citado por Hughes, esse filme documentário também não teria sido concretizado no período. A julgar pela preocupação de Baker em convencer patrocinadores de que o filme teria recepção satisfatória fora dos Estados Unidos, suspeita-se que a não concretização do trabalho tenha sido devido à carência de suporte. Na carta para Hughes, ciente das suas redes ao redor do mundo incluindo América Latina, Baker pontua:

116Só em 1964, Langston Hughes publicou duas colunas abordando aspectos sobre Josephine Baker, em uma delas a artista foi tema central, o texto foi escrito a partir de um encontro com ela em Paris, nos bastidores de um show no Folie Bérgere. HUGHES, Langston. Josephine.New York Post, New York, 27 de março de 1964; HUGHES, Langston. Negroes Abroad. New York Post, New York, 13 de novembro de 1964. Fonte: New York Public Library - Schomburg Center for Research in Black Culture. 117Tradução livre. I am writing you concerning a possibility of making a film of my life story plus one of my children of the world. Carta de Josephine Baker a Langston Hughes, 02 de dezembro de 1958. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - Emory University. 118Tradução livre. I like her very much and I am grateful to you for relaying her interest in my participation in her film project. (…) Several times in the past I have been approached in one way or another regarding films or biographies of Miss Baker. A few years ago, Jose Ferrer had in mind building a musical around her life. But none of these ever materialized. Carta de Langston Hughes a Dr. Goodlett, 23 de outubro de 1958. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - Emory University. 115

Se o campo de distribuição não é aberto nos Estados Unidos diga aos patrocinadores que eles podem ter certeza que o mercado é mais que aberto na América Latina, América Central, Europa, África e Ásia, assim os negócios podem ser maravilhosos. Eu estou dizendo isso a você somente para lembrar sobre algumas possibilidades, pois o mundo inteiro está interessado nessas crianças e no que elas representam. Estes filmes servirão como um encorajamento para aqueles da América do Norte que acreditam em fraternidade119.

É possível observar, através do argumento de Baker, o quanto sua ideia de convivência entre as pessoas de origens distintas soava ainda ameaçadora para os Estados Unidos. Visto que ela pontuou o quanto os filmes poderiam servir de estimulantes para as pessoas estadunidenses que acreditavam num projeto de fraternidade entre as diferentes etnias, tal como a adoção de suas filhas e seus filhos120. Nesse período, Baker ainda era persona non grata para os holofotes estadunidenses que não a viam desde 1951. Mesmo assim, as relações com o país permaneciam. A artista acompanhava os passos políticos enfaticamente, mantendo vínculos com associações, empresários e pessoas da comunidade artística e intelectual negra. É bom ressaltar que àquela altura, a mãe de Josephine Baker – Carrie McDonald, a irmã Magaret McDonald e o irmão Arthur Martin McDonald, já moravam com ela na França. O projeto dos filmes envolveria ainda os nomes de W.E.B. Du Bois121 e do jornalista Alfred Newell Johnson122. Este último tratava Baker em cartas como big sister123.

119Tradução livre. If the distributing field is not open in the USA tell the sponsors that they can be assured the market is more than open in Latin American. Central America, Europe, Africa and Asia so the business can be a wonderful one. I am only telling you this so as to remind you of the possibilities of such films because the entire world is interested in these children and what they represent. These films will even be able to serve as an encouragement to those in North America who believe in brotherhood. Carta de Josephine Baker a Langston Hughes, 02 de dezembro de 1958. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - Emory University. 120 Na década de 50, quando inicia seu ciclo de palestras pelo mundo a favor da fraternidade universal, denunciando as leis segregacionistas estadunidenses, Josephine Baker funda a Associação Internacional Contra a Discrminação Racial, Cultural e Religiosa. Nesse contexto, ela começa o processo de adoção das suas filhas e filhos com o então marido Jo Boullion. As crianças adotadas eram de vários países dentre eles: Japão, Colômbia, França, Costa do Marfim, Argélia, Venezuela. Josephine Baker adotou oficialmente 12 crianças entre a década de 50 e 60, duas meninas e dez meninos. Com a intitulada “ Tribo do Arco Irís”, além de ter realizado o seu sonho de ser mãe, ela queria provar ao mundo que pessoas de diferentes culturas e cores poderiam conviver de forma saudável. 121W.E.B. Dubois (1868-1963) foi historiador, sociólogo, ativista e escritor. Um dos fundadores do NAACP (National Association for the Advancement of Colored People) onde exerceu a presidência durante um período. Esteve envolvido também com o movimento Pan Africanista e fundou o Movimento Niagara. A ampla obra de Du Bois inclui temas como colonização, racismo e política. Um dos seus livros mais conhecidos traduzido para a língua portuguesa é o “Almas de Gente Negra” (The souls of Black Folk) 122 Alfred Newell Jhonson (1915-1989), empresário, fotógrafo, jornalista e relações púlbicas de artistas famosos, como o cantor B.B King e o ator Paul Robeson. Era também Engenheiro Elétrico trabalhando na KQED-TV, estação de televisão educativa em São Francisco, entre 1957 e 1959. Trabalhou, também, como jornalista no Sun Reporter. 123 Tradução livre. Carta de Newell Jonhson à Josephine Baker, 12 de agosto de 1958. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - Emory University. 116

Em trecho de uma carta de Jonhson para ela, o jornalista mostra afeto e elucida a importância do legado e ensinamento de Josephine, bem como outras(os) do seu tempo: “Bem, minha querida irmãzona, aqui estou três anos atrasado (e mais velho) e com tudo que você e outros dos nossos grandes entertainers me ensinaram, finalmente estou muito bem124”. O pronome possesivo “nossos” é elemento recorrente em cartas de outras pessoas negras para Josephine Baker e vice-versa. Esse termo circunscrevia a comunidade negra, independentemente do nível de proximidade ou afeto entre as pessoas desse grupo. Tal afirmação comprova-se numa carta de Josephine trocada com Langston Hughes, quando ela demonstra admiração pelo trabalho do escritor, assim como pela história negra estadunidense:

Isto, claro, é uma maravilhosa oportunidade para eu falar para você o quanto eu admiro seu livro “A história do negro americano”. Eu consegui este livro através de meus amigos em Noruega, eles estão extremamente interessados em seu trabalho. Você poderia me enviar, por gentileza, o endereço da sua editora porque eu gostaria de conseguir outros livros a respeito da história do nosso povo nos Estados Unidos e eu sei que você tem escrito muitos fatos históricos interessantes. Eu também gostaria que você me enviasse um autógrafo (para mim e meus filhos), assim eu poderia ter sua assinatura no 125 meu museu .

O trecho da carta de Baker a Hughes, apresenta notável interesse por parte dela nas circunstâncias histórico-políticas referentes à comunidade negra estadunidense, contrapondo, através do próprio discurso, uma imprensa que fazia questão de vincular, principalmente, o nome de Baker, pelo menos na maioria das vezes, a uma expatriação do país ou a artistas brancos, como Picasso, Collete, Mistinguett. O que se percebe na carta é uma admiração pelo trabalho de Hughes, além de interesse pela sua produção intelectual, referente à população negra dos Estados Unidos. O discurso sobre uma fraternidade universal que Josephine pregava incluía estar ciente do seu pertencimento, como se a consciência desse lugar e sua contextualização fossem necessárias para alcançar tal ideologia. Outro ponto que podemos localizar é a preocupação com o registro das memórias. O museu ao qual ela se refere é alocado no castelo Les Millandes, que reunia uma série de

124Tradução livre. Well, my dear big sis, here I am three years later (and older) and with all that you thaught me and other of our great entertainers, I am finally doing fairly well. Carta de Newell Jonhson à Josephine Baker, 12 de agosto de 1958. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - Emory University. 125Tradução livre. This of course is a wonderful opportunity for me to tell you how much I admire your book on American negro History. I was able to get this book through friends of mine in Norway these friends are extremely interested in your work. Would you be kind enough to send me the address of your editor because I would like to get other books concerning the history of our people there in the USA and I know that you have written a lot of interesting historical facts. I would also like you to send me a word written (to my little children of the world) so as I will be able to have your signature in my museum. Carta de Josephine Baker a Langston Hughes, 02 de dezembro de 1958. Fonte: Stuart A. Rose – Manuscripit, Archives and Rare Book Library - Emory University. 117

artefatos, materiais e documentos a respeito da sua trajetória. Ela parecia fazer questão de registrar diálogos com outras personalidades negras, como Hughes para o qual pede uma assinatura que seria agregada ao acervo. Como se pode ver, tanto na experiência negra brasileira, quanto estadunidense, é possível identificar interlocuções entre artistas negras(os), ou seja, situações que elucidam o envoltório com rede relacional ativa. E o que isso de fato evidencia em termos de um estudo localizado em aspectos fundantes ou identificantes, para dissertar a respeito do corpo negro? Compreende-se que uma primeira dimensão desencadeada é a identificação unificada pela cor da pele ou pela etnicidade. Mesmo, transcorrida por meio de termos como “mulata(o)” que se referia e se refere (ainda) a mulheres e homens negros com tom de pele mais claro, ou implícita no termo colored people126, nomenclatura comum usada para e por pessoas negras nos Estados Unidos, pelo menos, até a década de 60. A etnicidade era de certa forma compartilhada, porque a exclusão era constantemente aplicada a corpos demarcados por ela. Portanto, era identificação sob o prisma da condição, mesmo que essa fosse menos expressa e mais sentida – o que indica que a interlocução com pares aconteceria também de forma mais cotidiana e prática do que de maneira pontual. Anos antes da chegada de Josephine Baker a Paris, em 1925, já havia estadunidenses negras(os) ingressando naquele país para atuar no campo do entretenimento. Dentre as mulheres artistas que já estavam lá, havia a cantora Ada Bricktop, 10 anos mais velha que Baker, nascida no oeste da Virgínia. Enfrentando racismos e machismos, chegou a ser dona de clube noturno, onde Baker passou a frequentar. Josephine construiu amizade duradoura com a artista que, quase cinco décadas mais tarde, foi mestre de cerimônia no show “Josephine Baker e companhia”127 (1973), apresentado em várias partes do Estados Unidos. Nesse trabalho ela contava, em fragmentos, a trajetória de Josephine que também dividia o palco com a companhia de dança israelita – Aviv Dancers – além do casal Geoffrey Holder (Trinidad Tobago) e Carmem Lavallade (Estados Unidos), ambos da dança, em princípio de carreira. Durante uma entrevista ao New York Post, em abril de 1973, divulgando a temporada que tinha recém-estreado, Josephine Baker, ao comentar sobre o show, frisou:

126 Além desses termos, no Brasil podemos encontrar outros como: moreno, morena-cor de jambo, cafuzo. Nos Estados Unidos, até a década de 60, eram usadas com frequência na imprensa as palavras negros e negroes. Ainda não é coincidência que uma das maiores associações ativistas negras, a NAACP, significa, National Association for the Advancement of Colored People, que em tradução literal seria Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor. 127 Tradução livre. “Josephine Baker and her company”. 118

Brickie era a rainha de Paris quando cheguei em 1924. (...) Ela a preparou para mim. Depois veio Cocteau e Colette. Picasso começou a me pintar. Brickie era o salão onde eu podia entrar. Todas as coisas boas que aconteceram em minha carreira, eu devo a Brickie.128

Nas entrelinhas de um aspecto nostálgico desse depoimento, há o reconhecimento, por parte de Baker, de quem a antecedeu. Bricktop era uma mulher negra como ela, que provavelmente desbravou muitos caminhos e muitas narrativas em períodos mais adversos e contrastantes. Assim, organicamente, ela adubou o terreno para outras artistas negras que chegariam e que teriam de administrar, com bastante lucidez, a percepção peculiar dos parisienses em relação ao corpo negro – como o caso de Picasso em relação a Baker. Diante disso, elocubra-se que a cantora significava um terreno onde Josephine Baker podia confiar os pés, sem receios excessivos ou deslumbres exagerados. Antes mesmo de as duas se conhecerem, um laço já estava estruturado por condição e afeto. Nesse sentido, Ada Bricktop inspirou Josephine Baker, cuja chegada à França converteu-se numa espécie de “febre” parisiense, dialogando com a percepção do público em relação ao seu corpo, recolhendo simultaneamente o bônus e o ônus dessa complexidade relacional. E seguindo o exemplo de Bricktop, chegou a agenciar no final dos anos 20 o Chez Josephine uma espécie de café-bar noturno, na qual além de dona era também a hoster. Bricktop inspirou “involucramente” Baker. No entanto, a dimensão do invólucro contida em trajetos de corpos negros não acontece apenas num prisma da identificação por condição, por pele. Na verdade, parece estar atrelada a um sentido de ancestralidade mais subjacente, que desempenha função de suporte, apoio, entrelaçamento de tempos, afetos conforme vimos na relação de Baker e Bricktop e também num exemplo específico que envolve Grande Otelo. Numa série de documentários musicais, de produção francesa, intitulada “Fragmentos negros do Samba: a paixão serena – Gilberto Gil”129 (1987), Otelo atua como uma espécie de entrevistador em Salvador, centralizando na figura de Gilberto Gil, em diálogo com personalidades e grupos da musicalidade negra soteropolitana. Diferentemente de outras aparições documentais e televisivas, como nos programas “Roda Viva” (1987) e “Ensaio” (1991), nota-se postura mais confortável do ator, menos desconfiada e menos vigilante.

128Tradução livre. “Brickie was the queen of Paris when I got there in 1924. (…) She made it in for me. Then come Cocteau and Colette. Picasso started to paint me. Brickie was the parlor that I was able to go into. All the good things that happened to me in my career, I owe that to Brickie. “Jo baker: Living up to Legend”. New York Post. New York, 04 de abril de 1973. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 129Tradução livre. Eclats Noirs du Samba /La Passion Sereine – Gilberto Gil (1987). 119

No diálogo entre ele e Gil, há uma passagem na qual o cantor discorre sobre lembranças de infância, o lugar onde nasceu130, as festas que vivenciou. Enquanto conta essas estórias aos ouvidos atentos de Otelo, os dois sobem a ladeira que liga o Pelourinho a Santo Antônio além do Carmo (Salvador). Num determinado momento, quando a câmera foca as costas dos dois artistas é possível verificar que, enquanto percorrem esse trajeto, o braço direito de Gil se encruza ao braço esquerdo de Otelo, num ato de cumplicidade e naturalidade entre dois homens. A ação é contínua, sem interrupção do movimento do braço de cada um dos dois. Não há dúvida no gesto, não há recusa por parte de qualquer corpo negro masculino naquele instante. E eles vão caminhando de forma ascendente, subindo. Os seus pés estão sob paralelepípedos construídos e colocados por homens – seus antepassados – que viviam em regime no qual o compartilhamento de afetos era, se não irrestritamente proibido, visto como ameaça ao edifício ideológico colonial. Naquele trajeto, que se elevava, ocorria a encruza contida no invólucro que, dessa maneira, permite a intersecção de tempos de várias gerações. Seja numa dinâmica de identificação – por questão de pele ou gênero – ou numa prática de identidade sentida fisicamente e expressada de forma não verbal, percebe-se nos contextos apresentados até então um encontro de tempos distintos. O que leva a supor que temporalidades concretas e invisíveis intercruzam-se num mesmo campo, tornam-se coesas ao corpo, na mesma medida em que o educam. Não é apenas a noção de tempo, referente às classificações de passado, presente e futuro; é também aquela que concebe desdobramentos mais complexos; interpenetra fenômenos individuais e experiência comum; ilustra no corpo “Dois tipos de tempo, o tempo real das particularidades individuais e o tempo mítico das ordenações coletivas (...)”131(THOMPSON, 1974: 43). Numa entrevista concebida ao Correio do Povo, em 1979, editada pelo jornalista Ivon Egon Stigger, mesmo sob reunião de fragmentos que denotam a anunciação de um “homem brasileiro” constituído pelas três raças (Ameríndia, Ibérica e Africana), há um registro da fala de Otelo que evidencia sua ciência em relação à matriz que o fundamenta. Ao sintetizar seu exercício de artista, ele pontua que ser ator “(...) é herança ancestral fortemente ligada à formação de minha raça.”132 Uma consciência de que é possível captar,

130Gilberto Gil nasce em Santo Antônio além do Carmo. Extensão do bairro do Pelourinho, localizado em Salvador. Pouco tempo depois, ele se muda com a família para a cidade de Ituaçu, onde passa a maior parte da infância e da adolescência. 131Tradução livre. “Two kinds of time, the real time of individual variation and the mythic time of coral enactment (…) “(THOMPSON, 1974: 43) 132STIGGER, Ivon Egon. “Minha força de ator é herança ancestral ligada à formação da raça brasileira”. Correio do Povo, 11 de janeiro de 1979. Fonte: Biblioteca Mário de Andrade. 120

mesmo com todos os volteios que caracterizam o discurso de Otelo, mesmo com a edição, que o jornalista faz ao conceber o título como de autoria do próprio artista, “Minha força de ator é herança ancestral ligada à formação da raça brasileira”. O registro de uma fala denúncia de Grande Otelo, escrita no parágrafo seguinte, permite recortar à qual raça/etnia ele se referia, quando fez a primeira pontuação: “Raras são as oportunidades que se concedem ao ator negro neste país onde a cultura negra é tão importante na formação da raça e da própria nação.”133 Nota-se que é presente, na primeira observação, o pronome “minha” relacionado à posse da raça. Enquanto, nas duas últimas, raça é referida em terceira pessoa, o que leva a entender que a primeira anunciação “minha raça” pode significar população negra-diaspórica-africana. Nesse sentido, Otelo encontra-se com a ideia de fraternidade de Baker. Os discursos dele acerca da cultura brasileira, do homem brasileiro, são integrados a uma consciência de pertencimento ancestral negro e subcondições aplicadas a esse pertencimento. Essa ciência de pertencimento converge-se com conhecimento do que a pele ou ser negro, assim como tornar-se negro (SANTOS, 1983), representa socialmente, combinando posição e percepção. Essa atitude de nomear o que denomino de fronteira, movimenta-se no invólucro alimentado por outros dois aspectos importantes: a ancestralidade e a síncopa. A pretensão é discutir os três neste ciclo.

3.2 Atitude de Fronteira: por que é preciso nomear o corpo?

(...) Josephine Baker era, essencialmente, a ‘bailarina negra’. Entretanto o que ella possuía de mais notavel e de mais interessante não era nem as suas dansas negras, seus ‘gigs’ malucos, nem o repertorio ‘hot’ que ella esganiçava, uivava e berrava com todas as cordas.134 (...) O ‘Grande Otelo’, o negro mais feio do mundo e um grande artista, está no mundo da lua. 135

Essas duas notas tecem observações a respeito de Josephine Baker e Grande Otelo, respectivamente, bem como suas atividades artísticas. Ambas são produzidas em períodos próximos, localizados quase na metade do século XX, e nelas podemos perceber uma quase indissociação entre etnicidade e trabalho artístico. Uma está de mãos dadas com o outro num

133 STIGGER, Ivon Egon, 1979. 134 Jornal o Globo, Abril de 1939. Fonte: Biblioteca Nacional. 135MOREL, Edmar. A Sambista Josephine Baker. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 de julho de 1939, n35, p.8. Fonte: Acervo MASP. 121

passeio sombrio para mensurar e qualificar as atividades de duas pessoas. Acrescente-se a isso o fato de que são homem e mulher os referendados. Ao costurar considerações acerca desses escritos para iniciar a discussão sobre a terminologia “negro” alguns encontros de significações linguísticas acontecem de forma não imaculada. Os artistas são identificados como negros pelos profissionais da imprensa brasileira, no entanto nos dois textos são usadas palavras que acompanham o termo negra(o) como se fosse um apêndice necessário, um anexo, sempre com conotações ou ações que dizem respeito ao corpo: “gigs malucos”, “esganiçava, uivava e berrava”, ”o negro mais feio do mundo”. Nesse caminho, adicionam-se as proximidades dessas mesmas denominações com contexto animal selvagem, ao mesmo tempo repleto de esquisitices aos olhos dos observadores brancos. Porém, ao lado disso, há observações através das quais se tenta enaltecer a pessoa: referente a Otelo encontramos a sentença “um grande artista”. Há, implícita, uma espécie de tentativa de captura dos corpos dos artistas, por parte dos olhos brancos, numa relação, no mínimo repleta de amor e ódio pelo corpo negro como o espectro sinalizado por Gottschild (2003: 150) ao citar estudos relacionados às imagens corporais negras, produzidos por contextos visuais brancos europeus oitocentistas. Esses são dois exemplos dentre os muitos que evidenciam os conturbados deslocamentos de artistas consideradas(os) negras(os) no campo do entretenimento. Otelo e Baker estavam cientes disso e sabiam através de específicas vivências, ele homem negro e ela mulher negra, que cor, como aponta Sodré (2012)136, constituía espécie de “patrimônio” físico- corporal que se potencializa, na medida em que a escala cromática da epiderme ascendia mais para o tom claro, branco. Reforça-se que essa ideia também pode ser aplicada aos Estados Unidos. Isso se tornava o demarcador para acessos, principalmente para a mulher negra que era e ainda é “o outro do outro” (KILOMBA apud RIBEIRO, 2017). No caso do homem negro, esse demarcador também estaria agregado a uma construção de virilidade, que envolvia o tipo de estatura e estética muscular. Não é aleatório que há fotografias, ao longo da carreira de Baker, inclusive no princípio de seus trabalhos em Paris, em que é nítido ou o clareamento no tratamento fotográfico ou a utilização de cosméticos clareadores, fato este que a própria artista assumiu em uma das primeiras co-autobiografias (SAUVAGE, 1927).

136 Informação retirada da entrevista de Muniz Sodré ao Programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura em 2012. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=JrmmExBUxyQ. > Acesso em 12.nov.2017. 122

Essa situação se deve a um enraizamento em padrões estéticos femininos europeus, nos quais a brancura era/é termômetro de inserção sociocultural inclusive num contexto francês “encantado” por “áfricas” inventadas por/em olhares artísticos brancos.137 Para Otelo, as palavras “preto”, “crioulo” e “ negro”, com conotações duvidosas, eram sempre recorrentes em artigos e reportagens, a bem trazer frases e termos escolhidos pelo repórter da revista Diretrizes, enquanto acompanhava parte da rotina do artista, no Cassino da Urca, em abril de 1941: “negrinho”; “esse creolinho não é de cozinha”; “par de beiços que aumentam cada vez mais”; “aqueles dois círculos alvi-negros que fazem as vezes de olhos”. Tais expressões aparecem em conexão com a percepção do repórter a respeito do corpo do artista que não se encaixava no modelo que referendava a virilidade masculina negra, grande, forte, sexualizada pelo imaginário, apreciada e temida, ao mesmo tempo, por ser a predadora de mulheres brancas “ingênuas”. Pelo contrário, pela estatura (1,52m), Otelo era infantilizado e diminuído, razões que também explicam personagens pensados para sua profissão de intérprete. As reverberações dessas narrativas atravessaram os corpos de Josephine Baker e Grande Otelo estruturando uma dificuldade por parte dos dois, na elaboração do esquema corporal (FANON, 2008) estendendo-se para uma turbulência na composição de sentidos e subjetividades que favorecessem discurso estável sobre si e a autoimagem. É cuidadoso considerar que, tanto uma experiência, como outra, têm recortes específicos, por isso não podemos tentar traduzir igualmente e da mesma forma o ser negra e ser negro, especialmente nos casos de Baker e Otelo, artistas conhecidos com diferentes alcances nos públicos branco e negro, tanto do ponto de vista receptivo, como geográfico. Ao adicionar o nome “negro” para o homem e “negra” para a mulher, múltiplos sentidos encontram-se e comungam significâncias. A própria palavra “negro/negra” encerra sobre si uma percepção castradora, adestradora e desmotivadora, quando projetada para quem ela se dirige, independentemente do gênero. Parece que se questiona a humanidade da pessoa com essa terminologia, devido aos recônditos fundacionais da origem do racismo. Sentindo-se inquirida, a vítima da prática racista é fixada em tempo e espaço restritos, com condições limitadas e precárias, impossibilitada de exercer, em posição equitativa com o sujeito branco, a complexidade humanística que a constitui.

137 Além da criação da Revue Négre - companhia composta por mulheres e homens negros estadunidenses, em 1924, e idealizada por uma socialite branca dos Estados Unidos casada com um Francês, há também a vasta experiência nas artes visuais, em que se podem citar os trabalhos de Picasso, baseados em certa noção ou percepção a respeito das máscaras africanas. 123

Em outras palavras, é como se o corpo de uma mulher negra, além de ser recepcionado segundo imaginários e fetiches sexuais heteronormativos, ou não, fosse visto como a concretização da força e da resiliência. Nesse caso, para essa mulher o espaço para usufruir da própria fragilidade é praticamente inexistente. O corpo negro que “esganiçava” e “uivava”, segundo as observações descritas pelo escritor em 1939, era o mesmo que sofreria alguns anos depois um processo de aborto espontâneo (WOOD, 2000), durante a Segunda Guerra Mundial, no norte da África. Esse conflito bélico esteve mergulhado ideologicamente em uma tensão racial que pisava os solos europeus através de sapatos alemães. Josephine foi uma espiã nesse período, aproveitando seus deslocamentos sorridentes no mundo do entretenimento, ela articulava politicamente vistos, viagens de muitos cidadãos judeus e outras pessoas perseguidas sob administração de Hitler (WOOD, 2000). Ela passou bom tempo em Marrocos, dedicando-se à militância contra o governo alemão e entretendo os aliados. Esse período lhe rendeu uma doença abdominal grave, atrelada a um processo abortivo que quase a levou a óbito (WOOD, 2000). Já o corpo negro de Grande Otelo que era considerado o mais “feio do mundo” segundo o repórter Edmar Morel, dez anos depois, em 1949, fica de face com as mortes da esposa e do enteado, o garoto “chuvisco”. Lúci Maria mata o próprio filho e depois se suicida. Após esse episódio, seu posterior relato biográfico (CABRAL, 2007) aponta que o artista intensificaria o uso do álcool, prejudicando saúde e carreira. A esposa teria deixado uma carta na qual expõe que Otelo e sua possível postura abusiva seriam os responsáveis por aquela tragédia. Provavelmente aquela carta, se realmente existiu, o acompanharia dolorosamente em vida. Quando essas informações a respeito da vida pessoal de Baker e Otelo são visitadas, constatamos que não eram corpos instintivos ou animalizados. Eram territórios amplos com subjetividades e afetividades atravessadas por episódios complicados e traumáticos, costurados ao que as aparências desses corpos com seus fenótipos, peso, altura e tonalidades de pele representavam para a sociedade no Brasil, nos Estados Unidos ou na França. Países com diferentes desenhos acerca do ser e tudo que o constitui, segundo engendramentos raciais e de gênero. Diante desse contexto confuso e tumultuado, por que insistimos em utilizar a expressão corpo negro? Quais historicidades e significações implícitas, quando usada para inferiorizar ou para positivar o discurso sobre o corpo? Como assumimos os riscos dessas implicações? 124

Como elaborar um discurso acerca do corpo que penetre num olhar para as subjetividades, respaldando especificidades e, ao mesmo tempo, reconhecendo-a num processo de pertencimento coletivo? Antes de dedicar tempo à compreensão dessas perguntas, é interessante realizar retrospecto filosófico ancestral do sentido de corpo negro, quando usado por “artivistas”, não artistas e pesquisadores para positivar um lugar de fala, verificando como filosofias oeste- africanas e centro-africanas imbricaram-se, umas às outras, e apropriaram-se do termo negro (imposto) para plantar lugares epistêmicos acerca do corpo em diásporas transatlânticas. Considero o corpo como organismo que interage com ambientes, situações, contextos; mundos visíveis e mundos invisíveis. Compreendo corpo como espaço de construção de sensações, afetos, emotividades e subjetividades; e é esse conjunto que o constitui pensante, posto que todos os fatores existem em relação de interdependência. Seja tecendo fios, gesticulando, costurando, dançando, tocando um tambor, seja lendo um livro, escrevendo uma tese ou discursando verbalmente a respeito de algo, “o corpo é pensando”. O significado de “pensar”, neste caso, passa a ter um sentido, além do que comumente lhe atribuímos, em muitas instâncias das culturas americanas138, isto é, para além daquele no qual pensar seria atividade restrita ao cérebro e a forma como é utilizado. A problematização dessas maneiras é o que mais interessa aqui. Geralmente conferimos o título de pensadoras ou pensadores a pessoas que dedicam boa parte dos momentos da vida a reflexões mentais e invenção ou reinvenção de ideias a partir desses mesmos ciclos reflexivos. No senso comum, a ação de pensar é vinculada ao exercício de certa escrita, quando as chamadas “mentes pensantes” concretizam interesses intelectuais, sentadas em algum lugar, manuscrevendo, datilografando ou digitando algo semelhante ao que eu estou fazendo neste momento. Esse é apenas um dos múltiplos jeitos de o corpo agir ou interceptar o mundo. Mesmo assim, ele garante status nas nossas sociedades americanas e são significativos nas relações de poder. Além disso essas relações convergem com critérios que classificam o que se pensa, quem pensa, por que e para quem se pensa. Quarteto ancorado em ideias coloniais e fortemente desenvolvido na modernidade, como veremos adiante. Defende-se que pensar é corpo, e corpo é pensar constantemente, a despeito das ações realizadas. Não é apenas um debate sobre a dicotomia corpo e mente e tentativa de reintegrá-

138 Ao enunciar a palavra Américas ou Americanas, refiro-me a todo território e seus respectivos povos localizados na região norte (América do Norte), região central (América do Central) e região Sul (América do Sul). 125

los um ao outro, e sim a urgência em anunciar o corpo como sinônimo de pensamento. Aprofundando tal ideia, a teórica nigeriana OmófoLábò S. Àjáyí pontua:

Infelizmente, enquanto diferenças linguísticas são prontamente reconhecidas e esforços são feitos para aprender como falar uma linguagem não familiar, outros meios de comunicação são negligenciados. Especificamente os meios não verbais de expressão de comunicação-facial interpessoal, a posição espacial, gestos das mãos, e movimentos do corpo em geral e aparência não são considerados importantes o suficiente para serem abordados.139(ÀJÀYÌ, 1998: 02)

Àjáyí desperta nossas percepções para outras formas de comunicação de corpos/ pensamentos, nos quais ações e sinais não verbais são também permeados de dinâmicas significantes, sobre o que é a pessoa e seu poder relacional com o entorno. Na cultura ioruba, ara é a palavra designada para corpo físico; é a casa, o lugar, espaço de concentração do àse, “poder em estado de energia pura”. O ara é onde as confluências são reconectadas, existindo em movimento, inscrevendo-se na vida em ligação com os outros. Por sua vez, o ara coexiste em relação de interdependência com o ojiji – traduzido como sombra e considerada a essência espiritual; o okan – que representaria o coração, não apenas o físico, como também o imaterial, seria também a inteligência, o pensamento e a ação; o emi – a respiração corporéa, assim como o sopro do divino; o ori – no seu sentido literal a cabeça física, no entanto amplificada para uma tradução do interior do corpo (OLIVEIRA, 2003). O trânsito entre esses elementos, intercirculações e movimentos é selado pelo Exu Bara, o Rei ou dono do corpo. Todos temos/somos esse orixá, ele está “Presente nas cavidades do ser humano, Exu Bara conhece nossas entranhas e conhece nosso destino, juntamente com ifá, o orixá das adivinhações e da sabedoria.” (OLIVERIA, 2003: 38.) Desse modo, quando Àjáyì ressalta o poder significativo dos sinais não verbais do corpo, chama a atenção à noção de pessoa cuja fundamentação é o entrelaçamento do físico com o mundo invisível, o mundo da energia, o mundo do àse. Não é apenas ver um artista dançando ou atuando, mas também identificar em sua gestualidade indícios de matrizes ancestrais que são esse entrelaçamento e de que forma elas dialogam, reagem ou subvertem as ambiências propositivas ou impostas. É interessante observar, ainda, que o que diz respeito a pensamento, ação e inteligência seria relacionado ao okan coração físico, e ao interior associado, a cabeça física, o ori, como se

139 Tradução livre. Unfortunately, while linguistic differences are readily acknowledged, and efforts made to learn how to speak an unfamiliar language other means of communication are neglected. Specifically, the non-verbal means of interpersonal communication- facial expression, spatial distance, hand gestures, and general body movements and appearance are not considered important enough to be bothered with. (ÀJÀYÌ, 1998: 02) 126

esse atravessasse ou flutuasse por todo o corpo ou pessoa sem sentido fixo no cérebro. Uma diferente concepção, se comparada aos significados científicos e sociais de inteligência, coração e cabeça na perspectiva ocidental eurocentrada. Em outra visão, a banto, podemos vislumbrar algumas nuances interessantes para o significado de corpo, no qual perceberíamos visão peculiar a essa ideia de corpo=pensamento ou pensamento=corpo. Ao apontar o significado da palavra Muntu, Henrique Cunha Jr nos auxilia nessa compreensão:

O Muntu é a pessoa constituída pelo corpo, mente, cultura e principalmente pela palavra. A palavra como um fio condutor da sua própria história, do seu próprio conhecimento da existência. A população, a comunidade, é expressa pela palavra Bantu. A comunidade é histórica, é uma reunião de palavras, como suas existências. (CUNHA-JÚNIOR, 2010: 81)

A palavra Muntu seria a tradução para pessoa ou corpo, também. Pois esse não é entendido desarticulado de mente, cultura ou palavra – a qual veicula todos os aspectos anteriores. Acredito que, traduzindo para um entendimento ocidentalizado, é como se enunciar corpo, mente ou cultura isoladamente não tivesse sentido ou função alguma. É como se Muntu fosse também território ou lugar de concentração simbólica, cognitiva e energética, aproximando-se, assim, do significado de ara para os iorubas. Além disso, o Muntu evoca relação de interdependência com outras formas de vida, outras formas de existência. Em outras palavras, a minha existência é por causa das outras existências no mundo, nesse caso os elementos da natureza, os animais, outras comunidades, os seres encantados. Essa concepção de interdependência não é distante da iorubana na qual “A pessoa é o resultado de forças divinas como naturais. Sua essência está indissociavelmente ligada às divindades como aos elementos da natureza.” (OLIVEIRA, 2003: 39). O que chama atenção é que, na observação, escrita anteriormente, de Àjáyì (1998), o discurso não verbal é ressaltado para explicar o que é a pessoa ou ara; na nota de Cunha Jr. (2010) a palavra é um dos principais elementos na constituição do Muntu. Contudo, não nos apressemos em definir que uma cultura priorizaria um elemento em detrimento do outro, procuremos entender como cada cultura veicula-os, tornando-os potências em suas redes relacionais. As comunidades negras em diáspora evidenciam cotidianamente uma síntese dinâmica dos aspectos fundantes do corpo/pensamento/pessoa, discorridos anteriormente, a respeito dos entendimentos banto e ioruba. Nesse sentido, ao decodificar situações corporais de Josephine Baker e Grande Otelo, é imprescindível dedicar atenção para discursos não verbais, registros 127

dos seus gestus em fotografias ou vídeos, bem como os deslocamentos simbólicos e silêncios presentes nos seus depoimentos. Os corpos negros-diaspóricos são significados em histórias cheias de trânsitos e (re)estruturações simbólicas, em contextos assinalados por adversidades extremas, mas, também preenchidos de múltiplos reagentes a essas mesmas situações. O processo construtivo dessa reação combativa está intrinsicamente correlacionado com as interlocuções entre os poderes emanados dos discursos não verbais e da palavra nas culturas citadas, além de profunda comunhão de afetos que se espalha e ocupa pessoas em variados territórios. Nesse sentido, subverter o significado destrutivo da palavra “negra(o)” e torná-la agente para emancipação de corpo, conferindo-lhe vibrações condutoras de rearticulação no exercício do direito de “ser”, é importante levante contestatório a demanda estrutural, “presente” da colonização europeia. Ao nomear corpo negro é impossível não refletir a respeito de profundas implicações que esse termo possa significar. Ao exercer reflexões similares a respeito das presenças africanistas, na dança moderna estadunidense, Gottschild (1996: 5) aponta que: “Se linguagem é um exercício de poder, o ato de nomear é uma ação de empoderamento. Então o que não é nomeado ou equivocadamente nomeado, torna um pano de fundo impotente para a história de alguém mais”140. Em outras circunstâncias reflexivas, Gottshild (2003: 13), ao escrever acerca do corpo da dança negra, ressalta os riscos, “Meu tema é tenso: raça ainda é um território perigoso e conversar sobre raça através do corpo negro dançante é complicado (no sentido de complexo) (adendo nosso)141. Nascimento (2018) indica postura mais destemida; em um dos seus artigos, ela provoca indagando que “Não será possível que tenhamos características próprias não só em termos ‘culturais’, sociais, mas em termos humanos? Individuais? Creio que sim. Eu sou preta, penso e sinto assim.” (NASCIMENTO, 2018: 44). Tanto uma como a outra autora estimulam, de pronto, a elaborar algumas respostas pela escolha do uso do termo corpo negro nesta pesquisa. Sim, ao nomear deseja-se, tanto empoderar, como humanizar um lugar de fala. Pois foram os imbricamentos desse mesmo lugar que articularam a forma como pensamos e sentimos o mundo.

140 Tradução livre. If language is the exercise of power, and the act of naming is an act of empowerment, then what is not named, or misnamed, becomes an impotent backdrop for someone else´s story. (GOTTSCHILD, 1996:5) 141Tradução livre da autora. My topic is hot: race remains dangerous territory and talking race through the black dancing body is tricky. (GOTTSCHILD: 2003: 13) 128

É claro, que precisamos estar cientes de que “As palavras trazem conteúdo, têm suas histórias no idioma, seus significados e suas morfologias não são para sempre. É por isso que elas são escolhidas ou rejeitadas” (CUTI, 2010: 04). Assim, ao somar as palavras corpo e negro, reivindicamos, mais que tudo, um lugar de episteme (MARTINS, 1995) em que a noção de ara e muntu reatroalimentam-se mutualmente em conexão direta com os mais variados contextos, para além de um sentido biologizante, que automaticamente cairia no perigo sinalizado por Gottschild podendo reconstituir, sobre outros pilares racializadores, percepções que pertencem a um mesmo edifício estrutural no qual estariam as observações identificadas nas citações do início deste tópico, referentes a Baker e Otelo. Contudo, não podemos ignorar que o termo negro é atravessado por sentidos étnicos e biológicos em sua origem. Dessa forma, o uso do termo “corpo negro” é a positivação de um lugar de conhecimento em diáspora a partir das matrizes tradicionais africanizadas, ao mesmo tempo em que esse mesmo lugar problematiza e fricciona táticas racistas e sexistas ocidentais. Por isso Nascimento (2018) frisou que pensaria e sentiria como mulher preta. É como se esse último apontamento sinalizasse a palavra “negro” ou preto como uma espécie de alerta para que pretensões brancas não ressaltem mais, com mascaramento romântico, as matrizes africanas de corpo – “esquecendo” o discurso racista e sexista que os vilipendiou. Os dois contextos intercruzam e são interdependentes na conceituação de corpo negro aqui. Além disso, ao usar “corpo negro” quero ressaltar um objetivo mais que fundamental para o desenrolar do contato com esta pesquisa. Ele diz respeito a como histórias e memórias de vidas negras enfrentaram os circuitos genocidas de racismo e sexismo, tendo como suporte negociações entre compreensões ancestrais. Otelo, em 1987, em entrevista, ressaltou: “Pode me chamar de Negro ou Preto “Eu sou um cidadão brasileiro, eu sei o quanto o valho”. Agitando a importância e, ao mesmo tempo, a desimportância da palavra em si, o depoimento do ator complexifica a relação do uso do termo com uma cidadania forjada, cuja construção é historicamente repleta de falhas e carências. Nesse caso, há necessidade de nomear o corpo para redimensioná-lo numa estrutura com outros valores, apontando outra concepção na maneira como se constrói corporalidade. O termo negro apresenta dinâmica histórica significativa até desembocar efetivamente numa conotação com o objetivo de inferiorizar /racializar o corpo do outro, de impor uma linha, sobretudo imaginária, de separação entre os corpos que são considerados humanos e os considerados não humanos em um continente onde as pessoas não se identificavam como negras, embora se reconhecessem de outras formas ou designações. 129

Munanga (2005-2006), baseado na obra A study of History de A.J. Toynbee apresenta interessante retrospecto sobre isso, informando que – mesmo antes de o conceito de raça ser consolidado no século XIX – já havia denominações relativas aos povos africanos por parte de literatura, depoimentos de viajantes, exploradores e negociadores. Boa parte fazia referência fenotípica, especialmente relacionada a cor e tom de pele. Anteriores aos europeus, povos árabes (no contexto da conversão mulçumana, induzida ou forçada) já utilizavam termos com conotações acerca da tonalidade para produzir relatos a respeito de populações do continente africano, principalmente aquelas localizadas abaixo do deserto do Saara, a África Subsaariana. Segundo Munanga (2005-2006: 54) afirma

Sobre o problema específico da cor, a literatura árabe antiga é mais instrutiva. Os primeiros poetas utilizavam toda uma gama de termos diferentes para descrever as cores dos seres humanos, gama muito mais vasta que aquela utilizada habitualmente em nossos dias. Esses termos não correspondem exatamente aos que utilizamos hoje e revelam um sentido das cores mais ligado à claridade, à intensidade, e mais à tonalidade do que à cor. Os seres humanos são frequentemente descritos utilizando-se termos que podemos traduzir como preto, branco, vermelho, verde, amarelo e por dois tons de moreno, claro e escuro. Esses termos são geralmente empregados num sentido pessoal e não étnico e corresponderiam mais (no sentido ocidental) a termos tais como moreno (trigueiro), loiro ou coroado, do que preto ou branco. Algumas vezes são utilizados num sentido étnico, mas com conotação em valor relativo e não absoluto. Os árabes, por exemplo, diziam-se às vezes vermelhos ou brancos em relação aos africanos que são pretos.

