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Denise Rollemberg Doutora em História Social pela UFF. Professora do Departamento de História da UFF.

Carlos Marighela e Memórias de dois revolucionários

O texto propõe a discussão das histórias de The text intends to discuss the biographies of vida de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, os Carlos Marighella e Carlos Lamarca, two major dois revolucionários de maior expressão na revolutionaries in the Brazilian armed struggle, luta armada, no Brasil, do final da década de in the late 1960s e early 1970s; the memories 1960 e início dos anos 1970; das memórias elaborated by the left organization and the construídas nas esquerdas e na direita militar; right wing militaries; the oblivion and silence do esquecimento e do silêncio numa sociedade in a society unaware of these constructions, as it alheia a essas construções, como alheia esteve às was unaware of these ideas and practices while suas ideias e práticas enquanto Marighella e Marighella and Lamarca viveram. Lamarca lived. Palavras-chave: Memória; opinião; Keywords: Memory; opinion; biography; biografia; luta armada; ditadura. armed struggle; dictatorship

“Não se pode negar que há incoerências dos confins um estilo próprio a uma sociais e que suscita a

época, um habitus mudança social” resultante de experiências (Giovanni Levi)1 comuns e reiteradas, assim como há em cada época um estilo próprio de um grupo. arlos Marighella e Carlos

Mas para todo indivíduo Lamarca, os dois dirigentes re existe também uma C volucionários de maior expres- considerável margem de são da luta armada, no Brasil do final da liberdade que se origina década de 1960 e início dos anos 1970, precisamente das tiveram trajetórias muito diferentes.

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Marighella tornou-se militante do Partido busca da libertação. Libertação da mi- Comunista aos dezoito anos. Viveu um séria, da pobreza que Lamarca conhecia. século marcado pelo confronto socialis- Já como capitão, tornou-se revolucioná- mo versus capitalismo, pelos fascismos rio, comunista, o capitão da guerrilha. e nazismo, a ditadura de Vargas, o Culturas políticas e sensibilidades diver- stalinismo, a II Guerra Mundial, a vitória sas que, no final dos anos 1960, se en- de Stalin sobre Hitler, a contraram: no mesmo embate contra o redemocratização do país no pós-45, os capitalismo e a ditadura, na opção pelo dilemas do PCB, a Guerra Fria, as lutas enfrentamento armado, no reconheci- de libertação nacional no mundo, o go- mento como os dois principais líderes da verno Dutra, a Revolução Chinesa, o im- guerrilha do país. Mas também se perialismo norte-americano, a ofensiva do desencontram neste encontro: as diferen- Tet, no Vietnã, os Anos JK, a Revolução ças que tanto fragmentaram a esquerda Cubana, as lutas pelas reformas de base armada os atingiram, afastando-os, opon- no governo Goulart, o golpe, o AI-5, as do-os.2 Marighella e Lamarca se encon- guerrilhas latino-americanas, a luta arma- tram na derrota, nas mortes, ambos as- da no Brasil. Fazer um perfil biográfico sassinados, assassinados pela ditadura, de Marighella é percorrer o século, acom- personificada no delegado Sérgio Fleury panhar seus embates, suas realizações, e no major Nílton Cerqueira. Encontram- às vezes grandiosas, às vezes miseráveis. se na memória de militares – Marighella, Uma história de vida traçada no traço da o inimigo público nº 1, Lamarca, o história do século XX. desertor –, na memória das esquerdas – heróis, mitos. Para os militares e para Já a história de Carlos Lamarca segue as esquerdas, lendas. outro curso. Quando tentamos reconstruir sua trajetória, num primeiro momento, Suas vidas, entretanto, se encontram, não é a história do século XX que sobres- sobretudo, na ruptura, na transformação, sai. Mas uma vida que se confunde com na metamorfose: Marighella, assumindo a de tantos outros jovens de origem po- o enfrentamento armado, rompeu com o bre, que buscam nas Forças Armadas partido e as suas tradições – do partido uma formação, uma carreira. Com e dele mesmo – de luta institucional, de dezessete anos, entrou para a Escola um partido hierarquizado, disciplinado, Preparatória de Cadetes, tornando-se formado – e que o formou na lógica de capitão do Exército aos vinte e nove, se- seu tempo; Lamarca, assumindo a luta guindo um caminho previsível, previamen- armada, rompeu com o Exército e suas te traçado. Mas o século do embate soci- tradições – da instituição e dele mesmo alismo versus capitalismo também che- – de hierarquia, disciplina, de visão de gou a Lamarca. Da América Latina em mundo. Marighella e Lamarca – tão dis-

