João Paulo Vicente Prilla

Arquiteturas do submundo: o mundo dos mortos do mangá Cavaleiros do Zodíaco à sombra do Inferno dantesco

Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em Literatura.

Orientadora: Profa. Silvana de Gaspari, Dra.

Ilha de Santa Catarina 2020 Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Prilla, João Paulo Vicente Arquiteturas do Submundo : O mundo dos mortos do mangá Cavaleiros do Zodíaco à sombra do Inferno dantesco / João Paulo Vicente Prilla ; orientadora, Silvana de Gaspari, 2020. 178 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Programa de Pós Graduação em Literatura, Florianópolis, 2020.

Inclui referências.

1. Literatura. 2. Inferno. 3. Cavaleiros do Zodíaco. 4. Divina Comédia. I. de Gaspari, Silvana. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Literatura. III. Título.

João Paulo Vicente Prilla Arquiteturas do submundo: o mundo dos mortos do mangá Cavaleiros do Zodíaco à sombra do Inferno dantesco

O presente trabalho em nível de Mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Silvana de Gaspari, Dra. Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Gilles Jean Abes, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Sergio Romanelli, Dr. Universidade Federal de Santa Catarina

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em Literatura.

______Prof. Carlos Eduardo Schmidt Capela, Dr. Coordenador do Programa de Pós-Graduação

______Profa. Silvana de Gaspari, Dra. Orientadora

Ilha de Santa Catarina, 2020.

Para minha mãe, Mercedes (in memoriam), que ao me ensinar as orações acabou me apresentando as primeiras descrições do Inferno, do Purgatório e do Paraíso.

AGRADECIMENTOS

A Deus, ao Universo, às Estrelas, à Natureza, ao Mundo, ao Tempo. Pela Vida, pelo Mistério, pelos Encontros, pela Perfeição, pelas Experiências, pela Sabedoria, respectivamente.

À Profa. Silvana de Gaspari, pela confiança e por me orientar pelas veredas acadêmicas.

Aos professores Gilles Abes e Sergio Romanelli, pela partilha e pela contribuição generosa no exame de qualificação e na defesa.

Às minhas irmãs, Ana Paula e Margarida, pelo amor, incentivo e apoio, e por serem presença, mesmo com a distância.

Aos sobrinhos, Magali, David e Margiori, por manterem viva a minha criança interior.

À minha tia e madrinha Ana, pela inspiração primeira que, desde a infância, despertou em mim a vontade de ser professor.

Ao Gui a à Neusa, pelo amor, convívio, zelo e um sem-fim de agradecimentos.

Ao Barnabé, Joaquim e Sushi, pela companhia, pelo amor e por me tornarem mais humano.

Às amigas Lara e Maria Helena, pelas conversas regadas a muito café, pelo carinho e pelas trocas de conhecimentos e experiências.

Aos meus estudantes, de agora e de outrora, por me apresentarem novos mangás, por me atualizarem no universo da cultura pop e pelas discussões calorosas sobre Cavaleiros do Zodíaco.

A Dante Alighieri, por nos legar uma das maiores obras literárias de todos os tempos.

A Masami Kurumada, por alimentar sonhos e despertar cosmos. Por Seiya, Shiryu, Shun, Hyoga e Ikki.

Aos escritores, artesãos da Palavra, pelas viagens; aos demais artistas, pela Magia.

RESUMO

Esta dissertação teve como objetivo analisar, comparativa e intertextualmente, o Inferno representado na Saga de Hades do mangá Cavaleiros do Zodíaco, de Masami Kurumada, à sombra, isto é, a partir do Inferno arquitetado por Dante Alighieri para sua Divina Comédia. A relevância social e acadêmica deste estudo encontra sua justificativa no fato de que a representação do Inferno é complexa e rica no que diz respeito à sua iconografia, bem como às suas descrições, narrativas e simbologias. Seja na religião, na cultura e em diferentes esferas da atividade artística – como na Literatura e nas Histórias em Quadrinhos –, a paisagem do Inferno e seus respectivos habitantes constitui um tema que continua despertando o fascínio e o interesse do ser humano. Para mais, a emergência das pesquisas acadêmicas envolvendo HQs, sobretudo mangás, além do reconhecimento destas como arte que goza de uma linguagem autônoma (CIRNE, 1974, 1975; ACEVEDO, 1990; ECO, 1993; EISNER, 2001; RAMOS, 2010), são relativamente recentes, inclusive nos estudos linguísticos e literários. Orientada pelo quadro teórico da Literatura Comparada (BRUNEL et al., 1990; ALDRIDGE, 1994; POSNETT, 1994; REMAK, 1994; MACHADO; PAGEAUX, 2001; CARVALHAL, 2007) e das Histórias em Quadrinhos (VERGUEIRO, 1985; 2006; RAMOS, 2010) – especificamente os mangás (MOLINÉ, 2004; GRAVETT, 2006; LUYTEN, 2011) – a análise buscou averiguar como e em que medida o poema do autor italiano influenciou a arquitetura do Inferno desenhado na referida HQ. Após a análise das duas obras, constatou-se que a arquitetura do Inferno de Cavaleiros do Zodíaco foi toda estruturada a partir do Inferno que Dante concebeu para a Divina Comédia, descartando-se a possibilidade de que as escolhas de Kurumada seriam meras coincidências. Nesse sentido, presume-se que Kurumada tenha sido leitor ou ao menos conhecia a obra- prima de Dante, apropriando-se de elementos do Inferno elaborado pelo poeta, a fim de projetar o seu, procedendo à escrita do roteiro e ilustração da Saga de Hades. Também se buscou elucidar o porquê ou o que levou Kurumada a escolher o Inferno do poema dantesco para embasar a arquitetura do seu, quando poderia ter utilizado outras referências – como, por exemplo, a mitologia grega –, ou optado pela criação de uma paisagem original.

Palavras-chave: Inferno. Cavaleiros do Zodíaco. Divina Comédia.

ABSTRACT

This dissertation aims to be a comparative and intertextual analysis of the Hell depicted in the Hades Saga in the series : Knights of the Zodiac, by Masami Kurumada, taking into consideration the Hell described by Dante Alighieri in the Divine Comedy. The social and academic relevance of this study is justified by the fact that when it comes to its iconography, descriptions, narratives, and symbology, the depiction of Hell is rich and complex. Whether in religion, culture, or different spheres of artistic activity as in Literature and comic books Hell’s landscape and its inhabitants represent a theme that fascinates and sparks the interest of human beings. Furthermore, the emergence of academic─ research focusing on comics─ books, and manga especially, is relatively recent even in Linguistic and Literary Studies. The same applies to the recognition of these media as forms of art with an autonomous language (CIRNE, 1974, 1975; ACEVEDO, 1990; ECO, 1993; EISNER, 2001; RAMOS, 2010). Guided by the theoretical framework of Comparative Literature (BRUNEL et al., 1990; ALDRIDGE, 1994; POSNETT, 1994; REMAK, 1994; MACHADO; PAGEAUX, 2001; CARVALHAL, 2007) and comic books (VERGUEIRO, 1985; 2006; RAMOS, 2010), specifically manga (MOLINÉ, 2004; GRAVETT, 2006; LUYTEN, 2011), the analysis sought to ascertain how and to what extent the poem by the Italian author influenced the architecture of Hell depicted in the manga. Following the analysis of both works, I was able to determine that the architecture of Hell in Saint Seiya: Knights of the Zodiac was entirely built from the Hell designed by Dante for the Divine Comedy, dismissing the possibility that Kurumada's choices could be simple coincidences. In that respect, I propose that Kurumada was a reader or at least knew Dante's masterpiece, and he embodied elements of the Hell created by the poet in order to project his own when scripting and sketching the Hades Saga. Finally, this analysis also sought to throw light on why or what led Kurumada to choose Dantes’ Hell as the foundation for the architecture of his own when he could have picked other references, such as Greek mythology, or even chosen to design an original landscape.

Keywords: Hell. Saint Seiya: Knights of the Zodiac. Divine Comedy.

SOMMARIO

Questa laurea magistrale cerca di analizzare, in modo comparativo e intertestuale, l'Inferno rappresentato nella Saga di Hades del manga I Cavalieri dello Zodiaco, di Masami Kurumada in comparazione a quell’ Inferno progettato da Dante Alighieri nella sua Divina Commedia. L’importanza sociale e accademica di questo studio trova la propria giustificazione nel fatto che la rappresentazione dell’Inferno è complessa e ricca in ciò che riguarda alla sua iconografia, così come alle sue descrizioni, alle sue narrative e alle sue simbologie. Sia nella religione, sia nella cultura, sia in differenti sfere dell’attività artistica – come nella Letteratura e nelle Storie a Fumetti –, il paesaggio dell’Inferno e dei suoi rispettivi abitanti costituiscono un tema che continua a risvegliare il fascino e l’interesse dell’essere umano. Per di più l’emergenza delle ricerche accademiche che coinvolgono i fumetti, specialmente i manga giapponesi, oltre al riconoscimento di questi come arte che gode di un linguaggio autonomo (CIRNE, 1974, 1975; ACEVEDO, 1990; ECO, 1993; EISNER, 2001; RAMOS, 2010), sono relativamente recenti, allo stesso modo negli studi linguistici e letterari. Guidata dal quadro teorico della letteratura comparata (BRUNEL et al., 1990; ALDRIDGE, 1994; POSNETT, 1994; REMAK, 1994; MACHADO; PAGEAUX, 2001; CARVALHAL, 2007) e dei Fumetti (VERGUEIRO, 1985; 2006; RAMOS, 2010) – in particolare dei (MOLINÉ, 2004; GRAVETT, 2006; LUYTEN, 2011) – l'analisi ha provato di accertare come e in che misura la poesia dell'autore italiano abbia influenzato l'architettura dell'inferno disegnata in quel fumetto. Fatta l’analisi di entrambe le opere, si è constatato che l’architettura dell’Inferno de I Cavalieri dello Zodiaco è stata strutturata a partire dall’Inferno che Dante ha concepito per la Divina Commedia, scartando così la possibilità che le scelte di Kurumada siano state mere coincidenze. In questo senso si presume che Kurumuda sia stato lettore o per lo meno conosceva il capolavoro di Dante, appropriandosi in questo modo degli elementi dell’Inferno elaborato dal poeta per poter progettare il proprio e quindi procedendo alla stesura della sceneggiatura e all’illustrazione della Saga di Hades. Si è inoltre cercato di elucidare il perché o che cosa ha portato Kurumada a scegliere l’Inferno del poema dantesco per supportare l’architettura del proprio, quando avrebbe potuto utilizzare altri riferimenti – come, ad esempio, la mitologia greca -, o avrebbe potuto optare per la creazione di un paesaggio originale.

Parole chiave: L´Inferno. I Cavalieri dello Zodiaco. La Divina Commedia.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Arte rupestre da caverna Chauvet ...... Erro! Indicador não definido. Figura 2 – Vitrais da Catedral de Chartres ...... 33 Figura 3 – Adaptação da Divina Comédia para uma HQ ...... 36 Figura 4 – Trecho da graphic novel Vidas Secas ...... 37 Figura 5 – Golden Hall ...... 40 Figura 6 – Complexo de templos budistas Horyuji ...... 40 Figura 7 – Chojugiga ...... 41 Figura 8 – Gravura zenga ...... 43 Figura 9 – Gravura ôtsu-e ...... 44 Figura 10 – Arte nanban ...... 45 Figura 11 – Gravura ukiyo-e ...... 45 Figura 12 – Fragmento de Shin Takarajima ...... 51 Figura 13 – Betty Boop ...... 52 Figura 14 – Safiri ...... 52 Figura 15 – Hinotori ...... 53 Figura 16 – Página de Kozure Ōkami ...... 55 Figura 17 – Exemplo de ligações de momento a momento ...... 59 Figura 18 – Esquema explicativo de como ler um mangá ...... 61 Figura 19 – Os cinco cavaleiros de bronze ...... 72 Figura 20 – Retrato de Dante ...... 78 Figura 21 – Primeiro encontro de Dante e Beatriz ...... 80 Figura 22 – Retrato presumido de Beatriz Portinari ...... 81 Figura 23 – Panorama do Inferno de Hades ...... 117 Figura 24 – Distribuição dos três reinos dantescos a partir do globo terrestre ...... 118 Figura 25 – O Castelo de Hades ...... 119 Figura 26 – O Castelo de Neuschwanstein ...... 120 Figura 27 – Cúpula do Castelo de Hades ...... 121 Figura 28 – Les Limbes ...... 121 Figura 29 – O porão do Castelo de Hades ...... 122 Figura 30 – Inferno de Dante, Canto I ...... 124 Figura 31 – Portal do Inferno de Hades ...... 126

Figura 32 – Inscrição do Portal do Inferno de Hades ...... 126 Figura 33 – Rio Aqueronte ...... 127 Figura 34 – Almas à margem do Aqueronte ...... Erro! Indicador não definido. Figura 35 – Caronte ...... 129 Figura 36 – Almas que tentaram cruzar o Rio Aqueronte a nado...... 130 Figura 37 – Os cavaleiros chegando à outra margem do Rio Aqueronte ...... 131 Figura 38 – Escadaria que leva de uma prisão a outra...... 132 Figura 39 – Casa do Julgamento ...... 134 Figura 40 – Interior da primeira prisão ...... 135 Figura 41 – A mesa do juiz ...... 136 Figura 42 – Vale Negro ...... 137 Figura 43 – A chuva no trajeto para a segunda prisão ...... 138 Figura 44 – Entrada da segunda prisão...... 139 Figura 45 – Paredes da segunda prisão com hieróglifos egípcios ...... 139 Figura 46 – Detalhe de uma parede da segunda prisão...... 140 Figura 47 – Faraó ...... 140 Figura 48 – Cérbero ...... 141 Figura 49 – Jardim da segunda prisão ...... 143 Figura 50 – Eurídice ...... 144 Figura 51 – Trajeto que conecta a segunda à terceira prisão ...... 145 Figura 52 – Chuva de pedras gigantes na entrada da terceira prisão ...... 146 Figura 53 – Almas dos pecadores empurrando pedras gigantescas na terceira prisão ...... 147 Figura 54 – A quarta prisão ...... 148 Figura 55 – Flégias ...... 148 Figura 56 – A quinta prisão ...... 149 Figura 57 – Almas queimando nos túmulos de fogos da quinta prisão ...... 150 Figura 58 – O labirinto que antecede a sexta prisão ...... 152 Figura 59 – Os três vales que constituem a sexta prisão ...... 154 Figura 60 – A Cachoeira de Sangue ...... 155 Figura 61 – O templo de Hades ...... 160 Figura 62 – Interior da Giudecca ...... 161 Figura 63 – Almas pecadoras no Cocito ...... 162 Figura 64 – O Muro das Lamentações ...... 163

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Gêneros de mangá ...... 63 Quadro 2 – Obras de Dante Alighieri ...... 83 Quadro 3 – Distribuição dos cantos e versos da Divina Comédia...... 86 Quadro 4 – Esquema do Inferno dantesco ...... 116 Quadro 5 – A sétima prisão de Cavaleiros do Zodíaco e o oitavo círculo da Divina Comédia...... 157

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 17

1 MANGÁS...... 31 1.1 HQS ...... 31

1.2 ORIGEM DOS MANGÁS ...... 39

1.3 CARACTERÍSTICAS ...... 57

1.4 A LEITURA DO MANGÁ ...... 61

1.5 OS GÊNEROS DE MANGÁ ...... 62

2 O MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO ...... 67 2.1 PRODUÇÃO E INSERÇÃO NO JAPÃO E AO REDOR DO MUNDO ...... 67

2.2 A NARRATIVA ...... 71

2.3 A POPULARIDADE E O SUCESSO NO BRASIL ...... 73

3 O POETA E SEU POEMA ...... 77 3.1 O POETA...... 77

3.2 O POEMA ...... 83

4 O INFERNO CRISTÃO...... 93 4.1 ORIGENS, LOCALIZAÇÃO E GEOGRAFIA DO INFERNO ...... 95

4.2 O INFERNO CRISTÃO NO PERÍODO MEDIEVAL ...... 98

4.3 AS VISÕES DO INFERNO NO PERÍODO MEDIEVAL ...... 102

5 O INFERNO DOS CAVALEIROS DO ZODÍACO À SOMBRA DO INFERNO DANTESCO...... 109 5.1 LITERATURA COMPARADA ...... 110

5.2 PANORAMA DO INFERNO DA DIVINA COMÉDIA E DO INFERNO DE HADES DO MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO...... 115

5.3 A ENTRADA DO MUNDO DOS VIVOS PARA O SUBMUNDO ...... 118

5.4 SELVA SELVAGEM OU DESERTO INÓSPITO? ...... 122

5.5 O PORTAL DO INFERNO ...... 125

5.6 O RIO AQUERONTE ...... 127

5.7 A PRIMEIRA PRISÃO ...... 134

5.8 O VALE NEGRO ...... 137

5.9 A SEGUNDA PRISÃO ...... 138

5.10 O JARDIM DA SEGUNDA PRISÃO ...... 142

5.11 A TERCEIRA PRISÃO ...... 146

5.12 A QUARTA PRISÃO E SEU PÂNTANO NEGRO ...... 147

5.13 A QUINTA PRISÃO ...... 149

5.14 A SEXTA PRISÃO E SEUS TRÊS VALES ...... 150

5.15 A CACHOEIRA DE SANGUE E O RIO FLEGETONTE ...... 155

5.16 A SÉTIMA PRISÃO E SEUS DEZ FOSSOS ...... 156

5.17 A OITAVA PRISÃO ...... 158

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 165

REFERÊNCIAS ...... 173

17

INTRODUÇÃO

Ikki... Escolha um mundo entre os seis que vou mostrar! O mundo escolhido será onde você morrerá!! [...] O Inferno! Um mar de lava, montanhas espinhentas. Aqueles aqui presentes sofrem uma dor indescritível. O Mundo dos Demônios! Todos os corpos ficam esqueléticos. Somente as barrigas crescem. Você vomita sem parar... Até começar a consumir carne de cadáveres! O Mundo das Feras! Aqui vale a lei do mais forte. Para segui-la, é preciso matar os predadores para se alimentar... Para sempre. O Mundo das Chacinas! O sangue jorra eternamente! A morte faz parte do cotidiano, e as batalhas jamais terminam. O Mundo dos Homens! Tristeza, alegria, fúria, risos. Tudo se mistura com grande instabilidade. Não há bem ou mal. O Paraíso! Dizem que é possível ser feliz aqui... Mas também é o local de onde é mais fácil cair no Inferno.1

Shaka, Cavaleiro de Ouro da Constelação de Virgem

As imagens de outros mundos despertam a minha curiosidade desde os tempos mais tenros. Creio que, como a qualquer criança, a possibilidade de viajar a uma terra desconhecida sempre povoou a minha imaginação. Fato que podia ser constatado facilmente nas minhas produções textuais do ensino fundamental, onde aventuras aconteciam em lugares fantásticos, descritos com muitos detalhes. Como os irmãos que vão para Nárnia, viagens que poderiam iniciar entrando em um guarda-roupas. Como Alice perseguindo um coelho branco com um relógio de bolso, viagens que poderiam iniciar mergulhando em uma toca cavada junto de uma árvore. Ou atravessando um espelho. Como Dorothy de O mágico de Oz, viagens que poderiam começar no olho do furacão. Viagens interplanetárias. Viagens para o passado e para o futuro. Viagens em alto-mar. Viagens ao desconhecido. Lugares os mais diversos – reinos distantes, ilhas, nuvens, gavetas, formigueiros, desertos, geleiras, montanhas, planetas, castelos, estrelas, florestas sombrias, Lua, cavernas – paisagens onde era possível encontrar todos os personagens possíveis. Uma lista inesgotável que também envolve os três reinos do

1 In: KURUMADA, Masami. Saint Seiya – Os cavaleiros do zodíaco. Vol. 16. São Paulo: Conrad, 2000.

18 além-túmulo: Inferno, Purgatório e Paraíso. De todos os lugares citados, incluindo os três últimos, o destaque recai sobre o Inferno. Por que o destaque para o Inferno? Talvez por ter sido iniciado, desde os primeiros anos de vida, aos preceitos da Igreja Católica que, mais adiante, foram aprofundados pela catequese. Além disso, a minha participação nos eventos e rituais religiosos foi muito ativa nos períodos de infância e adolescência. Não a ponto de ser coroinha, mas recebi o sacramento do Batismo, fiz a Primeira Comunhão e a Crisma; ia às missas e às celebrações dominicais com meus familiares; rezava a Via-Sacra junto à comunidade rural onde vivia; e também o Rosário, tanto em família quanto na capelinha comunitária, com as outras famílias. A lista de exemplos é vasta e também compreende a confissão, o ato de comungar a hóstia sagrada e a abstinência de carne durante a Quaresma. Até mesmo o meu nome, João Paulo, além de homenagear os nomes de meus dois avôs (ambos se chamavam João), era constantemente relacionado por avós e avôs, tios e tias, à figura do Papa João Paulo II – polonês, como os antepassados de nossa família. Ao ponto de alguns deles, especialmente minha avó materna, terem cogitado a possibilidade do meu ingresso no seminário para uma futura atividade religiosa, que não se concretizou. Nessas memórias, todas atravessadas pela religiosidade, outro ponto que adquire relevância é o fato de ter recebido os ensinamentos sobre a crença da vida após a morte, em um local condizente com a minha conduta no mundo terreno. E é aqui que o Inferno entra efetivamente, pois, dentre os três ambientes do além-túmulo instituídos pela Igreja Católica, o que mais instigava (e continua instigando) a minha imaginação – e não menos o temor – era o Inferno. Com o passar do tempo, mesmo com uma variedade de narrativas repletas de descrições ricas e detalhadas, seja no cinema, no teatro, na televisão, nos quadrinhos ou na literatura, os mistérios e as dúvidas quanto a esse lugar só aumentavam. No entanto, a ideia de ser um ambiente sombrio, desolador, trágico e horripilante prevalece. E é justamente por isso que o Inferno provocava e continua provocando um fascínio sobre mim, a ponto de pesquisá- lo por puro deleite e, agora, tornando-o tema de pesquisa acadêmica. Em se tratando de Cavaleiros do Zodíaco, o meu primeiro contato com a série se deu pela televisão, e não com a leitura do mangá. O desenho era transmitido geralmente em dois horários, um no período da manhã, outro no fim da tarde. Eu tinha uns 9 anos, morava no campo e estudava no turno vespertino, em uma escola rural. Entretanto, nem sempre conseguia ver o desenho pela manhã. Então eu saía da escola às pressas, para chegar em casa às 17h30min e ligar a TV sintonizando a extinta Rede Manchete. Isso quando não preferia as 19 brincadeiras ao ar livre que a vida no campo proporciona a uma criança, ou quando não tinha alguma tarefa doméstica. Ou, ainda, quando não precisava disputar o aparelho com minhas irmãs mais velhas, que preferiam outros programas. Não tínhamos antena parabólica e, por estarmos no interior, o sinal não era dos melhores. E, para piorar, a televisão era em preto e branco. Esses foram alguns dos motivos que me impediam de acompanhar a série na íntegra. Consequentemente, não conseguia assistir aos episódios diariamente, perdendo grande parte da história. A vida na roça não era fácil. Ainda assim, as boas lembranças se sobressaem. E Cavaleiros faz parte delas. Embora não conseguisse acompanhar a série com fidelidade e perdesse o fio condutor da história, lembro-me que a assistia com deslumbramento, mesmo quando ficava perdido em algumas situações da narrativa por não ter assistido a algum episódio. Parte desse deslumbramento se devia aos trajes dos personagens: cavaleiros e amazonas que vestiam armaduras belíssimas, de ouro, prata ou bronze, cada qual simbolizando uma constelação que, por sua vez, tinha em suas estrelas a representação de um mito grego. Assim, Cavaleiros do Zodíaco foi a porta de entrada para o meu interesse nos temas essenciais de sua história: mitologia grega, astrologia e astronomia, misticismo e religiosidade. O desenho fazia sucesso e lançava no mercado os mais diferentes produtos: bonés, balas com figurinhas adesivas, pôsteres, roupas, canecas, sucos em pó, bonecos colecionáveis, materiais escolares etc. Naquele tempo conseguia adquirir somente as balas e os sucos em pó, os produtos mais baratos que o meu escasso e esporádico dinheiro podia pagar. A alegria durou pouco: o desenho foi tirado do ar depois de alguns meses. Voltaria só uns cinco anos depois, na TV por assinatura. Porém, uma editora brasileira – Conrad – resolveu publicar o mangá a partir do ano 2000, fato que eu soube cerca de um ano depois, uma vez que não morava na cidade. Não era, portanto, um frequentador assíduo de bancas e livrarias, e a internet ainda era, para mim, uma utopia. Em 2002 eu me mudei para a cidade, a fim de continuar meus estudos no ensino médio. Logo, com muito sacrifício, consegui comprar e ler todos os mangás dos Cavaleiros do Zodíaco, satisfazendo um desejo que vinha desde a infância. Não demorou muito para o desenho ser reexibido na TV aberta, e aí a alegria foi completa. Eu era mais criança que adolescente. A publicação do mangá e a nova exibição do desenho na TV aberta provocaram

20 um boom no mercado, com o (re)lançamento de produtos e muitas novidades para os fãs da série. A paixão pela série acabou tomando proporções mais sérias. Cavaleiros foi o tema do meu trabalho de conclusão de curso, na faculdade de Letras. Agora, o retomo nesta dissertação e, provavelmente, o levarei para a tese de doutorado. Além do entretenimento, a leitura desse mangá me proporcionou muitos conhecimentos durante a adolescência e foi a porta de entrada para me aprofundar em muitos assuntos, sempre buscando a expansão do meu repertório intelectual e do meu horizonte de expectativas. Andrômeda, Dragão, Fênix, Cisne, Pégaso. Budismo, Hinduísmo, Cosmo. Sétimo e oitavo sentido. Grécia, Japão, Sibéria, China, Ilha de Andrômeda, Ilha da Rainha da Morte. Athena, Poseidon, Hades. Este último nome foi a motivação para eu conhecer e me interessar por uma obra cujo título já me era familiar. Não porque eu a tivesse lido, mas por ela ser referenciada, elogiada e comentada na cultura e em diferentes contextos artísticos. A Saga de Hades de Cavaleiros do Zodíaco foi um caminho sem volta que me levou à Divina Comédia de Dante Alighieri. É partir deste breve relato que a soma Inferno + Cavaleiros do Zodíaco + Divina Comédia transcendeu as memórias afetivas e resultou em uma dissertação de Mestrado, fruto de um esforço que buscou conjugá-los conscienciosamente, no intuito de contribuir para com os estudos e as pesquisas acadêmicas afins ao tema e às duas obras.



No dia 29 de março de 2018, uma declaração polêmica do Papa Francisco não foi bem vista pelo Vaticano e teve repercussão no mundo inteiro, dividindo opiniões entre os membros da comunidade católica, especialmente entre os fiéis mais fervorosos e conservadores. Em um encontro privado com Eugenio Scalfari, ateu declarado e cofundador do jornal italiano La Repubblica, o sumo pontífice da Igreja Católica Apostólica Romana negou a existência do Inferno. O encontro era informal e Scalfari não estava realizando uma entrevista com o Papa quando obteve tal declaração que, segundo afirmou, reproduziu de sua memória, pois não a havia registrado em aparelho gravador ou papel. “O Inferno não existe, o desaparecimento das almas dos pecadores existe”, escreveu o jornalista e filósofo em artigo disponibilizado somente para os assinantes do referido jornal, conforme verbalizado oralmente pelo Papa. 21

Rapidamente, o Vaticano publicou uma nota negando que o Papa tivesse proferido tal declaração. E confirmou que sim, o Inferno existe, conforme rezam os preceitos da doutrina católica.2

A polêmica envolvendo a declaração do Papa Francisco se presta a fomentar algumas reflexões relacionadas à representação de uma das paisagens mais influentes e difundidas na religião, sobretudo na cristã, e também na cultura, especialmente na ocidental: o Inferno, tema desta pesquisa. Independentemente de acreditar ou não na sua existência, é inegável a importância cultural e religiosa de uma das mais famosas descrições do lugar para onde descem, conforme proferido pelo Papa Eugénio, no Concílio de Florença (1431-1445), “aqueles que morrem em um estado de pecado mortal” (TANNER, 1990, p. 528; DENZINGER, 2006, p. 359). Palavras que foram difundidas na cultura católica ao longo do tempo, constituindo um dos dogmas mais contundentes da referida Igreja.

O episódio envolvendo a declaração do papa também ilustra como o Inferno, enquanto representação simbólica, tanto na perspectiva religiosa quanto na cultural, se faz presente no imaginário humano do século XXI, despertando discussões e controvérsias. É sabido que a noção de Inferno e a possibilidade de sua existência variam de indivíduo para indivíduo. Há os que não acreditam em sua existência, tampouco creem em Purgatório e Paraíso. E, entre aqueles que creem, a concepção e a descrição desse lugar nem sempre serão consensuais. Isso porque cada um define, entende e interpreta o Inferno de modos distintos, baseando-se nas crenças e nas vivências individuais que perpassam a sua experiência humana. Ou ainda aquelas que se dão de modo coletivo, em um determinado grupo ou rede de pertencimento, podendo ser a família, a Igreja, uma seita, uma sociedade secreta, um grupo de estudos, uma comunidade, entre outros. Nesse sentido, além de uma dimensão religiosa e cultural, é possível dizer que o Inferno também é dotado de uma dimensão social. Todavia, enquanto representação simbólica e espaço de fabulações, cada um de nós projeta e descreve o Inferno de maneira singular, construindo a arquitetura desse lugar com nuances específicas, embora passíveis de semelhanças quando efetuada uma comparação.

Esta dissertação, intitulada “Arquiteturas do submundo: o Mundo dos Mortos do mangá Cavaleiros do Zodíaco à sombra do Inferno dantesco3”, inscrita na linha de

2“'Inferno não existe', diz o papa Francisco, segundo jornal italiano.” Disponível em: . Acesso em: 03 jan 2019.

22 pesquisa Textualidades Híbridas4 do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, tem como objeto de estudo o mangá Cavaleiros do Zodíaco5, de autoria de Masami Kurumada. O objetivo principal de nossa pesquisa é analisar, comparativa e intertextualmente, o Inferno desenhado por Kurumada a partir do Inferno elaborado por Dante Alighieri em sua Divina Comédia6. Outros objetivos, de ordem secundária, são: i) averiguar como e em que medida o poema influenciou a arquitetura do Inferno representado nessa história em quadrinhos, visto que são muitas as evidências dantescas presentes na obra japonesa; e ii) elucidar o porquê ou o que levou Kurumada a escolher o Inferno do poema dantesco para embasar a arquitetura do seu, quando poderia ter utilizado outras referências – como a mitologia grega –, ou optado pela criação de uma paisagem original.

Mesmo com o fato de o mangá ser o objeto de estudo desta dissertação, e as duas obras serem diferentes em inúmeros aspectos, ambas são tratadas com equidade, respeitando- se a natureza artística e literária de cada uma. Não é objetivo do estudo emitir juízos de valor acerca do mangá e do poema, o que corresponderia a um disparate, uma vez que estamos lidando com duas obras pertencentes a domínios artísticos distintos e independentes: as

3 No contexto desta pesquisa, tomamos a definição do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira para o adjetivo “dantesco”: pertencente ou relativo a, ou próprio de Dante Alighieri, poeta italiano (1265-1321). (HOLANDA, p. 421, 1988). 4 Conforme a página do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina: “A linha de pesquisa Textualidades híbridas pretende associar quatro perspectivas — Literatura, Artes, Filosofia, Tecnologia —, sem que se estabeleça nenhuma hierarquia a priori entre elas, à exceção da Literatura, que é o ponto sobre o qual se assentam as relações entre todas. Dessa forma, há, pelo menos, três diálogos que marcam as possibilidades de pesquisa desta linha: o primeiro é o que se dá entre literatura e filosofia; o segundo, entre literatura e artes; o terceiro, finalmente, entre literatura e tecnologia. Esclareça-se que todos esses diálogos estão marcados, segundo a concepção que os anima, por uma reflexão voltada para o texto literário, preocupação já assinalada no nome dado à linha. A perspectiva primeira dos projetos vinculados a esta linha estará centrada, assim, nos estudos de teoria do texto, no que se refere a essas três relações acima descritas, em seus mais variados suportes e vertentes.” (PPGLit-UFSC, 2019). 5 O título original é Saint Seiya, na escrita japonesa 聖闘士星矢 (pronuncia-se Seinto Seiya). Traduzindo para a língua portuguesa, Santo Seiya. O título faz alusão ao protagonista do mangá, Seiya, cavaleiro que veste a armadura de bronze da constelação de Pégaso. O nome da série foi adaptado na França para Les Chevaliers du Zodiaque, o qual foi mantido, embora com tradução literal, em todos os países do Ocidente, incluindo o Brasil (CAVZODIACO, 2010?). Inferimos que tal mudança tenha se dado por questões religiosas. Isso porque o adjetivo “santo” caracterizava Seiya e os demais cavaleiros, envolvidos em lutas constantes que eram motivadas por divindades da mitologia grega. Esses aspectos poderiam suscitar alguma polêmica na comunidade cristã ocidental, especialmente na Igreja Católica, onde o referido vocábulo só é atribuído às pessoas que desempenharam feitos admiráveis, ou cuja vida serve de testemunho aos demais católicos, após o complexo e rigoroso processo de canonização. 6 Em italiano, Divina Commedia. No entanto, o título original é Comedia. O responsável pela inclusão do adjetivo “divina”, mais tarde, foi o poeta e crítico literário italiano Giovanni Boccaccio (1313-1375), autor do Decamerão, que se especializou na obra dantesca e escreveu a biografia do poeta florentino, intitulada Trattatello in laude di Dante (1357). 23

Histórias em Quadrinhos e a Literatura. Dito de outro modo, uma não é melhor que a outra: são apenas linguagens diferentes.

Cavaleiros do Zodíaco é um mangá, uma História em Quadrinhos tipicamente japonesa, arte que mobiliza imagens, cores, palavras e recursos gráficos próprios de sua linguagem (diferentes tipos de balões, vinhetas, onomatopeias, linhas cinéticas, apêndices...), caracterizada pelo forte apelo da linguagem visual em detrimento da verbal. Trata-se de uma narrativa quadro a quadro, uma textualidade que Eisner (2001) batizou como “arte sequencial”. Ademais, fora desenhada por um budista, representando em grande parte a cultura oriental, é símbolo da cultura pop e pode ser apreendida como a representação dos valores do homem pós-moderno no âmbito das artes, no sentido benjaminiano7 da expressão.

Já a Divina Comédia é um poema de viés épico, uma obra na qual seu autor preocupou-se com o rigor e a estética da forma, com a métrica e com o ritmo, com a escolha lexical e também com a elaboração das rimas. Não obstante, o conteúdo não foi deixado de lado: há toda uma dimensão religiosa, histórica, política e social valorizada ao longo de seus cem cantos. A palavra foi a substância, a essência com a qual Dante pôde criar a sua obra de arte. É, portanto, Literatura, a arte da palavra, caracterizada pela linguagem verbal escrita. Diferentemente do mangá, estamos falando de um poema concebido por um católico, o qual representa a cultura ocidental, é símbolo da erudição e considerado por muitos estudiosos como a obra-síntese do homem medieval.

Além desses apontamentos referentes à natureza de cada uma das obras, podemos afirmar que elas estão distantes no tempo e no espaço. Isso porque o mangá foi publicado no século XX, mais precisamente entre os anos de 1985 a 1990, no Japão. Já o lançamento de cada uma das três partes que constituem o poema de Dante, que aconteceu na Itália, está inserido no século XIV, no período provável de 1304 a 1321. Ou seja, a distância temporal entre as duas obras corresponde a seis séculos de diferença e, a título de curiosidade, segundo o Google Maps, 9758 km separam Tóquio de Florença, cidades natais dos dois autores.

7 Segundo Benjamin, a arte pós-moderna é caracterizada pela perda da aura do objeto artístico em razão da sua reprodução técnica, em múltiplas formas: cinema, fotografia, pintura, entre outras, sendo que as HQs também podem estar inclusas nesse rol. A partir disso, o autor faz uma reflexão sobre como a reprodutibilidade técnica causou uma deterioração da “aura”, que estaria ligada ao aqui e agora da obra de arte. Com o advento de tal reprodutibilidade técnica, o objeto artístico acaba por perder sua unicidade, singularidade e autenticidade, e seu valor de culto é drasticamente alterado graças à tecnologia industrial vigente. Neste cenário abrem-se as portas para o valor de exposição, onde o fundamental é distribuir cópias e faturar em cima da distribuição da arte (BENJAMIN, 2018 [1936]).

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O estudo em questão considera todas as informações mencionadas anteriormente, as quais não chegam a representar um obstáculo. Pelo contrário: entendemos que o valor artístico de ambas reside justamente nessas diferenças. O que importa, de fato, para esta pesquisa, é que temos um elo temático entre as duas narrativas: a viagem aos domínios do além-túmulo, mormente a paisagem do Inferno, cuja arquitetura teve como base a mitologia grega em ambas. Em Cavaleiros do Zodíaco, além da mitologia grega, temos a influência da Divina Comédia na estruturação do Inferno desenhado por Masami Kurumada, o que resultou (como poderemos observar no capítulo da análise) em uma paisagem sincrética, onde elementos pagãos e cristãos coexistem.

