The discrepancy of the eye: identity development of Nikkei communities in Brazil and

Peru (1900-present)

Dissertation

Presented in Partial Fulfillment of the Requirements for the Degree Doctor of Philosophy

in the Graduate School of The Ohio State University

By

Clara Carolyne Fachini Zanirato, M.A.

Graduate Program in Portuguese

The Ohio State University

2020

Dissertation Committee

Ulises Juan Zevallos-Aguilar, Advisor

Isis Barra Costa, Advisor

Lúcia Costigan

Giséle Manganelli Fernandes

1

Copyrighted by

Clara Carolyne Fachini Zanirato

2020

2

Abstract

“We invented the concept of Nikkei—we who are floating between land and ancestral

heritage in search of a home.”

Kaori Flores Yonekura

The purpose of this dissertation is to analyze how the floating Japanese identity was constructed in different ways in Brazil and Peru, and how this identity formation is visible within cultural productions. The overlapping of so many identity nodal points forces these immigrant community to re-create communities based on a common memory. Any vestige of cultural manifestation represents the glue that keeps these groups together. Therefore, the cultural productions of such groups reflect the struggles and the changes the Japanese immigrants went through to establish their Nikkei (Japanese descendants living outside Japan) identity within Brazil and Peru. The case studies I will be analyzing are contemporary (20th and 21st Century) literatures and movies produced by

Nipo- and Nipo-Peruvians about their own cultural identity. From Brazil, my selection includes the novel Nihonjin (2010), by Oscar Nakasato; the movies Gaijin- caminhos da liberdade (1980), directed by Tizuka Yamazaki, and Corações sujos (2010), directed by Vicente Amorim, an adaptation of the namesake book by Fernando Morais, a

Nikkei writer. My selection from Peru includes Augusto Higa Oshiro’s La iluminación de

ii

Katzuo Nakamatsu (2008), Nikkei (2011), directed by Kaori Flores Yonekura and “La inmigración japonesa en el Perú” (2019), produced by Norma Martinez for the television show Sucedió en el Perú.

My selection criteria consisted of searching for literary and artistic expressions that were projected inside and outside of Nikkei and national contexts and made their way around the world and back to Japan. The Brazilian pieces, products of the diaspora, were celebrated by the Nikkei community, became known by the national community and, were afterwards translated into Japanese/ English to be released in Japan1. The works from Peru are exceptional productions that received recognition from the Japanese

National Association as the most representative contemporary Nikkei expressions.

1 Gaijin: Roads to Freedom é a tradução do filme de Tizua Yamasaki lançado internacionalmente em 1981; Dirty Hearts ou 汚れた心, é a tradução do filme de Vicente Amorim lançando internacionalmente em inglês e japonês em 2012 devido ao grande número de falas em japonês e sua influência no Japão. iii

Dedicação

Dedicado ao meu pai, Alcides Zanirato

iv

Reconhecimentos

Gostaria de expressar minha sincera gratidão a Isis Barra Costa e Ulises Juan Zevallos-

Aguilar, por sua orientação e conselhos. Também gostaria de agradecer a Lúcia Costigan que acreditou em meu potencial e Giséle Manganelli Fernandes que me guiou desde os primeiros passos na universidade. Agradeço aos colegas Raphael Palermo dos Santos e

Ana Carolina Marques dos Santos por todo suporte nessa jornada acadêmica. Também agradeço aos meus pais Alcides Zanirato e Clarice Fachini Zanirato por seu amor e por não pouparem esforços para suprir minha educação básica. Por fim, agradeço ao meu marido Shaine McDaniel pelo carinho e compreensão através dessa maratona educacional.

v

Vita

Dezembro 2016 …………………..…... Colégio Santo André

Janeiro 2010 ...... B. A em Estudos da Tradução, UNESP

Maio 2016 ...... M.A. em Português, The Ohio State University

Maio 2016 – presente ...... Graduate Teaching Assistant, Departmento de

Espanhol e Português, The Ohio State University

Publicações

Fachini Zanirato, C. “História e representação: a identidade nipo-brasileira em Gaijin – Caminhos da liberdade (1980), produzido por Tizuka Yamasaki, e Brazil-Maru (1992), de Karen Tei Yamashita.” Transmodernity. Spring 2018.

Fachini Zanirato, C. “A opressão é uma via de mão dupla em Corações sujos, de Fernando Morais (2000).” Spanish and Portuguese Review, vol. 3, Fall 2017, pp. 99-110. SPR, www.spanishandportuguesereview.org/current-issue.

Campos de estudo

Campo de concentração: Português

Área de interesse: Brasil e estudos de migração

vi

Lista de conteúdo

Abstract ...... ii Dedicação ...... iv Reconhecimentos ...... v Vita ...... vi Lista de tabelas ...... x Lista de figuras ...... xi Glossário ...... xii Capítulo 1. Introdução à migração japonesa nas Américas ...... 1 1.1 Trajetória histórica: a imigração e suas condições socioeconômicas ...... 5 1.1.1 Japão: do xogunato Tokugawa às Américas ...... 9 1.1.2 Brasil: abolição da escravatura e políticas de branqueamento...... 13 1.1.3 Peru: dissolução coolie e a mão de obra nikkei ...... 22 1.1.4 Japão dividido: diferentes populações e considerações imigratórias ...... 25 1.1.4.1 Okinawa: o caribe japonês ...... 26 1.1.4.2 Japão: território de Hokkaido geral...... 28 1.2 As literaturas e a cinematografia nikkei: o reflexo da construção de uma identidade divergente ...... 32 1.3 Considerações gerais sobre a tessitura da identidade nikkei ...... 35 Capítulo 2. A identidade escrita: uma comparação literária entre o nikkei no Brasil e no Peru ...... 37 2.1 Nihonjin, de Oskar Nakasato: uma caminhada identitária ...... 40 2.1.1 O papel do gênero e a mobilidade identitária ...... 41 2.1.2 Imigração japonesa: o patriarcado culturalmente impenetrável ...... 42 2.1.3 Nihonjin mas não brasileiro: a importância das personagens femininas na manutenção da tradição...... 45 2.1.3.1 Mulheres sem voz: uma análise de Nihonjin...... 48 2.1.3.2 Kimie: a mulher “fraca” ...... 51 vii

2.1.3.3 A professora e o confronto patriarcal...... 60 2.1.3.4 Sumie: a ovelha desgarrada ...... 65 2.1.3.5 Um parêntese: a segunda esposa (Shizue) ...... 72 2.1.4 Considerações finais sobre os papeis familiares na obra de Nakasato ...... 77 2.1.5 Memória história e lembrança: a importância dos laços em Nihonjin de Oscar Nakasato ...... 81 2.1.5.1 Hideo e a memória japonesa do indivíduo ...... 85 2.1.5.2 O confronto de identidades e a diferença dos olhos ...... 93 2.1.5.4 Valeu a pena? ...... 101 2.2 La iluminación de Katzuo Nakamatsu, por Augusto Higa Oshiro: a dualidade identitária e o sofrimento do indivíduo nikkei ...... 105 2.2.1 Assimilação à comunidade: um parêntese ...... 111 2.2.2 O fantasma das identidades passadas: memórias coletivas versus pessoais .. 115 2.2.2.1 Perambulação ...... 118 2.2.2.2 Alter egos: a manifestação do sofrimento de Katzuo ...... 127 2.2.3 Vozes oprimidas...... 133 2.4.3.1 Mulheres e as vozes: um caminho para a liberdade ...... 139 2.2.4 Considerações gerais sobre a obra de Augusto Higa Oshiro ...... 146 2.3 Considerações gerais finais ...... 147 Capítulo 3. Nikkei no cinema: representações e visões ...... 149 3.1 Cine-narrativas nipo-brasileiras: um campo prolífico ...... 151 3.1.1 Gaijin: caminhos da liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki ...... 157 3.1.1.1 O título: forasteiros de si mesmos ...... 158 3.1.1.2 A comunidade e as memórias coletivas ...... 160 3.1.1.3 Imigrações e o “El Dorado”: gaijins de si mesmos...... 161 3.1.1.4 Narração: perspectivas de uma mulher nikkei ...... 163 3.1.1.5 Considerações finais sobre Gaijin ...... 165 3.1.2 Corações sujos (2011), de Vicente Amorim...... 166 3.1.2.1 A corrupção dos corações após a Segunda Guerra Mundial ...... 167 3.1.2.2 Traições, traduções e formas de sujar a reputação japonesa ...... 170 3.1.2.3 A perspectiva da narradora: o filtro da traição...... 174 3.1.2.4 A violência entre corações limpos e sujos ...... 177 3.1.2.5 Considerações gerais sobre uma aculturação violenta ...... 190 viii

3.2 Cine-narrativas peruanas: a escassez da representação ...... 192 3.2.1 Nikkei (2011), de Kaori Flores Yonekura ...... 193 3.2.1.1 Nikkei como condição e como identidade ...... 203 3.2.1.2 Saindo do Japão: o início da jornada ...... 205 3.2.1.3 Assentamento no Peru: desafios de uma vida nova ...... 218 3.2.2 Sucedió en el Perú: o retrato da imigração ao Peru e seus florescimentos .... 225 3.2.2.1 A materialização da memória cultural ...... 226 3.2.2.2 Símbolos de integração ...... 231 3.4 Considerações sobre cinema, imigração e o olhar nikkei ...... 233 Conclusão ...... 237 Bibliografia ...... 248

ix

Lista de tabelas

Tabela 1: porcentagem de imigrantes estrangeiros no Brasil ...... 6 Tabela 2: Imigração espontânea x imigração subsidiada no estado de São Paulo...... 19 Tabela 3: Imigrantes entrados no estado de São Paulo, segundo a nacionalidade 1872- 1971...... 20

x

Lista de figuras

Figura 1: Onna-bugeisha e espada naginata...... 31 Figura 2: Mulher escreve “corações sujos” em kanji em japonês ...... 175 Figura 3: Estúdio de fotografia de Takahashi ...... 176 Figura 4: Miyuki olha para seu marido ao fundo ...... 178 Figura 5: Soldado limpa as botas com bandeira japonesa ...... 182 Figura 6: Personagem japonês acusa compatriota de ser traidor ...... 183 Figura 7: Espada do personagem Takahashi ao assassinar o personagem Aoki ...... 184 Figura 8: Profissão do personagem Takahashi ...... 186 Figura 9: O personagem Takahashi explica para a personagem Akemi que ela é japonesa ...... 187 Figura 10: Escola japonesa na colônia de Tupã ...... 187 Figura 11: Professora protege os alunos da polícia ...... 188 Figura 12: Alunos observam seus livros queimando na fogueira ...... 189 Figura 13: Haiku que abre o filme Nikkei de Kaori Flores Yonekura ...... 206 Figura 14: Avós de Kaori que foram para a América Latina ...... 209 Figura 15: Avós de Kaori que não contaram sobre seu processo de imigração ...... 209 Figura 16: Kaori explicando que sofreu um processo de esquecimento ...... 210 Figura 17: Mulher usando quimono no metrô de Tóquio ...... 214 Figura 18: Japoneses usando roupas americanas dos anos 50 e dançando rock and roll 215 Figura 19: Kaori explicando que no Japão ela não é nikkei ...... 215 Figura 20: Senhora em um cemitério japonês explicando que seus avós não estão mais ali ...... 217 Figura 21: A mesma senhora explica que não pertence àquele lugar ...... 217 Figura 22: Casa sa senhora Kiyoko Higa e sua coleção religiosa peruana e japonesa ... 219 Figura 23: Senhora Kiyoko explica o altar do botsudã com referências católicas e budistas ...... 219 Figura 24: Kaori escreve sobre ser nikkei e latino-americana ...... 224 Figura 25: Norma Martínez em frente ao monumento da imigração japonesa em Cerro Azul, Cañete ...... 227 Figura 26: Cemitério japonês na fazenda Casablanca, no Peru ...... 228 Figura 27: Empresário japonês ...... 230 Figura 28: Estátua de Manco Cápac ...... 230 Figura 29: Japonês toureiro ...... 231 Figura 30: Angélica Harada, a princesinha de Yungay ...... 232

xi

Glossário

Nikkei Termo geral para descendentes de japoneses que vivem fora do Japão

Issei Primeira geração de imigrantes japoneses, ou primeira geração de uma família. O nome baseia-se na numeração japonesa, na qual “ichi” significa “um”.