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tantes – se encontram na transformação, Mas também deixou de acreditar que o deles mesmos, e na transformação que caminho era pacífico. O golpe. Entre a tentaram realizar no país. desilusão com um caminho e a ilusão com outro caminho, o intervalo. O vazio pre- A OBRIGAÇÃO DE TODO enchido pelo desfeito. Não adiantava se REVOLUCIONÁRIO É FAZER A adequar às regras do jogo, que mudavam REVOLUÇÃO – CARLOS MARIGHELLA no meio da partida, toda vez que amea- golpe de 1º de abril de 1964 çavam ganhá-lo. Havia sido assim em dois foi o grande divisor de águas momentos históricos diferentes: em O na vida do militante que já pas- 1935, quando os comunistas participa- sara por outros momentos difíceis, como ram de um movimento de massas; e em a repressão à Aliança Nacional 1947, quando o prestígio dos comunis- Libertadora (ANL) e ao Partido Comunis- tas na vitória contra os nazistas cedeu ta, após o Levante Comunista de 1935; lugar às perseguições da Guerra Fria, a repressão no Estado Novo; e, em fazendo do aliado da véspera o inimigo 1947, com a cassação do PCB. Quando do dia. Havia sido assim quando Jânio o movimento civil-militar derrubou João Quadros renunciou e os militares deram Goulart, golpeava a ilusão de que era o golpe do parlamentarismo. Agora, der- possível transformar o país através das rubavam o presidente afinado com refor- regras institucionais. Mesmo a mas sociais, acabavam com a possibili- radicalização dos movimentos sociais – dade de o trabalhismo e o comunismo à esquerda e à direita – parecia caber se confirmarem como governo, de che- na democracia legitimada pela Constitui- garem ao poder. A repressão que se se- ção. Uma Constituição de cuja elabora- guia era conhecida: partidos, sindicatos, ção Marighella participara como deputa- lideranças, movimentos sociais, tudo des- do eleito em 1946. A crença na possibi- feito depois de um longo percurso. A ca- lidade de transformação pacífica, que deia. De novo. Não adiantava. Mas, em sacudiu o socialismo da Europa de fins 1964 foi diferente. Caía por terra tam- do século XIX, diante da revolução do bém a crença no Partido, nos discursos voto universal, pulsava no Novo Mundo, que substituíram a ação, numa na América Latina até o último sopro do burocratização que hierarquizara revolu- socialismo chileno, em 1973. O golpe cionários, consumindo-lhes a revolução. contra as reformas de base foi o mais O caminho pacífico, além de não levar decisivo na vida de Marighella, desenca- ao socialismo, permitira o fim da demo- deando o processo que levou à ruptura. cracia. Sem resistência. Agora, a luta ti- Não passou a defender, neste momento, nha duplo caráter: pelo fim do sistema que a transformação para o socialismo capitalista e pelo fim do regime ditatori- só se daria através do embate violento. al. Mas agora era diferente. Os comunis-

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tas não deviam mais ter a pequena Partido. Sem discuti-lo internamente e as- mala pronta quando a polícia chegas- sumindo posições próprias, Marighella se. Agora, era preciso resistir à prisão. colocava-se como indivíduo diante da or- Bastava! ganização, inaceitável segundo a sua dis- ciplina e a sua hierarquia. Marighella A resistência à prisão, em maio de 1964, resistia ao Partido. era uma posição tomada individualmen- te frente ao governo recém-instaurado, No documento escrito à Comissão Exe- não era a posição do PCB. Ao fazê-lo, cutiva, em dezembro de 1966, lembra- assumia também a posição frente ao pró- va o constrangimento do ano anterior: prio Partido. Ou seja, a resistência ti- “Um membro da liderança não pode es- nha muito a dizer aos comunistas e não crever, publicamente, discordando”. “As só aos militares. Assim, a dupla respos- direções executivas dificultavam ou im- ta: da polícia política, recebeu um tiro pediam tal coisa [lançamento de livros] no peito; do partido, críticas severas ao por meio de subterfúgios, retendo origi- livro que publicou em 1965, o qual, nais ou exercendo a censura prévia”. O mais do que relatar um episódio, justifi- centralismo democrático, que, até então, cava-o, condenando a passividade do colocara acima de suas divergências,

Cartaz do acervo do Setor de Segurança da Companhia Docas do Estado de São Paulo/CODESP. Acervo CODESP.

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ruía. Tomava outro caminho. Demitindo- Entre junho e dezembro de 1967, Carlos se da Executiva, tornava “público que mi- Marighella esteve em Cuba. Fora parti- nha disposição é lutar cipar da Conferência da OLAS, Organi- revolucionariamente junto com as massas zação Latino-americana de Solidarieda- e jamais ficar à espera das regras do jogo de, entre julho e agosto. Atendia ao cha- político burocrático e convencional que mado dos revolucionários cubanos para impera na liderança”.3 a formação no continente de uma inter- A resistência em maio de 1964 se trans- nacional guerrilheira para enfrentar o im- formou em ação nos anos seguintes. perialismo norte-americano, a reação, Mesmo que Marighella continuasse a levantando a América Latina em ondas enfatizar a resistência, que tanto des- revolucionárias. Ao participar da Confe- tacou naquele momento, agora, este rência, rompia com o Partido que, con- sentido estava em outra palavra: ação. vidado, recusou o chamado, explicitando A resistência fora a ponte entre as tra- para Cuba que não fazia do antigo mili- dições pecebistas e os princípios da or- tante um representante, explicitando a ganização que criava, em 1967/68: a Marighella a expulsão. Mas, ao partici- Ação Libertadora Nacional. No nome par da Conferência, ele já estava fora ALN, o novo – ação – e a continuidade – do partido, já dera o salto para outros o princípio de libertação nacional. Mas continentes. os tempos eram outros. Não mais das revoluções burguesas. Ilusões perdidas. m Cuba, Marighella encontrou Para sempre. A resistência agora não mais do que a revolução, mais se confundia com o pacifismo do parti- Edo que apoio e reconhecimento do, sempre tentando participar do jogo, para liderá-la no Brasil. Encontrou a teo- submetendo-se às regras. A resistência ria do foco guerrilheiro. E aqui, existe se transformava em ofensiva. Ação, a uma polêmica. Teria ele aderido ao foco? palavra-síntese da organização. Para Na verdade, acredito que Marighella con- além da luta contra a ditadura, essen- cebeu a luta de uma maneira bem mais cialmente de resistência, a luta contra ampla e complexa do que o foquismo o capitalismo: “Não há por que lutar propunha, supostamente legitimado na para entregar o poder à burguesia, para Revolução Cubana. Segundo depoimentos que seja construído um governo sob de militantes da ALN que passaram pelo hegemonia da burguesia”, dizia ao se treinamento guerrilheiro e que tiveram demitir da Executiva, mas ainda no par- contato com Marighella, ele teria uma tido. “É preciso pôr abaixo tal Consti- visão da revolução diferente deste mo- tuição, derrubar a ditadura, estabele- delo. Seria um longo processo e depen- cer um governo apoiado em outra base dia de uma complexa rede de contatos e econômica, em outra estrutura”.4 apoios, que apenas começava a ser