A problemática da representação do Inferno na religião, na cultura e em diferentes esferas da atividade artística, bem como seu status e influência em momentos históricos distintos, não é a única justificativa do trabalho proposto. A relevância social e acadêmica deste estudo também encontra sua justificativa no fato de que a emergência das pesquisas acadêmicas envolvendo HQs, além do reconhecimento destas como arte que goza de uma linguagem autônoma (CIRNE, 1974, 1975; ACEVEDO, 1990; ECO, 1993; EISNER, 2001; RAMOS, 2010), são relativamente recentes. Por muito tempo, as HQs foram equivocadamente consideradas como uma linguagem pertencente a uma categoria literária de menor prestígio, ou seja, uma subliteratura8. Hoje, graças aos esforços e pesquisas de estudiosos pioneiros do gênero, como os citados anteriormente, podemos afirmar de modo categórico que Quadrinhos e Literatura são esferas artísticas distintas, como explica Ramos (2010):

Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (caso da literatura, inclusive a infantil) como argumento para justificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio universitário. Quadrinhos são quadrinhos. E, como tais, gozam de uma linguagem autônoma, que usa mecanismos próprios para representar elementos narrativos. Há muitos pontos comuns com a literatura, evidentemente. Assim como há também com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens (RAMOS, 2010, p. 17).

Embora seja um campo artístico independente e autônomo, faz-se necessário efetuar a sua aproximação com o campo da Literatura, especialmente se considerarmos que ambas comungam de elementos narrativos em comum. Compartilhamos da ideia de Barbieri (1998), quando esse afirma que as várias formas de linguagem não estão separadas, mas sim,

8 Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, subliteratura significa “literatura sem valor, de baixa qualidade e com conteúdo questionável”. 25 interconectadas. O autor explica que a linguagem seria como um grande ecossistema, repleto de pequenos nichos distintos uns dos outros, os quais chamou de ambientes. Cada ambiente teria características próprias, o que garantiria autonomia em relação aos demais. No entanto, isso não significa que esses ambientes não possam compartilhar características comuns. Dito de outro modo, o Cinema, o Teatro, a Literatura, os Quadrinhos e tantas outras formas de linguagem comporiam ambientes próprios e autônomos. Mas todos compartilhariam elementos de outras linguagens, cada qual à sua maneira.

A aceitação das HQs pela sociedade, como um instrumento de leitura, foi lenta e processual. Pode-se dizer que uma espécie de movimento antiquadrinhos9 se instaurou e permaneceu durante algumas décadas no Brasil. Tal movimento era corroborado pela opinião de pedagogos, literatos, psicólogos e outros intelectuais, entre os quais muitos defendiam que as Histórias em Quadrinhos não constituíam um campo artístico, rebaixadas à condição de subliteratura. Logo, essas noções errôneas e de fundamentação duvidosa refletiram na esfera escolar.

O trabalho com as Histórias em Quadrinhos nas salas de aula enfrentou uma resistência significativa por parte de muitos educadores. Estamos falando de um gênero textual que foi até mesmo proibido nas escolas durante muitos anos – especificamente no

9 Os movimentos antiquadrinhos foram impulsionados pelo psiquiatra alemão radicado nos Estados Unidos Fredric Wertham, quando da publicação de seu livro Seduction of the Innocent, em 1954. Na obra, Wertham defendia a tese de que todas as histórias em quadrinhos eram degeneradoras da infância, resultando em malefícios, como a preguiça intelectual e o estímulo à delinquência juvenil. Esses movimentos não foram exclusividade dos Estados Unidos, mas também de outros países, como Grã-Bretanha, Canadá, Alemanha, Austrália, Filipinas, Coreia do Sul, Taiwan (LENT, 2009) e França (MILLER, 2007). Em seu artigo Essas horríveis histórias em quadrinhos, o pesquisador Alexandre Linck Vargas expõe sobre tais movimentos no cenário brasileiro. Nas palavras do autor, “[...] fosse por políticos como o deputado federal Armando Leite, fosse por jornalistas como Carlos Lacerda, os quadrinhos eram frequentemente alvos de campanhas de moralização e restrição de sua veiculação” (2015, p. 5). Vargas também esclarece que foi durante o governo do presidente Jânio Quadros, mais precisamente em 1961, que surgia o código de ética dos quadrinhos publicados no Brasil. A exemplo dos EUA, o código brasileiro também se voltava “[...] contra o horror em nome da moral e dos bons costumes” (VARGAS, 2015, p. 5). Essas discussões ganharam espaço, inevitavelmente, nos âmbitos familiar e escolar, onde pais e professores também passaram a olhar os quadrinhos com desconfiança. Em 1972, a dupla de sociólogos Ariel Dorfman e Armand Mattelart publicavam, no Chile, a obra acadêmica Para Leer al Pato Donald: Comunicación de masa y colonialismo. Essa obra reforçava mais um elemento pejorativo aos olhos latino-americanos, pois considerava as histórias em quadrinhos como fruto de um claro imperialismo cultural. O livro apresenta a análise dos personagens da Disney, sugerindo que as publicações da empresa estavam intimamente relacionadas com os valores e costumes típicos da sociedade de consumo. A dimensão pedagógica da obra acabou sendo ultrapassada pelo viés político, uma vez que Dorfman e Mattelart sustentavam o argumento de que esses quadrinhos também eram responsáveis pelos estereótipos que os Estados Unidos produziam sobre os países menos desenvolvidos. Além disso, os autores afirmavam que as HQs da Disney eram veículos de propagandas anticomunistas, já que os tempos eram de Guerra Fria (BAHIA, 2012, 343-344). Pelo seu teor persuasivo, a obra dos dois sociólogos teve uma recepção expressiva por intelectuais de todo o continente, notadamente avessos à política externa estadunidense.

26 período compreendido entre 1950 até o final da década de 1970 – onde uma HQ entrava apenas de modo clandestino e, se descoberta, certamente haveria uma punição àquele que cometeu tamanha ousadia. Livros didáticos não veiculavam quadrinhos em seu conteúdo, e a sua presença nas bibliotecas escolares era algo inconcebível. De maneira semelhante, muitas famílias também partilhavam destes pareceres equivocados, não oportunizando que seus filhos tivessem acesso à leitura de HQs. Motivados pelas vozes de “especialistas” no assunto, muitos pais acreditavam que elas não conduziriam à formação daquilo que era considerado um bom leitor, e que nada agregavam ao intelecto, à erudição e à cultura de seus filhos. Para a sociedade, escola e família daqueles tempos, a emancipação do bom leitor se dava essencialmente pela leitura dos clássicos, tanto da Literatura universal quanto da brasileira.

As visões pré-concebidas a respeito desse gênero textual10 eram as mais diversas: que era uma subliteratura, que sua leitura “emburrecia” e causava preguiça mental, que não agregava conhecimento algum ao intelecto do leitor, que possuía linguagem totalmente infantilizada, que não emancipava e impossibilitava a formação da criança como um leitor potencial, que leitores de HQs seriam incapazes de ler, no futuro, outros textos considerados com uma linguagem mais complexa ou sofisticada, etc. E, em se tratando de quadrinhos japoneses, a resistência e as críticas eram (e ainda são) muito mais austeras: só possuem violência e pornografia, todos tematizam lutas sangrentas, banalizam a morte, estimulam má conduta e mau comportamento, seus conteúdos são imorais, etc.

De lá para cá, muita coisa mudou. As Histórias em Quadrinhos revelaram-se como verdadeiro fenômeno de comunicação de massa, um campo artístico independente e empoderado. Estamos falando de uma arte que, junto ao cinema, constitui o meio de comunicação de massa mais importante do século XX, e que se difundiu, a partir da década de 1930, para praticamente todos os países do mundo (VERGUEIRO, 2005).

Na perspectiva do ensino, as HQs passaram a ser bem-vindas na sala de aula e integram os Parâmetros Curriculares Nacionais da educação básica. O documento recomenda que os quadrinhos não sejam utilizados somente nas aulas de Língua Portuguesa e Artes, mas em todos os componentes curriculares. As HQs também estão presentes nos catálogos do PNBE-Programa Nacional Biblioteca na Escola. Consequentemente, encontraremos muitas bibliotecas escolares com prateleiras destinadas especialmente ao gênero, possibilitando aos

10 O conceito de gênero textual empregado nesta dissertação é semelhante ao proposto por Bakhtin: são tipos relativamente estáveis de enunciados usados em uma situação comunicativa para intermediar o processo de interação. (BAKHTIN, 2000). 27 estudantes a leitura de gibis os mais diversos, comics, coletâneas de tiras, graphic novels, mangás, adaptações de clássicos da Literatura universal e brasileira em HQs, entre outros (MENDONÇA, 2002; CALAZANS, 2004; CARVALHO, 2006; VERGUEIRO, 2006, 2008, 2009; RAMA, 2008; RAMOS, 2009).

Também encontraremos esse gênero textual em livros didáticos e apostilas, no Enem, em muitas provas de vestibulares brasileiros, em concursos públicos, etc. As HQs não estão somente nas bancas, mas passaram a ter lugar de destaque nas livrarias, ocupando as vitrines e muitas estantes e prateleiras. Para uma melhor organização, e em virtude de diferentes subgêneros, são divididas em diversas categorias, como adaptações literárias, mangás, coletâneas de tiras, edições de luxo, quadrinhos nacionais, publicações independentes, por idade, por assunto, enfim, entre outros critérios de classificação.

Além disso, o gênero também conquistou espaço nos diferentes dispositivos tecnológicos por meio da internet: é possível ler uma HQ na tela de um tablet, smartphone ou computador. Há, inclusive, uma tendência em franca expansão: artistas que se dedicam à produção de quadrinhos destinados exclusivamente para tais suportes, privilegiando o público leitor que prefere se deleitar diante das telas desses dispositivos eletrônicos (VERONEZI, 2010).

Todos os feitos relacionados nos dois parágrafos anteriores se devem à obstinação de pesquisadores que ousaram em investigar as HQs no âmbito acadêmico, uma abordagem que inovou e revolucionou a perspectiva e o status atribuídos até então aos quadrinhos. Esses estudos foram precursores do gênero, além de serem o estopim para novas pesquisas de caráter acadêmico, encorajando o debate acerca da Nona Arte11. Engana-se quem acha que tais estudos foram acolhidos de maneira amistosa e incontinenti, tendo seus reflexos imediatos na sociedade. As conquistas foram progressivas e enfrentaram obstáculos de toda sorte.

Dito em outros termos, as HQs também encontraram resistência na universidade (RAMOS, 2010, p. 14). Eram raras as pesquisas acadêmicas que tinham uma História em

11 A numeração das artes foi proposta, inicialmente, por Hegel (1770-1831), limitando-se a seis atividades: Arquitetura, Escultura, Pintura, Música, Dança e Poesia. (HEGEL, 2015). Em 1912, o crítico de cinema e teórico italiano Ricciotto Canudo (1877-1923) propõe, através de seu Manifesto das Sete Artes e Estética da Sétima Arte (que viria a ser publicado somente em 1923), a inclusão de um sétimo domínio artístico: o Cinema. (CANUDO, 1995). Os números foram ampliados, com outras esferas artísticas incorporadas no rol, e atualmente temos a seguinte numeração: 1ª Arte – Música, 2ª Arte - Dança/Coreografia; 3ª Arte – Pintura; 4ª Arte – Escultura; 5ª Arte – Teatro; 6ª Arte – Literatura; 7ª Arte – Cinema; 8ª Arte – Fotografia; 9ª Arte – Quadrinhos; 10ª Arte – Videogame; 11ª Arte – Arte digital.

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Quadrinhos como objeto de estudo e, quando isto acontecia, o trabalho desenvolvido nem sempre era bem recepcionado. Atualmente, se consultarmos a plataforma Lattes, selecionando a opção “assunto”, inserindo a palavra-chave “HQs”, e também selecionando as opções “doutores” e “demais pesquisadores”, teremos o resultado de 1450 pesquisas relacionadas ao tema. Refinando a pesquisa, e optando apenas por “doutores”, a plataforma nos revelará os nomes de 516 pesquisadores que possuem alguma afinidade com o assunto.

Os números aferidos são expressivos e consolidam o interesse acadêmico pelas Histórias em Quadrinhos nas mais diversas áreas do conhecimento: Linguística, Literatura, Educação, Psicologia, Estudos da Tradução, Artes Visuais, Artes Cênicas, Comunicação Social, Antropologia, Cinema, História, Design, Sociologia etc. Ratificamos que a conquista deste espaço na academia muito se deve aos estudos pioneiros e aos esforços de um grupo de pesquisadores brasileiros, os quais foram responsáveis, também, pela elaboração do quadro teórico que é referência para as pesquisas sobre HQs empreendidas na atualidade (VERGUEIRO; RAMOS; CHINEN, 2013).

O princípio de análise adotado para o estudo é essencialmente comparatista e intertextual. Logo, o quadro teórico-metodológico da Literatura Comparada foi eleito como o mais apropriado para o desenvolvimento da nossa pesquisa. A intertextualidade, termo cunhado por Kristeva (2005) a partir do que Bakhtin, na década de 1920, entendia por dialogismo12, intermedeia o processo analítico de comparação do Inferno arquitetado em cada uma das obras.

A opção por uma análise comparatista intertextual é justificada pelo fato de que a intertextualidade é um fenômeno cada vez mais recorrente e multifacetado na contemporaneidade. Um fenômeno que hibridiza textualidades e gêneros, como discutimos anteriormente, ao fundamentar a escolha pela linha de pesquisa que norteia o estudo e ao apresentar brevemente a natureza peculiar e as conexões entre as duas obras. Tal ocorrência é motivada, em grande parte, pelo processo de globalização que insurgiu nas últimas décadas e, como uma de suas consequências, o advento de novas tecnologias da informação e da comunicação – especialmente a internet, suas redes sociais e as diferentes mídias que estão ao

12 Conforme Bakhtin, o dialogismo pode ser definido como as relações entre índices sociais de valores que constituem o enunciado, compreendido como unidade da interação social. (FARACO, 2009). Nesse ato dinâmico, o sujeito social, ao se deparar com outros enunciados, interage com os discursos num ato responsivo, concordando ou discordando, complementando e se construindo na interação. Portanto, a língua tem a propriedade de ser dialógica e os enunciados são proferidos por vozes, pois o discurso de alguém se encontra com o discurso de outrem, participando, assim, de uma interação viva. (BAKHTIN, 2010). 29 alcance dos indivíduos. Os novos modos através dos quais uma textualidade é acessada, lida, produzida, compartilhada e difundida também possibilitam o surgimento dos intertextos. Além disso, podemos presumir que as novas maneiras com as quais os seres humanos se conectam e interagem também motivam a emergência de intertextualidades13.

A análise está delimitada a um conteúdo temático comum às duas obras: o Inferno. Portanto, das três partes que compõem a Divina Comédia, o Inferno será a privilegiada. Semelhantemente, em Cavaleiros do Zodíaco, os mangás utilizados serão aqueles que integram a Saga de Hades. A opção pelo Inferno dantesco não desmerece as outras partes que constituem o poema: reconhecemos a importância e o manancial de literariedades também presentes no Purgatório e no Paraíso. Como o Inferno, são dois reinos do além-túmulo com particularidades e simbologias em suas respectivas arquiteturas.

Da mesma maneira, em Cavaleiros do Zodíaco, o delineamento incide sobre a Saga de Hades que, junto à Saga do Santuário e à de Poseidon, compõem a série clássica do mangá. O título da saga – Hades – revela por si só a sua escolha para a pesquisa: na mitologia grega, é o deus do Mundo dos Mortos, do Submundo. Logo, é a divindade que governa e reside no lugar mais sombrio da Terra, para onde vão as almas dos mortos.

Vale observar, a exemplo do que foi exposto anteriormente sobre a delimitação da obra de Dante e suas partes constituintes, que a escolha da Saga de Hades segue a mesma lógica e não menospreza as outras sagas de Cavaleiros do Zodíaco, configurando um recorte específico para a análise efetuada.

Adverte-se, de antemão, a natureza verbo-visual e imagética desta pesquisa. Isso porque nosso estudo propõe a análise do Inferno desenhado por Masami Kurumada para a Saga de Hades de Cavaleiros do Zodíaco, comparando-o com o Inferno arquitetado por Dante em seu poema. Assim, as imagens selecionadas do mangá são recorrentes no capítulo da análise. No entanto, os capítulos anteriores à análise também possuem imagens, uma vez que estamos dissertando sobre dois assuntos em que a linguagem visual é inerente: a representação do Inferno e as Histórias em Quadrinhos.

13 O conceito de intertextualidade empregado neste trabalho advém da obra de Kristeva (2005). Valendo-se das ideias apresentadas pela autora de maneira sucinta, a intertextualidade pode ser entendida como a relação que se estabelece entre dois textos, quando um texto já criado exerce influência na criação de um novo texto. No presente trabalho, o objetivo precípuo é analisar como e em que medida o Inferno da Divina Comédia influenciou na criação do Inferno no mangá Cavaleiros do Zodíaco.

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Para efeito de sistematização, excetuando-se a introdução e as considerações finais, esta dissertação está estruturada em cinco capítulos. Antes de ingressarmos no universo de Cavaleiros do Zodíaco, o primeiro capítulo busca desvendar as origens dos mangás, expondo o panorama histórico desses quadrinhos, desde suas manifestações mais primitivas até os formatos mais sofisticados com os quais podemos nos deparar na atualidade. O capítulo também tematiza as características e os gêneros de mangá, tópicos relevantes para serem discutidos antes da apresentação pormenorizada do nosso objeto de estudo.

Feita a apresentação sobre o gênero mangá no capítulo inicial, o segundo capítulo desta dissertação privilegia a exposição detalhada sobre a obra Cavaleiros do Zodíaco. Além de considerar os aspectos mais relevantes acerca de sua narrativa (personagens, cenários, tempo histórico, enredo...), o capítulo também trata sobre o contexto de produção e inserção desse mangá, no Japão e ao redor do mundo, o seu êxito comercial e repercussão em diferentes países, bem como a popularidade e sucesso significativos conquistados em países da Europa e da América Latina, especialmente no Brasil.

Em seguida, no terceiro capítulo, destacamos a sombra que acompanha o nosso objeto de pesquisa, ou seja, a Divina Comédia. Para além do poema, o capítulo também apresenta o perfil do homem que está por trás dessa sombra, Dante Alighieri, cuja vida não se resumiu apenas à arte literária.

No quarto capítulo, expomos um breve panorama sobre a concepção do Inferno, sobretudo o cristão e o da mitologia grega. O capítulo em questão também apresenta as visões de alguns profetas e as contribuições legadas pelo período medieval, fundamentais para a composição do imaginário do Inferno.

Finalmente, o quinto e último capítulo é a parte analítica da nossa dissertação. Trata-se do momento de depuração e refinamento do objeto de estudo. Subsidiados pelo quadro teórico-metodológico da Literatura Comparada, retomaremos as duas obras a fim de efetivarmos o estudo de caráter comparatista e intertextual. Logo, o capítulo está delimitado ao elo temático existente entre o mangá e o poema – o Inferno. 31

1 MANGÁS

Os ideogramas “man” e “gá”, utilizados por Katsushika Hokusai, que originaram o termo “mangá”.14

Este capítulo tem como objetivo apresentar um breve quadro teórico acerca dos mangás. Faz-se importante, antes da apresentação mais detalhada sobre o objeto desta pesquisa, que é um mangá, e de sua análise junto ao Inferno da Divina Comédia, tecer algumas considerações sobre as Histórias em Quadrinhos, para que, logo em seguida, possamos refiná-las, tendo os mangás como especificidade. Tomando-os como um gênero particular das HQs, dissertaremos sobre suas origens, sua evolução no decorrer do tempo, características, gêneros, bem como sua indústria e sua relação com o mercado de animação para a televisão e para o cinema. Feito isto, adentraremos no universo de Cavaleiros do Zodíaco, contemplando aspectos de sua produção e recepção (no Japão e em outras partes do mundo), a apresentação de sua narrativa, seu êxito comercial e sua popularidade no Brasil.

1.1 HQS

Não há consenso entre os estudiosos quando a discussão envolve a origem das Histórias em Quadrinhos, tampouco quando a questão é “Qual a primeira história em

14 Disponível em: . Acesso em: 20 ago. 2019.

32 quadrinhos da história?” Porém, resolver essa questão nos parece ser menos importante, uma vez que acabamos chegando à conclusão de “[...] que nenhuma cultura ou país pode reivindicar a propriedade dos quadrinhos”. (MAZUR, DANNER, 2014, p. 07). No entanto, os teóricos ocidentais e pesquisadores da área frequentemente buscam as origens das histórias em quadrinhos na Pré-História, quando os homens das cavernas deixaram marcas de seus feitos, há 50 mil anos ou mais. (LUYTEN, 2011).

Figura 1: Arte rupestre da caverna Chauvet, no Sul da França

Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2019.

Goidanich (2011, p. 9) comenta que a narrativa figurada é uma arte muito mais antiga do que podemos imaginar, e ilustra sua ideia com o exemplo de imagens sacras dispostas sequencialmente em muitas igrejas. Conforme o autor, quando entramos em uma igreja e vemos os quadros de uma Via-Sacra, de certa maneira estamos em frente a uma das mais primitivas formas das Histórias em Quadrinhos. Mazur e Danner (2014) oferecem outros exemplos de arte figurada, muitos historicamente anteriores à sua ocorrência em igrejas. Nas palavras dos dois pesquisadores,

A propensão a contar histórias com figuras, combinando imagem e texto, parece universal: a Coluna de Trajano, pergaminhos asiáticos, tapeçarias medievais e retábulos, os jornais broadsheet do século XVIII e as gravuras japonesas feitas a partir de pranchas de madeira podem sem sombra de dúvida ser identificados como “pré-história” dos quadrinhos. (MAZUR, DANNER, 2014, p. 07, grifos dos autores). 33

Figura 2: Vitrais da Catedral de Chartres, França

Disponível em: . Acesso em: 14 dez. 2019.

Luyten (2011, p. 75) também pondera a contribuição da imensa herança do passado, sobretudo a categoria das artes narrativo-figurativas, na evolução da linguagem quadrinizada. Da mesma forma que os teóricos citados anteriormente, a autora afirma que o caminho da representação em imagens sucessivas está repleto de exemplos significativos nas mais

34 diversas civilizações e que, mesmo com a destruição, o número de obras deixadas pela antiguidade é considerável. E complementa seu raciocínio explicando que

Uma tradição ininterrupta permite interligar, de diversas maneiras, os afrescos, os mosaicos, as pinturas, as gravuras ou as esculturas que nos foram legados pela Idade Média ocidental. Aos primitivos rolos sucedem-se os livros, primeiramente manuscritos, depois impressos. (LUYTEN, 2011, p. 75).

Muitos desses livros foram ilustrados, e é exatamente nessas ilustrações que é possível, segundo Blanchard (1974, p. 295), pesquisar a evolução das fórmulas da história em imagens.

Da mesma forma que Vergueiro (1985) e Luyten (2011), encaramos as Histórias em Quadrinhos como resultado de um fenômeno de comunicação de massa, quando as condições técnicas da Revolução Industrial foram um fator determinante na sua disseminação. Todavia, também entendemos que a imensa herança cultural do passado deve ser considerada, sobretudo a categoria das artes narrativo-figurativas, como contribuição na evolução da linguagem quadrinizada.

Do século XVI ao século XVII, a imprensa proliferou, porém, os livros não eram para as massas. (PERRY; ALDRIDGE, 1971, p. 29). O mundo letrado ainda tinha que trilhar um longo caminho para alimentar a mente dos homens. A xilogravura, litogravura e, paulatinamente, a imprensa a vapor asseguraram às obras gráficas uma difusão até então desconhecida.

No século XIX, a industrialização geral – mais especificamente a mecanização da impressão –, impõe um desenvolvimento inédito ao livro e ao jornal, revolucionando o sistema de distribuição dos bens culturais. (LUYTEN, 2011, p. 76).

Além do texto, a imagem muda de forma com a industrialização. Conforme Luyten (2011, p. 76), será no século XX que as histórias em quadrinhos atingirão sua plena forma de narrativa em imagens sucessivas e o texto passará para dentro dos balões. Simultaneamente, nascem o Cinema e o Desenho Animado que, junto às Histórias em Quadrinhos, renovam a visão de mundo.

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A popularização da narrativa em imagens da Europa do início do século XX, fato que prenunciava uma nova forma de comunicação visual, também é exposta por Goida (2011), o qual afirma que

[...] artistas como o suíço Rodolphe Töpffer, o alemão Wilhelm Busch (criador de Max und Moritz/Juca e Chico) e os franceses Caran D’Ache e Christophe (pseudônimo de Georges Colomb) popularizaram a narrativa em imagens, prenunciando uma nova forma de comunicação visual. Embora muitas vezes estas imagens fossem cercadas, formando “quadrinhos”, o texto ficava sempre fora da ação desenhada. O pontapé inicial fora dado. Mas estávamos ainda na pré-história dos quadrinhos. (GOIDA, 2011, p. 9).

Para Mazur e Danner (2014), a gênese dos quadrinhos é profundamente transnacional e transcultural. Os autores argumentam tal afirmação com exemplos de artistas de diferentes partes do mundo, que muito contribuíram para a consolidação dos quadrinhos como a Nona Arte. Nas palavras da dupla,

[...] as histórias em quadrinhos vieram à tona por meio do caricaturista suíço Rodolphe Töpffer, do mangá do pintor japonês Hakusai, da série britânica Ally Sloper e da explosão dos funnies dos jornais norte-americanos do final do século XIX e início do XX [...]. Ainda que eles tenham se desenvolvido em grande medida de forma independente, em culturas separadas por oceanos e barreiras linguísticas, sempre houve influências transculturais e transnacionais. Assim, os estilos das bandes déssinées franco-belgas e do mangá japonês dos anos 1920 e 1930 foram influenciados em parte pelas tiras cômicas norte-americanas importadas, cujo estilo linear recebeu a influência da ilustração do art nouveau francês, cujas raízes podem ser atribuídas, em parte, às gravuras japonesas que haviam chegado à Europa no século XIX. (MAZUR, DANNER, 2014, p. 07, grifos dos autores).

Entretanto, como observa Veronezi (2010, p. 9), “na primeira metade do século XX, em que a modernidade ainda era o paradigma dominante de influência, a imagem era vista com desconfiança.” De acordo com a autora, tal status da imagem poderia ser atribuído ao advento das novas tecnologias, as quais mostravam “que cada vez mais a realidade poderia ser simulada à perfeição no cinema e na televisão.” Nessa situação de desconfiança, Veronezi exemplifica com o episódio da chegada do homem à Lua em 1969, fato desacreditado por muita gente à época e, segundo a autora, tal ideia possui um fundamento de coerência, “caso se considere que um ano antes Stanley Kubrick apresentava ao mundo 2001 – Uma Odisseia no Espaço, película de efeitos especiais assustadoramente críveis.” (VERONEZI, 2010, p. 9).

Como mencionado na introdução, esta dissertação parte do princípio fundamental de que Histórias em Quadrinhos e Literatura são esferas artísticas distintas, detentoras de

36 elementos próprios de sua linguagem. A distinção – ou até mesmo a ideia contrária – entre essas duas artes ainda é polêmica e divide a opinião de teóricos e pesquisadores, mantendo o debate e fomentando novos estudos. A relação entre HQs e Literatura passou a ficar mais complexa com a tendência das adaptações de clássicos literários para o formato quadrinizado. Obras como a Odisseia, de Homero, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, Os Lusíadas, de Camões, Hamlet, de Shakespeare, incluindo a própria Divina Comédia, são exemplos de clássicos universais que foram adaptados para os quadrinhos.

Figura 3: A Divina Comédia de Dante também recebeu adaptações para o formato de HQ. Abaixo, um fragmento de uma de suas adaptações em quadrinhos. A autoria é de Piero (aquarelas e roteiro) e Giuseppe Bagnariol (roteiro).

Fonte: . Acesso em: 2 nov. 2019.

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De modo semelhante, os clássicos da Literatura Brasileira também ganharam suas versões em HQs. Do Romantismo (como O guarani, de José de Alencar, e A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães) passando pelo Realismo (Dom Casmurro, de Machado de Assis, e O Ateneu, de Raul Pompeia), Naturalismo (O Cortiço, de Aluísio Azevedo), Pré-Modernismo (Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Os Sertões, de Euclides da Cunha) e chegando às obras do Modernismo (Macunaíma, de Mário de Andrade, O Quinze, de Rachel de Queiroz, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa) a adaptação para os quadrinhos de obras como as que exemplificamos reforça essa tendência.

Figura 4: Trecho da graphic novel Vidas Secas (2015), adaptada para os quadrinhos pelo quadrinista Eloar Guazzelli e pelo roteirista Arnaldo Branco a partir da obra de Graciliano Ramos.

Fonte: . Acesso em: 2 nov. 2019.

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Ramos (2010) esclarece que, mesmo com a adaptação desses clássicos em HQs, elas continuam sendo um domínio artístico que possui linguagem autônoma:

É muito comum alguém ver nas histórias em quadrinhos uma forma de literatura. Adaptações em quadrinhos de clássicos literários – como ocorreu com A Relíquia, de Eça de Queirós, e O alienista, de Machado de Assis, para ficar em dois exemplos – ajudam a reforçar esse olhar. Chamar quadrinhos de literatura, a nosso ver, nada mais é do que uma forma de procurar rótulos socialmente aceitos ou academicamente prestigiados (caso da literatura, inclusive a infantil) como argumento para justificar os quadrinhos, historicamente vistos de maneira pejorativa, inclusive no meio universitário. (RAMOS, 2010, p. 17, grifos do autor).

Ainda conforme o autor, quadrinhos são quadrinhos e, como tal, utilizam mecanismos próprios para representar os elementos narrativos. O pesquisador também observa que os quadrinhos possuem muitos pontos comuns com a literatura, da mesma forma que eles possuem certa relação com o cinema, o teatro e tantas outras linguagens. (RAMOS, 2010, p. 17).

O importante, segundo Ramos (2010, p. 19), é fixar a ideia de que quadrinhos e literatura são linguagens distintas, as quais abrigam uma gama de gêneros diferentes. Para tanto, o autor detalha o que os quadrinhos efetivamente são. Com base na análise de obras em quadrinhos e de estudos nessa área, ele conseguiu identificar algumas tendências:

(i) diferentes gêneros utilizam a linguagem dos quadrinhos; (ii) predomina nas Histórias em Quadrinhos a sequência ou tipo textual narrativo; (iii) as histórias podem ter personagens fixos ou não; (iv) a narrativa pode ocorrer em um ou mais quadrinhos, conforme o formato do gênero; (v) em muitos casos, o rótulo, o formato, o suporte e o veículo de publicação constituem elementos que agregam informações ao leitor, de modo a orientar a percepção do gênero em questão; (vi) a tendência nos quadrinhos é a de uso de imagens desenhadas, mas ocorrem casos de utilização de fotografias para compor as histórias. (RAMOS, 2007).

Tendo como base esse levantamento, o autor finalmente define Histórias em Quadrinhos como “um grande rótulo que une as características apresentadas anteriormente, utilizadas em maior ou menor grau por uma diversidade de gêneros, nomeado de diferentes maneiras”. (RAMOS, 2007, p. 42). Além disso, ele explica que todos esses gêneros teriam em comum o uso da linguagem dos quadrinhos para compor um texto narrativo dentro de um contexto sociolinguístico internacional. Quadrinhos seriam, então, um grande rótulo, um 39 hipergênero, que agregaria diferentes outros gêneros, cada um com suas peculiaridades. (RAMOS, 2010, p. 20).

Na história das Histórias em Quadrinhos, o mangá requer um olhar particular, uma vez que a formação da linguagem quadrinizada no Oriente, especialmente no Japão, é uma história pouco conhecida em outras partes do mundo. Todavia, concordamos com Luyten (2011, p. 76), quando a autora afirma que “se seguirmos o fio da meada dessa história, traremos à tona um universo novo para a compreensão do fenômeno atual dos mangás.” Esse universo será apresentado nos próximos subcapítulos. A intenção é expor um panorama histórico dos mangás, desde suas manifestações mais primitivas até os dias de hoje, com uma parada no final da década de 1980, onde o foco incidirá sobre o nosso objeto de análise – o mangá Cavaleiros do Zodíaco.

1.2 ORIGEM DOS MANGÁS

A cronologia dos mangás é complexa e, por conseguinte, requer certa profundidade na abordagem desse gênero, especialmente se quisermos compreendê-lo como aquilo que Vergueiro (1985) e Luyten (2011) denominam de “fenômeno de comunicação de massa”. Conforme os estudos de Luyten (2011, p. 76), a história dos mangás está profundamente ligada à história do Japão. De acordo com a pesquisadora, se retrocedermos na linha do tempo desse país, será possível constatar que a mais forte influência cultural que o Japão recebeu na antiguidade foi da China. A partir do século IV, o Japão se consolidou como nação, e sucessivos imperadores fortaleceram as bases do país com a inserção de vários aspectos da cultura continental, tais como o sistema de escrita chinesa, a organização social, a religião (budismo), a ideologia (confucionismo) e as artes, tendo a Coreia como intermediária no influxo da cultura chinesa. (LUYTEN, 2011, p. 76). De maneira gradual, o budismo foi se disseminando no país nos séculos VI e VII, e a construção de templos na região de Nara – a primeira capital japonesa – o solidificou. E, conforme Luyten (2011), é justamente nos templos de Toshodaiji e Horyuji, as duas obras- primas da arquitetura budista, onde têm início os antecedentes longínquos da história dos mangás:

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Em 1935, enquanto estavam sendo feitos reparos nos tetos e nas paredes desses templos, foram descobertos desenhos feitos a tinta e pincel, talvez por construtores e escribas do final do século VII. O mais curioso é que eram desenhos profanos, caricaturas de animais e pessoas com traços exagerados e narizes de grandes proporções – que naquela época tinham uma implicação erótica na arte japonesa. Alguém com espírito de humor e irreverência deixou um grande marco, e são esses os exemplos mais antigos da caricatura japonesa. (LUYTEN, 2011, p. 77).

Figura 5: O Golden Hall, também conhecido como Kondō, uma das muitas construções do complexo de templos budistas de Toshodaiji, localizado na cidade de Nara, província de Nara, Japão.

Fonte: . Acesso em: 03 out. 2018.

Figura 6: Complexo de templos budistas Horyuji, localizado na cidade de Ikaruga, província de Nara, Japão.

Fonte: . Acesso: 03 out. 2018.

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Essas ilustrações, produzidas a partir de técnicas herdadas dos chineses, eram feitas em rolos e pintadas a nanquim e ficaram conhecidas como Ê-Makimono. Conforme Ono e Tezuka (1980, p. 214), os Ê-Makimono são considerados a origem das histórias em quadrinhos no Japão. Muito abundantes nos séculos XI e XII, os Ê-Makimono eram desenhos pintados sobre um grande rolo e contavam uma história, cujos temas iam aparecendo gradativamente à medida que ia se desenrolando. Era construída, assim, com estilo original, uma história composta de numerosos desenhos. A maioria desses rolos foi pintada entre os séculos XI e XII, e o conjunto mais famoso deles chama-se Chojugiga, produzido pelo bonzo Kakuyu Toba, que viveu de 1053 a 1140 (LUYTEN, 2011; MOLINÉ, 2004). Trata-se de imagens humorísticas de animais e, nas palavras de Luyten (2011),

Chojugiga é um clássico famoso da arte cômica japonesa e tem seu reconhecimento na história mundial da arte em função do humor satírico aliado à técnica apurada da captação de formas. Nele, sapos, macacos, coelhos e raposas são humoristicamente antropomorfizados, satirizando as condições da época. Os japoneses o comparam a um Walt Disney de oito séculos atrás, mas acredito que sua alma gêmea seja mesmo Walter Kelly, o criador de Pogo na década de 1950, nos Estados Unidos. (LUYTEN, 2011, p. 77-78, grifo do autor).

Gravett (2006, p. 22) complementa sobre a natureza do Chojugiga e destaca o caráter profano dessas imagens para além do humor, uma vez que Toba, além de ironizar “sutilmente os religiosos, transformando-os em coelhos, macacos, raposas e sapos [...], desenhava também infames concursos de peidos”.

Figura 7: Clássico da arte cômica japonesa do século XII, o Chojugiga é constituído por imagens satíticas de animais antropomorfizados que representam as condições sociais da época.

Fonte: . Acesso em: 05 out. 2018.

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Nos séculos seguintes, o desenho de caricaturas em pergaminhos e gravuras foi a técnica mais utilizada pelos japoneses, apresentando muitas vezes temáticas eróticas ou escatológicas15. (MOLINÉ, 2004, p. 14). Avançando na linha do tempo, Moliné (2004, p. 15) comenta que, no período Edo16 (1600-1867), surgem outros suportes gráficos: • os zenga (“imagens zen”), gravuras monocromáticas que utilizavam a caricatura para fins de meditação;

• os ôtsu-e (“imagens de Ôtsu”, chamadas assim porque eram vendidas na região e na cidade de Kyoto com esse nome), amuletos budistas que eram uma espécie de “caricaturas portáteis” coloridas;

• os nanban, biombos ilustrados com desenhos estilizados que relatavam a chegada dos portugueses e holandeses, primeiros europeus a estabelecer contato com o país asiático e representados com grandes narizes;

• e, em especial, os ukiyo-e (“imagens do mundo flutuante”), gravuras elaboradas a partir de pranchas de madeira, geralmente de temática cômica e, às vezes, erótica, as quais tiveram uma aceitação formidável na época. Essas gravuras eram apreciadas pelas classes populares e seus criadores preferiam a crítica social e a sátira à perfeição estética.

