Carlos Marighela E Carlos Lamarca Memórias De Dois Revolucionários

Carlos Marighela E Carlos Lamarca Memórias De Dois Revolucionários

RVO Denise Rollemberg Doutora em História Social pela UFF. Professora do Departamento de História da UFF. Carlos Marighela e Carlos Lamarca Memórias de dois revolucionários O texto propõe a discussão das histórias de The text intends to discuss the biographies of vida de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, os Carlos Marighella e Carlos Lamarca, two major dois revolucionários de maior expressão na revolutionaries in the Brazilian armed struggle, luta armada, no Brasil, do final da década de in the late 1960s e early 1970s; the memories 1960 e início dos anos 1970; das memórias elaborated by the left organization and the construídas nas esquerdas e na direita militar; right wing militaries; the oblivion and silence do esquecimento e do silêncio numa sociedade in a society unaware of these constructions, as it alheia a essas construções, como alheia esteve às was unaware of these ideas and practices while suas ideias e práticas enquanto Marighella e Marighella and Lamarca viveram. Lamarca lived. Palavras-chave: Memória; opinião; Keywords: Memory; opinion; biography; biografia; luta armada; ditadura. armed struggle; dictatorship “Não se pode negar que há incoerências dos confins um estilo próprio a uma sociais e que suscita a época, um habitus mudança social” resultante de experiências (Giovanni Levi)1 comuns e reiteradas, assim como há em cada época um estilo próprio de um grupo. arlos Marighella e Carlos Mas para todo indivíduo Lamarca, os dois dirigentes re existe também uma C volucionários de maior expres- considerável margem de são da luta armada, no Brasil do final da liberdade que se origina década de 1960 e início dos anos 1970, precisamente das tiveram trajetórias muito diferentes. Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, no 2, p. 105-122, jul/dez 2008 - pág. 105 ACE Marighella tornou-se militante do Partido busca da libertação. Libertação da mi- Comunista aos dezoito anos. Viveu um séria, da pobreza que Lamarca conhecia. século marcado pelo confronto socialis- Já como capitão, tornou-se revolucioná- mo versus capitalismo, pelos fascismos rio, comunista, o capitão da guerrilha. e nazismo, a ditadura de Vargas, o Culturas políticas e sensibilidades diver- stalinismo, a II Guerra Mundial, a vitória sas que, no final dos anos 1960, se en- de Stalin sobre Hitler, a contraram: no mesmo embate contra o redemocratização do país no pós-45, os capitalismo e a ditadura, na opção pelo dilemas do PCB, a Guerra Fria, as lutas enfrentamento armado, no reconheci- de libertação nacional no mundo, o go- mento como os dois principais líderes da verno Dutra, a Revolução Chinesa, o im- guerrilha do país. Mas também se perialismo norte-americano, a ofensiva do desencontram neste encontro: as diferen- Tet, no Vietnã, os Anos JK, a Revolução ças que tanto fragmentaram a esquerda Cubana, as lutas pelas reformas de base armada os atingiram, afastando-os, opon- no governo Goulart, o golpe, o AI-5, as do-os.2 Marighella e Lamarca se encon- guerrilhas latino-americanas, a luta arma- tram na derrota, nas mortes, ambos as- da no Brasil. Fazer um perfil biográfico sassinados, assassinados pela ditadura, de Marighella é percorrer o século, acom- personificada no delegado Sérgio Fleury panhar seus embates, suas realizações, e no major Nílton Cerqueira. Encontram- às vezes grandiosas, às vezes miseráveis. se na memória de militares – Marighella, Uma história de vida traçada no traço da o inimigo público nº 1, Lamarca, o história do século XX. desertor –, na memória das esquerdas – heróis, mitos. Para os militares e para Já a história de Carlos Lamarca segue as esquerdas, lendas. outro curso. Quando tentamos reconstruir sua trajetória, num primeiro momento, Suas vidas, entretanto, se encontram, não é a história do século XX que sobres- sobretudo, na ruptura, na transformação, sai. Mas uma vida que se confunde com na metamorfose: Marighella, assumindo a de tantos outros jovens de origem po- o enfrentamento armado, rompeu com o bre, que buscam nas Forças Armadas partido e as suas tradições – do partido uma formação, uma carreira. Com e dele mesmo – de luta institucional, de dezessete anos, entrou para a Escola um partido hierarquizado, disciplinado, Preparatória de Cadetes, tornando-se formado – e que o formou na lógica de capitão do Exército aos vinte e nove, se- seu tempo; Lamarca, assumindo a luta guindo um caminho previsível, previamen- armada, rompeu com o Exército e suas te traçado. Mas o século do embate soci- tradições – da instituição e dele mesmo alismo versus capitalismo também che- – de hierarquia, disciplina, de visão de gou a Lamarca. Da América Latina em mundo. Marighella e Lamarca – tão dis- pág. 106, jul/dez 2008 RVO tantes – se encontram na transformação, Mas também deixou de acreditar que o deles mesmos, e na transformação que caminho era pacífico. O golpe. Entre a tentaram realizar no país. desilusão com um caminho e a ilusão com outro caminho, o intervalo. O vazio pre- A OBRIGAÇÃO DE TODO enchido pelo desfeito. Não adiantava se REVOLUCIONÁRIO É FAZER A adequar às regras do jogo, que mudavam REVOLUÇÃO – CARLOS MARIGHELLA no meio da partida, toda vez que amea- golpe de 1º de abril de 1964 çavam ganhá-lo. Havia sido assim em dois foi o grande divisor de águas momentos históricos diferentes: em O na vida do militante que