Universidade de Aveiro Departamento de Comunicação e Arte 2006

Manuel Augusto da A ópera como paradigma no Grande Duo Silva Carvalho Concertante de Weber

Universidade de Aveiro Departamento de Comunicação e Arte 2006

Manuel Augusto da A ópera como paradigma no Grande Duo Silva Carvalho Concertante de Weber

dissertação apresentada à Universidade de Aveiro para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Música, realizada sob a orientação científica do Prof. Doutor Jorge Correia, Professor Associado do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro

Dedico este trabalho ao meu pai por ter dado início a esta aventura.

o júri presidente Prof. Doutor Jorge Manuel Salgado Castro Correia professor associado da Universidade de Aveiro

Prof. Doutor Luís Filipe Barbosa Loureiro Pipa professor auxiliar do Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho

Prof.(a) Doutora Sara Carvalho Aires Pereira professora auxiliar da Universidade de Aveiro

agradecimentos Obrigado. Obrigado a todos os que contribuíram e apoiaram este meu percurso modesto mas esforçado. Ao orientador Jorge Salgado Correia agradeço a orientação, o apoio e a palavra sempre optimista e motivadora, ao Virgílio Melo, devo toda a coragem para enfrentar o trabalho analítico, aos meus amigos que com pequenas grandes ajudas me ajudaram a dar preciosos passos e, por último, à minha família que adoro: à Laurinda e ao Daniel, o meu beijinho de sempre pela paciência, apoio e disponibilidade para tudo o que foi necessário.

palavras-chave Grande Duo Concertante, voz humana, clarinete, Weber, ópera.

resumo O presente trabalho propõe-se averiguar até que ponto Weber utilizou o universo operático como paradigma na composição do Grande Duo Concertante. Concluímos, tanto pelo estudo das obras para clarinete e das óperas, bem como pela análise, que o Grande Duo Concertante, terá funcionado como antecipação da experiência operática conseguida com “Der Freischütz” e com as obras posteriores. Tanto mais que a produção para clarinete coincide com o interregno na produção operática do compositor.

keywords Grand Duo Concertant, human voice, clarinet, Weber, opera.

abstract The purpose of this study is to explore how Weber used the operatic universe as a model for the creation of his “Grande Duo Concertante”. Study of the clarinet works and the operas, as well as analysis, led us to the conclusion that the “Grande Duo Concertante” worked as an anticipation of the operatic experience of “Der Freischütz” and later operas. Worth to notice that the clarinet works are composed during a halt in Weber’s operatic output.

ÍNDICE INTRODUÇÃO 1

1 – WEBER: ESBOÇO BIOGRÁFICO E FORTUNA CRÍTICA 4 1.1 - Esboço biográfico 4 1.2 – Weber: notas para um estudo de recepção 8

2 – O CLARINETE NO TEMPO DE WEBER 12 2.1 - O instrumento 12 2.2 - O clarinetista e companheiro de estrada de Weber 16 2.3 - As obras de Weber para clarinete 22 2.3.1 - Concertino para clarinete (J. 109). 1811. 24 2.3.2 - Concerto para clarinete nº 1 em Fá menor (J. 114). 1811 26 2.3.3 - Concerto para clarinete nº 2 em Mi b maior (J. 118). 1811. 28 2.3.4 - Melodia sem acompanhamento, para clarinete (J. 119). 1811. 29 2.3.5 - Sete Variações sobre um tema de Silvana, para clarinete e piano (J. 128). 1811. 30 2.3.6 - Quinteto para clarinete e cordas (op. 34: J. 182). 1815. 31

3 - O GRANDE DUO CONCERTANTE 34 3.1 – Grande Duo Concertante, para piano e clarinete (op. 48:J. 204). 1816 34 3.1.1 - A escrita instrumental 39 3.2 - Análise detalhada 42 3.2.1 - 1º Andamento 42 3.2.2 - 2º Andamento 52 3.2.3 - 3º Andamento 58 3.3 - Visão geral 64 3.3.1 - Percurso da obra 64 3.3.2 - Considerações interpretativas 65 3.3.2.1 - Omissões e correcções 71 3.3.2.2 - Acentuações e articulações 73 3.3.2.3 – Trilos 75 3.3.2.4 – Fraseado 76 3.3.2.5 – Agógica 79

3.3.2.6 - Cores e timbres 81

4 - A ÓPERA COMO PARADIGMA 83 4.1 - O papel de Weber na Ópera Romântica Alemã 83 4.1.1 - Der Freischütz 87 4.1.2 - Euryanthe 94 4.1.3 - Oberon 98 4.2 - A escrita vocal operática no tempo de Weber 101 4.2.1 – A opéra comique 101 4.2.2 - O bel canto 103 4.2.3 - O Volkslied 104 4.2.4 - A síntese weberiana 106 4.3 - Constantes expressivas nas obras consideradas 107

CONSIDERAÇÕES FINAIS 111

BIBLIOGRAFIA 113

ANEXOS: Grande Duo Concertante 117

INTRODUÇÃO

O objecto deste estudo é averiguar até que ponto Weber utilizou o universo operático como paradigma na composição do Grande Duo Concertante . Weber, parente afastado de Mozart, utilizou o clarinete na sua obra de forma magistral levando-o a atingir a sua magnitude e, ao explorá-lo de uma forma hábil e inteligente, revelou toda a sua força expressiva, timbre, agilidade e capacidades virtuosísticas. Tendo sido amigo do clarinetista Heinrich Bärmann, dedicou-lhe seis obras: dois concertos, um concertino, um quinteto para clarinete e quarteto de cordas, umas variações para clarinete e piano e, por último, um grande duo concertante 1. Weber foi um romântico nacionalista, cuja escrita era virtuosa, alegre e calorosa. Fiel a si mesmo, as obras para clarinete têm a ópera sempre presente. Por vezes, o clarinete canta e a massa orquestral, ou simplesmente o piano, fazem-se ouvir qual público em exclamações vigorosas. Como uma diva, o clarinete, estimulado, solta-se em variações cada vez mais brilhantes e é nos segundos andamentos, com as oposições dos registos, que é posto mais em evidência o carácter vocal do clarinete. Weber inspirou-se na ópera, que era a sua vida. A voz humana terá influenciado a escrita do compositor para clarinete? Pensamos que muitas vezes escreveu para clarinete como se da voz humana se tratasse e vamos tentar provar a nossa suspeita de que a sua estreita ligação à ópera condicionou a escrita do “Grande Duo Concertante”; escrita essa que teve um papel importante na projecção do clarinete como instrumento romântico por excelência.

1 Existe, além destas, uma obra editada como sendo de Weber: Cit. in John Warrack, , 1987, p.186. «Une œuvre intitulée Introduction, Thème et Variations pour clarinette et quatuor à cordes, publiée dans différents éditions modernes et censée avoir été composée pour Bärmann en 1815, est un faux».

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Toda a produção de Weber com clarinete antecede as suas três maiores criações operáticas (Der Freischütz, Euryanthe e Oberon ). Escolhemos o Grande Duo Concertante como obra de referência porque será, talvez, a mais madura das suas obras de música de câmara. De qualquer forma é a única em que os intervenientes, clarinete e piano, são ambos protagonistas e com iguais direitos do discurso musical. De prima dona , o clarinete converte-se em primum inter pares . Assim, embora modestamente, esperamos que este trabalho seja um contributo para clarificar algo mais sobre este nobre compositor e que a procura de respostas abra novos horizontes a concepções diferentes e melhoradas, tendo em vista a interpretação deste compositor à luz das conclusões finais. Será importante também que algumas das questões levantadas e não resolvidas neste trabalho de investigação, sirvam de motivação para um olhar mais atento para a obra do compositor, no nosso século, ainda insuficientemente conhecido. A metodologia que presidiu à elaboração da dissertação foi a seguinte: a) Estudo e análise da bibliografia sobre o compositor, a sua obra e a sua época, procurando seleccionar elementos relacionados com o tema proposto. Estes serão de natureza histórica, biográfica e analítica. b) Análise de partituras, nomeadamente das três mais importantes óperas de Weber e da produção com clarinete, em particular o Grande Duo Concertante , com o objectivo de situar e identificar na sua escrita paradigmas susceptíveis de ser objecto de um trabalho comparativo. c) Esboço de trabalho comparativo segundo categorias técnicas, interpretativas e estéticas contemporâneas do compositor. d) Breve reflexão das implicações destes na praxis interpretativa. De acordo com estas orientações metodológicas decidiu-se dar a seguinte estrutura à dissertação: 1º Capítulo: Neste capítulo, composto por duas alíneas, o compositor é apresentado através de uma sucinta biografia. Não é objectivo explorar exaustivamente toda a sua vida, mas sim nomear as

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fases mais relevantes para o seu percurso como criador, com o objectivo de possibilitar uma melhor compreensão da sua obra. Na segunda alínea será esboçado um estudo de recepção da obra do compositor. 2º Capítulo: As várias alíneas deste capítulo, dão espaço à abordagem do percurso evolutivo do clarinete e da sua importância como emissor de som com um timbre tão próprio, além de referenciarem Bärmann como o clarinetista preferido de Weber e inspirador das suas obras para clarinete. Assim, pretende-se evidenciar a lentidão com que o clarinete se impôs e a importância vital de compositores como Mozart e Weber, bem como dos instrumentistas virtuosos que, em conjunto, foram responsáveis pelo lugar ocupado hoje pelo clarinete. É também analisado o acervo da produção clarinetística de Weber. 3º Capítulo: O Grande Duo Concertante é apresentado e todos os elementos julgados relevantes para a sua compreensão são, no mínimo, mencionados. A temática sonata versus concertante, é explorada no sentido da compreensão da obra em termos de identidade e conteúdo. Uma abordagem analítica, num quadro que se pretende elucidativo e claro, corrobora as ideias lançadas no texto das alíneas deste capítulo, após a exposição de uma análise detalhada. 4º Capítulo: As suas três óperas de maturidade são apresentadas e comentadas em alíneas separadas e são investigados os paralelos musicais e dramáticos, de modo a poder elucidar os aspectos interpretativos do Grande Duo Concertante.

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1 – WEBER: ESBOÇO BIOGRÁFICO E FORTUNA CRÍTICA

1.1 – Esboço biográfico

Cf. James Galway, Music in Time, 1982, p. 170.

Carl Maria Friedrich Ernest von Weber nasceu no dia 18 ou 19 de Novembro de 1786, em Eutin, no Holstein, e faleceu a 5 de Junho de 1826, em Londres, vitimado pela tuberculose. O seu corpo foi repatriado

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para Dresden, a 15 de Dezembro de 1844, tendo, nessa ocasião, Richard Wagner tecido o seu elogio fúnebre 2. «La voix, la scène, l’opéra, sont chez Weber une histoire de famille»3. Efectivamente, Franz Anton Weber (1734-1812 ), pai de Carl Maria, foi soldado, maestro e empresário de uma companhia teatral, cujos membros eram, na sua maior parte, familiares, exercendo tal influência na vida do filho que, aos doze anos de idade 4, este produziu a sua primeira obra: Seis Fuguettas para piano. O seu avô paterno, Fridolin Weber, tinha sido cantor, violinista e organista. Fridolin II, irmão mais velho de seu pai, também foi violinista, cantor e progenitor de Constança, (prima direita de Carl Maria), com quem Mozart veio a casar. A mãe foi Genovefa Brenner (1764-1798), segunda mulher de Franz Anton 5. Desde pequeno, Weber respirou o ar do teatro. Foi aluno de Michael Haydn (1737-1806) 6 e de (1749-1814)7, através do qual Carl Maria se integrou na sociedade musical de Viena. As lições com Vogler consistiam basicamente na análise das suas obras e deram a Weber algo que lhe foi muito útil e talvez decisivo para a sua carreira «(...)a method for understanding the aesthetic reasons for compositional procedures(...)»8. Apesar de estes terem sido os nomes

2 Cf. Tranchefort, François-René, Guia da Música Sinfónica, 1998, p.853. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, pp. 115,116. 3 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p.10. 4 Decorria o ano de 1798. 5 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, pp. 10, 11. Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 135. 6 Compositor austríaco, irmão de Franz Joseph Haydn. 7 Conhecido como Abbé ou Abt Vogler. Foi organista e fabricante de órgãos, compôs óperas e música sacra e teve muitos discípulos famosos, entre os quais Weber e Meyerbeer. Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997, p.641. 8 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 136.

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mais relevantes para a sua formação, também trabalhou com Johann Peter Heuschkel (1773-1853) 9, Valesi 10 e Johann Nepomuk Kalcher 11 . Em 1798-99, nasce a primeira ópera de Weber (desaparecida), Die Macht der Liebe und des Weins , e a segunda, Das Waldmädchen, em 1800, tinha o compositor 14 anos. Peter Schmoll und seine Nachbarn foi a terceira. Em 1804, e durante dois anos, enquanto mestre de capela do teatro de Breslau, Weber não perdeu oportunidade de juntar ao seu passado de vida errante e repleta de peripécias, outros hábitos de vício, onde mulheres, bebidas, orgias e noites de deboche constituíam a ordem do dia. Certa vez bebeu ácido por engano, arruinando a sua bela voz que fascinava o célebre Valesi. No entanto, no seu métier , demonstrava um sentido apurado de competência e disciplina. E, apesar da resistência do público, habituado aos maciços efeitos sonoros que resultavam da disposição das orquestras e combatendo as intrigas dos músicos e afins, o compositor impõe uma reforma da orquestra, criando a disposição orquestral moderna, com os instrumentistas colocados nos lugares que, grosso modo, ocupam hoje. Assim, nenhum instrumento seria ineficaz e os instrumentistas teriam, todos eles, contacto visual com o maestro. Impôs uma disciplina de ferro à sua orquestra, sendo o protótipo do maestro moderno e como virtuoso do piano, “tocava” a orquestra como se fosse um só instrumento. Entre 1807, ano em que escreveu as suas duas primeiras sinfonias, e 1810, o compositor esteve preso em Stuttgart, por desfalque e acaba por ser expulso daquela localidade. De 1808 a 1810, criou e concluiu a sua ópera Silvana. Antes de 1810, pouco se sabe da vida de

9 Foi o seu 1º professor, após a “instrução” familiar e antes de Michael Haydn. Era organista, oboísta e maestro de nomeada, que disciplinou e aumentou os conhecimentos de Weber como pianista. 10 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp. 28, 29. Johann Evangelist Wallishauser, conhecido pelo nome italiano de Valesi. Trabalhou com Weber como professor de canto. 11 Do trabalho de composição com Kalcher, resulta a primeira ópera de Weber: Die Macht der Liebe und des Weins. Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p. 29.

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Weber. É mais conhecida a do seu progenitor, que tinha reivindicado para si o título de barão e o von nobiliárquico, reclamando-se pretenso descendente de uma importante e extinta família Austríaca. Sabe-se que Weber era uma criança fraca, débil e doente, que coxeava devido a um problema congénito na anca. A sua infância e personalidade foram, como é óbvio, largamente influenciadas pelo meio e circunstâncias da vida, numa época complexa, com guerras, bem como transformações sociais e intelectuais, em que o público buscava escape e diversão. O compositor, ciente destas necessidades, dirigiu a sua atenção para as classes média e burguesa, então em ascensão 12 . Em 1811, Weber conheceu aquele que viria a influenciar decisivamente a sua escrita para clarinete: Heinrich Bärmann 13 . Foi o começo de uma grande amizade que duraria toda a vida. Nesse mesmo ano, além da estreia do Singspiel Abu Hassan , em Munique, nascem, dedicadas ao seu novo amigo, as suas primeiras obras para clarinete: o Concertino , os primeiro e segundo concertos e as variações sobre um tema da ópera Silvana , para clarinete e piano. De 1812 a 1815, o compositor esteve afastado de Bärmann e, após este período, são elaborados novos projectos com o clarinetista. É também em 1812, com 26 anos, que o compositor sente os primeiros sintomas de tuberculose. Em 1815, Weber compõe o seu Quinteto para clarinete e cordas e dois andamentos do futuro Grande Duo Concertante , que viria a ser concluído no ano seguinte. Weber foi maestro de capela e director da ópera em Praga, de 1813 a 1816, e em Dresden, de Janeiro de 1817 a 1826. Ainda em Praga, a 4 de Novembro de 1817, Weber casa com a cantora Caroline Brandt 14 , sendo um marido e mais tarde, um pai, exemplar e respeitável. Quanto aos anos passados em Dresden, o compositor envolveu-se em conflitos vários com tudo e todos. Foi uma

12 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 135. 13 Para informação mais completa sobre Bärmann, consultar capítulo 2, alínea 2.2. 14 Para informação mais completa sobre Caroline Brandt, consultar capítulo 2, alínea 2.2.

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época violenta e amargurada em que Weber se defendeu e combateu todas as vicissitudes com cartas abertas, manifestos, críticas, etc. 15 . Esta mesma personalidade, levou-o a cultivar o virtuoso, o mais expressivo, enquanto pensava sempre na sala de concertos e os seus finais eram sinónimos de bravura, constituindo-se como autênticas apoteoses de virtuosidade e cor. No ano em que casou, Weber começa a compor a ópera que viria a ser a sua obra-prima, terminando-a a 13 de Maio de 1820. Trata-se de Der Freischütz . Nesse mesmo ano, Weber, compõe também o Singspiel Die drei Pintos , que virá a ser acabado por Mahler em 1887-1888. É notório o facto de, após conhecer Bärmann, ter havido um interregno na sua criação operática. Efectivamente, só após ter composto toda a sua obra para clarinete é que Weber escreveu o Singspiel Der Freischütz . No dia 25 de Abril de 1822, nasce o seu filho Max Maria e é nesse ano que o compositor começa a sua ópera Euryanthe , que estreia a 25 de Outubro de 1823. Em 12 de Abril de 1826, Weber apresentou em Londres a sua última ópera, Oberon e, já muito debilitado pela tuberculose, morre passados três meses, com 40 anos. Em 1827, morre Beethoven e no ano seguinte, Schubert. É curioso notar que Weber compõe as suas três obras-primas em datas com factos assinaláveis, como o seu casamento, o nascimento de seu filho e a sua última ópera no ano em que, já debilitado, faleceu.

1.2 – Weber: notas para um estudo de recepção

Weber parte, mas fica todo o seu legado. Na sua época, a canção e a ópera imperavam em relação à música puramente instrumental, em geral, e à sinfonia em particular, porque se pretendia «la unidad total del texto y la música, el equilibrio perfecto entre la línea vocal y el acompañamiento» 16 . Assim foi na ópera que Weber se revelou com toda

15 Cf. Alfred Einstein, La música en la época romántica , 1991, p.112. 16 Cf. Alfred Einstein, La música en la época romántica , 1991, p.79.

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a sua genialidade e a Alemanha deve-lhe isso mesmo: a ópera alemã. Quanto ao resto do mundo, será sempre a sua casa, tal como ele próprio escreveu: «Le champ d’action de l’artiste c’est le monde» 17 . Apesar da grande divulgação e prestígio de algumas das obras do compositor alemão, comparativamente a outros com igual importância na História da Música, Weber é, infelizmente, um dos menos compreendidos e conhecidos. De facto, em inícios do século XXI, ainda não possuímos uma edição crítica completa da obra deste compositor, embora desde 1990, sob a protecção e responsabilidade da Internationalen Carl-Maria-von-Weber-Gesellschaft , se esteja a levar a efeito tal empreendimento; este engloba não só as partituras mas também os escritos, diários e correspondência. A maior parte da música anterior a 1802 encontra-se perdida, o que impossibilita conhecer-se com clareza a origem e desenvolvimento do seu estilo. Os documentos de todo o seu processo composicional também não ajudam muito, porque o compositor destruía os seus esboços quando já não precisava deles. «Exactly how one can best discuss his music therefore remains an important issue for study» 18 . É, sobretudo, ouvindo as obras de compositores que se seguiram a Weber, que se torna aparente a profunda influência da sua música. Agindo retrospectivamente e começando por escutar as óperas de Weber, logo elas soam familiares relativamente a passagens de outras mais conhecidas de compositores posteriores e que, pela sua grandeza, são uma mais-valia para uma avaliação correcta, ainda por fazer, do compositor. «Weber est devenu père de cette “école romantique” à laquelle nous devons noter Berlioz, Wagner, et plus près de nous Richard Strauss»19 . Estas teriam sido afirmações de Debussy, já ele sensível ao facto de existir tanto de Weber em obras sobejamente conhecidas de outros, enquanto do compositor são tocadas pouco mais

17 Cit. in Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 55. 18 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 148. 19 Cit. in Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 99.

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do que as aberturas. Disse, também, este compositor e admirador de Weber que: «Il examine l’âme de chaque instrument et la révèle d’une main délicate. Pleins de déférence pour ses ressources, ils lui livrent plus qu’il ne semble leur demander. Aussi les combinaisons les plus audacieuses de son orchestre, aux moments où il se fait le plus délibérément symphonique, parviennent-elles en particulier à conserver à la qualité sonore sa qualité d’origine; ces couleurs superposées sans mélange et dont les réactions mutuelles accentuent plus qu’elles ne détruisent leur individualité» 20 . Além de Debussy, no século XX, Stravinski foi outro compositor que se revelou como importante defensor da música de Weber, devido ao facto de serem «(...)composers whose own distance from the predominantly symphonic style of 19th-century music allowed them to appreciate Weber’s art on its own terms»21 . Por outro lado, a contribuição criativa de Wagner e outros mestres, após Weber, mesmo inspirados por este, levaram ao obscurecimento do criador e das obras que os inspiraram. Também Beethoven é tido como modelo a seguir para a música instrumental e os lieder de Schubert como o modelo correspondente para a canção alemã, resultando no progressivo relegar para segundo plano das criações de Weber nessas áreas. «The decline of Weber’s reputation and the disappearance of much of his music from the repertory also need to be studied, although one may provisionally suggest some reasons for these»22 . Há a tendência, quase que imediata, ao falar-se de Weber, em o relacionar com a criação de Der Freischütz , ou, no caso de instrumentistas, com alguma obra dedicada aos seus instrumentos. Por outro lado, os cantores conhecem pelo menos uma ária ou outra. As

20 Cit. in John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.252. 21 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 158. 22 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 158.

