CONTRA A CORRENTE: A AMERICA LATINA E OS EMBATES POLÍTICOS NOS EUA – ANOS 1970 e 1980

CECÍLIA AZEVEDO A memória dominante sobre a segunda metade do século XX pretende confinar nos anos 60 todo ativismo político e cultural de dissenso que, não por acaso, teriam incluído entre suas preocupações o Terceiro Mundo e a América Latina. A revolução cubana e os movimentos guerrilheiros que sonhavam transformar Nuestra America em muitos Vietnãs; a Teologia da Libertação; uma suposta relação mais harmoniosa com a natureza, sexualidade e os sentidos e, acima de tudo, a condição de alvo do imperialismo americano chamaram a atenção de intelectuais, artistas e ativistas. No final da década de 70, o senso comum aponta que a chamada “maioria silenciosa” teria imposto seu projeto, abafando os protestos das minorias sociais e políticas. Com o refluxo dos movimentos negro, pacifista, estudantil, a América Latina também teria deixado de ser objeto de interesse e envolvimento por parte de um segmento político nos EUA que poderíamos qualificar de liberal-left. Este trabalho pretende caminhar na direção contrária do senso comum acima referido, procurando estabelecer uma relação de continuidade entre as décadas de 60, 70 e 80 no que diz respeito ao envolvimento com a América Latina que, antes de diminuir, ampliou-se ao longo deste período. A campanha contra o sistemático desrespeito aos direitos humanos pelas ditaduras da América do Sul apoiadas pelos Estados Unidos na década de 70, a revolução nicaraguense e as intervenções promovidas na América Central nos anos 80 foram as questões que mais mobilizaram e orientaram o debate e as ações de intelectuais e ativistas, ganhando também repercussão significativa num círculo mais amplo da opinião pública. Os planos de intervenção de baixa e alta intensidade levados a cabo pelos EUA, foram rechaçados não apenas pelos chamados radicais de esquerda, mas igualmente por muitos liberais escandalizados com a truculência dos aliados de Washington, que não poupou religiosos, inclusive norte-americanos, na sua ação repressiva aos movimentos de oposição, principalmente em El Salvador e Guatemala. Em meados da década de 80 as pesquisas de opinião apontavam que apenas 3% da população apoiavam a política de Reagan para a América Central. Antes e mesmo durante a emergência da Maioria Moral e do fundamentalismo evangélico conservador que compôs a aliança neoliberal de

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Reagan, inúmeros grupos religiosos, protestantes, católicos e judeus mobilizaram-se por pautas políticas progressistas. A presença de organizações religiosas foi extremamente importante nas críticas à política externa, o que reforça a idéia de que a associação entre moral religiosa, ativismo e de critica social, de longa tradição nos EUA, desde a campanha abolicionista, se fez presente nas décadas de 60, 70 e continuou a se fazer sentir mesmo nos anos em que o discurso conservador ganhou novos espaços de poder na década de 80. A despeito de uma clara oposição entre velha e nova esquerda no inicio dos anos 60 e entre essas e os liberais, houve a possibilidade de recomposição entre diferentes correntes e grupos políticos em torno de estratégias e objetivos comuns, entre eles, e com importância considerável, a oposição à política externa para a América Latina. Além da composição – inclusive a participação efetiva de veteranos desses movimentos - e das estratégias que foram implementadas – como a desobediência civil -, é importante ressaltar também que na memória e na narrativa de vários integrantes e protagonistas de diversas organizações dos anos 80, a referência aos anos 60 e a diferentes processos do passado – como a guerra do Vietnã e Cuba – são recorrentes, consolidando uma visão do processo histórico e das relações interamericanas marcada pela continuidade. A leitura de matérias dos periódicos NACLA Report e The Nation entre os anos 60 e 80, e do San Jose Mercury News e Washington Post1 dos anos 80 nos sugerem essa percepção, além de permitir adentrar nas discussões a respeito dos processos políticos latino-americanos, das iniciativas do governo norte-americano e as dos indivíduos e organizações da sociedade civil mobilizados para protestar e resistir às políticas oficiais do governo dos EUA. Os dois primeiros periódicos foram escolhidos por reivindicarem filiação à esquerda, sendo que o NACLA Report dedica-se exclusivamente à América Latina. O San Jose Mercury News foi incluído na pesquisa por ser um jornal de uma localidade da Califórnia que abrigou grande contingente de refugiados salvadorenhos. Como um jornal local, serviu como contraponto ao Washington Post, no sentido de verificar as diferenças na cobertura dos assuntos relacionados ao ativismo político que tiveram a America Central como foco. O Washington Post também é uma fonte importante por

