CLAUDIO ROBERTO PERASSOLI JÚNIOR

DOS FUNDAMENTOS DE PEIRCE À HIPERMÍDIA: UM PANORAMA SEMIÓTICO INTERPRETATIVO DA SÉRIE TELEVISA

ASSIS 2011

CLAUDIO ROBERTO PERASSOLI JÚNIOR

DOS FUNDAMENTOS DE PEIRCE À HIPERMÍDIA: UM PANORAMA SEMIÓTICO INTERPRETATIVO DA SÉRIE TELEVISA GLEE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Instituto Municipal de Ensino Superior de Assis – IMESA e à Fundação Educacional do Município de Assis – FEMA como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Jornalismo.

Orientadora: Profª. Dr.ª Alcioni Galdino Vieira.

ASSIS 2011

BANCA AVALIADORA

ORIENTADORA:______

Dr.ª Alcioni Galdino Vieira

ANALISADOR (1):______

Dr.ª. Márcia Valéria Seródio Carbone

DEDICATÓRIA

Àqueles que se perpetuam pelo tempo apenas através de duas forças: a da palavra e a do amor.

AGRADECIMENTO

Quero agradecer, primeiramente, apenas o dom da vida que me foi concedido. Deus, o destino, como quiserem chamar esta força maior, que me concedeu a oportunidade de existir, de poder conhecer novas pessoas, lugares, e poder traçar, por meu arbítrio, a caminhada em busca de minha felicidade. A minha família, pela força, modelo, dedicação e criação, que me forneceram a base para eu me tornar o homem que quero ser. Meu pai, o único homem exemplo de carinho e atenção. Minha mãe, a singular guerreira de Atenas. Minha irmã, a pequena mulher pelo amor e laço incondicional de amizade que corre, não só pelas veias físicas e biológicas, mas por toda a vida. A todas as pessoas que partilharam comigo desde o começo da caminhada, que se tornou difícil e conturbada, como qualquer trajeto em que devemos lutar por nossos sonhos. Os que ficaram pelo caminho ou escolheram outras vias, os que ainda de alguma maneira permanecem comigo, os que mesmo não fisicamente estiveram presentes, todas as pessoas que de algum modo fizeram com que eu crescesse, amadurecesse e aprendesse que sempre há mais, nesta vida, para se desejar. Aos colegas de turmas pelas quais já passei e tive a oportunidade de estudar junto. Desde o começo e durante os diversos novos inícios, pessoas que sempre me acolheram bem, respeitaram minha opinião e me proporcionaram novas perspectivas. A minha orientadora, pelo incentivo e carinho prestados. Pelas palavras de motivação e reconhecimento de um potencial que eu mesmo não acreditava. A todos os professores por mostrarem os caminhos a serem, ou não, seguidos. Às pessoas com as quais trabalhei, estagiei, que com as dificuldades, batalhas e vitórias, apoiaram e conseguiram, de alguma maneira, fazer de mim um profissional melhor, e mais do que isso, me mostraram que sonhos se renovam.

Não parem de acreditar.

“A arte deve antes de tudo e em primeiro lugar embelezar a vida, portanto fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros”. Friedrich Nietzsche

RESUMO

Este trabalho tem como objetivo principal analisar a série norte-americana Glee pela visão da semiótica interpretativa de Umberto Eco, tomando-se como instrumentos de descrição os fundamentos iniciais feitos por Charles Sanders Pierce, as implicações na área da ciência cognitiva, bem como as teorias elaboradas pelo autor italiano sobre o Leitor Modelo e a obra aberta. Sendo assim, este trabalho apresenta um panorama da semiótica interpretativa e suas implicações em uma narrativa hipermidiática televisiva.

Palavras-chave: Semiótica; Interpretação; Cognição; Hipermídia; Glee; Signo

RIASSUNTO

Questo lavoro si propone ad analizzare principalmente la serie americana Glee dal punto di vista della semiotica interpretativa di Umberto Eco, utilizzando come strumenti la descrizione iniziale dei fondamenti di Charles Sanders Pierce, le implicazioni nel campo delle scienze cognitive, così come le teorie preparate dall'autore italiano sul Lettore Modello e sull‟opera aperta. Pertanto, questo documento presenta una panoramica della semiotica interpretativa e le sue implicazioni in una narrativa ipermediale televisiva.

Parole chiave: Semiotica; Interpretazione; Cognizione; Ipermedia; Glee; Signo

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 01...... 65 Figura 02...... 65 Figura 03...... 65 Figura 04...... 65 Figura 05...... 67 Figura 06...... 68 Figura 07...... 68 Figura 08...... 73 Figura 09...... 73 Figura 10...... 73 Figura 11...... 74 Figura 12...... 74 Figura 13...... 75 Figura 14...... 76 Figura 15...... 76 Figura 16...... 76

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...... 11

CAPÍTULO 1: SIGNO E LINGUAGEM...... 15

1.1 Semiótica...... 15

1.2 As três categorias do universo e o signo...... 18

1.3 Cognição...... 26

CAPÍTULO 2: ECO, SEMIÓTICA INTERPRETATIVA E O LEITOR MODELO.... 34

CAPÍTULO 3: ANÁLISE SEMIÓTICA DE GLEE...... 47

3.1Glee, a série...... 47

3.2 Escolha de repertório e preocupação com o real...... 51

3.3 Sobre a narrativa hipermidiática...... 53

3.4 Os losers estereótipos hipertextuais...... 57

3.5 O signo , a quase-líder...... 63

CONSIDERAÇÕES FINAIS...... 83

REFERÊNCIAS...... 86

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INTRODUÇÃO

Uma das ficções televisivas mais exitosas de todos os tempos, o seriado norte- americano Glee é seguido por milhões de telespectadores do mundo todo desde a sua estréia, em 2009.

Glee é uma série no estilo musical produzida pela rede americana Fox. A trama se desenvolve no colégio William McKingley, focando os integrantes de um coral conhecido como Clube Glee. O episódio de estréia foi ao ar logo após o renomado reality show American Idol, em 19 de maio de 2009. Mas a primeira temporada só teve início a partir de setembro do mesmo ano, em transmissões semanais consecutivas. O formato foi criado por Ryan Murphy, Brad Falchuk e , e em princípio foi previsto como um filme ao invés de uma série de televisão. Ressalta- se que a Fox, quinze horas após receber o roteiro, já solicitou um piloto da série. Murphy, o principal responsável por Glee, atribui isso, em parte, ao sucesso do musical American Idol na emissora.

A série converteu-se, já no ano de sua estréia, em um dos produtos televisivos de maior destaque na atualidade, tanto pelo sucesso de audiência (aproximadamente dez milhões de espectadores em média na primeira temporada) como de crítica (ganhador de três Emmys e um Globo de Ouro, entre outros prêmios).

Assim, este projeto tem o objetivo de estudar o seriado Glee a partir da perspectiva da semiótica. Tanto do ponto de vista das personagens, como do conteúdo e da estética e do estilo narrativo. Trata-se de analisar os aspectos que fazem de Glee um fenômeno midiático contemporâneo, sendo considerado assim um manifesto da cultura pop. Pela narrativa que apresenta-se dinâmica, seja pelos recursos de enredo, seja pelo número de problemáticas devido ao número de personagens; pela trilha sonora bem escolhida, o mesmo que ocorre com a edição e produção do programa; pela escalação do elenco e equipe envolvida, que parecem estar em constante sintonia, Glee se tornou não apenas um sucesso de público, mas uma homenagem à cultura pop. 12

Certamente, Glee configura-se como um seriado televisivo com características bastante singulares. Tendo como pano de fundo o gênero musical, mistura comédia e drama, oferecendo todo um leque de estímulos que vão desde o puramente físico, tais como relaxamento e liberação de tensão, próprios da música e do riso, até psicológicos, como, por exemplo, projeção de sentimentos ou sublimação emocional, típicos da ficção. Assim, e por intermédio de um formato ágil e dinâmico, leva o público a viajar por um modelo de mundo romantizado, com alta dose emocional e foco nos conflitos de relacionamentos humanos no cotidiano, típicos da sociedade atual. Isto está explícito nos enredos de suas personagens. Ao mesmo tempo, ocorre um tipo de fenômeno paradoxal em que o raro, o diferente e o marginal se converteram em personalidades extremamente populares.

Glee é uma espécie de contraponto em uma mídia carregada de enfoques sobre violência ou ciência-ficção. Seus pontos culminantes não necessariamente cabem à narrativa em si, e sim ao seu repertório de canções que compõem esse musical. Seus traços mais significativos é a presença dessa matriz da linguagem, como especifica Lucia Santaella (2001). A relação de narrativa verbal-visual com a trilha sonora tem importante significado e traça os rumos de toda a história.

Em relação à audiência, a série foi concebida como um programa familiar que possa atrair tanto adultos como jovens, com personagens adultos de igual prestígio ao dos protagonistas adolescentes. Por ser um produto, um trabalho bem delimitado e composto, Glee tem fãs mais novos, que consomem suas produções posteriores, como músicas e coletâneas, e também pessoas de idade mais elevada, por abordar assuntos como homofobia, bullying, inclusão social, entre outros.

Assim, com a fundamentação teórica de Peirce, que instituiu os estudos da semiose, do estudo destes efeitos nas matrizes do pensamento de Santaella, dos conceitos iniciais sobre a ciência cognitiva e da semiótica interpretativa de Umberto Eco, quer se desenvolver um trabalho semiótico, da análise do signo e suas inferências notadas em Glee, a série, na construção desta narrativa, objetivando assim expor através da semiótica como este processo de comunicação é constituído, servindo de molde de roteiro e experimentação prática para outrem. Diante uma série bem sucedida, com uma estrutura diversificada que começa a tomar sinais expressivos de repetição, há a necessidade de se mapear semioticamente estes novos signos, para melhor compreender o processo de interpretação na mente das pessoas. 13

Assim, este estudo objetiva centralmente levantar teorias para enriquecerem o entendimento do signo Glee, precisamente para analisá-lo, já que quando ignoradas ou mal compreendidas as bases fenomenológicas, corre-se o risco de tomar a semiótica como uma mera terminologia especial, mas o que não é o caso, pois serve para compreender melhor os efeitos interpretativos realizados pela mente, e como este processo de interpretação inicia, da estrutura central do signo, constituído por um “representamen, objeto e interpretante” (NÖTH, 2003, p. 65) até o processo cognitivo que permite as relações e referências hipermidiáticas, que a série propõe.

Para melhor exposição e análise da peça, divide-se este trabalho em três partes: onde serão levantadas as teorias que servirão de instrumentos para estudo; onde será exposto todo contexto recorrente à série televisa Glee, como enredo, alguns personagens e referências à cultura da música, do pop; e o trabalho em si de manuseio das teorias aplicando-as na cena escolhida.

Para a parte teórica, escolheu-se trabalhar com a semiótica desenvolvida pelo americano Charles Sanders Peirce, descrita pelo estudioso Winfried Nöth, em sua base triádica do signo, segmentadas nos três níveis de apreensão de conhecimento: primeiridade, secundidade e terceiridade. Após isto, serão demonstrado o interior do signo e seus constituintes internos, formando mais uma tríade na teoria peirceana, dando mais enfoque no produto da interpretação, ou seja, o interpretante final e seu contínuo processo de atualização de conteúdo, chamado também pelo americano de semiose ilimitada.

Derivada deste fundamento, a semiótica interpretativa de Umberto Eco vem em consonância a esta fundamentação ilimitada do processo de aquisição de informação, onde toda atividade relacionada ao processo comunicativo deve-se ao intérprete, ao leitor, a quem decodifica o signo. Destes conceitos, chega-se a teoria do Leitor Modelo, onde Eco defende a idéia de que “il testo è un meccanismo pigro (economico) che vive sul plusvalore di senso introdottovi dal destinatario”1 (ECO, 1979, p. 52). Através destes conceitos, além das considerações acerca de hipermídia e hipertextualidade, propõe-se a análise da série Glee, especificamente de duas cenas em que todas estas teorias postas possam ser evidenciadas,

1 Tradução nossa, a partir do italiano: “O texto é um mecanismo preguiçoso (econômico) que vive sobre os excedentes de sentido introduzidos pelo destinatário”. 14

resultando na comprovação do objetivo central deste trabalho: compreender através de um retrato prático as teorias semióticas dos autores em discussão, para melhor desenvolvimento e compreensão de material comunicativo, melhorando o potencial interpretativo de uma obra.

Em suma, quer-se destacar, através de ferramentas de análise da teoria peirceana de Semiótica, como Glee, a série, visa uma interpretação total de seu enredo, fazendo referências à cultura pop, com o uso da hipertextualidade, criando personagens estereotipados, tendência forte encontrada nas bem sucedidas narrativas televisas norte-americanas atuais. Roteiristas e produtores destas séries parecem reconhecer o que Eco chamou de Leitor Modelo, compreendendo os três níveis de interpretação e assimilação de conhecimento, descritos no estudo da semiose por Peirce.

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CAPÍTULO 1

SIGNO E LINGUAGEM

1.1 Semiótica

A semiótica é a ciência responsável pelo estudo dos signos e linguagens, levando- se em consideração o processo significativo, ou seja, o fenômeno de produção de significado nas diversas linguagens humanas, chamado de semiose. Como ciência, a semiótica se instaurou recentemente, ainda em processo de estudo, descobertas e investigações, ainda mais por ser uma área do conhecimento que o principal material de manuseio para análise é a linguagem, sempre em constante evolução.

Muitos estudiosos da área divergem quanto à definição específica do termo. Alguns defendem que a semiótica apenas deveria se ocupar da comunicação humana; já para a escola de Greimas, que se recusa a defini-la como teoria dos signos, esta seria uma teoria da significação. Em linhas gerais, como Winfried Nöth (2003, p. 17) expõe: “a semiótica é a ciência dos signos e dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura”, pertencente tanto às ciências naturais quanto às ciências humanas. O Dicionário de Semiótica de Greimas e Coutés a define da seguinte maneira:

A teoria semiótica deve apresentar-se inicialmente como o que ela é, ou seja, como uma teoria da significação. Sua primeira preocupação será, pois, explicitar, sob forma de construção conceptual, as condições da apreensão e da produção do sentido (GREIMAS; COUTÉS, 1979, p. 415).

Para compreender melhor este quadro de definição e por ser uma ciência plural, que está presente nas diversas áreas do conhecimento – humana, biológica, exata -, recorre-se então à origem da sua definição. Na história da medicina, mais precisamente com o médico grego Galeno de Pérgamo (139-199), a semiótica 16

aparece como sendo parte da medicina, em específico, a área de diagnóstico de doenças. Já no século XVIII, a literatura médica dividia o termo sem(e)iologia em três ramos de investigação, em Nöth (2003, p. 19): “a anamnéstica, estudo da história médica do paciente; a diagnóstica, estudo dos sintomas atuais das doenças; e prognóstica, que trata das predições e projeções do desenvolvimento futuro das doenças”.

A partir da tradição médica, a semiótica começou a se desenvolver como o estudo que atualmente é realizado, e, assim, na história da filosofia, foram adotadas diversas denominações para o termo. A etimologia vem do grego semeîon, que significa „signo‟, e também sema, traduzido por „sinal‟ ou, igualitariamente, „signo‟. Durante todo este período, a semiótica foi designada, muitas vezes não objetivando a mesma esfera de conhecimento que hoje é conhecida, como semiologia, semântica, sematologia, semasiologia, semologia, entre outros.

Muitos dos verbetes, no passar dos anos, ganharam referência em outras áreas, como semântica e semasiologia que se referem ao estudo das significações da lingüística; e outros entraram em desuso ou foram melhor adaptados. Porém semiologia se tornou o maior rival terminológico da semiótica, o que aconteceu no último século com o advento da lingüística de Ferdinand de Saussure, continuada por Louis Hjelmslev e Roland Barthes. “Sob essas influências, semiologia permaneceu durante muito tempo como termo preferido nos países românicos, enquanto autores anglófonos e alemães preferiram o termo semiótica”. (NÖTH, 2003, p. 23).

Porém, muitos estudiosos começaram a distinguir conceitualmente ambas, o que derivou na definição introduzida por Hjelmslev, depois adotada por Greimas, na qual semiótica é um sistema de signos com estruturas hierárquicas análogas à linguagem, como a língua, um código de trânsito, arte, música, ao passo que semiologia é a teoria geral, a metalíngua. A rivalidade entre as duas definições foi encerrada oficialmente em 1969, pela Associação Internacional de Semiótica, por iniciativa de Roman Jakobson, adotando “semiótica como termo geral do território de investigações nas tradições da semiologia e da semiótica geral” (NÖTH, 2003, p. 24). 17

No livro Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce (2003), Winfried Nöth dispõe assim das definições específicas de semiótica e seu próprio estudo no século XIX e XX, mais propriamente do trabalho realizado por Charles Sanders Peirce, um dos fundadores da semiótica geral moderna, nascido nos Estados Unidos da América. Seu ponto de partida, de acordo com sua obra, é de que as cognições, as idéias e até o homem são essencialmente entidades semióticas, ou seja:

O homem denota qualquer objeto de sua atenção num momento dado. Conota o que conhece ou sente sobre o objeto e é também a encarnação desta forma ou espécie inteligível; o seu interpretante é a memória futura dessa cognição, o seu „eu‟ futuro ou uma outra pessoa à qual se dirige, ou uma frase que escreve, ou um filho que tem (PEIRCE, 1931-58, 7.591).

Desta maneira, se ocupando do estudo do processo de construção de significados, Peirce defende a idéia de que todo o mundo é permeado de signos, se estes não o compõem exclusivamente, o que é chamada de visão pansemiótica do universo. Como esclarece Lúcia Santaella, autora semioticista brasileira, em Matrizes da Linguagem e Pensamento: sonora, visual e verbal:

Qualquer coisa que substitui uma outra coisa para algum intérprete é uma representação ou signo. (...) um retrato representa uma dada pessoa para a concepção do seu reconhecimento por alguém, um catavento representa a direção do vento para a concepção daquele que assim o entende (SANTAELLA, 2009, p. 31).

A semiótica, então, para Peirce, permeia todo o universo e convívio humano, e deve ser estudada por todos os interessados nas demais ciências, devido ao seu teor lógico, teoria desenvolvida pelo mesmo. O filósofo americano defende assim o esquema lógico, quase matemático, para compreensão destes processos significativos, criando uma tricotomia e dividindo os tipos de signos, o que na época de Aristóteles foram encontradas evidências em conseguir distinguir um modelo de categorias que pudessem conter a multiplicidade dos fenômenos do mundo.

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1.2 As três categorias do universo e o signo

Primeiramente, antes de entrar exatamente no ramo da fenomenologia da semiótica, ou seja, a lógica com que os signos atuam sobre a percepção do ser humano, deve- se dar ênfase para a categorização desenvolvida por Peirce. Dos acontecimentos no universo físico ao representativo, virtual, o filósofo americano conseguiu dividir em uma tríade todos os processos comunicativos existentes, seja do pensamento ou da natureza: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade.