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aberturas das suas óperas vão sendo interpretadas, por vezes sem ser dada a devida importância ao facto de terem aberto as portas, no século XIX, à poesia como característica das aberturas de concerto ou aos poemas sinfónicos. De facto, no panorama actual, este compositor permanece, por razões pouco explicadas, escassamente interpretado e parcialmente editado, sendo difícil perceber qual dos factos é causa ou consequência do outro. Assim, à parte alguns “clássicos” conhecidos, obras determinantes para o conhecimento do seu estilo e carácter continuam a ser ignoradas do grande público. Weber compôs um acervo diversificado de obras que, ainda hoje, por motivos vários, não se encontram ao alcance do comum dos mortais. A sua obra é, toda ela, uma relação entre os palcos, a voz humana e a música em si mesma, merecendo ser divulgada. Toda a sua obra musical, dramática, popular, operática e teatral, contém, com os seus efeitos e elegância, a capacidade de revelar a importância que realmente e, sem dúvida, este compositor pode e deve ter. É louvável a forma de Weber compor, em função da sua própria identidade e fugindo aos parâmetros habituais da época em termos de cor orquestral, estrutura dramática e utilização da harmonia. Podia ter escrito para as massas, isto é: para todos, mas não. Ele tentou formar o seu próprio público, elevando a sua arte a um nível superior. Dando o mote a Wagner, trabalhou no trajecto que levou à obra de arte total. «For Berlioz, Weber’s music was a revelation that helped him find his own way to originality» 23 . O compositor estava perfeitamente convicto, de que haviam obras para serem executadas e ouvidas em boa companhia, de uma forma íntima e recatada e outras para os grandes palcos, onde as massas orientadas pelo seu pensamento revolucionário fluíam mentalmente na compreensão conjunta das suas criações.

23 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 158.

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2 – O CLARINETE NO TEMPO DE WEBER

2.1 – O instrumento

É provável que, durante séculos, civilizações diferentes tenham conhecido diversos instrumentos de palheta simples e dupla. Numerosos chalumeaux 24 de palheta simples foram utilizados; Denner 25 e os seus contemporâneos seguramente os conheceram todos muito bem. O chalumeau não se transformou em clarinete. O «chalumeau perfectionné»26 por Denner em 1690 deu lugar à invenção engenhosa do clarinete, cerca de 1700. «Elle est (…) le seul instrument de la famille des bois qui ait été inventé; elle n’est pas à proprement parler le résultat d’une évolution» 27 . Esta afirmação pode ser discutível. De facto, cada um dos outros instrumentos teve altos e baixos; com certeza, houve descobertas que alteraram as suas características e as suas possibilidades. No entanto, todos os acontecimentos decisivos não têm nada de comum com o clarinete de Denner, visto que os outros instrumentos já existiam e tinham evoluído ao longo dos tempos. «Les mots “clarinet” et “Chalumeau” ont dû être confondus pendant de nombreuses années(…)»28 . Efectivamente o clarinete foi ganhando o seu espaço e, na primeira metade do séc. XVIII, já preenchia um lugar importante no espectro orquestral, completando o naipe das madeiras e oferecendo aos compositores um novo timbre, um novo colorido. Esta é uma das suas mais importantes funções no seio

24 Chalumeau (fr.). Instrumento simples e rústico de palheta que ao ser aperfeiçoado por Denner deu origem ao clarinete. Tinha 6 a 8 orifícios. O termo também é aplicado à charamela. 25 Denner, Johann Christoph (n. Leipzig, 1655; m. Nuremberg, 1707). Construtor de instrumentos e inventor do clarinete. 26 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p.28. 27 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p. 27. 28 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p.33.

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da orquestra e Weber, sem dúvida alguma, reconheceu-lhe essa capacidade. Data de 1730 a primeira menção ao clarinete e a Denner, na obra de J.-S. Doppelmeyer, Historische Nachricht von den Nürbürgischen Mathematicis und Künstlern (1730) . Refere que «(…) Au début de ce siècle, il [Denner] inventa (sic)(….)une nouvelle sorte de chalumeau, la clarinette»29 . Assim, o instrumento inventado por Denner no começo do século XVIII é considerado como um simples melhoramento do chalumeau e só mais ou menos a meio desse século é que o uso do clarinete se generalizou 30 . Em 1740, António Vivaldi já tinha composto três concerti grossi para clarinete com duas chaves. No ano de 1747, Johann Melchior Molter, escreveu para clarinete em ré, com três chaves e, em 1748, Haendel escreveu para clarinete em ré. Embora a escrita seja mais ao estilo fanfarra, já existem algumas passagens líricas. Entre 1760 e 1770, J. S. Bach escreve para clarinete mas as tonalidades dominantes (mi e si bemóis), sugerem, pela sua monotonia, que o compositor teria integrado essas obras no meio do seu trabalho composicional e assim sem qualquer destaque especial. Na mesma época, Johann Stamitz compôs para clarinete e, o seu filho, Karl Stamitz, bem como os compositores Ernst Eichner e Georg Fuchs, compuseram para os membros da orquestra de Mannheim, formação em que o clarinete participa pela primeira vez de forma regular. « Il est presque certain qu’à partir de 1759, l’orchestre de Mannheim employait deux clarinettistes. Tous deux jouaient (…) de la clarinette à trois clés(…)»31 . Apesar disso, os clarinetistas tocavam também oboé e só em 1778 é que os clarinetistas o passaram a ser em exclusivo32 . Haydn, na sua obra sinfónica de mais de cem peças, utiliza o clarinete apenas em cinco delas. Mozart utiliza-o em quatro sinfonias. A

29 Cit. in Jack Brymer, Clarinette , 1979, p. 28. 30 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, pp.27 e 28. 31 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p.40. 32 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, pp.38, 39 e 40.

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lentidão com que este instrumento se impõe na orquestra é notória. O uso do clarinete começa realmente a desenvolver-se após a resolução dos vários problemas técnicos que resultavam numa intonação instável e num timbre inconsistente. É de referir a importância dos virtuosos clarinetistas que, pela sua capacidade e competência, inspiraram compositores e os interpretaram. «Mozart a composé son (...) quintette à cordes en sol mineur pour le son du Stradivarius. Comment imaginer alors qu’il ait écrit son magnifique quintette avec clarinette pour un instrument incapable de produire un son aussi admirable(…)?»33 .Mozart compôs para um Stradivarius e, por outro lado, para clarinete, um instrumento ainda tão imperfeito, desafinado e com algumas notas descoloridas como era o clarinete com as suas cinco chaves e todas as dificuldades técnicas daí inerentes. Isso só seria aceitável acreditando que os clarinetistas eleitos pelos compositores como Mozart, Weber, Spohr, etc, que escreveram todos para instrumentos de cordas de perfeição inigualável ainda nos nossos dias, eram geniais e os compositores sabiam-no. Não escreveriam para um instrumento como o clarinete que tinha uma intonação lúgubre, imperfeita e com defeitos mecânicos que resultariam na omissão de algumas das melhores passagens se os clarinetistas não conseguissem superar todos esses obstáculos, elevando a sonoridade do clarinete ao lugar inspirador e privilegiado, superável somente pela voz humana. Weber escreveu para um clarinete com dez chaves 34 , propriedade de Bärmann e fabricado por «(...)Griesling & Schlott, à Berlin»35 que já permitia tocar de uma forma ágil e igual, como resultado de um novo ideal de som. Desde 1808, que o clarinetista Bärmann tocava com este instrumento, o que era pouco habitual, atendendo ao facto de que em

33 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p. 42. 34 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber, 1968, p. 134; Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p. 51. 35 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68.

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1833, o clarinete, ”normalmente”, tinha cinco, seis ou, no máximo, sete chaves 36 . Em 1812, Ivan Müller, nascido na Rússia e vivendo em Paris, apresenta a sua criação: um clarinete de 13 chaves. Pretendia que o seu clarinete, pela forma como estavam dispostas as chaves, pudesse tocar em todas as tonalidades confortavelmente. No entanto, o clarinete de Bärmann tinha 10 chaves, o virtuoso finlandês utilizava um de onze chaves e para conseguir tocar os concertos de Spohr, Hermstedt teve que passar de cinco chaves que tinha o seu clarinete, para treze. Em todo o caso, todos estes clarinetes estavam menos avançados tecnicamente que o de 13 chaves de Müller 37 . O curioso é o clarinete de Müller ter sido reprovado pelo Conservatório de Paris, exactamente porque podia tocar em todos os tons (modulação). A razão de tal opinião residia no facto de que cada diferente clarinete tinha também um diferente carácter musical e uma sonoridade ligada à sua tonalidade. Isto teria lógica, não fosse o hábito de os clarinetistas utilizarem os diferentes clarinetes em função da facilidade que lhes proporcionava a sua tonalidade e a da obra que tinham de tocar. No entanto, o tempo, a evolução estilística e a capacidade clarinetística de Müller estavam a seu favor e ele prova, apresentando-se em público a executar obras difíceis com o seu clarinete, que a importância da sua “criação” era real. Ele foi importante na evolução do clarinete e o fabrico alemão é directamente inspirado na sua obra 38 . Com efeito, ainda hoje os alemães utilizam o sistema Müller. Estes clarinetes, devido às suas características de construção, emitem um som mais compacto, velado, surdo, escuro, etc., que segundo está mais ou menos convencionado e aceite, serve melhor a interpretação de música alemã 39 .

36 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p. 49. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68. 37 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p. 51. 38 Cf. Jack Brymer, Clarinette , 1979, p. 52. 39 Cf. Guy Dangain, A propos de la clarinette, 1991, p. 42.

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Cf. Guy Dangain, A propos de la clarinette, 1991, p.10.

2.2 – O clarinetista e companheiro de estrada de Weber

Heinrich Joseph Bärmann, nascido em Potsdam em 1784 e falecido em Munique em 1847, foi o destinatário das obras para clarinete feitas por Weber. Joseph Beer (1744-1811) dá origem ao estilo alemão (aveludado, rico e de sonoridade ampla, em contraste com o som estridente e brilhante do estilo francês). Assim como Stamitz escreveu para Beer, Mozart para Stadler, Spohr para Hermstedt, Weber escreveu para Bärmann 40 . Weber conheceu o clarinetista e a sua simpatia e capacidade virtuosística foram factores de aproximação. «La rencontre des deux hommes à en 1811, fit naître six œuvres destinées à mettre en

40 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.134. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 67.

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valeur tout le potentiel de virtuosité de l’artiste ainsi que les qualités de timbre de son instrument(…)»41 . Heinrich Bärmann era o clarinetista principal da Orquestra da Corte de Munique 42 , cujo maestro era Peter Winter 43 e foi compositor de pelo menos 38 obras de estudo para clarinete e um Concertino Op. 24. Ele compunha especialmente obras que incluíssem clarinete, o seu instrumento 44 . Serviu na Banda Militar em Postdam e era um virtuoso com uma maturidade técnica que impressionou Weber. É facto que o seu clarinete dispunha de dez chaves, o que permitia a Bärmann tocar passagens que Mozart nunca exigiria de Anton Stadler, além de que a passagem de uns registos para os outros era mais exequível, permitindo o domínio de passagens cromáticas e das notas sobreagudas 45 . Assim, sobre Bärmann, escreveu Warrack, salientando «(...)sa célèbre agilité(...)sa sonorité chantante et son phrasé(…)son aisance évidente dans les gammes chromatiques(…)»46 . Esta parceria, importante para a obra de Weber e para a evolução do clarinete, foi uma mais-valia no conhecimento que o compositor teria do instrumento, porque, aconselhado por Bärmann, escreveu para um tipo de clarinete mais aperfeiçoado e de dedilhação mais ligeira do que o de Stadler, utilizando com carácter todos os registos, incluindo as notas do sobreagudo, visto estas não oferecerem grande dificuldade, tanto ao clarinetista como ao instrumento 47 . Ele era conhecido pela sua agilidade, pela sua sonoridade cantante e pelo seu fraseado 48 . Foi aluno

41 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68. 42 Cf. Michael Kennedy, Dicionário Oxford de Música , 1994, p.62. 43 Orquestra do Hofbühne (Teatro da Corte) onde Bärmann tocava. Era dirigida por Peter Winter que tinha sido violinista na orquestra de Mannheim. Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.133. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68. 44 Cf. Juan Vercher Grau, El Clarinete , 1983, p. 94. Cf. Michael Kennedy, Dicionário Oxford de Música , 1994, p.62. 45 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68. 46 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.186. 47 Cf. Juan Vercher Grau, El Clarinete , 1983, p. 96. 48 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.186.

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de Joseph Beer e de Franz Tausch, tendo aprendido do primeiro, todo o seu charme sonoro e, do segundo, a sua destreza 49 . Weber encontrou no clarinete de Bärmann vivacidade e som timbrado ao estilo francês, conjugado com a sonoridade ampla alemã, velada e rica, resultando na conveniente melancolia romântica, sem deixar de ter a capacidade de exprimir os seus sentimentos de forma brilhante mas sem agressividade, tal como requeria o temperamento do compositor 50 . «Le son voluptueux et velouté de Baermann contrastait avec le style plus “perçant” et plus clair des Français et de la plupart des clarinettistes de sa génération» 51 . Apesar da ideia geral de que foi Bärmann o destinatário da totalidade da criação para clarinete de Weber, há algumas opiniões que lançam a suspeita de que o Grande Duo Concertante poderia ter sido escrito para Hermstedt, ou que, numa primeira fase, enquanto só com dois andamentos, poderia ter sido estreado por ele. É curioso notar que estas hipóteses figuram em capas de CD’s ou em programas de concerto e sempre lançam somente a suspeita, sem nunca apresentarem qualquer tipo de argumentação comprovativa. De facto, Hermstedt, em 1815 deu um concerto em Praga, para o qual Weber escreveu um Lied du Savoyard e um andamento de concerto, ambos dados como perdidos. Estas teriam sido as obras que terá interpretado e não há absolutamente nenhuma referência à execução do Duo 52 . Por outro lado, segundo a investigação levada a efeito, suspeitamos que a conclusão final será a de que esta obra foi escrita e estreada por Bärmann. Assim temos que, em Agosto de 1815, Weber estava alojado em Praga na casa deste 53 , «C’est durant ce séjour qu’il

49 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68. 50 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.134. 51 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68. 52 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.183. 53 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.185. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 71.

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compose le Grand Duo Concertant (...)»54 .Ele toca para o rei e rainha de Nymphenburg, perante o genro de Napoleão. Dá também um concerto público onde é executado o seu Primeiro Concerto para piano; e os 2º e 3ºandamentos 55 , recentemente compostos 56 , do que viria a ser, com a junção do 1º andamento em Novembro de 1816, o Grande Duo Concertante 57 . Na última edição conhecida do Grande Duo Concertante , datada de 2005, com base na documentação manuscrita e litografada existente 58 , da edição Schott Musik International, segundo o texto da WeGA, editado por Knut Holtsträter, é referido na apresentação que precede a obra, que esta foi composta em colaboração com Bärmann. Segundo o que Weber terá escrito no seu diário, os dois virtuosos teriam ensaiado o último andamento, primeiro a ser composto, em 8 de Julho de 1815. Entretanto na noite de 11 de Julho o 2º andamento teria sido esboçado e 18 de Julho, teria sido a data em que os dois músicos, numa casa privada, estrearam o rondo. A primeira execução dos dois andamentos teve lugar no dia 2 de Agosto no Hoftheater de Munique. O esboço e o completar do 1º andamento (último a ser composto), foi em 1816, tal como consta, também, do diário do compositor. Seis meses mais tarde a obra foi publicada por Schlesinger. Ao consultar-se a página 185 do livro de Warrack, tudo aponta, também, para que tenha sido Bärmann o destinatário desta obra. Reforça esta ideia o facto do autor, após mencionar o Grande Duo Concertante , ainda com dois andamentos; referir estar-se em Agosto e Weber alojado em casa do clarinetista e nomear o evento do concerto público dado por Weber, relata ainda que: “Para Bärmann ainda , Weber

54 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 71. 55 Max Maria, filho de Weber, chamava-lhes Duo para piano e clarinete. 56 Compostos em Julho de 1815. Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp.185 e 198. 57 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.185. 58 Existem a cópia a limpo na Biblioteca do Congresso em Washington, datada de 6-6- 1815, a prova de gravação (litografia), na Stadt- und Landesbibliothek de Viena e em Berlim, as edições de Adolph Martin Schlesinger.

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acaba... em 25 de Agosto...o Quinteto para clarinete (op. 34: J. 182)...” 59 . Pensamos ser inquestionável o facto de, aquando da composição dos dois andamentos, tanto o clarinetista como o compositor estarem bem perto um do outro: «In summer 1815 Weber spent most of his leave in Munich reunited with Baermann»60 . Nessa altura, o compositor tinha rompido recentemente o seu relacionamento com Caroline Brandt que durava desde 1814 e, em Junho de 1816, reconciliaram-se acabando por casar em 1817 61 . Entretanto, neste contexto de ruptura, (1815-16), no verão, na sua estadia em Praga, o compositor não teve grande motivação para compor e, quando finalmente o fez, escreveu os dois andamentos do que viria a ser o Grande Duo Concertante , para ele e para Bärmann, «(...)he eventually began to compose again, writing two movements of the Grand duo concertant for Baermann and himself(...)»62 . É também lógico e provável que, após todo o trajecto em conjunto dos dois intervenientes, perante a amizade que os ligava, as estradas que percorreram juntos e estarem ambos na mesma casa, que Weber não iria dedicar o Grande Duo Concertante a outro clarinetista, «Les liens qui unissaient les deux artistes ne cessèrent qu’avec la disparition du compositeur»63 . De facto, eles desenvolveram uma forte amizade e, colaborando um com o outro, vão de Viena a Praga (1813), Itália (1815- 1816), Paris (1817 e 1838), Londres (1820 e 1839), Rússia (1822-1823) e (1832-1833) e países nórdicos como Dinamarca e Suécia (1827) 64 . «Au cours de ses nombreux et très fréquentés concerts, il [Bärmann] ne

59 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.185. 60 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p.139. 61 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p.139. 62 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p.139. 63 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 72. 64 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68.

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cessa de défendre les œuvres de Weber»65 . Além disso, «d’après le journal intime de Weber», fala-se de cerca de 600 cartas, pelos menos, que teriam trocado entre eles, entre 1811 e 1826 e onde se pode ler que, quando Weber já minado e debilitado pela tuberculose se deslocou a Londres por causa do Oberon (1826), o clarinetista fez questão de o acompanhar, provando assim também a sua amizade e preocupação com a saúde do seu “compositor” 66 . Posto isto, seria pouco provável, ou até impensável que um outro clarinetista fosse chamado a fazer a estreia desta obra, com o próprio Weber ao piano e, dadas as circunstâncias e ausência de informação de qualquer zanga entre os dois, não seria de esperar que o compositor fizesse a passagem de testemunho para Hermstedt, como estreante de uma obra sua, com ou para clarinete. É também de referir que não seria por falta de tempo do compositor ou do clarinetista, que o Grande Duo Concertante seria entregue a Hermstedt, visto Weber nessa mesma altura, em que se encontrava alojado em casa de Bärmann, não ter novos projectos de concertos para e com ele 67 . Não significava que não quisessem trabalhar juntos e assim: «(...)l’été 1815, Weber(...)à Munich(...)chez son ami. Fermement décidé à démissioner de Prague, il elabore avec son complice de noveaux projects de concerts» 68 .

65 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 68. 66 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 72. 67 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.185. 68 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 71.

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Cf. Pamela Weston, Clarinet Virtuosi of the past , 2002, pp. 144,145.

2.3 – As obras de Weber para clarinete

Weber escreveu em 1811 um Concertino , dois Concertos , as Variações Silvana e uma Melodia para clarinete sem acompanhamento . Em 1815 terminou o Quinteto para clarinete e em 1816 nasce o Grande Duo Concertante. Se no século XVIII, Mozart lança as bases do repertório de clarinete, foi na época romântica que os compositores cada vez mais sucumbiram aos seus atributos. Também Weber, além de Spohr e Rossini, foram de alguma forma cativados pelas suas potencialidades de vocalizar as melodias e de expressar sentimentos de uma forma perfeitamente “à la carte”. As obras para clarinete deste compositor

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constituíram a maior contribuição, desde Mozart, para o instrumento. Weber utilizou o seu timbre especial e características para, nas suas óperas, lhe dar o poder de transmitir emoções. Efectivamente, Carl Maria, nas suas obras concertantes teve uma linha de pensamento dirigida para as virtudes “vocais” do instrumento, reconhecendo-lhe valores e capacidades teatrais, líricas e de bel canto . Nos movimentos rápidos ou nos lentos, o clarinete tem um papel de “pessoa” de palco. Nas seis obras que Weber escreveu dedicadas ao clarinete, estão sempre presentes as suas tendências teatrais. Não se pode separar o homem da sua obra. Os palcos revelam-se no lirismo, no drama, na graça, nas sombras e cores diferentes, na miscelânea de cheiros que se adivinham nas suas melodias, no aproveitamento das capacidades do clarinetista e na evolução do instrumento; em suma, revelando-se em tudo onde, romanticamente, com as diferenças anunciadas pelos tempos, o compositor soube implantar a sua vontade operática, sem quebrar o caminho para aqueles que se lhe seguiram, passando por Berlioz, Wagner e já mais perto da nossa era, Richard Strauss, enriquecendo-os. É importante referenciar o facto de que só após as obras para clarinete é que surgiram as três mais importantes óperas de Weber. Warrack afirma que nos primeiros andamentos das suas criações, revela-se de alguma forma «Son aversion pour la forme sonate – ou, plus exactement, sa maladresse à en user(…)»69 . Com efeito, ele deixa os primeiros andamentos para o fim o que permite ao autor inglês afirmar que Weber acaba por os resolver com uma «simplicité relative» 70 , num estilo bem dele, um estilo teatral, simples e suficientemente ligado ao drama o que lhe confere a sua eficácia. Como esperamos que fique claro na nossa análise, esta afirmação não é de todo adequada, pelo menos em relação ao Grande Duo Concertante , para já não falar nas aberturas das três grandes óperas que lhe são posteriores.

69 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.430. 70 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.430.

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2.3.1 – Concertino para clarinete (op. 26: J. 109). 1811.

Tal como aconteceu com outros instrumentos, a maturidade técnica do clarinete coincidiu com a aparição de virtuosos. Weber conheceu Heinrich Bärmann e, para ele, escreveu em menos de cinco dias o Concertino que, estreado a 5 de Abril de 1811, atingiu tal sucesso que Maximilian II Joseph, Rei da Baviera em 1811, lhe encomendou dois concertos para clarinete. Além disso, os músicos da orquestra pediram imediatamente a Weber que lhes dedicasse um concerto, acabando o compositor por escrever somente um para fagote, onde se realça um adágio cuja cadência é de plena tendência vocal 71 . Desde o último quarto do século XVIII, o clarinete teve um lugar cada vez mais importante na orquestra e, durante o século XIX, foi alvo de grandes transformações. Weber encontra motivos nas suas características tímbricas e capacidades técnicas para o incluir nas suas preferências. Assim, tal como sugere a forma e a natureza do Concertino , este instrumento será capaz de exprimir um novo mundo de sentimentos típicos do romantismo e de características da personalidade e temperamento do compositor. No Concertino 72 , o compositor parece evitar a forma-sonata e recorrendo a determinados artifícios, dispensa pura e simplesmente esse andamento, concebendo-o de uma forma perfeitamente concisa. As suas quatro partes estão encadeadas: um adagio ma non troppo lírico, um andante seguido de duas variações, uma passagem mais lenta, escura e grave, quase recitativo , e um allegro final, cheio de brilho. Esta construção original prefigura a grande forma livre e programática do Konzerstück para piano e orquestra. O compositor dá à obra «...la conviction formelle, le sens vital de l’interaction entre le contenu et la forme…» 73 .

