UNIVERSIDADE FEEVALE

DANIELA CARVALHAL ISRAEL

DO MITO AO MANGÁ: O fluxo entre mitologia, história e

Novo Hamburgo 2017

DANIELA CARVALHAL ISRAEL

DO MITO AO MANGÁ: O fluxo entre mitologia, história e Dragon Ball

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale.

Orientador: Prof. Dr. Daniel Conte

Novo Hamburgo 2017

DANIELA CARVALHAL ISRAEL

Dissertação de Mestrado, com o título DO MITO AO MANGÁ: O fluxo entre mitologia, história e Dragon Ball, submetida à banca examinadora, como requisito parcial necessário para a obtenção do título de Mestre em Processos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale.

Aprovado por:

Professor Dr. Daniel Conte Orientador

Professor Dr. Rodrigo Perla Banca Examinadora

Professor Dr. Demétrio Paz Banca Examinadora

Novo Hamburgo, agosto de 2017.

O gosto de minha morte na boca deu-me perspectiva e coragem. O importante é a coragem de ser eu mesmo. Nietzsche

AGRADECIMENTOS

Escrever esses agradecimentos não é tarefa fácil. Meu coração pulsa rápido, nervoso. Os olhos enchem de lágrimas. Foram três anos de fortes emoções, e são tantas pessoas que me ajudaram a chegar até aqui, que a tarefa de colocar em palavras minha gratidão surge como mais um grande desafio desta jornada. Agradeço aos mestres da ciência, aqueles pensadores que pude conhecer nos livros, em todas as minhas leituras, e que me abriram para um mundo muito maior do que já havia imaginado. Agradeço por mostrar o tamanho da minha ignorância e por me inspirar a aprender. Agradeço, admirada pelos seus trabalhos, a todos os mestres que conheci pessoalmente: meus professores do mestrado da FEEVALE. No nome da professora Dra. Juracy Saraiva, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Processos e Manifestações Culturais, deixo meu agradecimento especial a todo corpo docente do curso. Ao meu professor orientador, professor Dr. Daniel Conte, gostaria de agradecer por tantas lições! Obrigada, mestre, por aceitar partir nesta jornada comigo rumo ao Extremo Oriente. Obrigada pela paciência e por me ensinar a ver o mundo de uma forma mais poética, apesar de toda a tristeza da vida. Um soco no estomago não dói tanto quando temos amigos. A minha mãe, meu pai e minha irmã, deixo um agradecimento carinhoso, não apenas por esse tempo em que cursei o mestrado, mas por todos esses 30 anos de vida. Vocês são minha fundação. Ao meu marido, Pedro, confesso que é mais difícil ainda agradecer em palavras. São tantos agradecimentos a fazer, por tantas ações que fizeste em minha vida e que me ajudaram a chegar até aqui. Obrigada por me ajudar a me encontrar. Obrigada, por construir comigo um relacionamento no qual posso ser Eu – um Eu que consegue levar para o mundo acadêmico um assunto de infância. Te amo e te amarei em minhas sete vidas. Agradeço também à vida! Só que, para mim, essa vida tem nome e sobrenome. Agradeço, com um sentimento de eterna gratidão, a toda equipe do Hospital Moinhos de Vento e do Núcleo Mama. Em especial, dirijo um abraço apertado a minha mastologista, Dra. Maira Caleffi, e a minha oncologista, Dra. Daniela Rosa. Sem – literalmente – Santa Maira, Doce Norah e Anjo Dani, não estaria

viva para terminar este trabalho. Assim, como ninguém vence um câncer sozinha e ninguém escreve uma dissertação sozinha, agradeço a você, leitor, por ser o agente final deste trabalho. Sem você, nada disso teria sentido. Obrigada e boa leitura!

RESUMO

O estudo das histórias em quadrinhos japonesas ainda é assunto tabu na academia brasileira. Os poucos trabalhos que existem orbitam no campo da comunicação, em grande parte como uma análise discursiva ou semiótica, com foco na materialidade da imagem. Nessa perspectiva, os estudos culturais e interdisciplinares surgem como uma nova possibilidade de produzir conhecimento sobre a arte sequencial. Através do entendimento de que as histórias em quadrinhos são um fenômeno poético complexo, este trabalho propõe uma reflexão sobre a obra Dragon Ball, buscando encontrar uma relação entre a criação contemporânea, os mitos fundadores do Japão e o percurso histórico do arquipélago. Guiado pelas considerações bachelardianas de que o mito ressurge na arte para reativar e reviver os devaneios primitivos, o presente estudo adota a seguinte problematização: são os mangás uma narrativa capaz de reativar e reviver tanto um passado mitológico como historiográfico por meio da construção de suas personagens? Com os autores Mircea Eliade (1907-1986), Ernst Cassirer (1847-1945), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Gaston Bachelard (1884-1962) e a mitocrítica de Gilbert Durand (1921- 2012), a pesquisa responde que existe, na latência da narrativa de Dragon Ball, com destaque às personagens Goku e Bulma, uma atualização dos mitos fundadores e um redizer da oficialidade histórica.

Palavras-chave: Mitologia. História. Literatura. Mangás. Japão.

ABSTRACT

The study of Japanese comics is still a taboo subject in Brazilian academy. The few works that exist orbit in the field of communication, largely as a discursive or semiotic analysis, focusing on the materiality of the image. From this perspective, cultural and interdisciplinary studies emerge as a new possibility to produce knowledge about sequential art. Through the understanding that comics are a complex poetic phenomenon, this work proposes a reflection on the Dragon Ball, aiming to find a relationship between contemporary creation, the founding myths of Japan and the historical journey of the archipelago. Guided by the Bachelardian considerations that myth resurfaces in art to reactivate and revive the early reveries, the present study adopts the following guiding question: is the narrative of capable of reactivating and reviving both a mythological and historiographic past through the building of its characters? With the authors Mircea Eliade (1907-1986), Ernst Cassirer (1847-1945), Claude Lévi-Strauss (1908-2009), Gaston Bachelard (1884-1962) and Gilbert Durand's myth-criticism (1921-2012), the research reveals that there is an update of the founding myths and a redemption of official historical in the latency of the narrative of Dragon Ball, highlighting the characters Goku and Bulma.

Keywords: Mythology. History. Literature. Manga. Japan.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Evolução e uso dos kanji ...... 73 Figura 2: Processo de construção da imagem no Japão ...... 74 Figura 3: Ordem de leitura ocidental nas HQ’s ...... 80 Figura 4: Ordem de leitura oriental dos mangás ...... 81 Figura 5: Possibilidades de transição narrativa ...... 83 Figura 6: O caminho do olhar em Sakura Card Captor ...... 85 Figura 7: A materialidade do som no mangá ...... 87 Figura 8: Uma garota comum transforma-se em guerreira! ...... 90 Figura 9: O golpe secreto (e sensual) de Naruto ...... 93 Figura 10: Influências chinesas em Dragon Ball ...... 101 Figura 11: Quadrinho de abertura do mangá DB ...... 104 Figura 12: Landscape in winter ...... 107 Figura 13: Landscape in autumn and winter ...... 108 Figura 14: Comparações ente DB e obras de Sesshu Toyo ...... 109 Figura 15: O totem sagrado de Goku ...... 113 Figura 16: A latência do yin-yang em Dragon Ball ...... 124 Figura 17: A proporção áurea em DB ...... 126 Figura 18: Goku e Bulma partem para a aventura ...... 129 Figura 19: A negação ao ato sexual ...... 131 Figura 20: Goku conhece uma garota ...... 132 Figura 21: As dúvidas de Goku e Bulma ...... 134 Figura 22: Capas de DB com Goku e Bulma ...... 135 Figura 23: Goku faz um convite a Bulma ...... 137 Figura 24: Goku conhece as cápsulas hoipoi ...... 139 Figura 25: O encontro de Bulma e Goku ...... 141 Figura 26: O primeiro contato corpo a corpo ...... 144 Figura 27: O processo de reconhecer o Outro ...... 146 Figura 28: Exemplo do uso da sexualidade ...... 149 Figura 29: O pedido de socorro de Bulma ...... 151 Figura 30: O motivo da busca das esferas do dragão ...... 153 Figura 31: Goku e Chichi ...... 156 Figura 32: Exemplos de alteração do olho diante a morte ...... 160 Figura 33: O estranho que vem do mar ...... 163 Figura 34: A Shimenawa marcando a entrada sagrada ...... 164 Figura 35: Son Goku liberta diferentes locais ...... 173

LISTA DE QUADROS

Quadro 1: Os desejos de Sheng Long ...... 116 Quadro 2: Diferenças entre Goku e Bulma ...... 143

SUMÁRIO

1 PARA INICIAR OS TRABALHOS ...... 11

2 EM BUSCA DAS ESFERAS DO DRAGÃO ...... 17 2.1 O RADAR DO DRAGÃO: A MITOCRÍTICA COMO MÉTODO ...... 20 2.2 O FENÔMENO EM ANÁLISE: DRAGON BALL ...... 25

3 O PERCURSO HISTÓRICO DO JAPÃO ...... 30 3.1 SOBRE A OCIDENTALIZAÇÃO ...... 41 3.2 É ÉPOCA DE GUERRA ...... 50 3.3 O MILAGRE ECONÔMICO ...... 62

4 MANGÁ: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E ESTÉTICOS ...... 72 4.1 A POÉTICA DO MANGÁ ...... 78 4.2 O HERÓI DE NANQUIM ...... 95

5 ENTRE ORIGEM MÍTICA E CRIAÇÃO CONTEMPORANEA ...... 99 5.1 DO ESPAÇO-TEMPO E DOS DESEJOS: ANÁLISE SISTÊMICA ...... 101 5.2 O ARCABOUÇO MÍTICO E DRAGON BALL ...... 117 5.2.1 Goku & Bulma: diásporas em fluxo ...... 127 5.4 UM DESEJO PARA CONTRADIZER A CONDIÇÃO HUMANA ...... 157

6 DO MITO AO MANGÁ E DO MANGÁ AO MITO OU CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 166

REFERÊNCIAS ...... 176

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1 PARA INICIAR OS TRABALHOS

É fundamental iniciar explicando que, a partir da década de 1980, um Japão diferente vem levemente deixando sua marca cultural no Brasil, o que se pode perceber pela permeabilidade que tem nos mecanismos e na ossatura socioeconômica brasileira. Na visão de Sato (2007), o imaginário ocidental sobre o Japão, construído com base nos samurais, nas gueixas e nos templos foi, lentamente, transformando-se em uma imagem diferenciada, de uma nação capaz de se reconstruir por completo após a guerra, “cada vez mais ocidentalizado em sua forma, mas revelando aspectos tão antigos quando os das imagens tradicionais” (SATO, 2007, p. 28). Para a autora, essa relação, que se iniciou com a exportação de produtos de baixa qualidade e que passou a aparelhos eletrônicos, deixou no imaginário do Ocidente não somente a busca por produtos de alta tecnologia, mas, também, sua herança cultural que paliativamente foi se estendendo nos processos e nas manifestações da cultura brasileira, híbrida por natureza. A partir de certo momento, observa a autora, tudo que era produzido no Japão começou a ser cobiçado no restante do mundo, e os brasileiros passaram a consumir mais que carros, videocassetes e walkmans; passaram a consumir algo mais abstrato: sua influência cultural (SATO, 2007). Nesse intercâmbio, os produtos midiáticos, em especial os mangás, como são chamadas as histórias em quadrinhos japonesas, tornaram-se percussores da difusão do imaginário japonês para além do Extremo Oriente. Diante disso, a adoração ocidental pelos mangás tem se apresentado como uma situação exemplar da transformação n as relações de poder entre Oriente e Ocidente. Assim, em 1980, quando os primeiros mangás começaram a ser enviados para fora do Japão, o desprezo ocidental pelos japoneses foi resumido na manchete do The Wall Stress Journal: “Adultos no Japão ainda leem quadrinhos e têm fantasias” (GRAVETT, 2006, p. 13). No entanto, quatro décadas depois, grande parte dos jovens ocidentais aguardavam ansiosamente a estreia mundial da versão hollywoodiana do filme Ghost in the Shell. Sob o título brasileiro de A vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell, direção de Rupert Sanders e atuação de Scarlett Johansson, o filme é uma

12 adaptação norte-americana, produzida em live action (com o uso de atores reais), de um dos longas-metragens animados mais bem sucedidos de todos os tempos na cinematográfica japonesa. Todavia, apesar de uma intensa campanha publicitária, o filme apresentou um prejuízo estimado de US$ 60 milhões, devido ao que os executivos, críticos e jornalistas chamaram de polêmica do branqueamento (whitewashing) – uso de atores ocidentais interpretando personagens orientais. Situação semelhante aconteceu com a adaptação, também norte-americana, do mangá Dragon Ball, sob o título Dragonball: Evolution, que, em 2009, foi 1 considerado o filme mais odiado ainda não lançado . Nesse filme, a grande crítica produzida pelos fãs do produto original deu-se em virtude da construção e das motivações dramáticas das personagens. É possível perceber que, no longa- metragem, o protagonista Son Goku foi construído com base em um estereótipo ocidental de herói, já que, por exemplo, sua transformação e sua evolução ao longo da narrativa audiovisual se baseiam no interesse sexual: é pela fêmea que Goku liberta seus poderes ocultos. No entanto, segundo a diegese da obra original japonesa, tal construção seria completamente inverídica. Na tentativa de entender esse processo de adaptação ocidental das narrativas orientais, o artigo da Vanityfair2 “Is a Disappointing Ghost in the Shell the Nail in the Coffin of Hollywood Whitewashing?”, expôs que “é cada vez mais impossível ignorar o impulso social quando se trata de representação asiática no cinema e na televisão”. Em sincronia, o jornal The Guardian discorre que os habitantes do Extremo Oriente têm “motivos especiais para se sentir prejudicados, tendo visto sua cultura regularmente saqueada, apropriada, estereotipada e higienicamente limpa”3. O jornal encerra a matéria com uma forte constatação: quer se trate da atuação de ocidentais em papeis orientais, ou situações mais complexas de apropriação cultural, o coro progressivo de vozes mundiais exige o fim da reprodução branca ocidental das propriedades do imaginário asiático.

Pensando nessa ordem, é importante ressaltar que o estudo dos casos de whitewashing e de apropriação cultural entre ocidentais e orientais é necessário, mas,

1 HEROCOMPLEX, 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2017. 2 O site VANITYFAIR é reconhecido pelo meio cinematográfico como um dos mais importantes portais de críticas do cinema. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2017. 3 THE GUARDIAN, 2017. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2017.

13 por sua complexidade, é insustentável em uma dissertação de mestrado. É necessário, pois, avançar em partes, acumulando conhecimentos e respeitando processos metodológicos. Diante disso, esta pesquisa se constrói como um espaço de reflexão inicial sobre mangás, imaginário e mitologia, com foco na dialética entre os protagonistas, contribuindo, assim, com mais um passo rumo à compreensão do arcabouço mítico e midiático do arquipélago japonês. Assim sendo, este trabalho parte da prerrogativa de que a formação discursiva japonesa, em especial seu sistema mítico-religioso, ainda é estranha ao olhar ocidental e que estudos da literatura das histórias em quadrinhos no âmbito acadêmico podem contribuir para o desmembramento das muralhas do imaginário nipônico. Em uma análise empírica sobre os mangás publicados no Brasil, é possível perceber que existe uma presença constante de histórias, personagens e cenários mitológicos que dialogam com problemas contemporâneos do sujeito comum. Nessa perspectiva, Seganfredo (2011, p. 7) afirma que grandes empresas japonesas como a Sega, Capcom, Konami, Koe e Namco, desenvolveram inúmeros produtos midiáticos com temas ou forte teor mitológico e que, no Ocidente, através dos desenhos animados, dos mangás e das séries para televisão, os jovens de todo o mundo foram, “pouco a pouco, conhecendo as lendas mitológicas do Japão, que foram sendo incutidas no inconsciente coletivo ocidental, influenciando-o progressivamente e poderosamente”. Enfatiza, ainda, a autora, que não é por menos que a “mitologia japonesa é, sem dúvida alguma, a mitologia do mundo que mais cresceu na cultura popular e continua crescendo acentuadamente nas últimas décadas em riqueza e influência” (SEGANFREDO, 2011, p. 8). Entre todos esses produtos midiáticos japoneses, encontra-se, nas histórias em quadrinhos (HQ´s), um espaço privilegiado para propagar o arcabouço mitológico, visto que a popularização do mangá em território japonês é expressamente significativa. Para citar alguns números, em 1980, no auge do milagre econômico, “atingiu-se o volume de 4,3 bilhões de livros e revistas produzidos, dos quais 27%, ou seja, 1,16 bilhões destinavam-se a publicações de histórias em quadrinhos” (LUYTEN, 2012, p. 17). O Instituto de Pesquisas Editoriais do Japão calculou que, entre 1945 e 1995, foram lançados mais de dois bilhões de títulos em mangás (SATO, 2007). Em 1995, um total de 2,3 bilhões de livros e revistas de HQ’s foram impressas e quase dois bilhões de unidades vendidas, o que representa uma média de quinze

14 unidades por habitante. De acordo com Gravett (2006), em 2002, os mangás representavam 38% das publicações do mercado editorial. Sob a perspectiva de que cada “sociedade cria suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada uma a presença e atuação deles” (CANDIDO, 2004, p. 175), é possível que na literatura do mangá se encontrem pistas do que constitui o imaginário japonês. Materializado em bilhões de páginas, o mangá revela dos traumas coletivos aos medos individuais, da ideia de beleza à de sedução, do ideal de força à austeridade, da visão do Eu à do Outro, enfim, todo sistema do que se pode entender sobre a expressão “identidade japonesa”. Isso posto, fica claro que, ao discorrer sobre literatura, mídia e imaginário, este trabalho deve abordar, obrigatoriamente, a mitologia e, consequentemente, a historiografia, já que importantes estudiosos, como Lévi-Strauss (2012), Campbell

(2007) e Eliade (1994), apontaram para a complexa relação existente entre a mitologia e a sociedade japonesa. Sob a luz desses autores, que afirmam que o Japão é um caso singular no qual os mitos se mantêm vivos e são atualizados e revividos por diferentes experiências, a presente pesquisa se propõe a analisar justamente este fenômeno: o fluxo entre a origem mítica, a oficialidade histórica e a criação contemporânea – neste caso, o mangá de Dragon Ball (DB). Para avançar, é necessário compreender as narrativas mitológicas como as entendiam as sociedades arcaicas, ou seja, como uma “história verdadeira”, imbuída de um notório “caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE, 1994, p. 7). No caso do Japão, a veracidade e a atualidade de seu sistema mítico são visíveis quando se observa que, mesmo no período em que o país viveu sob um regime autoritário, nem mesmo os grandes generais “quiseram ou não tentaram derrubar o trono, porque compreendiam a impossibilidade de destruir uma dinastia que representava o centro do culto religioso nacional” (YAMASHIRO, 1964, p. 28). Sakurai (2014, p. 52) reforça essa afirmação, quando expõe que “apesar de inúmeras guerras internas pelo exercício do poder, nunca houve de fato tentativa de usurpação do trono imperial durante toda história japonesa”, de forma que é possível observar nesse exemplo que a crença mitológica de que a família imperial é descendente da deusa Amaterasu perpetuou-se no imaginário da nação. Com base nesse exemplo, é impossível desconsiderar a interferência da

15 mitologia na construção da nação japonesa e, por consequência, em seus produtos midiáticos. Ainda que seja oportuno reforçar que não registra uma história verdadeira em termos científicos, o mito é verdadeiro enquanto é eficaz (ARMSTRONG, 2005). O mito “vive” enquanto sustenta um paradigma de comportamento humano. Todas essas considerações somadas à perspectiva bachelardiana, segundo a qual o mito ressurge na arte para reativar e reviver os devaneios primitivos, fazem nascer o problema e a hipótese desta pesquisa. Pergunta-se: são os mangás uma narrativa complexa capaz de reativar e reviver tanto um passado mitológico como historiográfico por meio da construção de suas personagens? As considerações sobre mito de Eliade (1994), Cassirer (2006), Lévi-Strauss (2014), Durand (1985) e a poética de Bachelard (1998, p. 19), que compreende que o poeta (ideia que se estende aqui para o autor) se apoia no mito, porque reconhece nele “uma ação permanente, uma ação inconsciente sobre as almas de hoje”, fazem surgir a hipótese deste estudo. A saber: existe, na latência das personagens Goku e Bulma, um reviver dos mitos fundadores tanto quanto um redizer da oficialidade histórica. A definição do corpus desta pesquisa, o mangá Dragon Ball (DB), se dá pelo sucesso da obra, sua permanência no imaginário japonês e seu alcance internacional, em um recorte que engloba apenas a primeira fase, conhecida como Dragon Ball, excluindo-se, assim, as histórias e os capítulos que o Ocidente conhece como . A investigação será de natureza bibliográfica, tendo por base, ademais dos conhecimentos relativos ao mito, a teoria do imaginário e a análise teórico-crítica da obra Dragon Ball, de Akira Toriyama, sob a perspectiva da mitocrítica de Gilbert Durand (1921-2012) e estudiosos da mitologia, como Mircea Eliade (1907-1986), Ernst Cassirer (1847-1945) e Gaston Bachelard (1884-1962). A sistemática do trabalho segue a seguinte forma: revisão de fontes bibliográficas e identificação de novas fontes no que tange às relações entre literatura, história, imaginário, mito e, por fim, a análise do corpus. O objetivo geral deste trabalho é analisar a apropriação de eventos mitológicos e históricos e o tratamento ficcional que lhes é dado no corpus Dragon Ball com foco nas personagens principais. Os específicos são: 1) apresentar os conceitos de imaginário e mito; 2) apresentar as histórias em quadrinhos japonesas em sua dimensão social, estética e a construção do herói; 3) explanar sobre os mitos fundadores e a História do Japão até o final do século XX. Para que se consiga atingir esses objetivos, o trabalho divide-se em cinco

16 capítulos, além da introdução e das considerações finais. Ao segundo capítulo, cabe o aparato metodológico; ao terceiro, o percurso histórico do Japão; ao quarto, as HQ’s japonesas e suas características estéticas. No quinto capítulo, faz-se a análise, em que se apresenta o percurso mítico, com vistas a destacar os momentos em que a narrativa DB “manifesta” o mito ou a História. O aporto teórico não está encapsulado em um capítulo próprio, assim os conceitos norteadores e o referencial teórico se encontram diluídos conforme o trabalho avança. Dessa forma, enquanto o percurso mítico é apresentado ao leitor, a análise da obra Dragon Ball se fará presente quando necessária. Cabe à introdução, ainda, explicar o porquê de esta pesquisadora ter escolhido abordar essa temática. Aqui, permito-me escrever na primeira pessoa do singular e limito-me a dizer que foi no contato com os produtos midiáticos japoneses durante minha formação discursiva que me identifiquei com aquela visão particular de mundo, seus signos e suas significações. Foi quando pisei em Tóquio que me vi como sujeito autônomo e consciente de si — não foi em São Paulo, Rio de Janeiro ou Nova Iorque. Essa constatação, no entanto, não implica negar a brasilidade que me constitui. Ainda que aprecie a cultura japonesa e venha me dedicando a estudá-la, tenho consciência de que “a busca pela significação dos signos, envolve sempre uma posição axiológica pautada pela relação entre sujeito e mundo, e é sempre atravessada por valores” (FARACO, 2009, p. 49). Como sujeito, não busco me “ajaponizar”, sou brasileira demais para tal. Como pesquisadora, tenho discernimento de que a interpretação que construirei será sempre pautada pela ótica de um gaijin – aquele que “vem de fora” – isso porque o resíduo em que “se encontra a essência mais íntima da cultura permanecerá para sempre inacessível, mesmo se dominamos a língua e todos os outros meios exteriores de abordá-la” (LÉVI- STRAUSS, 2012, p. 12). Como viajante, ansiosa para descobrir novos mundos, e como pesquisadora, instigada a encontrar respostas, convido a adentrar o trabalho.

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2 EM BUSCA DAS ESFERAS DO DRAGÃO

Gaston Bachelard (2000) ensina que o ato poético nasce no instante do sonho, em um átimo irrepetível e sem passado. Cada ato, no entanto, é outro ato, pois é outro instante e todos esses atos, presos às páginas, perpetuam-se graças ao devaneio de um sonhador. Assim, o “ato do poeta faz sonhar”, e o sonhador –— o sujeito que recebe, aqui entendido como o leitor — não pode reviver o ato primeiro, mas pode partir na busca por um efeito de sentido se a ele o devaneio lhe for permitido (BACHELARD, 2000, p. 300). Na fenomenologia da imaginação, Bachelard instiga a necessidade de pensar em um retorno sistemático ao Eu, em um esforço para a tomada de consciência do propósito de um ato poético. Visto dessa forma, cada nova imagem poética traz uma origem absoluta, um lapso da consciência mítica, e é por essa razão que, na busca por achados simbólicos, “uma imagem poética pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio de um poeta” (BACHELARD, 2000, p. 1). Sob a luz das ideias do autor, compreende-se a imaginação, não oposta ao real, mas aceita como realidade que tende a um futuro, uma força que salvaguarda o sujeito de sua condição humana mortal. Nessa perspectiva, a imaginação constrói “hipóteses de vidas que alargam a nossa vida dando-nos confiança no universo” (BACHELARD, 1998, p. 8). São, pois, universos novos, tão fortemente imaginados, que o leitor revive através do ato poético as forças que animam o ser, que movimentam “a origem em nós e fora de nós” (idem, 2006, p. 195). Assim, o fenômeno de ser — da experiência, do devaneio — manifesta-se diante dos olhos e “enche de luz o leitor que aceita as impulsões de imagens do poeta” (idem, 1998, p.195). Se o devaneio for permitido, o “leitor conhecerá a imaginação em sua essência, porque a viverá em seu excesso, no absoluto de uma imagem inacreditável” (1998, p.197). Todavia, no pensamento racional, adverte Bachelard, o ato poético é visto como uma realidade fisiológica, em um embate que trataria de elucidar os problemas da união do corpo com a alma. Na visão bachelardiana, no entanto, os atos poéticos são entendidos como a “realidade da imaginação, como puros produtos da imaginação” (BACHELARD, 2000, p. 300). Nesse devaneio, indaga o autor: “por que os atos da imaginação não haveriam de ser tão reais quanto os atos da percepção?” (BACHELARD, 2000, p.

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300). A questão é complexa, porque o imaginário tem algo de imponderável (MAFFESOLI, 2001). Na visão de Maffesoli (2001), o imaginário jaz na atmosfera, é uma dimensão ambiental, uma força social de ordem espiritual, mas, também, uma construção mental, que se mantém ambígua. O imaginário pode ser sentido, percebido, porém não quantificável. Para o autor, o imaginário se apresenta como um “estado de espírito que caracteriza um povo. Não se trata de algo simplesmente racional, sociológico ou psicológico, pois carrega […] um certo mistério da criação ou da transfiguração.” (MAFFESOLI, 2001, p. 75). Entendido dessa forma, o imaginário não é diretamente observável e, no entanto, ele é. Ciente da condição humana do olhar, o sujeito não vê o imaginário, mas é capaz de senti-lo, pois ele está aqui e, por fissuras, manifesta-se na ambiguidade da criação poética, por exemplo, no sorriso da Mona Lisa (ORLANDI, 1997, p. 47). É importante destacar que o imaginário não se reduz à cultura — entendia como um complexo de fenômenos passíveis de descrição —, como a noção de cultura também não se reduz ao imaginário. Ademais, nos estudos de Gilbert Durand (2007), a própria ideia de cultura não pode ser concebida se não se admitir que há algo a mais. A visão de Durand, gestada com base na poética de Bachelard, do qual o autor foi aluno, frente à condução orgânica do homem, de sua mortalidade e de seu devir, o sujeito estabelece construções imaginativas que se dispõem a negar o destino final da matéria. Para o autor, o imaginário é o “conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens” imerso em um paradigma do qual se origina todo o pensamento humano (DURAND, 2007, p. 14). O imaginário, explica Durand, manifesta-se “como atividade que transforma o mundo” (DURAND, 2007, p. 432). É uma “imaginação criadora”, mas que, em especial, direciona sua força a transformar e minimizar o trauma da existência humana (DURAND, 2007, p. 432). O imaginário surge do acúmulo secular das construções simbólicas, como um repositório fecundado, uma espécie de “bacia semântica”, espaço em que os fenômenos se formam e se multiplicam (DURAND, 2007). São essas construções imaginativas — esses devaneios, o ato poético ou a imagem poética — que se materializam na produção e reprodução de imagens, mitos e arquétipos.

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Se a ideia do imaginário de Durand surge da experiência e da consciência humana da finitude, os arquétipos e os mitos tornam-se instrumentos importantes para a compreensão do funcionamento do imaginário. Nessa perspectiva, o autor retorna ao conceito de arquétipo de Jung — em sua imagem primordial —, ao passo que defende que o arquétipo se insere na fundação do pensar humano. Para o autor, é por meio da forma de funcionar dos esquemas primordiais, que os arquétipos transformam-se em ideias e os símbolos, em palavras. Ao passo que, para Jung (2002), os arquétipos são imagens, personagens, papéis a serem desempenhados em um processo de individualização do sujeito, do inconsciente ao consciente. Na teoria jungiana, os arquétipos são pressupostos estruturais de imagens, esquemas estruturais que existem no inconsciente coletivo. Este trabalho adota a ideia do arquétipo de Durand (2007, p. 60-61), compreendido como esquema mental resultado de um procedimento da imaginação, vivido ou aprendido, tal como núcleo agregador das produções culturais dos sujeitos. Sob a perspectiva do autor, esses esquemas ganham status de arquétipos no momento em que atuam como estereótipos, papéis sociais e visões de mundo, em uma construção tensional entre o que é fornecido pelo ambiente e os esquemas subjetivos do homem. O importante a destacar é que, da soma de esquemas e arquétipos, emerge o mito. O mito, por sua vez, manifesta-se como tentativa de racionalizar o arquétipo, através de um relato, uma narrativa, uma história. Organizado sob uma construção discursiva, o mito pulsa um arquétipo e manifesta sua atuação no Homem. Assim, mito e arquétipo são únicos, não são, porém, a inspiração para a arte, mas sim sua essência (MELETÍNSKI, 2002, p. 31). Seja sob a fenomenologia da imaginação ou sob a teoria de Durand (2007), o imaginário pode ser percebido como um repertório fértil para o efeito do um (o sentido literal) e também para o não-um (os muitos sentidos e suas formas latentes inexploradas) da produção do pensamento humano. Assim, se a ação de significar se dê pelo fluxo do imaginário — do sujeito e do sentido — talvez, para uma fenomenologia da imaginação, só seja possível significar se os fenômenos forem estudados e observados, por métodos discursivos, históricos e críticos. Dessa forma, diante do ato poético, do fenômeno em sua materialidade, e ciente de que “sem considerar a historicidade do texto, os processos de construção

20 dos efeitos de sentidos, é impossível” avançar, parte-se para a explanação do processo metodológico (ORLANDI, 1997, p. 47).

2.1 O RADAR DO DRAGÃO: A MITOCRÍTICA COMO MÉTODO

Permear com a teoria do imaginário, os estudos do mito, os devaneios bachelardianos e as histórias em quadrinhos parece uma aposta ousada. Os estudos das HQ’s, frequentemente, buscam outros ventos. Aliás, uma dificuldade que se apresenta a quem estuda narrativas sequenciais em quadrinhos, sejam comics4, gibis ou mangás, está em definir por qual campo semântico estudá-las. José Marques de Melo (2012) problematiza tal questão em seu texto Quem tem medo dos quadrinhos?5, em que expõe os preconceitos acadêmicos em torno do estudo de HQ’s e a dificuldade em categorizá-las em determinada área do conhecimento. A perspectiva adotada neste trabalho propõe estudá-las como uma manifestação de caráter literário, em que o termo literatura compreende, da forma mais ampla possível, “todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore [...], até as formas mais complexas e difíceis de produção escrita” (CANDIDO, 2004, p. 175). Compreendida dessa forma, a literatura “aparece claramente como manifestação universal de todos os homens em todos os tempos” e “não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação” (CANDIDO, 2004, p. 175). Com esse entendimento, estudar HQ’s como uma manifestação literária resulta em inseri-las em uma ampla discussão, que transpassa a reflexão sobre a identidade e os aspectos ligados à problemática da representação e o papel da literatura na construção social. Estas considerações, somadas à relação que a sociedade japonesa tem com sua mitologia e ao pressuposto de que a consciência teórica, prática e estética, a linguagem, o conhecimento, as artes, as leis, a moral e as formas de Estado encontram-se, primordialmente, relacionadas à consciência mítico-religiosa

4 Neste trabalho, adota-se a expressão comics, para fazer referência às HQ’s de origem norte- americana, e gibis, para as de origem brasileira. 5 O artigo faz parte da obra Cultura pop japonesa: mangá e animê, organizada por Sonia B. Luyten e publicada em 2012 pela editora Hedra. O livro, organizado por Vergueiro, Ramos e Chinen, Os pioneiros no estudo de quadrinhos no Brasil, de 2013, também aborda essa questão.

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(CASSIRER, 2006), levam a eleger a mitocrítica de Gilbert Durand (1985) para orientar esta pesquisa. Antes de discorrer sobre esse processo metodológico, é oportuno abordar outras duas questões. Primeiro, não se encontrará neste trabalho uma análise do autor Akira Toriyama enquanto sujeito individual. Bachelard elucida essa questão quando expõe, no que se refere ao autor, “seus sonhos, seus devaneios, sua força vibrante e criadora estão nas páginas que ele escreveu” e que, para construir uma interpretação, “não é necessário recorrer a seu passado, a sua vida” (BACHELARD, 1998, p. 14). Segundo, convém reforçar o problema e a hipótese desta pesquisa. O problema central deste estudo, construído por meio de um processo de observação empírica dos principais mangás que chegam ao Ocidente e que foram capazes de impregnar imaginários infanto-juvenis, indaga: são os mangás uma narrativa complexa capaz de reativar e reviver tanto um passado mitológico como historiográfico por meio da construção de suas personagens? Seguindo o pensamento bachelardiano, segundo o qual o mito ressurge na contemporaneidade através das manifestações poéticas (artísticas), para “reativar” e “reviver” os devaneios primitivos, e traz uma “ação permanente, uma ação inconsciente sobre as almas de hoje” (BACHELARD, 1998, p. 19), a hipótese descortina-se: existe na latência das personagens Goku e Bulma um reviver dos mitos fundadores tanto quanto um redizer da oficialidade histórica.

A relação entre mito, literatura e história já foi estudada por muitos. Ruthven (1997), por exemplo, expõe que o estudo da mitologia envolve distintos campos do conhecimento, como os estudos culturais, a antropologia, a história das religiões, a linguística, a psicologia e a história da arte. Não obstante, o autor destaca que, no que se refere à literatura e ao mito, muitos escritores, após o entendimento amplo de que o mito funciona como tradutor de emoções, passaram a incorporar em suas obras literárias as lições postas pela mitologia. Na conjuntura entre mito e literatura, Ruthven (1997) expõe que o mito está conectado à literatura e que os destinos de ambos são indissociáveis e persistem ao passar do tempo.

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Sobre a relação entre mito e história, Lévi-Strauss (2010) questiona justamente onde e como encontrar a linha que “divide” mitologia e historiografia. Nas sociedades primitivas, nas quais não há registros escritos, só há tradição oral e os eventos do passado são distantes, como encontrar o momento em que “acaba a mitologia e onde começa a História?” (LÉVI- STRAUSS, 2010, p. 51), questiona o antropólogo. Diante dessa pergunta, o autor afirma que, comparando uma sociedade sem documentos aos povos com arquivos, descobre-se que História e mitologia desempenham a mesma função: ambas têm “por finalidade assegurar, com um alto grau de certeza — a certeza completa é obviamente impossível —, que o futuro permanecerá fiel ao presente e ao passado” (LÉVI- STRAUSS, 2010, p. 55-56). Nessa reflexão, o autor destaca que é pelas fissuras e fendas do estudo das histórias que se pode conceber a historiografia não como oposição à mitologia, mas, sim, a História como uma continuação da mitologia, ou seja, como um trajeto único da experiência humana. Visto dessa forma, o mito se transforma em História, como também a própria História se mitifica. Assim, a

[...] incursão do mito na história complementa-se pela invasão do âmbito dos mitos pela história, porque ambos os processos tentam evadir a inefabilidade dos eventos isolados: por compreender que o realmente acontecido (res gestae) é conhecível somente através de um relato do que aconteceu (historia rerum gestarum), o historiador torna-se uma espécie de fazedor de mitos contra a sua vontade. (RUTHVEN, 1997, p. 22).

Pensando nessa ordem e em confluência com a teoria do imaginário no qual o passado pode ser imaginado/criado, Ruthven (1997) discorre que o mito surge, também, como embate da História com as necessidades do homem. Na visão do autor, a sociedade se ocupou de transformar eventos míticos “em acontecimentos possíveis, ou seja, em acontecimentos históricos. Dessa forma, os povos fariam sua História criando primeiro os mitos” (RUTHVEN, 1997, p. 20). O mito surge como História do homem e como um direito universal, uma criação primordial, encontrada em todas as sociedades humanas já estudadas, mas com a qual cada sujeito – e cada povo – cria, significa e faz uso à luz de suas próprias preocupações sócio- histórico-culturais (RUTHVEN, 1997, p. 15).

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Ciente das relações entre mito, literatura e história, a metodologia aplicada a este trabalho será a mitocrítica proposta por Gilbert Durand (1985). Corria o ano de 1970 quando o autor apresentou à crítica o conceito de mitocrítica, para construir uma metodologia científica que se constitui em um “método de crítica literária (ou artística), em sentido estrito ou, em sentido ampliado, de crítica do discurso que centra o processo de compreensão no relato de caráter ‘mítico’ inerente à significação de todo e qualquer relato” (DURAND, 1985, p. 253). Para o autor, essa forma de análise trabalha com forças centrípetas, buscando o que Cassirer (2006) chamou de “formas simbólicas”, passíveis de serem encontradas em um relato simbólico ou na narrativa mítica. Nessa abordagem, a mitocrítica se aprofunda no texto (na obra, no documento, na imagem...), buscando identificar as “metáforas obsessivas” manifestas no mito. Na caça a essas metáforas obsessivas, o crítico encontrará as preocupações sócio-histórico-culturais da época. Devido a isso, a desconstrução do mito e de seus mitemas não pode caminhar sem uma explanação histórica e uma contextualização social. O mitema, aliás, identificado como a menor unidade de discurso miticamente significante (DURAND, 1985, p. 253) é a base que consiste na identificação do mito. É o desmembramento da obra em mitemas e suas características que vão permitir a construção da mitocrítica, e é também a presença dos mitemas, que, ao atingirem certa quantidade significativa, vão identificar que nesta ou naquela obra reside um mito (é um processo circular). Assim, para o autor, no “âmago da mitocrítica, como do mito, situa-se, pois, o mitema” — sob outra perspectiva, é esse o “átomo mítico de natureza estrutural” o conceito do arquétipo. A relação entre mito, mitema e arquétipo (o que Durand chama também de natureza estrutural), explicada através de uma metáfora, poderia ser assim: o arquétipo é um espaço vazio na prateleira de uma biblioteca. Esta prateleira é, então, preenchida por livros (os mitos). Cada livro carrega consigo um conjunto de lições (os mitemas). No final, em um ambiente simbólico, são as lições, e não os livros, que preenchem a prateleira. É o conjunto de lições repetidas que vai construir a força constitutiva e formadora do arquétipo. É como se o arquétipo fosse um buraco e os mitos com seus conjuntos de lições (os mitemas) fossem o enchimento (DURAND, 1985, p. 255).