Nissei Segunda geração de imigrantes japoneses, ou segunda geração de uma família.

Sansei Terceira geração de imigrantes japoneses, ou terceira geração de uma família.

Yonsei Quarta geração de imigrantes japoneses, ou quarta geração de uma família.

Nihonjin “Japonês” em japonês.

Gaijin “Estrangeiro” em japonês.

Decasségui “Trabalhador imigrante” em japonês com grafia adaptada ao português.

Kinshin “Penitência ou disciplina” no romance Nihonjin (2011) de Oscar Nakasato, o termo é usado para significar desobediência.

Kaikan Centro de atividades culturais japonesas de uma cidade.

Kachigumi “Vitorista”, indivíduo imigrante japonês que não acreditavam na derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e aterrorizavam os outros indivíduos que criam na derrota do país.

xii

Makegumi “Derrotista”, indivíduo imigrante japonês que acreditava que o Japão havia perdido a Segunda Guerra Mundial.

Shindo Renmei Associação “terrorista” criada para caçar os traidores da pátria japonesa que criam na derrota do país na Segunda Guerra Mundial.

Tokkotai “Soldado das forças especiais”, também usado para designar os indivíduos que assassinavam os makegumis.

Nippon-koku “Terra de japonês” em língua japonesa, Japão.

Furusato “Cidade natal”, a terminologia também carrega uma noção de nostalgia.

Haiku Poema japonês tipicamente escrito em três frases.

Onarigami Antiga crença dos povos Ryukyu que afirma que o domínio do reino espiritual pertence às mulheres.

Naginata Espada usada tipicamente pela classe samurai feudal japonesa. Essa é a arma típica da onna bugeisha.

Onna bugeisha Mulher samurai guerreira tipicamente pertencente a classe nobre feudal japonesa.

Giri Terminologia que carrega o senso de “obrigação” ou de “dever”.

Kamishibai Forma de teatro de rua japonês ou de contação de história pelo uso de marionetes de papel e uma pequena caixa de madeira.

xiii

Capítulo 1. Introdução à migração japonesa nas Américas

A pesquisa desta tese abrange um escopo de inquietações: começo investigando os conceitos de identidade nacional brasileira e peruana para em seguida analisar como o conceito de nikkei surgiu e se desenvolveu separadamente nessas duas sociedades. A partir de uma contextualização histórica analiso o produto das interações entre os imigrantes japoneses e os indivíduos do Brasil e do Peru e a formação de diferentes identidades nikkeis. Observo que enquanto no Brasil há uma

“dupla camada identitária” na qual se é brasileiro, mas também se é japonês, no Peru o ser nikkei é compreendido como uma forma de ser peruano. É importante reconhecer que o número significante de japoneses que migraram para a América

Latina também impactou o desenvolvimento das identidades nacionais de ambos países. Ao trazer não somente sua força de trabalho, mas também sua língua e cultura, a imigração japonesa para o Brasil e para o Peru foi massiva e as produções culturais reminiscentes desses sujeitos são o foco da minha tese.

O Brasil tem a maior concentração de descendentes de japoneses vivendo fora do Japão (aproximadamente dois milhões de pessoas, quase 1% da população do país), e o Peru tem a segunda maior população nikkei da América Latina

(aproximadamente cem mil pessoas, ou 0,3% da sua população) (Masterson 2004).

Entretanto, ainda há pouca literatura crítica sobre o desenvolvimento da identidade e

1 produções culturais nikkei nos contextos culturais brasileiros e peruanos

(Manzenreiter, 2017). Considerando o grande montante de estudos que englobam as diásporas europeia e africana nesses países, eu me pergunto por que essa diáspora massiva de japoneses ainda tem pouca representatividade?

Essa questão está ilustrada nas palavras de Jeffrey Lesser (2007): “Imigrantes não-europeus geralmente têm sido ignorados pela surpreendente lacuna histórica, apesar das milhões de pessoas envolvidas. Ainda, pesquisas sobre pessoas do oriente médio e asiáticos geralmente ocorrem fora das vias convencionais ou arquivos, e nesses mundos invisíveis, mas onipresentes, termos como ‘estrangeiro’ e ‘brasileiro‘ podem ser sinônimos” (x).2 Meu trabalho analisa as vozes onipresentes e pouco estudadas de nikkeis em textos, filmes e discursos brasileiros e peruanos. Busco com minha pesquisa contribuir para o entendimento de como a identidade japonesa nikkei desenvolveu-se em diferentes vieses dentro desses países nos séculos XX e XXI. É importante afirmar que a maioria das pesquisas escritas sobre a diáspora japonesa nas Américas (especialmente para o Peru e Brasil) revelam que os processos imigratórios foram similares para ambos países e originaram-se devido à situação político-econômica que o Japão enfrentava no final do século XIX. Entretanto, eu afirmo que enquanto no Brasil os imigrantes japoneses tiveram mais oportunidades para poderem permanecer fechados e preservarem práticas culturais e língua, no Peru os imigrantes não tiveram a mesma oportunidade porque precisaram deixar as fazendas onde trabalhavam e não tiveram outra opção a não

2 “Non-European immigrants have been generally ignored in the historiography, surprising lacunae, given the millions of people involved. Yet, research on the Middle Easterners and Asians often take place out of the main-stream or archives, and in these unseen but omnipresent Brazilian worlds terms like “foreigner” and “Brazilian” may be synonyms” (x). 2 ser migrar para as áreas urbanas (geralmente Lima e Callao) devido à geografia montanhosa do país. Assim, enquanto no Brasil os grupos de imigrantes permaneceram atrelados à sua identidade japonesa, no Peru eles precisaram se assimilar à sociedade que os rodeava para sobreviver. Consequentemente, esses fatores levaram os nikkeis brasileiros a se enxergarem com uma faceta identitária separada “preservada” enquanto os nikkeis peruanos enxergam-se como parte integrante da identidade nacional do país.

Este trabalho é um dos poucos projetos que se propõe a comparar a formação cultural identitária nikkei na América Latina. Autores nikkei peruanos majoritariamente escrevem em espanhol e encaram sua ancestralidade japonesa como parte da sua

“peruanidade”. Como o autor peruano Augusto Higa Oshiro afirma, “ser nikkei é uma forma de ser peruano” (“El nikkei”). Por outro lado, nikkeis brasileiros ainda se agarram fortemente à sua ancestralidade japonesa como uma faceta separada da sua identidade brasileira. Há pouca literatura nikkei produzida em português. No Brasil, o processo de incorporação da identidade nikkei como parte da identidade nacional iniciou-se muito recentemente. Mesmo havendo um avanço significativo nos Estudos Asiáticos nos países latino-americanos, ainda há uma falta substancial de análise cultural comparativa de trabalhos produzidos por nikkeis escritos em português e espanhol.

É necessário também ilustrar que as interações que aconteceram em ambos países moldaram a identidade nikkei de diferentes maneiras e que esses moldes estão refletidos nos materiais que aqui analiso. O corpus crítico sobre a experiência de imigração japonesa e seu desenvolvimento em nikkeis ainda permanece escasso. Há recentes contribuições históricas e críticas fundamentais que expandem esse campo de estudo,

3 especialmente de autores como Jeffrey Lesser, Ignacio López-Calvo, Fernando Iwasaki, e

Daniel Masterson e Sayaka Funada-Classen3 que abriram o caminho para pesquisas sobre o gênero. Partindo desses estudos e observando a ausência de estudos comparativos sobre o desenvolvimento identitário nas produções culturais do Brasil e do Peru, a proposta desta tese é traçar uma ponte sobre uma lacuna existentes entre estudos brasileiros, peruanos e japoneses.

Esta tese segue a seguinte estrutura: este primeiro capítulo introdutório foca na história da imigração japonesa para o Peru do final do século XIX até o período pós Segunda Guerra Mundial, e no Brasil do início do século XX até o período contemporâneo no século XXI, já o segundo capítulo e o terceiro capítulo analisam narrativas literárias e fílmicas nikkei brasileiras e peruanas como formas de representação da construção da identidade nikkei em ambos países. Neste primeiro capítulo explico os processos históricos de imigração entre o Japão, o Brasil e o Peru.

Apresento as condições sócio-político-econômicas de cada um e também os fatores que levaram o Japão a apoiar a emigração seus cidadãos e que fizeram o Brasil e o

Peru necessitarem da mão de obra japonesa. Ainda, discuto como se deu a evolução dos assentamentos dos grupos imigrantes e seu desenvolvimento até os dias atuais dentro das respectivas sociedades. Após essa contextualização, passo a uma descrição breve do conteúdo dos meus capítulos e também explicito o porquê da escolha de tais obras como representantes da comunidade nikkei no Brasil e no Peru.

3 A Discontented Diaspora: and the Meanings of Ethnic Militancy, 1960–1980 (2007), de Jeffrey Lesser, The Affinity of the Eye: Writing Nikkei in Peru (2013), de Ignacio López-Calvo, Extremo Oriente xogunato Perú en el siglo XVI (1992), de Fernando Iwasaki, The Japanese in Latin America (2004), de Daniel Masterson e Sayaka Funada-Classen. 4

1.1 Trajetória histórica: a imigração e suas condições socioeconômicas

Para começar a discutir o processo de assimilação japonesa dentro do Brasil e do

Peru, é necessário que olhemos para os processos históricos que possibilitaram e impulsionaram essas mudanças migratórias. Para construir uma base que fundamente meus argumentos, pretendo explicitar os processos históricos do Japão, Brasil e Peru antigos e modernos e como eles enquadraram a identidade migrante japonesa, dando a ela a forma nikkei atual.