71 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.138. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 69. 72 E no Konzertstück para piano. 73 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.430.

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O Concertino, em termos de forma e conteúdo, está bem definido e nota-se da parte de Weber uma espécie de renúncia à forma-sonata. A forma desta obra aproveita as sonoridades dos diferentes registos do clarinete, dando ênfase à capacidade dos graves revelarem cores escuras e calorosas por um lado, enquanto os agudos deixam passar a imagem sonora de brilhantismo e extroversão. Weber revela sempre o seu instinto para a ópera e é nos andamentos lentos que ele mais se “denuncia”. Por vezes, utiliza os contrastes existentes entre o registo de chalumeau 74 e o registo agudo, por puro deleite. Nesta obra, esse mesmo registo é utilizado para realçar o timbre cru, cheio de gravidade ou dramatismo, do clarinete 75 . «(…)le Concertino laisse entrevoir(…)la volonté de refléter la voix humaine autant que la propre personnalité de Bärmann» 76 . Nesta obra nota-se já que o clarinete possui as necessárias características para “vocalizar” as melodias. No entanto, nesta primeira abordagem, Weber dá muito dele para realçar o timbre, a cor sonora e toda a capacidade técnica e mecânica de Bärmann 77 . Assim, logo no sétimo compasso,

Weber escreveu o intervalo de Fá 2 a Lá 4, somente ultrapassado no

Quinteto, com um intervalo do Mi mais grave do clarinete (Mi 2) ao Sol 5. De forma original, utiliza a sonoridade específica do clarinete como baixo do acorde, criando e descobrindo novas qualidades sonoras, revelando assim conhecer profundamente o carácter do instrumento.

74 Notas graves do clarinete. As suas fundamentais. 75 No Oberon, os clarinetes com as violas e os violoncelos resultam no que Berlioz apelidou de timbre particular, dando uma cor impossível de obter de outra forma. Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p. 421. 76 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.135. 77 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.135.

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Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.136.

O Adagio , carregado de drama, contrasta com o Andante que é alternadamente lírico e veloz, enquanto que o final se revela breve, mas suficientemente brilhante. Nos dois concertos que se seguem, Weber utiliza a forma “habitual” em três andamentos, no sentido de que nada obstasse ao seu sucesso perante o rei, com a clara intenção de não correr riscos desnecessários.

2.3.2 – Concerto para clarinete nº 1 em Fá menor (op. 73: J. 114). 1811.

Após todo o êxito conseguido com a primeira composição e a encomenda do rei, Weber compõe o primeiro de dois Concertos para clarinete e orquestra. Estes têm bem delineada a construção em três andamentos, sendo o primeiro, um Allegro em forma-sonata, que compreende dois temas: um em Fá menor, com uma natureza lírica e dramática e outro em Lá bemol, particularmente ornamentado e brilhante. Este segundo tema é um notável trecho de bravura para o clarinete. O primeiro andamento é apresentado pela orquestra e só depois o clarinete ornamenta o motivo melódico dando uma ideia geral

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de fogosidade. No desenvolvimento, um lusingando con espressione 78 , o clarinete expande-se completamente à vontade sobre as madeiras. Faz o mesmo no Adagio ma non troppo , em Dó maior que vem logo a seguir, pairando sobre o violino e a flauta. No fim do desenvolvimento impera sobre um “coral” de três trompas em surdina. É notório o colorido na escrita lenta que revela o espírito de palco do compositor. Com efeito, o timbre velado e escuro do clarinete é reforçado e evidenciado pelos fagotes em coral, oboés e flautas, com uma murmurante base das cordas. Uma breve secção animada conduz a uma cor de mistério, de sobrenatural, em que três trompas dão o ambiente sonoro, revelando, mais uma vez, a sensibilidade de Weber às cores e o conhecimento do partido que podia tirar do timbre tão especial do clarinete. Enfim, os andamentos lentos adoptam uma estrutura ABA, ternária, com melodias bem amplas, escritas de forma assumidamente vocal.

Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.137.

O Rondo , em Fá maior, é caracterizado pela virtuosidade, intercalada com melodias que vão dar ênfase, de forma contrastante, aos harpejos da Coda . Há várias apresentações do refrão na tonalidade inicial, entrecortadas por frases cada vez mais demonstrativas e

78 Termo frequentemente utilizado por Weber nas obras para clarinete.

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modulantes. No entanto, este final não chega a superar o allegro do Concertino , no que diz respeito à alegria e animação. Todo o discurso resulta da utilização de melodias vocalizadas e de momentos de virtuosidade.

2.3.3 – Concerto para clarinete nº 2 em Mi b maior (op. 74: J. 118). 1811.

Como no 1º Concerto , o compositor recorre à mesma estratégia de escrever na forma mais habitual, mais “normal”, em três andamentos. Em ambos os Concertos , o primeiro andamento é uma forma-sonata, em que nenhum tipo de constrangimento se revela ao contactar-se com a música; ela é notavelmente perfeita. No entanto, apesar de esta forma não ser incompatível com a sua maneira de pensar, Weber utiliza-a de maneira criativa; dir-se-ia até, com algumas nuances próprias. Ele considera-a uma forma convencional, mas que não impossibilita de, com génio e capacidade inventiva, ser personalizada e assim enriquecida. O êxito dos primeiros andamentos advém da aplicação instintiva da sua educação ligada ao teatro e à ópera, em que Weber escreve com toda a sua paixão 79 . Neste Concerto , o compositor escreve fazendo lembrar o canto lírico e é no andante con moto que ele demonstra a maior afinidade com a ópera. Mais uma vez a voz humana soa na mente do compositor. Neste mesmo andamento, no recitativo ad libitum , a breve cadência é acima de tudo vocal e seria um trabalho de prazer para um cantor(a). Não é de maneira nenhuma uma simples oportunidade do clarinete demonstrar virtuosidade, nem foi escrita como recreação para o instrumento porque, tal como no Concertino e no 1º e 2º Concertos , Carl Maria reflecte já a vontade de utilizar o clarinete pela sua cor sonora e pela sua capacidade de vocalizar as melodias 80 . Mais uma vez é realçada a cor dos segundos andamentos e os intervalos que contrapõem graves com agudos ajudam à “gravidade” do fraseado,

79 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.135. 80 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.135.

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tornando-o mais operático ou mais dramático. O gosto por timbres sombrios e misteriosos e a sua sensibilidade resultam no que se pode considerar uma “imagem” de marca. É notoriamente nos andamentos ou passagens lentas que o compositor aproveita para, intensamente, revelar a suas características pessoais de homem ligado pelo cordão umbilical ao mundo da ópera e à voz humana. Os finais são testemunhos de fogosidade e elegância, à mistura com o charme de Weber. No ritmo de polacca , com a bravura e o espírito romântico dos palcos teatrais, surge a virtuosidade técnica e mecânica, qual fogo de artificio, com ritmos sincopados e acentuações. É com sextinas, em brillante , que o compositor remata o andamento e o concerto , deixando no ar a ideia de que do fogo de artifício nasceram as palmas, os aplausos. De facto a coda configura-se como tendo um excelente grau de virtuosidade e de originalidade.

2.3.4 – Melodia sem acompanhamento, para clarinete (J. 119). 1811.

Sobre esta Melodia sem acompanhamento , não nos podemos pronunciar. A ausência de informação leva a crer que não terá sido editada, podendo, no entanto, existir algures o seu original, visto que consta da lista de obras de Weber. Pode também encontrar-se perdida ou até ter sido apenas noticiada a sua criação. É de realçar que Weber, neste ano de 1811, escreveu obras que antecederam e precederam a Melodia e que são de índole vocal. Além disso, foi também neste ano que nasceram o Concertino , os dois Concertos e as Variações , para clarinete. Posto isto, e mais uma vez a pensar na ópera, o compositor, na sequência dos sucessos obtidos com o concertino e os dois concertos, recebeu de Bärmann uma proposta para uma tournée de concertos. Assim, no dia 1 de Dezembro de 1811, viajam de Munique até ao dia 20 de Fevereiro de 1812, data em que chegam a Berlim.81 É sobre a

81 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 70.

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produção associada com esta digressão que nos debruçaremos em seguida.

Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 58.

2.3.5 – Sete Variações sobre um tema de Silvana, para clarinete e piano (op. 33: J. 128). 1811.

Silvana foi a primeira ópera de Weber a conhecer o sucesso e «(…)le premier à être traduit(…)»82 . Foi composta entre Julho de 1808 e Fevereiro de 1810 e a sua primeira audição data de 16 de Setembro do mesmo ano, 1810 83 . Assim, as variações para clarinete e piano foram compostas posteriormente. O tema das Variações foi tirado do nº 10 de Mechtilde, “Warum musst’ ich dich je erblikken” que tinha já sido explorado nas Seis Sonatas Progressivas, para piano e violino (op. 10, nº 5: J.103). 1810. 84 . A obra foi acabada na própria manhã da sua estreia, a 14 de Dezembro de 1811 e revela a capacidade inventiva e de improviso de Weber, bem

82 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.89. 83 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 137. 84 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp.88 e 147.

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como o talento instrumental de Bärmann. Esta obra serviu para o compositor evidenciar as capacidades do clarinetista, bem como de “cartaz” para a ópera Silvana , tendo sido estreada pelos dois músicos 85 . Nesta composição, à semelhança da personagem Silvana que tem um papel, ora mimado, ora falado, existe na IV variação a “mudez” do clarinete. Weber revela a utilização do piano, como instrumento- orquestra 86 , enquanto que, por outro lado, o clarinete dá corpo à parte vocal da ópera. Numa alusão à mudez de Silvana, o clarinete cala-se e o piano desenvolve a variação. Na ópera, Silvana permite uma inovação, já que enquanto personagem muda, é caracterizada pelo oboé e pelo violoncelo que «incarnent respectivement l’aspect fantasque et tendre de sa personnalité» 87 . Por analogia, comparamos o uso que Weber deu ao clarinete, como se da voz humana se tratasse, considerando-o capaz de expressar os sentimentos e emoções da personagem. Nesta obra, Silvana, ou melhor o clarinete, revela, além da simplicidade popular e algo inocente da heroína, passagens que, nascidas da imaginação de Weber, prefiguram por um lado «... le monde chevaleresque d’Euryanthe et le charme simple, naturel du Freischütz...» 88 fazendo antever assim uma ligação estreita entre as duas concepções românticas que dão ser a estas duas óperas: «...la chevalerie médiévale et la vie pure au fond des bois»89 .

2.3.6 – Quinteto para clarinete e cordas (op. 34: J. 182). 1815.

É nesta obra, dedicada também a Bärmann, que mais se nota o contraste entre o registo grave ou chalumeau e o registo agudo 90 . Tal

85 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp. 147 e149. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 70. 86 Já com Beethoven e depois com Liszt se considerava o piano como tal. 87 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.85. 88 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.86. 89 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.86. 90 É no Quinteto que Weber escreve o intervalo maior do seu repertório para clarinete: três oitavas e uma terceira menor (mi grave a sol agudo).

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como nas outras obras para clarinete, Weber explora as diferentes capacidades técnicas e mecânicas do instrumento, bem como os diferentes registos e possibilidades de novas cores, provando assim possuir os conhecimentos necessários para isso. «Il est révélateur que Weber se sente parfaitement à l’aise dans une forme qui naît de la mise en valeur du caractère d’un instrument»91 . O compositor foi trabalhando o Quinteto desde 1811 a 25 de Agosto de 1815, data em que o terminou 92 . Talvez a falta de continuidade ao compor esta obra seja responsável pelo resultado final, virtuoso por um lado e, por outro, algo superficial. Parece que o compositor quis “só” mostrar as capacidades do exímio clarinetista Bärmann e assim não teve uma grande preocupação com o acompanhamento. Efectivamente, é notório o papel subalterno do quarteto de cordas. O papel central é dado ao drama que no fundo é a grande contribuição de Weber para o romantismo. Bärmann bem terá sabido aproveitar a ária adagio no clarinete, para dar voz à inspiração vocal de Weber. «La voix humaine semble bien avoir été un modèle de composition pour les inflexions de certaines mélodies du mouvement lent ( Fantasia )»93 . Com certeza todas as características do instrumento serviram os propósitos tanto do clarinetista como do compositor. A facilidade mecânica e técnica do clarinetista terão sido evidenciadas nas escalas cromáticas e diferentes dinâmicas de ppp a fff . A elegância no pequeno tema do rondo final é o resultado da escrita em escalas. O minueto, capriccio presto, respira força rítmica, enquanto que as suas modulações delicadas fazem lembrar Schubert. Perante tudo isto, Weber escreveu uma harmonia que é simples a ponto de ser, não música de câmara, mas sim uma obra em que o clarinete é apenas acompanhado e ao qual é deixado todo o protagonismo e

91 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.135. 92 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.185. 93 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 71.

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relevância 94 . Com efeito, contrariamente ao esperado numa formação em quinteto, tudo aponta para quatro instrumentos a acompanhar um: o clarinete. Terá sido uma espécie de apologia do clarinetista e das capacidades do instrumento. Este quinteto, o Quarteto para piano e o Trio para flauta, violoncelo e piano , possuem imensa qualidade e o charme característico de Weber, no entanto, não conseguem fazer parte das obras mais importantes do compositor que parece não querer, ou não poder, exprimir-se na vertente música de câmara. Efectivamente é o que se conclui quando se depara com a propensão de Weber em transformar e utilizar o clarinete como instrumento de exibição de concerto 95 . Na obra que se segue, o compositor teve a intenção e o cuidado do protagonismo ser devidamente racionalizado e dividido. Se há protagonismo, então será o da vocalidade da escrita de Weber.

94 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.186. 95 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.431.

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3 - O GRANDE DUO CONCERTANTE

3.1 – Grande Duo Concertante, para piano e clarinete (op. 48:J. 204). 1816.

Weber, em 1815, terminou o segundo e terceiro andamentos do Grande Duo Concertante . Estes dois andamentos foram executados publicamente e, posteriormente, em Novembro de 1816, foi-lhes acrescentado o primeiro andamento 96 . Foi a sexta e última obra para clarinete e a única em que os dois instrumentos têm igual importância e dialogam ao mesmo nível. A partitura, na sua versão final, tem três andamentos e segue o padrão usual da época para a forma concertante. O tratamento do primeiro andamento, último a ser escrito 97 , é em forma-sonata. No entanto, a obra não é designada como sonata para clarinete e piano. É uma obra concertante para dois virtuosos e toda a escrita musical é orientada para esse propósito. O segundo andamento lembra uma ária de ópera e o terceiro é um rondo , interrompido por um recitativo, sob um fundo de tremolando digno do Freischütz . É pura música de câmara, em que nenhuns dos instrumentos detêm para si o monopólio da preponderância ou do protagonismo e em que os elementos típicos da música de Weber se revelam. Como homem ligado ao teatro, à ópera e à música pelo cordão umbilical, a máscara teatral e operática acompanham a sua obra. São elementos da sua própria identidade, da sua própria cultura. Com efeito, a veia operática e teatral da escrita do compositor passeia-se no desenvolver de uma cumplicidade entre os dois instrumentos que não permite o protagonismo individual do clarinete, o que transformaria o piano em instrumento acompanhador. De facto, nenhum dos instrumentos funciona sozinho. Com efeito, a intenção ou propósito e o

96 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.185. 97 «On observe (...) une assurance toute nouvelle dans son traitement du mouvement initial (…) sonate (…) mouvement, qu’il laissa comme de coutume pour la fin (…)». Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.198.

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resultado final foram o de conceber uma obra de carácter instrumental, para dois virtuosos existentes mesmo ali: o compositor e o clarinetista Bärmann 98 . A genialidade de Weber revela-se no Grande Duo Concertante porque os elementos que lhe dão corpo revêem-se nas suas óperas de maturidade. Sendo concebido antes do Freischütz , terá funcionado como um arrumar de ideias explanadas e exploradas posteriormente nas suas óperas. Dir-se-ia que, teatralmente, Weber deixou-se levar pelo seu lado multívolo e, pondo a ópera em primeiro plano, concebeu um pequeno mundo em que o piano, qual orquestra, dá o mote para a voz humana representada pelo clarinete. Efectivamente, é a voz humana a protagonista no desenrolar do Grande Duo Concertante . Weber era um homem dos palcos e sabia que em frente dos palcos da ópera cabiam multidões. Sabia também que as massas estariam sempre com os olhos e ouvidos atentos à orquestra e aos cantores, por vezes de forma algo indisciplinada e descontraída. Afinal, uma das suas facetas como precursor da ópera na Alemanha foi exactamente a de educar o público. No caso da música de câmara, Weber sabia muito bem para quem era dirigida. Sabia que era para pequenas audiências, com maior sensibilidade, maior intimidade, que era um trabalho mais aturado onde, além da excelência da interpretação, todo o esforço teria que ser orientado inteligentemente no sentido de apresentar dois virtuosos cuja plateia crítica poderia ser bastante dura. Assim, ele explora a voz humana e invoca a ópera e o teatro; atitude natural para ele. Durante a escrita da obra, Weber renuncia ao título de Sonata e, de facto, a denominação de Grande Duo Concertante é a acertada. Apesar de não ser uma obra com um argumento extra-musical desenvolvido, não deixa de conter todos os condimentos que coexistem na inspiração vocal e teatral de Weber. No Grande Duo Concertante há uma linha condutora que é por um lado inocente e popular e por outro operática e dramática. O teatro está presente em frases de lusingando ,

98 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.430.

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noutras que vertiginosamente volteiam, nos ritmos que brincam, etc. A ópera aparece nas cores, densidade harmónica, nos ritmos e nas frases vocais e, especialmente, nos andamento lentos, onde Weber, qual peixe na água, desmascara a sua intenção de vocalizar as melodias. Como veremos em maior detalhe mais à frente, os temas estão escritos e concebidos da forma mais adequada para relevar as virtudes de cada instrumento, no sentido de alcançarem airosamente o objectivo da obra. O andante não deixa que nenhum dos instrumentos ultrapasse o outro em importância, apesar de sublimar todas as características do clarinete e da escrita lenta de Weber que, através das suas capacidades de cantabile , quase que consegue ser o protagonista. A serenidade do clarinete é apoiada pelo colorido dos acordes palpitantes do piano, cuja densidade e cor dão ainda mais realce ao legato vocal do clarinete e ainda mais importância ao seu timbre. Dir-se-ia que há uma atmosfera quase mágica, envolvendo a voz do clarinete, dando-lhe substância e ao mesmo tempo indicando-lhe até onde se deve conter. No terceiro andamento, rondo , o piano parece acompanhar o clarinete. Este iria dominar, não fora a escrita hábil e bem repartida pelos instrumentos fazer-se sentir. Até aqui, Weber brincou às escondidas com a sua predisposição operática, substituindo as palmas e o ambiente teatral por acordes e cores instrumentais, fazendo com o clarinete o que a voz humana poderia ter feito; agora, qual “gato escondido com o rabo de fora”, explode com ideias em germinação e é uma premonição do Freischütz que se faz ouvir. O clarinete declama, por sobre um fundo sinistro de tremoli coesos e do piano. Se no primeiro andamento, o carácter era algo decidido e por vezes, dramático, aqui é, indubitavelmente, ameaçador e só a reexposição do tema principal consegue espraiar esta inesperada densidade do sobrenatural e do mágico. É neste andamento que mais descaradamente Weber dá o mote daquilo que virá a ser o Freischütz . Convidando a movimentar o tempo, a dar importância ao longos valores e a cantar os curtos, que Weber após várias cabriolas e caprichos, em que a disposição muda quase de pauta em pauta, faz o clarinete brilhar

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em todo o seu esplendor convidando-o a dar tudo: a voz humana soa no palco. As frases no geral deste andamento, muito bem articuladas, concisas e decididas dão a teatralidade ao acto, parecendo falar algo à alma. Tal como Debussy disse algures: “Weber encontra a alma de cada instrumento e ao clarinete deu-lhe a do palco, do teatro e da ópera.” O clarinete é quem canta. O piano é a orquestra. É bem possível que Weber habituado aos palcos mesmo escrevendo música de câmara como é o caso, o tenha feito com o pensamento em multiplicar cada tecla por um músico da orquestra, por um instrumento. Ele conseguiu- o. O clarinete será a diva, a voz feminina que cantará apoiada na orquestra ou melhor ainda, a orquestra apoia a palavra que neste caso é do solista: a voz humana. Toda a escrita é brilhante, divertida, com um forte sentido teatral e com a sombra da ópera sempre presente. Logo no princípio do terceiro andamento saltam à vista as semelhanças com a futura ária de Agathe: (Wie nahte mir der Schlummer ). Weber propôs-se escrever, conseguindo- o, uma obra onde é posta em evidência a virtuosidade dos dois instrumentistas. Não será inoportuno lembrar que aparte a virtuosidade conhecida do clarinetista, o próprio compositor era ele mesmo um pianista virtuoso, a julgar pelos comentários de Johann Liebich, director do teatro em Praga, «(...)c’est vous (...) ce fameux Weber qui joue du piano comme un démon(...)»99 . Ou como o amigo de Berlim, Hinrich Lichtenstein 100 , escreveu sobre o compositor: «Weber était un aussi grand maître à la guitarre qu’au piano» 101 . Muita da música de Weber advém do facto dele ser instrumentista e concertista: «Much of this music arose from Weber’s specific needs as a performer or

99 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.147. 100 Hinrich Lichtenstein, professor de zoologia e co-director da Singakademie de Berlim. Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.152. 101 Cit. in John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p.153.