1 Pretendemos incluir na pesquisa o Dissent, o Christian Science Monitor e o Los Angeles Times.

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ecoar as reações do governo e também as manifestações conduzidas pelos ativistas no Capitólio, Casa Branca e Pentágono. Além disso, Washington, depois de Los Angeles, foi a cidade que mais atraiu refugiados da América Central nos anos 80. A NACLA – National Congress on Latin America – foi criada em 1966, em Nova York, por estudantes da New Left interessados em denunciar e inibir as ações do governo e das grandes corporações norte-americanas na América Latina. A intervenção na República Dominicana em 1965 e o aumento dos efetivos norte-americanos no Vietnã causavam grande impacto, sendo que alguns dos fundadores do NACLA eram especialmente vinculados à República Dominicana neste período. No site da organização explica-se a origem do termo “Congresso” pela aproximação com o Congress of Unrepresented People, organismo que integrava pacifistas, ativistas vinculados a lutas pelos direitos civis, sindicalistas e outros, numa alusão ao não reconhecimento das instituições nacionais e do discurso dominante sobre a identidade nacional norte-americana. Além da promoção de conferências e workshops, em 1967 a organização iniciou a publicação de um boletim um tanto rudimentar, que em 1971 se transformou numa revista impressa e ilustrada – o Nacla Report on the Americas, que afirma ser ainda hoje o mais lido periódico de língua inglesa sobre a América Latina. Muito embora os responsáveis pela revista tivessem formação acadêmica, a idéia era construir um produto que não fosse um periódico acadêmico pesado, mas também não fosse uma mera reportagem de ocasião. Para compor dossiês temáticos ou country studies, seus redatores viajavam para colher dados e estabelecer contatos com organizações, movimentos e intelectuais nos diferentes países da região, convidando-os muitas vezes a escrever na revista, que também publicava artigos ou discursos de líderes políticos e lideranças religiosas de esquerda, e depoimentos de vítimas de tortura, mantendo-se o anonimato com vistas a preservar suas vidas. A NACLA e sua revista efetivamente se transformaram numa referência para estudantes, jornalistas e interessados na região. Com freqüência seus integrantes eram chamados a participar em debates em instituições de ensino, programas de rádio e televisão, confrontando muitas vezes funcionários do Departamento de Estado e outros representantes do governo. Um dos episódios mais realçados na história da organização é a afirmação de Allende, em entrevista à imprensa depois do famoso discurso nas

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Nações Unidas em 1973, de que se alguém quisesse saber o que estava acontecendo no Chile, deveria ler o NACLA Report. Mas o ativismo da NACLA não se expressava apenas nas pesquisas e textos publicados na revista. Nos anos 60 e 70 foi muito importante a participação em comitês de solidariedade a presos políticos e imigrantes, como nos anos 80 o empenho na campanha de solidariedade a Nicarágua e a El Salvador, enfatizando uma vez mais a necessidade de combater a política e o discurso governamental sobre a América Latina. Fundado em 1865, The Nation é jornal mais antigo dos EUA. Seu perfil liberal- left, assumido explicitamente pela revista que se auto-nomeia “the flagship of the left”, também pode ser aferido pelos célebres nomes que abrigou e pelas causas que promoveu. O periódico foi fundado pelo abolicionista e entusiasta da Reconstrução William Lloyd Garrison. Depois de Wendell Garrison, filho de Lloyd Garrison, Norman Thomas, líder pacifista e candidato à presidência pelo Partido Socialista da América por seis vezes e precursor da American Civil Liberties Union, foi outro proeminente editor do The Nation. Quanto à America Latina, posicionou-se contra o que qualificou como "roubo" do Canal do Panamá, a anexação do Havaí e a invasão das Filipinas. Na década de 20, o jornal enviou o lendário jornalista Carleton Beals à Nicarágua, onde conseguiu entrevistar Sandino pouco antes de sua morte. O The Nation foi o primeiro jornal a denunciar a preparação de guerrilhas e a invasão da Baia dos Porcos em 61 e foi veemente na denúncia da invasão da Republica Dominicana. No plano geral das relações hemisféricas, denunciou a perversão dos princípios da OEA, a expulsão de Cuba do organismo, a Conferência de Punta del Este de 1961, cujo foco não seria o esforço de desenvolvimento da região, mas a constituição de um programa de segurança contra o comunismo que apenas beneficiaria os ditadores da região. Desde outubro de 63, portanto ainda durante governo Kennedy, em editorial, o jornal aponta a possibilidade de intervenção militar e defende a suspensão de toda ajuda militar dos EUA à região, sublinhando que a preocupação de Washington não era o bem estar da população, e sim a preservação dos investimentos americanos e a contenção ao comunismo. Em editorial em novembro de 1965, o jornal ironiza suposto choque de Washington com o recrudescimento do golpe no Brasil e assinala que desde 64 o jornal vinha apontando essa direção e que, significativamente, o Brasil se tornara favorito de Washington e enviara tropas a Santo Domingo. A partir