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tecida. A própria organização criada não revolução – ou desencadeá-la – sem o passaria de uma peça do grande quebra- partido. E mais, sem o movimento soci- cabeças. Muitos dos contatos teriam se al. Para Jacob Gorender, as formulações perdido com a sua morte.5 Em dezem- de Marighella, que alterariam o modelo bro de 1968, Marighella reconhecia: “a do foco, foram secundárias: “O foquismo guerra contra eles é longa e prolongada se mantém, na medida em que a guerri- e não se baseia em combates decisivos, lha começa do zero, dissociada de qual- mas na paciência chinesa, na astúcia, na quer movimento de massas, e incorpora sagacidade, na malícia, no reconheci- a função de vanguarda política”.8 Como mento de que somos fracos e eles for- diria, em junho de 1969, no Mini-manual tes”.6 Em outubro de 1969, um mês após do Guerrilheiro urbano, o guerrilheiro o sequestro do embaixador norte-ame- “começa do nada e não tem apoio a prin- ricano, Marighella concedeu uma entre- cípio”.9 Isto, de fato, era a grande novi- vista a Conrad Detrez. Quando foi dade à qual Marighella se apegou. Toda publicada na revista francesa Front, em crítica à burocratização, à novembro, Marighella já estava morto. hierarquização, que engessara o PCB, Nela, destacava a influência da Revolu- encontrava na teoria a legitimação para ção Cubana e do Vietnã. “A experiência as suas críticas, a legitimação de uma cubana, para mim, foi determinante, revolução sem o partido. Ou de uma or- sobretudo no que diz respeito a um pe- ganização moldada fora dos padrões dos queno grupo inicial de combatentes”. partidos comunistas, mas que, ainda as- Ainda assim, afirmou que “estava em sim, não deixava de ser um partido, o desacordo com as ideias de foco guerri- partido leninista traduzido para a Améri- lheiro de Régis Debray”. “As dimensões ca Latina dos anos 1960. Uma organiza- continentais do Brasil desfavorecem a ção que “surge simultaneamente com a aplicação da teoria “foquista”, mas fa- ação revolucionária”, “pela base e não vorece nossa estratégia de guerra revo- pela cúpula”. “A ação é que faz a van- lucionária”.7 A Revolução Cubana era a guarda”.10 Aí estava o “foquismo” de vanguarda da revolução latino-america- Marighella. Surgia a ALN, à imagem e à na e os revolucionários latino-america- semelhança de Marighella, centrada na nos, irmanados na OLAS, deviam-lhe so- ação, na coragem de agir, na disposição lidariedade, atuando para libertá-la do para atuar, na não-submissão a coman- cerco imperialista, para libertar todo um dos, a hierarquias, a centralismos, des- continente condenado a repetir o passa- prezando a experiência, apostando na do de miséria e exploração. renovação dos jovens de 1968; nascida da convicção de que “a obrigação de todo O sedutor na teoria do foco foi, sobretu- revolucionário é fazer a revolução”, fra- do, a ideia de que era possível fazer a se impressa no cartaz da OLAS, que ele

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encarnou como ninguém. Quem samba ações planejadas pelos grupos, sejam fica, quem não samba vai embora. eles quais forem. Nem podem fazer dis- cussões formais. É preciso ação e mais A ALN, entretanto, foi criada, apesar das ação. [...]. Vejam quem quer fazer e dêem palavras – e da ação – de Marighella, pela carta branca. É preciso acabar com a cúpula, como vanguarda, obra de intelec- omissão e a vacilação. A ação não preju- tuais, não burocratizados nas malhas da dica”, afirmava em dezembro de 1968. III Internacional, mas ainda intelectuais. A ALN como antítese ao centralismo de- Uma organização na qual todos tinham mocrático, ao PCB, ao legalismo, que carta branca para planejar ações e excluía os comunistas da farsa, que ex- realizá-las. “Não pedimos licença a nin- cluía a maioria dos brasileiros das deci- guém para praticarmos atos revolucioná- sões. A atuação devia ser “de baixo para rios”.11 Não precisavam esperar por ele, cima e a coordenação poderia desapare- por ninguém. “Vocês têm carta branca na cer, se atrapalhasse a ação. Não se de- frente guerrilheira para desencadear a veria deixar de lado a “frente de mas- ação. Só não têm carta branca para coi- sas”, fazendo-a “adotar táticas guerrilhei- sas burocráticas, isto é, para impedir ras”, “possuir potência de fogo”.12

Reinicio das aulas. Rio de Janeiro, 1968. Acervo Correio da Manhã.