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concertgiver»102 . De facto ele foi um pianista com reputação no seu tempo: «Weber devient un des virtuoses le plus réputés de son temps»103 . Muitas das suas composições figuravam nos seus programas de concerto assim como muitas das obras de música de câmara, entre elas as «(...) three pieces for Baermann (J128, 182 and 204 104 )(...)»105 , que apesar de serem de câmara têm carácter concertante, visto estarem concebidas para exibição pública. Esta obra pertence ao romantismo, mas numa altura em que Mozart e outros clássicos estão muito vivos. Assim as características clássicas devem ser levadas em linha de conta. É um romantismo de cores, timbres e harmonias. Um crescendo de drama e emoção. É palco e teatralidade mas também é uma constituição formal totalmente conhecida naquela época, onde Weber com a sua originalidade talvez fosse dos primeiros a dar ao clarinete e ao piano este tipo de oportunidade; a de tocarem juntos. Numa coisa foi o primeiro, tal como pai da ópera na Alemanha, perito nessa arte do palco, transportou-a para dois excelentes instrumentos: um como instrumento orquestra e outro como voz humana. Esta obra, apesar de ser música de câmara, não fica só bem em pequenas plateias, com intimidade, recatadas, etc. Esta obra contém em si o carácter projectado por Weber da música alemã, do tradicional, do profundo sentimento. Nela se revê tudo o que o compositor quis que se notasse: o seu amor pela ópera, pelo teatro e pela originalidade. O original surge com as cores, o equilíbrio entre os dois instrumentos e pela forma como dirigindo-se a público de música de câmara, onde seria pouca gente a ver e ouvir e pouca gente a tocar, transformando toda a realidade em muita gente. Ele escreveu esta obra

102 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians, 2001, vol. 27, p. 148. 103 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 60. 104 Variações, Quinteto e Grande Duo Concertante, respectivamente. 105 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 148. Mais outra afirmação acerca do destinatário do Grande Duo Concertante.

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numa altura em que os virtuosos estavam a aparecer. Em que o palco era do artista e este queria receber aplausos. Este duo concertante é tocado por dois intérpretes “com alma de leão”, como se fosse uma companhia de ópera inteira e a perfeita forma-sonata, qual abertura das óperas, tem que representar imediatamente tudo o que se vai passar, toda a trama, toda a acção.

3.1.1 - A escrita instrumental

Nos 1º e 2º Concertos para clarinete, Weber utiliza a forma-sonata no primeiro andamento, provavelmente porque queria ter a certeza que os resultados seriam um sucesso e a forma-sonata estava perfeitamente em voga. No entanto, esta forma era algo incompatível com a sua personalidade mais ligada à ópera. «La forme sonate restait pour lui une convention qu’un compositeur habile devait être capable d’utiliser» 106 . Efectivamente, o uso que o compositor dá à forma sonata é perfeito, criativo e pleno da teatralidade inventiva que lhe é instintiva e peculiar, constituindo uma mais-valia na criação dos seus primeiros andamentos. Nos andamentos lentos, Weber permite que se eleve toda a sua genialidade operática e é nos finais que vem ao de cima todo o seu charme, fogosidade e virtuosismo. Tudo leva a crer que Weber sente necessidade de elaborar algo mais na forma-sonata. Que tem de a trabalhar no sentido de ela se encaixar no seu temperamento e filosofia de vida. Assim, ele deixa para o fim a composição do primeiro andamento e em mais do que uma vez ele nem sequer o escreveu107 . Por outro lado, as suas sonatas para piano foram, em termos de forma, muito bem conseguidas e por outro lado ainda, o seu último concerto: Konzertstück configura-se numa antítese de todas as formas

106 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp. 134. 107 É o caso de: «Adagio et rondo pour harmonichord et l’Andante et rondo pour alto». Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp. 134 e135.

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convencionadas como sendo tradicionais, criando um modelo para futuros compositores 108 . Os conflitos internos da forma sonata são aqui combinados com a teatralidade, onde em maior proporção e força imperam os efeitos, a elegância, a poética e o drama. É a intenção de reflectir a voz humana, é a ópera que habita em Weber e a sua escrita que incita ao canto lírico. Se é certo que já o Concertino tem a faculdade de vocalizar as melodias, também o é que em todas as obras para clarinete se sente o mesmo, em especial nos tempi lentos, onde ele revela toda a sua alma operática. As cadências denunciam as tendências vocais da escrita. O humor teatral revela-se nos primeiros andamentos e lado a lado, teatro e ópera culminam em cenas finais de virtuosismo romântico e weberiano 109 . Não intitulou Sonata o Grande Duo Concertante , com os seus três andamentos 110 e chamou-lhe Duo Concertante , porque a escrita do bel canto é concertante. O Grande Duo Concertante não é uma sonata para clarinete e piano, mas sim uma grande obra concertante para dois virtuosos. Logo no primeiro andamento o tratamento dado aos temas é o mais conveniente para resultar em cada um e nos dois instrumentos. Em toda a obra há escalas brilhantemente escritas em uníssono, em terceiras ou em sextas e o piano é quem provoca quase sempre o desenrolar dos acontecimentos. Nos andamentos lentos, mais propriamente no segundo andamento, o clarinete canta, eleva-se, mas, de forma genial, o papel do piano revela-se com igual protagonismo, tornando-se indispensável para que a melodia resulte. A serenidade do clarinete é reforçada pelo tipo de acompanhamento do piano, todo elaborado, bem ornamentado e cheio de matizes coloridas dignas de um acompanhamento orquestral. Parece que o clarinete tem algo muito importante a dizer no terceiro andamento, mas não fala só: juntamente

108 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, p. 135. 109 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp. 134,135 e 138. 110 Antes, só com dois andamentos, Max Maria, filho de Weber, chamava-lhe Duo para Piano e Clarinete.

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com o piano elevam-se e juntos desenvolvem, em Réb M. Esta tonalidade denuncia a intenção de Weber firmar bem a ideia de ópera nesta obra. A sensação que causa a tonalidade é algo sinistra e burlesca; denota e provoca no conjunto dos dois instrumentos algo de dramático e intenso. O clarinete declama e, o piano, qual Freischütz , envolve-o com um trémulo. A utilização desta tonalidade e o jogo das cores não é nada de novo. Weber utilizou por exemplo, em Die Temperamente beim Verlust der Geliebte (op. 46: J. 200-203) esta mesma tonalidade. Cada um dos temperamentos são retratos de amantes com diferentes sentimentos e, num dos retratos, Der Schwermuthige, (O Melancólico), Weber recorreu a esta tonalidade Réb para significar justamente sentimentos de desespero intenso. Todas estas características teatrais, operáticas e virtuosas. O estilo brilhante e com humor por um lado e cheio de drama por outro, dão corpo ao Grande Duo Concertante , como realmente é, e não como uma sonata que Weber não quis fazer 111 . Toda a teatralidade do compositor e a forma como ele se esforça para não usar a forma-sonata nua e crua, acrescentando-lhe o seu cunho pessoal são evidentes na sua obra. Ele renuncia ao título de sonata no Grande Duo Concertante fazendo-o ser uma obra de carácter instrumental concertante e não um argumento musical bem sustentado e desenvolvido. Nas aberturas das suas três obras líricas mais importantes, ele trata a forma sonata com a teatralidade suficiente para resultar num poema musical dramático 112 o que prova a sua completa aptidão para, utilizando a forma-sonata ou outra, conseguir os seus propósitos operáticos. Nos finais das obras para clarinete, reina a animação. No Concertino e no 1º Concerto , Weber destaca a alegria, elegância e cor. No 2º Concerto , dir-se-ia que ele se inspirou em fogo de artifício, quando no final do 3ª andamento, o clarinete se lança a denunciar todo o espírito do compositor, toda a sua habilidade, para captar a atenção. É o

111 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp.196, 198 e 199. 112 Cf. John Warrack, Carl Maria von Weber , 1987, pp. 430 e 431.

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virtuosismo e brilhantismo escritos e passados para os ouvidos do público.

3.2 - Análise detalhada

Neste capítulo seguimos a lição da edição Schott. Remetemos a análise mais detalhada para os quadros, que pretendem abarcar os aspectos mais significativos de cada um dos andamentos e o nosso comentário pressupõe a sua consulta, assim como o cotejo com a partitura (ver anexo). As secções são assinaladas pelos nomes consagrados na tradição analítica ou por letras maiúsculas, e os motivos por letras minúsculas. Estes, na realidade, circulam por entre os vários andamentos e a sua designação remete para alguns gestos musicais básicos: na nota auxiliar (designação que abrange ornatos e apogiaturas), h harpejo e escala Existe igualmente uma definição de carácter mais neutro (o motivo x, característico do II andamento e que reaparece em III), uma outra, própria apenas a III (o motivo r) e os motivos rítmicos serão apelidados recorrendo às designações da métrica grega (nomeadamente troqueu e coriambo).

3.2.1 - 1º Andamento

Embora alguns comentadores se obstinem em proclamar uma suposta incompatibilidade de Weber com a prática da forma-sonata, a verdade é que o 1º andamento do Grande Duo Concertante está escrito de um modo inventivo e original. O trabalho da variação de carácter virtuosístico foi, no caso do compositor, proveitoso para a elaboração da forma-sonata. Weber toma como material base do discurso musical gestos básicos, cujo encadeamento constitui o arsenal do virtuoso e,

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não esqueçamos o que isso implicava então, do virtuoso improvisador. Assim, o carácter concertante torna-se perfeitamente compatível com a elaboração motívica.

Ex. I/1

Ex. I/2

Ex. I/3

Salientemos alguns aspectos que indicam que as supostas liberdades dão mostras de criatividade e não de desconforto em relação

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a cânones de uma forma-sonata académica, então pouco regulamentada. O tema A é um bom exemplo da estética de Weber: junta os elementos base do virtuosismo (escalas, harpejos; e as notas auxiliares que depois irão enriquecer a cantilena), com a forma em trompe-l’oeil 113 ; apesar das extensões, de carácter diferente, uma mais como inserção pedindo cadenza , as duas metades equilibram-se. No 2º grupo temático, o desenvolvimento de E aparece antes de E. A reexposição, muito abreviada (o conjunto reexposição-coda é inferior em extensão à exposição, sem contar com a tradicional repetição) suprime os temas B, e C, (utilizado no desenvolvimento que precede), o que põe em valor a aparição inopinada de D (reforçada pelo encurtamento de A, e a expectativa da cadenza , enfim realizada) e a surpresa da utilização de B na coda. Música brilhante e sedutora, mas em que os dois pólos equidistantes da serenidade e do dramatismo estão reservados para o desenvolvimento. Este começa inopinadamente num fugaz Si M (que na realidade é melhor interpretado como Dób M), passa por um belo “coral” em Sol M e atinge o ponto culminante num dramático Fá m. Esta região tonal tinha sido subtilmente preparada na exposição, pela harmonização do tema B. A observação do quadro permitirá darmo-nos conta de muitas das subtilezas de construção, em que a marca da influência de Mozart é bem clara.

113 A expressão é de Gérard Condé in AAVV, Weber Euryanthe, L’avant Scène opera, nº 153, Editions Premières Loges, 1993, p. 48

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1º Andamento ( Allegro con fuoco ) Forma-sonata

Exposição cc. 1-130 Forma Harmonia Motivos Carácter e textura 1º grupo Tema A Antecedente Mib M I → V c.c 1-3 no piano: na, h e e, Igualdade entre os dois temático cc. 1-25 cc. 1-9 Cadência englobados na mesma instrumentos cc. 1-33 perfeita à ligadura dominante cc. 4-9, h

Extensão V/V → V na Sugestão de cc. 9-13 cadenza

Consequente I →I6 na, h, e cc. 13-21 h, em aumentação no clarinete Extensão → I Na, aparece sob a forma de cc. 21-25 apogiatura curta Tema B Antecedente I → II Combinação de h e na Mais cantabile ; alternância de imitação e homofonia. cc. 25-33 cc. 25-29 1ª utilização dos Aparição do baixo de Alberti VI e II graus Consequente II → I cc. 29-33

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Ponte cc. 33-58 cc. 33-38 Mib M → Marcha Condensação do início do Piano solo, em imitação cc. 33-70 Sib M harmónica tema A (cc. 1-3) Mib M → Sol m Uso de variantes: na , h , e é (iii) imitado por na , e , por

exemplo cc. 39-47 Prolongação de Extensão do consequente Melodia acompanhada , piano V de Sol m do tema A (cc. 21-25) predominante No c. 39, clarinete faz o baixo da harmonia Tema cc. 47-51 Sol m Variante de na ( grupetto ) e Igualdade dos dois C Antecedente variante de h instrumentos, com contrastes cc. cc. 51-58 Variante de h, com o ritmo dinâmicos. 47- Consequente pontuado do c. 4, e 58 variante de e. No piano, início do tema B, desfasado metricamente cc. 58-70 cc. 58-64 Modulação a Liquidação Predominância do piano Sib M cc.64-70 Prolongação de V de Sib M

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2º grupo Tema D Antecedente Sib M I → V cc. 70-73 nova combinação lusingando (afagando). É mais cantado e mais lírico temático cc. 70-88 cc. 70-78 à base de na (Gesangthema à maneira de cc. 70- 74-78 e e na aumentado; Schubert). Melodia do clarinete é acompanhada pelo 130 aparece pelo 1ª vez salto piano. ascendente de sétima Consequente I → I cc. 79-82 como 70-73 cc. 79-88 e e na Desenvolvimento Antecedente Pedal de V na na sua expressão mais Contrastes dinâmicos e do tema E cc. 88-92 simples; incorpora salto, alternância dos dois cc. 88-102 cc. 92-94 Sequência real à desta feita, descendente instrumentos 2ªM superior cc. 94-96 Empréstimo a Sib m cc. 96-98 Tendência para

cc. 98-102 a dominante da Baixo dominante: Dó motívico M Motivo de ligação Acordes de V/V repetição ritardando cc. 102-106 e ii (sua menorização)

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Tema E Antecedente V -> I (6/4) Clarinete acompanhado pelo cc. 106-114 cc. 106-110 piano; acompanhamento Consequente V/IV -> I heterofónico cc. 110-114 Tema cadencial Antecedente I -> V Começa por salto de Piano cc.114-125 cc. 114-119 décima, depois e e, no fim, repetição I -> V na piano e clarinete cc. 120- 125 Pedal de Sib cc.126- 130a Dupla função: Liquidação cromática Piano cc. 126-130 prima volta : pedal de I, em que é reinterpretada como pedal de V em Mib, para a repetição da exposição; seconda volta : pedal de I em SibM conduzindo ao desenvolvimento

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1º andamento (continuação) Desenvolvimento cc. 130b-207 Forma Harmonia Motivos Carácter e textura cc. 130b-143 Si M (Dób M) → Sol m (V) Tema cadencial Imitação e sequência sobre baixo de Alberti cc. 144-162 Sol M → Dó m Elementos do tema A ( h Começa como coral dolce aumentado, que combina depois com h e incipit do tema) Nos cc. 160-161, tema cadencial assegura ligação cc. 162-174 Dó m → Fá m Análogo aos cc. 33-38 ff cc.174-182 Fám Análogo aos cc. 39-47 ff con passione cc. 182-192 Tema C com novo contraponto do ponto culminante do andamento clarinete cc. 192-197 Fám → V de Mib M h faz ligação cc. 197-207 Prolongação de V de Mib Imitação do início do tema A sempre crescendo

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1º Andamento (continuação) Reexposição e Coda cc.207-309 Forma Harmonia Motivos Carácter e textura Reexposição 1º grupo Tema A MibM I→V Só Antecedente e sua extensão Como na exposição cc. 207-279 temático cc. 207- Meia-cadência h em aumentação no clarinete cc. 207- 219 (análogo ao consequente da 222 exposição) Motivo h Realização alusiva da cadenza , de prometida na exposição ligação cc. 219- 222 2ºgrupo Tema D Análogo à Análogo à Exposição; Análogo à exposição temático cc. 70- exposição, mas exceptuando cc. 236-237 cc. 223- 88 em Mib M (utilização da invers ão livre, para 279 suprir ao reajustamento da tessitura ) Des. do Análogo à exposição tema E cc. 88- 102

50

Motivo de ligação cc. 102- 106 Tema E cc. 106- 114

Tema cad. cc.114- 125 Coda Tema B I → V cc. 279-309 cc. 279-288 Coda da coda Segunda metade de C e início de Final virtuoso e brilhante cc. 288-309 A

51 3.2.2 - 2º Andamento

Se, no segundo andamento, a analogia da cavatina , é clara, pela qualidade vocal dos temas e pela liberdade improvisatória da linha, Weber, como mais tarde fará nas suas grandes partituras operáticas, não se atém à ausência de recapitulação, tradicionalmente associada à cavatina . Constrói uma forma em arco, mas assimétrica, e em que a circulação dos motivos entre as variadas secções, (claramente marcadas pelo plano tonal) justifica a utilização do adjectivo durchkomponiert . Como exemplo da arte da variação/condensação patenteada pelo compositor apresentamos em seguida a comparação da melodia de A com a sua recapitulação em A’ .

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Ex. II/1

Toma corpo, neste andamento, o motivo x (que em III está associado à secção C de um carácter vocal igualmente acentuado), que condensa o requintado jogo com os âmbitos melódicos, que Weber explana, para sustentar a nível macro- estrutural o detalhe improvisatório.

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Ex. II/2

Melancólico e doloroso, embora com a efémera consolação da tonalidade de Sol M (a mesma do “coral” do desenvolvimento de I) este andamento é, sem dúvida, o cerne expressivo da obra.

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2º Andamento (Forma em arco durchkomponiert com carácter de cavatina)

Forma Harmonia Motivos Carácter e textura Introdução Dóm i- V Define intervalo de 5ª Análogo a introdução de aria A cc. 1-4 ascendente cc. 1-24 Melodia Antecedente i- V e descendente definindo Melodia acompanhada; cc. 5-24 cc. 5-8 âmbitos progressivamente acordes repetidos em colcheias Consequente i- V maiores e mais tensos (4ª, 7ª e no piano cc. 9-12 10ª) Desenvolvimento i- bvi h e e ascendentes, cc. 13-20 ponto contrabalançados por frase culminante no descendente. acorde de 6ª Âmbitos a nu alemã Extensão I (4ª e 6ª) - i e em âmbito reduzido que cadencial induz cromatismo cc. 20-24 Frase modulante Dó m → Sol M Dóm – Sol m x e e (ora isócrono, ora com Piano solo em semicolcheias e B cc. 24-34 ritmo pontuado que estabelece fragmentos melódicos que cc. 24-36 relação com A) estabelecem relação com A transição Prolongação e cc. 34-36 de V de Sol M Introdução Sol M Variante dos cc. 1-4 (4ª Melodia acompanhada por C cc. 37-40 ascendente) acordes repetidos do piano, cc. 37-53 como nos cc. 1-4 mas assimilando semicolcheias de B, a contratempo Melodia Combinação livre de elementos Diálogo entre clarinete e piano; cc. 41-53 de A no clarinete síntese de A e B acompanhamento de A e semicolcheias de B no piano

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Frase modulante Solm →Mib m Solm → Mibm Figuração de B, sem a Clarinete e piano B’ cc. 53-57 →Dóm reminiscência de A, mais na cc. 53-66 Transição Mibm → Dóm O mesmo mais ritmo pontuado Melodia acompanhada cc. 57-67 e acordes repetidos oriundos de A Introdução Dó m igual aos cc. Igual aos cc. 1-8 Como A mas piano assume as A’ cc. 67-70 1-8 semicolcheias a contratempo cc. 67-90 como em C Melodia Antecedente Como A cc. 71- 85 cc. 71-74 Consequente i– i c. 64 Como cc. 9-12 mas h tem papel cc. 75-78 de motivo de ligação Extensão i64- I com Âmbitos a nu e variante dos cc. cadencial utilização da 20-24; o ponto culminante é no cc. 78-85 6ª alemã mib agudo, como em no desenvolvimento de A Coda Igual a cc. 1-4 Variante dos cc. 1-3 mas Como A mas descendo ao cc. 85-90 mas , pela 1ª descendente e âmbito de registo grave do clarinete vez termina décima em i

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3.2.3 - 3º Andamento

O rondó-sonata, que conclui brilhantemente a obra, extravasa a habitual simplicidade e até facilidade de muitos destes trechos finais em obras concertantes. Aproveitando genialmente a condução de vozes dos acordes da introdução de II, Weber extrai um motivo, que designaremos por r, omnipresente em III. Esse, excepcionalmente proteico, assimila os gestos anteriores (o que designaremos por rh , re , etc) e assume a forma particularmente característica do grupetto ( rg ). A sua posição métrica (5ª e 6ª colcheias de um 6/8) implica a hemíola que caracterizará o tema B2 . Veremos mais adiante que essa mesma hemíola é um precioso indicador quanto às relações entre os diversos tempi .

Ex. III/1

Também a figuração do acompanhamento é utilizada com economia de meios e eficácia, sendo os ritmos de coriambo (LBBL) e troqueu (LB) utilizados em momentos bem precisos do percurso formal. A secção C fornece um grande contraste, pela tonalidade (Réb M), a sua evocação pré-Max de terrores operáticos, pelo tom declamatório em valores mais longos e pela imitação, no piano, dos tremoli de cordas imaginárias. Num golpe de génio dramático, o úbiquo r torna-se sinistro, no registo grave do piano. Sinal do apuro composicional de

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Weber, até a coda, momento que antevê o aplauso, está estruturada com uma pequena forma binária variada a partir de elementos de B.

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3º Andamento (Rondó-sonata)

Forma Harmonia Motivos Carácter e textura Rondó Sonata A1 Exposição 1º grupo Mib M r e variantes Con grazia A 1-15 temático Melodia acompanhada no antecedente, diálogo no cc. 1-26 consequente re e e, h e na em aumentação Diálogo A2 cc. 15- 26 Transição cc. 26- Ponte Mib M Re e rh em semicolcheias Piano solo cc. 26-41 33 → Sib contínuas cc. 33- M Prolongação de Clarinete com variante do incipit Diálogo 41 V de Sib M de A1 Coriambo no piano B1 2º grupo Sib M Acaba em vi Rg e h Scherzando B cc. 42- temático Trilo temático Melodia acompanhada com cc. 42-81 54 motivos de ligação no piano Sequência Rh e e (são permutadas as Desenv estruturas motívicas dos valores olvimen longos e curtos) to de B1 cc. 54- 64 Re Piano solo Motivo ligação cc. 64- 65

Re cromático Grazioso B2 hemíola Melodia acompanhada cc 66- 73 Tema Re e rg ; h Delicatamente cadenc. Diálogo cc. 73- 81 Transição ponte Sib M → Mib M Re e rh Piano solo cc. 81-89 (análoga à prima volta de uma exposição) A A1 Repetição Mib M Análogo aos cc. 1-15 cc. 89- cc. 89- abreviada do 111 103 1º grupo Análogo aos cc. 15-26 mas encurtado A2 cc. 103- 111 Transição Desenvolvimento Mib M → RébM Re e h Piano solo cc. 111-124 Réb M (com frequentes Frase vocal com ecos de II (valores C empréstimos a Réb m) mais longos, combinação x+e) Con molto affetto 125-163 Incipit de A1 no grave, no piano Clarinete declamatório acompanhado por tremoli do piano Transição cc. Réb M → Mib M Clarinete x+e Diálogo cc. 163- 163- Piano incipit de A1 , no grave 186 175 Troqueu no acompanhamento

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cc. Falsa entrada de A1 Melodia acompanhada 176- coriambo reaparece no último 185 compasso, preparando a reexposição A1 Reexposição Mib M A1 abreviado Vivace assai A cc. Piano com rh e troqueu Acompanhamento do piano mais 186-204 186- cheio. 193 Final virtuoso para os dois Elementos de B1 instrumentos Extens ão cadênci al cc. 194- 204 Coda Variant Coda Incorpora o trilo de B1 cc. 205- e de B2 267 cc.205- 216 Variant Saltos de registo no clarinete e do Troqueu no piano tema cadenci al de B cc. 217- 225 Ligação e cc 225- 230

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Variant Cadenza de piano + clarinete e de B1 (nota mais aguda de toda a obra com no clarinete) extensã o cadenci al cc. 231- 254 Variant Troqueu no piano e do tema cadenci al cc. 254- 267

63 3.3 - Visão geral

3.3.1 - Percurso da obra

Sabendo qual a importância que, nas três óperas da maturidade, Weber viria a dar a planos tonais cuidadosamente calculados, não será descabido estabelecer um pequeno quadro referente ao Grande Duo Concertante, na tentativa de elucidar o percurso expressivo da obra.