Toda a obra de Peirce está alicerçada nestas categorias, e sua doutrina dos signos também é inteiramente baseada neste conhecimento fenomenológico. Assim, primeiridade é a categoria do sentimento imediato e presente das coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos do mundo. Na definição de Peirce, “é o modo de ser daquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a outra coisa qualquer, sem reflexão, da mera possibilidade, da liberdade, do imediato, da qualidade ainda não distinguida e da independência” (1931-58, 8.328). Como Santaella expõe:

[...] a primeiridade ou mônada é o começo, correspondendo às noções de acaso, indeterminação, vagueza, indefinição, possibilidade, originalidade irresponsável e livre, espontaneidade, frescor, potencialidade, presentidade, imediaticidade, qualidade, sentimento (SANTAELLA, 2009, p. 36).

A secundidade, iniciada quando um fenômeno primeiro é relacionado a um segundo qualquer, é “a categoria da comparação, da ação, do fato, da realidade e da experiência no tempo e no espaço”, ou seja, é a relação, a compulsão, o efeito, a ação-reação. Em um processo comunicativo, é a parte que corresponde à recepção da matéria comunicativa em início de processo fenomenológico, começando a adquirir significado, o que acontece apenas através da relação primária com o outro.

Por sua vez, terceiridade “é a categoria da mediação, do hábito, da memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da representação, da semiose e dos 19

signos” (1.337), como define Peirce em Collected Papers (1931-58). Em outras palavras, refere-se aos acontecimentos de criação de carga significativa, quando realmente há união dos dois primeiros processos: da imagem estática, com potencialidade comunicativa, unida a um segundo acontecimento, a recepção do primeiro, que produz uma terceira ação, esta sendo da categoria da terceiridade, da interpretação, da cognição.

Tendo definidos estes conceitos e, se o universo do signo é “território legítimo da semiótica, esta já tem início dentro da própria fenomenologia, ou mais precisamente, a terceira categoria fenomenológica já é uma categoria semiótica” (SANTAELLA, 2009, p. 36). Por assim dizer, é na terceiridade que há a adição de sentido, de produção final de interpretação em um processo comunicativo, o que objetiva exatamente na própria criação de significado, a partir de um ou de uma composição de signos.

Em uma definição mais abrangente, por Peirce, signo é qualquer coisa ou espécie, podendo estar no universo físico ou no mundo do pensamento – corporificado a uma idéia de qualquer forma, objetivado ou passível de interpretação de eventos posteriores –, que por sua vez carrega um teor significativo, sendo determinada por uma idéia, proposição, lei, contexto existente.

Para melhor elucidar, cita-se exemplo: Uma garota está conversando com alguém e ruboriza. O fato de ela ficar vermelha. O vermelho do rosto da menina é o signo, transmitido natural e fisicamente. Seu caráter representativo, ou seja, o significado do rubor, seu por quê, apenas pode ser definido através do contexto, da situação.

A transmissão de significado foi feita biologicamente, através do sinal corpóreo da garota. A sua vermelhidão criou, assim, um sentido na mente de quem notou, levando-se em consideração a inserção cultural e social, que pode estabelecer relações entre sentidos e cores: vergonha, raiva, nervosismo extremo. A união de outros signos, como o franzir da testa, a dilatação da pupila etc. podem definir especificadamente o sentido final na mente do receptor, o que, novamente reitera- se, somente acontece definida idéia imersa, em determinada situação.

A base, então, do signo é uma relação triádica entre três elementos, dentre os quais, no caso, um deve ser do fenômeno da primeiridade, outro de secundidade e o último de terceiridade. Entre as definições de signo que são encontradas em toda a 20

literatura científica, Peirce apresenta aquela que parece mais completa, para exemplificar a aplicação nas categorias por ele desenvolvidas:

Um signo ou representamen, é tudo aquilo que, sob um certo aspecto ou medida, está para alguém em lugar de algo. Dirige-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou talvez um signo mais desenvolvido. Chamo este signo que ele cria o interpretante do primeiro signo. O signo está no lugar de algo, seu objeto. Está no lugar desse objeto, porém, não em todos os seus aspectos, mas apenas com referência a uma espécie de idéia (PEIRCE, 1931-58, 2.228).

A relação do signo com seus três componentes, o representamen, o objeto e o interpretante, é a relevância principal no estudo peirceano, sendo assim o signo não apenas uma classe de objetos, mas a sua função, como ele age na semiose. Desta maneira, O signo tem sua existência não materialmente, mesmo fazendo referências a coisas do universo físico, mas na mente do receptor. Assim, como objetivo de Peirce para definir a semiótica, a ação do signo, a semiose, é o centro de seu estudo.

Faz-se necessário, em todo decorrer deste estudo, levantar o básico do esquema lógico de Peirce, para de fato, dar-se início à análise da peça, o que inclui a descrição deste minucioso trabalho sobre a produção mental de significado. Como já exposto, o signo possui três constituintes, que Peirce reconheceu em suas estruturas, algumas espécies ainda mais definidas, no que tange a sua atuação na semiose.

O representamen, ou signo, é o nome peirceano do “objeto perceptível” (PEIRCE, 1931-58, 2.230), que serve como signo para o receptor, e também definido por outros termos, como símbolo (Ogden; Richards, 1923), significante (Saussure, 1916) ou expressão (Hjelmslev, 1943). Assim, segundo Peirce, o representamen é o veículo que traz para a mente algo de fora, é a materialidade do signo.

De acordo com Santaella:

[...] para se entender o que é o objeto do signo, é preciso considerar que o signo não ocorre no vazio. Ele está enraizado num vastíssimo mundo de relações com outros signos, com tudo aquilo que muito amplamente chamamos de realidade. Ele está inserido, de modo direto ou indireto, no universo físico interagindo com outros existentes (SANTAELLA, 2009, p. 45) 21

A ênfase dada por Santaella no relacionamento do signo, evidenciando o interior infinito de sua semiose, é importante quando se define o objeto do signo, o qual “corresponde ao referente, à coisa (prágma) ou ao denotatum em outros modelos do signo, numa correspondência que é só aproximativa (NÖTH, 2003, p. 67). Em outras palavras, enquanto o representamen é a parte realmente física do signo, o objeto é a sua referência, o conceito, seja ele do conhecimento perceptivo do mundo, uma coisa material, seja ele da natureza ou pensamento, como uma mera entidade mental.

“O signo pode apenas representar o objeto e falar sobre ele; não pode proporcionar familiaridade ou reconhecimento desse objeto (...) O objeto do signo pressupõe uma familiaridade a fim de veicular alguma informação ulterior sobre ele” (PEIRCE, 1931- 58, 2.331), como expõe Peirce, que em linhas gerais define o objeto como a parte integrante da semiose, o que se concentra no plano posterior da estrutura da mensagem. Tomando-se o exemplo dado da garota que ruboriza, o rosto que fica vermelho seria, então, o representamen. Seu objeto, ou seja, a parte materializada do mundo, sua conexão, o início do processo comunicativo, é a referência externa à estrutura, sendo assim, o que se refere ao mundo exterior, no caso, o vermelho como sinal de raiva, de vergonha, de exaltação sentimental.

A teoria peirceana de signo reconhece duas espécies de objeto, o imediato e o mediato, o estático e o dinâmico. O objeto imediato é o objeto dentro do signo, como ele mesmo é representado, sendo uma representação mental de um objeto, que ele exista ou não. Já o mediato, o dinâmico, se situa fora do signo, o que realmente realiza a atribuição de sentido ao interpretante, indicado apenas durante a semiose, como discorre Peirce: “aquilo que, pela natureza das coisas, o signo não pode exprimir e só pode indicar, deixando para o intérprete descobri-lo por experiência colateral” (PEIRCE, 1931-58, 8.314)

Assim, o objeto imediato é a representação instantânea, a potencialidade semiótica do representamen em primeiro contato, enquanto o dinâmico é sua aplicação, sua referência pós leitura do signo e evocação de sentido, como melhor define Santaella:

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[...] o objeto imediato funciona como um indicador do recorte que o intérprete faz ou deve fazer no contexto, objeto dinâmico, que determina o signo. O objeto dinâmico é sempre infinitamente mais amplo do que o signo. O objeto imediato, interno ao signo, quer dizer, a maneira como aquele signo particular sugere, indica ou representa o objeto que está fora dele é que estabelece os limites do objeto dinâmico (SANTAELLA, 2009, p. 45).

Sintetizando, o objeto imediato é o recorte específico, modo através do qual um objeto dinâmico, fora do signo, é referido, denotado, indicado ou sugerido pelo signo, o representante, produzindo assim o terceiro elemento desta tríade, o interpretante. A definição peirceana deste constituinte é de próprio resultado significante, ou seja, o efeito do signo, sendo algo concreto, como uma ação, ou algo criado na mente do intérprete, como um apelo emocional.

Santaella esclarece que, para haver semiose, para um signo funcionar, a presença do interpretante é fundamental. Logicamente, se a semiose é o estudo da fenomenologia do signo, da produção de sentido, seja qual for a natureza desta, então o interpretante deve existir, já que é a parte em que ocorre a absorção, a compreensão do significado daquele processo. O interpretante, então, é o resultado do processo comunicativo, o qual sempre objetiva produção de significado.

Para melhor visualizar estas definições sobre as espécies de objeto, retoma-se o exemplo citado acima da garota que ruboriza a frente de alguém, onde o avermelhamento de sua pele seria assim o signo, o representamen, a parte real, física. Para reconhecer as subdivisões de objeto presentes nesta situação, faz-se necessário dividir em dois momentos, como nos estudos de Peirce. O objeto imediato, a referência no simples recorte inicial, sem nenhuma interferência cognitiva, ou seja, de apreensão e elaboração de um próprio significado. No caso, como não especificado o contexto em que ambos estão, o objeto imediato é realmente a primeira impressão do sinal comunicativo, assim, o rubor da garota, a vermelhidão. Assim, pode ser expressão de raiva, vergonha, estresse, pertencendo ao nível da lei, sendo inicialmente uma convenção da linguagem, por estrutura cultural de absorção de conhecimento, relacionando o vermelho da pele a sentimentos como estes, e não a sentidos como felicidade, paz e angústia, por exemplo.

Já o objeto mediato deste processo, embasado no recorte contextual, leva em consideração a referência fora do signo em si, ou seja, se a cor vermelha pode 23

significar diversos sentimentos, ele na sua dinâmica, mediado através da semiose, especifica o referente, atribuindo assim uma indicação atualizada do objeto. Desta forma, e ao introduzir a informação que, antes do rubor, a garota conversava com um rapaz sobre sentimentos, mais precisamente os seus, e recebeu assim um elogio, há agora a presença de um campo de atuação deste signo, o que apresenta então o objeto dinâmico, a referência externa ao próprio signo, o simples sinal de indicação corpórea, devido a abordagem emocional da conversa.

Em suma, o objeto imediato atua no campo do próprio signo, do próprio representamen, e internamente a este, enquanto o mediato atua fora do mesmo, apontando situacionalmente ao que se refere, iniciando o processo de cognição, de entendimento devido às circunstâncias, da produção de interpretante, de material sígnico bruto convertido em significado.

De acordo com o efeito do signo sobre a mente do intérprete e em conformidade com seu sistema triádico, Peirce chegou em três classes maiores de interpretantes. A primeira categoria é o interpretante imediato, sendo este o que o signo está apto a produzir como efeito, ou seja, o potencial ainda não atualizado do signo, isto é, sem que tenha encontrado um intérprete, ou algum que haja meios de decifrá-lo. A potencialidade de comunicação do signo em primeira instância, antes que ele chegue a um intérprete, o contato com o objeto estático, a regra geral, absoluta, peculiar.

A segunda classe é do interpretante mediato, que corresponde ao efeito direto realmente produzido por um signo sobre um intérprete. Além disso, como Peirce dá ênfase: “aquilo que é experimentado em cada ato de interpretação e é diferente, em cada ato, do efeito que qualquer outro poderia produzir” (PEIRCE, 1931-58, 8.184). Discutir-se-á melhor sobre o interpretante dinâmico posteriormente, quando novamente forem atribuídas novas categorizações especificamente para cada reação que este interpretante produz no leitor, aquele que está decifrando um texto, sendo este verbal ou não-verbal, físico ou mental.

Por fim, a terceira categoria, o interpretante final, está ligada ao processo comunicativo em sua totalidade, onde se é regulado através do hábito, ou seja, pela condução, continuidade, regularidade em que o intérprete está acostumado a decifrar toda a mensagem. Está inter-relacionado também ao processo evolutivo da 24

semiose, ou seja, da ação infinita de construção de significado, onde a cada leitura, a cada absorção de conhecimento, o intérprete se habilita a uma nova derivação no intérprete final.

Neste ponto, deve dar-se importância em destacar as palavras de Santaella, sobre o interpretante final:

[...] que é o efeito que o signo produziria em qualquer mente, se a semiose fosse levada suficiente longe, isto é, se fosse possível que o signo pudesse produzir todos os interpretantes dinâmicos de modo exaustivo e final. Uma vez que isso não é possível, o interpretante final está sempre em progresso, num processo evolutivo infinito, pois cada um de nós, intérpretes particulares, apenas capazes de produzir interpretantes dinâmicos singulares, falíveis e provisórios, não estamos nunca em condições de dizer que um interpretante já tenha esgotado todas as possibilidades interpretativas de um signo, constituindo-se no seu interpretante final (SANTAELLA, 2009, p. 49)

Adiante deste trabalho, esta definição para o interpretante final será unida à teoria semiótica interpretativa de Umberto Eco (1979) e sua definição de Leitor Modelo, onde, o potencial de um texto, de um signo, está também e primordialmente nos instrumentos mentais que um indivíduo possui para desconstrução e remontagem de conteúdo e interpretação. Neste nível dos interpretantes é que ocorre, nesta dissertação, a definição da primeira vertente essencial para a análise proposta adiante: o interpretante final é infinito em sua função na semiose, sendo assim agente passivo, onde o leitor, o intérprete, se faz presente ativamente em toda a relação.

Posteriormente, serão retomados estes fundamentos, quando discutidos a cognição e a semiótica interpretativa de Eco. Aqui ainda se faz necessário elencar os três tipos, então, de interpretante dinâmico, citados acima também pela pesquisadora brasileira. Dentro da categoria do interpretante mediato, ou seja, do efeito sobre o intérprete, foram subdivididos outros três pontos, sempre retomando a função tríade de Peirce: interpretante emocional, energético e lógico.

O signo pode produzir em seu leitor qualidade estritamente do sentimento, o interpretante emocional. Pode também produzir também curiosidade em relação a sua proveniência, uma tendência ao movimento, à reação imediata, o interpretante energético. Ou como, por último, produzir um esforço mental do intérprete, através 25

de guias de raciocínio lógico, fazendo com que ele transpareça o interpretante lógico.

Para, assim, finalizar este primeiro momento, retoma-se o exemplo da garota que ruborizou diante um rapaz que a elogiou. Destacou-se, anteriormente, o representamen (a vermelhidão do rosto) e os objetos, tanto imediato quanto dinâmico, no contexto da semiose referida. Assim, cabe localizar os interpretantes deste processo.

Como o interpretante é o resultado da semiose, então se podem traçar três níveis, ainda subdivididos, de interpretação. A primeira, do interpretante imediato, realmente é a conclusão instantânea da vermelhidão na pele, independente da realidade, ou seja, vergonha, raiva, estresse e, até mesmo, uma picada de inseto. A última hipótese pode ser aceita, apenas neste estrato, pela natureza da interpretação imediata ao ver o rosto da garota e a mancha avermelhada.

Em seguida, especificamos então o interpretante dinâmico e suas três subdivisões: o interpretante emocional é aquele que produz na mente do intérprete, primordialmente ou exclusivamente, um apelo sentimental, que no caso seria a compreensão do garoto que, de alguma forma, a jovem sentiu vergonha, por ela sentir o mesmo, por ela ser tímida, ainda mais que houve um sinal corpóreo natural para o mesmo. Em seguida, o interpretante energético, que destaca a reação após decodificar o signo como, por exemplo, o garoto continuar abordando-a, sondando-a diante da comoção da mesma, já que, caso ele não notasse rubor do rosto da garota, poderia parar a conversa por não haver sinal de interesse dela.

Por último, o interpretante lógico. Ao ficar vermelha, a garota significou comoção, de alguma maneira. No raciocínio lógico, se a jovem de alguma maneira sentiu algo, logo, para o rapaz, sinal de que possa haver algo também, criando nele um apelo em, inicialmente, descobrir por que do rubor. O que é notório é a presença destes interpretantes em toda a semiose, havendo sim uma possível mudança de ênfase, o que muitas vezes depende somente da forma de recepção do intérprete, da sua capacidade de cognição, já que este último nível, o interpretante é pertencente ao mundo exterior, e não internamente ao signo e sua estrutura.

Todos estes três constituintes podem e devem estar presentes para a construção do interpretante final, porém em alguns casos, a necessidade de quem comunica, de 26

quem produz o signo, é fazer um apelo diferenciado. Como uma propaganda que, normalmente, faz-se uma construção ativa na mente do intérprete, sugerindo ações, como comprar, beber, viajar, enfatizando o interpretante energético. Em outros casos, a publicidade para conquistar a audiência aposta em um caráter mais sentimental, envolvendo o público, o que nota-se um enfoque maior na produção emotiva do leitor. Já uma equação matemática, que é um signo também, não tem o mesmo apelo emotivo, porém sua estrutura lógica vem emersa, o que pode acarretar também uma ação por parte de quem decodifica, se este estiver apto a compreender e resolver a sentença, ou seja, ativando um interpretante lógico.

Peirce ainda continua a categorização da semiose, classificando os signos de acordo com as combinações entre seus constituintes. Na presente monografia não será discorrido sobre estas classes, como o quali-signo, sin-signo, legi-signo, ícone, índice, símbolo, rema, dicente e argumento, primeiramente porque, pelo objetivo deste estudo, que é reconhecer o processo de semiose, suas indicações estruturais, não há a necessidade de aprofundamento. Secundariamente, o estudo desta aplicação externa, ou seja, de como os elementos do processo significativo funcionam dentro do texto que será proposto, é o cerne desta monografia, tendo em vista a teoria do leitor modelo, proposta por Eco.

1.3 Cognição

A autora e pesquisadora brasileira também expõe um dos pontos fundamentais que serão, daqui debatidos: “o interpretante não é um simples evento, mas um processo evolutivo” (SANTAELLA, 2009, p. 47). Esta assertiva é de fundamental reflexão, que, em linhas gerais, quer tornar claro o perfil constante de interpretação, ou seja, o potencial interpretativo não finalizado de um processo comunicativo, de um texto, de uma narrativa, de um signo. Como Peirce concluiu, o signo não é um processo comum, tendo em vista a própria semiose, que em sua definição, deduz esta circularidade dos eventos significativos, resultando todo interpretante a geração de 27

sentido, que conseqüentemente pode acarretar reações, desde mentais a físicas, criando um ciclo ilimitado de hermenêutica.