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daí, seguidas denuncias da participação dos EUA no golpe que derrubou Goulart e o caráter repressivo do regime, especialmente depois do AI-5, comentado em contundente artigo de Warren Dean, no inicio de janeiro de 1969. Um mês depois, o jornal trata da prisão de padres franceses e americanos, estes últimos expulsos do país, e a preocupação do governo brasileiro com o alinhamento de segmentos da Igreja com os protestos dos estudantes, destacando a Arcebispo de Recife e Olinda, D. Helder Câmara, que se torna referência para várias organizações e publicações, religiosas ou não, ligadas à América Latina nos EUA. Em 73, ganha destaque o livro de Marcio Moreira Alves, lançado nos EUA, denunciando o apoio financeiro generoso de Washington, a violência do regime militar, particularmente no que diz respeito à tortura. Menciona-se a documentação da tortura de prisioneiros políticos coletada pela Conferência Católica dos EUA, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, o Vaticano, e a recusa da ditadura em admitir para o Brasil uma Comissão dos Direitos Humanos. Em outra matéria, a relação entre os esquadrões da morte e notórios integrantes da repressão como Sergio Fleury também é apontada. É digno de nota que,nos anos 70, o jornal, mesmo elogiando a ênfase nos direitos humanos da política de Carter para região, não a considere fator principal para a abertura do regime. Mas a partir do final da década de 70 e 80 a preocupação dominante de ambos os periódicos passa a ser a América Central. Entrevistas com líderes guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional e da Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, discussões a respeito dos projetos de ambos os grupos e das mudanças em termos de suas visões sobre o socialismo, associam-se a discussões de intelectuais e ativistas de esquerda. Numa edição de 1985 do The Nation, por exemplo, professores de diversas universidades, como o renomado William Appleman Williams, e estudiosos de política externa e interessados na Nicarágua, como o cineasta Peter Davis, respondem à convocação de Michael Massing, destacado especialista em política externa, para discutir o posicionamento que a esquerda dos EUA deveria tomar frente à experiência nicaragüense. O jornal também se insurge com o que percebe como correlato doméstico das intervenções na América Central. Num editorial de abril de 86, significativamente intitulado “Deporting Dissent”, o jornal denuncia o que qualifica como “criminalização” do dissenso e repressão ao crescente movimento pacifista. Por todo o país, agentes do

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INS – Immigration and Naturalization Service - estariam perseguindo refugiados para direcioná-los para Oakdale, Lousiania, onde se situava a maior prisão para imigrantes ilegais dos país. Ativistas e mesmo advogados das diferentes organizações voltadas para prestar assistência aos refugiados estariam sendo perseguidos, seus escritórios invadidos, enquanto professores e jornalistas que retornavam de viagens à Nicarágua eram revistados e também vigiados, no que seria uma reedição do clima persecutório do marcarthismo. Como também denunciava o Nacla Report, o governo Reagan tratava os dissidentes como hereges, já que a defesa de suas posições políticas representaria uma efetiva traição à pátria. Como o presidente costumava afirmar, a esquerda teria ido “so far left, they‟ve left America”. Mas, efetivamente, a composição e o perfil político desse movimento pacifista dos anos 80 envolvido com El Salvador, Guatemala e Nicarágua não poderia ser mais americano no sentido de que seu ponto de partida foi a associação de espírito missionário e ativismo político. Desvendar o contorno dessa cultura política ativista, bem como apontar de que forma o engajamento e o intercâmbio com latino-americanos afetou a visão desses ativistas sobre a identidade e a missão nacional, a política interna e externa dos EUA é o que faremos a seguir. Vários autores apontam que o movimento pacifista que se constituiu nesta década ao redor da América Central não foi um movimento unificado, mas teve difusão, potência e duração consideráveis, podendo ser considerado o maior movimento político da década de 80. As ações foram muito variadas: marchas, vigílias, greves de fome, campanhas para consumir produtos nicaragüenses, recusa de pagamento de impostos, bloqueio de portos e estradas para evitar envio de armas, pressão sobre parlamentares através de mecanismos diversos, desde correspondência a sit-ins no Capitólio, abaixo- assinados publicados na mídia, performances em locais públicos, colocação de cruzes com nomes de centro-americanos mortos na guerra ou mesmo manchar com sangue fachadas de prédios públicos, etc. Nosso objetivo é avaliar o impacto das ações das três maiores organizações que adotaram estratégias de desobediência civil e protestos de massa em plena era Reagan, um dos presidentes mais populares da história recente: Sanctuary, Pledge of Resistence e Witness for Peace. Essas três organizações ganharam grande repercussão por terem adquirido perfil nacional e alcançado grande cobertura da mídia para suas ações sempre