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Segundo a ideia de que um mitema carrega um conteúdo específico (uma lição), que pode ser um motivo, um tema, um cenário, um emblema, uma situação, a mitocrítica permite revelar “os recalques, as censuras, os costumes ou ideologias” de determinada época e espaço. Ademais, o mitema ainda pode se manifestar de duas formas diferentes, sendo um modo “patente” e outro “latente” (DURAND, 1985, p. 254). Pela visão de Durand (1985), entende-se que o modo patente pode ser observado pela repetição explícita dos conteúdos do mitema, enquanto o modo latente é visível pela repetição de seu esquema de intencionalidade implícita. Para o autor, a abordagem de uma obra na mitocrítica pode ser realizada em etapas nas quais, paulatinamente, vai se decompondo o mito em mitemas (em unidades menores de objeto de análise). Para construir essa interpretação, Durand indicou um procedimento metodológico dividido em três passos. O primeiro envolve construir um “levantamento dos ‘temas’, por vezes, dos motivos redundantes, se não ‘obsessivos’, que constituem as sincronias míticas das ‘obras” (DURAND, 1985, p. 253). O segundo momento impõe examinar os dados obtidos no item combinando situações, personagens e cenários. Por último, destacam-se as lições do mito, como também as correlações da lição de um mito com outros mitos de uma época ou de um espaço cultural bem determinado. Nessa perspectiva, o autor acredita que “o duplo efeito dessa abordagem mitocrítica, por um lado da ‘obra’ e, por outro, pelo confronto com o momento mítico da leitura e da situação do presente leitor, são obtidas conclusões interessantes” (DURAND, 1985, p. 254). Assim sendo, a metodologia proposta neste trabalho respeitará as três etapas descritas por Durand, buscando em especial as construções latentes das personagens em Dragon Ball que se correlacionam ora com os mitos fundadores ora com o percurso histórico do Japão. Para tal, a sistemática da análise segue os passos a seguir:

1) Leitura integral da obra e busca por redundâncias; 2) Contextualização mítica e historiográfica do Japão; 3) Identificação das correlações entre (1) obra e mito e (2) obra e História, tanto nos aspectos patentes como latentes; 4) Reflexões dos achados com base na poética bachelardiana.

Ainda que a pesquisadora tenha realizado esses passos separadamente, a

25 análise será construída através do fluxo cronológico da criação mitológica. Dessa forma, o fio condutor das reflexões não será a obra estudada, mas, sim, os elementos míticos. É oportuno reforçar que esta pesquisa é resultado de um curso de mestrado de caráter interdisciplinar. Isso significa que este não é um estudo unicamente antropológico, histórico, literário ou comunicacional e que a interdisciplinaridade permite, resguardadas as particularidades e respeitando os possíveis conflitos axiológicos, articular autores de diferentes áreas do conhecimento. Outra decisão metodológica a ser apresentada refere-se ao processo de “romanização”, que trata da transcrição das palavras nipônicas ao alfabeto romano. Neste trabalho, usar-se-á o método Hepburn, largamente utilizado no ensino de japonês como idioma não-nativo, que convencionou construções silábicas com letras ocidentais equivalentes a cada uma das silábicas japonesas. Para facilitar a leitura, expressões japonesas incluídas nos dicionários de português e palavras de uso comum a estudos dessa natureza serão escritas de forma “aportuguesada”, tais como: mangá, animê, xógum, quimono, gueixa, saquê, Tóquio. Para as outras palavras, nomes e expressões japonesas, o método Hepburn será utilizado. No Japão, os nomes próprios são apresentados da seguinte forma: primeiro o sobrenome e depois o nome, todavia, aqui serão escritos da forma ocidental (nome- sobrenome). Quando relevante, algumas palavras portuguesas serão traduzidas para o japonês e aparecerão com sua grafia romanizada entre parênteses e vice- versa. Por fim, reforça-se que no idioma japonês não existe plural, que é permitido o uso da letra “n” tanto no fim como sem a procedência do “b” ou “p”, como é o caso da palavra shinkansen (trem-bala), e que no uso de vogais longas a grafia aparece repetida, como é o caso de kawaii (fofo, gracioso).

2.2 O FENÔMENO EM ANÁLISE: DRAGON BALL

A materialidade em que se pode construir uma mitocrítica é, desde a perspectiva durandiana, muito variável, e, por isso, destaca o autor, é importante o pesquisador atentar para a escala. Essa preocupação acontece porque, à medida que os objetos passíveis de estudo aumentam em quantidade, mais as “referências” se potencializam. Essas “referências” que Durand elenca são aquilo “que fundamenta o procedimento mesmo do sermo mythicus, a saber, a repetição, a redundância”

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(DURAND, 1998, p. 131). Reforçando o pensamento do autor, encontra-se a posição de Lévi-Strauss, na qual percebe-se que aquilo que sinaliza um mito é a “redundância” e a possibilidade de organizar as narrativas em “pacotes” (enxames ou constelações) de mitemas sincrônicos (DURAND, 1998, p. 132). Assim sendo, se mito repete, discorre Durand (1998, p. 132), “repete-se para impregnar, ou persuadir. É por esta razão banal que há mais chance de delimitarem-se os elementos ‘mitocríticos’ em um longo romance do que em um conto breve”. Em suas observações sobre a metodologia da mitocrítica, Durand (1998) esclarece que há seis níveis na escala do discurso que o pesquisador deve considerar no momento da escolha do objeto e do corpus. O primeiro nível envolve o título, que pode ser significativo, sobretudo se for redundante. O segundo encontra- se nas obras de pequeno porte, tais como o soneto. O terceiro, que abrange obras de grande dimensão, como coletânea de poemas e romances, já encontra na mitocrítica uma forma eficaz de análise. No quarto nível, o autor inclui a obra completa de determinado autor, desde que envolva entre quinze e sessenta anos de sua vida e seja possível encontrar nela redundâncias temáticas ou dramáticas e seja, também, possível distinguir fases diferentes na carreira. Os últimos dois níveis abrem uma escala muito maior. O quinto nível considera que a análise de uma obra completa permite “examinar ‘épocas históricas’ de uma cultura em seu todo” (DURAND, 1998, p.133). O sexto e último nível abrange um terreno de pesquisa que articula um espaço e um tempo capazes de atingir uma imemorialidade, e é aí, então, que a o mito revela sua dinâmica, seus nuances e toda sua amplitude. Isso posto, justifica-se a escolha do mangá Dragon Ball como objeto de análise deste trabalho. Primeiro, porque constitui uma obra de grande dimensão: são mais de quinhentos capítulos publicados semanalmente em um período de 10 anos; segundo, por suas características narrativas (suas redundâncias semânticas), e, por fim, pelo espaço que ocupa no imaginário tanto japonês como ocidental (em especial no europeu e americano). De autoria de Akira Toriyama6, Dragon Ball é seu trabalho de maior sucesso e

6 Apenas uma breve citação ao autor: Akira Toriyama iniciou sua carreira em 1978 com o mangá Wonder Island, publicado na revista Weekly Shonen Jump. Dr. Slump é o título do primeiro mangá de sucesso do autor e foi publicado semanalmente na revista Shonen Jump entre os anos de 1980 e 1984, resultando em uma obra com 18 volumes encadernados e uma versão em animação com 243 episódios exibidos de 1981 a 1986, pelo canal de televisão Fuji TV, e, posteriormente, reprisados entre os anos de 1997 e 1999.

27 foi publicado pela primeira vez em 20 de novembro de 1984, pela revista Weekly Shōnen Jump, e seu último capítulo foi lançado em 23 de maio de 1995. Ao todo, foram desenvolvidos 519 capítulos e, aproximadamente, 15.000 páginas de história, reunidas em 42 volumes7. A obra foi adaptada para uma versão em animação, transmitida na televisão japonesa entre os anos de 1986 e 1996. Em sua versão animada, a HQ foi dividida em duas fases, sendo elas: Dragon Ball, que narra os acontecimentos ocorridos nos primeiros 16 volumes (capítulos 1 até 192), e Dragon Ball Z, que cobre os eventos dos outros 26 volumes (do capítulo 193 até 519). No que tange à permanência da obra no imaginário japonês, pode-se citar o exemplo do trabalho realizado pela empresa Oricon Style8, que em 2012 realizou uma pesquisa para descobrir quais mangás eram considerados os mais importantes da história pelos japoneses. Em primeiro lugar, estava Dragon Ball, mesmo depois de 17 anos do fim de sua publicação. O mangá foi publicado semanalmente entre dezembro de 1984 e junho de 1995. A versão em desenho animado foi exibida na televisão entre 1989 e 1996 e, desde então, a série é continuamente reprisada. Em 2015, a obra foi retomada com episódios inéditos tanto em versão em desenho animado quanto em mangá9. No final de 2016, a organização dos jogos Olímpicos de Tóquio em 2020 anunciou o protagonista de Dragon Ball, Son Goku, como um dos embaixadores oficinais do evento. Junto com outras importantes personagens da cultura pop japonesa, Goku vai assinar os produtos e os anúncios publicitários das Olimpíadas sob o slogan Ganbare Nippon (“Faça Seu Melhor, Japão!”)10. Dessa forma, não é por coincidência que, quando se chega a Tóquio, na saída do salão de desembarque de um dos mais importantes aeroportos do país, um imenso pôster com o protagonista e seus amigos dá as boas-vindas aos que chegam. Não obstante, a narrativa de Dragon Ball e sua popularização na Espanha, em especial na região da Catalunha, é considerada uma das principais precursoras

7 A edição que será usada como referência neste trabalho é a publicação de 2014, da Panini Brasil LTDA, com tradução de Drik Sada e o total de 42 volumes. 8 A Oricon é uma empresa de pesquisa que monitora e elabora relatórios sobre vendas de mídia de entretenimento. Assemelha-se ao IBOPE no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 20 mar. 2016. 9 Até a entrega deste trabalho (2017), os episódios inéditos do desenho e do mangá continuam em produção e exibição. 10 A expressão “Ganbare” é muito conhecida entre o público apreciador da cultura pop e representa um grito de motivação. Algo próximo de expressões motivacionais brasileiras, tais como: “ Força! Vamos lá! E sforça-te! Dê o seu melhor!”. Disponível em: . Acesso em: 20 abr. 2017.

28 da difusão internacional das HQ’s japonesas. Quando a versão em desenho animado da série estreou na televisão espanhola em 1990, a “obra desencadeou uma ‘dragonballmania’ — iniciada pelo próprio público, sem nenhuma espécie de campanha publicitária — e motivou [...] uma enxurrada de cópias xerox do mangá original entre os fãs” (MOLINÉ, 2004, p. 96). Em 1992, o mangá foi traduzido e publicado oficialmente. Da versão espanhola, a obra migrou para o restante da Europa, para os Estados Unidos e para a América Latina. A aceitação, tanto internacional quanto a permanência do sucesso nacional, somada às características da obra em si foram os critérios utilizados para a escolha da HQ do Dragon Ball como corpus desta pesquisa. De forma resumida, em toda a saga de Dragon Ball e Dragon Ball Z11, heróis e vilões objetivam se apoderar das esferas do dragão, o que resulta em uma caça ao tesouro, mas que, ao mesmo tempo, narra a história da vida de Son Goku, de sua infância até a idade adulta, passando por sua morte e ressurreição. Ainda que existam diferenças entre as duas fases da história, de vilões atrapalhados a alienígenas altamente treinados, Goku está sempre disposto e entusiasmado a salvar a humanidade e seus amigos, mesmo que isso lhe consuma sua vida. Além de derrotar os vilões, o protagonista Goku aprimora seus conhecimentos de artes-marciais, sua capacidade de interagir em uma sociedade complexa e de se relacionar com o Outro. Em Dragon Ball, as aventuras do herói são permeadas de situações de humor somadas às batalhas entre Goku, seus amigos e vilões, que eventualmente se confrontam em torneios de luta. Já em Dragon Ball Z, observa-se Goku adulto, casado, com filhos e mais poderoso. Nessa fase, o protagonista assume compromissos maiores em relação ao mundo, tornando-se responsável por defender o status quo contra grande quantidade de vilões, que surgem para destruir o planeta. Todas essas fases da vida do protagonista representam um simulacro da vida real, em que os pontos mais importantes da história humana estão expostos na materialidade da obra. Além da divisão DB e DBZ, a obra ainda é dividida em sagas menores (temporada, trama, história, arco...), sendo que cada uma narra um drama central com início, meio e fim bem marcados e com premissa dramática definida, porém

11 Por convenção: Dragon Ball (DB) corresponde aos primeiros 192 capítulos e Dragon Ball Z (DBZ), aos outros 327 capítulos do mangá.

29 correspondem a um número variável de capítulos. Salvo os intervalos e as conexões narrativas, essas sagas orbitam pela busca das esferas do dragão, por torneiros de luta ou por fazer a humanidade sobreviver. Se a obra Dragon Ball em sua plenitude envolve 15 mil páginas nas quais figuram aproximadamente 45 mil quadrinhos, urge, então, falar sobre o recorte desta pesquisa. Pela impossibilidade temporal de construir uma mitocrítica que englobasse a totalidade da obra, o recorte se centrou no que Durand (1998) conceituou como “método qualificativo”. Esse método trabalha com “algumas” partes da obra e busca qualificá-las (em outras palavras, analisá-la na busca por seus significados). A busca por esses “alguns” é guiada pela presença da redundância — a entidade que firma o mito (DURAND, 1998, p. 134). Assim, a delimitação do objeto envolveu a escolha por trabalhar apenas com a fase inicial da obra — do capítulo 01 até o 192 —, excluindo tudo que se conhece na fase “Z”. Dessa forma, a pesquisa apresenta uma análise sistêmica da obra de Dragon Ball e uma análise em profundidade do primeiro capítulo da obra, intitulado Goku e Bulma. Essa escolha se deu porque esta fase apresenta uma estrutura circular de narrativas e, assim, uma tendência à repetição. A primeira pista da redundância narrativa encontra-se entre o título e a história e dialoga com o primeiro nível do discurso que Durand (1998) enunciou na mitocrítica. Na fase inicial do mangá, os 192 capítulos, as esferas do dragão, que dão título à obra, apresentam a obsessão das personagens, tanto dos heróis quanto dos vilões. As diferentes sagas que ocorrem nesse período narrativo discorrem sobre o processo de busca desses objetos, enquanto na fase DBZ as esferas passam a ocupar um espaço reduzido e amenizado. A segunda pista atenta à sistemática da obra que, de forma circular e repetida, abrange fases de busca das esferas, tempos de treinamento e torneios de luta. Explicados os processos metodológicos (a mitocrítica), justificada a escolha do objeto e a proposta de recorte (apenas a fase de DB), apresenta-se a seguir o contexto histórico para a posterior construção da análise.

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3 O PERCURSO HISTÓRICO DO JAPÃO

Bachelard (2000, p. 183) ensina que sempre que se busca correlacionar uma imagem a um arquétipo adormecido é necessário aceitar que essa relação não é casual, não é uma coincidência gestada pelo poeta e que a “imagem poética não está submetida a um impulso”. Não é, também, eco de um passado perdido no tempo, todavia, é pela exploração de uma imagem que o “passado longínquo ressoa em ecos”. Nesse ponto, Bachelard (2000, p. 182) adverte que “as causas alegadas pelo psicólogo e pelo psicanalista não podem jamais explicar bem o caráter realmente inesperado da imagem nova, como também não explicam a adesão que ela suscita numa alma estranha ao processo de sua criação”. Assim, ciente de que, pela perspectiva bachelardiana, a imagem poética tem um ser próprio, oposto à causalidade, capaz de se enraizar de imediato no sujeito, e que um livro é sempre “uma emergência acima da vida cotidiana”, uma “vida exprimida, portanto um aumento da vida” (BACHELARD, 1998, p. 88), é que se inicia a explanação do percurso histórico do Japão. O território japonês recebeu correntes de migração vindas da Ásia continental, que se misturaram com os habitantes locais, cujos achados arqueológicos registram a presença humana há 30.000 anos. A História do Japão divide o período pré-histórico em três fases distintas da versão ocidental. O período Jomon corresponde ao período Mesolítico e vai de 1300 a.C. a 300 a.C.; o período Yayoi, de 300 a.C. a 300 d.C., e equivale à fase Neolítica; e, por último, o Kofun, que se desenvolveu entre 300 a.C. a 538 d.C. A organização social da época Yayoi era constituída por inúmeros clãs, que mantinham uma estrutura de trabalho, religião e defesa militar. Os clãs interagiam uns com os outros, de forma pacífica, através da troca de produtos e alianças diplomáticas, com vistas ao aumento das áreas para plantação do arroz, ou em conflitos armados. A união dos clãs em uma comunidade nacional só começou a ganhar forma no início do século III e se estendeu até 538 d.C. – fase ainda integrante da pré-história japonesa e denominada período Kofun. Assim,

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[...] os primeiros Estados, surgidos a partir da reunião das primeiras formações comunitárias do período Yayoi, desembocam em reinos mais poderosos, capazes de comandar ou anexar reinos menores entre os séculos IV e V, liderados por uma aristocracia militar. (SAKURAI, 2014, p. 62).

Para Sakurai (2014), o início da história japonesa enquanto nação se deu quando o clã Yamato conquistou a soberania econômica, política e militar da principal ilha do Japão, Honshu. Os escritos históricos, reforça a autora,

[...] tendem a datar a consolidação do poder do reino de Yamato e a existência de um chefe supremo entre o século III e IV, embora os Registros (Kojiki) apontem o ano de 660 como o início do reinado do que seria o primeiro imperador humano descendente de Amaterasu e o primeiro da linhagem da casa imperial, chamado Jummin. Se existiu mesmo um imperador com esse nome, os historiadores ainda não conseguiram descobrir. Sabem, porém, que a classe dirigente japonesa da época era composta por grandes proprietários territoriais que dominavam os clãs e que gravitavam um torno de um imperador. (SAKURAI, 2014, p. 62).

É oportuno destacar, também, que ainda que não unificados, os líderes de Yamato já haviam estabelecido relações diplomáticas com a China e Coreia desde o século III. O primeiro documento chinês que faz referência ao Japão foi produzido entre 250-265, quando uma comitiva de comerciantes chineses visitou o “Reino de Wa” em “algum momento da metade do século III e voltaram com uma descrição detalhada da vida desse vizinho ‘bárbaro’ que se encontrava ao leste do Reino Médio” (LITTLETON, 2010, p. 20). As relações entre China, Coreia e Japão foram estruturantes para a transformação do reino de Yamato em Japão, e as complicações diplomáticas que se originaram dessas relações integram as tensões e os conflitos que se sucederam na época da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Pode-se dizer que quem deu à corte de Yamato o nome de Japão foram os chineses. Entre os séculos III e VI, China e Coreia chamavam o arquipélago de Wa, e foi só alguns séculos mais tarde que [...] as ilhas japonesas passaram a ser conhecidas como Nippon ou Nihho, "país do sol nascente". Por volta do século VII os chineses diziam Jih-pen, "ilha do sol nascente", que por corruptela veio a se transformar em Japão e suas variantes nas línguas ocidentais. (BATH, 1993, p. 23).12 Dessa forma, consoante o domínio do reino de Yamato se estendia às outras

12 Especificamente na Europa, o primeiro a chamar o arquipélago de Japão foi Tomé Pires, na Suma Oriental, que é uma das primeiras obras europeias que descreve alguns hábitos culturais e a fauna oriental, em especial as da região da Malásia e da China. O livro foi escrito pelo português Tomé Pires por volta de 1515 (JANEIRA, 1970).

32 ilhas do arquipélago, os ensinamentos chineses e coreanos iam se difundindo. Da sua relação com a Coreia, o reino recebeu ensinamentos de agricultura, artes, metalurgia, tecelagem e aderiu ao hábito de usar cavalos para montaria militar. A escrita chinesa chegou à corte em 405, também por intermédio dos coreanos. Entre os anos 552 d.C. e 710 d.C., que corresponde ao período Asuka, a corte de Yamato trouxe da China a arquitetura, a moda, o sistema político, a religião e o pensamento filosófico. Yamashiro expõe que o povo japonês revelou no transcorrer de sua construção social “inegável tendência para aceitar e assimilar culturas alienígenas, transformando-as aos poucos, dando-lhes caráter próprio” e foi o “que aconteceu, notadamente, com o budismo e o confucionismo” (YAMASHIRO, 1964, p. 128). O ano de 513 marca a chegada da doutrina confucionista, e entre 522 e 552, a religião budista. Alinhando a necessidade religiosa do povo aos interesses políticos do Estado, o budismo rapidamente se espalhou nas elites do país. Segundo Yamashiro (1964), essa crença religiosa estimulava o pacifismo e a obediência, que tanto ajudaram os governos ao longo dos anos, pois davam aos oprimidos as consolações necessárias e auxiliavam na formação de uma unidade de fé, ordem social e força nacional. O budismo é originário da Índia, mas a doutrina que chegou ao Japão veio por intermédio da China. Assim, diferente da crença original, que prega uma relação de exortação à morte, ao entrar no Japão, o budismo “se transformou num culto de deidades protetoras, de agradáveis cerimônias, de festas alegres [...] e de consoladoras esperanças num paraíso” (YAMASHIRO, 1964, p. 70). Evidente que a chegada do budismo seria motivo de discórdia com os praticantes do xintoísmo. Liderados pela família Soga, o conflito entre budistas e xintoístas culminou em uma batalha armada, e o budismo foi declarado, em 587, como religião oficial do Estado. Na contemporaneidade, com algumas importantes exceções, “a maioria dos japoneses provavelmente se consideraria tanto xintoísta quando budista e não perceberia qualquer contradição em praticar duas crenças, que têm raízes tão radicalmente diferentes” (LITTLETON, 2010, p. 10). Com o avanço do budismo chinês, os japoneses incorporaram também uma carga importante da cultura chinesa (BATH, 1993). Benedict, ao analisar a relação entre a China e o Japão da época, declarou que “dificilmente se encontrará na história do mundo semelhante importação de civilização, por parte de uma nação soberana, planejada com tanto êxito” (BENEDICT, 1972, p. 58). Sobre esse momento

33 histórico, Sakurai explica que as elites japonesas adotaram

[...] da escrita à pintura na seda, da fabricação de papel à astronomia, da arquitetura e do planejamento urbano aos sistemas de defesa das costas, do regime fiscal à adoção da moeda, de formas de administração ao cerimonial da corte, além de penteados, roupas e gestos. Dança e música chinesa também penetraram na corte. Estilos poéticos são adaptados ao idioma japonês. (SAKURAI, 2014, p. 70).

Nos séculos seguintes, a importação da cultura chinesa continuava a avançar em território japonês. Inspirado no pensamento confucionista13, o Japão elaborou, entre 592 e 621, sua primeira constituição. O texto escrito em chinês era composto por 17 artigos e versava sobre a importância da harmonia e da cooperação entre os homens (YAMASHIRO, 1964). Ainda no final do período Asuka, em 645, o Japão adotou o conceito de “era” (nengô). A “era”, na concepção japonesa, corresponde ao período que um imperador fica no poder, de forma que, sempre que um novo imperador assume, a contagem inicia do zero, sendo, ainda, uma das formas de contagem temporal oficial japonesa. Com o fim do período Asuka, as trocas culturais entre China, Coreia e Japão diminuem. No período que se sucede, entre 710 e 783, a corte imperial se transfere para a cidade de Nara. Tombada como patrimônio cultural da humidade pela UNESCO em 1998, a cidade é considerada oficialmente a primeira capital do Japão, e o templo “Horyuiji, erguido em 607 d.C. na aldeia de Ikaruga, a sudoeste da cidade de Nara [...], é hoje a construção de madeira mais antiga do mundo” (YAMASHIRO, 1964, p. 35). “atividades ligadas às artes, escrita, filosofia chinesa, estudos do budismo. Os avanços artísticos e intelectuais japoneses, por inspiração chinesa e posterior desenvolvimento próprio, limitavam-se nessa época ao usufruto das elites da capital” (SAKURAI, 2014, p. 74), e, então, lentamente, estabelecia-se a divisão social entre a elite japonesa, culta e dona das terras, e o restante da população, que trabalhava no campo ou no artesanato. O budismo, por exemplo, mesmo proclamado como religião oficial do Estado há mais de um século, só atingia a elite, de forma que a grande massa da população ainda seguia a crença xintoísta e a estrutura social dos clãs.

13 O confucionismo foi uma filosofia baseada no pensador chinês Confúcio, que sublinhava a moralidade nas relações sociais e na justiça, com vistas à sinceridade. Esses valores ganharam predominância na China em relação a outras doutrinas, como o legalismo e o taoísmo, durante a Dinastia Han (206 a.C. — 220 a.C).

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Na tentativa de buscar uma unificação nacional, a corte de Yamato iniciou uma série de reformas. Entre elas, a criação da primeira moeda nacional e a publicação dos livros Kojiki e Nohonshoki, que “foram compilados por meio do patrocínio do governo, com o propósito de autenticar a legitimidade de sua estrutura política”14. Registros dos Assuntos Antigos, por exemplo, foi resultado da encomenda da Imperatriz Gemei, que incumbiu o autor Ono Yasumaro a escrever uma obra capaz de estabelecer “para sempre a supremacia do clã Yamato” (LITTLETON, 2010, p. 37). No âmbito econômico, os governantes passaram a exigir quantias cada vez maiores de impostos, pagas sob a forma de arroz e produtos artesanais, e, por meio de brechas no sistema vigente, as famílias donas de terras rapidamente aumentaram o tamanho de suas propriedades — estavam estabelecidas as bases para o sistema feudal japonês, que iria perdurar por quase oito séculos. O período Heian, que transcorre de 794 até 1185, é inaugurado pela fundação da nova capital, Quioto, que foi desenvolvida consoante o “modelo das cidades chinesas, construídas com ruas cruzando-se em ângulos retos como um tabuleiro de xadrez” (BATH, 1993, p. 27). Para Sakurai, nessa época, a

[...] influência vinda da Coreia e da China vai perdendo força. E as lições aprendidas são reinterpretadas e modificadas pelos japoneses. É o que acontece com a escrita chinesa: ela é simplificada e adaptada à fonética japonesa. As artes visuais e o artesanato também têm suas matrizes na Coreia e China, mas os artistas e artesãos japoneses ensaiam o uso de novos materiais, desenvolvem técnicas e criam estilos que, com o passar do tempo, ganham características próprias. (SAKURAI, 2014, p. 81).

A chegada do século IX marca o surgimento dos alfabetos silábicos japoneses. Para Yamashiro (1964, p. 52), a criação dos alfabetos kana “representa o passo decisivo para a independência cultural do Japão”.

14 Informação retirada do site da Embaixada do Japão no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 15 mai. 2016.

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Em sincronia, Sakurai (2014, p. 64) afirma que “a escrita, o confucionismo e o budismo formam a tríade que, adicionada à estrutura existente, ditará os rumos da história da sociedade japonesa dali por diante”. Sobre o exposto, Benedict (1972, p. 23) afirma que “o sistema era singular. Não era budismo, nem confucionismo. Era japonês – a força e a fraqueza do Japão”. O fim do período Heian é marcado por uma série de disputas internas pelo controle político do Japão. Nesse cenário, as famílias proprietárias de grandes propriedades de terra passaram a guerrear entre si. O conflito final entre as “duas famílias japonesas mais poderosas do século XII é a batalha naval de Danno-ura” (SAKURAI, 2014, p. 80), que resulta na derrota da família Taira pelos Minamoto. Quando, em 1185, Yoritomo Minamoto assumiu como novo senhor do Japão, o país começou lentamente a operar de forma feudal e entrou em uma época conhecida como sistema xogunato – governo dos generais. A fase em que o clã Minamoto ficou no poder corresponde ao período Kamakura e vai de 1185 até 1333, e, entre 1392 e 1573, o período Muromachi representa o tempo em que o clã Ashikaga comandou o país. Já foi exposto que, mesmo com as disputas internas pelo controle do país, nenhum grupo ousou atacar diretamente o imperador. Yamashiro (1964, p. 28) reforça essa ideia, pois, segundo ele, “compreendiam a impossibilidade de destruir uma dinastia que representava o centro do culto religioso nacional”, de forma que o sistema xogunato, conhecido também como governo xógum (generalíssimo), não substituía o imperador, pois, na esfera política e econômica, o general exercia o poder. A corte imperial continuava a viver como no “século VII, com imperador politicamente isolado, mas mantendo-se como poder nominal e circundado por uma aristocracia urbana agora decadente” (SAKURAI, 2014, p. 82). O xogunato governava apoiado por uma elite de guerreiros, os samurais. A figura do samurai (literalmente, aquele que serve) surge, então, em um contexto em que o país estava imerso em revoltas populares e em conflitos entre os grandes clãs pelo controle do país. Para defender suas propriedades, os senhores feudais (daymon) passaram a contratar guerreiros, e, assim, os samurais trabalhavam para proteger as propriedades e seus moradores em troca de sustento.

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Havia também casos em que os samurais eram os próprios donos da terra, e, conforme esclarece Sakurai (2014, p. 86), “a função última dos guerreiros é garantir o interesse de seus domínios e do domínio de seus senhores”. Contudo, os samurais valorizavam a simplicidade, de forma que, aos poucos, a corrente religiosa do zen-budismo começou a se difundir entre os guerreiros e, posteriormente, foi conquistando as camadas populares. A seita zen-budista, conforme explica Yamashiro (1964, p. 69), “foi trazida da China na época dos Sung, e exerceu poderosa influência no espírito do povo, particularmente nos samurais”. Para Sakurai (2014, p. 86), “o zen é uma releitura que simplificava mais ainda a religião”, e foi justamente essa simplicidade que conquistou as camadas populares. O zen-budismo é tido hoje como “budismo japonês” e, em linhas gerais, prega a cura de todo o sofrimento pelo silêncio. No final do século XVI, a autoridade do sistema xogunato pelo clã Ashikaga praticamente inexistia e “o desgaste dos japoneses após décadas de guerras civis era evidente em todos os sentidos” (SAKURAI, 2014, p. 99). O período em que transcorre a unificação do Japão e a instalação de um poder centralizado com apoio da família imperial, conforme ansiava a corte de Yamato há quase mil anos, é marcada pela luta de três indivíduos: Oda Nabunaga, Toyotomi Hideyoshi e Ileyasu Tokugawa, e é, também, uma consequência do contato do Japão com o Ocidente. Os primeiros ocidentais a chegarem ao território japonês foram os portugueses e, no fim do século XVI e início do século XVII, desembarcaram nas ilhas os holandeses e os ingleses (BATH, 1993). De acordo com Janeira (1970. p. 25), “a chegada dos portugueses ao Japão não foi planejada nem cientificamente conduzida, mas deu-se antes por acaso, num junco levado por uma tempestade”. Em setembro de 1542, “uma nau lusitana, acossada pela tempestade, chegou à ilha de Tanegashima, no sul de Kyushu”, no porto de Nagasaki (YAMASHIRO, 1964, p. 90). Os escritos japoneses da época, em especial a crônica Teppo-ki, perpetuada pelo clã Tanegashima, descreveram os portugueses como bárbaros comerciantes do Sudeste que,

[...] compreendem até certo ponto a distinção entre superior e inferior [...]. Bebem em copo sem o oferecer aos outros; comem com os dedos, e não com pauzinhos como nós. Mostram os seus sentimentos sem nenhum

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rebuço [...]. São gente que passa a vida errando de aqui para além, sem morada certa, e trocam as coisas que possuem pelas que não têm, mas no fundo são gente que não faz mal. (JANEIRA, 1970, p. 32).

O livro de Janeira, O impacto português sobre a civilização japonesa, publicado em Lisboa em 1970, recupera o percurso histórico entre Portugal e Japão, e explica que “com exceção do Brasil, em nenhum país Portugal exerceu tão profunda influência como no Japão, sobretudo na capital Quioto” (JANEIRA, 1970, p. 10). Foi através dos portugueses que o país teve contato com as armas de fogo; e o emprego dessa tecnologia foi fundamental no resultado das batalhas que se seguiram pela unificação nacional. Com a retomada de trocas internacionais, agora com o Ocidente, o Japão percebeu que era urgente estabelecer um governo centralizado e estabilizado. Oda Nabunaga começou a tarefa e, quando, após inúmeras batalhas, chegou à casa imperial em Quioto, negou o título de xógum e se aliou ao imperador. Nabunaga faleceu em 1582, quando o poder central ainda era frágil, e muitos senhores feudais ainda não haviam reconhecido sua autoridade. Toyotomi Hideyoshi serviu a Nabunaga e, após sua morte, seguiu a empreitada da unificação nacional. Hideyoshi, após novas conquistas estratégicas de feudos e reinos, proclamou-se ministro do imperador (kampaku). O uso do título de ministro do imperador, explica Sakurai (2014, p.108), “serviu como garantia para a consolidação do seu poder, pois qualquer ato contra sua política seria interpretado como uma ameaça ao próprio Imperador”. Dois fatos ocorridos nessa fase merecem destaque. O primeiro se refere ao processo que resultou na proibição do cristianismo. Em 1582, os jesuítas já haviam convertido mais de 150 mil japoneses e haviam construído mais de 200 igrejas no país (SAKURAI, 2014). Bath (1993, p. 32) esclarece que no “auge desse processo os cristãos chegavam a 300.000, numa população de 15/20 milhões”. Três hipóteses são levantadas para explicar o que teria motivado o governo a proibir oficialmente a fé cristã e expulsar os religiosos católicos. O primeiro argumento versava sobre um possível comércio de escravos japoneses; o segundo relacionava os conceitos cristãos, crença monoteísta, que negava a essência da ancestralidade divina dos japoneses e que, portanto, iria contra a almejada unidade nacional que o governo local buscava; e a última se refere a um episódio ocorrido em meio à guerra contra a Coreia e a China, quando, em 1596, os japoneses encontraram um capitão espanhol, que lhes contou “o

38 processo em que os ocidentais usam os religiosos como ponta de lança para futuras conquistas militares de novos territórios” (SAKURAI, 2014, p. 108). A proibição da religião cristã foi sancionada pelos governantes em 1587, mas foi no início do século XVI, que os adeptos foram violentamente perseguidos e executados. Os que sobreviveram mantiveram suas práticas clandestinamente e, mesmo com a forte repressão, a cidade de Nagasaki se firmou como um centro cristão. Paradoxalmente, enfatiza Bath (1993, p. 32), “a bomba atômica que a destruiu, lançada por cristãos, explodiu sobre a mais importante e tradicional catedral cristã de todo o Japão”. O segundo evento trata de uma das primeiras missões militares fora de seu território. Os japoneses queriam dominar a China e aumentar seu espaço territorial, mas antes era necessário passar pela Coreia. Em 1592, um exército de duzentos mil homens dominou Seul, a capital da Coreia, mas no confronto final contra a China saíram derrotados — as tropas japonesas, no entanto, só assumiram a derrota e se retiraram por completo após o pedido feito por Hideyoshi, em seu leito de morte. No início do século XVI, após uma sequência de conflitos e guerras, sob o comando do clã Tokugawa, o Japão finalmente alcançou a unificação nacional. Em 15 de setembro de 1600, às oito horas da manhã, se iniciou a última grande luta pela unificação, a Batalha de Sekigahara, com cerca de 160 mil homens se enfrentando, e cujo vencedor foi o militar Ileyasu Tokugawa (CALLCUT, 1984). Tokugawa foi um grande militar, mas “era também um administrador com visão estadista” e sua visão para o Japão “previa não só a unificação do país, mas a perpetuação da união” (SAKURAI, 2014, p. 111). Diferente dos líderes anteriores, recebeu o título de xógum. O xogunato Tokugawa, também conhecido como período Edo, permitiu 264 anos de hegemonia política, enquanto o país vivia sob um rígido controle ditatorial com o poder centralizado nos guerreiros samurais.

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O centro político se deslocou para a cidade de Edo, antigo nome de Tóquio, que, em 1590 d.C., era uma pequena cidade perto do rio Edo. A cidade transformou- se “numa grande praça-forte, num entreposto e numa cidade comercial com uma população, em meados do século XVIII, superior a um milhão de pessoas” (CALLCUT, 1984, p. 135). Posto à margem do desenvolvimento nacional, o imperador e sua corte, agora em decadência, passaram a viver completamente isolados em Quioto, habitando um silêncio político marcado pelo isolamento social. Quando se discorre sobre o silêncio, explica Orlandi, não se dispõe de marcas formais ou provas concretas, de modo que é pelas fissuras, rupturas e falhas que o silêncio significa, não sendo possível “observá-lo senão por seus efeitos (retóricos, políticos) e pelos seus muitos modos de construção de significação” (ORLANDI,1997, p. 48). Assim, o silêncio, enquanto elemento de sentido, transformou o imperador em “uma figura misteriosa, quase lendária, quase invisível. Considerado altíssimo, nobilíssimo, intocável e sagrado” (YAMASHIRO, 1964, p. 117), vivia, entretanto, segregado em um palácio semioculto, a 456 quilômetros de distância do centro político. Nesse período, a sociedade foi organizada hierarquicamente: primeiro, os nobres e os samurais; depois, os comerciantes em ascensão; na sequência, os artesãos, valorizados de acordo com o que produziam e, por último, os camponeses. Então, por dois séculos,

[...] quando a lei e a ordem foram mantidas em tal mundo com mão de ferro, os japoneses aprenderam a aliar segurança e tranquilidade a esta hierarquia meticulosamente planejada. Enquanto respeitassem os limites de fronteiras conhecidas e cumprissem obrigações costumeiras, poderiam confiar no seu mundo. (BENEDICT, 1972, p. 64).

A política do isolamento, conhecida como Bakumatsu, que, traduzido representaria algo como “país acorrentado” (YAMASHIRO, 1964, p. 114), foi a forma com que o xogunato Tokugawa reagiu às turbulências causadas pelos conflitos entre Portugal, Espanha, Inglaterra e Holanda e a chegada destes aos países asiáticos. No ínterim dos conflitos entre jesuítas e franciscanos, e católicos e protestantes, que viriam a mudar os rumos da Ásia continental, os

40 governantes japoneses perceberam que a soberania de seus territórios estava prestes a ser ameaçada. Gradativamente, o governo foi impondo sanções: em 1633, os navios japoneses foram proibidos de ir à Europa; a partir de 1636, nenhum estrangeiro teve permissão para entrar no país, e, em 1637, sob pena de morte, nenhum japonês podia deixar o país (SAKURAI, 2014). Aos que estavam fora, só restou o exílio. De 1639 até 1854, o Japão permaneceu fechado ao contato internacional, exceto por um pequeno comércio com a Holanda e a China, em um porto distante da capital, na ilha de Nagasaki. Todavia,

[...] é verdade que, com o isolamento prolongado, o povo japonês ficou atrasado, afastado do progresso mundial – em particular no terreno da evolução científica [...] não menos verdade é que o Japão teve um longo período de concentração e auto aperfeiçoamento, que permitiu o salto realizado na era Meiji, ante aos olhos espantados do mundo, que via o império insular, até então ignorado e insignificante, transformar-se, em algumas décadas, numa das maiores potências do primeiro quartel do séc.XX. (YAMASHIRO, 1964, p.143).