Andamento e secção Tonalidade Classificação em Classificação em relação à relação à tonalidade de tonalidade da cada andamento obra I Exposição 1º Mib M I I grupo Ponte Sol m iii iii 2º Sib M V V grupo Desenvolvimento Si M (Dób M) bVI bVI Sol m iii iii Sol M III III Dó m vi vi Fá m ii ii Reexposição e Mib M I I Coda

II A Dó m i vi B Sol m v iii C Sol M V III B’ Mib m iii i A’ Dó m i vi

III A Mib M I I B Sib M V V A Mib M I I C Réb M bVII bVII A Mib M I I

Constatamos que, em relação à tonalidade da obra (Mib M) o relativo menor é a tonalidade de II, aparecendo em I no momento de tensão do desenvolvimento. O tom de Sol M, embora com funções tonais diferentes em I e II, obedece à mesma função expressiva de consolação

serena. A ligação motívica de r contribui para o efeito de dissipação das sombras que a entrada piano (e sustentamos que o atacca aqui é supremamente adequado) do rondo produz. Por outro lado, existem quatro tonalidades hapax e, por isso mesmo, particularmente significativas: Si M, Fá m, Mib m; Réb M. As duas primeiras enquadram o desenvolvimento de I, que inclui um momento de grande tensão dramática; o outro será em III com Réb M; no centro do con duolo de II, encontramos a única menorização da tónica. Assim, o cuidado virtuosismo weberiano tem uma função quase terapêutica, levando-nos do desespero (Fá m e Réb M) e do desalento (dó m passando por Mib m!), através da consolação entrevista (Sol M) à jubilatória alegria do Mib M. É comum dizer-se que no domínio da ópera, Weber é o elo entre Mozart e Wagner; o seu tratamento da forma-sonata e técnicas afins, revela-nos uma inteligente síntese entre um detalhado trabalho motívico e tonal de raiz clássica e uma concepção mais aberta, de cariz romântico.

3.3.2 – Considerações interpretativas

O Grande Duo Concertante é música de câmara pura. Pertencendo Weber à primeira geração romântica, há que ter em conta as características algo mistas desse tempo de transição, em que estão ainda bem presentes as influências clássicas. A interpretação tem de, por um lado, seguir o pensamento do compositor e, por outro, as características da estética interpretativa do romantismo; de acordo com um fio condutor que, apesar da proximidade com o classicismo, respeite as premissas das concepções românticas de criatividade, liberdade em relação à tradição, imaginação, etc. É absolutamente necessário apreender a estrutura da obra, no sentido de identificar a forma, os temas, transições, etc. É importante ver a obra à luz de outras obras suas contemporâneas, do mesmo e de outros compositores seus coevos. Dessa forma, está fora de questão a

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possibilidade de haver um só paradigma interpretativo. É preciso objectivar as ideias, fazendo uma análise, nem que seja superficial, isolando estruturas melódicas, rítmicas, harmónicas, etc. A leitura, horizontal e vertical, da partitura, é absolutamente necessária. Tratando-se de música de câmara, encontramo-nos perante uma situação em que confluem diversos vectores cognitivos, que deverão, no termo de um trabalho aprofundado, convergir numa única linha condutora. É importante ter em conta que o compositor é alemão, e que o seu estilo e vivências estão ligados ao palco, à ópera e ao teatro. Assim, a criatividade e a imaginação são bem vindas. A leitura e a análise da obra deve ser o primeiro passo a dar, que conduzirá ao estudo técnico do instrumento. Atendendo ao fácil acesso que, hoje em dia, temos a várias interpretações, a liberdade e a abertura terão que ser maiores. No entanto, por esse mesmo facto, as interpretações acabam por ser, também, mais homogéneas, o que haveria que evitar. Como sempre, existe uma tensão saudável entre tradição e inovação interpretativas. Desta forma, a obra deve ser pensada como música, em que os instrumentos são um meio, mas não um fim, única possibilidade de encarnação da emoção e do sentido. Um instrumento essencial para a construção de uma interpretação correcta e criativa é uma boa edição, indispensável para “controlar” as chamadas interpretações pessoais, onde imperam regras muitas vezes sem regra. «Practical editions that are based on critical editions always burden the editor with pangs of conscience: on the one hand, the score in front of us suggests a precision which is often not provided by the various sources. On the other hand, this offers a 'purified' version free of the ballast of references used to justify or explain the editor's decisions. For closer examination of the details involved, it is urged that reference be made to the corresponding

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chapter in Series VI, vol. 3 of the Weber Gesamtausgabe, the complete edition of his works»114 . Esta versão do Grande Duo Concertante, edição da Schott, baseada na Weber-Gesamtausgabe , apesar de ser a mais actual, não deixa de ser mais uma num universo de várias 115 . Apesar de pretender seguir fielmente a verdade, dentro das premissas existentes, numa perspectiva musical e estilística, à luz das intenções de Weber, baseada em elementos palpáveis, (i. e. : documentos da época ainda existentes) ela (e qualquer outra) está e estará sempre condicionada pelo que é possível apreender-se nesses mesmos documentos. Desta forma, e citando o texto que antecede a partitura as seguintes fontes deram e dão credibilidade a esta edição, sejam elas suficientemente claras e objectivas na sua transmissão do conteúdo, embora este esteja “escrito” nas entrelinhas. Assim temos que:

«An autograph fragment of bars 59-129 of the first movement,probably written in Berlin atthe beginning of November 1816, is kept in the Staatsbibliothek zu Berlin - Preufiischer Kulturbesitz (shelf mark: Mus. ms. autogr. C. M. v. Weber 4); this needs to be evaluated as part of what was presumably a complete draft version of this movement composed in Berlin in the autumn of 1816. In this draft version Weber includes numerous indications regarding dynamics, articulation,

114 Cf. Carl Maria von Weber, Grand Duo Concertant , Schott Musik International, Mainz, 2005. 115 Cumpre referir como interessantes e/ou correntes algumas das seguintes edições: WEBER, Carl Maria, Grand Duo Concertant , Robert Lienau Musikverlag, reimpressão em Minden, 1998, revisão de Carl Bärmann; WEBER, Carl Maria, Grand Duo Concertant , Casa Ricordi, Milano, 1995, revisão de Giuseppe Garbarino; WEBER, Carl Maria, Grand Duo Concertant , International Music Company, New York, 1958, revisão de Reginald Kell; WEBER, Carl Maria, Grand Duo Concertant , Gerard Billaudot, Paris, 1970, revisão de Jacques Lancelot.

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phrasing and performance, though some of these were not carried over into his own autograph fair copy.» 116

1. The autograph fair copy Washington, Library of Congress, shelf mark: ML30.8b.W4 Op. 48

This autograph score was written out for Weber's own reference archive and is dated at the end of the Rondo "Munich 6 July 1815", but at the earliest it cannot have been completed until November 1816 in Berlin(?). The few corrections that appear in the very densely written autograph score were probably made in the process of writing the score, as very little space is left. As in the other scores that Weber wrote out for his archive, there are very few indications of dynamics and articulation.

2. The engraver's proof Vienna, Stadt- und Landesbibliothek, music collection, shelf mark: MH 14423/c.

This is a copyist's copy with numerous additions by the composer, probably prepared for Schlesinger as an engraver's copy-text in Berlin at the end of 1816. It is very clear and the pages and bars are evenly spaced. Weber's autograph fair copy was clearly used as the main source, for the copyist not only retained, word for word, the movements' various specifications of instrumentation, the movement titles and tempo markings, but also kept with graphic precision to the layout of the source-text. Weber checked this copy very thoroughly and added innumerable details of dynamics, tempo, articulation and phrasing, while evidently - as indeed with other works - paying little attention to the correctness of the notes. Comparison of the two

116 Cf. Carl Maria von Weber, Grand Duo Concertant , Schott Musik International, Mainz, 2005.

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sources also shows that Weber apparently marked the copy without reference to his autograph, since different styles of marking can be found in certain places. As the copy-text directly intended for use in the preparation of the printed edition, this manuscript contains the work in its definitive form. Since it is doubtful whether Weber corrected the printer's proofs, and since the engraver reproduced some details of the manuscript imprecisely and misunderstood others, it is the engraver's copy-text, not the first edition, that constitutes the principal source for the present edition of the work.

3. Schlesinger's first edition Berlin: Adolph Martin Schlesinger, plate number "253" (1817); no opus number on the title-page

In comparison with the engraver' copy, the first printed edition contains relatively few transmission errors, although some markings relating to dynamics and articulation have not been carried over(…)»117 .

Apesar das fontes serem credíveis, o mais possível, é óbvio que todos os passos no sentido da sua leitura e compreensão deixam lacunas por preencher, resultantes do espaço de tempo decorrido desde o século XIX. Assim, a interpretação do que se vê e lê, é quase sempre alvo de maior ou menor grau de subjectividade, especialmente nos pormenores que na altura ofereceriam poucas ou nenhumas dúvidas, pela sua “normalidade” ou hábito e que, no contexto actual, deixam margem à existência de dúvidas. Weber deixou vários detalhes importantes para a clareza da obra a cargo da compreensão dos intérpretes. Na altura não terá sido um problema; hoje é. Desta forma, e citando mais uma vez o texto das edições Schott:

117 Cf. Carl Maria von Weber, Grand Duo Concertant , Schott Musik International, Mainz, 2005.

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«As far as possible, the notation of the new edition adheres to that of the principal sources, in keeping with the principles of the WeGA. Additions corroborated by other source documents appear in round brackets, with details added by the editor in square brackets. It should be borne in mind that passages that are unmarked should seldom be taken literally, i.e. the absence of markings does not automatically mean that preceding indications of articulation have ceased to apply. Rather, bars of this kind may need to be interpreted either in the light of parallel passages or in line with Weber's frequent practice of using variants.(…)The distinctive features of Weber's slurring have been retained, but in places they make for unwieldiness in the score and pose a challenge to the performer. Weber's imprecise and inconsistent use of slurs makes it impossible to tell in the Rondo theme in the third movement to what extent the many discrepancies are intentional and whether some of them are the result of carelessness in notation or whether they indicate a distinction between phrasing and articulation marks». Perante as citações acima expostas, é óbvio que a interpretação de Weber coloca vários problemas. Enumerá-los e resolvê-los é, antes de mais, integrar a longa fileira de todos aqueles que, com mais ou menos sucesso o fizeram já. No entanto, é forçoso tomar decisões para tornar exequíveis com o máximo de honestidade todas as informações ou omissões da escrita de Weber e expressas na partitura por nós eleita. As articulações, dinâmicas, terminação de trilos e outros sinais gráficos, por vezes não estão escritos, ou completados, no GDC, o que obriga a um trabalho, por parte dos intérpretes, de descoberta e observação analítica. Assim, há várias opções a tomar em função da lógica denunciada pelas circunstâncias estilísticas, gráficas e dedutíveis através da observação atenta da partitura. Por exemplo, podemos enunciar dois princípios igualmente válidos, e contraditórios:

1) A ausência de articulações obriga a seguir a passagem paralela.

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2) Weber admite que passagens paralelas tenham diferentes articulações.

Por vezes, Weber expressamente indica a opção 2); por outro lado, talvez por descuido, deixa reinar a ambiguidade. Apesar de tudo, acreditamos que ora 1) é válido, ora 2), o que obriga o intérprete a tomar decisões ad hoc. Weber apela à originalidade criativa e imaginação do intérprete, que na altura seguiria as premissas dos princípios do cumprimento da tradição. De facto, é comum dizer-se que, na ópera, Weber constitui o elo entre Mozart e Wagner. Assim, pensamos que de um modo geral é igualmente um elo entre a tradição clássica e a nova concepção romântica do fraseado. Passemos em revista, à guisa de exemplo, alguns casos que suscitam a procura de um equilíbrio entre observância e flexibilidade:

3.3.2.1 Omissões e correcções

No 1º andamento, c. 12, o piano tem a referência de ritenuto un poco , enquanto que, por sua vez, na voz do clarinete consta somente a indicação dinâmica de p e nenhuma alteração de andamento ou velocidade. No 3º andamento, c. 35, a dinâmica dos dois instrumentos é f. No c. 42, o piano altera para p, enquanto o clarinete nesse mesmo compasso não tem nenhuma alteração de dinâmica, além da indicação solitária de scherzando. Assim, assumindo-se um p no clarinete e analisando a sua escrita ascendente e o f do c. 44, torna-se óbvia a necessidade dessa mesma dinâmica p nos dois instrumentos. O facto de não constar da parte de piano a indicação de scherzando e olhando por exemplo para cc. 1 e 89, leva a que se possa concluir que a própria escrita do piano induz a que a interpretação seja de forma a transmitir ideias de grazia, dolce ou scherzando, abstendo-se Weber de escrever essas mesmas indicações no piano e referindo-as somente no clarinete.

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Também no 3º andamento, c. 180, o piano tem crescendo poco a poco e o clarinete em pp não tem nenhuma alteração dinâmica, embora a sua escrita sugira um crescendo. No 1º andamento, c. 18, o clarinete tem a dinâmica p, enquanto que o piano vem desde trás com ff , além de que as diferentes vozes interagem com um jogo de acentuações que, pela sua natureza, se pretende equilibrado. O c. 43, do mesmo andamento, tem uma melodia em cinco compassos, bem lírica e em p, enquanto o piano que vinha com ff , não tem qualquer alteração de dinâmica, sendo impensável, por motivos óbvios, que assim continue. Da mesma forma nos cc. 47 a 51, as dinâmicas nos dois instrumentos não coincidem. Também o papel múltiplo das ligaduras lança alguma matéria para estudo e aplicação de princípios. Assim, nos cc. 47 e 48, o piano não tem ligadura e o motivo é igual a cc. 49 e 50, onde esta existe. Este descuido é por demais óbvio. Além de que, pela conjuntura, uma variação não seria nada lógica. No 2º andamento, cc. 5 a 8 e 71 a 74, os motivos são iguais nos dois instrumentos, diferindo na colocação das ligaduras do piano, que orientam a forma de tocar e nas dinâmicas do clarinete. No 3º andamento, c. 56, piano e clarinete têm o mesmo desenho, embora em movimentos contrários. O clarinete não tem articulação e a do piano, bem como a do c. 58 sugerem uma que será a adoptada. Ainda no mesmo andamento, cc. 219, 220 e 223, 224, não há ligaduras no piano; bem como no c. 261 e seguintes. As ligaduras faltam e é óbvio através das passagens paralelas vizinhas, a forma como terão que ser acrescentadas. (ver por ex: clarinete cc. 217 e 218). Os trilos também deixam algo para decidir. Assim, no c. 27, o trilo de ré não possui terminação, apesar do mesmo motivo figurar no c. 281 com a terminação (ver também cc. 29 e 283 no piano, por exemplo). No 3º andamento (cc. 196, 197 e 200, 201) o clarinete trila em mínima com ponto, ligada a semínima. O piano acompanha em semicolcheias sem articulação, constituindo este um bom exemplo de que na parte do piano terão que ser acrescentadas ligaduras.

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As acentuações dos dois instrumentos não estão bem claras nos cc. 88 a 111, do 1º andamento, bem como na reexposição, cc. 241 a 263, onde Weber não é muito consistente, deixando algumas dúvidas e problemas por resolver aos intérpretes futuros. Se, por um lado, seria regra na altura de Weber acentuar ou dar ênfase às dissonâncias, por outro, nem sempre ele o faz. Desta forma, os dois intérpretes intervenientes são obrigados a conjugar esforços no sentido de conseguirem um papel equilibrado em que a ideia ou fio condutor não se perca.

3.3.2.2 - Acentuações e articulações

Em Weber há diferentes tipos de acentuações. Existem sozinhas, acompanhadas de ligaduras, a afectar valores curtos, ou a afectar valores longos, frases, motivos ou compassos. Também o encurtamento de notas ou o staccato é escrito de diferentes formas: com ponto em que se diminui o valor da nota destacando-a, ou com traço vertical em que além de destacar e diminuir, fá-lo de forma mais incisiva e eficiente, constituindo uma outra forma de articular. Desta forma, no c. 4 do 1º Andamento a primeira acentuação vinca a entrada do clarinete, embora sem causar cesura entre a frase começada pelo piano e o seguimento que o clarinete lhe dá. No c. 5, a acentuação demarca também o final dos primeiros 5 compassos, numa atitude conseguida de separar o “bloco” de ff , dos compassos seguintes em pp que levam à suspensão. Este é um dos usos que Weber dá às acentuações: delimitar ideias, frases ou motivos. Nos cc. 74 a 77, a acentuação da última nota torna mais clara a ideia musical, bem como nos cc. 299 a 302, em que os motivos ligados começam com acentuação e terminam com traço vertical na última nota. Também no 2º andamento, a acentuação dos cc. 9 a 12, na 1ª nota, define e demarca bem a frase e, nesse mesmo andamento, cc. 13 a 16, as acentuações no começo e traço vertical no fim, vincam e marcam o começo e fim de cada motivo, deixando bem clara a interpretação desejada.

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Também as acentuações são utilizadas para dar movimento e fluidez às ideias musicais, como nos cc. 18 e 19, 205 e 206, 289 e 290. Nestes últimos dois compassos, bem como nos cc. 18 e 19, as acentuações resultam como inflexões. A acentuação também funciona como forma de destacar a nota, como no c. 5, bem como nos cc. 14 a 16. por vezes a conjugação de acentuações e traços verticais revelam uma interacção que resulta em determinados efeitos. Dessa forma, cc. 114, 120, 130b, 136, etc, o traço vertical dá ênfase à acentuação. Também no 3º andamento cc. 39 a 41, os traços verticais dão ênfase às acentuações no tempo fraco. As acentuações em Weber, por vezes, confundem-se com indicações dinâmicas. Dessa forma há acentuações em valores curtos e longos que resultam de forma algo diferente. No c. 46 do 2º andamento, os dois instrumentos têm acentuações em valores longos. Por sua vez, c. 48, do mesmo andamento, o clarinete tem acentuação curta enquanto o piano a tem longa e, inversamente, no c. 83, o piano tem-na curta e o clarinete longa, numa clara escolha de objectivos por conta dos efeitos que Weber idealizou. No 3º andamento, cc. 9 e 11 a acentuação longa difere da dos cc. 97 e 99 que é curta (sendo os motivos iguais). O compositor utilizou em simultâneo acentuações combinadas com ffz ou fp. Assim temos nos cc. 196, 197 e 200, 201, um trilo do clarinete em dó 3, enquanto o piano numa vez tem ffz e noutra tem uma acentuação. Também no 3º andamento, c. 17, Weber escreveu fp no clarinete e nenhuma acentuação no piano. Em motivo similar, no c. 23 escreveu uma acentuação curta nos dois instrumentos seguida de diminuendo no clarinete. Assim, uma vez escreveu fp , outra, uma acentuação curta. Talvez este facto se explique por no c. 17 o fp anteceder um f dos dois instrumentos (c. 21), enquanto que no c. 23 e seguintes a acentuação curta e diminuendo se combinam preparando o dolce dos cc. 25 e 26. Reforça esta ideia o facto de nos cc. 25 e 26, o piano ter o mesmo desenho do c. 20, onde prepara tal como agora, um f. A combinação para conseguir efeitos, utilizando traços verticais a

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encurtar notas, dando ênfase simultaneamente a outras acentuadas que se lhe seguem, pode ser observada nos cc. 39 a 41, do 3º andamento, onde Weber habilmente combina pontos com uma acentuação longa, desembocando assim num scherzando, o único desta obra e a única vez em que toda esta combinação aparece. Nos cc. 4, 92, 179 e 189 existem motivos similares ou iguais no clarinete. Em todas as vezes o final dos quatro compassos é posto em evidência. Nos cc. 4 e 179, através de acentuação simultânea nos dois instrumentos; no c. 92, através da nota mais aguda do harpejo do piano; e, no c. 189, em vivace assai é evidenciado por um trilo, com semicolcheias no piano com acentuação longa. No 3º andamento, cc. 186 e 187, o piano, na mão direita, tem articulações diferentes. No entanto, apesar de serem as mesmas notas, talvez seja relevante que o primeiro dos dois compassos esteja escrito à oitava superior do segundo. Assim, por ser mais agudo, a acentuação surgiria naturalmente devido aos intervalos ligados e o resultado final seria o mesmo. Nestes mesmos compassos, também recorrendo às passagens paralelas haveria que acrescentar uma ligadura ao c. 187. Ainda neste andamento, no c. 205, Weber escreveu no piano e no clarinete articulações diferentes. Socorrendo-nos da articulação do piano no c. 205 e dos dois instrumentos nos cc. 207 e 231, bem como da existência de hemíola, optamos por interpretar tal como está escrito no piano e nos outros motivos iguais do clarinete, ligando as notas de quatro em quatro.