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marcadas com uma certa dramaticidade. Embora tenham surgido no período organizações que incentivavam a violência2, o movimento contra a política externa de Reagan desencadeado por essas organizações teve um caráter eminentemente pacífico. A história do Sanctuary tem início em maio de 1981, quando Jim Corbett, pastor de cabras de Tucson, Arizona, toma conhecimento da prisão e posterior deportação de um salvadorenho que pedira carona a um vizinho para cruzar a fronteira do México. Indignado com o desrespeito das autoridades da Imigração em relação aos procedimentos legais de asilo político requeridos, este Quaker, formado em filosofia por Harvard, decide mobilizar diversas comunidades Quakers em todo país para constituir uma rede de proteção a refugiados da America Central, especialmente de El Salvador e Guatemala de onde provinham a maioria dos fugitivos de uma perseguição brutal movida por governos apoiados pelos EUA. Não foi difícil concluir que este fato explicava o não reconhecimento de refugiados e a concessão de asilo a procedentes desses países. Vale ressaltar que a esta altura o assassinato do Arcebispo Oscar Romero e de quatro freiras norte-americanas já tinha produzido uma grande repercussão, provocando o protesto de líderes das maiores organizações católicas do país. A primeira estratégia de Corbett e da então criada Ecumenical Council Task Force on Central America era arrecadar dinheiro para pagar as fianças de refugiados presos, mas o aumento exponencial das fianças pelo INS acabou tornando-a inviável. O passo seguinte foi transportar os salvadorenhos desde o México e acomodá-los em casas da região ou encaminhá-los para estados do norte, onde também seriam abrigados por voluntários. Na tradição Quaker, havia um precedente histórico: a chamada “underground railroad”, que apoiou a fuga e o transporte de escravos do sul para norte. Porém, em menos de um ano esse esquema também se mostrou insuficiente. Assim, em março de 1982, quando se cumpriam dois anos da morte de D. Romero, um pastor presbiteriano que participava do grupo, convencido por Corbett e apoiado por sua congregação colocou uma faixa na entrada de sua Igreja com os seguintes dizeres:

2 Uma organização chamada North American Friends of Sandino publicou em 83, em plena guerra, o seguinte texto: “Nós devemos responder a qualquer futuro ataque armado à Nicaragua (refere-se à ataque dos contra financiados e treinados pela Cia) com estragos a propriedade e à economia dos EUA – a única linguagem que os reaganoids ouvem. (...) Um alvo particularmente bom é a Câmara de Comércio, o único grupo de empresários mais importante ainda apoiando o orçamento de defesa. (...) Pequenas ações de destruição devem ser seguidos por rebeliões em toda cidade. Comecem a treinar. ...” Ver “The Defense of Nicaragua begins on Main Street”. In: Blacklisted News: secret stories from Chicago do 1984. The New Yippie Book. Bleecker Publishing, s/d, s/l, p. 590.

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“Este é um Santuário de deus para os Oprimidos da América Central. Autoridades da Imigração não profanem o Santuário de Deus”. No mesmo dia várias igrejas em todo o país fizeram o mesmo. Ao longo dos anos, o Sanctuary mobilizou mais de 70 mil cidadãos no sentido de descumprir a legislação de imigração, transportando e abrigando refugiados salvadorenhos em centenas de igrejas e sinagogas, com o apoio de 18 organizações nacionais de diferentes denominações. Alojamentos de estudantes em Universidades também se declararam santuários, em alguns casos com declarado apoio das autoridades universitárias, como foi o caso da chamada “Casa Zapata”, na Universidade de Stanford3. Cidades, como Los Angeles, San Francisco e Seatle e mesmo um Estado, o do Novo México, se declararam Santuários. A cidade de Oakland foi além e decidiu que a polícia local não deveria comunicar ao INS informações sobre imigrantes ilegais. O movimento ganhou apoio de segmentos consideráveis da opinião pública, reacendendo debates políticos em termos das prerrogativas do poder local frente ao poder central. 4 Diante disso, o governo iniciou uma contra-ofensiva prendendo militantes, inclusive lideranças religiosas. Em janeiro de 1985, Corbett, o pastor da primeira igreja a se declarar Santuário, dois padres, três freiras e mais e oito militantes foram presos. O julgamento em Tucson ganhou grande repercussão na mídia. De um lado, os acusados reivindicavam seguir sua consciência e a moral religiosa, invocando não apenas os abolicionistas da “Underground Railroad”, mas também a condição de refugiados religiosos dos primeiros colonos, e para além da história nacional, a ajuda de cristãos aos judeus que tentavam escapar da Gestapo, e a figura bíblica do Santuário do Antigo Testamento. Invocavam também agirem de acordo com a Lei de 1980 sobre Asilo Político e leis internacionais. Eram apoiados a cada dia do julgamento por uma massa de ativistas que lotava o tribunal e entoava canções como o célebre hino do movimento pelos direitos civis “We shall overcome”. Corbett e mais cinco foram inocentados e os demais condenados por tráfico e proteção de ilegais, considerados não refugiados, mas imigrantes econômicos. Mas o juiz, que impediu a defesa de levantar a motivação religiosa, alegando o preceito constitucional de separação entre Igreja e Estado, a

3 “Stanford Official Lauds Sanctuary Movement”, in San Jose Mercury News, 22/4/198; “Students Open 'Safe House' For Guatemalans, Salvadorans”, in San Jose Mercury News, 16/11/1985. 4 Da mesma forma pode-se compreender a decisão da cidade de Santa Cruz de se considerar porto livre para entrada de produtos nicaragüenses, em desafio ao embargo comercial decretado por Reagan.