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Nos anos seguintes, o princípio que esti- tral. “Era brincalhão, mas muito sério vera na origem da ALN evoluiu para o também. Ele carregava uma responsa- militarismo, do qual muitos militantes da bilidade nas costas”, resumiu Noé Gertel, organização se tornaram críticos, sem, seu antigo companheiro, na prisão da Ilha no entanto, conseguir superá-lo. Diante Grande.15 O limite e salto: “Mas da repressão feroz da ditadura no des- Marighella, de repente, se liberou dis- dobramento do sequestro do embaixador so. Ele, para conduzir a luta, achou que americano, isolada da sociedade, que era necessário se liberar daqueles con- jamais se reconheceu na luta armada, troles. É então o momento em que a sua fosse porque não estava de acordo com personalidade se revela mais completa- os seus meios, fosse porque não compar- mente. É, portanto, depois do rompimen- tilhava os seus fins – o socialismo e mes- to com o Partido, que Marighella está in- mo o fim do regime militar – não foi pos- teiramente dono da sua personalidade”, sível romper com as origens. Na constatou Jorge Amado, amigo dos tem- sequência das quedas, caía Marighella, pos da constituinte.16 Marighella, o ho- assassinado à queima roupa numa em- mem de partido, numa época em que boscada em uma rua de São Paulo, em 4 partido comunista rimava com rígida dis- de novembro de 1969. Ele, que havia ciplina e hierarquia, foi também – e so- sido contra o sequestro, prevendo a rea- bretudo – o homem que se revelou ple- ção para a qual não estavam preparados, namente na ruptura com a obediência. mas que pôde se realizar coerentemen- 17 Na primeira fase de sua vida, passara te com a organização, com suas ideias. dez anos na prisão; na segunda, não Como num presságio, falara um mês an- passaria nem um dia. tes: “É perigoso pensar que temos uma Marighella assumiu-se como terrorista. força que ainda não possuímos”.13 Mas “Todos nós somos guerrilheiros, terroris- já estava lançado num caminho sem vol- tas e assaltantes”,18 afirmava em agosto ta, formulado também como presságio, de 1969. A maior parte das organizações em dezembro de 1968: “É melhor come- e militantes negaram esta identidade no ter erros fazendo, ainda que disto resul- passado e a negam no presente: “terro- te a morte. Os mortos são os únicos que rista é a ditadura!”. Ele, ao contrário, não fazem autocrítica”.14 deu-lhe uma conotação positiva. “Hoje, Em Marighella, a convivência de opostos: ser ‘violento’ ou um ‘terrorista’ é uma a aversão às formalidades, às regras; a qualidade que enobrece qualquer pessoa irreverência, certamente a palavra que honrada, porque é um ato digno de um mais aparece nas biografias e nos depo- revolucionário engajado na luta armada imentos para se referir a ele, o homem contra a vergonhosa ditadura militar e que viveu trinta e oito anos num partido suas atrocidades”.19 Na verdade, se pen- no qual a disciplina era uma questão cen- sarmos terrorismo como a prática de

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atentados à população civil e não exclu- tes, espiões, traidores, e a polícia vêm a sivamente a alvos específicos, identifica- ser os inimigos da população sem dos com as forças de coerção, as organi- apoiadores, denunciados aos guerrilhei- zações e os líderes da esquerda armada ros urbanos, e em muitos casos, devida- - inclusive a ALN e Marighella - não aderi- mente castigados”.20 No próprio golpe de ram à proposta terrorista. 1964, a ausência marcante, constante Em relação às suas últimas declarações, nas análises de Marighella, constante nos chama atenção num momento da vitória anos seguintes: o golpe fora militar, a do primeiro sequestro de diplomata, mas sociedade estivera ausente do movimen- também de enorme repressão e isolamen- to e assim permanecera, recusando apoio to da luta armada, a avaliação de que à ditadura nos anos seguintes. Para ele, “os revolucionários conseguiram a cum- a sociedade estivera presente, sim, mas plicidade da população. A imprensa clan- rejeitando o regime e seus homens. destina avança. As emissões piratas são OUSAR LUTAR, OUSAR VENCER – recebidas favoravelmente. A cidade reú- CARLOS LAMARCA ne, pois, as condições objetivas e subje- tivas requeridas para que se possa de- o mesmo dia em que Carlos sencadear com êxito a guerrilha”. Ou ain- Lamarca deixou o Exército, da, no Mini-manual do guerrilheiro urba- Nsua mulher e seus filhos em- no, de junho de 1969, a ideia tão pre- barcavam para Cuba. Quando abandonou sente na luta armada, em várias organi- para sempre o quartel com alguns com- zações, em vários militantes, na época e panheiros, levava armas para a revolu- que, surpreendentemente, ainda é mui- ção. Ainda houve tempo de correr até o to frequente na memória das esquerdas: aeroporto para se despedir da família. “as pessoas odeiam” a polícia e os mili- Não imaginava que, naquele dia, deixa- tares. “O inimigo é observado pela popu- va-os para sempre. Da Ilha, vinha a ins- lação, mas desconhece quem dentre a piração para a guerrilha, a certeza de população passa informações aos guerri- que era possível vencer. Da Ilha, viriam lheiros urbanos. Os militares e a polícia um dia os filhos e a mulher para cons- são odiados pelas injustiças e violência truírem juntos o socialismo no país. Mas que têm cometido contra a população, e este encontro jamais aconteceu, do Bra- isto facilita a obtenção de informação sil com o socialismo, do pai com os fi- prejudicial às atividades de agentes do lhos. Só conheceriam o socialismo em inimigo”. “Já que nossa luta toma lugar Cuba, onde cresceram, o socialismo que entre as massas e depende de sua sim- Lamarca jamais conheceu. Do pai, co- patia – enquanto que o governo tem uma nheceriam muitas histórias, talvez ja- má reputação devido a sua brutalidade, mais confundidas com as lembranças da corrupção e incompetência – os informan- infância.