Discutirei primeiramente como as mudanças no cenário histórico japonês ocorreram e forçaram o país a se “desfazer” de alguns de seus cidadãos sob a pretensa de uma representação internacional que traria honra ao país. Isto é, ao afirmarem que a nova onda emigratória seria para a glória japonesa, o governo da época coloca os migrantes em um caminho “colonizador” e de lealdade eterna ao Japão, o que os impediu – de princípio- de desenvolver uma relação identitária com seu novo país (Brasil ou Peru)

Ao mesmo tempo que o Japão passava por processos de renovação histórica, mudança de regimes governamentais e uma reestruturação geral do país, na América

Latina, os novos governos também procuravam uma forma de estabelecer uma identidade nacional que pudesse representar valores identitários internacionalmente.

No Brasil, após a libertação dos escravos em 1888, o governo brasileiro tinha a necessidade de mão de obra que fosse considerada “qualificada” principalmente para o trabalho nas lavouras de café, e que fosse branca o suficiente para se encaixar em um projeto de “embranquecimento” da nação. Deste modo, o Brasil abre as portas para

5 diversos imigrantes europeus que também aceitaram deslocarem-se para o país pelas dificuldades que estavam passando em seus territórios. A ideia geral do governo era

“importar” o maior número possível de europeus brancos para poder contrabalancear a população brasileiras que se encontrava “poluída” devido a enorme presença de africanos/escravos em seu meio. Assim, italianos, alemães, portugueses e espanhóis

(entre outros) mudaram-se para o Brasil em busca de novas oportunidades de trabalho. A maioria desses imigrantes em São Paulo constituía-se pelos indivíduos que vieram da

Itália. Segundo o site de estatísticas de povoamento do IBGE em 2000, de 1884 a 1903 a maioria dos imigrantes brasileiros eram provenientes da Itália (ver gráfico). Após a intervenção do governo italiano nas políticas migratórias em 1903, esse número diminuiu cerca de 40% devido aos abusos que os imigrantes sofriam nas fazendas brasileiras.

Tabela 1: Porcentagem de imigrantes estrangeiros no Brasil

6

Foi a partir daquele momento que o número de imigrantes japoneses começou a crescer facilitado pelas políticas brasileiras e acordos com empresas migratórias japonesas. A maneira mais fácil de continuar o plano de embranquecimento nacional após o declínio italiano era a impulsionar outras nacionalidades que se encaixassem no mesmo “padrão” a migrarem para o Brasil. De acordo com Kingsberg:

Entretanto, apoiadores da imigração japonesa, inverteram o alarme para afirmar

que o Brasil tinha muito a aprender do Japão e dos japoneses. Eles elevavam o

Japão como um modelo para o Brasil como um estado homogêneo, civilizado e

economicamente produtivo dentro dos mesmos rankings de grandes poderes.

Defensores dos japoneses valorizavam sua lealdade, patriotismo e vontade de

trabalhar. Para muitos cientistas sociais brasileiros e politicos**, bem como para

os próprios japoneses, os japoneses eram os “brancos” da Ásia, os quais as

características raciais poderiam influenciar a população domestica heterogênea.

(73)4

Assim, sendo vistos como os brancos da Ásia, eles se encaixariam perfeitamente dentro de valores brancos-europeus de sociedade que o governo brasileiro tentava construir no início do século XX. De acordo com Jeffrey Lesser, “Dupla assimilação era a chave para criar uma identidade nacional clara: conforme os colonos se tornassem brasileiros, o

4 Proponents of Japanese immigration, meanwhile, inverted this alarm to argue that Brazil had much to learn from Japan and the Japanese. They praised Japan as a model for Brazil's future as a homogenous, "civilized," and economically productive state within the ranks of the great powers. Defenders of the Japanese valorized their alleged loyalty, patriotism, and willingness to work hard. For many Brazilian social scientists and policymakers, as well as Japanese themselves, the Japanese were the "whites of Asia," whose attributed racial characteristics might positively influence the heterogeneous domestic population. (73)

7

Brasil se tornaria como a Europa” (7)5. E o quanto mais se aproximassem dessa dupla assimilação, mais o país se tornaria “embranquecido”.

Do mesmo modo, no Peru, a abolição da escravatura para africanos ocorre com a declaração do presidente Ramón Castilla y Marquezado em 1854.6 Essa transformação coloca o país em uma necessidade de mão de obra que se disponibilizaria a trabalhar nas plantações sob condições similares às dos escravos. Assim, o Peru abre suas portas para imigrações em massa. Primeiro vieram os chineses e, então, os japoneses, que totalizariam a segunda maior população nikkei na América Latina.

Primeiramente analisarei as condições que impulsionaram a imigração do ponto de vista japonês, com uma imagem histórica antiga e sua comparação com a realidade moderna. Em seguida trabalharei com a história brasileira e sobre como as condições sociais e econômicas no país enquadraram a imigração japonesa de uma certa maneira específica diferentemente da imigração ao Peru. Na terceira parte, focarei em como se teceu a história peruana para que a migração japonesa fosse necessária no país e o que levou esses indivíduos a se assimilarem mais rapidamente do que no Brasil.

5 “Double assimilation was the key to creating a clear national identity: as colonists became Brazilian, Brazil would become Europe” (7).

6 Ressalto que somente o tratado escravo de africanos foi abolido em 1854 pois a escravidão continuou para outros povos no Peru. De acordo com Doug Munro, no seu artigo “The Peruvian Slavers in Tuvalu, 1863: how many did they kidnap?”, a eliminação da escravidão no Peru somente significou a libertação dos africanos no país, uma vez que: “In 1982-83, thirty-two vessels bearing the Peruvian flag and one whaleship from Tasmania engaged in what has since become known as the Peruvian Slave Trade. In an attempt to alleviate the country’s chronic labor shortage, they kidnapped or otherwise recruited some 3,300 Polynesians and further 312 from Kiribati in Micronesia” (43). 8

1.1.1 Japão: do xogunato Tokugawa às Américas

A grande emigração japonesa deveu-se majoritariamente pela troca do regime vigente no Japão. A mudança de eras de governo no país também acarretou mudanças extremas nas vidas dos cidadãos que se encontraram presos na transição de um regime feudal para uma economia capitalista. Esse choque impôs tarifas e impostos a indivíduos que jamais haviam experimentado um sistema capitalista de taxação, e que já viviam abaixo da linha de pobreza antes mesmo da implementação do novo regime.

Enquadro a presente análise a partir de 1868, momento da transição entre as eras

Edo e Meiji, entre um regime feudal e um sistema capitalista, entre uma nação com fronteiras fechadas e a abertura para influências externas e contatos estranhos. É a partir dessa transição que ocorre o grande êxodo de cidadãos a procura de melhores oportunidades, de uma vida com mais qualidade, mas que também juraram serem fiéis ao

Japão pois um dia voltariam “para casa”.

De acordo com Ruth Corrêa Leite Cardoso, durante a era Edo, a imigração era proibida e qualquer tentativa de deixar o país implicaria em punição com a morte (151).

Com as fronteiras fechadas para o mundo, o Japão pré-Meiji era majoritariamente agrário. A sociedade japonesa rural era, em sua maioria, composta por vilas compactas e densamente populadas. Entretanto, esses arranjos semiurbanos possuíam um caráter corporativo onde todos cumpriam uma função e estavam organizados hierarquicamente.

A sociedade estava fortemente estruturada sobre o bushido, ou o código de honra samurai. Tal código regia a maneira de se viver em sociedade com princípios como honra, ética e hierarquia com fortes valores de regramento social, enquanto também

9 enfatizava a prática de artes marciais e a valoração da classe samurai. Após a mudança da classe samurai para fora dos vilarejos, houve a possibilidade desses pequenos agrupamentos se desenvolverem melhor socioeconomicamente, pois não estavam mais subjugados a um código que lhes separava em castas e não tinham mais os seus senhores samurais presentes. Entretanto, a permanência do “espírito do bushido” dentro do sistema cultural japonês vai, mais tarde, influenciar a lealdade ao imperador, a saída do país em busca de novas oportunidades e a fidelidade incontestável ao Japão pelo mundo.

De acordo com Daniel M. Masterson e Sayaka Funada-Classen, a era do governo feudal militar/ xogunato Tokugawa, vigente de 1600 até 1868, começou a preparar o pequeno agricultor para a transição a uma sociedade capitalista trazida pela era Meiji ao introduzir pequenos incentivos monetários para o pequeno produtor. Assim, eles aprenderiam que poderiam “crescer sozinhos” e lhes garantir alguma independência de uma estrutura feudal (6). Ou seja, as pequenas vilas agricultoras eram autossustentáveis, unidades independentes de um governo maior. Esses valores que começaram a ser cultivados na era pré-Meiji seguem na sociedade através da mudança socioeconômica e, também, na migração em busca de melhores oportunidades. Os autores também afirmam que:

Estudos recentes parecem indicar que valores japoneses da era pré-Meiji

permitiram maiores mudanças e iniciativas individuais do que se achava

previamente. Como Eiko Ikegami afirma no seu estudo recente, aqueles valores

pré-Meiji incluíam um conceito de honra entre a classe dos samurais que estava

sempre em evolução e tornou-se um idioma... para auto expressão, uma fonte de

10

inspiração, ou a legitimação de uma escolha ou decisão’. Ikegami rejeita a

imagem de uma cultura histórica japonesa que premiava ‘harmonia e coragem e

consenso sobre todos os valores’. Sua interpretação sugere que a coragem e a

iniciativa dos líderes da Era Meiji estavam plantadas sobre valores formados

durante a Era Tokugawa”. (7)7

Ou seja, valores como, por exemplo, o empreendedorismo individual, bem como os códigos de honra que moldaram as sociedades seguem com os indivíduos que migraram para as Américas. Esses princípios que vieram “a tiracolo” vão, mais tarde, também moldar a identidade nikkei que cada país vai desenvolver.

Após a transição de imperadores e a queda do xogunato de Tokugawa, o país emerge como o primeiro industrializado da Ásia. Essa modernização custou aos pequenos camponeses muitos impostos que os levaram a falência e a pobreza extrema. Ao mudar o cenário econômico do país, o novo governo da era Meiji acabou colocando um fardo sobre os ombros dos pequenos produtores das vilas independentes. Na tentativa de unificação do território, a imposição de impostos sobre agricultores que nunca haviam lidado com tais cobranças acarretou um ônus a sua produção e ao seu modo de viver. Não mais podendo arcar com os custos da manutenção das suas terras e propriedades, eles foram forçados a buscarem trabalho em outros lugares. Assim, surge a ideia do trabalho

7 Recent scholarship seems to indicate that pre-Meiji Japanese values allowed for more change and individual initiative than previously believed. As Eiko Ikegami convincingly argues in her recent study, those pre-Meiji values included an evolving concept of honor among the Samurai class that became ‘an idiom… for sell expression, a source of inspiration, or a legitimization of a choice or decision.’ Ikegami rejects the image of historical Japanese culture that prized ‘harmony and courage and consensus above all values.’ Her interpretation suggests that the courage and initiative of the early Meiji leaders was grounded in values shaped during the Tokugawa era.” (7) 11 temporário. Não era possível migrar para outras partes do Japão em busca de trabalho

(movimento decasségui), uma vez que o “mercado” já estava supersaturado de outros pequenos agricultores que sofriam das mesmas condições, então a solução era migrar para outras partes do mundo.