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testemunha central de acusação que se revelou um agente infiltrado da CIA nas Igrejas e as insinuações com conotação racista de que ilegais poderiam estar associados ao tráfico de drogas, contribuíram para uma vitória moral dos acusados e do movimento, que continuou se expandindo5. É importante destacar que o National Council of Churches, a organização religiosa mais importante dos EUA estimulava o engajamento no movimento. Em documento oficial transcrito em reportagem do Washington Post, a organização aconselhava os líderes religiosos

“ „to provide churches and individual Christians with guidance‟ as they contemplate „engaging in nonviolent acts of resistance.‟ Those who sign the pledge, the resolution said, „have placed themselves within an important stream of U.S. history . . . a long tradition of nonviolent resistance to injustice,‟ comparable to abolitionists suffragettes and civil rights leaders.‟ (…) Another resolution adopted today encouraged member churches „to give serious consideration to the Sanctuary Movement as an expression and embodiment of the Christian's duty to the suffering stranger.‟" 6

Dessa forma, percebe-se que também no discurso dessa organização está presente a associação do movimento do Santuário aos abolicionistas e outros que já tinham alçado a condição de ícones nacionais da luta pela liberdade e igualdade, como as sufragistas e os líderes do movimento pelos direitos civis.

5 Várias reportagens do San Jose Mercury News discutiram este e outros julgamentos, apresentando o ponto de vista da acusação e da defesa. Ver por exemplo “Sanctuary Leaders Slam U.S. Attorney He Sent Warnings To City Officials”, in San Jose Mercury News, 23/9/1986; “Sanctuary Trial Set To Proceed Delay Is Refused In Alien-Smuggling Case”, in San Jose Mercury News, 30/10/1985 ; “Sanctuary Movement' Flouts The Law”, in San Jose Mercury News, 14/5/1986; “Reflections On The Sanctuary Movement - Followers Ake Law Into Own Hands To Feel Righteous”, in San Jose Mercury News, 8/5/1986; “Judge Dismisses Charges Against Sanctuary Worker”, San Jose Mercury News, 3/6/1986; “INS Chief Calls Sanctuary Effort A Lawless Political Protest”, in San Jose Mercury New, 28/3/1986; “Convictions Will Bolster Sanctuary Cause, Backers Say”, in San Jose Mercury News,3/5/1986; “Santa Cruz To Be Asked To Be Refugee Sanctuary”, in San Jose Mercury News, 24/1/1986. O Washington Post também enaltece o movimento ao retratar o caso de um Igreja Metodista tradicional de Washington DC, freqüentada por militares, funcionários e ex-funcionários do governo ter se transformado num Santuário. Ver “A Long Road to Sanctuary”, in The Washington Post, 25/3/1985. O The Nation também não deixou de incensar o movimento, como na matéria “Sanctuary much”, de 7/11/1988. O Nacla Report também denuncia a infiltração de agentes do governo nas Igrejas que participavam do movimento do Santuário, que apresentava de forma muito positiva. Ver. “Informers in the Sanctuary Movement”, in Nacla Report, julho de 1985. 6 “Church Council Criticizes Latin American Policy”, in The Washington Post, 18/5/1985.

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O sentido de missão religiosa também está na origem do Witness for Peace. Gail Phares, um ex-freira da ordem Maryknoll, conhecida por sua disposição progressista na Igreja Católica e por seus empreendimentos missionários na América Latina, depois de trabalhar na Nicarágua anos, volta aos EUA e funda na Carolina do Norte o grupo Interfaith Task Force on Central America decidida a denunciar a política americana para a região. Em 1983, Gail conduz um grupo de 30 pessoas – líderes religiosos, professores universitários, donas de casa e aposentados e meia idade - numa viagem à Nicarágua para conhecer em primeira mão a realidade do país. Ao alcançarem uma cidade da fronteira com Honduras que acabara de ser bombardeada pelos contra, são profundamente afetados pelo que vêem e pelos pedidos dos sobreviventes para que fiquem, já que sua presença, visível aos atiradores do outro lado da fronteira, impediria que o bombardeio continuasse. Ao retornar, Phares, Jeff Boyer, um ex-Voluntário da Paz em Honduras e Gilbert Joseph, professor da Universidade de North Carolina, decidem escrever um plano de ação. Com apoio de uma já extensa e consolidada rede de organizações leigas e religiosas, o grupo começa a arregimentar grupos para viajarem à Nicarágua e se postarem em cidades da fronteira, servindo como escudo humano, que denominaram “shield of love”. Na volta deveriam servir como disseminadores de informação alternativa a do governo sobre o país. Ao longo da década, cerca de 4.200 pessoas, financiando sua própria viagem ou viajando com recursos de doações procedentes de vários pontos do país, viveram experiências muito marcantes na Nicarágua e se transformaram em efetiva fonte de informação e referência sobre a revolução nicaragüense e a ação dos contra, participando de programas educacionais, comissões no Congresso, etc. Pela radicalidade da experiência, as ações do Witness for Peace conquistaram espaço mídia e ganharam muito mais simpatia da opinião pública que programas como “Adopt a Contra”, que arrecadavam fundos para serem enviados a famílias dos que combatiam a revolução ou mesmo arregimentavam voluntários para passar semanas ao lado dos contra-revolucionários.7