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Lamarca deixou o Exército para coman- sionado naquela situação, naquele lugar dar a Vanguarda Popular Revolucionária, onde tudo começaria, onde tudo termi- os intelectuais dissidentes da Política nou. Lamarca em Buriti Cristalino, a ima- Operária (POLOP), que defendiam a cons- gem do isolamento da luta armada. Em trução imediata do foco guerrilheiro, os lugar nenhum, escrevendo cartas para sargentos e marinheiros expulsos das Cuba, para Iara, para si mesmo. A soli- Forças Armadas em 64 e os operários dão de Lamarca nas respostas que jamais ligados a Osasco. Lamarca não era um chegariam de Cuba, de Iara, dos campo- teórico, um intelectual, formulador, à neses. O diálogo impossível com aquele vontade com as discussões da revolução país. O amor interrompido por uma bala que tanto cindiram as organizações de no peito de Iara. Lamarca, a luta armada. Discussões que haviam sur- humanização da solidão, Lamarca, gido na oposição ao PCB que se perdera humanizado na solidão. em discussões. Converteu-se à revolução Com José Campos Barreto, chegou a não porque convencido pela teoria, mas, Buriti Cristalino, o operário que fazia o como tantos outros, pela indignação com caminho de volta para casa, deixando as injustiças do mundo, a miséria. Co- Osasco que incendiara em 1968. Naque- mandante da revolução porque capitão do la seca que um dia o expulsava, começa- Exército, porque excelente atirador, mi- ria o futuro melhor, e não na São Paulo litar e militarista num momento em que que expulsava os nordestinos para as fazer a revolução era agir. Ousar lutar, periferias. A solidão de Lamarca na fuga ousar vencer, a síntese do voluntarismo com Zequinha, caçados como bichos, daqueles dias. delatados, exaustos, buscando o caminho Sem lugar no Exército, deu o salto, en- numa terra estéril, seca. A solidão de contraria na organização o seu lugar. Mas Lamarca interrompida na morte com também não estava à vontade ali. Aque- Zequinha e no amor de Iara. la realidade lhe era estranha como se tornara a do Exército. Ali, também esta- Lamarca sempre fugindo. A fuga ao cer- va isolado. Talvez nenhum outro perso- co da repressão no Vale da Ribeira. Na- nagem – sua vida e sua morte – sintetize quele isolamento, treinaria os guerrilhei- tão bem o isolamento da luta armada. ros. Ali, a esperança de encontrar meios Lamarca foi a encarnação da solidão. A para a guerrilha. Ali, isolados de tudo, busca de um outro rosto para ocultar-se, encontrando apenas pessoas isoladas de para se encontrar. A vida de aparelho tudo, das verdades dos guerrilheiros iso- para aparelho, acuado, caçado pela gana lados das verdades daquela gente, adoe- dos militares. Da VPR para o MR-8, da cendo naquelas matas. “Ficamos orgu- cidade para o campo, em busca da guer- lhosos de constatar a receptividade dos rilha no sertão baiano, escondido, apri- trabalhadores rurais e sua capacidade de

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compreender os objetivos da nossa luta. versos órgãos da repressão para elimi- Os órgãos responsáveis pela repressão nar Carlos Lamarca e seus companhei- repararam o apoio que a população nos ros, ou melhor, para “destruir o mito re- dava e em consequência disso prenderam presentado por Lamarca”.22 Como no Vale e assassinaram um jovem casal de cam- da Ribeira, a desproporção das forças em poneses e evacuaram a população da combate: de um lado, a contabilidade dos região e bombardearam-na. Essas ações recursos humanos e materiais emprega- de terrorismo foram completadas com dos; de outro, as fotos dos mortos, as tiros de metralhadoras a esmo, para den- fotos do que foi apreendido: algumas ar- tro do mato, e vôos rasantes sobre as mas, munições, uma pequena barraca, choupanas ainda habitadas”.21 umas botinas surradas e um texto de No detalhado Relatório Operação Giap. Para capturar o “bando terrorista” Pajussara, que caçou Lamarca pelo ser- de meia dúzia de homens, ali estavam o tão baiano, documento do Ministério do Centro de Operações de Defesa Interna Exército de cento e uma páginas, chama (CODI), a Polícia Militar da , o Cen- a atenção o aparato montado pelos di- tro de Informações do Exército, o Centro

Centro da cidade do Rio de Janeiro, abril de 1968. Acervo Correio da Manhã.

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de Informações e Segurança da Aeronáu- Se, de fato, se deu a participação da po- tica, o Centro de Informações da Mari- pulação local, indicando os caminhos, nha, IV Exército, Destacamento de Ope- procurando os agentes para informar rações de Informações/Centro de Opera- sobre aqueles homens em fuga, os ções de Defesa Interna (DOI-CODI), a relatores destacam também a miséria Primeira Esquadrilha Aeroterrestre de daquelas pessoas do sertão, de uma Salvamento (Parasar), a Operação Ban- “área abandonada e desassistida pelas deirante, a Delegacia de Ordem Política autoridades governamentais, da esfera e Social de São Paulo/SP, a Força Aérea administrativa estadual e municipal”. Brasileira e a Secretaria de Segurança Após um mês de convívio com “o homem Pública de São Paulo, num total de 215 da caatinga”, “obtendo a sua lealdade e agentes da Bahia, da Guanabara, de São confiança, o que [nos] levou à vitória fi- Paulo e de Pernambuco envolvidos, nas nal”, a Operação conheceu a sua “misé- duas fases da operação. Chamam a aten- ria impressionante”. ção os nomes dados às equipes: Cão, “Permitiu, também conhecer, mais e Lobo, Leão, Tigre, Onça, Águia. Chama melhor, a alma do homem humilde a atenção as repetidas vezes em que do campo, espelho fiel de nossa gen- aparece “o apoio irrestrito da população” te que odeia a violência, que deseja local naquela caça.23 Reconhece-se mes- apenas tranquilidade para viver na mo que o êxito da operação estava na paz de seu trabalho. [...] Resta, con- “rede de informantes”. “Dificilmente ha- tudo, a dúvida de saber até quando veria sucesso sem a cooperação e a con- persistirá com esta concepção, de fiança dedicadas às forças legais por vez que não vê e nem sente, na prá- aquela humilde população”. “Foi conquis- tica e em curto prazo, solução para tado o apoio da população”. “Ficou de- seus mais prementes e comezinhos monstrado que o povo do interior, embo- problemas, podendo, assim, tornar- ra vivendo nas mais miseráveis condi- se presa fácil a qualquer impregna- ções, ainda repudia e, até mesmo, odeia ção de doutrinas espúrias”. o emprego da violência a que os terroris- A dúvida dos caçadores tinha sido a cer- tas querem impor ao País”. A Operação teza de Lamarca e Zequinha. No sertão, Pajussara “demonstrou, de forma inde- o contraste entre a miséria e a colabora- lével, à Nação, o repúdio às ações de ção, uma miséria: terroristas por parte das populações mais humildes do interior da Bahia, e que pode “...o comandante do DOI foi procu- ser estendido ao Brasil”. O “excelente rado por um velhinho, quase cego, rendimento da rede de informantes locais de cerca de 70 anos, na mais mísera e mais a exploração intensa e colabora- condição, que dizia ter visto dois