3.3.2.3 - Trilos

O trilo é um ornamento utilizado por Weber na sua procura de efeitos e elegância. Efectivamente, o compositor utiliza-os para dar densidade a ideias musicais, movimento, criatividade e cor. Por vezes, como já foi referenciado, em passagens similares escreve terminação, outras não, como no c. 27, 1º trilo da obra, ou no c. 253, que é o último. Também nos cc. 203 e 208, ou cc. 232 e 234, do 3º andamento,

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era impensável que os trilos tivessem terminação (estilo barroco), já que são estruturais. Num jogo de efeitos, neste mesmo andamento cc. 46 e 47 os trilos tem terminação e são feitos em notas diferentes; nos cc. 52 e 53 o trilo, apesar de ter uma pausa no meio, é na mesma nota e a terminação está no final das duas notas. Sobre o último trilo da obra, em que os dois instrumentos trilam em ff , enquanto só o piano faz a terminação; pensamos que o clarinete, em registo agudo e estridente, neste contexto, deverá fazer a terminação do trilo, sem a qual a conjugação dos dois instrumentos ficará diminuída. Facto curioso, no vivace assai , nenhum trilo tem terminação, excepto o do c. 253 no piano. No 3º andamento, cc. 196, 197, o piano tem ffz de dinâmica sob um trilo do clarinete e nos cc. 200 e 201, para o mesmo trilo o piano já tem acentuações. Esta conjugação de factores resulta em mais um jogo de cores típico da escrita de Weber. O movimento também é induzido pela forma como os trilos se apresentam. Assim, c. 252, as duas notas (Mi) em trilo, não estão ligadas e o piano quando começa o trilo é no auge do trilo do clarinete, havendo um efeito de contratempo.

3.3.2.4 - Fraseado

As ligaduras, por vezes, indicam uma forma de tocar e não funcionam como indicadores estruturais. Elas relacionam-se com o fraseado e os acentos, pontos e traços verticais, como indicadores estruturais e de articulação. Também as melodias têm características vocais que Weber torna evidentes e óbvias ao utilizar valores, intervalos e registos, de uma forma perfeitamente cantável. As características líricas abundam na sua escrita. As ligaduras dos cc. 18 e 19, por exemplo, relacionam-se com o fraseado, enquanto os acentos se relacionam com a articulação. A ligadura do c. 20 e seguintes, ligam realmente as notas, num grande legato , típico do romantismo. Também e ainda no 1º andamento, c. 70 e seguintes, em lusingando , as ligaduras relacionam-se com o fraseado e

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indicam uma forma de tocar. Desta maneira, nos cc. 72, 73 e 81, 82, as notas dos 1º e 2º tempos têm um ponto de articulação, e todo o compasso está ligado, numa clara informação acerca da ideia musical. Os dois últimos tempos (mínimas) estão acentuados, excepto nos cc. 73 e 81. O facto de não estarem todos acentuados, incorpora nestes quatro compassos a capacidade de variar. As acentuações no final destes e noutros motivos ou frases, encurtam a nota, dão ênfase e estabelecem a diferença relativamente ao compasso sem acentuação que lhe é posterior. Desta maneira e com as mesmas notas, há diferenciação que torna mais rica a interpretação. Quanto aos cc. 74 a 77, uma grande frase ligada do clarinete termina em acentuação numa mínima encurtando-a. A nota mais aguda da frase, um Lá natural em Mib M, é acentuada fazendo com que se quebre alguma da ligação que existiria entre todos os 4 compassos sujeitos à ligadura e, através desta inflexão escrita, o Lá que se segue terá maior brilho. O mesmo acontece no c.84 e revela-se assim a relação estreita entre o fraseado barroco-clássico, onde imperam efeitos da articulação, e o estilo das grandes linhas românticas, com a sua estética de escrita em desenho amplo. Nos cc. 223 e seguintes, o segundo lusingando é diferente do primeiro; é mais articulado e mais teatral que vocal. Talvez menos romântico do que na primeira vez. No 1º membro de frase, de 4 compassos, há acentuação nos dois últimos tempos dos 3º e 4º compassos, encurtando as notas acentuadas e dando movimento à frase. No c. 228, à semelhança do c. 75, a nota mais aguda é acentuada, mas agora de forma diferente por ser no princípio de uma ligadura e não a meio como inflexão; assim o carácter é todo menos amplo e mais entrecortado, típico das influências clássicas neste compositor de transição. Ao mudar o carácter e a forma de acentuação, que antes era no fim da frase (c. 77), e agora adiada para o compasso seguinte, aumenta a sensação de movimento. A perícia do compositor em frasear clarifica a sequência dos acontecimentos musicais, como no c. 34, em que Weber escreve por vezes duas vozes numa mão, da parte do piano, ou faz seguir a sequência da frase de uma mão para outra. Assim, o percurso da obra é rico em intervenções

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que fazem fluir a ideia musical de uma voz para outra. Ex: cc. 126 a 130; 167 a 170; 189 e 190; 198 e seguintes (1º andamento). As frases começam muitas vezes nos tempos fracos e os valores curtos subordinam-se aos longos. A utilização da anacrusa dá também movimento às ideias musicais. No c. 25 e seguintes, a anacrusa e o início em tempo fraco, causam instabilidade que sugere movimento, bem como e ainda no 1º andamento, os cc. 43 a 47, onde os valores curtos dão maior importância aos longos e de forma anacrúsica dão movimento à frase, bem como no c. 182 e seguintes. Do mesmo modo, c. 197 e seguintes, até 204, sempre crescendo il forte, há uma alternância de acentuações que dão consistência e dinâmica no sentido de movimento e densidade, além de tensão crescente. Nos cc. 43 a 47, as características vocais são evidentes e óbvias, tanto nos valores, como nos intervalos e registos. O fraseado interpretativo no clarinete, deve ser de forma a pensar-se na voz e não no instrumento. Assim todos os valores mais curtos serão postos ao serviço dos mais longos, fazendo sobressair as características líricas da passagem. No 2º andamento, cc. 1 a 4, o piano, em notas articuladas com um ponto e ligaduras em valores iguais, constituem a base constante para fazer fluir o legato da frase do clarinete. Também nos cc. 5 a 8, as ligaduras ensinam a interpretar. Nos cc. 26 a 33, do 3º andamento, as grandes frases de legato e em semicolcheias do piano denotam características das frases em linha românticas. Por outro lado, o compositor conjuga as articulações para reforçar o staccato e assim delimitar frases ou motivos, numa clara relação estilística com o período pré-romântico. No c. 34, deste 3º andamento, o piano agita-se ritmicamente e demarca-se do ambiente romântico, revelando o período de transição de Weber com intervenções dos dois instrumentos ao estilo clássico (ligaduras curtas e ritmo a condizer) conduzindo ao scherzando do c. 42. Da mesma forma, no c. 64 e seguintes, o piano demonstra as influências clássicas e românticas à mistura, em grandes legati românticos e pormenores típicos dos períodos anteriores ao romantismo, (ver c. 71 e seguintes).

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Nesta obra, além do andamento lento e das passagens em valores longos, é nos cc. 125 a 163 (3º andamento) onde imperam efeitos operáticos típicos de Weber e que, por analogia, se comparam com o trabalho que Weber veio a desenvolver nas suas óperas de maturidade, em especial no Der Freischütz . Nestes compassos, as dinâmicas e as cores são utilizadas de forma a causar efeitos e emoções. A escrita, tal como no 2º andamento, construída num legato também operático, fazendo sobressair a voz por cima de tudo e com fluidez, é completamente vocal e, a parte melódica, a cargo do clarinete, é flexível graças ao papel dos tremoli do piano. A “passagem Freischütz” é antecedida por grandes legati românticos vindos do piano. Em relação aos tremoli, há muitas dúvidas sobre a sua interpretação não havendo opinião firme sobre o assunto. No nosso modo de vêr, pela semelhança com Der Freischütz , os tremoli devem ser feitos com pedal do piano, porque desta forma, as características dessa ópera sobrevêm, numa imitação o mais convincente possível dos tremoli de uma secção de cordas. Quanto ao clarinete, con molto affetto e em f, c. 125, passa de p, c. 28 a ff , no c. 131, em apenas 7 compassos, regressando novamente a piano. Todos estes efeitos de dinâmica, combinam com acentuações, ligaduras e uma base densa de tremolo . Perante o fraseado articulado ao estilo barroco-clássico e as grandes frases desenhadas em linha romântica, coabitando naturalmente, concluímos que a inspiração de Weber é claramente de transição.

3.3.2.5 - Agógica

Há nesta obra rallentandi escritos por extenso, à custa do crescente aumento do valor das notas, ou com a utilização de pausas com o consequente aumento do silêncio. Assim o diminuir de velocidade da ideia musical é perfeitamente controlado e disciplinado. Desta forma, no 1º andamento, cc. 10 a 13, a escrita induz em rallentandi, no c. 12 o valor das figuras é aumentado para o dobro. Assim, apesar de só no piano haver a indicação ritenutto un poco , o clarinete também o faz

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embora devidamente controlado pela escrita. Nos cc. 105 e 258, apesar das indicação poco ritard e ritard , a mão esquerda do piano tem pausas enquanto marca os tempos fortes e tem o mesmo ritmo do clarinete, havendo assim controle. Nos cc. 141 a 143 e 217 a 222, aumentam os valores, as notas são menos e aumentam as pausas, criando vazios e consequentemente mais espaço. Desta forma e tudo no 1º andamento, Weber altera a velocidade originando um discurso claro. À semelhança dos rallentandi, também os accelerandi são escritos de forma a serem controlados. No 1º andamento, cc. 1 a 3, o piano dá o mote e o clarinete conclui a ideia até ao c. 5. Nos cc. 13 a 17, comparativamente as cc. 1 a 4 e à semelhança dos cc. 1 a 3 do piano, os dois instrumentos desenvolvem a ideia de forma diferente. Para o mesmo trabalho do piano, desta vez o clarinete em notas longas e acentuadas, dá a sentir um aumento de velocidade: passa de semibreve para 2 mínimas, depois para semínima e, por fim, colcheias pontuadas em staccato . Além disso, todas as outras notas do clarinete são acentuadas. No 3º andamento, c. 186 e seguintes, o andamento Rondo-Allegro é alterado na sua velocidade para vivace assai , de forma súbita e após um trilo com terminação do clarinete, balançado por um ritmo de colcheias e semicolcheias do piano que, de alguma forma, convidam a criatividade e imaginação teatral a se revelarem. À semelhança dos rallentandi e acelerandi, as suspensões são perfeitamente controladas e disciplinadas. Ele não deixa dúvidas à sua duração e deixa as informações bem claras através da análise da obra. Com efeito, a duração das suspensões dos cc. 12 e 13, é definido nos cc. 219 a 222. De acordo com este princípio, a suspensão sobre o acorde será de três mínimas. O silêncio perfaria um total de cinco mínimas, mas já que, ao contrário da reexposição, a entrada é em anacrusa, parece-nos lógico que a duração seja reduzida a 4 mínimas. Os seus rallentandi e accelerandi escritos por extenso, obrigam a que não hajam mudanças de tempo, a não ser que o compositor diga ou existam outras razões que o expliquem ou exijam. É óbvio que as

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ligeiras flutuações têm razão de existir, não fosse a música algo vivo, no entanto, isso não implica “verdadeiras” mudanças de tempo. Assim em andamentos lentos, ou na passagem Freischütz , é aceitável que para a completa fluidez do discurso se recorra a ligeiras nuances de velocidade, que mais não farão do que interligar as ideias de forma à sua melhor relação com o movimento dinâmico. No GDC, há realmente uma excepção no c. 186, onde o compositor escreveu vivace assai. Este 3º andamento é um Rondo-Allegro , o que pressupõe um balanço e dicção bem claros, nos dois instrumentos, não podendo, como consequência, ser interpretado muito depressa. O 1º e 2º andamentos, Allegro con fuoco e Andante con moto terão que ser interpretados em função um do outro. Assim, o 2º andamento, não é um adagio . É uma ária, cavatina , e terá que fluir liricamente con moto , i. é: não muito devagar. A sua própria escrita impede que a velocidade seja muita, bem como, pelo tamanho das frases e ligaduras, que seja muito devagar. O 1º andamento, com a velocidade multiplicada pelo C cortado e pelo con fuoco , não impede que a interpretação seja decidida e não nervosa. Assim, em qualquer dos andamentos, o GDC, terá que primar pela clareza de discurso, pela objectividade do estilo clássico e pelas longas ideias musicais do romantismo. Da mesma forma que o compositor teve o cuidado de demonstrar ideias e as expôs no papel, também e por algum motivo, não colocou nenhuma indicação metronómica nos andamentos. Contudo, a análise da obra permite-nos emitir a hipótese de que, quaisquer que sejam os tempi escolhidos, estes devam obedecer às seguintes relações: Mínima de I = colcheia de II = semínima com ponto da secção vivace assai de III Semínima de I = colcheia de III

3.3.2.6 - Cores e timbres

Weber construiu cores e timbres onde circulam as ideias musicais. Assim a harmonia é mais ou menos densa e compacta ou leve

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e simples, mas sempre elaborada ao modo concertante e orquestral operático. A sonoridade requerida para Weber lança-nos num problema que cada vez mais tende a desaparecer. Efectivamente, na altura, Bärmann, como clarinetista virtuoso, tinha características que o diferenciavam. No entanto, apesar de o seu clarinete lhe permitir tocar de uma forma mais igual, ele estava inserido numa época que não deixou gravações. O próprio clarinete dele não existe hoje e todos os adjectivos mencionados em 2.2 , referem que ele seria um intérprete com muito charme. A sua sonoridade era o mais possível propícia à ópera; o seu estilo e vivências também. Escreveram John Warrack e Corinne Schneider (ver 2.2), que o clarinetista tinha um timbre que combinava o estilo francês (colorido com harmónicos e resultando num timbre claro), com o alemão, com a sonoridade ampla, velada e rica, tal como convinha à música alemã. Parece que a sua sonoridade era “romanticamente melancólica” e, por combinar características francesas e alemãs, pensamos que o som para Weber e, mais especificamente, para o GDC, deve ser colorido, encorpado, cantante e embora lírico e não agressivo, não seja excessivamente escuro, sob pena de toda a possibilidade de cores e timbres resultantes da combinação dos dois instrumentos sair diminuída. Apesar de compacto, o som deve ser velado q.b., mas sem ser escuro a ponto de parecer um pobre som surdo. É importante cada som preencher “uma sílaba”, ou seja deixar espaço a uma boa dicção e articulação. Ao mesmo tempo, não deverá de forma nenhuma ouvir-se oco, o que seria o mesmo que ignorar todo o papel de Weber em escrever “cores”. Assim, para fluir em valores longos, ou no fim de grandes frases o vibrato pode ser utilizado, sem esquecer a adequação à sonoridade pianística. Na música, em toda ela e também na de Weber, o intérprete não vibra porque quer. O som sairá em vibrato se preencher melhor os requisitos de determinada frase ou motivo. Desta forma pode ser utilizado, mas com cuidado e parcimónia.

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4 - A ÓPERA COMO PARADIGMA

4.1 - O papel de Weber na Ópera Romântica Alemã

O romantismo surge como movimento que vem revolucionar as ideias clássicas ou consideradas clássicas, preenchendo quase todo o século XIX, após o curto período do classicismo e como reacção ao culto iluminista. O culto da razão e da inteligência iluminista dá lugar à sensibilidade e à imaginação do romantismo: pensa-se agora com o coração. É o predomínio da emoção e do sentimento sobre a razão. O geral e o universal são agora particulares ou individuais e o que era impessoal e objectivo é pessoal e subjectivo. A criação composicional não é só para eleitos, tomando ares de comunicação franca de ideias e ideais. A beleza do clássico, universal e sem defeitos, é agora particular, e ao lado de ideias de pureza e perfeição aparecem os medos, o sacrílego, o que é diferente e mau, o que é impuro. São os dois lados do humano, bem visíveis e sem reservas. Há sentimentos de melancolia por oposição ao heroísmo, acrescidos de pessimismo e permanente procura da realização de contentamentos e satisfações sempre por atingir. Em oposição aos clássicos, no romantismo há a procura do registo dos descontentamentos, desgraças, temas que incluem cavernas, ruínas, maus agouros, sonhos, morte, etc. A personagem romântica, melancólica e pessimista, procura evadir-se umas vezes para lá da morte, suicidando-se; outras vezes, evade-se para o convento, o sacerdócio, a solidão e a loucura. A clareza e simplicidade do anterior século, são agora mistério, sonho, meditação. O paganismo dá lugar ao cristianismo e o culto é medieval, por oposição ao culto da antiguidade greco-latina. O que era nobre, aristocrático e tradicional é agora popular e pitoresco. As ideias de “prados verdejantes” e de paisagens repletas de beleza, dão lugar a paisagens agrestes, exóticas, nocturnas, sepulcrais, melancólicas, etc. Há também o abandono das limitações formais clássicas que mecanicamente condicionavam a criação composicional.

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No romantismo é a imaginação que impera e a independência da arte criativa resulta em criações estritamente pessoais. As ideias e ideais existem com as pessoas. Assim os românticos Weber, Schubert, Mendelssohn, Berlioz, Chopin, Schumann, Liszt, Wagner e Brahms são todos detentores de grandes contrastes em relação ao classicismo e, comparativamente, entre eles próprios. No entanto, nomes como Palestrina, Bach, Haendel, Mozart, Haydn, Gluck e Beethoven nunca foram ignorados por estes compositores, já que a existência dos ditos clássicos foi indispensável para que o romantismo na música e as obras dessa época fossem de todo compreensíveis. Há, no romantismo, uma dualidade contrastante entre o que é íntimo e o que é teatral. Por um lado, como exemplo, tem-se a produção algo intimista de Chopin e Schumann que contrasta com a produção de Weber, toda cheia de brilhantismo e que culmina na ópera tal como Wagner, por exemplo. Outro contraste reside no refinamento e personalização que Wagner dava às suas obras enquanto compositores como Weber, Schubert, Schumann e Brahms, mantinham vivos os laços que os uniam ao pensamento popular, que eram ditados pela efervescência social e política, esperança e paixão, luta e revolução 118 . Neste período romântico a ópera impõe-se. Com toda a afinidade que lhe tinha sido incutida através da sua experiência de vida ligando-o ao palcos, Weber mostrou de que forma se podiam utilizar as melodias tradicionais adaptando-as à ópera, libertando, assim, a música alemã da influência italiana e francesa 119 , ou mais exactamente, assimilando- as criativamente. Ele escolheu “falar” ao público, através das suas obras, elevando o que já era tradicional ao nível da capacidade de educar e enriquecer os padrões de apreciação, gosto e crítica do público. Antes da contribuição operática de Weber, a ópera alemã tinha como ícone a Flauta Mágica , de Mozart, limitada, em termos de popularidade, pela filosofia maçónica e pelas características regionais de colorido da música vienense. A ópera de Weber surge de uma forma tipicamente

118 Cf. Alfred Einstein, La música en la época romántica , 1991, pp.14, 15. 119 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997, p.641.

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romântica e nacionalista, com enredos tipicamente germânicos e que o povo podia entender imediatamente. As suas principais composições dramáticas foram Der Freischütz (Berlim, 1821), Euryanthe (Viena, 1823) e Oberon (Londres, 1826). Com Der Freischütz , Weber criou a obra que, pela sua importância, tendeu a ofuscar, injustamente, todas as suas proezas de músico, compositor, maestro, intérprete e organizador de ópera, passando pelo cultivo de reflexões estéticas e críticas 120 . Em 1821, Der Freischütz , marca o nascimento da ópera romântica alemã 121 e influencia profundamente as gerações seguintes, embora durante muito tempo, tenha sido considerado mais importante a sua influência sobre os outros do que as suas composições em si mesmas. Hoje é, indiscutivelmente, considerado um mestre que vale pelas suas influências e pelas suas criações e papel na música do século XIX 122 . Efectivamente, a ópera alemã é a primeira a desenvolver a vertente nacionalista, somente pressentidas anteriormente por Mozart e Beethoven. Marschner e Lortzing foram os seus sucessores imediatos, culminando com Wagner que, pela sua inegável grandeza como compositor, merece uma referência em particular. No século XIX, a criação musical e literária caminharam lado a lado. A literatura não era dirigida só para a aristocracia e caminha ao lado do povo, da cultura leiga. Por esse motivo, acaba por ser uma oposição ao classicismo. Os dois tipos de arte influenciam-se mutuamente. A Alemanha, contrariamente a Itália, não tinha grande tradição lírica. Foi o Singspiel da Flauta Mágica , pela mão de Mozart, que foi o antecessor imediato da ópera romântica alemã e, no início do século XIX, talvez influenciado

120 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 145. Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 7. 121 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997, p.641. Cf. François – René Tranchefort, L’Ópera, 1978, p.182. Cf. Könemann, Ópera, 1999, p.834. 122 Cf. Michael Kennedy, Dicionário Oxford de Música, 1994, pp.779,780.

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pela ópera francesa, o Singspiel vai-se tornando cada vez mais romântico e nacionalista 123 . A ópera romântica alemã difere da francesa e da italiana, porque destaca o fundo natural e espiritual da acção. O seu ideal passa por reunir as qualidades melódicas e expressivas do velho estilo italiano, com o drama e declamação franceses, passando pela tradicional capacidade e mestria alemã na utilização da harmonia e instrumentação, bem assim como a sua natural tendência ou inclinação para a seriedade e profundidade de sentimento. O seu estilo e forma musical têm, assim, sem dúvida, muito em comum com a música de outros países, no entanto, na ópera alemã, as melodias simples, folclóricas, com características alemãs, constituem elementos novos, bem assim como o recurso à harmonia e à cor orquestral para efeitos de expressão dramática. Weber considerava que a ópera francesa dava prioridade aos valores verbais, dramáticos e intelectuais, enquanto que a italiana era mais apaixonada e melódica, embora tivesse declinado com Rossini e seus seguidores perdendo substância 124 . De qualquer das formas, a ópera italiana dá preferência à melodia. Esta diferença pode ser comparável com o equivalente musical da importância que o libreto alemão dá ao clima, ao cenário e ao significado oculto do drama. Nas obras de Weber, abundam características típicas da ópera romântica alemã. As intrigas baseiam-se em histórias medievais, no exotismo do Oriente, em fadas, duendes, lendas, florestas fantásticas e demoníacas, expondo a mitologia germânica e inflamando sentimentos atávicos na alma do povo. As histórias envolvem criaturas e acontecimentos sobrenaturais. Abordam a natureza com os seus mistérios. Referem-se aos medos e às vivências do dia-a-dia. As cenas de aldeãos e trabalhadores dos campos, tal como acontecia com as tendências literárias da época, são chamadas aos palcos.

123 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997, pp.640, 641. 124 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 145.