No entanto, sobre a relação entre árabes e africanos, o autor pontua:

Quanto às relações entre árabes e africanos, a situação é mais difícil de discernir. Existe um grande número de versos atribuídos aos poetas pré- islâmicos ou aos primeiros tempos do Islã sugerindo fortes sentimentos de ódio e menosprezo em relação às pessoas de nascimento ou de origem africana. A maior parte, se não a totalidade desses versos, foi redigida com quase certeza em períodos posteriores e é reflexo de problemas, atitudes e preocupações mais tardios. Durante o período que se seguiu imediatamente à morte do profeta Maomé, em 632 da nossa era, as grandes conquistas islâmicas transportaram a nova fé para as vastas zonas da África e da Ásia. Com essa situação muitas mudanças podem ser observadas na literatura da época. Em primeiro lugar, os termos descrevendo a cor dos seres humanos se tornaram menos numerosos, específicos ou especializados. Com o tempo, quase todos desapareciam, à exceção do “negro”, do “vermelho” e do “branco”, que tomam uma conotação étnica, absoluta, em vez de pessoal e relativa. O negro designa globalmente os nativos africanos do sul do Saara e seus descendentes; o branco - às vezes o vermelho (claro) – designa os árabes, os persas, os gregos, os turcos, os eslavos e os povos vivendo ao norte e ao leste das terras habitadas pelos negros. (MUNANGA, 2005-2006: 55)

A partir da análise do autor, conforme os contatos dinamizam-se, é possível localizar “sentimentos de ódio e menosprezo”, que preenchem essas denominações referentes à pele dos 130

africanos de tez mais escura, transitando de caráter “pessoal” para teor étnico. Tanto que Munanga (2005-2006: 55) ainda ressalva: “A essa especialização e especificação dos termos descrevendo as cores da pele, acrescenta-se uma conotação muito nítida de inferioridade associada com peles mais escuras e mais particularmente com peles negras.”. Nesse sentido, podemos identificar que as teorias sobre raça, gestadas pelos europeus ainda no século XV e consolidadas no século XIX, têm relação intrínseca com ódio e aversão fenotípica – os quais vinham sendo construídos antes desse período. Esses fatores dão suporte ao conceito de raça que se apoia em argumentos biológicos, religiosos e também econômicos (MALDONADO-TORRES, 2007). É válido acrescentar que, ao longo de quatro séculos, o significado desse termo foi transitando animosamente, na medida em que as políticas de escravização iam se aperfeiçoando, sofisticando a conotação demarcadora em relação às pessoas que cabiam dentro do critério de classificação desse termo. Ao pensar numa perspectiva em diáspora, esse termo atualmente tem distintas significações, no Brasil e nos Estados Unidos. No contexto contemporâneo brasileiro, “negro”, sem conotação pejorativa, tem simbolização ativista e afirmativa. O mesmo pode se atribuir à palavra preto, ainda que prevaleça menos, em certos ritos e interações sociais. No Brasil, a palavra “negro” teria uma relação direta com a inflexão de quem a emite, como bem situado numa conversa entre Jacira Silva e Grande Otelo, a respeito do desentendimento ocorrido entre ele e o dono do Cassino da Urca – Joaquim Rolla - em 1937, situação já acionada neste trabalho no Ciclo 1: Grande Otelo: Quando ele me disse cala a boca negrinho, disse: eu calo, e o senhor mete o seu cassino... e fui embora. (...) Naquele tempo, ser chamado de negrinho era ofensa. E fui chamado muitas vezes, no Coração de Jesus, de negro fedido. É um negócio... Jacira Silva: Mas é a inflexão porque negro a gente tem consciência que é, mas quando alguém fala negrinho, no pejorativo, é diferente de quando falam, o Grande Otelo é um negro muito importante. Não passa por aí também? Grande Otelo: No Rio Grande do Sul, os gaúchos falam negrinho, nas fazendas. Jacira Silva: Carinhosamente ou não? Grande Otelo: Carinhosamente, - tira esse negrinho daí! Mas se for - cala a boca negrinho! – aí já não é a mesma coisa. O que Rolla me disse, me ofendeu. Eu me senti injuriado (....) (OTELO, 1988) 142

142 Esse depoimento ao MIS-RJ foi prestado ao “Projeto de Depoimentos 100 anos de Abolição”, havia quatro entrevistadores, duas pessoas negras. A Jacira Silva, além de uma dessas duas pessoas, era a única mulher da equipe. A outra pessoa é denominada Marcus Vinícius, representante do MIS-RJ. Consta em Barboza (2003). 131

Esse diálogo elucida alguns aspectos interessantes, referentes à intenção de quem emite a palavra negro; se o sentido é engrandecer ou ressalvar a prática da pessoa a quem se direciona, ela se torna subversiva, conforme o exemplo que Jacira apresenta. Por outro lado, ao contextualizar a inflexão do termo nas fazendas gaúchas, Otelo nos incita a apontar a tênue relação entre paternalismo e exclusão que a palavra pode suscitar. O verbo “tirar” numa conjugação imperativa está na mesma frase que a palavra “negro” – no diminutivo. Não há como capturar com inteireza as conotações sensitivas dessa inflexão; mesmo assim a construção da frase é no mínimo suspeitosa. Todavia é interessante observar como Otelo não se conforma com “cala boca, negrinho”, que por extensão é o cerceamento da voz, a imposição do silêncio sobre a palavra que mostra ser tão importante para ele. No contexto estadunidense, o termo “negro” evocaria outro histórico panorama. É interessante lembrar que atualmente a palavra “negro” para a comunidade afro-estadunidense não é comumente usada, sendo respaldada mais com sentido de inferiorização. Ela se constitui num valor altamente pejorativo, no entanto foi muito utilizada pelo menos até a década de 60, conforme conferido nas documentações da NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor). O termo “black” que traduzido literalmente significa preto, seria a terminologia mais comum, difundida principalmente por seguidores de Malcom X, antes de 1965 e depois desse período, quando a explosão do Movimento Black Power passa a ser dominante. Nesse caso, “black” tem conotação e significação mais aceita entre a população negra dos Estados Unidos, seria como tornar-se subversivo. Em linhas gerais esse termo equivaleria, em significado, ao “negro” no Brasil. No entanto, ao analisar os estudos de Heywood e Thornton, perceberemos que os contextos significantes brasileiro e estadunidense cruzam-se em determinados momentos, devido à influência colonial portuguesa na África, mesmo sendo os Estados Unidos ex-colônias holandesas e inglesas: A chave para entender o status legal de Africanos está na terminologia mais frequentemente usada para descrevê-los nos registros legais ingleses e holandeses. Em ambos os idiomas, as fontes geralmente se referem aos Africanos retirados dos navios negreiros portugueses como “negros”, ou variantes desse termo (‘negar’ e ‘neger’). Este termo, o qual foi emprestado diretamente dos portugueses, não tinha significado na Holanda ou Inglaterra até os meados do século XVI, quando falantes de ambas as línguas começaram 132

a visitar as áreas em África frequentadas pelos portugueses.143 (HEYWOOD; THORNTON, 2007: 312).

A partir disso, evidencia-se a troca entre colonizadores da Inglaterra, Holanda e Portugal, na qual este último teria papel de liderança, no que se atribui à disseminação da terminologia, mostrando em extensão como, também eles, compartilhavam e, sucessivamente, disputavam territórios ou áreas comuns. Heywood e Thornton consideram a literatura produzida pelos viajantes como documentação central para realizar a discussão, o que se pode denominar de espécie de literatura colonial em deslocamento. Os viajantes apresentam declarações ambíguas em relação aos africanos, usando geralmente “negros” para se referirem a essas pessoas de qualquer lugar do continente, principalmente da África subsaariana, como as notações de Munanga (2005- 2006) pontuaram anteriormente. Em português o termo básico negro quer dizer nada mais que “preto” derivado das raízes do latim niger, e ele foi usado em 1448 quando os primeiros portugueses vieram para a terra dos negros (land of negros ou lands of blacks) próximo à nascente do Rio Senegal e empregado como um nome regional ou nome étnico. Em algum ponto durante o século XVI o termo negro tomou um segundo significado de escravo ao se referir àspessoas e que podia até independer da cor da pele144. (HEYWOOD; THORNTON, 2007: 312)

Contudo é bom salientar que colonizadores ingleses e holandeses engendraram diferentes implicações das que os portugueses formaram, atribuindo ao significado de “negro” a mesma significação de “escravo”. Em resumo, o termo negro tem seus sentidos dinamizados, na medida em que deslocamentos e encontros acontecem, penetrando na literatura e nas conversas dos viajantes. É óbvio que isso não exclui o fato de outros termos serem compartilhados no imaginário e no cotidiano do período como mouros (moors), “negroes” (variável de negros) and “blacks”, esses foram adotados por ingleses, holandeses e portugueses em circunstâncias diversas e variáveis.

143Tradução livre. The key to understanding the Africans´legal status lies in the terminology most often used to describe them in English and Dutch legal sources. Sources in both languages most often referred to the Africans they took from Portuguese slave ships as “negroes” or a variant of it (“negar” and “neger”). This term, which was borrowed directly from the Portuguese, had no meaning in Dutch or English until the middle of the sixteenth century, when speakers of both languages began visiting those areas in Africa frequented by the Portuguese. (HEYWOOD; THORNTON, 2007: 312) 144Tradução livre. In Portuguese the basic term negro means nothing more than “black” derived from the Latin root niger, and it was used in 1448 when the Portuguese first came to the terra dos negros (“land of the negroes or land of the blacks”) near the mouth of the Senegalese River and employed it as a regional or ethnic name. At some point during the sixteenth century the term negro took on a second meaning of “slave” when referring to people that might even be independent of skin color. (HEYWOOD; THORNTON, 2007: 312) 133

O uso da palavra negro nos Estados Unidos, até 1660, poderia se referir a africanos que não fossem cristianizados. Desse modo, tanto nos Estados Unidos (inglês), como no holandês, o termo “negro” torna-se e transforma-se em marcador étnico para subalternizar cada vez mais as pessoas vindas de África. Além disso, “Até o final do século XVI o centro de atividades europeias no mundo atlântico adotou o termo português “negro” como um termo comum para os africanos negros.”145 (HEYWOOD; THORNTON, 2007: 312). O fato é que a travessia desse termo, ao longo dos períodos, foi se rearranjando e ao mesmo tempo doutrinando o uso até o século XX, em disputa com outro termo de uso bastante convivial, o colored people ou pessoa de cor. Como no Brasil, o uso pela população negra tornou o significado mais subversivo, sublinhando inflexão voltada para a tomada de posse de si, que seria revisada no final da década de 60, quando o termo “black” começa a simbolizar esse (re)tornar-se. Não é por coincidência que, na palestra que proferiu no Brasil em 1952, denunciando a discriminação racial estadunidense, Josephine Baker autodeclarou: “Eu, uma mulher da raça negra lutando por igualdade entre todas as raças, contra o preconceito racial, de cor e religião”.146 Ela, imbuída pelo processo do seu tempo, grifa seu lugar de fala e usa o termo “ raça” num sentido de grupo, não como categoria analítica. Após a Segunda Guerra Mundial ficou mais disponibilizada na literatura a ideia da existência de “raças”, mais fragilizada nos estudos biológicos. Assim como a inflexão de Baker inclina-se para positividade do termo, o contrário também era recorrência. É muito comum encontrar, na imprensa do período, o termo “negro” acompanhado de abordagens desumanizadoras, ironizantes e dúbias. Acessando alguns retrospectos, evidencia-se que a palavra “negro”, assim como as outras, é termo de movimento, porque as implicâncias culturais, que movem suas significações nos tempos, são alavancadas pelos deslocamentos relacionais, a forma como as pessoas, em especial as negras, agenciam isso. No entanto, nunca é demais questionar: Como seríamos nós, o indivíduo, o homem negro se não tivesse havido no século XV a Revolução comercial do ocidente? Sei que faço uma pergunta que assustará os cientistas, aqueles veem na História simplesmente uma ciência, aqueles comprometidos com o pensamento dos séculos XIX e XX. A ciência atualmente é considerada a ‘Mater Mundi’. Não podemos ir de

145Tradução livre. By the late sixteenth century Europeans active in the Atlantic world adopted the Portuguese term negro as the common term for black Africans. (HEYWOOD; THORNTON, 2007: 312) 146Tradução livre. I, a woman of the negro race fighting for the equality of all races, against racial prejudice of color and religion. In Baker, Josephine. Brazil. [Discurso] São Paulo, 30 de julho de 1952. Fonte: New York Public Library – Schomburg Center for Research in Black Culture. 134

encontro aos seus dogmas. Entretanto a História nasceu com o homem, a ciência só foi possível graças a história, graças ao homem. Reflexões simplistas? (NASCIMENTO, 2018 :43)

Agrega-se às palavras de Nascimento a seguinte problematização: será que nós, mulheres negras, exerceríamos plenamente a autoridade do nosso corpo, caso essa mesma revolução não tivesse existido? Será que haveria motivos para a reivindicação justa do lugar de fala (RIBEIRO, 2017) ou do lugar de presença, sem culpa, nos múltiplos segmentos como as artes da cena voltada para o entretenimento? Será que ainda haveria a palavra negra(o)? Podemos vislumbrar um quadro, sem garantias. E, por enquanto, precisamos compreender que terminologias, como a palavra negra(o), estariam no processo inaugural da modernidade, não a conhecida do século XVIII, caraterizado pelo período das luzes ou da Revolução Industrial. Ela, como tantas outras147 palavras, surgiria para nomear comunidades assim como diminuí-las e reduzi-las a imagens sem variações, nuances ou complexidades. E, acima de tudo, introduzi-las na categoria de não civilizadas e desalmadas. Essa era moderna, à qual me refiro, e seu conjunto de crenças (eixo constituinte do significado de modernidade), seria gerada por volta do século XVI, na época do advento das navegações, especificamente a partir de 1492, ano no qual Colombo invade o território que hoje conhecemos como América Latina. Com base nisso, dentre as reverberações significativas desse período,

A mais evidente é o entendimento que a modernidade não foi um projeto gestado no interior da Europa a partir da reforma, da ilustração e da revolução industrial, as quais o colonialismo se adicionou. Contrariamente a essa interpretação que enxerga a Europa como um contêiner no qual todas as características e os traços positivos descritos modernos se encontram no interior da própria Europa – argumenta-se que o colonialismo foi a condição sine qua non de formação não apenas da Europa, mas da própria modernidade. Em outras palavras sem colonialismo não haveria modernidade (...) (BERNADINO-COSTA e GROSFOGUEL, 2016: 17)

Nota-se, a partir da observação dos autores, que a formação das colônias e as primeiras relações com os povos nativos desses territórios, em concomitância com a escravização de pessoas do continente africano seriam o ponto-chave para a fundação da modernidade. Dessa forma, a referente perspectiva não está distante do questionamento apontado por Nascimento (2018) mais de duas décadas antes. O que nos impele a considerar que a pergunta da pesquisadora ainda se faz necessária.

147 O caso da palavra “índio” que fixa numa só imagem e narrativa ideológica, povos e comunidades indígenas distintas entre si culturalmente. 135

É interessante sublinhar que os mecanismos relacionais estavam condicionados à relação eu (europeu)-outro, temperados pela percepção de inferiorização desse outro que era em suma tudo que não fosse Cristão, Branco ou Homem. Qualquer pessoa que não estivesse encaixada nessas três categorias seria considerada alma perdida, um proto-humano, um quase humano, um não humano ou humano fadado a subserviência (no caso das mulheres brancas). O penúltimo – o não humano - seria imposto, especialmente, para famílias, comunidades e povos nativos do continente africano, principalmente aqueles que residiam abaixo do deserto do Saara. Sabe-se que o conceito de “raça” tem sua configuração final consolidada no século XIX, apesar de seus princípios terem sido delineados antes disso, conforme discutido anteriormente. “Raça” já estava sendo engendrado com os discursos modernos que inventou e subalternizou o “outro”. Diante disso o racismo foi/é um dos princípios que articula o projeto de modernidade, da organização do capital, das relações sociais e de poder. De forma contundente e didática, Cuti (2010: 02) oferece explicação a respeito do que seria racismo, interessante para a sedimentação das nossas reflexões:

Um assaltante que invade a sua casa com armas possantes, mata familiares seus, estupra, transmite doença, rouba seus pertencentes, faz você trabalhar para ele, obedecer às suas ordens, esse assaltante pode, se ele for fisicamente diferente de você, atribuir a essas diferenças a superioridade em relação a você, acreditar nisso e fazer até você crer nos argumentos dele, e ele pode também escrever livros e mais livros, produzir filmes e mais filmes, e ensinar para gerações e gerações, por vários meios, que você é inferior e ele é superior a você por conta das diferenças fenotípicas. Racismo é isso. Mas, com consequências inimagináveis de violência, tortura, morte e perversa exclusão. Isso porque racismo implica em crença, dominação e ódio.

Essa modernidade não esvaziada do racismo traduzido por CUTI, preenchida por um pensamento cartesiano, tinha na frase “Penso, logo existo” do filósofo Descartes o seu motor para o não reconhecimento do ser ou estar no mundo da população colonizada. A ideia de racionalidade, construída a partir da filosofia cartesiana eurocêntrica, classificava os povos que pensavam e não pensavam, ancorados por uma perspectiva judaico- cristã. Dessa forma, “A ausência da racionalidade está vinculada na modernidade com a ideia da ausência de ser em sujeitos racializados” (MALDONADO-TORRES, 2007: 145). Assim, a partir dessas percepções, podemos fazer um exercício em tentar entender o quão violento foi ter a complexidade do seu ara e muntu reduzidos a “negros”, para pessoas africanas, que continuaram no continente África ou as que foram obrigadas a fazer a travessia no Atlântico. Esse termo desconsiderava complexidades e diferenças culturais, objetificava-as 136

e animalizava-as de formas horrendas tentando aniquilar sistematicamente seus princípios cosmogônicos referentes às próprias noções de existência. Foi instaurado um abalizador colonial nos corpos das populações africanas, e ele significava: “vocês não pensam, tão pouco existem, e de forma alguma são corpos humanos”. É óbvio que essas significações dinamizaram-se ao longo da própria travessia e nos territórios americanos com sistemas, pedagogias e estratégias cadenciadas tentando introjetar nas pessoas a crença de que seus corpos eram defeituosos, com utilidade restrita à servidão. O “Penso, logo existo”, que exacerba a completa individualidade, sob pretensas universais e neutras, era totalmente incompatível com o princípio da coletividade e pluralidade do muntu que evoca “Eu, nós existimos, porque você e os outros existem”. (CUNHA-JÚNIOR, 2010: 81). Tomando essa circunstância como parâmetro temos a divisão maniqueísta, enfatizada por Joaze Bernadino-Costa (2016), entre a “zona do Ser” e a “zona do não-ser”(FANON, 2008); nesta, implicam genocídio e epistemicídio em concomitância. Há nesse projeto a aniquilação da pessoa (isso inclui a concepção que ela tem sobre si) e destruição do conhecimento (que não se aparta da espiritualidade). Assim,

As sociedades africanas e afrodescendentes da diáspora africana enfrentam desde as invasões europeias (1450-1900) e dos desterramentos do escravismo criminoso um problema posto pela dominação eurocêntrica. O do reconhecimento da cultura e da história africana e afrodescendente. O problema da “identidade pensante “e ativa na construção de nosso lugar de humanidade e nos destinos nossos e da humanidade. (CUNHA-JÚNIOR, 2010, 84)

A observação do autor respalda muito bem o que seria a base narrativa da modernidade criadora das zonas de ser/não-ser e genitora das categorias binárias que sustentariam os princípios desses respectivos lugares como oriente-ocidente; primitivo-civilizado; irracional- racional; mágico/mítico-científico; tradicional-moderno; razão e não razão (WALSH, 2009). Essas âncoras permitem que a colonialidade e a modernidade reatualizem-se entre as várias comunidades do mundo, após a própria era moderna (século XV ao século XVIII), quando se situa o eurocentrismo como perspectiva hegemônica que forja, por meio de operações cognitivas, psíquicas e sociais, a superioridade biológica como natural. Assim, é perceptível que colonialidade, modernidade, racismo e sexismo retroalimentam-se e renovam procedimentos opressores e excludentes, inclusive em tempos nos quais Baker e Otelo viveram, sem falar no mundo contemporâneo. Para o dominador europeu, reapropriar-se do termo negro justifica seu acúmulo de capital, a escravização de populações e os privilégios intelectuais e históricos dos brancos. Esses mesmos privilégios perpetuam entre 137

a maioria de seus descendentes diretos, nas regiões americanas, e nas pessoas de pele branca. Implícito, nessa terminologia, está todo o projeto que contém dimensões relacionadas a hierarquias de raça e gênero, a categorizações binárias, à posição hegemônica dos saberes eurocêntricos, à negação/destruição de cosmogonias não brancas/não europeias. Ainda, dentro disso, enfatizaria o investimento sistemático na aniquilação das visões de corpo. A palavra “negro” e sua significância racial está na “zona do não-ser”; nesse contexto, os repórteres que escreveram sobre Josephine Baker e Grande Otelo sabiam disso cognitivamente, quando os elogiavam de forma dúbia ou quando os ofendiam.

3.2.1 Negros invólucros em Negras Fronteiras: a reivindicação pela Zona do Ser

Em um significativo contraponto, ou reação a esse projeto, um número expressivo de pessoas em diáspora ou dentro do continente africano recusam-se a estar na “zona do não-ser” e ainda são reticentes em querer participar de uma certa “zona do ser” concebido pelos colonizadores, mesmo se apenas aparentemente autorizados a tal prática. Essas pessoas vivem nessa divisão inesgotando alternativas para subverter o lado injusto. Baseado nisso, entende-se que vivência se confunde com a ideia de fronteira, enquanto orienta a identificação do teor das demarcações, sejam elas físicas ou imaginárias. Dessa forma, a pessoa negra transforma a fronteira num campo ainda mais dinâmico sem limitá-lo, a partir da imposição dos demarcadores raciais e de gênero que qualificaram os colonizadores e desqualificaram os colonizados. Ela também cria continuamente um complexo sistema, através do qual se recusa introjetar as inflexões desses demarcadores, ao mesmo tempo em que se apropria de aspectos da estrutura colonial – a citar o linguístico - para se reinventar e manter os vínculos com o seu passado ancestral. A pessoa negra cria condições entre zonas, entre esses lugares, ou mais especificamente, cria condições dentro de subcondições. Em diáspora, povos das culturas oeste africanas iorubas e centro africanas bantos interconectam-se numa dinâmica ambígua e intensa sob circunstâncias adversas e violentas, comungando cosmogonias a respeito de ser e de vir a ser nos territórios estrangeiros. “Na medida em que havia um intercâmbio entre mercadores e africanos, chefes, mercadores também, havia uma relação escravo/escravo como também de intercâmbio, uma change. Essa troca era do nível do soul, da alma, do homem escravo” (NASCIMENTO apud RATTS, 2006: 66). 138

Num mesmo sentido, era uma troca que o colonizador não podia capturar nem cooptar; uma troca que residia no segredo, num aprimorado senso de observação, numa manipulação inteligente da ironia. Se o colonizador adere à palavra “negro” para inferiorizar, africanos e descendentes apropriam-se dela para vivenciar atitude de fronteira, num trajeto longo (séculos), e instável. Apropriação que distorce e contorce a palavra entre tempos, sincopando-a, transformando sua fragilidade significante (atribuída originalmente) em fonte de força respaldada por múltiplas temporalidades longínquas. Nesse laço, é percebido que muntu e ara, de fato, tem distinções e estas também revelam sua unidade. Nesse lugar, ao contrário do constado no projeto da colonialidade, a palavra negra é preenchida de significações estéticas e empíricas, em um projeto que desafia as estruturas narrativas da modernidade. O redimensionamento do conceito de negra(o) é uma ação dos sujeitos que estão entre zonas, produzidas pela empresa colonial que engendra fatores, regras, discursos, manuais, escolas e lugares de corpo. Referente a isso Cuti (2010: 05) oferta um apontamento sintético e, ainda, elucidativo:

Na década de 40, em Paris, estudantes negros das Antilhas e da África haviam fundado o movimento da Negritude. Na década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos empregou a palavra “black” cuja versão correta, no contexto social brasileiro, é “negro” e não preto como querem alguns. Ou seja, este assumir a palavra “negro” pelos próprios negros não é recente, nem tampouco local.

O pesquisador leva a ressaltar que, como já foi explanado com mais detalhes anteriormente, o processo de redimensão do termo é compartilhado em diferentes territorialidades da diáspora negra. É necessário frisar que essa caminhada da significação terminológica não acontece sem a (re)estruturação de ideia e imaginário de corpo. Nesse processo, ocorre a realocação do autoamor e do autocuidado, e isso já implica desenvoltura correlata com idas e vindas inseridas num envolto que circula numa espécie de redemoinho. Vozes do movimento de negritude ecoaram, instaurando atmosferas não somente de autoafirmação, mas também de envoltórios autonutricionais. Ao escrever em um de seus poemas “Minha negritude não é uma mancha de água morta sobre o olho morto da terra” (CÉSAIRE, 2012: 65) nos proporciona a percepção de que nosso corpo tem vida, por isso movimento. Ao falar, através da personagem Baby Sugar, “Amem essa carne. Amem muito. Lá fora eles não amam nossa carne”. Toni Morrison (1987: 106) nos lê por dentro e eleva nosso corpo a conhecer-se autopenetrando-se. 139

Num invólucro preenchido de distintos tempos e diferentes localidades, esses pensamentos transatlânticos (re)nutrem-se, criam pontes e diálogos dos lugares onde se infiltram, das experiências de ser homem (Cesáire) e ser mulher (Morrison), atravessados pelo todo que uma palavra – negro – pode significar e vir a significar-se. Sem escapar às tensões entre diferentes condições de gênero que os acompanha, Morrison respalda Césaire (2012: 65); e esse assim o faz à escritora, como se a complementasse, mesmo antes de ela revelar-se ao mundo: “Minha negritude não é torre nem catedral. Ela mergulha na carne rubra do solo. Ela mergulha na carne ardente do céu.” Acredita-se que esse “diálogo involucrólico”148 intertemporal, entretemporal e cíclico coexiste com muitos outros, num ato em cadeia de desobediência (MIGNOLO, 2008). Gestado e fomentado há mais de 400 anos pelas comunidades negras em diáspora, ele está num entre configurar-se, ou seja, também numa atitude de fronteira. Assim, discutir o tema corpo negro implica falar da cultura da reinvenção de existir. Se, durante a escravidão, isso já era realidade, no pós-escravidão essa situação é cultivada com múltiplas dinâmicas e peculiaridades, rearranjando-se de acordo com as relações interdiaspóricas de cada região das Américas. As negras fronteiras multiplicam-se, em grande número, traduzidas em múltiplas novas existências cada vez mais potentes, e nem um pouco retilíneas. Em conformidade com essa questão, Grande Otelo nasce em 1915, vinte e sete anos após a oficialização da Lei Áurea pela princesa Isabel. Josephine Baker é de 1906, cinquenta e seis anos após a Emancipação dos Escravizados, assinada por Abraham Lincoln. As nuances sobre a significação de “negro”, nesses momentos, são preenchidas, quando assumidas pelos movimentos negros no Brasil e Estados Unidos. Quando olhamos com lupa para os artistas negros, nas artes cênicas de entretenimento nesses países, os detalhes tendem a ser mais complexos. A apropriação do termo negro, quando usado para fertilizar espaços e campos de fala, precisa ser analisada com cuidado, já que, tanto entretenimento, quanto arte, são ciclos culturais e

A constituição do imaginário de uma população é feita especialmente pela produção cultural. Nesta, as formas mais eficazes encontram-se no campo das artes, porque manipulam não apenas os aspectos racionais das relações humanas, mas também os emocionais. (CUTI, 2010: 08)

Ademais, a arte também é potente na (re)constituição de sistemas imagéticos e, quando ela está plugada em humor e entretenimento, ela se revela como aparelho inteligentemente

148 Neologismo – autoral. 140

ancorado numa peculiar eficácia que não só desmascara a disputa de identidades, mas também apresenta um debate sobre “tonalidade de pele” e o caráter provocador dentro do próprio invólucro. Essa ideia reconecta-se com o aporte inicial sobre fronteira que foi apontado no primeiro Ciclo, referendado nos estudos de Matos (1982) que ressalta a ambiguidade e a dialogia contida nesse esquema. Apesar de, na investigação da autora, o recorte de classe sobressaltar na análise do conjunto da obra de Wilson Batista, Geraldo Pereira e Geraldo Filme, a atitude de fronteira ganha perfil mais consoante aos trajetos de Baker e Otelo.

3.2.2 Revistas negras ou Negras revistas

É provável que não seja novidade a pontuação sobre as participações, tanto de Baker quanto de Otelo, em revistas negras da década de 20 do século XX, já que foi mencionado neste trabalho. A Companhia Negra de Revistas, que surgiu em 1926, sempre foi um fato recorrente que Otelo fazia questão de destacar nos seus depoimentos, quando o tema era responder a perguntas acerca do início da carreira. A entrevista concedida ao Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, como parte de um projeto institucional, que buscava refletir sobre os 100 anos da abolição da escravatura negra brasileira, apresenta-se como registro depoente mais completo a respeito dos mais ou menos cinco meses que ele trabalhou no grupo:

Fui chamado a São Paulo para fazer a apresentação da Primeira Companhia Negra de Revista que se fez no Brasil, em 1925. Estava com nove anos. Essa companhia estreou no Teatro Rialto. Seu idealizador foi um negro que viveu em Paris. Ele escrevia, compunha músicas, e quando chegou aqui, teve a idéia de reunir os negros para fazer uma companhia de revistas. Encontrou apoio num cenógrafo chamado Jaime Silva, um grande cenógrafo da época. Essa companhia estreou no Teatro Rialto em 1926 mais ou.menos, ou 1925 mesmo. (BARBOZA, 2003: 53)

Grande Otelo participa da segunda fase da Companhia Negra de Revistas que naquele momento não era mais capitaneada pelo seu idealizador, João Cândido Ferreira – o De Chocolat. Este, segundo aponta Barros (2005), decide desligar-se da companhia após discutir com Jaime Silva, que parecia não querer formalizar o contrato. Pouco tempo depois, surgem notícias que De Chocolat estaria reunindo artistas negros, alguns ainda da primeira companhia, para criar a Ba-Ta-Clan-Preta. Assim, em meio a reuniões, divisões, além da pouca idade que tinha na época, é compreensível que Otelo tivesse dúvida sobre o exato ano de estreia que teria sido em 31 de 141

julho de 1926 (BARROS, 2005). Após o racha, sob liderança única de Jaime Silva, Otelo estreia pela Companhia Negra no Teatro Apolo, em São Paulo, em 20 de outubro (BARROS, 2005). Um dado na fala de Otelo é a experiência de De Chocolat na França, que leva a crer em primeira instância que a ideia do artista-empresário teria partido da repercussão e da apreciação da Revue Négre, apresentada em Paris no Teatro Des Champs Élysées, em 1925. Esse espetáculo era composto de mais ou menos 24 pessoas negras, dentre elas Josephine Baker. Tanto o grupo negro-brasileiro, como o espetáculo negro-francês composto por artistas estadunidenses, ao agregar “negro” à palavra Revista já instituía um debate acalorado para o período, no qual são apresentados. Aqui, no Brasil, a discussão que descortina o lugar do corpo negro dentro do projeto de identidade brasileira; e, na França, a difusão de uma outra face da colonialidade – aquela em que se cristaliza a crença europeia de que a pessoa negra deveria ser apenas fixada no espaço para as artes do entretenimento e da objetificação do corpo negro feminino, ideologias disfarçadas nos olhares encantados com a originalidade do Charleston e a pureza de uma estética negra. Assim, a Companhia Negra de Revistas e a Revue Nègre teriam elo, do ponto de vista estético, referencial e fronteiriço. No entanto, Barros (2005) que apresenta relevante documentação em seu trabalho, aponta incertezas quanto à ida de De Chocolat a Paris, informação que precisaria ser mais escavada e evidenciada. Numa sociedade artística revisteira, após as recentes repercussões da Primeira Guerra Mundial, havia uma relação cada vez mais afinada entre os meios de comunicação – cartas, jornais, telegramas. Ainda era o momento do aperfeiçoamento da cultura fonográfica e da profissionalização cada vez mais contínua da construção de revistas e teatro de variedades. Além disso, permeava um desejo permanente por parte de uma população ex-escravizada ou de descendentes de negros recém-emancipados de redefinir-se em certa oficialidade. Observado esse cenário, é de se considerar que o invólucro constituído e constituinte pela/da atitude de fronteira fosse algo fluindo entre as comunidades negras diaspóricas, nas Américas ou na Europa. Na via de mais um “diálogo involucrólico” é necessário trazer à tona o surgimento de outro espetáculo composto por um elenco só de negros, Shuffle Along. Essa revista estadunidense, estreada em 1921, é anterior às duas experiências citadas. Se interpretada do ponto de vista cronológico pode ser considerada possível inspiração subjacente à Companhia Negra de Revistas do Brasil (Figura 20).

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Figura 20: Parte do elenco da Companhia Negra de Revistas, 1926 Fonte: Portal Luiz Nassif

Pode-se dizer que Shuffle Along foi o primeiro importante espetáculo no qual Josephine Baker atuou como dançarina. O trabalho não tinha o termo “negra” ou “negro” no título, mas certamente foi algo significativo para a comunidade artística negra nos Estados Unidos. Para refletir sobre isso verifiquemos o que Baker diz sobre a aparição do trabalho:

Havia rumores de que um novo espetáculo denominado Shuffle Along, com uma incrível reputação boca a boca estava a caminho da Filadélfia. Nós ouvimos que as performances corriam com sucesso e que o espetáculo já estava agendado para Nova York. E eles precisavam de mais dançarinas. Uma Companhia Negra na Broadway? Isso era algo novo.149(BAKER E BOULION, 1977: 26)

Josephine Baker trabalhava como assistente de troca de figurino numa troupe de variedades na Filadéflfia, quando soube que o espetáculo estaria naquela cidade. O trabalho foi escrito pelos irmãos comediantes Flournoy E. Miller e Irving C. Miller que atuavam também no espetáculo. A música foi composta por Eubie Blacke e letra de Noble Sissle. Shuffle Along em sete anos apresentou 504 performances para plateias negras e brancas, assim como a Revue Négre (Figura 21) na França e a Companhia Negra de Revistas no Brasil. 150.