Foi durante esses séculos que o silêncio se colocou como um articulador entre o medo, a obediência e o lugar do sujeito no espaço social. Não obstante, pensar o silêncio que se estabeleceu equivale a “pensar a história solitária do sujeito em face dos sentidos” (ORLANDI, 1997, p. 50). Pensando nessa ordem, tanto a violência do sistema xogunato quanto a política de isolamento, podem ser compreendidas como um processo de silenciamento, que, como explica Orlandi (1997, p. 11), “já não é silêncio, mas ‘pôr em silêncio’", e que, ao longo desse período, consolidou-se como parte constitutiva do processo de identificação da identidade japonesa. A possibilidade de construção japonesa dava-se em uma perspectiva de imanência, e o edificar-se desde si mesmo deixou fissuras no alicerce da nação que se organizara, tanto que foi obrigada a ressignificar-se política, econômica e culturalmente. Desde a pré-história japonesa até o fim do período feudal, o país orbitou em si e se manteve isolado do contato externo, salvo nos importantes momentos em que se relacionou com seus vizinhos asiáticos. A breve experiência portuguesa em solo japonês revelou que, quando Oriente e Ocidente se encontram, as consequências são imprevisíveis para os dois lados.

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3.1 SOBRE A OCIDENTALIZAÇÃO

O fim do período feudal japonês, a era dos grandes senhores de terras e dos generais, que comandavam o país com base na violência de seus exércitos de guerreiros samurais, e da segregação do imperador são reflexos de um conjunto sincrônico de acontecimentos externos e internos. Foi desde o início do século XIX que “americanos, ingleses, holandeses e russos insistiam sem sucesso com o Japão para que este abrisse suas portas ao comércio internacional” (BATH, 1993, p. 32). Pelo porto de Nagasaki, os governantes japoneses tomaram conhecimento do que estava ocorrendo com a China – o país havia entrado em guerra com a Inglaterra, em 1839, “quando se negou a abrir seus portos aos navios britânicos que traziam ópio da Índia” (PALMARY, 1959, p. 50). A vitória da Inglaterra imposta aos chineses resultou no tratado de Nanquim, e a China pagou indenizações, baixou impostos e entregou ao domínio britânico a cidade de Hong-Kong. Enquanto observavam a Ásia Continental ser fatiada pelos países colonizadores, que tentavam expandir suas posses, os japoneses passaram a investir em armamentos e a fabricar canhões costeiros, prevendo uma futura invasão. O início do militarismo japonês rapidamente esgotou o Tesouro Nacional e foi necessário aumentar os impostos que incidiam, basicamente, sobre os camponeses. Para agravar mais a situação, o país sofreu, em 1846, uma série de tufões e más colheitas, o que resultou em fome e epidemias. “O Japão tem uma longa história de pobreza”, explica Luyten (1991, p. 27). Seu território é predominantemente montanhoso e apenas 15% são propícios à atividade agrícola. São “1500 abalos sísmicos por ano” (SAKURAI, 2014, p. 15); entre junho e julho as chuvas são diárias, e, de agosto até outubro, “a parte sul do arquipélago é atingida por tufões destruidores” (LUYTEN, 1991, p. 27). É nesse cenário que os camponeses, com impostos cada vez mais altos, abandonam o campo e fogem para as cidades, aliando-se com a classe dos samurais empobrecidos, e, assim, “a divisão de classes, tão típicas dos regimes feudais começa a desaparecer” (PALMARY, 1959, p. 51). Em meados de 1853, concomitantemente aos inúmeros conflitos internos, às más colheitas e às revoltas no campo, chega à baía de Tóquio o Comodoro Mattew Perry “com seus ‘navios negros’, trazendo uma carta do presidente dos EUA,

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Millard Fillmore, dirigida ao xógum, com a reiteração da proposta – feita agora em termos incisivos” (BATH, 1993, p. 32): ou o Japão aceitava o Tratado de Kanagawa ou a esquadra norte-americana bombardearia a costa do arquipélago. O governo japonês pediu um ano para responder e foi nesse ínterim que percebeu que, se não “quisesse se sujeitar à exploração que a Europa fazia na China, precisava recuperar, em anos, o atraso de dois séculos que tinha em relação à técnica europeia de guerra e de indústria” (PALMARY, 1959, p. 52). Foi sob essas circunstâncias que, em 1854, o Japão assinou com os EUA o Tratado de Kanagawa, que abriu dois portos japoneses para os navios mercantes norte-americanos (BATH, 1993) — é dessa época que o país recebe “de presente” o primeiro conjunto de trens, com trilhos, locomotivas e carros de passageiros. O tratado, assim como outros que se seguiram com as nações europeias, “punha fim às perseguições religiosas, abriria os portos japoneses ao mundo e dava extraterritorialidade aos nacionais dos países signatários”15 (PALMARY, 1959, p. 51). Bath (1993) esclarece que o Japão precisou se ressignificar em dois momentos. O primeiro, entre 1853 e 1868, quando foi imposto ao país reintegrar-se ao resto do mundo; e o segundo, em 1945, com a derrota na Segunda Guerra Mundial. Esses dois processos de ressignificação resultaram em choques traumáticos para a sociedade japonesa, foram liderados pelos Estados Unidos da América e provocaram “duas extensas e profundas reorganizações do país, em termos econômicos, sociais, políticos, psicológicos” (BATH, 1993, p. 63). Não obstante, o período pós-abertura dos portos também resultou em um processo de “ocidentalização”, quando o Japão passou a importar conhecimento e tecnologia do Ocidente. Trouxe para o país professores, engenheiros, matemáticos, economistas, médicos e enviou uma leva significativa de japoneses para as principais universidades do mundo. Com a abertura dos portos, os comerciantes enriqueciam, os intelectuais renovavam suas ideias e a população empobrecia cada vez mais, de forma que não tardou para o sistema do xogunato se tornar insustentável.

15 A “extraterritorialidade aos nacionais dos países signatários” implica, mesmo em território japonês, a vigência da lei do país que assinava o tratado.

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Palmary explica o “grupo intelectual ocidentalizado”, quando retornou ao Japão, conseguiu, em nome do imperador, lançar os senhores feudais contra os generais do xogunato. Com espantosa habilidade, explica o autor, o mesmo grupo passou a “usar o poder imperial para destruir os próprios senhores feudais” e acabar com o feudalismo, visando a transformar o “Japão numa democracia capitalista” (PALMARY, 1959, p. 57). Sakurai (2014, p. 133) explica que esse grupo, a elite do país, era composto por “grandes senhores capitalizados, grandes negociantes, intelectuais e tecnocratas de famílias poderosas”, que decidiram “participar com alguma força no circuito capitalista”. Palmary (1959) adverte, contudo, que o plano não foi executado com maestria, pois, quando tentou eliminar o poder imperial, tal grupo foi impedido pela classe de samurais. Os guerreiros, então, em vez de se submeterem aos comerciantes e aos donos das novas indústrias que surgiram, apropriaram-se delas. Para o autor, é o misto do soldado-industrial — o samurai comerciante e industriário — que vem “a caracterizar muitos dos grandes poderosos do Japão moderno” (PALMARY, 1959, p. 57). Ao restante da classe samurai, foram distribuídos cargos públicos, e, então, o Estado, em vez de receber influência da indústria e do comércio, tornou-se o regente das forças econômicas da nação. Na visão de Schwartz (1990, p. 22), diferentemente dos camponeses, os samurais eram os únicos que, “fiéis a um código de honra (isto é, a uma reivindicação de status social), puderam converter desqualificação, frustação e sofrimento econômico num amplo movimento político, cujos objetivos seriam reconquistar status e poder”. Para o autor, enquanto a classe comerciante era politicamente ambígua e os generais, naturalmente conservadores, somente a classe samurai poderia encerrar o sistema xogunato, porque eram os únicos que detinham treinamento militar e ligações financeiras. Em meio a essas transformações políticas e econômicas, os japoneses foram surpreendidos com a morte do Imperador Komei e com a coroação do jovem Mutsuhito, com apenas 16 anos de idade. O novo Imperador, explica Palmary (1959, p. 52), torna-se, então, a nova esperança do país. Em 1866, Mutsuhito, agora com o nome de Imperador Meiji, assume oficialmente como chefe de Estado e instala a Era Meiji – o reinado iluminado.

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Encerrado um ciclo de quase oitocentos anos de sistema feudal, de “semiexílio” do imperador e dois séculos de isolamento internacional, os estadistas perceberam a necessidade de associar esta “profunda mudança política a uma revisão (auto)crítica do passado” (POLLAK, 1989, p. 5). A restauração Meiji, como ficou conhecido esse período, proporcionou uma “revisão (auto)crítica do passado” direcionada, primeiro, a uma ressignificação da consciência mítico-religiosa; segundo, a uma transformação do sistema econômico e político; e, por último, a uma “atualização” da estrutura social. No que se refere à consciência mítico-religiosa, o período inaugurou a era do “xintoísmo estatal” que, a partir de 1872, associou toda a superestrutura religiosa à “infraestrutura de mitos que tinha suas raízes no Kojiki” (LITTLETON, 2010, p. 48). Nessa perspectiva, Michel Pollak ensina que a escolha de diferentes pontos de referência – os livros sagrados do xintoísmo nesse caso — são “indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo”, que estruturado em hierarquias e em processos classificatórios, define o que é comum ao grupo e, assim, “fundamenta e reforça sentimentos de pertencimento e as fronteiras socioculturais” (POLLAK, 1989, p. 3). É nesse processo que a divindade do imperador ressurge, bem como se firma, no imaginário local, que todo povo japonês tem origem divina. Littleton (2010, p. 48) observa que, a partir de 1868, a “divindade do imperador — anteriormente aceita de uma maneira abstrata — passou a ser um dogma central da ideologia estatal”. A vontade do imperador, afirma Sakurai (2014, p. 149), passou a ser “apresentada ao povo como divina, eterna e incontestável”, assim, devido a essa revalorização ancestral, qualquer contestação à autoridade ou à ordem social torna-se inaceitável, visto que se fixara no imaginário japonês da época que o “imperador é sagrado e inviolável e tudo o que ele faz é certo por princípio”. No entanto, mesmo com a valorização do monarca japonês enquanto encarnação viva da nação, o “imperador continuou a interferir muito pouco nos assuntos diários do governo” (LITTLETON, 2010, p. 48). O percurso histórico do Japão, caracterizado por uma relativa homogeneidade de pensamento, resultante, provavelmente, da formação insular de seu território, proporcionou o desenvolvimento da crença xintoísta de uma “forma intuitiva, particularizada, regionalizada e com características ambíguas, como a simpatia e a experiência silenciosa” (YAMAKAGE, 2010, p. 46). Essa forma particular de funcionar

45 faz com que o xintoísmo seja considerado por alguns estudiosos japoneses e intelectuais estrangeiros como uma “não-religião” (YAMAKAGE, 2010, p. 46). Contudo, quando o “xintoísmo estatal” da era Meiji foi instalado, a crença passou por uma completa ressignificação e se transformou em uma religião nacionalista “cujo etnocentrismo era sua característica mais notável” (YAMAKAGE, 2010, p 47). Simultaneamente às forças militares — do exército e da marinha imperial —, o “xintoísmo estatal” passou a ser o principal mecanismo social para encorajar o nacionalismo japonês e a lealdade ao imperador (LITTLETON, 2010, p. 9). As crianças, por exemplo, aprendiam na escola não só que o imperador era descendente direto da deusa do sol, Amaterasu, mas que “a descendência divina tornava os japoneses diferentes de todos os outros povos — eles eram os únicos filhos dos deuses” (LITTLETON, 2010, p. 48). No que tange ao sistema econômico e político, as reformas da era Meiji significaram a transição do feudalismo para o capitalismo. Schwartz (1990, p. 23) esclarece que “a formação de um Estado moderno antes da industrialização e a consumação da mudança sem conflitos internos extremos são o desafio de interpretar o Japão moderno”, e isso se dá, porque, no caso japonês, o “Estado moderno não foi imediatamente seguido por um sistema político moderno”. O estabelecimento de um Estado moderno foi efetivado por uma elite militar miscigenada e uma elite comercial, cuja intenção primordial era a “salvação do espírito japonês” (SCHWARTZ, 1990, p. 22-23). A preocupação dos estadistas estava em como “salvar” a classe samurai e a nobreza, em meio à instalação de um sistema político moderno – entendido como um sistema representativo, fundamentado na política partidária vinda do Ocidente. A nova constituição nacional, por exemplo, que instituía um governo parlamentar, foi elaborada vinte anos depois do início da era Meiji, quando a nobreza já estava “confortavelmente” segura de sua perpetuação, enquanto membros da elite social e econômica do país. Na interpretação de Callcut (1984, p. 183), a Constituição Meiji, que permaneceu inalterada até o fim da Segunda Guerra Mundial foi construída pelos estadistas como “uma oferta do Imperador Meiji, que em sua sabedoria, restringira os seus poderes e

46 concessões em prol dos direitos e das liberdades do povo e a partilha da administração dos assuntos internos”. De forma ambígua, a constituição perpetuava a soberania imperial, apresentava tendências absolutistas e militaristas, mas não excluía a possibilidade de um governo parlamentar. A criação de um governo constitucional, expõe o autor, era fundamental para um Japão que projetava a curto prazo uma expansão territorial e que necessitava “ganhar o respeito e a igualdade de tratamento por parte do Ocidente” (CALLCUT, 1984, p. 181). Quando em 11 de fevereiro de 1899, promulgou a Constituição do Império do Japão, o país se tornou o primeiro Estado não ocidental a operar como um governo constitucional e, “portanto, a despeito de sua longuíssima história, o Japão tem um governo 'representativo', no sentido ocidental, meio século mais recente do que o brasileiro” (BATH, 1993, p. 33). Ainda no âmbito econômico, o governo impôs a reforma financeira, a tributária e a monetária. A reforma tributária reforçou a concentração de renda de empresas e de terras, todavia, impulsionou a política industrial “que era a preocupação fundamental da estratégia econômica do governo Meiji” (SCHWARTZ, 1990, p. 35). Em 1870, devido à reforma monetária, foi criada a nova moeda nacional, o iene (en, “ou redondo”, ¥), e, em 1882, o Banco do Japão. Por último, no que se refere à “atualização” da estrutura social, pode-se considerar que a “configuração extrema do sistema hierárquico japonês dos tempos feudais, desde a pária ao Imperador, deixou sua forte marca no Japão moderno” (BENEDICT, 1972, p. 64). Nos tempos do reino de Yamato (538 d.C.), os japoneses aprenderam, sob penas violentas, a conviver e a respeitar o sistema hierárquico. Portanto, por quase dois mil anos os japoneses organizam

[...] seu mundo em constante referência com a hierarquia. Na família e nas relações pessoais, idade, geração, sexo e classe ditam a conduta devida. No governo, religião, exército e indústria, as zonas acham-se cuidadosamente separadas por hierarquias, onde nem os mais elevados, nem os mais baixos se permite ultrapassar as suas prerrogativas sem punição. Contanto que se conserve a "devida posição", os japoneses vão adiante sem protesto. (BENEDICT, 1972, p. 84).

Assim, mesmo enquanto as reformas prosseguiam e modificavam o país, pouco se alterou na base da organização social. O poder

47 que os senhores feudais representavam agora estava com os grandes empresários, donos do Zaibatsu1616, tais como a Mitsui, Mitsubishi, Sumitomo e Yasuda; e os artesãos e camponeses transformaram-se em operários. Os samurais da elite receberam os principais cargos do governo, e os demais, que passavam de mais de um milhão de guerreiros na época da abertura dos portos, aderiram à Marinha e ao Exército Imperial. A “revisão (auto)crítica do passado” das primeiras décadas da era Meiji resultou na progressiva revalorização do imperador, modificou a vida cotidiana dos japoneses, e o país entrou em um processo de profundas transformações. As reformas atingiram não só a religião, a estrutura social e o sistema econômico, mas também o setor industrial, o comércio, a agricultura, as forças armadas, a organização de classe e modificou a forma como os japoneses se percebem diante ao mundo. Todo esse processo de transformação pelo qual passou o Japão foi denominando por Hobsbawm (2012, p. 202) “ocidentalização”. De acordo com o autor, o plano japonês de “ocidentalização” foi historicamente o mais convicto e bem- sucedido projeto de um país que se queria mais moderno. Todavia, o autor adverte que o processo de “ocidentalização” dirigido pelos estadistas não intencionava efetivamente “ocidentalizar” o país, muito pelo contrário, foi a forma encontrada para “tornar viável o Japão tradicional” no contexto contemporâneo da época (HOBSBAWM, 2012, p. 202). No campo da educação, em 1871, o país fundou o Ministério da Educação e passou a regulamentar cada detalhe das escolas, e, seguindo o modelo francês, todas as escolas executavam os mesmos exercícios na mesma hora (BENEDICT, 1972). O novo currículo escolar trazia forte teor moralista, propagava a doutrina confucionista e difundia ideias de fidelidade ao Estado, obediência e amizade. O Edito Imperial da Educação, por exemplo, foi lançado em 1890 e era um documento de poucas linhas, que atuava como uma diretriz ideológica. O edito foi lido durante todos os dias em todas as escolas japonesas até 1940 (SAKURAI, 2014). No documento, ensinavam-se os jovens alunos a glorificar as tradições militares e se propagava a ideia de que morrer lutando pelo imperador era o destino mais glorioso do homem.

16 A expressão Zaibatsu se refere aos conglomerados industriais e/ou financeiros do Japão, atuantes do início da era Meiji ao fim da Segunda Guerra, que controlavam a economia e a política. A expressão pode ser traduzida como “Sindicatos das grandes empresas” ou “grandes blocos/grupos econômicos”. A prática do Zaibatsu foi abolida após 1945.

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No que se refere à alfabetização do povo, o Japão da era Meiji conseguiu alfabetizar 99% da população, mesmo enfrentando a dificuldade da escrita japonesa, que é composta por dois alfabetos silábicos de 48 caracteres cada e dos ideogramas17. Na educação militar, foi elaborado o Edito dos Soldados e Marinheiros, que versava sobre os cinco preceitos dos soldados japoneses e estabelecia como deveria ser constituído o caráter dos combatentes. Em suma, a unidade semântica do documento orbitava sobre o conceito japonês de "sinceridade". A sinceridade, no pensamento nipônico, significa “aplicar todo o ser” e não propriamente “não enganar” — sua variável ocidental próxima seria “colocar todo o ser em ação” (BENEDICT, 1972, p. 183). O documento é, de certa forma, uma releitura dos valores samurais, para os quais não era permitido “dar sinais de sofrimento até cair morto” (BENEDICT, 1972, p. 128). No campo do desenvolvimento industrial, “o Japão seguiu um caminho sem paralelo em qualquer nação ocidental”, afirma Benedict. Assim, não

[...] planejaram, como construíram e financiaram, com dinheiro do governo, as indústrias que julgaram necessárias [...]. Técnicos estrangeiros foram importados e os japoneses foram enviados ao exterior para aprender. Quando, então, segundo eles, essas indústrias estavam "bem organizadas e os negócios prosperavam", o governo alienou-as para firmas particulares [...]. Seus estadistas consideravam o desenvolvimento industrial demasiado importante para o Japão para ser condicionado a leis da oferta e da procura, ou à livre empresa. (BENEDICT, 1972, p. 82).

O feito do Japão “foi organizar as indústrias que considerou necessárias com o mínimo de tropeço e desperdício” (BENEDICT, 1972, p. 82). Em vez de iniciar sua revolução industrial com fábricas de bens de consumo leve, primeiro desenvolveu tecnologia militar e energética, de forma que “arsenais, estaleiros, usinas siderúrgicas, construção de ferroviais tiveram prioridade e, rapidamente, alcançaram um elevado estágio de eficiência técnica” (BENEDICT, 1972, p. 83).

17 Os ideogramas são caracteres de origem chinesa, conhecidos como kanji, e cada um simboliza uma ideia, um conceito ou uma “única coisa”.

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Nas últimas décadas do período, os centros urbanos floresceram, as cidades inflaram, já que as fábricas careciam de mão de obra de todos os níveis de qualificação (SAKURAI, 2014). A saída do campo foi tão significativa que, em 1923, Tóquio já era a terceira maior cidade do mundo quando foi destruída por um terremoto (BATH, 1993). A reconstrução da cidade deu-se muito próximo dos moldes ocidentais, pois foram construídos cinemas, cafeterias, casas de bailes e bancas de revistas. O movimento urbano favoreceu as artes e grandes clássicos da literatura moderna japonesa foram produzidos nessa época. A imprensa se desenvolveu, e os jornais começaram a influenciar todo o território. Muitas obras clássicas que contribuíram para a construção do pensamento ocidental foram traduzidas ao idioma japonês, assim como também toda a obra de Karl Marx (CALLCUT, 1984). Não obstante as transformações culturais do país, o processo de “ocidentalização” não resultou diretamente na construção de um sujeito social autônomo, e, além disso, os camponeses — ainda a grande massa populacional — continuaram sob pressão e impossibilitados de agir fora da ordem. O decreto para a Preservação da Paz, de 1925, instalou uma força policial especial, cuja finalidade era prevenir a formação de organizações com “ideias subversivas” que se afirmassem contra a propriedade privada e/ou contra a unidade nacional. Em 1928, explica Callcut, o decreto foi reforçado e incluiu a pena de morte para crimes contra a “unidade” (o símbolo e o sistema imperial). Esse decreto praticamente anulou os membros ligados à esquerda do governo e muitos comunistas e “suspeitos de serem comunistas” foram presos (CALLCUT, 1984, p. 198). A época da “ocidentalização” do Japão é, se analisada sob o viés econômico, a fase de sua industrialização, mas é também o momento em que muitos hábitos ocidentais transformaram o dia a dia dos japoneses. A troca cultural modificou os costumes alimentares, o vestuário, a arquitetura e muitos outros aspectos socioculturais. A entrada do Japão no cenário mundial, explica Sakurai (2014, p. 160), “abriu horizontes para a população japonesa semelhante ao que ocorrera com a Europa em relação ao Oriente no século XVI. O Japão (re)descobriu e foi (re)descoberto pelo Ocidente”.

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Nessa perspectiva, Lévi-Strauss (1988, p. 100) explica que a restauração Meiji tinha como premissa integrar, de forma competitiva, o país no cenário internacional e que, em vez de destruir as crenças passadas, acabou por capitalizar tudo que existia. Esse processo de “capitalização”, no sentido conotativo de “agregar características ou particularidades”, é visível quando se observa o fluxo de influência Ocidente-Oriente, seja no campo da arte, da educação seja da organização militar. O Exército Imperial foi criado primeiro aos moldes do modelo francês, depois reorganizado de acordo com o sistema alemão. Por outro lado, a “capitalização”, enquanto ideia de retirar proveito de, ou usufruir, também pode ser observada pelo fluxo oposto, do Oriente para o Ocidente. Nessa época, por exemplo, surgiu na Europa a tendência artística que ficou conhecida como “japonismo”, termo cunhado pelo crítico de arte francês Philippe Burty, em 1872, e que teve, principalmente, através das xilogravuras ukiyo-e, influência em importantes pintores europeus (CALLCUT, 1984, p. 186). A Restauração Meiji — e por isso é importante falar em restauração e não revolução, como alguns livros didáticos adotam, — iniciou em 1866 e terminou em 1912, correspondendo, então, ao período de intensas trocas culturais entre Oriente e Ocidente, na queda da família Tokugawa, no fim do regime do xogunato e do sistema feudal. Através da insistência norte-americana e consequente abertura dos portos, o país passou por um processo de mudanças que resultou na revalorização do imperador e na implantação gradual de uma monarquia parlamentarista. Controlado por um Estado militarizado e imerso em um processo de industrialização, o país carecia de matérias-primas, faltava-lhe, sobretudo, ferro e carvão. As guerras internacionais que se sucederam foram motivadas pela necessidade de recursos naturais. A cobiça pela expansão territorial e a crença na superioridade do povo japonês perante seus vizinhos asiáticos foram os preceitos que levaram o Japão a iniciar a era das guerras.

3.2 É ÉPOCA DE GUERRA

O Japão revelou, ao longo de sua história, grande facilidade em apropriar-se de elementos estrangeiros e transformá-los em produtos tipicamente japoneses. No século III, aderiu à escrita chinesa e às técnicas coreanas de militarismo; no século XVI, dos portugueses importou a arma de fogo e, no século XIX, assinado o

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Tratado de Kanagawa, compreendeu que só era possível alcançar “respeito” e “honra” internacional por meio do poder bélico e da subsequente expansão territorial. Os japoneses, diz Benedict (1972, p.147), “necessitam extremamente serem respeitados no mundo” e quando observaram que “o período militar granjeara respeito para as grandes nações [...] empenharam-se num procedimento com o fito de igualá-las”. Para Sakurai (2014), o Japão havia entrado em outro momento. Sua bandeira não era mais branca com uma esfera vermelha ao centro, imagem que remetia a um tranquilo nascer do sol. A partir de 1889, ao símbolo nacional foram acrescidos 16 raios, que iniciavam junto ao círculo vermelho e avançavam para fora da imagem, quase com a mesma força com que o país avançava em outros territórios. As duas primeiras investidas militares são conhecidas como a Guerra Sino- Japonesa e a Russo-Japonesa. Entre 1894 e 1896, ainda na era Meiji, o Japão travou uma guerra contra a China pelo domínio da Coreia, que vivia relativamente isolada do mapa político e econômico do restante do mundo. A guerra Sino-Japonesa “revelou o poderio do Japão ao mundo ocidental”, que até então via o país “envolto numa bruma exótica e inofensiva de gueixas e imagens bucólicas do monte Fuji” (SAKURAI, 2014, p. 164). No tempo em que a Coreia ficou sob o domínio nipônico, que vai até o fim da Segunda Guerra Mundial, o Japão impôs um intenso processo de colonização. A Coreia acusa o Japão de ter praticado violência sexual com suas mulheres, inclusive com o uso de escravas sexuais para seus soldados, e também de terem usado civis para experimentos médicos semelhantes aos que faziam os nazistas nos campos de concentração (SAKURAI, 2014). Nos últimos anos da era Meiji, entre 1904 e 1905, as tropas japonesas entraram em conflito com a Rússia pelo controle da Manchúria. A vitória militar imposta aos russos, na Guerra Russo-Japonesa, “deixou os japoneses com as mãos livres para intervir no continente asiático, fazendo da Coreia uma colônia e da Manchúria um Estado 'protegido'” (BATH, 1993, p. 33). Esse acontecimento é referenciado na história japonesa como o “incidente da Manchúria”. O ano de 1912 marca o fim da era Meiji e o início da era Taisho (grande retidão), que se estendeu até 1926. No transcorrer da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Japão lutou ao lado da Inglaterra, da França e dos EUA contra a Alemanha. De acordo com Hobsbawm (2012), o Japão entrou de imediato na guerra com o intuito de ganhar posições alemãs no Oriente Médio e no Pacífico ocidental, e não manifestou interesse por nenhum território fora da sua região. O cenário internacional turbulento e a vitória

52 na Primeira Guerra Mundial – ainda que sua participação tenha sido pequena – "posicionaram efetivamente o país entre os grandes participantes do jogo internacional que incluía as cinco potências europeias (Grã-Bretanha, França, Rússia, Áustria-Hungria, Alemanha), os Estados Unidos e o Japão" (SAKURAI, 2014, p. 167). É nessa época que surgem os primeiros conflitos oficiais entre os EUA e o Japão durante as negociações da Liga das Nações, que resultou, apesar da desaprovação norte-americana, no controle, por parte do Japão, de “algumas colônias alemãs no oceano Pacífico — as Marianas e as Carolinas” (BATH, 1993, p. 34). N a década de 1920, o processo de industrialização avançava rapidamente, e os japoneses

[...] tinham aguda consciência da vulnerabilidade de um país ao qual faltava praticamente todos os recursos naturais necessários a uma economia moderna, cujas importações estavam à mercê de interferências de marinhas estrangeiras e as exportações à mercê dos mercados dos EUA. (HOBSBAWM, 2012, p. 44).

A solução para a solidificação de um império forte e próspero estaria na expansão colonial. A queda da bolsa norte-americana em 1929 resultou em profundo choque na agricultura japonesa — a exportação da seda caiu 90% e os preços do arroz tornaram-se irrisórios (HOBSBAWM, 2012). O cenário internacional pós 1929 reforçou ainda mais a tendência colonialista e, nos anos subsequentes, o país prosseguiu a expansão obtendo novas concessões militares sobre a China. A tensão entre Japão e Ocidente se intensificou quando EUA e Inglaterra exigiram o controle sobre o tamanho de marinha japonesa. Na visão dos militares japoneses, explica Farrington (2014, p. 15), a Inglaterra tinha sua zona de influência na Ásia (não europeia) e na África. Os EUA tinham garantidas suas zonas comerciais na América do Sul, e o Japão “simplesmente buscava garantir que o Pacífico fosse a área que dominaria e em que prosperaria”, evidentemente que “Grã-Bretanha e América não queriam ouvir uma palavra sobre isso. A busca para transformar o Japão em um simulacro de uma potência ocidental era continuamente refutada” (FARRINGTON, 2014, p. 15). Em 1933, o país deixou a Liga das Nações e, em 1936, associou-se à “Alemanha e à Itália no chamado Pacto do Eixo, definido com uma aliança anticomunista” (BATH, 1993, p. 34). O período que corresponde entre o “incidente

53 da Manchúria” e o ano de 1941 é conhecido como “vale negro”, no qual se vê o Japão completamente “influenciado pelo militarismo e com sua economia nas mãos do Zaibatsu, o sindicato dos grandes grupos econômicos” (BATH, 1993, p. 34). No que se refere à linhagem imperial, em 1929, assume o 124º Imperador do Japão. O Imperador Hirohito, conhecido como Tennõ pelos japoneses, ficou no poder até 1989 e teve seu reinado conhecido como a Era da Paz Luminosa. Quando a guerra se generalizou na Europa, em 1939, com a invasão da Alemanha nazista na Polônia, os conflitos entre China e Japão já aconteciam (BATH, 1993). Paralelamente às batalhas europeias, o Japão continuou a avançar, conquistando inúmeras cidades chinesas e algumas ilhas do Pacífico. Na visão de Hobsbawm (2012), o Japão, como também a Alemanha, visavam uma guerra ofensiva rápida, porque tinham consciência de que a força militar e os recursos dos países inimigos, uma vez trabalhando em conjunto, eram esmagadoramente superiores. Nenhum dos dois países, explica o autor, fez planos para uma guerra extensa e não contaram com armamentos de longo período de desenvolvimento, em oposição a outros países, como a Inglaterra e os EUA, que visaram aos avanços tecnológicos e militares a longo prazo. No caso japonês, a guerra rapidamente consumiu com as reservas de alimentos e recursos naturais. Posteriormente, o embargo norte-americano deixou o país com reservas mínimas de petróleo e combustível. Nesse cenário político, é oportuno esclarecer a principal diferença entre os países que integraram o Pacto do Eixo: Alemanha, Itália e Japão. Hobsbawm (2012, p.134) explica que a proximidade ideológica entre a extremidade oriental e ocidental do Eixo era significativamente forte. Os japoneses, expõe o autor, não “perdiam para ninguém em sua convicção de superioridade racial e da necessidade da pureza racial, em sua crença nas virtudes do militarismo de autosacrifício, obediência absoluta a ordens, abnegação e estoicismo”. Na visão de Hobsbawm, a sociedade japonesa da época era de uma “rígida hierarquia, total dedicação do indivíduo (se é que tal termo tinha algum significado local no sentido ocidental) à nação e a seu divino imperador, e absoluta rejeição de Liberdade, Igualdade e Fraternidade” (HOBSBAWM, 2012, p. 134). Essa relação de opressão do povo japonês, cujo apoio popular foi conquistado por vias doutrinadoras (religiosas e educacionais) e não por um processo democrático, é o principal fator que diferencia o fascismo europeu do movimento japonês.

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Isso se dá, porque, não obstante as semelhanças ideológicas, “o fascismo europeu não poderia ser reduzido a um feudalismo oriental com uma missão imperial”, já que o fascismo “pertencia essencialmente à era da democracia e do homem comum” (HOBSBAWM, 2012, p. 135). Contrariamente à Alemanha nazista de Hitler, que, por um período, teve estabilidade econômica e social, os japoneses sofriam com a escassez de alimentos e com doenças. Só a tuberculose matava entre 140 mil a 170 mil japoneses por ano, entre 1930 e 1943 (SAKURAI, 2014). Nessa perspectiva é que a ideia de um “movimento de mobilização de massa para fins novos, na verdade revolucionários, guiados por líderes autodesignados não fazia sentido no Japão de Hirohito” (SAKURAI, 2014, p. 135). Não havia no país nenhum partido de massa, e nunca houve a presença de um líder carismático, que se assemelhasse a um Führer ou um Duce. Muitas informações conflitantes sobre o ataque a Pearl Harbor são referenciadas nos estudos históricos, de forma que não cabe discorrer sobre a precisão da informação que os EUA tinham acerca de um possível ataque japonês ao seu território. Nesse contexto, no entanto, é oportuno compreender que o ocorrido em Pearl Harbor frequentemente é retratado “como o que há de mais exemplar em ataques surpresas, [...] muito embora, para qualquer um familiarizado com as políticas das superpotências no Pacífico, o ataque tenha sido menos inesperado” (FARRINGTON, 2014, p. 8). O ataque à Pearl Harbor foi ao mesmo tempo uma resposta japonesa ao embargo norte-americano ao comércio e ao congelamento de seus bens, como também uma estratégia militar que visava imobilizar sua marinha – que era reconhecidamente superior (HOBSBAWM, 2012). A estratégia revelou-se um erro fatal, e no momento em que a frota aérea japonesa bombardeou os navios norte- americanos atracados em Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, uma nova dimensão à história da expansão territorial japonesa e da Segunda Guerra Mundial surgiu. De um lado, os países Aliados — em especial EUA e Inglaterra —, e de outro, os países do Eixo — Japão, Alemanha e Itália. A União Soviética dedicava suas forças em derrotar a Alemanha e só iria declarar guerra contra o Japão no dia posterior à explosão da primeira bomba atômica. De 1942 até 1945 as batalhas não cessaram. O Japão encontrava-se sem recursos e, pouco a pouco, as Forças Aliadas reconquistaram os territórios que antes eram de domínio japonês. “Do fim de 1942 em diante, ninguém duvidou de que a

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Grande Aliança contra o Eixo ia vencer” (HOBSBAWM, 2012, p. 49). Contrariando o senso comum, foi somente quando a situação estava periclitante que os comandantes militares japoneses passaram a usar a estratégia suicida: o uso de pilotos kamikazes18 (SAKURAI, 2014). Os pilotos kamikazes eram voluntários, em sua maioria jovens, identificados com a política bélica e que acreditavam na honra de morrer pelo país e pelo imperador. Quando essa política militar iniciou, a procura e a adesão de voluntários dispostos ao autossacrifício foi tamanha, que o exército precisou estabelecer critérios de seleção (SAKURAI, 2014). A derrota na batalha de Iwo Jima19, em janeiro de 1944, marca o fim do último reduto de resistência japonesa fora de seu território original. A ilha tinha um posicionamento crucial para o desenrolar da guerra: ficava apenas a 1.000 km de distância de Tóquio. Partindo de Iwo Jima, as forças aliadas bombardearam as principais cidades japonesas: Yokohama, Nagoya, Osaka e Kobe foram alvos de bombas incendiárias. Em março de 1944, um ataque a Tóquio deixou mais de 120 mil mortos e feridos. Os Aliados controlavam os céus e podiam bombardear as cidades japonesas com seus aviões B-2920 sem medo de retaliações. De acordo com Farrington (2014, p. 134), o bloqueio norte-americano de submarinos havia privado a ilha das commodities necessárias para continuar a batalha, e, no início de 1945, a escassez de comida já era crônica. Sem combustível e alimento, não havia motivo para se preocupar com as missões kamikazes. Era nítido que o Japão já havia perdido a guerra. O "caminho para Tóquio" a ser percorrido pelos Aliados mostrava-se muito

18 A expressão kamikaze é a soma das palavras kami (deus) e kaze, que significa vento. A expressão surgiu por volta do ano de 1281. Sob o comando de Kublai, o império mongol tentou invadir o Japão duas vezes. A primeira tentativa envolveu 40 mil homens e 900 navios, e a segunda, algumas décadas depois, 4.400 navios e 140 mil homens. Porém, em ambos os casos, quando os navios estavam próximos de desembarcar na costa de Kyushu, as frotas foram completamente destruídas por furacões. São “esses furacões salvadores que deram origem à expressão kamikaze - vento divino” (YAMASHIRO, 1964, p. 68). 19 De acordo com Farrington (2014, p. 126), Iwo Jima está marcada no inconsciente coletivo moderno fundamentalmente pela fotografia de Joe Rosenthal, que retrata alguns soldados hasteando a bandeira norte-americana na ilha. O hasteamento da bandeira foi encenado exclusivamente para a produção da fotografia e passou a representar a imagem definitiva da vitória dos EUA no Pacífico. 20 B-29 é o “apelido” dos aviões B-29 Superfortress da empresa Boeing. O modelo de uso militar possui quatro motores e hélices e foi largamente utilizado para bombardeiro durante a Segunda Guerra Mundial pelos EUA.

56 difícil e a resistência dos japoneses preocupava. Então, em 1945, os EUA, temendo perdas humanas, materiais e políticas, ao invadir um país onde milhões de pessoas estariam dispostas a morrer em nome do imperador, optou em substituir a invasão pelo uso de um novo tipo de arma: a bomba atômica. Desde 4 de julho de 1945, tanto o presidente norte-americano Harry Truman e o primeiro ministro inglês Winston Churchill já haviam consentido o uso da bomba contra o Japão (FARRINGTON, 2014). O uso da arma nuclear, observa Hobsbawm,

[...] não foi justificado como indispensável para a vitória, então absolutamente certa, mas como um meio de salvar vidas de soldados norte-americanos. É possível, no entanto, que a ideia de que isso viesse a impedir a URSS, aliada dos EUA, de reivindicar uma participação preponderante na derrota do Japão tampouco estivesse ausente das cabeças do governo americano. (HOBSBAWM, 2012, p. 34-35).

O fato é que, desde a derrota japonesa na batalha de Iwo Jima, o bombardeio à cidade de Hiroshima era esperado. Localizada a aproximadamente 670km ao sul de Tóquio, Hiroshima ganhou status de cidade em 1589, ainda na época do Japão feudal, e se desenvolveu em torno de um castelo construído na era Edo. Durante as reformas da era Meiji, foi o local escolhido para receber a Escola Superior de Educação e, com o início da guerra Sino-Japonesa, em 1894, foi escolhida como sede militar (YAMASHIRO, 1964). Na época da Segunda Guerra Mundial, a cidade mantinha vastos depósitos de suprimentos e era, também, a sede do quinto batalhão — o principal batalhão dos pilotos kamikazes. Com uma população de 350 mil pessoas na época, Hiroshima representava para o país tanto um centro universitário quando um lócus militar. A cidade fez o que pôde para minimizar as possíveis perdas materiais e imateriais para quando as bombas incendiárias chegassem: enviou as crianças pequenas para abrigos afastados do centro e colocou os estudantes para demolir suas casas e montar um sistema otimizado para conter o fogo.

O encarte do Museu Memorial da Paz de Hiroshima21 explica o porquê da

21 O encarte do Museu Memorial da Paz de Hiroshima é entregue na entrada do museu de forma gratuita. Na primeira página, exibe informações sobre o museu, os prédios e localiza o público no espaço. No verso, expõe alguns fatos conforme os transcritos aqui. Disponível em: http://hpmmuseum.jp/

57 escolha da cidade como alvo-prioritário:

Para assegurar que os efeitos do bombardeio atômico pudessem ser observados com eficácia, os alvos em potencial foram selecionados considerando as cidades com grande área urbana e com pelo menos três milhas em diâmetro [...]. Pensava-se que Hiroshima havia sido a primeira cidade a ser selecionada porque era a única dentre as outras quatros que não possuía um campo de prisioneiros aliados de guerra. (MUSEU MEMORIAL DA PAZ DE HIROSHIMA, 2013).