15 O adjetivo “escatológico” resulta do substantivo “escatologia”, o qual possui mais de um significado. No contexto dos Chojugiga, a palavra empregada se refere à escatologia como “tratado acerca dos excrementos, coprologia” ou, em acepção ampliada, “utilização ou gosto por expressões ou assuntos relacionados a fezes ou obscenidades”. O outro significado do adjetivo diz respeito às implicações teológicas do fim do mundo, isto é, o Apocalipse, o Juízo Final, o qual não cabe nas referidas ilustrações. (HOLANDA, p. 519, 1988). 16 Período da história do Japão que foi governado pelos xoguns da família Tokugawa, no período de março de 1603 a maio de 1868, estabelecido por Tokugawa Ieyasu (o primeiro xogum desta era) na então cidade de Edo (atual Tóquio), três anos após a batalha de Sekigahara. Trata-se de um período de forte isolamento político- econômico do país e rígido controle interno, regulando os feudos através do código de leis. Em 1868, o período terminou com a Restauração Meiji, quando o governo imperial recuperou sua autoridade, marcando o fim das ditaduras feudais, iniciando a modernização do Japão. 43

Figura 8: Exemplo de uma gravura zenga do período Edo. Segundo a fonte consultada, a obra artística intitula-se O Buda histórico com arhats. A autoria e o ano preciso de sua produção são desconhecidos.

Fonte: . Acesso em: 05 out. 2018.

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Figura 9: Demônio convertido ao budismo (obra artística produzida entre os anos 1860 e 1865), de Kawanabe Kyōsai. Um exemplo de gravura ôtsu-e.

Fonte: . Acesso em: 06 out. 2018.

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Figura 10: Bárbaros do sul (produzido entre 1593 e 1600), cuja autoria é atribuída ao artista Kanō Domi, é um exemplo de arte nanban. A gravura abaixo é apenas um detalhe de um dos muitos biombos produzidos pelos artistas japoneses a partir da chegada dos portugueses no Japão, em 1543, e de outras nações europeias no início do período Edo. Como todas as produções artísticas do estilo nanban, a imagem retrata comerciantes e missionários da Europa, especificamente de Portugal.

Fonte: . Acesso em: 05 out. 2018.

Figura 11: A grande onda de Kanigawa (produzida entre 1826 e 1833), de Katsushika Hokusai, mais conhecida simplesmente como A onda, é considerada a obra-prima do gênero ukiyo-e e também uma das mais populares e aclamadas peças da arte japonesa.

Fonte: . Acesso em: 05 out. 2018.

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Conforme Gravett (2006, p. 22), “o material impresso mais barato e acessível ao público, e provavelmente mais próximo ao espírito do mangá, eram as gravuras ukiyo-e, saídas dos bairros boêmios, ou “mundo flutuante””. Contemporâneos do ukiyo-e foram os Toba-e (“imagens ao estilo de Toba”), assim batizados em homenagem ao criador dos chojugiga, que consistiam em estampas satíricas recompiladas em pequenos livros denominados kibyôshi (“livros de capa amarela”), semelhantes aos anteriores, porém, ofereciam histórias contínuas em lugar de imagens isoladas, sendo então um antecedente dos gibis. (MOLINÉ, 2004, p. 17). Acerca da natureza dos Toba-e, Gravett (2006) também escreve e apresenta brevemente a noção dessas produções artísticas:

Outros ancestrais do mangá incluem os Toba-e, assim chamados em honra a um grande pintor de pergaminhos. Eram compilações de imagens que apresentavam situações cômicas usando humor visual e pouquíssimo texto. Os primeiros foram produzidos por Oka Shumboku no início do século XIX em Osaka, que, assim como hoje, era uma cidade de empreendedores. (GRAVETT, 2006, p. 24).

Um dos mais renomados desenhistas de ukiyo-e de sua época e o primeiro a desenvolver as imagens em sucessão de desenhos foi Katsushika Hokusai (1760-1849). O primeiro encadernado do artista data de 1814 e intitula-se Hokusai Manga. (LUYTEN, 2004, p. 84; MOLINÉ, 2004, p. 18; GRAVETT, 2006, p. 13). Ao conceber esse estilo, que unia dois caracteres do nihongo (a língua japonesa), man (“involuntário”) e ga (“desenho”, “imagem”, “caricatura”, “ilustração”) – cuja palavra resultante significava “imagens involuntárias” –, este o impôs definitivamente como sinônimo de tudo o que é relacionado à caricatura ou ao humor gráfico. Etimologicamente falando, e no contexto em que o vocábulo fora cunhado, o significado da palavra mangá diz respeito a uma “forma livre” de se desenhar, a qual resulta em “imagens involuntárias”. A origem do emprego do termo mangá, bem como a ideia de que esta narrativa quadrinizada constitui um gênero literário/artístico genuinamente japonês, são aspectos problemáticos e ainda hoje muito discutidos entre acadêmicos e estudiosos do tema, tais como Schodt (1983), Gaumer (2002), Ito (2004), Moliné (2004), Gravett (2006), Johnson- Woods (2010) e Luyten (2011).

A palavra inventada por Hokusai, a acepção que ela representava outrora, restrita a imagens involuntárias em sucessão, e o significado mais complexo que o vocábulo assume na 47 contemporaneidade, bem como a evolução dos quadrinhos japoneses, são problematizados por Gravett (2006):

Então o que a palavra mangá pôde ter significado para o artista Katushika Hokusai em 1814, quando ele inventou o termo? Significava rascunhos mais livres, inconscientes, nos quais ele podia brincar com o exagero, a essência da caricatura. Hokusai nunca incluiu a narrativa em seus rascunhos mas, se estivesse vivo hoje, poderia reconhecer no mangá moderno um pouco do gosto pelas expressões grotescas, pela comédia física e pelo desenho sem inibições. (GRAVETT, 2006, p. 25).

Entretanto, Moliné (2004, p. 18) afirma que foi somente na segunda década do século XX que o termo mangá se consolidou, e complementa explicando que o termo cunhado por Hokusai foi determinante para o curso das Histórias em Quadrinhos japonesas, o qual abriu o caminho para uma das mais prósperas e gigantescas indústrias do país. Ainda no século XIX, mais precisamente a partir de 1853, ano em que o almirante americano Matthew Calbraith Perry (1794-1858) visitou o Japão com o objetivo de estabelecer laços amistosos entre o país do Sol Nascente e os Estados Unidos, teve início uma progressiva abertura até o Ocidente, a qual consolidou-se no período Meiji17 (1868- 1912).(MOLINÉ, 2004, p. 18). Em 1862, com o surgimento da revista mensal satírica The Japan Punch, de responsabilidade do inglês estabelecido no Japão, Charles Wirgman, semelhante ao semanário Tôbaé, de 1887, criado pelo francês Georges Bigot, embora se tratasse de uma publicação destinada em princípio aos estrangeiros residentes no país, influenciou de maneira decisiva os artistas nipônicos contemporâneos. (MOLINÉ, 2004, p. 19; GRAVETT, 2006, p. 25). Para Luyten (2011, p. 87), Wirgman e Bigot desempenharam papéis importantes na evolução dos mangás, uma vez que estão inseridos no momento histórico em que ocorreu a fusão de uma longa tradição com a inovação, resultando no nascimento das Histórias em Quadrinhos como veículo de comunicação. No final do século XIX, Luyten (2011, p. 88) explica que a atenção dos desenhos japoneses começou a ser desviada da Europa para os Estados Unidos. E complementa afirmando que, mesmo com a longa história dos antecedentes dos quadrinhos japoneses, jamais alguém no Japão teve a ideia de dispor a narrativa decomposta em imagens sucessivas.

17 Esse período, também conhecido como Era Meiji, constitui-se no reinado de quarenta e cinco anos do Imperador Meiji do Japão, que se estendeu de 3 de fevereiro de 1867 a 30 de julho de 1912. Nessa fase, o Japão experimentou uma acelerada modernização, graças a Restauração Meiji, uma revolução política, social e industrial que o alçou ao posto de uma das grandes potências mundiais.

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A criação dos primeiros quadrinhos seriados com personagens regulares se deve a Rakuten Kitazawa. Trata-se de um artista que se esforçou para disseminar e popularizar o termo mangá, o qual passou a utilizar para designar as Histórias em Quadrinhos japonesas. (LUYTEN, 2011, p. 88-89). A respeito do pioneirismo de Kitazawa, Moliné (2004) acrescenta dizendo que esse artista [...] é considerado o primeiro verdadeiro autor de quadrinhos japoneses, criando em 1901 a primeira historinha japonesa com personagens fixos, Tagosaku to Mokubê no Tokyo Kenbutsu (“A Viagem a Tokyo de Tagosaku e Mokubê”), para a qual recuperaria a denominação de mangá (MOLINÉ, 2004, p.19).

No início do século XX, o Japão estava absorvendo a cultura ocidental intensamente, em todas as áreas. Luyten (2011, p. 90) explica que os japoneses convidavam conselheiros estrangeiros, os quais eram “pagos a peso de ouro”, para promover a introdução e assimilação das instituições de tecnologias ocidentais. Para tanto, mostravam diligência e aplicação, economizando muito para ter capital e estabelecer-se como uma moderna nação capitalista, promovendo o desenvolvimento das indústrias com tecnologia ocidental. Dito de outro modo, para o Japão, modernização significava ocidentalização. A autora também complementa que

A elite da sociedade vinha entusiasticamente adotando a cultura ocidental, perseguindo o que era chamado cultural enlightenment (literalmente, iluminação cultural). Com os quadrinhos aconteceu algo semelhante à cultura no processo de absorção das novas ideias. Pouco a pouco, os caminhos das histórias em quadrinhos japonesas começaram a reclamar algo mais próximo da sua realidade. (LUYTEN, 2011, p. 90-91, grifos da autora).

Quanto à leitura dos quadrinhos ocidentais pelos japoneses, Schodt (1983) explica que, naquele momento histórico,

Os leitores japoneses apreciavam os comics americanos como uma introdução a uma cultura exótica e os artistas adotaram seu formato. Mas ao contrário das nações europeias, como Itália e França, os quadrinhos americanos no Japão não competiam com a variedade doméstica. O relativo isolamento cultural sempre permitiu ser mais seletivo às influências estrangeiras e depois adaptá-las ao seu próprio gosto. (p. 45, grifo do autor).

De acordo com Luyten (2011, p. 96), o povo passava por muitas dificuldades no Japão dos anos 1920. Enquanto isso, os ultranacionalistas e os militaristas se moviam para controlar o governo. Por sua vez, os autores de mangá procuravam criar personagens com 49 características bastante cômicas e otimistas para transmitir um pouco de alento ao público leitor infantojuvenil. É neste contexto que surge Norakuro, de Suiho Tagawa,

[...] uma história que trouxe muitos sonhos e alimentou muitos desejos nas crianças. O herói era um cãozinho homônimo, o Norakuro, que havia sido abandonado e não tinha para onde ir. Resolveu ingressar no exército imperial, mas não conseguia ser bem-sucedido em suas atividades. Apesar de suas boas intenções, acabava sempre fazendo coisas erradas, sendo alvo de crítica de seus superiores. (LUYTEN, 2011, p. 96).

A busca de evasão (na fantasia e na realidade) foi outra característica desse período no país. A situação continuava insatisfatória, e muitas pessoas procuravam partir para outros lugares, ao mesmo tempo em que o próprio Japão buscava recursos fora. (LUYTEN, 2011, p. 96). Em 1939, estoura a Segunda Guerra Mundial e o mundo se divide. O estado da economia mundial, tanto do lado japonês quanto do outro, relaciona-se muito com a decisão do Japão de entrar na guerra. Com o início da guerra, houve uma considerável redução da produção de mangás, causada pela restrição de papel, mas especialmente pela censura. Os trágicos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki culminariam em uma etapa obscura e iniciariam outra nova e esperançosa era na história do Japão, o período Heisen (1945-2019), e um novo ciclo na história dos mangás. (MOLINÉ, 2004, p. 20). De acordo com Luyten (2011),

Durante os anos da guerra, os países aliados e do Eixo não só se movimentaram com exércitos, tropas, soldados e munições, mas também com artistas, cujas criações passaram a tomar posições. No ocidente, conhecemos bem como as histórias em quadrinhos entraram no conflito. Os militares descobriram os quadrinhos, encarregando alguns artistas de publicá-los nos boletins do exército, nos mais diversos pontos do globo nos quais houvesse soldados americanos. (LUYTEN, 2011, p. 101, grifo da autora).

A autora também defende a ideia de que, se quisermos analisar a produção de Histórias em Quadrinhos durante a guerra, fatalmente cairemos em discussões sobre até que ponto elas serviram para alimentar esperanças, reconfortar pessoas, criar ódios, estimular o racismo. E acrescenta expondo que, após a Segunda Guerra, elas foram incriminadas como sedutoras de inocentes, chegando a ser proibidas pelos pais e pelas escolas de muitos países. (LUYTEN, 2011, p. 103).

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Nesse contexto, Lacassin (1971) reflete que

As histórias em quadrinhos pertencem a uma forma de cultura que exige enormes mercados. São concebidas para satisfazer um público vasto e não para decepcioná-lo. Elas assumem os desejos e as aspirações dos mais puros aos mais perversos, dos mais legítimos aos mais condenáveis. Uma civilização tem os sonhos que merece; os quadrinhos os produzem. Estudar o racismo nas histórias em quadrinhos é medir o grau de racismo da coletividade que os produz. (1971, p. 310).

Após o final da Segunda Guerra, a indústria dos mangás se vê forçada a começar do zero. O Japão necessitava de meios de entretenimento e distração para esquecer os dolorosos e recentes acontecimentos. (MOLINÉ, 2004, p. 20). Segundo Luyten (2011, p. 105), a humilhação, transformada em reconstrução depois da perda, foi o objetivo seguido pelo povo do país do Sol Nascente, uma vez que a derrota final resultou, como de hábito, na vida japonesa, no abandono dos caminhos que vinham seguindo. Ou, valendo-se das palavras de Benedict (1972, p. 259), “a ética peculiar dos japoneses lhes permitiu limpar o quadro-negro”. No contexto do fim da guerra, muitos editores tradicionais de Tóquio estavam desorganizados e as revistas de Histórias em Quadrinhos tornaram-se muito caras em vista do baixo poder aquisitivo do povo. Em Osaka, centro comercial rival, esse cenário foi vislumbrado como uma oportunidade. Por lá, começou-se a editar livrinhos de quadrinhos muito baratos, impressos em papel grosseiro e vendidos nas ruas. Suas capas eram vermelhas e foi com essa característica que ficaram conhecidos: akai hon (ou livrinhos vermelhos). Os desenhistas eram mal remunerados, entretanto, a política da época da ocupação permitia certa liberdade aos artistas como nunca haviam tido antes, desde que não atacassem os americanos. (LUYTEN, 2011, p. 106-107). Sob a ocupação americana, após a Segunda Guerra Mundial, os mangakás sofrem grande influência das histórias em quadrinhos ocidentais da época, traduzidas e difundidas em grande quantidade na imprensa cotidiana. (SILVA, 2013). A influência da cultura estadunidense nos quadrinhos japoneses pôde ser constatada pela primeira vez em 1946, quando foi editada Shin Takarajima (Nova Ilha do Tesouro), primeira obra longa do então iniciante . Trata-se de um mangaká influenciado por Walt Disney, o qual revolucionou esta forma de expressão, implantando dinamismo, ritmo e estilo até então pouco habituais nos quadrinhos do país. (MOLINÉ, 2004; GRAVETT, 2006; LUYTEN, 2011).

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Figura 12: Fragmento de Shin Takarajima (Nova Ilha do Tesouro), de Osamu Tezuka. Trata-se de uma das primeiras obras de Tezuka, a qual inovou a arte de produzir mangá. Os diferentes tipos de enquadramentos e ângulos de câmera utilizados conferem uma linguagem cinematográfica à narrativa, resultando em um ritmo e dinamismo nunca antes vistos nos quadrinhos japoneses.

Fonte: < https://toulousemanga.fr/lecole-mondiale-du-manga/lecon-4/>. Acesso em: 31 out. 2019.

Para Luyten (2011, p. 109), a produção dos quadrinhos japoneses que circula nos mangás tem uma relação direta com a contribuição de Tezuka, o qual dedicou 40 anos de sua vida a essa atividade. Segundo a autora, suas obras modificaram não só a estrutura da linguagem, desdobrando as cenas numa sequência mais fluida, como também o conteúdo, pela variedade de temas e personagens. O cinema e o comic norte-americano haviam influenciado o jovem Tezuka o suficiente para que importasse essas inovações. Sua admiração pelos desenhos animados de Disney e de Fleischer pode ser comprovada pelo modo com que quase todos os seus personagens aparecem desenhados: com olhos grandes e amplas e brilhantes pupilas, em homenagem aos desenhos animados americanos. (MOLINÉ, 2004, p. 19).

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Figura 13: Betty Boop, personagem de Max Fleischer

Fonte: < https://laparola.com.br/pin-ups-sim-a-la-betty-boop-e-hilda>. Acesso em: 30 out. 2019.

Figura 14: Safiri, protagonista de Ribbon no Kishi (A Princesa e o Cavaleiro), de Osamu Tezuka

Fonte:. Acesso em: 30 out. 2019.

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As características faciais semelhantes às dos desenhos da Disney, onde olhos, boca, sobrancelhas e nariz são desenhados de maneira bastante exagerada para aumentar a expressividade dos personagens, são as suas marcas mais evidentes. É ele quem introduz os movimentos nas histórias através de efeitos gráficos, como linhas que dão a impressão de velocidade ou onomatopeias que se integram com a arte (LUYTEN, 2002, p. 178), destacando todas as ações que comportassem movimento, mas também, e acima de tudo, pela alternância de planos e de enquadramentos como os usados no cinema. (NAGADO, 2016, p. 39). Além de todas essas novidades, Moliné (2004, p. 20) também observa que as histórias passaram a ser mais longas, e algumas começaram a ser divididas em capítulos.

Figura 15: Hinotori (Fênix), de Osamu Tezuka, publicado a partir de 1954, passou a simbolizar o renascimento do Japão após a Segunda Guerra Mundial.

Fonte: . Acesso em: 5 nov. 2019.

O novo modo de se conceber um mangá, as inovações e o estilo de Tezuka são a sua marca artística, os quais constituem um verdadeiro legado na história dos quadrinhos

54 japoneses. Especialistas dos mangás, como Moliné (2004), Gravett (2006) e Luyten (2011), concordam que sua marca influenciou a produção de outros artistas e permanece até os dias de hoje, sendo que é possível encontrá-la presente em diversas publicações da atualidade. Em 1947 aparece a primeira publicação mensal totalmente composta de manga, Manga Shonen, que abriria caminho a toda uma geração de mangakás que logo alcançariam a celebridade (entre eles o próprio Osamu Tezuka). Já o ano de 1955 ficou marcado porque foi quando apareceram as primeiras revistas totalmente compostas de shojo manga, ou mangá para meninas, entre elas Nakayoshi e Ribon. (MOLINÉ, 2004, p. 21). O ano de 1956 também merece destaque na história dos mangás. Trata-se de um momento importante no progresso do mangá como meio de entretenimento adulto: o nascimento do termo gekigá (“imagens dramáticas”), criado pelo artista Yoshihiro Tatsumi. Esse gênero é caracterizado por mangás com linguagem e temáticas mais realistas, incluindo histórias repletas de violência, as quais retratam ambientes frequentemente tensos e obscuros. São quadrinhos destinados, em suma, a um público mais maduro e habitualmente de baixa classe social. Já no final da década de 1950, se inicia o boom das publicações de mangás semanais. (MOLINÉ, 2004, p. 21). Na mesma época que a Europa e as Américas conheciam a decadência das HQs, motivada especialmente pela expansão da televisão, no Japão a indústria dos mangás experimentava um aumento espetacular, tanto nas tiragens quanto no número de títulos. O auge da televisão proporcionou uma fantástica expansão da indústria da animação japonesa ao propiciar as adaptações dos mangás mais populares para séries de . (MOLINÉ, 2004). Sobre esse fenômeno, Gravett (2006) disserta que

Os japoneses transformaram os quadrinhos em uma poderosa literatura de massa, capaz de fazer frente ao aparentemente imbatível domínio da televisão e do cinema. Na verdade, o mangá exerce uma espécie de controle sobre a TV e o cinema japoneses. Grande parte das obras bem-sucedidas dessas duas mídias tem origem em mangás, que são adaptados na forma de desenhos animados e filme com atores. (GRAVETT, 2006, p. 14).

Na década de 1960, surgiram os primeiros mangás para o público adulto com publicações alternativas ou underground. Em 1967, Osamu Tezuka lançou COM, propiciando novas experiências e temáticas no meio. Entre o final dos anos 1960 e princípios de 1970, o shojo manga conheceria grande sucesso com a proliferação das autoras de mangás, as quais trouxeram novas temáticas e visibilidade ao gênero.

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Figura 16: Página de Kozure Ōkami (Lobo Solitário), série de mangá do gênero gekigá, escrita por e ilustrada por Goseki Kojima.

Fonte: < https://www.planocritico.com/critica-lobo-solitario-vol-1-o-caminho-do-assassino/>. Acesso em: 27 out. 2019

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A década de 1970 presenciaria a intensificação de movimentos de autores de mangás aficionados e dos dôjinshi (fanzines). A partir da aparição, em 1973, da Erotopia, primeira revista dedicada aos ero-gekigá, o erotismo iria ganhar mais força. Em 1978 foi lançada June, dedicada exclusivamente às histórias , que tratavam de amores entre homens, destinadas ao público feminino. Entre o final dos anos 1970 e início dos anos 1980, é a vez de publicações mais adultas. Na mesma época ocorreria o nascimento dos Lady’s comics, ou publicações de mangás destinadas a mulheres adultas. No entanto, os autores de dôjinshi foram forçados a reduzir a carga erótica das produções para superar o sucesso dos títulos de manga das grandes editoras. Na segunda metade dos anos 1980, é a vez dos mangás de caráter “informativo”, ou johô manga (MOLINÉ, 2004). Atualmente, há títulos de mangás para cada sexo, faixa etária e ocupação, cujos semanários têm tiragens de milhões de exemplares por número. No entanto, desde os princípios dos anos 1990, surgiram movimentos contrários aos mangás, os quais colocaram a indústria dos mangás em crise, tanto nos níveis econômicos como criativos. Nos últimos anos notou-se uma leve queda nas vendas de mangás. Para Moliné (2004),

Se a televisão não conseguiu afetar a indústria dos gibis do Japão a partir dos anos 60, como aconteceu na Europa e na América, os videogames, a expansão de computadores e da internet parecem ter afetado esse segmento nas últimas duas décadas (MOLINÉ, 2004, p. 25).

Não fosse a criatividade e o empreendedorismo japonês, tal movimento retrógrado da indústria dos mangás afetaria a presente década também. Para tanto, essa indústria buscou alternativas, parcerias e produtos que serviriam como aliados na manutenção e unanimidade dos quadrinhos japoneses em escala global. Aos primeiros sopros de uma possível crise nessa indústria, estabeleceu-se uma parceria de sucesso entre os mangás, a internet e as plataformas de streaming. Outras parcerias já existentes com as HQs japonesas, como o mercado de animação, games, computação gráfica, brinquedos, televisão, cinema, entre outros bens de consumo e entretenimento, foram ampliadas. Hoje é muito difícil o leitor se deparar com um mangá que não tenha sua adaptação em anime ou live-action, seja para a televisão, para o cinema ou para a disponibilização exclusiva nos serviços de streaming. Também é muito difícil encontrar um mangá que não possua um aplicativo de jogos para smartphone; não possua bonecos colecionáveis, camisetas, figuras adesivas, materiais escolares, álbuns de figurinhas, jogo de cartas, produzidos a partir de seus personagens e cenários emblemáticos; não possua grupos 57 de discussão nas redes sociais e em outros ambientes virtuais... Enfim, são centenas de produtos advindos dessa indústria que poderiam ser citados para ilustrar o seu poder e influência ao redor do mundo, real e ou virtual. Em suma, o mercado editorial nipônico soube explorar e disseminar esse ramo de sua cultura pop para além das fronteiras da terra do sol nascente e para muito além das páginas em preto e branco. O licenciamento de marcas e a venda de direitos autorais de mangás constituem uma tendência cada vez mais visível nesse universo de consumo e entretenimento. Trata-se, em outras palavras, de uma indústria proeminente que favoreceu a economia japonesa e difundiu sua cultura pop por todos os continentes, seja pela vasta gama de seus gêneros direcionados a públicos, segmentos e faixas etárias específicos, seja pela parceria de sucesso estabelecida com outros mercados, serviços e bens de consumo. Década após década, esse mercado se renova, adquire maior visibilidade e amplia o rol de produtos advindos das páginas dos quadrinhos japoneses, sempre sintonizado com os avanços tecnológicos – muitos deles desenvolvidos no próprio Japão –, injeta milhões de ienes na economia japonesa e milhões de dólares mundo afora, movimentando a economia em uma escala global, e, sobretudo, conquistando novos espaços, territórios e leitores.

1.3 CARACTERÍSTICAS

O mangá possui muitos detalhes ideológicos – com relação ao ritmo dos personagens e da ação, o layout, etc. – que permitiram que a narrativa gráfica japonesa adquirisse personalidade própria. Carvalho (2006) considera tais elementos ou detalhes como particularidades de deferência: A deferência com os quadrinhos japoneses ocorre porque eles têm uma série de elementos que os caracterizam como algo diferente dos quadrinhos ocidentais – ainda que atualmente muitas HQs do Ocidente já tenham incorporado algumas das técnicas japonesas. (CARVALHO, 2006, p. 55).

Moliné (2004) lista os principais elementos que caracterizam os mangás como algo diferente dos quadrinhos ocidentais:

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(i) A variedade de temas: Um dos principais motivos que despertam a curiosidade do leitor que descobre o mangá é a grande variedade de gêneros e temas abordados nas diversas séries de quadrinhos no mercado japonês. Segundo o especialista, nos mangás, os roteiros alcançam sua máxima expressão ao citar temas que nem sempre são retratados em histórias fora do Japão.

(ii) A psicologia dos personagens: Na maioria das vezes, os protagonistas de um mangá têm seu lado psicológico mais profundamente abordado que os heróis ocidentais. Diferente do arquétipo do herói extremamente perfeito, os personagens têm seus defeitos e sentimentos: riem, choram, crescem, amadurecem e alguns morrem. Paralelamente ao desenvolvimento do mangá, aprendem a partir de seus erros, e sua história quase sempre tem um final definitivo, quando o autor conclui uma série. Nos quadrinhos ocidentais, são poucos os casos de personagens que vão crescendo e evoluindo, simultaneamente ao tempo cronológico durante o qual são publicadas suas aventuras impressas. Os personagens de mangá adolescentes ou adultos não são os mesmos no início e no final de suas respectivas séries. Como em Cavaleiros do Zodíaco, o protagonista que, na maioria das vezes é jovem, se transforma de menino em adulto e descobre o próprio sentido da existência e sua missão na vida. Os personagens também se modificam psicologicamente: à medida que avança o mangá, eles vão amadurecendo física e psicologicamente e desenvolvem sentimentos e valores como a responsabilidade, a amizade e o respeito.

(iii) O ritmo narrativo: Enquanto as conexões das ações, de tema a tema e de cena a cena são as mais frequentemente empregadas nos comics ocidentais, estes quase nunca utilizam as ligações de momento a momento e de ponto de vista a ponto de vista; no entanto, estes últimos são bem habituais nos mangás. McCloud (1995) também destaca o ritmo narrativo dos quadrinhos japoneses, e afirma que, enquanto uma ação que em uma história em quadrinhos ocidental poderia ser descrita em um ou dois quadrinhos, em um mangá pode, tranquilamente, ocupar várias páginas. A respeito do ritmo narrativo nos quadrinhos japoneses, Moliné (2004, p. 30) apresenta o depoimento do mangaká Kazuo Koike. Segundo o roteirista, o olho se move nos quadrinhos japoneses, sendo esta a diferença fundamental entre os mangás e, especialmente, os quadrinhos americanos. O roteirista também explica que, nos mangás, a tendência é que um quadrinho 59 interfira no quadrinho seguinte, formando uma sequência. Para ilustrar seu pensamento, Koike utiliza como exemplo o personagem do Super-Homem voando no céu. Se ele é desenhado em somente um quadrinho, resulta em uma imagem estática. Nas HQs japonesas tal cena será desenhada de maneira diferente: um personagem voará ao longo de três quadrinhos enquanto são enfocados sua cabeça, seu corpo e seus pés.

Figura 17: Abaixo, um fragmento extraído de Cavaleiros do Zodíaco, o qual exemplifica as ligações de momento a momento, recurso muito utilizado nas narrativas dos mangás. No trecho em questão, os quadrinhos são verticais e escuros, representando o plano do Universo em duas páginas. Não há balões, mas há presença de texto verbal. Um dragão atravessa os quadrinhos, extrapolando os limites das vinhetas, e também das duas páginas, e vai diminuindo de tamanho à medida que assoma. É possível constatar trajetórias opostas entre o texto verbal e as imagens do dragão: enquanto o primeiro declina, o segundo ascende.

Fonte: KURUMADA, Masami. Saint Seiya – Os cavaleiros do zodíaco. Vol. 19. São Paulo: Conrad, 2002.

Segundo Moliné (2004, p. 31), a utilização desse recurso narrativo demonstra que os autores de mangá sabem “saborear uma ação e desenvolver ao máximo suas possibilidades iconográficas”. Ainda conforme o especialista, esse artifício visual pode nos fazer vir à mente a conhecida doutrina filosófica oriental zen, que é baseada na contemplação e na meditação.

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(iv) O layout dos quadrinhos: O layout de uma página de mangá apresenta uma personalidade própria em relação às HQs ocidentais. A disposição dos quadrinhos em tiras horizontais de três ou quatro páginas é pouco utilizada no Japão. Ao dispor de um número superior de páginas para relatar uma história, os mangakás utilizam um número habitualmente baixo de quadrinhos por página e aproveitam para inovar com todo tipo de layouts: quadrinhos verticais, quadrinhos sobrepostos, quadrinhos com espaços brancos entre um e outro, entre numerosos outros recursos, sempre conseguindo que a página seja legível e que a história seja transmitida convenientemente ao leitor.

(v) Os balões e outros recursos: Pode-se notar que o uso de textos e diálogos em um mangá tem menos importância que nos comics ocidentais. Mesmo se o leitor não entende japonês, a leitura pode ser feita pelos quadrinhos. Os textos de apoio e os balões de pensamento são praticamente inexistentes, enquanto as onomatopeias adquirem um toque peculiar: em um quadrinho sem diálogos, os efeitos sonoros que indicam a chuva ou o vento tendem a intensificar a sensação de silêncio. Do mesmo modo, as linhas cinéticas para designar o movimento em um quadrinho possuem seu toque especial, chegando a atuar frequentemente no mangá como substitutas do fundo. Paralelamente à compreensão dos aspectos psicológicos e deixando de lado a tarefa de traduzir um mangá do japonês para outro idioma, outro requisito aconselhável para desfrutar completamente um mangá é o conhecimento do folclore e dos costumes japoneses, que pode ser adquirido com os próprios mangás. Nas palavras de Moliné (2004, p. 32), “aprender sobre a história, a arquitetura, a mitologia, a gastronomia, entre outros, do Japão, é parte da aventura de ler um mangá, e não são poucos os ocidentais que complementam a leitura das HQs japonesas com textos sobre a cultura do país”.

(vi) Violência Nos mangás, inevitavelmente, encontra-se um pouco mais de violência do que em outros quadrinhos. Esse aspecto advém de todo um contexto histórico-cultural do Japão. De acordo com Carvalho (2006, p. 55), “especula-se que tal característica seja cultural, em decorrência dos códigos de honra e disciplina mais rígidos daquele povo”.

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Gravett (2006) também entende este elemento como oriundo de fatores culturais:

Boa parte da vida de um japonês em casa, na escola e no trabalho é governada por rígidas noções de respeito e hierarquia. A atividade solitária de ler um mangá permite a ele deixar para trás as formalidades do dia-a-dia [sic] e experimentar, ainda que de modo indireto, os reinos mais liberais da mente e dos sentidos. (GRAVETT, 2006, p. 17).

Em maior ou menor intensidade, todos os seis elementos sobre os quais discorremos podem ser constatados ao longo da leitura do mangá Cavaleiros do Zodíaco, o que atesta que tais características são relativamente estáveis nos quadrinhos japoneses, diferenciando-os dos ocidentais.

1.4 A LEITURA DO MANGÁ

Sendo um idioma escrito verticalmente, cujas colunas são lidas de baixo para cima, começando na direita, a ordem de leitura de um livro ou revista no idioma japonês é inversa à nossa: da direita para a esquerda, cuja capa está no lugar de nossa contracapa e vice-versa. Por sua vez, os quadrinhos de uma página são lidos também da direita para a esquerda.

Figura 18: Esquema explicativo de como ler um mangá.

Fonte: < https://mangasjbc.com.br/como-ler/>. Acesso em: 21 out. 2019.

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Ao ser publicado por um editor ocidental, em alguns casos optou-se por “inverter” cada página do mangá, reproduzindo-a como se estivesse refletida em um espelho. Segundo Moliné (2004, p. 26), nem todos os mangakás permitem que suas criações sofram tal manipulação ao serem editadas fora de seu país. Estas exigências motivaram as primeiras aparições dos mangás editados nos países ocidentais respeitando a ordem de leitura original. Com o tempo, o conhecimento do universo dos mangás pelo público ocidental fez com que este se acostumasse com a leitura oriental. Atualmente há editoras ocidentais de mangá que apresentam seus títulos com a ordem de leitura japonesa não necessariamente porque seus autores exigiram isso, mas porque boa parte dos seus leitores assimilaram completamente a maneira de ler e compreender um mangá de acordo com a mentalidade japonesa. (MOLINÉ, 2004, p. 26). Quando discute acerca da “ocidentalização” dos mangás na perspectiva de adulteração ou necessidade, Moliné (2004, p. 27) afirma que “aqui pode-se falar em uma superação do choque cultural, o qual representa um mérito alcançado pelo leitor ocidental de mangás”. É nesse contexto que Cavaleiros do Zodíaco se insere, desde o lançamento de sua primeira publicação no Brasil, no final do ano 2000, até suas republicações posteriores. Com exceção do idioma, as editoras procuraram manter o máximo de fidelidade do mangá traduzido com seu formato original, especialmente na questão do fluxo de leitura, o que não foi visto como empecilho pelos leitores. O choque cultural foi superado por um profícuo intercâmbio entre Japão e Ocidente.

1.5 OS GÊNEROS DE MANGÁ

O universo dos quadrinhos japoneses exige uma classificação por gênero. Moliné (2004, p. 36) nos explica que é incorreto classificar uma série particular em um único gênero. Isto porque, um mangá esportivo, por exemplo, pode conter elementos de romance. Ou ainda, um policial pode ter doses de humor. Cavaleiros do zodíaco, nosso objeto de análise, tem a sua narrativa perpassada por elementos de aventura e mitologia, em uma linguagem caracterizada pelo viés épico. Dito em outras palavras, uma moderna epopeia nipônica em quadrinhos. Ainda conforme Moliné (2004, p. 36), cada revista traz uma variedade de gêneros por exemplar, a fim de satisfazer o gosto de todos os tipos de leitores, sempre em função da idade e 63 sexo do público a que é destinada. São muitos os gêneros de mangá, e o autor nos apresenta os principais:

Quadro 1 - Gêneros de mangá GÊNERO CARACTERÍSTICA aosen Mangá para leitores adultos. e-manga Contração de electronic manga; mangá destinado a suporte digital. gag manga Mangá humorístico. gakuen manga Mangá cuja ação transcorre entre estudantes do ensino secundário. gekigá Literalmente “imagens dramáticas”; Mangá de temática realista. ero-gekigá Gekigá com conteúdo erótico. Literalmente “pervertido”; Mangás eróticos. jidaimono Literalmente “relato de época”; História que se desenvolve no passado histórico do Japão. karioroshi Mangá publicado diretamente em livro, sem ter aparecido previamente em capítulos de uma revista. kodomo manga Mangá destinado a menores de seis anos. konjô Literalmente, caráter ou espírito. São as histórias que descrevem a luta por parte do(s) protagonista(s) em sobressair, à força de orgulho e coragem, na atividade que desempenha(m), seja uma profissão, um esporte ou qualquer outra coisa. Quando abordam temas esportivos, são chamados spokon manga (contração de sport e konjô). lady’s comic Mangá destinado a mulheres adultas. lolikon É utilizado para designar os mangás de conteúdo erótico, destinados a um público juvenil masculino, que são protagonizados por “lolitas” ou garotas de aspecto inocente e atraente. A origem deste termo está na contração de Lolita complex, “complexo de Lolita”, em alusão ao romance Lolita, de Vladimir Nabokov. majokko Mangá de jovenzinhas com poderes mágicos destinado às meninas. sarariman Mangá protagonizado por funcionários de escritório (do inglês salary man). manga yaoi Contração de yama nashi, ochi nashi, imi nashi (“sem clímax, sem desenlace, sem sentido”): mangá de temática homossexual; embora apresente relações amorosas entre rapazes, é consumido principalmente, embora não exclusivamente, pelo público feminino. Mangá destinado a jovens adultos. (1) seinen manga Mangá de conteúdo pornográfico. Não deve ser confundido com o termo anterior; embora (2) ambos tenham a mesma pronúncia, são escritos com caracteres japoneses (kanjis) distintos.