149Tradução livre. Rumor had it that a new show called Shuffle Along, with astonishing word-of-mouth reputation, was on its way to Philadelfia. We had heard that the tryout performances were so successful the showwas already booked for New York. And They needed more dancers! A Negro company on Broadway? That was something new. (BAKER; BOULION, 1977: 26) 150Dado coletado do texto“ Highligths of the Negro´s contribution” de Noble Sissle. Esse material foi encontrado na New York Public Library – Schomburg Center for Research in Black Culture. 143

Figura 21: Elenco da Revue Nègre, 1925 Fonte: https://br.pinterest.com/pin/576179346048055084/?lp=true

A ideia era criar uma comédia a partir do humor sulista dos Estados Unidos, que escapasse do convencional, baseando-se em estilos europeus de operetas (Baker e Boulion, 1977). Baker animada com a repercussão do trabalho e arrebatada pela ideia de um elenco só com pessoas negras desejava participar dessa experiência. As três formações apresentavam aspectos comungantes que podem ter sido rearticulados por válvulas históricas do momento, como a disseminação do jazz e de outros ritmos negros estadunidenses na Europa, via imigração de artistas negros para esse continente, sobretudo com alocações na França, o país onde era possível certo “ exercício” de liberdade, sem ausência de ambiguidades ou restrições. Nos três encontramos a presença do Charleston, ritmo que deixaria vir à tona outras congruências do corpo na Europa e que se encontraria com seus ritmos irmãos negro- brasileiros151, como o maxixe e o samba, em cidades como o Rio de Janeiro. Podemos evidenciar isso, quando Otelo comenta a respeito da sua recordação e relação com artistas que participavam da companhia negra:

Nesse espetáculo tínhamos uma cantora muito boa chamada Rosa Negra. O primeiro cômico, chamado Mingote, foi o mesmo que veio a me substituir no filme “Favela dos Meus Amores”, porque eu não tive tempo de esperar

151Segundo consta na pesquisa de Barros (2005), um dos responsáveis pela introdução e disseminação do Charleston no Brasil, mais precisamente entre 1925 e 1928, foi o ator, cantor e compositor Dorival Silva conhecido, também, pelo apelido “Chocolate”. Barros (2005) indica que segundo a revista SBAT ele tinha uma parceria profissional com a maxixeira Maria Lino. 144

começarem as filmagens. Tínhamos também Oswaldo Vianna, um negro muito alto, bonito, um chansonier, e também o irmão de Oswaldo Vianna, Waldemar Vianna. Ele dançava a Charleston, e eu, pequenininho, o acompanhava, passando por baixo das pernas dele. (BARBOZA, 2003: 54)

A partir do depoimento de Otelo, verifica-se que o Charleston foi uma dança presente no espetáculo cujo título era “Carvão Nacional”. A provável escolha para a dança ser incluída na obra cênica tinha também relação com a impactante repercussão em Paris. Nesse sentido, Josephine Baker colocou que: “Os europeus viram os negros dançarem o charleston e inventaram outro que não se parece com nada, mas ainda sim está bem152” (SAUVAGE, 1927: 58). Destaca-se nesta fala como o ritmo foi recepcionado por parte dos parisienses, e como ela identifica a não semelhança com a maneira como o charleston é dançado por pessoas negras. Há aí um reconhecimento de estranheza cultural corporal. Note-se a diferença, em relação a como ela recebe os ritmos negros brasileiros, especificamente o samba, com o qual se identifica comparando com vivências corporais negras, quando da sua visita em 1939. Nessa ocasião, num possível depoimento feito ao jornal Globo, já apresentado nesta pesquisa, ela enfatizaria que o samba “teria muito do seu ritmo próprio formado na visão complexa do Harlem”. Esse bairro novaiorquino, seria também sustentáculo na produção de um imaginário europeu sobre arte negra, o que leva a examinar um testemunho de Geofrey Holder, a respeito do sucesso de Josephine Baker em Paris, concedido a Biblioteca do Congresso – Estados Unidos:

A chave para Baker foi que o francês gosta de tudo novo, como todas as coisas originais. Eles gostam do puro. Como – eles gostam do Chinês puro, eles gostam do trabalho indiano puro. Suas percepções estéticas.(...) Paris estava pulando depois da primeira guerra mundial. A música estava no ar. A música era o jazz. Quem levou ele para lá? Louis Armstrong, e todas essas pessoas maravilhosas. Quem – ou Eubie Blacke, Josephine Baker. Josephine Baker fazendo uma nova dança, o Charleston. (…) Eu quero dizer, quando ela fez esta dança, eles ficaram loucos, é um...Josephine Baker era, para eles, uma cultura inteira. Ela era o Harlem.153 (HOLDER, 2002: 35-6)

152Tradução livre. Los Europeos han visto bailar el charleston por los negros y han inventado otro que no se le parece em nada, aunque está bien. (SAUVAGE, 1927: 58) 153Tradução livre. The key to Baker was the French like everything new, like everything original. They like pure. Like – They like the pure chinese, the like the pure Indian Work, uh their sense of aes-aesthetics. (…) Paris was jumping after world war I. The music was in the air. The music was jazz. Who brought it there? Louis Armstrong, and all those wonderful people. Who – or Eubie Blacke. Josephine Baker. Josephine Baker doing new dance, the Charleston. (...) I mean, as she is doing this dance, they went crazy, it´s a … Josephine was, to them, a whole culture. She was Harlem. National Visionary Leadership Project, Geoffrey Holder – Transcrição da entrevista (Entrevista conduzida por Camille O. Cosby), Washington, 2002. Fonte: Biblioteca do Congresso. 145

A impressão de Holder a respeito da fixação francesa ou de uma parte da sociedade francesa154 – intelectual e artística – pela imagem do Charleston e de Josephine Baker está conectada à ideia de “pureza” imaginada. Ao mesmo tempo que o fragmento denota também como estava a sociedade francesa pós Primeira Guerra, ansiosa por algo diferente dos ciclos que lhe eram recorrentes, havia um país esgotado por essa mesma guerra, uma sociedade acabada por ter feito parte de uma combate onde o poder por colônias africanas (que não estavam não só esgotadas, mas destroçadas), era um anseio político-econômico. O jazz, com as portas abertas, no pós-guerra, entra no país e apresenta um novo tipo de música para os franceses com sua sincopação que envolve e confunde. Na verdade, o jazz, aparecia no pacote que o Harlem estava projetando: voz, literatura, poesia, dança, teatro, através da imigração de artistas e intelectuais negras e negros para a Europa Ocidental. A imagem de Josephine Baker, corpo, pele, dança, sintetizavam para os franceses – como bem sublinha Holder– a cultura do Harlem. O coletivo complexo foi fixado no individual, e nesse olhar alimentado por purezas e áfricas devaneadas, o corpo negro continua sendo racializado, e a mulher negra é impressa em objetificações. Já no Rio de Janeiro, a síntese de recepção da imprensa que acompanha os ensaios e depois assiste ao espetáculo de estreia da Companhia Negra de Revistas – “Tudo Preto” – refere-se a certa surpresa ao desempenho dos artistas, uma comparação desenfreada em relação aos artistas negros estrangeiros – por exemplo, Rosa Negra seria comparada a Florence Mills155 – e uma falta de inovação ou originalidade (BARROS, 2005). Durante os ensaios do espetáculo, o público carioca estaria recebendo a Ba-Ta-Clan, companhia francesa de revista que teria artistas negros apresentando uma “Dança Excêntrica” que provavelmente influenciou o imaginário e colocou ainda mais em dúvida a competência das atrizes, atores, cantoras e comediantes negras(os) brasileiras(os). Se, na França, a complexidade de um coletivo era fixada em Josephine; no Brasil, para ser “negro original” era necessário corresponder a determinados critérios pautados em “padrões negros imaginados”, especificamente os produzidos nos Estados Unidos. Diante desses contextos nada amistosos, como os três elencos negros realizaram o “diálogo invólucrólico” ou atitude de fronteira? Quais provocações contidas nesse processo?

154 Visto que como constado na primeira co-autobiografia de Josephine Baker, de 1927, consta que uma parte do público não recebeu bem a Revue Négre, impressões como algo fora das regras moralidade, excesso de selvageria e primitivismo eram percepções correntes. 155Artista com carreira e vida curta. Foi uma das revelações do movimento Harlem Renassaince, trabalhou na peça Shuffle Along,e foi a estrela do espetáculo Blackbird, o qual circulou intensamente na Europa. Vivendo uma carreira nesse espetáculo de apresentações e ensaios exaustivos, Mills faleceu precocemente de tuberculose em 1932. Seu funeral foi no Harlem e teve a presença de uma quantidade expressiva de pessoas. 146

Esse é um momento para situar as relações que a concepção de “pensamento crítico de fronteira”, elaborada por intelectuais latino-americanas(os), tem com a “atitude de fronteira” redefinida aqui.

O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistémica do subalterno ao projecto euro-cêntrico da modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno, localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo a uma luta de libertação descolonial em prol de um mundo capaz de superar a modernidade eurocentrada. Aquilo que o pensamento de fronteira produz é uma redefinição/subsunção da cidadania e da democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das relações econômicas para lá das definições impostas pela modernidade europeia. O pensamento de fronteira não é um fundamentalismo anti-moderno. É uma resposta transmoderna descolonial do subalterno perante a modernidade eurocêntrica. (GROSFOGUEL, 2008: 138)

A nota de Grosfoguel já aponta de forma indireta a minha preferência em nomear atitude de fronteira (MATOS, 1982), pois aí estaria englobada uma perspectiva mais corporal de pensamento em conformidade com entendimentos tradicionais e extensão das fundamentações para instâncias não tão correntes. Visto que quando as(os) intelectuais querem citar exemplos de pensamento crítico de fronteira, geralmente, acionam: quilombos, comunidades tradicionais de terreiro, comunidades indígenas, movimentos sociais, movimentos de mulheres, além de apontar um tipo de teatro negro com uma só linha de engajamento, como o caso do Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento. Ao usar os termos “libertação descolonial”, “resposta transmoderna” e a redefinição de retórica emancipatória da modernidade, o autor oferece visão na qual tópicos do projeto moderno não seriam rejeitados, e sim reestruturados a partir das epistemologias consideradas subalternas rumo relações sociais mais democráticas e humanas. Grofosguel (2008) ainda aponta que epistemologias e cosmologias, do chamado subalterno, estariam no “lado oprimido e explorado da diferença colonial”. A meu ver, há nessa reflexão ainda algumas perguntas que necessitam ser feitas: como as epistemologias operam nesse processo de reestruturação? Se a colonialidade caminha de mãos dadas com a modernidade – e ambas são articuladas por princípios organizadores racistas e sexistas – por que se usa o termo reestruturação ao contrário de desestruturação? Por mais que os nativos ou descendentes das terras americanas e as populações escravizadas do continente africano com suas diásporas tivessem sido relegados sob aspectos forçosos para a “zona do não-ser” com demarcações físicas e imaginárias, havia entre eles os 147

que se recusavam/recusam a capturar a ordem sistemática das narrativas de colonialidade. Assim, por que esse “pensamento crítico de fronteira” não implicaria rejeição à modernidade? São questões que pontuo, porque ao considerar a perspectiva decolonial na história e estética do corpo negro reinvidicando esse como campo de conhecimento vejo um estar entre o “o ser” e “o não-ser” – planos coloniais – muito mais por uma escolha de resistência, por saber cognitivamente que essas zonas não se conformam com as experiências. Nesse caminho, outro aspecto comungante entre as companhias negras, que poderiam tentar responder a essas questões, é sobre como a “tonalidade da pele negra” toma curso nesse debate e é usada como processo que implica “diálogo involucrólico”, provocando ainda mais os princípios estruturantes da colonialidade. Josephine Baker ingressou em Shuffle Along em 1921. Na primeira audição que fez para o espetáculo, ela não foi selecionada. Segundo ela, além de pequena e muito magra, sua pele seria “escura demais”, argumento um tanto contraditório ao do diretor da companhia de variedades na qual ela estava trabalhando como assistente na época; segundo ele, Josephine não estava no palco porque ela era “clara demais” (BAKER; BOULION, 1997). Shuffle Along apresentava-se para ambas as plateias, brancas e negras, contudo se acelera quem pensar que a escolha por dançarinas de pele mais clara, que seriam coristas – era essa a função pela qual Baker concorria – era apenas um recurso para ser mais aceito e contratado por plateias brancas. Baker nos apresenta um interessante depoimento a respeito de uma conversa entre ela e a dançarina Wilsie Caldwell, sua colega que já estava no elenco (Figura 22) da peça, no momento em que a artista faz a audição. “Mr. Sissle queria que as coristas dele parecessem com as “Tillers” (Figura 23), uma companhia branca de muito sucesso, então ele estava contratando somente dançarinas de pele mais clara”156 (BAKER; BOULION: 1977: 27).

156Tradução livre. Mr. Sissle wanted his chorus to look like the tillers, a highly successful white company, so he was hiring only the lightest skinned dancers. (BAKER; BOULION, 1977: 27) 148

Figura 22: Elenco do espetáculo Shuffle Along, 1921 Fonte: New York Public Library – Schomburg Center for Research in Black Culture

Figura 23: As Tiller Girls, 1928 Fonte: https://fromthebygone.wordpress.com/2012/08/06/the-tiller-girls-1928/> Acesso em 15.fev.2019.

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Parece que, ao ouvir o motivo pela sua não contratação, Josephine retruca dizendo que Noble Sissle – o responsável direto pela audição – estava “ashamed of his kind” (negando os seus). No entanto, sua colega apresenta outra justificativa: “É justamente o oposto. Ele está esperando bater nos brancos no jogo deles. Uma vez que eles preferem shows de black face com artistas negros reais, foi decidido dar a eles folclores brancos representados por negros”157 (BAKER; BOULION, 1977: 27). Por essa razão todas as mulheres que deveriam compor o grupo de coristas deveriam ser mulattoes, traduzindo para o português: mulatas, escolha que evidencia que as implicações sociais da cromaticidade da pele não são só um aspecto na racialização do corpo negro brasileiro; nos Estados Unidos isso também era/é presente. O que chama atenção nesse registro é que a ideia de Noble Sissle e Eubie Blacke envolvia a plateia branca no próprio jogo racializante que ela propunha. Não se contratava artista negro para pintar o rosto de preto e fazer bizarrices em relação às tradições culturais negras? Isso seria devolvido na mesma medida, ao expor coristas de pele clara para se referenciar às “Tillers”, as famosas coristas brancas. Os criadores de Shuffle Along, com humor e ironia, “sacudiriam” as regras do jogo impostas pelos brancos – artistas negros pintados de preto – instaurando novas regras. No final das contas, quem era o objeto de escárnio? Será que foi por essa razão que Josephine Baker, já em Paris, maquiava-se com o pó claro e fazia sua dança humorística? Ao clarear a pele e dançar o seu Charleston de forma pessoalizada, Baker era apreciada sexualmente e, ao mesmo tempo, interrompia essa forma de apreciação com caretas, assinalando fruição na qual eram presentes aspectos bizarros e de zombaria. Quem era o foco da zombaria? Era realmente o corpo negro? A artista, assim como Sissle ou Blacke, não estaria propondo outro ângulo de reflexão nesse debate? Seria interessante começar a pensar por esse prisma, ampliando nossas percepções sobre artistas desse gênero, verificando as proposições de negociação com a conjuntura em que estavam imersas(o). Na Companhia Negra de Revistas veremos que as mulheres negras de pele clara estavam também presentes, e podemos arriscar dizer que compartilhavam de um mesmo objetivo subjacente.

157Tradução livre. It´s just the opposite. He´s hoping to beat the whites at their own game. Since they prefer blackface shows to real black performers, he´s decided to give them white black folks. (BAKER; BOULION, 1977: 27). 150

Otelo, ainda sobre as lembranças da Companhia Negra, afirma: “Lembro-me que, num determinado momento, eu dizia: mulatas ´cor de burro quando foge´. E para terminar eu dizia: vai começar a inana.” (BARBOZA, 2003: 54). O pejorativo “mulatas-cor-de burro quando foge” é um exemplo de uma voz consoante com a face do racismo brasileiro; contradições assim são pontuadas por pessoas que historicizam a trajetória da Companhia Negra, como Barros (2005), Gomes (2004) e Nepomuceno (2006). Por que para a imprensa o espetáculo não tinha nada de original? Acredita-se que, de algum modo, ele era realmente provocativo, alcançando algum recôndito racializado que as pessoas brancas não sabiam ou esqueciam que tinham. Com atitude de fronteira, as populações negras já nas Américas realocam suas estruturas simbólicas e investigam espaços de respiro através dos quais possam mudar do lugar em que foram colocadas forçosamente. No entanto, esse processo está longe de ser simples e linear. Os povos precisaram reconstruir-se nessa linha, nessa fronteira. E, conforme eram subjugados, recriavam modos de existir, inscritos nos seus corpos. Estes, os únicos lugares onde ainda era/é possível inventar estratégias de subversão radicais. Leda Maria Martins (1995) em seu livro “A cena em Sombras”, ao discutir as relações entre o teatro negro do Brasil e dos Estados Unidos pontua que o termo “negro” se refere a uma “episteme” – produção de conhecimento – e não a uma “epiderme, uma causa, lamento ou pesar”. Conformo as minhas reflexões com a dela, no entanto é impossível que a epiderme não seja questão preponderante entrelaçada ao modo de produzir e (re)criar formas. Não é por acaso que outro aspecto que interliga as três experiências negras citadas seja a posição da mulher negra. Apesar de presente em cena, como cantora, corista, atriz ou dançarina, ela parece ser a integrante com contexto mais fragilizado nesse processo. É o corpo que é objetificado – como se percebe a relação dos franceses com Baker – e o mais questionado, “muito clara ou muito escura”, além de ser constantemente interlocucionado por uma liderança masculina, tanto negra quanto branca. Em Shuffle Along há quatro homens negros (Flournoy Miller, Irving Miller, Eubie Blacke e Noble Sissle); a Revue Nègre, idealizada por uma socialite branca estadunidense – Caroline Duddley - que toma contato com os movimentos do Harlem e propõe aos proprietários do Teatro Champs-Elysées (Paris) a formação da revista só com negros; e a Companhia Negra de Revistas idealizada por um homem negro – o De Chocolat – dirigida por ele e mais um cenógrafo branco, Jaime Silva. Mesmo a posição da mulher branca não desprover de imposições sexistas, tanto ela como o homem negro, que negocia e renegocia no gênero do entretenimento, pertencem a um 151

status oscilante, que permite que ela ou ele estejam em uma posição de “vantagem”, por ser branca e por ser homem, respectivamente (RIBEIRO, 2017). É óbvio que a mulher negra de pele clara, diante dos quadros apresentados, tem situação distinta das mulheres negras de pele escura, vivência essa que se dinamiza de acordo com os desejos imediatos masculinos heteronormativos. O “passeio” que a tonalidade da pele de Baker faz sendo interpretada ora muito escura, ora muito clara, evoca essa dinâmica. Diante dessas questões árduas e contínuas, considera-se que ainda assim as mulheres negras, ao exemplo de Baker, na mesma medida em que eram objetificadas ou subjugadas, respondiam transnarrativamente a esses mesmos cursos, a partir de suas trajetórias. A nomeação do corpo complexifica as situações em si, provocando o quadro e desenvolvendo o invólucro. Este, composto por homens negros, vai dinamizando o que Santos (1983) coloca sobre “torna- se negro”, como um aspecto que perpassa por “tomar posse de si”, criando peculiar consciência. Diante do que foi apresentado aqui, não há dúvidas de que as pessoas negras desses três elencos, caminhavam para a construção de específica compreensão do ser corpo negro, o que reverbera em pessoas negras contemporâneas continuando os “diálogos involucrólicos” em atitudes de fronteiras.

3.3 Ancestralidade

Sobre o lugar onde nascemos. O que ele revela a respeito do que somos ou do que ainda seremos? Sabendo que somos muitos, bem antes da suposta “primeira” aparição no plano visível, o que realmente significa esse local que corresponde ao nosso (re) nascimento? E o que ele pode nos dizer sobre ancestralidade, aspecto indispensável ao funcionamento do invólucro? Para quem tem contato mínimo com a estrutura filosófica africana de pensamento, sabe que ancestralidade constitui a conexão com o quê ou quem antecede. O sankofa, símbolo da cultura linguística Adinkra158 difundida pelo povo Akan, é o desenho de um pássaro (Figura 24) cuja cabeça está voltada para trás e que possui o resto do corpo direcionado para frente. Essas duas partes formam um todo contínuo, como se o movimento para trás dependesse do que vai adiante e vice-versa, ou seja, um não acontece sem a existência do outro.

158População que ocupa o território que hoje conhecemos como Gana - localizado na África do Oeste. 152

Figura 24: Representação do pássaro Sankofa Fonte: Wikipédia

Em conformidade com esse pensamento, há um monumento localizado no bairro do Harlem, que representa Harriet Tubman, ativista e líder de fugas de escravizadas e escravizados nos Estados Unidos no século XIX. Ela desbravava caminhos e articulava comunicações entre cativas(os). (BRADFORD, 2004). Nessa escultura, Tubman tem o corpo inclinado para frente (Figura 25), como se caminhasse. Vista por trás (Figura 26), especificamente da saia de Tubman, saem raízes que se conectam ao solo – base onde a obra está localizada. Mais uma vez o retorno e o avanço estão contidos um no outro.

Figura 25: Monumento a Tubman (frente) Figura 26: Monumento a Tubman (costas) Fonte: Acervo pessoal Fonte: Acervo pessoal

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Migrações, imigrações, transmigrações para além da busca de melhora de condições econômicas de vida, implicam subjetivamente encontrar algo que não necessariamente foi perdido, e sim o que não se consegue ver. Construir condições para visualizar é, sem dúvida, crucial, e essa edificação acontece em movimento. No entanto, arriscar-se no desconhecido é penetrar simultaneamente em algo que se confia ou alinha-se com uma voz que circunda, que evita a possibilidade de uma concentração em riscos e impulsiona a criar atenção para algo que está por vir, aquilo que pode ser digno, que pode ser belo. A necessidade de deslocar-se adiante é constante, e para que ela não se torne vazia ou incongruente em si, é profundamente imprescindível referendar-se em um “início”, apropriar- se de um “começo”. Permito-me ver que o processo de deslocamento forçado que africanas e africanos vivenciaram, em três séculos, pode ter impedido a crença na esperança causando deslocamento violento de si mediante as mais cruéis pedagogias de domínio do colonizador. Porém, quando volto ao presente e percebo que estou viva, que assim – como muitas outras – sou um contínuo de sobrevivência, reflito sobre os lugares corporais de combate das minhas antepassadas, uma travessia que parte da minha mãe e passa pelas minhas mais antigas avós. Eu sou muitas, aquelas que conseguiram e as que não conseguiram atravessar. As mulheres que responderam insistentemente à contra-vida, usando estratégias mais bem-vistas até as mais contraditórias e, ainda assim, inventando inteligentes mecanismos. Penso que elas, também, precisaram fazer um recuo para as que precederam, a fim de se (re)apropriar de si, desenvolvendo múltiplas inteligências e criando o que Martins (1995) ressalva: a encruzilhada entre o discurso dito e o discurso não dito. Tubman abria travessias para que outras e outros inventassem a liberdade na terra onde isso era ausente. Ela se arriscou, desprovida do privilégio de ser homem e ser branca. Tumbman estava abraçada a vozes que constituíam movimentos vibrantes de ação e prática. Tais vozes impediam que ela concentrasse atenção demasiada nos riscos que poderiam a paralisar. Nos testemunhos de Baker e Otelo, identifica-se que o feminino constituía-se na conexão com a África. Não que esse feminino estivesse diretamente ligado a uma ideia de “continente mãe”, sem nuances; pelo contrário, era um feminino e um ser mulher que continha o registro da própria história e memória:

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Eu adorava minha avó. Ela falava com frequência sobre os dias da escravidão contando-me histórias dos seus pais e dos seus avós, trazidos acorrentados da África, vendidos na Carolina do Norte e finalmente alocados no Missouri. As canções que ela cantava enquanto me ninava enalteciam o trabalho e a natureza e falavam da liberdade que algum dia viria...”oh, wasn´t that a wide river” (oh, como era largo o rio)” 159 (BAKER; BOULION, 1977: 06)

A lembrança que Baker descreve para falar da avó materna é permeada de um diálogo entre histórias de dor (escravidão dos seus bisavós e tataravós). De forma igual, o mesmo depoimento cerca-se de estratégias de esperança na busca pela emancipação dos próprios corpos, a liberdade. Essa era uma das referências bases de liberdade para Josephine Baker. Além daquela inspirada nos “direitos do homem”, extraídos da Revolução Francesa que ela tanto citava em suas entrevistas e discursos na década de 50. Não foi possível, pelos depoimentos de Baker, identificar de qual cultura ou povo africano ela era descendente, se de culturas da África Central ou da África Oeste ou Centro Oeste. Indicativos nos depoimentos da autobiografia (BAKER; BOULION, 1977) sinalizam que haveria ascendência nativa Cherokee da parte materna, também. No depoimento de Otelo, pode-se identificar mais concretamente um pertencimento ancestral na costa africana através da história de relação com o seu o nome de batismo:

Meu nome completo é Sebastião Bernardes de Souza Prata. Aliás, tenho que explicar o porquê desse nome. Na realidade sou Sebastião Bernardo da Costa. Papai era Francisco Bernardo da Costa, mas não gostava nem do “Bernardo”, nem no da “Costa”. Esse “da Costa” veio porque a minha bisavó, a tia Silvana, lá de Uberlândia, parteira que nunca aprendeu nada de obstetrícia, era Silvana, nome cristão, e “da costa”, porque era da costa da África. Meu bisavô era o tio Antônio. (BARBOZA, 2003: 40)

É real que vivências construídas nos alicerces do trauma de ser descendente de uma população estigmatizada e marginalizada tenha sido uma válvula para acionar uma recusa do termo que simbolizava as(os) antepassadas(os) - o “da Costa” – ou ainda uma sapiência de que “da Costa” era um termo cunhado por aqueles que oprimiram suas/seus predecessoras(es). Nesse mesmo sentido, a negação do nome “Bernardo”, que seria o sobrenome paterno, podia trazer alguma memória não confortável para Otelo, pois o pai, que ele não conheceu, foi assassinado a facadas.

159 Tradução livre. I adored my Grandma. She often talked about slave days, telling me tales of her parents and grandparents, brought in chains from África sold in North Carolina and finally settling in Missouri. The songs she sang as she rocked me to sleep praised work and nature and told of the freedom that would someday come…” oh, wasn´t that a wide river”. 155

Contudo, paralela a essas posições de recusa há o reconhecimento do conhecimento por parte de sua avó em relação à cultura de feitura do parto. Ressalte-se que ela não acessou as habilidades, via métodos convencionais hegemônicos em obstetrícia, e nas entrelinhas de um discurso não dito, ele enfatiza a sabedoria dela na área em outra perspectiva de conhecença. Nesse contexto de (re)contar a história do seu nome de registro, Otelo demonstra um agenciamento de si, de como gostaria de ser chamado. E, nessa instância, a relação com os que antecederam tem importância. Seguindo com a narrativa a respeito do seu sobrenome ele continua:

Quando comecei a ouvir essas coisas, soube que papai era o que hoje chamam de biscateiro. Nasceu na Fazenda Lúcio Prata e lá foi criado. Eu gostei muito do nome Prata. Papai era o “chico dos Pratas”, e eu naturalmente fiquei sendo o “Pratinha”. Mas meu primeiro apelido foi “Tziu”. Quando houve aquele decreto do Dr. Getúlio, que dizia que podíamos nos auto registrar com duas testemunhas, eu me registrei com o nome que queria, Sebastião Bernardes – porque eu gostava do presidente Arthur Bernardes –, de Souza – porque a mamãe era Maria Abadia de Souza -, e Prata – porque o papai era o Chico dos Prata. Então eu sou Bernardes de Souza Prata. Nasci em Uberlândia. Antigamente comemorava meu aniversário no dia 05 de outubro, mas fui batizado no dia 18 de outubro, e resolvi que tinha nascido no dia 18 de outubro. (BARBOZA, 2003: 40)

Na citação, há evidência de uma tomada de si aproveitando a desatenção da instauração de uma lei, mesmo em meio aos auspícios de um paternalismo brasileiro cordial. Essa apropriação de si provoca e confunde convenções estabelecendo outras normas próprias. Realinhando sua descendência materna e paterna, em conjunto com a decisão de alterar o dia do nascimento160 - em princípio que pode até ter uma conexão com um legado filosófico cristão – que emite também uma autorização sobre quando se nasceu ou renasceu. O motivo de tal resolução? Só Grande Otelo poderia confirmar. Ainda assim, pelas suas travessias e deslocamentos, escapando de regimes cativos contemporâneos do seu tempo, é plausível dizer que era uma insistência manter a mensagem: “vocês não podem capturar o que eu sou, e os muitos que eu sou”. Se mixarmos as falas de Baker e Otelo ao que foi trazido no início – o símbolo Sankofa e a história de Tubman – seremos estimulados a concluir que a ancestralidade não é apenas um lugar de início ou do que antecede, mas também um território de caminhos e movimentos nos quais (re) significações são feitas e (re)feitas.

160 É interessante pontuar que, antes da universalização das tecnologias de registro de identidade, e o Brasil foi, inclusive, precursor no uso delas, era bastante comum que a “data de nascimento” fosse uma aproximação ou que fosse livremente designada, especialmente em áreas rurais e isoladas. Como muitas pessoas eram registradas tardiamente, era comum que houvesse até esquecimento, sem falar que, em mundos não-urbanos e não-letrados, o tempo era registrado na memória e também de acordo com técnicas variadas de registro da passagem do tempo. 156

O termo tem sido cada vez mais acessado em vários âmbitos da arte, principalmente àqueles interligados às Artes Negras, campo no qual se percebe identificação de fundamentos e necessidade de pertencimento. Essa seria uma das razões pelas quais muitos teóricos em diáspora tenham se dedicado a desmembrar cada vez mais esse princípio, socializando visões densas que nos fazem provocar o lugar comum cunhado à ancestralidade, convergindo com seu tempo dilatado e simultaneamente preciso. Eduardo Oliveira (s/d) estabelece relação interessante com a noção de ancestralidade considerando-a como uma categoria para examinar sistemas culturais complexos a partir das válvulas dessa mesma estrutura:

Ancestralidade, aqui, é empregada como uma categoria analítica e, por isso mesmo, converte-se em conceito-chave para compreender uma epistemologia que interpreta seu próprio regime de significados a partir do território que produz seus signos de cultura.161

A ancestralidade auxilia no exame da (re)elaboração de laços produzidos a partir da dispersão forçada de povos africanos no mundo, suas forças-eixo, a base que principia e atravessa pedagogias em corpo. Esse conceito não transita por determinismos biológicos, conceitos de pureza ou pelo significado de “raça” no seu sentido genético. Pelo contrário, ele se refere as conexões rearranjadas a partir de processos em deslocamento, que operam dentro do invólucro. O território, citado por Oliveira, seriam as relações que os sujeitos das diásporas produziram/produzem entre Brasil e África, podendo-se ampliar entre Américas e África, num contínuo processo de deslocação seja ela física, imaginária ou cultural. Pode-se dizer que nisso há também uma transmigração de afetos que constitui mobilizações fragmentadas, não lineares abrangendo passos quase obrigatórios de retorno para seguir em frente. É a “re-vinda” a um cheiro, a foto, conversa com o mar, diálogo com plantas, presença de um cobertor, a escuta às memórias dos mais velhos. A ideia de ancestralidade traz em si também uma noção de movimentação afetiva, um olhar em/por/para ela. Baker ao citar em depoimento que sua avó cantava canções que aludiam a liberdade, e Otelo – ao alterar a data de nascimento – nos revela subjacentemente tempos e movimentos, próprios de um regime de significados que, como coloca Oliveira, está para além da simplória nostalgia ou exótica atitude de escolha. Essas ações estão impregnadas de afeto com o passado que se torna presente.

161 OLIVEIRA, Eduardo. Epistemologia da Ancestralidade. Disponível em: http://www.entrelugares.ufc.br/ phocadownload/eduardo-artigo.pdf> Acesso em 10.set.2012, p.3. 157

Desde a introdução estabeleceu-se um paradigma africanista-diaspórico para realizar as leituras das experiências de Josephine Baker e Grande Otelo, em arte e por isso em vida. Citou- se até aqui, em constância, atravessamentos das culturas ioruba e banto em confrontação com os acarretamentos das consequências coloniais na noção de pessoa africana. Assim, não há como negar que essas culturas são importantíssimas, como bússolas para um letramento de corpo. E elas estão articuladas a outras cosmovisões de África que ocuparam as Américas, dançando coreografia inteligente. É circunstancial que, em diáspora, existem as imbricações com outras formas de pensamento acerca do corpo como a europeia, especificamente a ibérica, inglesa e holandesa, além dos diálogos com as comunidades ameríndias ou nativas. Mesmo assim, neste trabalho, prevalece um paradigma corporal “centro africanos bantos-oeste africanos iorubas” considerando que essas culturas estavam em conversas intensas a perceber o encontro entre Josephine Baker e Grande Otelo, em 1939, quando os dois cantam músicas nas quais são evidenciadas bantuização da letra, por parte da composição e participação dos intérpretes assim como, a própria referência no ritmo que é o samba, de origem centro africanas bantos. Além de uma presença Ioruba em certos modos religiosos traduzidos em música. Pois, como coloca Munanga (2009: 94):

No campo da religiosidade, as contribuições dos povos da área ocidental, particularmente do chamado Golfo de Benim se destacam. Eles legaram ao Brasil um panteão religioso organizado segundo o modelo cultural jêje-nagô, conhecido como candomblé da Bahia.

Os iorubas são também conhecidos pela literatura corrente como nagô. Os jêje são povos localizados principalmente no território que hoje conhecemos como República do Dahomé. Além da argumentação que situa a respeito da influência jêje-nagô ou jêje-ioruba no candomblé da Bahia, o pesquisador aponta intrinsecamente as interlocuções entre os dois povos. Ou seja, para além da troca com culturas europeias e indígenas, Kabengele Munanga ressalta “os empréstimos culturais entre africanos”, que segundo ele acarretaria na identificação da origem étnica das populações afrodescendentes, especialmente o Brasil:

Os processos de mestiçagem e empréstimos culturais entre africanos escravizados no Brasil tornam difícil, se não impossível, discernir e identificar a origem étnica das populações afrodescendentes do Brasil e de hoje. No entanto as resistências linguísticas e culturais que caracterizam as contribuições africanas na cultura brasileira contemporânea oferecem suficientes elementos para distingui-las a partir de um trabalho de comparação com suas áreas regionais e étnicas da África tradicional. (MUNANGA, 2009: 92) 158

De acordo com ele as (re)criações linguísticas e culturais, e dentro disso acrescento performance, musicalidade e corpo constitui o oferecimento de um importante sistema para a distinção dessas culturas entre si. É nessa percepção que se identifica predominância das influências das culturas banto no Brasil, tanto na linguagem artística – a considerar que a contribuição banto na língua portuguesa é mais preponderante que qualquer outra cultura africana – como na atitude política e de organização, a citar o quilombo que segundo Munanga seria a reconstrução de um modelo africano, “importado da área geográfico-cultural Congo- Angola”. Ele ainda acrescenta que mesmo os cultos jêje-ioruba se reinventariam sob influências banto e vice verso. Populações centro-africanas, inclusive de linha cultural banto, povoaram as Américas. Temos pedagogias bantos espalhadas em todas as direções fluindo e confluindo com as outras culturas. Dessa forma, culturas centro africanas povoaram tanto o Brasil como os Estados Unidos. Esse primeiro país recebeu o maior número de pessoas da região dentre todos os países dos continentes americanos:

De qualquer modo, como as pesquisas sobre a demografia do comércio de escravos demonstraram, os centro-africanos estavam em todas as regiões. Na verdade, eles representavam quase 45% ou aproximadamente 5 dos 11 milhões de africanos importados como escravos para as Américas entre 1519 e 1867. (HEYWOOD, 2010:18)

Para Heywood os africanos sequestrados da região central do continente constituíam um pouco menos do que a metade da totalidade de pessoas escravizadas. A precedência ioruba, também era presente, claro que menos do ponto de vista quantitativo. No entanto, ela é abordada em constância do ponto de vista simbólico cultural. A extensão da iorubalândia também alcançou algumas localidades das Américas, em particular o Brasil, onde aquela população era encontrada em maior número (ÀJÀYÌ, 1998). Já a cultura do povo ioruba nos Estados Unidos aparece em relevância no início do século XX com o advento de nacionalismo negro e outras práticas da intelectualidade negra, quando um certo “purismo” africano necessita ser reivindicado naquele momento (CAPONE, 2011). A influência banto prevalece num nível menor nos Estados Unidos, se considerarmos dados estatísticos da importação de populações africanas banto nesse país. Vass (1979: 12) aponta que: os anos de pico da importação estadunidense, de 1741 a 1810 com ápice final nas décadas de 1770 e 1780, coincidiram com os anos de pico da exportação das áreas de linguagem 159

banto da África Central162.” O principal lugar de chegada de escravizadas e escravizados era a Carolina do Sul, preenchida por cultura banto majoritária. “Um dos mais importantes aspectos da importação de escravos da Carolina do Sul é a sua concentração de angolanos, assegurando uma alta influência do discurso da língua bantu nessa área (VASS, 1979: 18). Tanto que, por isso, na Carolina do Sul havia predominância da língua Gullah (Angola) que, por sua vez, pelo menos na década de 70, ainda era falada entre a população negra desse estado e da Geórgia (VASS, 1979.) Não é toa que muitos lugares na Carolina do Sul foram fundados em língua banto. Para além de uma tentativa frustrada de delimitar a origem étnica de Otelo ou Baker, o que certos aspectos ou princípios centro africanos e oeste africanos (sistemas de ancestralidades) podem nos oferecer como matérias de interpretação, a fim de abordar os discursos corporais estudados? No que concerne à cultura ioruba é o fato da crença na existência de que uma situação pode ter dois lados e sentidos, ou seja, “há dois lados em uma moeda”: “Além disso se o lado de uma situação não é aparente, ela não é considerada real, ela é incompleta e desequilibrada163”(ÀJÀYÍ, 1998: 27). O que leva a mover-nos em relação aos discursos de Baker e Otelo procurando aquilo que não é dito ou que está aparentemente escondido. A percepção com as escrituras grafadas no corpo, no texto e no som, despertou a atenção para vasculhar as possibilidades de visão que ambos nos apresentavam, destoando de discursos maniqueístas ocidentalizados. Da experiência banto localiza-se a alta capacidade de mover-se em culturas estrangeiras, influenciando de forma significativa esses campos. Dentro disso é interessante atentar para uma notação de Vass (1979: 03):

A fala Bantu tem a habilidade comprovada de penetrar uma cultura, absorvê- la, e modificar sua língua. Ela se expandiu do núcleo de sua área original, provavelmente na região Nok da Nigéria, descendo por quase todo o subcontinente africano ao sul do Saara. A impressionante homogeneidade linguística dessa enorme região geográfica se dá a esse corpo central herdado do vocabulário Proto-Bantu, que ainda mantém todas as línguas bantu ligadas e comprova sua fonte comum. Escravizadas(os) de língua bantu da África

162Tradução livre. The peak years of United States importation from 1741 to 1810 with a final surge in the 1770´s and 1780´s, coincided with the peak years of exportation from the bantu-speaking areas of Central Africa. (VASS, 1979: 12). 163Tradução livre. Thus if the other side of a situation is not apparent, it is considered real; it is incomplete and unbalanced. (ÀJÀYÍ, 1998: 27). 160

Central dispuseram de uma unidade linguística e habilidade de comunicação entre si que escravizadas(os) da parte oeste da África não compartilhavam.164

A autora nos apresenta capacidade ampla de disseminação e potencialidade linguística do discurso de diferentes etnias que constituem o que conhecemos como complexo banto em diferentes territórios da África Subsaariana, além da centro africana, apontando esse aspecto como inerente a sua origem. Articulando um aspecto e outro, respaldamos a percepção “centro africanas bantos-oeste africanas iorubas” na qual o sujeito negro, imerso nessas pedagogias, apresentaria em seus deslocamentos sentidos que tanto teriam uma capacidade de ocupar diversas ambiências, absorvendo estruturas, bem como preenchendo-as de múltiplos sentidos e múltiplas dimensões, ditas e não ditas, friccionando e modificando aqueles mesmos aspectos estruturantes. Esse seria o contexto em que o corpo negro estaria imerso e ao mesmo tempo agenciaria - sentiria e viveria o mundo. Tal circunstancial discussão respalda-se, também, no que Martins (1995) argumenta a respeito das culturas negras americanas destacando o seu caráter de “ dupla face” e “dupla voz”:

A cultura negra nas Américas é de dupla face, de dupla voz e expressa nos seus modos constitutivos fundacionais, a disjunção entre o que o sistema social pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e o que, por inúmeras práticas, realmente diziam e faziam. (MARTINS, 1995:71)

Entre o que hegemonicamente se espera e a ação concreta, a autora pontua a ligação entre dois aspectos distintos, apontando uma operação na qual a cultura negra e, em adição óbvia, a pessoa negra escreve, inscreve e circunscreve modos em suas práticas deslocando sentidos e inaugurando formas, sejam elas de atuar, dançar, aparecer ou narrar. Ao tentar, por exemplo, rascunhar a noção de ancestralidade a partir das vivências de Otelo e Baker nas suas cidades de nascimento, identificou-se um manancial de sentidos que agregam a abordagem de uma noção ancestral e sua relação com territórios físicos. Revisitando a frase de Baker, “Uma árvore começa a vida em uma parte da terra. As raízes se espalham para outra parte.” Na ideia de enraizamento que ela traz, é apontado que a fixação das raízes não está necessariamente alocada na direção onde a árvore é plantada. Elas

164 Tradução livre. Bantu speech has a proven ability to move into a culture, to absorb it, and to change its language. It has spread from its original Nucleus area, probably in the Nok region of Nigeria, down over almost the entire African subcontinent south of the Sahara. The outstanding linguistic homogeneity of this tremendous geographic region is due to this central body inherited Proto- Bantu vocabulary that still ties all bantu languages together and proves their once common source. Bantu speaking slaves from central Africa enjoyed a linguistic unity and ability to communicate with their fellow-captives that slaves of west Africa did not share. Vass (1979: 03) 161

são reavivadas para outros caminhos. No entanto, o tronco, a “coluna” da árvore, está alocada em espaço específico, alimentada pelo que as raízes absorvem. Sublinhando mais uma vez o que Baker sugere, podemos considerar que o processo de nutrição não acontece necessariamente no lugar inicial onde foi colocada a semente. Para mais, ao dizer que a vida começa em uma parte da terra, ou seja, que há um lugar de início, Baker ressalta, de certa forma, o entendimento de anterioridade, de referência primeira, o que não exclui a habilidade em descobrir outros começos em outros caminhos, em se nutrir de outras realidades. Num diálogo entre Grande Otelo e Gilberto Gil165, os dois estão na cidade alta de Salvador, entre o Palácio da Aclamação e o Elevador Lacerda contemplando a Baía de Todos os Santos. Os dois conversam sobre o estado da Bahia e sua relevância para a história da cultura negra no Brasil, em um determinado momento Gil afirma: - A Bahia tem a precedência. Otelo, por sua vez, retruca imediatamente e com um toque de humor: - Não sei, porque sou mineiro... Numa reposta imediata, descontraída e ao mesmo tempo contida e provocadora, Otelo transfere o sentido de ancestralidade, a partir da vivência, para outra zona perceptiva, deslocando a significação de possível cristalização do “berço da cultura negra no Brasil” para seu espaço pessoal, para sua memória mineira. E, nesse sentido, ao mesmo tempo em que ancestralidade é territorial, ela não é, a compreender a fala de Gil, que aponta a Bahia como a cultura negra precedente por conta de uma narrativa histórica oficial. A réplica de Otelo, quando questiona a afirmação do cantor, argumenta um pertencimento mineiro ou afro-mineiro. São dois discursos em diferentes pessoas (Baker e Otelo) que apresentam modos sutis de relação com o lugar de pertencimento no qual damos os primeiros passos, aprendemos as maneiras de ser corpo, consolidamos nossas primeiras referências. Em ambas as colocações, uma subjetiva consciência do início. Além disso, da mesma forma que há ênfase comum num conhecimento de precessão, há um modo de concebê-la como algo não fixo e preenchida de mobilidade.