Em 6 de agosto de 1945, às oito horas e quinze minutos, um clarão rompeu o céu de Hiroshima. No momento da explosão da primeira bomba atômica (conhecida como Little Boy), morreram instantaneamente entre 70 e 80 mil pessoas. Sobre o momento da explosão, a contracapa do encarte do museu destaca: “Em um instante a cidade foi quase destruída por completo: milhares de vidas preciosas foram perdidas”. Continua o texto,

[...] com um flash enceguecedor, a bomba explodiu aproximadamente a 600 metros acima do centro da cidade. Os raios de calor e a explosão queimaram e esmagaram quase todos os prédios de dentro de aproximadamente dois quilômetros do hipocentro, consumindo milhares de vidas. (MUSEU MEMORIAL DA PAZ DE HIROSHIMA, 2013).

No mesmo dia, a Casa Branca emitiu o seguinte comunicado:

Um avião americano lançou, esta manhã, uma bomba, uma só, sobre a cidade de Hiroshima [...]. Nós dominamos uma força elementar do universo físico, aquele de onde o sol extrai sua própria potência. Essa potência foi desencadeada contra aqueles que submeterem o Extremo Oriente a uma situação de fogo e sangue. (PERALVA, 1990, p. 46).

A rádio japonesa transmitiu, na manhã do dia 7, uma pequena nota sobre o ocorrido, afirmando: “Hiroshima sofreu danos consideráveis, em função de um ataque de alguns B-29. Acredita-se que se utilizou um novo tipo de bomba. Investigam- se os detalhes” (HERSEY, 2002, p. 55).

Entre os sobreviventes, especulava-se o que causou tal catástrofe. No imaginário das vítimas, propostas primitivas e infantis, tais como gasolina lançada de um avião ou obra de paraquedistas, mas, “ainda que soubessem a verdade, a maioria estava atarefada demais, cansada demais ou ferida demais para se importar com o

58 fato de que tinham sido objeto da primeira grande experiência com o emprego de energia atômica” (HERSEY, 2002, p. 55). O sargento George Caron, membro da tripulação norte-americana, descreveu a nuvem de fumaça que se formou instantaneamente depois da explosão como uma nuvem que se “espalha” para fora, e que

[...] tem aproximadamente 1.500 a 3.000 km de altura e uns 800 metros de largura. E não para de crescer. Está quase ao nosso nível e subindo. É bastante preta, mas tem uma tonalidade roxa. A base do formato de cogumelo parece uma nuvem pesada crivada de chamas. (FARRINGTON, 2014, p. 137).

Os números de mortes desse episódio somam mais de 300 mil pessoas, sendo que 25% das vítimas sucumbiram em função de queimaduras provocadas pela bomba, cerca de 50%, em função de outros ferimentos e 20%, em função dos efeitos da radiação. De uma cidade com 90.000 prédios, apenas 28.000 ficaram de pé e “o formato da guerra mudou para sempre. Não havia mais distinção entre alvos cíveis e militares. Todos foram varridos para a morte por um vento nuclear mortal” (FARRINGTON, 2014, p. 137). O Ocidente só tomou pleno conhecimento do que se passou um ano após o ocorrido, por meio da reportagem Hiroshima, de autoria do jornalista John Hersey, publicada em uma edição especial da revista The New Yorker, com data de 30 de agosto de 1946. Com o relato de seis sobreviventes da explosão, Hiroshima é tida como a melhor reportagem já escrita sobre o evento, e nenhuma outra matéria alcançou tamanha repercussão. Vinte anos após a reportagem, o jornalista voltou a Hiroshima para descobrir o paradeiro de seus depoentes e republicou a reportagem em formato de livro. Pela dificuldade de se obter fontes oficiais que relatem com profundidade informações sobre o ocorrido, Hersey (2002) se valeu de entrevistas e de cartas redigidas pelas vítimas da tragédia. Para Sharpe (2011, p. 53), o uso de cartas e de outros materiais cotidianos como fontes históricas atua como uma releitura da historicidade oficial e abre a “possibilidade de uma síntese mais rica da compreensão histórica”. No caso de Hiroshima, a necessidade de fontes não-oficiais – uma carta entre amigos - é um dos poucos relatos encontrados no qual é possível obter mais informações sobre o estado das vítimas logo após as explosões. A seguir, um trecho da carta do Sr. Tanimato, um dos sobreviventes, enviada a um amigo americano,

59 destaca esse momento:

[...] tantos feridos jaziam no chão que tive que passar por cima deles. Repetindo desculpas, segui em frente e enchi uma bacia de água e lhes dei de beber. Eles ergueram lentamente a parte superior do corpo, fizeram- me uma ligeira reverência e aceitaram a água; tomaram-na em silêncio e, tendo derramado o resto, devolveram-me o copo com uma expressão de sincera gratidão. [...] Deitei-me junto a eles, porém não conseguia dormir. De manhã encontrei muitos mortos, muitos homens e mulheres que eu havia dado de beber. Para minha grande surpresa, contudo, nunca ouvi um grito, nem mesmo de quem sofria terrivelmente. Morreram em silêncio, sem reclamar. (HERSEY, 2002, p. 94).

Sobre a situação em que os corpos das vítimas se encontravam nas primeiras horas após a explosão, Hersey relata outra vivência do Sr. Tanimato:

O pastor estendeu os braços e tentou puxar uma mulher pelas mãos, porém a pele se desprendeu como uma luva. [...] todos estavam nus e tinham as costas e o peito pegajoso, frios e úmidos. O pastor se lembrou das grandes queimaduras que tinha visto durante o dia: amarelas a princípio, depois vermelhas e intumescidas, com a pele solta e à noite supuradas e fétidas. (HERSEY, 2002, p. 51).

Quando o avião da força aérea norte-americana decolou em 9 de agosto de 1945, o destino não era Nagasaki. Na ordem de alvos prioritários, estavam Kokura, Niigata e, por último, Nagasaki. O mau tempo e a pouca visibilidade de Kokura alteraram o plano, e, assim, às 11h02min, a bomba atômica foi lançada na cidade de Nagasaki (BATH, 1993). Hobsbawm (1998, p. 22) declarou que operamos em “sociedades e comunidades para as quais o passado é essencialmente o padrão para o presente”, de forma que é

[...] justamente por isso que a destruição de Nagasaki foi tão crucial na história. Um ato redundante dentro da lógica da Segunda Guerra Mundial. [...] Se Hiroshima iniciou a era nuclear, Nagasaki a confirmou. Isso torna o caso de Nagasaki mais terrível, apesar da sua menor carnificina: a sua aniquilação converteu o que poderia ter sido uma aberração [...] em um padrão. (GONÇALVES, 2011, p. 86).

Nagasaki surgiu como uma pequena vila de pescadores e só assumiu importância política com a chegada de portugueses que estabeleceram, na metade do século XVI, um ponto de comércio entre a Europa, a China e o Japão. Foi através de Nagasaki que os japoneses tiveram contato com armas de fogo e com o cristianismo, que rapidamente se espalhou pela região (BATH, 1993).

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No que tange às características físicas das explosões atômicas, os cientistas japoneses estimaram que o calor resultante da explosão no centro da cidade de Hiroshima atingiu mais de 60.0000 Celsius, e que uma bomba de urânio foi lançada sobre esta cidade e outra, de plutônio – com potencial de alcance ainda maior —, sobre Nagasaki. Segundo Hersey (2002), os pesquisadores japoneses conseguiram determinar a altitude exata em que a primeira bomba explodiu e a quantidade aproximada de material atômico utilizado. Concluíram, também, que, no caso da bomba de Hiroshima, seria necessário um abrigo de concreto com 125 metros de espessura para proteger uma pessoa dos efeitos da rádio intoxicação. Em 14 de agosto de 1945, o Japão concordou com a “rendição incondicional”, e o povo japonês tomou conhecimento da derrota pela voz do próprio imperador, em um emblemático pronunciamento com duração de apenas 4 minutos, transmitido pelo rádio. Em seu discurso, o imperador pedia a deposição das armas, a aceitação da vitória dos Aliados e avisava os súditos para “suportar o insuportável e tolerar o intolerável” (CALLCUT, 1984, p. 180). A mensagem, explica Sakurai (2014, p. 196), não era uma fala derrotista, não havia uma negação dos motivos que levaram o país à guerra – foi um “desejo sincero de assegurar a autopreservação do Japão e a estabilização da Ásia Oriental” —, nem um pedido claro de desculpa às nações colonizadas. Nas entrelinhas de seu pronunciamento, identificava-se a vontade de “manter os princípios da nação japonesa como uma única família e a ideia da preponderância do papel japonês diante das outras nações do mundo”, visando à preservação da paz e da humanidade (SAKURAI, 2014, p. 195). Nesse jogo de dito e não-dito, Callcut expõe que, a Declaração de Rendição, quando cuidadosamente lida, é um documento fascinante, porque o imperador surge “imbuído de uma natureza sacrificial e misericordiosa e só a sua virtude pode salvar a humanidade” (CALLCUT, 1984, p. 205). A mensagem final, explica, é uma referência a um sutra22 budista: “decidimos abrir o caminho para a paz de todas as gerações vindouras, suportando o que não se pode suportar e sofrendo o que não se pode sofrer” (CALLCUT, 1984, p. 205). Em suma, o conteúdo do discurso orbitava sobre o peso de se assumir a derrota, mas não sobre o ocorrido em Hiroshima e Nagasaki. “O imperador não falava sobre os efeitos da bomba atômica, mas sim sobre a rendição” (FARRINGTON,

22 No budismo, a expressão sutra se refere frequentemente às escrituras canônicas que são tratadas como registros dos ensinamentos orais de Sidarta Gautama.

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2014, p. 139). Em seus estudos sobre memória, esquecimento e silêncio, Pollak (1989) ensina que o sentimento de culpa é um fator que favorece o processo de silenciamento, e que, frente à existência de lembranças traumáticas, todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas impõem uma posição de silêncio e que, mesmo no caso das vítimas, a situação é semelhante. No caso japonês e das explosões atômicas, o silenciamento, entendido pelo autor como a tentativa imposta ou voluntária de apagar da memória coletiva um evento traumático, pode ser observada na linguagem. Os japoneses, ao se referirem a alguém que passou pela experiência dos bombardeios atômicos, “tendiam a evitar o termo sobrevivente, cuja ênfase no fato de estar vivo podia sugerir algum desrespeito para com os mortos sagrados” (HERSEY, 2002, p. 99). Hersey (2002, p. 71) relata que, quando o povo japonês tomou conhecimento do fim da guerra e, consequentemente, da derrota, foi evidente que ficou decepcionado, mas, “com o espírito tranquilo, obedeceram à ordem imperial de fazer um sacrifício pela paz duradoura do mundo”. Para Benedict (1972, p. 113), o pronunciamento do imperado, instalou, na sociedade japonesa, a crença de que, sendo o “imperador quem dera a ordem, ainda que esta fosse de rendição, mesmo na derrota, a lei suprema ainda era” japonesa. Em sincronia, Sakurai (2014, p. 194) explica que a forma como se deu o fim da guerra posicionou o Japão (e os japoneses) não como agressores, e sim como vítimas. Esse posicionamento é evidenciado quando se observa que os japoneses se referem ao dia 14 de agosto como shusenbi, que significa “o fim da guerra”, no lugar de haisendi, que significaria o “dia da derrota” (GONÇALVES, 2011, p. 58). Completamente derrotado, o Japão assumiu internacionalmente sua derrota. A Declaração de Potsdam, proposta pelo Aliados em julho de 1945, ou seja, antes das explosões atômicas, e aceita em agosto após as explosões, foi assinada oficialmente em dois de setembro de 1945. Na declaração, o país aceitava a rendição incondicional, a liquidação de seu espólio imperial, a ocupação militar das Forças Aliadas, o julgamento dos criminosos de guerra e a desocupação dos países dos territórios conquistados23, com a promessa (não com a garantia) de que “as prerrogativas de Sua Majestade” fossem respeitas e o povo não fosse escravizado

23 A rendição japonesa na Coreia resultou na divisão do país ao longo do Paralelo 38. De um lado, com a capital em Pyongyang e, sob a proteção da URSS, surgiu a Coreia do Norte. Ao Sul, com a proteção dos EUA e capital em Seul, a Coreia do Sul.

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(PERALVA, 1990, p. 50). O país foi ocupado pelas Forças Aliadas de 1945 até 28 de abril de 1952. O processo de ocupação foi comandado pelos Estados Unidos, com contribuições mínimas da Austrália, Índia, Nova Zelândia e Inglaterra, e se deu com o comando supremo do General norte-americano Douglas MacArthur. De acordo com Hobsbawm, o mundo pós Segunda Guerra Mundial foi reestruturado sob as crenças dos países vencedores, e os perdedores foram silenciados e completamente riscados da História (HOBSBAWM, 2012, p. 14). Nessa perspectiva, “é pela historicidade que se pode encontrar todo um processo discursivo marcado pela produção de sentidos” (ORLANDI, 1997, p. 59), capaz de colocar no silêncio, tanto os países derrotados, como seus próprios habitantes e, principalmente, as vítimas de Hiroshima e Nagasaki. São esses efeitos de sentidos gestados por esses silêncios históricos que afetam a subjetivação dos sujeitos, o que se percebe na forma como o Japão precisou se ressignificar.

3.3 O MILAGRE ECONÔMICO

Para Benedict (1972), o que caracteriza o “espírito japonês” é a tensão entre elementos contraditórios seja da agressividade e capacidade de sujeição, de violência e polidez, de lealdade e traição seja de pioneirismo e conservadorismo. “A cultura japonesa possui, portanto, uma espantosa aptidão para oscilar entre posições extremas” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 24). Essa característica é permeada ainda “por uma qualidade adicional que é a tendência para ver o mundo em termos de ideias, o que pode conduzir a certas infrações do princípio de realidade” (BATH, 1993, p. 56). A verdadeira força do Japão, afirma Benedict (1972, p. 254), “reside na sua capacidade de dizer a respeito de determinada rota de ação ‘Esta falhou’ e, em seguida, lançar as energias em outros canais”. Quando fracassaram na conquista militar, “entenderam que afinal de contas a agressão não era o caminho da honra”, empenhando-se então, no crescimento econômico e tecnológico. O objetivo, no entanto, reforça a autora, “continua sendo a sua boa reputação” (BENEDICT, 1972, p. 254). É com vistas à recuperação da honra, através do crescimento econômico e tecnológico, e suportando o que não se pode suportar e sofrendo o que não se pode sofrer, que os japoneses receberam as Forças de Ocupação. A grande questão dos primeiros meses do pós-guerra era a natureza da

63 ocupação das forças Aliadas. Farrington (2014, p. 140) explica que, para os norte- americanos, era óbvio que os japoneses nunca iriam se render se acreditassem que o imperador estivesse ameaçado, de forma que o impasse sobre o destino de Sua Majestade era uma discussão à parte das outras decisões. Quando salvaguardado o poder imperial, “tornou-se claro que o povo japonês aceitava a derrota e todas as suas consequências com extrema boa vontade”, e os norte-americanos “foram recebidos com mesuras e sorrisos, com acenos e brados de saudação” (BENEDICT, 1972, p. 145). O general MacArthur compreendeu que não seria possível estabelecer no Japão uma forma de ocupação semelhante à da Alemanha ou à da Itália, pois havia muitos fatores contrários: a dificuldade do idioma, os hábitos burocráticos e a rigidez hierárquica. A saída foi estabelecer uma organização de comando, que utilizaria o próprio funcionalismo japonês, seguindo a tradicional hierarquia, do topo à base. As diretrizes das forças de ocupação eram enviadas ao sistema governamental e não ao povo japonês (CALLCUT, 1984). Para Benedict (1972), essa posição rendeu desavenças norte-americanas, porque alguns intelectuais afirmavam que não havia alternativa para o Japão se não a exterminação prática. Outros defendiam que o país só poderia se recuperar se os liberais tomassem o poder, derrubando o governo (o sistema imperial). Nesse cenário, adverte a autora, ambas as

[...] análises faziam sentido dentro dos termos de uma nação ocidental, empenhada numa guerra total, com apoio popular. Estavam errados, contudo, pois atribuíram ao Japão rumos de ação essencialmente ocidentais. Alguns profetas ocidentais, ainda acham [...] que tudo foi perdido por não ter ocorrido revolução alguma de caráter ocidental ou porque "os japoneses não sabiam que estavam derrotados" [...], mas o Japão não é o Ocidente. Ele não utilizou aquele último recurso das nações ocidentais: a revolução. (BENEDICT, 1972, p. 113).

O “preço” a pagar pela rendição incondicional foi, contudo, a “capacidade de exigir de si próprio” (BENEDICT, 1972, p. 113). Callcut (1984) explica que o período de ocupação provocou mudanças semelhantes às da era Meiji. Pela segunda vez, expõe o autor, “as instituições eram consideradas inadequadas e desatualizadas. Os costumes (diabólicos) do passado foram desacreditados e procuravam-se

64 conhecimentos do estrangeiro” (CALLCUT, 1984, p. 206). Pela segunda vez também, reforça, reinou a censura na mídia, e, através da lei da imprensa, os EUA proibiram a publicação de qualquer obra ou informação sobre a bomba atômica e sobre seus efeitos em Hiroshima e Nagasaki. Mas, fundamentalmente, uma vez mais as mudanças se deram de cima para baixo, do comando estrangeiro ao povo japonês. Mesmo no Japão democrático, não havia espaço para o indivíduo e, sob diferentes formas, os processos de silenciamento se mantiveram ativos. Na visão de Schwartz (1990), o período da ocupação pode até ser entendido como um período reformista, mas de uma forma muito limitada. O autor explica que as negociações entre a intenção da ocupação norte-americana e a elite japonesa criaram um espaço social em que o passado era preservado e preparado para o futuro. Para o autor, o conflito entre as “tentativas de reforma e o status quo japonês revelaram o quanto as reformas da era Meiji já estavam enraizadas” e as propostas norte-americanas de reforma mostraram-se um fracasso (SCHWARTZ, 1990, p. 55). A diferença estruturante, destaca Schwartz (1990, p. 55), foi a substituição de objetivos militares por políticas pacíficas. Entretanto, adverte que a ausência de objetivos militares não implica a ausência de uma “disciplina militar”. O Japão pós-guerra, finaliza, “foi a antítese do Japão pós-Meiji, ainda que aqui negação não signifique anulação pura e simples” (SCHWARTZ, 1990, p. 55). A guerra havia feito mais de três milhões de mortos e mais de 60% das principais cidades estavam destruídas, no mínimo, pela metade. Praticamente, não havia mais indústria, e estima-se que 40% do estoque de capital tinha desaparecido (BATH, 1993). A ajuda internacional (de alimentos, medicamentos, suporte financeiro, entre outros) vinha unicamente dos Estados Unidos, que se mostravam mais interessados em reformar o país do que em julgar, e que enxergaram no Japão um aliado estratégico na luta anticomunista. Ainda no final de 1945, a força de ocupação reorganizou os partidos políticos e liberou o direito ao voto feminino. O sistema de educação também foi reformulado, os livros didáticos foram revisados, todo o teor moralista e militar foi suprimido, e o país recebeu importantes incentivos para a construção de um sistema de ensino superior. O sistema do Zaibatsu, dos grandes blocos econômicos, foi proibido, e o país passou por uma profunda reforma agrária, sem a ocorrência de lutas internas. As grandes propriedades foram divididas e quase cinco milhões de pequenos proprietários de terra surgiram (SAKURAI, 2014). O “xintoísmo estatal” foi abolido, e,

65 no Ano Novo de 1946, o Imperador Hirohito negou publicamente sua ancestralidade divina. O período de ocupação resultou também em um momento de intercâmbio cultural sem precedentes, e os japoneses passaram a consumir produtos e adquirir hábitos ocidentais. Coca-Cola, palavras em inglês e uma infinidade de produtos culturais norte-americanos invadiram o arquipélago com uma força e uma adesão nunca antes presenciadas. Em um instante,

[...] tudo que havia sido proibido ao público japonês, ou desprezado pelos japoneses durante a guerra por serem considerados “símbolos do inimigo”, invadia as rádios, os cinemas, os jornais e as revistas, como as músicas das big bandas, as produções de Hollywood e os comics. (SATO, 2007, p. 14).

Para Sakurai (2014, p. 202), em especial o cinema e a literatura oriundos dos EUA que evidenciavam “o sucesso dos empreendimentos individuais, o amor romântico, o direito e a justiça de tipo ocidental como valores universais” ocupavam os principais espaços disponíveis, “enquanto livros ou filmes na direção oposta eram censurados e proibidos”. A pedra fundamental do novo Japão, expõe Callcut (1984), foi a implantação da nova constituição do país. Elaborada em 1946, aprovada em três de maio de 1947 e ainda em vigor, a terceira constituição trouxe mudanças significativas na estrutura e na organização da nação – eram transformações práticas e simbólicas. Ao todo são 103 artigos divididos em 11 capítulos24. Alguns trechos são quase idênticos à constituição norte-americana, outros, como “o direito de manter os padrões mínimos de uma vida saudável e civilizada”, “o direito e a obrigação ao trabalho”, “o direito dos trabalhadores de se organizarem e negociarem coletivamente”, “a liberdade acadêmica” e “a igualdade dos sexos no matrimônio”, foram criações novas (PERALVA, 1990, p. 57). Dessas, duas mudanças atingiram imensamente a vida e o imaginário do povo japonês. A primeira — do Capítulo I. O Imperador e Artigo 1o -, versa sobre a soberania do imperador, que passa ao povo japonês: “O Imperador deverá ser o

24 A constituição completa traduzida em português está disponível no site da Embaixada do Japão no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 03 jan. 2016.

66 símbolo do Estado e a unidade do seu povo, derivando a sua posição a partir da vontade do povo no qual reside a soberania do poder”. Já foi destacada neste trabalho a complexa relação que permeia a linhagem imperial, a sociedade japonesa e seu sistema mítico-religioso. Nesse cenário, Sakurai explica que, em menos de um século, da constituição da era Meiji, que fazia referência aos “sagrados ancestrais imperiais” ao documento de 1947, cujo poder passa ao povo, no qual reside a soberania, há uma alteração inquestionável na forma como o país é apresentado ao povo (SAKURAI, 2014, p. 203). A segunda “novidade” da Constituição — Capítulo II. Renúncia à Guerra—, proíbe o Japão de possuir exército e armamentos, conforme consta o artigo 9º:

Aspirando sinceramente à paz mundial baseada na justiça e ordem, o povo japonês renuncia para sempre o uso da guerra como direito soberano da nação ou a ameaça e uso da força como meio de se resolver disputas internacionais. Com a finalidade de cumprir o objetivo do parágrafo anterior, as forças do exército, marinha e aeronáutica, como qualquer outra força potencial de guerra, jamais será mantida. O direito à beligerância do Estado não será reconhecido. CONSTITUIÇÃO, Cap. II. Art. 09, 1947.

Sobre esse artigo, Peralva (1990, p. 58) explica que o primeiro parágrafo foi desenvolvido pelas forças de ocupação e que o segundo, que aparentemente endossa o primeiro, foi incluído pelos legisladores japoneses e aprovado sem ressalva pelo gabinete de MacArthur. Todavia, explica o autor, a frase “com a finalidade de cumprir o objetivo do parágrafo anterior” não impossibilita o Japão de se defender. É por meio dessa “brecha” intencional, que o país instalou, posteriormente, as Forças de Autodefesa. A alteração no cenário mundial, somada à mudança no sistema político nipônico e ao abandono dos gastos militares, impulsionou o crescimento do país. Peralva (1990, p. 63) destaca que, entre 1949 e 1951, a produção industrial cresceu 70%, as exportações aumentaram 2,7 vezes, a demanda por trabalho aumentou significativamente, assim, como também, o lucro das empresas. No final do ano de 1951, o comércio exterior já havia aumentado em 34%, e o valor e a vida dos japoneses já mostravam sinais de estabilização. No período do pós-guerra, o Estado mais uma vez, assim como fizeram na restauração Meiji, “administrou o sistema de política econômica, através do qual, recursos, renda e poupança foram transferidos entre setores e classes” (SCHWARTZ, 1990, p. 56).

67

Em setembro de 1951, Japão e EUA assinaram o Tratado de Paz e o Tratado de Segurança Mútua, que entrou em vigor em 1952 e resultou no fim do período de ocupação. O ano de 1954 marca a passagem da economia japonesa do período de recuperação para o de expansão. Nessa fase, que ficou conhecida como “prosperidade Jimmum”, a produção de arroz chegou ao elevado patamar de 12,3 milhões de toneladas e a indústria da construção naval afirmou-se como a primeira do mundo em volume de produção (PERALVA, 1990). Em 1959, o avanço da prosperidade econômica recebeu o nome de Iwato, que significa algo próximo com “a maior fase de prosperidade da nação desde as épocas mitológicas” (PERALVA, 1990, p. 64). No campo industrial, explica, os setores tradicionais, como os têxteis e de aço, alcançavam altos níveis de produção, mas o crescimento mais espetacular se via nas tecnologias de origem estrangeira, como

[...] a produção naval, a eletrônica, e os equipamentos fotográficos. Na década de 60, o Japão ultrapassou os suíços em produção de relógios, os alemães nos aparelhos fotográficos, os americanos e os europeus em vários produtos eletrônicos e no progresso ferroviário, como trem-bala (Shinkansen). (PERALVA, 1990, p. 64).

Evidentemente o cenário internacional colaborou com o avanço da prosperidade japonesa. A guerra na Coreia25 e a intervenção norte-americana aumentaram a demanda por produtos ligados à indústria bélica, assim como as consequências do Plano Marshall26, o “avanço” da Guerra Fria, entre outros fatores externos. Para Hobsbawm, (2012, p. 270), a ajuda norte-americana foi decisiva na aceleração da transformação do Japão, ainda que, adverte, o país, assim como a Alemanha, viria a se tornar uma potência econômica de qualquer forma, pois “o simples fato de, como países derrotados, não serem senhores de sua política externa lhe deu uma vantagem, pois não os tentou a despejar mais que o mínimo de recursos no estéril

25 A Guerra da Coreia ocorreu entre 1950 e 1953. De um lado, a Coreia do Sul e os países Aliados e, do outro, a Coreia do Norte com apoio da China e da União Soviética. O resultado, no entanto, foi a manutenção da divisão da ilha no Paralelo 38. 26 Conhecido como Plano Marshall, devido ao nome de seu criador, o “Programa de Recuperação Europeia” visava à reconstrução dos países europeus nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial e foi imposto e subsidiado pelos EUA.

68 buraco dos gastos militares”. Hobsbawm esclarece, porém, que a rapidez do crescimento japonês não seria possível se os EUA não tivessem feito do país sua base industrial para a Guerra da Coreia e, posteriormente, na Guerra do Vietnã, em 1965. Os EUA “financiaram a duplicação das manufaturas do Japão, e não por acaso 1966-70 foram os anos de pico do crescimento japonês — não menos que 16% ao ano” (HOBSBAWM, 2012, p. 271). A recuperação da economia japonesa pode ser observada na evolução da renda per capita do país, que, em 1946, era de 17 dólares; em 1950, de 132 dólares; e, em 1962, chegou a 546 dólares, o que corresponde a 471 vezes a do ano de 1955 (PERALVA, 1990). Na década de 1960, o primeiro ministro Hayato Ikeda instalou um histórico programa econômico de redistribuição de renda que, em 10 anos, transformou o Japão na nação com a maior e a mais rica classe média do mundo (SATO, 2007). A prosperidade em um país acostumado com a pobreza e onde, por séculos, a ideia ocidental de indivíduo inexistia, provocou uma ressignificação do sujeito — ainda que não tenha alterado a rígida hierarquia —, e, consequentemente, transformou o país em uma nação consumista. Entre os anos de 1950 e o início de 1960, o país passou por “suas primeiras tsunamis consumistas, na qual praticamente todas as famílias adquiriram os ‘três tesouros sagrados’ do consumo do momento” (SATO, 2007, p. 16) — uma referência à origem mítica, às insígnias da família imperial (a joia, a espada e o espelho) e um aviso de que a antiga mitologia ainda permanece viva. De acordo com Sato (2007, p. 16), no final de 1950, foram “os três S’s”, o Senpûki (ventilador), o Sentaku (máquina de lavar) e o Suihanki (panela elétrica de arroz); em 1960, foram “os três K’s”, o Kaa (carro), o Kûraa (ar condicionado) e o Kaaraa terebi (televisão a cores); na década de 1970, foram “os três J’s”, o Jûeru (joias), o Jetto (avião – de viagem ao exterior) e o Jûtaku (casa própria).

No final da década de 1950, o país inaugurou a Torre de Tóquio, uma torre de ferro para distribuição do sinal de televisão nos moldes da Torre Eiffel de Paris. Em 1964, anunciou mundialmente a criação do Shinkansen, o trem- bala, e foi sede das primeiras Olimpíadas realizadas em um país asiático. O evento “reapresentou” o Japão ao Ocidente como uma nação pacífica, reconstruída e direcionada ao

69 progresso. No mesmo ano, estreava na televisão norte-americana a primeira série de desenho animado produzida no Japão, Astro Boy (Tetsuawan Atomu), de Osamu Tezuka. A feira mundial Expo World Japan, realizada em Osaka em 1970, representou a entrada definitiva do Japão no grupo das potências econômicas, como a segunda maior economia capitalista. Nessa perspectiva, Bath (1993, p. 16) expõe que é preciso destacar que a primeira vez que se usou conscientemente a expressão “milagre econômico” foi uma referência às transformações por que passou o Japão entre 1945 e 1970. As décadas de 1960-70 marcaram também a redistribuição das posições políticas e ideológicas vigentes no Japão e impulsionaram a abertura de diálogo no que tange Hiroshima e Nagasaki. Em dois de maio de 1960, a Dieta — o parlamento japonês — aprovou o decreto dos três princípios nucleares, que proibia o país de produzir armas nucleares, mantê-las em seu território ou que essas passassem por seu território. A publicação do decreto representou muito mais do que uma série de regras de conduta sobre as armas nucleares, significou também que havia chegado o momento de estabelecer uma nova forma de tratar o assunto. Passados apenas três anos da sanção do decreto, em 1963, o primeiro livro ficcional que traz a problemática da explosão da bomba foi publicado no país: Hiroshima Notes (Notas de Hiroshima), escrito por Ôe Kenzaburo. A obra, redigida com base nos relatos que o autor fez durante suas viagens à cidade, traz uma visão de Hiroshima abandonada pelo governo e expõe a experiência de alguns sobreviventes. No ínterim da publicação do livro e as discussões políticas sobre as armas nucleares, a cidade de Hiroshima aprovou, em 1966, uma resolução que tratava das ruínas do único prédio que resistiu à explosão: elas deveriam ser preservadas por toda eternidade. Sobre a manutenção de prédios históricos, Hobsbawm (1998, p.23) expõe que a busca pela preservação material surge como uma grande força simbólica, que “ao restabelecer uma parte pequena, mas emocionalmente carregada de um passado perdido, de algum modo restabelece o todo”. Em 1969, Ibuse Masuji publicou a obra mais lida, traduzida e ensinada sobre a temática: Chuva Negra. E, em 1973, Nakazawa Keiji, um sobrevivente da explosão atômica, publicou o mangá Gen Pés Descalços. À medida que Notas de Hiroshima, Chuva Negra e Gen Pés Descalços vão se popularizando, sendo traduzidas para outras línguas, lentamente constrói-se um novo olhar sobre a cidade de Hiroshima,

70 sobre os bombardeios atômicos e sobre o “novo Japão”, e é através da literatura que a História oficial é redita, dando voz àqueles a quem só cabia o silêncio. Na década de 1980, mesmo enfrentando um cenário de desaceleração econômica, 70% da classe média japonesa recebia salários iguais ou superiores a 2.000 dólares. A geração da “bolha econômica” vivia o extremo oposto do mundo em que seus pais e avós foram criados. Na visão de Yamakage (2010, p. 47), uma forma peculiar de sociedade foi criada no Japão após 1945, caracterizada pelo materialismo e pelo ateísmo. De acordo com Sato, essa nova sociedade era composta, principalmente, por “jovens altamente consumistas e hedonistas, que primavam pelo divertimento, que abraçavam e abandonavam modismos com uma rapidez promíscua” (SATO, 2007, p. 20). Nos prósperos anos de 1980, ser kawaii (graciosa, fofa) era o que importava, e a maioria dos japoneses nascidos no pós- guerra buscava vivenciar uma vida próxima ao modelo ocidental, porém, adverte a autora, “um ocidental provavelmente os veria apenas como japoneses com um estilo de vida muito consumista” (SATO, 2007, p. 20-21).

No ápice desse “milagre econômico”, os japoneses não só compraram um dos maiores símbolos do capitalismo norte-americano o Rockefeller Center27 em Nova Iorque, como também um dos mais importantes estúdios cinematográficos de Hollywood, a Columbia Pictures. Não obstante, tornaram- se a “única nação do pós- guerra que conseguiu quebrar com a hegemonia americana na exportação de cultura pop” (SATO, 2007, p. 24), disseminando mundialmente diferentes produtos do mercado de entretenimento, como jogos de videogames, filmes, séries para televisão, música, entre outros. Enquanto o Ocidente vibrava com o fim de uma era — a queda do muro de Berlim, o desmembramento da antiga União Soviética e o fim da Guerra Fria —, os japoneses choraram o fim da era Shõwa, que, em 1989, representou o

27 O complexo de 19 prédios foi construído pela família Rockefeller e é hoje umas das principais atrações turísticas da cidade de Nova Iorque. A família Rockefeller é considerada uma das famílias mais influentes da história dos EUA (John D. Rockefeller chegou a ser considerado o homem mais rico de todos os tempos) e por anos usou sua influência no cenário político e econômico norte- americano. As práticas ilegais da refinaria Standard Oil, uma das empresas da família, foram um dos principais motivos para a criação da lei Antitruste norte-americana.

71 desaparecimento dos três ícones do pós-guerra: o Imperador Hirohito, a atriz e cantora Hibari Misora e o “deus do mangá”, Osamu Tezuka.

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4 MANGÁ: ASPECTOS HISTÓRICOS, SOCIAIS E ESTÉTICOS

Para Bachelard (2000), a palavra possui dois significados: um que remete à etimologia e outro, à significação cotidiana. Na visão do autor, para devanear, basta que se vincule uma significação à outra. Para Cassirer (2006), não há pensamento que não se origine de palavras, de forma que se observa nesses dois autores a visão de que a palavra é a matriz criadora. Pensando nessa ordem, é interessante, então, antes de discorrer sobre as HQ’s, propor uma breve reflexão sobre as particularidades do idioma japonês. O japonês, idioma oficial do Japão, foi uma língua oral até, aproximadamente, dois mil anos. Sua primeira forma de escrita, importada da China, chegou via península coreana e resultou na apropriação japonesa dos Kanji chineses. A escrita propriamente japonesa, composta por dois alfabetos, foi desenvolvida em meados do século IX. O Hiragana, composto por 48 caracteres, é utilizado para escrever palavras nativas, partículas, terminações verbais e algumas expressões de origem chinesa, tendo sido desenvolvido por simplificação dos kanji pela aristocracia da corte, para escrever diários, poemas e novelas. Segundo o livro Japonês para o dia a dia (2010, p. 12), o Katakana, alfabeto igualmente com 48 caracteres, é utilizado para palavras que não têm origem no chinês ou no japonês e com frequência é usado para escrever onomatopeias, termos científicos e nomes estrangeiros, tendo sido criado pelos monges budistas, para ler livros sagrados com mais facilidade. Assim, ademais esses dois alfabetos, a escrita japonesa ainda utiliza uma quantidade considerável de ideogramas (os kanji). O ideograma expressa um conceito e sua forma atual desenvolveu-se através dos anos pela representação pictórica dos objetos.

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Figura 1: Evolução e uso dos kanji

Fonte: Luyten (1991, p. 38-39)

O número de kanji utilizados na leitura diária de um japonês recém-saído do ensino médio é de aproximadamente de 900 ideogramas, muito embora os dicionários japoneses mais avançados apresentem mais de 50 mil caracteres. Para ler um jornal, por exemplo, é preciso conhecer aproximadamente 2.000 kanji. Além disso, Luyten (1991, p. 40) discorre que “o japonês para escrever o nome de alguém ou de algum lugar geográfico, tem que consultar um manual próprio porque muitos kanji podem ter o mesmo som, ou seja, são homófonos, mas são escritos de formas diferentes”. Isso posto, constata-se que a “história da escrita japonesa tem a tradição da abstração de traços de figuras reais, isto é, signos que representam e expressam visualmente a ideia das palavras” e que, para que “seja possível entendê-la, é preciso que se decodifiquem as palavras em conceitos” (LUYTEN, 1991, p. 38- 39). Nessa reflexão, quando o Japão se abriu ao mundo, no início do século XX, Eisenstein28 (2002) logo ponderou que japoneses tinham uma tendência singular de decompor o mundo em unidades visuais separadas. O autor discorreu que, para desenhar uma cerejeira, o japonês adota uma posição bastante diferente do Ocidente: não desenha de uma ponta a outra, mas separa o conjunto em unidades de

28 Sergei Mikhailovich Eisenstein (1898 – 1948).

74 composição — em diversos quadros de “realidade” (EISENSTEIN, 2002, p. 44).

Figura 2: Processo de construção da imagem no Japão

Fonte: Eisenstein (2002, p. 45)

Essa tendência de ver o mundo em quadrados, de perceber a realidade em partes separadas, que formam o todo, observada por Eisenstein ainda no início do século XX, advém possivelmente da peculiaridade da construção discursiva do idioma japonês. Por essas particularidades, o “próprio pensamento do povo é moldado dentro de uma estética sensível ao real” e o “interesse perene pelo figurativo na cultura oriental não deve ser negligenciado” (LUYTEN, 1991, p. 38). Assim, “o poema japonês deve ser visto (isto é representado visualmente) antes de ser ouvido” (EISENSTEIN, 2002, p. 32). Pensando nessa ordem, Luyten destaca que um dos principais motivos de as histórias em quadrinhos desenvolverem-se de forma significativa no Japão foi que, entre a “sequência de imagens significantes (a escrita japonesa) e as imagens sucessivas (as histórias em quadrinhos), há, portanto, uma continuidade: o mesmo traço de tinta e o mesmo deslocamento linear do olhar à linha narrativa” (LUYTEN, 1991, p. 39). Muito embora a primeira experiência nipônica com histórias em quadrinhos

75 date de 1.300, quando surgiram os e-makimono29, e a palavra mangá tenha sido cunhada pelo artista plástico Katsushika Hokusai (1760- 1849), famoso por sua obra As 36 Vistas do Monte Fuji (Fugaku Sanjûrokkei) (SATO, 2007), a expressão não tinha nitidamente nenhuma relação com o conceito de HQ’s, que nem sequer existia. Foi quando, em 1901, Rakuten Kitazawa publicou no jornal a primeira narrativa japonesa em quadrinhos com personagens fixas e se autodenominou mangaka (aquele que faz mangá), que o país adotou o termo. Observar o percurso das HQ’s japonesas depois que a expressão mangá foi amplamente adotada no país é perceber que “aquilo que alguma vez se fixou numa palavra ou nome [...] nunca mais aparecerá apenas como uma realidade, mas como a realidade” (CASSIRER, 2006, p. 50). O termo mangá é fruto da soma dos ideogramas man, de humor, e gá, de imagem ou desenho. Todavia, no início dos anos de 1980, quando as HQ’s chegaram ao Ocidente (em especial aos EUA), o termo foi traduzido como “imagens irresponsáveis”, sendo man uma referência à “involuntário” ou “a despeito de si mesmo”, somado ao sentido conotativo de “moralmente corrupto”, e gá, de “imagem” (GRAVETT, 2006, p. 13). O primeiro contato japonês com revistas de humor de histórias em quadrinhos no estilo ocidental aconteceu nos primeiros anos da era Meiji (1867- 1902), quando duas revistas foram produzidas e publicadas no país. A Japan Punch, do inglês Charles Wirgman, inspirava-se no choque cultural entre Ocidente e Oriente, enquanto a publicação Tôbaé, do francês George Bigot, trazia a sátira política como temática principal. Discorre Sato que as duas revistas foram responsáveis pela introdução dos preceitos básicos das HQ’s modernas: a narrativa construída através de imagens sequenciais e o uso de balões com textos. Especialmente a última, explica a autora, “ajudou a introduzir conceitos de desenho ocidentais que não existiam no Japão, como sombra, perspectiva e anatomia” (SATO, 2007, p. 59). No primeiro decênio do século XX, as HQ’s japonesas apareciam no formato de charge, com quatro ou oito desenhos apenas, em edições diárias e dominicais dos jornais, e eram destinadas quase exclusivamente ao mercado adulto (LUYTEN, 2012).