7 O Nacla Report de setembro de 1985 menciona reportagem sobre o assunto no The Wall Street Journal de 13/6/1985. A NACLA chegou a organizar com leitores viagens de turismo político para Nicarágua, tendo a primeira ocorrido em 1981, com integrantes entre 17 e 87 anos. Ver “Nicaragua Tour – A NACLA First”, in Nacla Report, janeiro de 1981. O crescimento do numero de publicações sobre a Nicarágua também é significativo, conforme se pode observar pelo grande número de resenhas publicadas pelo Nacla Report, além de entrevistas com vários líderes do FSLN, como a feita com a

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Com a invasão de Granada em 1983, o temor de que a Nicarágua ser o próximo alvo, levou à criação de mais um importante movimento – o Pledge of Resistance. Mais uma vez, a iniciativa partiu de cristãos progressistas, desta feita integrantes da Sojourners magazine, revista dessa organização religiosa cuja auto-proclamada missão é articular a mensagem bíblica à justiça social. A idéia inicial do grupo era arregimentar o maior número de pessoas que se dispusessem a ir para Nicarágua de modo a servir de escudo humano diante não dos contra, mas das forças armadas americanas em caso de um conflito. A versão que final do documento, cujo título deu nome ao movimento estabelecia apenas a disposição dos seus signatários de resistir, com atos de protesto legal e desobediência civil, conforme ditasse a consciência, a qualquer escalada na intervenção dos EUA na região. Numa velocidade e extensão que espantou seus próprios criadores, o documento foi assinado por 80 mil pessoas. Além disso, ao longo de cinco anos, os integrantes do movimento realizaram manifestações em mais de duzentas cidades e 42 estados, levando a que dezenas de milhares descumprissem leis estaduais e federais, resistissem à polícia, e 10.000 fossem presos por desobediência civil não violenta. As ações iam desde a ocupação de gabinetes de parlamentares, passando por sobrevôo de estádios de futebol com faixas denunciando a pressão americana à Nicarágua, até protestos em frente a prédios governamentais, incluindo a CIA, bloqueio de estradas, vias férreas e acessos de instalações militares, em tudo parecidas com as ocorridas nos protestos contra a guerra do Vietnã. Aliás, um grupo de veteranos do Vietnã denominado Nuremberg Action protagonizou um dos eventos mais dramáticos desse período. No verão de 1987, o grupo começou um jejum de 40 dias e um bloqueio não violento da linha de trem por onde passaria um carregamento de armas. O trem acabou cortando as pernas de Bryan Wilson, além de outros ferimentos. O evento teve grande repercussão, gerando protestos de figuras públicas como do pastor Jesse Jackson, da cantora Joan Baez e de Daniel Ellsberg, antagonista do governo Nixon no caso dos . É digno de nota que parte dessa linha férrea foi destruída

comandante Ana Guadalupe Martinez.Ver “Wearing Down the Enemy – Na Interview with the FMLN”, in Nacla Report, julho de 1985. Vale notar que a figura de Sandino, como a de Zapata se constituíram em referência na cultura política liberal-left dos EUA. Como exemplo podemos citar que A Grande Marcha pela Paz que cruzou os EUA – de Los Angeles até Washington – entre março e novembro de 1986 -, embora tivesse como objetivo principal protestar contra as armas nucleares, não deixou de incluir em seu calendário “cívico” a comemoração do aniversário de Sandino. Ver FOLSOM, F. & FLEDDERJOHANN, C. The Great Peace March. Santa Fe, New Mexico, Ocean Tree Books, 1988.

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e ocupada ininterruptamente durante dois anos por cerca de mil manifestantes, incluindo o próprio Wilson, após sua recuperação.8 O caso de Wilson, que afirmava se inspirar em Gandhi e Martin Luther King Jr, me parece emblemático para referendar a tese da continuidade do ativismo político ao longo dessas décadas e da consolidação de uma cultura política ativista. A tendência desses movimentos foi pensar que o que havia de comum entre Vietnã, Cuba, El Salvador e Nicarágua, era justamente a ação imperial americana. Embora as fontes permitam recuperar análises mais teóricas, especialmente nas matérias do NACLA Report, sobre o socialismo e a revolução que aproximariam a esquerda americana de seus correspondentes em outros países, especialmente os latino-americanos, em termos do compartilhamento do que se poderia chamar de uma cultura política de esquerda, vale enfatizar que não se pode compreender esses movimentos sem associá-los à longa tradição política de dissenso nos EUA, sempre reivindicada por seus militantes. O engajamento com a América Latina, para além do que representou em termos da construção de laços e histórias transnacionais, serviu também para que um segmento da sociedade reafirmasse sua adesão a princípios políticos, ideológicos e morais que percebiam como o núcleo de sentido de seu americanismo e que os obrigava a resistir aos atos de seu governo. Num editorial do The Nation de abril de 1986, significativamente intitulada “The Ties that bind” exemplifica muito bem, desde o título, esse argumento. O Editorial se vale de um encontro de veteranos da Brigada Lincoln, constituída por voluntários que foram lutar contra os fascistas de Franco e prometeram continuar lutando onde enxergassem inimigos da liberdade: na Europa, segunda guerra mundial, no sul, durante a campanha dos direitos civis, nas ruas contra a Guerra do Vietnã e naquele momento na Nicarágua. O texto conclui que é claramente perceptível nesses ativistas a necessidade de construir através da memória uma base para sua identidade política.