165Eclats Noirs Du Samba : La Passion Sereine – Gilberto Gil. 1987. 162

3.3.1 Tumpy e Pratinha

Ao mesmo tempo, se acompanharmos os demais discursos de Otelo e Baker em relação ao respectivo lugar de (re)nascimento, veremos que nuances significativas aparecem, alavancadas por experiências marcantes nesses locais. Josephine Baker nasceu em 03 de junho de 1906 em Saint Louis, cidade que pertence ao estado do Missouri, localizado no meio oeste dos Estados Unidos. Após 09 anos, em 1915, nasceria no Brasil, Grande Otelo, em Uberlândia, inclusa no estado de Minas Gerais. Em cada uma dessas cidades cresceriam “Tumpy” e “Pratinha”, os apelidos de infância de Baker e Otelo. O “pratinha”, que antes foi “Tziu”, vinha do fato de Otelo, ser o filho mais velho do seu Francisco, que prestava trabalhos para a família Prata e por essa razão era denominado o “Chico dos Prata”, como evidenciamos anteriormente. Tumpy, foi o apelido dado a Freda Josephine Macdonald – nome de registro de Josephine Baker -, inspirado no poema Humpty Dumpty166. Josephine Baker, ou melhor, Tumpy, não conseguia encontrar a liberdade, tão presente nas falas da sua avó, em Sain´t Louis afirmando uma vez que essa cidade “Era uma das piores cidades nos Estados Unidos por conta da discriminação racial. Eu ouço que mudou, mas eu nunca mais estive lá. Eu tenho péssimas memórias daquele tempo”.167 Na mesma entrevista, cuja transcrição foi concedida a um periódico, Baker, em outro trecho aborda colocação na qual é possível destacar a diferença entre apego e afeto, em relação ao lugar de nascimento:

Os Estados Unidos são um dos países que eu amo, mas eu não acho que onde você nasce é assim tão importante. Eu penso que qualquer lugar onde você é feliz é a sua casa. Mas por que eu não deveria amar a América? Por que cada pessoa não deveria amar a América? Há muitas coisas que nós discordamos: discriminação racial, Vietnã (Eu discordo profundamente com o que está acontecendo lá), mas que não afasta o amor que eu tenho pelo país e pelas pessoas do país168.

166 Humpty Dumpty sat on a wall, /Humpty Dumpty had a great fall. /All the king's horses and all the king's men/Couldn't put Humpty together again. 167Tradução livre. It was one of the worst cities in America for racial discrimination. I hear it has changed, but I have never been there since. I have very bad memories of that time. “In the words of Josephine Baker”. Cue,1969. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 168Tradução livre. The United States is one of the countries that I love, but I don´t think where you´re born is terribly important. I think that anywhere you are happy is your home… But why shouldn´t I love America? Why shouldn´t everybody loves America? There are a lot of things we disagree on: racial discrimination, Vietnam (I disagree profoundly with what is happening there), but that doesn´t take away the love I have for the country and the people of the country.” Fonte: “In the words of Josephine Baker”. Cue,1969. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 163

Josephine Baker denota afeto em deslocamento, costurando a noção de diáspora com a condição de mulher negra. Como se dissesse “por que eu devo ter apego a um lugar que me maltratou?”, e pontuando que “qualquer lugar” pode ser sua casa, porque o que importa não é o território, mas sim como você se sente nele, como é o seu “tornar-se” nele. Dessa forma, considera-se que ancestralidade, nessa experiência, nada tem que ver com lugar físico, mas sim com as pessoas, com o que elas significam de si. É um espaço com complexo regime de significados falados e não falados. Ao explanar seu amor pelas pessoas dos Estados Unidos, incluindo certa gente de Sain´t Louis, Baker mobiliza laços de afetividades com outra(os) acionando, como Otelo, uma noção ancestral a partir da memória pessoal em que não é só importante o país-território, mas também a população. Em poema dedicado a Minas Gerais, Otelo escreveu um fragmento: “os caminhos descaminhados /No sem fim dos desandados.../Você é minha, sabia, terra? (...)” (OTELO, 1993: 85). E mais uma vez ele nos apresenta o “ des” de desfazer ou de mover, revendo continuidades, ou melhor, provocando-as. E dizendo “Você é minha”, ele nos aquece a pensar que não é a posse sobre o território físico, e sim sobre um lugar simbólico que foi (re) feito ou (re )inventado por ele em transições e crises, ou seja, uma (re)invenção de afetividades. No programa Ensaio de 1991, numa declamação com a voz embargada Grande Otelo diz: “Uberlândia – São Pedro de Uberabinha. Eu quero caminhar no teu caminho que é para não caminhar sozinho. Eu quero caminhar nos caminhos do mundo.” (OTELO, 1991)169. Observa-se mais um entendimento de afeto em deslocamento, em movimento, uma cultura ancestral sabida que preenche os muitos que ele é, e um desejo de buscar, desbravar algo deslocando-se pelo mundo. Contudo, para que este último ato seja possível é necessário retornar afetivamente ao caminho de Uberlândia.

3.3.2 Aprendizagem em movimento

Em suma, vimos até aqui exemplos referentes a uma produção de sentidos que dizem respeito à ancestralidade, cujo aspecto principal constitui a coexistência afetiva entre avanço e retorno, memória pessoal e território, ditos e não ditos, deslocamentos literais ou simbólicos. Essas vivências das sensações ancestrais são continuamente alimentadas, também, por um

169 Programa Ensaio – Grande Otelo, 1991. 164

mundo paralelo invisível que preenche os múltiplos ou as múltiplas que nós somos, arquitetando a coragem para seguir adiante. Esse mundo invisível inscreve-se de forma concreta em nós e reforma-nos através do movimento. Assim, dentre o leque de orientações que pode defini-lo há aquele que permeia as danças. Analisando de perto os artistas desta pesquisa encontraremos a referência primeira que se assume ainda em St. Louis e Uberlândia. Sain´t Louis, uma cidade fundada pelos franceses Pierre Laclede e Auguste Chouteau em 1763 (AMSLER, 1997). Incialmente, diferentes das outras cidades configurou-se num território misto onde a população branca e a população negra “conviviam” num certo apaziguamento mais conveniente para a primeira do que para a comunidade afroestadunidense. Até o momento em que, economicamente, a população negra ameaçou os privilégios brancos, acarretando numa das tragédias raciais mais conhecidas no Estado do Missouri em 1917170. No entanto, as experiências de dança de Baker nessa cidade seriam as referências primeiras para compor a pessoalização da sua performance, bem como os fundamentos das suas negociações e agenciamentos. Em um de seus primeiros depoimentos autobiográficos, Josephine relatou que os professores da escola onde ela estudou – a Lincoln ElementarySchool (WRIGHT, 1994) – impediam-na de fazer gestos (SAUVAGE, 1927: 33), obrigando-a bem como as(os) outras(os) estudantes a manterem-se sentadas(os) e em silêncio. No entanto, havia outra escola que ela também frequentava com prazer e sede de aprender, alimentada pelos encantamentos rítmicos negro-africanos, penetrados e disseminados nos corpos da gente negra de St Louis, moradora da Gratiot Street e 2632 Bernard Street (WRIGHT, 1994). A experiência com os ritmos e danças com a comunidade negra de St. Louis foi algo que Baker não hesitou em narrar:

Todo mundo parecia ter o próprio acordeom, banjo ou gaita. Aqueles sem dinheiro o suficiente para comprar instrumentos de verdade, faziam os banjos de caixas de queijo. Nós tocávamos a música que para nós era linda em tudo, desde cordas de varal amarradas em volta de metades de um barril, até pentes cobertos com papel. Assim que começava a música, eu movia meus braços e pernas em todas as direções no tempo do ritmo ou marcava a batida com meus amigos nos tesouros que garimpávamos do lixo: latas, panelas velhas,

170 Josephine Baker tinha onze anos de idade quando viveu os distúrbios raciais em St. Louis Leste. Após a Primeira Guerra Mundial a comunidade branca tentou recuperar o terreno cedido à comunidade negra durante a guerra. Existem relatos de que mulheres grávidas foram retalhadas, e homens foram queimados. A população precisou abandonar em massa essa região. (ROSE, 1990) 165

madeiras abandonadas ou recipientes de metal171.(BAKER; BOULION, 1977: 06)

Sem a presença proibitiva do não gesto e sob a democracia do movimento, Baker nos incita a uma percepção acerca dessa experiência com as pessoas com quem convivia em St. Louis, abordando o improviso da construção instrumental através do (re) aproveitamento do que era descartável. Imprimindo novos sentidos e usos ao “lixo”, elas(es) entrelaçavam a capacidade de reinvenção do corpo em relação aos suportes musicais externos e a habilidade de reencarnar movimentações longínquas que se atualizavam, no ragtime, cakewalk e spirituals. A observação em relação aos mais velhos era também um princípio presente nesse terreiro de aprendizagem de corpo, que podia ocorrer nas festas espiando através de janelas as celebrações dos adultos e as formas como eles cantavam, moviam-se e interagiam. (BAKER; BOULION, 1977). Além disso, a mãe de Josephine tinha sido dançarina, trabalhando também no circuito do teatro de variedades, o que de certa maneira alavancava a continuidade das experiências rítmicas no seu corpo. Transposta a uma igreja cristã protestante, Tumpy vivia também experiências de corpo nesse lugar. O seu depoimento, além de revelar o que os sentidos dela vivenciavam, apresenta interessante testemunho que representa a absorção de ideias coloniais cristianizadas e, ao mesmo tempo, a modificação de uma estrutura via compreensões negro-africanas:

De repente, alguém estava cantando e a multidão começava a cantarolar junto, então sentiam que era hora de marcar o ritmo com as mãos, e a mulher gorda aos prantos começava a confessar seus pecados. A cantoria e as batidas dos pés cresciam. Um homem, gritando que estava possuído pelo demônio, se levantou, seguido por outro e outro até que toda congregação estava em pé, se sacudindo e balançando, olhos fechados em êxtase. Uma mulher desmaiou e foi amparada por uma amiga enquanto os adoradores saltavam e giravam, chutando os pés para o alto para afastar o demônio, e o reverendo puxava de volta pro lugar as saias que subiam demais. Tonta com a agitação, eu senti o chamado do Espírito Santo e me joguei com as minhas pernas junto com os outros172. (BAKER; BOULION, 1977: 07)(Grifo nosso)

171Tradução livre. Everyone seemed to own an accordion, a banjo, or harmonica. Those without enough money for real instruments made banjos from cheese boxes. We played music that to us was beautiful on everything from clothesline strug across barrel halves to paper-covered combs. As soon as the music began, I would move my arms and legs in all directions in time to the rhythm or mark the beat with my friends on the treasure we pulled from the trash: tin cans, battered saucepans, abandoned wooden and metal containers. (BAKER, E BOULION, 1977: 06) 172 Tradução livre. Suddenly someone was singing, and the crowd hummed along now felt began to tap and fat woman in tears was confessing her sins. The singing and stamping of feet grew louder. A man, shouting that he was possessed by the devil, rose to his feet, followed by another and another until the entire congregation was standing, rocking, swaying, eyes closed in ecstasy. A woman fainted and was revived by a friend while the worshippers leaped and twirled, kicking up their feet to drive away the devil and the reverend tugged at skirts raised immodestly high. Dizzy with excitement, I felt the call of the Holy Spirit and threw up my legs with the others…(BAKER E BOULION, 1977: 07) 166

Percebe-se através do discurso da artista que anulação do corpo, tão famosa no ensinamento ocidental cristão, era desconhecida nas circunstâncias em que ela estava sendo educada provocando a estática através da encarnação de um invisível em movimento. Certamente esse depoimento de Baker contrapõe a argumentação intelectual estadunidense de que as mulheres negras e os homens negros tinham perdido os laços culturais com África nos Estados Unidos, devido ao processo de assimilação cultural branca durante a escravidão (CAPONE, 2011). Nas frases destacadas em negrito podemos observar que há uma ordenação de movimentos com os pés e com as mãos. Algumas pesquisas não conseguiram vislumbrar o outro lado da moeda, a recriação das visões assentadas em discursos aparentemente brancos, dando-se então a articulação inteligente entre o que é dito (Deus, o Diabo e o Espírito Santo) e o que não é dito verbalmente, a conexão com o divino através do movimento. É a bantuização cúmplice dos duplos sentidos iorubanos e vice-versa. Num celeiro com influência cristã, Otelo também concebeu sua infância em Minas Gerais “onde, segundo um consenso entre estudiosos, os bantos foram numericamente predominantes” (SABARÁ apud MUNANGA, 2009: 95). A história desses corpos centro africanos bantos, depois negro-mineiros pode ser evidenciada pelos passos, marcações, danças e cânticos das Congadas, também presente na cidade de Uberlândia. Assim como a experiência escolar castradora de Baker, Otelo frequentou uma escola que lhe constrangia racialmente atrasando cognitivamente seu letramento. No entanto, ele aprendia nas ruas dessa cidade os deslocamentos musicais, rítmicos, poéticos e performativos, apresentando-se para ganhar “um tostão” como ele mesmo contava, e negociando o pagamento antecipado, quando recebera uma vez o calote de um apreciador (OTELO, 1991).173 Além da cinematografia que encantava Otelo, havia o desenho dançante da Congada, a qual o ator celebrou em poema, relatando em certo trecho o movimento geracional pelo qual a manifestação era preenchida: “É de pai prá filho que vem/ Que vem a congada de Minas Gerais.” Continuando a narrar poeticamente trazendo um movimento de retorno e seguimento, ele acrescenta em outra estrofe: “E negro lembra nesse dia / Quando veio lá da Guiné/ Passando pela Bahia/ Bahia de Yoyó/ Bahia de Yayá.” Nesse fragmento é possível que Otelo tenha intercalado sua ascendência com um antepassado banto, se considerarmos seu depoimento, no qual ele relata que sua bisavó era da

173 Programa “Ensaio” - Grande Otelo - 1991. 167

costa da África e que essa Guiné localiza-se no território correspondente ao que se denominava “costa dos escravos”, (MUNANGA, 2009). E num jogo quase surpreendente, a Bahia retorna ao seu discurso, não como precedente, mas sim como ponte articuladora do seu passado ancestral. No final do poema Otelo convoca aquelas(es) que o habitam: Tia Silvana, Tio Antônio/ Bastião, Mãe Maria/ Chama vovô Marcelino/ Diz que ele tá demorando/ Nós já vamos caminhando. (OTELO, 1993: 149)174 De acordo com as passagens apresentadas, tanto as relativas a Baker quanto as de Otelo, vislumbro que dentro ou fora do palco, ela e ele traziam muitas(os) consigo, o discurso poderia não aludir a isso diretamente, ou de forma literal; mesmo assim no gesto do corpo, textos fragmentados e até mesmo o silêncio, apresentava o sopro, o emí ou o equilíbrio muntu que propaga a interdependência entre os seres visíveis e invisíveis. Essa dimensão ancestral reflexiva permite a afirmação da heterogeneidade intrínseca, habitante, indispensável, impossível de ser capturada, mesmo se confrontada por sistemas tão abruptos que a querem reduzir. Dessa forma, caminho para a finalização deste tópico apresentando uma entrevista na qual Grande Otelo nos permite reconhecer o cerne ancestral do invólucro no qual ele se recolhia, abrindo a direção para Josephine Baker, mesmo ciente de que a condição dela, imprimia outras nuances para o seu lugar no mundo.

- Olhe, na minha vida tem sido assim. Quase sempre não tenho culpa. E batendo a cinza do cigarro: - Acontece... Nesta palavra encerra-se toda a filosofia do Grande Othelo, o negrinho que hoje faz delirar qualquer público no Brasil. “Acontece”... Esta palavra denuncia nele um estranho fatalismo, um fatalismo adquirido numa vida curta de anos, mas de longa experiência. Perguntamos-lhe o porquê desse fatalismo. O negrinho silenciou durante alguns segundos. De quando em vez nota-se que ele faz um esforço para parecer original, tão original quanto o deva ser um artista. E por isso pronuncia-se um tanto misteriosamente. - Não sei, não. Acho que é porque sou heterogêneo...

Em interlocução com Samuel Wainer, Otelo responde àquele que provavelmente não pode (mesmo que deseje) compreender o que ele quer dizer com as palavras “acontece” e

174 Poema na íntegra: É de pai prá filho que vem/ Que vem a congada de Minas Gerais/Ê sinhô rei/Sinhá rainha mandou chama/E negro lembra nesse dia / Quando veio lá da Guiné/Passando pela Bahia/Bahia de Yoyô/Bahia de Yáyá/Ê sinhô rei/Sinhá rainha mandô chama/Tia Silvana, Tio Antônio/Bastião, Mãe Maria/Chama vovô Marcelino/Diz que ele tá demorando/ Nós já vamos caminhando/Pra Congada de Nossa Senhora/Pra Congada de Minas Gerais/ Ê sinhô rei/Sinhá rainha mandou chama. Num “diálogo involucrólico”, o sambista Wilson Moreira a partir das estrofes “É de pai prá filho que vem/ Que vem a congada de Minas Gerais/” compõe a música “Congada pra sinhô rei” em parceria com Grande Otelo em 1970. Conferir em http://www.ctac.gov.br/otelo/ musica/detalhe.asp?cd=44 > Acesso em 21 de março de 2019. 168

“heterogêneo”. O entrevistador tem sua percepção confundida, que gera a transcrição de um Otelo que se esforça para parecer inteligente. E ainda inconformado o Wainer insiste:

- Heterogêneo? Que história é essa Grande Othelo ? O negrinho sorri satisfeito. Acertara em cheio. E diz: - Vou lhe explicar. Sou um tanto fatalista porque em muitas ocasiões da minha vida, tudo parecia contra mim. Eu lutava desesperadamente para vencer a corrente contrária e nada adiantava. De repente acontecia qualquer coisa e...zás, eis que minha sorte mudava. Por isso mesmo cheguei a conclusão de que as coisas têm que acontecer mesmo basta fazer um pouquinho de força.

Apropriando-se da palavra “fatalista”, provavelmente cunhada pelo entrevistador, Otelo inscreve um outro contexto, relata descaminhos pela vida rearranjados repentinamente confluindo andanças para a perspectiva mais assertiva, “bastando apenas fazer um pouquinho de força”, ou possivelmente, acionando suas forças, aquelas que caminham com ele. No entanto, provavelmente educado em uma cosmovisão cartesiana, o repórter continua no trajeto do não entendimento:

- Sim, Othelo, mas que tem isso a ver com a classificação de heterogêneo? - Tem e muito. A minha vida variou tanto nesses últimos dez anos, ora em baixo, ora em cima, ora bem, ora mal, que minha psicologia também começou a variar. Aprendi a me tornar adaptável as circunstâncias, a acertar os prós e contras e daí a minha heterogeneidade... Novo sorriso vitorioso do negrinho. Faz pilhéria, como que para quebrar a seriedade da palestra.

O repórter não compreende e numa “desatenção textual” nos revela que Otelo captou essa não compreensão, o que tornou de fato o ator o sujeito daquele diálogo. Ao recapitular os seus últimos dez anos (considerando que a entrevista foi em 1941), o ator nos apresenta fases distintas entre si, imprimindo caráter real e concreto às experiências, nas quais possivelmente um certo bem e um certo mal são companheiros, coadunando com o que Àjàyì (1998) argumenta sobre a crença ioruba no convívio entre energias assimétricas. Não num mal contra o bem, como prega a sociedade ocidental cristã. Otelo apontou a possibilidade de “ser” que também cruza com o adaptar-se, ajustando, escavando o que beneficia e o que não, movendo taticamente dentro de uma estrutura e arranjando-a numa atitude de fronteira agarrada aos que te antecedem. Otelo identifica que Samuel Wainer ainda não pode compreender a complexidade daquela conversa e numa postura “irônico-divertida” ele quebra aquela narrativa intelectual demais para o entrevistador: “O senhor me desculpe essas palavras meio complicadas. Mas é que hoje estou com bossa”175.

175 WAINER, Samuel. O Grande Othelo não tem culpa. Revista Diretrizes, Rio de Janeiro, 1941. Fonte: Biblioteca Nacional. 169

Não somente os lugares onde nascemos dizem muito sobre o que somos, mas também àquelas(es) que neles, também, nasceram, e as pessoas que geraram aquelas(es). Assim é uma infinitude que atravessa sítios imaginados e não imaginados, provocando para agir ou afagando para nos relacionarmos com o entorno crítico de forma mais leve. Se, no princípio banto, “Nós somos uma pessoa por causa das outras pessoas”, então o corpo negro-diaspórico é porque ele é variável e ilimitado de seres que os habitam de um “passado presente” e um “tempo atual antigo”. E esse invólucro constituído de atitudes e ancestrais-atitudes segue espraiando no mundo, criando encontros e re(encontros) entre negras(os) que não necessariamente se conhecem ou se conheceram (por exemplo Baker e Otelo), interligados por uma circularidade que não se vê, apenas se percebe.

3.4 Síncopa

É muito redutor afirmar que o corpo negro tem ritmicalidade inerente. Pois nessa posição se assentam perigos e armadilhas. Obviamente, esses não são formados pela pessoa negra e sim pelo olhar dominador construído ao longo de mais de cinco séculos. Assim, postura cautelosa é bem-vinda ao tratar de tal tema, principalmente quando o incluo, de certa maneira, como um dos residentes fixos – em conjunto com a atitude de fronteira e ancestralidade – no invólucro. Todavia, é precipitado anular a presença rítmica no corpo, impondo-lhe pulsação descolada das próprias trajetórias das comunidades em diáspora. Nas culturas oeste-africanas iorubas o ritmo é associado como qualidade intrínseca à movimentação corporal e suas múltiplas dimensões,

Ritmo é uma propriedade inerente do movimento onde, mesmo em atividades diárias, seu fator de coordenação é altamente e frequentemente utilizado para executar funções menos árduas, mais velozes ou tornando-as prazerosas176. (Àjàyì, 1998:20)

Em concordância com Àjàyì, situa-se o ritmo como elemento agregado e indispensável a práticas e atividades das mais simples às mais complexas em heterogêneas velocidades gerando sensações diversificadas. A propriedade do ritmo é um princípio comum nos movimentos de pessoas negras ou brancas. Por outro lado, a experiência com bases rítmicas

176Tradução livre. Rhythm is na inherent property of movement where, even in daily activities, its coordinating factor is highly and frequently utilized to make work less arduous, go faster, or become pleasant. (Àjàyì, 1998: 20) 170

negro-africanas propicia uma pedagogização na qual estruturas se desenham desenvolvendo-se em alternativas pessoalizadas de acordo com cada indivíduo que as assimila. Dessa forma, ao escutarmos os ritmos musicais que se destacam no Brasil e Estados Unidos, há discurso consensual de que as culturas africanas – que se deslocaram para as Américas – objetivamente as encubaram. Samba, jazz, maxixe, ragtime, jongo, dentre muitos outros, compartilham pensamentos sonoros similares. No entanto, as especificidades não apenas se alocam num valioso patrimônio musical das Américas, e sim em “jeitos de ser” que, ao mesmo tempo que influenciam tais estilos, são educados por eles. Quando a síncopa apareceu na investigação, essa ainda estava, no que eu considero, a fase inicial. Grande Otelo foi o ponto de partida que desembocou no contato com os estudos sobre a sincopação. Em primeira instância considerei apenas os caracteres de um ponto de vista musical, mesmo com conhecimentos significativamente limitados na área. No decorrer da análise identifiquei que a síncopa não está presentificada apenas em gêneros musicais e sim em interrelações corporais que vão além das execuções musicais e dançantes convencionalmente conhecidas. Muniz Sodré (1998: 11) pontua que “O corpo exigido pela síncopa do samba é aquele mesmo que a escravatura procurava violentar e reprimir culturalmente na História brasileira: o corpo do negro”. Ele considera as exigências corporais solicitadas pela síncopa como um complexo no qual as pessoas negras interagiam com a música através da dança e estavam entremeadas a territtórios de luta contra o cerceamento da liberdade. Nesse sentido o autor acrescenta que os batuques já eram evidenciados no Quilombo de Palmares. Dessa forma, Otelo é lido como alguém que, ao mesmo tempo em que vivia e apreendia pedagogias negras-rítmicas – desde a infância em contato com grafias sonoras africanas, como a Congada, e mais tarde o samba de São Paulo e Rio de Janeiro – subjetivava a recusa a um aprisionamento representativo como homem negro, seja com sutis atitudes dentro de cena, no comportamento provocativo (considerado indisciplinado) ou fora dela. Ao escutar/ver Otelo, a sensação despertada é a de que ele se configura metaforicamente numa bateria de escola de samba, não necessariamente no sentido espetacular e contagiante, mas sim do ponto de vista interpenetrativo instrumental, ou seja, a forma como instrumentos variados dependem um do outro. Os surdos, o tamborim, o repique, a cuíca, o prato, o chocalho, a caixa de guerra, agogô, reco-reco, pandeiro e triângulo. Cada qual com narrativa sonora bem dimensionada que 171

paralelamente inexiste sem o movimento habilidoso e tocante do musicista. A dança entre o músico e o instrumento, uma ginga dessa dupla com o público. A bateria segue em manutenção regular constituída por difererentes sonoridades instrumentais que simultaneamente se pertencem. Um conjunto de assimetrias preenchiam o modo de ser Otelo, nuance testificada através de diferentes tempos de fala ou de gestos que correspondem com os itens principais da sincopação, o tempo fraco e o tempo forte. Para somar com tal argumento há um texto da atriz Jacyra Silva referente ao ator, ela inicia a referência a Otelo com a seguinte pergunta: “Qual dos deuses africanos inventou você Grande Othelo?”. Questionamento indubitavelmente pertinente, pois são tantos sons, movimentos, gestos, tempos que não se torna simples descrevê-lo como filho da temporalidade ogum, ou da temporalidade oxum, praticamente é bastante arriscado dizê-lo em erê ou em oxaguiã. Jacyra Silva (SOUZA, 1987: 80), por meio de alguns trechos, acrescenta: Tão negro... Tão arco-íris Tão retaguarda...e tão vanguarda (...) Tão verso...tão reverso... e tão transverso. Basta olhar para ver.

Nessa seleção, evidenciamos um todo cheio de componentes assimétricos. Colocação que não diz respeito somente a Otelo em cena, mais também ao seu modo de viver e o que ele disseminou. Otelo era entre tudo isso, prolongando um princípio que repercute intensamente em outro ainda mais potente e forte. Sodré (1998), no primeiro capítulo de seu livro “Samba, o dono do corpo”, cita o músico estadunidense Duke Elligton (1899-1974) que certa vez revelou que o blues era sempre cantado por uma terceira pessoa que não estava ali. A fascinação da canção seria acionada por essa terceira pessoa que falta. Sodré usa essa afirmação como metáfora para explicar o que causa o fascínio do jazz e do samba: “a síncopa, a batida que falta”.

Síncopa, sabe-se, é a ausência no compasso da marcação de um tempo(fraco) que, no entanto, repercute noutro mais forte. A missing-beat pode ser o missing-link explicativo do poder mobilizador da música negra nas Américas. De fato, tanto no jazz quanto no samba, atua de modo especial a síncopa, incitando o ouvinte a preencher o tempo vazio com a marcação corporal- palmas, meneios, balanços, dança. É o corpo que também falta – no apelo da síncopa. Sua força magnética, compulsiva mesmo, vem do impulso (provocado pelo vazio rítmico) de se completar a ausência do tempo com a dinâmica do movimento no espaço. (SODRÉ, 1998: 11)

Ao notar o que Sodré explica, é impossível dissociar essa “batida que falta”, “esse vazio rítmico” com a ideia de um movimento em ancestralidade que discutimos no capítulo anterior, 172

“uma terceira pessoa que não está ali”, segundo Duke Elington, ou um movimento vibratório que estar no ar, no entre tempos. Ao argumentar os diferentes “ser” e qualidades que constituem Otelo, encerrando o texto com a frase “Basta Olhar para ver”, Jacyra Silva de certa forma aciona a reflexão que condiz com a necessidade de um olhar executado em múltiplos direcionamentos – sonoros, gestuais, orais – de uma pessoa educada em contextos de sincopação portanto, atravessada cognitivamente por esse aspecto. Por esse exemplo, podemos dizer que o deslocamento é implícito à síncopa, como se a “batida que falta” fosse ocupada pelas dinâmicas corporais constituídas em movimentos expansivos ou sutis. O corpo se conecta com esse “vazio rítmico” com o qual cria relação de completude. Essa sincopação perfilizada por esse “vazio rítmico” é a permissão para o corpo deslocar-se para qualquer sentido de modo que desobedeça às linhas retas e acolha as curvas. Ao ver dançarinos de jazz ou samba, a impressão suscitada é de que há um lugar onde os pés mudam constantemente, recusando-se a uma fixação. Essa “batida que falta” possibilita à(ao) dançarina(o) se renovar a cada passo e movimento, é o espaço para o improviso. Deslocar- se pela improvisação proporciona ao executor ou executora dos movimentos: habilidade, agilidade, rapidez, ginga. E essas particularidades adquiridas ficam registradas na memória corporal e realocam-se em outras situações, como ao declamar um texto em tons coloquiais, gesticular ou simplesmente conversar informalmente. Seja em entrevistas ou filmes, sinto em Otelo um conjunto de sonoridades e texturas de movimento, quanto mais o percebo, mais me perco – não por ficar sem a posse de alguma coisa, e sim por deixar algo em algum lugar. Há momentos em que é difícil traduzi-lo. Tradução. É dessa forma que sinto Josephine Baker. Ao escutá-la cantar, vê-la performar e alimentar-me de seus discursos, a sensação perpassa por um lugar de identificação e assimilação. Todavia outras informações desviam para um lugar que eu não sou capaz de localizar. E paradoxalmente isso me alivia, porque não conseguir rastreá-la denota resistência política que Josephine continua sustentando. A sensação de alguma coisa que falta na minha percepção em relação a Otelo ou no processo de tradução em Baker é preenchida por um movimento silencioso do meu corpo que dança no espaço através das lágrimas, porque verbos não dão conta. A sincopação em Baker revela-se de forma diferente. Suas experiências com os ritmos negros estadunidenses delegaram-lhe coadunação de múltiplas inteligências, nos encaixes e desencaixes do quadril, na reviração dos olhos, no dobrar dos joelhos e nas gesticulações cômicas. 173

No entanto, fora do palco, em depoimentos e entrevistas “a sua batida que falta” reverbera na minha, ocupa outro lugar. Um espaço totalmente distinto do desenho postural de Baker em cena. Ao contrário de Otelo, que cruzava diferentes personas entre o palco e o off- palco, ela parecia fazer questões de delimitar atitudes em cada espaço, do ponto de vista gesticulativo. A encruza entre diferentes posturas localizava-se mais no conteúdo do discurso. Ao escutar as músicas de jazz, desde as mais antigas até aquelas criadas na contemporaneidade, eu fico devota a uma capacidade peculiar de reinvenção. Em “A Cleópatra do Jazz: Josephine Baker e seu tempo” (ROSE, 1990: 319), a autora do livro em uma frase assertiva relaciona Baker a esse ritmo: “Ela prendia a atenção por ser imprevisível, por surpreender sempre, como o jazz.”. Quando visitei o Museu do Jazz no bairro do Harlem (cidade de Nova York), logo na entrada, havia a fotografia de Josephine Baker sobre um piano. O museu é pequeno, intimista e aconchegante, repleto de informações e surpresas, como o piano do músico Duke Ellington. Esse artista disse uma vez que “Jazz é um bom barômetro da liberdade.” (WARD; BURNS, 2000: vii) E não era essa tal liberdade, que Baker respeitava ou pela qual obstinadamente pelejou? Entre dois tempos, o fraco e o forte, Josephine Baker revelava-se. Jamais se escondia ou se camuflava. Entre assimetrias ela procurava a reinvenção do seu discurso, do modo de se ver e do jeito de nos ver. A captura do público acontecia pela imprevisibilidade movendo os lugares por onde passava e descartando acessórios que a aprisionavam em determinadas fixações estéticas, como o saiote de bananas usado por ela na década de 20 no Folie Bèrgère. Compreensível para quem viveu a experiência rítmica do jazz e todos os outros ritmos irmãos. Segundo Joachim-Ernst Berendt (2014: 30) “Muitos jazzistas se mostram céticos em relação à reconstrução de estilos passado. Eles sabem que o historicismo contradiz a essência do jazz.” Crê-se que, para Josephine, a (re)construção mais significativa era o presente, o que ela ainda podia ser dentro e fora cena. No entanto, essa (re)invenção em liberdade ou (re)construção sincopada tinha a presença de um swing necessário, não o estilo de jazz dos anos 30 e sim o “elemento rítmico a partir do qual o jazz obtém sua tensão peculiar, tensão que a música europeia haure de sua estrutura formal.” (BERENDT, 2014: 39). Nesse sentido, performando ou discursando havia o swing subjacente nos passos e palavras de Baker, capaz de atrair diplomatas, chefes de estado e habilitado para contestar quando necessário. 174

Entre gingas e swing, a síncopa foi o grande cupido desse casamento de Josephine Baker com Grande Otelo, uma comunhão de dimensões comuns e diferenças entre ancestralidades centro-africanas-bantos e oestes-africanas-ioruba. Preenchendo o vazio com movimento e em interlocução direta com a “batida que falta”, o corpo negro segue conectado as raízes que transitam em infinitas direções. Seu deslocamento, no sentido físico ou simbólico, por fissuras e frestas desobedecem a qualquer obediência servil. Sendo respaldada por atitudes entre linhas fronteiriças, que se potencializam com o acolhimento ancestral. Em desobediência, o corpo negro caminha e, através dela, ele existe na cena. Esse é o nosso próximo ponto.

175

“Eles me querem do lado, mas não me dão a palavra” (OTELO apud MOURA, 1996: 45)

CICLO 4 DESLOCAMENTO: DESOBEDIÊNCIA

No ano passado assisti a um espetáculo intitulado “Território Mãe”, no qual a vida-mãe era abordada, a partir de olhares artísticos, críticos e poéticos, de quatro intérpretes em cena. O Coletivo Joanas Incendeiam parecia ter uma proposta de interlocução com os múltiplos femininos que comportam a cultura materna. Apesar de não aprofundar essa mesma multiplicidade baseando-se na categoria raça, o grupo apresentava alguns pré-textos e textos que tangenciam a maioria dos corpos femininos tocando certamente os infinitos variáveis “ser mulher”. Um dos aspectos dramatúrgicos que evidencia isso é quando a seguinte fala é dita por uma das atrizes: “Poucas coisas são tão radicais quanto o corpo da mulher.” Compreendo que o sentido do termo radical empregado refere-se à necessidade de um voo livre para si, fazendo as pazes com o próprio corpo e dialogando com ele de forma gentil, generosa e honesta. Até com pressa, sem desespero. O corpo constitui-se numa das maiores invenções da natureza; com todos os seus recursos e encantamentos, ele se traduz na principal ferramenta para as relações e implementações das ideias no mundo e de um vir a ser. A pessoa, e o que tem sido, é articulada por um circuito em que realidades culturais e biológicas interpenetram-se modulando e re-criando formas de diversificadas instâncias sociais. Creio que uma das principais contribuições dos estudos feministas, de uma forma geral, foi a possibilidade de apontar, mesmo que num estágio embrionário nas suas raízes, a dessacralização de anomalias-demoníacas edificadas pelo ocidente em relação ao corpo feminino. A prática feminista reverberou, também, na amplitude de um olhar sobre o que hoje se nomeia como os estudos da masculinidade. Dessa forma, percebe-se o quanto a pessoa em si ou o corpo constitui-se numa potência concreta, ou seja, condicionado por uma ambiência, ele configura ameaça à ordem de etiquetas formuladas para castrar ou educar. Como o corpo está e é movimento, ele tem profunda capacidade de ser alterado e também altera. Ramón Grosfoguel (2016), acerca da estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas, expõe reflexão interessante sobre o projeto genocida contra as mulheres indo- 176

europeias177 no século XVI, dentro da própria Europa. Sua colocação ajuda a compreender a dimensão da estrutura corporal como estrutura de potência:

Ao contrário do que ocorreu com o epistemicídio contra as populações indígenas e mulçumanas, quando milhares de livros foram queimados, no caso do genocídio contra as mulheres indo-européias não houve livros queimados, pois a transmissão de conhecimento acontecia de geração para geração, por meio da tradição oral. Os “livros” eram os corpos das mulheres e de modo análogo ao que aconteceu com os códices indígenas e com os livros dos mulçumanos, elas foram queimadas vivas. (GROSFOGUEL, 2016: 42)

A partir dessa citação extrai-se que a realidade do corpo feminino indo-europeu seiscentista ocorria por intermédio de conexão geracional via tradição oral, eficiente em escolher o corpo como arquivo-registro o qual se constituía numa ameaça aos sistemas de dominação. Evidencia-se essa mesma estrutura em muitas culturas africanas, razão pela qual as nossas diásporas situam e (re)situam estéticas no mundo. Esse processo “sulteado” por imposições, negociações e diálogos, mostra-se híbrido e enraizado, na forma entendida por Baker – as raízes desenvolvidas não necessariamente no lugar onde foi colocada a semente. Nessa perspectiva, podemos vislumbrar que esse perfil faz dos corpos diaspóricos coleções documentais de movimento, que mantém fontes importantes e interfere nos contextos desobedecendo linhas dominantes e proposições as quais – sorrateiramente ou não – poderiam aniquilar-lhe. Essa insistência e resistência, mantidas nos corpos, configurariam uma espécie de desobediência contida dentro de um continuum corporal que se “re-vivifica” em deslocamento físicos e simbólicos. Num composto dialético, obediência e desobediência são substantivos femininos. A desobediência, ação que nos interessa aqui, significa ausência de obediência, inobediência, insubordinação. Seus sinônimos perpassam por palavras como transgressão, violação, indisciplina, indócil, irregular, teimoso, insubordinado. A escolha para se discutir desobediência como um dos princípios “sulteadores” do corpo negro é pelo fato de que o seu significado não pôde ser aplicado fora dos limites cognitivos- motores desse corpo. De certa forma, a desobediência está agregada organicamente ao existir desse corpo que desobedece a diferentes lógicas de alijamento social. Quando esse mesmo corpo apresenta fórmulas e discursos que destoam de cânones imperativos, essa desobediência se faz ainda mais radical.