64 shojo manga Mangá destinado ao público juvenil feminino. shonen ai Literalmente, “amor de garotos”. Mangá que apresenta relações entre meninos, cujo foco está mais no envolvimento emocional que no sexual, contrariamente ao yaoi. shonen manga Mangá destinado ao público juvenil masculino. shotakon Subgênero do yaoi, que apresenta relações sexuais entre meninos ou entre um adulto e um menino. siyohin Histórias do gênero yaoi, em estilo de paródia, protagonizadas por personagens de mangá que não pertencem a esse gênero. story manga Mangá que relata uma história de ficção, de duração variável, por oposição ao gag manga. Foi popularizado amplamente por Osamu Tezuka na segunda metade dos anos 40. super deformed Estilo de caricatura em que os personagens têm cabeça grande e corpo diminuto. dôjinshi Literalmente “publicação da mesma gente”. O equivalente japonês do termo anglo-saxão fanzine ou revista feita por aficionados. Contém paródias da mangás conhecidos ou histórias originais. yarui Mangá que apresenta relações entre lésbicas. yomikiri Mangá curto, cuja duração é de um capítulo. O equivalente feminino de shonen ai; mangá que apresenta relacionamentos entre garotas, cujo tema principal são as relações emocionais e não as sexuais. aniparo Contração de anime parody; mangás que parodiam séries conhecidas de , habitualmente editadas em dôjinshi. Adaptado de: MOLINÉ (2004).

Obviamente, o quadro acima é meramente ilustrativo e não consegue comportar toda a variedade de mangás produzidos no Japão. Além disso, é um quadro relativamente estável, no sentido de que muitos mangás atingem outros públicos de leitores, não somente aquele intencionado inicialmente pelo roteiro do mangá. Cavaleiros do Zodíaco, por exemplo, é um mangá que Kurumada desenvolveu, primeiramente, para o público juvenil masculino, ou seja, – e conforme o quadro acima – um shonen manga. Entretanto, a história dos defensores da deusa Athena também ganhou muita popularidade entre o público juvenil feminino.

Muito mais poderia ser apresentado acerca das HQs e dos mangás, com mais fatos históricos e uma exposição pormenorizada das tendências atuais. Trata-se de um tema amplo, que diz respeito a vários países ou culturas e está em constante evolução. Para a nossa pesquisa, e tendo em vista a análise que se pretende efetuar, as informações apresentadas figuram como suficientes. 65

Efetuada a exposição sobre os mangás, privilegiaremos, no próximo capítulo, a apresentação do nosso objeto de estudo – o mangá Cavaleiros do Zodíaco –, buscando dissertar sobre os principais elementos de sua narrativa, bem como sobre outras informações relevantes, para além de seus aspectos narrativos. Com isso, mais adiante, será possível relacionar, de maneira analítica, uma de suas muitas paisagens narrativas – o Inferno presente na Saga de Hades – com o Inferno da Divina Comédia.

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2 O MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO

Sabe-se que o homem dispõe de cinco sentidos: a visão, a audição, o paladar, o olfato e o tato. Também se reconhece a existência de um sexto sentido, o instinto que as pessoas extralúcidas possuem de maneira extremamente desenvolvida. Mas também existe o sétimo sentido... Você sabe qual é? Segundo a mitologia, na época em que os deuses caminhavam entre os homens, todos possuíam o sétimo sentido. Mas a raça humana se desenvolveu rapidamente e perdeu esse precioso sentido. Não completamente... Pois o sétimo sentido jaz hibernante no coração de todos os homens. Quando um cavaleiro encontra seu sétimo sentido e o faz vir à tona, ele é capaz de desenvolver uma força inimaginável. O sétimo sentido supera todos os demais e pode fazer nascer uma energia incomensurável! É o Cosmo!!18

Masami Kurumada

O principal objetivo deste capítulo é apresentar, em detalhes, o nosso objeto de estudo: o mangá Cavaleiros do Zodíaco. Antes da exposição dos elementos de sua narrativa, bem como de sua popularidade e sucesso no Brasil, dissertaremos sobre o seu contexto de produção e sua inserção no Japão e em outros países, aspectos relevantes para que possamos compreendê-lo como um fenômeno de comunicação de massa.

2.1 PRODUÇÃO E INSERÇÃO NO JAPÃO E AO REDOR DO MUNDO

Cavaleiros do Zodíaco, originalmente intitulada Saint Seiya, é uma série de mangá escrita e desenhada por Masami Kurumada, lançada no Japão em 1986 pela revista Weekly Shonen Jump, da Editora . O primeiro capítulo foi publicado na edição 01/86, no dia 3 de dezembro de 1985. A revista Weekly Shonen Jump possuía aproximadamente 400 páginas e continha várias histórias, e os capítulos de Cavaleiros do Zodíaco foram publicados até o ano de 1990.

A indústria do mangá, uma das mais proeminentes para a difusão cultural e para a economia do Japão, possui dois princípios fundamentais quando um mangá conquista êxito no mercado editorial e popularidade entre seus leitores: lançar uma compilação completa da série, denominada tankobon, exclusivamente com a história em questão; e lançá-la em anime,

18 In: KURUMADA, Masami. Saint Seiya – Os cavaleiros do zodíaco. Vol. 13. São Paulo: Conrad, 2000.

68 ou seja, em desenho animado. E foi isso que aconteceu com Saint Seiya, sendo que a série rendeu 28 volumes tankobon, cada um com aproximadamente 200 páginas. Com o passar do tempo, novas recompilações foram sendo lançadas, incluindo até uma edição de luxo para colecionadores – chamada de kanzenban, a qual contém algumas páginas coloridas, seus volumes possuem capa dura e a história é impressa em um papel de qualidade superior, comparado ao papel utilizado na impressão de edições que não possuem essa natureza especial. Além disso, os kanzenbans possuem um tratamento cuidadoso em todos os seus componentes gráficos e estéticos e, no caso de um kanzenban publicado fora do Japão, em outro idioma, a tradução do texto em língua japonesa para a língua portuguesa é revisada minuciosamente, a fim de ser o mais próximo possível dos escritos originais e retificar traduções equivocadas em edições anteriores.

O mangá foi dividido em sagas, de acordo com a evolução da história. Assim, Cavaleiros do Zodíaco conta com três sagas, intituladas Santuário, Poseidon e Hades. O sucesso de Saint Seiya foi tão grande que, no mesmo ano de sua criação, começou a ser produzido em anime pela , um dos principais estúdios de animação do Japão. Seu primeiro episódio foi ao ar no dia 11 de outubro de 1986, pela TV japonesa ASAHI, passando a ser exibido durante os sábados, às 19h. A série de TV clássica teve 114 episódios distribuídos em três sagas: Santuário (episódio 1 ao 73); Asgard (episódio 74 ao 99); e Poseidon (episódio 100 ao 114). Entretanto, a produção do anime enfrentou alguns obstáculos, uma vez que o mangá não estava finalizado ainda. Consequentemente, a Toei Animation foi obrigada a aumentar a história, inventando novos personagens, prolongando certas lutas e idealizando, inclusive, uma nova saga – Asgard –, inexistente em mangá. O último episódio do anime foi exibido no dia 1 de abril de 1989, iniciando, meses depois, uma reprise completa da série. O sucesso do anime rendeu, à época de sua exibição, 3 curtas e 1 longa-metragem. Todavia, a saga de Hades não foi produzida naquela época. Segundo os fãs e indivíduos que circulavam nesse meio, a versão desse fato é que, naquela ocasião, o autor Masami Kurumada teria enfrentado problemas com a Toei Animation e, por causa disso, não havia autorizado a produção dos episódios referentes à saga de Hades. Fãs do mundo inteiro, que estavam na expectativa da continuação da série, ficaram decepcionados com a interrupção do anime. Tentaram organizar campanhas e pressionaram pela continuidade da série em anime, mas não obtiveram sucesso em tal mobilização. 69

Depois de pouco mais de uma década, no ano de 2001, um desenhista francês chamado Jérôme Alquié produziu dois trailers da saga de Hades, baseando-se na história do mangá. Os trailers foram exibidos em um evento em Toulon, na França, em 2001, e representantes da Toei Animation estavam lá para conferir. O sucesso foi inevitável e imediato, e os trailers espalharam-se rapidamente pela internet, gerando uma nova onda de expectativas entre os fãs da série. A Toei Animation nunca se pronunciou oficialmente sobre o assunto, entretanto, em novembro de 2002 ela finalmente lançou o primeiro OVA da saga de Hades. Dadas as últimas circunstâncias, a maioria dos fãs da série pensavam que Jêróme Alquié faria parte da equipe de produção, porém, isso não aconteceu. Até hoje ninguém sabe a real influência que o francês teve sobre a Toei Animation, mas os fãs o consideram um herói, visto que os dois trailers produzidos pelo animador foram os responsáveis pelo ressurgimento e continuidade da série, especialmente por se tratar da tão aguardada saga de Hades. Com isso, a partir de 2002, o Japão redescobriu Saint Seiya. Para a saga de Hades foram produzidos, inicialmente, 13 OVAs referentes a toda fase Santuário de Hades.

Ainda em 2002, os fãs da série são brindados com um novo mangá: o Episódio G. Trata-se de um mangá com roteiro do próprio autor, Masami Kurumada, mas o traço agora é de Megumu Okada, o que despertou desinteresse de boa parte dos antigos fãs, uma vez que estavam habituados com o traço e a estética clássicos e marcantes de Kurumada. Com o passar do tempo, o mangá foi evoluindo e ganhando respeito por parte da maioria dos fãs, principalmente porque a história foi elaborada pelo próprio Kurumada. Infelizmente ele foi interrompido em 2008, sem uma explicação oficial aos fãs que estavam acompanhando a história.

Em 14 de fevereiro de 2004, um novo longa-metragem, intitulado Tenkai Hen - Josô - Overture (Prólogo do Céu - Abertura) foi lançado no Japão. O lançamento do longa despertou nos fãs e entusiastas da série uma nova onda de especulações, especialmente sobre a possibilidade da tão esperada saga de Zeus ser produzida em um futuro não muito distante, fato que não aconteceu na época.

No final de 2005, a Toei Animation começou a produzir a fase Inferno de Hades, a qual fora dividida em duas partes, cada uma com seis episódios. Os seis primeiros episódios foram lançados até fevereiro de 2006, e os outros seis episódios finais foram lançados até fevereiro de 2007.

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No ano seguinte, Kurumada surpreendeu ao anunciar o lançamento de dois novos mangás: o Lost Canvas, com desenhos da Shiori Teshirogi, e o Next Dimension, com desenhos dele mesmo, mas desta vez totalmente coloridos, sendo este o início da tão sonhada Saga de Zeus (também batizada por alguns fãs como Saga do Céu). Ambos os mangás contam a mesma história, porém, sob pontos de vistas diferentes, e continuam em produção nos dias de hoje.

No ano de 2008, finalmente, a Saga de Hades foi concluída com 6 OVAs referentes à Fase Elíseos. Já no ano de 2009, o Lost Canvas ganhou a sua versão em anime. A primeira temporada teve treze OVAs e durou até o primeiro semestre de 2010. A segunda temporada foi lançada em 2011 e teve mais treze OVAs também. Infelizmente não existe uma terceira temporada em anime e nem previsão para isso, já que a série continua com a situação de cancelada no Japão.

No começo do ano de 2012 foi lançada a série Ômega, voltada para um público mais infantil, em uma tentativa de renovar o público da série, agregando, deste modo, uma nova geração de fãs. Foram duas temporadas, totalizando 97 episódios.

O último anime produzido foi o Alma de Ouro (Soul of Gold), em 2015. Este é focado exclusivamente nos Cavaleiros de Ouro e a Toei Animation utilizou uma brecha da história do Muro das Lamentações para encaixar o novo anime, o qual se tornou unanimidade entre os fãs e rendeu boas críticas entre o público especializado no universo dos Cavaleiros.

Recentemente, em agosto de 2017, o serviço de streaming Netflix anunciou um remake da série clássica em computação gráfica, o qual está sendo produzido nos Estados Unidos e recebeu o título Knights of the Zodiac: Saint Seiya. Previsto para estrear agora em 2020, o anime terá, em sua primeira temporada, doze episódios, cada um com cerca de trinta minutos. Segundo informações divulgadas pelo próprio Netflix, a animação retratará desde os eventos da Guerra Galáctica até o encontro dos cavaleiros de bronze com os cavaleiros de prata.

O universo de Cavaleiros do Zodíaco é potencial e inesgotável, como fora evidenciado ao longo deste breve histórico. Além disso, o autor deixou muitas lacunas, muitas perguntas sem respostas, as quais aguçam a curiosidade de seus leitores-espectadores, ávidos por esclarecimentos e por novidades. Evidentemente, a maior expectativa dos fãs que acompanham a série é a Saga de Zeus, seja em mangá ou anime. Haja visto o percurso e a 71 evolução da referida série, apresentados sucintamente nos parágrafos anteriores, e já antecipando o conteúdo a ser dissertado na próxima parte deste capítulo, é possível afirmar que Cavaleiros do Zodíaco é uma história que possibilita inúmeras outras narrativas paralelas a serem criadas – pela grande quantidade de personagens e suas respectivas histórias, pelas relações estabelecidas entre os personagens e entre grupos específicos de personagens, pelos muitos espaços narrativos utilizados, pelas referências à Mitologia Grega e à Astronomia, enfim, são muitas as razões. Tal fenômeno é recorrente em produções literárias, cinematográficas, de desenhos animados e de quadrinhos, sejam mangás ou comics, o qual atingiu o seu ápice a partir da década de 1990, como nos provam os sucessos Star Wars, Harry Potter, , O Senhor dos Anéis, X-Men, Game of Thrones, Liga da Justiça, Power Rangers, entre muitos outros que poderiam ser citados em uma extensa lista de exemplos, incluindo Cavaleiros do Zodíaco.

2.2 A NARRATIVA

Há tempos, na época dos deuses, o planeta assistia à terrível disputa dos deuses pelo seu domínio. Os “deuses” a quem nos referimos aqui são pessoas que representam uma “vontade maior” ou a “vontade divina”. Elas guiavam as outras enquanto ampliavam seu próprio poder.

No decorrer do tempo, os Céus e a Terra passaram a ser comandados por Zeus; o mar, por Poseidon; e o mundo dos mortos, por Hades. Depois de entregar a responsabilidade pela Terra à sua filha Atena, Zeus some nos céus.

Com Atena governando a Terra, Poseidon e Hades, cada qual à sua maneira, começam a tramar planos para conquistarem os domínios terrestres. O ataque mais insistente veio de Poseidon e suas investidas provocaram as mortes de muitos guerreiros valentes. Não tardou a aparecerem jovens garotos lutando nos campos de batalha. Eles treinavam seus corpos além do limite humano, até que os punhos fossem capazes de cortar o ar e partir a terra, e se protegiam com armaduras sagradas. As pessoas começaram a chamar de Cavaleiros esses garotos equipados com armaduras sagradas e admiravam os seus feitos.

A batalha dos deuses continuou durante séculos, mas foi mascarada pelo tempo e até a existência dos cavaleiros passou a ser contada apenas como uma lenda. Entretanto, a narrativa

72 evidencia que, na verdade, os cavaleiros continuam a existir até hoje. O seu Cosmo elevado produz um destrutivo soco que rompe a barreira do som, chegando a esmigalhar blocos de concreto. São seres milagrosos que conhecem as mais diversas técnicas de luta, as quais fogem à imaginação humana. Todos os seus atos são supervisionados pelo Santuário da Grécia, que não se submete a nenhuma nação, povo ou organização. O objetivo e a missão desses cavaleiros é um só desde a época dos deuses: proteger a deusa Atena e garantir a paz na Terra.

Os escolhidos são treinados em sigilo sob a tutela de um mestre indicado pelo Santuário e, quando comprovada a sua qualificação, recebem uma das armaduras. A cada cavaleiro é designada uma armadura, conforme o destino de sua estrela. Ou seja, não lhe basta adquirir a força de um cavaleiro: é necessário que a mereça.

Figura 19: Os cinco cavaleiros de bronze, protagonistas da história. Na frente, da esquerda para a direita: Hyoga, cavaleiro da constelação de Cisne; Seiya, cavaleiro da constelação de Pégaso; Shun, cavaleiro da constelação de Andrômeda. Atrás: Shiryu, cavaleiro da constelação de Dragão, à esquerda; e Ikki, cavaleiro da constelação de Fênix, à direita.

Fonte: . Acesso em: 9 nov. 2019. 73

Habilidade, personalidade, destino e outras condições misturam-se, e, apenas aqueles que possuem a combinação ideal têm o direito de se tornar cavaleiros. A probabilidade de nascimento de um cavaleiro é quase tão remota quanto cálculos astronômicos.

Então, no final do século XX, surgiu um ser humano que se propôs a criar artificialmente um grande exército desses cavaleiros. Era Mitsumasa Kido, dono da Fundação Graad, uma organização com poderes suficientes para influir no mundo todo. Mitsumasa Kido sempre teve interesse em lutas marciais e era conhecido por patrocinar inúmeros torneios mundiais. Por obra do destino, o velho Kido ficou sabendo da existência dos cavaleiros e das armaduras e planejou torná-los conhecidos através de um torneio de luta. Para concretizar o seu intento, enviou cem pequenos garotos órfãos para vários lugares do mundo a fim de serem arduamente treinados como cavaleiros. Dos cem garotos, dez conseguiram o feito de se tornar cavaleiros e voltaram para o Japão. Lá, foram obrigados a participar da Guerra Galáctica, promovida por Saori Kido, neta de Mitsumasa, que herdou a vontade do avô após sua morte. Esse foi o estopim para uma nova era de batalhas sagradas. Como já foi citado anteriormente, tornar-se um cavaleiro significa assumir um destino importante para si. O fato de surgirem dez cavaleiros pela Fundação Graad teve, evidentemente, um grande propósito, oculto até então. A missão só poderia ser proteger a deusa Atena.

2.3 A POPULARIDADE E O SUCESSO NO BRASIL

Como acontece com frequência no Brasil, a primeira aparição de Cavaleiros do Zodíaco se deu no formato de anime, em 1994. (OMELETE, 2014). O mangá viria a ser publicado somente em novembro de 2000. Isto é, a animação chegou muito antes que o mangá. Um ponto importante a ser considerado é que muitos fãs da série só passaram a adquirir o mangá, anos mais tarde, porque tiveram contato com a animação exibida na televisão. Nesse sentido, o sucesso do anime foi determinante para o êxito de vendas e popularidade da série em mangá. Além disso, os leitores puderam constatar algumas diferenças entre os dois produtos, algo possível de acontecer quando uma obra é adaptada para outro formato.

Com o nome herdado da França (Les Chevaliers du Zodiaque), o anime Os Cavaleiros do Zodíaco teve sua primeira exibição no dia 1º de setembro de 1994, na extinta Rede

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Manchete, a qual foi pioneira e se consagrou com a exibição de desenhos animados japoneses nas décadas de 1980 e 1990. (CAVZODÍACO, 2018?).

O sucesso do anime, que não teve muita divulgação e começou sendo exibido discretamente, veio de modo imediato e natural. (OMELETE, 2014). O desenho começou a ser exibido em dois horários: às 10h30min, dentro do programa infantil Dudalegria; e às 18h30min, dentro de outro programa infantil, o Clube da Criança. Depois, a série ganhou um programa próprio, que até incluiu a presença de uma apresentadora – sinônimo de que o desenho estava tendo bons números de audiência e boa aceitação pelo público infanto-juvenil. (CAVZODÍACO, 2018?).

A Rede Manchete ficou marcada pelas constantes reprises dos episódios. Segundo o site de fãs CavZodíaco, sempre que o desenho chegava no episódio 52, a série começava a ser reprisada desde o início. Segundo o referido site, isso acontecia porque a emissora estava limitada a esses 52 episódios, não possuindo outros inéditos. O anime ficou no ar até 1997, batendo recordes de audiência. Muitos produtos foram lançados ao longo dos anos de sua exibição, dentre os quais podemos destacar: álbuns de figurinhas adesivas, CD e LP musical (chegou a ganhar até disco de ouro), bonés, mochilas, estojos, revistas, pôsteres, etc. (OMELETE, 2014; CAVZODÍACO, 2018?).

Uma grande febre de bonecos (Action Figures) começou a se formar. Cerca de 900.000 bonecos foram vendidos nos 3 anos em que a série esteve no Brasil. Além disso, o longa-metragem A Lenda dos Defensores de Atena (o filme do Abel, chamado na época aqui no Brasil e "O Filme") foi exibido nos cinemas e teve grande público. (CAVZODÍACO, 2018?)

Assim que a série parou de ser exibida, outras emissoras de TV viram que poderia ser uma boa investir em desenhos animados japoneses. Começaram a aparecer muitos outros animes, mas nenhum conseguiu cativar tanto público quanto Os Cavaleiros do Zodíaco. (OMELETE, 2014; CAVZODÍACO, 2018?).

Em 2000, a Conrad Editora adquiriu os direitos para lançar o mangá. (OMELETE, 2000). Com veiculação mensal, o mangá nacional teve 48 edições. A editora também lançou 10 volumes do mangá Episódio G, mas depois que decretou falência acabou parando o lançamento no meio (faltam, no momento, 7 volumes do mangá para serem lançados no Brasil ainda). (CAVZODÍACO, 2018?). 75

Após exatamente 9 anos de exibição da série no Brasil, Os Cavaleiros do Zodíaco voltavam no histórico dia 1º de Setembro de 2003 (o dia 1º de Setembro tem um valor muito especial para os fãs, pois as duas estreias no Brasil foram exatamente nesta data) no canal fechado Cartoon Network, mas, desta vez, redublado nos estúdios da Álamo (a dublagem antiga havia sido feita na extinta Gota Mágica). Para comemorar o lançamento da série, foi produzido um evento temático chamado Cavaleiros Anime Show. O evento recebeu um público superior a 5.000 pessoas em dois dias e contou com total apoio da empresa licenciadora da série na época, a Creative Licensing Brasil. Atualmente, a série é licenciada pela Angelotti Licensing & Entertainment Business. (CAVZODÍACO, 2018?).

Um fato importante é que, desta vez, os fãs tiveram a chance de participar e ajudar em vários momentos. No Natal de 2003, 40.000 bonecos foram vendidos em menos de 2 semanas e, em 2004, a Rede Bandeirantes começou a exibir o anime, que ficou no ar até 2007. A Rede 21 e a PlayTV também exibiram os episódios. A Saga de Hades começou a ser lançada em DVD, pela PlayArte, no meio de 2006. Aliás, a PlayArte fez o lançamento da série completa em DVD (com toda a série clássica, Hades e todos os filmes, incluindo o Prólogo do Céu, que também teve exibição nos cinemas brasileiros, mas de forma bem discreta). A Band exibiu a Saga de Hades apenas no final de 2010. (O CAPACITOR, 2010; CAVZODÍACO, 2018?).

Em 2007, a Editora JBC anunciou o lançamento do mangá do Lost Canvas no Brasil. Com periodicidade bimestral, o mangá foi lançado de forma completa por aqui, incluindo os Gaidens (histórias solos dos Cavaleiros de Ouro). (UNIVERSOHQ, 2007; CAVZODÍACO, 2018?).

Em 2010, a empresa Angelotti Licensing & Entertainment anunciou um novo relançamento da série no Brasil, novamente na TV Bandeirantes. Desta vez, a emissora comprou também os 31 episódios da Saga de Hades (O CAPACITOR, 2010). Um novo projeto de licenciamento foi feito, com o lançamento de vários produtos, incluindo álbuns, pôsteres, bonecos, etc. (CAVZODÍACO, 2018?)

Em 2016, em comemoração aos 30 anos do anime no Japão, a Rede Brasil fechou uma parceria com a Toei Animation e passou a exibir, de forma oficial e legalizada, os 114 episódios da série clássica. A estreia aconteceu em outubro de 2016, e a série foi exibida até dezembro de 2018, contando com a reprise de seus episódios. (ANMTV, 2016; 2018).

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Apresentados os principais aspectos de Cavaleiros do Zodíaco, passamos ao capítulo que tematiza a sua sombra, isto é, a Divina Comédia. Além da exposição de um panorama geral dessa obra, cuja composição da paisagem de seu Inferno orientará a análise do nosso objeto de estudo, também levaremos em consideração a vida do homem que a concebeu: Dante Alighieri. Além de ser um dos maiores escritores da literatura universal, Dante figura como uma das personalidades mais influentes e importantes de todos os tempos.

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3 O POETA E SEU POEMA

La ideia de un texto capaz de múltiples lecturas es característica de la Edad Media, esa Edad Media tan calumniada y compleja que nos ha dado la arquitectura gótica, las sagas de Islandia y la filosofía escolástica en la que todo está discutido. Que nos dio, sobre todo, la Comedia, que seguimos leyendo y que nos sigue asombrando, que durará más allá de nuestra vida, mucho más allá de nuestras vigilias y que será enriquecida por cada generación de lectores.19 Jorge Luis Borges

Este capítulo apresenta alguns dos principais aspectos da vida de Dante e de sua Divina Comédia, tendo em vista que o Inferno de Cavaleiros do Zodíaco foi analisado a partir do poema dantesco. Mesmo que algumas informações constantes no decorrer deste capítulo não sejam novidades, a sua exposição é relevante para o contexto do nosso trabalho, considerando a influência que Dante e a arquitetura de seu Inferno exerceram na composição do Inferno desenhado por Masami Kurumada em seu mangá.

3.1 O POETA

Da vida de Dante sabemos pouco, e, tudo o que sabemos pode ser extraído de suas obras, especialmente da Vita Nuova e da Divina Comédia. Isso porque, conforme Franco Jr. (2000, p. 11), “as referências da época são fragmentárias e esparsas, e informações mais amplas e ricas são posteriores à sua morte e talvez por isso já algo idealizadas”. Entretanto, sabe-se que Dante nasceu no final de maio de 1265, em Florença. Não se sabe o dia exato de seu nascimento. Especula-se que seja entre 15 de maio e 15 de junho de 1265, uma vez que o poeta apresenta a constelação de Gêmeos como sua constelação natal (REYNOLDS, 2011, p. 21). Outra informação que consta nas biografias de Dante é que a sua família era descendente de Cacciaguida, morto em 1148 numa cruzada na Terra Santa, no séquito de

19 “A ideia de um texto capaz de múltiplas leituras é característica da Idade Média, a Idade Média tão caluniada e complexa que nos deu a arquitetura gótica, as sagas da Islândia e a filosofia escolástica em que tudo isso é discutido. Que nos deu, acima de tudo, a Comédia, que continuamos lendo e que ainda nos surpreende, que vai durar além de nossas vidas, muito mais além de nossas vigílias e que serão enriquecidas por cada geração de leitores.” (BORGES, 1993, p. 10, tradução nossa).

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Conrado III. Cacciaguida se casou com uma Alighieri de Ferrara, de quem teve origem o sobrenome de Dante (DISTANTE, 2017, p. 10). Seu nome é uma forma abreviada de Durante, que significa “resistente”. Já o sobrenome Alighieri deriva da palavra latina aliger, a qual significa “alado” (REYNOLDS, 2011, p. 21).

Figura 20: Retrato de Dante, obra de Sandro Botticelli, pintado por volta de 1495

Disponível em: . Acesso em: 19 dez. 2019.

Quando Dante nasceu, seu pai, Alighiero di Bellincione, tinha cerca de 45 anos. Era um homem de posses, tanto dentro de Florença como na zona rural circunvizinha, e aumentava sua renda emprestando dinheiro, atividade que Dante depois condenou como usura. Sua mãe, Bella degli Abati, morreu quando Dante era criança, em algum ano entre 1270 e 1275, e seu pai se casou outra vez. Sua segunda esposa era Lapa di Chiarissimo Cialuffi e ela lhe deu dois filhos, Francesco e Gaetana. A outra filha, possivelmente fruto do 79 casamento com sua primeira esposa, cujo nome é desconhecido, casou-se com Leoni Poggi e, segundo Giovanni Boccaccio, o primeiro filho do casal se parecia muito com o poeta. Seu pai morreu em algum momento entre 1281 e 1283, deixando Dante, então no final da adolescência, aos cuidados de um tutor até que ele tivesse 25 anos, como rezava a lei. A respeito das muitas imagens de parentesco que são mencionadas na Divina Comédia, Reynolds (2011) acredita que a perda precoce da mãe e posteriormente a do pai deixou em Dante uma carência emocional. Conforme a biógrafa,

Várias vezes ele descreveu a si mesmo como uma criança: contido nos braços protetores de Virgílio, sendo carregado adormecido por Santa Luzia no Monte Purgatório, voltando-se para Beatrice como um menino pequeno que se volta para a mãe em busca de segurança num momento de pânico; uma vez ele se comparou a uma criancinha faminta que abocanha o seio da mãe. (REYNOLDS, 2011, p. 26).

As informações sobre a educação de Dante advêm, sobretudo, daquilo que a sua obra nos revela: que ele era um homem extremamente culto, dotado de uma erudição profunda e familiarizado com o conhecimento e com as fontes a ponto de os tratar com leveza e habilidade invejáveis (BLACK, 2013, p. 22). Contudo, é sabido que o poeta provavelmente recebeu ensinamentos ou dos frades franciscanos de Santa Croce ou dos dominicanos de Santa Maria Novella. Era uma criança séria, solitária, muitas vezes assaltada por sonhos vívidos, tanto acordado como dormindo. Impressionado com os contos de cavaleiros e com a bravura dos heroicos cruzados, desejava ser muito um deles quando crescesse. Aos 9 anos, o pai de Dante o levou a uma festa do Dia Primeiro de Maio. Muitas crianças estavam presentes no evento, inclusive a filha do anfitrião. A menina tinha quase 8 anos e seu apelido era Bice: era Beatriz Portinari. Após o almoço, as crianças saíram para brincar e foi então que Dante se apaixonou por Beatriz. Uma paixão tão profunda que, desse dia em diante, nunca mais deixou de pensar nela. No entanto, Dante teria que esperar quase nove anos para reencontrar Beatriz. Ele tinha 17 anos quando tornou a encontrá-la (BLACK, 2013, p. 22-23). Beatriz foi a fonte de inspiração para Dante compor a Vida Nova, obra na qual canta e exalta a beleza e a virtude de sua amada, cuja composição se deu entre 1283 e 1292. Muitos estudiosos acreditam que o encontro de Dante com Beatriz possa ser o marco da primeira louca paixão registrada na literatura. Nas palavras de Black (2013), “o relato desse encontro talvez tenha sido a primeira descrição extensa sobre o enamoramento na literatura do Ocidente”. Em vista disso, o autor complementa que “não seria exagero supor

80 que Dante e Beatriz inspiraram Romeu e Julieta, Heatchcliff e Cathy, Anna Karenina e Vronsky”, acrescentando, de modo bem-humorado, que a história do casal permite com que sonhemos com romances célebres da atualidade, como o de Brad Pitt e Angelina Jolie (separados desde 2016) e o do casal real, Príncipe William e Kate Middleton (BLACK, 2013, p. 25).

Figura 11: Primeiro encontro de Dante e Beatriz (pintada provavelmente no fim do Século XIX), de Raffaelle Giannetti

Disponível em: . Acesso em: 19 dez. 2019.

Por volta de 1283, uns dez anos depois de conhecer e se apaixonar por Beatriz, Dante se sujeitou ao casamento arranjado para ele na infância, com Gemma Donati. Tiveram três filhos, Jacopo, Pietro e Antonia, e talvez um quarto, chamado Giovanni (DISTANTE, 2017, p. 10). No entanto, sua união com Gemma não foi um casamento feliz.

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Beatriz também se sujeitou ao casamento arranjado pela família. Em 1287, ela se casou com um homem chamado Simone dei Bardi, um banqueiro. Beatriz morreu três anos depois, em 1290, aos 24 anos. Black (2013) especula que

Se Dante sentiu a morte da mãe como um exílio, e se a separação de Beatriz e o casamento de ambos com outras pessoas tinha sido uma segunda forma de exílio, ele agora sofria um terceiro exílio, pois estavam distanciados pela separação maior da morte. (BLACK, 2013, p. 75).

Figura 22: Retrato presumido de Beatriz Portinari (pintado entre o final do Século XIX e início do Século XX), por Élisabeth Sonrel

Disponível em: . Acesso em: 19 dez. 2019.

Além da atividade poética, Dante ficou reconhecido por sua atuação em outras áreas, como, por exemplo, sua participação na batalha de Campaldino, em 1289, e também na

82 conquista do castelo pisano de Caprona. Dante também se destacou por sua intensa atuação na vida política, carreira que iniciou em 1295, alcançando o cargo de prior, isto é, governador de Florença entre 15 de junho e 15 de agosto do ano de 1300 (DISTANTE, 2017, p. 10). Como político, Dante se mostrou enérgico e justo, não se rendendo a ninguém, amigo, adversário, quem fosse, para, deste modo, assegurar a paz aos cidadãos de Florença. Sua determinação e suas convicções no âmbito da política lhe renderiam um dos episódios mais dramáticos de sua vida, que iniciou quando Dante

Resistiu à ingerência do papa Bonifácio VIII nos negócios internos da cidade, por isso militou junto aos guelfos brancos, que se opunham tanto à política da Igreja quanto à do Império, as duas grandes forças rivais da Idade Média. Foi enviado a Roma, junto com outras duas pessoas, para persuadir Bonifácio VIII a não deixar que Carlos de Valois, enviado pelo papa sob as falsas vestes de pacificador em Florença, ajudasse os guelfos negros, favoráveis à política papal, para se apossarem do governo da cidade. Mas isso não ocorreu. Dante voltou de Roma não só de mãos vazias, como já no caminho foi informado de que os seus adversários políticos, isto é, os guelfos negros, tinham-no condenado sob a acusação de corrupção, a pagar uma multa de 5 mil florins e a dois anos de prisão, além de interdição perpétua aos ofícios públicos (DISTANTE, 2017, p. 10).

A acusação era falsa e a condenação, emitida em 27 de maio de 1302, atingia-o injustamente. Por isso, recusou-se a pagar a multa e escolheu a via do exílio. Desde então jamais retornou a Florença e, orgulhoso como era, suportou o exílio com grande dignidade e coragem. Até sua morte, ocorrida em 1321, em Ravena, viveu errando de corte em corte em várias cidades da Itália centro-setentrional (DISTANTE, 2017, p. 10-11). Nos primeiros anos do exílio, entre 1304 / 1305, escreveu o Convivio e o De Vulgari Eloquentia, que deixou inacabados porque, a partir de 1307, se dedicou por completo à composição de sua obra suprema, na qual trabalhou intensamente por pelo menos doze ou treze anos, ou seja, pelo resto da sua vida. Uma outra notabilíssima obra que escreveu, provavelmente em 1313, foi a De Monarchia, obra política muito importante, em que teoriza a divisão do poder. Na referida obra, Dante confere à Igreja a soberania do poder espiritual e ao Império a do poder temporal, considerando-os ambos emanação direta de Deus. Tanto a Monarchia como o De Vulgari Eloquentia e as Epístolas foram escritos em latim, enquanto o resto de sua obra foi escrito em língua vulgar20 (DISTANTE, 2017, p. 11).

20 Indicado indiferentemente até o século XV por várias designações, tais como: toscano, florentino, italiano, língua comum, vulgar. 83

Quadro 2 – Obras de Dante Alighieri Título Ano Língua La Vita Nuova 1294? Italiano De Vulgari Eloquentia 1304-1306 Latim Il Convivio 1304-1306 Italiano Inferno 1306-1315? Commedia Purgatorio 1315-1319? Italiano Paradiso 1319? - 1321 De Monarchia 1317? Latim Le Rime 1314 Italiano Éclogas 1319 Italiano Quaestio de situ aquae et terrae 1320 Italiano

Fonte: adaptado de Franco Jr. (2000) e Reynolds (2011).

3.2 O POEMA

Como o título desta dissertação postula, a leitura do mangá Cavaleiros do Zodíaco, especificamente na Saga de Hades, nos revela uma série de evidências a partir das quais podemos inferir que o Inferno dantesco influenciou a concepção da arquitetura do Mundo dos Mortos apresentado no mangá. Essas evidências serão discutidas no capítulo da análise. Sabe- se que a obra de Dante inspirou e influenciou (e continua inspirando e influenciando) a vários artistas de diferentes séculos, nas mais diversas produções artísticas – Pintura, Música, Arquitetura, etc. E, quanto à Divina Comédia: Quais os possíveis autores, as possíveis obras e histórias que podem ter influenciado Dante a escrever o seu poema? Comecemos falando sobre isso.

Embora haja dissonância quanto às fontes e influências, há consenso com a ideia de que Dante buscou em outras histórias a inspiração para compor o seu poema. Reynolds (2011, p. 157) entende que o mote para a elaboração do poema advenha do manuscrito do conto popular anônimo que narra a visita de São Paulo, na companhia do arcanjo Miguel, ao Inferno21. Logicamente, tal conto teria influenciado especificamente a primeira parte do

21 Em sua tese intitulada Convergências Literárias: as visões do Paraíso nos textos apócrifos de Enoque e Isaías e na Divina Comédia (2010), Silvana de Gaspari observa que “o apóstolo Paulo é o primeiro herói cristão, sobre

84 poema – a peregrinação de Dante pelo Inferno. Trata-se de um conto já conhecido no século IV em duas versões gregas. Na Idade Média, versões do conto abundavam por meio de traduções em francês antigo, inglês arcaico, provençal e italiano, em prosa ou verso. De acordo com a biógrafa, o manuscrito em questão é ilustrado com miniaturas que poderiam servir facilmente para o Inferno dantesco. No entanto, ela complementa dizendo que

O verso é cru e a narrativa não tem organização. [...] Mas este é o material que Dante usou para seu Inferno quando o escreveu. Como um magistral showman, ele pegou um cenário primitivo e o desenvolveu em uma produção bem-organizada. E a isso ele combina algo mais (REYNOLDS, 2011, p. 159, grifos da autora).