já pas- 1935, quando os comunistas participa- sara por outros momentos difíceis, como ram de um movimento de massas; e em a repressão à Aliança Nacional 1947, quando o prestígio dos comunis- Libertadora (ANL) e ao Partido Comunis- tas na vitória contra os nazistas cedeu ta, após o Levante Comunista de 1935; lugar às perseguições da Guerra Fria, a repressão no Estado Novo; e, em fazendo do aliado da véspera o inimigo 1947, com a cassação do PCB. Quando do dia. Havia sido assim quando Jânio o movimento civil-militar derrubou João Quadros renunciou e os militares deram Goulart, golpeava a ilusão de que era o golpe do parlamentarismo. Agora, der- possível transformar o país através das rubavam o presidente afinado com refor- regras institucionais. Mesmo a mas sociais, acabavam com a possibili- radicalização dos movimentos sociais – dade de o trabalhismo e o comunismo à esquerda e à direita – parecia caber se confirmarem como governo, de che- na democracia legitimada pela Constitui- garem ao poder. A repressão que se se- ção. Uma Constituição de cuja elabora- guia era conhecida: partidos, sindicatos, ção Marighella participara como deputa- lideranças, movimentos sociais, tudo des- do eleito em 1946. A crença na possibi- feito depois de um longo percurso. A ca- lidade de transformação pacífica, que deia. De novo. Não adiantava. Mas, em sacudiu o socialismo da Europa de fins 1964 foi diferente. Caía por terra tam- do século XIX, diante da revolução do bém a crença no Partido, nos discursos voto universal, pulsava no Novo Mundo, que substituíram a ação, numa na América Latina até o último sopro do burocratização que hierarquizara revolu- socialismo chileno, em 1973. O golpe cionários, consumindo-lhes a revolução. contra as reformas de base foi o mais O caminho pacífico, além de não levar decisivo na vida de Marighella, desenca- ao socialismo, permitira o fim da demo- deando o processo que levou à ruptura. cracia. Sem resistência. Agora, a luta ti- Não passou a defender, neste momento, nha duplo caráter: pelo fim do sistema que a transformação para o socialismo capitalista e pelo fim do regime ditatori- só se daria através do embate violento. al. Mas agora era diferente. Os comunis- Acervo, Rio de Janeiro, v. 21, no 2, p. 105-122, jul/dez 2008 - pág. 107 ACE tas não deviam mais ter a pequena Partido. Sem discuti-lo internamente e as- mala pronta quando a polícia chegas- sumindo posições próprias, Marighella se. Agora, era preciso resistir à prisão. colocava-se como indivíduo diante da or- Bastava! ganização, inaceitável segundo a sua dis- ciplina e a sua hierarquia. Marighella A resistência à prisão, em maio de 1964, resistia ao Partido. era uma posição tomada individualmen- te frente ao governo recém-instaurado, No documento escrito à Comissão Exe- não era a posição do PCB. Ao fazê-lo, cutiva, em dezembro de 1966, lembra- assumia também a posição frente ao pró- va o constrangimento do ano anterior: prio Partido. Ou seja, a resistência ti- “Um membro da liderança não pode es- nha muito a dizer aos comunistas e não crever, publicamente, discordando”. “As só aos militares. Assim, a dupla respos- direções executivas dificultavam ou im- ta: da polícia política, recebeu um tiro pediam tal coisa [lançamento de livros] no peito; do partido, críticas severas ao por meio de subterfúgios, retendo origi- livro que publicou em 1965, o qual, nais ou exercendo a censura prévia”. O mais do que relatar um episódio, justifi- centralismo democrático, que, até então, cava-o, condenando a passividade do colocara acima de suas divergências, Cartaz do acervo do Setor de Segurança da Companhia Docas do Estado de São Paulo/CODESP. Acervo CODESP. pág. 108, jul/dez 2008 RVO ruía. Tomava outro caminho. Demitindo- Entre junho e dezembro de 1967, Carlos se da Executiva, tornava “público que mi- Marighella esteve em Cuba. Fora parti- nha disposição é lutar cipar da Conferência da OLAS, Organi- revolucionariamente junto com as massas zação Latino-americana de Solidarieda- e jamais ficar à espera das regras do jogo de, entre julho e agosto. Atendia ao cha- político burocrático e convencional que mado dos revolucionários cubanos para impera na liderança”.3 a formação no continente de uma inter- A resistência em maio de 1964 se trans- nacional guerrilheira para enfrentar o im- formou em ação nos anos seguintes. perialismo norte-americano, a reação, Mesmo que Marighella continuasse a levantando a América Latina em ondas enfatizar a resistência, que tanto des- revolucionárias. Ao participar da Confe- tacou naquele momento, agora, este rência, rompia com o Partido que, con- sentido estava em outra palavra: ação.

View Full Text

Details

  • File Type
    pdf
  • Upload Time
    -
  • Content Languages
    English
  • Upload User
    Anonymous/Not logged-in
  • File Pages
    18 Page
  • File Size
    -

Download

Channel Download Status
Express Download Enable

Copyright

We respect the copyrights and intellectual property rights of all users. All uploaded documents are either original works of the uploader or authorized works of the rightful owners.

  • Not to be reproduced or distributed without explicit permission.
  • Not used for commercial purposes outside of approved use cases.
  • Not used to infringe on the rights of the original creators.
  • If you believe any content infringes your copyright, please contact us immediately.

Support

For help with questions, suggestions, or problems, please contact us