8 Ver “Body on the Line”, in Nacla Report, outubro de 1987. Vale lembrar que o movimento pelos direitos civis desde os anos 50, impulsionado pelo evangelismo profético de lideranças religiosas como a de Martin Luther King Jr, invocava a necessidade de sacrifício para alcançar a justiça pretendida. A expressão “colocar o corpo na linha” tinha exatamente esse significado. A esse respeito ver CHAPPELL, David. “Uma pedra de esperança: a fé profética, o liberalismo e a morte das leis Jim Crow”. In Revista Tempo, vol. 13, n. 25, dez 2008. Rio de Janeiro, Departamento de História da UFF, 2008, pp 75-108.

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As conclusões de Smith9 sobre o movimento pacifista dos anos 80 apontam na mesma direção. O autor considera que as afrontas aos valores morais dos indivíduos envolvidos produziu a emergência de uma consciência insurgente que sustentou seu engajamento político e envolvimento em ações bastante radicais. Vale destacar que esse movimento pacifista denunciava o envolvimento indireto dos EUA no massacre de salvadorenhos e nicaraguenses e radicalizou suas ações com o objetivo de evitar um envolvimento direto no qual provavelmente os americanos não sofreriam baixas. Nesse sentido, portanto, diferiu do movimento pacifista dos anos 60, que não tinha um caráter preventivo, mas de deter uma guerra em andamento. Pela primeira vez na história dos EUA, um contingente significativo de civis se posicionou numa zona de guerra, arriscando efetivamente suas vidas. É possível fazer um paralelo com os militantes brancos que foram para o Mississippi nos anos 60 e lá acabaram morrendo. Mas a disposição deliberada de se colocar como escudo humano e o número dos envolvidos no caso dos militantes do Witness for Peace foi muito maior10. Pode-se buscar explicar tal radicalização também pela experiência dos militantes. Ao traçar o perfil dos ativistas, Smith calcula que 25% dos ativistas do Witness for Peace e 23% dos ativistas do Sanctuary tinham uma orientação de esquerda em 79, ou seja, antes de se engajarem no movimento. Um terço dos ativistas tinha tido experiência prévia em movimentos sociais e políticos, como o movimento feminista, a favor do aborto, anti-apartheid, pelos direitos civis e anti-nuclear. Outro dados também são importantes. Entre 77 e 85% dos ativistas dos dois grupos eram membros de uma ou mais organizações políticas. Dois terços ou mais haviam participado em formas legais de manifestação política, mas um terço já havia participado de formas de protesto que poderiam ser consideradas ilegais, enquanto um quarto já havia sido preso por participação em atos de desobediência civil. Cerca de 90% deles tinham grau de instrução superior e se dedicavam a atividades profissionais que de alguma forma os

9 SMITH, Christian. Resisting Reagan : The U.S. Central America Peace Movement, Chicago, The University of Chicago Press, 1996. 10 No movimento pacifista nos anos 60 ligado ao Vietnã houve alguns casos de imolações como o do Quaquer , de 32 anos, que incendiou seu corpo em frente ao Pentágono no dia 2/11/1965, e o de Roger Allen LaPorte, de 22 anos, militante do , que fez o mesmo em frente às Nações Unidas, em Nova York, uma semana depois. Um caso mais recente de exposição e sacrifício da própria vida foi o de Rachel Corrie, militante pacifista de 23 anos, que em 16/3/2003, se colocou diante de um tanque para evitar a demolição de casas de palestinos. O tanque não se deteve e Rachel teve morte quase imediata.