Como cada signo cria um interpretante que, por sua vez, é representamen de um novo signo, de acordo com esta dinâmica, a semiose resulta em uma série de interpretantes sucessivos, não há nenhum primeiro nem último signo. Esta idéia defende que o pensar sempre procede na forma de um diálogo, entre várias fases do ego, de maneira que sendo dialógico, se compõe essencialmente de signos. Assim, como cada pensamento tem de dirigir-se a outro, o processo contínuo de semiose, ou pensamento, só pode ser interrompido, mas nunca realmente finalizado.

Portanto, a semiose possui este caráter ilimitado, tendo em vista a sempre criação de interpretante gerado na comunicação, que produz assim um signo, que deriva outro interpretante e assim sucessivamente. A idéia da semiose ilimitada que ocorre na forma de um diálogo permanente assemelha-se, em certos aspectos, a uma circularidade hermenêutica no processo dialógico entre o eu e o outro, onde o eu se torna o outro e o outro em eu, e assim por diante.

Além disso, o repertório de signos, ao menos em nível de vocabulário, é limitado e, por isso, temos que, no processo da semiose verbal, recorrer a signos anteriormente empregados. A hermenêutica, de acordo definição do Dicionário de Semiótica, por Greimas e Courtés, designa:

[...] geralmente a interpretação, no sentido corrente e não semiótico, de textos essencialmente filosóficos e religiosos. Trata-se de uma disciplina relativamente vizinha à semiótica (de que freqüentemente toma bom número de elementos) na medida em que, como diz P. Ricoeur, ela articula uma teoria geral do sentido com uma teoria geral do texto. [...] o domínio de seu exercício é mais específico e, por outro lado, que ela põe em jogo a relação do texto com o referente, atendo-se muito particularmente aos dados extralingüísticos dos discursos e às condições de sua produção e de sua leitura. [...] faz intervir o contexto sócio-histórico, incluindo-se nele o da compreensão atual, e tenta – por esse jogo complexo – depreender os sentidos recebíveis: pressupõe assim uma posição filosófica da referência como critério de avaliação (GREIMAS; COURTÉS, 1979, p. 215)

Como exposto, a hermenêutica então, para análise, utiliza-se de instrumentos semióticos, porém com um objeto de trabalho específico: o texto enquanto desencadeador de mensagens, de interpretações e, assim, de comunicação. Para esta teoria, no processo de leitura, o sentido global nunca se desenvolve 28

simplesmente a partir da compreensão seqüencial de elementos que já tenham um sentido precedente ao texto ou que existam independentemente dele. As palavras – os elementos do texto – formam os seus sentidos antes da leitura sintática que é puramente estrutural, ou seja, muitas vezes com base nos preconceitos e idéias referentes ao entendimento global.

Exemplo disto é a delimitação de temas que pode ser feita quando nota-se a estrutura de um poema, como amor, amizade, dor, angústia, lírica, havendo um sentido global antes da leitura em si. Outro exemplo é a mudança da interpretação de um texto trocando o título, alterando também o sentido. O processo de interpretação não é, portanto,

[...] um processo que começa com signos autônomos e sentidos independentes para seguir até o mais alto nível do sentido global. O sentido elementar já contém traços do sentido global. Porém aí aparece a circularidade, uma vez que o sentido global também não pode existir sem os sentidos elementares (NÖTH, 2003, p. 73).

Desta maneira, a semiótica peirceana se assemelha com a teoria da circularidade hermenêutica, onde a produção de significado apenas pode acontecer através de um processo dialógico, de troca de signos e sua cognição, ou seja, da sua interpretação e reação a ela, tendo em vista contexto por ela referido ou inserido. Este dialogismo é circular, como descreve a semiótica de Peirce, onde o eu, que produz o signo, e o outro, aquele que recebe e interpreta, invertendo de posição, hora se tornando ativamente participantes do processo de produção de significado, hora sendo passivamente sugestionados à ação, e assim por diante.

Para melhor embasamento teórico, aqui se deve traçar um pequeno panorama sobre a ciência da cognição, que tem como objetivo o estudo da comunicação e seu processo de compreensão na mente humana, previamente descritas pela semiótica peirceana. Na filosofia de Peirce, a tríade tradicional da mente corresponde às suas três categorias de primeiridade, secundidade e terceiridade.

O sentimento pertence à primeiridade, a categoria do imediato e das qualidades ainda não diferenciadas. A volição pertence à secundidade, categoria da interação diádica entre o eu e o outro (um primeiro e outro 29

segundo). A cognição pertence à terceiridade, categoria da comunicação da representação (NÖTH, 2003, p. 128).

O representamen, percebido na sua imediacidade, pertence ao sentimento, e aquilo no lugar do qual ele está, o objeto, é um outro diferente do eu original e está sujeito à mediação. A idéia que o representamen origina é o seu interpretante, que também resulta numa atividade cognitiva, sendo assim seu objetivo, já que todo processo comunicativo prevê compreensão e apreensão de significado, impulsionando uma reação mental ou física.

Portanto, a cognição é um elemento constitutivo no processo do signo triádico, tal como Peirce define o processo em que o signo tem um efeito cognitivo no seu intérprete. Mas a semiose não pode ser reduzida à cognição, já que esta pressupõe a percepção, um processo triádico gerado na consciência do observador a partir de um nível de sentimento imediato ainda indiferenciado, no qual ele é meramente a qualidade de um signo mental. Assim, está enraizada junto ao sentimento (primeiridade) e à volição (secundidade), nesta moldura semiótica, a cognição é parte de uma cadeia infinita de semiose ilimitada, de acordo com a qual ela é determinada por uma cognição prévia na mente do intérprete. As cognições são, conseqüentemente, laços na rede semiótica ilimitada que tem suas fundações no princípio de que “todo pensamento é um signo, que deve atingir a um outro, deve determinar algum outro, visto que essa é a essência de um signo” (PEIRCE, 1931- 58, 5.253).

Desta maneira, a ciência cognitiva e seu paradigma não são opostos à semiótica, mas sim uma de suas vertentes. Como exposto anteriormente, enquanto o estudo dos signos se prende a um conceito estrutural geral da produção de significado, seja ele mental, físico, material, interno ou externo ao ser humano, a cognição, por ter embasamento tanto da psicologia quanto da filosofia, se detêm no estudo destes processos na mente, ou seja, de como a percepção (o sentimento) se torna, ao ser mediado, em informação, ação, reação do ser humano, gerando cognição, em outras palavras, a aquisição de conhecimento e seus processos mentais.

Vale ressaltar que a semiótica não é menos diversificada quanto às correntes de estudo dos sistemas sígnicos e, nesse contexto, nem todos seus paradigmas tradicionais são igualmente compatíveis com as visões mantidas pelos cognitivistas. 30

O modelo saussureano, diádico do signo, é em sua essência conflituoso com as suposições básicas da ciência cognitiva, pelo:

[...] coração dos nossos sistemas conceituais estar diretamente fundado na percepção, no movimento corporal e na experiência de caráter físico e social [...] e não seria endossada pelos semioticistas da tradição diádica do signo que vai de Saussure, via Hjemslev, até Greimas (NÖTH, 2003, p. 131).

Já a semiótica na tradição do signo triádico peirceano, ao contrário, não é apenas compatível com a hipótese de a linguagem ser cognitivamente motivada, como também é capaz de fornecer moldura teórica apropriada para esse princípio. A cognição funciona então, primariamente, como um interpretante de um signo, o que Peirce também define como o pensamento ou idéia, criada na mente do intérprete de um signo. Assim, ainda em fundamentos peirceanos, a cognição é somente possível através de signos, já que o interpretante de um representamen também funciona, ele mesmo, como um signo.

O autor norte-americano ainda salienta que o signo criado na mente do intérprete é um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido, que apenas é absorvido e compreendido através deste processo de cognição, transformando o interpretante final em um signo, onde suas qualidades por si só traduzem todo seu conteúdo, fundamento postulado por Peirce como iconicidade. Ícone é um signo cuja qualidade significante provém meramente da sua qualidade, ou seja, cujos adjetivos são semelhantes às do objeto, e excitam sensações análogas na mente para a qual é uma semelhança. Completa Eco (1976, p. 204): “similaridade não diz respeito à relação entre imagem e objeto, mas entre imagem e um conteúdo previamente compactuado pela cultura”.

Em outras palavras, a interpretação total de um signo apenas é possível porque a mente transforma todos os processos de significação em ícones, modelos mentais, para que a absorção de informação e resposta da mesma seja de forma rápida. Exemplo do uso desta palavra no cotidiano é a referência a artistas-ícones: ícones do rock moderno internacional seria Guns‟n‟Roses; ícone da música black/soul dos anos 1960 seria Ray Charles; ícone da natação brasileira moderna, César Cielo. Nenhum dos citados não necessitou de algum levantamento de adjetivos para os 31

mesmo, bastando apenas sua imagem, sua referência, para a mente conseguir traduzir em qualidades que remetem, excitam, levam o intérprete à concepção do mesmo.

Unindo semanticamente, agrupando o absorvido em temas, é que a mente consegue atribuir significação a um interpretante final e armazená-lo para posterior utilização. Porém, como Eco salienta, esta similaridade entre a imagem e a qualidade, determinando o ícone, não é feita de maneira aleatória, e sim em um pacto cultural, que determina a interpretação final e o modelo de cognição. Mais adiante será exposto, mais detalhadamente, como o autor italiano tende a afirmar que uma semiose apenas se dá por completo se, no interpretante final, haver a influência do contexto, da cultura, ou seja, se o leitor está apto àquela codificação, de acordo com seu conhecimento de mundo.

Por enquanto, define-se ainda aqui os modelos mentais, descritos na ciência da cognição, que utilizam os preceitos semióticos triádicos para desenvolvimento da teoria. Desta maneira, a cognição, a interpretação realmente final de um processo comunicativo, apenas se dá com a representação mental de todo o esquema semiótico anterior, e possíveis implicações futuras, em outras palavras, a mente resume em um signo apenas todas semioses existentes, organizando as informações em uma espécie de etiquetas.

“A ciência cognitiva, assim, investiga significados como representações mentais e descreve a compreensão como um processo de construção de modelos mentais” (2003, p. 135), como melhor define Nöth. Cada pensamento, ou representação cognitiva, é da natureza do signo, sendo, na nomenclatura de Peirce, sinônimos, já que representamen é a parte representada da idéia do signo, o material, seja ele mental ou físico. Uma representação é, antes de tudo, algo que está no lugar de outra coisa, sendo um modelo da coisa ou coisas que ele está no lugar.

Posto isto, deve-se salientar a importância dos modelos mentais no processo de cognição como mediadores de informação, ou seja, reconhecer na representação a sua função mediata entre o externo e o interno àquela cultura, domínio. Modelos mentais parecem oferecer um meio de mediação entre as diferentes formas de conhecimento, sendo uma representação de uma área limitada da realidade, 32

daquele intérprete, em um formato que permite a simulação interna de processos externos de tal forma que permita compreensão.

Retoma-se, então, o exemplo já citado anteriormente da garota que ruboriza diante o elogio do rapaz. Para assimilar o conteúdo e armazená-lo, a mente do rapaz classificou assim a situação, atribuindo qualidades para aquele dado momento, para aquele interpretante final. Independentemente de sua reação naquele instante, o modelo mental que o rapaz, ao retomar esta semiose, este processo comunicativo, apenas invoca é do rosto vermelho da garota, ou algo que naquele instante lhe chamasse mais atenção, escolhendo apenas um atributo de todo o contexto, de todo o esquema interno significativo, para posterior uso e recordação.

Este não é um esquema finito, ou seja, não possui limites para agregar ou retomar o conteúdo iniciado, no caso quando ela ruborizou inicialmente, mas sim um modelo mental que permanece no eixo do pensamento, desta vez não como interpretante, mas sim como um ícone, um adjetivo que auxilie nas próximas experiências comunicativas. Em síntese, para o garoto futuramente recordar, fisicamente ou mentalmente, da cena com a jovem, apenas irá evocar conceitos-situações- palavras-chave, como “rosto vermelho”, “garota bonita”, “vergonha da garota”, ao invés de descrever situação, clima, sentimento vividos na semiose dada como exemplo, passando novamente por todo o processo significativo de apreensão de representamen até interpretação final, e posterior cognição e mutação até o icônico modelo mental.

Assim, o inicial interpretante, ao se tornar ícone ou um signo exclusivamente qualitativo, não deixa o processo semiótico, permanece ainda na mente modular, podendo vir a interferir proximamente, mas como um signo único, sem a necessidade de se retomar todo o contexto, o diálogo, as expressões faciais etc. que estavam, ou estão, presentes nele. Estes pontos teóricos sobre a cognição e seu funcionamento serão de grande valia no próximo tópico de estudo sobre a Semiótica Interpretativa de Umberto Eco, por aproximar a noção de interpretante final com processo cognitivo, gerando uma semiótica com enfoque no intérprete.

Antes disto, devem-se expor as considerações finais sobre a ciência cognitiva, sobre a perspectiva semiótica de Peirce. Como exposto, podem-se, de maneira sintética, definir três implicações semióticas no estudo cognitivo, como expõe Nöth (2003): 33

[...] o interpretante do signo está sempre presente em uma rede de cognições prévias (e futuras) ou elementos do conhecimento. [...] Uma vez que os modelos mentais são formados como resultado de cognições previamente memorizadas, estes servem da mesma maneira como dados dos quais derivam-se novos interpretantes. [...] A terceira implicação refere- se ao fato de os esquemas (mentais) serem um conjunto de relações que o intérprete acredita estar normalmente entre os constituintes de um conceito (2003, p. 139)

Por fim, estas três postulações implicam, resumidamente, em definir a função essencial do signo que é estabelecer um hábito, ou uma regra geral, de acordo com a qual eles agirão numa dada ocasião. Como retratado anteriormente, o signo permanece sempre em movimento, sendo decifrado inicialmente o interpretante final pela mente e, depois, armazenado em forma de representamen novamente e assim consecutivamente. Porém o intérprete deve estar assim apto para compreensão, sendo condicionado a acionar o conteúdo interpretante da semiose, como estar em conformidade com o contexto, com a cultura. Assim, o signo habitua o intérprete a decodificá-lo de uma maneira específica, estando este não em uma posição passiva em relação ao processo comunicativo, mas sim ativo, pois ele quem detêm as faculdades mentais e noção cultural para compreensão do significado. O que, assim, deriva a teoria interpretativa semiótica, onde esta última implicação sobre a cognição destaca-se: o determinante hábito do intérprete.

34

CAPÍTULO 2

ECO, SEMIÓTICA INTERPRETATIVA E O LEITOR MODELO

De acordo com a última implicação semiótica na área da ciência cognitiva, os modelos mentais, formados posteriormente decodificação do signo, são um conjunto de relações que o intérprete acredita estar em conformidade com os outros que partilham daquela semiose. As categorias semióticas mais próximas associadas a este aspecto dos esquemas são as do hábito e da generalização. Ambas as categorias são centrais para a semiose como processo cognitivo, pois hábitos e regras “são o resultado do uso do signo e o pré-requisito das inferências necessárias na interpretação do signo” (NÖTH, 2003, p. 140).

Peirce ao se referir ao interpretante final, normal, último, definia na realidade a categoria do hábito, ou seja, à fase final no processo de interpretação semiótica, na qual a cognição formada na mente do intérprete estabelece um hábito, uma tendência “certa de comportar-se de maneira similar sob circunstâncias similares no futuro” (PEIRCE, 1931-58, 5.487). Neste estágio, o signo preenche a mesma função de um esquema da cognição, apontando tanto para o passado (memória), quanto para o futuro (interpretação habitual), no processo de semiose, o que ajuda a definir que a sua natureza é como a da memória, que recebe as transmissões da memória passada e transfere parte dela para a memória futura.

Este fundamento sobre signo, unido ao conhecimento cognitivo da mente, auxiliam no que tange a compreensão dos fenômenos comunicativos, quanto à produção de signos, sua composição interna e sua implicação externa. A sua definição, desde os iniciais apontamentos sobre semiótica de Peirce até a união do sujeito cognitivo, traça um caminho pelo qual se deve percorrer para o objetivo deste trabalho. Para conseguir sustentar a idéia que o intérprete possui uma posição ativa na leitura de qualquer signo, é necessário traçar este caminho por dentro da estrutura do estudo da significação até as mais contemporâneas descrições cognitivas.

Nota-se, então, que o signo tornou-se de um simples esquema matemático a um quase-objeto materializado pela mente em forma de ícones, facilitando a absorção 35

de novas informações e o acesso às mesmas. Baseado nestes fundamentos de Peirce, Umberto Eco então desenvolveu seus estudos, criando a teoria da semiótica interpretativa, do modelo de conhecimento enciclopédico e do leitor modelo, sucessores nos estudos cognitivos semióticos.

Para Eco, mais importante que o caminho traçado desde a semiose de Peirce até a ciência da cognição é o leitor, o intérprete, como protagonista no processo de criação e decodificação de significado. Se o signo interpretante se torna material da cognição, sendo então cíclico, sempre retomado e reproduzido, levando-se em consideração o preceito de que “os interpretantes fazem surgir um signo mais desenvolvido e são auxiliados neste processo pelos vários modos de conhecimento possível” (NÖTH, 2003, p. 138), então único passível de ação direta sobre estes é o próprio interpretante, sua visão de mundo, hábitos (na maneira em decodificar as diferentes formas, representações de signo) e cultura por ele vivida.

Umberto Eco, autor italiano, publicou em 1962 a “Obra Aberta”, trabalho que foi considerado pré-semiótico, mas já figurava no seu desenvolvimento a estética da recepção, que vem ser melhor afirmado com o “Tratado de Semiótica Geral”, de 1975, onde procurou um modo sistemático de delimitar o campo e os métodos da semiótica, embasado nos fundamentos de Peirce, Hjelmslev e Greimas. Em uma primeira fase, Eco recebeu grande influência do estruturalismo de Saussure, do modelo diádico do signo, porém a partir dos anos setenta, com os fundamentos da obra peirceana, começa a desenvolver pesquisa no âmbito do paradigma cognitivo- interpretativo, ou seja, havendo como material filosófico as bases triádicas da formação de significado, passando pela cognição e apreensão sígnica.

Desta maneira, Eco desenvolveu sua pesquisa na área da Semiótica Interpretativa seguindo a mesmo raciocínio realizado anteriormente, como o estudo do signo e significado, levando-se em consideração a tríade de Peirce e seus efeitos quanto produção na mente do intérprete, e também da absorção e compreensão do signo, transformado no processo cognitivo em signo icônico para melhor armazenamento e acesso mental. Unindo-se os dois conceitos, nota-se que o enfoque dado pelo autor italiano em sua pesquisa é da interpretação na semiose, ou seja, o foco principal da sua semiótica seria, não o conceito de signo e sua estrutura, mas a presença ativa do intérprete, do leitor, do nível do interpretante e suas referências. 36

No plano do estudo estrutural do signo, da sua organização e das suas possíveis descrições, Eco chega a delinear um modelo semântico de instruções na forma de enciclopédia; enquanto que na descrição e pesquisa sobre a atividade interpretativa, o autor chegou a sua teoria da cooperação interpretativa, ambas aqui descritas para efeito de posterior análise, tornando-se, agora, potencial teórico em evidência neste trabalho.