Há também as teorias sobre a influência da filosofia islâmica na composição do poema dantesco. O padre espanhol Miguel Asín Palacios ganhou notoriedade ao sugerir que fontes muçulmanas foram utilizadas para ideias e motivos apresentados na Divina Comédia. A hipótese de Palacios resultou no livro La Escatología musulmana en la Divina Comédia, publicada em 1919. Nesta obra, Palacios argumenta que Dante derivou muitas características e episódios sobre o além a partir dos escritos espirituais de Ibn Arabi e do Isra e Mi'raj ou a jornada noturna de Maomé para o céu. Este último é descrito no ahadith e no Kitab al Miraj, o qual apresenta semelhanças significativas com o Paraíso dantesco, como as sete partes que o constituem, embora isso não seja exclusivo do Kitab al Miraj ou da cosmologia islâmica. Contudo, essa possível influência muçulmana na Divina Comédia provoca debates complexos e divergências, uma vez que muitos acadêmicos e pesquisadores da obra a refutam pela falta de evidências mais concretas.

Por sua vez, Curtius (1979) apresenta dois títulos como possíveis influências para a Divina Comédia. O primeiro é Sonho de Cipião, de Cícero, texto em que o jovem Cícero é transportado em sonho à Via Láctea, local onde recebe ensinamentos e previsão acerca de seu destino. Tal episódio ocorre de modo semelhante com Dante, em sua passagem pelo Paraíso. Ainda conforme Curtius, uma segunda influência vem de Marciano Capela e da épica filosófica do século XII, de Bernardo Silvestre e Alano, o qual, nas palavras do teórico,

o qual temos conhecimento, a cumprir uma viagem pelo além e retornar para testemunhar. O relato de Paulo, apresentado no texto apócrifo Visio Sancti Pauli e em 2 Cor 12, dos versículos de 01 a 10, teve uma grande difusão durante a Idade Média e representou o protótipo das viagens ao mundo dos mortos desse período” (GASPARI, 2010, p. 64). Conforme a tradução da autora, realizada a partir do texto de Giuseppe Bonghi e contido em um dos apêndices da tese, Deus queria que Paulo visse as penas. O apóstolo viu, diante das portas do inferno, árvores inflamadas e pecadores atormentados suspensos sobre elas. Alguns estavam pendurados pelos pés, outros pelas mãos, outros pelos cabelos, ou pelas orelhas, ou pela língua, ou pelos braços. 85

“aventou a idéia (sic) de um novo gênero poético, que trataria de elevar a razão aos domínios da realidade transcendente (1979, p. 377).

O fato de Dante ter sido influenciado por um determinado autor, ou buscado inspiração em uma obra ou história para compor o seu poema, não coloca a sua genuinidade em xeque. Independentemente da influência, Dante a extrapolou e a elevou num nível de complexidade artística que tornou a sua Divina Comédia uma das obras mais celebradas de todos os tempos.

A originalidade talvez seja o maior de todos os predicados que podemos atribuir à consagração que a Divina Comédia alcançou através dos tempos. A esta ideia, Distante (2017, p. 14) acrescenta dizendo que a verdadeira grandeza do poema “[...] consiste sobretudo no fato de ser uma autêntica obra-prima poética, talvez a maior de todos os tempos.” Para o autor, o poema dantesco configura um testemunho preciso e precioso de um tempo, suscitando o interesse dos leitores de qualquer época. Dito de outro modo, trata-se de uma obra atemporal e, nas suas palavras

Isso é demonstrado pelo fato de não ter havido século ou período histórico em que os homens não tenham se dedicado à leitura da Comédia. Talvez só a Bíblia e os evangelhos tenham sido mais lidos e estudados na história do mundo do que a Comédia, pelo menos na história do mundo ocidental. E isso porque são livros sagrados, mas não há dúvida de que a Comédia ocupa um lugar de grande relevo poético além, de cultural (DISTANTE, 2017, p. 14).

Quanto à estrutura, a Divina Comédia é o relato da viagem que Dante empreende para visitar os três reinos do outro mundo: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Toda a viagem é contada em cem cantos, dos quais o primeiro funciona como introdução. De modo que a viagem propriamente é narrada em 99 cantos, 33 em cânticos, cada qual com aproximadamente 40 a 50 tercetos, que terminam com um verso isolado no final.

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Em números mais precisos, o poema possui 14233 versos distribuídos ao longo dos seus cem cantos, os quais oscilam entre um mínimo de 115 e um máximo de 160 versos. A tabela abaixo explicita a distribuição dos cantos e dos versos nos três reinos visitados por Dante:

Quadro 3 – Distribuição dos cantos e versos da Divina Comédia Reino Número de cantos Número de versos Inferno 34 (o primeiro canto é introdutório) 4720

Purgatório 33 4755 Paraíso 33 4758

Total= 100 Total= 14233

Fonte: o autor.

Os cantos foram escritos em tercetos de decassílabos rimados de modo alternado e encadeado, segundo o esquema ABA BCB CDC e assim por diante, como ilustra o exemplo:

In quella parte del giovanetto anno A che 'l sole i crin sotto l'Aquario tempra B e già le notti al mezzo dì sen vanno, A

quando la brina in su la terra assempra B l'imagine di sua sorella bianca, C ma poco dura a la sua penna tempra, B

lo villanello a cui la roba manca, C si leva, e guarda, e vede la campagna D biancheggiar tutta; ond' ei si batte l'anca, C (Inf, XXIV, 1-9)

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Essa estrutura métrica foi originalmente criada por Dante, e ficou conhecida como terza rima, terzina dantesca ou rima encadeada. A utilização desse sistema nos permite dizer que a organização dos versos é regida por um padrão. Sobre o emprego dessas rimas, Campos tece um comentário pertinente:

Dante, inventor e mestre. Onde é preciso um vocábulo para curto-circuitar a idéia [sic] ou em posição de rima, tudo pode acontecer: nasce um verbo de um advérbio de tempo (insemprarsi, de sempre, PAR. X, 148); de um pronome pessoal ou possessivo (inluiarsi, intuarsi, inmiarsi, respectivamente de lui, te/tuo, me/mio, PAR. IX, 73,81); de um locativo (insusarsi, de suso, PAR. XVII, 13; indovarsi, de dove, PAR. XXXIII, 138). […]. A intensificação da redundância, estrategicamente pensada, gera informação original, surpreendente: o nome de Cristo, sempre que aparece em posição de rima, exige a sua própria repetição outras duas vezes, rompendo a expectativa da “terza rima”, pois Cristo só consoa com Cristo [...] (CAMPOS, 1998, p. 81-82, grifos do autor).

Como logo se observa, o esquema métrico e o número de cantos correspondem a múltiplos de três. Além da recorrência do número 3 e de seus múltiplos no aspecto formal do poema, Dante também os projetou na arquitetura inicial dos 3 reinos: cada um é dividido em 9 círculos, totalizando 27 (que é o resultado de 3 vezes 3 vezes 3) níveis. Isso acaba por nos revelar que o poeta não o empregou de maneira fortuita. Pelo contrário, a predileção de Dante pelo número 3 e sua consequente escolha para a formatação da Divina Comédia, tanto no plano da forma quanto do conteúdo, eram conscientes e até mesmo coerentes.

A respeito disso, Distante (2017, p. 12) explica que o número 3 simboliza a aceitação total e absoluta do mistério dos mistérios da religião cristã: a crença sem silogismos defectivos no Pai, no Filho e no Espírito Santo, sentidos e entendidos como uma só pessoa. Em outras palavras, trata-se da concepção de Deus como unidade e como trindade, concepção da qual o Dante cristão compartilhava na profissão de sua fé.

As características mencionadas até agora nos fazem compreender que a poesia da Divina Comédia é toda expressa por símbolos, o que é corroborado por Distante quando diz que

[...] toda a linguagem poética do poema é uma linguagem simbólica, e nem poderia ser diferente a partir do momento em que Dante quer descrever e representar, [...] em figuras poéticas, um mundo e uma realidade que ultrapassam a experiência humana (DISTANTE, 2017, p. 12).

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E é justamente no fato de o poema possuir uma linguagem simbólica que provém, em parte, a dificuldade de leitura da jornada de Dante pelo além-túmulo. Além do aspecto conteudístico, a arte simbólica também está presente na arquitetura da forma desse poema. Distante (2017, p. 12) compara-o à perfeição de uma catedral gótica traçada com absoluta racionalidade geométrico-matemática que, segundo o autor, é uma característica recorrente quando se trata de arte simbólica.

Em Dante – Poeta do mundo secular, Erich Auerbach, filólogo alemão, estudioso, crítico literário e também dantista, afirma que a Divina Comédia está estruturada em três sistemas – novamente, o número três –, os quais “se entrelaçam e se fundem e são concebidos no modelo da ordem divina”: um físico, outro ético e um terceiro, histórico-político. Na visão de Auerbach, cada um deles é uma síntese de diversas tradições.

Sobre o sistema físico, o crítico explica que ele

[...] consiste na ordem do universo d’après Ptolomeu, e tal como adaptada aos dogmas da Igreja pelo aristotelismo cristão. No conjunto, e em muitos de seus particulares, essa ordem já estava formulada nos escritos dos maiores filósofos escolásticos e nas obras didáticas inspiradas por eles, de modo que Dante pôde tirar seus traços principais das próprias fontes: Aristóteles, Alfraganus, santo Alberto Magno, santo Tomás de Aquino, Brunetto Latini. O globo da terra ocupa o centro do cosmos; em torno dele giram nove esferas celestes concêntricas, enquanto que uma décima, o Empíreo, morada de Deus, é concebida como o completo repouso. Metade da Terra, o hemisfério Norte, é habitada. Os limites orientais do ecúmeno, i.e. do mundo habitado, são o rio Ganga (Ganges) e as Colunas de Hércules (Gibraltar). Seu centro é Jerusalém. No interior do globo terrestre, ou melhor, do hemisfério norte, semelhando um funil que se estreita em direção ao centro, está o Inferno. Na sua parte mais profunda, no centro exato da Terra, mora Lúcifer, o qual, ao cair do céu, logo depois da Criação, se enfiou no fundo da terra, empurrando para cima, isto é, para a superfície, uma enorme porção do ‘miolo’. Essa massa é a grande montanha que, sozinha se ergue acima do oceano que cobre todo o hemisfério meridional. É a montanha do Purgatório, morada das almas que rumam para o Paraíso mas ainda precisam purificar-se. No cume dessa montanha, no ponto em que a terra está mais próxima da esfera mais baixa do céu, fica o Paraíso Terrestre, onde viveram o primeiro homem e a primeira mulher antes da Queda. As esferas celestes, que são o Paraíso verdadeiro, organizam-se segundo os corpos celestes nelas situados. Primeiro, vêm as esferas dos sete planetas da astronomia antiga, em sua ordem: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Segue-se a esfera das estrelas fixas. A nona é o céu cristalino e invisível, e a última é o Empíreo. O movimento das esferas celestes é concêntrico e circular. Um ardente desejo de união com Deus comunica um movimento da mais alta velocidade à nona esfera, a que fica mais próxima do Empíreo imóvel, onde Ele habita. A nona esfera, por sua vez, e através da hierarquia das Inteligências, ou Anjos, comunica seu movimento às esferas inferiores (AUERBACH, 1997, pp. 127-128).

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O segundo sistema presente no poema dantesco é o ético, sobre o qual Auerbach (1997, p. 162) explica que somente “[...] o homem é dotado de livre-arbítrio, faculdade composta de intelecto e vontade, a qual, embora estreitamente ligada à disposição natural e, portanto, sempre individual, se projeta mais além”. No entendimento do crítico, essa faculdade é responsável por conduzir o homem, no curso de sua vida terrestre, a amar da forma certa ou errada, decidindo, deste modo, o seu destino. E conclui seu raciocínio sobre o sistema ético observando que Dante o construiu acompanhando a Ética a Nicômaco, (de Aristóteles) segundo santo Tomás (AUERBACH, 1997, p. 162).

A respeito do terceiro e último sistema, o histórico-político, Auerbach (1997, p. 162) comenta que “[...] a estrutura hierarquizada da ordem histórico-política do mundo não é apresentada na Comédia com a mesma clara continuidade das ordens físicas e éticas”. Como exemplo, o teórico expõe a dificuldade de sustentar que cada estádio na viagem simboliza um estádio particular de vida social. Ainda assim, segundo sua análise, “[...] quando consideramos a Comédia a essa luz, nossa atenção é despertada por uma imagem que parece impor tal interpretação. É a antítese das duas cidades: Dis, a civitas diaboli, no “Inferno”; e, no “Paradiso”, a civitas Dei.” (AUERBACH, 1997, p. 162).

Dito em outras palavras, Auerbach pondera que, no sistema histórico-político, não é possível reconhecer simbolizado, em cada etapa do caminho, um grau determinado de vida social. Nesse sistema, destaca-se a antítese entre a civitas diaboli e a civitas Dei.

Dis – ou Dite –, a cidade emuralhada de Lúcifer, é o

[...] reino da malizia (iniqüidade) (sic), e o alvo da iniqüidade (sic) é a injustiça. A injustiça não é apenas um pecado contra Deus, mas também uma ofensa contra o próximo e contra a vida certa na terra. A cidade de Dis é a morada da perdição social. É representada no poema como parte da ordem divina total, que inclui o mal, naturalmente, e, nesse sentido, é bem organizada. Mas permanece em imponente rebelião contra o alto poder de Deus (AUERBACH, 1997, p. 162).

Os habitantes de Dite querem o mal, são incapazes de realizar um trabalho útil em comum, se consomem na irremediável corrupção do ódio e da cegueira, permanecendo isolados e confusos pela má vontade recíproca. Dessa forma, a comunidade fica interminavelmente enredada em guerra e miséria; e Dite, por sua vez, fica fadada ao símbolo de espaço de ruína social.

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Em contraste, a civitas Dei no Paraíso é um local de justiça. Aí moram as almas em sua ordem apropriada, trabalhando em comum, cada um contente com o lugar que lhe coube, partilhando de um bem verdadeiro, que é inexaurível e confere prazer, pois novas almas redimidas chegam sempre para gozar do seu deleite. Nas manifestações dos eleitos, nas esferas planetárias, a diversidade de disposições e vocações formam a ordem natural, no interior da qual cada homem se torna cidadão; e na medida de suas aptidões, se faz membro da comunidade humana, cujo objetivo é a ‘atualização’ da ordem divina na terra. E é essa comunidade humana que, no curso de uma vida correta, o conduz ao discernimento e à beatitude. Assim, ele se torna cidadão do reino de Deus, a verdadeira Roma aeterna, ocupando, na hierarquia, lugar condizente com sua predisposição (AUERBACH, 1997, p. 163).

Entre as duas cidades fica a montanha do Purgatório, um lugar de penitência e de adaptação das almas à vida comunitária, onde elas treinam para o exercício da verdadeira liberdade. No contexto do sistema histórico-político proposto por Auerbach, o Purgatório também é um local relevante. O autor elucida que, tão logo as almas atravessam o portão do Purgatório, uma vontade independente acorda nelas, um desejo de purificação coletiva. Inicialmente, elas expiam os vícios graves que colocam em risco a vida da comunidade. Em seguida, as faltas menos graves, sensuais, que impedem sua liberdade moral e, consequentemente, a ordem social, quando em excesso. A última purificação, no fogo do sétimo círculo, concede a liberdade (AUERBACH, 1997, p. 164).

Auerbach encerra a explicação do papel do Purgatório nesse sistema afirmando que quando Virgílio coroa Dante como senhor de si mesmo, ele o emancipa da sujeição de toda e qualquer autoridade. Usufruindo da liberdade, Dante ingressa no Paraíso Terrestre, um local onde o homem vive tranquilamente em meio à natureza, em estado de inocência e sem a necessidade de senhor. Contudo, adverte que tal lugar é um espaço de transição ou, valendo- se de suas palavras, um status viatoris. Isso porque, ainda conforme o dantista, “mesmo a mais perfeita das vidas terrenas não é fim último da comunidade humana, mas preparo para a visão de Deus, que representa a eterna beatitude” (AUERBACH, 1997, p. 164).

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Quanto à língua escolhida para a composição de sua grande obra, Dante elegeu o vulgare illustre, contrapondo-se ao latim clássico que caracterizava as grandes obras produzidas em seu tempo. Distante afirma que é esta língua que sustenta o poema, e que Dante

[...] soube aperfeiçoar, se não mesmo inventar. Sim, pois já que o instrumento linguístico adotado usualmente pelos cidadãos da sua belíssima cidade [...] não lhe bastava para dizer tudo o que queria dizer, inventava-o, cunhando palavras novas ou forçando aquelas velhas a significados novos, ou então, recorrendo ao plurilinguismo e ao sinestesismo, corajosamente se lançava a expressões que davam voz até ao inefável. Enfim, Dante não só trabalhou com a língua italiana para dar vida artística e poética à Comédia, mas foi também um grande construtor de sua língua, tanto que por mérito seu ela chegou a ser talvez a mais bela e a mais nobre do mundo (DISTANTE, 2017, p. 17).

A Divina Comédia talvez seja a obra pela qual os italianos passaram a conhecer sua própria língua, reformulada e sublimada pelo poeta florentino (MIGLIORINI, 1983, p. 168). Com o seu poema, Dante partiu para uma liberação linguística, sendo o primeiro a optar pela língua vulgar para atingir um público maior para algumas de suas obras. Ao lado de palavras e formas do florentino contemporâneo, Dante acolheu vozes e formas que já estavam em desuso, algumas formas do toscano ocidental e meridional, e também algumas vozes de outros dialetos italianos, muitas latinas, várias francesas (MIGLIORINI, 1983, p. 177).

Efetuadas as exposições sobre o poeta e seu poema, passamos para o capítulo que tematiza o Inferno cristão, cujas paisagem e arquitetura ganharam outra dimensão, tanto na religião quanto na cultura, após a difusão da Divina Comédia mundo afora.

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4 O INFERNO CRISTÃO

Era no esdrúxulo, luxuoso e luxurioso parque de Sombras do Inferno. Em todo o ar, d'envolta com um cheiro resinoso e acre de enxofre, evaporizava-se uma azulada tenuidade brumosa, fazendo fugitivamente pensar no primitivo Caos donde lenta e gradativamente se geraram as cores e as formas... Como que diluente, fina harmonia de violinos vagos abstrusamente errava em ritmos diabólicos... Árvores esguias e compridíssimas, em alamedas intermináveis e sombrias, lembrando necrópoles, apresentavam troncos estranhos que tinham aspectos curiosos, conformações inimagináveis de enormes tóraces humanos, fazendo pender fantásticas ramagens de cabelos revoltos, desgrenhados, como por estertorosa agonia e convulsão. Pelas longas alamedas exóticas do fabuloso parque, deuses hirsutos, de patas caprinas e peluda testa cornoide, riam com um riso áspero de gonzo, numa dança macabra de gnomos, cabriolando bizarros. De vez em quando, as suas asas fulgurantes, furta-cores e fortes, ruflavam e relampejavam...22

Cruz e Sousa

Este capítulo objetiva a apresentar os principais aspectos referentes à concepção do Inferno cristão. Para tanto, o capítulo está dividido em três subcapítulos. O primeiro problematiza as origens, a localização e a geografia do Inferno – elementos que nem sempre convergem entre diferentes religiões, e até mesmo entre os pesquisadores do assunto. O segundo subcapítulo tematiza as ideias sobre o Inferno cristão no período medieval, cuja iconografia atingiu o seu ápice. Finalmente, o terceiro e último subcapítulo discorre sobre a contribuição dos visionários do período medieval que vislumbram os ambientes do além- túmulo. Isso porque suas narrativas, relatos e visões foram determinantes para a ampliação do imaginário do Inferno cristão, e permanecem vivas até hoje.

Começamos a discussão tendo como ponto de partida a etimologia da palavra inferno. Antes, porém, precisamos ter clareza que o tempo é uma variável que incide sobre os sentidos e significados das palavras. À medida que ele passa, é natural que muitas palavras recebam novas conotações, as quais transcendem o significado original ou, até mesmo, mudam-no profundamente. Tal ocorrência linguística é aplicável à palavra inferno. Com o passar do

22 Fragmento do poema em prosa No Inferno, integrante da obra Evocações (1898).

94 tempo, ela adquiriu novas acepções, segundo diferentes motivações, sejam elas de ordem religiosa, cultural ou social.

Digitando a palavra inferno no buscador do Google, e acessando a ferramenta Dicionário, encontramos as seguintes acepções para o referido vocábulo:

inferno substantivo masculino 1. MITOLOGIA local subterrâneo habitado pelos mortos (tb. us. no pl.). 2. RELIGIÃO para os cristãos, lugar em que as almas pecadoras se encontram após a morte, submetidas a penas eternas. 3. FIGURADO (SENTIDO)•FIGURADAMENTE extremo sofrimento infligido por certas circunstâncias, sentimentos ou pessoa(s); martírio, tormento. "sua casa tornou-se um i." 4. FIGURADO (SENTIDO)•FIGURADAMENTE grande confusão; completa desordem; balbúrdia, inferneira. 5. BIBLIOLOGIA•BIBLIÔNIMO local de acesso restrito em biblioteca, onde estão encerradas obras de caráter licencioso. 6. local onde caem resíduos líquidos de fabricação ou água que moveu alguma instalação; vazadouro.23

Em linhas gerais, a palavra tem sua origem na língua latina: infernum, que significa “as profundezas”, o “mundo inferior”, o “submundo”. Por sua vez, infernum resulta da palavra latina pré-cristã inferus (ou infernus), a qual significa "lugares baixos" (LEWIS & SHORT, 1879). A origem etimológica do termo nos oferece ideias para entender que o Inferno foi concebido e construído como um local real e físico e, portanto, como lugar geográfico e espiritual.

Embora com diferentes termos, o Inferno está presente em diferentes línguas, culturas e religiões, cujos conceitos e descrições variam, podendo apresentar diferenças. Mesmo que na perspectiva das artes, dissertar sobre o imaginário do Inferno perpassa necessariamente o campo da religião, como poderemos ver adiante.

23 INFERNO. In: Dicionário Google. Disponível em: . Acesso em: 13/01/2020. 95

4.1 ORIGENS, LOCALIZAÇÃO E GEOGRAFIA DO INFERNO

Em seu artigo intitulado O Inferno na arte: a paisagem, o pesquisador e professor Sérgio Rizo analisa o Inferno cristão enquanto um lugar físico e concreto, abordando, inicialmente, o caráter essencialmente religioso do termo, para somente depois apresentá-lo no âmbito artístico. O autor começa escrevendo sobre as origens remotas do Inferno cristão que, conforme suas palavras

[...] encontram-se nas religiões indo-europeias, amalgamadas posteriormente às vertentes clássicas das mitologias gregas e romanas, e mais tarde ainda às correntes monoteístas dos povos hebreus. Neste imenso caldeirão de influências e mudanças culturais toma corpo o Inferno do cristianismo, que desde o seu início divide-se entre o oriente, onde ocorre sua formação propriamente dita, e o ocidente, onde acontece a sua propagação de fato. (RIZO, 2013, p. 1).

Uma das maiores contribuições para a elaboração do imaginário do Inferno cristão vem da Grécia antiga. Nesse sentido, sua concepção é

Embora com pontos de convergência, as formas de caracterizar o Hades – como os gregos nominavam o Inferno – variavam entre as cidades e diferentes culturas gregas. Conforme Ramos (2014), uma das descrições possíveis retratava o reino dos mortos como o reino subterrâneo onde habitava a alma ou espectro24 (psykhé) dos que morreram.

Se pensarmos no submundo arquitetado pelos gregos como um todo, constataremos que todas as almas possuíam um destino comum. No entanto, o Hades comporta três ambientes distintos para as almas que nele adentram: o Tártaro, os Campos Elíseos e O Campo dos Asfódelos. Como será possível constatar mais adiante, desses três ambientes, o que mais se assemelha ao Inferno cristão é o Tártaro. Trata-se de uma região do Hades caracterizada por uma estrutura cavernosa e inóspita, onde as almas danosas eram castigadas pelo fogo.

É por meio do legado literário do poeta Homero, no entanto, que as descrições gregas do mundo dos mortos ganham notoriedade, após terem sido difundidas e conhecidas em outras terras e culturas. Essa notoriedade do Hades se deu em virtude do que Homero apresenta em seus poemas épicos, a Ilíada e a Odisseia. Neste último, mais precisamente em seu Canto XI, Homero descreve o Hades, explicando que o reino dos mortos só pode ser

24 Em Cavaleiros do Zodíaco, os guardiões do Inferno de Hades são chamados de espectros.

96 acessado mediante o consentimento dos deuses que o guardam. O poeta também o situa na topologia mitológica que elaborou para a sua epopeia. Ainda de acordo com o Canto XI, Homero o inseriu além do país dos cimérios, numa região de longinquidade extrema, onde o sol não brilha. Além desse canto, outras referências ao Hades, das quais algumas o descrevem, podem ser encontradas nos cantos V, XII, XIII e XIV.

Para além do Hades homérico, os gregos comumente o descreviam como um reino soturno, obscuro, sinistro e desconhecido, envolto em uma atmosfera de mistério. Os habitantes desse lugar eram destituídos de tudo o que possuíam em vida. No entanto, o status social que esses indivíduos possuíam antes da morte prevalecia no Hades25. Essa descrição é reforçada pela interpretação de Manuel Ramos, quando afirma que:

O lugar habitual do homem homérico post mortem é o escuro, insondável e bolorento (é este o seu epíteto específico) Hades, ao longo do rio Estige, no qual os mortos reviviam como sombras, desprovidos da vitalidade física que conservavam em vida. Reservado a todos os homens, nobres ou plebeus, a existência que aí se vivia era o prolongamento da vida terrena (RAMOS, 2014, p. 187).

A exemplo da herança cultural grega, o Hades também é mencionado nas obras de escritores romanos. Virgílio, o guia eleito por Dante para conduzi-lo através dos reinos do Inferno e do Purgatório da sua Divina Comédia, compôs a Eneida. Como a Odisseia e a Ilíada de Homero, um poema de proporções épicas. De acordo com Mota (2010, p. 1), além de inserir criações autorais no decorrer de sua Eneida, Virgílio utiliza com frequência alegorias culturais idealizadas originalmente na Grécia para descrever o Hades. Essas ocorrências corroboram a ideia de que o mundo dos mortos arquitetado pelos gregos muito influenciou a outros poetas e artistas, tendo como resultado a sua difusão em diferentes lugares e culturas ao longo da história da humanidade.

A Eneida de Virgílio descreve, segundo Le Goff (1981), as concepções greco-romanas do além-túmulo:

Lá se encontra a descida por um vestíbulo que iremos encontrar muitas vezes, juntamente com o poço, no inferno-purgatório. Depois o campo dos mortos sem sepultura, o rio Estige, os campos de prantos e as últimas pradarias antes da bifurcação que, pelo caminho da esquerda, conduz ao Tártaro (Inferno) e pelo da direita e após se ter transposto as muralhas de Dis (Plutão, rei dos Infernos), leva aos Campos Elíseos, morada vagamente paradisíaca, atrás da qual há o bosque sagrado cercado por muros e por fim o rio do Esquecimento, o Letes. (LE GOFF, 1981, p.41)

25 Na Divina Comédia, Dante também manteve o status social dos personagens que foram condenados ao Inferno. 97

No entanto, a ideia de o Inferno estar localizado embaixo da terra, como acreditavam os gregos antigos, não foi uma unanimidade entre os apócrifos. Rizo observa que, em Segundo Enoque, no Testamento de Levi, e em outros apócrifos, o Inferno não estava localizado no submundo, onde se suporia, mas sim nas regiões à nordeste do terceiro Paraíso, enquanto o Mal, em seus vários aspectos, encontrava-se alojado nos segundo, terceiro e quinto Paraísos. Baseando-se no Apocalipse de Baruch (Baruch III), o autor destaca que os três primeiros Paraísos eram repletos de monstros maléficos, e também explica que

No segundo Paraíso, os anjos caídos (os amorosos, que copularam com as filhas dos homens) estavam aprisionados e eram diariamente açoitados. Os temíveis Vigilantes habitavam o quinto Paraíso, os eternamente silenciosos Grigori que, junto ao seu príncipe Salamiel, rejeitaram Deus (RIZO, 2013, p. 4).

Ao narrar a experiência de seu arrebatamento ao terceiro Paraíso, Paulo menciona que lá encontrou anjos do mal, descrevendo-os como terríveis e desprovidos de piedade, os quais portavam pesadas armas (RIZO, 2013, p. 4), cujos “dentes pontudos se projetavam para fora de suas bocas, e seus olhos brilhavam como a estrela da manhã do leste, e fagulhas de fogo eram expelidas dos seus cabelos e das suas bocas” (GARDINER, 1989, p. 18).

Voltando à mitologia grega, o imaginário do Inferno no Paraíso não é nenhuma novidade, considerando que o Hades abrigava tanto os paradisíacos Campos Elíseos quanto o infernal Tártaro. Essa noção também pode ser encontrada na tradição judaica, quando

um comentário rabínico (Midrash Tannaim) atesta o fato de que o Inferno e o Paraíso estão “lado a lado”. Num outro comentário (Midrash Tehillim), no salmo 90, afirma-se que existiram sete coisas anteriores à criação do mundo, e que entre elas estavam o Paraíso e o Inferno, e que o Paraíso estava no lado direito de Deus e o Inferno no lado esquerdo (RIZO, 2013, p. 5).

A teologia cristã, no entanto, refutava a ideia da existência de um Inferno no Paraíso, visto que as implicações de tal fato iriam colocar em dúvida a sagrada benevolência divina. O Mal tinha de ser transferido para outro local e, quanto mais longínquo, melhor. E, melhor ainda, seria evitar uma definição de Inferno mais precisa, para não se correr o risco de um dualismo maniqueísta (RIZO, 2013, p. 5).

Além da contribuição dos gregos, a elaboração do imaginário geográfico do Inferno também possui conexões mitológicas com o Oriente, especialmente com a mitologia egípcia.

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A arquitetura do Inferno egípcio impressiona pela sua sofisticação (LE GOFF, 1981), contando com imponentes pórticos e muralhas, pântanos lamacentos e lagos de fogo com a finalidade de castigar as almas. As punições do Inferno egípcio eram diversificadas e muito rigorosas, as quais

[...] atingiam tanto o corpo como a alma. Eram tanto físicas como morais, marcadas pelo distanciamento dos deuses. Uma sensação essencial era a de encerramento e de prisão. Lá as penas eram sangrentas e os castigos pelo fogo numerosos e terríveis. (LE GOFF, 1981, p.37)

O Inferno medieval recebeu uma forte influência da mitologia egípcia, cuja configuração apresenta muitos pontos de contato com a referida mitologia. O exemplo mais evidente que podemos citar é a apropriação da distribuição dos castigos e das estruturas físicas do Inferno egípcio, de acordo com o pecado, e sempre caracterizadas pela treva, pelo medo e pela recorrência de lugares adversos, como os lagos de fogo e os pântanos (LE GOFF, 1981).

Embora não tenhamos apresentado todas as concepções de Inferno, elaboradas por diferentes povos, inseridos em culturas e períodos históricos específicos, os exemplos comentados até agora nos possibilitam dizer que a elaboração do imaginário do Inferno cristão foi atravessada pelo paganismo. Isso porque, como vimos anteriormente, foi muito influenciada por tradições religiosas politeístas, especialmente a grega e a egípcia, incorporando elementos de suas respectivas mitologias em sua paisagem.

Em suma, o Inferno cristão pode ser compreendido como um produto sincrético de diferentes sociedades, cujo imaginário resulta de uma construção histórica e religiosa de significativo “aspecto heterogêneo, ambíguo, e de rica interpretação simbólica” (RIZO, 2013, p. 1). Tal caráter ambíguo do Inferno será dissertado na abertura do próximo subcapítulo com mais detalhes.

4.2 O INFERNO CRISTÃO NO PERÍODO MEDIEVAL

Antes de dissertarmos sobre o Inferno cristão propriamente dito, convém esclarecer acerca da ambiguidade que o caracteriza e que passou a vigorar com maior força a partir do período medieval. Trata-se da adoção, pelo cristianismo, de um princípio geral de oposição entre o Bem e o Mal, personificado em Deus e o Diabo. Esse dualismo é, segundo Rizo 99

(2013), basilar na doutrina cristã e misterioso em sua essência. Ele criou a figura do Diabo e a necessidade de expulsá-lo do reino de Deus. Consequentemente, criou também uma morada onde o Diabo pudesse habitar – o Inferno, tornando esse espaço intimamente relacionado à figura do seu principal habitante.

A partir disso, o dualismo entre Bem e Mal e Deus e Diabo foi ampliado, reforçando a noção de pecado e possibilitando o surgimento de novas antíteses, como Céu/Paraíso e Inferno, Luz e Trevas/Escuridão, etc. Também foram ampliadas as representações sobre o espaço do Inferno e a figura do Diabo, sendo este período histórico o auge da elaboração iconográfica de ambos (RIZO, 2013, p. 1).

No jogo de oposição entre o Inferno e o Paraíso, é interessante observar que, pela tradição popular, um acaba definindo o outro pela ausência, isto é, o Inferno é o não-Paraíso, e vice-versa. Do mesmo modo, reza a tradição popular cristã que, após a morte, a alma pode cair em desgraça ou ser bem-aventurada. Logicamente, o Inferno é o local da desgraça por excelência, configurando “um ambiente inóspito, cheio de sofrimentos, penas e tormentos, onde as almas dos maus cristãos padecem nas mãos dos seres malignos” (ZIERER; OLIVEIRA, 2010, p. 48).

Com base nisso, o cristianismo instituiu o preceito de que o homem deve praticar o bem acima de tudo em sua vida terrestre (Efésios 2:10). Do contrário, quando a alma deixar o corpo no momento da morte, se perderá e afundará no nada. E este nada é o Inferno. O surgimento desse local é impulsionado por um emaranhado de ações, que lhe atribuem significados opostos do que o Paraíso e Deus são. Logo, o Inferno é o nada, o vazio, os medos, os vícios, os sentimentos e atos humanos que nos causam apreensão e nos levam a agir com maldade. Essas noções prevalecem na atualidade e eram difundidas com muito mais veemência no período medieval, mantendo a ameaça do Inferno vívida diante dos olhos da população, “com o objetivo de manter os indivíduos afastados dos prazeres da carne e se dedicarem mais à vida espiritual fazendo boas ações para com Deus e seguindo os preceitos doutrinários cristãos” (ZIERER; OLIVEIRA, 2010, p. 48).

O cristianismo também ensina que Deus é o responsável pela criação de tudo e de todos, um princípio que, não raramente, desencadeia um ponto por vezes polêmico e divisor de opiniões: se Deus criou tudo, o Inferno também é uma criação divina. Em sua obra Lúcifer: O Diabo na Idade Média, o historiador medievalista e cientista da religião estadunidense

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Jeffrey Russell entende que o Inferno não é uma criação da divindade. Para o autor, o Inferno é justamente a ausência de Deus, o nada, onde reinam os piores medos do homem, suas angústias e seus mistérios. O Inferno é, pois, em seu todo, o desconhecido (RUSSEL, 2003).

De acordo com os preceitos cristãos, o Inferno é resultado da queda do mais alto dos anjos, em virtude da desobediência para com seu Deus (RUSSEL, 2003, p. 216). As razões dessa desobediência são incertas, porém, conforme o pensamento medieval e com base nas diversas interpretações desse mito, Lúcifer, o mais alto dos anjos, rebelou-se por orgulho, por ter alimentado o desejo de ser como o próprio Deus e, por conseguinte, depondo-o e apropriando-se do seu trono celestial.

A atitude do anjo Lúcifer foi um pecado – as interpretações a partir de Santo Agostinho revelam que o pecado do Diabo foi o orgulho (LINK, 1998, p.33). Entretanto, foi o ato de castigá-lo e jogá-lo na Terra que construiu esse reino de punição e sofrimento, como causa e consequência.

A origem do mal é questionada por Santo Agostinho, e sua conclusão é a de que Deus não criou o mal:

Na terceira parte de A Cidade de Deus, sua principal obra, santo Agostinho explica a origem das duas cidades, a cidade de Deus e a cidade do Diabo. Originalmente, diz ele, todos os anjos eram seres da luz, criados “para viver na sabedoria e felicidade. Alguns anjos, porém, afastaram-se dessa iluminação”. Se o Diabo é um anjo caído, ele tem de ter caído. [...] João de fato escreveu que “o Diabo vive pecando desde o princípio”, admite santo Agostinho, mas isso “deve ser entendido no sentido de que ele pecou não desde o princípio de sua criação, mas desde o princípio do pecado, pois o pecado principiou no orgulho”. (LINK, 1998, p.30)

Le Goff (2005) explica que, do ano mil ao século XIV, os atos maldosos eram atribuídos às ações do Diabo, cujo habitat passou a tomar forma e significar caos, medo, destruição, sofrimento e punição. O Inferno passou a ser reconhecido como um ambiente no qual as leis mortais eram esquecidas e onde vingavam as leis do Cosmos26. Nesse reino, o mal podia tudo.

26 A palavra cosmos, ou cosmo, tem sua origem na língua grega antiga (κόσμος), e significa ordem, organização, beleza e harmonia, sendo um conceito contrário de caos. Trata-se de um termo que designa o universo em seu conjunto, toda a estrutura universal em sua totalidade, desde o microcosmo ao macrocosmo. O cosmos é a totalidade de todas as coisas deste Universo ordenado, desde as estrelas, até as partículas subatômicas. O filósofo grego Pitágoras foi o primeiro a utilizar essa palavra para referenciar o Universo, talvez querendo se referir ao firmamento celeste. Na teologia, o termo pode ser usado para denotar o universo criado, não incluindo o criador. 101

O Inferno, bem como o seu habitante-mor – o Diabo – estavam presentes no cotidiano do homem medieval como existência física, simbólica e moralizante: ambos eram a referência do Mal, aos quais eram atribuídos os atos ruins. As muitas referências a esse local de sofrimento, de demônios e de seres monstruosos encontraram, nas igrejas e catedrais, os seus espaços privilegiados de disseminação. Por meio da pintura, o cristianismo se precaveu e mostrou aos seus seguidores o que poderia lhes aguardar depois da morte, caso suas vidas estivessem em desacordo com o Bem – especificamente o bem cristão. Nesse sentido, os cristãos introjetaram a ideia de que os atos bons provinham de Deus, e os maus vinham do Diabo. Desse modo, o homem cristão da Idade Média entendia que, no Juízo Final, o Paraíso seria o destino dos bons, e os maus seriam levados aos confins do Inferno. O Purgatório foi ignorado durante um bom tempo, e o período medieval só o conheceu tardiamente (LE GOFF, 2005, p. 154).