29 E-makimono, que significa “pergaminhos ilustrados”, eram os rolos em que as ilustrações complementavam a história conforme seu desenrolar. Em geral, narravam acontecimentos históricos ou apresentavam a origem dos templos.

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Para Sato (2007, p. 62), foi neste ínterim que surgiram as primeiras revistas de mangá para o público infanto-juvenil. Em 1914, começou a circular a revista Shõnen Kuruba (Clube dos Meninos); em 1923, a Shojõ Kuruba (Clube de Meninas) e, em 1926, a Yõnen Kuruba (Clube das Crianças). Essas publicações dividiam espaço com importantes personagens norte- americanas, com Mickey, Popeye, Betty Boop e o Gato Felix. Contudo, com a intensificação dos conflitos externos e com a Lei de Preservação da Paz, aprovada em 1925 e intensificada no início dos anos de 1930, as HQ’s foram submetidas a um sistema de censura. As personagens ocidentais foram proibidos e qualquer publicação de caráter nocivo a autoridades foi rigorosamente proibida30. Ao largo do período da Segunda Guerra Mundial, não houve avanços significativos na produção das HQ’s, visto que não havia recursos financeiros disponíveis para impressões e os artistas estavam, na maioria, envolvidos na produção de obras publicitárias de temática bélica sob as ordens do Exército ou exilados. Nos primeiros anos do pós-guerra, os japoneses sobreviviam com recursos limitados, e a necessidade de apagar “o mais rápido possível os traços da vigência de outras ideias” abriu espaço para a popularização das HQ’s japonesas. Renunciando para sempre à guerra e sem condições políticas e econômicas de se opor, o povo japonês aceitou o que lhes foi proposto: esquecer suas intenções expansionistas e concentrar esforços na sua força de trabalho. Nesse cenário, os mangás tornaram- se a válvula de escape para suportar as dificuldades do período, ou seja, representavam “muitas páginas de diversão (e esquecimento) a baixo custo” (LUYTEN, 2012, p. 19). Seja sob o sistema de empréstimo ou compradas por menos que uma passagem de trem, rapidamente, as revistas de histórias em quadrinhos se

30 Por curiosidade: a censura das HQ’s no Ocidente se deu entre 1940-1950, quando essas se tornaram “a causa” do surgimento da delinquência juvenil na América. Com a pressão da igreja, da mídia e de uma comissão no Senado dos EUA (estilo CPI), a Comics Magazine Association of America instalou, em 1954, o Comics Code. Foram proibidos atos de violência, nudez, frases obscenas ou vulgares, tampouco histórias em que as autoridades fossem retratadas de forma crítica ou que apresentassem temas “subversivos”, como o racismo ou o adultério. O objetivo “era que os quadrinhos se tornassem mais ingênuos que a programação de TV da época”, garantindo que “fossem leitura ‘saudável’ para crianças”, e então as HQ’s com “bichinhos fofinhos, super-heróis foram impostos à força como padrão a ser seguido”. No Brasil, a ditadura militar implantou, em 1965, no Código de Ética, uma lei específica de censura para os gibis. Sob pena explícita em lei, as HQ’s de toda a América continental se viram obrigadas a permanecer na infância (CAMPOS, 2006, p. 10).

77 popularizaram. Entretanto, o mangá só ganhou notoriedade nacional no início dos anos 1950, a partir da obra de Osamu Tezuka31, aclamado, ainda em vida, como “Deus do Mangá”. Tezuka foi o autor, que inaugurou a estética dos olhos grandes, cabelos pontudos e pernas compridas, e, no universo narrativo, trouxe para o mangá tramas dramáticas e complexas. A “revolução” Tezuka, que ocorreu entre as décadas de 1950 e 1960, transformou as HQ’s em uma das mídias mais poderosas do Japão e as consolidou como o grande passatempo nacional, de modo que

[...] histórias em quadrinhos (mangás) e desenhos animados (animês) no Japão são um assunto seríssimo [...] embora na origem sejam atividades distintas, no Japão elas tiveram um denominador comum - alguém que lhes conferiu originalidade e características hoje qualificadas de "japonesas". É opinião pacífica que isso ocorreu graças à obra de um homem [...]. A ele se atribui a criação do estilo de desenho dos personagens de corpos magros, cabelos pontudos e olhos enormes, com cores vivas e contrastantes em histórias com forte conteúdo dramático. (SATO, 2007, p. 125).

Especialmente no pós-guerra, suas “histórias influenciaram gerações de crianças e jovens japoneses, e através de sua notoriedade ele conferiu ao mangá e ao animê prestígio e status de arte” (SATO, 2007, p. 125). Para Gravett (2006), se há uma explicação para a popularidade dos quadrinhos no Japão, é que entre os japoneses havia Osamu Tezuka. Para o autor, Tezuka “criou suas plantas, suas fundações, e seus mais ricos mananciais. Sua influência no Japão pode ser vista como equivalente à de Walt Disney, Hergé, Will Eisner e Jack Kirby somados num só” ao largo de mais de 150 mil páginas de quadrinhos, publicadas em aproximadamente 600 títulos e 60 trabalhos de animação (GRAVETT, 2006, p. 28). A popularização do mangá em território japonês foi tão significativa que, em 1980 (auge do milagre econômico), “atingiu-se o volume de 4,3 bilhões de livros e revistas produzidos, dos quais 27%, ou seja, 1,16 bilhões destinavam-se a publicações de histórias em quadrinhos” (LUYTEN, 2012, p. 17). O Instituto de Pesquisas Editoriais do Japão calculou que, entre 1945 e 1995, foram lançados mais de 2 bilhões de títulos em mangás (SATO, 2007). Em 1995, um total de 2,3 bilhões de livros e revistas de HQ’s foram impressas e 1,9 bilhões de unidades vendidas, o que representa uma média de 15 unidades por habitante. De acordo com Gravett (2006), em 2002, os mangás representavam 38,1% das publicações do

31 Existem algumas variações de “romanização” no que se refere ao nome Osamu Tezuka, e pode-se encontrar seu nome grafado com s, ss ou z.

78 mercado editorial. Na contemporaneidade, o mangá Naruto, publicado entre 1999 e 2014, que conta a história de um ninja órfão que deseja ser reconhecido em sua sociedade, já vendeu 135 milhões de exemplares. A obra One Piece, que narra a história de um pirata em busca de um lendário tesouro, publicada semanalmente desde 1997, é considerada o mangá mais vendido até hoje, e já soma 300 milhões de exemplares comercializados somente no Japão32. Sob a perspectiva de que cada “sociedade cria suas manifestações ficcionais, poéticas e dramáticas de acordo com os impulsos, as suas crenças, os seus sentimentos, as suas normas, a fim de fortalecer em cada uma a presença e atuação deles” (CANDIDO, 2004, p. 175), é possível que seja na literatura do mangá que se encontrem pistas do que constitui o imaginário japonês. Materializado em bilhões de páginas, o mangá revela os traumas coletivos, os medos individuais, a ideia de beleza, a de sedução, o ideal de força, a austeridade, a visão do Eu e a do Outro. Enfim, todo o sistema do que se pode entender sobre a expressão “identidade japonesa”.

4.1 A POÉTICA DO MANGÁ

Para compreender as características específicas do mangá, é preciso, primeiro, apresentar algumas noções gerais, no que se refere às histórias em quadrinhos. Nessa perspectiva, Eisner (1989, p. 5) conceitua histórias em quadrinhos como uma “arte sequencial” e “uma forma artística e literária que lida com a disposição de figuras ou imagens e palavras para narrar uma história ou dramatizar uma ideia”. Sincronicamente, McCloud (1995, p. 9) expõe que quadrinhos “são imagens pictóricas e outras justapostas em sequência deliberada”. O autor reafirma a posição de Eisner e enfatiza que as HQ’s devem ser conceituadas como “arte sequencial”, porque as figuras, quando vistas individualmente, não passam de imagens, mas, “no entanto, quando são partes de uma sequência, mesmo uma sequência de duas, a arte da imagem é transformada em algo mais: a arte das histórias em quadrinhos” (MCCLOUD, 1995, p. 5).

32 Disponível em: . Acesso em: 10 mar. 2017.

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Se a expressão “histórias em quadrinhos” pode ser compreendida como imagens justapostas em sequência, cujo objetivo é a enunciação, o “quadrinho” é a estrutura fundamental dessa forma de narrativa. Eisner (1989) explica que o “quadrinho” é o único elemento capaz de lidar com a captura ou o encapsulamento do fluxo narrativo, e é preciso decompô-lo em sequências para instaurar o sentido narrativo. Para o autor, “a representação dos elementos dentro do quadrinho, a disposição das imagens dentro deles e a sua relação e associação com as outras imagens da sequência são a ‘gramática’ básica a partir da qual se constrói a narrativa” (EISNER, 1989, p. 39). O quadrinho — que não necessariamente precisa assumir uma forma quadrada ou retangular — é resultado de um enquadramento arbitrário construído pelo autor, para que o leitor consiga compreender a narrativa tal qual anseia o criador. O autor aponta que existem dois tipos de quadrinhos: o quadrinho individual, onde transcorre a ação narrativa em si, e a página total, que pode conter vários quadrinhos. A disposição dos quadros parte da premissa de que o leitor ocidental foi treinado para ler cada uma delas de forma independente, da esquerda para a direita e de cima para baixo.

80 Figura 3: Ordem de leitura ocidental nas HQ’s

Fonte: Eisner (1989, p. 41)

O idioma japonês, por sua vez, é escrito da direita para a esquerda, ou seja, oposto ao padrão romano. Dessa forma, a leitura do mangá e, consequentemente, a disposição dos quadros, é realizada da direita para a esquerda. Em analogia à leitura ocidental, pode-se dizer que uma revista ou um livro japonês é lida de trás para frente33.

33 As publicações brasileiras seguem a ordem original de leitura, visto que a troca das posições dos quadros para uma leitura ocidental provocaria uma transformação total na construção visual das HQ’s. No EUA, as publicações mais frequentes são as “ocidentalizadas”, com os quadrinhos realocadas na posição da leitura ocidental e as onomatopeias traduzidas nas próprias ilustrações.

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Figura 4: Ordem de leitura oriental dos mangás

Fonte: Elaborado pela autora

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Independentemente da ordem de leitura e do conteúdo visual dos quadrinhos, McCloud (1995, p. 88) adverte que “sejam quais forem os mistérios dentro de cada quadro, é o poder de conclusão entre eles” que deve ser considerado o fator mais importante da arte sequencial, ou seja, é no intervalo, no espaço em branco entre um quadro e outro, que o leitor encontra o respiro necessário para significar. Nessa reflexão, McCloud expõe que as HQ’s são um “meio monossensiorial, que depende de um só sentido para transmitir um mundo de experiências” e que os quadrinhos exigem: 1) que a mente funcione como intermediária, preenchendo as lacunas entre os quadros; 2) que a mente capte fragmentos de uma imagem e a partir deles construa uma cena completa; 3) que a mente reconstrua sonoramente o que é representado visualmente. Para o autor, esses três fatores acontecem, pois, nos quadros só é possível transmitir informações visuais, mas “como entre os quadros nenhum dos nossos sentidos é exigido, todos os nossos sentidos acabam envolvidos” (MCCLOUD, 1995, p. 89). O autor discorre, ainda, que é o poder da conclusão entre os quadros que deve ser considerada a característica mais marcante das histórias em quadrinhos. No âmbito narrativo, existem seis formas de transição utilizadas nas HQ’s. A primeira, denominada “momento-a-momento”, configura-se com ilustrações de pequenas variações e deduções óbvias do acontecimento. A segunda, “ação-pra- ação”, são as transições que retratam um único tema em evolução. O “tema-para- tema” é a forma de transição que se mantém dentro de uma cena ou ideia, mas que exige um nível de envolvimento do leitor para a construção do sentido. A quinta transição, que o autor conceitua como “aspecto-pra-aspecto”, é uma construção que “supera o tempo em grande parte e estabelece um olho migratório sobre diferentes aspectos de um lugar, ideia ou atmosfera”. A última forma de transição é o “non-sequitur”, que não apresenta nenhuma sequência lógica entre os quadros (MCCLOUD, 1995, p. 71-72).

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Figura 5: Possibilidades de transição narrativa

Fonte: McCloud (1995, p. 71)

McCloud, analisando os mangás, explica que a transição “aspecto-pra- aspecto” raramente é utilizada nas HQ’s ocidentais, porém é presença marcante nos mangás e que, desde o início de sua popularização, é parte integrante dessas narrativas. O autor discorre que essa forma de construção estabelece “um clima ou sentido de lugar” em que o tempo parece parar em composições silenciosas. Essa técnica, reforça, é característica das HQ’s japonesas, mas, em vez de funcionar como um elo entre os quadrinhos, impõe ao público a leitura de um único momento, composto por fragmentos díspares (MCCLOUD, 1995, p. 79). Refletindo sobre as diferenças entre as HQ’s ocidentais e as japonesas, McCloud (1995, p. 81) explica que a arte e a literatura ocidental, em especial a norte- americana, não divagam muito e se apresentam como “uma cultura muito orientada pelo objetivo” e que, em contraste, o Japão revela uma tradição de obras de artes cíclicas e labirínticas, de forma que os

[…] quadrinhos japoneses parecem herdar essa tradição, enfatizando mais o estar lá do que o chegar lá. Com essas e outras técnicas, os japoneses demostraram uma visão dos quadrinhos bem diferente da nossa. Lá, mais do que em qualquer outro lugar, o quadrinho é uma arte de intervalos. (MCCLOUD, 1995, p. 81).

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A ênfase no uso de intervalos é a grande diferença conceitual presente nas HQ’s japonesas em relação às obras de outras nacionalidades. O resultado dessa relação de intervalos é o que outros autores, como Luyten (1991), Gravett (2006) e Sato (2007), vão explicar como presença de “elementos cinematográficos”, tais como “ação em câmera lenta” e presença de diferentes pontos de vistas sobre a mesma cena. Essas características resultam na construção de uma visão contemplativa e no reconhecimento da presença de um leitor onipresente. Essa forma narrativa dá destaque, também, para uma ambientação complexa que age como um adicional à tensão da cena em si, reforçando a existência de um “tempo mágico” que surge entre uma troca de olhares apaixonados ou nos instantes antes de a personagem ser atingida por um tiro no peito. Já foi exposto que Osamu Tezuka é considerado o “Deus do mangá” e que a ele se atribui a criação de um conjunto de características que hoje se considera tipicamente japonesas. Além das ilustrações e da remodelação das personagens, a contribuição de Tezuka também se faz presente na construção do ritmo da história, ou melhor, na forma como os quadros são posicionados nas páginas e na ampla utilização da transição da forma aspecto-para-aspecto. O autor era grande admirador dos desenhos animados produzidos por Walt Disney e, conforme expôs em inúmeras entrevistas, sua maior intenção era trabalhar com o cinema de animação. Assim, quando começou a desenhar mangás, buscou, para compor seus quadros, inspiração na linguagem cinematográfica. Isso trouxe para as HQ’s os citados “recursos cinematográficos”, de forma que, no mangá, uma ação pode desenvolver-se por longos quadros — uma troca de olhares pode ocupar uma página inteira, por exemplo, como se observa na figura a seguir.

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Figura 6: O caminho do olhar em Sakura Card Captor

Fonte: Card Captor Sakura (CLAMP, 2012, p. 120)

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Outra característica peculiar dos mangás é o fato de serem produzidos em preto e branco. Alguns motivos explicam a ausência das cores. O primeiro refere-se ao início da produção, entre 1950-1960, época em que faltavam os recursos básicos para a sobrevivência, e a opção pela tinta preta e o papel estilo jornal foi a estratégia adotada, para tornar viável a produção e o custo-benefício do produto. Ademais do caráter comercial, Luyten (1991, p. 51) adverte que, para o leitor japonês, “a presença das cores como pano de fundo da história já é um indício para o significado do discurso e ajuda a criar a atmosfera”. Na tradição japonesa, explica a autora, o uso do vermelho e do branco remete à vitalidade e à pureza e, quando utilizados juntos, sugerem ao leitor japonês uma ideia de felicidade ou alguma celebração. O verde e suas variações de tons, tal como existe na natureza, “é a cor da vida e do espírito eterno” e sugere “a complexidade da vida e do espírito que coabita em cada um de nós” (LUYTEN,1991, p. 51). O azul, em um país insular, representa algo maternal e envolvente. O amarelo ou o dourado conota a “prosperidade sentida através dos campos de arroz amadurecidos, perto da colheita”, enquanto preto simboliza mistério, a amplitude do desconhecido, “encorajando a imaginação para um mundo diferente da realidade” (LUYTEN, 1991, p. 51). Outra característica amplamente utilizada nos mangás é, além dos balões de texto, o uso de onomatopeias inseridas nas ilustrações, conforme o exemplo.

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Figura 7: A materialidade do som no mangá

Fonte: Toriyama (2012, p. 20)

Faz-se importante registrar que a onomatopeia é uma figura de linguagem capaz de reproduzir gramaticalmente um som ou uma ideia de imagem gestada a partir de um movimento de sentido da materialidade textual. As onomatopeias mais comuns são representações gramaticais de ruídos, sons de animais, barulho de máquinas e diferentes ruídos humanos (gritos, choros...). Nas HQ’s japonesas, essa figura de linguagem se apresenta como um conjunto de caracteres que não obrigatoriamente se configuram como uma palavra, mas que estão sempre integrados visualmente com o restante das ilustrações da página ou do quadro em questão e simbolizam o som da cena. As onomatopeias presentes no mangá não se caracterizam apenas como uma adição sonora à história pela sua escrita, porque a sua forma visual revela importantes aspectos da ação retratada. A onomatopeia do primeiro quadro da

88 figura anterior tem seu contorno marcado e craquelado, sugerindo a sequência um som de ruído e um ambiente áspero, enquanto a segunda, escrita de forma alongada, sugere descolamento e velocidade. Nessa perspectiva, Eisner explica que nas HQ’s o texto deve ser lido tal qual uma imagem e que o “letreiramento, tratado ‘graficamente’ e a serviço da história, funciona como uma extensão da imagem. Nesse contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão de som” (EISNER, 1989, p. 10). No Japão, os mangás chegam ao público, inicialmente, em formato de revistas. Nesse contexto é preciso estabelecer a diferença entre os “quadrinhos”, o mangá ou a HQ, que são as histórias propriamente ditas, e as revistas em quadrinhos, que são as coleções e/ou publicações que podem reunir uma variedade de histórias em quadrinhos, como também artigos de moda, esportes, música e outros. As revistas de HQ’s japonesas possuem um formato muito próximo entre si: são impressas em papel jornal, monocromáticas, variando entre rosa, azul, verde, roxo ou preto, possuindo entre 150 e 600 páginas impressas no tamanho 18 por 25 cm. Em cada exemplar da revista, uma quantidade variável de histórias serializadas de diferentes autores são publicadas. Com aparência semelhante às antigas listas telefônicas disponibilizadas no Brasil, as revistas de mangá são produtos descartáveis, e é “comum vê-las largadas nos metrôs, trens, ônibus, nas próprias estações, depois de lidas. Ou então são vendidas para reciclagem do papel” (LUYTEN, 2012, p. 34). Nas bancas de revistas espalhadas pelas cidades, nas lojas de conveniência, em máquinas automáticas, nas livrarias ou em lojas especializadas, o leitor pode escolher entre, aproximadamente, 300 títulos diferentes de mangás para todas as faixas etárias e ambos os sexos. De acordo com Gravett (2006), os preços são mantidos baixos para estimular o leitor a comprar um exemplar novo a cada semana. Estima-se que, em média, cada uma dessas revistas custe aproximadamente 220 ienes, o que corresponde a cerca de 2 dólares34.

Depois de publicadas nesse formato, as histórias que fazem mais sucesso são republicadas no formato tankobon (com cerca de 200 páginas) ou bunkobon (de 300

34 Entre 2013 e 2014, a cotação era de ¥ 100 para $ 1. No que se refere ao poder de compra, em Tóquio, uma lata de refrigerante custa entre ¥ 350 e ¥ 400, e uma refeição modesta, por exemplo, varia entre ¥ 1200 e ¥ 1500.

89 páginas ou mais), com impressão de maior qualidade, em papel mais grosso e do tamanho semelhante a um livro padrão. Essas publicações reúnem entre 10 e 20 capítulos em cada exemplar. As publicações internacionais dos mangás seguem esses dois formatos com algumas variações de tamanho. Estima-se que existam pelo menos 60 editoras de revistas de mangá que se dividem em dois grupos: as de pequeno e médio porte, tidas como independentes; e as grandes editoras, entre elas a Kodansha, Shogakkan e a Shueisha. Em relação ao público-alvo, o mercado editorial dividiu as revistas em cinco tipos principais: para crianças (Kodomo Manga), para meninos (Shõnen Manga), para meninas (Shõjo Manga), para adultos homens (Seinen Manga) e para mulheres (Josei Manga). As revistas de mangá destinadas às crianças, também conhecidas como revistas didáticas, são voltadas para pessoas em idade escolar, entre seis e doze anos. Em geral, apresentam conteúdos relacionados ao ensino, como História, Gramática, Matemática e têm nas HQ’s o elemento principal para envolver os novos leitores. As revistas do tipo Shõjo Manga são destinadas às meninas com idades entre 12 e 17 anos. Na atualidade, existem mais de 45 títulos diferentes e suas tiragens mensais ultrapassam um milhão de exemplares cada. Para Luyten (2012, p. 34), “as revistas femininas vendem sonho e fantasia em doses homeopáticas semanais e mensais” e apresentam, ademais das HQ’s, seções de horóscopo, reportagens sobre atores e cantores famosos e espaço para aconselhamento às leitoras. Uma característica peculiar dessas revistas em relação às outras publicações é que, embora o Japão seja conhecido por ser um país machista, onde há poucas oportunidades para as mulheres no mercado de trabalho, em geral, quem escreve para as revistas femininas são mulheres. A própria história da literatura japonesa é marcada pela presença feminina. Os alfabetos japoneses foram concebidos, inicialmente, para serem usados por mulheres, e há mais de mil anos, em 1004, Murasaki Shikibu, “uma dama de companhia da Imperatriz escreveu o que muitos defendem ser o primeiro romance psicológico do mundo e um dos grandes trabalhos de ficção da época, Genji Monogatari (A história de Genji)” (GRAVETT, 2006, p. 80). No campo narrativo, as tramas, em geral, abordam o amor impossível, as separações chorosas, a rivalidade entre amigas, as relações homossexuais, a tenacidade nas competições esportivas e a morte como solução viável aos problemas diários. No que se refere à forma estética das ilustrações, o traço padrão é mais fino

90 e, consideravelmente, diferente das HQ’s masculinas. A primeira HQ’s para meninas de grande sucesso data de 1953 e foi criação de Osama Tezuka. O mangá Ribon no Kishi (literalmente “Cavaleiro de Lacinho”), conhecido no Ocidente como A princesa Cavaleiro ou A princesa e o Cavaleiro, relata a história da princesa Safiri, que nasceu com duas almas, uma feminina e outra masculina. “Ao forçá-la a esconder sua natureza feminina e seu amor por um belo príncipe encantado, Tezuka criou um refinado universo de ambiguidade” (GRAVETT, 2006, p. 81), que se transformou em um modelo narrativo para a criação do gênero Shõjo Manga ou, como são mais amplamente conhecidos no Ocidente, o Magõ Shõjo ou Magical Girl. Nessas obras, as tramas trazem meninas com poderes mágicos que vivem entre lutar contra forças ocultas e encontrar o verdadeiro amor. Entre os principais sucessos internacionais, estão Sailor Moon e Sakura Card Captor. Figura 8: Uma garota comum transforma-se em guerreira!

Fonte: Takeuchi (2014, p. 30)

Os mangás para meninas, explica Gravett (2006), fazem sucesso porque as autoras não evitam assuntos difíceis, como é o caso da HQ X-Day (Kanojo-tachi no

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X day), que narra a vida de horror de Rika, uma promissora atleta de salto em altura abandonada pelo namorado. Envolta em uma profunda depressão e rejeição social, a jovem entra em um grupo secreto para explodir a escola onde estuda. Na visão de Luyten (2012), as personagens femininas de seios grandes, modelo presente nas HQ’s japonesas, surgiram como uma tentativa de “ocidentalizar” as personagens para agradar também ao público ocidental, em especial os norte- americanos. Para a autora, essa tendência percebe-se quando se compara os

[...] animês produzidos na década de 1990 com os de 1970 e veremos a diferença. As heroínas de olhos grandes e pernas longas receberam fartas quantias de silicone em seus seios, tornando-se “ocidentalmente” sexys. E com isso formou-se um novo estereótipo para as histórias recentes: “bigbreasted women, merchs, and lots of gore”. (LUYTEN, 2012, p. 236).

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Consideradas uma “evolução” do Shõjo Manga, as histórias em quadrinhos para mulheres adultas são chamadas de Josei Manga. Em geral, apresentam tramas voltadas à vida cotidiana feminina, abordando de forma mais realista os problemas da mulher na sociedade japonesa e seu tratamento imagético na ossatura social. Já os mangás para adultos homens, com idade entre 20 e 40 anos, são conhecidos como Seinen Manga. As diferenças entre os Seinen Manga e as HQ’s para o público jovem masculino, os Shõnen Manga, são visíveis na forma de sua escrita, mais refinada e com uma quantidade maior de ideogramas e na complexidade das histórias, mais maduras e com tramas como política, negócios e reflexões filosóficas. A violência é mais realista e se, no Shõnen manga, o ato sexual é somente insinuado, nas páginas dos mangás para adultos o sexo é explícito. Mesmo que existam nessas histórias relações sexuais, esse tipo de mangá não é considerado pornográfico. Os mangás com sexo explícito e de cunho erótico são conhecidos como Hentai. As revistas conhecidas como Shõnen Manga são publicadas desde 1914, e, em 1980, as quatro principais revistas somavam juntas nove milhões de exemplares publicados semanalmente. Voltadas ao público jovem masculino, com idade entre 12 e 17 anos, trazem “histórias melodramáticas, dentro da temática do samurai invencível, do esportista e do aventureiro, tendo como constante as condutas japonesas típicas da autodisciplina, perseverança, profissionalismo e competição” (LUYTEN, 2012, p. 44). Em geral, retratam aventuras fantásticas com heróis em universos variados e têm como constância a violência e insinuações sexuais.

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Figura 9: O golpe secreto (e sensual) de Naruto

Fonte: Kishimoto (2013, p. 8)

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Existem alguns aspectos recorrentes nessas HQ’s que merecem destaque. O primeiro trata da ênfase ao universo mítico. O místico e o sobrenatural, no entanto, não são tratados como maligno ou algo assombrado e, muitas vezes, podem ser vistos com toques de humor. Inspirado no complexo quadro mitológico japonês, as narrativas dos mangás criaram inúmeros mundos habitados por humanos, deuses e criaturas sagradas, oriundos do budismo e do xintoísmo. Os mangás masculinos, também, explica Luyten (2012, p. 180), “exploram a noção do ki, que quer dizer força, que pode ser usada tanto para o bem quanto para o mal”. O ki é a força vital, que existe em todos os seres vivos, e para aumentá-la e, consequentemente, tornar-se mais forte, é preciso dedicação e autodisciplina. Usando como exemplo o mangá Naruto, outra caraterística que difere os mangás de outras formas de HQ’s é que as histórias têm fim definitivo. A narrativa pode demorar mais de cem edições para terminar (no caso de Naruto foram 700 capítulos), podem-se passar mais de 15 anos, mas em algum momento a narrativa termina. Ciente de que, no Ocidente, as histórias em quadrinhos voltadas ao público masculino apresentam uma pré-disposição à temática da ficção-científica e ao universo fantástico, Luyten afirma que, no Japão, o animê e o mangá “não fogem da regra, porém lá há grande recorrência e ênfase acentuada nas hecatombes” (LUYTEN, 2012, p. 181). A presença constante de hecatombes — o sacrifício de muitas pessoas e/ou uma imensa carnificina humana —, pode ser explicado pela turbulenta história política do arquipélago e pela presença, no imaginário japonês, da hecatombe nuclear. Com relação à explosão atômica, a autora reforça que

[...] ainda está bem viva na memória dos japoneses a hecatombe nuclear, com as bombas lançadas pelos EUA sobre Nagasaki e Hiroshima, determinando abruptamente o fim da guerra do Pacífico e acabando de uma vez com a agressividade do exército imperial. (LUYTEN, 2012, p. 181).

Diferentemente do cinema japonês, em especial o gênero da ficção- científica, em que a ameaça nuclear e seus efeitos são o tema principal e a consequência da explosão atômica é trabalhada e retrabalhada de forma explicita (DUFOUR, 2011), nas HQ’s, isso não aconteceu. Nessa perspectiva, o mangá, diferentemente das outras mídias, tornou-se um espaço privilegiado para se dizer o indizível (GRAVETT, 2006).

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4.2 O HERÓI DE NANQUIM

Chartier (2002, p. 73), em suas reflexões sobre a problemática da representação, explica que representar é “uma maneira própria de estar no mundo, a significar simbolicamente um estatuto e uma posição”. Nesse raciocínio, Stuart Hall (2005) ensina que a representação envolve o uso da linguagem, de sinais e imagens que representam coisas, e que é parte essencial do processo pelo qual um significado é produzido e disseminado aos membros de uma cultura. Já Bachelard ensina que, se o “devaneio se liga à realidade, ele a humaniza, a engrandece, a magnifica”. Visto dessa forma, “todas as propriedades do real, desde que sonhadas, tornam-se qualidades heroicas” (BACHELARD, 2000, p. 20). Pensando nessa ordem, é importante observar que não obstante a situação — social seja a de pobreza no pós-guerra seja a de riqueza no pós-milagre econômico —, e a formação discursiva do povo, as HQ’s “não se tornariam parte integrante da cultura e da sociedade japonesa moderna, se não houvesse necessidade para existirem” (LUYTEN, 1991, p. 43). Uma das possíveis explicações da popularidade dos mangás reside na qualidade da construção do herói japonês e seu alto grau de identificação junto ao público. Isso se dá, pois, diferentemente das HQ’s ocidentais, já que os heróis japoneses são construídos com base no mundo real, são estudantes, professores, esportistas, médicos, empregados, donas de casa. Homens e mulheres comuns envolvidos em uma trama fantástica. No que tange à estrutura psicológica das personagens, o herói japonês difere por completo dos arquétipos ocidentais. No Japão, os heróis têm “defeitos e sentimentos: riem, choram, crescem, amadurecem e alguns morrem” (MOLINÉ, 2004, p. 29). Por mais fantástica que seja a história, o aspecto humano das personagens é muito marcado e evidenciado, o que resulta em uma forte empatia dos leitores. É significativa a quantidade de obras em que as personagens iniciam crianças e, acompanhando o tempo cronológico das publicações, vão amadurecendo, tal como o público leitor. Essa forma de construção do herói traz um forte grau de identificação, pois possibilita ao leitor encontrar, nos milhares de páginas em preto e branco, uma espécie de miniatura de sua vida, porém com os elementos necessários para vivenciar fantasias.

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Essa relação se dá, porque as HQ’s, embora tenham tramas fantásticas, apresentam conflitos e situações que remetem à vida diária do leitor (LUYTEN, 2012). Em uma visão de mundo, onde (1) o objetivo constante é a honra e (2) o universo não é um campo de batalha entre bem e mal, não é de se surpreender que a construção do arquétipo do herói seja um tanto quanto diferente do modelo ocidental. Isso decorre do fato de que o primeiro conecta o herói ficcional a uma premissa social “real”, e o segundo dá ao herói uma personalidade mais flexível e ambígua, muito mais próxima da “realidade” dos sentimentos humanos. Muito se fala sobre a noção japonesa de honra. Benedict (1972, p. 189) ponderou que a expressão ocidental mais próxima equivalente resultaria em algo como “dar tudo de si”. Há, contudo, uma interpretação um pouco diferente que reside na noção da integridade do sujeito — do herói, do guerreiro, do funcionário, do governante, da dona de casa —, e que tange a necessidade japonesa de ser (e de se manter) íntegro ao sistema (ao sistema hierárquico de conduta). Luyten (1991, p. 70) resume esta constatação quando expõe que o “Japão é um país onde, desde cedo, ensina-se às pessoas que: quando um prego se sobressai num tabuleiro, é preciso bater-lhe à cabeça”. É esta forma de pensamento, entre outros fatores, que coloca o sujeito histórico japonês preso a um processo de silenciamento social. Nessa forma de construção discursiva, não surpreende, então, que o herói japonês vá apresentar uma pré-disposição, não para fazer do mundo um lugar melhor, tampouco destruir impérios, reinos e países, menos ainda para redistribuir o equilíbrio das forças. É justamente o contrário, o herói japonês vai dedicar tudo de si — inteligência, força, humor, beleza, mas especialmente sua vida —, para manter a integridade do sistema: para que se mantenha o status quo. Nesse sentido, o herói japonês do mangá moderno não é diferente do samurai (aquele que serve) de mais de mil anos atrás e nem dos pilotos kamikazes da Segunda Guerra Mundial e é, como explica Luyten (1991), alguém que levanta a cabeça, mas nunca para perturbar a ordem social. Ainda que sua origem não seja do mangá, Godzilla é um exemplo clássico desse tipo de herói. Do monstro gigante que vive oculto na natureza e surge somente quando extremamente necessário, para que se retome a “devida posição” do mundo, os mangás modernos vão apresentar uma presença constante desse arquétipo. Do

97 protagonista do mangá homônimo Rurouni Kenshin35, um antigo samurai que lutou no processo da restauração do país, quando o mundo foi posto no seu “devido lugar”, vaga sem rumo por um Japão em transição. Passando por Jiraiya, conhecido como um dos lendários ninjas que ajudou a dar fim à Terceira Grande Guerra e que vivia isolado dos conflitos políticos até retornar como professor do protagonista Naruto, para ajudá-lo a restabelecer o equilíbrio. Em Dragon Ball, o protagonista Son Goku está constantemente lutando para que o mundo permaneça na situação em que estava antes da chegada do novo vilão. O fato é que o herói japonês do mangá vai mostrar toda a sua capacidade — através de fatos heroicos — de se manter íntegro a um sistema sem que seja necessário haver nenhuma revolução. Assim, como estabelecia há séculos o código de honra dos samurais, em que o guerreiro devia obediência máxima ao seu senhor, quando não era permitido dar sinais de dor até cair morto e a morte era a saída mais honrosa para a resolução dos conflitos, o herói japonês estará sempre disposto a se sacrificar em prol da nação e da manutenção do sistema vigente. Silva (2006) construiu, em sua dissertação, intitulada O herói na forma e no conteúdo: análise textual do Mangá Dragon Ball e Dragon Ball Z, uma reflexão sobre o protagonista Goku e seu papel como herói. Entre suas observações, destacou a vida cotidiana da personagem, as características de suas vestimentas e o relacionamento com seus aliados. De acordo com o autor, uma característica presente nos mangás e que age como facilitadora na relação entre leitor e herói é que, ao contrário das HQ’s norte- americanas, nas produções japonesas, o herói também é retratado em eventos cotidianos. Ou seja, nas brechas entre as grandes batalhas para salvar o mundo, o herói é exposto a atividades comuns. Em Dragon Ball, observa-se o protagonista Goku pescar, caçar, comer, dormir, estudar, namorar, casar, entre outras cenas da vida cotidiana. Nessas pequenas sequências, muitas vezes repletas de situações cômicas, o leitor descobre o lado humano de seu herói, fortalecendo o vínculo entre o público e a obra e possibilitando uma conexão entre ficção e sujeito histórico. Na visão de Luyten (2012, p. 40), uma das possíveis explicações dessa forma de representação do herói é que essas personagens são construídas a partir do mundo real, no qual o leitor é capaz de encontrar uma espécie de simulacro de sua vida e que

35 Rurouni Kenshin é de autoria de Nobuhiro Watsuki. Publicado entre 1994 e 1999 pela Weekly Shōnen Jump e composto por 255 capítulos. No Brasil, recebeu o nome de Samurai X.

98 acaba por atuar como como uma válvula de escape silenciosa em uma sociedade altamente competitiva. Ainda de acordo com Silva (2006), outra característica típica dos mangás é que o herói raramente veste roupas colantes, capa e mascará. Ainda que o uniforme possa surgir de forma mágica, é possível perceber que a roupa revela aspectos da personalidade das personagens em trajes muito próximos aos da realidade japonesa. As roupas, tal como a vida real, se rasgam com facilidade, aspecto que reforça também a ideia de proporcionar uma aproximação entre leitor e herói. Em seus estudos sobre o Japão, Benedict (1972, p. 162) apontou que os japoneses sempre se mostraram “categóricos em negar que a virtude consiste em combater o mal” e que, embora não admitam má conduta (fora do sistema hierárquico), é fato que não “consideram a vida humana como um palco onde as forças do bem lutam contra as forças do mal” (BENEDICT, 1972, p. 169). Essa forma de pensamento abre possibilidade para uma imensidão de narrativas e diferentes formas de atuação do herói. O fato é que, mesmo se tratando de um mangá de esportes, culinária, histórico, artes- marciais ou escolares, o herói sempre se depara com uma situação problema em que somente ele tem condições de desempenhar ações para solucionar os conflitos. Ainda que o público possa prever com facilidade o desenrolar da trama e já saiba previamente que a vontade do herói triunfará, o leitor acompanha o desenvolvimento da narrativa, para descobrir como o herói solucionará o problema. O Japão tem uma história de coletividade muito significativa, pois os desafios que o país enfrentou em guerras e desastres naturais estimularam a construção de uma consciência social coletiva. Essa forma de trabalhar em grupo também aparece com frequência nas histórias em quadrinhos japonesas. Assim, mesmo que o herói ocupe um lugar de destaque e que só ele (a) detenha os recursos físicos ou psicológicos necessários para superar os desafios, a figura do grupo de amigos do herói nunca é descartada. Em grande parte das narrativas desse gênero, o desenvolvimento da relação de confiança e amizade entre o herói e seus aliados é detalhadamente abordada. A relação entre herói e seus amigos é peça fundamental na narrativa do mangá, porque a figura do amigo e suas deficiências acabam por reforçar o caráter único do herói, tornando-o um ser superior aos outros integrantes e legitimando-o como

99 personagem capaz de atuar como salvador. Não obstante, apesar do espaço que o herói ocupa no grupo, os amigos são, por vezes, essenciais para a resolução do conflito e seu papel como sujeito social raramente é negado. Por todas essas características do herói japonês, é possível expor que o mangá se solidariza com o leitor: “os personagens lutam, amam, brigam, aventuram-se, viajam e até exercitam-se por ele” (LUYTEN, 2012, p. 40). Todavia, independente dos motivos da aceitação dessa forma particular de narrativa, é preciso compreender o mangá, assim como Candido (2004, p. 180) concebe a literatura, como algo que “satisfaz à necessidade de conhecer os sentimentos e a sociedade”. Assim, no contexto japonês, as HQ’s tornaram- se um instrumento social necessário, para que o sujeito se posicione em relação a seus sentimentos e ao mundo. Com o entendimento do mangá como forma de representação social — de estar no mundo, de significar, de buscar uma posição —, o estudo dessas obras expõe traços, costumes, hábitos, gostos, traumas e medos da sociedade japonesa.