177As mulheres indo-europeias denominadas dessa maneira por fazer parte dos povos indo-europeus os quais correspondem a um conjunto vasto de populações que falam idiomas relacionados com o sânscrito (língua ancestral do Nepal e da Índia), por exemplo: o indo-ariano, o iraniano, o armênio, o helênico, o ítalo-celta, o germânico e o eslavo. Essas populações habitaram a Grécia e uma península que fica entre o continente europeu e asiático, atualmente parte da Turquia localiza-se nessa região. 177

Essa atitude está longe de ser uma simples consequência reativa a um projeto de dizimação em si, na verdade ela imprime outra lógica corporal que requer identificar soluções baseadas em certos paradigmas não encontrados na lógica do mainstream. Para tal, é interessante trazer uma reflexão de Thompson (1974: 01) o qual diz que: “Uma estética é um modo de energia intelectual que somente existe quando em operação e quando padrões são aplicados à casos reais e são fundamentados.”. Desse modo, é primordial compreender o fenômeno estético diaspórico em procedimentos corporais, vasculhar formas além daquelas ordinariamente compreendidas, a partir do eixo colonial. E tangenciar a análise pelo quesito de desobediência parece ser bastante elucidativo. As realidades referentes às ações de Baker e Otelo são interpretadas em parte pelo material disponível que os apresenta em movimento, seja numa circunstância artística e não artística. É óbvio que para cada uma existem atitudes distintas que perpassam por complexidades neurológicas, psíquicas e culturais e certamente o diálogo entre esses campos não serão abordados aqui. No entanto, foi possível identificar alguns princípios conceptivos de movimento do dois, admitindo seus limites de impressão nos seus corpos. Nesse sentido, ao revisitar trabalhos artísticos de Josephine Baker e Grande Otelo, foi desafiador olhar seus mundos corporais imersos em cenários de sátira, comicidade, exibição do exótico, improvisos, às vezes nada congruentes com discurso humanizador, que por sinal estereotipam a pessoa negra reduzindo sua complexidade existencial. Por outro lado, foi importante detectar que através desses mesmos dispositivos cênicos ela e ele apresentaram modos de corpo substanciados por uma cultura negro-diaspórica-africana. Josephine Baker participou de quatro filmes, sendo produtos únicos referentes ao seu trabalho em cinema. Foram eles “A revista das revistas” (1927), “A sereia dos trópicos” (1927), Zou Zou (1934) e “A princesa do TamTam” (1935). É interessante a apreciação dessa filmografia, por conta do rico material que eles oferecem relacionado ao music hall e à Revista em Paris, destacando imagens acerca de números musicais preenchidos de dança e comicidade. Essa filmografia é agregadora para os estudos dos gêneros cênicos, no que tange a informações referentes a estrutura e estética de interpretação dos artistas. Por meio desses trabalhos nota-se a relação da França com suas colônias caribenhas, africanas e com a América Latina. Por meio artístico, evidencia-se a dinâmica relação colonial de poder que a cultura 178

francesa exercia em relação a esses territórios, intermediando a criação de uma cultura imagética exótica. 178 Em “A sereia dos trópicos”, Zou Zou e a “A princesa do TamTam”, Baker interpreta personagens com perfis bem próximos, em contornos que perpassam por amor não correspondido do homem branco francês; a moça negra de alguma colônia francesa que precisa ser civilizada; e o contato dessa mesma moça com o music hall e a vida noturna, principalmente a parisiense. Além de tudo, nos três trabalhos, as personagens de Baker terminam solitárias, nostálgicas e conformadas com os sacrifícios dispensados aos homens brancos com os quais elas nunca poderão estar. Em contrapartida, ao observar o desempenho do corpo de Baker nos filmes, há delineamento corporal que desobedece aos recursos de corpo, empregados pelos artistas brancos, denotando outro tipo de escola ou referência, para além da estereotipia apregoada ao corpo de Baker pelos criadores do filme. Isso fica evidente, ao comparar os movimentos corporais da artista com os de outras atrizes, primordialmente quando elas dançam.

178 A revista das revistas: Gabrilelle (Helene Hallier) é uma jovem pobre cuja vida se vê transformada ao começar a trabalhar em um clube parisiense. No entanto, sua estória é pretexto para apresentar números de artistas do music hall, que estavam fazendo grande sucesso na época. Dentre essas artistas estava Josephine Baker. A sereia dos Trópicos: Josephine Baker interpreta uma moça que reside numa colônia francesa. Ela é constantemente assediada por um colono, até que um dia André, um rapaz branco francês, salva-a de um dos assédios. André está na cidade por conta de uma armadilha que o avô da sua noiva está confabulando em trato com o colono assediador. Após a intervenção do rapaz, o colono assediador decide assassiná-lo. No entanto, é interrompido pela polícia que foi chamada pela personagem de Josephine Baker. A moça já apaixonada por André, descobre que ele está comprometido. Após saber que André retornou à França, a moça decide viajar para esse país clandestinamente num navio. Na embarcação ela é descoberta, mas tem sua passagem paga por uma socialite que, em troca, pede que ela cuide das suas crianças. Em uma rua de Paris, enquanto a moça está dançando com crianças, empresários de music hall sugerem uma contratação em troca de encontrar André, o amor não correspondido da moça. Após o primeiro show, ela reencontra André por intermédio do avô da noiva que quer fazer tudo para evitar o casamento do rapaz com a sua neta. Há um duelo entre o rapaz e o avô. A moça (Baker), temendo que aconteça algo a seu amado, atira (escondida) no avô da noiva do rapaz. A estória se encerra com a moça trabalhando no music hall e o rapaz casando com a noiva branca. Zou Zou: Zou Zou é uma menina pobre criada em ambiente circense. Ela tem um irmão de criação chamado Jean Cabin. O mestre de cerimônia do circo apresenta Zou Zou e Jean Cabin como irmãos gêmeos de cores diferentes, uma atração pitoresca do circo. Zou Zou cresce e passa a trabalhar como lavadeira e passadeira. Ela se apaixona pelo seu irmão de criação que, por sua vez, se enamora de uma colega de trabalho da irmã. Ela ingressa no music hall e Jean é acusado de assassinato. No entanto, Zou Zou viu o ocorrido e consegue denunciar o verdadeiro criminoso a polícia, inocentando o amado que termina nos braços da colega de trabalho de Zou Zou. A princesa do Tam Tam: Homem francês, em crise no casamento e com falta de ideias para o novo livro, decide passar uma temporada na Tunísia. Lá conhece Alwina (Josephine Baker), uma moça pobre e andarilha que pede esmola e rouba comida. Ele decide ensinar “boas maneiras” para Alwina e fingir que está apaixonado por ela para que tal situação lhe desperte ideias para o livro. Enquanto isso na França, sua esposa está sendo cortejada por um marajá. Assim, o escritor decide voltar para a França com Alwina criando uma situação de ciúmes com a esposa. Na Europa, um amigo do escritor propõe que Alwina fosse apresentada como princesa. A esposa do escritor e o marajá promovem uma festa para desmascarar Alwina. Ao final, o escritor e a esposa se reconciliam. Alwina, já apaixonada pelo escritor, fica sozinha e sofre em segredo. Porém, tudo isso é ficção e está no novo livro do escritor denominado “Civilização”. 179

Em acréscimo a esse material filmográfico dois shows de Josephine Baker foram escolhidos para auxiliar na discussão, um realizado em 1955; e outro, em 1968 no Teatro Olympia em Paris. Nesses, a artista resguarda um delineamento de corpo semelhante aos filmes articulando com os modos de ser parisiense e estadunidense, mas é na interação com o público que atitudes provocativas se revelam. Grande Otelo teve um trabalho cinematográfico vasto, atravessando diferentes estilos, a citar comédias musicais (chanchadas) e cinema novo. Para este tópico foram selecionados filmes179 em número equivalente ao de Josephine Baker. Dentro disso, trazemos “Carnaval Atlântida” (1952) “A Dupla do Barulho” (1953), “Matar ou Correr” (1954) e “Assalto ao Trem Pagador” (1962). Com exceção de “A Dupla do Barulho”, em todos os trabalhos Otelo desempenha papéis coadjuvantes ou a função de escada180, essa executada quando formava a dupla com Oscarito. Além desses filmes, foram utilizadas também as gravações do Programa Ensaio (1991) e da performance de Grande Otelo com Gal Costa, em 1987. As histórias da maior parte dessas personagens atravessam contextos nos quais o samba, o alcoolismo e a vida noturna são recorrentes. As comédias musicais (chanchadas), conhecidas por expandir estética gestada no teatro de revista e circo brasileiro, sublinham-se por satirizar clássicos europeus e a influência da cultura de massa estadunidense, como no filme “Matar ou Correr”, que se constituía numa paródia do filme de faroeste “Matar ou Morrer”(1952).

179 A dupla do Barulho: Tião (Grande Otelo) passa de divulgador a ator em uma companhia de teatro de variedades, estabelecendo parceria com Tonico (Oscarito). A companhia se apresenta em várias cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, com sucesso. Porém, Tião é apaixonado pela estrela da trupe e esta nutre um sentimento por Tonico que passa corresponder. Tião, sabendo de tal situação, abandona o grupo chateado seguindo carreira solo. Ele começa a beber demasiadamente, enquanto Tonico tem recém sucesso no cinema. Tião fica doente e é encontrado pela empregada da estrela da companhia que cuida dele. Sabendo do ocorrido, a estrela insiste com o empresário do grupo para organizar o retorno de Tião aos palcos. Tal situação é consolidada e a dupla “Tonico e Tião” voltam a trabalhar juntos. Matar ou Correr: Cis Kokada (Grande Otelo) e Kid Bolha (Oscarito) são dois trapaceiros atrapalhados que chegam a cidade de City Down. Lá, os dois conseguem derrotar e prender o temido criminoso Jesse Gordon que aterrorizava o lugar. Kid Bolha é nomeado Xerife e Cis Kokada passa a ser seu assistente. Contudo, Jesse Gordon consegue fugir incitando Kid Bolha a um duelo. O mesmo ocorre e Jesse Gordon é derrotado. Kid Bolha tem ajuda de Cis Kokada e agentes federais. O filme é uma paródia do filme estadunidense “ Matar ou Morrer”. Carnaval Atlântida:Um dono de empresa de filmes quer gravar “Helena de Tróia” em seu estúdio. Porém, os dois profissionais (Grande Otelo e Colé) escrevem o argumento de uma comédia carnavalesca. Injuriado, o empresário os coloca na posição de funcionários da limpeza e contrata o professor Xenofontes (Oscarito) para escrever “Helena de Tróia”. Os funcionários usam vários disfarces e situações para gravar o filme e ganhar algum dinheiro. Assim como eles, Regina – a filha do empresário – e sua prima cubana querem a gravação da comédia musical. Os personagens de Grande Otelo e Colé não têm nomes. Assalto ao Trem Pagador: No interior do estado do Rio de Janeiro, um grupo composto por seis homens assalta o trem pagador da estrada de ferro Central do Brasil. O grupo decide gastar só 10% do roubo para não despertar a atenção da polícia. Grilo perú é morto por Tião Medonho, o líder da quadrilha, quando se entrega ao luxo da zona sul não respeitando o acordo. Ao mesmo tempo, a polícia fecha o cerco sobre os outros assaltantes até chegar a Tião Medonho. Grande Otelo interpreta Cachaça, um dos assaltantes. 180 Artista comediante que geralmente assume a função de “escada” é aquele ou aquela que proporciona o surgimento de piadas, a partir de recursos corporais e do texto. Quem assume essa função “auxilia o seu parceiro de cena a atingir o sentido inesperado na interação” (ALVES, 2016:13 ) 180

No entanto, a sátira, muitas vezes, alimenta a estereotipia do homem negro, que nunca transcende as situações nas quais o charlatanismo, o caráter trapaceiro e serviçal está presente. Numa via de mão dupla, entre fronteiras marcadas, Otelo do seu lugar de coadjuvante, além de mostrar pedagogia corporal diferente dos companheiros de cena, especificamente do ator Oscarito, que era também um cômico, apresenta um trânsito flexível entre a comicidade e a tragédia na maior parte dos seus filmes. Assim ele desobedece a linha seguida pelos outros atores que, por sua vez, não possuíam travessia tão fluída entre esses dois polos estéticos, quando interpretavam um mesmo personagem. Tanto nas observações tecidas nas performances de Baker, como nas de Otelo, identificou-se desobediência por frestas, incorporadas na própria natureza do movimento, não só o gestual, mas também na maneira de dizer a fala. Nessa lógica, os personagens adquiriam humanização que seguia em disputa com o caráter reducionista inicialmente aplicado a eles. Assim, neste ciclo, será descrita a análise do corpo, a partir de alguns padrões africanos de perspectiva corporal, a fim de elaborar fundamentações importantes acerca dessas experiências de corpo negro-diaspóricas em cena. Nesse sentido, aprofundaremos mais a nossa base nos estudos de Thompson (1974) e Gottschild (1996, 2003) para comprovar que o princípio da desobediência, encontrado no corpo negro, é construído a partir de tradição corporal africana dinamizada em deslocamento ou em diáspora.

4.1 Um olhar para o corpo a partir das esculturas

Em alguns documentos coletados, naqueles referentes a materiais de imprensa, foram identificadas conexões visuais entre Baker, Otelo e esculturas. No caso dessas últimas não especificamente de origem africana. Há um desenho no folder de divulgação do livro de Jean Claude Baker, Josephine Baker: The Hungry Heart e uma revista feita em homenagem a ela, intitulada The Black Vênus. Em ambas são reproduzidas a imagem da face e do busto de Josephine Baker. A primeira é um desenho (Figura 27) que lembra uma escultura; a segunda, a fotografia de uma escultura (Figura 28). Nas duas há longevidade do pescoço de Baker, despertando uma sensação de realeza para quem aprecia.

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Figura 27: Folder de The Hungry Heart Figura 28: Foto de escultura - Baker Fonte: Missouri Historical Society – Library & Research Center

Num jornal cujo nome não pôde ser identificado e cuja fotografia não é exibida aqui por conta das más condições do documento, Grande Otelo está sentado em uma pedra, nu, um pouco encolhido, em meio a uma ambiência arquitetônica. Tal posição – sentado, mãos abaixo do queixo – remete a uma serenidade intelectual. O semblante do seu rosto é similar à fotografia abaixo.

Figura 29: Fotografia de Grande Otelo. Fonte: Site do PSTU

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Não foi possível localizar a autoria de tais trabalhos; mesmo assim, o contato com esses documentos coincidiu com as minhas visitas à coleção de Arte Africana no Speed Art Museum situado na cidade de Louisville – Kentucky e, posteriormente, no Museu de Arte de Sain´t Louis, localizado na cidade de mesmo nome. Tanto em um local, como no outro, havia predominância de esculturas do centro-oeste-africano, com destaque para a produção ioruba. Para mim já era aparente uma suspeita da relação da posição das esculturas com os movimentos presentes nos repertórios corporais de Baker e Otelo. Na medida em que eu aprofundava as pesquisas e os estudos teóricos, isso ficava mais expressivo. Ao ler o trabalho de Gottschild (1996, 2003) percebi que a estudiosa se referenciava muito na investigação de Thompson (1974), assim também como fazia Àjàyì (1998). Tanto a estadunidense, quanto a nigeriana, tocam nos estudos do antropólogo para abordar aspectos dançantes do corpo na dança negra e da dança para os iorubas respectivamente. Assim, ambas trazem os aspectos interrelacionais identificados, por Thompson na sua pesquisa de campo, entre meados da década de 60 e 70 do século XX, em culturas africanas (Oeste e Centro), nas expressões culturais desse continente. Além de destacar os princípios de movimento contidos nesses aspectos, presentes tanto na dança como na escultura, por exemplo. Logo no primeiro capítulo Thompson sugere os critérios da fine form que parecem ser compartilhados entre os fazedores de escultura, música e dança nas culturas africanas a que ele teve acesso. Ele, também, examina em documentação, se esses critérios eram presentes antes do século XIX. Esse compartilhamento comum de aspectos corrobora com o que Munanga (2009: 32) acentua sobre unidade africana espraiada em diversidade,

As formas de arte que se encontram nas diferentes regiões da África Negra e entre diferentes etnias não só apresentam muitas vezes semelhanças de estilos, como também possuem em comum certo número de características gerais que se sobrepõem às diferenças de estilos. Verifica-se, por exemplo, determinada quantidade de similitude nas relações entre as formas artísticas e as crenças religiosas, o que leva a atribuir às práticas rituais da maioria das sociedades africanas as mesmas origens. Em geral, as formas da arte africana inscrevem- se num quadro comum, mesmo que esse pano de fundo conceitual venha se exteriorizar de diferentes maneiras.

Essas similitudes, apontadas pelo autor, cosubstanciam o que aqui se sugere como práticas e noções de corpo compartilhadas por culturas centro africanas bantos e oeste africanas iorubas, por exemplo, no que tange a um dos variáveis processos de articulação, entre as comunidades de África em diáspora, assim, dinamizando-se em deslocamento. Esses históricos processuais são presentes, tanto nas práticas artísticas, como religiosas, formando uma continuidade eficiente dentro do invólucro. 183

Não é arbitrário que o objetivo do livro de Thompson (1974) seja a definição de uma arte africana em movimento, nesse sentido estabelecendo um diálogo ainda com Munanga, é possível compreender que esse movimento gira em torno de aspectos comuns que vão se redimensionando. É importante salientar que o conceito de dança, por exemplo, que Thompson identifica nesses complexos, perpassa por uma significação que não se restringe ao corpo humano, mas também a um sistema de combinação de coisas e objetos em certos contextos (1974: XII). Nesse sentido, Thompson (1974: XII) pontua:

África assim introduz uma diferente história da arte, a história da arte dançada, definida na mistura de movimento com a escultura, tecidos, e outras formas que dão vida às suas próprias nobreza e vitalidade. A dança pode completar a transfiguração do objeto críptico em doutrina: a dança redobra a força da presença visível; dança tem a envergadura do tempo e do espaço181

A história da arte dançada compreendida como a mistura do movimento com a escultura, segundo o autor nos oferece uma rica fundamentação para as nossas reflexões até aqui, elevando um entendimento mais complexo e vivo para algo que supostamente é estático e limitado num certo tempo. A sapiência africana nos faz interagir com um modelo no qual a realidade visual bidimensional estática é preenchida por múltiplos do ontem e do hoje. Referente a isso Àjàyí (1998) amplia o modo de percepção ressoando que a dança como forma de comunicação não verbal reaviva outras formas de arte não verbais:

Como forma de arte unidimensional e efêmera, a dança dá vida a outras artes multidimensionais e substancialmente matérias como esculturas na forma de adereços de cabeça, máscaras, adereços de mão, varas e composições de tecidos. Talvez seja nessa área que a dança atinja seu pico como arte expressiva e comunicativa; em si uma arte não-verbal, a dança vivifica o significado dessas outras artes não-verbais. É principalmente através de uma performance dançada que muitas esculturas iorubas, criadas especificamente com fins teatrais ou como peças rituais, ganham sua máxima potência, significância e/ou função. É por essa razão, inclusive, que no passado, muitas dessas esculturas eram guardadas em altares ou espaços fora do alcance dos olhos quando não estavam “em serviço ativo”. Expor essas peças separadas da movimentação a que são destinadas é destruir sua metáfora artística e aura simbólica182. (ÀJÀYÌ, 1998: 01)

181 Tradução livre. Africa thus introduce a different art history, a history of danced art, defined in the blending of movement and sculpture, textiles, and other forms, bringing into being their own inherent goodness and vitality. Dance can complete the transformation of cryptic object into doctrine; dance redoubles the strength of visual presence; dance spans time and space. (THOMPSON, 1974: XII) 182 Tradução livre. A one -dimensional ephemeral art form, dance brings alive more substantial multi-dimensional material arts like sculptured headgears, masks, hand props, wands and fabric collage. It is perhaps in this area that dance achieves its peak as an expressive communicative art; a non-verbal art itself, dance vivifies the meaning of these other non-verbal art forms. Many Yoruba sculptures specifically created as theatrical or ritual pieces attain their full potency, significance and/or function mainly through a dance performance. In fact, for this reason, 184

Essa citação ainda bombeia a importância do movimento para as esculturas iorubanas, pontuando que muitas delas são mantidas em locais reservados; expô-las sem movimentação é como diluir sua “metáfora artística e áurea simbólica”. Com suporte em Thompson a notação estende aquilo que está sendo dito neste trabalho: o significado do movimento para a arte africana e a importância de estabelecer uma análise em movimento para a arte negra ou corpos negros em diáspora. Nessa linha, Gottschild (1996) extrai as considerações de Thompson, a fim de estabelecer paradigmas de uma estética africana: abraçando o conflito; policentrismo e polirritmia; alto efeito de justaposição; jovialidade (ephebism) e a complexa estética do cool. A partir dessa extração ela desenvolve outras duas investigações, aplicando essas considerações. No seu primeiro trabalho (2003), ela pensa sobre o corpo de dança negro a partir de partes do corpo (pés, quadril, bunda e outros) em análise baseada em entrevistas a bailarinas(os) negras(os) de diversos estilos e bailarinas(os) não negras(os) que praticam danças negras. No trabalho sobre reverberações das políticas raciais no teatro de variedades estadunidense do início do século XX, a partir da história de dois artistas (Margort Webb e Harold Norton), ela aponta desde o começo do livro que o paradigma de análise é africanista. Sem dúvida, os trabalhos dela foram bastante inspiradores para pensar na estruturação desta tese, que passou por diversos desenhos, influenciando na tessitura deste recente delineamento. No entanto, para Baker e Otelo em movimento, mesclarei a forma de Gottschild com os fundamentos abordados por Thompson para discorrer sobre alguns trabalhos cênicos realizados pelos dois. São formulados aspectos secundários do princípio da desobediência do corpo – incorporados pelos artistas em conexões intergeracionais contidas nos invólucros pelos quais estavam envolvidos, isto é, a infância em St Louis e Uberlândia, respectivamente. Além disso, os processos de deslocamentos pelo mundo do entretenimento e o significado do deslocamento, tanto para ela como para ele, dinamizaram suas posições na arte e na vida com as síncopas e polirritmias disponíveis e possíveis. Reafirmando, dessa forma, a desobediência no existir e movimentar. Em vista disso, divido a desobediência em quatro aspectos importantes: - Pés: agilidade, suporte e improviso. - Quadril e Coluna: desencaixe para encaixar o mundo. - Voz: dança das palavras no silêncio que grita. - Olhos: dança no espaço, pois o movimento é a coluna.

many of these sculptures were in the past kept out of sight in shrines or especial out-of-bounds rooms when not in ‘active service’. To expose them without motion is to destroy their artistic metaphor and symbolic aura” (Àjàyì, 1998: 01) 185

4.2 Pés: agilidade, suporte e improviso

Caminhar com Josephine Baker e Grande Otelo é uma experiência além de um passo após o outro e da transferência de peso entre os pés. A andança vai se tornando complexa, pois há agilidade e rapidez embutidas, mesmo na estabilidade. Os pés dos dois não só reverenciam o chão, mas também clamam por ele para poderem pular, afundar, torcer e re-torcer. Verifica-se tal aspecto em Baker na participação em um dos quadros do filme “A revista das revistas” (1927) (vídeo 2). Em Otelo, em uma das cenas do filme de “Assalto ao Trem Pagador” (1962) (vídeo 3), no qual sua personagem, apelidada de “Cachaça”, tem um pequeno solo de dança em um tablado de madeira. No caso dele, além dos efeitos de torção percebe-se também uma execução dos pés do artista que remete aos pés do congadeiro. Nesse sentido, é interessante relembrar que, na infância, o ator envolveu-se com a cultura da Congada em Uberlândia (MG) (MOURA, 1996) – uma fase invólucro do artista, o que pode explicar a cultura de posição de pés peculiar, inerente àquela manifestação. Além disso, outro aspecto comum nas performances dos dois é o diálogo improvisado entre os dois pés. Nesse caso, um pé atua como suporte para que o outro improvise, num jogo de pergunta/chamada e resposta. Isso fica muito mais perceptível em Josephine Baker, basta conferir alguns solos de dança da artista no filme “A princesa do Tam-Tam” (1935) (vídeo 4). A chamada e a resposta comumente conhecidas como call-and-response é muito presente nas culturas africanas e nos deslocamentos culturais e físicos, da maior parte das culturas negras em diáspora, a ressaltar as congadas e os spirituals estadunidenses, esses últimos presentes na infância de Josephine Baker. De forma geral a estrutura de chamada e resposta é abordada para pensar as interações em cantos e danças (solo e círculo). Nas esculturas, por exemplo, podemos observar esses aspectos, quando são representadas as relações entre líderes e seguidores. Assim, afunilando o olhar para os pés conseguimos entender a engrenagem de sentido presente nessa estrutura relacional, em que pergunta/chamada e resposta agregam-se, perpassam o corpo ritmicamente, tendo os pés como ponto de partida e, ao mesmo tempo, de chegada. Essa capacidade de improviso dos pés pode ser destacada por detalhes que Thompson (1974) encontra na observação do canto e da dança. O pesquisador identifica que o coro, por exemplo, começa enquanto o solista está cantando e este, por sua vez, começa a cantar sua parte, enquanto o coro ainda está finalizando. Essa dinâmica de sobreposição também é percebida nos pés. Enquanto um pé finaliza a movimentação, o outro, que é a base, inicia o improviso; depois ocorre a inversão. Se o coro 186

funciona como suporte para o solista que depois assume o papel de apoio – orientação para o coro; o mesmo se aplica aos pés. No entanto, mais do que um cânone, Thompson enfatiza que há condição “moral” para improvisar e elaborar. Segundo ele, o direito e o sentimento dos outros têm profunda relação com a criatividade africana. Não importa quantos versos ou passos a pessoa cria ou elabora. Assim, caso ela seja, sob os olhos do coro, uma pessoa desprovida de generosidade, ela nunca terá a chance de apresentar sua criação. Isso corrobora com um sentido de arte nas culturas africanas tradicionais, para as quais ela existe porque há aperfeiçoamento de certo caráter, isto é, acrescentaria a capacidade para o discernimento e a escolha, tão solicitados na cultura ioruba (ÀJÀYÌ, 1998). Dessa forma, “(...) a chamada e a resposta, e o solo e o círculo, longe de constituírem apenas questões de estrutura, são, na realidade, níveis de interação social aperfeiçoada183” (THOMPSON, 1974: 28). Tendo em vista isso, transpondo para realidades dos corpos diaspóricos de Baker e Otelo, parte desse aspecto conflui-se segundo as experiências dos dois ao longo dos seus deslocamentos, o que propiciou um dinâmico diálogo cultural, para ver e rever paradigmas ou para “dinamitar” ou (re)atualizar ideologias. Os pés, pelos solos que passaram, não concederam apenas a absorção de experiências, mas também otimizaram a capacidade de se reinventar por intermédio de deslocamentos sincopados. Há outro elemento, encontrado na performance dos pés, que merece destaque ao assistir as corporalidaes cênicas dos dois artistas: a ideia de certa suspensão do movimento de um pé (que permanece como base) para que o outro elabore o fraseado de movimentação. No show que Josephine Baker realizou no Olympia em 1968 (vídeo 5), isso é evidenciado, quando a artista suspende uma linha de canto para dançar o Charleston. Essa suspensão não está apenas no roteiro, mas em cada pé que alternadamente e de forma ágil segura o movimento para que o outro se expresse. Em Otelo, podemos verificar na sua atuação do filme “Carnaval Atlântida” (1952) (vídeo 1), no qual são bastante comuns os pulos do artista - uma tendência para que um pé sirva de base para o outro - e também certa suspensão do movimento. Contudo, não podemos entender essa suspensão como negação do movimento, pelo contrário, quando um dos pés de Baker e Otelo suspende algum tipo de movimentação para apoiar a performance do outro, há efeito de afirmação, que corresponde à estrutura africana tradicional de movimento, na qual a suspensão tem duplo significado: cancelar e afirmar. (THOMPSON, 1974).

183 Tradução livre. Thus call-and-response and solo -and-circle, far from solely constituting matters of structure, are in actuality levels of perfected social interaction. (Thompson, 1974: 28) 187

Isso ocorre também na relação com os acentos rítmicos. Thompson (1974: 10) afirma: “Isto descreve perfeitamente suspender a batida na arte e dança na África, i.e, alguns estilos africanos de arte e formas musicais são animados ou reavivados pela frase da ausência da batida dos acentos184”. Essa observação respalda o efeito da síncopa dos pés, na trajetória de corpo de Baker e Otelo a partir das relações com as expressões musicais e dançantes negras, como congada, samba, maxixe (Brasil) e ragtime, charleston e jazz (Estados Unidos).185 A agilidade dos pés é componente também a ser defendida, fato que podemos encontrar nas performances dos dois de forma contínua e recorrente. No filme Zou Zou (1934), cujo título refere a personagem principal interpretada por Josephine Baker, podemos identificar esse ponto na cena na qual a personagem brinca com crianças em um quarto. Assim como na personagem “Cis-KoKada” interpretado por Otelo no filme “Matar ou Correr” (1954) (vídeo 6). No último caso, percebe-se que a agilidade dos pés, não focados integralmente pela câmera, aparece expandida no resto do corpo, quando uma bomba é jogada na delegacia onde estão Kid Bolha e Cis Kokada. Essa agilidade parece ser um dos facilitadores, tanto para Baker quanto Otelo, para chutes e transferências no Charleston e nos pulos cadenciados do samba. Para além das noções compartilhadas, podemos tomar duas particularidades respectivas dos pés de Baker e Otelo. Na primeira notam-se improvisos envolvendo a ação de deslizar dos pés, conforme a performance no número Plantation (Figura 30) extraída do filme “A revista das revistas” (vídeo 7).

184Tradução livre. This perfectly describes suspending the beat in art and dance in Africa, i.e, in some African styles art and music forms are enlivened by off-beat phrasing of the accents. (Thompson, 1974: 10) 185Parece que a referência desse aspecto, ausência da batida dos acentos em música ou dança, também está presente no movimento das mãos e dos pés numa dança em Gana e também numa dança moderna da África Central (makuaya). 188

Figura 30: Josephine Baker no Quadro Plantation. Álbum do Folie-Bérgère (1927) Fonte: New York Public Library for the Performing Arts.

Em Otelo há tendência de marcação alternada de um pé e outro no chão, como podemos ver, por exemplo, no filme “Carnaval Atlântida” (vídeo 8). Em suma, podemos destacar que as principais qualidades dos pés, em comum, nas performances de Baker e Otelo, seriam os efeitos de afundar, pular, torcer e re-torcer; diálogo de chamada e resposta no qual um pé é suporte para o improviso do outro; a suspensão do fraseado de um pé, para o outro afirmar o movimento; e a agilidade dos pés estendida para o resto do corpo. É importante ressaltar que a interação entre esses aspectos ocorre de forma intensa, embora aqui tenham sido separados para exame minucioso sobre as atuações dos dois artistas. O propósito foi cruzar aspectos africanos de movimento e comprovar a dinamicidade deles na corrente corporal diaspórica. Além disso, é impossível contextualizá-los por completo sem a conexão com outras estruturas corporais que serão abordadas a partir de agora; em especial o quadril.

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4.3 Coluna e Quadril: desencaixe para encaixar o mundo

A reverberação desobediente manifesta-se mais na coluna e no quadril, cuja região comumente conhecida incluiria a bunda, pélvis e coxas. As proposições coloniais de adestramento, domesticação e anulação dos corpos negros, tinham o quadril como alvo mais desejado. Acusado de ser usado lascivamente, comparado a selvageria e hiperssexualização, o conjunto coluna e quadril desses corpos, ou de um possível imaginário acerca deles, é constatemente colocado em dúvida. Porém, ao mesmo tempo em que almejado, é criticado. Nesse contexto, muitas pessoas negras podem vir a desenvolver uma relação de conflito com essa área do corpo, não pelo que ele é, mas pelo que representa aos olhos da colonialidade. A energia física que se inicia pelos diálogos não uniformes entre os pés e que reverbera na coluna e no quadril, ou que age com esses pontos corporais, transforma-se numa série de movimentos, configurada no que Gottshild (1996) enuncia como polirritmia e policentrismo, estes assentados no corpo. O encaixe e o desencaixe do quadril seria um movimento exclusivamente feminino a certos olhos educados nas correntes do sexismo, mas a presença dessa dupla é encontrada em experiências nas performances, tanto de Baker, quanto de Otelo. Em trabalhos do ator, realçar a bunda é um efeito cômico, como em “A dupla do barulho” (1953), na cena em que “Tião” (Grande Otelo) e “Tonico” (Oscarito) estão tentando dormir num beliche dentro de um trem em movimento (vídeo 9); ou no filme “Matar ou Correr” (1954) na parte em que Cis-KoKada (Grande Otelo) e Kid-Bolha (Oscarito) estão na carroça fugindo de um grupo de pessoas que queriam enforcá-los por causa de um trapaceio (vídeo 10). Otelo assumia a bunda em cena com desapego a qualquer tipo de pudor hegemônico. Isso era um valor de corpo para ele. No filme “A dupla do Barulho” ele se traveste de mulher, usa pó branco para clarear a face e peruca loira. Tião interpreta uma personagem que tenta seduzir o pinguim – Tinoco (Oscarito) - o qual está dividido entre a mulher interpretada por Tião e uma mulher branca que anda na sapatilha de ponta como uma bailarina (vídeo 11). Em dado momento Tião usa o recurso do requebro para provar para a personagem de Tinoco, porque o corpo da personagem dele é melhor do que o da bailarina. Essa cena é exemplo pertinente para explanar sobre certa sexualização do corpo da mulher negra, apesar da face embranquecida de Otelo que não usa recursos para clarear o resto do corpo, atribuindo a ela a posse da bunda com tamanhos maiores. É interessante lembrar que bunda avantajada não é atributo específico de pessoas negras ou que estas somente têm bundas em proporção maior. No entanto, é importante ressaltar como 190

a bunda é parte do corpo valorizada nas culturas corporais africanas e da diáspora, Gottschild (2003) pontua essa questão:

É interessante notar que isso não quer dizer que todas as mulheres negras têm grandes traseiros. Há mais variação anatômica dentro do então chamado grupos étnicos negros assim como há nos grupos brancos; mesmo assim a proeminência da bunda é um indicativo de valor cultural e estético positivo nas comunidades da África e da diáspora africana, posturas diárias e estéticas de dança enfatizando a bunda tem sido praticada por séculos186. (GOTTSCHILD, 2003: 146)

Entendendo a ênfase da bunda como prática cultural, a autora localiza essa parte do corpo como legado em deslocamento, assim presente nas Américas: Brasil e Estados Unidos. O que possibilita abordagem mais lúcida que seria destacar a bunda não a partir de confrontação com o olhar hiperssexualizado, mas sim com base em prática dinâmica de corpo. Josephine Baker dispensa comentários, quando o assunto é respaldar a bunda e desencaixar o quadril. Em Shuffle Along, ao final da linha das coristas, Josephine Baker desobedeceu a uniformidade postural e coreográfica do grupo: fez caretas e desencaixou o quadril de forma pessoal.

Figura 31: Baker em cena, encaixe do quadril, 1951. EUA Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

186Tradução livre. It is importante to note that this doesn´t mean that all black women have big behinds. There is a much anatomical variation within the so-called black ethnic group as there is in the so called white group; nevertheless since the proeminence of the buttocks is a positive cultural and aesthetic value indicator in Africa and African diasporan communities, daily postures and dance aesthetics emphasizing the buttocks have been praticticed for centuries. (GOTTSCHILD, 2003: 146) 191

Essa imagem da artista marcaria a memória de Langston Hughes e outras pessoas que a assistiram no espetáculo. Não só nos filmes, mas em diversas imagens, conferimos aparições do corpo de Baker nessa ênfase (Figura 31). No entanto é interessante pensar como ela administra o uso do encaixe e desencaixe. Na década de 50, em apresentações no Estados Unidos, pode-se perceber o quadril de Josephine Baker completamente direcionado para o chão, dançando ritmos caribenhos. Nesse caso, o encaixe não se constitui numa basculação completa do quadril, mas um direcionamento do cóccix para o chão. O desencaixe do quadril e a mostra da bunda era uma premissa, sem ser predominante na performance da artista. Seguindo com a análise, há um aspecto que acompanha todas as movimentações de encaixe e desencaixe do quadril, seja em cenas com ou sem movimentos dançantes. É o que Thompson (1974) comenta como getdown que, traduzido seria o efeito da tendência a abaixar- se. Tanto a posição de abaixar-se (getdown) como ajoelhar-se (kneeling) são posições assumidas em processos rituais de devoção religiosa em comunidades da África Ocidental e Central. A indicação dessas posições, assim como o ato de curvar-se para alguém, são considerados ações de respeito, incluindo este para com os mais velhos. Para o autor, o getdown é parte de um conjunto oposto dentro de si, suas combinações produzem alto efeito na relação com a música. Thompson (1974: 13) exemplifica que com espíritos da água no sudoeste da iorubalândia, enquanto os percussionistas ascendem seu ritmo, os dançarinos correspondem à altura, flexionando gradualmente os joelhos, abaixando--se, até ficarem cada vez mais perto da terra. Dessa forma, percebe-se – pelo relato do pesquisador – que dobrar os joelhos é posição imprescindível para o alcance do getdown, também presente nas estatuetas africanas como indicativo de flexibilidade. Para os dançarinos Luba (África Central), o manifesto da flexibilidade vem com joelhos e cotovelos dobrados e oscilações suaves em relação à música. Em outra cultura centro africana, de grande influência no Brasil e nos Estados Unidos, os joelhos dobrados ocupam posição vital, quase obrigatória: “O senso de flexibilidade Congo na dança é rígido: dance com os joelhos dobrados, para que você não seja levado por um cadáver187.” (THOMPSON, 1974: 09-10). Como continuadores desses princípios, Baker e Otelo exploraram-nos de forma assídua em seus trabalhos com maestria e precisão. Pode-se checar o efeito getdown, em joelhos dobrados de Josephine Baker, no show no Olympia (1968) no qual seu quadril é organicamente desencaixado dançando o Charleston

187Tradução livre. The Kongo sense of flexibility in the dance is stark: dance with bended knees, lest you be taken for a corpse. (THOMPSON, 1974: 09-10) 192

(vídeo 5) e, em 1955, quando dançando Cha-cha-cha (vídeo 12) os joelhos estão dobrados e o quadril encaixado. Em ambas, quanto mais a música ascende, mais ela tende a abaixar o corpo em direção ao chão. O mesmo efeito verificamos na performance de Otelo dançando a música “No tabuleiro da Baiana” com Eliana de Macedo no filme “Carnaval Atlântida”, quando no pico final da música ele dá inúmeros pulos e retorna mais perto do chão (vídeo 1). São detalhes de posicionamento que se mostram necessários para o efeito corporal cênico, no qual a coluna e o uso da maleabilidade do torso acrescentam ao discurso do corpo. Nas cenas dançadas ou faladas de Otelo, notam-se contrações recorrentes do tronco em consonância com a agilidade do quadril, que começou a ser implantada pelos pés. É identificado, ora alinhamento de coluna que se inclina para o chão, ora desalinhamento que surge em consonância com a gesticulação dos braços, que também geralmente se dobram e curvam-se alcançando variadas direções. Para conferir esse processo gesticulativo dos braços, há a cena de Cachaça (vídeo 13), o qual, bêbado, canta um samba e, depois, explana um texto com tom dramático, enquanto vê o caixão de uma criança descendo o morro, em “Assalto ao Trem Pagador”. A contração, presente em outras cenas como na surpresa da resposta inesperada vivida pela personagem de Otelo (vídeo 14) em “Carnaval Atlântida”, é uma sapiência corporal diretamente ligada com os joelhos dobrados e a posição get-down, Gottschild (2003: 25) sintetiza isso e ressalta esse saber corporal africano:

A “contração” é um meio africanista de articular o torso através da rotação simultânea da pélvis e/ou caixa torácica para trás, arredondando a coluna e dobrando - contraindo-os músculos abdominais; é também esse movimento que, com uma ênfase estética alterada, constitui a principal força na técnica da dança moderna de Martha Graham188.

Localizando a contração numa pedagogia corporal africana, mais a sua engrenagem - joelhos, coluna, abdômen, pélvis – a pesquisadora chama a atenção para o uso desse princípio por uma das técnicas mais conhecidas de dança moderna, a técnica Graham. Não é demais acrescentar que Gottschild tem um estudo sobre a presença de premissas africanas na dança moderna estadunidense, destacando o nome de George Balanchine como um dos coreógrafos

188 Tradução livre. A ‘contraction’ is an Africanist means of articulating the torso by simultaneously rotating the pelvis and /or rib cage backward, rounding the spine and folding -contracting – the abdominals; it is also the movement principle that, with an altered aesthetic emphasis, constitutes the major force in the modern dance thechnique of Martha Graham. (GOTTSHILD, 2003: 25)

193

que inova o jeito de pensar ballet clássico, a partir de certa maneira africano-negro-diaspórica de pensar o corpo. É importante destacar a informação que Balanchine conviveu profissionalmente com Josephine Baker, chegando a dar aulas para ela (WOOD, 2000), período que pode ter sido propício para um sistema de trocas e/ou apropriação. Vimos, até agora, o quanto o poder desobediente do quadril tem complexa atuação em conjunto com o desalinhamento da coluna (Figura 32).