O imaginário dos ambientes do além-túmulo como destino das almas, conforme sua conduta durante a vida terrena, foi um tema recorrente nas visões e narrativas medievais das viagens ou das peregrinações. Muito antes da Idade Média, essa temática também povoou “o imaginário tanto dos profetas que tiveram seus livros escolhidos para integrar o cânone judaico/cristão como dos que não tiveram seus textos classificados como autênticos (textos apócrifos)” (GASPARI, 2010, p. 68-69), como ocorre nos textos de Elias, Eliseu, Isaías, Ezequiel, Amós, Daniel, Enoque. Profetas que não vislumbraram somente a paisagem do Inferno, mas também o Purgatório e o Paraíso.

Ao mesmo tempo que suscitava certo temor, a viagem do pós-morte rumo a esses ambientes desconhecidos fascinava o homem medieval, que buscava compreender tanto o funcionamento dos seus mundos físicos quanto o dos espirituais e, consequentemente, suas geografias. Essas visões serão apresentadas de modo pormenorizado no subcapítulo a seguir.

Entretanto, a teologia cristã também o emprega como sinônimo de "vida mundana" ou "este mundo", em oposição à vida após a morte ou mundo vindouro (COSMO. In: Merriam-Webster.com Dictionary. Disponível em: . Acesso em: 13 jan. 2020).

102

4.3 AS VISÕES DO INFERNO NO PERÍODO MEDIEVAL

Como mencionado no início do subcapítulo anterior, a elaboração iconográfica da paisagem do Inferno, e também do Diabo, atingiram seu ápice no período medieval. De acordo com Rizo (2013),

[...] as características fundamentais do Inferno já estavam estruturadas desde a queda de Roma. Mas o que se pode chamar de mapeamento geral da região, foi vastamente elaborado durante a Idade Média na literatura apocalíptica apócrifa e na literatura monástica de viagens ao Além, também conhecidas como as visões medievais. Digo isto porque no período anterior as visões medievais, nos primeiros séculos de estruturação do cristianismo, o Inferno ocupava um lugar irrelevante nos ensinamentos de Jesus. Tanto é que São Paulo, o primeiro teólogo da Igreja e também o pioneiro da organização do pensamento cristão, desconsiderou solenemente o Inferno. Nesses termos, o Inferno só foi adquirir uma relevância de fato com a elaboração dos Evangelhos, quando esses foram coletiva e tardiamente escritos no seio de comunidades hebraicas de diferentes sensibilidades [...] (RIZO, 2013, p. 1).

Assim sendo, o imaginário medieval do além-túmulo constitui uma fonte profícua para o estudo e a compreensão das geografias do Paraíso e do Inferno, especialmente se levarmos em consideração as visões do cristianismo acerca desses dois planos. As visões cristãs do Paraíso e do Inferno durante a Idade Média eram, segundo Rizo (2013),

[...] narrativas que descreveram o Além em termos de outro mundo, um mundo adiante da nossa existência. Essas visões refletiram a crença de que na morte a alma é separada do corpo. Ela era então julgada de acordo com a vida que teve e dirigida a um lugar no outro mundo até que, no Juízo Final, fosse decretado o seu destino para toda a eternidade. (RIZO, 2013, p. 2)

Para tanto, o cristianismo adotou um vocabulário diversificado que, vindo das culturas que participaram na sua formação, buscou descrever a aparência e a geografia dos mundos que integram o além-túmulo. Tais descrições se fundamentaram numa vasta fonte de referências, dentre as quais estão incluídas as descrições budistas do Inferno, a ponte persa do julgamento, as catábases de Virgílio e Homero (RIZO, 2013, p. 2) e os textos apócrifos de Enoque e Isaías (GASPARI, 2010).

Além disso, essas visões cristãs também foram influenciadas de maneira significativa pelos livros de penitência, sobretudo os que pertenciam à tradição antiga irlandesa. Esses livros eram produzidos em formato menor e tinham como público-alvo os religiosos que eram responsáveis pela orientação do processo confessional das suas comunidades. O 103 uso desses livretos se deu do século V até o século XI, quando finalmente foram incorporados pela lei canônica sancionada pela Igreja (RIZO, 2013, p. 2).

Os livros que descreviam as visões dos ambientes do pós-morte eram muito populares. Eram escritos, inicialmente, como registros da própria visão, os quais podiam, posteriormente, ter o seu conteúdo modificado, ou até mesmo expandido. As visões descritas nesses livros não tinham a reputação de narrativas ficcionais, pelo contrário, eram tidas como relatos de eventos reais. Esses relatos foram incorporados com frequência às crônicas da época, como, por exemplo, nas obras dos cronistas Gregório de Tours27 e Vicente de Beauvais28. Em virtude de seu caráter popular, e também por serem narrativa simples, com linguagem acessível, os relatos dessas visões foram adotados pela Igreja como instrumentos didáticos, sendo traduzidos para diferentes idiomas e profusamente difundidas pela Europa (RIZO, 2013, p.2).

As ideias e as imagens contidas nessas visões possuem uma vitalidade impressionante, que permeou toda uma produção literária específica, variada e original, realizada por papas, monges, freiras, poetas, teólogos e místicos. Todavia, mesmo que diferenciadas, essas visões compartilham de uma similaridade patente no que se refere aos seus esquemas narrativos:

[...] um visionário, que varia de santo a pecador, do sexo masculino, tem uma visão, com ou sem a separação do corpo e da alma (na maior parte com), geralmente acompanhado de um guia (seu anjo da guarda ou um santo padrinho) que o orienta e protege na jornada, normalmente principiada na direção do Inferno, prosseguindo até o fundo deste, depois ascendendo ao Paraíso, quase encontrando Deus, e finalmente retornando ao corpo (RIZO, 2013, p. 3).

As visões tinham por finalidade levar o visionário ao arrependimento dos seus pecados, pelo medo do que viu no Inferno ou pelo sofrimento mesmo dos suplícios, e atingir a iluminação com uma renovada consciência religiosa. A conversão do visionário era o resultado final, sendo que muitos deles mudavam drasticamente os seus estilos de vida após essas experiências. A maioria optava pelos votos de pobreza, assumindo uma vida simples e em prol dos necessitados, também dedicando as suas vidas, a partir de então, à penitência e à reza. Como transmitiam uma didática religiosa objetiva e simples, conveniente para a difusão

27 São Gregório de Tours ou Gregório Turonense (30 de novembro de 538 - 17 de novembro de 594) foi um historiador medieval galo-romano e bispo de Tours, França. Seu mais notável trabalho foi seu Decem Libri Historiarum (Dez Livros de História), mais conhecido como Historia Francorum (História dos Francos), título dado por cronistas posteriores. 28 Vincentius Bellovacensis ou Vincentius Burgundus (1190? – 1264?), frade dominicano que escreveu o Speculum Maius (O Grande Espelho), a principal enciclopédia usada durante a Idade Média. Além de sua atuação religiosa, exerceu os ofícios de pedagogo, filósofo, escritor, zoólogo, naturalista e enciclopedista.

104 do dogma cristão, o clero se apropriou das narrativas dessas visões a fim de realizar os seus intentos, dos quais a manutenção da Igreja era uma de suas prioridades.

A forma das visões era, segundo Rizo (2013),

[...] a de um relato religioso e individual, escrito, de uma experiência do Além. Na maioria das vezes não era o visionário quem escrevia o acontecido. Esta tarefa cabia provavelmente a um monge ou a outro membro do clero, pois no período das visões, eram eles os principais detentores dos poderes da escrita, e dependendo do caso, do talento literário. E a sobrevivência das visões aos dias atuais, e mesmo a sua vitalidade, a isso se deveu, porque embora fossem originalmente escritos religiosos, transcenderam o seu tempo por também possuir um relevante valor literário (RIZO, 2013, p. 3).

O pesquisador complementa observando que o equivalente moderno das visões medievais dos ambientes do além-túmulo é semelhante aos relatos de indivíduos que afirmam terem sido abduzidos por seres extraterrestres e levados a viagens interplanetárias (RIZO, 2013, p. 3).

A experiência visual é privilegiada nos relatos dessas visões, mas também cede espaço aos outros sentidos do visionário, como o olfato, a audição e até mesmo o paladar, uma vez que o Inferno “era o lugar da punição de todos os sentidos, que eram a entrada dos pecados” (RIZO, 2013, p. 3).

Os visionários não experimentaram somente o horror da visão do Inferno, também

[...] sentiram os mais repulsivos fedores, ouviram os mais terríveis gritos de dor e experimentaram os mais amargos sabores. E em alguns casos, como o de Tundal, chegam mesmo a sofrer os suplícios. Isto significa dizer que o imaginário das visões concentrou-se nas penas do Inferno. O corpo, passível de punição, é o elemento essencial da figuração dos infernos nas visões (RIZO, 2013, p. 3-4).

Os suplícios são abundantes e os mais diversos, sendo possível visualizar uma variedade de torturas corporais, onde os condenados ao Inferno são dilacerados, fritos, assados, açoitados, perfurados, estrangulados, cortados, afogados, derretidos, pendurados, afundados na lama, feridos por bestas e insetos, dentre outros. Toda essa sorte de suplícios nos revela que a capacidade humana para os conceber parecia, e ainda parece, ser uma fonte criativa inesgotável. Nesse quesito, a visão de Pedro29 figura como pioneira no exemplo dos

29 O Apocalipse de São Pedro, elaborado na metade do século II, é um dos livros apócrifos do cristianismo, o qual se tornou importante na tradição porque foi a primeira visão cristã do Paraíso e do Inferno depois do bíblico Livro da Revelação de João (FIENSY, 1983). 105 castigos aplicados, que vão desde o fogo abrasante até o ataque de feras temíveis, segundo as faltas cometidas pelos danados (RIZO, 2013, p. 4).

Em termos de criatividade, as paisagens do Inferno constantes nas visões, embora com certa variedade, eram menos imaginativas do que os suplícios. Do ponto de vista teológico, essa constatação pode ser a razão pela qual a Igreja, alicerçada principalmente em Agostinho, sempre evitou indicar a localização do Inferno, descrevendo a sua paisagem do modo mais sucinto possível (RIZO, 2013, p. 4).

Em todo caso, a maioria dessas visões, preenchendo em parte a falta de representações do imaginário do além-túmulo, especificamente do Inferno, descreveram-no como um local inóspito e de inúmeras adversidades, como profundidades abissais repletas de escuridão, montanhas enormes, pântanos tenebrosos, rios de fogo, vales desolados, neve, um frio cortante, vendavais incessantes e outras intempéries.

Uma versão diferenciada do Inferno fica por conta da visão de São Brandão. O visionário “avista uma sinistra ilha rochosa, com fornalhas no interior de cavernas, e que é habitada por selvagens peludos, negros de fogo e fuligem. Eram os demônios ferreiros, ajudantes de Vulcano na sua enorme forja infernal” (RIZO, 2013, p. 5).

A recorrência de menções feitas às montanhas, às exalações sulfurosas e ao rio de fogo, leva diretamente à sua relação com o ambiente físico e concreto da paisagem vulcânica, comum às populações que habitavam a região que compreende a atual Itália. A isso, Rizzo (2013) explica que

[...] lá estão os mais famosos vulcões da Europa, como o Etna, na Sicília, e o Vesúvio, na Baía de Nápoles, que desde a antiguidade greco-romana eram considerados como a morada do deus Vulcano, responsável pela fabricação das armas dos deuses. Acreditava-se que as erupções desses vulcões eram as suas forjas, já que ele trabalhava debaixo da terra. Dizia-se também que a paisagem do entorno do Vesúvio era a entrada do Hades, a região dos mortos governada pelo deus do mesmo nome, na sua versão grega, e Plutão, na romana. A Eneida de Virgílio aí principia a catábase de Enéias, na busca de seu pai Anquises. Em outras versões, como nas cartografias feitas nos mosteiros dos séculos XIV e XV, o Etna é que conterá o Inferno (RIZO, 2013, p. 5).

Tudo indica que os rios de fogos descritos nas visões são a lava expelida pelas erupções vulcânicas, que vêm do interior da terra e se espalham, consumindo em chamas tudo

106 que se encontrar no caminho. Esses rios são componentes habituais das paisagens do Inferno descritas nas visões:

Na de Pedro, o anjo de Deus chamado Ezraël faz o julgamento decisivo: “um rio de fogo escorrerá, e todos que foram julgados serão mergulhados no meio do rio”. Na visão de Paulo, o rio de fogo comporta os danados mergulhados em diferentes alturas, dependendo da pena imposta. Na visão do monge Wetti, o anjo lhe apresenta um cenário impressivo de montanhas altíssimas, incrivelmente belas, que pareciam feitas de mármore e que estavam cercadas por um grande rio de fogo (RIZO, 2013, p. 6).

O simbolismo do rio de fogo é feito por uma conjugação de dois elementos da natureza que, do ponto de vista físico, são normalmente antagônicos: a água e o fogo. O fogo foi e é um elemento utilizado na purificação da alma ou em rituais religiosos e pagãos, constituindo um símbolo sagrado utilizado por diferentes sociedades e em diferentes épocas (LE GOFF, 1981).

Além dos rios, esse elemento aparece nos círculos de fogo, nos lagos ferventes, na chuva de chispas de fogo, nos anéis de chamas, entre outros. Le Goff (1981) explica que o fogo simboliza a ideia de revitalização e rejuvenescimento, diferindo do fogo da pira. Todavia, a presença do fogo no Inferno está conectada à ideia de sofrimento, castigo, medo, da impossibilidade de salvação e da danação eterna.

No cristianismo, a água possui uma rica variedade simbólica, geralmente associada a aspectos positivos. No entanto, em se tratando da água do Inferno, esse elemento adquire uma significação negativa, uma vez que ele assume um papel maléfico, transformando-se em uma fonte de sofrimentos. Os rios do Inferno são dotados de um poder demoníaco e devastador, cujas águas representam o Mal, a desordem e o fluxo incessante do martírio eterno.

O Hades da mitologia grega comporta cinco rios, cada qual designado segundo os suplícios que aguardam os danados: Aqueronte, o rio das dores; Cocito, o rio dos gemidos e das lamentações; Estige, o rio gélido dos horrores e dos juramentos inexoráveis; Flegetonte, o rio das chamas sempiternas; e Lete, o rio do esquecimento.

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Sobre a simbologia das águas do Inferno, Rizo (2013) explica que

No cristianismo, a inversão simbólica da água morta demoníaca com a água viva divina, que se comunica pela humanidade de Cristo, onde o Pai é a fonte, o Filho é denominado de rio e diz-se que nós bebemos o espírito, é completa. O rio que flui das entranhas do Demônio, que é o seu sangue podre, “obscurece e sufoca, por causa da fumaça; queima, devora e destrói: o fogo das paixões, do castigo e da guerra”. Portanto, esse simbolismo maléfico da água do rio comporta o seu oposto, o fogo, a ele se juntando, no desempenho escaldante da imensa punição do Além levada a cabo pelo poluído e ardente rio do Inferno. O ignis caritas, o fogo do amor de Deus se torna no ignis terribilis, o fogo do ódio do Demônio (RIZO, 2013, p. 6-7).

O Inferno de rios de água ou de fogo, concebido como um lugar adverso – com demônios, intempéries, dor, medo e sofrimento – onde os pecadores seriam castigados com penas as mais diversas, se fez presente ao longo da Idade Média, povoando o imaginário coletivo e parecendo ter se constituído em um instrumento eficaz para o cristianismo controlar os seus seguidores. Suas descrições foram incorporadas aos discursos religiosos de papas, padres, bispos e outros detentores do saber eclesiástico. Nesse sentido, e também considerando que a Bíblia não tem nenhuma descrição completa e rica do Inferno, a sua disseminação enquanto um local físico e concreto se deu tanto por meio daqueles que produziam o discurso quanto daqueles que o ouviam, ou mais particularmente, dos que o liam.

Como se pôde constatar, as diversas formas do Inferno constituem o então conhecido ambiente do além-túmulo presente da tradição cristã. Com o decorrer do tempo, ele sofreu algumas modificações ou variações, mas sempre considerando a ideia de que é um lugar real, com os aspectos de sua geografia – território, fronteiras, relevo, hidrografia – relativamente definidos. No entanto, algumas narrativas apresentaram noções mais complexas e sofisticadas desse local, onde os pecadores e seus castigos ganharam posições de destaque, às vezes tanto ou até mais que seus aspectos geográficos. Dentre as muitas obras que integram esse rol, a Divina Comédia ocupa uma posição de elevada distinção, como constatamos brevemente no capítulo anterior e como será possível observar, minuciosamente, nas próximas páginas.

Feita a dissertação sobre mangás, sobre nosso objeto de estudo, sobre Dante e sua obra-prima, e também sobre o Inferno cristão nas páginas anteriores, estamos prontos para o capítulo de análise. Assim, nas próximas páginas, buscaremos contrastar o Inferno de Cavaleiros do Zodíaco tendo como sombra, isto é, como referência, o Inferno que Dante projetou para a sua Divina Comédia.

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5 O INFERNO DOS CAVALEIROS DO ZODÍACO À SOMBRA DO INFERNO DANTESCO

One of the surest of tests is the way in which a poet borrows. Immature poets imitate; mature poets steal; bad poets deface what they take, and good poets make it into something better, or at least something different. The good poet welds his theft into a whole of feeling which is unique, utterly different from that from which it was torn; the bad poet throws it into something which has no cohesion. A good poet will usually borrow from authors remote in time, or alien in language, or diverse in interest.30 T. S. Eliot

Há no centro da Terra ampla caverna, Reino imenso dos anjos rebelados, Lago horrendo de enxofres inflamados, Que acende o sopro da Vingança eterna.

O seu fogo maldito é sem lucerna, Que faz trevas dos fumos condensados. Seus tectos e alçapões, enfarruscados, Não deixam lá entrar a luz externa.

Silvosos gritos, hórridos lamentos, Blasfémias, maldições, desata o vício Bramando, sem cessar, em seus tormentos.

Que imensos réus no eterno precipício Caindo estão, a todos os momentos! O Inferno sem fim, fatal suplício.31

Francisco Joaquim Bingre

No capítulo anterior, especificamente no subcapítulo em que discorremos sobre as visões do Inferno no período medieval, citamos os nomes de alguns visionários e profetas cujas visões contribuíram para a elaboração do imaginário e da arquitetura desse ambiente do além-túmulo. As descrições do Inferno representado nessas visões foram determinantes para a disseminação de seu imaginário através dos séculos.

30 “Um dos mais seguros testes é a maneira pela qual um poeta pede emprestado. Poetas imaturos imitam; poetas maduros roubam; os maus poetas desfiguram o que recebem, e os bons poetas transformam isso em algo melhor, ou pelo menos em algo diferente. O bom poeta solda seu roubo em um sentimento único, totalmente diferente daquele em que foi rasgado; o mau poeta o joga em algo que não tem coesão. Um bom poeta geralmente pede emprestado a autores remotos no tempo, alienígenas na linguagem ou diversificados no interesse.” (ELIOT, 2015, p. 114, tradução nossa). 31 Inferno. In: ANASTÁCIO, Vanda. Obras de Francisco Joaquim Bingre VI — Sonetos. Porto: Lello Editores, 2005.

110

Para além da instância religiosa, a perpetuação de todos os elementos que constituem o seu imaginário muito se deve à arte, onde destacamos, sobretudo, a contribuição da Pintura e da Literatura. Em relação ao último domínio artístico citado, e também aos visionários que descreveram o Inferno, a Divina Comédia e seu poeta, Dante Alighieri, foram decisivos no que se refere à arquitetura e a todo o imaginário não somente do Inferno, mas também dos reinos do Purgatório e do Paraíso. O que estamos querendo dizer é que Dante também foi um visionário – e viajante – do além-túmulo, cujas descrições foram o mote para a composição de seu poema. A Divina Comédia atravessou séculos, inspirou artistas de diferentes períodos, campos e tendências, e continua repercutindo nos debates literário, artístico, religioso e cultural, conjunta ou isoladamente, da atualidade. A tese de que Dante é um dos visionários do além-túmulo mais importantes de todos os tempos será sustentada minuciosamente ao longo das próximas páginas, quando efetuaremos a análise comparativa do Inferno representado no mangá Cavaleiros do Zodíaco tendo como referência o Inferno arquitetado por Dante para sua Divina Comédia. Antes da análise propriamente dita, apresentaremos os princípios que a regem, os quais estão alicerçados no campo teórico-metodológico da Literatura Comparada.

5.1 LITERATURA COMPARADA

A comparação está presente em diferentes esferas da atividade humana e permeia a existência do homem desde o seu nascimento. É, pois, uma atividade cognitiva intrínseca ao ser humano. Nesse sentido, Carvalhal (2007, p. 7) afirma que “comparar é um procedimento que faz parte da estrutura de pensamento do homem e da organização da cultura”. E complementa seu raciocínio, dizendo que o ato de comparar constitui um hábito generalizado em diferentes áreas do saber humano e até mesmo na linguagem corrente. De situações cotidianas, simples, corriqueiras às mais complexas, que demandam estudo ou um método mais apurado, o ser humano é um comparatista por excelência.

A autora também afirma que a comparação não é um método específico, e sim um procedimento mental que favorece a generalização ou a diferenciação. Trata-se de “[...] um ato lógico-formal do pensar diferencial (processualmente indutivo) paralelo a uma atitude totalizadora (dedutiva).” (CARVALHAL, 2007, p. 7). 111

Situar historicamente o surgimento do método comparativista é uma tarefa complexa. Na perspectiva acadêmica, trata-se de um princípio de análise que começou a ser difundido e aplicado efetivamente em diversas áreas do conhecimento, incluindo a Literatura, a partir do século XIX.

Em O Método Comparativo e a Literatura32, um dos textos fundadores do campo da Literatura Comparada e escrito por Hutcheson Mucalllay Posnett, o autor reflete que o método comparativo de adquirir ou comunicar conhecimento “[...] é, num certo sentido, tão antigo quanto o pensamento, e, em outro, a glória peculiar do nosso século XIX”. Conforme as palavras do crítico, toda a razão e toda a inteligência operam subjetivamente, passando de indivíduo para indivíduo objetivamente, por intermédio de comparações e diferenças (POSNETT, 1994, p. 15).

As palavras de Posnett reverberam o caráter atemporal do método comparativo, um princípio de análise que continua válido e oportuno para diferentes campos científicos, despertando o interesse em muitos pesquisadores contemporâneos. Motivados pelo surgimento de novos gêneros literários, novas tecnologias de informação e comunicação que reatualizam os modos de conceber e compartilhar uma obra literária (ou outro produto artístico), e também as novas formas de interação humana, as pesquisas e estudos atuais empreendidos no campo da Literatura Comparada constituem um espaço de relevância e contribuição significativas, tanto no plano acadêmico quanto no social.

Dito de outra maneira, a comparação é um método também empregado nos estudos literários, onde pesquisas não comparam produções literárias somente no âmbito de seus assuntos ou temáticas. Estamos falando de um método que supera essa noção primária de comparação e adquire uma dimensão de caráter mais crítico, qualitativo e analítico. Assim, autores, tempos históricos, lugares, períodos literários, filiações ideológicas, questões estéticas, entre outros aspectos relevantes para um estudo comparado em Literatura, são contrastados, diferenciados e aproximados.

32 O título original do artigo é The Comparative Method and Literature, inicialmente publicado na obra Comparative Literature (New York: Appleton, 1886, p. 73-86).

112

Um estudo crítico e um estudo comparado, no campo da Literatura, geralmente possuem uma relação estreita. A respeito disso, Carvalhal (2006) observa que

A crítica literária, por exemplo, quando analisa uma obra, muitas vezes é levada a estabelecer confrontos com outras obras de outros autores, para elucidar e para fundamentar juízos de valor. Compara, então, não apenas com o objetivo de concluir sobre a natureza dos elementos confrontados mas, principalmente, para saber se são iguais ou diferentes. É bem verdade que, na crítica literária, usa-se a comparação de forma ocasional, pois nela comparar não é substantivo. No entanto, quando a comparação é empregada como recurso preferencial no estudo crítico, convertendo- se na operação fundamental da análise, ela passa a tomar ares de método — e começamos a pensar que tal investigação é um "estudo comparado". (CARVALHAL, 2006, p. 7-8)

A literatura comparada, enquanto princípio de análise, compara não pelo procedimento em si. Trata-se de um recurso analítico e interpretativo que possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se propõe. Daí também a sua dimensão crítica.

Brunel, Pichois e Rousseau (1990) entendem que

A literatura comparada é a arte metódica, pela pesquisa de vínculos de analogia, de parentesco e de influência, de aproximar a literatura dos outros domínios da expressão ou do conhecimento, ou, para sermos mais precisos, de aproximar os fatos e os textos literários entre si, distantes ou não no tempo ou no espaço, com a condição de que pertençam a várias línguas ou a várias culturas, façam parte de uma mesma tradição, a fim de melhor descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los. (BRUNEL; PICHOIS; ROUSSEAU, 1990, p. 140).

A noção do método da Literatura Comparada é refletida e ampliada por Carvalhal (2006). A autora explica que a denominação Literatura Comparada é “usada no singular mas geralmente compreendida no plural”, a qual “designa uma forma de investigação literária que confronta duas ou mais literaturas” (CARVALHAL, 2006, p. 6). Nesse sentido, não é possível falar de uma teoria em Literatura Comparada, mas sim de teorias em Literatura Comparada. Isto porque, nas palavras da pesquisadora,

[...] ao se pensar em teorias em literatura comparada quer-se integrar componentes teóricos, como formas específicas de observação e de reflexão, a um campo particular de investigação, a literatura comparada, em suas várias formulações. Quer-se, ainda, dar-lhe um estatuto que a eleve à categoria de disciplina reflexiva paralelamente a sua natureza prática. Trata-se, em suma, de "emprestar" das(s) teoria(s) literária(s) conceitos operacionais que possam ser rentáveis nas formas de atuação comparativista bem como as auxiliem em sua própria definição. (CARVALHAL, 2006, p. 11)

113

O ideário de que a Literatura Comparada está voltada somente ao âmbito literário, confrontando duas ou mais literaturas, não configura uma definição ideal para os estudos realizados na atualidade. Ademais, conforme Aldridge (1994, p. 259),

[...] por causa da vastidão do material e da multiplicidade de problemas encontrados na literatura comparada, não existe um método ideal ou um modelo para o estudo. A terminologia metodológica é, quando muito, ambígua, e inúmeros métodos diferentes podem ser utilizados, ainda que se tratando do estudo de um mesmo problema. Em outras palavras, o método é menos importante do que a matéria (ALDRIDGE, 1994, p. 259).

Acerca da teorização e da metodologia da Literatura Comparada, Carvalhal (2006, p. 5) também assinala para a complexidade que envolve esse campo de pesquisa. Isso porque as pesquisas que se classificam como estudos literários comparados são bem variadas, adotam diferentes metodologias e, pela diversificação dos objetos de análise, concedem à Literatura Comparada um vasto campo de atuação.

Se fizermos um levantamento do quadro atual das pesquisas desenvolvidas nesta área, constataremos que elas ultrapassaram as fronteiras do literário e também demonstram significativo interesse por

[...] diferentes áreas do conhecimento e da crença, tais como as artes (por exemplo, a pintura, a escultura, a arquitetura, a música), a filosofia, a história, as ciências sociais (por exemplo, a política, a economia, a sociologia), as ciências, a religião, etc. (REMAK, apud COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p. 175).

E complementa, definindo a Literatura Comparada como “[...] a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação da literatura com outras esferas da expressão humana” (REMAK, apud COUTINHO; CARVALHAL, 1994, p. 175). Considerando as ideias do teórico, podemos dizer que esta pesquisa vai ao encontro de suas palavras, visto que um de nossos objetos compartilha de elementos próprios da Literatura. Ainda assim, não o é, pertencendo a um outro domínio artístico, a uma outra forma de expressão e de linguagem: as Histórias em Quadrinhos.

Além das Histórias em Quadrinhos, também poderíamos incluir, nas exemplificações de Remak, a Fotografia, o Cinema, o Teatro, a Dança, a Moda, entre outras esferas da atividade humana, sejam elas artísticas ou não. E é justamente por esse leque multifacetado de possibilidades e por estabelecer diálogo com diferentes áreas que a Literatura Comparada atual possui uma dimensão interdisciplinar.

114

Essa perspectiva interdisciplinar também possibilita que o nosso objeto estabeleça relações com os pressupostos objetivados pelos Estudos Culturais. Por consequência, isso acrescentará ao nosso estudo um terceiro adjetivo, além de sua qualificação como literário e comparado: o atributo de intercultural. Todas as etapas da pesquisa a que estamos nos propondo são atravessadas pela interculturalidade. Isso porque temos duas textualidades, de culturas diferentes no tempo e no espaço, que se inter-relacionam quanto a alguns aspectos temáticos. Entre esses aspectos, está o foco deste estudo: a paisagem do Inferno. Tal cenário narrativo, presente em ambas as obras, será analisado a partir do mangá, sempre buscando referências no poema dantesco.

Assim, adiantamos que a análise pretendida tende a mobilizar mais o conceito de relação do que o de comparação, visto que

[...] a Literatura Comparada como disciplina de investigação universitária [...] não se baseia apenas na comparação. De fato, trata-se sobretudo, muito mais frequentemente, muito mais amplamente, de relacionar. Relacionar o quê? Duas ou mais literaturas, dois ou mais fenômenos culturais; ou, restritamente, dois autores, dois textos, duas culturas de que dependem esses escritores e esses textos. E trata-se também, obviamente, de justificar de maneira sistemática essa relação estabelecida. […] a Literatura Comparada proporciona o diálogo não só entre as literaturas e as culturas, mas também entre os métodos de abordagens do fato e do texto literário (MACHADO; PAGEAUX, 2001, p. 17).

Ao contrastar duas textualidades, de culturas diferentes no tempo e no espaço, estabelece-se um diálogo intercultural, aproximando e também distanciando os dois objetos quando da análise de seus elementos temáticos e de sua estrutura narrativa. A mediação da Literatura Comparada nesse procedimento analítico possibilitará uma interlocução profícua entre os dois objetos, sendo que ela

[...] fornece um método de ampliação da perspectiva na abordagem de obras literárias isoladas – uma maneira de se olhar para além das estreitas fronteiras nacionais –, a fim de que sejam discernidos movimentos e tendências nas diversas culturas nacionais e de que sejam percebidas as relações entre a literatura e as demais esferas da atividade humana (ALDRIDGE, 1994, p. 255).

E é num cenário atravessado pelas dimensões interdisciplinar, intercultural e intertextual que o presente estudo se insere: a análise de uma obra – o mangá – tendo outra – o poema de Dante – como referência, ambas muito distintas em suas características formais. No entanto, as duas se aproximam, em certa medida, considerando alguns aspectos de seus 115 elementos narrativos, tais como o enredo de proporções épicas, as jornadas heroicas e as viagens para as diferentes paisagens do além-túmulo.

O método comparativista não é exclusividade da Literatura Comparada e não pode por si só defini-la. Nesse sentido, será o seu emprego sistemático que irá caracterizar a sua atuação. Em síntese, a comparação, mesmo nos estudos comparados, constitui um meio, e não um fim. (CARVALHAL, 2006, p. 7). E esta noção também prevalecerá em nosso trabalho.

Após essas reflexões sobre o campo da Literatura Comparada, apresentaremos algumas considerações acerca da origem do Inferno – o ponto de contato entre o mangá e o poema de Dante –, especificamente o cristão, bem como a sua relação com o Hades da mitologia grega, descrito e narrado a partir da antiguidade clássica.

5.2 PANORAMA DO INFERNO DA DIVINA COMÉDIA E DO INFERNO DE HADES DO MANGÁ CAVALEIROS DO ZODÍACO

Nossa análise apresenta, já de início, o esquema do Inferno dantesco, seguido do panorama geral do Inferno de Hades33 desenhado por Masami Kurumada. Nesse sentido, o estudo efetuado parte do geral para o específico, buscando expor todos os ambientes do Submundo ilustrados no mangá, sempre contrastados com a arquitetura infernal dantesca. No contexto da Divina Comédia, a arquitetura do Inferno está estruturada conforme o quadro que segue:

33 Nesta dissertação, estamos utilizando a edição de Cavaleiros do Zodíaco publicada a partir do ano 2000 pela editora Conrad. Portanto, muitos fragmentos verbais não estão em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, obrigatório desde 2016. Além disso, alguns fragmentos podem apresentar desvios da norma-padrão da Língua Portuguesa ou inconsistências na tradução, visíveis, principalmente, em nomes de locais e de personagens.

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Quadro 4 – Esquema do Inferno dantesco

Pecado Círculo Pecadores Canto

Vestíbulo Ignavos III

I Sem batismo (Limbo) IV

II Luxuriosos V

III Gulosos VI

IV Avaros e pródigos VII Incontinência

V Iracundos e rancorosos VII-VIII

VI Heréticos IX-X

VII Giro 1 contra: o próximo Tiranos-Assaltantes XII

Giro 2 contra: si mesmo Suicidas-Gastadores XIII Violência

e Giro 3 contra: Deus Blasfêmios-Sodomitas XIV-XV Bestialidade

Usurários XVI-XVII

VIII Vala 1 Sedutores-Rufiões XVIII

Vala 2 Aduladores-Lisonjeadores XVIII

Vala 3 Simoníacos XIX

Vala 4 Magos-Adivinhos XX

Vala 5 Traficantes XXI

Fraude simples Vala 6 Hipócritas XXIII

Vala 7 Ladrões XXIV-XXV

Vala 8 Maus conselheiros XXVI-XXVII

Vala 9 Cismáticos-Intrigantes XXVIII

Vala 10 Falsários XXIX-XXX

IX Caína Parentes XXXII

Antenora Pátria XXXII

Traição contra: Ptolomeia Hóspedes XXXIII

Judeca Benfeitores XXXIV

Adaptado de: ALIGHIERI (2017).

O quadro acima foi a base para Kurumada desenvolver o Inferno de Hades, conforme a ilustração que segue e que será desmembrada ao longo do capítulo, a fim de efetivarmos nossa análise: 117

Figura 2: Panorama do Inferno de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41)

118

5.3 A ENTRADA DO MUNDO DOS VIVOS PARA O SUBMUNDO

O ponto geográfico pelo qual é possível descer ao Inferno, a partir do mundo terrestre, é diferente nas duas obras. Na Divina Comédia, Dante elegeu Jerusalém, a Terra Santa, como o ponto de acesso para o mundo dos mortos. A cosmogonia34 dantesca reza que há, sob a crosta terrestre, uma abertura no hemisfério boreal. Esta abertura está localizada precisamente debaixo de Jerusalém e se caracteriza como uma profunda depressão em forma de cone que chega até o centro da Terra. Esse acidente geográfico foi provocado pela queda de Lúcifer, o anjo rebelde, o qual se encontra, efetivamente, cravado no fundo do abismo. As terras, que saltaram durante a queda do anjo, confluíram no hemisfério austral, formando uma ilha constituída por uma montanha cônica no cimo da qual está colocado o Paraíso Terrestre, exatamente nos antípodas de Jerusalém, e na fronteira extrema entre o mundo da matéria e o da imaterialidade. Todavia, Dante não esclarece tais coordenadas ao longo dos versos do Inferno. A figura abaixo ilustra a localização do Inferno e a distribuição dos três reinos dantescos a partir do globo terrestre:

Figura 3: Distribuição dos três reinos dantescos a partir do globo terrestre.

Disponível em: < https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-e-o-mapa-do-inferno/>. Acesso em: 28 dez 2019.

34 Pela cosmogonia dos tempos de Dante, herdada de Aristóteles e Ptolomeu, e adaptada pela escolástica às Escrituras, a Terra era representada como um globo solto e fixo, imóvel no espaço, contendo terras e mares e envolvida por uma atmosfera própria, isolada do espaço restante. Acreditava-se que esse globo era constituído por um hemisfério superior (setentrional ou boreal) de superfície predominantemente sólida, o único habitado, e que o inferior (meridional ou austral) seria quase todo marinho, tendo unicamente em seu centro a montanha do Purgatório. Estendia-se o hemisfério superior desde a foz do Rio Ganges, na Índia (ao Oriente), até a nascente do Rio Ebro, na Espanha (ao Ocidente), trajetória correspondente ao arco descrito pelo Sol, nos equinócios, da aurora ao ocaso, em cujo centro, ao meio-dia, localizava-se a cidade de Jerusalém, à qual correspondia, no polo oposto, a montanha do Purgatório. À volta dessa Terra imóvel circulavam, cada qual em sua órbita, a distâncias crescentes, a Lua, Mercúrio, Vênus, o Sol, Marte, Júpiter e Saturno, designados como planetas ou estrelas móveis. Acima deles, o céu das estrelas fixas. 119

Uma das primeiras diferenças significativas entre as duas obras diz respeito a esse aspecto de localização. Em Cavaleiros do Zodíaco, o acesso ao Inferno a partir do mundo dos vivos se dá pelo Castelo de Hades. Trata-se do castelo de Heinstein, o local onde Pandora e a sua família viveram na Alemanha, e que posteriormente foi amaldiçoado por Thanatos e Hypnos, quando a personagem abriu a caixa de Pandora, tornando-se o Castelo de Hades. Segundo informações do Portal CavZodiaco, a referência que Kurumada teve para a criação do castelo de Heinsten partiu de um local real: o castelo de Neuschwanstein35 (CAVZODIACO, 2010?).