5 ENTRE ORIGEM MÍTICA E CRIAÇÃO CONTEMPORANEA

Quem escreve arrisca — quem arrisca, recria.

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Gaston Bachelard (1988, p. 153)

Para gestar sua poética, Toriyama buscou inspiração em uma antiga narrativa chinesa chamada Jornada ao Oeste, lenda que surgiu quando a China era dominada pela Dinastia Tang (618-917). A família Tang realizou uma grande reforma institucional inspirada nos pensamentos de Confúcio, quando foram criadas bibliotecas e universidades que, entre outros eventos, fazem o período Tang ser reconhecido como a época de ouro da China medieval (GIORDANI, 2008). Na confluência dessas transformações culturais, foi publicada, pela primeira vez, uma antiga lenda chinesa intitulada Jornada ao Oeste, que é considerada por alguns estudiosos chineses como um dos mitos fundadores do pensamento oriental (WU, 2008, p. 3). Com algumas variações entre versões da lenda, Jornada ao Oeste36 conta a história do homem- macaco/rei-macaco Sun Wukong que, ao lado do monge, Tang Seng, parte em uma viagem em busca das escrituras sagradas do budismo. A diegese apresenta ao leitor um significativo dilema: quem comer um pedaço da carne de Tang Seng tornar-se-á imortal e, por esse motivo, a dupla é perseguida por bandidos e monstros em uma trama repleta de intrigas, perigos e cenas de humor. Os dois são constantemente salvos por Sun Wukong, que possui habilidades especiais, tais como: não se queimar com fogo, respirar embaixo d’agua, não se cortar, ficar invisível, transformar-se em qualquer animal ou objeto, carregar uma montanha nos ombros e voar em nuvens. Assim como o Japão foi influenciado pela cultura chinesa para construir suas primeiras cidades e implantar a estrutura social, séculos depois, a lenda chinesa Jornada ao Oeste foi a inspiração para Akira Toriyama criar o mangá Dragon Ball. A lenda também motivou a criação do protagonista Son Goku, que, assim como Sun Wukong, possui um rabo de macaco, força não-humana e um bastão mágico. Não obstante, observa-se, também, nos quadrinhos a seguir a presença da casa de Goku, construída com base no modelo chinês.

36 A versão da história que popularizou a lenda, também é conhecida como Viagem ao Oeste, foi escrita por Wu Cheng no século XIV.

Figura 10: Influências chinesas em Dragon Ball 101

Fonte: Toriyama (2012, p. 9)37

Mesclando as mitologias chinesa e japonesa, em especial o sistema mítico do xintoísmo, como seus deuses (kami), dragões, nuvens voadoras e demônios, a elementos típicos de narrativas do gênero de ficção-científica como viagem no tempo, alienígenas e tecnologias futurísticas, Toriyama criou um universo ficcional único, ambientado em um mundo dos sonhos, trazendo arquétipos que caminham para uma ressignificação social crítica. Sob a perspectiva bachelardiana, a “alma não vive ao fio do tempo. Ela encontra o seu repouso nos universos imaginados pelo devaneio” (BACHELARD, 2000, p. 15). E sob a hipótese de que DB reativa e revive os mitos fundadores do Japão, ao desvendar em que tempo e espaço se dá essa narrativa, podem-se obter as primeiras pistas que ajudarão a responder ao problema desta pesquisa. Nessa perspectiva, a sequência de abertura do mangá sugere uma materialidade oportuna para o início da análise, conforme segue.

5.1 DO ESPAÇO-TEMPO E DOS DESEJOS: ANÁLISE SISTÊMICA

Em 1978, o arquiteto Arata Isozaki exibiu, no Museu de Artes Decorativas

37Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku.

102 de Paris, a exposição intitulada MA Espace-Temps au Japan (Ma – Espaço-tempo no Japão), na tentativa de sensibilizar o olhar ocidental para as latências das construções poéticas japonesas. A exposição trabalhava justamente com a problemática do espaço e do tempo na materialidade artística nipônica, já que, para o artista, a relação espaço-tempo é a matriz da criação poética e social japonesa, estando no âmbito ambiental, no artístico e na vida cotidiana. Isozaki expõe que o ma é perceptível, entre outras formas de manifestações, na arquitetura, na música, no teatro, nos jardins tradicionais, e que a identificação do espaço e do tempo materializado na expressão ma pode ser considerado um dos principais motivos da diferença entre expressões artísticas japonesas e europeias Para tentar explicar aos europeus essa forma de construção discursiva, Isozaki concebeu sete espaços. Cada um desses espaços foi representado por uma forma de arte (ou um conjunto delas) e nomeado com uma expressão original do japonês tradicional38. As palavras foram escolhidas com a intenção de que cada uma delas pudesse representar uma forma de construção do ma. Ao primeiro espaço, o artista deu o nome de Michiyuki (curso) e era representado por uma reconstrução da jornada ritual em um jardim tradicional. O segundo espaço, Suki (estranho), foi ilustrado pela apresentação de uma casa de chá tradicional e a sua projeção no espaço material completamente contemporâneo. No terceiro, Yami (escuridão da noite - luz intermitente), o artista reconstruiu, com materiais contemporâneos e tradicionais, um palco No, iluminado por velas. Himorogui (espaço sagrado) é o quarto espaço, onde um pequeno templo arcaico foi montado, representando um lugar sagrado visitado por Deus e também os lugares consagrados por um evento particular. No quinto espaço, Utsuroi (transição, jogo de sombras), expõe uma escultura de cobre do artista Miyawaki, para reproduzir o efeito de folhas de ouro no espaço tradicional japonesa. No penúltimo espaço, Hashi (uma extremidade — uma ponte — um par de pauzinhos), o escultor Kuramata realizou um trabalho de vidro para expressar o conceito de que a palavra não se refere a um objeto específico, mas significa "ligar duas coisas".

38 Todas as informações foram retiradas do memorial descritivo original do trabalho escrito em francês e traduzido pela autora. Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2017.

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Por fim, no sétimo espaço, Sabi (pátina — devastação — serenidade) foram expostas as esculturas de Takamatsu, para representar a metamorfose dos objetos e a beleza que o estado de ruína traz39. Com essa obra, Isozaki defendeu que tempo e espaço são conceitos unidos sob a expressão ma e que representam a lacuna natural que existe entre dois objetos ou entre duas ações, sejam objetos colocados um após o outro seja a ação que ocorre uma após a outra. No âmbito do tempo, por exemplo, esse conceito exemplifica o intervalo existente em um processo que ocorre várias vezes (a pausa). No espaço, explica o vazio e a abertura entre dois elementos e, consequentemente, a noção de ausência que se opõe ao espaço (o não espaço). Não só a ideia de intervalo, com suas pausas e seus não-espaços, como também a significação de curso, estranho, escuridão versus luz, sagrado, transição, ponte e devastação, é encontrada na poética de Dragon Ball. Diante dessa explanação, convém observar como espaço e tempo são apresentados ao leitor de DB. Ao ler as primeiras páginas do mangá, por exemplo, o leitor é apresentado de forma explícita à localização, ao tempo e ao protagonista da narrativa. O primeiro quadrinho da obra apresenta o texto: “Há muito tempo, nas montanhas a milhares de quilômetros da cidade, é onde nossa fantástica história começa!” (TORIYAMA, 2012, p. 3). Essas informações imprecisas (há muitos anos e milhares de quilômetros), somadas aos elementos visuais do quadrinho, dão pistas de que 1) é uma história perdida no tempo-espaço; 2) o leitor irá se aventurar em uma história fantástica habitada por seres mágicos. A fala do narrador e os quadrinhos subsequentes ajudam a colocar o leitor em um espaço de sonho mitológico, sem tempo e onde vivem macacos falantes, dinossauros, crianças com força sobre-humana e machados gigantes. Assim, a imagem de abertura da narrativa permite articular algumas características da obra, necessárias nesta fase de análise. Fala-se de dois elementos estruturantes da narrativa mítica, o espaço e tempo (e neste caso, do ma).

39 Traduzido do panfleto original da exposição. Disponível em: < http://www.festival- automne.com/edition-1978/arata-isozaki-exposition-espacetemps-japon#723>. Acesso em: 22 jun. 2017.

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Figura 11: Quadrinho de abertura do mangá DB

Fonte: Toriyama (2012, p. 5)40

40 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku.

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No que se refere ao tempo, Greiner (2015, p. 54) explica que a arte japonesa, que em sua forma latente prima por expor a beleza da catástrofe (Sabi - devastação versus serenidade), trata de falar daquilo que ficou para trás e tem por caraterística construir um ambiente no qual uma história se passou e que agora parece existir apenas como vestígio. Diante disso, é preciso trazer para o texto a visão de Eliade (1994) sobre o tempo no mito. Para o autor, no mito, o tempo é sagrado e prodigioso, sendo um tempo no qual algo novo, forte e significativo se manifesta plenamente (ELIADE, 1994, p. 29). Assim, o vestígio do tempo na narrativa de DB é, assim como a ruína, algo que já chegou ao fim, sem necessariamente terminar. Visto dessa forma, ambos, narrativa e ruína, são tal qual o mito e seu tempo contínuo. Ademais, conforme a civilização avança no calendário patente, por suas construções latentes, ruína e mito tornam-se mais profundos e mais complexos. Gaston Bachelard ensina que o tempo é um instante descontínuo em ruptura com o passar das horas, contínuo e encadeado. No devaneio bachelardiano, “o tempo já não tem ontem nem amanhã. O tempo é submergido na dupla profundeza do sonhador e do mundo”, de forma que, entre leitor (sonhador) e mundo (obra), surge uma cumplicidade colaborativa (BACHELARD, 1998, p. 166). É pensando nessa ordem que a imprecisão instaurada pelo narrador quanto ao tempo ficcional e ao contraste semântico entre a floresta milenar e a personagem de cabelos azuis e seu automóvel modelo turbo cria uma ambivalência temporal capaz de deslocar o leitor a um tempo desconhecido. Entra-se em um ma (tempo-espaço) mitológico, no qual não há ontem nem amanhã, onde passado e futuro se chocam e no qual só há o fluxo narrativo, o tempo da leitura, a troca de páginas — o intervalo entre ler e viver. Essa construção permite, também, ver o ma funcionando em essência, já que a vida cotidiana do leitor e a leitura do mangá são duas ações dispostas em intervalos sequenciais. Diante dessa reflexão, é importante destacar que, na narrativa de Dragon Ball, a localização temporal e a espacial não possuem relevância na diegese. Essa ausência reforça o que Kato Shuichi (2011, p. 49) destacou quando estudou a poesia japonesa e explicou que, seja histórico, circular ou cotidiano, as obras nipônicas sempre destacarão o estar no presente. Mesmo as personagens lidando com as consequências do passado ou do futuro, é sempre o agora que importa — o que não deixa de ser uma invocação do tempo mitológico, o tempo sagrado do todo-

106 sempre (ARMSTRONG, 2005). Sobre o espaço em que a trama acontece, as imagens iniciais de DB ambientalizam tanto o macrocosmo do mangá — a floresta — como o microcosmo — a casa do protagonista. Nessa reflexão, Bachelard (1998) ensina que o espaço é movente, como um antecessor de tudo o que existe. Nessa perspectiva, encontra-se nessa floresta um espaço onírico, sendo que, em cada quadrinho, o espaço vai se tornando perceptível e apreensível para o leitor. Bachelard (1998) explica que os espaços podem ser criados pela imaginação, e sabe-se que processos de criação — de materializar imaginários — é um caminho construído coletivamente e que antevê incontáveis imagens antes já produzidas. Assim, ainda que a narrativa não situe e defina com clareza o local onde a história acontece, podem-se observar semelhanças entre esse universo ficcional e obras que ilustram o território japonês. A floresta onde vive o protagonista, por exemplo, apresenta elementos que remetem a algumas das obras clássicas de Sesshu Toyo (1420-1506?), produzidas durante o período Muromachi (séculos 15 e 16), conforme se vê seguir.

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Figura 12: Landscape in winter

Fonte: 50 Masterpieces of Japanese Art (2012)

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Figura 13: Landscape in autumn and winter

Fonte: 50 Masterpieces of Japanese Art (2012)

Observando esse conjunto de imagens, é possível identificar essas semelhanças. A floresta pintada em nanquim por Sesshu Toyo retrata o silêncio do outono e do inverno japonês, com montanhas de cumes altos e extremamente verticais. Através do fluxo da água e das árvores, o olho do observador percorre um caminho diagonal da direita para a esquerda. Ademais, as obras trazem árvores desenhadas de forma peculiar e a presença de uma pequena casa nos moldes chineses. Comparando com os quadrinhos iniciais do mangá, é possível identificar as semelhanças da HQ com as obras de Sesshu Toyo. Em especial no que se refere à forma das montanhas e das árvores, como também no deslocamento do olhar e no estilo da construção da casa do protagonista.

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Figura 14: Comparações ente DB e obras de Sesshu Toyo

SIMILARIDADES:

1. Equilíbrio da composição geral das imagens; 2. Elementos da natureza: montanha ao fundo; 3. Caminho diagonal do olhar; 4. Espaço do céu.

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SIMILARIDADES: 1. Presença de uma construção na floresta; 2. Modelo arquitetônico da construção; 3. Posição da casa no terreno e com montanha ao fundo.

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SIMILARIDADES: 1. Composição visual do cume da montanha; 2. Forma e posição das árvores ao largo da montanha; 3. Espaços “vazios” semelhantes.

Fonte: Elaborado pela autora

Analisando as imagens comparadas e com base na reflexão de Bachelard (1998) de que a literatura equivale frequentemente a fusões de imagens passadas, capazes de domar tanto o tempo recorrente como a durée fluente, vão-se elencando novos pontos que fazem convergir a narrativa de DB a um universo mítico.

Ainda sob a perspectiva bachelardiana, outra pista revela-se quando se

112 relaciona a explanação do autor de que o espaço precisa ser vivido e “vivido, não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação”, de forma que o “espaço apreendido pela imaginação não pode ser o espaço indiferente abandonando à medida e à reflexão do geômetra” (BACHELARD, 2000, p. 196). Essa reflexão de Bachelard reitera a ideia do ma e instiga a pensar que o tempo-espaço da narrativa é um tempo-espaço mítico, criado não apenas pelo autor isoladamente, mas construído com base no imaginário coletivo sobre o “território japonês”. Ainda sob a análise do espaço das páginas iniciais da HQ, rapidamente o leitor é apresentado ao pequeno Son Goku, que vive em uma típica casa japonesa do período medieval, sem acesso à luz elétrica, à água corrente e a outras tecnológicas de uso comum no século XXI. Mas para um fenomenólogo, como Bachelard, não se deve analisar a casa do protagonista por seus aspectos racionais e conscientes — itens de conforto, aspectos arquetípicos, geométricos ou sociais. É preciso, afirma o autor,

[…] ultrapassar os problemas da descrição [ …] para atingir as virtudes primeiras, aquelas em que se revela uma adesão, de qualquer maneira, inerente à função primeira de habitar. O geógrafo, o etnógrafo, podem descrever bem os tipos mais variados de habitação. Sob essa variedade, o fenomenólogo faz o esforço preciso para apreender o germe da felicidade central, seguro e imediato. Encontrar a concha inicial, em toda a moradia, mesmo no castelo, eis a tarefa primeira do fenomenólogo. (BACHELARD, 1998, p. 199).

Posta essa reflexão, a sétima página do mangá apresenta ao leitor uma esfera laranja posicionada em um pequeno altar. Conforme se vê na imagem a seguir, a narrativa apresenta de imediato a “concha inicial”, não só a da vida de Goku, como também de todo o tempo-espaço dessa história.

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Figura 15: O totem sagrado de Goku

Fonte: Toriyama (2012, p. 9)41

Do totem de Goku, a estranha tecnologia de Bulma e outras características visuais que o mangá apresenta ao largo dos capítulos, como a moeda corrente, as práticas alimentícias, as vestimentas, a presença de um imperador que pouco interfere na história, remetem a narrativa a uma época perdida de um Japão imaginário, milenar e mitológico. É nesse Japão pictórico, perdido no tempo-espaço, inserido no ma, que vive o protagonista de Dragon Ball. A história começa quando Son Goku conhece Bulma, que o convence a partir em uma jornada pelo mundo em busca das esferas do dragão, que, quando reunidas, invocam um dragão. Sheng Long42 é o nome do

41 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku. 42 No original em japonês, Sheng Long é escrito com os ideogramas kami, de deus, e ryuu, de dragão. É, portanto, traduzido como Deus Dragão. Na cultura chinesa, Sheng Long é um dragão que controla o vento, as nuvens e a chuva, e a quem se atribuíam os resultados na agricultura (TORIYAMA, 2012, p. 188).

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Deus Dragão capaz de conceder um desejo a quem reunir as sete esferas do dragão

(as dragon balls, que dão título à obra). Ao longo da narrativa de DB, o leitor acompanha o amadurecimento do protagonista Goku, que constrói amizades inusitadas e que, a cada novo arco, liberta aquele mundo de uma ameaça diferente. Nessa fase do mangá, diferentes vilões surgem durante a busca pelas esferas do dragão: o Imperador Pilaf e seus seguidores desastrados, que desejam usar o poder das esferas para dominar o mundo; o exército Forças Red Ribbon, cuja missão é conquistar o mundo, mas que buscam as esferas para que seu líder supremo possa ser mais alto; e o temido Piccolo Daimaõ, um antigo demônio, fonte de toda a crueldade da terra, que estava aprisionado no fundo do mar por séculos. Retomando que a mitocrítica permite identificar o mitema e avançar na busca pelas metáforas obsessivas, precisa-se atentar a algumas questões referentes à estrutura narrativa de DB. A primeira redundância percebida nesta análise sistêmica envolve o título da obra: Dragon Ball. O título proposto em inglês sugere, primeiro, uma universalidade da obra, segundo, consegue resumir 15 mil páginas de história em duas palavras. A trama de DB é simples e a repetição e a redundância estão impregnadas na obra. Em resumo: heróis e vilões estão constantemente em busca das esferas do dragão para alterar o status quo. Sob esse prisma, percebe-se vê em DB uma estrutura circular de treino (evolução física e mental da personagem), realização da missão (enfrentar o vilão ou vencer o campeonato de artes marciais) e, por fim, morte e ressureição (sacrifício e retorno purificado), encenando e atualizando, com enxertos de atualidade, modelos arquétipos milenares. É possível ver em DB uma narrativa circular de intervalos redundantes. Os espaços propostos por Isozaki tornam-se visíveis e atualizados. Curso é fluxo, o andar narrativo dos acontecimentos; a estranheza é a força de Goku que impulsiona a trama; o dilema da escuridão versus luz conduz a batalha entre protagonistas e antagonistas; a existência do sagrado sustenta a premissa dramática da obra; a conexão permite a construção do grupo de heróis; e o desejo/repulsa pela destruição iminente é a motivação final dos atos heroicos. Por essa construção do ma e a redundância na busca pelas esferas do dragão, a trama revela a obsessão latente do arquétipo do herói japonês: ser o mais forte do mundo. Dessa forma, em DB, quando não se está à caça das esferas, está-

115 se ou 1) treinando para ser o mais forte ou 2) competindo para que se descubra quem é efetivamente o guerreiro mais forte. Nessa perspectiva, encontra-se a reflexão de Bachelard sobre o arquétipo adormecido. Afinal, quando

[…] no decorrer das nossas observações, tivermos que mencionar a relação de uma imagem poética nova com um arquétipo adormecido no inconsciente, será necessário compreendermos que essa relação não é propriamente causal. A imagem poética não está submetida a um impulso. Não é o eco de um passado. É antes o inverso: pela exploração de uma imagem, o passado longínquo ressoa em ecos. (BACHELARD, 1998, p. 2).

A narrativa de Dragon Ball apresenta diversas lutas entre heróis e vilões. São posições clássicas, bem marcadas e de fácil identificação – o mal é mal e o bem é bem. O vilão quer dominar ou destruir o mundo, os heróis movimentam-se para impedir esse domínio. Alguns vilões iniciais são impactados pela força e bondade de Goku e transformam-se em importantes amigos do protagonista. Ao largo de toda a obra de DB, incluindo aqui a saga DBZ, dez personagens, que iniciam como importantes vilões, transformam-se em grandes heróis. Assim, os heróis em DB são muitos e os vilões, mais numerosos ainda. Esse é o aspecto patente das estruturas de funcionamento das personagens de Dragon Ball, que apresentam ou uma transformação social do vilão após o encontro com Goku (tornam-se amigos) ou são mortos pelo protagonista. Após essa breve reflexão sobre título e estrutura dramática, percebe-se que, mesmo com base em uma ossatura imagética diferente da do Ocidente, com forte influência na mitologia xintoísta, Dragon Ball não deixa de ser uma narrativa aos moldes do mito do eterno retorno, presa à jornada do herói. É uma história cíclica, em que o que muda é a motivação patente das personagens, mas a latência mítica permanece sendo e estando lá, pulsante. Pensando nessa ordem e assumindo que o mitema pode ser composto por cada busca pelas dragons balls, outras questões surgem para ajudar na condução desta análise. A primeira pergunta envolve compreender qual é a motivação dos heróis para a busca pelas esferas; a segunda impõe entender como aquele mundo ficcional estava antes da busca pelas esferas e como ficou após o desejo. A última envolve a problemática central do mitema: a identificação da sua lição, ou seja, qual ensinamento se aprende em cada sequência da busca.

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Ao longo da obra DB, as esferas do dragão são reunidas quatro vezes. Analisando as motivações e os desejos solicitados a Sheng Long elaborou-se o quadro a seguir.

Quadro 1: Os desejos de Sheng Long

Intenção motivadora Desejo realizado Bulma parte em busca das esferas do dragão Para impedir que o vilão Pilaf para desejar ou uma plantação eterna de realize o desejo de se tornar 10. morangos ou um namorado ideal. imperador do mundo, a personagem Olong (um porco falante) pede uma calcinha de mulher. O Comandante do maior grupo terrorista do No encontro com o exército Red mundo, o Exército Red Ribbon, deseja possuir Ribbon, Goku presencia a morte de 20. as esferas para se tornar mais alto. (Afinal, Bora, um pai de origem indígena. quem iria respeitar um líder anão?) Após, Goku reúne as esferas para reviver Bora.

Um antigo demônio é libertado das profundezas É a primeira vez que um vilão do oceano. Piccolo Daimaõ é um vilão consegue realizar um desejo 30. extremamente forte, mas quer recuperar sua através das dragons balls. Piccolo juventude, para retomar o auge de sua força. Daimaõ realiza seu desejo inicial e volta à juventude.

Piccolo Daimaõ explode cidades e assassina Goku realiza o desejo proposto e muitas pessoas, além de personagens próximos ressuscita todos os que foram 40. ao protagonista. Goku busca as esferas para mortos por Piccolo Daimaõ. reviver todas as pessoas mortas.

Fonte: Elaborado pela autora

Dos quatros desejos concebidos pelo Deus Dragão em Dragon Ball, três são feitos pelos heróis e um, pelo vilão. O único desejo realizado por um vilão é um desejo do tipo de indução, já que impõe uma nova realidade (ainda que seja a busca pelo tempo perdido da juventude). Os pedidos dos heróis podem ser considerados desejos corretivos, visto que corrigem e ou anulam ações provocadas pelos vilões. Nessa equação de desejos, de desejos de indução e de correção dos rumos do mundo, manifesta-se uma pergunta, que é e está latente na materialidade artística de Dragon Ball: na existência de um Deus Dragão capaz de realizar qualquer desejo, que pedido fariam os japoneses? Impedir a chegada do Ocidente? Reviver as glórias do passado? Ressuscitar os mortos da guerra?

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Não existem respostas a essas perguntas, apenas a perspectiva de que produzir uma análise da obra de Dragon Ball envolve considerar as metáforas obsessivas (a busca pelas esferas), os momentos de pausa (os treinos e competições) e a relação entre as personagens (heróis e vilões) na busca por indícios e rastros passíveis de reflexões. Sob essa perspectiva, o estudo da imagem poética emerge quando se toma consciência de que uma obra pode ser “um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado na sua atualidade” (BACHELARD, 2000, p. 184), e por isso o resultado dessa equação, composta por redundâncias e repetições, mas, também, por ambivalências e contrários, vai indicar as preocupações sócio-histórico-culturais da sociedade japonesa, revelando suas angústias, seus medos e seus traumas.

5.2 O ARCABOUÇO MÍTICO E DRAGON BALL

Eliade (1994, p. 10), na tentativa de conceber uma definição, expos que o mito é uma “realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada através de perspectivas múltiplas e complementares”, de forma que sua conceituação será sempre imprecisa. Para o autor, a concepção mais ampla de mito é como a narrativa de uma criação, que trata daquilo que realmente ocorreu, “do que se manifestou plenamente”, em que as personagens são os Entes Sobrenaturais, reconhecidos por aquilo que executaram no tempo prestigioso dos primórdios. Os mitos “revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a "sobrenaturalidade") de suas obras” (ELIADE, 1972, p. 10). Observa Eliade (1994, p. 10) que os mitos, então, “descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do "sobrenatural") no Mundo”, e é esta “irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje”. Por essas intervenções do divino, dos Entes Sobrenaturais, explica o autor, “o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural” (ELIADE, 1994, p. 10). O mito da criação, o mito cosmogônico é "verdadeiro", explica o autor, porque a própria existência do Mundo atesta sua verdade, assim como a condição da mortalidade do homem valida o mito da criação da morte (ELIADE, 1994, p. 10). Assim, sob a luz das ideias deste autor, o mito é uma “história sagrada e, assim, uma "história verdadeira", porque sempre se refere a realidades” (ELIADE, 1994, p.

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11). A existência dos mitos tal como entendemos hoje está relacionada à forma como diferentes grupos elaboraram narrativas que explicassem a criação de seus mundos e os eventos da vida cotidiana. Os mitos relatam uma história sagrada, descrevem acontecimentos que ocorreram há incontáveis eras – o tempo místico do “princípio” -, e, em sua maioria, narram o momento em que algo passou a existir e começou a “ser”, de forma que os mitos são, no geral, narrativas de uma criação (ELIADE, 1994, p. 11). Campbell (2007, p. 6) esclarece que, “em todo o mundo habitado, em todas as épocas e sob todas as circunstâncias, os mitos humanos têm florescido” e que é com base neles que “todos os demais produtos possíveis das atividades do corpo e da mente humana” se desenvolveram. Para o autor, o estudo da mitologia foi construído com diferentes perspectivas ao longo do tempo e não há uma definição única que contemple o todo complexo, que é o sistema mítico. Assim, afirma Campbell (2007), o mito pode ser interpretado, 1) sob o ponto de vista de Frazer, como uma tentativa ineficaz de explicar o mundo natural; ou, 2) como apresenta Muller, uma criação fantástica antiga e incompreensível às futuras gerações; ou, 3) na interpretação de Durkheim, como um repositório de instruções alegóricas, destinadas a adaptar o indivíduo ao seu grupo; ou, 4) na visão de Jung, como um sonho grupal, sintomático com os impulsos arquetípicos existentes no interior das camadas profundas da psique humana. Conclui Campbell (2007) que o mito é a soma de todas essas visões, mas, não obstante, destaca que é através de uma reflexão minuciosa das histórias míticas que é possível observar o modo como funciona toda uma sociedade. Na linguagem cotidiana, todavia, a palavra “mito” passou a significar algo que não é verdade, que jamais aconteceu. Isso porque, explica Armstrong (2005, p. 9), desde o século XVIII a sociedade ocidental desenvolveu uma visão científica da história. Em seus estudos sobre o mito, Lévi-Strauss declarou que o Ocidente também tem mitos, evidente, mas que há muitos séculos busca traçar uma divisão entre o que é mito e o que realmente aconteceu, de forma que, para os “ocidentais há um abismo que separa a história do mito” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 17). Em contrapartida,

[...] um dos encantos mais tocantes do Japão está no fato de que aí nos sentimentos em íntima familiaridade com uma e com outro. Ainda hoje basta contar os ônibus que despejam os visitantes nesses sítios sagrados

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para se convencer de que os grandes mitos fundadores, as paisagens grandiosas em que a tradição os situa mantêm entre os tempos lendários e a sensibilidade contemporânea uma continuidade vivenciada. (LÉVI- STRAUSS, 2012, p. 17).

Para Lévi-Strauss (2012, p. 25), na sociedade japonesa, a “passagem entre mito e História opera suavemente”, e isso se dá, em especial, pela forma como os mitos japoneses foram construídos, ou seja, “atesta, por parte dos compiladores, uma intenção consciente de fazer deles um prelúdio à história propriamente dita” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 16). A respeito dessa discussão, o autor aponta que, no Japão, as dimensões do mito e da História não se excluem, isto é, a problemática da historicidade não se impõe. A crença mitológica de que a família imperial japonesa é descendente da deusa Amaterasu é uma situação exemplar dessa dialética. Observar a participação do Imperador Hirohito no fim da Segunda Guerra Mundial e, essencialmente, sua permanência no trono mesmo com a derrota do país é perceber a existência de um sistema mítico pulsante. O Japão, aliás, é a única nação do mundo que ainda possui o título de imperador (SEGANFREDO, 2011). Na visão de Benedict (1972, p. 112), foi quando o Japão se rendeu, em agosto de 1945, que o Ocidente foi capaz de compreender a influência do imperador e reconhecer a força de suas palavras mitológicas. Isso se dá, na visão da autora, porque os estudiosos norte-americanos da época, os políticos, os militares e a opinião pública da comunidade ocidental sustentavam que a rendição japonesa era impossível. Mas, quando o imperador ordenou, a guerra acabou. Nenhum general, soldado ou cidadão colocou-se em oposição, e o mesmo povo que estava disposto a lutar até a morte (mesmo após a experiência da bomba atômica), depois de ouvir as ordens do imperador, largou as armas e recebeu o exército de ocupação de forma pacífica. É oportuno destacar que esta foi a primeira vez na história japonesa que a voz do imperador foi ouvida fora de seu círculo íntimo, e que foi a primeira vez, também, que o povo japonês se deparou com a figura humana de seu imperador (SAKURAI, 2014). Mesmo com a derrota, os japoneses pediram aos países vencedores que fossem mantidas todas “as prerrogativas de Sua Majestade”. Por outro lado, a opinião pública nos Países Aliados insistia em ver o Imperador Hirohito punido como um criminoso de guerra, executado ou condenado à prisão perpétua (SAKURAI,

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2014, p. 199). Nesse ínterim, o brigadeiro-general Bonner Fellres, grande apreciador da obra literária de Lacfcadio Hearn43, ponderou ao General norte-americano MacArthur que a “atitude dos japoneses para com o imperador, tido como de origem divina, nem sempre é compreendida. Ele é ‘o símbolo vivo da raça, em quem residem as virtudes de seus ancestrais’” (PERALVA, 1990, p. 50). Não obstante, as inúmeras dificuldades por que passava o mundo no limiar de 1945-1946, o centro da crise política dos Países Aliados no Extremo Oriente orbitava entre a manutenção ou não do imperador japonês, mas, essencialmente, em como lidar com sua ancestralidade mitológica. Isso se dava fundamentalmente porque não havia como projetar que ações poderiam se desenrolar com a queda da família imperial em uma sociedade que, por mais de um milênio, via o imperador como representação viva dos ancestrais mitológicos. Para Sakurai (2014), a solução da crise deu-se no Ano Novo de 1946, quando o Imperador Hirohito finalmente renunciou sua condição divina, tornando-se “símbolo do Estado e da unidade do povo, no qual reside o poder absoluto”44. A renúncia de sua ancestralidade mitológica foi recebida de forma extremamente positiva nos países Ocidentais e, no Japão, o imperador manteve-se como uma referência para o povo. Diante desse exemplo, é necessário compreender as narrativas mitológicas como as entendiam as sociedades arcaicas: como uma “história verdadeira”, embutida de um notório “caráter sagrado, exemplar e significativo” (ELIADE, 1994, p. 7), e é com base nesse acontecimento, que é impossível desconsiderar a mitologia nos estudos acadêmicos que envolvem o Japão e seus diferentes produtos midiáticos. Assim, é possível que exista, na literatura do mangá, um espaço diferenciado para que se busquem pistas do que constitui o imaginário japonês e, consequentemente, do reviver dos mitos cosmogônicos. Na sociedade japonesa, a matriz mitológica advém da crença xintoísta. O xintoísmo, religião autóctone do Japão, é uma prática religiosa singular que não possui uma organização centralizada, não tem fundador, nem doutrina ou mandamentos e não há nenhuma figura análoga a Jesus Cristo ou Maomé. De acordo com Yamakage

43 Lacfcadio Hearn (1850-1904) naturalizou-se japonês e adotou o nome Yakumo Koizumi. Publicou artigos sobre a cultura, o cotidiano, histórias populares e poesia japonesa. Produziu uma coleção de contos de fadas baseados em lendas e mitos japoneses e conquistou reconhecimento nacional e internacional. 44 Trecho do Artigo 1 da Constituição de 1946.

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(2010, p. 37), o xintoísmo é uma “religião que evoluiu a partir da vida e das experiências do povo japonês [...] formatado e alimentado por incontáveis homens e mulheres desconhecidos que viveram nessas ilhas através dos séculos”. Na vida cotidiana, guardada as devidas particularidades, o xintoísmo “concentra-se nas questões referentes a este mundo, na procriação, na promoção da fertilidade, na pureza espiritual e no bem-estar físico” (LITTLETON, 2010, p. 10). Na visão dos xintoístas, o mundo é governado por seres espirituais, os kami45, que existem em número imensurável. Essas entidades espirituais estão intrinsecamente ligadas aos elementos da natureza, de forma que o xintoísmo pode ser concebido como “a religião que reverencia à grande natureza” (YAMAKAGE, 2010, p. 41). Diferentemente da tradição bíblica, explica Campbell (2012, p. 25), em que a natureza é vista como um mal em que o sujeito ou a controla ou é controlado, as “religiões da natureza” não visam controlar a natureza, mas, sim, ajudam o indivíduo a pôr-se em acordo com ela. Essa relação entre religião e natureza é visível quando se observa, por exemplo, que, mesmo com uma superpopulação e escassez de terras para a agricultura, 67,1% do território japonês é formado por florestas e campos nativos (SAKURAI, 2012). No pensamento xintoísta, inexiste a noção de pecado e de salvação, nem o dilema entre carne e espírito (YAMAKAGE, 2010). Não há, também, a crença na lei do karma de causa e efeito, nem a meta de acabar com o ciclo nascimento- renascimento difundido pelo budismo. Essas particularidades tornam o xintoísmo “uma religião desprovida de culpa, que parte do princípio natural da humanidade e do potencial de cada ser humano para o bem” (YAMAKAGE, 2010, p. 41). De acordo com Yamakage, o xintoísmo tem “sua maneira própria de pensamento e ação, tanto quanto uma visão especial de mundo, que não se adapta ao conceito ocidental de religião”, mas sob um conjunto de expressões e costumes que não são um padrão, “o xintoísmo está repleto por um rico mundo de fé” (YAMAKAGE, 2010, p. 41). Littleton (2010, p. 11) resume, de forma sintomática, a interlocução entre o xintoísmo, a mitologia e a sociedade japonesa, quando afirma que, “em muitos

45 A expressão kami traduzida aqui como deus/deuses não está relacionada com noção cristã de Deus. Um japonês ao se referenciar a Deus na concepção cristã não irá falar kami, e sim, Desu adaptação japonesa da palavra portuguesa Deus, introduzida no país pelos jesuítas em 1587 (JANEIRA, 1970, p. 260).

122 aspectos, ser japonês é ser xintoísta, não importa que outras religiões a pessoa possa adotar”. Sincronicamente, Campbell (2007, p. 364) reforça que o xintoísmo apresenta mitos, crenças e tradições que permeiam a História e a cultura japonesa de tal forma que, por diversos momentos, não é possível estabelecer com clareza a linha que marca o que é criação mítica e o que é construção social. Exemplo do trânsito entre a mitologia xintoísta e o discurso oficial da História é visível pela forma como se dá a contagem dos monarcas japoneses: o atual Imperador do Japão, Akihito, é reconhecido oficialmente como sendo o 15º imperador, todavia, não há provas concretas que confirmem a existência dos primeiros quatorze imperadores, exceto menções em textos mitológicos (CALLCUT, 1984). A principal fonte escrita da mitologia japonesa é o livro Kojiki, (Registros dos Assuntos Antigos ou Anais dos Assuntos Antigos), que, além de ser a primeira publicação sobre o xintoísmo, é também o documento mais antigo preservado pelo Japão e data de 712. O livro foi elaborado com base em alguns documentos que se “perderam com o tempo e através de relatos orais, sobretudo da genealogia de vários clãs (uji) poderosos que dominavam a vida política japonesa no período de 710-794” (LITTLETON, 2010, p. 36). A obra, que é mais antiga que a própria escrita nipônica — os alfabetos japoneses só foram concebidos em meados do século IX -, foi escrita na forma que hoje se conhece como Kanbunkundoku, que significa literalmente “leitura de textos chineses em japonês” (SUZUKI, 1985, p. 56). Escrito em chinês clássico, Nohonshoki ou Crônicas do Japão, é o segundo livro mais antigo do país e foi elaborado de forma coletiva por uma comissão de estudiosos. Por vinte anos, os estudiosos releram o Kojiki, entrevistaram os clãs e construíram uma obra, cuja intenção era corrigir os equívocos do livro anterior, que dava ênfase à linhagem imperial e excluía outros poderosos clãs, empreitada finalizada em meados de 720. Nihonshoki é a segunda fonte mais importante sobre mitos japoneses e é, também, considerada o primeiro livro oficial da História do Japão. É oportuno esclarecer que tanto o Nihonshoki como o Kojiki não são textos sagrados ao xintoísmo, como é a Bíblia ou o Alcorão, por exemplo. Nessas obras, enfatiza Yamakage (2010, p. 38), “fatos históricos, mitos e teologia são harmoniosamente misturados com questões políticas e embelezamentos literários”. Confirmando o exposto por Eliade (1994, p. 86), que identificou que “todo o mito de origem conta e justifica uma ‘situação nova’ — nova no sentido de que não existia desde o início do mundo” e que tais histórias “contam como o Mundo foi

123 modificado, enriquecido ou empobrecido”, as narrativas presentes no Kojiki e no Nohonshoki relatam as várias etapas pelas quais o território japonês passou até se consolidar como um império soberano e independente. No texto Registros dos Assuntos Antigos, o primeiro rolo da obra (Kamitsumaki), explica o início do mundo, detalha o instante da criação das ilhas que formam o Japão, discorre sobre o nascimento de inúmeras gerações de deuses e prossegue até o nascimento de Jimmum — o primeiro Imperador do Japão, descendente divino da deusa do sol Amaterasu. O segundo rolo (Nakatsumaki) dá sequência às histórias do Imperador Jimmum Tennõ, sua trajetória e a consequente conquista do Japão, terminando com a narrativa de Õjin, o 15o Imperador. O rolo inferior (Shimotsumaki) apresenta as histórias do 16o até o 33o imperador e, nesta parte, poucos deuses aparecem (SEGANFREDO, 2011). Essas narrativas relatam, também, as relações diplomáticas com os reinos de fora do arquipélago e discorrem sobre a união de diferentes povoados em um grande reino, o reino de Yamato. Registros dos Assuntos Antigos46 inicia relatando um tempo em que não havia céu, terra ou formas e reinava o caos. Até que, em um sem tempo — “qualquer narrativa mítica descreve um evento inefável e misterioso ocorrido no Tempo Sagrado do ‘todo-sempre’” (ARMSTRONG, 2005, p. 61) -, uma massa leve e transparente passou a existir. Um casal de imortais brotou do alto de uma planície, e, por mais sete gerações, muitas outras divindades (kami) nasceram, mas abaixo da planície ainda reinava o caos. Na corte de Takaamahara (o céu japonês), os deuses viviam envoltos de todo o luxo possível e jamais faltava-lhes saquê. “Era exótico o céu do Oriente – com seu ócio ocupado, suas canções e haicais47, sua irrefletida volúpia e seus deliciosos segredos” (SEGANFREDO, 2011, p. 23). O primeiro ponto de convergência entre a narrativa de Goku e o arcabouço mitológico estabelece-se nas primeiras páginas do mangá. Essas pistas são apresentadas tanto por uma construção frasal como pela imagem. No que tangue à fala da personagem, é possível ver a sincronia entre a plenitude dos deuses japoneses com seu céu farto de alimentos, com a sequência de Goku em busca de comida. Nas páginas iniciais da narrativa, Goku parte em busca de comida e sua fala revela ao leitor que é um menino bem alimentado. O contexto de um garoto

46 O texto presente nesse capítulo foi adaptado do livro Transletion of Ko-ji-ki or “Records of Anciente Matters”, do tradutor Chamberlain e comentários de W. G. Aston, publicado em 1932 pela editora J.l. Thompson & Co. (Retail) Ltda., em Kobe. 47 Haicai ou Haiku é uma forma peculiar de poema japonês.