ção espontânea dos guias”. indivíduos suspeitos, [...] e que vie-

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ra apressado comunicar o fato. Des- de, montaram uma cruz e começaram a locando-se para o local, efetuou-se crucificar – a amarrar na cruz – alguns a busca sem resultados, a não ser camponeses, a jogar sal no corpo por um o efeito moral do grande estímulo tempo e durante esse tempo torturar os trazido pela atitude daquele humil- camponeses”.25 Segundo João Lopes Sal- de cidadão, que, acima de tudo, de- gado, militante do MR-8, sobrevivente ao monstrava o apoio que os integran- cerco, houve realmente o massacre.26 tes do DOI contavam por parte da Não identificando, em um primeiro mo- população”. mento, quem estava ligado a Lamarca, os militares torturaram e mataram cruel Outros casos semelhantes são relatados. e indiscriminadamente muitos habitantes Se assim aconteceu, Lamarca e Zequinha do povoado e dos sítios próximos. Entre- em fuga percorriam um caminho minado tanto, João Salgado não confirma nem o pelos camponeses que iam indicando bombardeio nem a crucificação. No ca- seus passos para os agentes da repres- lor dos acontecimentos, um outro sobre- são que iam fechando as saídas, cercan- vivente, pessoa da própria região, recor- do a região na qual Lamarca acreditou reu a esta forma de suplício, plena de poder implantar a guerrilha. O que aque- simbologia religiosa, para relatar os hor- les homens estavam fazendo ali? Escon- rores que havia visto. didos no nada. Era difícil entender aqui- Ainda no Relatório da Operação lo. Talvez fosse mais fácil entender aque- Pajussara, lamenta-se que “o aproveita- les que chegavam depois, para caçá-los mento do êxito, sob o aspecto de ação como bichos. Mas quem eram os bichos? psicológica, a liberação das informações, As caças ou os caçadores? Ou os delato- pelos órgãos competentes, não produziu res? O mal, os miseráveis já o conheci- os efeitos desejados, gerando sensacio- am. Estranho mesmo era pensar que um nalismo, distorções e inverdades que agi- dia as coisas poderiam ser diferentes. tara e confundiram a opinião pública... A memória, entretanto, é uma disputa, Alguns noticiários produziram efeitos ne- como se sabe. No Tribunal Bertrand gativos, criando, em grande parte da po- Russell II,24 em 1974, há uma referên- pulação, sentimento de compaixão pelo cia a um depoimento gravado e passado terrorista Lamarca e sua amante, após a na televisão sueca, de uma pessoa pre- publicação das cartas apreendidas”. Nas sente no interior da Bahia, onde Carlos cartas de amor, de saudade, de esperan- Lamarca, Zequinha, e os guerrilheiros ça no nascimento do filho com Iara, no foram assassinados. Os militares haviam nascimento da guerrilha, a solidão de bombardeado o povoado, e desencadea- Lamarca, humanizando o revolucionário do uma repressão maciça sobre os cam- morto na desumanização do terrorismo poneses: “No campo de futebol da cida- de Estado, morto na miséria da delação.

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SERIAM ILUSÕES AS BIOGRAFIAS DE nas direitas, torna seus perfis biográfi- MITOS? cos tarefa difícil para o historiador. Ilu- são de vidas perfeitas, irretocáveis, he- s trajetórias de Marighella e róis, personificação da esperança inter- Lamarca, suas rupturas e con rompida, mártires da ditadura. Ilusão de Atinuidades mostram, ao mes- vidas incorrigíveis, bandidos, encarnação mo tempo, homens de seu tempo e ho- do perigo, do mal, do inimigo público nº mens livres de seu tempo. Nesta 1, da traição, da deserção. Nesta dispu- dualidade, segundo Giovanni Levi, está ta da memória, uma outra ilusão biográ- um bom motivo para os historiadores fica: a que constrói memórias encobrin- estudarem as biografias: do a história. “Na verdade nenhum sistema Antonio Candido foi buscar em normativo é suficientemente Tiradentes e nos líderes de Palmares a estruturado para eliminar qualquer imagem de Marighella. “Um herói do possibilidade de escolha consciente, povo brasileiro” “que aceitou o sacrifí- de manipulação ou de interpretação cio pela liberdade real do seu povo”. No das regras, de negociação. A meu ver “martírio” de Marighella, a “consagração” a biografia é por isso mesmo o cam- de um “processo histórico segundo o qual po ideal para verificar o caráter o herói se desprende do homem”. “Quan- intersticial – e todavia importante – do um homem chega a este estágio da da liberdade de que dispõem os fama, muda a perspectiva a seu respei- agentes e para observar como funci- to e se define o perfil com o qual passa- onam concretamente os sistemas rá à história. Então, começam a ter me- normativos, que jamais estão isen- nos importância os pormenores da ação tos de contradições.” e certas particularidades do pensamen- E ainda: to, pois a imaginação coletiva se concen- tra na trajetória completa da existência “qualquer que seja a sua originalida- exemplar. Eu diria que agora Carlos de aparente, uma vida não pode ser Marighella já não é apenas o grande re- compreendida unicamente através de volucionário, admirado pelos que pen- seus desvios ou singularidades, mas, sam e sentem como ele pensou e sen- ao contrário, mostrando-se que cada tiu; mas um herói do povo brasileiro, desvio aparente em relação às nor- admirado por todos os que aspiram a um mas ocorre em um contexto históri- estatuto humano para a vida do homem co que o justifica”.27 em nosso país. (...). Do homem que fez O fato, entretanto, de eles, Marighella o mais alto sacrifício pelo povo brasilei- mais do que Lamarca, terem se tornado ro, isto é, o sacrifício da vida, surgiu a lendas, mitos, tanto nas esquerdas como figura do herói modelar”.28