A primeira abertura de fronteiras do país levou muitos a viajarem para países mais próximos em busca de oportunidades8. Além da migração para outros países asiáticos como a China ou Coreia, muitos sujeitos acabaram viajando para o Havaí a partir de

1880. As ilhas não eram ainda oficialmente território estadunidense, mas já em 1885 o território contava com trinta mil trabalhadores japoneses com contratos de trabalho temporário. Quando as ilhas foram incorporadas ao território dos EUA em 1900, havia mais de sessenta mil trabalhadores japoneses na ilha que, a partir daquele momento, poderiam também deslocar-se para estados como a Califórnia ou Oregon em busca de outras oportunidades (Thorndike). Devido ao Ato de Exclusão Chinesa, assinado em

1882, os Estados Unidos haviam criado uma demanda de trabalho braçal agricultora e industrial.

Os japoneses, de acordo com Thorndike, assim como os chineses, tinham a fama de aceitarem “qualquer trabalho” por pouco salário. Deste modo, a abertura à imigração japonesa nos EUA também causou um superfaturamento da oferta de trabalhadores, o que acabou enterrando a oferta de trabalhadores americanos, que demandavam melhores

8 Durante a era Edo, o território japonês tinha suas fronteiras fechadas para qualquer influência externa. Não era possível estabelecer negócios ou receber imigrantes, e todo indivíduo que tentasse sair do país era punido com morte sob a acusação de traição. Deste modo, eles ficaram fechados por mais de 200 anos a vetores externos. Os únicos mercantes que tinham permissão para fazer negócios com o Japão eram Portugal e Holanda, os quais somente aportavam em um ponto específico da costa e tinham acesso extremamente limitado ao território. 12 condições e salários mais altos. Os japoneses estavam dispostos a trabalhar mais horas, em trabalhos pouco atraentes que pagavam menos para poder comprar terras e se estabelecer no país como um grupo étnico forte que pudesse replicar seu estilo de vida japonês. O ressentimento por parte dos americanos cresceu exponencialmente devido a livre iniciativa e a criação de empregos por japoneses. Sindicatos de trabalhadores americanos e vários donos de negócios se viram prejudicados com o avanço japonês e começaram a pressionar o governo para que houvesse uma exclusão desses imigrantes e para que seu crescimento fosse barrado. Deste modo, em 1907, o presidente Theodore

Roosevelt assina um Acordo de Cavalheiros com o Japão, proibindo a imigração de novos indivíduos para as ilhas do Havaí e para os EUA, mas permitindo que os japoneses que já estivessem nos EUA recebessem familiares.

Com a assinatura desse acordo, a nova onda imigratória japonesa passa a buscar uma nova saída para seus trabalhadores. A partir desse ato, as empresas e agências que coordenavam as imigrações de trabalhadores começam a olhar mais seriamente para os países da América Latina, em especial o Brasil e o Peru.

1.1.2 Brasil: abolição da escravatura e políticas de branqueamento

Sabe-se que início da onda migratória para o Brasil não começou somente após a abolição da escravidão. Muito antes da proclamação, habitavam em terras brasilis diversos núcleos étnicos africanos, europeus e até mesmo asiáticos. Entretanto, por questão de organização, atentar-me-ei ao período pós-abolicionista no qual acontecem as grandes migrações voluntárias em massa de europeus e asiáticos para o país. Para abordar

13 essa parte, olharei para as primeiras ondas migratórias para o país como um todo para então focar no processo japonês.

Após a proclamação da emancipação escrava no Brasil, criou-se um vácuo de trabalho braçal principalmente nas plantações de café no sudeste do país. O estado de São

Paulo estava deslanchando na produção do grão, mas (descartando a possibilidade de empregar escravos libertos) via-se sem mão de obra que pudesse suprir sua demanda na produção. Houve, na verdade, dois grandes períodos de grandes imigrações para o país. O primeiro, em meados do século XIX, foi impulsionado pela oferta de terras que o governo criou no sul do país. Havia uma necessidade de povoamento na região do sul, e os governantes usaram da estratégia das terras para povoar essa parte do país. A partir de

1870, o cenário econômico do país transitou de uma economia expressamente baseada na produção de cana-de-açúcar para a produção de café no sudeste do país. Como o tráfico de escravos já havia sido suspenso, e a abolição aconteceu logo em seguida, a saída para os fazendeiros foi apostar na vinda de imigrantes europeus.

O incentivo para a vinda desses imigrantes não somente tinha a ver com o fim da escravidão, mas também com o projeto de embranquecimento do país. Havia uma preocupação por parte do governo que a população do país havia se desviado do padrão fenotípico europeu devido ao alto número de afrodescendentes. Uma população de fenótipo escuro não ajudaria o Brasil a alcançar um status semelhante ao europeu: país

“desenvolvido”, de primeiro mundo. A solução que o governo encontrou foi a de apostar na política do embranquecimento. Para tal missão, a necessidade de mão de obra nas

14 lavouras e o conceito de branqueamento juntaram esforços para a importação de europeus.

A ideia dos negros e indígenas no país era de que eles possuíam genes degenerativos que estavam deliberadamente manchando o status quo do país. O governo planejava “criar indivíduos saudáveis” pela sanitização da raça no Brasil ao “importar” pessoas de uma raça superior de traços mais nobres. Segundo Jérry Dávila, no seu texto

Diploma de brancura (2006) apud Ricardo Augusto dos Santos, no período entre as duas grandes guerras buscou-se formar indivíduos saudáveis, produtivos e plenamente integrados, numa reação às concepções deterministas que influenciaram os pensadores brasileiros, fazendo-os acreditar que a população brasileira, em sua maioria, era constituída por homens degenerados, indolentes, analfabetos e doentes (221).

Assim, Dávila argumenta que:

as décadas iniciais do século passado foram marcadas pelo esforço de muitos

intelectuais em divulgar a eugenia, então considerada como um antídoto para os

males do país, através da publicação de livros e panfletos e da organização de

associações e congressos. A eugenia teria sido, então, uma tentativa científica de

aprimorar os indivíduos por meio do melhoramento de seus traços genéticos.

Segundo as teorias racistas que associavam degeneração à miscigenação, a união

de indivíduos de etnias diferentes produzia incapazes, degenerados, indolentes, ou

mesmo com tendências para a criminalidade. Isto porque, segundo os partidários

da teoria da degeneração racial, os mestiços recebiam traços diversos e mesmo

antagônicos dos seus pais de raças diferentes. Portanto, essa herança racial

15

entrava em conflito ao se miscigenar, produzindo indivíduos instáveis e

incapacitados para a vida civilizada, que exigia disciplina, trabalho e ordem.

Dávila argumenta que, diante dessa interpretação pessimista do país, uma ciência

que prometia aperfeiçoar a raça nacional logo alcançaria prestígio: o pessimismo

em relação ao perfil racial nacional poderia ser superado quando as práticas do

eugenismo fossem adotadas. Percebida como uma arma capaz de melhorar a raça

e o futuro do Brasil, a eugenia encontrou entre educadores e médicos seus mais

importantes divulgadores. (222)

Deste modo, uma limpeza moral e social juntamente com o fornecimento de mão de obra agricultora estava garantida de certa forma. De acordo com Funada-Classen e Masterson:

“as elites de São Paulo esperavam que a imigração europeia proveria uma força de trabalho capaz e subserviente, que eventualmente substituiria os escravos libertos, os quais eles consideravam através da ideologia da vadiagem, ou a crença que pessoas de cor eram unanimemente preguiçosos e irresponsáveis” (24)9. Ainda, a sociedade fazendeira de São Paulo também esperava que imigração europeia levaria ao embranquecimento da população, uma vez que a miscigenação (como exposto por pensadores como Gilberto Freyre) era considerada um aspecto positivo no controle populacional.

Os primeiros grupos não ibéricos a imigrarem para o Brasil foram os alemães, que habitaram os estados do sul do país quando, a partir de 1820, o governo começou a

9 “São Paulo’s elites hoped that European immigration would provide a capable yet servile labor force to augment and eventually fully replace the freed slaves, whom they regarded with what has been called the ideologia de vadiagem, the belief that people of color were innately lazy and irresponsible” (24). 16 distribuição de terras para o povoamento do Paraná, Santa Catarina, e .

Ainda de acordo com Funada-Classen e Masterson várias tentativas foram feitas de aumentar o número de imigrantes europeus, mas de 1820 a 1870 as estatísticas não passaram de alguns poucos milhares por ano (24). Entretanto, somente após a instituição da escravidão enfraquecer, 218.000 imigrantes entraram no país na década de 1870

(25)10.

De acordo com Giovani Balbinot, o Brasil passou a ser visto pelas autoridades italianas como “como uma terra insalubre e bárbara, assolada pela falta de higiene e pestilência, onde as relações de trabalho eram permeadas por um tratamento semelhante ao dispensado ao cativo africano a poucas décadas liberto, tanto no que tange as humilhações e hostilidades físicas e psicológicas, quanto em relação a falta de liquidação dos empenhos financeiros devidos aos imigrantes após os trabalhos na cafeicultura.” (5).

Assim, em 26 de março de 1902, assina-se o Decreto Prinetti que: “definia a suspensão da licença especial conferida a quatro companhias de navegação e a um pequeno ‘vetor’ para realizar transporte transatlântico gratuito de emigrantes italianos para o Brasil, além de coibir as operações de recrutamento por parte dos agentes contratados por estas companhias e proibir a emigração subsidiada para o Brasil” (9). Deste modo, os números de imigrantes que chegaram ao Brasil caíram entre 1901-1910, justamente quando a imigração japonesa estava começando.

10 Após a desinstitucionalização da escravidão, os números de imigrantes no país escalaram e somente diminuíram após o final do contrato de trabalho italiano no Brasil, em 1902. 17

Para entendermos a imigração para São Paulo de uma perspectiva mais ampla, é necessário considerar que dentro do período de 1827-1939, 2.439.490 imigrantes desembarcaram no porto de Santos. Desse total, 38,8% eram italianos, 17.4% portugueses, 15.8% espanhóis e 7.7% japoneses (Funada-Classen e Masterson 25).

Mesmo que o número de japoneses pareça pequeno, ainda se é considerado como uma fatia significante do número de imigrantes que chegaram ao país bem após a migração massiva pré-Primeira Guerra Mundial. Ainda, é necessário considerar que tipicamente, os sujeitos japoneses eram agricultores, provenientes de áreas rurais, de uma cultura completamente diversa e diferente da que se estava implantada no Brasil.

É interessante ainda ressaltar, de acordo com Funada-Classe e Masterson, que mesmo que as condições das plantações de açúcar no país não fossem tão angustiantes como as no Peru (das quais os europeus se recusavam a participar) o trabalho mal pago nos cafezais paulistas nunca foram tão atrativos quanto as oportunidades na Argentina e nos EUA para os europeus. Esse fato, somado à mentalidade escravocrata dos fazendeiros parece explicar por que o Brasil, mesmo possuindo terrenos vastos, nunca atraiu grandes números de imigrantes antes da Primeira Guerra Mundial (26).