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Os incidentes sobrenaturais e o cenário natural não eram elementos para enfeitar ou fantasiar; não tinham papel secundário. Eram aplicados e abordados de forma séria, completamente ligados à vida e ao destino das personagens que não eram simplesmente pessoas, já que personificavam e representavam as forças sobrenaturais, fossem elas boas ou más. O desfecho é o triunfo do bem sobre o mal. A vitória é por vezes interpretada em termos de salvação ou redenção 125 . Das três principais óperas, cabe a Der Freischütz o mérito conseguido como manifestação do espírito alemão e o papel mais importante de percursora da ópera romântica alemã.

4.1.1 - Der Freischütz

Entre Abu Hassam e a criação de Der Freischütz decorreram seis anos. Durante este período, Carl Maria teve tempo para, com toda a sua natureza ligada aos palcos, estudar e reflectir sobre questões várias ligadas à sua actividade de compositor, crítico e maestro. «Sa connaissance, son savoir-faire et sa créativité dans ce champ d’activité, [a ópera],sont à l’âge de 31 ans, largement supérieurs à ceux de ses contemporains qui ont approché de prés ou de loin le genre, tels Beethoven, Schubert, Louis Spohr ou E.T.A. Hoffmann» 126 . A fraca identidade da ópera alemã, a falta de libretistas experimentados 127 e a dificuldade sentida pelos cantores em responder às exigências do repertório cosmopolita dos teatros alemães, bem como a falta de apoio institucional dos mesmos, constituíam fraquezas da ópera alemã, bem sentidas por Weber. Assim, durante esta meia dúzia de anos de “interregno”, o compositor pôde pensar em personagens, em drama, na relação com o

125 Concepção que talvez constitua um prolongamento do tema da libertação que muita importância teve na ópera do início do século. 126 Cf. Corinne Schneider, Weber , 1998, p. 10. 127 Que levou Weber a fazer apelos num jornal público. Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p.139.

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palco lírico e em todos os demais pormenores afins. Em suma, ele teve a oportunidade de encontrar os modelos para realizar os seus objectivos, projectos e inspiração em obras que admirava 128 . Em Dresden conheceu o dramaturgo Johann Friedrich Kind, encontro que resultou no planeamento de uma nova ópera. Efectivamente, na data de 21 de Fevereiro de 1817, Kind concorda em escrever o libreto e começa a saga do Freischütz , ao mesmo tempo que Weber vai fazendo planos para o seu casamento com Caroline 129 . Antes do título Der Freischütz , esta obra-prima de Weber foi denominada Die Jägersbraut , (A Noiva do Caçador), título do libreto de Kind, «... Die Jagersbräut... Shortly thereafter, at Brühl’s 130 , recommendation, the title of the opera was changed to Der Freischütz. »131 . Apesar de, na maior parte da sua vida, se afastar da política,132 o nacionalismo de Weber reflecte-se na utilização de melodias simples, folclóricas, com características alemãs. A harmonia e o timbre orquestral são os veículos utilizados para dar corpo à expressão dramática. O libreto alemão dá o clima, o cenário e o significado dramático da situação em si. Der Freischütz tem três actos e foi escrita entre 1817 e Maio de 1820, data em que ficou concluída. Foi estreada a 18 de Junho de 1821 em Berlim, sob a direcção do próprio Weber. O libreto de Kind veio a ser a base para Weber materializar a sua concepção bem amadurecida da ópera como teatro total e, desta forma,

128 Weber considerava e admirava as óperas de Mozart, as óperas comiques de Méhul e Cherubini, o Fidelio de Beethoven, o Faust de Spohr e a Undine de Hoffmann. Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 154. 129 Esposa de Weber, cantora, membro da sua companhia de ópera. Cf. Grove, vol. 27, pp. 139 e 141. 130 O conde Carl von Brühl era intendente do Teatro Real da Prússia. Cf. Grove, vol. 27, p. 139. 131 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, pp. 141 e142. 132 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 157.

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o libretista e o compositor, dão corpo à história que opõe dois mundos: o do bem e o do mal 133 . Esta ópera centra-se no dilema de um homem que vendeu a alma ao diabo a troco de favores terrenos. Queria ele, com a ajuda de sete balas enfeitiçadas, ganhar um concurso de tiro ao alvo e assim conquistar a mão da mulher amada. A tradução literal do título é “um tiro livre” ou “o franco-atirador”. O herói chama-se Max e seis das sete balas mágicas seguiriam o trajecto que ele quisesse. Por outro lado, a sétima iria para onde o diabólico Samiel desejasse. No entanto, o mal, o diabo, acaba por ser enganado: a heroína Agathe está protegida por uma grinalda mágica oferecida por um eremita e a sétima bala não lhe faz mal algum. O mal não triunfa. Tudo termina em bem. O argumento desenrola-se nos bosques da Boémia, após a Guerra dos Trinta Anos. Esta época era fértil em superstições e são estas que durante cerca de três horas são chamadas ao palco. O texto é algo infantil e extravagante, no entanto, a obra é eficaz e o libretista tem o seu mérito. Quanto à música, apesar de genial, por si só não poderia conferir à obra o estatuto de “alemã”; senão vejamos: por um lado, a primeira personagem feminina, a “ingénua”, contrapondo-se à “graciosa”, não era nada de novo, existia já na dramaturgia comum, como era o caso da opéra comique e da opera buffa italiana. O ritmo de polonesa da Arietta nº 7, relacionado com a “graciosa” e a romanza e aria no nº 13, cantadas por esta, são caracteristicamente franceses. A Agathe séria e sentimental tem uma cena e uma ária em Mi M, no nº 8, “Wie nahte mir der Schlummer” (Como poderá chegar até mim o sono) que é uma Scena ed aria ao modo italiano. A importante cena do “desfiladeiro dos lobos”, no final do segundo acto, é tipicamente francesa, herdada de Rameau e dos seus seguidores enquanto que os coros dos caçadores, a marcha dos aldeãos e o coro das damas de honor da noiva, têm características alemãs 134 .

133 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 154. 134 Cf. Alfred Einstein, La música en la época romántica , 1991, p.117.

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O sombrio e fantástico cenário da floresta é idilicamente descrito pelas cordas tocando lento em uníssono e pela melodia das trompas no início da abertura. A floresta é omnipresente. Ela é uma personagem da acção. A lúgubre cena nocturna do “desfiladeiro do lobo” onde são fundidas as balas mágicas ( finale do II acto) surge de forma diabólica. Tremoli dos violinos, pulsação ritmada dos contrabaixos, sons de timbales e recitativo dos violoncelos surgem a seguir ao aparecimento de Samiel. A utilização de quatro tonalidades (Fá# menor, Dó menor, Lá menor e Mi bemol maior) que configuram um harpejo de sétima diminuta resultam genialmente para ilustrar o aparecimento do mal. Os coros são rústicos. As marchas, as danças e as árias combinam-se na partitura, com árias bem ao estilo italiano. A abertura de Der Freischütz não é um mero conjunto de melodias, como acontecia na maior parte das aberturas de ópera do século XIX. Tal como as aberturas de Beethoven, é um andamento sinfónico completo, em forma-sonata, com uma introdução lenta. É uma inovação, porque anuncia as obras programáticas de Berlioz, de Liszt e as primeiras aberturas de Wagner. Tem vários temas e momentos extraídos de várias cenas de ópera. É o caso da ária de Max no primeiro acto, Doch mich umgarnen finstre Mächte , usada no primeiro grupo temático da exposição e na ponte (para além da sua reaparição como música para a fundição da sétima bala, na cena do desfiladeiro do lobo) enquanto que o segundo tema da exposição é a melodia da última parte da ária do soprano Agathe no segundo acto, All’meine Pulse schlagen (“Todas as minhas veias palpitam”). Os doze compassos no final da introdução adagio da abertura, que prefiguram a cena do desfiladeiro do lobo, estão orquestrados e harmonizados de forma a criarem uma atmosfera de mistério. Também a orquestração e o contraste entre Fá# menor e Dó menor, contribuem para a eficácia musical da cena do desfiladeiro, fazendo despontar um clima de horror sobrenatural. Esta abertura contém em si tudo o que é essencial do conflito musical e dramático da ópera, anunciando e denunciando o que vai acontecer. Dentro do que é a forma-sonata, os

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diversos temas, tirados da ópera, acabam por ser resolvidos, com uma vitória do bem contra o mal e configurando-se sonoramente numa cor triunfal de missão cumprida. Na abertura desta ópera, a unidade temática constitui uma inovação musical, já que está estruturada como um movimento sinfónico, onde os temas assumem um papel verdadeiramente estrutural. Outra inovação é o papel primordial das cores orquestrais que surgem graças à unidade de tom na sua escrita operática. É o que acontece, como exemplo, na evocação dos caçadores (sonoridades das trompas) e na presença do demónio (sonoridade graves de cordas, clarinetes, fagotes, etc...). As diferentes tonalidades ilustram em termos sonoros o inferno, a terra e o céu. Conforme o convencionado pela antiga tradição, as tonalidades menores e com bemóis são consideradas escuras, enquanto que as maiores e com sustenidos seriam luminosas. A tonalidade de Dó menor relaciona-se com tragédia e Dó maior com o bem, com o divino. O mal é caracterizado pelo modo menor, por tonalidades escuras, cromatismos, sonoridades pouco comuns, ritmos perturbadores, dissonâncias, síncopas, etc. Ao longo da sua escrita o compositor dá o colorido sonoro correspondente, em jeito de leitmotiv e o quadro auditivo é claramente elucidativo: as cores também contam a sua história 135 . Ao diabólico Samiel corresponde o acorde de sétima diminuta (Lá, Dó, Mib e Fá#), então considerado muito dissonante e, uma única vez, uma melodia e em Dó menor, quando no auge da fundição das balas ele triunfa. Na segunda parte do solo de Max, em que este blasfema e está pronto para se entregar nas mãos do diabo, o compositor escolheu novamente Dó menor. Outro exemplo, está na ária de vingança de Caspar, em Ré m, já que era protegido e vítima de Samiel. O mal é ainda caracterizado por estilos vocais pouco ou nada cantabiles , como por exemplo a flauta e clarinete nos registos graves, na cena do desfiladeiro em que os espíritos invisíveis cantam numa nota só. Ainda outro exemplo da utilização das sonoridades para reforçar ideias é

135 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 154.

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quando Samiel não canta e Max pára imediatamente de o fazer assim que desce ao reino do mal 136 . Por outro lado, Agathe e Ännchen, no início do segundo acto, cantam o seu duo em Lá maior. Quanto ao eremita, como alto representante do bem, faz-se ouvir, em forma de Te Deum e em Si maior. Todos os demais, desde os camponeses, caçadores, Cuno e Kilian, até Ännchen, são representados por tonalidades algo neutras como Sol e Ré maiores. Weber nos três anos que trabalhou nesta ópera, teve com certeza outros afazeres relacionados com a composição e não só. No entanto, o facto de Rossini em pouco tempo apresentar uma e outra ópera dava pressa e urgência à criação de uma ópera alemã. O enorme sucesso popular do Freischütz , que triunfou como «la más alemana de todas las óperas» 137 , deve-se às suas características nacionalistas e à sua música que foi imediatamente reconhecida como um acontecimento de significado nacional, passando pela teatralidade e inclusão de todos os “mistérios” que sobrevêm através do argumento que é bem alemão «y de las tragedias fatalistas alemanas entonces en boga»138 . Está claramente exposto, nesta obra, o poder sugestivo das suas melodias e a sua capacidade e vocação para o efeito cénico. Este sucesso não se repetiu, com a mesma grandiosidade e importância, nem com as obras de Weber, nem com as dos seus sucessores imediatos 139 . O discurso cantado de Caspar, Du weisst, das meine Frist schier abgelaufen ist, (Sabes que o meu prazo está a chegar ao fim) está elaborado de maneira que a sensação é de que a voz vai buscar as notas à orquestra e não a de estar a ser acompanhado por ela. Esta maneira

136 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 155. 137 Cf. Alfred Einstein, La música en la época romántica , 1991, p.116. 138 Cf. Alfred Einstein, La música en la época romántica , 1991, p.116. 139 Schubert, Marschner, Lortzing, Nicolai, Cornelius, Schumann, Spontini, Meyerbeer e Wagner.

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de desenvolvimento orquestral resoluto, contrapondo um motivo à voz, é quase wagneriana. Digno também de referência é o melodrama da fundição das balas. Aqui o texto de Caspar é falado e apoiado em música orquestral contínua. Começa invocando Samiel e, por cada bala fundida, conta eins, zwei, drei , etc., acompanhado pelo eco de cada número que provém das montanhas. Cada bala representa e dá a imagem de uma pequena parte do cenário aterrador e da vida animal da grande floresta. A 1ª bala representa a luz esverdeada da lua, parcialmente oculta por uma nuvem. A 2ª bala, uma ave selvagem que paira acima da fogueira. A 3ª, a corrida de um javali que assusta Caspar. A 4ª, uma tempestade que se anuncia e que acaba por irromper. A 5ª, o galope dos cavalos e o estalar do chicote. A 6ª, o ladrar dos cães e o relinchar dos cavalos. Um coro invisível de caçadores canta sobre uma única nota e Caspar grita seis ! Durante toda a cena Weber recorre a um tipo de orquestração utilizando timbales, trombones e clarinetes no primeiro plano, muitas vezes sob tremoli das cordas. Causando um efeito de surpresa, na melodia e na harmonia abundam intervalos diminutos e aumentados e um cromatismo engenhoso 140 . Estabelecidos os fundamentos da ópera romântica alemã, Weber vai dar o primeiro passo na caminhada que atinge o seu auge com Wagner. Nesta obra, talvez inconscientemente, Weber relembra e dá força à mensagem ditada por poetas românticos, como Novalis, Jean- Paul e Arnim. É o reino do sobrenatural, do fantástico, da floresta do Freischütz que tal como a Flauta Mágica de Mozart, se situam no centro da acção. Como foi referido anteriormente, Weber inova na abertura. Quanto ao tratamento vocal, Weber aposta na variedade dentro da unidade. Certas páginas têm uma simplicidade expressiva soberba, como é o caso da ária de Agathe, no princípio do 2º acto. Outras páginas têm um charme melódico e uma intensidade dramática que

140 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997,p.643.

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revelam alguma diversidade estilística, sem dúvida positiva, o que se situa igualmente na linha da Flauta Mágica .

No desfiladeiro do lobo, ecoam os ecos do mundo diabólico. É romantismo e ópera popular nacionalista por excelência. Sem dúvida que foi marcante e determinante para a inspiração de Wagner 141 . Der Freischütz toca bem fundo na alma alemã, além de lançar as bases do drama musical romântico, inovando pelo seu pioneirismo ao reunir o cantor, o maestro, o homem do teatro e o compositor popular num todo bem coeso. Ainda os ecos de Der Freischütz estavam audíveis e eis que Weber cria a ópera Euryanthe , que viria a ser crucial para o desenvolvimento ulterior de Wagner.

4.1.2 - Euryanthe

Esta foi a única ópera de Weber isenta de diálogos falados. Ele tinha intenção de fazer uma ópera diferente do Freischütz e a uma escala muito maior. Uma ópera menos “popular”. Uma opera seria romântica alemã, não um Singspiel , mas uma ópera completa, «grosse romantische Oper», como a designou no subtítulo. Euryanthe nasce da combinação da grand opéra francesa, segundo a visão de Weber, com a técnica de composição contínua (durchkomponieren ), onde não há divisão por números, numa tentativa de cortar com o costume tradicional de se separarem as árias e os coros, mais a abordagem de assuntos clássicos e a utilização de cenários medievais e do sobrenatural, características estas, da ópera romântica. O mundo da cavalaria medieval expressa-se aqui com seriedade, artifício, elegância e brilhantismo. A continuidade da textura musical, os estilos harmónicos contrastantes que caracterizam as forças em confronto no drama e a recorrência e transformação dos temas musicais, fazem com que a

141 Cf. François – René Tranchefort, L’Ópera, 1978, p.182.

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unidade desta obra seja tanto ou mais perfeita que a de Der Freischütz . A recorrência, ou temas recorrentes não são nada de novo no século XIX, (encontravam-se já no Orfeu de Monteverdi e no próprio Freischütz ), mas foram os compositores oitocentistas que o utilizaram de forma sistemática. Os recursos utilizados por Weber na Euryanthe representam um passo num processo que irá ter a conclusão lógica com Wagner 142 . Consequentemente, é uma antecipação do drama musical wagneriano. «And though Euryanthe all but disappeared from the repertory of the20th century, it is clear that this opera left a profound impression on Tannhäuser and Lohengrin»143 . De Berlioz a Debussy, passando por Schumann, representantes de correntes estéticas opostas, são unânimes no louvor a Euryanthe . A abertura é uma forma-sonata em que os dois temas contrastam. Assim, o primeiro tema é uma marcha que se afirma através dos metais enquanto o segundo tema é cantabile e lírico, quanto baste. Nas suas óperas, Weber considerava a abertura muito importante. Utilizava-a como veículo capaz de expor todo o conteúdo dramático e os sentimentos individuais dos personagens, além de constituir uma obra instrumental independente, dotada de forma e interesse intrínsecos. Em suma, consideramos, após ouvir e ler as aberturas que, só por si, constituem pequenos resumos da ópera. Euryanthe tem três actos e o libreto é de Helmine von Chezy e permite ao compositor Weber, expressar as suas ideias de arte total, mais do que no Freischütz . Escrita em 1822 e 1823, a sua criação ou produção, data de 25 de Outubro de 1828, em Viena. O libreto não é uma obra-prima, mas o mesmo não se pode dizer da riqueza musical. Mais uma vez a batalha entre o bem e o mal; o trovador e cavaleiro Adolar e a sua amada Euryanthe representam o bem. O mal faz-se representar através de Lysiart e Eglantine. É em França que se passa a acção, no princípio do século XII. É um drama de intrigas, lutas

142 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997,p.643. 143 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 158.

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e guerras por causa da pura e casta Euryanthe. É, sem dúvida, através dela que Weber simboliza o sentido heróico da vida e a missão redentora da mulher numa abordagem bem típica dos sentimentos e do drama românticos. No primeiro acto são celebradas pelo conde Adolar as virtudes da sua noiva Euryanthe. Entretanto o conde Lysiart, por esse mesmo motivo, lança-lhe um desafio, pondo em causa a fidelidade de Euryanthe, enquanto que esta descobre que Eglantine é sua rival em relação a Adolar. Entretanto, Eglantine convence Euryanthe a revelar um segredo que esta partilhava com Adolar. No segundo acto, Eglantine revela o segredo ao seu cúmplice Lysiart. Posto isto, no palácio real, Lysiart diz aos quatro ventos que Euryanthe é traidora. Entretanto, Adolar em desespero tem intenção de matar a sua noiva e de se suicidar depois. No terceiro acto, num desfiladeiro montanhoso, surge uma monstruosa serpente e Euryanthe lança-se para o meio de Adolar e do monstro. Adolar abandona Euryanthe e o rei promete proteger a jovem. Entretanto, em Nevers, onde se prepara o casamento de Lysiart e de Eglantine, Adolar aparece e desafia Lysiart para um duelo. Isto leva o rei a intervir a favor de Euryanthe, que casa com Adolar. Eglantine acaba por morrer e Lysiart é feito prisioneiro. A ópera tem assim, como era de esperar, um final feliz 144 . O fantasma da irmã de Adolar, configura outro plano dramático. Este pormenor foi o principal acrescento à intriga original, feito pelos dois intervenientes: o compositor e o libretista. A música é lenta e cromática. Qual espectro sem rumo aparente, representado pelos violinos e violas em divisi , com surdina, ilustrando a existência etérea e inquieta do espírito fantasmagórico, condenado a vaguear eternamente 145 . Desta forma, como efeito dramático, Weber recorre de uma forma intensa a cromatismos.

144 Cf. François – René Tranchefort, L’Ópera, 1978, p.186. 145 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 156

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Esta ópera romântica é grandemente prejudicada pelo seu libreto. É musicalmente que a importância é realçada. De facto, a orquestração é muito bem elaborada e imaginativa. As qualidades musicais da obra são evidenciadas pelos dois planos dramáticos: por um lado, o heroísmo violento e apaixonado; por outro, a melancolia do fantástico e fantasmagórico. Mais uma vez, as cores musicais a significarem as sensações dramáticas. No entanto, talvez o pouco sucesso não se deva só ao texto: «...Weber estuvo muy por delante de su tiempo como se desprende de las críticas apasionadamente hostiles que dirigieron contra él incluso sus proprios colegas, Schubert y Grillparzer» 146 . Com efeito, o seu pouco êxito na altura talvez se deva também ao facto de que, juntando à má aceitação do libreto, a própria música fosse mal digerida. Isto porque as pessoas, habituadas a ouvir Rossini, talvez não estivessem muito predispostas para aquela música que se distanciou do estilo popular do Freischütz . Também não terá sido bem recebido o facto de Weber exprimir cuidadosamente todos os pormenores de sentimento, através de detalhes que quebravam o fluir rítmico e melódico, como aconteceu ao trabalhar a obra, utilizando persistentemente contornos melódicos, instrumentação e progressões harmónicas muito diferentes das habituais 147 . Esta obra é o primeiro exemplo de monta de drama lírico durchkomponiert . A orquestra omnipresente revela o estado psicológico dos personagens. A escrita de Weber revela, por um lado, a transparência mozartiana e, por outro, a potência e poder sonoro de Berlioz. É no segundo acto que Weber mostra ainda mais e melhor o seu génio musical e dramático; e é na ária de Lysiart, atormentadora, rica em recitativos agitados que se encontra uma página mestra do romantismo. No duo de Lysiart e de Eglantine, encontra-se um dramatismo sombrio, o que contrasta com a ária de Adolar, que é lírica

146 Cf. Alfred Einstein, La música en la época romántica , 1991, p.118. 147 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 156.

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e melancólica ao mesmo tempo. Este acto termina de forma patética, com a “prova de infidelidade de Euryanthe”, onde se revela uma escrita coral perfeitamente unificada 148 . Como escreveu Victor Hugo (1802-85), no seu livro “Os Miseráveis”, referindo-se ao coro dos caçadores do 3º acto «...qui est peut-être ce quíl y a de plus beau dans toute la musique» 149 . A terceira das três óperas de Weber, Oberon , ao ser encomendada pelo Covent Garden de Londres, seria, logo à partida, diferente das anteriores.

4.1.3 - Oberon

Oberon ou o juramento do Rei dos Elfos é a última ópera de Weber e, apesar de fiel aos ideais de verdade dramática e cor musical, possui características diferentes das óperas anteriores em termos de composição. Efectivamente, abordou, de uma forma inédita, sons nunca antes ouvidos; dir-se-ia que em jeito de testamento. Enquanto que Der Freischütz é uma ópera de terra e fogo, Oberon é-o de ar e água.