Figura 32: Baker em desalinhamento de coluna, 1951. EUA Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

Nesse contexto, identificou-se a presença de princípios africanos como a flexibilidade, joelhos dobrados, getdown (Figura 33) e a relação de desalinhamento com o torso. Tudo isso em consonância e consequência de uma ressonância do uso dos pés discutido no tópico anterior.

194

Figura 33: Baker em getdown, 1951. EUA. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

4.4 Voz: dança das palavras no silêncio que grita

Nesse tópico dedicaremos uma escritura para a voz e o silêncio de Josephine Baker e Grande Otelo. No entanto, reforça-se que antes já tínhamos abordado as vozes de pés, quadril e coluna visto que não se encara voz, aqui, apenas como constitutivo ligado especificamente a um sistema do corpo que compõe cordas vocais, laringe, faringe e pulmões, mas acima de tudo um veículo que lança palavras para o mundo sejam elas inscritas no corpo ou ditas. Agora, focaremos na voz que dita palavras. Essa foi, de certa maneira, uma das primeiras questões, quando iniciei a escrita desta tese. Ao reler uma frase dita por Grande Otelo – “Eles me querem do lado, mas não me dão a palavra.” - inclinei-me a refletir sobre o sentido dela para ele e depois para a gente negra em diáspora. Por algumas razões já sabidas, e por outras inexplicáveis, essa frase me afeta. Ao relê-la, às vezes paraliso. 195

Isso teve um pico de acentuação, quando percebi o trajeto de Josephine Baker no canto, que diz respeito ao seu início inseguro e criticado por tantas(os) e a maturidade vocal alcançada pela artista ao proferir o que eu chamo de palavras cantadas em diversos idiomas. No Ciclo 3, quando foram trazidos pensamentos acerca do corpo na cultura centro africana banto, vimos que a palavra é elemento interligado à noção de pessoa. A palavra que desenha ideias e faz parte da dissertação oral de um griô, canaliza não só sentido, mas também energias poderosas concatenadas à natureza. Oliveira (2003: 31-2), na sua teorização acerca do valor da palavra no sentido nagô (ioruba) menciona que:

A palavra aparece visceralmente ligada à Força Vital. O detentor primordial da palavra é o preexistente, assim como é ele o detentor daquela. A palavra, com efeito, muitas vezes aparece nas cosmogonias africanas como um subsídio fundamental para a criação do mundo e, neste caso, ela é portadora da “força” que anima e vitaliza o mundo. O Homem, por sua vez, ao ser criado, recebe a Força Vital e o poder da palavra, que são equivalentes, visto que a palavra é concebida como uma energia capaz de gerar coisas

Animando as coisas e com poder altamente geracional, a palavra para o homem – e eu lembraria, a mulher – é um privilégio que é equivalente à força vital. Oliveira (com base em LEITE, 1984) ainda acrescenta que ela é parte de um conjunto no qual a respiração é também elemento constituinte de personalidade expressada na criação da linguagem, que se exterioriza por meio da voz. Nesse sentido, “A respiração é tida como uma espécie de manifestação da palavra, sobretudo quando estamos atados aos fatores primordiais da criação, e, consequentemente, da viabilização e multiplicação da vida.” (OLIVEIRA, 2003: 31-2). A respiração, como manifesto da palavra, significa o próprio ato de ser e estar no mundo, congruente àquelas(es), antecedentes, contidos no nosso invólucro. Quando Otelo disse “Eles me querem do lado, mas não me dão a palavra”, ele sabia exatamente que uma força imprescindível lhe estava tentando ser retirada, ou seja, que alguns ou algo o impediam de viver uma energia geradora de concretudes. Tentaram impor silêncio, tanto a ele, quanto a Baker, e ao transformar personagens coadjuvantes em principais, aproveitando cada verbo ou pausa na cena, ele provocou o silenciamento com a respiração da sua presença. Pois no seu contexto silêncio também era espaço onde respirava criatividade. Nas comédias musicais da Atlântida, se atentarmos, veremos que na famosa dupla cômica que compôs com Oscarito – indubitavelmente outro grande artista – a participação na dramaturgia não era equitária com a do colega. Os personagens de Oscarito, geralmente, tinham desenvolvimento na dramaturgia com mais nuances e durabilidade. Para muitas(os) pesquisadoras(es) de circo, a justificativa dessa situação é pelo fato de que Grande Otelo desempenhava a função de escada – fato que não deve ser descartado, até porque foi uma função 196

que o ator desempenhara muito bem e isso parece ser unanimidade. Entretanto, dispensar a racialização que o corpo de Otelo sofria em cena, também é quase cair em um modo leviano de análise.

Com toda a sincopação que o corpo carregava transitando entre diferentes estados emocionais de cena, Otelo dinamizava as poucas frases que eram aplicadas a suas personagens. Ele percorria um tempo através da voz emoldurada pela boca que dançava polirritmicamente, às vezes desembo- cando na famosa “boca de flor” (Figura 34). Toda essa engrenagem vocal gerava inflexões dinâmicas que marcavam o corpo de quem as ouvia.

Figura 34: A “boca de flor” Fonte: Livro Grande Otelo em Preto e Branco

No show “Maria da Graça Costa Penna Burgos”189, Otelo e Gal Costa cantam “No tabuleiro da Baiana” (vídeo 22), sua performance vocal declamada-cantada passeia por nuances que levam o espectador a sensibilizar-se com a voz de um moleque galanteador, um poeta meloso e um romântico que cadencia com ar sambístico cada letra, dita ou cantada, repleta de deslizes e fortes entonações. Além disso, há o mecanismo de suspensão presente nas atuações do ator que podemos verificar no dueto. Nesse exemplo, em certo momento, Gal Costa está sentada sobre as pernas dele, que canta para ela romanticamente tudo eu já fiz/ Eu fui até no Canjerê – adendo para o improviso: “Saravá, meu pai” (primeira suspensão)!/ Pra ser feliz .... adendo para o improviso: “Levanta que tú tá pesada ... Nego véio não tá aguentando” ... (segunda suspensão).

189 Show que foi dirigido por Daniel Filho, incluída na série “Grandes Nomes” produzido e apresentado na TV Globo. Além de Grande Otelo, o show também teve a participação de Elis Regina. 197

Na primeira, podemos conferir uma interrupção da letra, porém ainda dentro da linha melódica da música. Já na segunda presenciamos completa interrupção da linha melódica, que permite ao artista transitar da forma romântica de dizer a música para maneira “reclamona” de interagir com a cantora, levando o público a rir com o seu jeito resmungão. Contudo, antes que a plateia cesse o riso, ele reflui para a melodia da música. Em ambos os procedimentos verificamos o aspecto da suspensão de um fraseado rítmico para afirmação de uma outra qualidade vocal, similar ao que foi discutido sobre os pés. O personagem Cis-KoKada do filme “Matar ou Correr”, também é bom exemplo para ilustrar esses mecanismos de suspensão, do ponto de vista mais dramatúrgico numa linha cômica, na qual estados são interrompidos, suspensos, para dar lugar a outro do personagem ou da cena. A modulação vocal, geratriz da dinâmica de sensações, é também acompanhada pela gesticulação dos braços que se desenham no espaço de forma flexível e maleável. Reiteramos a cena em que Cachaça – em “Assalto ao Trem Pagador” – bêbado, canta um samba, enquanto crianças carregam o caixãozinho de outra criança, acompanhadas pelos pais desta. Ele é interrompido por um morador do morro que lhe pede consideração por aquele momento triste. O texto que Otelo diz após a interrupção, suspende o que ele estava, até aquele momento, realizando em cena. Antes, cantando e reverberando certa comicidade, ao ver diretamente o caixão descendo o morro, ele recita em tom reflexivo: “Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia é de cantar. É menos um pra se criar nessa miséria”. As dinâmicas inflexões vocais entre palavras ditas e cantadas também eram usadas por Josephine Baker, havia aí novamente um mecanismo de suspensão da melodia para dar lugar à letra declamada, em caráter menor. Na condição vocal de Josephine Baker, o que mais se destaca é o seu histórico com o ato de cantar. No começo, ela própria foi reticente devido à má recepção da sua voz pelo público. Baker era soprano e, em 1936, quando retornou pela primeira vez aos Estados Unidos, depois da mudança para Paris, ela não agradou a imprensa. Em apresentação pelo espetáculo The 1936 “Ziegfeld Follies”, a voz de Baker foi criticada por ser muito frágil, e quase inaudível. A artista nesse espetáculo cantava em dois números, o 6º - performando a música “Maharanee” e no 12º cantando e dançando a música “5 A.M”190. O jornalista Kelcey Allen chegou a escrever que “Os seus números de dança exótica eram bem executados, mas o canto dela deixava muito a desejar.” 191 Outro jornal, não só fez

190 Informações retiradas do Programa Ziegfeld Folies, 1936. Fonte: Biblioteca do Congresso. 191ALLEN, Kelcey. Ziegfeld Follies. Journal Women´swear, 1936. Fonte: Biblioteca do Congresso. Tradução livre. Her exotic dancing numbers are cleverly executed, but her singing leaves much to be desired. 198

críticas à artista, como também ironizou o fato de ela usar roupas, satirizando a Josephine Baker que apareceu com poucas roupas em Paris e no Folies Berger. “Senhorita Baker não pode cantar, mas com certeza pode usar roupas.”192. É perceptível na imprensa uma rejeição ao retorno de Baker, criticando o desempenho vocal e ironizando a dança, que os jornais relatavam estar em conexão com a “dança selvagem, exótica” que a artista tinha levado para Paris. Ela já estava ultrapassada para o espírito estadunidense, mas é interessante relevar que a expatriação de Baker para a França pode ter sido elemento que reforçou tal recepção, correspondendo ao nacionalismo e ao racismo estadunidense do período. Não se pode esquecer que, Josephine Baker era artista de fama internacional, que já havia percorrido Europa e América Latina, na lista de uma das primeiras mulheres negras mais bem pagas do entretenimento. O fato é que Baker não ficou satisfeita com a recepção e muito menos com a performance na terra natal. Com improvisos, transitando entre um território e outro, Baker retorna a Paris bem recepcionada consolidando ainda mais sua fama e boa relação com o público daquele país. Sincopando experiências, a artista continua cantando e aprimora a voz, principalmente durante a Segunda Guerra Mundial, período no qual tem de cantar para as tropas aliadas no Norte na África. Ao ouvi-la cantar em dois shows, em 1955 – programa de origem desconhecida (vídeo 12) e no Olympia, em 1968 – é interessante perceber como tratava a voz como instrumento musical. Antes, no filme Zou Zou (1934), canta como um pássaro, ironicamente seu personagem canta numa gaiola (vídeo 15). Essa cena repleta de estigmas do ponto de vista da representação da figura da mulher negra, por parte do colonizador, oferece estrutura que pode ser provocada. Diferentemente do imaginário comum referente às vozes femininas negras estadunidenses, nas quais o aspecto gutural e visceral é recorrente, Baker traz outra força situada num tipo vocal que não se conforma com esse imaginário. Ela diz/canta por meio de timbre deslocado dessa visão comum. Comparar a voz dela com o pássaro é conectar a uma perspectiva ancestral que credita a relação do pássaro com o espírito divino. “Os antigos iorubas acreditam que o espírito de Deus está na cabeça de um homem na forma de um pássaro”193 (THOMPSON, 1974: 62). É óbvio que os diretores não pensaram nesse aspecto ancestral para criar a cena referida, mas certamente um “cosmo involucrólico,” estava na artista.

192“Plays on Broadway”. Variety, 05 de fevereiro de 1936. Fonte: Bilblioteca do Congresso. Tradução livre. Miss Baker can not sing but sure can wear clothes. 193Tradução livre. The ancient yoruba believe that the spirit of god is in man´s head in the form of a bird. (Thompson, 1974: 62) 199

Com estrutura flexível, sabendo de certa forma lidar com as críticas – pois continuou a cantar – ela voltou para os Estados Unidos duas décadas depois com repertório poliglota, aperfeiçoado durante as viagens. Na turnê com o show “Josephine Baker e companhia” (1963 e 1964) e participando do movimento dos direitos civis na Marcha de Washington – uma das poucas mulheres negras a discursar – Baker é destacada na imprensa pela voz jovial. Dessa vez, a voz dela não foi acusada de inaudível; pelo contrário, Jhon S. Wilson no New York Times ressaltou que “Não era uma voz que dependia de amplificação194”. O jornalista fazia referência ao show no Carnegie Hall. E quando perguntada por outro jornalista se o seu talento tinha mudado, Baker respondeu: “Eu me sinto diferentemente agora. E minha voz está mais baixa do que costumava ser”.195 Assim, percebemos o aspecto da suspensão e da modulação vocal adquirida com a maturidade, principalmente no caso de Baker, que propiciam coreografia da palavra nas experiências dos artistas. Palavras e silêncios que, na maioria, são atuadas em cena, com técnica, maestria e interlocução dialógica com os recursos disponíveis. No entanto, as palavras proferidas, fora do palco ou da cena, tanto por Baker como Otelo, colocaram-nos no que poderíamos chamar de contradições. Na cena, temos o recurso da alusão ou da ilusão, mas na vida não há um labirinto com muitas portas. Logo, a palavra dita ganha o mundo, e assim,

Deve-se lembrar, entretanto, que a palavra, uma vez proferida, é uma energia nem sempre controlável e interfere na existência. Daí a necessidade de quem as pronuncia deter os conhecimentos necessários para que faça bom uso da energia-palavra, posto que ela é capaz de engendrar coisas, tanto construtivas quanto destrutivas. Tal é seu poder que se for mal utilizada, pode, inclusive, voltar-se contra seu proferidor. (OLIVEIRA, 2003: 31 e 32)

No Ciclo 4 verificamos que ela e ele se tornaram cientes disso, revisitando seus discursos algumas vezes. Esse é o vigor da palavra em tempo ancestral.

194WILSON, Jhon S. “Josephine Baker is hailed at Carnegie”. New York Times, 14 de outubro de 1963.Fonte: New Yorl Pulbic Library for the Performing Arts. Tradução livre. It was not a voice that depended on amplification. 195GLOVER, William. “New for La Baker”. Vivark Evening News, 08 de março de 1964. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. Tradução livre. I feel differently now. And my voice has become lower pitched than it used to be. 200

4.5 Os olhos: dança no espaço, pois o movimento é a coluna

Para finalizar esse ciclo, cujo respaldo foi dado às performances cênicas destacando a compreensão africana-diaspórica de corpo, em deslocamentos de sentidos e num caráter desobediente em relação aos padrões corporais contra-hegemônicos, vamos pensar acerca dos olhos dos nossos artistas, tão marcantes e provocadores. O uso do olhar na escola da comicidade negra é um elemento significativo. No Brasil, basta assistir a trabalhos, em televisão, de Mussum, Tião Macalé, Mumuzinho, Marina Miranda, Zezé Barboza; nos Estados Unidos, Richard Prayor, Hattie Macdaniel, Louis Amstrong, Ed Murphy e Whoopi Goldberg. Por uma via, o uso desses olhos – em conjunto com os outros aportes do corpo - alimentou o que se conhece como a imagem estereotipada do negro engraçado. Por outro lado, incita-nos à procura de um entendimento do motivo pelo qual um recurso tão específico tornou- se tão comum entre artistas negros, voltados ao entretenimento. Será apenas consequência da massificação do uso da imagem da pessoa negra? Meu pai, quando queria brincar conosco em casa, dançava e fazia caretas com um jeito peculiar de mover os olhos, às vezes ele os cruzava, noutras os “avançava” (como se saltassem do rosto); ora os levantava. Minha adolescência recebeu a febre dos “Trapalhões”, programa semanal que passava geralmente entre o final da tarde e o início da noite de domingo. Nesse programa era possível ver as habilidades de Mussum, outro artista negro de relevância na comicidade que tinha os pés e a coluna no Samba196. Pode ser que meu pai tenha sido influenciado pelas caras e bocas do Mussum. No entanto, ele também assistiu aos filmes de que Grande Otelo participou. Teriam sido essas as únicas razões e vias pelas quais meu pai aprendeu um jeito de brincar com os olhos? Sendo ele criado em família negra e de comunidade negra, será que não ocorreram experiências que o estimularam a agir nesse sentido? Ao apreciar esculturas africanas (Figuras 35 e 36), notamos que os olhos não são detalhes para apenas constar. Realces sempre os destacam e certa luminosidade sempre os circunda. Além disso, é como se os olhos estivessem sempre em movimento, dessa maneira há efeitos de deslocamentos que somente a eles pertencem.

196Lembrando que o ator nascido em 1941 e falecido em 1994, criou e participou de um grupo cujo nome era “Originais do Samba”. 201

Figura 35: Escultura do Povo Chockwe – Luanda, Angola Museu de Arte do Missouri (EUA) Fonte: Acervo pessoal

Figura 36: Escultura ioruba. Artista não identificado - Seated Female Shrine Figure/ Museu de Arte do Missouri Fonte: Acervo pessoal

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Já rastreamos, nesta pesquisa, as relações de convívio de Otelo com culturas negras e pessoas negras, desde Uberlândia até a mobilidade nos diferentes espaços. O mesmo podemos dizer acerca de Josephine Baker. Modos corporais eram compartilhados nesses processos. Esses modos foram criando e re-criando maneiras a partir de e para o corpo, desde tempos longínquos, iniciando-se em tempos pré-coloniais. Em diáspora, esses jeitos dialogam com outras abordagens, outras maneiras de pensar o corpo. Isso é evidenciável. Mas, havia as trocas dentro da própria hetereogeneidade das culturas negro-africanas que realçavam as similaridades, e os olhos fazem parte desse aspecto. Examinando as imagens de Josephine Baker no número do filme A revista das revistas (vídeo 2), veremos que os pés da artista dão a impressão de que torcem e re-torcem no chão, os quadris sacodem num ritmo sincopado de encaixe e desencaixe. No filme Zou Zou, há um solo (vídeo 19) da personagem, um dos meus favoritos, em que ela dança na pelumbra, há um realce do desencaixe do seu quadril em consonância com a movimentação do pescoço, através de uso característico da parte cervical da coluna, o que lembra a movimentação do pescoço de algumas aves – pato, ganso e galinha, por exemplo. Se em ambos os exemplos, focarmos apenas no quadril de Josephine Baker, certamente o depoimento de apreciação tenderá a respaldar uma sensualização dessa região. Porém, se olharmos o quadril em consonância com os outros aspectos corporais, inclusive os olhos, veremos que a sua função na máscara facial de Baker é essencial para despistar certa possível hiper-sexualização que façam do seu corpo em cena. A cruza dos olhos de Baker na primeira cena atua como mecanismo de suspensão da linha dançante que o corpo está elaborando. Ela quebra o efeito sexualizado e afirma uma personalidade cômica que se desenvolve policentricamente no espaço. Os olhos, e por extensão, a caricatura facial de Baker (Figura 37) ilumina outra possibilidade de leitura do corpo. No documentário The 1st Black superstar (2009) de Suzanne Philips, Brenda Gottschild tece comentário que se conforma com essa compreensão anterior. Ela observa que essas interrupções rápidas do movimento com essa máscara facial com a própria encruza dos olhos, fazia com que Baker transgredisse de certa forma a estereotipia do corpo sexualizado. “Ela nunca se submeteu ao estereótipo. Ela estava caçuando. Ela estava fazendo graça sobre o estereótipo197”.

197Tradução livre. She never “devictme” of the stereotype. She laughing true at all. She is making funny over the stereotype. Comentário de Brenda Dixon Gottschild extraído do documentário. The 1st Black superstar de Suzanne Philips – 2009. 203

Outro exemplo elucidativo para sublinhar os olhos de Baker como mecanismo de suspensão é quando, em 1951, apresentando-se nos Estados Unidos, ela é fotograda no palco. Na imagem ela usa salto e vestido de gala tomara-que-caia.

Figura 37: Baker em cena, década de 50 - Olhos Fonte: Biblioteca do Congresso

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Esse modelo formal e quase aristocrático é suspenso, quando uma tortuosidade do seu corpo é flagrada, e o branco dos olhos aparece durante um revirar para cima (Figura 38). Em Grande Otelo a encruza dos olhos aparece para acentuar um efeito cômico do corpo. Ele também atua como mecanismo de suspensão, mas em outro ponto de vista. Os olhos de Otelo dançam quando ele apenas escuta o outro ator ou atriz em cena. É difícil ficar alheia a isso e impossível não o perceber. Em “Carnaval Atlântida”, até com o rosto em perfil seus olhos recitam um texto (vídeo 16). Alavancados por uma flexibilidade que dobra tempos e cruza direções, os olhos de Otelo (Figura 39) em cena transformam-se continuamente.

Figura 38: Baker, década de 50. Imagem recortada focando os olhos Fonte: Biblioteca do Congresso

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Figura 39: Grande Otelo, olhos Fonte: Livro “Grande Otelo em Preto e Branco”

Eles (os olhos) querem correr para fora como os de Cis- KoKada (vídeo 17) em “Matar ou Correr” além de se metamorfosearem como demonstrado na gravação do artista para o Programa Ensaio (1991), aspecto que foi identificado e permitido pela focalização da câmera no seu rosto quando ele recita o poema controverso, que ele denominava de “ O poema das três raças tristes” (vídeo 18). Nesse último, os olhos de Otelo deslocam-se numa travessia performativa do moleque ao mestre. Dessa forma, compreende-se que é necessário ampliar o sentido de qualidade dos olhos desses artistas que, num trânsito contínuo, evocam a sabedoria das esculturas iorubas nas quais “A última qualidade é às vezes fortemente comunicada pelo tratamento dos olhos. Há alguns 206

estilos de arte figurativa ioruba que é distinguida pelo imenso diâmetro dos olhos198”. (THOMPSON, 1974: 51). Essa citação é situada, quando Thompson discute a posição “de pé”/permanência. O autor aponta que esse modo de estar incorpora luz e vida, ela é a postura do dia, o modo de carregar o “eu”, o indicativo de humor e condição. Tais aspectos estão nos olhos obviamente. Ao levantar os olhos, Baker e Otelo acentuavam a elevação do resto do corpo desobedecendo certas regras e iluminado os espaços nos quais se deslocavam. Pelo corpo e para o corpo a desobediência negra vive. Ela opera mediante aos aspectos apresentados nesse ciclo como continuidade cultivada no invólucro. No mundo essa desobediência se revela, suspendendo-o, desencaixando-o e flexibilizando-o. Ao irromper, no silêncio, esse corpo negro desobediente também ocupa variados territórios. No entanto, é a ocupação de si que o dimensiona no mundo. Abordaremos a seguir o último princípio que constitui esse corpo: ocupação.

198Tradução livre. The later quality is sometimes strongly communicated by the treatment of the eyes. There are some styles of Yoruba figural art distinguished by the huge diameter of the eyes.” (THOMPSON, 1974: 51) 207

“Se um negro tem pernas, deve usá-las. Se ficar tempo demais sentado, alguém vai inventar um jeito de amarrá-las.” (MORRISON, 1987: 19.)

CICLO 5 DESLOCAMENTO: OCUPAÇÃO

Neste último ciclo, não menos imprescindível ou desconectado dos outros, será tratado o princípio “Ocupação”. Aspecto que não pode ser discutido, segundo discurso corrente em que ocupação ocorre por populações historicamente marginalizadas de espaços de poder. A ocupação que aqui se pretende abordar não se limita a esse recorte, apesar de contê-lo em certa medida. Ela é referendada na forma como o corpo preenche a si e os espaços por onde se desloca – seja em cena, nos bastidores ou em aparições públicas. Dessa maneira, uma recapitulação rápida dos princípios anteriores – Deslocamento, Invólucro, Desobediência – é importante para assentar o último que trataremos aqui. O Deslocamento funciona como a coluna no desenvolvimento de uma narrativa a respeito do corpo negro. Tal princípio é enfatizado como movimento que permite a existência do corpo no mundo. Sem deslocamento – logo, sem movimento – não há vida. E foi esse sentido que deu suporte nutricional às pessoas que trocavam em deslocamentos, ainda em terrenos africanos e àquelas que se deslocaram (ou melhor foram deslocadas). Essas, através da dolorosa travessia do Atlântico, realocaram memórias de conhecimento e inventaram novas formas de ser e estar, movimentando simbolicamente estéticas, discursos e subjetividades com inscrições e subscrições no corpo. O Invólucro é “local” visível e invisível, ao mesmo tempo. Ele é acionado simultaneamente ao processo formativo, dados os intercâmbios entre corpos descritos como negros e que, depois, tornam-se negros por meio de processos de partilhas, camaradagem, compadrios, conversas em bastidores, troca de cartas, reverências, referências e conflitos. Nesse princípio, obviamente estão contidas as relações familiares e comunitárias por meio das quais culturas de corpo são compartilhadas e renovadas num ritmo sincopado em tempo ancestral. Esse envoltório não é fechado ou lacrado, ainda que suas aberturas sejam conhecidas e apenas manipuladas por aqueles que dele fazem parte. A Desobediência é o aspecto provocador subentendido no corpo negro. É um jeito de fisicamente movimentar o e no espaço. São os fundamentos de uma tradição de corpo que se deslocou de tempos em tempos, permanecendo em atividade no invólucro, desenhando novos 208

contornos em local aparentemente fixo e inalterável. Por isso a flexibilidade e a suspensão são os principais alicerces da desobediência. Juliana Jardim (2011), ao escrever sobre suas experiências com o griot Sotigui Kouyatê, sugere que a(o) artista precisa caminhar para a desdramatização da vida e da cena. Assim, inspirada nas ideias do mestre africano, nascido no Mali, a autora convoca no final do artigo para uma atitude na qual “estar presente, ocupar-se” retorne ao ser num exercício que possa diminuir cada vez mais o “pré-ocupar-se”. A ideia suscitada por Jardim dialoga com a noção de ocupar, que não parte do imaginar o lugar onde se quer estar para depois chegar até ele. Mas sim, a partir de um ocupar de si que acontece concomitantemente ao estar no lugar. Esse “ocupar-se” é o tom da ocupação abordada nesta pesquisa e diz respeito a um estar em diálogo dinâmico consigo para depois ocupar o espaço no qual se deseja estar ou pelo qual se desloca. Essa conversação está longe de ser homogênea, finita, não conflituosa e objetiva. No entanto, ela depende do encontro com as pessoas, inclusive no encontro com seus pares. Quando a ocupação aparece travestida de recursos da comicidade ou ancorada em estratégias para suscitar a diversão e o riso, pensar o rito de ocupação do corpo negro complexifica-se. Ao utilizar a ironia, dentro e fora do palco, Baker e Otelo puderam se habitar na mesma medida em que ocupavam seus discursos corporais cênicos. Essa maneira de ser, extensa para um tipo de inteligência corporal, impele-nos a refletir acerca dos modos de relação e criticidade com o meio, que consubstancia uma dinâmica peculiar da ativação de questões estruturais, como o racismo e o sexismo, por exemplo. Em compensação, tal forma provoca e confunde o espectador, principalmente aquele que se apoia em narrativas mentais, a respeito do que é ou pode vir a ser uma pessoa negra. Nesse seguimento, ao deslocar essas narrativas edificadas ao longo de tempos para outros sentidos, a pessoa torna-se atípica, dotada de mentalidade difícil ou exótica, como se referiram a Josephine Baker. Esse ciclo, cuja meta é pensar o princípio Ocupação, terá em seu interior reflexões acerca das relações entre comicidade e ancestralidade examinando de perto alguns trabalhos de Baker e Otelo, segundo perspectivas tradicionais africanas sobre o riso e a diversão. Serão acionadas, também, as relações complexas entre tipo, fenótipo e estereótipo, já que os dois artistas foram acusados por pessoas brancas e negras de reforçarem estereotipias vinculadas à imagem do homem negro e da mulher negra.

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Nesse quesito, convido a(o) leitor(a) a descortinar alguns trabalhos de Josephine Baker e Grande Otelo, que fornecem evidências para relacionar essas correspondências conceituais, assim como possíveis transgressões do estereótipo em cena. Será abordado, também, algo que não está unicamente encerrado no corpo cênico, mas que se transpõe para o off stage. Nesse caso, a análise toca na relação do público com Grande Otelo e Josephine Baker, além de discutir a questão do direito à controvérsia para ambos e, em geral, para a pessoa negra.

5.1 Comicidade, Ancestralidade e corpo negro

Alguns deslocamentos tentaram podar a nossa capacidade de rir, de ser engraçada(o) e quase nos convenceram de que essas seriam extravagâncias destinadas a alguns eleitos. Através desses mesmos deslocamentos, restauramos o riso, até porque ele nunca foi privilégio de uma cultura específica. O corpo negro na sua total dialética transatlântica (NASCIMENTO, 2018), continua a cultivar práticas para o divertimento, formulando gestos, símbolos, atitudes que se tornaram transgeracionais na fronteira simbólica na qual foi (re)significado o “ser negro”. Sim, somos pessoas engraçadas e podemos sê-las sem culpa. Elias Saliba (2002) discute a saga do engraçado arrependido, aquele que de tanto fazer o público rir é fixado em circunstâncias que levarão os outros a nunca o levarem a sério. Até pouco tempo, acreditava que Grande Otelo fosse um “engraçado arrependido”, cheguei a pontuar isso na minha dissertação (BRITO, 2011). Desdigo o que escrevi, Otelo fazia graça por gostar de viver sem arrependimentos, só que a forma como ele via a comicidade está semeada em receitas distantes daquelas que comumente os dicionários do mainstream cômico nos oferecem. No invólucro da pessoa negra a comicidade se presentifica, primeiramente em linhas ancestrais. Jacyra Silva falou à Otelo: “Leva-me a pensar que o panteão dos deuses africanos se reuniu para soprar a vida àquele que seria único, àquele que ad eternum seria erê(criança)” (SOUZA, 1987: 80). Nesse tocante fragmento dedicado ao ator, Silva nos estimula a garimpar a natureza do riso de Grande Otelo, relacionando-o a um erê. Otelo-erê que brinca, que se diverte, que faz chacota de si. Contudo, ele sabia que – quando zombava de si – o deboche atingia, por extensão sociológica, muitas(os) outras(os). Acredito que esse tenha sido um dos pontos mais delicados para o ator a ponto de ter relatado em entrevista que se arrependia de ter interpretado alguns personagens, no entanto não foi encontrado nenhum documento cujo teor se refere a algum relato que ele tenha pontuado a respeito do arrependimento de ter sido engraçado (OTELO, 1987). 210

Para Otelo, o artista não deveria ser suficientemente engraçado, a ponto de não fazer o público chorar; e nem muito dramático, a ponto de não o fazer rir (OTELO, 1967). Concepção que se aproxima muito da sapiência africana compartilhada por Sotigui Kouyatê:

O sério não está separado da brincadeira e a brincadeira não está separada do sério. (...) Sério demais não é sério. Divertido demais não é divertido. Sério sem diversão não é sério. Diversão sem seriedade não é diversão. (KOUYATÊ apud JARDIM, 2011: 51)

Sabe-se que, apesar de certa proximidade, seriedade e dramaticidade são diferentes, embora o drama precise conter o sério. Otelo e Kouyatê conversam no invólucro conformados a uma pontuação de Nascimento (2018), quando essa pensa o corpo negro como um campo de dialeticidade transpassado pelas experiências transatlânticas. Ao transitar com sincopação entre a performatividade cômica e a dramática em trabalhos, como em “Assalto ao Trem Pagador”, usando recursos pedagógicos corporais africanos, em diálogo com cânones da cultura cinematográfica, Otelo nos explica melhor a sua ideia de ser “artista”. Retomando a cena de “Assalto ao Trem Pagador”, o personagem Cachaça, em frente a um boteco, canta o seguinte samba, com o corpo cambaleante e gesticulativo, segurando uma garrafa, enquanto do morro desce um caixão de criança: “Abilolada, quero essa mulher assim mesmo/Descabelada, quero essa mulher assim mesmo”. Outro personagem, dono do boteco, pede para Cachaça parar de cantar e ter respeito com a pequena procissão que por ali passa. Cachaça, então, vira-se para a procissão e indaga por que deveria se calar, “por causa do enterro”? Depois profere as seguintes palavras: “Quando morre uma criança na favela, todo mundo devia é de cantar. É menos um pra se criar nessa miséria. Mas, você falou...”. Após o caixão passar, o personagem encerra a cena com o texto “Vou tomar mais uma cachaça”. A cena começa com um tom de humor despertado pela letra do samba que Otelo canta em conjunto com atitudes corporais. Essa cena, com tempo de fala heterogêneo ao longo da sua duração, leva o espectador a outro campo sensitivo. O tom melancólico e sério é suspenso para dar lugar a uma fala decorada, de forma sutil, com humor novamente. Num movimento cíclico e sincopado, o riso transforma-se em suave lamento e esse continua em inflexão descontraída. Na dança de Baker, a comicidade foi usada para interromper certa manipulação alheia do seu corpo. Desde antes, fazer palhaçadas era coisa de que ela gostava, o que agravava sua situação escolar, pois os professores constantemente a repreendiam por fazer caretas, segundo o depoimento da irmã Margaret (BAKER; BOULION, 1977: 08). Brincar e divertir-se era primeiro um presente para ela e depois para o público, com o qual fazia questão de interagir. A interação era possibilidade radicalizada nos gêneros cênicos que ela trabalhava e, 211

principalmente, nos seus shows que, ao longo da carreira, foi formando audiência fiel entre pessoas das mais variadas etnias. Josephine desejava alcançar um riso universal consoante com à ideia de fraternidade no mundo, entre todas as “raças”. Divertindo ou rindo, ela estava falando sobre coisa séria. A ocupação do seu corpo desobediente através da comicidade e da prática de entreter revelava um jeito de ser em cena, um modo de vida. Quando proferia seus discursos contra as discriminações, ela reunia todo o seu cabedal de fronteira para que fosse ouvida com seriedade, sem desvios. Improvisando de forma sincopada numa forma diferente da de Otelo, ela transformava armadilhas em asas criando e (re)vendo formas de se comunicar com o público, assim como o jazz o fez/faz ao longo dos tempos. Fora do palco era notório o seu poder de comunicabilidade com chefes de Estado, imprensa e pessoas da alta sociedade, aproveitando as trocas e atenta ao momento de desatenção dos outros. Com a imprensa não havia subserviência, pelo contrário, era uma relação composta de diplomacia e, ao mesmo tempo, ironia com suavidade e calma. De volta aos Estados Unidos para prestigiar o evento da amiga Ada Bricktop, em 1973, e depois para apresentar-se no Carnegie Hall e no Victória Theatre, em entrevista ao New York Post, Baker é questionada sobre a perda do seu castelo na França alguns anos antes e acerca da doação da Princesa de Mônaco de um apartamento para onde ela se mudou com a família. O repórter do New York Post perguntou a respeito do perfil da nova casa: – “Como é a sua casa?” – Baker responde: “Tem paredes e janelas...199”. Nesse período, que equivale exatamente dois anos antes da sua morte, Baker mantinha certo ar político-irônico com a imprensa, ela estava decepcionada com alguns acontecimentos da sua vida, principalmente a perda do castelo Les Millandes, visto que isso parecia ser uma ameaça à crença no seu projeto de fraternidade universal. Na ocasião, seus filhos quase ficaram sem moradia, além disso Baker estava sob circunstâncias financeiras delicadas. Logo, ela parecia sustentar uma impaciência e não fazia questão de escondê-la, mesmo sob a maquiagem da calma e da ironia. Otelo e Baker alcançaram poder de trânsito por territórios diversos assegurando ritmo de jogo sem desespero, tal aspecto conecta-se ao que Thompson colocaria como a filosofia do cool presente em muitas sociedades africanas e continuada na diáspora sob complicadas e dinâmicas condições.

199 ECKMAN, Fern Marja. “Jo Baker: Living up to legend”. New York Post, New York, 04 de abril de 1973. Tradução livre. Reporter: What kind of house is it? Josephine: “It has walls and windows…” Fonte: New York Public library for the Performing Arts. 212

A filosofia do ‘cool’ é uma forte atitude intelectual, afetando incrivelmente diversas instâncias do acontecimento artístico, fermentados com humor e senso de jogo. Ele é um importante processo de mediação responsável por semelhanças na arte e visão de mundo em muitas sociedades africanas tropicais. (THOMPSON, 1974: 43) 200

Em 35 línguas Niger-Zaire, o significado do conceito de cool varia: calma, beleza, tranquilidade da mente, paz, reconciliação, purificação social, purificação de si, moderação da força, discrição, silêncio, suavidade e – além de tudo – essa noção também remete a uma “proximidade com os deuses” (THOMPSON, 1974). O cool teria ainda interessante relação com serenidade da mente e forte interlocução com “tomada de si”, eu diria ocupar-se de si. Assim, Baker e Otelo utilizam a comicidade ou o ato de performar em arte para retornar a si. Para ambos, a grande dinâmica do “ser” significava agir entre lugares, protegidos por envoltório invisível que os circundava em dialógicas experiências. Durante a mesma entrevista, exposta anteriormente, o produtor negro Jack Jordan que estaria produzindo Baker na época, intervém na conversa com a imprensa e revela que Josephine Baker teria uma coleção de documentos, artefatos, roupas recolhidas do seu antigo museu, que ficava no seu castelo. Jordan segue enfatizando que todo esse material seria de profunda importância para “nosso povo” ou todas as pessoas negras. Josephine Baker interrompe, segundo o jornal tranquilamente, e agrega: “Vamos apenas dizer pessoas”.201 Discurso de uma mulher que caminhou desobedientemente numa constante procura e crença no entendimento possível entre gentes, consciente do que era e do que representava. No Programa Ensaio de 1991, também é notável um Otelo impaciente com certas repetições circunstanciais; não por acaso, esse período refere-se a dois anos antes da sua morte, também. Durante a entrevista ele interrompe várias respostas e a performance musical. Além do improviso, são abertos espaços por ele reclamando alguma entrada musical fora do tempo. Em um dado momento, ele interrompe uma resposta para dizer que estava cansado, ficando rouco e não estava sendo pago o suficiente para tanto esforço. Em outro, ele chama a atenção do flautista, que tinha entrado no momento errado no começo da execução de uma música. Em vista disso, Grande Otelo cancela a continuidade proferindo “Não bagunça o coreto do crioulo!”. E, logo depois, solicita que a música seja reiniciada. Tanto um momento, quanto o outro as interrupções – reclamações – coisas sérias – são ditas por um contexto com inflexão que remete a uma criança ousada, atenta e inconformada.

200Tradução livre. Cool philosophy is a strong intellectual attitude, affecting incredibly diverse provinces of artistic happening, yet leavened with humor and sense of play. It is an all -important mediating process, accounting for similarities in art and vision in many tropical african societies. 201Tradução livre. Let´s just say people. 213

Baker e Otelo utilizavam a comicidade e o ato de performar em arte para voltar para si. Seja performando palavras e atitudes fora do palco, seja combinando vivências e pedagogias de corpo dentro dele. Segundo Saliba (apud ANDRADE, 2011: 11) a comédia em si tem um caráter de comunhão que é essencial: “Eu acho que a melhor comédia é aquela que melhor interage com o público, resgatando o sentido original da comédia que era a comunhão. Seguindo o pensamento de Saliba, pode-se complementar que – se o sentido original da comédia é a comunhão – a(o) comediante seria a(o) mediador(a) dela apresentando possibilidades de experiência que movimentam e, por extensão, provocam confortos e comodidades, típicos aspectos ligados a elementos ancestrais como o Erê e o Exu que nos revelam a desordem para buscar ou encontrar certa “ordem” que reivindicamos.