Após o Decreto Prinetti, os fazendeiros paulistas estavam mais uma vez a procura de mão de obra que pudesse suprir o tipo de trabalho em condição de semiescravidão que ocorria nos cafezais. Cientes que os imigrantes japoneses estavam suprindo as necessidades de mão de obra das plantações no Havaí, EUA, México e Peru, os fazendeiros brasileiros apostaram no subsídio dos imigrantes japoneses para trabalharem em seus campos a partir de 1908.

18

De acordo com o Arquivo do Estado de São Paulo sobre Imigração, haviam dois tipos de imigração para o estado, a subsidiada pelo governo e a espontânea:

Tabela 2: Imigração espontânea x imigração subsidiada no estado de São Paulo

A imigração subsidiada pelo governo geralmente envolvia tratados entre ambos países e agências de imigração, como as usadas pelos italianos e japoneses. Entretanto, esse subsídio era descontado dos pagamentos dos imigrantes ao começaram a trabalhar nos campos de café ou cana de açúcar no país. Havia assim uma certa garantia aos fazendeiros de que esses trabalhadores não conseguiriam se desvencilhar de suas dívidas com os donos das terras, garantindo sua permanência no ciclo de produção agrária. Isso se passava uma vez que a maioria dos colonos ou imigrantes eram provenientes de

19 regiões empobrecidas e não poderiam custear suas viagens. Assim, para poder imigrar, precisariam arcar com as dívidas e com as condições que ambos governos lhes impunham: geralmente era necessário que se imigrasse dentro de um grupo familiar ou que se fosse homem solteiro para poder trabalhar nas plantações brasileiras. Como mostra a estatística abaixo, não somente os japoneses concordaram com essas condições, mas também alemães, italianos, portugueses e espanhóis:

Tabela 3: Imigrantes entrados no estado de São Paulo, segundo a nacionalidade 1872- 1971

20

Como mencionado anteriormente, foi somente a partir do Acordo de Cavalheiros assinado entre EUA e Japão que os números de imigrantes japoneses na América do Sul começaram a crescer. Impedidos de entrar nos EUA, foi necessário que encontrassem outro país que os recebessem. Assim, em 1908 chega ao porto de santos o primeiro navio de imigrantes japoneses, o Kasato-maru, trazendo a bordo 781 indivíduos que estavam dispostos a enfrentar as condições de trabalho nos cafezais com a esperança de, um dia, poder retornar ao Japão 11.

Antes de passar para o histórico do Peru, gostaria de chamar atenção para a citação de Funada-Classen e Masterson que traça uma comparação entre os processos de imigração japonesa para o Brasil e para as Américas falantes de espanhol:

A imigração japonesa pra o Brasil, diferentemente daquela para a américa

hispânica, foi fortemente subsidiada e acompanhada por um significante

investimento de capital por interesses brasileiros e japoneses. Essas

considerações, a demanda por trabalho japonês nas plantações de café e a

disponibilidade de terras para a criação de colônias japoneses nos estados de São

Paulo e Paraná explicam em grande parte o sucesso do experimento da imigração

japonesa no Brasil após 1908. Em sumo, com as oportunidades na América do

Norte fichadas para a maioria dos japoneses, e com condições de trabalho severas

11 É sabido que mesmo que os imigrantes japoneses soubessem que iriam trabalhar com agricultura, eles não poderiam imaginar quais eram as condições de trabalho de semiescravidão dentro dos cafezais paulistas. Uma grande fonte de desilusão foi a descoberta dessas condições, uma vez que eles não eram informados sobre a situação pelas empresas de imigração japonesas. Seus contratos não eram cumpridos e, logo após chegarem ao país, percebiam que o sonho do retorno a pátria japonesa e a esperança de melhores condições de vida não aconteceria tão cedo.

21

e oportunidades econômicas limitadas no Peru, o Brasil oferecia mais esperança

aos pioneiros isseis na América Latina. Como discutido anteriormente, a

escravidão Africana e o trabalho europeu subsidiado atrasaram a chegada dos

primeiros imigrantes japoneses ao Brasil. Entretanto, os esforços para trazer esses

japoneses ao Brasil começaram em meados de 1980. (42)12

1.1.3 Peru: dissolução coolie e a mão de obra nikkei

Assim como a imigração japonesa para outras partes das Américas, no Peru a importação de indivíduos provedores de trabalho braçal para as plantações de cana-de- açúcar e algodão foi fortemente influenciada pela abolição da escravidão. A partir de

1854, ano da libertação dos escravos no país, os fazendeiros das plantações peruanas começaram a encarar uma situação de falta de mão de obra braçal no país. Embora a imigração de trabalhadores chineses fosse incentivada desde os finais dos anos 1830, foi somente após a abolição da escravidão no país que a economia se voltou mais fortemente para os coolies. De acordo com Marco Aurélio dos Santos:

O termo coolie é uma generalização usada desde o século XIX e se refere a

asiáticos de variadas culturas e origens (chineses, indianos ou pessoas de outras

12 Japanese immigration to Brazil different from that Spanish America in that it was heavily subsidized and accompanied by significant capital investment by both Brazilian and Japanese interests. These considerations, the demand for Japanese labor on the coffee plantations and the availability of land for the creation of Japanese colonies in the state of São Paulo and Paraná largely explain the ultimate success of the Japanese immigration experiment in Brazil after 1908. In sum, with opportunities in North America closed to most Japanese, and with harsh working conditions and limited economic opportunities prevailing in Peru, Brazil offered the most hope for the Issei pioneers in Latin America. As discussed earlier, African slavery and subsidized European labor delayed the arrival of Brazil’s first Japanese immigrants. Nevertheless, efforts to bring the Japanese to Brazil began as early as the mid-1890s. (42) 22

procedências) que trabalharam sob contrato em diversas partes da economia-

mundo capitalista, especialmente no século XIX. Em um sentido pejorativo, alude

às pessoas com baixa qualificação que tiveram de migrar compulsoriamente e

foram submetidas a regimes de trabalho que, malgrado a rubrica “livre”,

estiveram sujeitas a condições degradantes e violentas em diversas sociedades,

como nas regiões escravistas e pós-escravistas da América. (6)

Assim como em Cuba, onde 125 mil coolies trabalharam com os escravos africanos nos campos de cana-de-açúcar, os primeiros imigrantes asiáticos no Peru, antes de 1874, eram na verdade “escravos assalariados”. Segundo Funada-Classem e Materson, os fazendeiros peruanos viam os coolies como indivíduos “melhores que os escravos e sem os mesmos problemas” (20). Assim eles eram contratados na China com um empréstimo em dinheiro chinês para poderem migrar. Esse empréstimo era descontado de seus salários ao chegarem ao Peru. O aprisionamento desses trabalhadores aos senhores das terras por meio de dívidas e empréstimos vai assombrar esses imigrantes durante vários anos. Mesmo após o término do contrato coolie, esses fazendeiros ainda encontravam maneiras de manter os chineses aprisionados em suas fazendas em condições de semiescravidão. Ainda após 20 anos do término da imigração chinesa ao Peru, os donos de terras se aproveitavam da condição miserável desses trabalhadores para suprir sua demanda de mão de obra braçal.

É interessante mencionar aqui, segundo Funada-Classe e Masterson, que os chineses que sobreviveram aos campos de plantação de cana-de-açúcar eram muitas vezes odiados pela classe trabalhadora peruana, que ressentiam as condições nas quais

23 eles aceitavam trabalhar, sua oferta de preços menores e seu sucesso no comércio urbano de Lima (21). Desse modo, o ressentimento não somente aos chineses, como também a outros grupos asiáticos levará o país à perseguição dos negócios japoneses no início do século XX.

Assim como no México, o Peru não conseguiu atrair grande número de imigrantes europeus antes de 1890 devido a mudanças políticas e econômicas. Assim, como no

Brasil, a partir de 1890 o governo peruano começa a encorajar imigrações, em sua maioria de alemães e italianos, com o estabelecimento da Lei de Imigração e Colonização de 1983. Especialmente focando em imigrantes europeus, essa legislação nunca resultou nos números de imigrantes no Peru que o mesmo movimento obteve no Brasil, o que é explicável majoritariamente pela falta de terras aráveis no território peruano, seu ambiente político instável e suas estruturas sociais rígidas.

A dissolução do Tratado dos Coolies em 1874, a demanda britânica pelo algodão peruano, a abolição da escravatura, e o insucesso das migrações europeias no país criaram uma grande procura de trabalho considerado “qualificado” para as plantações de cana-de-açúcar e algodão nos campos do Peru. Esses fatores alinhados à necessidade de migração japonesa enquadrou um cenário que favoreceria a imigração dos sujeitos japoneses para trabalhar em condições de semiescravidão e substituir tanto a mão de obra escrava quanto a mão de obra chinesa.

A partir de 1889, chegam ao país vários navios de japoneses que buscavam uma oportunidade de cumprir o sonho de dinheiro fácil em outro país e do retorno a sua terra natal em melhores condições. Entretanto, esses sujeitos não chegaram a um país que

24 estava ansioso para recebê-los. Os imigrantes japoneses encontraram uma sociedade já marcada pela presença asiática chinesa, pela escravidão de africanos e por condições subumanas de trabalho especialmente relacionada a novas populações migrantes.

Encontraram ainda uma sociedade que já apresentava traços de preconceito contra povos asiáticos devido a presença dos chineses e seus sucessos nos pequenos negócios urbanos que muitas vezes desbancavam a concorrência peruana. Esses imigrantes sofreram assim vários preconceitos e desafios ao se instalarem nas grandes cidades (especialmente em

Lima) após terminarem seus contratos de trabalho agrário13.

No próximo segmento, chamarei a atenção para os diferentes tipos de populações japonesas que imigraram para o Brasil e para o Peru e quais foram os desenvolvimentos baseados nas suas práticas culturais. É sabido que a maioria da população japonesa que imigrou ao Brasil veio da ilha de Hokkaido enquanto a população que migrou para o Peru partiu das ilhas de Okinawa. Assim, a bagagem cultural de cada grupo vai desempenhar um papel importante na maneira como se deu o desenvolvimento da identidade nikkei em cada país.

1.1.4 Japão dividido: diferentes populações e considerações imigratórias

É sabido que o território japonês é composto por várias ilhas que foram incorporadas dentro de um mesmo “território nacional” por acordos e guerras entre si.

Entretanto, é necessário destacar que todas essas ilhas diferentes possuíam culturas,

13 Explico mais detalhadamente sobre essas diversidades mais adiante tanto neste mesmo capítulo como nos capítulos seguintes quando introduzo o romance de Augusto Higa Oshiro e o documentário de Kaori Flores Yonekura.) 25 práticas e línguas diferentes que mais ou menos se justapunham. Assim, ao se incorporarem dentro de uma mesma “identidade nacional” várias dessas pequenas diferenças culturais foram erradicadas em prol da concepção e da necessidade de uma

“cultura em comum.”