Explicar estas inovações não será tarefa fácil, visto não estar provado nada que explique se teriam sido consequências do libreto ou devido a críticas a que o compositor estaria sempre sujeito, graças aos trabalhos anteriores. O que é facto é que a abordagem motívica é diferente de tudo o que antes tinha criado e, por ser a última ópera, fica-se sem saber se este facto constituiria um progresso ou mudança de direcção no desenvolvimento artístico ou, por outro lado, se Weber propositadamente quis agradar a cantores específicos ou a público diferente. Assim a coloratura na música de Rezia e Hüon é mais forte e maior do que a que utilizaria nas obras precedentes, em situação

148 Cf. François – René Tranchefort, L’Ópera, 1978, p.187. 149 Cf. Victor Hugo, Les Miserábles II, 2005, p. 248.

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similar. O estilo musical de Oberon é mais melodioso e clássico e menos cromático e sonoro que Euryanthe 150 . O libreto é «pobre e desconexo» 151 . Mas, em contrapartida, há passagens ricamente coloridas e alguns bons exemplos de música descritiva. Os ideais de arte total de Weber não são postos em evidência neste libreto. Em contrapartida, o compositor não perdeu a oportunidade de dar uso aos seus pontos fortes. Ele escreveu a música com charme e de forma original. Utilizou o estilo cavalheiresco ocidental com Hüon de Bordéus e com a música da corte de Carlos Magno no Acto III que se baseia no estilo cortês do Euryanthe . As cortes islâmicas de Bagdad e Tunis foram caracterizadas através de melodias turcas e egípcias 152 e a chamada música turca (bombo, pratos e ferrinhos). No reino dos Elfos e dos espíritos da natureza, Weber coloriu de forma ligeira e transparente paisagens sonoras dando-lhes uma clareza nunca vista, bem assim como às músicas do coro da abertura das fadas, das sereias e das fadas no final do Acto II e à música recorrente para flautas e clarinetes que acompanha a personagem de Oberon . É de realçar a música da Tempestade, neste mesmo Acto II, e a majestosa ária do Oceano, que contêm alguma da música mais poderosa de Weber. A orquestração, rica em cores e sonoridades, relaciona Oberon , com o Freischütz, com a diferença de Oberon não ter nada de alemão. Não é um Singspiel mas sim uma ballad opera , já que foi encomendada pelo Covent Garden de Londres. Estreada a 12 de Abril de 1826, a obra tem três actos e o libreto é de James Robertson Planché. Por detrás deste libreto está toda uma tradição de ópera inglesa, ligada ao teatro popular do século XVIII, onde a relevância maior reside no espectáculo visual e com menos impacto na realização musical da acção e do conflito, contrariamente à ópera continental contemporânea. Existem muitos

150 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 157. 151 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997, p.643. 152 Weber encontrou estas melodias na biblioteca da Livraria Real, em Dresden. Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 157.

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papéis onde não se canta. Uma vez mais assemelhava-se a um Singspiel , um pouco ao jeito da Flauta Mágica , mas sem a sua profundidade. De qualquer das formas, a disposição dos personagens principais em dois pares de amantes, a existência do heróico (Rezia e Hüon) e do cómico (Fatime e Sherasmin), a presença de lugares exóticos (Bagdade e Tunis), de efeitos mágicos e transformações em cena (trompa de Oberon ), que salva os personagens principais dos mais variados desaires, o tema iluminista da perseverança humana, que não desiste e enfrenta todas as adversidades com coragem, são, sem dúvida, sinais de paralelismo com o século XVIII e com a Flauta Mágica . Os acontecimentos desenrolam-se no reino de Oberon ; no palácio de Haroun el-Rashid, em Bagdade; nas praias de uma ilha deserta; no palácio do emir da Túnisia e, por fim, em Aix-la-Chapelle, na corte de Carlos Magno. Oberon é o rei dos Elfos e está zangado com a esposa Titania. A condição da reconciliação é encontrarem um casal humano que seja fiel, mesmo sob ameaça de morte. É claro que o romantismo se impõe e, após algumas peripécias, o amor e a fidelidade vencem e tudo termina em bem 153 . A música é por vezes chamada a caracterizar o ambiente, ou a materializar os efeitos cénicos. Como sinal dramático, associado a um personagem, é utilizado o clarinete. Na abertura desta ópera, com três notas “mágicas”, correspondentes à trompa mágica de Oberon , Weber cria e mostra o mistério do mundo encantado.

Cf. François – René Tranchefort, L’Ópera, 1978, p.190.

Na introdução da abertura, a trompa, flauta, clarinete, trompetas e quinteto de cordas, expressam os sentimentos com um cromatismo de

153 Cf. François – René Tranchefort, L’Ópera, 1978, p.190.

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cores desconhecido para o seu tempo, até para Berlioz. Esta introdução indica e marca novas possibilidades de sonoridades românticas. Assim, parecendo menos inspirada que as outras duas óperas, esta nada perde em riqueza musical. De facto, a partitura está bem coesa. Toda a escrita está devidamente concentrada numa riqueza inventiva e diversificada, dignas da importância deste compositor romântico. O dramatismo e a escrita vocal estão excelentemente elaborados. É facto que, com as aberturas das suas maiores óperas, ficou apontado o caminho para as aberturas de concerto poeticamente concebidas e para os poemas sinfónicos do século XIX. Pelas suas qualidades de beleza e de lirismo, a ária de Rezia, “Ozean, du Ungeheur...” e a de Hüon, figuram entre os maiores exemplos do bel canto romântico. Os coros também merecem destaque já que serviram de inspiração a Mendelssohn na sua obra “O Sonho de uma noite de verão” 154 que, aliás, é música de cena para uma peça de Shakespeare, de assunto e personagens muito similares.

4.2 - A escrita vocal operática no tempo de Weber

4.2.1 – A opéra comique

Nos inícios do século XIX, Paris detinha o estatuto de capital da Europa graças à conjugação da Revolução Francesa 155 , do império napoleónico 156 e da herança de Gluck (1714-1787) 157 . A apologia feita

154 Cf. François – René Tranchefort, L’Ópera, 1978, p.191. 155 A Queda da Bastilha em 14/07/1789 marca o início da Revolução que depôs a monarquia de Luís XVI. O lema dos revolucionários era " Liberdade, Igualdade e Fraternidade ". 156 Estabelecido por Napoleão Bonaparte na França, entre 1804 e 1815. Resultou da Revolução Francesa e disseminou os ideais da burguesia em ascensão pela Europa. Teve o seu apogeu cerca de 1810. Chegou ao fim com a derrota na Batalha de Waterloo, em 18 de Junho de 1815. 157 Reformou a ópera: desejou fazer com que a música servisse a poesia e que a abertura fosse relevante para o drama e a orquestração adequada às palavras.

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por este compositor da osmose entre texto e música estabeleceu as directivas que caracterizam óperas posteriores, constituindo-se A Flauta Mágica e, anteriormente, O Rapto do Serralho e As Bodas de Fígaro, em paradigmáticos exemplos. Além destes singspiele de Mozart, também o Fidelio de Beethoven resultou num importante elo de ligação entre a tradição do singspiel e o futuro drama romântico que será preconizado por Weber. Consequentemente, assiste-se ao aparecimento e desenvolvimento de um tipo de ópera séria que associa ao carácter heróico das últimas óperas de Gluck, a atmosfera dos acontecimentos de então 158 . A partir de 1820, a classe média torna-se mais exigente e as salas enchem-se de público relativamente inculto à procura de novas sensações. Neste contexto, três nomes encontram a lógica certa que levará ao surgimento da escola de um novo tipo de ópera: a grand opéra . São eles o libretista Eugène Scribe (1791-1861), o compositor Giacomo Meyerbeer (1791- 1864) e Louis Véron (1798-1867) que era director da Ópera de Paris. A grand opéra dava tanta importância ao espectáculo como à música e influenciou todo o século XIX. Em simultâneo com a grand opéra , os franceses vêm a opéra comique florescer. Esta, desde o século XVIII, diferenciava-se da grand opéra pelo facto de usar diálogo falado em vez de recitativo, constituindo-se como uma parente da opera buffa . A opéra comique serviu como modelo para o desenvolvimento do singspiel alemão e pode assemelhar-se à operetta , consoante o peso do seu conteúdo temático. Com efeito, a alternância de diálogo falado com cenas cantadas, justifica o nome de opéra comique . Esta era diferente da grand opéra , também, nas proporções e nos tipos de temas. A o péra comique era comédia ou drama semi-sério, em contraste com todo o aparato histórico da grand opéra e, através do uso de melodias e ritmos espontâneos e da sua estrutura formal mais do que experimentada, foi responsável pelo revitalizar do panorama musical que nessa altura

158 Ex: La Vestale (A Vestal, 1807) de Gasparo Spontini (1774-1851). Italiano que em 1803 se radicou em Paris. Em 1820 foi director musical da corte de Berlim.

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sofria de uma certa falta de humor. Ela era constituída por árias populares, sobre as quais fluíam as palavras satírico-burlescas. É óbvio que para o público se tornou apetecível e culmina como sendo um género maior do teatro lírico, cujo melhor exemplo é encimado pela Carmen de Bizet. Este género musical oferece, a todos os que nela procuram, um prazer sensual, simples e fácil de assimilar. No contexto da necessidade de cativar público, utilizando melodias sob temas dramáticos ou fantasias românticas, surge a partir da opéra comique mais ligeira a ópera lírica que se situa entre esta e a grand opéra 159 . Na Itália, de forma diferente de França e da Alemanha, o romantismo impôs-se lenta e gradualmente, enquanto que na Alemanha se integrou com vigor. Neste país, que não possuía a tradição lírica que tinha a Itália, teve que se investir em criatividade e, consequentemente, a Alemanha foi palco de experimentações audaciosas que muito contribuíram para influenciar todo o trajecto operático. Se A Flauta Mágica , o Fidélio e Der Freischütz quebraram a estética do singspiel , também conservaram o princípio dos diálogos falados. Desta forma o humor, a sensibilidade, a moral e o popular, aproximam o singspiel da opéra comique e da opera buffa , retirando delas os seus elementos estruturais. Os diálogos falados substituem o recitativo e os meios musicais mantêm-se simples, enquanto abundam os felizes efeitos tímbricos de colorido.

4.2.2 - O bel canto

A lentidão e a forma gradual com que se instalou o romantismo em Itália, deve-se ao facto de os compositores italianos se comportarem de forma conservadora, sem quererem correr riscos desnecessários. A ópera italiana era baseada na sua tradição sólida e era a única manifestação musical do momento, concentrando em si todas as atenções. A opera seria e a opera buffa mantiveram-se lado a lado até

159 Possui proporções mais amplas do que as da opéra comique e menos majestosas do que as da grand opéra .

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que a opera seria manifesta sinais de mudança utilizando mais as madeiras e as trompas e dando um papel mais importante à orquestra e aos coros. É de destacar o nome de Johann Simon Mayr (1763-1845), nascido na Alemanha e fundador da ópera séria italiana 160 . Falar de ópera e de Itália é falar também de Rossini. As suas melodias e a sua capacidade para os efeitos cénicos granjearam-lhe o sucesso merecido. O seu estilo e facilidade vislumbravam-se nas suas melodias que fluíam, nos ritmos vivos e fraseado lúcido e claro. Apesar da estrutura ser equilibrada era, por vezes, pouco convencional em relação ao que se fazia. A textura era leve e a escrita respeita a individualidade de cada instrumento. A estrutura harmónica é algo original e simples. Ele, tal como outros compositores do início do século XIX, utiliza o processo de justapor as tonalidades da mediante à tónica. Utiliza e recorre ao crescendo 161 nas suas obras e defendeu a tese de que a ópera era a maior e mais importante forma de elevar e representar o canto. Acreditava-se em Itália que a missão da ópera consistia em fazer as delícias dos ouvintes. Deviam comovê-los com as suas melodias bem espontâneas e populares, mas sem recorrer a sentimentalismos, configurando assim um ideal nacional que contrabalançava as diferentes ideias e opiniões que a França e a Alemanha tinham sobre a ópera 162 .

4.2.3 - O Volkslied

O Volkslied 163 aparece na Alemanha e a sua principal característica é o facto de poder ser cantado por vozes amadoras, mal preparadas. Traduz os estados de alma colectivos (Stimmung) de um

160 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997, p.633. 161 A animação crescente era conseguida através das repetições de uma frase, cada vez mais forte e aguda. 162 Cf. Donald J. Grout – Claude V. Palisca, História da Música Ocidental, 1997, p.634. 163 Do alemão; canto popular.

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povo 164 . Não se trata de cantos com origens populares, o Volkslied tem uma origem complexa. Herder 165 em 1778-79, ao publicar o seu repertório de Volkslieder , dá uma definição que pode encaixar-se na definição de todo o folclore. Diz ele que tem que ser um testemunho de autenticidade. Não é uma arte elaborada. É uma arte de espontaneidade. O Volkslied deve ser antigo, anónimo e belo. Assim tem de excluir toda a trivialidade e encaixar-se nos padrões estéticos do pré-romantismo alemão. Esta definição de Herder está conforme a concepção filosófica de que o povo é uma comunidade de cariz quase místico, em função da situação histórica, clima, terra natal, etc. É no contexto ligado ao movimento do Sturm und Drang , que se situam os melhores Volkslieder . A mais célebre recolha é a do poeta Arnim e do seu cunhado Brentano, Des Knaben Wunderhorn 166 , que data de 1805-08 e comporta mais de setecentas peças. No século XIX, o Volkslied arrasta consigo uma vontade de pedagogia colectiva. São os militares, as igrejas e as escolas que o espalham e divulgam. Por este meio, o povo expressa a sua própria sentimentalidade. Desta forma, Herder e a sua definição de Volkslied perdem terreno e as peças líricas (embora baseadas no popular) tomam o lugar das peças anónimas. Agora as peças são de poetas e/ou músicos identificados. A função do Volkslied é o canto colectivo e diverge em função dos diferentes grupos sociais que o utilizam. Por vezes, são simples canções para crianças, romances sentimentais e canções de rua. Nos doze anos do nacional-socialismo, o Volkslied serviu para exaltar algumas formas de juventude e força. O Volkslied conservou algumas características para a sua utilização em grupo: forma estrófica com a eventual repetição de certos versos, ritmos acusados e simplicidade tonal. Os grandes temas utilizados na poesia alemã são utilizados; são temas de viajantes, de

164 Não se trata nem pode ser confundida com o canto folclórico. 165 O primeiro e um dos maiores compositores de Volkslied na Alemanha. 166 A Trompa Mágica do Rapaz.

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árvores, água, partidas e regressos, amores impossíveis, camaradagem, morte, vagabundagem, etc. Ainda hoje a fonte para o Volkslied não está esgotada. Formam-se cantos que servem de veículo a contestações sociais e ecológicas 167 .

4.2.4 – A síntese weberiana

Por paradoxal que possa parecer, a criação da ópera nacional alemã passa não apenas pela exaltação das características musicais nacionais, mas igualmente por uma síntese das várias tendências em presença. Aliás, Weber definia a ópera ideal como «une oeuvre d’art cohérente et finie en soi, où toutes les parties et tous les éléments des arts apparentés mis à contribuition se fondent et en quelque sorte disparaissent pour former un monde nouveau»168 , a fusão sonhada das artes (a futura Gesamtkunstwerk) wagneriana que passa igualmente pela síntese das estéticas; caminho já magistralmente apontado por Bach e genialmente realizado por Mozart no Singspiel, A Flauta Mágica . Nos estilos vocais, é igualmente patente essa tendência a ponto de que aquilo que comentadores como Einstein, tentam apontar como fraqueza ou, pelo menos, contradição na profissão de fé nacionalista romântica é em Weber, não só apurada síntese, como também recurso dramatúrgico. Basta comparar, por exemplo as personagens de Ännchen e de Agathe em Der Freischütz para ver o relevo que o emprego, sucessivo ou simultâneo, do estilo bel canto da soubrette e a linha legato mais próximas do lied , da ama, podem ter de admiravelmente eficaz. E se é certo que quando falamos em vocalidade temos tendência para pensar numa certa simplicidade do Volkston ou no virtuosismo do bel canto , é forçoso constatar que a paleta de Weber é larga e integrada. Disso, aliás, a escrita instrumental do II andamento do GDC, evoluindo da

167 Cf. Alain Melchior - Bonnet, Dictionnaire de la Musique, 1990, p.852. 168 Cit. por MarcVignal in AAVV, Weber Euryanthe, L’avant Scène opera, nº 153, Editions Premières Loges, 1993, p. 4

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simplicidade para a elaboração e voltando à simplicidade primeira, sem soluções de continuidade, é disso um belo testemunho.

4.3 - Constantes expressivas nas obras consideradas

É tempo de lançar os tentames de um estudo mais aprofundado das relações de uma partitura como o Grande Duo Concertante , com a produção operática posterior de Weber que, recordamos, verá nascer três obras-primas, após um interregno, preenchido com o notável e popular acervo de obras para clarinete. Tendo em conta que, ao falar de vocalidade em Weber, bem podemos falar de vocalidades, já que nos encontramos perante um cadinho onde se fundem harmoniosamente as variadas tendências da época, voltamo-nos para algumas similitudes já detectadas e procuraremos esmiuçar as implicações expressivas e retóricas. As passagens inegavelmente vocais situam-se nos andamentos II e III. O quadro seguinte confronta a primeira parte do tema A de II com três frases extraídas de outro tantos números de Oberon . Os exemplos da ópera foram transpostos a fim de facilitarem a comparação:

Ex. IV/1

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As frases são extraídas do nº9 ( ariette de Fatime) “Arabiens einsam Kind” , do nº 15 ( aria de Fatime) “Arabien mein Heimatland” e do nº 18 ( cavatine de Rézia) “Trauere, mein Herz” . Em todas deparamos com momentos em que o desalento, a saudade da terra natal e a tristeza são predominantes, o que corresponde bem à indicação de carácter con duolo , que aparece no Grande Duo Concertante . No terceiro andamento, a secção C, em Réb M, possui no seu início uma clara premonição de uma passagem do Freischütz , (estando o exemplo do GDC transposto para facilitar a comparação):

Ex. IV/2

A passagem em questão, para além de ser utilizada na abertura (no clarinete!) aparece sempre associada à personagem de Max e acompanhada por tremoli de cordas — com as palavras “O dringt kein Strahl durch diese Nächte?” (nº 3) e “Ha! Furchtbar gähnt der düst’re Abgrund!”. Verificamos a associação com o desespero e as trevas; ou seja um patético mais turbulento e negro do que as passagens anteriormente referidas. Uma relação, talvez mais analítica e da ordem da organização dramatúrgica, é a do motivo r, que sugere uma irresistível associação com a famosa cena e aria de Agathe “Wie nahte mir der Schlummer”.

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Ex. IV/3

Esse grupetto associado à alegria e ao desejo da personagem é sujeito a uma progressiva expansão, gesto formal que encontramos igualmente na obra instrumental de que nos ocupamos, em que as diversas aparições do refrão aumentam em dinâmica e densidade do acompanhamento. Aliás, é curioso referir que o grupetto faz a sua aparição numa outra situação de desejo e espera (“ Sehnen, Verlangen ”), no final do primeiro acto de Euryanthe.

Ex. IV/4

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A originalidade do GDC consiste na deformação “demoníaca” que o motivo r sofre na secção C que precisamente antecipa o Freischütz. Outra singularidade, é a maneira, de grande profundidade dramatúrgica, como r está contido, in nuce , no segundo andamento, promessa subterrânea da alegria vindoura. Torna-se claro, portanto, que o percurso expressivo da obra, entrevisto pela análise, puramente musical e, em particular, a do plano tonal, está ligado a um complexo afectivo-retórico-musical que encontrará plena expressão nas óperas de maturidade. Sem perca do seu valor intrinsecamente musical, o GDC foi um autêntico laboratório para a diversidade de afetti indispensável a um compositor dramático. A consciência dessa dramaturgia implícita (em que é igualmente uma personagem a relativa objectividade da forma-sonata inicial) é uma mais-valia inegável para a fruição da obra e para a sua interpretação.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

«Thus for Weber music is a language of the passions whose principal goal is to arouse the feelings of the listener»169 . Como forma de linguagem, Weber reservou à música a tarefa de representar, relatar e transmitir as ânsias, medos e sonhos humanos. Assim, ele escreveu com a intenção de despertar os sentidos nos ouvintes, quase manipulando vontades. Invocou todos os medos, alegrias, dramas, lendas, revelou a viabilidade do bem ao confrontar-se com o mal e, em suma, serviu a música, fazendo-a soar como quis, ou como sentiu; as tonalidades ou cores, as melodias populares nacionalistas, os ritmos e as ideias musicais extra razão, em que o coração impera. «...the traditional primacy of vocal music, inasmuch as he considers it to be more deeply immersed in human activity than are the genres of instrumental music »170 . Com efeito a música vocal, segundo Weber, interage mais naturalmente com a actividade humana. Ela é o veículo perfeito para a transmissão de ideias e ideais. Não estão em causa as palavras em si, mas sim e completamente, o seu significado, sentimento e singularidade, existentes por detrás delas. «He abhorred “imitation” of non musical effects, and his remarks on vocal music make it clear that he sought to express through music not the words themselves but rather the feeling behind them » 171 . Weber preza os conceitos de verdade, carácter e integridade. Com efeito, ele transmite esses valores nas suas composições e esperará que os intérpretes tenham essa mesma leitura e capacidade de a transmitir. Desta forma a má interpretação pode resultar em deturpação da verdade ou do carácter. E, se a composição e a interpretação detêm em si verdade e carácter, é absolutamente imprescindível que deixem transparecer a

169 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 146. 170 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 146. 171 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 146.

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personalidade, tanto do compositor, como das suas ideias ou dos seus ideais, (« Kolorit , Farbengebung ») 172 . Na ausência de carácter, ou com o mesmo deturpado, não haverá integridade na obra: «...melody, harmony, orchestration, verbal and scenic means, etc, into a “Haupt- und Totaleffekt” as well as the “organic” subordination of successive parts and details to the whole » 173 . No caso do Grande Duo Concertante , cremos ter entrevisto, a sua profunda ligação à ópera, tanto pela emulação do estilo vocal, como e, mais importante ainda, pela comum base retórica. Desta forma, o Grande Duo Concertante terá funcionado como o antecipar da experiência operática conseguida com Der Freischütz e depois com as obras posteriores. Tanto mais que a produção para clarinete coincide com o interregno na produção operática do compositor. A seu modo, as obras para clarinete e, em particular, o Grande Duo Concertante foram reflexão sobre e trampolim para esplendores futuros.

172 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 146. 173 Cf. Stanley Sadie, The New Grove Dictionary of Music and Musicians , 2001, vol. 27, p. 146.

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