5.2 Relações entre tipos, fenótipos e estereótipos

Em entrevista ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, o ator Grande Otelo é questionado, por um dos entrevistadores, acerca de personagens por ele interpretados. Alguns papéis receberam críticas por reforçarem, em caretas, trejeitos faciais e funções, estereótipos atribuídos ao homem negro brasileiro:

Entrevistador: Uma acusação que foi feita a você várias vezes é de que você teria prejudicado a sua raça aparecendo, às vezes em papéis ridículos, principalmente no tempo das chanchadas em que você fazia travesti e outras coisas dessa natureza, você se lembra dessa acusação? Grande Otelo: Oscarito prejudicou a raça dele, quando apareceu de Rita Hayworth? Entrevistador: Você é acusado frequentemente de não ter ajudado artistas negros... Otelo: Sou acusado frequentemente, eu não ajudo artista negro que não tem valor, nem branco... (OTELO, 1967)

Ao responder ao primeiro questionamento com provocação, Otelo impele a pensar como os estereótipos reverberam em diferentes grupos étnico-culturais. Se Oscarito, que era ator branco, travestiu-se de mulher para imitar uma atriz branca estadunidense (Figura 40) e não foi alvo de críticas ou acusado de prejudicar a etnia à qual ele pertencia, porque Grande Otelo, um ator negro, deveria “pagar a conta” por ter feito o mesmo? Por que se travestir em trajes “femininos” na cena é algo diminutivo para o homem negro dentro da comunidade negra? Há no discurso de Otelo uma peculiaridade em relação a ocupação de si, uma ideia que denota que o seu corpo é um lugar livre, possível de transcender qualquer limitação do ponto de vista sociocultural que cerceiam o ser em suas múltiplas expressões identitárias. 214

Poder-se-ia dizer que a resposta ou a pergunta não se conformassem com o clima das discussões raciais em 1967 – época na qual aconteceu a entrevista – sabe-se que a linha de personagens que representavam estereótipos, em relação à pessoa negra, já era contestada no auge de comédias musicais da Atlântida (décadas de 40 e 50) – e antes disso. O teatrólogo Abdias Nascimento, amigo pessoal de Otelo, já mantinha críticas a esse respeito. Essa questão era um tema de debate entre Otelo e Nascimento, como este último mesmo ressaltou: “Em nossos encontros, aflorava sempre a discussão sobre a questão racial. Ele me chamava um radical, criador de casos. Para ele, quando se afirmava como ator de tantos recursos cênicos, o racismo não parecia algo tão sério” (SOUZA, 1987: 22).

Figura 40: Atriz Rita Hayworth, 1946 Fonte: Site Image Conscious

Na continuidade da pergunta, apresentada no início deste tópico, Otelo é de certa forma, indagado, por outra crítica corrente: a de que ele não teria ajudado artistas negras(os), o que pode tensionar o princípio Invólucro abordado anteriormente. No entanto, cabe “escurecer” que o conceito de invólucro não se opera por favores ou auxílios justificados automaticamente apenas pela etnia, visto que a divergência dentro do invólucro é um fato que contribui para a 215

própria dinâmica. Nesse seguimento, vale salientar as posições políticas distintas frente a questão racial no Brasil, de Grande Otelo e Abdias do Nascimento. No caso da resposta de Otelo, é possível verificar que habilidade e competência eram critérios para o ator contribuir estrategicamente com a carreira de outros artistas negras(os), fato que ocorreu. Pode-se conferir a importância de Otelo nas trajetórias de artistas como Elisete Cardoso que relatou: “A primeira vez que trabalhei com Othelo foi num dia 13 de maio no Clube Botafogo, cantando Boneca de Piche. Cheguei ao Casablanca pelas mãos dele.” (SOUZA, 1987: 57). Assim como Elisete Cardoso, Haroldo Costa, em depoimento, apontou a vontade, não só dele, mas de muitos jovens negros como ele, de trabalhar com o ator: “Queríamos não ser como ele, mas, quem sabe, um dia trabalhar ao seu lado.” (SOUZA, 1987: 70). E o sonho se consolidou:

Quando, já com o nome de Teatro Folclórico Brasileiro, fomos fazer a nossa primeira temporada no Teatro Ginástico, ousamos convidar Grande Othelo para participar do espetáculo. Ele aceitou. E mais do que isso, com entusiasmo de amador, integrou o elenco como um a mais, ensaiando novas músicas e novos personagens, que nada tinham a ver com o seu repertório habitual. Foi o nosso primeiro contato com o que se chama humildade. Nada em comum com subserviência. Há outro detalhe: Othelo jamais faltou a um espetáculo nos dois meses em que ficamos no Ginástico.

Pelo depoimento de Costa podemos perceber o quanto Otelo era incentivador de jovens artistas negros, assim como já demonstrava seu modo de contestar personagens que lhe denotavam estereotipias. A ressalva de Haroldo, a respeito de que não houve ausência de Otelo durante a temporada, fricciona a fama assumida de faltoso em ensaios, apresentações e gravações. Essa atitude, transversa na fronteira, ocorria porque Otelo não concordava plenamente com os papéis que lhe davam. Percebemos que desconfortos também fizeram parte da repercussão de Josephine Baker na França, quando ela apareceu seminua na Revue Nègre e num saiote de bananas (Figura 41) no Folie Bergère (Figuras 42 e 43). Nota-se que a repercussão na comunidade negra estadunidense não se processa do mesmo modo como aqui no Brasil. Sendo Baker acolhida por essa, como se pode exemplificar, com o famoso Josephine Baker Day no Harlem: “A Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor designou 20 de maio como o Dia da Josephine Baker202.”

202“Day set for Josephine Baker”. New York Times, New York, 23 de maio de 1951. Tradução livre. The New York Branch of The National Association for the Advancement of colored people has designated May 20 as Josephine Baker Day. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts e Biblioteca do Congresso. 216

Figura 41: Josephine Baker - saiote de bananas no Álbum do Folie Bergère (1926-27) Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

Figura 42: Josephine Baker na capa do Folie-Bergère 217

Figura 43: Josephine Baker na foto interna da capa do Folie Bergère Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

A imprensa estadunidense insinuara críticas a artista, principalmente quando as relações diplomáticas dela com o país estavam nada pacíficas. O saiote de bananas e o nu parecem ter sido um fato que marcou as acusações que atravessaram Baker. Ela parecia ter certa consciência dessa situação e do que pensavam acerca do seu corpo; um fragmento do seu poema autobiográfico reforça essa observação:

Aos oitos anos de idade eu já trabalhava para diminuir a fome da família. Sofri: fome, frio – Tenho uma família Disseram que eu era feia. Que eu dançava como um macaco Depois fiquei menos feia – cosméticos Recebi vaias E depois aplausos – a multidão. (ROSE, 1990: 198)

Percebe-se que, tanto no caso de Baker, como no de Otelo, o estereótipo tem como cerne um ponto de tensão no corpo feminino, Otelo que se traveste de mulher e Baker que dança como macaco e exibe sua nudez no Folie Bergère. 218

Referente a isso, uma vez a artista disse, “Eu não estava nua. Eu simplesmente não estava usando roupa alguma” (GOTTSCHILD, 2003:81), o que expressa que para ela nudez não estava relacionada a estar com ou sem roupa e sim com um jeito de ocupar o mundo, desapegada da matéria que cobria o corpo por convenções sociais, e ao mesmo tempo preservando o seu interno que jamais seria revelado em totalidade na cena. Assim, é evidenciável que os estereótipos, operados em ambos os casos, resvalam-se pelos vieses racial e de gênero. Nesse sentido, cabe a tentativa de estabelecer a compreensão entre a linha tênue entre tipo; “estereó-tipo”; e “fenó-tipo”. Já que o “tipo” é uma convenção nos genêros cênicos nos quais os artistas trabalharam variando sua dimensão no Teatro de Revista, nas comédias musicais, no music hall e no Teatro de Variedades. Veneziano (2013: 172), em seu trabalho acerca de estruturas e convenções que constituem o Teatro de Revista, aponta o tipo como espécie de convenção que sempre fora presente na comédia ou qualquer trabalho cênico voltado para o divertimento:

Tipos sempre povoaram a comédia. Os tipos opõem-se aos indivíduos; enquanto estes têm um nome, um passado, conflitos, são imprevisíveis, aqueles são quantidades fixas, construídos sobre atitudes externas. Sobre o indivíduo pode-se saber da sua infância, como foi criado, alimentado dos poetas que leu e do deus em que acreditou. Do tipo tem-se uma imagem projetada, vícios, trejeitos, atitudes, deformações.

Essa explicação da convenção ilumina a ideia de como os tipos são pensados nas estruturas cênicas citadas. Em Shuffle Along, em Chocolate Dandies ou na Revue Negre, Baker apresentou um tipo corporal comum que perpassava a apresentação coreográfica que acionava o encaixe e desencaixe do quadril; caretas guiadas pela encruza dos olhos; gesticulação de mãos e pescoço, que remetiam a certas aves; além de executar danças negras estadunidenses como o Charleston. No caso de Otelo, tanto nas comédias musicais como no Teatro de Revista, seus tipos foram mais variáveis, além de interpretar caricaturas femininas – um outro tipo de convenção203 - no Cassino da Urca, o artista interpretou o tipo malandro nos filmes musicais da Atlântida e no Teatro de Revista:

O malandro é o tipo constante nas revistas brasileiras. Atinge seu apogeu na época do populismo de Getúlio Vargas. Com Oscarito, Grande Otelo e Zé Trindade, teve suas melhores performances, afinal, ele representava, naquele momento histórico, uma necessidade social. Ao desrespeitar as duas maiores instituições do capitalismo, o trabalho e a família (pois o trambiqueiro estava

203 Segundo Veneziano (2013), essa convenção consiste em retratar ao vivo pessoas conhecidas da política, das artes, das letras ou de outras instâncias da sociedade. A ideia é aproximar-se da linguagem real da pessoa enfocada, seja nos trejeitos vocais ou nos modos gestuais. Grande Otelo, por exemplo, fazia a caricatura de Josephine Baker no Cassino da Urca. 219

pronto a cortejar qualquer mulher bonita, mesmo que ela fosse casada), o malandro deixava entrever a alegria de ser marginal. (VENEZIANO, 2013: 176) (Grifo nosso)

Veneziano (2013) apresenta um contexto próximo ao de Cláudia Matos (1982) ao explicitar a malandragem como lugar de desobediência à ordem burguesa, o que de fato é importante considerar para realizar as ponderações acerca desse tipo popular. No entanto, enquanto a pesquisa de Matos refere-se a indivíduos que realmente existiram – Geraldo Pereira e Wilson Batista e seus discursos malandros nas composições musicais – ampliando o olhar sociológico a respeito desses homens, Veneziano refere-se a personagens fictícios que aludem a pessoas do mundo real e carregam certa quantidade fixa e limitada de características. Nessa via, cita as principais características dessa personagem-tipo malandro: “engraçado”, “encantador”, “trapaceiro”, “vadio”, “mulherengo”, “preguiçoso”, “caloteiro”, “jogador”, “assaltante”, “virador”, “clandestino”, “ladrão”, “trambiqueiro”. No decorrer da pesquisa, ela desenha também outros aspectos para outras personagens-tipo, como “o caipira” e “o português”. Segundo ela, “o caipira” apresentaria o seguinte conjunto de particularidades: “pobre ou rico”, “valor nacional”, “tocador de viola”, “contador de piadas”, “simplicidade rural”, “aparente inocência”, “esperteza”, “sabedoria intuitiva”, “roupas e linguagens caracterizadas”, “um modo de andar engraçado”. Já “o português”, segundo a investigadora, seria constituído por outras mais gerais: “tolo”, “grosseiro” e “inteligência curta”, para mencionar as principais. Ao comparar as pontuações de Veneziano e dialogá-las com o conceito que ela apresenta para o “tipo”, verificamos que o perfil geral apresentado para o tipo malandro traz percentual alto de “vícios”, mais do que “o português” e “o caipira”. Este último, pelo contrário, apresenta um conjunto sígnico positivo, considerado valor nacional. “O português” aparece em outro polo, com perfil negativo. Como uma convenção destinada a estruturas, felizmente, preocupadas com o divertimento, parece que o elo entre eles, além dessa ideia de círculo geral de características, é o “ser engraçado”. Fato indispensável na fórmula. Veneziano não relaciona, nem de forma rápida, “o malandro” com a comunidade negra, diferentemente do que sugere ao tratar da “baiana” e da “mulata”. Contudo, sabe--se que a associação do malandro com o sambista – logo, com o homem negro – é uma narrativa mental constituída no imaginário brasileiro. O Teatro de Revista dentre outros gêneros cênicos, mesmo que importantes na construção de outra possibilidade de fazer teatral contra-aristocrático, auxiliou na edificação de tal narrativa. Grande Otelo e Oscarito, ambos artistas que se formaram no circo e no Teatro de 220

Revista, continuaram a difusão dessa narrativa no cinema brasileiro através de suas interpretações. Mesmo interpretado por artistas negros e não negros, o tipo “malandro”, quando não aprofundado em individualidades, ainda é um personagem associado ao homem negro se transformando em estereotipia para a pessoa negra. O mesmo poderíamos dizer acerca da nudez e sexualização relacionado a mulher negra. Josephine Baker é constantemente citada por sua famosa exibição seminua no Folie Bergère ou pela sua aparição com o saiote de bananas, mesmo décadas após esse evento. Josephine Baker encarnava o tipo “vedete” (Figura 44), uma das principais atrações de um espetáculo de revista que, na década de 20, em Paris, já alcançara o nível do luxo e dos sofisticados figurinos (Figura 45).

Figura 44: Baker no Folies-Bergère, 1926-27. Fonte: New York Public Library for the Performing Art 221

Figura 45: Josephine Baker vestida com plumas no Álbum do Folie Bergère (1926-27) Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

O curioso da repercussão na imprensa dos Estados Unidos é a insinuação de o quanto a sua imagem causou escândalo, como se tivesse sido a primeira mulher a aparecer seminua naquela casa de entretenimento. Outras dançarinas brancas já tinham feito o mesmo antes (Figura 46) e depois (Figura 47) da estreia de Josephine Baker no Folie. Essas artistas, que apareciam seminuas, também se adornavam de pérolas, plumas e paetês.

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Figura 46: Linopovska e Pouliguen em destaque, seminuas no Álbum do Folie Bergère (1924) Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

Figura 47: A dançarina Lila Nicolska no Álbum do Folie Bergère (1927) Fonte: New York Public Library for the Performing Art

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A combinação da performatividade de Baker, trazendo todo seu arcabouço corporal negro-africano, permeado de flexibilidade para o improviso, juntava-se ao desenho plástico mais do que luxuoso dessa casa noturna parisiense. Havia uma forma diferente de ocupar o palco por parte de Josephine que exibia a seminudez com arcabouço satírico de corpo. O público francês, daquela ocasião, enxergou aquilo como pitoresco e exótico. Talvez a artista, na efemeridade cênica, enxergasse aquilo como possível oportunidade para o escárnio. Será que era a respeito de si? Há um lugar de sexualização no corpo feminino negro que parece desproporcional ao atribuído à mulher branca; aliás, quando essa é hipersexualizada há subjacente comparação à certa “lascividade”, atribuída de forma automática à mulher negra. Nota-se narrativa construída inteligentemente que aloca essa mulher (negra) em condições subservientes, do ponto de vista afetivo e sexual. Mais uma vez se faz necessária a pergunta-provocação, por que a “conta” foi maior para Josephine Baker, já que outras artistas apareceram seminuas no Folie Bergère? Quando uma convenção cênica como o tipo é encarnada por uma artista ou artista negro, ela dilata um sistema de significados que se formou mediante circunstâncias sociais e históricas, pois o próprio tipo não é a-histórico nem a-político. Nesse sentido, Veneziano (2013: 173-4) ressalta que o Teatro de Revista, por exemplo, sempre teve nessas personagens um esteio, pois eram consonantes a um contexto político-social no qual a plateia estava inscrita:

O Teatro de Revista sempre se apoiou em tipos populares que refletiram o panorama político-social do momento; tipos que, evidentemente, não eram desenvolvidos a ponto de chegar à dimensão do ser humano, mas encarnavam o reflexo de toda a nossa humanidade cosmopolita e perplexa diante dos anseios progressistas.

Se o tipo não tem preocupação em apoiar-se numa dimensão humana, apesar de refletir as inquietações da humanidade, no dado momento histórico, e se essas inquietações são heterogêneas entre si, devido aos diversos interesses dos grupos socias, pode-se afirmar que os tipos – no caso “o malandro” – que atravessaram as várias fases do Teatro de Revista, adentrando outros canais cênicos e cristalizando-se no imaginário brasileiro, por exemplo, refletia um quadro, ou melhor, o desejo subconsciente da sociedade racializada em continuar a perpetuá-lo. Além de destacá-lo num outro lugar, estendendo sua função e sua imagem para além do palco. Esse contexto fazia parte de uma sociedade que marginalizava (e ainda o faz) a imagem da pessoa negra; logo, esse processo estaria presentificado em revistas e chanchadas, ambas antenadas a virtudes e vícios dos seus tempos. Assim, o tipo traz também a “fórmula- pai” que é o estereótipo, por fixar imagens, reduzir possibilidades e campos de visão mediante encontros 224

e relações. Para Burke (2004:155), a noção de estereótipo corresponderia à seguinte conceituação:

Em outras palavras, quando ocorrem encontros entre culturas, é provável que a imagem que cada cultura possui da outra seja estereotipada. A palavra “estereótipo” (originalmente uma placa da qual uma imagem podia ser impressa), como a palavra clichê (originalmente o termo francês para a mesma placa), é um sinal claro da ligação entre imagens visuais e mentais. O estereótipo pode não ser completamente falso, mas frequentemente exagera alguns traços da realidade e omite outros. O estereótipo pode ser mais ou menos tosco, mais ou menos violento. Entretanto lhe faltam nuanças, uma vez que o mesmo modelo é aplicado a situações culturais que diferem consideravelmente umas das outras. Tem-se observado, por exemplo, que gravuras europeias de índios americanos eram muitas vezes composições que combinavam aspectos de índios de diferentes regiões para criar uma única imagem geral.

Burke (2004: 157) fornece explicação coerente a respeito do conceito de estereótipo, com algumas questões importantes a serem pensadas. Quando ele pontua que o estereótipo “pode ser mais ou menos tosco, mais ou menos violento” esse “mais” ou “menos” parece aplicar-se diretamente a pessoas de determinados grupos.

Infelizmente, a maioria dos estereótipos de outros -judeus vistos por não judeus, muçulmanos por cristãos, negros por brancos, camponeses por pessoas da cidade, soldados por civis, mulheres por homens, etc. – era ou é hostil, desdenhosa, ou no mínimo condescendente.

Quando em sua inteireza há a química da estereotipia para se fazer tipo, este, ao ser interpretado por pessoa cujo fenótipo (características físicas) corresponde àquilo que a sociedade pensa como negra ou negro, exacerba o estereótipo que há nele. Isto é, passa a significar todo o legado corporal e simbólico de várias culturas africanas ou afrodescendentes que foram subalternizadas e fixadas num só aspecto que o colonizador lhe atribuiu para determiná-lo. Para Burke (2004), os estereótipos vêm se deslocando ao longo da história e dos tempos, desde as comunidades antigas, passando pela época colonial e realocadas no “novo mundo”. Esse processo está e esteve a serviço da dominação política e econômica. O racismo opera-se pelo fenótipo e não há como contestar isso. Ser engraçado, ser esperto, ser sensual, ser brincalhão são sempre pontos delicados para reverter em ocupação de si, quando se é uma (ou um) artista negra(o). Por isso, a resposta-provocação-contestação de Otelo é válida para ser refletida. Por que para artistas negras(os) é tão caro fazer o uso de certas convenções das culturas ditas populares? Acredito que um pensamento de Fanon poderia nos ajudar a entender: “Há uma procura do negro, solicita-se o negro, não se pode viver sem o negro, exige-se sua presença, mas de certo modo, querem-no temperado de uma certa maneira.” (FANON, 2008: 151). Esse querer “temperar” citado pelo pensador martinicano é desejo 225

constante da dominação colonial que teria, no interior dos seus agentes, uma exacerbação do “medo subjacente ao ódio ou a projeção inconsciente de aspectos indesejáveis do eu no outro” (BURKE, 2004). Percebe-se que uma das tensões, contidas no estereótipo, é o fato de que ele pode sustentar um modelo padrão para situações distintas, ainda que componham um mesmo coletivo; e um modelo fixo – reproduzido por mecanismos ideológicos – que omite as dinâmicas que essa coletividade contém. Ao tomar a representação de mulher negra/homem negro por dois artistas, isso fica mais compreensível. Em primeira instância o termo homem ou mulher negra já traz ideia de representação coletiva. Em vista disso, o estereótipo pode ser atuante, na medida em que engendra no imaginário modos fixos de ser, formatando e limitando o pensamento acerca desses sujeitos (ADICHIE, 2015). No entanto, vale ressaltar que existem infinitas formas de ser pessoa negra, devido à diversidade de dinâmicas socioculturais. Um ponto importante para atritar esse contexto discursivo seria como membros desses diferentes grupos relacionam-se ou transgridem esses estereótipos. Grande Otelo gostava de ser ator cômico, mas também vivia numa constante batalha, porque desejava outra possibilidade: ser dramático (BRITO, 2011). Seus personagens tipos e caricaturas pareciam direcioná-lo para uma forma de atuação; apesar de, em significativos momentos, ele ter interpretado personagens dramáticos204 ou apartes de drama em personagens cômicos, como no filme “A Dupla do Barulho”. Josephine também alterou sua figura ao longo da carreira, realizou apresentações musicais mais intimistas e através do jogo da ironia performatizou com a plateia a capturando.205 Em ambos os casos, identifica-se uma provocação ao estereótipo. Tanto ela como ele ocupavam o palco como se esse ato fosse um retorno a si. Provocando o estereótipo, ela(e) conectava-se com uma energia ancestral heterogênea que ocupava e não se “pré-ocupava” com as consequências do após; o instante era o mais importante.

204Ver, por exemplo, os filmes: “Rio Zona Norte”, “Também somos Irmãos” e “Assalto ao Trem Pagador” 205Informação Extraída do Documentário “The 1St Black Superstar”. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Ggb_wGTvZoU&list=PLYGWJMxkcvxv5awoUYvD2RTV5GoMTHHbY> Acesso em 10.jan.2014. 226

5.2.1 Provocando o estereótipo

Há um fenômeno no teatro e na dança que é a efemeridade. O acontecimento cênico é o instante no qual ele ocorre. Por mais, que críticas(os), cronistas e escritoras(es) tentem descrever com palavras cenas, coreografias e atuações que elas(es) apreciaram, é impossível transportar para aqueles momentos integralmente através de suas escrituras. Assim, apegamo-nos às sensações das(os) apreciadoras(es) e tentamos elaborar uma narrativa fiel a nossa suspeita. Aplicar essa dimensão ao estudo do corpo é ainda mais delicado. Pois para ele, o legado textual não basta, é necessário ter o mínimo de acesso ao gesto ou a atitude, pois são eles que revelam os mistérios que tentamos desvendar. Quando se trata de performatividade em circo, Teatro de Revista, Teatro de Variedades e music hall, essa descortinação torna-se um tanto arriscada, pois são poéticas que formam a(o) artista no momento em que ela(e) atua. Tendo como posse um passaporte liberado para aterrissar no território do improviso, a qualquer momento atuadoras(es) desses gêneros utilizam-se de recursos que manipulam a ironia e a sátira. Transformar-se é integral e a escola específica para essa demanda cênica é o próprio palco. Combinando esse aspecto com alguns quesitos da sapiência corporal africana, apresentados no ciclo anterior, temos intelectualidades da atuação que dominam a plateia, quando essa acredita que esteja sob controle de alguma coisa. Tipos, caricaturas vivas, vedetes. Todas essas convenções são inteiramente sabidas para ocupar algo, uma ocupação pelo desejo constante de provocar as limitações de qualquer discurso. Eu adoraria entrar numa máquina do tempo (se existisse alguma) e apreciar todos os trabalhos de Baker e Otelo. Estou impossibilitada, porque não há meios para isso. Contudo, contento-me em praticar com atenção a dança que é a minha leitura acerca dela e dele através de imagens gravadas e textos descritos. Unidos na minha imaginação, formam um casal com muitas manias e perspicácias. Tanto Baker quanto Otelo provocaram os estereótipos, o que acarreta certo tipo de transgressão ancorada na articulação entre os universos das cosmologias de corpo africanizadas e as estruturas e convenções oferecidas pelos gêneros cênicos voltados ao entretenimento. Quando Baker chega ao Brasil, em 1939, ela já se tornara símbolo mais sensual dispensando recursos que remetessem a imagens animalescas e exóticas. Além da consciência acerca de um imaginário estereotipado produzido sobre ela, Baker conseguiu apontar mudanças na própria imagem, e revelou a necessidade de transformar-se ao longo do tempo para corresponder a um padrão considerado humanizado. 227

O adjetivo “feio” foi atribuído, também, a Grande Otelo, como podemos comprovar a partir do fragmento de Edmar Morel acerca da performance que ele presenciou entre o ator e Josephine Baker. Como foi um fragmento exposto no primeiro ciclo, acredito que seja pertinente repeti-lo aqui:

Naquela sala, todos se falam e poucos se entendem, Josephine canta Boneca de Pixe, os negros alheios ao compasso da batuta do Heitor dos Prazeres, o demônio dos terreiros cariocas, estão de olhos arregalados nas pernas das girls. O “Grande Otelo”, o negro mais feio do mundo e um grande artista, está no mundo da lua. 206(Grifo nosso)

A partir disso se constata que, para Morel, Otelo não se encaixava dentro dos padrões de beleza estabelecidos da época, pode-se afirmar que seria pelo distanciamento de uma norma estética caucasiana, agregada a outra questão: a de não conter fenótipo relacionado a uma suposta negritude socialmente aceita, “o mulato”, que tem geralmente cútis mais clareada. Não há registros de aparentes incômodos de Otelo com essa suposta “feiura” que os outros lhe atribuíam, talvez sua inquietação residisse no modo como o enxergavam aqueles que o convidavam para trabalhar. O Grande Otelo engraçado era sempre o mais requisitado. Num outro contexto, mas não distante do que Otelo vivia, uma biógrafa de Baker aponta aspecto interessante para ilustrar essa discussão:

No início deste século, havia um anseio por parte dos artistas negros no sentido de exibir cada vez mais o seu refinamento no palco, mas o refinamento entrava em conflito com o que a maioria do público branco considerava ser sua atração característica como raça. Para Josephine Baker, abrir o caminho para o sucesso com palhaçadas era uma alegria, uma emoção, mas ela também tinha consciência de que aquele tipo de atuação podia se transformar numa verdadeira prisão. Apesar de querer ser uma rainha, ela podia continuar como o bobo da corte para sempre, a menina engraçada que envesgava os olhos. (ROSE, 1990:089) (Grifo nosso)

Segundo Phylis Rose (1990), estava em negociação aquilo que deseja ser como artista e as ofertas de trabalho disponíveis, uma vez que por ser mulher negra no início do século XX, na Paris do primitivismo, certos “mecanismos sociais e cognitivos de percepção e reconhecimento baseados na subalternidade dos negros e das mulheres” (BONFIM, 2009) já estavam produzidos, disfarçados naquele momento em admiração exotizada, por parte de uma elite cosmopolita global, pois Paris, o que Nova Iorque viria a ser depois, era “o centro do mundo”.

206MOREL, Edmar. A Sambista Josephine Baker. In: O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1 de julho de 1939, n 35, p.8. Fonte: Acervo MASP. 228

Ainda segundo Rose, paralelo a certa consciência de pertencimento a um grupo social marginalizado e exotizado, Baker demonstrava condescendência com esse olhar colonizante, a partir do momento em que aceitava reproduzir estereótipos vinculados à mulher negra, geralmente relacionada à coisificação, animalidade e erotismo sexual nos primeiros momentos de sua carreira:

Quando a platéia estava inteiramente encantada com a energia e a alegria dos artistas, Josephine Baker apareceu fazendo palhaçadas. Como uma estranha criatura de um mundo distante, ela entrou gingando como uma pata, com os joelhos dobrados e afastados. A barriga estava encolhida, o corpo contorcido. (ROSE, 1990 :36)

O engraçado para Baker tinha bônus e ônus, o primeiro porque burlava o olhar hipersexualizado em relação ao seu corpo, e o segundo porque poderia ser fadada a artista de dança engraçada que corria o risco de não ser levada a sério. Todavia, evitando qualquer mensagem cristalizada que povoasse esses sentidos que estereotipavam e fixavam suas imagens, Baker e Otelo, através de alguns trabalhos evidenciam que se o olhar colonizante sabia jogar, ela e ele também tinham recursos sofisticados para entrar nesse jogo e borrar suas regras. Vamos começar por Otelo. Por ordem cronológica. Observemos duas experiências registradas, nas quais é possível identificar uma ocupação que traz consigo provocação da estereotipia. O corpo de Otelo correspondia àquilo que a sociedade brasileira, imersa na mítica da democracia racial, desejava enxergar num homem, como ele e seus 1,52m de altura: personagens atrelados ao samba, ao moleque, ao cômico de beiços grandes, ao bêbado, ao boêmio. Esses, geralmente, mergulhados em características que reduzem as complexidades das significações. Contudo, Grande Otelo confiava na capacidade de interpretar variados papéis. Ao rever documentos, assistir aos filmes e observar seus discursos em entrevistas, atesto que o artista vivia sério conflito em relação a esse contexto. Embora valorizasse a linguagem cômica, ele fazia questão de procurar frestas para exercer suas necessidades de ator em outros gêneros. A situação descrita pelo jornalista da Revista Diretrizes, no Cassino da Urca, em 1941, indica esse desejo:

Parece-nos, Othelo, que será melhor para você continuar fazendo o público rir. Só a sua presença no palco já desperta risos...

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Othelo insiste que não. Chegará a hora em que fará o público chorar. E daí nasceu a curiosa aposta entre o repórter e o entrevistado. Desde que manifestava tamanha confiança em sua capacidade de dramatização porque não experimentava Othelo o público ali mesmo? A hora do segundo “show” se aproximava, cabia-lhe cantar o famoso tango “Mano a Mano”, que todas as noites ele transformava numa engraçadíssima paródia, extraindo da melodia sentimental e dos versos românticos todo o ridículo que neles se encerrava. Por que não experimentava cantar sério “Mano a Mano”? Othelo aceitou o repto. Expunha-se a uma multa da direção artística. A um fracasso perante o público que poucas horas antes o aplaudira. Mas o negrinho tem audácia. E quando ele ressurgiu no palco começamos a nos arrepender da aposta. Para que fazê-lo correr um risco desnecessário? As gargalhadas que saudaram sua entrada aumentaram nossa ansiedade. Mas o negro não se intimidou. Ninguém sabia o que ali se passava. A orquestra deu os primeiros acordes, quando o maestro sentiu que algo estranho se passava. Othelo cantava diferente. E um impressionante silêncio estabeleceu-se no salão. O negro cantava cada vez mais trágico, interpretando o tango com toda a languidez e com toda a melancolia de uma Libertad Lamarque. Sua voz inundava o salão de lamúrias verdadeiras, em seus olhos brilhavam lágrimas. Ninguém riu, ninguém o perturbou com gargalhadas que em outros momentos se comunicavam a todo o público. E quando ele terminou de cantar, uma enorme salva de palmas o saudou. As melhores palmas que o Grande Othelo já ganhara em sua vida artística207.

Grande Otelo durante a estadia de trabalho de quase dez anos no Cassino da Urca, desfilou caricaturas vivas famosas, como a da Mistinguett, Josephine Baker e do cantor mexicano Pedro Vargas (BRITO, 2011), cujo estilo romântico acalorado imitava e, ao mesmo tempo, satirizava com maestria. O jornalista teve a oportunidade de entrevistar Otelo durante uma noite na qual ele estava trabalhando no Cassino da Urca. A entrevista teve possíveis interrupções já que o artista fazia mais de um show por noite e precisava voltar ao palco. Deslocando a prévia percepção do jornalista para outro sentido, Otelo reorganizou seu sistema de recurso corporal cômico para um viés trágico que convenceu a plateia ávida por entretenimento. Antes da atuação do ator na cena trágica, o jornalista apresenta o que a imagem do corpo de Grande Otelo representava no seu imaginário: “negrinho com audácia”, “o negro que não se intimida”. Mesmo com 1,52m de altura e seu biótipo fora da norma caucasiana – como se “ser negro” e ter coragem fosse uma combinação impossível, atípica. Sem contar que Otelo não era o homem com audácia; e, sim, “o negro com audácia”, reduzido, pelo jornalista, de forma pejorativa. Contrariamente a esses aspectos, Otelo transgrediu a cena, visto que desintegrou a imagem cristalizada de ator cômico e comprovou suas habilidades também para o drama,

207 WAINER, Samuel. Grande Othelo não tem culpa. Diretrizes, Rio de Janeiro, 03 de abril de 1941, p.14.Fonte: Biblioteca Nacional. 230

deslocou e ocupou seu corpo para um concerto cênico trágico, pois “o negro, desmonta o sistema e viola os tratados” (FANON, 2008, 151). Nessa época, elevar-se ao status de “ator sério” era acessar certo reconhecimento através do drama, por essa razão muitos artistas cômicos viviam em conflito, pois seus trabalhos eram alocados em posição menor no meio teatral, caso que se agravava para aqueles que trabalhavam com Teatro de Revista, music hall e eram negros. Otelo, que estava conectado com seu mundo e atento às artimanhas do jogo cruel, subverteu a expectativa da recepção que teve de respeitar, mesmo que por alguns instantes, a perspectiva dele. Em outro esquete cômico televisionado, Otelo mostra como sua provocação era medida e guiada pela atitude do corpo. Para tal, vamos analisar cena cômica do artista Grande Otelo com o ator Chico Anísio, ambos interpretaram o quadro “Boneca de Piche”, que Otelo repetiria ao longo da carreira com várias artistas além de Josephine Baker, como Déo Maia, Bety Faria, Xuxa, dentre outras. O número musical é executado por Grande Otelo e Chico Anísio (vídeo 21). No caso, Chico Anísio é o homem, e Grande Otelo a mulher da cena. Para uma discussão concisa é interessante que se analisem as escolhas estéticas que compõem a ação, assim como realizar leituras interligando essas mesmas escolhas aos recursos corporais propostos pelos dois atores. Chico Anísio usa um terno branco aberto, luvas brancas, calça listrada e uma peruca semelhante a um cabelo curto com dradlock. Ele, que é um ator branco, tem o rosto pintado de preto; o contorno dos olhos e dos lábios, pintados de branco. Sua imagem visual remete à personagem da “nêga maluca” e a personagens dos menestréis estadunidenses, um teatro popular com surgimento em meados do século XIX, onde geralmente artistas brancos usavam o recurso blackface ou a “cara preta”. Grande Otelo, em vestido vermelho com bolas brancas, usa luvas brancas, sapatos pretos, meia-calça preta e blusa preta comprida. Além de uma peruca encaracolada castanho claro. Ao analisar mais uma vez a cena e relacionar com as imagens dos menestréis pode-se afirmar que mais do que remeter, Chico Anísio usa o blackface. Vale ressaltar que tal recurso cênico é polêmico e controverso ao ser acusado de reforçar estereótipos relacionados a pessoas de comunidades negras. Mas, como evidenciar isso a partir do personagem de Chico Anísio? Como Grande Otelo provoca ou subverte o que Chico Anísio traz de proposta de performance cênica? 231

Anteriormente, conferimos o conceito de estereótipo segundo Peter Burke o qual aponta importantes pistas para uma justificativa mais verticalizada do uso do blackface como fortalecedor de estigmas, principalmente ao olhar atentamente o personagem de Chico Anísio. Anísio que era ator/humorista famoso por diferentes personagens criados para o teatro e a televisão, com habilidade para diferenciar atitudes e gestos dos personagens que criava, e apresentava notável flexibilidade corporal e interpretativa, nesse quadro específico apresenta postura peculiar como intérprete. Sua atitude corporal no número musical “Boneca de Piche” é rígida, inflexível, e sem nuances. Tais aspectos perpassam seu jeito de caminhar, expressão vocal e dança. A tinta preta parece paralisar ou interceptar seu desempenho corporal que poderia ser mais sincopado, com mais inflexões. Vale ressaltar que “Boneca de Piche” é um samba. Já Grande Otelo, mesmo participando de uma cena com recursos de estereotipia, consegue jogar com alguns momentos. Primeiro, ele se apropria corporalmente de gestos femininos, usando sutis inflexões vocais no canto, principalmente quando Chico Anísio põe a mão no seu seio de mentira, e Otelo constantemente a retira como recusasse o assédio do parceiro. Otelo imprime, a meu ver, individualidade à personagem-tipo do número com a flexibilidade da gesticulação. Enquanto Anísio não consegue alcançar tal estado – esse ator está baseado num modelo estadunidense de comicidade, na qual a estereotipia paralisa e violenta seu desenvolvimento corporal, além de instaurar uma relação entre a imagem visual (o que ele é na cena) com a imagem mental que a estrutura racista produziu, através de construções históricas. Nesse momento, percebe-se que a tinta preta é substanciada em um contexto bem cruel, que reproduziu o imaginário com um tipo de linguagem, um tipo de ação corporal, em relação ao sujeito negro, exagerando experiências da realidade e, de fato, omitindo nuances. Nesse sentido, Fanon frisou que: “No judeu que é esterilizado, mata-se sua estirpe; cada vez que um judeu é perseguido, toda uma raça é perseguida através dele. Mas é na corporeidade que se atinge o preto. É enquanto personalidade concreta que ele é linchado.” (FANON, 2008, 142). E em outro contexto, o circo, Bolognesi (2003: 189), no livro “Palhaços”, indica que “A matriz do circo é o corpo, ora sublime, ora grotesco. O corpo não é uma coisa, mas um organismo vivo que desafia seus próprios limites.” É possível ampliar essa ideia para o Teatro de Revista, music hall e cabaré, estéticas próximas ao circo. E, ainda, vale ressaltar que muitos artistas desses territórios cênicos passaram pelo circo, mesmo que rapidamente, como é o caso de Grande Otelo. 232

Assim como o corpo é o principal alvo no racismo antinegro, o corpo é o princípio, usando mais uma vez as palavras de Bolognesi, de artistas como Chico Anysio e Grande Otelo. No entanto, para o último o corpo torna-se um princípio de ocupação subversiva. Para pensar o lugar da Josephine Baker frente a essa ocupação, temos, também, dois exemplos. Um passa-se nos Estados Unidos durante a turnê da artista em 1964. Na ocasião, ela não realizava shows nos Estados Unidos desde o início da década de 50, devido a uma passagem conturbada pelo país que se agravou com a sua ida à América Latina.

Figura 48: Cartaz do show Josephine Baker e companhia Fonte: Biblioteca do Congresso

Em 1963, Jack Jordan (produtor) mobiliza recursos para trazer Baker para a Marcha de Washington, propondo a realização também de uma turnê que se estenderia até 1964. Josephine Baker consegue autorização para entrar no país por intermédio de Bob Kennedy, o irmão do presidente John Kennedy. O show “Josephine Baker e Companhia” (Figura 48) passaria por Estados como Nova York e Filadélfia. Dirigido por Sherman Frank e produzido por Sherman S. Krellberg, o trabalho concebido apresentava uma Baker cantando em cinco idiomas – inglês, francês, 233

espanhol, italiano e hebreu – além de contar com participação da companhia de dança Aviv Dancers (Israel), Geoffrey Holder (Trinidad Tobago) e Carmem Lavallade (Estados Unidos). As participações desses artistas além de garantir números coreográficos que traziam uma atmosfera “multicultural” desejada por Baker na maior parte dos seus shows, também oferecia espaço para a troca de roupas que fortalecia a persona da sua performance musical. Cabe dizer que nessa ocasião, ela “foi vestida” por estilistas famosos, como Dior, Balanciaga e Balmain. Uma das músicas que a artista cantava era Don´t Touch my Tomatoes, para apresentá-la ela fazia uma vendedora de frutas (Figura 49).