O que na cognição é o processo de criação dos modelos mentais, etiquetas que o cérebro armazena e organiza todos os signos já absorvidos pela mente, para Eco, é determinado não por uma esquematização dicionarial, ou seja, atribuindo para termos uma equivalência semelhante, através da sinonímia, antonímia, paráfrase, entre outros. Por exemplo, para definir a palavra „homem‟, pela estrutura dicionarial, deve-se atribuir verbetes e expressões como “humano”, “macho”, “oposto de mulher”, “sexo masculino” etc.

Porém, ao notar limites nesta teoria, Eco chega a sustentar a necessidade de uma análise com o cunho semântico enciclopédico.

Se Il modello dizionariale definisce Il termine ‘uomo’ come la somma di una serie di tratti (maschio + umano, ecc), Il modello enciclopedico pensa Il significato del termine come l’insieme di tutti gli interpretanti relativi al termine stesso. Pertanto il significato di ‘uomo’ comprenderà certamente alcuni tratti come ‘machio’, ‘adulto’, ‘umano’, ma anche i suoi aspetti anatomici (gambe, braccia, testa, ecc.), i suoi aspetti sociali (la sua capacità de interagire e di organizzarsi in gruppi), la sua dimensione psicologica, la storia della sua evoluzione, le illustrazioni che lo rappresentano, le fotografie, le pitture, i disegni a esso relativi (TRAINI, 2008, p. 254).2

Enquanto o modelo dicionarial se preocupa no âmbito das informações lingüísticas, ou seja, em nível estrutural da língua, o modelo enciclopédico se desenvolve na dimensão mais complexa dos conhecimentos do mundo, o que resulta em uma descrição mais abrangente externa à linguagem, que fazem parte do mundo. Ambas

2 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Se o modelo dicionarial define o termo ‘homem’ como uma série de características (macho + humano, etc), o modelo enciclopédico pensa o significado do termo como a união de todos os interpretantes relativos ao mesmo termo. Portanto o significado de ‘homem’ compreenderá com certeza algumas qualidades como ‘macho’, ‘adulto’, ‘humano’, mas também os seus aspectos anatômicos (pernas, braços, cabeça, etc), os seus aspectos sociais (a sua capacidade de interagir e de se organizar em grupos), a sua dimensão psicológica, a história de sua evolução, as ilustrações que os representam, as fotografias, as pinturas, os desenhos relativos a ele”. 37

vertentes de estudo sobre a forma de armazenamento e acesso da informação cognitivamente, trabalhadas por Eco, foram desenvolvidas nos fundamentos sobre signo que Peirce fundou. A primeira, estrutural, se ocupa no mesmo nível em que as teorias peirceanas descreviam o signo, em esquemas que evidenciavam um processo matemático, lógico, enquanto a segunda, da interpretação, toma em particular o efeito do interpretante na mente, e posterior processo cognitivo, de armazenamento de informação, e de semiose ilimitada.

Questa traduzione di un segno in un’altra expressione è appunto il processo di interpretazione. (...) Non c’è modo, nel processo di semiosi illimitada che Peirce descrive e fonda, di stabilire il significato di una espressione, e cioè di interpretare quella espressione, se non traducendola in altri segni (appartengano essi o no allo stesso sistema semiotico) (ECO, 1984, p. 107).3

Como evidenciado, o semioticista italiano tende em todo o seu trabalho a desenvolver teorias que levem em consideração essa troca significativa que ocorre na cognição, a sua compreensão e abdução, trazendo em ascensão o perfil interpretativo que um signo contém. Esta noção é importante por mostrar como os processos semióticos, por meio da sua contínua atividade – pois são ilimitados, se referem a um signo ou uma cadeia deles utilizando apenas uma representação, e como estas referências influenciam no significado para o intérprete, conseguindo interpretar, traduzir, devido experiências pessoais, cultura e contexto.

Assim, de acordo com os fundamentos de Eco, os interpretantes não dependem apenas das representações mentais dos sujeitos, do enunciatário, mas sim dos registros coletivamente compartilhados pela cultura, por pacto entre os envolvidos no processo de comunicação. Desta forma, dicionalizar um processo que está em constante aquisição de matéria significante, pela evolução natural de aquisição de conhecimento, representa um estágio inicial da interpretação, daquele do imediato, do interpretante estático, enquanto que a comunicação reside no terceiro nível, na terceiridade, no interpretante final, sendo assim enfoque da obra de Eco.

3 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Esta tradução de um signo em uma outra expressão é exatamente o processo de interpretação (...) Não há modo, no processo de semiose ilimitada que Peirce descreve e funda, de estabelecer o significado de uma expressão, isto é, de interpretar aquela expressão, se não traduzindo-la em outros signos (estes pertencendo ou não do mesmo sistema semiótico)”. 38

A enciclopédia, então, representa o conjunto geral dos conhecimentos relativos ao mundo, as quais estrutura é aberta e potencialmente ilimitada. Caindo a idéia de definir o significado através de uma série de traços de natureza lingüística, entrando em destaque o princípio de interpretação, se consolidando na hipótese de um significado aberto, acessível, definido pelo nível lingüístico e pelas experiências do mundo, porém:

[...] bisogna valutare nei diversi casi i livelli di possesso dell’enciclopedia, ovvero le enciclopedia paziali (di gruppo, di setta, etniche, e via dicendo). Dal punto de vista semiotico, dunque, l’enciclopedia è una sorta de ipotesi regolativa. [...] Eco sostiene che si possano dare rappresentazioni enciclopediche ‘locali’. Quando due persone comunicano, certamente attivano porzioni enciclopediche che consentono, in varia misura, la comprensione reciproca (TRAINI, 2008, p. 256).4

Assim, como antes exposto por Nöth (2003, p. 139), “o interpretante do signo está sempre presente em uma rede de cognições prévias (e futuras) ou elementos do conhecimento”, em reflexão aos estudos do esquema triádico de Peirce, Eco deriva em consonância a esta suposição, já que a apreensão de significado apenas acontecerá se todos os comunicantes compartilharem, no plano do discurso, da mesma situação enunciatária, do contexto, da história prévia partilhada. Como no exemplo desenvolvido nesta monografia, o signo „rubor da garota‟ apenas poderá ser compreensível por alguém que compartilhe do histórico, que conheça a relação de ambos, que reconheçam os sentimentos dos envolvidos. Desta forma, a interpretação apenas seria completamente realizada se houvesse conhecimento de todo o contexto ali partilhado.

Desta forma, como melhor conclui Stefano Traini, estudioso italiano na área de semiótica, em sua obra “Le Due Vie della Semiotica”:

[...] esercizio di interpretazione connotativa non può che concernere un’occorrenza segnica, un’occorrenza di comunicazione, non già un termine

4 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “precisa considerar, nos diversos casos os níveis de domínio da enciclopédia, ou seja, as enciclopédias parciais (de grupo, de seita, étnicas, assim por diante). Do ponto de vista semiótico, portanto, a enciclopédia é uma classe de pressupostos regulativa. [...] Eco afirma que se podem dar representações enciclopédicas ‘locais’. Quando duas pessoas se comunicam, certamente ativam porções enciclopédicas que consentem, em diferentes níveis, a compreensão recíproca”. 39

in astratto isolamento dal fluire della comunicazione; in tale esercizio si passa attraverso almeno due mosse interpretative: di cui la prima è obbligatoria per intendere l’occorrenza segnica come significante, mentre la seconda è esigita per la comprensione del segno in quanto inserito in un testo, in un contesto e un gioco comunicativo (TRAINI, 2008, p. 258).5

Assim, como exposto por Traini, o objetivo de se estudar a interpretação, pela visão semiótica, é de reconhecer que o processo interpretativo nada mais é que uma assimilação de signo e sua reprodução, através dele próprio ou de outra representação mais evoluída, em um processo comunicativo. Além disso, com a teoria semiótica aplicada a esta esfera do intérprete, faz-se gerar reflexões acerca do papel do leitor em uma semiose.

Em resumo, duas pessoas que se comunicam devem ativar porções enciclopédicas, selecionar contextos, escolher propriedades semânticas e excluir outras, onde estes apenas surgem devido à freqüência, à regularidade, ao hábito do intérprete em traduzir estes sinais, levando-se em consideração a economia lingüística, onde o pouco significa muito por agregarem-se novos domínios do conhecimento. Exatamente por ter que representar o máximo no mínimo, os signos, com o objetivo fundamental de serem decodificados, compreendidos, apenas são ativados através da presença do intérprete, condicionado, habituado, capacitado em absorvê-lo.

A partir deste embasamento teórico, Eco focaliza atenções sobre os movimentos interpretativos do destinatário, ou melhor, sobre a cooperação do destinatário na interpretação de um texto – verbal ou não-verbal. Se o pressuposto de uma relação comunicativa é que haja uma convergência sobre um modelo mental, uma porção enciclopédica, “comunicare implica certamente cooperazione”6 (TRAINI, 2008, p. 264). Mas se de um lado a comunicação requer um esforço cooperativo, por outro pede também um esforço estratégico, ou seja, compreender a estrutura, antecipar uma certa tendência à interpretação, a um determinado comportamento e, assim, adotar um rede estratégica.

5 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “exercício de interpretação conotativa não pode produzir uma ocorrência sígnica sem uma ocorrência de comunicação e um termo em um abstrato isolamento que inicia a comunicação; em tal exercício, se passa através pelo menos de duas direções interpretativas: as quais a primeira é obrigatória para entender a ocorrência do sígnica como significante, enquanto a segunda é exigida pela compreensão do signo, como quando inserido em um texto, em um contexto e um jogo comunicativo”.

6 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “comunicar implica certamente cooperação”. 40

O enfoque central aqui debatido não é mais o cunho organizacional da semiótica, que precede a geração do texto, mesmo tendo por base estes fundamentos estruturalistas, mas sim a recepção e interpretação do texto pela óptica do destinatário. Eco, por fim, se concentra na relação texto-intérprete, onde texto se compreende como qualquer manifestação sígnica, composta por artifícios verbais, não-verbais, físicos ou mentais, e neste sentido provêm o centro da dinâmica teórica sobre o Leitor Modelo de Eco: “un testo postula Il suo destinatario come condizione indispensabile per la propria capacità comunicativa”7 (TRAINI, 2008, p. 264).

O ponto de partida de Eco é a constatação do fato de que um texto, um signo, é sempre incompleto, preenchido por coisas não-ditas. Não-dito significa não manifestado na superfície, no nível da expressão de Hjelmslev, o mesmo representamen de Peirce, devendo assim ser atualizado de acordo com o contexto n qual está inserido, o que exige em um texto a cooperação ativa e consciente da parte do leitor. O intérprete que deve cooperar e fazer inferência para reconstruir aquilo que não é expresso:

Il texto è intessuto di spazi bianchi, di interstizi da riempere, e chi lo ha emesso prevedeva che essi fossero riempiti e li ha lasciati bianchi per due ragione. Anzitutto perchè il testo è un meccanismo pigro (economico) che vive sul plusvalore di senso introdottovi dal destinatario, e solo in casi di estrema pignoleria, estrema preoccupazione didascalica, o estrema repressività il testo si complica di ridondanze e specificazione ulteriori [...]. E in secondo luogo perchè, via via che passa dalla funzione didascalica a quella estetica, un testo vuole lasciare al lettore l’iniziativa interpretativa, anche se di solito desidera essere interpretato con un margine sufficiente de univocità. Un testo vuole che qualcuno lo aiuti a funzionare (ECO, 1979, p. 52).8

7 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “um texto exige o seu destinatário como condição indispensável pela própria capacidade comunicativa”.

8 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Um texto é entrelaçado de espaços em brancos, de lacunas para preencher, e quem os inseriu previa que estes fossem preenchidos e os deixou em branco por duas razões. Primeiramente porque o texto é um mecanismo preguiçoso (econômico) que vive sobre os excedentes de sentido introduzidos pelo destinatário, e apenas em casos de extrema preguiça, extrema preocupação didática ou extrema repressão, o texto se constitui de redundâncias e especificações anteriores [...]. E em segundo lugar porque, longe da função didática até da estética, um texto quer deixar ao leitor a iniciativa interpretativa, embora geralmente deseje ser interpretado com uma margem suficiente de singularidade. Um texto quer que alguém o ajude a funcionar”. 41

Esses espaços em branco na própria construção de um texto, seja ele um composto físico e verbal, apenas um gesto corpóreo ou um signo bruto mental, são preenchidos, na leitura, através do hábito, pela constante construção e desconstrução de significado. Um leitor não apenas analisa linearmente um texto, como suas estruturas sintáticas, sua composição estratificada, mas aciona em sua memória enciclopédica signos que se encaixam, por dedução, indução e absorção, naqueles lugares, tornando aquele signo viável, construindo assim o significado.

Assim, um intérprete tem papel fundamental na semiose, já que sem ele não há interpretação, não havendo assim validade, pois todos os signos devem significar, como pressuposto inicial de Peirce. Desta maneira, o autor sígnico, provido de uma dada cultura, uma dada bagagem de conhecimento de mundo, produz um texto, uma imagem, um signo, aguardando a presença de um segundo, ou terceiros, que absorvam e completem com suas experiências de mundo. Papel do emissor é conseguir manter uma estratégia, um jogo comunicativo, ou seja, é habituar o destinatário para decodificar a mensagem, o processo sígnico, de maneira satisfatória, até alcançar o nível de máximo de interpretação, aquele que reside no interpretante final, da tríade peirceana.

O destinatário, o intérprete, então deve se bastar da significação imediata que o emissor propõe e, a partir de então, construir o significado, levando-se em consideração as particularidades estruturais de todo o signo, as conexões propostas pelos objetos (mediato e imediato, em Peirce), e o hábito interpretativo proposto. Ou seja, considerando no caso um texto verbal e físico como um signo, o autor deixa, propositalmente, evidências, lacunas, signos, figuras de linguagem, para indicar outros signos, outras inferências no texto, podendo apenas o leitor conseguir distinguir e compreender o texto em sua totalidade, através do seu hábito em extrair estas informações – no caso, na freqüência da leitura e percepção de um estilo, de uma proposição no plano da estrutura, de indicações extra textuais costumeiras – e de sua cultura. Nada adiantaria uma comunicação entre um texto produzido por um autor norte-americano e um leitor de nacionalidade brasileira sem nenhum conhecimento de língua inglesa, pois assim a cultura, a visão de mundo, a noção prévia, do destinatário é insuficiente para a decodificação, tanto na parte estrutural lingüística, quanto na apreensão de sentido. 42

Outro exemplo que pode ser dado é o gesto que designa, na Itália, inconformidade, dúvida, questionamento. A união de todas as pontas dos dedos, formando a mão quase como se fosse uma trocha, com movimentos para trás e para frente, repetidamente, faz significar entre os cidadãos italianos, provenientes desta cultura ou conscientes da existência do mesmo. Ao ser realizado, o gesto pode encontrar um destinatário que não domine esta informação, por conta não do signo que está errado, nem do emissor que não soube significar suficientemente, mas do leitor que não possui referências. A cognição, o processo interpretativo, pode ser suficiente apenas através do contexto, da referência imediata, da realidade situacional, porém o hábito, a memória de quem o decodificará tende a ser mais necessário na semiose, na construção de significado em qualquer que seja o meio, a estrutura, a forma do signo.

“Un testo è un prodotto la cui sorte interpretativa deve far parte del proprio meccanismo generativo: generare un testo significa attuare una strategia di cui fan parte le previsione delle mosse altrui – come d’altra parte ogni strategia”9 (ECO, 1979, p. 54), como assinala o pesquisador italiano. De acordo com o autor italiano, cada vez que se constrói um texto, é necessária a figuração de um Leitor Modelo, ao qual se atribuem uma série de competências, sendo ele não um leitor concreto, mas uma estratégia textual. Assim, para organizar a própria estratégia textual, um autor deve referir-se a uma cadeia de competências que dão conteúdo, significado, ás expressões que ele usa, sendo o Leitor Modelo, portanto, capaz de cooperar pela atualização textual, como o próprio criador do signo infere e refere-se.

Eco sublinha que um Leitor Modelo não é apenas um target, um público-alvo, ou seja, com um objetivo passivo diante ao signo, mas prever este modelo significa, antes de tudo, construir-lo, procurando habituar os leitores a um estilo, educando-os a interpretar seus textos, de certa maneira. Em suma, o Leitor Modelo de Eco seria o intérprete, construído pelo próprio autor, capaz de extrair toda a carga significativa de um texto, incluindo o que está linearmente disposto e o que não é exposto, costumeiramente orientado, acostumado àquela montagem e compreensão significativa.

9 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “Um texto é um produto o qual seu potencial interpretativa deve fazer parte do próprio mecanismo gerativo: criar um texto significa aplicar uma estratégia da qual fazem parte as previsões das atividades de um outro – como cada estratégia.” 43

No ponto de vista semiótico, esta circularidade na criação, decodificação e retomada de signos, mensagens, textos, habitua o intérprete a desconstruir o signo de uma maneira específica, estando a função sígnica, de criação de sentido, exclusivamente no nível do interpretante final, ou seja, tem o leitor papel ativo na captação de significado, sendo capacitado de notar as lacunas deixadas, propositalmente, pelo autor, preenchendo-as com signos já interpretados, associando-os aos modelos mentais mais apropriados, auxiliado pelo costume deste uso, pela competência adquirida, pela cultura. Quando um espectador, sem nenhum conhecimento prévio do contexto, sem qualquer entendimento daquela cultura, assiste a cena entre a garota que ruboriza e o rapaz, não será capaz de interpretar a mensagem, o signo, o texto, podendo até deduzir, através de carga cognitiva própria. O Leitor Modelo desta situação utilizada como exemplo seria alguém consciente dos sentimentos dos jovens, atualizado com referências culturais que façam os signos corporais tomarem significado que corresponda ao acontecimento e, primordialmente, habituado àquela análise. Se um leitor desconhecer o fato de que a garota possui, hipoteticamente a fins de exemplificação, uma postura firme e rígida, que não é facilmente influenciada através dos sentimentos, e então ela fica vermelha, o significado final será diferente, promovendo até reações diversas. O Leitor Modelo desta semiose deve preencher as lacunas, interpretar os signos, de acordo com o que ele possui de conhecimento de mundo, referido internamente na comunicação pelo próprio autor.

Trazendo para a nomenclatura de Peirce, o interpretante final, composto pela união do imediato com os mediatos, é o sentido completo expresso por aquele signo. Para derivar o interpretante final, o leitor deve então juntar a representação com as referências internas do texto – seja ele linear, como sua construção, da captação imediata do referido, seja ele externo ao signo, cabendo o intérprete em mediar a vinculação das referências –, o que por fim resulta na interpretação em três níveis: do sentimento, da reação e da lógica. Estes três eixos auxiliam na aproximação do cognitivo com as lacunas deixadas pelo autor, cabendo à mente e seu hábito decodificarem o signo, chegando ao interpretante final. É embasado nesta dinâmica da significação peirceana, na ciência cognitiva e na teoria do Leitor Modelo, que este trabalho se propõe quanto referencial teórico para a análise da peça.