Deste modo, o que se entende vastamente por imigração japonesa no mundo é a ideia de que os povos originários dessas ilhas que possuem uma cultura em comum e homogênea migraram em busca de uma oportunidade melhor em outro país. Entretanto, não se consideram as diferenças culturais que esses povos-iguais-mas-diferentes carregaram quando migraram. Mais especificamente, há uma diferença significante entre os povos que imigraram ao Brasil dos povos que imigraram ao Peru. A maioria dos imigrantes japoneses que viajaram para o Brasil eram provenientes das ilhas maiores e mais próximas: Hokkaido, Honshu, Shikoku e Kyushu, enquanto os sujeitos que imigraram ao Peru eram, em sua maioria, provenientes da ilha mais distante: Okinawa.

Desse modo, há também uma diferença significativa no “tipo de cultura japonesa” que se entranhou nos países.

1.1.4.1 Okinawa: o caribe japonês Há quinhentos anos, antes mesmo de fazer parte do território japonês, Okinawa era uma província governada pelo império de Ryukyu14, administrado pela China. Esse império era constituído por várias pequenas ilhas que possuem localização estratégica entre Taiwan a Tailândia e as ilhas principais do Japão. Isso lhes conferia um status

14 O Império Ryukyu, nome derivado da monarquia Ryukyun e parte do estado tributário chinês, governou as ilhas de Okinawa de 1429 até 1879, quando foi tomada pelo Império Edo japonês. 26 geopolítico importante entre os dois grandes impérios japonês e chinês. Por ter sido um reino independente antes de fazer parte do governo japonês, Okinawa possui uma cultura significantemente diferente da cultura das ilhas principais. Por estar próximo à China, a cultura okinawense foi grandemente influenciada pelo contato com a essa cultura, diferindo em práticas e línguas das do Japão (Pearson 122).

Ao ser incorporada oficialmente ao território japonês, a ilha e seus habitantes passaram por vários processos de colonização e, ao mesmo tempo diferenciação. Era do interesse da nação que se compartilhasse de uma cultura em comum. Desse modo

Okinawa foi destituída de práticas culturais próprias para adquirir práticas tradicionais japonesas ou suas práticas foram nomeadas como inferiores, rurais e não aculturadas. Ou seja, caso não mudassem suas práticas culturais em um esforço colonizador do governo japonês, a cultura de Okinawa seria considerada secundária, ínfera, e indigna de ser reconhecida como parte da identidade nacional (Pearson 122-123).

Ao contrário de uma cultura estritamente patriarcal, as práticas religiosas okinawenses tendem a ser mais centradas nas mulheres. De acordo Monica Wacker: “Na ilha de Okinawa, onde um sistema de clãs patrilíneos começou a se espalhar entre os camponeses durante o século XVII, as sacerdotisas dos clãs eram limitadas às mulheres.

Eles adoravam os ancestrais do clã – as ancestrais eram chamadas de onarigami e o ancestral era chamado de wekerigami em Shuri” (342)15. Assim, mesmo possuindo uma estrutura familiar patriarcal, havia algumas situações das quais as mulheres estavam

15 “On Okinawa Island, where the patrilineal clan system began to spread among the peasants during the eighteenth century, the clan priestesses were usually limited to women. They worshipped the ancestors of the clan— the ancestress was called onarigami and the ancestor wekerigami in Shuri” (342).

27 inteiramente encarregadas: “Okinawa construiu um ligar onde espiritualidade e tradições eram mantidas vivas como, por exemplo, em formas especiais de adoração de ancestrais ou certos rituais feitos por xamãs mulheres chamadas yutas” (Hein 182)16.

Diferentemente dos outros japoneses das ilhas principais que praticavam o catolicismo, os imigrantes de Okinawa tinham uma conexão mais profunda com as práticas religiosas indígenas que eram praticadas em seu território. Como veremos no romance de Augusto

Higa Oshiro, o personagem principal é guiado e liberado por uma yuta que o salva de seus fantasmas.

Deste modo, ao imigrarem massivamente para o Peru, os cidadãos de Okinawa sofreram uma dupla exclusão: por não serem peruanos e por não pertencerem à mesma

“classe cultural” que os japoneses das ilhas maiores. Essa discriminação foi carregada através do desenvolvimento da identidade assimilativa desses sujeitos dentro do país de modo que até os dias atuais, okinawenses carregam essa divisão: sou japonês, mas sou de

Okinawa. Como comentado em uma entrevista que fiz com a autora Doris Moromisato, a cultura okinawense se assimilaria mais facilmente à cultura indígena peruana, e por isso afirmo que esses sujeitos teriam se integrado mais facilmente dentro àsociedade.

1.1.4.2 Japão: território de Hokkaido geral Quando olhamos para a cultura japonesa das ilhas principais, percebemos que as proximidades dos territórios possibilitaram que suas práticas culturais permanecessem mais similares. Com uma cultura estruturalmente rígida e patriarcal, com valores de

16 “Okinawa is constructed as a place where spirituality and ‘traditions’ are kept alive, like, for example, special forms of ancestor worship or certain rituals performed by female shamans called yuta” (Hein 182). 28 honra, respeito e lealdade pela sua comunidade (giri)17, a cultura japonesa Naichi

(território japonês composto pelas ilhas maiores e mais próximas) difere-se da de

Okinawa. Com sua cultura também fortemente influenciada pela China, esse território conta com uma identidade “integrada” de pelo menos 2600 anos, fortemente construída sobre o sincretismo das comunidades indígenas que lá habitavam. Focarei aqui nos princípios do bushido, patriarcado familiar e da religião cristã, uma vez que acredito serem esses os fatores que divergiram as modificações identitárias de seus imigrantes pelo mundo.

O princípio do bushido, como já mencionado anteriormente, remete-se ao código de honra do samurai. Assim, vários valores que compõem a identidade japonesa atual e também o giri vieram dos princípios ilustrados por esse conceito: lealdade, honra e comprometimento com a comunidade/ país. Outro fato interessante é que a classe samurai no Japão antigo era majoritaria, mas não exclusivamente masculina. Antes da criação da classe samurai e da era Tokugawa, algumas esposas de guerreiros do império tinham a obrigação de defender suas casas enquanto o esposo estava em batalha. De acordo com o site Kusuyama de arquivos samurais, o título dessa classe de guerreiras era onna bugeisha (figura 1). Além disso, as esposas dos oficiais militares do antigo Japão tinham a obrigação de defender o lar e saber usar armas (especialmente a naginata – espada samurai tipicamente usada por mulheres nas artes marciais japonesas.). Como

17 Giri segundo Ruth Benedict, é um valor indígena japonês que até os dias atuais prevalece dentro da comunidade. Não há uma tradução específica para essa terminologia, mas ela se relaciona com os valores de obrigação moral ou de serviço ao seu superior com devoção incondicional: “On not only means obligation, but also debt, loyalty, kindness and love, and debt in Japan has to be carried the best an individual can” (2)

29 responsáveis pela estabilidade da família dentro do sistema patriarcal e por seu bem-estar na ausência do esposo, cabia à mulher garantir que a estrutura familiar não se desfizesse.

Como veremos mais adiante, a esposa também era a responsável pela preservação da identidade nas famílias imigrantes. No romance de Oscar Nakasato, por exemplo, há o aparecimento de duas personagens; uma esposa ruim por não “defender” e ajudar seu lar e seu marido, e uma esposa boa pois se doa incondicionalmente dentro dos princípios giri para seu esposo e filhos. Finalmente, dentro dos aspectos religiosos, a disseminação da religião católica cristã dentro das ilhas maiores do Japão também corroborou para que a estrutura patriarcal prevalecesse. Devido aos tratados de comércio com Portugal e depois com a Espanha, estabelecidos a partir de 1543, o contato dos japoneses com missionários católicos havia sido estabelecido. Sendo assim, a missão de evangelização jesuíta

“conquistou” vários japoneses. Segundo Brett L. Walker, em 1579, já havia mais ou menos cento e trinta mil japoneses convertidos ao catolicismo (46). O contato constante com uma religião nova, significava que o quadro social do país também estava mudando.

Uma vez que essa nova prática religiosa ameaçava a estabilidade da sociedade japonesa, quando o xogunato Tokugawa se estabeleceu em 1603, o catolicismo foi banido do território japonês. Isso fez com que muitos japoneses praticassem essa religião escondidos. Consequentemente, um dos pequenos fatores que influenciou a migração desses sujeitos para a América Latina também foi a liberdade da prática de sua religião.

30

Figura 1: Onna-bugeisha e espada naginata

A história prévia dos sujeitos migrantes japoneses e dos países que os receberam afetou profundamente a maneira como sua identidade se desenvolveu dentro do Peru e do

Brasil. O Brasil possuindo em sua maioria imigrantes católicos dentro de uma unidade familiar e provenientes das ilhas principais do Japão e de áreas “urbanas”, e o Peru recebendo homens solteiros de Okinawa que predominantemente carregavam consigo uma cultura religiosa matriarcal indígena e rural.

31

1.2 As literaturas e a cinematografia nikkei: o reflexo da construção de uma identidade divergente

No segundo capítulo, procuro analisar como as produções literárias representantes do Brasil e do Peru refletem as negociações identitárias presentes no dia-a-dia das respectivas populações. Isto é, analiso uma literatura que reflete a vivência dos imigrantes japoneses e verifico marcas que caracterizam o desenvolvimento de uma identidade nikkei. Foco nas produções literárias Nihonjin (2011) de Oscar Nakasato e La iluminación de Katzuo Nakamatsu (2008) de Augusto Higa Oshiro.

O romance de Oscar Nakasato é um testemunho da memória do legado japonês no

Brasil. O livro nos conta a história de Hideo Inabata, um homem japonês que decide se mudar para o Brasil em busca de novas oportunidades de vida no começo do século XX.

A história é narrada do ponto de vista do neto de Hideo e representa as dificuldades que a família de imigrantes japoneses sofreu por três gerações. O texto ilustra uma história que não foi vastamente exposta e o faz através dos olhos de um nikkei, em português. Além ser escrita em português, é o primeiro romance nikkei a ganhar um prêmio Jabuti em

2012 no Brasil, um Bunkyo18 (2011) e um Prêmio Benvirá (2011). Antes de Nihonjin, nenhuma outra publicação em português ou japonês que representasse o processo de imigração japonesa havia sido nacionalmente reconhecida com prêmios literários como os mencionados. Além disso, o texto de Nakasato chega agora ao Japão: Nihonjin está em processo de tradução para o japonês para ser publicado como um símbolo da representação da identidade nikkei brasileira.

18 Reconhecimento da instituição nipo-brasileira Bunkyo dado a obras nikkeis que impactam a sociedade japonesa e brasileira. 32

O romance de Augusto Higa Oshiro é um entre muitos outros romances nos quais o autor reflete profundamente sobre o que é ser nikkei (nisei) dentro da sociedade de

Lima, no Peru. Katzuo Nakamatsu é um professor que se torna assombrado e é afogado por memórias. A partir desse distúrbio, o personagem começa a questionar sua identidade, seu lugar como indivíduo na sociedade e também seu papel como ser humano. Somente no final do romance descobre-se que ele era somente uma ferramenta das vozes de um passado coletivo que precisavam de uma via para se manifestar. Ele era um vaso que continha as vozes fantasmas/memórias de japoneses imigrantes que precisavam denunciar as atrocidades que sofreram. Quando ele conseguiu dar voz a essas memórias, ele conseguiu ter paz.