124 abandonado ao relento na mata fechada se desfaz, Goku é consciente de si e totalmente capaz de viver na floresta. Já no que tangue à imagem (aos desenhos), a sequência inicial, além de expor o ma em funcionamento, pode também corroborar outro vestígio que aponta para uma relação entre obra e construção mítico-religiosa: a presença latente do yin-yang48 na imagem de abertura do mangá. Sobre a imagem, Aumont (2013) discorre que sua produção nunca é gratuita, que imagens são fabricadas para usos específicos, individuais ou coletivos, e uma das razões de sua criação advém da sua incorporação ao domínio do simbólico. Sob a perspectiva de Aumont (2013, p. 78), a imagem está sempre inserida em uma situação de mediação entre espectador e realidade e tem a função de garantir, reforçar, reafirmar e explicar nossa relação com o mundo (AUMONT, 2013, p. 81). Reafirmar, na esfera da significação, é usar a imagem para o reconhecimento e a rememoração. Dessa forma, reconhecer ou relembrar “alguma coisa em uma imagem é identificar, pelo menos em parte, o que nela é visto como alguma coisa que se vê ou se pode ver no real. É, pois, um processo, um trabalho que emprega as propriedades” (AUMONT, 2013, p. 82) da formação discursiva do sujeito, em sua integralidade mítica e concreta. Pensando nessa ordem e ciente de que as concepções mais antigas do pensamento mitológico no Japão são de origem indiana e chinesa, nas quais há sempre a referência à impermanência e a aliança entre a natureza e a cultura, e que esta última norteia tanto as concepções do corpo como da arte até hoje na cultura japonesa (GREINER, 2015, p. 24), é que a presença latente do yin-yang é passível de observação no quadrinho de abertura da obra.

Figura 16: A latência do yin-yang em Dragon Ball

48 O yin-yang, é originário do taoísmo chinês e simboliza forças opostas e complementares. O primeiro é a representação do feminino, da água, da escuridão; o segundo é masculino e está relacionado ao fogo e à luz.

125

Fonte: Elaborado pela autora

Através do quadro comparativo, no qual o yin-yang foi reduzido a seus elementos mínimos e sobrepostos ao quadrinho inicial de DB, é possível observar, no espaço ocupado por Goku e o céu, uma materialização do equilíbrio de forças entre homem/cultura e natureza. Essa imagem também revela a presença do fluxo circular do yin-yang no canto superior direito e no inferior esquerdo, onde os elementos de água, terra e ar se encontram. Não obstante, a presença latente do yin-yang na imagem não exclui que o quadro apresente a proporção áurea, nem significa afirmar a falta da profundidade ou perspectiva — elementos identificados pelos gregos e revivido pelos europeus no Renascimento49. A proporção áurea é constante algébrica irracional, que foi adotada pela arte no período renascentista, na intenção de representar a perfeição da beleza. Importantes obras estão nessa proporção, como O Nascimento de Vênus, de Botticelli; O Sacramento da Última Ceia, de Salvador Dalí, e A Mona Lisa, de Leonard Da Vinci. (FARTHING, 2010). Nessa perspectiva, o quadrinho abertura do mangá Dragon Ball, mesmo tento elementos do yin-yang pulsante em sua composição, também apresenta a proporção áurea, consoante à imagem composição a seguir.

49 O termo faz referência ao ressurgimento do interesse pelo pensamento intelectual e artístico da Grécia e da Roma antigas e nortearam importantes mudanças na concepção artística, em especial na inclusão da perspectiva e da profundidade na pintura (FARTHING, 2010, p. 152).

126

Figura 17: A proporção áurea em DB

Fonte: Elaborado pela autora

Essa reflexão se apoia no exposto por Aumont (2013, p. 7), que identificou que a imagem tem “inúmeras atualizações potenciais, nas quais algumas se dirigem aos sentidos, outras unicamente ao intelecto”, e que, ao passar do visível ao visual, é necessário incluir o sujeito que olha (AUMONT, 2013, p. 56). Para o autor, é o olhar do sujeito que define a intencionalidade e a finalidade da visão, de forma que, além de sua capacidade de percepção, “entram em jogo o saber, os afetos, as crenças, que, por sua vez, são muito modelados pela vinculação a uma região da história (uma classe social, a uma época, a uma cultura)” (AUMONT, 2013, p. 77). Assim, diante dessa imagem, analisada sob a projeção do yin-yang e da proporção áurea, cuja aliança entre natureza e cultura é tangível, o uso em destaque do elemento água constitui-se como outro vestígio de que ali se encontra uma história mítica. Na sequência de imagens de abertura da obra, o protagonista percorre uma montanha com um grande rio ao fundo. Entre terra e água, Goku opta por usar os recursos disponíveis na água como fonte de alimento, pescando um peixe de desproporcional tamanho. Por essa escolha narrativa e pelo fato de o Japão ser um país insular, no qual o mar é um exemplo vivo do yin-yang — fundamental para

127 alimentar o povo, mas fatal por seus tsunamis —, cabe ressaltar a visão de Bachelard (1998b) sobre a água. A água, elemento que supre a necessidade básica do homem e que abre a narrativa do mangá, indica que a história adentrará em “uma série de imagens cada vez mais profundas” (BACHELARD, 1998b, p. 6) e que o leitor poderá encontrar na imagem da água e, consequentemente, nas páginas do mangá, uma forma de intimidade peculiar. Assim como a água da cachoeira avança com o destino, o leitor, absorvido pela profundeza das imagens, partirá não para o “destino das imagens fugazes, o vão destino de um sonho que não se acaba, mas um destino essencial que metamorfoseia incessantemente a substância do ser” (BACHELARD, 1998b, p. 7). É essa instância, o leitor, que transformará com a leitura da obra ao longo dos onze anos de publicação. Dito isso, o uso em destaque desse elemento indica, ainda sob a ótica de Bachelard (1998b), que a história apresentará uma vida essencial que se transforma continuamente em si —, reforça-se que possivelmente se está frente a uma história mítica, com suas metáforas obsessivas, suas lições e suas preocupações sócio- histórico-culturais. Adotando a perspectiva de que Goku representa o arquétipo japonês mitológico (a entidade constitutiva e formadora do ser social japonês) e que o mangá reacende a aura mítica, avança-se na interpretação da obra, com atenção especial ao primeiro capítulo, intitulado Goku e Bulma. A busca por outras pistas e as semelhanças com os mitos fundadores materializada na obra Registros dos Assuntos Antigos continua.

5.2.1 Goku & Bulma: diásporas em fluxo

Stuart Hall (2008, p. 32) afirma que a ideia de diáspora esteve apoiada frente a uma “concepção binária de diferença”. Nessa perspectiva, o autor explica que a diáspora era fundada na fronteira de exclusão e que esta dependia “da construção de um ‘Outro’ e de uma oposição rígida entre o dentro e o fora”. Não obstante, o autor explica que há identidades culturais arranjadas e sincretizadas em que a diferença não opera de forma binária, com fronteiras claramente demarcadas, mas que há significações que são espaços de passagem, atuando “sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim” (HALL, 2008, p. 32).

128

Isso posto, inicia-se a análise das personagens Son Goku e Bulma, já que a descoberta das construções patentes e latentes das personagens principais são essenciais à significação e à ressignificação mítica das histórias em quadrinhos na atualidade. Nesse sentido, isso só é possível, porque “sempre há o "deslize" inevitável do significado” e “aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado” (HALL, 2008, p. 32). Diante disso, o mito que narra a saída dos céus de Izanami no Mikoto (a fêmea que convida) e Izanagi no Mikoto (o macho que convida) é uma forte semelhança encontrada entre a narrativa de Dragon Ball e o arcabouço mitológico japonês, exposto no primeiro rolo do Registros dos Assuntos Antigos. Assim como a deusa Izanami convenceu o jovem deus Izanagi, persuadindo-o através das artimanhas da fala a deixar o mundo conhecido para desbravar o desconhecido, a personagem Bulma consegue convencer o pequeno Goku a partir com ela para conhecer o mundo, como se pode observar na sequência a seguir.

129

Figura 18: Goku e Bulma partem para a aventura

Fonte: Toriyama (2012, p. 25)50

Nessa perspectiva, em ambos os casos, encontra-se na figura feminina o que

50 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku.

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Campbell (2007, p. 60) chamou de “arauto”, quando seu aparecimento quebra com o status quo do protagonista e, por consequência, resulta na “chamada da aventura”. Sob a luz dos estudos desse autor, a mensagem do arauto pode anunciar o chamado para um grande empreendimento histórico, como é o caso de Izanami e Izanagi no Mikoto, ou como também marcar o “despertar do eu”, como se observa na narrativa de DB. Seja um grande feito ou um evento de pequeno porte, é importante destacar que o chamado sempre dá espaço a um misterioso processo de transfiguração. É justamente essa transfiguração, quando o ambiente familiar é abandonado, os antigos conceitos, ideias e padrões de comportamento não são mais aceitos, que Goku é inserido. Nesse novo mundo, o protagonista aprende a tomar banho, beber café e a se portar frente às outras pessoas. A confluência entre DB e a mitologia se dá, porque, assim como no mito dos deuses fundadores, se as entidades masculinas e femininas estivessem separadas, não seria possível progredir na história. A necessidade de união, visando a um desenvolvimento a longo prazo, e a ideia de que forças masculinas e femininas avançam mais quando unidas em um objetivo comum surgem rapidamente em ambos os casos. Isso posto, reforça-se que, mesmo que a personagem Bulma incite o prazer sexual, ambas as narrativas não usam essa faceta como motivadora da história.

131

Figura 19: A negação ao ato sexual

Fonte: Toriyama (2012, p. 23)51

Há outra forma, no entanto, de construir esse paralelo entre o mito fundador e o mangá DB. Isso paira sobre uma variante do mito original no qual o casal de deuses só passou a reconhecer suas diferenças sexuais quando abandonou o céu, tal como, quando descobriu o que é uma garota, Goku partiu em aventura e abandonou o seu lar seguro52. A imagem a seguir mostra o momento quando o protagonista descobre que Bulma é uma garota.

51 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku 52 Por curiosidade, é frequente a presença de personagens andróginos e hermafroditas nas HQ’s japonesas. O criador Ozama Tekusa, conforme já exposto, criou importantes personagens com essas características, como no caso das obras A Princesa e o Cavaleiro e Metrópoles, em que um robô muda de sexo toda vez que aperta um botão em sua boca.

132

Figura 20: Goku conhece uma garota

Fonte: Toriyama (2012, p. 17)53

53 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku

133

Segundo o pensamento bachelardiano, onde há dualidade, o feminino e o masculino estarão sempre atuando, e o paradigma de funcionamento entre anima e animus é uma dialética de desenvolvimento, e não uma dialética de divisão (BACHELARD, 1998). Nesse sentido, a relação entre Goku e Bulma constitui uma situação exemplar. Mas se ao anima (feminino) cabe a liberdade e o “devaneio que vive o presente das imagens felizes” e ao animus (masculino), os “projetos e as preocupações” (BACHELARD, 1998, p. 56), o que se observa em Dragon Ball não encontra sincronismo entre as imagens patentes do masculino de Goku e o feminino de Bulma. Tal constatação poderia anular a reflexão proposta, todavia, Greiner (2015, p. 38) explica que, no que se refere ao Japão, “é sempre necessário tomar cuidado com a leitura da representação do corpo, uma vez que estas não devem ser enquadradas por esquemas e conjunto de ideias como fórmulas vazias que simulam dualidades”. Para o autor, no caso japonês, estudar o “corpo significa identificar como um corpo reconhece a si mesmo e como ele é capaz de seguir o fluxo em sintonia com o ambiente”, e que é por essa forma de funcionamento que “são criadas metáforas corporais bastante singulares para descrever estas relações” (GREINER, 2015, p. 30). Essa forma de pensamento pode ser observada em DB nos quadros a seguir, nos quais tanto Bulma não entende o que é aquela misteriosa cauda de Goku como ele estranha a ausência de um volume externo entre as pernas da garota. Nessa diegese, ambos são incapazes de reconhecer o sexo oposto.

Figura 21: As dúvidas de Goku e Bulma 134

A DÚVIDA DE BULMA

A DÚVIDA DE GOKU

Fonte: Elaborado pela autora com imagens de Toriyama (2012)54

54 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 2: As bolas sumiram!, p. 41 e 48.

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Greiner (2015, p. 40) expõe que a dinâmica do corpo no Japão renega “a noção monolítica e estática do ‘eu’ ou do ‘si mesmo’”, e que, para a compreensão dessa forma de construção simbólica, seria “inerente reconhecer que a subjetividade não se constitui na clausura do sujeito, mas transita pelo coletivo, estando sempre em um continuum comunicativo com o grupo”. E essa forma de ver o corpo, em sua versão simbólica, cria um Eu que emerge da experiência (GREINER, 2015, p. 40). Tanto no caso do mangá, com Goku e Bulma, como na narrativa mítica de Izanami e Izanagi, a experiência de vida permite a identificação do gênero. Exposto isso, passa-se a procurar pela construção latente em Dragon Ball, que coloca, ao longo da narrativa, as forças do feminino em Goku e, em Bulma, o masculino. Essa constatação se evidencia quando Goku realiza ações tipicamente femininas, como em referência aos antepassados, nos afazeres domésticos e no desconhecimento sobre o ato sexual. Enquanto em Bulma, se veem as preocupações e os aspectos do raciocínio lógico. Alguns quadrinhos do primeiro capítulo do mangá exemplificam essa construção de dualidade das personagens de forma pictórica. Nas primeiras capas, por exemplo, é Bulma quem dirige a moto, o avião e quem porta armas de fogo. Nessas imagens, Goku questiona ou nega esses aparatos tecnológicos, estando sempre desconfortável em relação a eles. No entanto, quando Goku aparece montando em um dragão, quem fica desconfortável é a personagem Bulma.

Figura 22: Capas de DB com Goku e Bulma

136

Fonte: Toriyama (2012)55

55 Coleção Dragon Ball, volume 1, p. 178, 179, 180, 181.

137

Nas páginas 17 e 18 do primeiro capítulo do mangá, o leitor pode perceber outro exemplo da dualidade das personagens, quando Goku desconhece o que é um carro e convida Bulma a ir a sua casa para dar-lhe comida, enquanto Bulma, a personagem que vem da cidade e da tecnologia, já se questiona como poderia usar a força de Goku em seu proveito. A construção dessas relações pode ser observada na sequência de imagens a seguir.

Figura 23: Goku faz um convite a Bulma

Fonte: Toriyama (2012, p. 19)56

56 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku.

138

DB é uma narrativa que orbita na busca das esferas do dragão, que são objetos de difícil localização. Entretanto é apenas Bulma, que, durante toda a narrativa (e aqui inclui-se a sequência Dragon Ball Z), conseguiu criar um instrumento eletrônico capaz de localizar com precisão as esferas. Ademais, é o masculino de Bulma que traz as preocupações à história, já que é a personagem que instala na trama a necessidade pela busca das esferas. Ao largo do mangá, outros paralelos do masculino de Bulma e do feminino de Goku se estabelecem, como é o caso da relação de desconfiança de Goku com as cápsulas hoipoi57, tecnologia que o protagonista não compreende, não aceita e entende como bruxaria, consoante a imagem que segue.

57 As cápsulas são uma tecnologia ficcional, que permite encolher e guardar qualquer objeto (casa, barco, carros, roupas, pessoas) em uma pequena cápsula, facilitando o transporte e o armazenamento de grandes volumes.

139

Figura 24: Goku conhece as cápsulas hoipoi

Fonte: Toriyama (2012, p. 27)58

58 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku

140

Diante dessas e de outras informações apresentadas durante a narrativa, percebe-se, de forma latente, o feminino em Goku e o masculino em Bulma59. Mas não obstante, em Goku, encontra-se um homem viril, “com demasiada simplicidade, caracterizado por um forte animus”, mas que possuiu também “uma anima que pode apresentar manifestações paradoxais” (BACHELARD, 1998, p. 58). Essa semelhança também se vê em Bulma, a personagem do sexo feminino de maior participação em todo o mangá, que manifesta constantemente seu animus, mas que é também a figura feminina que mais sofre com processos de erotização e abuso sexual. Ciente de que a fenomenologia do imaginário discorre sobre a imagem poética como uma realidade impregnada de futuro e de vida, ou seja, de experiência humana, a imaginação, o devaneio e o ato poético abrem caminho para que o sujeito possa produzir efeito de sentido. Visto dessa forma, a materialidade de um fenômeno poético auxilia o sujeito-leitor na compreensão do real, como, também, de outras criações que possam se tornar realidade. Sob essa perspectiva, a imagem poética pode ajudar tanto na compreensão como na superação da realidade, mas, todavia, o imaginário também não se manifestada do vazio, não é uma “bacia” higienizada da experiência humana. Diante do funcionamento do imaginário exposto por Bachelard (1998) e Durand (1985), e ciente de que as imagens são produzidas com base nas experiências pregressas, sejam coletivas sejam individuais, o encontro entre Goku e Bulma permite uma explanação mais ampla no que tange a “compreensão do real” com base nas experiências coletivas. Mais que uma invocação, a dialética das forças do anima e do animus, na materialidade artística de Dragon Ball, é possível identificar, também, o encontro simbólico entre o Ocidente e Oriente — significado e ressignificado pelo sujeito japonês. Assim, de forma semelhante a como os Estados Unidos da América chegaram com seus navios negros no século XIX e impuseram a abertura dos portos do Japão por meio da força e da ameaça de bombardeiro e, tal como em 1945, o mesmo país finalizou de forma traumática o desejo da expansão territorial japonês, em DB, a personagem Bulma chega de encontro a Goku, com força e violência, literalmente atropelando-o.

59 Visto que este trabalho parte da premissa da existência de um elo entre o percurso mítico, o historiográfico e Dragon Ball, a dinâmica de Goku e Bulma pode ser observada com semelhanças em outros momentos e será retomada sob a perspectiva Ocidente versus Oriente mais adiante.

141

Figura 25: O encontro de Bulma e Goku

Fonte: Toriyama (2012, p. 14)60

60 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku

142

Seguindo essa reflexão, nas primeiras páginas do mangá, observa-se Goku em paz com a natureza. A floresta à sua volta provê o alimento necessário para uma vida longa. A casa é pequena e antiga e não há sinais de tecnologia, como luz elétrica. O estilo de vida de Goku é muito semelhante ao dos japoneses no período pré- abertura dos portos: isolado socialmente, com uma alimentação com predominância de peixes e frutos do mar, uma vestimenta tradicional, pouca incidência de instrumentos ou inovações tecnológicas e forte apego aos ancestrais; neste caso, manifestado pela esfera laranja posta em um pequeno altar. Já a personagem Bulma é apresentada em um contexto oposto. O vestido curto, em moldes ocidentais, revela a personagem como uma jovem moderna oriunda da grande metrópole. Bulma possui carro, arma de fogo e instrumentos tecnológicos, o que atende ao aspecto constitutivo do animus. Nessa reflexão, é possível relacionar a personagem Goku ao nativo japonês e à situação que o Japão vivia no período que antecede a abertura dos portos. De outro lado, percebe-se em Bulma a figura do desbravador, adentrando em um território desconhecido com um propósito específico. Assim, na confluência entre a narrativa de DB e a História do Japão, é possível perceber que a chegada do ocidental é feita de forma violenta em ambos os casos. Se, na oficialidade histórica, o Comodoro Mattew Perry, através da ameaça do bombardeio naval, “conquistou” o Japão, abriu o país ao comércio internacional e causou uma série de transformações sociais, em DB, Bulma avança com o carro e atropela Goku, causando, assim, também, uma profunda ressignificação na vida do protagonista. Assumindo a perspectiva bachelardiana na qual, diante do fenômeno, é necessário pôr em “evidência toda a consciência que se acha na origem da menor variação da imagem” (BACHELARD, 2000, p. 4), que não se permite ler o ato poético de outra forma, senão como uma imagem que “se renova, mesmo em um só de seus traços” e que está “manifesta uma ingenuidade primordial”, o atropelamento de Goku por Bulma e as características de seus personas sugere pistas para uma latência na imagem poética capaz de materializar o embate entre Ocidente e Oriente. Ademais, se a fenomenologia do imaginário exige que o pensador ative sua participação na “imaginação criante” e que a análise do fenômeno se presta enquanto atua no presente, em um tempo tensional, no qual a “tomada de consciência, impõe-se a conclusão de que não existe fenomenologia da passividade

143 no que concerne aos caracteres da imaginação”, e que, o fenomenólogo deve buscar sempre a intencionalidade latente (p.4), fundamenta-se a ideia de que em Son Goku está materializado o nativo japonês e em Bulma, o ocidental. As pistas presentes no volume 1 da obra, (capítulo 1º até o 11º) permitem construir o quadro comparativo a seguir.

Quadro 2: Diferenças entre Goku e Bulma

SON GOKU BULMA Apresenta coração puro e alma de Apresenta coração impuro e “mente guerreiro poluída” Desconhece a luxúria e os desejos Utiliza o corpo como elemento de sexuais persuasão Vive em harmonia com a natureza É da cidade e não está integrada à natureza Não tem acesso a aparelhos Tem posses e aparelhos tecnológicos eletrônicos Usa vestes tradicionais, em especial o Usa vestes ocidentais, em especial Quimono mini-saia e vestidos Tem nome completo: nome e Possuiu nome inspirado em uma peça sobrenome de roupa americana Tem cabelos escuros que permanecem Tem cabelos claros e constantemente iguais até o fim muda a forma É de estatura baixa, sendo o mais baixo É de estatura mediana, mas é das personagens humanos consideravelmente mais alta que Goku

Fonte: Elaborado pela autora

Sob a perspectiva de que representa o nativo, Goku está naturalmente imbuído do “espírito samurai”. Isso posto, é importante observar que, assim como sugere o código de conduta dos samurais, no qual, não importando a adversidade e o inimigo, um samurai deve estar sempre pronto a lutar, Goku, frente ao seu atropelamento, põe-se em posição de luta de imediato. A luta entre Goku e Bulma acontece na sequência. Bulma saca seu revólver e sem hesitar atira na cabeça de Goku, que cai reclamando de dor, mas vivo e sem grandes ferimentos. Goku prepara-se para dar o contragolpe final quando Bulma avisa-o que ela é apenas uma garota. Bulma sai então do carro, e as duas personagens param para se conhecerem melhor, consoante imagem abaixo.

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Figura 26: O primeiro contato corpo a corpo

Fonte: Toriyama (2012, p. 17)61

O momento do primeiro encontro entre Bulma e Goku é de grande

61 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku

145 importância para esta análise e revela a desconfiança entre os dois, tal qual a relação entre Oriente e Ocidente no final do século XIX. Goku está diante de uma total desconhecida do sexo oposto que não possui rabo de macaco. A falta da cauda preocupa-o, afinal, como poderia alguém sobreviver nesse ambiente sem ela? Para o protagonista, a cauda é fundamental para a obtenção de alimentos (momentos antes do encontro dos dois, o leitor observa Goku pescar e usar a cauda como isca). Por outro lado, a personagem Bulma debocha mentalmente da aparente “falsa” cauda do garoto. A relação de mistério entre as duas personagens está posta: ambos são estranhos um ao outro, com diferentes hábitos, crenças e valores.

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Figura 27: O processo de reconhecer o Outro

Fonte: Toriyama (2012, p. 18)62

62 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku

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Depois desse inesperado encontro, Goku parte com Bulma em busca das esferas do dragão. Durante todo percurso, o protagonista vai adquirindo hábitos ocidentais, aprende a tomar banho (da forma ocidental), andar de motocicleta, beber café, assistir televisão, entre outros. Sem perder as características básicas de seu caráter, Goku vai aos poucos se “ocidentalizando”, a ponto de, em certo momento, ter sua cauda cortada. Além dos paralelos entre Izanami, Izanagi, Goku, Bulma, Ocidente e Oriente, pode-se articular outros vestígios entre esses fenômenos. Os mitos se referem sempre a uma forma de criação, seja o nascimento de um mundo ou como um padrão de comportamento, razão por que os “mitos constituem os paradigmas de todos os atos humanos significativos” (ELIADE, 1994, p. 22). Assim, no caso japonês, três criações sociais são identificáveis. A primeira trata da ausência da Queda; a segunda tange o triunfo do modelo patriarcal na sociedade japonesa, e a terceira refere-se à relação entre morte e criação. Essas criações mitológicas são outras semelhanças passíveis de correlações com o mangá Dragon Ball. Na mitologia japonesa, a saída do paraíso não se deu através de um processo de perda, já que foi quando a deusa Izanami no Mikoto decidiu que a vida divina não bastava e que havia um mundo lá embaixo a ser explorado (e conquistado), e, então, uma ponte surgiu diante de seus olhos. A saída da deusa, que, cansada de todo o ócio, convenceu seu companheiro, o deus Izanagi no Mikoto, a deixar o paraíso, foi planejada e acompanhada por comemorações e presentes. De forma semelhante, no mangá de Dragon Ball, Bulma, com a mesma motivação da deusa Izanami, desbrava o mundo em uma aventura, assim como se percebe em Goku a mesma hesitação inicial manifesta por Izanagi em deixar o conforto do lar. Pensando nesta ordem, é importante destacar que a maioria das religiões e das mitologias das sociedades primitivas é permeada pelo sentido da perda do paraíso (ELIADE, 2000, p. 59). Armstrong (2005) reforça que, em muitas culturas, é possível encontrar o mito do paraíso perdido: o homem vivia em harmonia com seus semelhantes, deuses e natureza, conectados por uma ponte, uma árvore ou uma montanha, mas em algum momento algo acontece e esta conexão se perde. No entanto, no que se refere à saída do paraíso, Yamakage (2010, p. 41) destaca que não há, tanto na mitologia japonesa como no pensamento xintoísta, nada

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“equivalente ao pecado original da doutrina cristã, que mancha a humanidade como um todo e do qual cada indivíduo deve transcender por meio do arrependimento”. Para Campbell, o Japão é uma “civilização que nunca ouviu falar na Queda e no Jardim do Éden” (CAMPBELL, 2012, p. 25) e esse posicionamento “retira todo apoio à filosofia ocidental dos dois poderes, a carne e o espírito, lutando continuamente pela supremacia em cada vida humana” (BENEDICT, 1972, p. 161). Por consequência, expõe Benedict, os desdobramentos são, primeiro, que não há oposição entre espírito e corpo; segundo, que usufruir dos prazeres da carne não é pecado; e terceiro, que “o mundo não é um campo de batalha entre o bem e o mal” (BENEDICT, 1972, p. 161). E encontram-se diluídos no mangá alusões ao paradigma estrutural exposto sobre a ausência da Queda — carne versus espírito, prazer versus pecado e bem versus mal. Não há, por exemplo, nenhum momento durante a narrativa no qual Goku apresenta questionamentos ou arrependimentos sobre sua saída da floresta. Não há um processo de perda ou de abandono forçada de casa. A saída do lar do protagonista não é previamente planejada, mas também não é realizada sem cuidado — já que, ao partir, Son Goku leva consigo sua “concha inicial”, o essencial em sua vida, a dragon ball que representa seu avô. Essa pista pictórica anula uma possível dicotomia tanto entre carne versus espírito como entre prazer versus pecado, já que nesta narrativa, carne e espírito partem juntos para sobreviver. Ademais, Greiner (2015, p. 29) explica que, no Japão, o “corpo não é tratado como algo separado da mente”, como também “não há dualidade entre corpo e matéria” (idem, 2015, p. 35) e que a relação entre carne (corpo) e espírito (mente) não pode ser simplificada à “inserção de uma substância não extensa dentro de um corpo- maquina” (idem, 2015, p. 59). É, defende o autor, a partir de uma forma muito particular que ações visíveis e invisíveis se “constituem em fluxo entre diversos circuitos do corpo e do ambiente” (idem, 2015, p. 59). Tanto nas personagens de DB, como nos mitos fundadores, “carne” e “espíritos” são fenômenos unidos que compartilham do fluxo de um mesmo ambiente, mas sem relação intrínseca de causa e efeito. A busca em DB tem, então, o objetivo de um aprimoramento do sujeito (personagem e leitor), do “si mesmo”, das ideias e de tudo que existe. É, também, um espaço-tempo processual em uma dialética de desenvolvimento e não de oposição.

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Especificamente no que tange ao conflito prazer versus pecado, o mangá apresenta personagens em situação de prazer sem castigos e poucas repressões verbais. Aliás, por DB se enquadrar como um mangá de comédia para garotos, as sequências com citações sexuais são frequentes. Essas imagens, são, em geral, protagonizadas por Bulma com as personagens mais velhas da trama. Como se observa na figura a seguir, o Mestre Kame pede que Bulma mostre sua calcinha, para que ele lhe dê uma esfera do dragão. Nesse quadrinho, o leitor perceberá que sai sangue do nariz do Mestre Kame, código que representa uma metáfora visual encontrada com frequência em mangás de diferentes autores e significa que a personagem está excitada.

Figura 28: Exemplo do uso da sexualidade

Fonte: Toriyama (2012, p. 70)63

A perspectiva de que o mundo não é uma divisão binária entre bem e mal, entre

63 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 4: A nuvem voadora do mestre Kame.

150 masculino e feminino, é interposta, também, pela dificuldade de Goku em compreender tanto as atitudes de malfeitores como a conduta de Bulma, de forma que a sequência de encerramento do primeiro capítulo da obra apresenta ao leitor a noção de que o protagonista não compreende o que são atitudes malignas – o que reforça, também, o funcionamento entre o anima e o animus de Goku. Por exemplo, depois que Bulma e Goku partem juntos em busca das esferas, logo após um tempo, a menina pede para parar, pois precisa urinar. Goku não entende o que ela quer dizer, visto que na visão da personagem não há porque fazer suas necessidades em um ambiente reservado, mas a menina se afasta. Quando Goku escuta Bulma gritar, sua primeira reação é imaginar que a menina foi picada por uma cobra, afinal a serpente é um animal elementar da floresta. Impossível não expor brevemente a visão de Bachelard no que tange os aspectos imaginários da serpente, porque, para o autor, a serpente é um dos arquétipos mais importantes do homem, justo por ser o mais terrestre dos animais (BACHELARD, 1971). Para o autor, a imagem da serpente tem uma flexibilidade no imaginário, capaz de contradizer a realidade mais evidente da condição física do animal. Se a serpente é o mais terreno dos animais na visão bachelardiana, a qual até o inocente Goku já associa à maldade, o leitor se surpreende ao encontrar Bulma sendo agarrada por um dinossauro e a inexplicável ausência de medo ou postura de luta de Goku, conforme se vê no quadrinho a seguir.

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Figura 29: O pedido de socorro de Bulma

Fonte: Toriyama (2012, p. 31)64

64 Coleção Dragon Ball, volume 1, capítulo 1: Bulma e Son Goku

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Sob a ótica de Son Goku, no nível do discurso patente, serpentes são um problema, mas dinossauros falantes comedores de carne humana não. Essa situação indica a latência que envolve a construção do mal (e do vilão) e exemplifica o dizer de Benedict (1972, p. 161) sobre a tendência japonesa de não conceber o mundo como um campo de batalha entre bem e mal. Mas isso não significa a inexistência de vilões na narrativa de DB ou em outros mangás. Essa forma de ver o mundo sugere, ainda, outra característica que permeia toda a história de Dragon Ball, que é a necessidade de explicar e justificar atos malignos com aspectos humanos ligados ao funcionamento do arquétipo do herói. Na sequência em análise, o dinossauro voador carnívoro explica ao leitor sua atitude de sequestrar Bulma, visto que fazia tempo que o animal não comia carne humana do sexo feminino. Ao largo da narrativa, esse padrão de explicação do vilão se repete, conforme se vê em outro exemplo na figura a seguir.

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Figura 30: O motivo da busca das esferas do dragão

Fonte: Toriyama (2012d, p. 155)65 Nessa página do mangá, o leitor descobre que o comandante do exército Forças

65 Coleção Dragon Ball, volume 8, capítulo 95: A morte do Comandante Red!

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Red Ribbon, o maior grupo terrorista do mundo, está buscando as esferas do Dragão não com o objetivo de dominar o mundo, mas sim para que o chefe possa ser mais alto — afinal, quem iria respeitar um ditador anão? Retomando o mito fundador de Izanami Izanagi, segue a cosmogenia que, parados no meio da Ponte Flutuante Ame No Ukihashi66, Izanagi sugeriu à sua companheira que eles deveriam tentar agitar a neblina. Com sua lança sagrada, presente dos deuses, empurrou-a para baixo e, em seguida, puxando-a para cima, examinou-a com cuidado. Percebeu que grandes gotas caíam de sua lança e que, quase de imediato, deram origem a uma terra firme. Encantados com o resultado, as duas divindades desceram rapidamente ao local e ali decidiram: iriam viver e empenhar-se em construir um país. Passando algum tempo, Izanami, a divindade feminina, exclamou: "Como é agradável viver ao lado de um jovem tão bonito!". Ao passo que Izanagi, a divindade masculina, respondeu: "Afortunado sou eu, por ter saído do céu ao lado de uma linda donzela!". Pouco depois, a deusa deu à luz um filho, mas o bebê veio ao mundo fraco e sem ossos. Desgostosos com ele, abandonaram-no em um rio, porém o mesmo aconteceu com o segundo filho. O casal subiu ao céu para perguntar às divindades as causas desses infortúnios, e, assim, foi-lhes dito: "É culpa da mulher. Não pode a mulher cortejar o homem primeiro, essa é a razão". Segundo expõe Armstrong (2005, p. 9), “o mito não é uma história que nos contam por contar. Ela mostra como devemos nos comportar”. Esse trecho merece atenção por estabelecer, através da narrativa mítica, os papéis e espaços distintos que homens e mulheres irão ocupar na sociedade japonesa ao largo do tempo. Para Eliade (1992, p. 194), Izanami é a representação da Terra, enquanto Izanagi é do Céu. É por isso, que quando a Terra pede o Céu em casamento, os filhos não nascem saudáveis, pois o “correto” seria o oposto: “é ao Céu — isto é, ao marido — que compete falar primeiro; a mulher limitar-se-á a repetir a fórmula. Aqui, fica claro o conflito das duas ideologias: matriarcal e patriarcal, e o triunfo da última” (ELIADE, 1992, p. 195). O autor expõe também que esse mito revela influências da filosofia taoísta, sendo que é possível perceber em Izanami a representação do yin e, em Izanagi, do yang (ELIADE, 1992, p. 194). Quando a ordem divina foi

66 Por curiosidade, as representações artísticas da Ponte Flutuante Ame No Ukihashi, assim como a interpretação de vários pesquisadores, vão identificá-la como sendo o arco-íris.

155 respeitada, quando Izanagi falou primeiro e Izanami respondeu, como haviam recomendado os deuses, nasceu a ilha de Awaji, em seguida, Shikoku, e então, a ilha de Oki, seguida de Kyushu, depois, a ilha de Tsushima, e, por último, Honshu – a maior ilha do arquipélago japonês. Para Sakurai (2014), é possível também traçar um paralelo entre o percurso histórico do Japão e o mito de criação presente na obra xintoísta. Assim, como as ilhas nasceram na versão mítica, “há de fato indícios de que o arquipélago japonês tenha sido criado” (SAKURAI, 2014, p. 55). A interpretação proposta pela autora, em relação à cosmogenia do Japão, é que havia um “céu”

[...] o território original, que poderíamos considerar a Ásia, e o Japão surge posteriormente. Os “filhos de Izanagi e Izanami”, ou seja, os primeiros habitantes das ilhas, teriam migrado da Ásia e se estabelecido no que seria posteriormente o território japonês. Essa fase corresponderia ao final da era glacial, quando partes das ilhas japonesas ainda estariam ligadas ao continente asiático. (SAKURAI, 2014, p. 55).

Se o mito é “antes de mais nada um guia de comportamento” (ARMSTRONG, 2005, p. 25), a ausência de um relacionamento amoroso entre Goku e Bulma poderia estar diretamente relacionada à latência do masculino de Bulma e o feminino de Goku. Entretanto, por sua construção explícita do conceito de homem e como manutenção da norma social “prescrita” de Izanami e Izanagi, o mangá apresenta, no encontro entre Goku e Chichi, o funcionamento do modelo patriarcal da sociedade japonesa. No capítulo 12 do mangá, Goku parte para encontrar o Mestre Kame, o único homem capaz de apagar o incêndio eterno que assola uma montanha. No caminho, Goku conhece Chichi, que também estava à procura do mestre. A menina, então, sobe na nuvem voadora de Goku e ambos seguem o trajeto. Já foi dito que o menino com rabo de macaco é livre de pensamentos negativos e que não há maldade em seu coração, e que apresenta dificuldades de reconhecer o sexo oposto. Seu desconhecimento sobre a diferença sexual faz com que a personagem não saiba reconhecer quando está à frente de uma pessoa do sexo feminino ou masculino. Para descobrir se é homem ou mulher, o protagonista precisa tocar nas partes íntimas das pessoas e, no caso de ausência de um “volume externo”, a personagem descobre que se trata de uma mulher. A latência desse discurso, em um modelo patriarcal, discorre, então, sobre a perspectiva de que, para ser forte e valente, será sempre impossível às mulheres.

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Ser mole e fraca (TORIYAMA, 2012, p. 15) é uma condição feminina. Assim, devido à ausência de um “volume externo”, ser forte é uma capacidade inalcançável por sua condição humana de mulher. Não obstante, a ação de Goku de tocar o corpo feminino, para quem já está inserido na sociedade, ciente dos costumes, hábitos e espaços sociais que ocupam os diferentes sexos, como é o caso de Chichi, ser tocada nas partes íntimas tem outros significados.