Em linhas gerais, uma semiose, um processo de comunicação, apenas será válida devido ao potencial interpretativo do destinatário e dos espaços em branco no texto 44

contidos, ou seja, dos signos não visíveis, mas capazes de apreensão e compreensão, em face o conhecimento de mundo e cultura compartilhados pelos envolvidos. Além disso, prescreve Peirce, que um signo, mesmo quando decifrado e armazenado pela mente, está em constante atualização e ação, tendo em vista o princípio da semiose ilimitada, do processo de comunicação que pode ser pausado, mas nunca finalizado. É, resumidamente, com estes alicerces teóricos que será apresentada a análise da peça, com o objetivo de analisar a estrutura do signo empregado e sua interpretação final junto ao referente Leitor Modelo.

Nos fundamentos de circularidade hermenêutica, do signo ativo diante de um leitor ativo, que seja habituado a decifrá-lo, carregando informações e produzindo novos sentidos, Eco sustenta a existência da dicotomia uso/interpretação, tendo em vista as teorias acima expostas. A posição do desconstrucionalismo, ou seja, da análise estrutural de representamen, objetos e interpretantes, além dos tipos de signos, limita a idéia que a interpretação seja algo fechado na criação do próprio texto, o que o autor italiano refuta. De acordo com ele, esta dicotomia entre o hábito do signo, na mente de um intérprete, e o produto final significativo têm correlação, assim, com a indução que o autor propõe, seja explicitamente ou através das lacunas sígnicas.

Assim, propor uma tendência à interpretação, um hábito, por parte do autor, é pressupor uma intenção comunicativa, além da própria estrutura (lógico), do efeito inicial (emocional) e reação (energético). Assim, Eco distinguiu, em consonância aos preceitos triádicos do signo de Peirce, três tipos de intenção comunicativa: Intentio auctoris, operis e lectoris. O Intentio auctoris o que se nota é a vontade do autor empírico; no Intentio operis, o texto quer expressar um referimento aos próprios sistemas de significação e à própria coerência textual; e, por fim, no Intentio lectoris, o destinatário faz das referências do texto sua base para a semiose, de acordo com suas crenças, cultura, pulsão, desejos. Desta maneira, em um nível mais aplicado ao lingüístico, a interpretação apenas se faz valer através, primeiramente, da intenção da obra em comunicar, e depois do conhecimento e instrumentos dispostos pelo leitor, a intenção do leitor, em consonância aos pontos que o autor ou destacou, ou implicitamente reconheceu, ou em alguma parte da obra reafirmou, reconstruindo o signo por ele proposto.

Ao ler um poema, podem-se identificar as diversas intenções do texto. Sua intentio operis, referente à estrutura da obra, é de apresentar uma construção lírica, 45

apresentando rimas, versos, estrofes, ou seja, a intenção do texto em significar, o primeiro plano referente à estrutura. Em seguida, no nível da referência, a intentio auctoris seria o sentido geral encontrado durante o texto, bem como dos instrumentos utilizados por ele para construção, como figuras de linguagem (metáfora, assonância, rimas), desconstrução do poema, referências internas e externas ao conteúdo (intertextualidade e hipertextualidade), caracterizando o potencial interpretativo que o emissor pode dar, pura e simplesmente através da obra. E, por último, a intentio lectoris, recorrente ao terceiro nível, da interpretação final, do hábito, do costume, que se refere ao potencial que o próprio leitor possui e sua articulação interna sígnica, ou seja, da compreensão e reconhecimento das figuras de linguagem utilizadas, sua interpretação interna e sua relação com o contexto; da união entre o que está implícito na forma de intertexto ou apenas retomado, baseado na predisposição da economia que a própria língua exige etc., apenas possíveis pela visão de mundo e conhecimento adquirido do intérprete.

Em síntese, o processo comunicativo, que assim visa a interpretação, apenas se torna completo, com todas suas potencialidades intencionais significantes, através do uso, do hábito do leitor em decodificar, desprender o sentido do texto, apresentando este apenas indicações de sentido, sejam elas explícitas, sejam elas implícitas tanto na sua estrutura, conteúdo e construção. Desta maneira, um texto apenas cumpre totalmente seu papel em se fazer significar pela intenção comunicativa que propõe o autor, o texto e a visão de mundo que o destinatário possui, criando um horizonte de expectativas em relação a uma obra.

Pode-se concluir que um texto, mesmo propondo as mesmas lacunas significativas, atingirá destinatários diferentes, o que resulta em interpretações diversas, concebendo a idéia de que cada indivíduo do mundo possui um conhecimento diferenciado da realidade que o cerca, sendo isto definido pela inserção cultural, hábito e experiências vividas. Assim, mesmo havendo um plano de expectativas em relação à carga significante de um texto, ou como em definição o próprio Leitor Modelo, a interpretação depende da força a qual o leitor, parte ativa deste processo, implica na leitura, acessando todos os modelos mentais já absorvidos cognitivamente, o que em outras palavras quer dizer que o processo interpretativo necessita de um intérprete, mas cada leitura realizada de um texto, de um signo, 46

derivará resultantes diversos, tendo em vista a diferença entre cultura, experiência de vida e mundo.

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CAPÍTULO 3

ANÁLISE SEMIÓTICA DE GLEE

Os fundamentos teóricos levantados durante esta monografia já são suficientes para propor a análise da obra, do texto em si. Através dos preceitos de Peirce de construção/desconstrução do signo; do conhecimento dos processos cognitivos e como se produz modelos mentais; do chamado modelo enciclopédico de Eco, que gera a teoria sobre o Leitor Modelo e seu processo de interpretação, por potencialidade, é que se desenvolve a análise da peça em questão: uma cena da série norte-americana Glee, em formato de musical.

Por intermédio dos postulados semióticos, propõe-se uma descrição dos fenômenos de criação de sentido realizados na obra televisa, seja de maneira primária, através da própria história; seja de maneira secundária, evocando o conhecimento do recorte realizado, em consonância com o objeto representado e sua materialidade; ou de maneira terciária, através das experiências já absorvidas dos leitores- telespectadores e do hábito de encontrar e extrair significado, proposto pelos criadores e produtores do seriado, sendo seu produto interpretativo variante de acordo com o interpretante e seu conhecimento de mundo.

A seguir expõe-se, então, sobre o seriado musical Glee, seu processo de criação e produção, seus personagens, dando assim material para posterior análise semiótica, tendo em vista a teoria de Eco e a estrutura do signo de Peirce.

3.1 Glee, a série

A série do gênero comédia/musical Glee é, provavelmente, o mais radical exemplo do pioneirismo da TV sobre o cinema. Criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan, era tida até o seu lançamento como um projeto potencialmente inviável, 48

primeiramente idealizado para se tornar um filme. A história conta os esforços do professor de espanhol () em reerguer o coral da escola William McKinley em Lima, Ohio, chamado de "Glee Club" (Clube do Coral, Clube Glee), que no passado foi motivo de grande orgulho para todos os alunos da instituição. No entanto, a escola não possui, atualmente, recursos para sustentar o coral, que a princípio só atrai os alunos pouco populares e estigmatizados. Desengonçados e sem brilho aparente, os losers (perdedores em Inglês), como são conhecidos esses alunos, estavam fadados, normalmente, a humilhações diárias. Acharam, porém, em meio a um ambiente torneado por uma hierarquia previamente estabelecida, uma forma de conquistar seu próprio espaço e de realçar suas próprias particularidades.

Entre o grupo de rejeitados, estão: (), figura da protagonista que seria perfeita, inteligente, romântica e talentosa, mas que se apresenta com uma imagem de egoísta, insegura, invejosa e articulosa; Finn Hudson (Cory Monteith), garoto bonito e popular do colégio McKinley, jogador de futebol americano, que destoa das outras imagens de protagonistas homens, sendo assim um garoto sem iniciativa, confuso quanto seu lugar no colégio e vulnerável; e (), jovem homossexual assumido na pequena cidade de Lima, esperto, determinado, que se anula socialmente para proteger seu viúvo pai e sofre com bullying e homofobia. Assim como esses, outros alunos do colégio que se sentem desajustados de alguma forma acham o Clube Glee como saída, refúgio para seus medos, frustrações e problemas.

Glee, narrativa áudio-visual, que mescla estas histórias com referências da cultura pop e música, é resultado do esforço de Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan. O projeto original foi idealizado por Ian, aspirante de ator de uma pequena cidade no interior dos Estados Unidos que se tornaria roteirista anos mais tarde. O então intérprete começou a escrever seu primeiro roteiro: um filme baseado nas suas próprias experiências na escola e sobre o coral do colégio. “Muito do que você vê em Glee – Sandy descontando nos alunos, o bullying, as ovadas – vêm direto da vida de Ian” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 22), como exposto em Glee: não deixe de acreditar (2011), da editora Rai.

Mas não apenas na vida de Ian que estão as inspirações para a história do seriado. Outro roteirista e mente por trás de Glee, Brad Falchuk em 2008 foi diagnosticado 49

com má formação de uma veia na espinha dorsal, conhecida como hemangioma. Operado, o também personal trainer, ficou meses em uma cadeira de rodas, o que foi catalisado para a criação do personagem de Kevin McHale ( na história), abordando as questões sobre deficiência física, acessibilidade e preconceitos que advêm destas situações.

Porém, são de Ryan Murphy, criador, roteirista e diretor de diversos sucessos de crítica e público, as características mais peculiares de Glee. Formado em Jornalismo, Murphy trabalhou por meio do showbizz americano, como nos conhecidos , Daily News e Entertainment Weekly nas seções de entretenimento. Começou como roteirista no final dos anos 90, e seu último sucesso foi a série Nip/Tuck. Com humor negro, tom cínico e crítica ferrenha à cultura contemporânea, o seriado rendeu 100 episódios desde sua estréia em 22 de julho de 2003, e contava a história de dois cirurgiões plásticos, Dr. Sean McNamara e Dr. Christian Troy, que tinham uma clínica, onde atendiam fazendo a pergunta “Diga-me, o que você não gosta em você?”. A partir de então, traçava-se a linha de que todas as pessoas procuram superar as inseguranças adolescentes, fazendo Nip/Tuck “um seriado repulsivo e vívido, explora o lado feio da beleza, da saúde, da cirurgia plástica” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 18).

Com um Globo de Ouro de Melhor Série Dramática de 2005 em mãos, Ryan Murphy foi contratado pela 20th Century Fox Television. Como marca de seu trabalho, carregou para sua obra posterior a crítica sutil, o lado sombrio da sociedade: “Apesar dos finais emocionantes e felizes, Glee é salpicado de humor negro e observações cínicas. „Eu queria fazer uma série que fosse muito emocionante e gentil. (...) Mas não se engane. Ela ainda é crítica” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 23).

Em 2008, Ian Brennan, Brad Falchuk e Ryan Murphy apresentaram o projeto para a Fox, escolheram o elenco, reuniram a equipe e, um ano depois, no dia 19 de maio de 2009, foi ao ar o episódio piloto, logo após da final do American Idol, reality show de grande sucesso no EUA. A estratégia rendeu para Glee a audiência de 9,62 milhões de telespectadores e críticas de jornalistas da área do entretenimento:

[...] Entertainment Weekly escreveu: ‘[Glee] é muito bom – muito engraçado, tão pulsante, com personagens vibrantes – que derruba qualquer tipo de 50

ressalva que você pudesse ter. Glee não irá para até que conquiste você completamente‟. O Los Angeles Times concordou: „O único problema de verdade com Glee, a nova série de comédia e musical da Fox, que estréia hoje à noite, é que os espectadores terão de esperar quatro meses inteiros para assistir o próximo episódio‟ (BALSER; GARDNER, 2011, p. 24).

Para uma série do gênero musical, o sucesso alcançado apenas com o episódio piloto foi grande, garantindo previamente para Glee o pacote de 13 novos episódios e a confirmação de uma segunda temporada, mal lançada a primeira. Além disso, o seriado causou movimentações nas redes sociais, já que os vídeos com as apresentações musicais do programa piloto se tornaram hits na web, bem como a versão de “Don’t stop believin‟”, música original da banda Journey, cantada pelo coral na estreia. No iTunes, plataforma da Apple para compartilhamento e compra de músicas digitais legalmente, a música que se tornaria tema da própria série foi baixada 177 mil vezes, conquistando o segundo lugar no ranking de downloads mundiais.

Desta maneira, os produtores e executivos viram a oportunidade de Glee também se tornar diversos produtos, rendendo lucros com a marca. O público já havia demonstrado que a série tinha potencial para explorar as diversas mídias, transformando-o em subprodutos: CDs, músicas digitais, DVDs das temporadas, livros, turnês ao vivo etc. Quando Glee retornou em 9 de setembro de 2009, o segundo episódio inédito foi o recordista de audiência das estréias de seriados daquela temporada e manteve a média de 8 a 10 milhões de espectadores por episódio.

Em dezembro de 2009, com 13 episódios exibidos, apenas a metade da primeira temporada, mais de quatro milhões de músicas da série foram baixadas, tornando- se, assim, um fenômeno da cultura pop e do consumo:

A primeira trilha sonora, Glee: The Music, Volume 1, começou em quarto lugar na Billboard Hot 200 quando foi lançada, em 3 de novembro de 2009, e recebeu o disco de ouro antes do fim do ano. O elenco de Glee tinha 25 músicas na Billboard Hot 100 em 2009, uma realização superada apenas pelos Beatles, que tiveram 31 músicas na lista, em 1964 (BALSER; GARDNER, 2011, p. 26).

51

Esses números são uma mostra da dimensão mercadológica alcançada pela série Glee.

3.2 Escolha de repertório e preocupação com o real

Diante desse cenário, Glee se tornou assim um grande sucesso, por haver diversas tramas e histórias que alcançam os mais variados públicos. As músicas escolhidas, o elenco escalado, as participações especiais e os temas dos episódios, tudo auxiliou para que a série se tornasse uma sensação da cultura pop. A sua produção, desde roteiro até finalização das músicas, faz com que o seu sucesso seja devido aos esforços e investimentos realizados. “De acordo com o New York Times, cada episódio de Glee leva dez dias para ser filmado e custa mais de 3 milhões de dólares. São três dias a mais e 50% mais caro que o custo normal de uma série do horário nobre” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 27).

O cuidado com a história, com a abordagem, com a escolha da trilha sonora, faz com que Glee seja o grande sucesso que se apresenta. O roteiro, escrito basicamente pelo Ryan Murphy, Ian Brennan e Brad Falchuk, é apresentado ao elenco, ensaiado, e as sugestões apresentadas após primeira reunião começam a designar os traços principais da narrativa. Toda a equipe auxilia no texto, nas músicas, no futuro dos personagens, havendo o aval final de Murphy, sendo ele a grande força motriz.

As canções utilizadas no musical são propostas pelo próprio criador da série, funcionando como um grande bando de dados para músicas. “Não é só ter uma longa lista mental de músicas que faz de Ryan tão especial, mas a visão que ele tem para jogar todos os tipos de músicas na mistura” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 29). Além disso, todos os atores são encorajados a palpitar, trazendo suas próprias experiências de vida, como o caso de “Bust Your Windows” e “Ride Wit Me”, incluídas nos episódios depois de ouvidas no set de gravação. 52

Desta maneira, o processo de criação de um episódio de Glee possui diversas fases, porém nenhuma fechada, agregando sempre novas percepções e interpretações do roteiro original. Para um melhor aproveitamento e abordagem das histórias, como exposto no livro Glee – não deixe de acreditar:

Nós vamos conhecer a história e a cena primeiro e normalmente sabemos: „Ah, a música que precisa entrar aqui é tal‟, explica Brad. Ryan concorda: primeiro vem a história, e as músicas vêm em segundo lugar. „Brad, Ian e eu escrevemos o programa, escrevemos todas as falas e, antes de tudo, o que nós fazemos é pensar qual vai ser o tema daquele episódio. O que os personagens estarão fazendo?‟, diz Ryan (BALSER; GARDNER, 2011, p. 29).

Licenças de reprodução adquiridas, o elenco se encaminha para os estúdios de gravação de áudio, com produtores musicais e professores de canto para aperfeiçoamento, tendo em vista que alguns dos atores nunca trabalhou no ramo das músicas. Por falar em licença de uso, grande parte dos artistas se recusou, de início, a liberar suas canções para a Glee, o que viria posteriormente a mudar: “Conforme (...) se tornava cada vez mais popular, adquirir os direitos foi ficando mais fácil, com artistas como Rihanna, Beyoncé e Madonna oferecendo catálogos por valores reduzidos de licença” (BALSER; GARDNER, 2011, p. 30).

A escolha da trilha para o musical deve ser eclética, porém conhecida, seja por grande parte da população, seja por um grupo de pessoas que gostem especificamente de um artista ou gênero musical. Assim, com todos estes detalhes, a produção se preocupa com detalhes que, em outros musicais, podem fazer com que haja uma quebra de veracidade, como as cenas de dança e canto, onde tradicionalmente neste gênero, há uma suspensão da incredulidade, como o fato das pessoas começarem a cantar e dançar ao acaso, suspendendo a narrativa. Como expõe Ryan Murphy, as regras para as apresentações dos alunos do New Directions:

[...] então teremos três regras: será feito (quando) estiverem no palco ensaiando ou se apresentando, ou (quando) estiverem na sala de ensaios, ou se estiverem em algum tipo de fantasia que tenha sido localizada no palco, e você consegue perceber que eles estavam ensaiando na cabeça deles, ou se apresentando no auditório o tempo todo‟. E em terceiro lugar, a música tem de combinar com a série tanto no estilo quanto no tema. Cada 53

episódio é centrado em um tema importante, e as músicas são selecionadas para reforçar esse tema, adicionando profundidade e complexidade às narrativas da série (BALSER; GARDNER, 2011, p. 31-32).

Assim, notória é a preocupação da equipe de produção e roteiristas quanto ao conteúdo que será transmitido em Glee. Toda a união entre narrativa, música e dança deve ser feita com cuidado nos detalhes que façam a diferença, quanto à continuidade, e que haja o acréscimo proposital de significado, agregando ao enredo o musical de forma proposital, verossímil e real, como se o personagem envolvido na cena pareça querer significar exatamente o exposto, ou apenas acrescente sentido para as ações que estão em torno daquele núcleo. Ou seja, a preocupação quanto ao que se irá significar da preparação do texto, escolha de repertório até os últimos momentos no set de gravação e edição.

3.3 Sobre a narrativa hipermidiática

“O digital fez algo que ninguém esperava: tornou a televisão muito mais narrativa. O roteiro para séries de televisão jamais foi tão narrativo e tão interligado.”, assim expôs Cannito (2010, p.18). As narrativas televisas durante certo tempo passaram a ser vistas como algo que, com a chegada da internet, se extinguiria pouco a pouco. Porém não é o que se percebe diante do quadro atual. Em poucos episódios, o seriado norte-americano Glee, do criador Ryan Murphy, alcançou grande destaque internacional de críticas e premiações.