Figura 49: Baker com uma banana na mão e o provável figurino do “Don´t Touch my tomatoes” 1964. Show Josephine Baker e companhia. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

Segundo periódicos do período, havia um momento durante o número musical que Baker arremessava frutas e vegetais na plateia. “Durante sua performance na Filadélfia 234

senhorita Baker jogou uma penca de frutas e vegetais do palco em tributo ao hit parisiense dela ‘Don´t Touch My Tomatoes’208”. Não temos comprovação da inflexão que Baker usava para jogar as frutas no público, mas o certo é que tal ato dividiu a recepção, que era misturada com pessoas brancas e negras, por conta da climatização política do movimento negro. O fato é que numa apresentação na Academia de Música da Filadélfia, em 18 de outubro de 1963, uma mulher de nome Selma Cohen queixou-se por ter sido atingida por uma cabeça de repolho acarretando machucados no seu nariz e nervos do sistema nervoso209. A Senhora Cohen, por intermédio do seu marido, Bernard Cohen processou Josephine Baker e a produção exigindo indenização pelo ocorrido e pelos gastos médicos. O valor equivaleu mais ou menos 20 mil dólares, e o marido da vítima exigiu mais 5 mil pelos gastos. Josephine Baker não deixou de apresentar seu número mesmo mediante o incidente e manteve-o dentro do show durante sua turnê, num Estados Unidos onde ela dizia se sentir mais livre. A marcha de Washington – na qual ela discursou – tinha despertado tal sensação, a ocasião assentou suas esperanças e aliviou seus medos. “Eu sempre tive essa pequena sensação em meu estômago. Eu estava sempre com medo. Eu não conseguia encontrar pessoas americanas brancas.”210. Para outras(os), o número foi recebido num tom bem-humorado e, mesmo tendo sido processada, Josephine continuou no espírito interativo. Não por acaso, uma jornalista negra, Perdita Duncan, descreveu sua sensação referente a essa parte do show na sua coluna Music in Review:

No seu bem conhecido “Don´t touch my tomatoes”, ela alertou a plateia para não entrar com nenhum processo quando ela arremessasse as frutas sob as luzes da ribalta. Bem, nós não esperávamos que una banana, uma maçã e um tomate fossem arremessados em nossa direção. Com um cacho de uva que nos foi entregue, quando a performance tinha acabado, nós tínhamos mantimentos suficientes para abrir um restaurante211.

208“Hit by Cabbage, seeks lettuce”. Philadelphia Daily News, 07 de fevereiro de 1964. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 209“Josephine Baker sued on aim with cabbage”. New York Times, Nova York, 07 de fevereiro de 1964. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 210“The Banana Girl”. The National Observer, 06 de abril de 1964. Tradução livre. I always had this little feeling. I was always afraid. I couldn´t meet white American people. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. 211DUNCAN, Perdita. “La belle Baker”. N. Y Amsterdan News, 11 de abril de 1964. Fonte: Biblioteca do Congresso. Tradução livre. In her well -known “Don´t touch ‘My Tomatoes’, she cautioned the audience not to file any lawsuits as she tossed the fruits over the footlights. Well, we won´t, for a banana, an apple and a tomato 235

Seja porque utilizou força demasiada, acidental, ou porque se sentia mais livre nos Estados Unidos para executar o número de forma mais arriscada e sarcástica, o irônico é que Josephine que foi aclamada pelo público por usar um “saiote de bananas” na década de 20, naquele momento divertia-se e provocava a plateia. Ela devolvia às pessoas frutas e vegetais, inclusive a banana, que tanto era citada na carreira, como se fosse um componente orgânico do seu corpo. O fato é que Josephine Baker não se resumia a banana e parece que o recado foi dado. Outro episódio ocorreu em 1968, no teatro Olympia em Paris212. Em outro show, Baker na sua corrente interação com o público chama um homem da plateia para dançar com ela no palco (vídeo 20). O intuito da artista é dançar com ele durante uma canção cuja melodia passeava no ritmo da valsa. Todavia, o rapaz mostra-se distante do ritmo e da habilidade em executá-lo corporalmente. Constatado isso, Josephine Baker suspende/ interrompe a canção que estava executando e o “repreende” com controle. Informando a ele, como segurá-la para dançar. O rapaz obedece e, não só por instantes, mas também durante a execução da dança ele parece se transformar no foco pela sua “dança desajeitada”, tornando-se estranho àquele ambiente cênico, tenta acompanhar Josephine que continua a cantar e guiá-lo com maestria, mantendo a interação simpática com o público. O contraste da fluidez dançante de Baker, com a falta de costume do corpo do rapaz com a dança ali executada, cria uma imagem em que conforto e estranheza coexistem. O rapaz, deslocado daquele ambiente, logo é o foco, como elemento estranho e quase exótico naquela ambiência cênica proposta em outra direção. Através da interação simpática da artista, o exótico – antes a ela atribuído – foi deslocado para o homem branco, a representação dos que, em épocas anteriores, fixaram o corpo dela a uma peculiaridade exotizada. Nesse show, ela parece ter provocado esse processo, imprimindo uma pergunta subjacente: “Quem é o pitoresco agora”? A partir das quatro experiências descritas em épocas distintas e de performances em suportes cênicos diferentes e próximos um do outro ao mesmo tempo, pode-se evidenciar como Baker e Otelo negociavam as suas narrativas com as imagens que lhes atribuíam. Revertendo o processo para uma provocação em tons irônicos e risíveis.

were tossed in our direction. With a bunch of grapes handed to us, when the performance was over, we had enough green groceries to open a restaurant. 212 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RoK3m_lG6-4&t=1217s > Acesso em 30.dez.2017. 236

Grande Otelo provocava contextos cênicos ensinando na prática a sua filosofia de artista na arte de fazer rir e fazer chorar ou recusando ensaiar personagens ausentando-se dos trabalhos. Temos aí uma curiosa noção na qual ausência pode também se tornar transgressão. Josephine Baker improvisava caminhos para tensionar o público, preservando o espírito do entretenimento. Sorriso na voz e fala macia eram seus mecanismos mais eficazes. Ambos, ao longo de suas trajetórias, ocuparam em si uma capacidade intricada de dialogar seus anseios artísticos – suas ideias – com os debates de cada época. Ela e ele deslocaram símbolos com ações de fronteira, movimentaram o invólucro que os envolvia e através do qual eram alvos de questionamento. Josephine Baker e Grande Otelo não eram depósitos de estereótipos, por mais que houvesse um projeto cênico subjacente que almejasse esse fim. Eles eram pessoas que desenvolviam o intelecto corporal, enquanto performavam e descansavam o exercício do pensar, quando estavam fora de cena, sem deixar de lado totalmente a molecagem, a brincadeira, a seriedade, a ironia e a zombaria, estados imprescindíveis para os dois. Portanto, pode-se afirmar que, ao provocar contextos de estereotipia, os dois quisessem reivindicar apenas a função do tipo, da caricatura ou da vedete nos gêneros em que trabalhavam, sem qualquer ônus pelos seus fenótipos. Nesse caso, há aí duas inteligências cênicas com uma complexa e dinâmica habilidade de “mover verdades” e construir discursos cênicos no exato tempo da cena, evocando temporalidades ancestrais do invólucro e fazendo com que elas conversem de forma sutil e atenta com cânones alocados em temporalidades outras.

5.3 O direito à controvérsia e à polêmica

Ocupando, quais são os direitos? Se, ao ocupar, torno-me; e ao tornar-me estou, quais direitos mais humanos que me constituem? Ao tornar-me pelo meu corpo redesenhando-o como atitude de fronteira, consciente dos locais por onde ele perpassa, consigo exercer plenamente meu direito, quero dizer, principalmente aquele de exercer a minha subjetividade? Acredito que, quando alcançarmos esse lugar, é possível que a estrutura racista realmente esteja ruindo. “Controvérsia” é um termo que aparece com certa frequência nos relatos bibliográficos e da imprensa acerca de Baker. O interessante é que o sinto nas entrelinhas, quando me reporto ao mesmo tipo de material referente a Grande Otelo. Os dois casos soam-me como se ser paradoxal ou controverso fosse algo incompatível com a pessoa negra, como se houvesse dois polos na vida (bem e mal), e ela tivesse de ocupar um dos dois, sem possibilidade para um entre ou algo que imploda tudo isso. 237

As impressões passeiam pela atribuição de controversa(o) que nem questiona as condições oferecidas para essas pessoas; ou, quando tensionam, não conectam com as dimensões subjetivas das relações e como essas implicam em suas vidas. Em 1963, quase dois meses após a marcha de Washington, um jornal publicou uma matéria acerca do show “Josephine Baker e companhia”, cuja arrecadação de verba seria destinada a algumas instituições ativistas, dentre elas a NAACP. Além da tentativa de descrição do show, o texto chama a atenção pela seguinte passagem: “A artista, tempestuosa e polêmica, que recebeu uma sala cheia e foi recebida com emoção por seus seguidores e admiradores fervorosos no Carnegie Hall, não os decepcionou213.” “Tempestuosa”, “polêmica”? Por que tais aspectos tendem a ser vícios mais salientes em Josephine Baker? E por que ela não os poderia ser? No programa Roda Viva (1987), a cantora e artista negra brasileira de music hall, Watusi, indaga Grande Otelo por que no show que faziam (Watusi e ele) - no Hotel Escala e no mesmo período de concessão da entrevista - o ator não aparecia para trabalhar culminando numa conversa acerca da sua famosa indisciplina com ensaios, filmagens e apresentações. Otelo, de forma séria, esperta e moleca, diz que ele, o Sebastião Bernardes de Souza Prata, preocupado com as questões delicadas do país – que na época vivia processo de redemocratização com a já construção, em andamento, da constituição – ficava às vezes triste, estranho e isso acarretava numa vontade de não trabalhar. Excentricidade sempre foi um ponto também relacionado aos dois. Josephine Baker, nas décadas de 20 e 30, era também conhecida por passear com seus animais de estimação pelas ruas de Paris: tigre e porco, por exemplo. E segundo Haroldo Costa, (...) de acordo, com o folclore da época, Othelo tinha um séquito de louras à sua disposição” (SOUZA, 1987:70). Como um dos primeiros artistas negros brasileiros com grande proeminência no país, Otelo tinha a seu alcance algumas regalias e certos fetiches, como estar com mulheres loiras, que dificilmente ele teria se não fosse Grande Otelo. Não temos o direito a exercer a nossa subjetividade excêntrica? As experiências de Baker e Otelo, gerenciadas pela dialética da comicidade exposta no primeiro tópico deste Ciclo, pode ensinar a compreender que a sociedade, de forma geral, idealiza o corpo negro. Tanto pessoas brancas, quanto pessoas negras, constroem ou sustentam

213 SALMAGGI, Robert. “Josephine Baker Back in an emotional reunion”. N. Y Herald Tribune, 14 de outubro de 1963. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts. Tradução livre. The Stormy, controversial performer, given a standing-room-only, emotion-packed welcome by her ardent followers and admires at Carnegie Hall, didn´t disappoint them. 238

imaginários que tendem a diagramar o “ser negro” e a episteme negra em perigosas linhas esquecendo-se da dinâmica das curvas. Do ângulo branco somos vistos como algo degradável, pitoresco, carente. Há também o “outro lado” disfarçado em singelas intenções, que é a visão que tangencia o “exótico”, “o especial”, “depósito de fortaleza”, o “objeto de estudo”. Se algo sai dessas linhas uniformes, somos alocados nas categorias da excentricidade, da polêmica, da controvérsia, do “maravilhoso, mas...”. Nesse sentido, Beatriz Nascimento tem um pensamento que parece pertinente com essa questão: Não existem mais “bons selvagens” como não existem mais “negros puros” que saibam seu ramo africano no Brasil. Depois de nos explorar e tirar as melhores coisas, depois de nos reprimir, a ideologia dominante quer nos “descobrir” (como costumam dizer alguns dos paladinos em favor do negro) “puros”, “ricos culturalmente”, “conscientes de nossa raça”. Não entendem que esses ideais de pureza, beleza, virilidade, fortaleza que querem nos inculcar, são conceitos seus, impregnados de sua cultura; quanto à nossa consciência de nós só pode sair de nós mesmos e a partir de uma consciência do dominador. (NASCIMENTO apud RATTS, 2006: 100) Numa perspectiva mais negra, tendemos a ver a pessoa negra, quando já alcançamos o nosso “torna-se”, segundo uma fórmula fechada do que seria o “negro consciente” esquecendo que, como pessoas, indiretamente, temos nossas carências particulares e subconsciência das nossas condições. Queremos “ser” antes de tudo. E esse desejo não é homogêneo para todas(os), pelo contrário, ele pulsa das nossas primeiras vivências, dos nossos primeiros acordes no mundo, além das nossas primeiras “sincopações involucrólicas”. O “ser” ou o corpo pode até conter princípios comuns como essa pesquisa tentou demonstrar, contudo ele é infinitamente articulado de forma diversa. Não somos paredes, somos movimentos. E como movimentos entre terrenos, nas esquinas e encruzas, Baker e Otelo foram muito além do que foi descrito aqui ou do que escreveram até hoje acerca dos dois. Ela e ele podem até ocupar nossas reflexões, no entanto suas subjetividades-conteúdos em formas desobedientes jamais serão capturadas. O que tentamos é desmembrar as ações nos dois no mundo da cena e fora dela, tomada pelo cartão de visita do entretenimento-cômico. Senti necessidade de apresentar neste último tópico da tese, atitudes que tocam certo desvio daquelas visões que de alguma maneira cristalizaram-se em relação a ele e a ela. Em cena, é evidenciável que os dois eram constituídos por caráter flexível e com habilidades para a suspensão dinâmica que elaboravam novas possiblidades performativas em afirmação. Fora 239

de cena, ainda é importante apresentar alguns exemplos que demonstram outras alavancas presentes nessas experiências. Há uma imagem na qual Baker segura um pandeiro e gesticula, como se estivesse orientando alguma coisa. Esse registro ocorreu provavelmente quando Josephine Baker estava trabalhando no Cassino da Urca, em 1939, antes de cantar Boneca de Piche com Grande Otelo. No período, como dito anteriormente, ela estava se preparando para apresentar números com músicas brasileiras, dentre elas “No Tabuleiro da Baiana”. Na foto (Figura 50), os olhares das outras três pessoas estão atentos a ela e há um rapaz segurando um instrumento musical. Baker numa altura mais elevada que os outros - os quais a observam e escutam – age como se estivesse explicando algo. Essa última impressão é principalmente despertada pela posição da mão direita de Baker.

Figura 50: Josephine Baker em preparação para o show no Cassino da Urca, Jornal Globo, 1939. Fonte: Biblioteca Nacional

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Em outra foto (Figura 51), provavelmente num período que corresponde a década de 50 ou adiante, Josephine é registrada numa situação com contexto parecido. Ela está ao lado de um homem, atrás do que parece ser um carro. Quase encostando seu ouvido no de Josephine, o moço a escuta atentamente, enquanto ela fala e aponta alguma coisa para o suposto carro, mostrando-lhe algo. Há mais pessoas na foto, mas de fato Baker e o homem, cuja identidade é desconhecida, são o centro e o foco do registro.

Figura 51: Josephine Baker com homem não identificado, s/data e s/local. Fonte: New York Public Library for the Performing Arts

Em ambas as imagens que representam contextos distintos e peculiares, Josephine está numa interlocução direta com o masculino, sendo possível identificar através do porte do seu corpo uma postura equânime, não subserviente e principalmente detentora de algum tipo de ideia ou informação. As duas atitudes nos registros, em períodos diferentes da sua vida evidenciam um corpo com gestos – ocupado de si e que representava algum tipo de ordem ou legado para quem o escutava. Nos dois casos mostrados as atenções capturadas eram, em sua maioria, de homens e brancos. O período da década de 50 até meados de 60 foi tumultuado nas relações entre Josephine e os Estados Unidos. Após sua participação na Segunda Guerra como espiã e artista que entretinha as tropas aliadas no Norte na África, Baker tornou a politização das ideias ainda mais 241

verticalizada, ficando cada vez mais atenta a qualquer conduta que ameaçasse a democracia em que ela acreditava, apesar de, controversamente, cultivar admirações pelos ditadores Mussolini, na Itália, e Juan Perón, na Argentina. Tendo em vista esse processo, Baker aproxima-se mais de algumas instituições que lutavam pelos direitos civis nos Estados Unidos dentre elas a NAACP, com a qual manteve importantes laços, chegando a realizar shows beneficentes e apoiar marchas, encontros, conferências e outros tipos de reuniões. Foi inclusive o setor jurídico do NAACP que defendeu Baker, no caso do Stork Club, clube noturno nova iorquino onde Josephine Baker e outros dois amigos foram discriminados. Segundo a artista, eles foram mal atendidos e não tiveram o pedido de jantar entregue. O caso envolveu muitas polêmicas e repercussões na imprensa. O jornalista Walter Winchel, suposto defensor dos direitos civis, estaria no estabelecimento e teria alegado que tudo não passou, em resumo, de uma estratégia de Josephine Baker para ganhar mais marketing. Nesse período que Baker esteve nos Estados Unidos ela se recusava a fazer shows para plateias segregadas, além de ter problemas com hotéis que não aceitavam a solicitação de acomodação da artista negra com o seu elenco interracial, incluindo seu marido na época, Joe Bouilion, que era um homem branco. Todo esse processo estremeceu ainda mais a relação com o governo dos Estados Unidos e uma imprensa conivente com o projeto desse país, constantemente se referindo a ela como a “americana expatriada” que renegou a cidadania estadunidense para se tornar uma cidadã francesa e casada com um homem branco. Diante de todas essas experiências, Baker converte- se em uma mulher que, além de preferir alimentar o público de entretenimento, também passa a nutrir a plateia de retórica. A partir de 1952, em viagens constantes pela América Latina, ela funda uma Associação Internacional Contra a Discriminação Racial, Cultural e Religiosa no México, composta por uma série de simpatizantes e apoiadores de vários países como o próprio México, Haiti, Cuba, África do Sul, países escandinavos, Itália, Japão; além de cidades da Califórnia, como Los Angeles e Oakland.214 Em 1952 com passagens pela América Latina, Baker denunciou, fervorosamente, a segregação racial nos Estados Unidos e a forma como as pessoas negras eram tratadas nesse país. Dentre os países que visitou, o Brasil foi um dos que recebeu a artista. Como mostrado

214 Informações extraídas da palestra proferida pela artista em 30 de julho de 1952 na Biblioteca Mário de Andrade, naquela época a Biblioteca Municipal de São Paulo. BAKER, Josephine. Discurso. 30 de julho de 1952. Acervo: New York Public Library - Schomburg for Research in Black Culture. 242

em ciclos anteriores, a entertainer tinha impressão de que este país seria um exemplo a ser seguido pelo mundo, retrato da boa convivência entre pessoas de diferentes etnias e credos. Numa carta a Sumio Matsuo215, escrita em 02 de setembro de 1952, quase dois meses após ela palestrar na Biblioteca Municipal de São Paulo, Baker relata ao amigo que no dia seguinte seriam fundadas duas associações no Brasil, o presidente seria o então Deputado Afonso Arinos de Melo Franco216 e o vice-presidente seria Nelson Carneiro. Baker ainda acrescentou na carta que Miki Sawada – uma amiga e também ativista no serviço social – seria a presidente da associação no Japão e que ainda ela (Baker) inauguraria entidades em Haiti e Cuba. Nessas cartas, “direitos civis” são termos disponíveis no vocabulário de Josephine Baker que entusiasticamente afirma que “O problema é delicado, e a luta é difícil, mas a vitória é certa porque pelo menos muitas pessoas do mundo estão ficando juntas, especialmente as pessoas de cor. Elas estão se levantando como um homem pelos seus direitos. Agora é a hora217.” Certamente a construção da penúltima frase de Baker é questionável, principalmente, no tempo contemporâneo, num contexto em que dizeres como “Lute como uma garota” são visitados desconstruindo significações misóginas. Contudo, não podemos silenciar que, como uma desbravadora, Josephine Baker segue adentro no norte, centro e sul da América pregando sua ideia de irmandade universal. Crença essa que não ficou só no discurso: atravessou a atitude da mulher-mãe que, a partir daquele período e das viagens, inicia seu ciclo de adoções de crianças de diferentes etnias e oriundas de diversas culturas religiosas. Foram dozes crianças, dez meninos e duas meninas, cada um com uma história que movimentou o coração da artista a qual abrigou filhas e filhos no seu castelo Les Millandes. Lá, a ideia era que todas as crianças convivessem respeitando o aprendizado dos seus idiomas nativos e religiões. Tal situação parece um pouco comum para os dias de hoje em que celebridades e artistas brancos e negros engajam-se em adotar crianças das mais diversas etnias. Todavia, a posição de Baker era vertical ao querer concretizar sua ideia no próprio terreno, um ideal que também foi considerado utópico e excêntrico.

215BAKER, Josephine. Carta a Mr. Sumio Matsuo, 02 de setembro de 1952. Fonte: New York Public Library - Schomburg Center for Research in Black Culture 216Afonso Arinos de Melo Franco propôs a Lei Afonso Arinos (Lei 1390/51) que foi promulgada durante a administração de Getúlio Vargas, em 03 de julho de 1951. Essa proposta de lei foi bastante agitada após a discriminação que a bailarina Katherine Dunham e sua companhia de dança sofreram. O Hotel Esplanada de São Paulo recusou a hospedar o grupo, naquele mesmo ano. Esse fato tornou-se um escândalo nacional atraindo aderência a proposta de Lei que já estava sendo tramitada no governo. 217 Tradução livre. The problem is delicate, and the fight is hard, but the victory is certain because at last peoples of the world are getting together especially the colored peoples. They are standing up as one man for their rights. Now is the time. 243

Ela manteve, durante algum tempo, o seu projeto, trabalhando (quando queria se aposentar) para garantir recursos para a criação das crianças; e construindo laços diplomáticos com chefes de Estados, produtores e celebridades de todo o mundo, inclusive da América Latina, para garantir o apoio à causa. Além disso, ela atravessou o mundo com o sorriso e o riso, como alguém que sabia exatamente “o quê e por quê” estava fazendo. Ocupando-se de si, Baker ocupou o mundo e tornou-se dele. Para Grande Otelo, a década de 50 parecia remeter a um clima meio tumultuado, também. Ele vivia no Brasil com todas as agonias de um país que ensaiava um pseudo progresso e com todas as tensões raciais que contrariavam o discurso saudoso de Josephine Baker. Otelo ocupava-se de insatisfações, não com a comicidade, mas sim com a fixação da imagem cada vez mais nesse lugar cênico. Isso fermentava o ativismo do ator em outro aspecto, diferente daquele localizado em Baker – que alcançava um teor mais público. O dele era sutil, nas rebarbas, nos bastidores, dando a mão àquelas pessoas negras que, como ele, precisavam ocupar não só a si, mas também os espaços:

A vida nos separou durante anos, cada um perseguindo o seu sonho ou cumprindo o seu destino. Quando em 1936, o racismo paulista me tornou a existência impossível, vim para o Rio e reencontrei Grande Othelo já pisando o gramado da fama que não abandonaria mais. (...) Em 1944, fundei o Teatro Experimental do Negro(TEN). Desde que em Lima, eu assistira à peça Imperador Jones, com o papel-título interpretado por um branco pintado de preto, jurei que lutaria para que os atores negros ocupassem os espaços merecidos. Nessa época, minha amizade com Othelo ampliou-se. Frequentei sua casa na Urca, onde nos brancos tempos de fome muitas vezes alimentei o corpo e o espírito naquele ambiente Otheliano. (SOUZA, 1987: 21)

Nesse depoimento, dedicado ao amigo Otelo, Abdias do Nascimento, além de relatar sua experiência que o estimulou a pensar o TEN, conta a participação fundamental de Grande Otelo na sua vida profissional, iniciada no Rio de Janeiro. Acolhendo Abdias, Otelo ofereceu casa e comida, naquele período o artista seguia com o seu contrato com o Cassino da Urca, recebendo salário fixo aquém do seu talento, mas atípico para muitos artistas negros do período. Além de agir em solidariedade com Nascimento, Otelo também foi incentivador da sua ideia, tanto que o próprio teatrólogo pontua: “Grande Othelo sempre foi solidário com o TEN.” E, continuando, aponta a comprovação de que Otelo mantinha atividades políticas importantes no que tange às militâncias, contudo a partir de um dos seus campos de trabalho, a comicidade e o entretenimento:

Só contracenamos uma vez quando Jacy Campos nos levou ao programa Câmera Um, da TV Tupi. Fomos colegas nos Ministério do Trabalho, no Serviço de Recreação Operária, fizemos shows para trabalhadores juntos com Alaíde Costa, Baden Powell, Ângela Maria e outros. Em 1966, nos debates 244

sobre uma Introdução à Arte Negra que organizei, Othelo foi um dos conferencistas, discorrendo sobre a arte de fazer rir. (SOUZA, 1987:21).

Após a década de 60, Otelo estava sensível e atento às armadilhas impostas a sua ocupação no mundo. Ocupando-se de si, ele se engaja mais em movimentos dedicados à Arte Negra e, na década de 80, Abdias do Nascimento escreve o que já presenciávamos em entrevistas e participações de Otelo em programas daquele período. O ator tinha um grau de compreensão maior em relação a algumas posturas contra a discriminação, considerada antes, por ele, como posições radicais:

Ultimamente, Othelo se mostra mais compreensivo com a minha permanente resistência ao racismo e à discriminação racial. Entre nós parece haver um processo afetivo dialetizado pela consciência racial que, em cada um, evoluiu de maneira diferente. Mas a amizade se impõe apesar disso. (SOUZA, 1987: 21)

Pelas palavras de Abdias é possível identificar que Otelo alterou uma consciência de si e sobre o racismo, num naipe diferente daquele no qual ele edificou seu pensamento antirracista. Otelo primou pela liberdade de articular as próprias ideias referente ao assunto, sem desfazer- se do seu local de trabalho, o entretenimento e a comicidade. Além disso, ele organicamente ocupou um ativismo no qual lhe cabia mais agir concretamente de acordo com condições e experiências e essa concretude dizia respeito a generosidade e afeto. Ocupando-se de si, Otelo ocupava a pessoa próxima. Mesmo com reverberações em níveis distintos, o que pulsa nas posições tanto de Baker quanto a de Otelo é que há uma atitude que solicita a ação, a realização. É o discurso não apenas no âmbito das ideias e do absoluto demagógico, é a prática ocupada de si que torna o agir dilatado e atuante na consciência. Isso leva a crer que o corpo se lança no mundo para achar algo, mas também para movimentar os padrões, as verdades e as certezas. Otelo e Baker nunca negaram o entretenimento, pelo contrário, era através dele que eles comungavam suas visões diversas. Por esse motivo, eles foram entendidos como controversos ou paradoxais, mas na dimensão humana temos como não ser? Em condições na qual a humanização do nosso corpo é posto em xeque, precisamos dispor de mecanismos de (re)estruturação para exercer a humanidade que nos foi negada dentro e fora do palco. Dessa forma, ter o direito de ser controversos, excêntricos ou paradoxais, é minimamente o que desejamos. Pois o corpo é a nossa casa, e definitivamente não é o nosso limite. Deslocamos, enquanto “involucramos”; e desobedecemos, enquanto ocupamos.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS ou carta de despedida ao meu Casamento Preto

São Paulo, março de 2019

Josephine e Otelo,

Escrevo esta última parte do trabalho para ensaiar uma despedida, que não tenho certeza se conseguirei concretizar. Redijo também algumas considerações sobre esse casamento que de tão preto serenou o meu corpo. Nunca será demasiado agradecer o acolhimento e o que aprendi com a relação de vocês, uma simbiose que atravessou uma terceira pessoa: eu. Não sei se o meu lugar correspondeu à “batida que falta” ou a terceira pessoa que estava ali e não estava, o fato é que me arrisquei, em fazer parte dessa relação com todas as oscilações, surpresas e não garantias. Agora é hora de suspender esse triângulo e seguir na tentativa de responder a outras questões. No entanto, acredito que seja necessário demonstrar minha gratidão através do que eu aprendi com as suas experiências. Perguntas. Conhecendo vocês, compreendi o que me atrai no universo acadêmico, (re) atualizei as minhas sensações nesse território tão interessante e paradoxal. A universidade é ou, pelo menos, deveria ser espaço para exercitar a prática das perguntas e não das certezas. Antes do questionamento, a pergunta. Porque ela é capaz de impedir a prepotência e a postura de dominação sobre qualquer saber, principalmente aquele não hegemônico. Deslocamento. Revisitando vocês, foi possível deslocar-me até mim, identificando minhas tormentas e minhas felicidades. Vocês se refizeram ao deslocar entre o levantar e o abaixar das cortinas, tornando-se nas estradas e referendando-se naquelas(es) que vieram antes e, ao mesmo tempo, acompanhavam vocês. De tão invisíveis essas pessoas tornaram-se visíveis nos seus respectivos corpos, alimentando a capacidade de (re)criação. A lição foi dada e, apesar de ter escolhido dizer em primeira pessoa boa parte dessa tese, tenho absoluta consciência de que eu sou muitas(os). Invólucro. Esse território nosso que é tão heterogêneo e assimétrico restaura a beleza que há nas relações. Por mais que nos movimentemos, também fora dele, é para lá que recorremos quando precisamos de “Sul” (e não norte). Os negros invólucros não são fechados 246

em si, mas sim conservam uma “cerca” invisível que os protege. É essa habilidade de simultaneamente abrir-se e proteger-se que garante a sobre-vivência dos nossos corpos. Nós manipulamos nomeações, (re)significamos nosso legado ancestral de forma híbrida e não uniforme, propositalmente. A síncopa nos deu a régua e o compasso. Desobediência. Celebrando os processos, da flexibilidade, da contração e do abaixar-se, desobedecemos a qualquer tipo de linha dura. (Re)conheci meu quadril e nele tenho encontrado força para girar as palavras no mundo. Não tenho mais suspeita a respeito dos seus olhos, pois suas cruzas e realces apontaram a dimensão de uma dança que só acontece, quando se olha a vida através das formas como vocês olharam. Os pés, esses num contínuo diálogo entre si, respaldam ainda mais a necessidade de uma relação entre chamadas/perguntas e respostas; pessoa e coletivo. São dois, os pés, no entanto a agilidade contida em cada um revela numerosas existências. A coluna do corpo negro é o movimento; retirado ele, não temos experiência. Ocupação. Num primeiro momento, estava “pré-ocupada” de ocupar vocês, quando vi que isso extraía mais energia do que necessário, decidi ocupar suas experiências. A leveza apareceu e o riso entrou em cena sem culpa. Ocupando vocês, ocupei-me de mim; e, assim, decidi que me permitirei um pouco mais ao erro, à contradição e regressar, quando necessário. Tais aspectos: Deslocamento, Invólucro, Desobediência e Ocupação, foram se coreografando numa composição que transversa histórias e memórias. Pedi para ser a terceira intérprete e dançar com vocês, confesso que algumas vezes foi difícil acompanhar os passos. Porém, a generosidade dos dois, em pegar a minha mão, impediu que eu abandonasse a coreografia. Com a composição “pronta” identifico algumas nuances que precisam ser abordadas e algumas delas dizem a respeito a cada um de vocês em particular. Josephine, como uma senhora de si, tenho a impressão de que você quis tomar a dianteira da coreografia-escrita, ocupando mais espaços nas discussões. Tal fato é relacionado a minha estadia no país que você tanto questionou e amou. Fui aos Estados Unidos para conhecê-la, encontrei surpresas e dissolvi algumas verdades. Surpreendi-me com o bom acolhimento de Louisville, cidade onde residi, aquela que um dia foi pisoteada pelo Jim Crow. Mas, estou ciente de que a experiência de ser negra no Brasil funciona para mim como um termômetro, que não me fez enxergar nuances e problemáticas que só as(os) negras(os)- estadunidenses podem identificar. Não considero que os Estados Unidos tenham alcançado a ideia de fraternidade, como você disse ter encontrado no Brasil na década de 50 - algo que descordo inteiramente. Num entre lá e cá, confesso que boa parte dos brancos brasileiros são os mais perigosos que conheço, porque são indisponíveis em enfrentar a branquitude. 247

A política arquivística estadunidense é também um aspecto que justifica sua sobressalência neste trabalho. As condições oferecidas para a pesquisa nos acervos e suas estratégias de manutenção e aquisição desembocam em possibilidades amplas para quem pesquisa. Surpreendeu-me perceber que artistas negras(os) de gêneros cênicos, voltados ao entretenimento, como o Teatro de Revista e o Teatro de Variedades, têm espaço garantido na documentação negra em acervos variados. Otelo, você pode ter ficado meio ressabiado com esse suposto respaldo a Josephine, em alguns momentos. Mas creio que você dever ter entendido o quanto precisamos criar mais condições no Brasil para nos dizer e (re)dizer. E tal aspecto passa pela política de constituição dos arquivos. De volta ao país, desejei retornar aos arquivos onde o encontrei e mapear possíveis novos territórios documentais, inclusive aqueles que respaldam registros de entrevistas e depoimentos, como o Museu da Imagem e do Som (Rio de Janeiro e São Paulo) . Contudo, deparei com o prazo da pesquisa e precisei fazer escolhas. Por outro lado, foi bonito presenciar sua escuta à mulher que você tanto admirou e referendou em vida. Compreendi a diferença entre escutar-respeito e escutar-subserviência. Respeitosamente, você como um saudoso Baliza de cordão carnavalesco, que foi um dia, abriu caminho para Josephine Baker. E como Mestre Sala circundou-a, confortável com ela, que se manteve sempre de cabeça elevada. Tumpy e Pratinha, achar a própria voz na pesquisa é ter em mente que a investigação não garante respostas, e questionamentos devem ser aplicados para si e não para o outro. Essa deve ser a principal necessidade. Não acredito em pesquisa que não provoque as próprias fragilidades e reduto de certezas. Devido à cognição alimentada por colonialidades, muitas vezes medimos nossas respostas de acordo com os critérios de aprovação ou reprovação das ambiências hegemônicas. Antes de conceituar, já nos amedrontamos; antes de escrever, recusamos dar crédito as nossas sensações e aos nossos pensamentos. Contudo as tecnologias de invalidação das nossas respostas podem até ser aperfeiçoadas, mas jamais conseguirão extinguir a nossa capacidade de gestar perguntas, porque trabalhamos para o movimento que equipara a coragem de perguntar com a coragem de encontrar a resposta. Há tanto a ser desbravado sobre nós, gente preta, nessa travessia e nessas experiências transatlânticas. Há tantos laços e “entrelaços” a serem descobertos através dos nossos corpos. É uma piscada de olho. É uma celebração da pélvis. É um movimento contido. São os nossos silêncios ensurdecedores. 248

Vocês sinalizaram novos invólucros negros que precisam ser escavados, “diálogos involucrólicos” com diferentes perspectivas grupais compartilhadas advindas de experiências anteriores às travessias transatlânticas. As ressonâncias desses diálogos continuam em deslocamento em artistas negras(os) contemporâneos(as) que desobedecem a cena – seja por abordagens mais engajadas ou através dos corpos ocupados de riso e divertimento. Nós ainda estamos vivas(os), e vocês devem estar felizes por isso, estou assegurada. O casamento é uma prática de relação que não se subjuga à ordem racional. Não há referencial bibliográfico para as relações, a aprendizagem se dá no cotidiano, na ação e pela ação. Agradeço. Até breve!

Deise de Brito (Ninha)

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REFERÊNCIAS

1.Referências Bibliográficas

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos Todos Feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

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NAPAS, Mário e ÉTIÉVANT, Henri. (Diretores). 1927. A Sereia dos Trópicos.

N/I. (Diretor). 1966. Samba.

PHILIPES, Suzanne (Diretora). 2009. The 1st Black superstar.218

TV Cultura. (Produção). 1987. Roda Viva: Grande Othelo.

TV Cultura. (Produção). 2012. Roda Viva: Muniz Sodré. 219

TV Cultura (Produção). 1991 Programa Ensaio: Grande Otelo.

6. Registros de Áudios

Programa Luzes-Câmera: Grande Otelo (MIS/SP), 1975, 1 fita. Entrevistadora: Silvia

Ciclo de Depoimentos para a posteridade sobre o cinema brasileiro, (MIS/RJ), 1967, 1 fita. Entrevistadores: Alex, Viany, Alinor Azevedo, Ricardo Cravo Albin.

Comemoração dos 70 anos de Grande Othelo, (MIS/RJ), 1985, 2 fitas

Entrevistadores: Elisete Cardoso, Jairo Severiano, Elizabeth Formagini, Mauricio Sherman

7. Suporte eletrônico

Acervo Grande Otelo. Disponível em http: www.ctac.gov.br/otelo/index.asp > Acesso em 12.fev.2010.

______Letra da música “Congada pro sinhô rei”. Disponível em http://www.ctac.gov.br/otelo/ musica/detalhe.asp?cd=44 > Acesso em 21.março. 2019.

As Tiller Girls [Imagem]. Disponível em: https://fromthebygone.wordpress.com/2012/08/06/the-tiller-girls-1928/> Acesso em 15.fev.2019.

A Grande Revista – Dueto de Grande Otelo e Mara Abrantes. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=A_kW7rx-EPA > Acesso 20. de abr.2017.

218 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Ggb_wGTvZoU&list=PLYGWJMxkcvxv5awoUYvD2RTV5GoMTHHbY> Acesso em 10.jan.2014.

219 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=JrmmExBUxyQ. > Acesso em 12.nov.2017. 261

Dueto entre Betty Faria e Grande Otelo, cantando Boneca de Piche, parte do programa Brasil Pandeiro, exibido em 1979. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=AACQFmmW2bM > Acesso em 20. mai.2010.

Dueto entre Grande Otelo e Virginia Lane, cantando Boneca de Piche, parte do programa Fantástico, exibido em 1973 pela TV Globo. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=3wnu8OEYwGY&feature=player_embedded#> Acesso em 05.out.2010.

Elenco da Companhia Negra de Revistas (1926). [Imagem]. Portal Luiz Nassif. Disponível em https://blogln.ning.com/photo/albums/companhia-negra-de-revistas.> Acesso em 10. nov. de 2018.

Elenco da Revue Negre (1925). [Imagem]. Disponível em https://br.pinterest.com/pin/576179346048055084/?lp=true. > Acesso em 10. nov. de 2018.

Fotografia de Grande Otelo. [Imagem]. Disponível em www.pstu.org.br/grande-gigante- otelo/> Acesso em 18. nov.2016.

Pessoas confinadas em Navio Negreiro. [Imagem]. Disponível em https://www.theprogressivesinfluence.com/2014/09/callous-racism-from-pennsylvania- news.html. > Acesso em 03.jun. de 2018.

Quituteira; Carmen Miranda. [Imagens]. Instituto Moreira Salles. Disponível em https://ims.com.br/por-dentro-acervos/o-tabuleiro-da-baiana/. Acesso em 11.fev.2019

Representação em bronze do pássaro Sankofa. [Imagem]. Disponível em en.wikipedia.org/wiki/Sankofa. > Acesso em 02.fev.2015.

Rita Hayworth, 1946. [Imagem]. Disponível em www.imageconscious.com/art/h1379d- unknown-rita-hayworth-gilda-1946> Acesso em 13. Jan. 2019.

Show de Josephine Baker (1955). Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=TDRTLVzGTqo. > Acesso em 15. dez. 2018.

Show no Olympia de Josephine Baker (1968) Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RoK3m_lG6-4&t=1217s > Acesso em 30.dez.2017.

Trecho do especial “Grandes Nomes” com a cantora Gal Costa e Grande Otelo cantando No Tabuleiro da Baiana, exibido em 1981 pela TV Globo. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=K9G3daDFszE&feature=related > Acesso em 05.out.2010.

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ANEXOS

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