Figura 4: O Castelo de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 33, p. 12)

35 O Schloss Neuschwanstein é um palácio alemão construído na segunda metade do século XIX, perto das cidades de Hohenschwangau e Füssen, no sudoeste da Baviera. Foi construído por Luís II da Baviera no século XIX. A arquitetura do castelo possui um estilo fantástico, o qual serviu de inspiração ao "castelo da Cinderela", símbolo dos estúdios Disney. O nome Neuschwanstein significa "novo cisne de pedra", uma referência ao "cavaleiro do Cisne", Lohengrin, da ópera com o mesmo nome.

120

Figura 5: O Castelo de Neuschwanstein

Disponível em: < https://nationalgeographic.sapo.pt/historia/grandes-reportagens/1674-castelos-da- baviera>. Acesso em: 28 dez. 2019.

Do mesmo modo que sua arquitetura exterior, o interior do castelo chama a atenção do leitor pelo requinte e pelos detalhes. Além da referência a Neuschwanstein, Kurumada também buscou inspiração em uma obra artística real para a composição da cúpula do castelo de Hades. Conforme consta no Portal CavZodiaco, ela foi inspirada em Les Limbes36 (O Limbo), de Eugène Delacroix37, pintado entre 1841 e 1846, e que hoje é encontrado na biblioteca Palácio de Luxemburgo, atual sede do Senado francês (CAVZODIACO, 2010?).

36 Segundo informações do site oficial do Senado francês, a pintura é inspirada no Canto IV do Inferno de Dante. Na concepção de Delacroix, ela representa uma espécie de Campos Elísios, onde grandes homens estão reunidos e que, por não terem recebido a graça do batismo, não podem entrar no Paraíso. A obra é dividida em quatro estágios, dos quais o principal é organizado em torno de Homero, acompanhado por Ovídio, Estácio e Horácio. Este grupo recebe Dante, conduzido por Virgílio. Dois outros grupos são compostos por ilustres gregos e romanos. Um último grupo, do lado da janela, reúne outros poetas, incluindo Orfeu e Safo. Disponível em: < https://www.senat.fr/patrimoine/bibliotheque.html>. Acesso em: 28 dez. 2019. 37 Ferdinand Victor Eugène Delacroix (Saint-Maurice, 26 de abril de 1798 — Paris, 13 de agosto de 1863), foi um importante pintor francês do Romantismo. 121

Figura 6: Cúpula do castelo de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 38, p. 32)

Figura 7: Les Limbes, de Eugène Delacroix

Disponível em: < https://www.senat.fr/patrimoine/bibliotheque.html>. Acesso em: 28 dez. 2019.

122

Adentrar ao castelo de Hades não significa estar no Inferno. Para um mortal acessá-lo efetivamente terá de descer a escadaria do seu porão ou se lançar em seu fosso, o verdadeiro portal que interliga os dois mundos. De acordo com o mangá, isto somente é possível com a ordem ou a autorização de Pandora ou do próprio Hades (KURUMADA, 2000).

Figura 8: O porão do Castelo de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 38, p. 22)

5.4 SELVA SELVAGEM OU DESERTO INÓSPITO?

A viagem de Dante, na Divina Comédia, inicia com o personagem já perdido em uma “selva selvagem”, local que pode ser definido como uma espécie de ante-Inferno. Diferentemente do que é demonstrado pelos personagens do mangá, que acessam o Submundo a partir de um ponto localizado no mundo terrestre, isto é, a partir do Castelo de 123

Hades, Dante não o faz no Canto I do Inferno. Ele já está na selva escura, e é a partir desta posição que irá narrar a sua jornada. Portanto, não há ações a partir de Jerusalém, o lugar no mundo dos vivos que, segundo a cosmogonia dantesca, se sobrepõe ao acesso ao Inferno.

Em Cavaleiros do Zodíaco, Kurumada propõe uma dinâmica de ações significativas que ocorrem ainda no mundo dos vivos, especialmente no Santuário de Athena, na Grécia, e no Castelo de Hades, envolvendo um número expressivo de personagens, muito antes de eles já estarem no Submundo.

No mangá, a primeira paisagem encontrada por aquele que desce a escadaria do porão do castelo de Hades, ou se lançou em seu fosso, é caracterizada pelo personagem Seiya como um lugar desolado, que parece não ter fim – a ponto de o cavaleiro não saber para qual direção seguir –, e onde o céu é totalmente negro. Já na Divina Comédia, o que mais chama a atenção de Dante quando ele entra efetivamente no Inferno é o cheiro, o barulho e a escuridão total.

A primeira visão que o leitor do mangá terá, com os primeiros quadrinhos que Kurumada apresenta o Inferno de Hades, é de uma paisagem com muitos rochedos, a qual transmite a sensação de ser um local ermo e de relevo abrupto, o que dificultaria a locomoção de quem estivesse por lá. Também faz lembrar da “selva escura”, mais pela dificuldade de locomoção do que a paisagem propriamente dita, presente no segundo verso do Canto I, “mi ritrovai per una selva oscura”38. Outra possível referência que também pode ser lembrada, diz respeito às gravuras com as quais Gustave Doré ilustrou a Divina Comédia no século XIX, provavelmente pelas questões estéticas que tornam o seu legado artístico inconfundível: a predileção pelos tons acinzentados e pretos – característica sui generis dos quadrinhos japoneses.

38 Na tradução de Italo Eugênio Mauro, contida na edição da Divina Comédia com a qual estamos trabalhando: “fui me encontrar em uma selva escura”.

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Figura 9: Inferno de Dante, Canto I (1861), por Gustave Doré

Disponível em: . Acesso em 15 dez 2019.

O fato de o mangá ser em preto e branco, colorido com tinta nanquim, reforça o imaginário de que o Inferno é um local inóspito e adverso, retrato que os diferentes campos artísticos propagaram no decorrer dos séculos. Embora com variações, e como é possível constatar pela leitura de Cavaleiros do Zodíaco, tal cenário será recorrente ao longo de seu território, tanto nos trajetos que ligam uma prisão à outra quanto em seus respectivos interiores e entornos, cujas paisagens não são cenários dos outros cantos da Divina Comédia.

125

5.5 O PORTAL DO INFERNO

Do mesmo modo que ocorre na Divina Comédia, é também nesta primeira paisagem que o transeunte irá se deparar com o imponente Portal do Inferno. A exemplo do monumento presente no Inferno dantesco, o Portal que anuncia o Inferno de Hades possui uma inscrição na sua parte superior, inspirada e adaptada a partir dos versos iniciais do Canto III do Inferno. No poema, estes versos constituem a inscrição do Portal, os quais Dante lê, deixando-o com um misto de comoção e medo:

"Vai-se por mim à cidade dolente, vai-se por mim à sempiterna dor, vai-se por mim entre a perdida gente.

Moveu-se justiça o meu alto feitor, fez-me a divina Potestade, mais o supremo Saber e o primo Amor.

Antes de mim não foi criado mais nada senão eterno, e eterna eu duro. Deixai toda esperança, ó vós que entrais."39

(Inf III, 1-9)

A inscrição presente no Portal do mangá difere do poema basicamente em dois aspectos. O primeiro é de que ela está grafada na língua grega, o que é justificado pelo fato de a história de Cavaleiros do Zodíaco utilizar inúmeros elementos próprios da mitologia grega. O segundo diz respeito à sua extensão, que é muito menor se comparada às estrofes transcritas anteriormente. Trata-se de uma abreviação desse trecho, resultando em:

“ОПΟΙΟΣ МПАІΝΕΙ ΕΔΩ ΝΑ ΠΡΑΤΑ ΚΑΘΕ ΕΛΠΙΔΑ”.

A frase diz respeito ao verso “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” (Inf III, 9), que no mangá está traduzido “Deixai toda esperança, ó vós que entrais”, tradução idêntica à de Italo Eugenio Mauro para a quarta edição da Divina Comédia, versão utilizada neste trabalho.

39 No original utilizado por Italo Eugenio Mauro para a tradução da quarta edição da Divina Comédia, da Editora 34: “Per me si va ne la città dolente, / per me si va ne l'etterno dolore, / per me si va tra la perduta gente. / Giustizia mosse il mio alto fattore; / fecemi la divina podestate, / la somma sapïenza e 'l primo amore. / Dinanzi a me non fuor cose create / se non etterne, e io etterno duro. / Lasciate ogne speranza, voi ch'intrate".

126

Como podemos constatar, Kurumada se apropriou apenas do último verso da inscrição contida no Portal do Inferno dantesco. Talvez pela contundência das palavras expressas, que finalizam a epígrafe de maneira imperativa. Todavia, são palavras suficientes, que nos autorizam a afirmar que o autor do mangá buscou no poema de Dante a referência para a inscrição do seu Portal.

Figura 10: Portal do Inferno de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 38, p. 95)

Figura 11 – Detalhe da inscrição do Portal do Inferno de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 38, p. 93)

127

5.6 O RIO AQUERONTE

Após a passagem pelo Portal do Inferno, o visitante chegará às margens do Rio Aqueronte. Um rio infame, assim adjetivado por Seiya, que mais parece com um oceano, e é tão grande que não dá para ver o outro lado. A sua travessia somente é possível com a ajuda de Caronte, o barqueiro do Inferno de Hades, também existente no Inferno dantesco. Às margens do Aqueronte ficam reunidos aqueles que, segundo o personagem,

[...] passaram uma vida sem vontade própria. Elas não fizeram coisas boas... nem más... Suas vidas passaram sem o menor sentido. É por isso que, mesmo mortas, elas não conseguem entrar no Paraíso ou ir ao Inferno. E é por isso que choram eternamente no Rio Aqueronte, entre o mundo dos vivos e o dos mortos (KURUMADA, 2000, vol. 38, p. 99).

Figura 12: Rio Aqueronte

Fonte: Kurumada (2000, vol. 38, p. 97)

Figura 13: Almas reunidas à margem do Aqueronte

Fonte: Kurumada (2000, vol. 38, p. 97)

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As margens do Rio Aqueronte remetem ao vestíbulo do Inferno dantesco, lugar reservado aos ignavos e que, segundo a descrição do Canto III, ficam nus e são picados por nuvens de vespas, obrigados a correr sem parar atrás de uma insígnia. Esse primeiro castigo já revela o que será reiterado em outros cantos do Inferno: a correspondência entre o pecado e a punição, isto é, a lei do contrapasso, conceito explicado no capítulo que versa sobre o Inferno cristão. Nesse sentido, a lei do contrapasso é uma noção de significativa relevância para o poeta, visto que ele estruturou toda a arquitetura do seu Inferno levando em consideração esse princípio. Para mais, é a partir da lei do contrapasso que Dante estrutura a plasticidade das muitas paisagens e ambientes do Inferno, pensando em seus pormenores, desde o relevo, a vegetação, o clima, a hidrografia, até a presença de símbolos, elementos da natureza, seres mitológicos, personagens históricos, entre outros, até compor o cenário ideal que retratará, formidavelmente, a correspondência entre os pecados e as penas. O emprego dessa correspondência também nos possibilita afirmar que os espaços físicos ou concretos do Inferno “desenhado” pelo poeta dependem, em maior ou menor medida, dos pecadores e dos demais personagens inseridos em cada círculo, os quais se tornam figuras indissociáveis e pertencentes à sua arquitetura, seja em sua dimensão plástica, poética ou narrativa, seja no conjunto das três. Posto isto, é possível depreender que Dante transcendeu a definição do termo arquitetura, aplicando-a nas diferentes dimensões da sua obra poética. Seja na cosmogonia que estrutura o Universo do poema, no apurado e original rigor formal da terza rima, na cenografia minuciosa do Inferno e dos dois outros reinos do além-túmulo (que também estão estruturados em um sistema de correspondências), todos estes aspectos são, de certo modo, interdependentes, e confluem para a ideia de que a arquitetura da Divina Comédia é sublime e una, mesmo com a sua abordagem a partir de diferentes perspectivas analíticas. Voltando às margens do Rio Aqueronte em Cavaleiros do Zodíaco, Caronte também afirma que os deuses não têm piedade dos que vivem sem propósito. Nas palavras do barqueiro, “não tem nada pior do que passar os dias inativo e depois acabar desse jeito” (KURUMADA, 2000, vol. 38, p. 101). A travessia de uma margem à outra não é gratuita. Caronte exige que a passagem seja paga em prata e explica que aqueles que não foram enterrados com seus bens não podem entrar no seu barco. É por isso que eles vagam pela costa do Aqueronte e, segundo o 129 barqueiro, muitos deles às vezes voltam ao mundo dos vivos, como fantasmas. Nas lendas da mitologia grega, Caronte só transportava almas que tivessem sido enterradas com uma moeda debaixo da língua, com a qual poderiam pagar a travessia. Como vimos anteriormente, esse comportamento é mantido no mangá, mas não chega a ser mencionado no poema.

Figura 14: Caronte, o barqueiro do Inferno de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 38, p. 100)

Enquanto transporta Seiya e Shun, Caronte dá mais detalhes sobre o rio, explicando aos dois cavaleiros que, se caírem em suas águas, nunca mais poderão voltar. Ainda de acordo com o espectro, o rio engole tudo que nele entra, e é impossível nadar ou flutuar em suas águas. Quem cai simplesmente afunda até o fundo. A profundidade atinge o nível máximo no centro do rio, ponto onde sua água atinge a temperatura mais fria. Caronte também revela que o rio está repleto de almas que tentaram cruzá-lo a nado, fadadas à decomposição eterna, visto

130 que, de acordo com sua explicação, “não se pode morrer duas vezes” (KURUMADA, 2000, vol. 39, p. 9).

Figura 15: Almas que tentaram cruzar o Rio Aqueronte a nado

Fonte: Kurumada (2000, vol. 39, p. 9)

Aparentemente, a icônica figura do barqueiro é retratada de modo semelhante nas duas obras. A Divina Comédia fornece poucos detalhes a seu respeito, mas todos dão a ideia de que o personagem é rude, sorrateiro e raivoso, com destaque para seus “olhos de brasa”. Do mesmo modo que a maior parte dos seres mitológicos que aparecem no poema, Caronte tem sua origem na mitologia clássica. Esses personagens, em sua maior parte dotados de uma feição monstruosa, “[...] não são diabos ou almas perdidas, mas as imagens de apetites pervertidos, os quais vivem nos círculos apropriados à sua natureza” (SAYERS, 1949, p. 89). Sobre a mitologia grega, é importante observar que ela está presente nas duas obras como uma referência de destaque. Toda a narrativa de Cavaleiros do Zodíaco parte dessa mitologia, com referência às divindades, às constelações que foram nomeadas pelos gregos a partir dos mitos e estão representadas em suas armaduras, a Atenas e seu entorno, que fora habitado pelos deuses, etc. Dante a utilizou na composição do seu submundo, selecionando personagens específicos e arquitetando o seu mapa. Por sua vez, a análise pouco a pouco vai tornando claro o fato de que Kurumada, num primeiro momento, não buscou as referências nas fontes originais para a arquitetura do seu Inferno. E se por ventura o fez, as evidências nos levam a crer que o mangaká utilizou a Divina Comédia como uma espécie de filtro para sua pesquisa, uma vez que ela reúne os dois elementos dos quais precisava para a ilustração da saga de Hades: a mitologia grega e o Inferno – concebido a partir dessa mitologia. 131

Na dinâmica desse intercâmbio de influências, a mitologia grega inspirou Dante na concepção de seu Inferno cristão que, por sua vez, foi a referência para a ilustração do Inferno de Kurumada, que já vinha escrevendo e desenhando uma história toda embasada na dita mitologia. Se a literatura já legava a insigne arquitetura de um Inferno – épico, dantesco – celebrado no decorrer dos séculos, e que, mesmo cristão, tinha sua origem na mitologia da Antiguidade Clássica, que motivos o autor de Cavaleiros do Zodíaco poderia ter para deixar de utilizá-lo como referência? Concluída a travessia pelo Rio Aqueronte, os cavaleiros chegam à outra margem. Da mesma forma que no Inferno dantesco, pode-se dizer que é a partir deste ponto que o Inferno de Hades começa efetivamente. É o próprio Caronte quem faz este anúncio a Seiya e Shun, além de informar o panorama do Inferno de Hades a ambos. Em poucas palavras, sem maiores detalhes ou descrições, ele apenas revela aos garotos que o Inferno possui 8 prisões, com três vales, dez valas e quatro esferas.

Figura 16: Os cavaleiros chegando à outra margem do Rio Aqueronte

Fonte: Kurumada (2000, vol. 39, p. 28)

A configuração do Inferno de Hades apresentada por Caronte já nos permite detectar tanto diferenças quanto semelhanças, se efetuada uma comparação preliminar com o Inferno dantesco. Considerando as diferenças, a primeira constatação é a de que o Inferno de Hades está organizado em prisões, não em círculos. A segunda diferença é quanto ao número: o

132 mangá apresenta oito prisões, enquanto o poema contabiliza nove círculos. No entanto, há concordância no número de vales (três), valas40 (dez) e esferas (quatro) em ambas as obras. Cada uma das oito prisões é guardada por um dos 108 espectros que compõem o exército de Hades. O barqueiro Caronte é, inclusive, um desses espectros. O Inferno dantesco também possui seus guardiões: cada círculo tem seu(s) diabo(s) ou monstro(s). Para chegar até a morada de Hades (Giudecca), é necessário passar por todas as prisões que, além de seus guardiões, comportam as almas dos danados. As prisões constituem o único caminho possível de se chegar até o Imperador do Mundo dos Mortos. Quem deseja percorrê-lo só conseguirá tamanha façanha recebendo a autorização do espectro protetor de sua respectiva prisão ou, em outras circunstâncias, travando uma luta até derrotá-lo. E assim sucessivamente, de embate em embate, de uma prisão para a outra, até chegar ao templo de Hades. Fato semelhante ocorre com Dante em sua travessia pelo Inferno da Divina Comédia, onde, acompanhado por Virgílio, precisa passar por todos os círculos para finalmente chegar ao último estágio infernal, isto é, a morada de Lúcifer.

Figura 17: Escadaria que leva de uma prisão a outra

Fonte: Kurumada (2000, vol. 39, p. 35)

40 Em algumas páginas de Cavaleiros do Zodíaco, essas valas também são chamadas de fossos, o que não altera o seu sentido ou o contexto em que a palavra está sendo empregada. 133

As ilustrações do mangá sugerem que a distância de uma prisão à outra é razoável. Elas geralmente são interligadas por longas escadarias cravadas entre os rochedos, as quais ascendem até o momento em que se chegue à prisão subsequente. Diferentemente do que ocorre com os Cavaleiros do Zodíaco em suas peregrinações pelo Hades, o movimento de Dante é contrário no seu Inferno, que vai descendo, círculo após círculo. Diferentemente do Inferno dantesco, Kurumada não mencionou a existência do limbo. Entretanto, se tomarmos a mitologia grega como referência, as margens do Rio Aqueronte podem ser consideradas como o limbo de Cavaleiros do Zodíaco. Reza a mitologia que Campos Asfódelos são o limbo, o local do Hades conhecido como “lugar nenhum”. Semelhantemente às palavras proferidas pelo barqueiro Caronte, esse lugar é destinado às almas que não fizeram mal, mas também não praticaram algum grande feito que justificasse sua ida para os Campos Elísios. Ou seja, trata-se de um destino para pessoas que não tiveram algum significado relevante na vida. Na Divina Comédia, esse local corresponde ao vestíbulo, e também abriga as almas ignavas. A mitologia grega descreve esse ambiente como um local escuro, sombrio e monótono, com árvores secas e distorcidas, onde as almas não eram castigadas, mas também não recebiam qualquer tipo de benefício. Eram simplesmente fadadas à tristeza eterna. No poema dantesco, o limbo é tematizado no Canto IV, e sua funcionalidade é distinta do limbo mitológico: trata-se de um lugar que tem por funcionalidade receber as almas dos virtuosos que não sofrem pena, mas não podem ser beatificados por não terem recebido o batismo. É no limbo que Dante encontra grandes figuras da Antiguidade, dentre as quais Homero, Horácio, Ovídio e Lucano, os quais, segundo o poeta, habitam um “nobre castelo”. Sendo assim, os viajantes do Inferno de Hades podem ter encontrado o limbo antes da travessia pelo Rio Aqueronte. Chegando à outra margem, o caminho que encontrarão os conduzirá diretamente à primeira prisão.

134

5.7 A PRIMEIRA PRISÃO

Deixando a margem do Rio Aqueronte para trás e subindo a escadaria que logo se encontra, será possível chegar à primeira prisão. Do mesmo modo que o Portal do Inferno, a construção está identificada com uma inscrição na língua grega:

ΔΙΚΑΣΤΗΡ ΙΟΝ ΟΥ ΤΟ

Em sua primeira ocorrência no mangá, a inscrição acima está traduzida como “Casa do Julgamento”. No entanto, ao local também são atribuídas as denominações “Salão de Julgamento” ou “Morada do Juízo”, semanticamente idênticas à primeira. A primeira prisão é uma construção imponente e clássica, que obedece aos padrões estéticos da arquitetura dos templos gregos. Trata-se de um local onde vigora a lei do silêncio: barulhos ou ruídos de qualquer natureza são proibidos. Quem infringe tal lei é castigado por um dos três juízes41 do Inferno, os quais julgam as almas dos mortos conforme os pecados cometidos em vida. Após a sentença, cada alma é encaminhada a um determinado local do Inferno, a fim de que receba a punição condizente com a gravidade de seus pecados.

Figura 18: Casa do Julgamento, a primeira prisão do Inferno de Hades

Fonte: Kurumada (2000, vol. 39, p. 36-37)

41 Os três juízes do Inferno são também os três espectros mais poderosos do exército de Hades. Eles se chamam Radamanthys, Aiacos e Minos, e Kurumada os concebeu a partir da mitologia grega. Segundo essa mitologia, Radamanthys era um dos três juízes no Mundo dos Mortos, que julgava as almas vindas da Ásia. Aiacos, por sua vez, era o juiz que julgava as almas vindas da Europa. Já Minos era o juiz supremo do Mundo dos Mortos, que dava o voto final, ou seja, que decidia o destino das almas.

135

O interior da primeira prisão é amplo, ornamentado com quadros, colunas e estátuas, ao estilo clássico da arquitetura grega.

Figura 19: Interior da primeira prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 39, p. 46)

Uma escadaria separa dois níveis, fazendo jus aos padrões estéticos de um tribunal da antiguidade: na parte superior, a mesa do juiz e alguns adereços (o livro com os nomes das almas que serão julgadas e seus respectivos pecados, o malhete do juiz, caneta bico de pena, escaninho com documentos, carimbos), com uma cadeira suntuosa; não há cadeiras ou móveis na parte inferior. Sua amplidão é preenchida apenas pela presença da alma que será julgada, a qual aguarda em pé o pronunciamento de sua sentença. Tão logo o juiz a profere, a alma é encaminhada imediatamente para alguma região do Inferno, a fim de que pague pelos seus pecados. A porta que fica atrás da mesa do juiz é a única passagem possível para seguir até a segunda prisão.

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Figura 20: A mesa do juiz

Fonte: Kurumada (2000, vol. 39, p. 45)

Comumente, a Casa do Julgamento é guardada pelo espectro Minos, que também exerce o papel de juiz. Entretanto, na passagem dos Cavaleiros pelo Inferno de Hades, Minos estava sendo substituído pelo espectro Lune, que não desempenha a função de juiz. Kurumada poderia ter optado por inserir um dos outros dois juízes – Aiacos ou Radamanthys –, mas decidiu por um personagem original, aparentemente sem referência na mitologia grega, nem na Divina Comédia. No Inferno dantesco, esta primeira prisão corresponde ao seu segundo círculo. Além disso, o poema apresenta somente um personagem com a função de julgar as almas pecadoras, que é Minós. Baseando-se na mitologia grega, Kurumada criou três juízes para o exercício desta função, dentre os quais um deles é Minos (conforme o mangá, sem o acento agudo), também presente no poema dantesco. Fato idêntico também ocorreu, como foi possível constatar anteriormente, com o nome do barqueiro do Inferno de Hades – Caronte – igual nas duas obras. A preservação de nomes, sejam eles de personagens ou lugares, será recorrente em Cavaleiros do Zodíaco. No mangá, Lune faz com que o pecador veja todos os pecados que cometeu durante a vida, sendo pressionado, logo em seguida, pelo peso da relembrança e da consciência. Após isso, Lune o julga e o envia para a prisão mais adequada dentre as oito que compõem o Inferno de Hades. No poema, é Minós quem procede ao julgamento, pronunciando a sentença de uma forma grotesca: ele ouve as confissões dos pecadores e os distribui pelos diversos 137 círculos do Inferno, conforme o número de voltas que sua cauda dá ao se enrolar no corpo do pecador.

5.8 O VALE NEGRO

O trajeto que conecta a primeira à segunda prisão se dá pelo Vale Negro. O mangá não fornece muitas informações ou descrições acerca desse vale, apenas o que podemos inferir por meio de uma conversa entre Seiya e Shun: que uma chuva contínua e fria começa a partir de seu território, a qual prevalece até que se aporte à segunda prisão. De acordo com Shun, é tão fria que dá para sentir o seu frio nos ossos. Seiya concorda, alertando que, se ela continuasse, eles poderiam congelar até morrer.

Figura 21: Vale Negro

Fonte: Kurumada (2000, vol. 39, p. 76)

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Figura 22: A chuva no trajeto para a segunda prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 5)

No Inferno dantesco, também há um vale após o segundo círculo. Entretanto, suas características diferem de Cavaleiros do Zodíaco. Trata-se do Vale dos Ventos, onde um turbilhão arrasta violenta e incessantemente uma multidão de almas que cometeram o pecado da luxúria. O castigo do vento se justifica porque, em vida, esses homens e mulheres eram arrebatados por suas paixões, que os arrastavam como o vento; agora é o vento incessante e violento que os arrasta nos limites deste vale.

5.9 A SEGUNDA PRISÃO

A segunda prisão talvez seja a que mais difira do padrão arquitetônico das demais, baseado na estética clássica dos templos gregos. Trata-se de uma prisão concebida aos moldes dos antigos templos egípcios. Estátuas que remetem às figuras dos faraós ornamentam a construção, além de suas paredes estarem repletas de hieróglifos egípcios. Da mesma forma que os adornos desta prisão, o seu guardião também enaltece a cultura egípcia. Isso pode ser 139 comprovado pelo design de sua armadura, pelo corte de seu cabelo, bem como pelo seu nome – Faraó.

Figura 23: Entrada da segunda prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 6-7)

Figura 24: Paredes da segunda prisão com hieróglifos egípcios

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 24)

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Figura 25: Detalhe de uma parede da segunda prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 67)

Figura 26: Faraó, espectro guardião da segunda prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 26-27) 141

Aquele que adentra à segunda prisão encontra, logo de início, Cérbero, o cão de três cabeças, que devora as almas daqueles que foram sentenciados, na Casa do Julgamento, a aqui pagarem pelos seus pecados. Este local é o destino das almas que, segundo Faraó, cometeram pecados relacionados à ganância, e essas serão devoradas por Cérbero.

Figura 27: Cérbero

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 8)

Como podemos perceber, a segunda prisão corresponde ao terceiro círculo do Inferno dantesco, que é a morada de Cérbero, talvez a figura mais monstruosa do mundo dos mortos. Dante o coletou da mitologia grega, e Kurumada optou por mantê-lo no seu Inferno, uma vez que, tanto na mitologia quanto na Divina Comédia, o Cérbero é uma referência icônica, dada a proporção de sua bestialidade e seu comportamento brutal. Ademais, a mitologia grega é a essência de Cavaleiros de Zodíaco. Nesse sentido, a opção pela permanência de Cérbero no mangá parece justificada.

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O principal ponto de divergência quando a segunda prisão é comparada ao terceiro círculo do poema diz respeito aos seus respectivos pecados e punições. No mangá, esta prisão destina-se aos condenados por avareza, que são golpeados por uma chuva pesada e gelada – fato mencionado por Seiya e Shun quando estes se aproximavam da segunda prisão – e se tornam alimento de Cérbero. Já no poema de Dante, o círculo correspondente a esta prisão é reservado àqueles que cometeram o pecado da gula, os quais ficam estendidos na lama, sob uma chuva incessante. Cérbero é igualmente violento e monstruoso no Inferno dantesco, mas não faz dos condenados o seu alimento, apenas os espanca raivosamente. Além disso, a avareza, pecado concernente à segunda prisão do Inferno de Hades, está presente no quarto círculo do Inferno dantesco.

5.10 O JARDIM DA SEGUNDA PRISÃO

Em meio às cenas pavorosas das almas que estão sendo punidas e a uma arquitetura hostil composta, em sua maior parte, por rochedos, rios, vales, longas escadarias, construções monumentais e intempéries as mais diversas, elementos que reforçam o imaginário do Inferno de Hades, surge como contraponto cenográfico o jardim da segunda prisão: o único local do Inferno onde nascem flores. É neste jardim que se encontra a personagem Eurídice, uma mulher que teve parte de seu corpo transformada em pedra. Isso aconteceu após o seu amado Orfeu, cavaleiro de prata da constelação de Lira, ser enganado pelo espectro Faraó a mando de Pandora, irmã de Hades. A trama do casal de amantes foi inspirada em uma das histórias de amor mais famosas da mitologia grega, o mito de Orfeu e Eurídice42, nomes que foram preservados no mangá. O jardim da segunda prisão não deve ser confundido com os Campos Elísios, o paraíso mitológico. Na arquitetura do Inferno de Hades descrita no mangá, o acesso aos Campos

42 Segundo a mitologia grega, Orfeu e Eurídice eram dois amantes que se apaixonaram perdidamente e resolveram se casar. No entanto, pouco antes do casamento, Eurídice foi mordida por uma cobra, ao tentar fugir de um admirador, Aristeu, o que acarretou sua morte. Desconsolado, Orfeu resolveu descer ao mundo dos mortos e pedir a Hades e sua esposa, Perséfone, que lhe devolvessem. Comovidos com a história e extasiados com a música de sua lira, ambos resolveram devolvê-la ao menestrel com uma condição: que não olhasse para trás até que eles chegassem ao mundo superior. Ao sair do mundo dos mortos, e desconfiado do acordo com o deus do mundo inferior, Orfeu resolveu olhar para trás e conferir se sua amada o seguia. Ao desobedecer Hades, Eurídice é levada ao mundo dos mortos, e Orfeu a perde para sempre.

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Elísios só é possível atravessando o Muro das Lamentações, localizado na parte de trás da Giudecca. Atrás do muro existe a Hiperdimensão, único percurso capaz de levar até os Campos Elísios, a morada sagrada dos deuses, acessível exclusivamente a eles.

Figura 28: Jardim da segunda prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 43)

Todavia, semelhantemente à clássica representação dos Campos Elísios, o jardim da segunda prisão é um local bucólico, repleto de flores, dando a impressão de calmaria e amenidade. A figura de Eurídice, petrificada do colo para baixo, impressiona tanto pela beleza quanto pela tristeza do destino trágico ao qual foi condenada, destacando-se no cenário desse jardim. O Inferno da Divina Comédia não possui este ou qualquer outro jardim. Tanto o terceiro círculo e seu entorno quanto os demais círculos são desprovidos de flores ou de quaisquer outros ambientes amenos. Isso nos leva a concluir que a sua concepção partiu do próprio Kurumada, que o implementou apropriando-se do mito de Orfeu e Eurídice, tornando- os personagens marcantes na saga dos cavaleiros de Athena pelo Submundo.

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Figura 29: Eurídice

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 42)

Entretanto, aquele que deseja avançar para a outra prisão não encontrará um jardim de flores: diferentemente dos outros caminhos, que normalmente possuem longas escadarias, o trajeto que conecta a segunda à terceira prisão é íngreme, pedregoso, sem degraus, e apertado por rochedos dos dois lados.

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Figura 30: Trajeto que conecta a segunda à terceira prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41, p. 9)

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5.11 A TERCEIRA PRISÃO

A descrição da terceira prisão é apresentada de maneira breve, assim como a ação narrativa que transcorre em seu território. De acordo com seu espectro guardião, é a prisão para onde são enviados os sovinas e gananciosos. Estes são condenados a rolar pedregulhos por toda eternidade, e seus cadáveres ficarão embaixo deles para sempre. Assim que entram nesta prisão, os cavaleiros são recepcionados por uma chuva de pedras gigantes. Diferentemente das prisões anteriores, não há referências no mangá, sejam elas visuais ou verbais, de que esta prisão possua uma construção.

Figura 31: Chuva de pedras gigantes na entrada da terceira prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41, p. 10)

A terceira prisão corresponde ao quarto círculo do Inferno de Dante, habitado pelos avaros e pelos pródigos. Na Divina Comédia, as almas estão divididas em dois grupos opostos e empurram com os peitos nus grandes pesos, perfazendo cada qual meia volta do círculo em sentidos opostos até se embaterem, retomando em seguida o caminho em sentido inverso, para chocarem-se de novo no ponto oposto do círculo. Isso nos permite constatar que Kurumada aplicou esses conceitos dantescos, tanto do pecado quanto do castigo – a lei do contrapasso – na terceira prisão do Inferno de Hades. No entanto, a chuva de pedras, que caiu sobre os cavaleiros assim que adentraram nesta prisão, é um diferencial. Esta chuva possivelmente castiga a todos que ingressam na terceira prisão, mas a punição definitiva diz respeito aos pesos que deverão empurrar durante toda a eternidade. 147

Figura 32: Almas dos pecadores empurrando pedras gigantescas na terceira prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41, p. 15)

5.12 A QUARTA PRISÃO E SEU PÂNTANO NEGRO

A quarta prisão também não apresenta uma construção. Trata-se de um pântano, conhecido como Pântano Negro, Lago da Escuridão ou Pântano das Trevas (CAVZODIACO, 2010?). O mangá não informa, ao longo de sua narrativa, quais são os pecadores enviados para esta prisão. Entretanto, Kurumada nos fornece esta informação na arquitetura geral, projetada para o seu Inferno de Hades. Esta prisão abriga os condenados rancorosos e cheios de ódio, os quais se afogam uns aos outros dentro desse pântano.

A travessia do pântano é realizada por meio da jangada de Flégias, espectro guardião desta prisão. Diferentemente de Caronte, Flégias informa aos cavaleiros que não cobra pela travessia. Entretanto, só os transportará se estiverem mortos.

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Figura 33: A quarta prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41, p. 19)

Figura 34: Flégias, o jangadeiro do Pântano Negro

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41, p. 26-27)

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Esta prisão corresponde ao quinto círculo do Inferno dantesco. Há diferenças em suas arquiteturas. O quinto círculo do Inferno da Divina Comédia conta, em sua entrada, com uma cachoeira de água e sangue borbulhante e fervente. A água forma o Rio Estige, onde ficam amontoados os acusados de ira, que estão juntos se batendo e se torturando numa raiva sem fim. No fundo do Estige, estão os rancorosos que nunca demonstraram sua ira; eles não podem subir à superfície e ficam na lama do fundo do rio, soltando as bolhas que se veem na superfície.

É o personagem Flégias que faz a travessia do Rio Estige com a sua barca. Kurumada o manteve na quarta prisão do Inferno de Hades, com a diferença de conduzir uma jangada, e não uma barca. É, portanto, um jangadeiro. Tanto a cachoeira de água e sangue quanto o Rio Estige não são mencionados na narrativa do mangá, tampouco no esquema do Inferno que Kurumada ilustrou. Todavia, o fato de a quarta prisão possuir um pântano, o qual é atravessado por um personagem chamado Flégias – como ocorre na Divina Comédia –, nos leva a crer que, embora não haja uma menção clara, ele corresponda ao Rio Estige do Inferno dantesco.

5.13 A QUINTA PRISÃO

A quinta prisão é composta por inúmeros túmulos de fogo. Trata-se de um local para onde são enviadas as almas daqueles que não seguiram a doutrina divina, e também daqueles que não acreditam na existência de Deus.

Figura 35: A quinta prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41, p. 40-41)

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As almas hereges ficam confinadas em seus próprios caixões, sofrendo e queimando eternamente nas suas labaredas de fogo. Semelhantemente às duas prisões anteriores, o local não conta com uma construção ou templo monumental. Contudo, possui um guardião, o espectro Stand.

Figura 36: Almas queimando nos túmulos de fogos da quinta prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41, p. 40)

Esta prisão corresponde ao sexto círculo do Inferno dantesco. Sua arquitetura é semelhante à do referido círculo: um cemitério que abriga várias almas hereges, entre elas, as que não acreditaram na existência de Deus e de Jesus Cristo como Seu Filho, como os seguidores das doutrinas de Epicuro, que negava a sobrevivência da alma após a morte do corpo. Os condenados ficam confinados em túmulos abertos de onde sai o fogo eterno43 que os castiga.

5.14 A SEXTA PRISÃO E SEUS TRÊS VALES

A sexta prisão do Inferno de Hades também não possui uma construção. Ela é, no entanto, peculiar, visto que comporta três vales ao longo de seu território, cada qual com uma arquitetura própria. Cada vale abriga almas que cometeram um pecado específico e, portanto,

43 Nesse contexto, o fogo eterno da obra dantesca pode ser entendido como um paralelo à sentença que a Igreja dava aos hereges, isto é, a punição de serem queimados em fogueiras. 151 serão punidas de acordo com a gravidade da sua transgressão. Este local corresponde ao sétimo círculo do Inferno dantesco, que também possui vales, os quais normalmente são denominados de giros.