De certa forma, Glee atingiu a todos os públicos envolvendo em seu roteiro uma trilha sonora forte, fazendo com que uma série do estilo musical reerguesse o mercado de narrativas televisivas por todo o mundo. De acordo com Cannito, no seu livro „A televisão na era digital: interatividade, convergência e novos modelos de negócio‟ (2010), as narrativas áudios-visuais têm crescido significativamente quanto ao aspecto de roteiro e história proposta, e seus fãs continuam a acompanhá-las ainda mais, pois a internet facilitou o acesso. 54

Além disso, Glee fez toda uma linha de produtos musicais, CDs, DVDs que alcançaram altas posições na listas de mais vendidos nos EUA e Reino Unido, como exposto anteriormente. Assim, na convergência de mídias que permeiam a série, por dar destaque também ao produto musical além da narrativa, configurando-se não um seriado multimidiático, mas hipermidiático. “Hipermídia permite aos usuários controlar seu próprio consumo de um produto de mídia, selecionando palavras- chave ou símbolos gráficos (os ícones)”, como explicam Straubhaar e LaRose (2004, p.23).

Desta maneira, a série de Murphy converge à mídia „música‟ com a narrativa, trabalhando-a de forma separada, para manusear, mexer de acordo com o roteiro. Mas ao mesmo tempo, a união dos sentidos, de signos visuais e musicais, faz com que esse trabalho seja inseparável, constituindo um único e singular signo. O trabalho de análise a seguir não utilizará das matrizes do pensamento e linguagem, descritas por Santaella, como visual, verbal e sonora, pelo objetivo principal desta descrição, que é analisar de que maneira o signo completo Glee, da extração de seu roteiro áudio-visual, com a criação detalhada de seus personagens, gera interpretações diversas em seus leitores, através dos fundamentos de Eco sobre o Leitor Modelo e seu horizonte de expectativas.

Porém, apenas para efeitos de elucidação, faz-se assim um parêntese para apenas algumas considerações teóricas sobre Hipermídia, e subseqüente definição de hipertexto. Necessário isto por ser um dos instrumentos que Ryan Murphy e sua equipe utilizam para dar melhor credibilidade ao trabalho, sendo crível, verossímil o suficiente e, primordialmente, na sua construção interna de seus personagens, relações extratextuais e referências à cultura pop, fazem deste um seriado um exemplo do que Eco, em sua teoria interpretativa semiótica, chamou de Leitor Modelo.

Sistemas de comunicação interativos, baseados na tecnologia hipermídia têm como característica principal a possibilidade de o consumo de produtos culturais ocorrer de forma não-linear. Todo sistema hipermídia organiza-se sob uma estrutura orientada à interconexão e integração do conhecimento: o autor deixa de ser o centro do processo e caminha-se para métodos de comunicação participativa, em que a matéria comunicativa torna-se apta para ser “vivenciada”. Desse modo, os 55

produtos culturais desenvolvidos sob a lógica da hipermidialidade estão próximos do que Umberto Eco (2001) denomina como “obra aberta”.

Vannevar Bush, na década de 1940, e Theodor H. Nelson, nos anos 1960, desenvolveram as bases da estruturação não-linear e da interconexão da informação, assuntos que constituem conceitos chaves para o desenvolvimento do conceito de interatividade na comunicação midiática.

Nelson (APUD CASTELLS, 2003, p. 28) define hipertexto como um conjunto de blocos de texto interconectados por nexos, de modo a formar diferentes itinerários para o usuário. Segundo o autor, a cultura mundial é um hipertexto implícito que a tecnologia informática permite descobrir, explicitar e objetivar. Nelson acrescenta, ainda, que no hipertexto a última palavra não existe, pois sempre há uma visão, uma idéia, uma interpretação nova.

Segundo George P. Landow (1995, p. 16), um dos principais pesquisadores da hipertextualidade, os nexos ou enlaces eletrônicos unem fragmentos de texto internos ou externos à obra, criando um texto experimentado pelo leitor de forma não-linear, ou seja, multilinear ou multi-sequencial.

Conceitualmente, o hipertexto pode utilizar suportes abertos (on-line) ou fechados (off-line), e, desse modo, interconectar informações multimidiáticas. Um sistema multimídia é constituído por um conjunto de informações representadas em múltiplas matrizes da linguagem (texto, som, imagem estática ou em movimento etc.) e, após sua codificação, registradas em suporte off-line como, por exemplo, o CD-ROM ou o DVD. A leitura de um texto em suporte multimídia é conceitualmente não-linear, ainda que o processo final de leitura quase sempre implique certa seqüencialidade no acesso do usuário às informações. Isto porque o número de caminhos possíveis de leitura está limitado ao previsto pelo autor da obra.

Assim, os sistemas hipermídia são baseados na soma das potencialidades do hipertexto e da multimídia, com aplicação em um suporte aberto. Atualmente, tais potencialidades convergem principalmente na Web, sendo absorvidas por todos os meios e dispositivos digitais. Esses sistemas permitem interconectar e integrar conjuntos de informação praticamente ilimitados, representados em múltiplas matrizes da linguagem, as quais podem estar interconectadas. Ou seja, um texto 56

verbal pode remeter a um som, ou uma imagem pode conectar-se a uma base de dados, por exemplo.

Roland Barthes postulou, no início dos anos 1970, um ideal de textualidade que fundamentou o conceito contemporâneo de hipertexto e, conseqüentemente, de hipermidialidade:

[...] penso em um texto formado por blocos de palavras (ou de imagens), eletronicamente unidos por múltiplos trajetos, correntes ou percursos dentro de uma textualidade aberta, eternamente inacabada. [...] um texto que precisa ser separado em blocos de significado antes desprezados por um processo de leitura limitada a percorrer a superfície textual, imperceptivelmente soldada pelo movimento das frases, o discurso fluido da narração e a naturalidade da linguagem convencional (BARTHES, 1992, p. 81).

Para Aristóteles, uma trama (o modo como são dispostos os elementos que formam a história) bem construída deve descrever uma seqüência fixa, um princípio e um final determinados, e uma magnitude definida da história. O conceito de hipermidialidade rompe com esse tipo de pensamento. Alguns teóricos apontam que a narrativa clássica (a estruturação da história numa trama linear) responde a condicionantes culturais. Assim, a construção temporal da realidade e, conseqüentemente, o auge das relações causais associam-se ao surgimento da tipografia.

Conforme foi afirmado anteriormente, os produtos hipermidiáticos referem-se a um paradigma ou modelo não-linear de estruturação da informação. Trata-se, portanto, de uma maneira contrária às formas clássicas de organizar e transmitir o conhecimento, de estruturar e narrar o texto. O conceito de hipermidialidade pressupõe um tipo de usuário com acesso seletivo aos conjuntos de informação dispostos em múltiplas linguagens interconectadas. Gosciola (2008, p. 142) aponta as seguintes vantagens dos modelos não lineares nos processos de veiculação e consumo de produtos culturais:

A pluralidade de conexões de um sistema hipermídia aumenta as possíveis interações entre os componentes que o formam; paralelamente à integração, produz-se um efeito contrário de isolamento que oferece aos fragmentos uma autonomia sustentada na não dependência de um “antes” e um “depois”; a 57

hipermídia tem a capacidade de produzir fenômenos em escalas heterogêneas de espaço e de tempo; diferentemente da narrativa linear, a hipermidialidade propicia ao usuário integrar-se de uma maneira bem mais intuitiva ao processo de interpretação, pois a estrutura é matéria significante por si mesma. Assim, por exemplo, podem ser produzidas informações de relações semânticas, causais, espaciais ou temporais entre os elementos que a formam; a estrutura e as relações estabelecidas a partir da lógica da hipermidialidade se aproximam do modo como se organizam e interconectam os neurônios humanos para desenvolver processos cognitivos.

3.4 Os losers estereótipos hipertextuais

O composto de personagens que envolvem esta narrativa televisa norte-americana é uma dos mais ricos e surpreendentes dos últimos tempos. Glee apresenta uma grande variedade de temas, devido a esta pluralidade de papéis que permeiam a trama, que vão desde bullying, aceitação, triângulos amorosos, acessibilidade de deficientes físicos, homossexualismo e homossexualidade, até convívio e inserção com a síndrome de Down, solução para doentes com transtorno obsessivo compulsivo, racismo, inclusão social entre outros. A vasta gama de assuntos é apresentada aos poucos, ao mesmo passo em que são conhecidos melhores os próprios integrantes da escola William McKingley, quando o enlace dado ao episódio faz referência ou envolve particularmente um deles.

Desta maneira, o número elevado de atores no elenco não faz com que a série permeie na superficialidade com que desenvolve as histórias de cada um. Pelo contrário, faz assim uma oportunidade de cada personagem de destacar no momento certo da narrativa, elevando os que pareceriam coadjuvantes ou meros figurantes ao nível de protagonistas, de personagens principais, devido ao enfoque dado pelos roteiristas naquele contexto de episódios e no desenlace da história. 58

Neste momento do trabalho, levantam-se algumas das características dos personagens „primários‟ da série, bem como algumas de suas apresentações, conseguindo unir e destacar, desta forma, como exposto anteriormente, a linearidade narrativa com o cunho emotivo que a música traz, levando-se em consideração a construção deste elenco e seus desdobramentos quanto ao roteiro de Glee. É necessário salientar que, para o presente trabalho, o material de estudo não será especificamente a história da série, em seu teor textual, mas sim o todo, da união da narrativa, da música, das inferências e referências que são feitas, ou seja, tomando-se o produto final que chega aos telespectadores como signo único e primordial, não analiticamente desenvolvendo determinados pontos ou matrizes da linguagem, como em Santaella, verbal, sonora e visual. Desta maneira, toma-se como análise não apenas a narrativa ou a seqüência de cenas, mas o próprio roteiro, que inclui tanto a história, como a inserção de músicas e descrição de efeitos de câmera e edição.

Com o enfoque nos losers (perdedores), Glee apostou na descrição de seus personagens de forma estereotipada, já que permite assim uma melhor identificação do público por familiaridade, por encontrar algum ponto em comum com o descrito. Um grupo de jovens e adolescentes de Ohio, ou de qualquer outro lugar do mundo, podem não se parecer tanto com os alunos do Glee Club, porém, como afirma Freire Filho (2005):

o conceito de estereótipo refere-se a uma forma necessária de se organizar as informações recebidas e criar uma sensação de ordem. Entretanto, tal significado pressupõe que o estereótipo é equivalente a outros padrões mais amplos de tipificação e representação – necessários para que estruturemos e interpretemos experiências, eventos e objetos – e minimiza os efeitos de uma palavra que pode indicar diferentes formas de preconceito e idéias demasiadamente rasas (FREIRE FILHO, 2005, p. 18).

Assim, tipificando um grupo de estudantes, a série pode se valer ainda mais de seu objetivo em criar um retrato sarcástico do ambiente escolar, podendo chegar mais facilmente na absorção de informação pelos telespectadores. Este processo de tornar-se estereótipo nada mais é que o processo de cognição, já descrito acima, onde para melhor compreensão do material composto, transforma-o em um único signo, dotado apenas de suas qualidades, o ícone. 59

A ampla circulação de imagens, idéias e representações estereotipadas é uma forte característica de grande parte das séries juvenis norte-americanas lançadas atualmente. Mesmo que a utilização de estereótipos seja a prática corrente em muitas destas produções, o adicional de representações através de estratégias como a sátira, a ironia, o exagero e a inversão de paradigmas também é praticado. Estes elementos e seu uso estão presentes em toda a série Glee, fazendo assim da narrativa audiovisual uma metalinguagem dos seus próprios clichês: da líder de torcida bonita e grávida; do cadeirante nerd que nunca teve relacionamento amoroso; da animadora de torcida loira e burra; da negra gorda que sempre está à deriva; da vilã egocêntrica e individualista; da asiática com atitudes e tendências do Ocidente.

Esta estereotipação funciona então em uma espécie de complemento da própria narrativa, havendo assim uma flexibilidade quanto a essa representação icônica dentro da série, o que se dá primordialmente pelo enredo, por se tratar de jovens, sempre em constantes mudanças, mas que encontra respaldo no ameno trato que a produção dá ao programa, como edição, montagem de cenas e, logicamente, à presença da música. Nota-se isto pela matriz musical possuir esta vertente mais emocional, no seu teor significativo, o que produz um efeito mais leve no telespectador quando este presencia, no seriado, uma cena de tensão.

O mesmo ocorre com a construção de seus personagens, ainda mais quando se fala de estereótipos. Exemplo disto em Glee é a personagem Rachel Berry, interpretada por Lea Michele, que é a própria protagonista da história, a mocinha inteligente, doce e romântica, imagem que normalmente é reconhecível por entre outras narrativas, se tornando assim um clichê, um estereótipo. Porém, Berry para alcançar seus objetivos, que é se tornar uma cantora da Broadway e ficar com o garoto mais popular do colégio, não mede esforços, mostrando um lado articuloso, egoísta e inconseqüente. Além disso, Rachel não é bem vista por entre seus colegas do coral, exatamente pela união de suas qualidades, o que a incomoda pelo fato de sempre sua liderança no New Directions estar ameaçada.

Criada por um casal de gays, Rachel tem como sonho participar de musicais da Broadway, e se auto-referencia como uma estrela, “as estrelas são o meu tipo de coisa [...] é uma metáfora, e as metáforas são importantes. Minhas estrelas douradas são uma metáfora para eu ser uma estrela", descreve a mesma no 60

episódio piloto da série, no dia 19 de maio de 2009. Por ser desta maneira, Rachel não possui muitos amigos no McKingley High, dividindo alguns dos seus poucos momentos com Kurt Hummel e Mercedes Jones, além do seu par romântico, o capitão do time de futebol americano Finn Hudson. Além disso, Rachel Berry possui, pelo menos, um solo, um destaque musical, em cada episódio da série, o que a torna realmente a líder do Glee Club.

Sendo uma versão de Rachel masculina, porém com roupas de grifes e homossexual, Kurt Elizabeth Hummel, interpretado por Chris Colfer, é o único gay assumido da escola onde a narrativa se desdobra. Órfão de mãe e com uma delicada maneira de agir e se portar, Hummel é uma das mais fortes vozes do coral e é alvo de bullying e preconceitos durante toda a série, principalmente por Dave Karofsky, sendo até ameaçado de morte pelo próprio. Após descobrir o porquê da extrema violência por parte de Karofsky, que tem dúvidas em cerca a sua sexualidade também, Kurt se transfere de colégio, conhece e os dois protagonizam o segundo beijo gay da série, sendo o primeiro entre a vítima e o agressor de bullying, citado acima. Kurt é doce, sincero, luta bravamente por seus ideais, sendo apenas impedido por conta do preconceito dos demais, enfrentado com ajuda de seu pai Burt que reconhece a homossexualidade no filho e o aceita. O sonho de Kurt é cantar na Broadway, como a amiga Rachel Berry.

No New Directions, tendo em vista toda a narrativa, os personagens Rachel Berry e Kurt Hummel cantaram grande parte das canções de musicais da Broadway, como de “My Fair Lady”, “Fame”, “Funny Girl” e “Cabaret”, além dos clássicos nas vozes de Liza Minelli, Celine Dion e Barbra Streisand. Nota-se a semelhança quanto à seleção de músicas para ambos os personagens, que destoam quanto à qualidade nas performances do restante dos integrantes do Glee Club, sendo as duas vozes que realmente se assemelham a estes exemplos tanto pelo estilo que cantam quanto pela sua construção de personagem, notando-se uma filiação mais específica entre as suas qualidades, linearmente descritas pela própria narrativa, com a presença de referências externas ao texto, da cultura, da música, caracterizando uma atividade hipertextual no centro criativo do seriado.

Nota-se, então, não apenas uma construção da narrativa com toques musicais, ou seja, havendo suspensão da história para assim entrar o conteúdo musical, mas sim em uma construção que seleciona tanto o discurso quanto a referência anterior e 61

posterior, como expõe Barthes, elementos “unidos por múltiplos trajetos, correntes ou percursos dentro de uma textualidade aberta, eternamente inacabada” (1992, p. 81). Dessa forma, Glee não se prende apenas ao meio textual, somente à letra da música escolhida para entrar naquele contexto, mas sim a todo emaranhado de informações que esta pode trazer, como a personalidade do cantor original, momento histórico inter correlacionado, ou seja, trazendo o perfil icônico da canção escolhida, equiparando-se aos personagens da trama. O que leva-se a concluir que a incorporação de canções em musicais nada mais é que um processo de diálogo, de intertextualidade, entre a referência e a representação, salvas ocasiões onde utilizam-se de músicas originais, próprias para compor a obra. Melhor exemplo para a hipertextualidade em Glee, que permeia todos os meios de significação possíveis da série, é a personagem vivida por , Brittany Susan Pierce. Os telespectadores apenas conheceram a história da ex líder de torcida Brittany no começo da segunda temporada, ao ar em 2010, pois inicialmente a atriz não participava do elenco regular da série, sendo adicionada posteriormente. Ótima dançarina e destaque no colégio, ao ingressar no coral, faz amizade com os losers por não ser muito inteligente e descobrir, lidando de uma maneira até ingênua, a sua bissexualidade. Inicialmente, entrou para o Clube do Coral com o objetivo de espioná-los para a vilã , capitã das líderes, porém desiste e começa um relacionamento com o nerd paraplégico Artie Abrams (Kevin McHale), mesmo amando a também animadora de torcida, (). Sua primeira música foi executada apenas no 24º episódio do seriado, durante a segunda temporada.

Uma personagem bem elaborada e que poderia ser uma das mais pesadas da série, em termos de drama, mas é apresentada de forma cômica e leve, que, de início, era despretensiosa quanto aos seus rumos na narrativa. Brittany apenas começou a ser melhor trabalhada na segunda temporada, quando os criadores adicionaram seu sobrenome à trama, já que sua presença não era regular na série, exatamente no segundo episódio, chamando-a de S. Pierce. Da união, forma-se a referência direta ao sobrenome da cantora pop contemporânea, Britney Spears, inspiração para a personalidade e qualidades da personagem.

Além disso, grande parte das conhecidas frases na mídia norte-americana, que chegam através de vídeos no Youtube a abranger todo o mundo nos dias de hoje, 62

como bordões „It’s Britney, Bitch‟ (É a Britney, vadia), „Is this real life?‟ (Essa é a realidade?) são feitas em relação a personagem, fazendo “O New York Daily News até a chamou de „arma secreta de Glee‟” (BALSER & GARDNER, 2011, p. 61). O sucesso da personagem e de toda a sua construção hipertextual pode ser comprovada pela audiência do episódio „Britney/Brittany‟, ao ar no dia 28 de setembro de 2010, com 13.51 milhões de telespectadores na América (dados extraídos do Wikipedia), com participação especial da própria artista pop e influência, Britney Spears. Nota-se assim o poder hipertextual, dialógico da construção dos personagens em Glee, que permeiam todos os níveis de significação possíveis da série, tanto no campo textual - da união da letra da música e a narrativa; no campo das qualidades - como o perfil icônico que a canção representa e também das referências internas do seu conteúdo; e no campo externo – das inferências que o externo faz na série. Este cenário da produção de sentido, da semiose em Glee, já se pode destacar assim a tríade estabelecida por Peirce, primeiridade, secundidade e terceiridade.