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predispunha ao contato interpessoal. Além de religiosos, assistentes sociais, médicos, enfermeiras, professores e administradores compunham o grosso dos militantes. Se pela trajetória anterior tinham uma disposição maior para adotar uma postura liberal e progressista, a experiência vivida nessas organizações só fez potencializá-la.11 Junte-se a tudo isso a tradição religiosa de Quakers, Anabatistas e outras denominações protestantes ligadas ao pacifismo e ao serviço social, como também a forte tendência dos judeus americanos de referendar o estatuto do asilo e repudiar qualquer tipo de perseguição. Por último, a revolta dos católicos com o martírio de religiosos e a identificação com populações latino-americanas que viviam intensamente a sua fé, especialmente a partir da Teologia da Libertação. Em relação a este último ponto vale citar uma matéria do San Jose Mercury News que, ao comentar as ações do Sanctuary, discute as dificuldades de traduzir e aplicar os princípios dessa Teologia pelos cristãos nos EUA: “In Third World countries, liberation theology is a way of life - a religious and intellectual bolster for illegal or anti-government acts, a blanket of approval for the oppressed. But in the , liberation theology is still trying to find a comfortable niche in Christian consciousness. According to religious leaders and lay activists in the Bay Area, the reason is simple: Liberation theology is hard to translate. But even if people here haven't quite determined how to apply the theology of the oppressed to their own relatively affluent lives, many have at least forged ahead to better understand what it means for their Latin American neighbors. The most tangible reaction to liberation theology is the refugee- sheltering Sanctuary movement, which sprang from the church and which has put the freedom of its members in jeopardy. In addition, over the last few years, several thousand lay and religious activists have traveled to Nicaragua, Honduras and El Salvador , worked in the villages and the fields, lived with the people and returned to pass on news of the struggle and violations of human rights. On a smaller scale, many local churches have expanded Sunday school classes to discuss Latin American concerns […] A Catholic interpretation of the Gospel that instructs the poor and oppressed to rise above the political, economical and personal circumstances that rob them of their dignity, liberation theology played a role in the recent overthrow of Philippine President Ferdinand Marcos. In Nicaragua, religious leaders who espouse it have led a fight for justice for the poor majority. Last week, the Vatican issued a statement on liberation theology, saying that service

11 SMITH, op. cit., pp. 170-190.

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to the poor must be a priority for Christians and that in "the extreme case," armed struggle may be justified "as a last resort." If Americans were to wholeheartedly adopt liberation theology -- and what some interpret as its Marxist-oriented posture -- as their guiding force, it could disrupt the entire political and economic situation here. So for most who've been involved with it, understanding and synthesizing liberation theology into their lives has meant -- for the time being -- adding depth, definition and commitment to an already active concern for human rights. ''I think liberation theology is the beginning of a very historical change," said George Wesolek, director of the Justice and Peace Commission of the Roman Catholic Archdiocese of San Francisco12.

Embora a notícia e o depoimento transcrito distorçam determinados fatos – o referendo do Vaticano ao uso da violência – e a relação entre marxismo e o movimento de solidariedade à América Central, é interessante pensar na influência duradoura da Teologia da Libertação nesse segmento mais radicalizado dos católicos nos EUA. Porém, mais importante que qualquer outro fator, o contato direto com estórias pessoais dramáticas de perseguição, tortura e morte de familiares narradas por refugiados ou habitantes de zona de combate na Nicarágua foi o que concedeu ímpeto e consistência à ação política, segundo os depoimentos dos próprios militantes. A América Central produziu uma verdadeira crise de consciência nesses norte-americanos. A título de conclusão, considero que o caso em questão, como também trabalho anterior que desenvolvi sobre os Corpos da Paz, reforça a idéia que a religião civil americana, compreendida não como um culto cívico, como quer Zelinsky13, mas como uma pauta de ação coletiva, como prefere Bellah14, não é uma matriz transcendente que condiciona a ação dos sujeitos, mas é passível de ser reconfigurada em função das situações paradigmáticas vividas por eles. Os ativistas e missionários religiosos que se envolveram com salvadorenhos e nicaragüenses na década de 80, se chegaram a conceber sua missão como redentora em algum momento, longe estavam dos termos etnocêntricos e civilizatórios dos empreendimentos missionários da virada do século

12 “The Plight Of The Third World Is Being Brought Home To Our Own Church Steps Liberation Theology”, San Jose Mercury News, 12/4/1986. 13 ZELINSKY, Wilbur. Nation into State: the shifting symbolic foundations of American Nationalism. Chapel Hill, NC, The University of North Carolina Press, 1988. 14 BELLAH, R. The Broken covenant: American civil religion in time of Trial. Chicago, The University of Chicago Press, 1984.

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XIX ou mesmo dos liberais, apóstolos da modernização da era Kennedy. O contato com a realidade e as profundas relações interpessoais construídas ao longo deste processo afetaram suas vidas em vários sentidos. Suas identidades e os significados atribuídos à nação, à religião e à ação política se transformaram. Tornou-se evidente que a missão devia ser cumprida não apenas fora, mas principalmente dentro, de modo a salvar os EUA deles mesmos. Nesse sentido, valem também os estudos, como os de Kaplan15, que apontam a mutualidade das influências e as ressonâncias da ação imperial no coração do império. Dessa experiência de contato entre norte e latino-americanos pode- se concluir que é possível visualizar que a troca e a identificação afetaram a própria estrutura simbólica da dominação.

15 KAPLAN, Amy. The Anarchy of Empire in the making of U.S. Culture. Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 2002.

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