Meu critério de seleção levou em conta o impacto que ambas obras têm dentro das suas comunidades nikkeis próximas e suas projeções tanto em âmbito nacional quanto internacional. Tanto Nihonjin quanto La iluminación de Katzuo Nakamatsu são reflexos das suas comunidades. As obras também servem como espelhos das comunidades no

Brasil e no Peru, uma vez que foram reconhecidas como literaturas importantes nacionais

(por ganharem prêmios literários nacionais como o Jabuti no Brasil e o Premio Nacional de Creación Literaria no Peru).

No terceiro capítulo analiso como produções fílmicas dois filmes brasileiros, um documentário peruano/venezuelano e um episódio de uma série documental peruana.

Vejo através desses materiais como diretores, atores e roteiristas nikkeis compõem e representam suas histórias, suas imagens e suas identidades. Também foco em como o discurso identitário se manifesta em materiais diferentes dos analisados anteriormente.

33

Assim, implico uma continuidade em vários tipos de obras que apresentam uma coerência discursiva, que parecem confirmar minhas hipóteses identitárias para ambos países. O primeiro filme que analiso é Gaijin – caminhos da liberdade (1980), dirigido por Tizuka Yamazaki e Corações sujos (2011), por Vicente Amorim baseado no livro homônimo publicado por Fernando Morais em 2000. Em seguida, analiso Nikkei (2011), dirigido por Kaori Flores Yonekura e “Inmigración japonesa en el Perú” do programa

Sucedió en el Perú produzido por Norma Martinez para TV Perú.

Gaijin conta a história de uma família de imigrantes japoneses que decide deixar o Japão e tentar sua sorte nas fazendas brasileiras. Ao chegarem ao novo país, deparam-se com uma situação de trabalho de semi-escravidão. Por isso, decidem fugir para a cidade grande, onde esperam ter melhores condições de vida. Corações sujos representa uma sequência histórica desses japoneses que já vivem em complexos urbanos. Na vila de

Tupã, no interior de São Paulo, alguns japoneses incrédulos e revoltados com a perda da

Segunda Guerra Mundial decidem se rebelar contra os cidadãos traidores da pátria nipônica. Todo sujeito japonês que acreditasse que o Japão havia perdido a guerra estava com o “coração sujo” e deveria se eliminado.

Já o filme de Kaori Flores Yonekura apresenta uma linha de tempo semelhante que se inicia com seus avós deixando o Japão no final do século XIX até o período pós

Segunda Guerra Mundial quando decidem se mudar para a Venezuela. O episódio

“Inmigración japonesa en el Perú” de Sucedió en el Perú, faz um apanhado geral da história da imigração japonesa para o país focando em algumas personalidades nikkeis de destaque dentro do país. É importante frisar que todos os nomes destacados no programa

34 são reconhecidos por assumirem e promoverem em suas obras tanto sua peruanidade quanto sua faceta nikkei.

Enquanto o Brasil e o Peru têm produções literárias nikkei significativas, as criações cinematográficas são muito mais proeminentes no Brasil do que no Peru. Com uma história televisiva e cinematográfica rica, diretores e produtores brasileiros investiram na história da imigração japonesa ao fazerem filmes e novelas que abordam o tema. Em canais de televisão aberta, há exemplos de novelas que abordam o legado da imigração japonesa no Brasil (como por exemplo “Sol nascente” (2016), criada por

Walther Negrão, ou a websérie NipoBrasileiros de 2019 produzida pela Pietà Filmes e

Produções). Já no Peru, produções televisivas e cinematográficas especificamente sobre os nikkeis no país não são prolíficas. Há somente poucos documentários ou episódios televisivos produzidos sobre a imigração japonesa ao Peru, como no caso do material analisado (Sucedió en el Perú), e a maioria desses aborda memórias pessoais e testemunhos. Talvez, a contribuição mais recente e mais relevante seja o filme de Kaori

Flores Yonekura, Nikkei. O filme é uma das poucas produções que misturam o gênero documentário e ficção para retratar a memória e o legado da comunidade japonesa dentro de um contexto peruano.

1.3 Considerações gerais sobre a tessitura da identidade nikkei

Ao longo da minha tese, afirmarei que apesar de terem processos de imigração extremamente semelhantes, as identidades nikkei brasileira e peruana tomaram rumos opostos devido a alguns fatores: composição dos grupos migrantes, geografia, presença

35 asiática no país, desenvolvimento econômico e cultural desses sujeitos. Então, devido a fatores como esses, afirmo que as identidades diferenciaram-se nos seguintes vieses: 1) a identidade nikkei brasileira gerou uma dupla camada identitária nas quais o sujeito descendente de japonês navega diariamente, negociando entre o “ser japonês” e o “ser brasileiro”; 2) a identidade nikkei peruana já faz parte do tecido identitário nacional, tendo suas tradições, práticas e povos reconhecidos como partes culturais nacionais, ou seja há uma única camada identitária (a peruana), uma vez que “ser nikkei é uma forma de ser peruano”. O uso da conjunção adversativa confere um caráter de negação à afirmação de ser brasileiro, privilegiando assim a camada japonesa de sua identidade em detrimento à brasileira. Já no Peru, afirmo que há uma camada singular identitária, onde o fato de ser japonês já está costurado à identidade peruana. Como o autor Augusto Higa

Oshiro explica: “ser nikkei é uma forma de ser peruano” (“El nikkei”). Isso implica que a identidade nacional peruana já reconhece esse grupo migrante como uma das facetas da sua identidade e não como uma adjunção.

36

Capítulo 2. A identidade escrita: uma comparação literária entre o nikkei no Brasil e no Peru

As manifestações artísticas e literárias são uma extensão identitária dos seres humanos. Poder representar a si mesmo, ou a seu grupo, por meio da literatura, arte ou cinema confere às pessoas um novo campo discursivo no qual elas podem desenvolver e firmar suas identidades. Assim sendo, neste primeiro capítulo, escolhi analisar em sua integridade íntegra os livros de Oscar Nakasato Nihonjin (2011), e de Augusto Higa

Oshiro, La iluminación de Katzuo Nakamatsu (2015). Dentro destes testemunhos narrativos, há vários vieses para analisar a memória dos povos japoneses na América

Latina. Escolhi destacar e analisar os impulsos que levaram essas comunidades a desenvolver os mecanismos identitários que elas usam para se relacionar com o tecido da identidade nacional em ambos os países: Brasil e Peru. Afirmo que, devido aos diferentes processos de assimilação dentro de ambos países, a comunidade japonesa no Brasil desenvolveu uma dupla camada identitária enquanto a comunidade japonesa no Peru se considera parte integrante da identidade nacional, desenvolvendo assim uma camada

única identitária.

Os trabalhos de Nakasato e Higa Oshiro são marcos literários que representam a história e a identidade dos imigrantes japoneses e seus descendentes nipo-brasileiros e

37 peruanos respectivamente. Mais especificamente japoneses e okinawenses19. Considero ambas narrativas como vasos de memórias, testemunhos. Ao recontar suas memórias,

Hideo e Katzuo representam um grupo maior de imigrantes que podem não ter tido as mesmas oportunidades de registrarem suas preocupações, as opressões que sofreram, suas práticas culturais e a maneira pela qual navegaram e negociaram sua integração à sociedade na qual estão inseridos. Há, entretanto, uma diferença intrínseca clara entre os romances de Nakasato e Higa Oshiro: a maneira como se representam as relações entre japoneses e brasileiros/ peruanos em seus romances. Afirmo que a identidade japonesa se manifesta de maneiras diferentes no Peru e no Brasil apesar de ambos países terem a história do seu processo de imigração similar. Por causa das condições de imigração que esses sujeitos enfrentaram, é nota vel que no Brasil houve o desenvolvimento de uma dupla camada de identidade nikkei, isto é, no Brasil o sujeito nikkei encara sua identidade japonesa como uma faceta a parte da sua identidade brasileira (“sou brasileiro, mas sou japonês”). Já no Peru, a faceta japonesa foi incorporada/integrada ao conceito de identidade nacional peruana. Como afirma Higa Oshiro: “El nisei no es mitad japonés ni

19 Digo que são povos diferentes, embora Okinawa seja parte constituinte da nação japonesa nos dias atuais. Ainda que Okinawa pertença ao território japonês, a ilha e seus povos possuem costumes e tradições que divergem bastante da ilha principal japonesa. Após a anexação de Okinawa ao território japonês, os sujeitos okinawenses (sendo trabalhadores braçais, fazendeiros) passaram por um processo difícil para serem considerados “japoneses”. De acordo com Hiroto Matsuda: “Japanese migrants who had different social and economic backgrounds also struggled to become ‘Japanese’, which was imagined as a superior group. The struggles over classification were intensified on the social margins, such as in the everyday life of unskilled labourers, people from rural areas or minorities like Okinawans” (690). Havendo costumes, tradições, e culturas diferentes, esses dois povos precisaram co-habitar dentro do novo império e da nova identidade japonesa, entretanto as manifestações culturais no Brasil e no Peru seguem diferenciando-se, também, devido à essa divergência cultural trazida dos povos japoneses. (O Brasil continua possuindo uma maioria japonesa enquanto o Peru possui uma maioria okinawense). 38 mitad peruano. No, el nisei es una forma de ser peruano, pero sin renegar de nuestras raíces japonesas. Eso es todo” (“El nisei”).

Os romances de Nakasato e Higa Oshiro são a concretização de uma memória que pedia uma manifestação. O registro do processo de integração pelo qual os japoneses passaram no Brasil e no Peru, ajuda a entender a identidade cristalizada desses imigrantes. É necessário considerar que há ainda uma ideologia de se preservar o relacionamento com o imaginário do “antigo Japão” (rural, tradicional), e por isso há a necessidade do recontar de tais memórias para trazer justiça aos olhos do nikkei moderno como uma maneira de se reconectar a essa identidade antiga e latente. Isto é, o recontar dessas memórias traz à luz a identidade nikkei, e isso faz com que as novas gerações tenham algum laço que ainda as uma ao seu passado japonês. Analisarei a seguir o romance Nihonjin (2011), e focarei em como as mulheres são retratadas dentro de um sistema patriarcal da sociedade japonesa imigrante e quais são os seus papeis como mantenedoras das tradições dentro da comunidade imigrante no Brasil. Analisarei também como a voz reprimida de Hideo, o personagem principal de Nihonjin, constrói sua identidade dentro do ambiente cultural brasileiro. Em seguida focarei no romance La iluminación de Katzuo Nakamatsu (2013), e analisarei como o protagonista se mostra um individuo atormentado por uma falta de conexão com sua identidade japonesa e sua ancestralidade, o que evidencia a camada única identitária peruana. Na análise de La iluminación, trabalharei com o papel das personagens femininas (a personagem yuta) que serve como agente facilitador da reconexão de Katzuo com suas raízes (ou com as múltiplas vozes que ele carregava dentro de si).