Assim, neste processo de construção de sentido, ou seja, para melhor qualificar os personagens de Glee, dando aspectos mais reais, que possam ser melhor absorvidos pelos espectadores devida a proximidade icônica e estereotipada, novas construções interagem ou dialogam com as anteriores, impregnadas no contexto sócio-histórico-ideológico, as quais constituem um acervo dos sistemas de referências, o que correspondem ao universo cognitivo e aos modelos mentais, necessários para dar sentido ao mundo. Ainda cabe-se salientar que esta ação interpretativa não depende apenas de um saber prévio destes recursos disponíveis, mas de operações de construção de seus novos sentidos no processo comunicativo, o que em outras palavras seria readequar aquele conteúdo significativo e orientá-lo de uma determinada maneira que resulte na interpretação total, e não apenas na noção de uma possível hipertextualidade ou dialogismo.

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3.5 O signo Mercedes Jones, a quase-líder

Como demonstrados anteriormente, com explicação teórica, o conteúdo hipermidiático/dialógico, ou os seus potenciais, em Glee, fazem uma reconstrução no que centra as qualidades em referências externas à narrativa. A presença da música, do texto, do visual, das referências internas e externas, da criação e incorporação de informação e das inferências de outras mídias, como a internet, faz com que a série seja rica quando se fala de uma obra aberta a interpretações, tendo em vista esse caráter pluralista no próprio desenvolvimento da história e do roteiro adaptado à televisão, criando uma margem de expectativas, tanto de consumo, como de reações, medidas através dos rankings de audiência, de compra etc.

Com essa assertiva, pode-se afirmar que Glee, através de seu caráter dialógico, necessário na construção desta narrativa hipermidiática, transforma ícones ou referências da cultura pop mundial em signos igualmente qualitativos dentro da própria história. Este trabalho de significação apenas é possível pelo hábito criado pelos roteiristas e escritores do seriado nos telespectadores, ou seja, pelos preceitos semióticos, apenas se dá todo significado à série através do costume interpretativo que os leitores possuem dela, da forma com que os autores disponibilizam os signos e sua contínua retomada, para melhor absorção, percepção e cognição.

“A natureza de um signo é como a da memória, que recebe as transmissões da memória passada e transfere parte dela para a memória futura” (NÖTH, 2003, p. 140). Exemplo disso serão as cenas consideradas a seguir, com enfoque na construção da personagem Mercedes Jones, vivida por , onde a teoria exposta da constituição do signo de Peirce, da ciência cognitiva e dos conceitos de Eco sobre a semiótica interpretativa será utilizada como instrumentos de análise, derivando na ratificação deste potencial hipertextual da série de Ryan Murphy.

Mercedes Jones, na série Glee, é uma personagem negra, gorda, que sonha em ser famosa pelo seu talento musical, sendo assim a típica garota sonhadora em busca de se tornar uma (concepção de grande ícone da música e da cultura pop), se portando como uma e exigindo o mesmo tipo de reconhecimento. Com um potente vocal, Mercedes sempre foi deixada de lado nas escolhas para solos no New 64

Directions, sendo Rachel Berry a escolha preferida do diretor Will Schuester. O fato sempre a revolta, por ela ser, como auto refere-se no episódio Piloto da série, “uma Beyoncè, e não uma Kelly Rowland”, fazendo referência assim ao grupo de R&B, vendedor de mais de 60 milhões de cópias de discos, Destiny‟s Child, fundado em 1997, com última formação composta por Beyoncé Knowles, Kelly Rowland e Michelle Williams (dados extraídos do Wikipedia).

A rebeldia de Mercedes, a hostilidade com a qual ela impõe seu talento, vem pela falta de oportunidade dada a ela de liderar o clube do coral, já que a amiga Rachel sempre consegue o posto de comando, assemelhando-se a situação com o destaque que Beyoncé sempre possuiu diante às outras integrantes. Assim, a personagem interpretada por Amber Riley nunca quis estar como back vocal e, deste modo, para impor respeito, faz uso de sua arma principal: seu talento evidente para a música. É assim que Mercedes começa a série, na estréia dia 19 de maio de 2009, cantando a música “Respect” (Respeito, em inglês), originalmente produzida por Otis Redding, em 1965, mas mais conhecida na cantora de Soul/R&B, Aretha Franklin, em 1967.

Nota-se, assim, os seus primeiros traços que, já no primeiro episódio, faz uso da expressão musical para interferir na narrativa, e a forma com que o autor deixa-a pronta para que essa inserção de conteúdo seja compreensível, mesmo de maneira indireta, com o trabalho de entrelaçamento de discursos da personagem. Mercedes, desde o início, mostrou que gostaria de ter destaque em um grupo, que fosse valorizado o seu talento, o que não acontece, pois é colocada em segundo plano, atrás da sua amiga e concorrente Rachel Berry. Justifica-se, então, a escolha desta personagem para análise neste estudo, já que seus discursos, musical e verbal, estão em consonância desde a estréia da série, sendo assim, construída previamente e desenvolvida, de acordo com os preceitos semióticos que se pretendem explicitar na obra em questão.

Mercedes assim é um estereótipo da negra, gorda, com talento, porém sem valorização. Para melhor exposição deste conceito da união do sonoro com o textual, notório em obras do estilo musical, extrai-se uma das cenas do 13º episódio da primeira temporada de Glee, „‟. Neste episódio, os integrantes do coral devem escolher, em reunião, a lista de canções que eles apresentarão na competição das seccionais, onde Rachel toma a frente (Figura 01) e resolve fazer 65

um solo. Mercedes a interrompe e a questiona (Figura 2), novamente utilizando o argumento que o seu talento é tão bom quanto da amiga, cantando “And I Am Telling You I'm Not Going”, do musical da Broadway, Dreamgirls, de 1981.

(Figura 1: Rachel toma a frente) (Figura 2: Mercedes questiona Rachel)

Primeiramente, deve-se destacar a edição e montagem realizada para contextualização e melhor mobilidade da matéria significativa, orientando-a de acordo com o enfoque que lhe é necessário. Claro exemplo é dessa orientação do discurso, levando-se em consideração que o teor original da música não aborda a determinação de se alcançar o objetivo, nem a promessa de que todos irão gostar do desempenho de Mercedes, como pode ser visto, com as ilustrações recorrentes à cena (o mesmo trecho encontra-se na íntegra no CD, em anexo):

(Figuras 3 e 4: Mercedes canta And I Am Telling You I’m Not Going)

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“And I am telling you

I’m not going

You're the best man I'll ever know

There's no way I can ever go

No, no, there's no way

No, no, no, no way I'm living without you

I’m not living without you

I don’t wanna be free

I’m staying

I’m staying

And you, and you... You're gonna love me

Tear down the mountains

Yell, scream, and shout like you can say what you want

I’m not walking out

Stop all the rivers, push, strike, and kill

I’m not gonna leave you

There's no way I will

And I am telling you

I’m not going

Oh, Im not living without you, not living without you

I dont wanna be free

Im staying, Im staying

And you, and you, and you

You're gonna love me 67

Love me... Love me... Love me”10

(Figura 5: Integrantes do coral aplaudem Mercedes pela apresentação)

A música „And I’m Telling You I’m Not Going‟ é original do musical Dreamgirls, onde em seu contexto, é cantada pela personagem Effie White, cantora iniciante de R&B, de um trio de garotas ficctício, The Dreams, ao seu agenciador e par romântico Curtis Taylor Jr., devido ao fim do relacionamento profissional e sentimental entre ambos. “A letra de „And I Am Telling You I'm Not Going‟, muitas vezes considerada a música do show, descreve o amor de Effie por Curtis, ambos fortemente dedicados e desafiadores. Ela se recusa que Curtis a deixe para trás, e ousadamente proclama- lhe: „Eu vou ficar... E você vai me amar‟” (dados extraídos do Wikipedia). Esta música foi originalmente interpretada por Jennifer Holliday, em 1981, sendo regravada na adaptação do musical para o cinema com , em 2006, ganhadora do Oscar pelo papel, e sua versão tornou-se a música número 73 das mais compradas no ano de 2007, de acordo com a Billboard americana. (Dados extraídos do Wikipedia).

10 Tradução nossa, a partir de texto original em inglês: “E eu estou dizendo a você.../ Que não vou!/ Você é o melhor homem/ que eu já conheci.../ Não há como eu ir embora.../ Não, não há como! Não, não, não há/ como viver sem você!/ Eu não vou viver /sem você! / Eu não quero ser livre! / Eu vou ficar! /Eu vou ficar!! / E você, e você... Você vai me amar! / Derrube as montanhas! / Grite, grite à vontade/ Você pode dizer/o que quiser/Eu não vou embora! /Pare todos os rios/Empurre, derrube e mate! /Eu não te deixarei... /De modo algum/farei isso... /E eu estou... /dizendo a você... /que não vou embora! /Não há como/viver sem você! /Eu não vou viver sem você! /Eu não quero ser livre! /Eu vou ficar... eu vou ficar!! /E você... E você... E você... / Vocês vão me amar! / Me ame... /Me ame!! / Me... Amem!” 68

Fora de seu contexto original, a música em si parece uma declaração de amor, onde o eu-lírico faz promessas de conseguir mostrar o seu amor, e que deseja estar preso àquele relacionamento. Sem um enfoque tão romântico, a série Glee, através de sua personagem Mercedes, retoma a canção e, em um processo de re-significação, acrescenta novo sentido para a música: a de batalhar por um sonho. Esta orientação para determinada interpretação é o que Peirce, em sua teoria semiótica, chamou de hábito, uso, costume, “uma tendência certa de comporta-se de maneira similar sob circunstâncias similares no futuro” (PEIRCE, CP, 5.487). Assim, através desta habilidade do autor em direcionar o material significante para sua melhor compreensão para o contexto, o leitor começa a habituar-se a processos de formação de sentido parecidos.

No caso, a orientação dada foi em relação da junção do texto musical com o texto narrativo, proporcionando um discurso mais firme e emotivo, objetivo central de uma obra como esta. Além disso, pode-se notar a edição que infere também sobre este aspecto, dando atenção para cenas em que a palavra you (você, em inglês), no começo da expressão „you gonna love me‟ (você vai me amar) era destacada através da gesticulação da cantora e dos closes – plano cinematográfico que designa a filmagem apenas de um ponto específico (Figuras 06 e 07), no caso, os rosto - dos outros integrantes do coral, fazendo compreender que a música não se refere a algo interno à personagem, mas sim externo, e que depende da aprovação e aceitação dos outros.

(Figuras 06 e 07: Mercedes, ao cantar, aponta para os outros integrantes, envolvendo-os com a gesticulação e a letra da música)

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Aplaudida de pé, Mercedes não obteve a mesma sorte que Effie White. Em Dreamgirls, a personagem, vivida na adaptação para o cinema por Jennifer Hudson, buscava o mesmo reconhecimento por seu talento, mesmo estando na posição de líder no trio formado por Deena Jones e Lorrell Robinson. Ao se destacarem no cenário da música em 1962, ficticiamente, o grupo The Dreams começou a ser agenciado por Curtis Taylor Jr., inicialmente era o envolvimento romântico de Effie, que começa a se relacionar com a outra integrante do grupo, Deena Jones, vivida por Beyoncé no cinema.

Effie perde, assim, seu destaque no grupo, mesmo sendo evidente para todos o seu potencial maior para a música, alegado pelo próprio amado a falta de uma roupagem mais nova e bonita à frente das The Dreams. Posta em segundo plano, em todos os sentidos, Effie é expulsa do grupo, indo criar sua filha, fruto da relação entre ela e o ex-agenciador, Taylor Jr., enquanto ela é substituída do grupo, sendo a partir de então nomeado „Deena Jones and the Dreams‟. Da mesma forma, Mercedes é impedida de tomar a frente do Glee club, sendo sempre escolhida a amiga e também concorrente, Rachel, mesmo havendo um equilíbrio de talento, como exposto na própria série.

Desta maneira, através da música „And I Am Telling You I'm Not Going‟, o autor propõe, pela natureza deste musical também, um dialogismo entre a peça da Broadway com a personagem Mercedes de Glee, inferindo-a significado semelhante àquele reconhecido em Effie White, transformando-a assim em um ícone, remetendo-se à busca pela liderança e ao reconhecimento de um talento. Desta maneira, Ryan Murphy já utiliza de um signo, Effie, para construir sua personagem, Mercedes, o que apenas será perceptível ao leitor que estiver além de habituado com estes tipos de construção, mas também atualizado quanto ao signo de referência, ou seja, que seu conhecimento de mundo alcance o horizonte de expectativas que o autor possui da obra, em termos da semiótica de Eco.

Portanto, a série Glee utiliza-se de referências da cultura pop, do cinema, da música em geral, para construir a narrativa, as ligações, as representações que lhe são necessárias, configurando-se assim um efeito hipermidiático, como expõe Santaella: “(...) (A hipermídia) não se limita à informação escrita, mas permite acrescentar aos textos não apenas os mais diversos grafismos, mas também todas as espécies de 70

elementos audiovisuais. Assim, o termo hiper se reporta à estrutura complexa alienar da informação“ (SANTAELLA, 2009, p. 24).

Antes do início da sua apresentação em „Secctionals‟, no 13º episódio da primeira temporada, em 2009, Mercedes diz: “You know you always end up stealing the spotlight!” (Você sabe que você sempre termina roubando o holofote, em inglês), referindo-se à veroz necessidade de Rachel em chamar as atenções para si. Depois de 33 episódios, ou seja, no segundo programa da terceira temporada, em 2011, a mesma briga pelo destaque musical entre as duas faz Mercedes retomar exatamente o seu discurso em „Secctionals‟.

Após duas temporadas, Glee manteve em sua estrutura e enredo as características fundamentais de seus personagens, acrescentando a cada episódio alguma informação referente àquele trabalhado. Durante quase duas temporadas, Mercedes não conseguiu ainda seu papel de destaque, sendo até posta de lado na própria narrativa, ganhando algumas apresentações, mas ainda como back vocal. Se tornar a líder do New Directions não foi uma realidade alcançada por Mercedes, que então se revoltou com a atitude de todos em preservarem Rachel na posição de principal, tanto no coral quanto nos projetos de música paralelos na escola McKingley.

No terceiro episódio da terceira temporada de Glee, chamado „Asian F‟, Mercedes se revolta contra a costumeira posição que Rachel ocupa como líder do coral, além de se tornar oficialmente sua rival, questionando os valores que o professor Will Schuester propaga e ainda sendo agressiva com os demais integrantes. O curioso aqui é o fato de dois pontos deste destaque que Mercedes tem, tanto na primeira quanto na terceira temporada, são referidos à palavra „spotlight‟ ou à expressão americana „to steal the spotlight‟, que em português seria „roubar o holofote‟, „roubar a cena‟, „desviar as atenções‟, conotativamente. Para, então, análise, segue a cena do episódio número 47 do seriado, com Mercedes Jones cantando „Spotlight‟, e respectiva letra da música (trecho também se encontra no CD, em anexo):

“Are you a man who loves and cherishes and cares for me?

Is that true? Is that true? Is that true?

Are you a guard in a prison maximum security? 71

Is that true? Is that true? Is that true?

Do we stay all the time ‘cuz you want me to yourself?

Is that true? Is that true? Is that true?

Or am I locked away had a feeling that i'd find someone else

Is that true? Is that true? Is that true?

Well, I don't like living under your spotlight

Maybe if you treat me right

You won't have to worry

Oh, you oughta be ashamed of yourself

What the hell do you think you're doing?

Loving me, loving me… So wrong

Baby, all is try (Try)

To show you that you're mine (Mine)

One and only guy (Only guy)

No matter who may come along

Open your eyes ‘cuz baby, I don't lie

Well, I don't like living under your spotlight

Just because you think I might

Find somebody worthy

Well, I don't like living under your spotlight

Baby, if you treat me right

You won't have to worry 72

‘Cuz I don’t like”11

Assim, para então análise semiótica de Peirce toma-se como signo a Mercedes Jones, na cena acima, cantando „Spotlight‟, para assim finalizar o trabalho proposto e concluir com todos os conceitos elencados anteriormente. Com base na fenomenologia descrita por Peirce, a absorção de significado, a interpretação, se dá em três níveis do: a primeiridade, a secundidade e a terceiridade. Na cena, a primeiridade seria o sentimento imediato, da primeira impressão, ou seja, seria a percepção inicial de que a personagem Mercedes está cantando uma música que fala sobre um relacionamento entre duas pessoas, conseguindo alcançar mais a vertente emocional do intérprete, em outras palavras, sem a reflexão, posterior ao sentimento. Isto é dito tendo como fundamento a mesma aplicação desta tríade na no reconhecimento feito pela mente de uma nova informação, que reconhece três estágios para a tal: do sentimento, da comparação interna (volição) e da cognição, da experiência adquirida externamente, do hábito.

Assim, no que se refere à secundidade na cena proposta de Glee, seria da troca de informação entre a cena em questão e toda a realidade interna da obra, o que denota uma reflexão quanto ao assunto da série abordado para tal representação. Em suma, com o reconhecimento da história que envolve Mercedes Jones e a aplicação do seu discurso, seja musical ou meramente textual, cantando „Spotlight‟, o leitor faz as conexões entre o que está sendo pronunciado pela personagem na canção com a história de Mercedes, sempre à deriva, cedendo seu „holofote‟ para outra pessoa, cansando-se desta situação.

11 Tradução nossa, a partir de texto original em inglês: “Você é um homem ama, / alimenta e cuida de mim? / Isso é verdade, isso é verdade, isso é verdade? / Você é uma guarda na prisão/de segurança máxima? Isso é verdade, isso é verdade, isso é verdade? / Ficamos em casa o tempo todo/porque me quer pra você? / Isso é verdade, isso é verdade, isso é verdade? / Ou estou trancada porque posso/ ter vontade de encontrar outra pessoa? / Isso é verdade? Isso é verdade? Isso é verdade? / Pois bem, eu não gosto/de viver sob seu holofote/ Talvez se me tratar bem... / Você não terá que se preocupar! / Não! Garoto, deveria se envergonhar de você/ Que diabos acha que está fazendo? / Me amando... / Me amando... / tão errado! / Querido, tudo o que faço / é tentar... Para mostrar que você/é meu! Único homem... / Não importa/quem possa aparecer./ Abra seus olhos, / porque, querido, eu não gosto! / Porque eu não gosto/ De viver sob seu holofote! / Não, não! / Só porque acha que eu possa/encontrar alguém que valha a pena/ Não, não... /Eu não gosto! / De viver sob seu holofote/ Talvez se me tratar bem... /Me tratar bem... / Você nunca precise se preocupar/ Eu não gosto!” 73

Assim, quando ela expressa “Are you a man who loves and cherishes and cares for me?”, o leitor, em primeiridade, apenas capturará o conceito, a letra da música em primeiro plano, o sentimento que ela passa, linearmente. Porém, em secundidade, o intérprete conecta a história em volta de Mercedes e o que ela está cantando, unindo assim, também, a segunda matriz do pensamento, como referido em Santaella (2009), a visual. Os jogos de câmera, apontando que o discurso da personagem é direcionado a um determinado integrante do Glee Club, como a seguir:

“Are you a man who loves and cherishes and cares for me?

Is that true? Is that true? Is that true?