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Neste estágio, haveria história? são política, tortura. Tudo isto existia e é relevante. Mas nenhuma ditadura se Noé Gertel diz que “Marighella sabia sustenta unicamente pela repressão, por tudo: entendia de futebol, de política, manipulação. A sociedade que estes ho- tinha habilidade manual, sabia desenhar, mens quiseram transformar não os tinha sabia escrever, sabia fazer versos...”.29 como heróis, justiceiros, libertadores dos Em Jorge Amado, “ele é aquele que re- oprimidos. Muitos de seus heróis esta- presenta, mais autenticamente, o povo vam fardados, ovacionados no estádio brasileiro naquele momento [da ditadu- lotado. Ditadores amados. Menos porque ra]”.30 Para os historiadores Cristiane temidos, mas porque reconhecidos, en- Nova e Jorge Nóvoa, ao “exército de vi- tão, como seus dirigentes. E, hoje, seus sionários e idealistas juntou-se a figura nomes estão nas ruas, como no cruza- de Marighella”. No panteão, Zumbi, Che mento junto à Universidade do Estado do Guevara, Sandino, Lumumba. Como um Rio de Janeiro (UERJ): avenidas Emílio personagem da mitologia grega, Glauco, Garrastazu Médici e Castelo Branco; na imortalizado, meio homem meio deus.31 ponte Costa e Silva, a Rio-Niterói; até o Na tentativa de compreender o homem torturador Fleury tem o nome numa pla- por trás do mito, o mito por trás do mito, ca de rua em São Carlos, interior desumanizando os homens, paulista. Muitas coisas mudaram desde desumanizada a história, a antiga histó- o fim dos anos 1970. E, para os histori- ria dos grandes homens. adores, é importante notar como esta Neste estágio, não estaria aí o trabalho memória vem sendo construída desde do historiador? Compreender como e por então. Nesta mudança, podemos compre- que a memória destes homens assim foi ender muito da sociedade brasileira, seus construída? valores e referências, rompendo com a

Carlos Marighella, assim como Carlos dicotomia opressores e oprimidos que as esconde, as dissolve. Podemos refletir Lamarca, estão longe de representar “mais autenticamente o povo brasileiro” por que as esquerdas querem heróis e no momento da ditadura. Suas lutas por lendas; por que insistem na tese da re- sistência da sociedade à ditadura, aos um outro sistema, contra o capitalismo, pelo socialismo e contra a ditadura não seus princípios e práticas; por que têm encontraram eco então. As imagens de negado o conhecimento da realidade. terroristas, subversivos, inimigos, traido- Carlos Marighella e Carlos Lamarca con- res, maus brasileiros etc. foram assimi- tinuam ausentes dos lugares da memó- ladas por significativas parcelas da soci- ria, porque seus projetos, suas vidas, edade, não exclusivamente porque o go- suas mortes permanecem à margem. A verno civil-militar controlava os meios de reconstrução de suas histórias, até para comunicação, porque havia censura, pri- honrarmos suas lutas, deve buscar

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compreender por que ficaram sós; por Não são, não foram heróis do povo bra- que imaginaram adeptos onde havia es- sileiro. Não são, não foram tranhos; por que não compreenderam encarnações do mal. As memórias isto nas suas épocas; por que desconhe- construídas – à esquerda e à direita – ceram o povo e a sociedade que quise- não servem à história. E, provavelmen- ram transformar; por que permanecem te, uma e outra sejam desconhecidas estranhos para a maior parte da socie- do povo brasileiro. Homens sós, nas dade, conhecidos, mas estranhos; por suas vidas, nas suas mortes e assim que se acredita hoje que honrá-los é permanecem nas memórias que os não enfrentar estas questões. isolam da história.

NOTAS

1. LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In FERREIRA, Marieta Moraes; AMADO, Janaína (Org.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1996. p. 182. 2. A cisão entre Marighella e Lamarca se deu a partir do episódio da guarda do armamento desapropriado pelo capitão no Quartel de Itaúna, quando recorreu a Marighella. Ao rei- vindicar as armas, Marighella se recusou a entregá-las. A partir da mediação de Joaquim Câmara Ferreira, foi devolvida a metade. 3. MARIGHELLA, Carlos. Carta à Executiva. In MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighella. São Paulo: Livramento, 1979. p. 90, 89. 4. MARIGHELLA, Carlos. Carta à Executiva, 1º de dezembro de 1966. In MARIGHELLA, Carlos. op. cit. p. 94. 5. ROLLEMBERG, Denise. O apoio de Cuba à luta armada. O treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2001. 6. MARIGHELLA, Carlos. “Quem samba fica, quem não samba vai embora”. Carta dirigida aos revolucionários de São Paulo, dezembro de 1968. In NOVA, Cristiane e NÓVOA, Jorge (orgs.). Carlos Marighella. O homem por trás do mito. São Paulo, Ed. UNESP, 1999, p. 547. 7. MARIGHELLA. Carlos Marighella nos declara: ‘O Brasil será um novo Vietnã’. Front. Revis- ta mensal de informação política internacional. Fundo DOPS (Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro), Setor Terrorismo, pasta 3, folhas 116-125. Entrevista de Marighella concedida a DETREZ, Conrad.