Segue a descrição de cada um dos três vales do Inferno de Cavaleiros do Zodíaco, a fim de melhor detalhá-los e contrastá-los com o Inferno de Dante:

• Primeiro vale: É um lago de sangue escaldante, onde as pessoas que foram violentas durante a vida acabam ardendo eternamente no sangue fervente. Conforme o esquema do Inferno arquitetado por Kurumada e apresentado no início do volume 38 da primeira edição brasileira, esse lago de sangue é destinado aos criminosos que, em vida, usaram incessantemente da violência contra o próximo. Seiya quase caiu neste local através do golpe44 do espectro Lune, quando do seu julgamento na primeira prisão. Acabou salvo pelas Correntes de Andrômeda de Shun. Esta é a única alusão ao primeiro vale que podemos encontrar no mangá. Consequentemente, sua descrição na narrativa é superficial.

No Inferno da Divina Comédia, este vale também abriga aqueles que praticam a violência contra o próximo. Também possui sangue fervente que forma um lago, ou melhor, o Rio Flegetonte. Na sua margem estão algumas ruínas e o Minotauro de Creta, à guarda de sua entrada. Ainda na margem do rio, um pouco mais à frente, correm as filas de centauros, dentre eles destacam-se Quirion – o líder do grupo – e Nesso. Os centauros estão armados com arcos e flechas, e atiram setas em todas as almas que se erguem do sangue mais do que lhes destinou sua culpa.

Os violentos contra pessoas e seus bens – tiranos, homicidas, assaltantes – estão mergulhados no rio de sangue daqueles que oprimiram. Quanto mais grave o crime, maior a parte imersa. Assim, os tiranos, que atentaram contra a vida e contra os bens de suas vítimas, estão imersos até os olhos. Os homicidas, por sua vez, encontram-se imersos até a garganta. Por fim, os assaltantes ou salteadores, castigados por terem praticado violência contra os bens de suas vítimas, têm os peitos que emergem do rio de sangue.

Em decorrência do primeiro vale praticamente não ser descrito e nem conter ações narrativas em seu espaço, os personagens mitológicos da Divina Comédia, anteriormente

44 Assim que a sentença é proferida, Lune tem o poder de enviar o condenado instantaneamente para qualquer uma das prisões, isentando-o de que percorra o Inferno até chegar à prisão que lhe fora designada.

152 citados, não foram mantidos no Inferno de Cavaleiros do Zodíaco. Parece que Kurumada desperdiçou a oportunidade de aproveitá-los na composição do seu Inferno. Personagens como o Minotauro, Quirion, Nesso – estes dois, talvez, como espectros de Hades –, e os centauros em plantel, certamente renderiam bons momentos na narrativa.

Curiosamente, a ilustração do Inferno produzida por Kurumada apresenta o desenho de um labirinto antes da sexta prisão. Pela lógica do Inferno de Dante, e também com base na mitologia grega, este labirinto seria a morada do Minotauro. O que nos leva a inferir que Kurumada não ignorava a existência desse território – e nem do primeiro vale –, mas, por circunstâncias desconhecidas, não o integrou efetivamente na arquitetura do seu Inferno.

Figura 37: O labirinto que antecede a sexta prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41)

• Segundo vale: Não foi retratado durante a narrativa. As únicas informações sobre o local podem ser coletadas do esquema do Inferno desenhado por Kurumada: que este vale é o “Inferno Florestal”, para onde são encaminhados os criminosos que atentaram contra a própria vida. Além disso, de acordo com o portal CavZodiaco (2010?), esses suicidas são transformados em árvores sombrias, as quais acabam formando uma enorme floresta.

Neste vale, Kurumada manteve as características essenciais do segundo giro do sétimo círculo do Inferno dantesco. Além dos violentos contra si (suicidas), Dante incluiu neste local 153 os violentos contra seus bens (perdulários). O vale é composto por um denso arvoredo habitado por harpias monstruosas.

A alma do suicida cai nessa selva como semente, da qual surge um arbusto cujas folhas servem de alimento para as harpias. No Canto XIII, Virgílio sugere a Dante que arranque um galhinho de um espinheiro, que logo se cobre de sangue e reclama da violência sofrida.

Kurumada descreve este vale brevemente no mapa do Inferno de Hades, sem tê-lo incluído efetivamente na narrativa. Do mesmo modo que no vale apresentado anteriormente, por razões desconhecidas, o mangaká optou por não usá-lo como cenário das ações dos personagens. A existência de uma floresta sombria, onde os condenados são transformados em suas árvores, habitada por harpias que se alimentam de suas folhas, oportunizariam a elaboração de um espaço narrativo fértil para o desenvolvimento de algumas ações dos personagens. Além disso, as harpias são criaturas recorrentes no universo da mitologia grega, fato que poderia ser utilizado por Kurumada de alguma maneira, caso tivesse ilustrado a travessia dos cavaleiros de Athena pelo território selvagem deste vale.

• Terceiro vale: Do mesmo modo que o anterior, o terceiro vale não foi retratado ao longo do mangá. Contudo, no esquema do Inferno desenhado pelo autor, a informação é de que este vale é um deserto escaldante, onde aqueles que se entregaram aos prazeres demoníacos são condenados a vagar por suas areias. Dito em outras palavras, e baseando-se no site CavZodiaco (2010?), trata-se de um deserto para as almas que foram violentas contra os deuses.

Para compor o terceiro vale da sexta prisão do Inferno de Hades, Kurumada manteve a essência do terceiro giro do sétimo círculo do Inferno dantesco. Na Divina Comédia, o referido giro também é um deserto ardente – ou areão. Igualmente ao que ocorre no Inferno de Cavaleiros do Zodíaco, é o território onde são castigadas as almas dos que foram violentos contra os deuses. Entretanto, Dante o descreve com mais detalhes e com uma arquitetura de pecado/punição mais apurada, separando os condenados em três grupos e os distribuindo ao longo do areão, onde uma chuva de chispas de fogo os castiga. Um dos grupos é constituído por blasfemos, que estão deitados; o segundo grupo é o dos os usurários, que estão sentados na areia escaldante; o último grupo é o dos sodomitas, obrigados a um contínuo caminhar –

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único castigo informado por Kurumada na ilustração de seu Inferno quanto a esse terceiro vale.

O areão é atravessado por um riacho de águas vermelhas e ferventes que corre entre margens de pedra, e sobre o qual a chuva de fogo é suprimida. É neste vale que Virgílio explica a Dante sobre a origem dos rios infernais, que é a mítica e alegórica figura do Velho de Creta, símbolo da Humanidade; suas lágrimas vão formar o Aqueronte, o Estige, o Flegetonte e, por fim, o Cocito, os quatro rios infernais também presentes no Inferno da mitologia grega.

Assim como os outros dois vales que constituem a sexta prisão, este poderia ter sido incorporado por Kurumada no fluxo de sua narrativa, proporcionando novas aventuras aos cavaleiros de Athena em mais um cenário criativo, bem como a inclusão de novos personagens no contexto desse lugar.

Figura 38: Os três vales que constituem a sexta prisão

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41)

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5.15 A CACHOEIRA DE SANGUE E O RIO FLEGETONTE

O Inferno de Hades também conta com uma Cachoeira de Sangue e com o Rio Flegetonte. Nenhum dos dois aparece ao longo da história. Novamente, o que podemos saber é a partir do esquema desenhado pelo autor e suas informações. Como o próprio nome já revela, a Cachoeira de Sangue é formada pelo sangue, e também pelas lágrimas, acumulados no Inferno até então, de todos que foram condenados a permanecer eternamente no reino de Hades. Ambos estão localizados entre a sexta e a sétima prisão. Infere-se que, do mesmo modo que na Divina Comédia, a Cachoeira de Sangue originará o Rio Flegetonte do Inferno de Hades.

Figura 39: A Cachoeira de Sangue

Fonte: Kurumada (2000, vol. 41)

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De acordo com a arquitetura do Inferno dantesco, a Cachoeira de Sangue está localizada entre o terceiro giro do sétimo círculo e o início do oitavo círculo. É nesta cachoeira que brota o Rio Flegetonte, cujas águas passam pelo deserto e a floresta, tendo suas margens pedregosas, herança do areão desértico do terceiro vale. Dante e Virgílio montam no gigante Gerião para atravessar o rio de sangue e ir para o oitavo círculo.

Semelhantemente à sexta prisão e seus três vales, Kurumada não incluiu os referidos cenários na narrativa, apenas no esquema do seu Inferno de Hades. A passagem dos cavaleiros pela Cachoeira de Sangue, bem como pelo Rio Flegetonte, renderia cenas memoráveis ao mangá. Ademais, as ilustrações de Kurumada forneceriam mais detalhes sobre esses dois lugares, onde o mangaká poderia introduzir novos personagens e novas ações.

Outro aspecto que propiciaria um diferencial junto à presença desses dois lugares no Inferno de Hades seria a figura de Gerião. Assim como Cérbero, guardião da segunda prisão, Gerião impressiona pela monstruosidade. Também é um personagem da mitologia grega e, como Cavaleiros do Zodíaco foi concebido a partir desses mitos, Kurumada poderia tê-lo aproveitado no seu Inferno – a exemplo de personagens como Caronte, Flégias e o próprio Cérbero.

5.16 A SÉTIMA PRISÃO E SEUS DEZ FOSSOS

A sétima prisão não aparece no mangá. Todavia, Kurumada a detalhou na ilustração do esquema do Inferno de Hades. Trata-se de uma prisão composta por dez fossos. Cada fosso tem uma punição diferente para aqueles que cometeram fraudes durante a vida, fazendo vigorar a lei do contrapasso.

Esta prisão corresponde ao oitavo círculo do Inferno dantesco, o qual o poeta chama de Malebolge – em tradução literal, maus bornais. Como em Cavaleiros do Zodíaco, este círculo é constituído por dez valas concêntricas separadas por diques, sobre os quais se apoia uma ponte de pedra que os interliga desde a primeira vala periférica até a cava central. Kurumada também se baseou nas categorias de fraude em que os condenados são punidos ao longo dessas dez valas, com algumas diferenças, as quais dizem respeito especialmente aos detalhes minuciosamente pensados por Dante. 157

O quadro abaixo compara as descrições desse lugar feitas em cada uma das duas obras:

Quadro 5 – A sétima prisão de Cavaleiros do Zodíaco e o oitavo círculo da Divina Comédia Cavaleiros do Zodíaco Divina Comédia

1º Destinado aos 1ª Destinada aos rufiões e sedutores, separados em duas filas que fosso criminosos acusados de vala circulam pelo local em sentido contrário, os quais são açoitados venda de mulheres, os por demônios. Na vida terrena, eles exploraram as paixões dos quais são chicoteados. outros, controlando-os para servir a seus próprios interesses. Nesta vala são eles que são levados, com chicotadas, a cumprir o desejo dos demônios.

2º Um fosso de excremento, 2ª Habitada pelos aduladores e lisonjeadores, os quais estão fosso onde os criminosos vala submergidos em um fosso de esterco. Em vida eles exploravam os bajuladores são lançados. outros ao tirar proveito de seus medos e desejos. Sua arma era a linguagem fraudulenta, materializada através de raciocínios falsos. Os condenados desta vala estão imersos nas próprias fezes, isto é, a sujeira que deixaram no mundo.

3º Aqui, os acusados de 3ª Trata-se do lugar onde os simoníacos45 pagam por seus pecados. fosso usar a profecia divina vala Eles estão metidos de cabeça para baixo em estreitos buracos para o mal são redondos, só com as pernas para fora e com fogo ardendo sobre as queimados na vela. plantas dos pés, que eles sacodem continuamente. Os buracos se assemelham a fontes de batismo. Esses pecadores, que perverteram a Igreja com suas transgressões, são batizados ao contrário: em vez de óleo, o fogo, aplicado aos pés.

4º Onde os criminosos que 4ª Vala onde os adivinhos são castigados, os quais têm a cabeça fosso fizeram previsões vala torcida em relação ao corpo, de modo que não conseguem olhar enganosas têm seus para a frente e o que os obriga a caminhar para trás. Esta é a pescoços torcidos e punição por alegarem saber o futuro que somente Deus sabe. ficam completamente desorientados.

5º Neste local, as pessoas 5ª Local que abriga os traficantes, transbordante de pez fervente, fosso acusadas de corrupção e vala guardado por uma legião de demônios. Os danados que tentam suborno são lançadas em ficar com a cabeça acima do piche são torturados e dilacerados um lago de piche por demônios. Isso se deve ao fato de que, em vida, esses fervente e são traficantes tiraram proveito da confiança que a sociedade destroçadas pelos depositava neles. Por isso, no Inferno dantesco, eles estão demônios. submersos no piche fervente, escondidos, uma vez que suas negociações eram feitas às escondidas.

6º Destinado àqueles que 6ª Nesta vala, os hipócritas desfilam lentamente, vestidos de pesadas fosso cometeram crimes de vala capas de chumbo, douradas externamente. Na visão do poeta, este hipocrisia. Os é o peso que não sentiram na consciência ao fazerem maldades. condenados a este fosso No Inferno, porém, sentem o peso de seu falso brilho. são obrigados a vestir um manto de chumbo e andar eternamente.

45 Traficantes de artefatos sagrados.

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7º Fosso repleto de cobras, 7ª Esta vala é a dos ladrões, e está repleta de serpentes de toda fosso onde são jogados os vala espécie que atacam os danados e os submetem a profundas criminosos condenados transformações. Quando as serpentes os atacam, roubam os seus por roubo. traços humanos. É a punição por terem se apoderado do que não era seu no mundo terrestre, sendo que, agora, as serpentes se apoderam de suas próprias identidades.

8º Trata-se de um fosso 8ª Local para onde são enviados os maus conselheiros, que estão fosso flamejante que frita os vala presos em chamas que se movem continuamente e os envolvem que foram condenados por inteiro. No mundo dos vivos, eles induziram outros a praticar por criar intrigas. a fraude.

9º Aqui, aqueles que 9ª Esta vala abriga os causadores de discórdias familiares e os fosso semearam a discórdia vala iniciadores de cismas religiosos. Aqui, os espíritos estão têm seu corpo condenados a percorrerem constantemente a vala, onde a cada eternamente retalhado. volta são cruelmente estraçalhados por um diabo armado de espada. O corte da espada causa mutilações em partes do corpo representativas do tipo de discórdia que os pecadores provocaram. Assim, alguns têm a cabeça cortada; outros, os braços e as pernas; outros, a língua, as orelhas ou o nariz. Dentre outras mutilações.

10º No último fosso, os 10ª Na última vala são punidos os falsificadores – alquimistas, fosso condenados por vala simuladores, falsos e mentirosos – que têm o corpo todo recoberto falsificação de dinheiro e de sarna e são quase incapazes de se movimentar. Aqui são seus fraude têm seus corpos corpos que se tornam falsos, ao apodrecerem, cobertos por apodrecidos, dilacerados enfermidades, que, segundo Dante, exalam um fedor insuportável. e cheios de bolor.

Fontes: adaptado de Kurumada (2000) e Alighieri (2017).

Pela descrição apurada que Dante faz a respeito de cada vala, Kurumada agregaria mais ações, novos personagens e cenários se as tivesse inserido na narrativa. Não o fez, por questões que desconhecemos, mas que apenas podemos tratar como hipóteses, aplicáveis a outras situações apresentadas anteriormente – os três vales da sexta prisão, a Cachoeira de Sangue e o Rio Estige. As hipóteses quanto às escolhas de Kurumada em manter ou excluir cenários e personagens estão reservadas para as considerações finais.

5.17 A OITAVA PRISÃO

A oitava prisão do Inferno de Hades é o Cocito, um dos rios do Submundo. No entanto, trata-se de um rio congelado. Na mitologia original, o rio não era congelado e toda a lamentação dos mortos de não poderem ver o Paraíso eram depositadas em suas águas, o que fez com que ficasse conhecido como o rio do lamento. 159

Esta prisão é dividida em quatro esferas – Caína, Antenora, Ptolomeia e Giudecca46 – e cada qual apresenta uma imponente construção, aos moldes dos tempos clássicos. Com exceção dessas construções, Kurumada se baseou no nono círculo do Inferno dantesco, que também apresenta o Cocito congelado, bem como as quatro esferas citadas anteriormente. Tanto em Cavaleiros do Zodíaco quanto na Divina Comédia, o Cocito é o local reservado aos pecadores mais graves, isto é, aos que cometeram o pecado da traição. Os traidores distribuem-se nesses quatro diferentes giros, dependendo da gravidade da traição cometida, e sempre em conformidade com a lei do contrapasso. No contexto do Inferno dantesco, Caína é a esfera onde são punidos os traidores de seus parentes. Nessa parte do rio congelado, as almas permanecem submersas apenas com o tórax e a cabeça fora do gelo. O nome dessa esfera é uma referência a Caim, personagem bíblico que matou seu irmão Abel por causa de inveja. Em Cavaleiros do Zodíaco, Caína é a morada do juiz Radamanthys. Em seus arredores estão os mortos que traíram os seus parentes e amigos. Aqui, as almas permanecem com seu tórax e a cabeça para fora do gelo, como acontece no Inferno de Dante. Antenora, por sua vez, é a esfera onde são punidos os traidores de sua pátria. As almas ficam submersas no nível do pescoço, apenas com suas cabeças fora do gelo. A origem do nome dessa esfera advém do príncipe troiano Antenor, que traiu o seu país ao manter uma correspondência secreta com os gregos. No mangá, Antenora é a morada do juiz Aiacos. Em seu território estão os mortos que traíram sua pátria ou partido político. Semelhantemente à esfera correspondente no poema dantesco, as almas ficam submersas no nível do pescoço, apenas com a cabeça fora do gelo. Já Ptolomeia – ou Tolomeia – é a esfera onde são punidos os traidores de seus hóspedes. As almas estão presas no gelo do Cocito apenas com o rosto para fora, de forma que, quando choram, suas lágrimas congelam e cobrem seus olhos. O nome origina-se do personagem bíblico Ptolomeu, capitão de Jericó, que convida Simão e seus dois filhos ao seu castelo e lá, traiçoeiramente, os mata a sangue-frio. No Inferno de Hades, Ptolomeia é a morada do juiz Minos, que normalmente está na primeira prisão julgando as almas que chegam ao Submundo. Nos arredores dessa esfera estão os mortos que traíram os seus hóspedes. As almas estão apenas com a cabeça emergida no rio de gelo, de modo que, quando estão chorando, suas lágrimas congelam e cobrem os seus olhos.

46 Judeca, no italiano de Dante.

160

A última esfera é Judeca, local onde estão aqueles que, em vida, traíram seus benfeitores. Eles sofrem intensamente por estarem submersos totalmente no gelo do Cocito, conscientes, para toda a eternidade. De acordo com Dante, alguns estão deitados, outros encolhidos e outros de cabeça para baixo. Em Cavaleiros do Zodíaco, Giudecca é a esfera onde está localizado o palácio de Hades no Submundo, e a única dentre as quatro que possui ações no decorrer da narrativa, onde ocorrem muitos dos eventos mais importantes da Saga de Hades. Seu território abriga os mortos que em vida traíram os deuses. Eles sofrem eternamente conscientes, mesmo estando totalmente submersos no gelo do Cocito.

Figura 40: O templo de Hades na Giudecca

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 76)

Considerando o poema de Dante, é na Judeca que reside Lúcifer, também preso no gelo até o meio do peito, peludo, com enormes asas que possuem membranas como a dos morcegos no lugar de penas. Ao mexer as asas, Lúcifer provoca um vento que pode ser 161 sentido por toda a esfera. Ele tem três cabeças e, com cada uma delas, morde um dos três maiores traidores da história: Judas, Brutus e Cassius47. O nome vem de Judas, o traidor de Jesus Cristo. Figura 41: Interior da Giudecca

Fonte: Kurumada (2000, vol. 40, p. 77)

Como foi possível observar, a traição também é o pecado que corresponde ao Cocito do Inferno de Hades. No panorama geral desenhado por Kurumada, a legenda que acompanha a ilustração desse lugar revela que os criminosos enviados para esse lugar são os mais sérios, uma vez que planejaram se rebelar contra os deuses. O Cocito é a oitava e última prisão do Submundo, e também a maior de todas. As almas dos que se voltaram contra os deuses são enviadas para esse rio congelado, as quais ficam só de cabeça para fora. A força de quem aporta nesse lugar é drasticamente reduzida, seja pelo frio intenso, seja pela energia emanada de Hades.

47 Brutus (Marcus Junius Brutus) era um dos súditos favoritos de Júlio César e, em 44 a.C., recebeu o nobre título de pretor. A vocação republicana de Brutus, porém, falou mais alto que sua gratidão. No mesmo ano ele se juntou a Cassius (Gaius Cassius Longinus) numa conspiração para assassinar o imperador Júlio César.

162

Figura 42: Almas pecadoras no Cocito

Fonte: Kurumada (2000, vol. 43, p. 19)

O fato de a Giudecca estar localizada no Cocito também segue a lógica de recepcionar aqueles que invadiram o Inferno no intuito de matar Hades, jogando-os imediatamente no rio congelado. Ou seja, tentativa de matar Hades equivale a mais alta das traições. Todos os cavaleiros que morreram em guerras santas anteriores à atual foram 163 lançados vivos no Cocito, morrendo logo em seguida e se tornando esqueletos. Outros foram encaminhados já mortos, após a sentença proferida na primeira prisão, visto que podem ter se rebelado contra os deuses quando vivos. Atrás dessa esfera está localizado o Muro das Lamentações, que marca o fim do Inferno. Logo depois, a Hiperdimensão, que somente liga e pode levar a vários mundos, mas não faz parte de nenhum. E, por último, os Campos Elísios, ambiente paradisíaco habitado pelos deuses.

Figura 43: O Muro das Lamentações

Fonte: Kurumada (2000, vol. 43, p. 90-91)

O Muro das Lamentações é gigante – largo, alto e profundo, e é assim chamado por ser o muro dos que lamentam não poderem ir aos Campos Elísios. Assim, permanecem no Inferno, de onde não podem sair, pois o muro não pode ser destruído por mortais, apenas por

164 deuses. Para os humanos passarem, o muro precisa ser destruído, e a única coisa que é capaz de destruí-lo é a luz do sol, inexistente no Inferno. Por isso, esse muro é motivo de lamentação. Somente a luz do Sol, que dá esperança aos vivos depois de uma noite, é também a esperança dos mortos que estão na Giudecca, diante desse muro. A luz do Sol é a única força capaz de cessar as suas lamentações, destruindo o muro e possibilitando que encontrem a Hiperdimensão, o que não chega a ser uma garantia de que serão conduzidos efetivamente aos Campos Elísios.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas eras mitológicas...

O herói Perseu cortou a cabeça de um monstro chamado Medusa.

Da poça de sangue que se formou, nasceu Pégaso, um belo cavalo alado.

Pégaso voou em direção ao céu e tornou-se uma constelação...

Masami Kurumada

Encerramos esta dissertação, cujo objetivo principal foi o de analisar, comparativa e intertextualmente, o Inferno desenhado por Kurumada no mangá Cavaleiros do Zodíaco a partir do Inferno elaborado por Dante Alighieri em sua Divina Comédia, com a epígrafe acima, que nos remete ao início do trabalho. Isso porque o texto que a constitui é a tradução do texto em língua grega que consta na epígrafe de abertura desta dissertação. Trata-se de uma pequena narrativa explicando a origem de Pégaso, o cavalo alado da mitologia grega, símbolo da imortalidade, cuja patada originou a fonte de Hipocrene, considerada um local de inspiração poética.

Como homenagem a esse personagem mitológico, os gregos batizaram uma constelação boreal com o seu nome. Além de Pégaso, todas as outras constelações têm a origem de seus nomes nos mitos gregos: Perseu, Andrômeda, Cefeu, Cassiopeia, Hércules, Cérbero, Touro, Leão, Sagitário, Capricórnio, Órion, entre outros. Ao conceber Cavaleiros do Zodíaco com a ideia de uma constelação protegendo cada um dos guerreiros da deusa Athena, Kurumada escolheu Pégaso para ser a constelação protetora de Seiya, o protagonista da história. Fato é que, para além disso, toda a história desses cavaleiros está embasada na mitologia grega. E a Saga de Hades, parte da série em que a arquitetura do Submundo se faz presente, não foge a esse padrão.

Kurumada, entretanto, não se contentou em projetar um Inferno estruturado somente a partir da mitologia grega. Para tanto, buscou outras referências, ou melhor, uma referência que se torna evidente assim que o leitor ou conhecedor da obra de Dante visualiza o panorama

166 geral do Inferno de Hades. Logo, presume-se que Kurumada tenha sido leitor ou conhecia a obra-prima de Dante, apropriando-se de elementos do Inferno elaborado pelo poeta, a fim de projetar o seu, procedendo à escrita do roteiro e ilustração da Saga de Hades.

Tudo isso vem ao encontro de outro objetivo da nossa pesquisa, de ordem secundária, que consistia em averiguar, a partir da análise efetuada, como e em que medida o poema influenciou a arquitetura do Inferno desenhado em Cavaleiros do Zodíaco. Como foi demonstrado na ocasião do capítulo de análise, são muitas as evidências dantescas presentes na obra japonesa, as quais não configuram meras coincidências, mas escolhas conscientes de seu mangaká.

Outro objetivo secundário foi elucidar o porquê ou o que levou Kurumada a escolher o Inferno do poema dantesco para embasar a arquitetura do seu, quando poderia ter utilizado outras referências – como somente a mitologia grega –, ou optado pela criação de uma paisagem original. Aqui, transformamos esse objetivo em uma pergunta que pretendemos responder: Qual o motivo de Kurumada ter se inspirado no Inferno da Divina Comédia para arquitetar o de Cavaleiros do Zodíaco?

Uma possível resposta pode residir no fato de Dante também ter se apropriado da geografia do Hades grego para projetar o seu Inferno, mantendo inclusive os nomes originais constantes na mitologia que descreve o Submundo, como, por exemplo, o nome dos rios infernais – Aqueronte, Estige, Flegetonte e Cocito. Dante não manteve apenas o nome dos rios em seu poema, como também o de alguns personagens que habitam o Hades: os barqueiros Caronte e Flégias, Cérbero, o juiz Minos, Gerião, entre outros. O poeta também condenou ao seu Inferno personagens que, segundo a mitologia grega, não habitavam o Hades, como Jasão, Hércules, Ulisses, os centauros Quíron, Nesso e Fólo, Helena de Troia, Páris, Tristão, o Minotauro de Creta, entre outros. Além das referências mitológicas, Dante inseriu, no seu Inferno, personalidades contemporâneas ou anteriores ao seu tempo, como Ciacco, os amantes Francesca da Rimini e Paolo Malatesta, Cleópatra, Farinata degli Uberti, Semiramis, Brunetto Latini, Papa Anastácio II, Jacopo Rusticucci, Michael Scott, Maomé, etc.

Tendo em vista o que se apresentou no parágrafo anterior, é possível afirmar que a galeria de personagens do Inferno dantesco é extensa, cuja variedade nos revela um Dante erudito ou, até mesmo, “uma pessoa de um saber verdadeiramente enciclopédico” (FRANCO JR., 2000, p. 57). Para além, podemos concluir que Dante arquitetou um Inferno híbrido, 167 cujos elementos pagãos – sobretudo da mitologia greco-romana – e cristãos, presentes no decorrer do poema, coexistem e integram-se de maneira harmônica nesse ambiente do além- túmulo.

O poeta concilia em toda a sua obra, não somente no Inferno, mas também no Purgatório e no Paraíso, aquilo que poderia ser considerado, tendo por referência o pensamento do período medieval, como sagrado (cristão) e como profano (mitológico). A conjugação entre esses dois polos adquire uma inigualável força imaginativa no poema dantesco, a qual confere aos infinitos aspectos da realidade

[...] uma figura plástico-simbólica de raríssima e surpreendente qualidade. Até mesmo os pensamentos mais abstratos, sejam eles filosóficos ou teológicos, as mais abstratas demonstrações científicas, as descrições astronômicas, as fábulas mitológicas, as invocações históricas ou os sonhos e as esperanças dos homens, realizados ou não, adquirem na Comédia uma plasticidade de formas que se imprimem de modo indelével na fantasia e na memória de todo leitor (DISTANTE, 2017, p. 15).

A plasticidade de formas que permeia todos os cantos do poema impressiona pela vitalidade das descrições e imagens, figurando como uma das principais potências desse texto. Talvez esse seja um dos motivos que faz com que a obra-prima de Dante seja um dos livros mais adaptados para outras artes, especialmente aquelas que mobilizam o aspecto visual. Isso não exclui produções artísticas de outras naturezas, como as musicais e as literárias. Contudo, é fato que a Divina Comédia foi o mote para pinturas, sacras ou não, de inúmeros artistas; para projetos arquitetônicos de edifícios imponentemente dantescos; para esculturas que parecem terem fugido dos reinos do além-túmulo; para o cinema e a televisão, com uma lista razoável de filmes, seriados e até mesmo telenovelas; para os videogames, tornando o Inferno dantesco interativo; e também para as HQs, como exposto nessa dissertação.

À exemplificação de Distante citada anteriormente, acrescentamos mais dois aspectos da Divina Comédia que também são relevantes, tanto no conjunto do poema quanto no contexto da pesquisa que foi desenvolvida: a arquitetura do Inferno, considerando-o como um lugar real, físico e concreto, com sua topografia precisa no esquema de círculos, vales, rios e esferas elaborado por Dante; e os diversos castigos aplicados aos condenados, sempre em conformidade com os pecados cometidos durante suas vidas terrestres, ou seja, reverberando a lei do contrapasso.

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Arquitetura e lei do contrapasso inter-relacionam-se no Inferno dantesco, visto que os muitos ambientes que o compõem foram concebidos para abrigar as almas que cometeram um pecado específico. Dito de outro modo, as características de um determinado lugar do Inferno – como relevo, clima, hidrografia, vegetação – acabam sendo reflexos diretos das transgressões que as almas danadas consumaram na ocasião de suas passagens pelo mundo dos vivos.

Considerando o objeto de nossa pesquisa, o que se pode inferir a partir da análise é que Kurumada se apropriou da arquitetura e da lei do contrapasso presentes no Inferno dantesco para elaborar o de seu Hades, com algumas variantes. Dante projetou o seu Inferno a partir da mitologia grega, extrapolando-o e inserindo-lhe elementos cristãos. Kurumada, por sua vez, desenvolveu toda a narrativa de Cavaleiros do Zodíaco estruturada na mitologia grega e nas constelações.

Nesse sentido, o tema do Inferno e a mitologia grega acabam sendo dois pontos de contato entre as duas obras. É possível que Kurumada tenha sido um leitor de Dante, ou, no mínimo, conhecedor da arquitetura do Inferno dantesco, cujos ambientes diversos tinham por finalidade castigar os condenados com o rigor da lei do contrapasso. Ao se apropriar do Inferno dantesco, Kurumada não se limitou apenas à sua dimensão mitológica. Do contrário, poderia tê-lo feito consultando exclusivamente os mitos gregos originais, como geralmente ocorre nos outros episódios do mangá. Assim, o mangaká acabou por desenhar o Inferno de Hades inserindo os muitos ambientes do Inferno de Dante destinados aos suplícios das almas pecadoras.

Ao considerar as hipóteses mencionadas anteriormente, ratificamos o infinito potencial imagético da Divina Comédia com as palavras de Distante (2017), o qual afirma que

O grande mérito do gênio de Dante é que ele pensava por imagens. Portanto, pode- se dizer, ou melhor, deve-se dizer, que a Comédia não é mais do que um longo relato moral que sustenta um fantástico arcabouço de imagens simbólicas. Queremos dizer que ela nasce indubitavelmente de um fortíssimo estímulo moral-religioso reformista com fins escatológicos, mas é verdade também que tal estímulo depois desemboca numa criação de imagens de uma riqueza plástica e simbólica praticamente sem limites. As imagens adquirem vida e fisionomia sempre em relação com a situação que a origina e determina. Se uma situação é trágica, também as imagens que a representam e a descrevem são trágicas; se uma situação é cômica ou idílica, também as imagens que a representam e a descrevem são cômicas ou idílicas. Por isso, podemos dizer que a Comédia é constituída por uma série infinita de figuras que remetem continuamente a uma situação precisa (DISTANTE, 2017, p. 15).

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É possível que Kurumada tenha se impressionado com a potência do poema dantesco – a grande força imaginativa, simbólica e visual –, elementos que o poeta empregou não somente no seu Inferno, mas também nos outros dois reinos do além-túmulo. E, como foi apresentado no capítulo que tematiza os mangás, o aspecto visual se destaca em detrimento do verbal em produções desse gênero. Kurumada se beneficiou das imagens criadas por Dante, sobretudo as que se referem à arquitetura do Inferno em termos geográficos e sua relação com os vários ambientes projetados especialmente para a execução dos castigos.

Em termos de Inferno dantesco, Kurumada não ficou limitado somente à sua arquitetura, mas também se apropria da lei do contrapasso, que possui uma estreita relação de correspondência entre pecado e pena. Isso pôde ser constatado nos quadrinhos contidos na análise, por meio das imagens ou das falas dos personagens, quando estes apresentam suas respectivas prisões. Já os elementos cristãos do poema não são utilizados pelo mangaká, talvez em virtude de a mitologia grega ser o alicerce que sustenta toda a história do mangá. Personagens que Dante colocou em seu Inferno, sejam eles reais ou mitológicos, e que não habitam o Hades, segundo o que se pode constatar nas narrativas legadas pelos gregos antigos, não foram inseridos por Kurumada no Inferno de Cavaleiros do Zodíaco.

Muito da força visual que caracteriza a Divina Comédia se deve às descrições minuciosas e precisas dos castigos que são aplicados às almas pecadoras em cada um dos nove círculos. Outro possível motivo de Kurumada ter incorporado no seu mangá as diferentes penas criadas por Dante, mantendo, inclusive, a lei do contrapasso que as rege.

A partir de todos esses elementos, Kurumada desenhou o seu Inferno, inserindo outros novos e também outros constantes apenas nas lendas da mitologia grega. O autor também povoou o Submundo com personagens novos, concebeu guardiões específicos para as prisões, ilustrando uma construção aos moldes arquitetônicos da antiguidade clássica para quase todas elas, tendo como resultado um Inferno de Hades relativamente original.

Considerando o objeto de pesquisa e sua sombra, isto é, Cavaleiros do Zodíaco e Divina Comédia, bem como a temática do Inferno, é possível afirmar que os três constituem fontes de infinitas possibilidades para pesquisas acadêmicas, nas mais diversas áreas do conhecimento e por múltiplas abordagens e quadros teóricos. O(s) conceito(s) e o imaginário do Inferno continuam presentes na sociedade contemporânea, tanto na perspectiva cultural

170 quanto religiosa, como demonstrou, a título de exemplo, a declaração polêmica do Papa Francisco, contida na introdução desta dissertação.

Fato é que muitos leitores da Divina Comédia tiveram seu primeiro contato com elementos desse poema por meio de outras produções artísticas. As ilustrações de Gustave Doré ou Salvador Dalí; a Sinfonia Dante, de Liszt; uma adaptação da Divina Comédia para o cinema, o teatro, HQs ou um texto em prosa; um jogo de videogame; uma referência à obra dantesca em outro poema ou narrativa, entre outras muitas possibilidades que poderíamos citar em uma lista, incluindo o mangá Cavaleiros do Zodíaco, podem ser a porta de entrada para um futuro leitor e estudioso do poema dantesco.

No entanto, mais do que obras e produtos que funcionam como portas de entrada para a busca e a leitura da obra original, e para além da mobilização dos conceitos de apropriação, adaptação, empréstimo, referência e outras noções afins, são obras que tendem a colaborar com a perpetuação da Divina Comédia e do nome de Dante, reafirmando o seu caráter clássico e universal. É justamente isso que aconteceu quando Kurumada se apropriou de elementos do Inferno dantesco para desenhar o seu em Cavaleiros do Zodíaco. A criação de um universo novo à sombra de um já existente. Ambos sincréticos, originais e repletos de imagens.

A intemporalidade da Divina Comédia de Dante não é nenhuma novidade. Em pleno século XXI, a obra continua viva, formando e despertando a curiosidade de novas gerações de leitores e inspirando o exercício criativo de novos artistas, das mais diversas áreas. O interesse pela obra também permanece entre os acadêmicos e intelectuais, que buscam lê-la e compreendê-la a partir de diferentes perspectivas, contribuindo com sua fortuna crítica, e fazendo a sua inserção em novos campos do conhecimento e contextos de investigação.

Já as pesquisas envolvendo HQs em geral, ou os mangás, como Cavaleiros do Zodíaco, vêm conquistando espaço no cenário acadêmico nacional, revelando-se como objeto que pode resultar em pesquisas profícuas e contribuir com a ampliação do seu quadro teórico, ainda incipiente. Dado o fato de as Histórias em Quadrinhos serem um gênero multissemiótico, isto é, um gênero integrado tanto pela linguagem verbal quanto pela visual, e de que o mundo também é cada vez mais multissemiótico e dependente das tecnologias de seu tempo, as pesquisas com HQs podem extrapolar os seus “lugares acadêmicos” comuns – Comunicação, Semiótica, Linguística, Artes Visuais, Design – e serem incorporadas em outras áreas de conhecimento ou contextos de pesquisa. Os resultados auxiliarão no 171 entendimento dessa forma de comunicação de massa, cuja origem, em seu aspecto mais primário e sob diferentes interpretações, se perde no tempo e se encontra em muitos espaços, não podendo ser requerida por nenhuma cultura ou país.

Encerramos esta dissertação, conscientes de que muito mais poderia ter sido dito, pois, como escrito anteriormente, seu objeto, seu tema e sua sombra, em conjunto ou isoladamente, são de possibilidades imensuráveis.

“[...] a rever estrelas.” ... Talvez a constelação de Pégaso.

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