Are you a guard in a prison maximum security?

Is that true? Is that true? Is that true?

(Figura 08) (Figura 09)

(Figura 10) 74

Do we stay home all the time ‘cuz you want me to yourself?

Is that true? Is that true? Is that true?

Or am I locked away had a feeling that i'd find someone else

Is that true? Is that true? Is that true?”

Foco dado pela câmera com closes e zoom (aproximação) no Professor Will Schuester (Figura 08), sua relação próxima com Rachel Berry (Figura 09) e algumas vezes filmando as reações de Mercedes (Figura 10).

(Figura 11) (Figura 12)

“Well, I don't like living under your spotlight

Maybe if you treat me right

You won't have to worry”

Neste trecho, nota-se o movimento das câmeras em torno de Rachel (Figura 11) e Mercedes que canta diretamente para a colega de coral (Figura 12).

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(Figura 13)

“Oh, you oughta be ashamed of yourself

What the hell do you think you're doing?

Loving me, loving me… So wrong

Baby, all I do is try (Try)

To show you that you're mine (Mine)

One and only guy (Only guy)

No matter who may come along

Open your eyes ‘cuz baby, I don't lie”

Muda-se o ambiente da sala do coral para o palco de audição (Figura 13) das seletivas para o musical do colégio, onde Mercedes se apresenta, gesticula firmemente, impondo o reconhecimento que não lhe foi dado, apenas almejando tentar até conseguir seu objetivo. Nesta cena, algumas partes da música mostram a presença de seu namorado Marcus, que a impulsionou a assumir a liderança, sendo mais competitiva.

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(Figura 14) (Figura 15)

(Figura 16)

“Well, I don't like living under your spotlight

Just because you think I might

Find somebody worthy

Well, I don't like living under your spotlight

Baby, if you treat me right

You won't have to worry

‘Cuz I don’t like”

Nesta sequência final, Rachel surge nos bastidores (Figura 14), de braços cruzados, com ar preocupado, assistindo a apresentação da concorrente (Figura 15). Um jurado vibra com a apresentação de Mercedes, enquanto a mesma continua sendo assistida pela rival, que parece se assustar com a força apresentada por Jones e se 77

sentir, assim, ameaçada na posição de principal no musical da escola. No final, Mercedes é muito aplaudida (Figura 16).

Desta maneira, seguindo este simples roteiro, nota-se o caminho em que um intérprete faz quando se fala do nível da secundidade, que sugere a reflexão interna dos componentes da narrativa, do enlace dos personagens e suas referidas histórias. Já a terceiridade, como em Peirce, refere-se ao processo final interpretante, onde o leitor retoma conteúdos, signos, conhecimentos anteriormente adquiridos, para melhor absorção da informação. Este processo em Glee foi especificado anteriormente quando foi apresentada a cena em que Mercedes canta a música da Broadway, referindo-se assim à hipertextualidade do seriado. Uma obra hipermidiática, como é a produção de Ryan Murphy, sugere efeitos de terceiridade, já que neste nível estão as correlações inter e hipertextuais, ou seja, do conhecimento, das ligações, do hábito, do externo.

„Spotlight‟ foi lançada em 10 de junho de 2008, na voz de Jennifer Hudson, a mesma atriz que fez a adaptação para o cinema de Dreamgirls. A canção alcançou o primeiro lugar em vendas na categoria R&B do ano de 2008 na Billboard, além de conseguir o 24º lugar de vendas nos Estados Unidos da América, sendo indicada duas vezes ao Grammy, um dos maiores prêmios de música no mundo (Dados extraídos do Wikipedia). A mesma cantora que representou o papel de Effie White, referência feita no 13º episódio da primeira temporada, serve de diálogo novamente, mas desta vez a construção exige tanto conhecimento de mundo, que abranja essa informação sobre a atriz/cantora, quanto um prévio sobre a série, que possa compreender os signos já absorvidos e atualizá-los, ou retomar aqueles ainda não sorvidos por falta de material interpretativo e decodificá-los, então.

Deste modo, chega-se ao ponto em que se é feita necessária a descrição dos componentes de um signo, na visão de Peirce, para melhor averiguação do comportamento do signo „Mercedes canta Spotlight‟, e seu assim processo de formação de significado em um intérprete. Primeiramente, pela descrição peirceana, o signo era composto por um representamen, dois objetos e três interpretantes. O representamen é a própria representação, o reconhecimento à primeira vista, relativo ao físico, o que denota na cena de Glee, a própria personagem Mercedes cantando a música „Spotlight‟, sendo assim, é a parte material do signo em análise. 78

O objeto imediato, para Peirce, é “objeto dentro do signo”, onde dentro de Glee corresponde à própria estrutura do enredo, da narrativa, à própria Mercedes cantando, em sua relação interna com a história. Já objeto dinâmico, é a realidade que realiza a atribuição do signo à sua representação, “o que pela natureza das coisas, o signo não pode exprimir e só pode indicar, deixando para o intérprete descobri-lo por experiência colateral” (PEIRCE, CP, 8.314), o que na prática designa a correlação que há entre a personagem em análise com a do musical Dreamgirls, Effie White, ou seja, a música atribuída, „Spotlight‟ faz essa conexão, já que por ela há o reconhecimento desta proximidade, desta potencialidade de inter-relação dos textos. Se outra música fosse cantada por Mercedes, que não tivesse conexão alguma com Jennifer Hudson, Dreamgirls, ou que isso não fosse sugerido previamente no decorrer das temporadas, a mesma carga significativa não seria compreendida, devido à ausência deste „conector‟ de realidades.

Posteriormente, na desconstrução do signo por Peirce, tem-se os três tipos de interpretantes, tendo apenas um categorização interna subseqüente. O interpretante imediato, nesta concepção de semiótica, é o produto do intérprete em contato primário, instantâneo com o signo, neste caso, contato com o objeto imediato, que resultará em uma interpretação no nível textual, do discurso primário, da compreensão da união do que Mercedes e seu namorado conversavam antes do início da música, até nas suas falas ao final. Este nível da interpretação é o imediato, aquele que corresponde às primeiras impressões daquela leitura.

Em seguida, têm-se três categorias do interpretante dinâmico. O interpretante dinâmico emocional é o produto no intérprete de apenas qualidade sentimentais, designando na mente do leitor resultados com enfoque na emoção, como quando ao ver Mercedes cantar, de alguma maneira, seja através do seu potencial vocal, seja através da música que remete a algum sentimento, seja pela própria vontade evidente da personagem em querer ser líder, uma pessoa se emocione, chore, vibre, se anime com a sua apresentação. Este interpretante ao nível da emoção produz assim sentimentos, comoção em quem assiste Mercedes cantando.

Já o interpretante energético é aquele produz no leitor o anseio, a curiosidade, o incentivo a alguma ação. Na cena de Glee em análise, o interpretante dinâmico energético produziria no intérprete assim o incitamento a alguma ação referente à cena, como procurar a letra da música „Spotlight‟ na internet, conhecer melhor a 79

cantora original, partilhar daquela cena com os usuários de redes sociais, ou como apenas colocar a música novamente e querer cantar junto. Deste modo, o interpretante energético incita na pessoa uma ação referente aos seus objetos, ou apenas estimula uma curiosidade em relação a algum ponto não bem compreendido, ou algum signo não bem decodificado.

Por último, o interpretante dinâmico lógico da série são as considerações em seu teor racional, que induz conclusões em relação a pressuposições, argumentos e conclusões. Assim, Mercedes está incomodada, então canta uma música onde mostra mais seu descontentamento em dividir os „holofotes‟ com outra pessoa, logo ela está enfurecida, se colocando como rival de Rachel Berry. Através das suposições, pode-se chegar a uma conclusão lógica, racional, extraindo-se a sua argumentação inicial.

Por fim, tem-se o último interpretante, o final. Como define Santaella (2009): “é o efeito que o signo produziria em qualquer mente, se a semiose fosse levada suficiente longe” (2009, p. 49), ou seja, é o produto final interpretativo da união de todos os interpretantes, tanto imediatos como mediatos, aplicando em Glee, seria a idéia final de que Mercedes cantou „Spotlight‟ para expressar seu ressentimento diante a situação. Porém, neste último nível, é que ocorre a união das referências e inferências de outros signos, como a união do signo „Mercedes cantando „And I’m Telling You I’m Not Going‟, que refere-se diretamente à personagem Effie White, com o signo „Música Spotlight, originalmente cantada por Jennifer Hudson, atriz que viveu Effie White no cinema‟, e demais alusões externas ao signo, ou seja, fora do signo „Mercedes cantando em Glee‟ e sua construção narrativa.

Deste ponto, destaca-se o potencial do interpretante final em face do seu intérprete, ou como melhor, este último componente do signo de Peirce em relação ao conhecimento de mundo que o leitor possui, ou das suas diversas e limitadas possibilidades de interpretação, tendo em vista os preceitos de Santaella (2009), já expostos anteriormente: “cada um de nós, intérpretes particulares, apenas capazes de produzir interpretantes dinâmicos singulares, falíveis e provisórios, não estamos nunca em condições de dizer que um interpretante já tenha esgotado todas as possibilidades interpretativas de um signo, constituindo-se no seu interpretante final” (2009, p. 49). 80

Enfim, nota-se o processo da semiose ilimitada descrita por Peirce, mas melhor desenvolvida por Umberto Eco com auxílio da ciência cognitiva, onde a interpretação final de um texto apenas será realmente total ao ser atualizado, através do hábito incitado pelo autor em decodificar signos da mesma maneira; ou de uma nova referência lhe dada, fazendo com que sejam adicionados outros sentidos; ou da retomada de determinados signos não bem explorados, havendo assim criação de um novo significado ou evoluindo-se o anterior.

É o que ocorre em Glee. O Leitor Modelo, explicitado por Eco, que é nada mais que um horizonte de expectativas interpretativas do autor em relação ao leitor, possui, pelo seu caráter hipermidiático, diversos signos que o compõe, derivando em uma narrativa cheia de referências. Assim, o leitor modelo na série poderia ser aquele com visão de que a música „Spotlight‟ faz referência à atriz Jennifer Hudson, que por sua vez remete à personagem do musical Effie White, comparação qualitativa realizada pela própria Mercedes, no enredo. Desta maneira, traça-se a possível expectativa do autor Ryan Murphy em armar uma rede de informação complexa que una signos, que contenham outros, que por sua vez se conectam em mais outros e assim por diante, caracterizando nada mais que uma função hipertextual, e, por assim dizer, hipermidiática.

Aqui, destaca-se um ponto referente à escolha das músicas para a série. Na cena em análise, os produtores, roteiristas e autores poderiam inserir outras canções, com a mesma temática, até mais explícita do que a usada, porém a seleção da música não deveria ser casual, como expõe:

Nós vamos conhecer a história e a cena primeiro e normalmente sabemos: „Ah, a música que precisa entrar aqui é tal‟, explica Brad. Ryan concorda: primeiro vem a história, e as músicas vêm em segundo lugar (BALSER & GARDNER, 2011, p. 29).

Outra canção qualquer falaria melhor de resigno e busca pela atenção, porém foram escolhidas exatamente da mesma cantora, que está marcada na cultura do cinema e dos musicais com as qualidades da referida Mercedes, levando-se em consideração que durante toda a seqüência de episódios, Jones não obteve um solo em que cantasse como líder, mas sempre como alguém que quer conquistar esta posição. 81

Deste modo, e com as teorias da semiótica interpretativa de Eco, nota-se que a intencionalidade neste caso é mais importante que a causalidade, do fato, da coincidência pelo acaso. O conceito do leitor modelo da semiótica pressupõe intenção comunicativa, como desenvolvido por Eco, seqüencialmente: da intenção do autor; da intenção textual e de suas estruturas e correlações internas e; intenção do leitor, onde o destinatário faz as referências do texto com o seu conteúdo externo, tendo em vista suas crenças, cultura, necessidade. Assim, o leitor tem o papel de preencher os espaços em brancos intencionais, as lacunas significativas dos textos, descritas também pelo autor italiano, com o conhecimento de mundo que este possui.

É intencional a presença do signo Jennifer Hudson, através do signo „Mercedes cantando Spotlight‟, devido à necessidade em ativar o signo previamente absorvido pela cognição e transformado em modelo mental, como designa a ciência cognitiva. O modelo mental que faz inferência e é acessado pela memória para atualizar o signo em questão é, por exemplo, a apresentação anterior, na primeira temporada, de “And I’m Telling You I’m Not Going”; as falas da própria Mercedes quando auto refere-se como uma Beyoncé e não uma Kelly Rowland. Estes modelos mentais já absorvidos e compreendidos pela mente são acessados quando o intérprete depara- se com o novo signo, quando o mesmo possuir capacidade em potencial, ou seja, ter conhecimento para poder unir todas as informações, que de maneira econômica, são deixadas por entre a narrativa.

Para concluir, retoma-se então do fundamento de Eco, que reflete em toda esta aplicação prática sobre a série Glee, ou em qualquer outra obra. “Il testo è un meccanismo pigro (economico) che vive sul plusvalore di senso introdottovi dal destinatario, [...]. Un testo vuole che qualcuno lo aiuti a funzionare”12 (ECO, 1979, p. 52). Por fim, é necessário destacar esse caráter ativo que o leitor possui sobre o texto, atualizando os signos nele presentes ou retomando esquemas mentais já absorvidos, para assim reconhecer um nível de interpretação acima do imediato, mas também um horizonte de expectativas de um autor que deixa lacunas significativas durante a obra, para que haja a então cooperação comunicativa e,

12 Tradução nossa, a partir de publicação em italiano: “o texto é um mecanismo preguiçoso (econômico) que vive sobre os excedentes de sentido introduzidos pelo destinatário, [...]. Um texto quer que alguém o ajude a funcionar”. 82

assim, designando um processo de semiose ilimitada, pois cada intérprete compreenderá de modos diferentes, de acordo com o seu conhecimento e visão de mundo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desta maneira, nota-se em Glee toda a fenomenologia descrita de Peirce até Eco, passando pelas estruturas do signo, modelos mentais e cognição, semiótica interpretativa e leitor modelo, como propostos na parte teórica deste trabalho. Assim, em resumo, finaliza-se a aplicação prática na cena em questão da série Glee, retomando-se os preceitos e concluindo a análise.

A semiótica, assim, para Peirce, permeia todo o universo e convívio humano, e deve ser estudada por todos os interessados nas demais ciências, devido ao seu teor lógico. O filósofo americano defende assim um esquema quase matemático, para compreensão destes processos significativos, criando uma tricotomia e dividindo os tipos de signos. A base, então, do signo é uma relação tríadica entre três elementos, os quais no caso um deve ser do fenômeno da primeiridade, outro de secundidade e o último de terceiridade, sendo seus constituintes, o representamen, ou signo, o nome peirceano do “objeto perceptível” (PEIRCE, 1931-58, 2.230), que serve como signo para o receptor. O seu objeto, dividido em objeto imediato que, é o recorte específico, modo através do qual o seu objeto dinâmico, fora do signo, é referido, denotado, indicado ou sugerido, produzindo assim o terceiro elemento desta tríade, o interpretante.

De acordo com o efeito do signo sobre a mente do intérprete e em conformidade com seu sistema triádico, Peirce chegou em três classes maiores de interpretantes. O interpretante imediato, o interpretante mediato, e o interpretante final, este último está ligada ao processo comunicativo em sua totalidade, onde se é regulado através do hábito, ou seja, pela condução, continuidade, regularidade em que o intérprete está acostumado a decifrar toda a mensagem.

Como Peirce concluiu, o signo não é um processo comum, tendo em vista a própria semiose, que em sua definição, deduz esta circularidade dos eventos significativos, resultando todo interpretante a geração de sentido, que conseqüentemente pode acarretar reações, desde mentais a físicas, criando um ciclo ilimitado de hermenêutica. Isto para Eco, mais importante que o caminho traçado desde a semiose de Peirce até a ciência da cognição é o leitor, o intérprete, como protagonista no processo de criação e decodificação de significado. Se o signo 84

interpretante se torna material da cognição, sendo então cíclico, sempre retomado e reproduzido, levando-se em consideração o preceito de que “os interpretantes fazem surgir um signo mais desenvolvido e são auxiliados neste processo pelos vários modos de conhecimento possível”

Assim, o papel do emissor destas novas narrativas é conseguir manter uma estratégia, um jogo comunicativo, ou seja, é habituar o destinatário para decodificar a mensagem, o processo sígnico, de maneira satisfatória, até alcançar o nível de máximo de interpretação, aquele que reside no interpretante final, da tríade peirceana.

Em suma, uma semiose, um processo de comunicação, apenas será válida devido ao potencial interpretativo do destinatário e dos espaços em branco no texto contidos, ou seja, dos signos não visíveis, mas capazes de apreensão e compreensão, em face o conhecimento de mundo e cultura compartilhados pelos envolvidos. Um signo, mesmo quando decifrado e armazenado pela mente, está em constante atualização e ação, tendo em vista o princípio da semiose ilimitada, do processo de comunicação que pode ser pausado, mas nunca finalizado. É, resumidamente, com estes alicerces teóricos que será apresentada a análise da peça, com o objetivo de analisar a estrutura do signo empregado e sua interpretação final junto ao referente Leitor Modelo.

Assim, depois dos postulados teóricos, foi proposta uma descrição dos fenômenos de criação de sentido realizados na obra televisa Glee, seja de maneira primária, através da própria história; seja de maneira secundária, evocando o conhecimento do recorte realizado, em consonância com o objeto representado e sua materialidade; ou de maneira terciária, através das experiências já absorvidas dos leitores-telespectadores e do hábito de encontrar e extrair significado, proposto pelos criadores e produtores do seriado, sendo seu produto interpretativo variante de acordo com o interpretante e seu conhecimento de mundo.

Por fim, foi destacado através das cenas em questão, mais precisamente no segundo estudo, a tipologia utilizada pelos estudiosos e pesquisadores acima citados serviu assim para enriquecer o entendimento da atuação do signo sobre um leitor, em suas diversas hipóteses. Assim, os criadores da série Glee, dentre eles Ryan Murphy, visam uma interpretação total de seu enredo, que, nos fundamentos 85

hipertextuais, auxilia tanto na retomada como na criação de material significativa, reconhecendo assim o Leitor Modelo e os níveis de interpretação de uma obra ou signo, fazendo da série em análise um grande emaranhado de informações externas e internas ao roteiro, caracterizando uma narrativa hipermidiática.

Este é um esboço inicial de uma análise mais completa e complexa, porém serve de base para possível desenvolvimento de estudos, nas mais diversas linhas teóricas e abordagens, como o estudo mais minucioso entre a dinâmica semiótica interpretativa e a teoria da recepção; o mapeamento do consumo, tendo em vista o caráter hipermidiático da série; a descrição detalhada do processo de construção da linguagem e do pensamento, em Glee, levando-se em consideração as matrizes sonora, visual e verbal, descritas por Santaella; a construção dos personagens em face da cultura pop e as demais referências realizadas. O que torna o presente trabalho apenas início de uma pesquisa mais detalhada e específica, tendo em vista o caráter abrangente, intertextual, metalingüístico da semiótica.

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