Figura 31: Goku e Chichi

Fonte: Toriyama (2012b, p. 18 e 19)67

Sob essa ótica, bastou Goku encostar em Chichi para que ela compreendesse seu papel como sua futura esposa. Nesse caso, não foi necessário falar. Ademais, depois dessa sequência, Chichi desaparece por completo da história até retornar misteriosamente para reivindicar seu papel de esposa. E o padrão se repete, depois de seu casamento, Chichi some novamente da narrativa e volta a aparecer em pequenos trechos, sempre desempenhando o papel secundário de esposa do protagonista.

67 Coleção Dragon Ball, volume 2, capítulo 12: Visitando o mestre Kame.

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5.4 UM DESEJO PARA CONTRADIZER A CONDIÇÃO HUMANA

Nos estudos da mitologia, a morte de divindades é um processo no qual “algo muito importante para a existência humana surge” (ELIADE, 1994, p. 91), de forma que a criação divina também se faz na morte. O Kojiki narra que era chegada a hora de dar à luz o deus do fogo, e um destino inesperado trilhou Izanami. A nova criança vinha ainda dentro do ventre da mãe a queimá-la por inteiro, e por mais estratégias que Izanagi tenha empreendido na tentativa de salvar sua amada, nada pôde fazer, e a jovem deusa veio a falecer. De seu corpo morto, nasceram outras inúmeras divindades, ligadas à terra, ao solo e aos vegetais. Desolado, o deus partiu ao mundo da morte na tentativa de buscar sua esposa, mas inúmeros obstáculos se opuseram e não foi possível resgatá-la. No caminho de volta, perseguido por criaturas das trevas, o deus foi salvo por três pêssegos e, em seu retorno, fechou a entrada do reino das trevas com uma rocha que nem dez mil homens conseguiriam levantar. De acordo com Eliade (2000, p. 196), a morte de Izanami a transformou na “deusa dos mortos, o que corresponde, de uma forma geral, à situação de todas as deusas ctónicas e agrícolas, que são ao mesmo tempo divindades da fecundidade e da morte, do nascimento e da reintegração no seio maternal”. A separação física entre o mundo dos vivos e dos mortos é, também, um exemplo do funcionamento do pensamento japonês: sua ideia de morte. Benedict explica que a mitologia xintoísta discorre sobre deuses, na existência de milhões de kami, mas não em vida após a morte. Reforça a autora que “os japoneses sempre se mostraram desinteressados das fantasias de uma vida futura” (BENEDICT, 1972, p. 201). O conceito japonês de morte, materializado na história mítica descrita no Kojiki, é percebido quando se analisa, por exemplo, o caso dos pilotos kamikazes68. Esse pensamento é identificável também quando se observa que, para a sociedade japonesa, a morte é a solução para todos os problemas — afinal, não há nada depois dela e “qualquer um, até o mais humilde agricultor, torna-se Buda69 quando

68 Pilotos japoneses, que, na Segunda Guerra Mundial, arremessavam seus aviões contra alvos inimigos em missões suicidas. 69 O termo “Buda”, nessa frase, refere-se à ideia de que qualquer pessoa, ao morrer, torna-se um ser iluminado, ou seja, um Buda.

158 morre” (BENEDICT, 1972, p. 201). Sob a perspectiva de que os mitos relacionados a deuses ou heróis que “descem às profundezas da terra, lutando contra monstros e atravessando labirintos trouxeram à luz os mecanismos da psique, mostrando às pessoas como lidar com suas crises íntimas” (ARMSTRONG, 2005, p. 15). Em Dragon Ball a condição mortal do sujeito comum surge em uma dialética complementar. Além disso, a morte é um recurso narrativo frequentemente encontrado em DB como solução de conflito. O sacrifício final das personagens se inspira no lema do samurai, o “dar tudo de si” para solucionar o conflito. Ao longo da história, o leitor acompanha a morte de algumas personagens, como é o caso do Mestre Kame e de Caos, cometendo suicídio na tentativa de derrotar o vilão Piccolo Daimaõ. No mangá, o funcionamento da morte disposto na matriz mítica é percebido em dois momentos: o primeiro, na relação entre Son Gohan e Goku, e o segundo, nos pedidos que o protagonista faz ao Deus Dragão. Se na narrativa mítica, Izanagi bloqueou a passagem entre o mundo dos mortos e os vivos com uma rocha que nem dez mil homens conseguiriam levantar, sair do mundo dos mortos somente é possível com o poder das esferas do Dragão e com algumas condições especiais. A passagem entre mortos e vivos é restrita a um poder inalcançável (de dez mil homens), mas, no mangá DB, Goku conectará esses mundos (e tantos outros). A primeira aparição de uma personagem morta no mangá acontece quando Goku e seus amigos enfrentam os guerreiros da Velha Vidente. A Velha Vidente é irmã do Mestre Kame, uma bruxa com poderes especiais, como a capacidade de encontrar qualquer objeto na terra e de trazer para o mundo dos vivos uma pessoa falecida há 24 horas. Nessa fase da narrativa, Goku está enfrentando os lutadores da vidente, para que, caso vença, ela lhe diga onde está uma das esferas do dragão. A batalha final deste conflito se dá entre Goku e um homem misterioso. A luta avança e o que o leitor vê de diferente no inimigo de Goku é uma auréola perto da cabeça. Após assumir a derrota, o lutador misterioso retira a máscara e descobre-se que a personagem é o avô falecido de Goku, Son Gohan. Quando descobre que o lutador é seu querido avô, Goku corre em sua direção para um abraço apertado. No capítulo de número 108 (volume 9, página 168), os dois conversam com ternura e, depois, emocionado, o avô se despede. Son Gohan retorna ao mundo dos mortos em paz, não há ódio ou remorso, mesmo sabendo que foi Goku que o matou – essa sequência dá outra

159 pista de que não se encontrará na figura do protagonista o papel do mártir. O que é necessário destacar neste trecho da história do mangá é que é a ligação de Goku com seus antepassados é capaz de quebrar a barreira da morte, já que ele é que motiva o retorno temporário de seu avô. A Velha Vidente é poderosa, o poder de trazer os mortos por 24 horas é forte, mas, no entanto, não rompe com a concretude da morte como condição humana. A personagem que volta está apenas de passagem, pois permanece morto. Para romper verdadeiramente com a rocha que separa os dois mundos, só com o poder do Deus Dragão e se o corpo estiver em condições e a morte não tiver ocorrido há mais de um ano. Já foi exposto que os desejos pedidos ao Deus Dragão pelos heróis são de atos corretivos, que visam corrigir uma situação causada pelo inimigo. Dessa forma, os dois desejos que Goku faz ao Deus Dragão durante todo o mangá de DB buscam reviver pessoas. No primeiro desejo, expresso por ele mesmo, Goku deseja reviver Bora, pai de seu amigo, morto pelo exército Forças Red Ribbon, e, no segundo, pede ao Deus Dragão que ressuscite todas as pessoas mortas pelo demônio Piccolo Daimaõ. Diante desta reflexão sobre a construção mítica da divisão entre vida e morte e as ações de Son Goku enquanto interlocutor desses mundos, é oportuno reforçar que a personagem não só é aquela que age para romper com a condição humana da morte, como também é a agente que conecta o mundo dos humanos aos entes sagrados. No transcorrer da narrativa, frente ao arco de Piccolo Daimaõ e, tendo que arcar com as consequências da atuação divina no plano terrestre, Son Goku se vê obrigado a subir aos céus, para seguir seu treinamento e proteger o mundo de uma nova ameaça. A conexão entre esses diferentes mundos se dá através do bastão de Son Goku — o bastão mágico, que o protagonista carrega consigo desde o primeiro capitulo, que fora presente de seu falecido avô e que pode atingir qualquer tamanho —, é o objeto que conecta a terra ao templo de Kamisama70. É o falo de Goku, seu animus em essência, que possibilita essa conexão. Diante da explicação de Aumont (2013, p. 80) de que a significação de uma

70 A personagem que atende sob o nome de Kamisama pode ser considerada uma figura próxima a Deus no sentido ocidental, e é entendida como “o deus supremo que rege o mundo”. (TORYAMA, 2012).

160 imagem se dá através do domínio da produção de sentidos já socializada, que é percebida por meio de “convenções que regem as relações interindividuais”, a materialidade da morte, em Dragon Ball, necessita de uma breve reflexão. Como se pode perceber na figura a seguir, em DB, como em muitos outros mangás, a experiência da morte é caracterizada pela perda da íris ou outros tipos de alterações no desenho do olho.

Figura 32: Exemplos de alteração do olho diante a morte

Fonte: Toriyama (2012)

Não obstante, a poética bachelardiana vai expor que o olho não é apenas uma habilidade inerente à condição orgânica do homem, mas é “o projetor de uma força humana” — é uma força que ilumina as luzes do mundo. Assim, a imagem do olho revela o “devaneio do olhar vivo, devaneio que se anima num orgulho de ver, de ver claro, de ver bem, de ver longe” — num orgulho de viver (BACHELARD, 1998, p. 176). Diante dessa reflexão, percebe-se em DB que o olhar se manifesta como um atestado de vida e, consequentemente, alterações na imagem do olhar são capazes de materializar a experiência da morte. Assim sendo, na literatura do mangá, é possível que o fenômeno da morte tenha, de comum acordo entre autores e leitores, instituído nas alterações do olhar uma forma de materializar o ato de morrer.

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Seguindo os devaneios de Bachelard (1998, p. 178), nos quais o mundo vive curiosamente de olhos sempre abertos, que não há nada no mundo que brilhe além do olhar e que “do universo que vê [ ...], a água oferece mil testemunhos”, retoma-se a narrativa de Izanagi, na qual olho, água e palavra transformam-se em entidades criadoras. De volta ao mundo dos vivos, continua o mito de Izanagi, o jovem deus chega a uma distante planície para purificar sua alma. Ao lavar seu olho esquerdo, Izanagi dá vida à deusa do sol, Amaterasu. Do seu olho direito, nasce o deus da lua, Tsukiyomi, e, por último, enquanto limpa seu nariz, o deus da tempestade Susano’o. Ao admirar seus novos filhos, diz: Tenho chegado ao fim. Minha herança divina são vocês. A Amaterasu, deixo-a para governar o céu brilhante. Para Tsukiyomi, deixo a tarefa de comandar a noite, e a Susano’o, deixo o controle do mar e das tempestades. Em sua obra Linguagem e mito, Cassirer (2006, p. 65) expõe que, nos relatos mitológicos de criação, “a Palavra aparece sempre unida ao mais alto Deus criador” capaz de fundamentar e instalar uma nova ordem. A Palavra, explica o autor, transforma-se em uma entidade mítica, que, imbuída de poderes, converte-se “numa espécie de arquipotência, onde radica todo o ser e todo o acontecer” (CASSIRER, 2006, p. 64), tal qual se observa no discurso final de Izanagi, que através da Palavra empodera seus filhos. A palavra, enquanto unidade mítica, pode ser vista em DB em diferentes níveis. Primeiro, no chamando do Deus Dragão. Não basta juntar as esferas do dragão, é preciso conhecer as palavras mágicas. Dessa forma, para invocar o sagrado, é preciso primeiro dominar a palavra. É a palavra que permite a realização dos ataques das personagens. O principal ataque de Goku, ensinado pelo Mestre Kame, sempre vem acompanhado do pronunciamento do nome da técnica, Kamehame-ha. E a força do golpe varia de acordo com a intensidade com que a personagem grita a sílaba final (ha). As grandes mitologias politeístas da Europa e da Ásia, oriundas das primeiras civilizações históricas, explica Eliade, revelaram um interesse maior pelos atos que se passaram após a Criação da Terra e dos homens, ou seja, a ênfase desses mitos discorre “sobre aquilo que aconteceu aos deuses, e não mais sobre aquilo que eles criaram” (ELIADE, 1994, p. 99). Em sincronia, Sakurai reflete que, da narrativa de Izanagi e Izanami para a de Amaterasu e Susano’o, “ocorre uma diferença na

162 apresentação e no modo de viver das duas gerações de deuses” (SAKURAI, 2014, p. 61). Para a autora, a primeira geração de deuses cria o território: primeiro o Mundo, que pode ser interpretado como a Ásia continental, e, depois de uma relação divina, o arquipélago do Japão. Os mitos que se seguem, então, narram como os filhos de Izanagi vivem, e os conflitos que se originam são resultado das diversas brigas entre os irmãos deuses. A mudança narrativa de DB também é visível e coincide com um processo de morte: o assassinato do melhor amigo de Goku, Kuririn. DB inicia- se como um mangá de comédia, que trabalha situações absurdas envoltas de lutas e torneios marciais, mas é a partir da introdução do arco do demônio Piccolo Daimaõ, que o mangá lentamente abandona o viés da comédia e passa se concentrar na ação e na aventura. A narrativa, em sua fase final, parte a desbravar como as personagens derrotaram o vilão. Nesse arco, que contempla do capítulo 135º até o 192º, o leitor vai acompanhar o treinamento final de Goku no céu e as tentativas humanas de derrotar Piccolo Daimaõ. Na cosmogonia, no entanto, nas histórias mitológicas da segunda geração de deuses, observa-se Amaterasu transformar-se numa linda jovem de cujo entorno irradiam raios luminosos, e Susano’o, em um jovem robusto que inveja o poder da irmã. Para Campbell, o fato de o sol estar manifestado como uma divindade feminina e não masculina é uma rara e

[...] preciosa reminiscência de um contexto mitológico arcaico, que já foi, aparentemente, difuso [ ...] permanecem traços em muitas terras, mas apenas no Japão encontramos a mitologia, grande no passado, ainda efetiva na civilização. (CAMPBELL, 2007, p. 131).

No transcorrer da narrativa, observa-se Amaterasu fiar e tecer, trabalhar em sua plantação de arroz, possuir armas (arcos e flechas) e servas. O conflito central desses mitos é a relação conturbada de Amaterasu com o irmão Susano’o — “aquele que cria problemas, que vem de fora, e que por coincidência, é a divindade ligada ao mar” (SAKURAI, 2014, p. 61). Isso posto, as ameaças dos que vêm do mar e de fora do contexto dos personagens são, também, frequentes na obra de DB e configuram-se como mais um vestígio da existência mítica de Dragon Ball. A primeira personagem a incomodar

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Goku, Kuririn, por exemplo, surge do mar, conforme revela a figura a seguir. Assim também foi o caso do Piccolo Daimaõ, que estava aprisionada em uma panela de arroz no fundo do mar.

Figura 33: O estranho que vem do mar

Fonte: Toriyama (2012c, p. 17)71

De acordo com Campbell (2007), um dos mitos mais importantes da tradição japonesa e que já datava de um tempo remoto quando foi incluído no Kojiki, refere- se à retirada da deusa Amaterasu de sua residência. A resolução desse mito relata a criação de dois dos três emblemas da família imperial usados até hoje. Discorre o Kojiki que, após mais uma confusão causada por Susano’o, Amaterasu, já sem paciência e chocada com o que virá, sai desesperada e tranca- se em uma caverna. O recolhimento de Amaterasu era um problema, já que a deusa é a divindade do sol e no tempo em que ficou na caverna, o mundo afundou na escuridão e kami inimagináveis causaram mortes e destruição. Oito milhões de deuses72 se reuniram na planície para convencer a deusa a sair da caverna. Depois de algumas tentativas frustradas, os deuses resolvem apelar para a vaidade feminina. Na porta da caverna, posicionam, rindo, entre as folhas de uma grande árvore, um espelho ornamentado com pedras preciosas. Curiosa, Amaterasu, pergunta: “Pensei que minha partida os deixaria triste. Por que motivos riem?”. E, assim, respondem os deuses: “Porque estamos felizes? É porque existe entre nós uma nova divindade mais bela que você”. Curiosa em conhecer a

71 Coleção Dragon Ball, volume 3, capítulo 1: Surge um rival (?)!! 72 Oito milhões é uma expressão japonesa que se refere a um número incontável, que tende ao infinito. Oito milhões pode ser entendido, então, como uma quantidade infinita de deuses.

164 nova rival, a jovem deusa sai da caverna, mas o que vê é, na verdade, seu próprio reflexo no espelho. Nesse momento, um dos deuses a pega pela mão, a conduz para a multidão de deuses e a presenteia com uma joia. No mesmo instante, outro deus coloca-se atrás da deusa, interditando a caverna com uma corda de palha (shimenawa) e lhe diz: “Não podes passar daqui”. Consoante Campbell (2007, p. 129), este mito conduz a uma explicação sobre a origem do ciclo dia e noite — “o sol agora pode recolher-se, por algum tempo, toda noite — tal como o faz a própria vida, em um revigorante sono; mas, graças à augusta shimenawa ele é impedido de desaparecer de modo permanente”. Entre os objetos presentes nesse mito, o espelho e a shimenawa merecem destaque. Sobre o espelho, Campbell explica que o objeto é uma não manifestação que “simboliza o mundo, o campo da imagem refletida. Nele, a divindade se compraz em olhar sua própria glória, e esse prazer é, em si mesmo, a indução ao ato da manifestação ou ‘criação’’’ (CAMPBELL, 2007, p. 129). De forma muito semelhante, o pensamento xintoísta o vê como “um símbolo abstrato capaz de refletir o espírito do Kami, mas não de representá-lo materialmente”. Mas, também, como um objeto valoroso, tal qual um tesouro, que, por sua forma brilhante e iluminada, reflete a imagem do Kami (YAMAKAGE, 2010, p. 44). Já a shimenawa, enfatiza Campbell, representa o milagre do retorno da luz e é, [...] um dos mais conspícuos, importantes e silenciosamente eloquentes símbolos tradicionais da religião folclórica do Japão. Estendida acima dos frontispícios dos templos, festejada pelas ruas quando do festival de Ano- Novo, ela denota a renovação do mundo no limiar do retorno. Se a cruz cristã é o símbolo mais revelador da passagem mitológica para o abismo da morte, a shimenawa é o indício mais simples da ressurreição. As duas representam o mistério da fronteira entre os mundos – a inexistente linha existente. (CAMPBELL, 2007, p. 130).

Figura 34: A Shimenawa marcando a entrada sagrada

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Fonte: Acervo fotográfico da autora

Algumas semelhanças entre essa narrativa e a diegese de Dragon Ball podem ser aprendidas. A primeira está na noção de dia e noite e a liberação dos desejos oprimidos da noite. Nessa perspectiva, Campbell aponta o período em que a deusa Amaterasu ficou recolhida como uma fase que remete ao carnaval, ao “mundo virado de cabeça para baixo pelo afastamento da divindade suprema, mas jubiloso pela renovação vindoura.” (CAMPBELL, 2007, p. 140). Visto dessa forma, assim como o recolhimento da deusa provocou nova ordem e trouxe a noite, em Dragon Ball, o aparecimento do Deus Dragão impõe a noite naquele universo ficcional. No escuro da noite, diante de um poder profano, quase todos os desejos podem ser realizados. Segue a narrativa mítica que, após a desavença com a irmã, Susano’o é expulso do céu. Na terra, casa-se com uma princesa e tem uma imensidão de filhos. Em uma de suas aventuras, mata um gigantesco dragão e de sua barriga retira uma espada, que usa para retornar ao céu e, finalmente, se reconciliar com a irmã. A espada oferecida por Susano’o, o espelho que tirou Amaterasu da caverna e a joia presenteada pelos deuses compõem até hoje as insígnias imperiais, e representam “o prestígio e o poder derivado da intimidade com a deusa” detidos pela família imperial japonesa (SAKURAI, 2014, p. 52). Não obstante o significado que possam ter para as tradições ocidentais, na mitologia japonesa, esses objetos representam respectivamente: valor, sabedoria e benevolência (SEGANFREDO, 2011). A espada, o espelho e a joia são mantidos em três lugares distintos no Japão. A espada fica em um templo dedicado à deusa na cidade de Nagoya; a joia é mantida no Palácio Imperial de Tóquio e o espelho está localizado no templo de Ise, que, na crença xintoísta, é o local mais sagrado do Japão e que, desde 690 d.C., é demolido e reconstruído a cada vinte anos para que se mantenha sua pureza. Ademais, em toda a narrativa de Dragon Ball, Goku está em deslocamento. O deslocamento do protagonista inicia no primeiro capítulo e transcorre até o último, quando retorna ao lar, depois de ter salvo o mundo algumas vezes. O motivo do retorno ao ponto de partida da história é o matrimônio. Goku, por fim, adulto e casado, retoma a vida na casa em que morava na infância com sua avó, em uma ação exemplar da jornada do herói e do mito do eterno retorno.

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6 DO MITO AO MANGÁ E DO MANGÁ AO MITO OU CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ciente da proposição de Durand (1998, p. 134), segundo a qual, conforme a análise da mitocrítica se enriquece, mais se complica também, pelo acúmulo de camadas, tornou-se complexo escrever as considerações finais deste estudo. Discorrer sobre um corpus de quantidade significativa, imerso a uma revisão historiográfica ampla, que remete a mais de mil anos, revelou-se como o desafio final. Diante disso, as considerações finais foram divididas em duas partes. Primeiro, trata-se de apontamentos sobre um novo edificar-se japonês através de uma analogia dos três tesouros sagrados da mitologia japonesa: a espada de Susano’o, o espelho que tirou Amaterasu da caverna e a joia presenteada pelos deuses. Assim, para que se possa enxergar os rumos para onde aponta o novo edificar-se

167 japonês (continuamente em processo e em transformação), é necessário versar, primeiro, sobre os “três tesouros” que constituem o complexo sistema nipônico e que são os elementos balizadores para as considerações finais deste estudo. O primeiro “emblema” refere-se à coexistência de opostos. O senso comum mostra o Japão democrático (pós-1945), como uma nação onde tradição e modernidade coexistem. Não obstante é preciso compreender que tradição não corresponde literalmente às ações japonesas antes da chegada do Ocidente, como a ideia de modernidade não é apenas a adição do novo, mas também a adaptação de tudo aquilo que é estrangeiro aos japoneses (SAKURAI, 2014, p. 204). A principal questão para a construção de um novo significar, na visão de Sakurai (2014), trata essencialmente da relação proporcional entre um e outro – a tradição e a modernidade. Na atualidade, em especial no campo das manifestações culturais, é fácil encontrar essa relação dialética. De um lado, um complexo conjunto de representações artísticas milenares, como o ikebana, o origami, as técnicas artesanais de bonecas, as danças, a cerimônia do chá e a gastronomia; por outro, os desenhos animados, as histórias em quadrinhos, filmes, videogames, moda e a música. Sato (2007, p. 11) resume de forma sintomática essa simbiose, quando afirma que as diferenças e semelhanças entre o Japão tradicional e o moderno são as mesmas entre o riquixá e o trem-bala: “os dois são meios de transporte, mas de resto não têm nada em comum”. Nesse cenário, já virou clichê discorrer que no Japão o contraste é a regra. O título do livro de Ruth Benedict (1972), O crisântemo e a espada, reforça a dialética do “espírito japonês”: em um extremo, a aguçada sensibilidade, materializada pelo crisântemo, a flor nacional japonesa; no outro oposto, a katana do samurai73, afiada e inflexível, que em certas circunstâncias revela-se suicida. A capacidade de oscilar entre posições extremas, não é uma “novidade” que se instalou com a abertura dos portos ou com a derrota da Segunda Guerra Mundial, a partir de quando opostos como “tradição” e “modernidade” passaram a coexistir. No caso japonês, a imanência dos opostos manifesta-se já nos registros mitológicos, está em Izanami, que é ao mesmo tempo a deusa da “fecundidade e da morte, do nascimento e da reintegração no seio maternal” (ELIADE, 2000, p. 196); está em

73 A katana (leia-se catana ou cataná) é a espada japonesa de estilo longo, usada essencialmente pelos samurais.

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Izagani, que é o oposto complementar de Izanami, mas não obstante revela-se também no imperador japonês, que é, ao mesmo tempo, o possuidor da Palavra que levanta e que abaixa as armas da nação. Resguardadas as devidas particularidades, Campbell (2012, p. 25) endossa essa reflexão quando expõe que “quando você adentra nos edifícios, então o Japão está de volta. Só o exterior é que se parece com Nova Iorque”. O segundo “emblema” é a tendência japonesa de operar sincronicamente com o silêncio e o silenciamento. Nessa visão, Lévi-Strauss (2012) ensina que uma das maiores diferenças entre o pensamento Ocidental e o Oriental está na recusa do Eu e na recusa do discurso. No pensamento oriental, explica o autor, seja sob a doutrina hinduísta, budista, taoísta ou xintoísta, encontra-se constantemente a recusa do sujeito. Nessas crenças, expõe, a vida humana é vista como uma construção provisória, impermanente e desprovida de qualquer “elemento durável tal como um ‘si’: a aparência vã, fadada inelutavelmente a se dissolver” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 34). Para o autor, o Japão

[...] não empresta ao sujeito uma importância àquela que lhe atribui o Ocidente; não faz dele o ponto de partida obrigatório de toda a reflexão filosófica, de toda a empreitada de reconstrução do mundo pelo pensamento. Pode-se mesmo dizer que o “Penso, logo existo” de Descartes é rigorosamente intraduzível em japonês. (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 35).

Nesse sentido, reside neste complexo quadro axiológico, algumas pistas possíveis que impuseram ao sujeito histórico japonês um longo período de silenciamento. No campo do discurso, Lévi-Strauss (2012, p. 34) discorre que, no Oriente “todo o discurso é irremediavelmente inadequado ao real”. Yamakage reforça a afirmação de Lévi-Strauss quando explica que a maioria dos “japoneses geralmente não acreditam muito em palavras”, e tendem a considerar que é errado aceitar a linguagem humana como absoluta (YAMAKAGE, 2010, p. 39). Por essa razão, destaca o autor, o xintoísmo, “não se aprofunda em discussões verbais, o que na verdade é colocar a linguagem em um pedestal, como se as palavras fossem, por si só, absolutas” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 39). De forma oposta, o “Ocidente crê que o homem tem a faculdade de apreender o mundo utilizando a linguagem a

169 serviço da razão: um discurso bem construído coincide com o real” (LÉVI- STRAUSS, 2012, p. 34). No Japão, a recusa ao discurso manifesta-se de uma forma mais seletiva — nem uma visão totalmente ocidental, nem uma posição tão oriental, uma construção efetivamente japonesa. Esclarece Lévi-Strauss (2012, p. 36), que o país operou uma transformação completa do sistema de pensamento vindo do Ocidente no início do século XX, “peneirando” o que julgava importante: manteve a negação do discurso no que tange ao Eu e “se alinhou decididamente ao partido do conhecimento científico; e aí ocupou até mesmo um lugar de primeiro lugar”. A tendência à recusa do Eu e do discurso possibilita compreender a sociedade japonesa através de uma perspectiva de silenciamento, que pelas fissuras revela “um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-dito” (ORLANDI, 1997, p. 11). De forma complementar, no que tange a recusa ao discurso, percebe- se que “há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido” (ORLANDI, 1997, p. 12). Pensando nessa ordem, se a recusa do Eu “liga o não-dizer à história e à ideologia”, a do discurso dispensa o “silêncio do sentido ‘passivo’ e ‘negativo’ que lhe foi atribuído nas formas sociais da nossa cultura” ocidental (ORLANDI, 1997, p. 12). Essa imanência entre silêncio e silenciamento, que perpassa desde o reino de Yamato até a contemporaneidade, transforma o Japão em um campo inexplorado para o estudo do silêncio e do movimento dos sentidos. Nesse movimento de sentidos silenciados, encontra-se um Japão diferente. Com uma ideia particular de “razão” (novamente, nem tanto ocidental e tampouco oriental). O Japão anunciou em setembro de 2015 que, o então ministro da Educação Hakuban Shimomura, recomendou as universidades de todo o país que fechem ou reduzam os cursos ligados às ciências humanas e sociais e que invistam nas áreas “que contemplem as necessidades da sociedade”. Os estudiosos apontam que esta normativa é consequência do que o primeiro-ministro Shinzo Abe chamou de "educação mais prática profissional, que melhor se antecipa às necessidades da 74 sociedade" . A busca por uma vida baseada na razão traz outras consequências sociais.

74Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2016.

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A Constituição do país, aprovada no pós-guerra, liberou o “casamento por amor”, o que criou o que a imprensa e os estudiosos têm chamado de “síndrome do celibato”. Na contemporaneidade, os japoneses preferem investir na carreira a casar ou ter um relacionamento. Mais de um terço da população não teve nenhum relacionamento amoroso até os 34 anos e, em 2012, a taxa de natalidade foi a menor registrada no país – nas farmácias, as fraldas geriátricas vendem mais que as de bebes75. O Eu que recusa um “nós familiar” tornou-se um problema grave: se os números não mudarem, em 50 anos, o país terá quase 40 milhões de habitantes a menos, e não há como calcular os efeitos colaterais que disso decorrem quer no âmbito social quer no econômico. Por fim, o último “emblema” tange a capacidade de “se recriar” – entendida como uma capacidade de elaborar constantes ressignificações. A analogia de Sato (2007) em relação ao sistema de transporte talvez seja uma boa metáfora para explicar o processo de ressignificação por que a nação passou em apenas 110 anos.

Se, em 1854, os japoneses se viram sem condições de reagir à força militar estrangeira e, como consolo, receberam de “presente” o primeiro exemplar de um trem, em 1964, apresentaram ao mundo a tecnologia do Shinkansen, inaugurando uma nova era no transporte sobre trilhos76. Essa capacidade de apropriar-se de elementos estrangeiros e ressignificá-los, que já foi amplamente evidenciada, aponta para uma nação altamente resiliente — sendo resiliência compreendida como a força de um grupo em lidar com infortúnios, superar obstáculos ou resistir à pressão de situações externas. Os japoneses avançam, explica Bath (1993), pelo seu principal capital social: a força de trabalho. Para o autor, “eles vencem pela aplicação metódica ao trabalho, pela seriedade e dedicação”, a despeito das “condições difíceis da sua terra, onde os terremotos e incêndios apenas dramatizam as dificuldades cotidianas causadas pela superpopulação” (BATH, 1993, p. 53). Pensando nessa perspectiva, a capacidade de resiliência, articulada ao silêncio e ao silenciamento prolongado do sujeito, e a coexistência de opostos através de um

75Disponível em: . Acesso em: 15 fev. 2016. 76 A linha original percorria 515 quilômetros em 2h56min, conectando Tóquio a Osaka. Hoje, a velocidade máxima é de 270 km/h, e o tempo de viagem é de 2h25min, 14 trens viajam por hora em cada direção dentro da linha e a média de atrasos varia entre 60 segundos a 1 minuto. Diante disso, é importante destacar que nenhum acidente fatal jamais ocorreu em decorrência de colisões ou descarrilamentos desde o início de suas operações.

171 percurso histórico que perpassa mais de 30 mil anos, constituem-se os conceitos- chave – os três tesouros sagrados -, para um maior entendimento da sociedade nipônica enquanto nação milenar. Nesse contexto de transformação, em que resiliência, silenciamento e coexistência de opostos são as palavras-chave, para entender o processo de transformação por que o Japão passou, por diferentes motivos, os mangás acabaram se tornando um espaço privilegiado para a enunciação das angústias sociais. Visto dessa forma, as narrativas míticas, capazes de reanimar o ser japonês, de estabelecer novos paradigmas de funcionamento, foram repaginadas e embutidas em incontáveis páginas de histórias em quadrinhos. Assim, para dar conta de uma profunda transformação social, o mito, também transformado, ressurge potencializado. O Japão já vinha recebendo ondas de influências do Ocidente há aproximadamente um século, desde a chegada dos “navios-negros” em 1854. Mas o tsunami, que se deu após agosto de 1945, modificou por completo o sistema. Se o povo japonês das gerações da era Meiji até o fim da Segunda Guerra Mundial foi doutrinado sob a identidade japonesa da origem mítica, da superioridade racial e da invencibilidade do espírito samurai; em 1945, os japoneses se viram completamente derrotados, com seu imperador negando sua descendência divina, sem o controle do seu território e com sua herança guerreira proibida. Não obstante, apenas duas décadas depois, o mesmo povo, já habituado a uma vida de miséria e sacrifício, se viu inserido em um universo de consumo e prosperidade financeira. A amplitude dessas mudanças proporcionou a necessidade de uma ressignificação nacional — e é aqui que o mito manifesta sua arquipotência atemporal. Se o mito conta uma história sagrada por princípio em um tempo fabuloso, a inserção (consciente ou não) do sistema mítico nas narrativas contemporâneas corroborou para que o Japão, mais uma vez, se tornasse um “estado moderno” sem abandonar suas estruturas milenares de funcionamento. No contexto japonês contemporâneo, o mito migrou da oralidade e dos textos sagrados para os produtos culturais de rápido consumo da comunicação em massa, como é o caso das histórias em quadrinhos, dos desenhos animados e dos jogos eletrônicos. Nesses “mitos modernos”, materializados em fenômenos distintos passíveis de existência graças ao avanço da tecnologia, foi possível construir novas narrativas com base em pedaços de diversos mitos ancestrais. O Japão, país derrotado, fez um feito improvável: através dos mais de 1 bilhão de histórias em quadrinhos, dos

172 jogos para videogames e de uma infinidade de horas de desenhos animados, passou a propagar para fora do arquipélago suas estruturas míticas repaginadas e atualizadas. Pensando nessa ordem, o Japão “corrigiu” seus mitos, atualizou seus mitemas, suas lições, disfarçou inquietações históricas e incorporou estruturas do pensamento ocidental para apresentar, em especial através do mangá, seus mitos modernos, com enxertos de sexualidade, aos jovens de todo mundo. É nessa perspectiva que se entende a obra de Akira Toriyama, Dragon Ball, como um fenômeno que foi e é capaz de reviver tanto as glorias do passado mitológico como as conquistas do passado historiográfico, confirmando, assim, a hipótese deste trabalho.No âmbito da diegese do mangá Dragon Ball, as semelhanças encontradas na análise entre os mitos fundadores e o processo histórico permitem considerar a existência de importantes semelhanças entre Goku, Bulma e os Entes mitológicos. É possível observar, nas personagens principais, o mesmo trajeto de Izanami e Izanagi. Em Bulma, as semelhanças com a deusa Izanami são visíveis na motivação e na forma de atuação de ambas. Em Goku, o protagonista, as situações que dialogam tanto com os mitos fundadores como com o percurso historiográfico são extremamente significativas. Ciente da consideração de Durand (1998), na qual o mito se repete, impregna e persuade, a narrativa de DB apresenta uma estrutura circular, de temas e eventos que se repetem e impregnam no leitor o desejo pela busca das esferas do Dragão. A presença da repetição e da redundância, entre os trajetos míticos e o mangá, leva a crer que há em DB a reconstrução e a atualização da matriz mítica japonesa. No que tange aos mitos presentes, no segundo rolo do Registros sobre Assuntos, por exemplo, observa-se o imperador mitológico, Jimmum, percorrer por um vasto e desconhecido território, libertando povoados de diferentes ameaças e, consequentemente, reunindo sob seu comando diferentes clãs. De forma sincrônica, em Dragon Ball, o leitor acompanha Son Goku em trajetória semelhante. Ao aceitar o convite de Bulma e partir em busca das esferas do Dragão, Goku vai desbravando territórios desconhecidos, libertando diferentes povoados de sujeitos dominadores e transformando inimigos em companheiros de jornada. A seleção de imagens a seguir revela diferentes povoados libertados e locais pelos quais o protagonista passa ao longo da narrativa.

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Figura 35: Son Goku liberta diferentes locais

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Fonte: Toriyama (2012)

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A escolha dessas imagens não foi aleatória, pois revelam, através das ilustrações, dos figurinos e do clima, diferentes terrenos e comunidades. De forma latente, Goku percorre comunidades que remetem a diferentes países do globo terrestre, tal qual o exército japonês da Segunda Guerra Mundial planejava. Isso, claro, não é dito na narrativa do mangá, mas as imagens — que, sabe-se, não são criadas de forma aleatória e têm sempre um objetivo — trazem elementos que fazem o leitor reconhecer países específicos. Durante sua trajetória, Son Goku liberta essas comunidades que se encontravam ocupadas ou ameaçadas por forças militares. Em uma estrutura de redundâncias e repetições, Son Goku chega a um destino novo, após algum mal- entendido com um habitante oprimido, toma conhecimento da situação, avança para a solução do conflito — sem necessariamente construir um plano de ataque — e derrota o inimigo. Este paradigma de funcionamento é passível de observação em diversos capítulos da obra — e é neste ponto que o mito se manifesta e revela sua liberdade redentora. É a narrativa mítica que salva, que liberta, de forma que, visto dessa forma, Goku mostra a supremacia japonesa ao mundo, copia os feitos do primeiro imperador, executa o desejo dos japoneses do início do século e faz o Eixo avançar! Este ponto de confluência entre mito, História e criação contemporânea reforça a confirmação da hipótese deste estudo. Ademais, na maioria das sagas, ao fim do conflito entre Son Goku e seu inimigo, o protagonista ainda consegue transformar o opressor em companheiro e admirador — o que reforça o papel mítico da personagem. Assim, Son Goku repete as façanhas do imperador mitológico Jimmum, que conquistou todo o arquipélago e transformou-se no primeiro imperador do Japão, sendo admirado por todos seus súditos. Essas semelhanças entre o fluxo da narrativa de Jimmum e a obra Dragon Ball apresentam mais pistas de que o mangá tem potencial para constituir-se como uma narrativa mítica, e isso se dá, em especial, pela forma de funcionamento do mito. Sob a ideia de que o mito se constitui na História dos atos dos Entes Sobrenaturais e que essa narrativa é sagrada e absolutamente verdadeira, porque se refere a possíveis realidades, o leitor que parte com Goku passa, por meio da leitura, a viver os mitos dos quais o protagonista revive. Assim, o sujeito, mais do que conhecer o mito, passa a reconhecer o início das coisas: da história, da nação japonesa, dos desejos oprimidos e das angústias pulsantes. Seguindo a perspectiva de Eliade, o sujeito leitor passa a conhecer o mito,

176 mas não é um conhecimento “externo” ou “abstrato”, é um conhecimento especial, mítico, um conhecer que é vivido ritualmente, que possui cerimonial, que se presta a uma justificação do ser. Dessa forma, ao apreciar o mangá, o leitor vive o mito, e esse viver se dá no “sentido de que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos rememorados ou reatualizados” (ELIADE, 1994, p. 30). Se o devaneio lhe for permitido, o sujeito leitor revive tanto as glórias da origem mítica do Japão como parte com Goku e Bulma à caça das esferas do dragão. A aventura, que se perpetuou por mais de 10 anos e que fez o sujeito leitor amadurecer na concretude da vida, não difere da narrativa de Jimmum, que conquistou o território japonês, e das histórias dos deuses, da criação dos tesouros mitológicos e das esferas do dragão. No mangá, Goku e Bulma partem em uma aventura pela caça das esferas do Dragão, revivendo, assim, a trajetória mítica de diferentes deuses japoneses. Nessa viagem, parte também o leitor, que, através da leitura da obra, revive as glórias do passado mitológico. Assim, seja na trajetória mítica seja na ficcional, pelo trânsito da leitura, é possível viver a áurea mítica. Pensando nessa ordem é que se devem entender os pontos de confluência entre a mitologia japonesa e a obra de Dragon Ball como um reviver e uma atualização dos mitos fundadores. Ademais, se, sob a ótica da poética bachelardiana, estudos com foco no imaginário podem conduzir a identificação dos princípios oníricos de alguns mitos e se essas narrativas se transmitem tão facilmente, é porque florescem no terreno dos sonhos (BACHELARD, 1998). O mito atualizado, então, passa a ser vivido nas páginas agitadas do leitor. Dessa forma, Goku e Bulma transportam ecos de um tempo prodigioso, são forças que fazem a história avançar, elementos de uma única alma, capazes de expressar a dualidade do sujeito. Ou seja, de materializar o arquétipo mítico japonês e, assim, transpor imagens adormecidas para uma nova realidade.

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