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8. GORENDER, Jacob. Combate nas trevas. A esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1987. p. 98. 9. MARIGHELLA, Carlos. Mini-Manual do guerrilheiro urbano. Junho 1969, p. 10. 10.MARIGHELLA, Carlos. Sobre a organização dos revolucionários. Texto circulado sobre a forma de panfleto, em agosto de 1969. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 551, 552. 11.MARIGHELLA, Carlos. Sobre a organização dos revolucionários. Texto circulado sobre a forma de panfleto, em agosto de 1969. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 553. 12.MARIGHELLA, Carlos. Quem samba fica, quem não samba vai embora. Carta dirigida aos revolucionários de São Paulo, dezembro de 1968. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 549. 13.MARIGHELLA, Carlos. Sobre a organização dos revolucionários. Texto circulado sobre a forma de panfleto, em agosto de 1969. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 553. 14.MARIGHELLA, Carlos. Quem samba fica, quem não samba vai embora. Carta dirigida aos revolucionários de São Paulo, dezembro de 1968. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 550. 15.MARIGHELLA. Marighella na Ilha Grande de Esperanças. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 424. Entrevista concedida a Nóe Gertel. 16.AMADO, Jorge. O homem que ria e que chorava. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 390. 17.Entretanto, se é verdade que as organizações que surgiram, a partir de 1961, defenden- do a luta armada, opondo-se às posições e práticas do PCB, algumas, como a ALN, rompendo também com a estrutura de partido – hierarquizado, disciplinado –, é preciso notar que desenvolveram também uma disciplina, não a mesma do antigo partido, mas aquela que, segundo Daniel Aarão Reis Filho, levou a uma “estratégia da tensão máxima”: “o complexo da dívida; o leque das virtudes; o massacre das tarefas; a celebração da autoridade; a ambivalência das orientações; e a síndrome da traição”. REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 107, 118. 18.MARIGHELLA, Carlos. Sobre a organização dos revolucionários. Texto circulado sobre a forma de panfleto, em agosto de 1969. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 552. 19.MARIGHELLA, Carlos. Mini-Manual do guerrilheiro urbano. Junho 1969, p. 2. 20.MARIGHELLA, Carlos. op. cit. p. 4, 14, 15. 21.LAMARCA, Carlos. Entrevista concedida em junho de 1970, publicada no “Dossiê sobre o Brasil”, em janeiro de 1971, pelo “Centro d´Azione e Documentazione America Latina”. In: MIRANDA, Oldack; SILVA FILHO, Emiliano José. Lamarca. O capitão da guerrilha. 12. ed. São Paulo: Global, 1989. p. 90, 91.

22.Ministério do Exército, IV Exército, 6ª Região Militar, Quartel General, 2ª seção, 30 de setembro de 1971, assinado pelo general de brigada Argus Lima, comandante da 6ª região militar e pelo tenente-coronel Adail Coaracy de Aquino, da 3ª seção do COMCOS; constam, ainda, as referências do major Nílton de Albuquerque Cerqueira, chefe da 2ª seção do EMR/6, no lugar destinado à sua assinatura, embora esta não apareça. Opera- ção Pajussara (Relatório). Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, Fundo DOPS, Setor Terrorismo, pasta 12, folhas 125 A e seguintes. Citações p. 37 e seguintes, p. 42, 37, 41, 22, 28, 43.

Não foi possível consultar os prontuários de Carlos Lamarca nem de Carlos Marighella, em virtude da não autorização dos familiares.

23.Em novembro de 1968, a Veja dera à reportagem sobre Marighella o título “A caçada”. Cf. A CAÇADA. O general França comanda milhares de policiais em todo o país que estão à procura do líder comunista Carlos Marighella. Veja, São Paulo, 20 nov. 1968.

24.O Tribunal Bertrand Russell II foi instaurado em 1973 por políticos e intelectuais euro- peus com o objetivo de denunciar as ditaduras latino-americanas. Sobre o Tribunal, ver ROLLEMBERG, Denise. Exílio. Entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999. cap. 8.

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25.Testemunho de Fernando Gabeira no Tribunal Russell II. Roma, 30 de março a 5 de abril de 1974. (Fundação Lelio Basso, TBR I. T. Cart. III - 9). p. 215. 26.Depoimento de João Lopes Salgado concedido informalmente, ou seja, sem gravação, a DR, no Rio, 14 de janeiro de 1998. 27.LEVI, Giovanni Levi. op. cit. p. 180, 176. 28.CANDIDO, Antonio. Um herói do povo brasileiro. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 377, 378, 378. 29.MARIGHELLA. Marighella na Ilha Grande de Esperanças. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 426. p. 426. 30.AMADO, Jorge. O homem que ria e que chorava. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit p. 383. 31.NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge. Evocações e metáforas de Carlos Marighella: um Glauco brasileiro. In: NOVA, Cristiane; NÓVOA, Jorge (Org.). op. cit. p. 324.

Recebido em 18/08/2008 Aprovado em 19/12/2008

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