39

2.1 Nihonjin, de Oskar Nakasato: uma caminhada identitária

O romance Nihonjin (2011) de Oscar Nakasato conta a história do personagem principal, Hideo, e o desenvolvimento da história da sua família após imigrarem do Japão para o Brasil desde seu primeiro casamento até seu relacionamento com os netos. O romance foca em como as relações familiares foram se modificando e se desenvolvendo conforme as novas gerações nikkeis foram nascendo no país. Entretanto, nota-se a dificuldade do personagem principal em criar um relacionamento com a sociedade brasileira devido aos traumas que sofreu durante a imigração e também devido ao sentimento de lealdade que carrega pela sua terra natal. Nihonjin é o primeiro romance nikkei brasileiro a ganhar reconhecimento nacional e internacional a ponto de receber o maior prêmio literário (Jabuti) do país.

A história do personagem é contada através dos olhos do neto, que começa contando sobre o processo de imigração para o Brasil e os trâmites para sair do Japão:

Hideo precisava estar casado e dentro de um grupo familiar para embarcar na jornada.

Assim, casa-se com Kimie, sua primeira esposa. Ao chegarem no Brasil, começam a trabalhar numa plantação de algodão no interior do estado de São Paulo. Kimie, entretanto, tem vários problemas para se ajustar ao novo ambiente/cultura e, ao mesmo tempo, sofre com as discriminações de seu marido. Hideo considera Kimie uma mulher fraca para sustentar um casamento e uma família no Brasil pois ela não o ajuda na plantação e nem “cuida” dele como ele esperava de uma esposa japonesa. Assim sendo,

40

Kimie adoece e se sucumbe ao delírio de suas memórias sobre o Japão. Após sua morte,

Hideo casa-se com Shizue.

2.1.1 O papel do gênero e a mobilidade identitária

A partir desse ponto, é necessário explicar um pouco sobre os papéis de gênero dentro da sociedade japonesa. Antes de as ideias do confucionismo chegarem ao Japão e impactarem a sociedade durante a Era Edo (1603-1867), o papel das mulheres dentro da sociedade era equiparável ao papel do homem. Entretanto, devido a introdução de novas ideias dentro de uma era tão fechada, o Japão mudou significantemente sua composição familiar baseando-se nos valores confucionistas de humanidade, lealdade, moralidade e consideração em níveis individuais e políticos. A Era Edo foi caracterizada pelo bushido explicar e a ordem samurais de organizar a sociedade. Ambos ideais eram fundamentados nos valores de Confúcio que em última instância também delimitavam os papéis de gênero dentro da estrutura familiar e da sociedade. Os homens deveriam ser os provedores dentro da casta específica e, mesmo as mulheres possuindo um certo nível de mobilidade social, seu papel de gênero primário era cuidar da unidade familiar, comandar a casa e ser a mantenedora de práticas culturais. Homens deveriam ser leais aos seus senhores e as mulheres deveriam ser leais aos seus maridos.

Quando a imigração para as Américas começou no final do século XIX e começo do século XX, os imigrantes que foram persuadidos a migrar vieram de uma casa e sociedade que foi construída em cima dos princípios mencionados acima. Os grupos familiares que foram para o Brasil e os trabalhadores homens solteiros que foram para o

41

Peru vieram de uma sociedade com papéis de gênero bem definidos por ideais confucionistas no qual o homem é o provedor e a mulher é a cuidadora da família (“A

Look at Gender”). Quando a recessão abalou o Japão na transição da Era Edo para a Era

Meiji, muitos desses trabalhadores imigrantes foram obrigados a fugir do seu país para encontrar em outras nações uma maneira de sobreviver e sustentar suas famílias (sejam as famílias que imigraram junto com seus patriarcas ou as que permaneceram e precisavam de suporte do patriarca imigrante).

2.1.2 Imigração japonesa: o patriarcado culturalmente impenetrável

No início dos movimentos de migração e assentamento, houve uma gde necessidade de os sujeitos migrantes fortalecerem o laço cultural e linguístico com a sua nação de origem para que eles pudessem ter algo que os unisse e os mantivesse fortes dentro da nova nação que os discriminanava. A ideia era preservar sua identidade para que eles pudessem retornar ao Japão não como expatriados, mas como cidadãos que supostamente nunca saíram de seu país. Assim sendo, a comunidade japonesa baseou-se na ideia de sistema patriarcal que mantinham no Japão, com um homem sendo o chefe da família e a mulher sendo a cuidadora da casa e da família. De acordo com Sidinalva

Wawzyniak:

Os imigrantes japoneses para manter o elo de pertencimento à sociedade de

origem e, ao mesmo tempo, negociar os termos de sua inserção em uma outra

sociedade, eles estabeleceram relações que incluíam valores culturais como

família, trabalho, educação e religião. Portanto, buscaram em sua tradição os

42

fatores que lhes possibilitaram a construção de uma representação simbólica em

terras estrangeiras.

[…]

Assim, fundamentada na hierarquia – encabeçada pelo pai ou o primogênito –, na

tradição e herança cultural – que significa assumir a responsabilidade pela

reprodução e manutenção do grupo doméstico –, a família que se reproduz no

Brasil também se organiza como uma unidade de produção, aproximando-se cada

vez mais do conceito de família japonesa “ie”.

Consequentemente, os grupos de japoneses imigrantes permaneceram fechados dentro de comunidades que eram culturalmente impenetráveis para que eles pudessem garantir a preservação da sua identidade japonesa.

Mesmo os imigrantes japoneses tendo uma presença significante na constituição da sociedade brasileira, sua assimilação20 dentro do corpo identitário nacional foi permeada por atos de violência precisamente por causa da sua condição como sujeitos migrantes. Ann E. Cudd afirma que: “opressão é um mal institucionalmente estruturado perpetrado nos grupos sociais por outros grupos usando forças materiais, econômicas e psicológicas diretas ou indiretas” (21).21 Consequentemente, ao comparar essa definição com a ideia de violência sistêmica de Zizek’s em “The Tyrant’s Bloody Rope” percebe-

20 Uso o termo assimilação invés de integração pois quero enfocar o processo que levou os japoneses a mudar seus costumes para serem aceitos dentro da sociedade brasileira. Assimilação destaca o processo no qual um certo grupo migrante deixa de praticar seus costumes para fazer parte de uma nova sociedade enquanto integração destaca o processo no qual a nova sociedade abre espaço para novas práticas culturais trazidas por imigrantes.

21 “oppression is an institutionally structured harm perpetrated on social groups by other groups using direct and indirect material, economic, and psychological force” (21). 43 se que esse tipo de violência/opressão é entendido como jogo de forças entranhados dentro de um sistema social (2). Nos casos de Nakasato e Higa Oshiro há dois grupos (os nipo-brasileiros e os nipo-peruanos) que têm sistemas de organização baseados em uma estrutura patriarcal e eles estão constantemente renegociando seus valores intrínsecos para sobreviver nos novos países, o que resulta na exclusão de sujeitos não cooperativos ou desafiadores.

Ainda de acordo com Cudd, o sistema de opressão funciona como um jogo no qual o oprimido é tratado como um único indivíduo e o opressor ganha um tipo de vantagem após prejudicar o oprimido com algum tipo de degradação moral. Nesse caso, entendo que os patriarcas em ambos romances oprimem as mulheres para poderem manter o status quo dentro do sistema patriarcal que significantemente define suas identidades. Assim, dentro dos grupos analisados aqui, o círculo de opressão (as violências recebidas ou percebidas pelos homens) se projeta sobre os indivíduos mais vulneráveis dentro dos seus próprios círculos, que no caso seriam as personagens femininas. Uma vez que as mulheres dentro dos romances oferecem algum tipo de resistência à opressão patriarcal, elas acabam por ser eliminadas de suas histórias/testemunhos. Dentro de ambos romances, nenhuma personagem feminina tem voz própria, sendo apenas descritas pelos narradores masculinos. Assim, nesse trabalho seguirei identificando as opressões sobres as mulheres nos romances e procederei analisando como essa opressão é sintetizada como parte da identidade narrativa dos imigrantes japoneses.

44

2.1.3 Nihonjin mas não brasileiro: a importância das personagens femininas na manutenção da tradição

Analisando o romance Nihonjin de Oscar Nakasato percebemos como memórias transgeracionais dos imigrantes japoneses no Brasil se originam com os primeiros grupos de migrantes. O imaginário do Japão para os nipo-brasileiros continua primordialmente atrelada à construção desses primeiros grupos e não ao do Japão contemporâneo. Ou seja, o relacionamento estabelecido dentro da comunidade nikkei no Brasil ainda louva as tradições rurais de um país em um tempo medieval às quais os nipo-brasileiros não têm mais acesso. Então, percebemos a especificidade da memória que compõe a identidade migrante. Com as memórias orais passadas de geração em geração, há a preservação dessa imagem de Japão da Era Tokugawa/Edo,22 o que dificulta que indivíduos com tradições familiares fortemente enraizadas abandonem a ideologia/identidade japonesa para se relacionar mais fortemente com sua faceta brasileira. Afirmo isso porque os velhos valores japoneses eram baseados no conceito de lealdade à nação e ao imperador.

Assim, quando os indivíduos nikkeis ligam suas identidades a algo que não represente a

“terra natal” nipônica, esse gesto é encarado como uma traição aos valores tão louvados e preservados.

Há vários indivíduos nipo-brasileiros (mesmo aqueles os quais entrevistei para essa pesquisa) que acreditam firmemente que a identidade japonesa dentro do Brasil não vai se modernizar tão cedo devido a essa ligação “errônea” de uma grande maioria aos ideais identitários dos primeiros imigrantes. Quando eles encaram o Japão como única

22 A Era Edo, do xogunato de Tokugawa, pode ser considerada como a Era Medieval japonesa, uma vez que as práticas econômicas e sociais se limitavam à agronomias rurais pois o país era fechado para influências externas. 45 fonte de sua ancestralidade, sua identidade de nascença, eles acabam por rejeitar a conexão com sua identidade brasileira em algum nível. Ainda em um nível mais contemporâneo, vemos a presença forte de tradições japonesas medievais (como por exemplo na culinária) se manifestando como referência de um Japão que só existe no imaginário nikkei brasileiro. Ou seja, esses sujeitos continuam agarrando-se a memórias de uma configuração terra/sociedade que não mais existe, o que previne esses mesmos sujeitos de se relacionarem mais profundamente com os valores que eles querem transmitir ou incorporar enquanto habitam a sociedade brasileira.

Oscar Nakasato deixa claro em sua obra a importância das comunidades migrantes para os japoneses que vieram ao Brasil. Havia um medo do novo, medo do outro que habitava o novo país. Como afirma Kingsberg, esse isolamento da sociedade brasileira aconteceu de ambos os lados da moeda (73). De um lado, havia a nova sociedade brasileira que ainda estava se estabelecendo e formando o conceito de identidade nacional. Do outro lado, havia os grupos de japoneses imigrantes que acreditavam que “No meio de gaijin23, um nihonjin sozinho é fraco, é uma vara fácil de ser quebrada. Não estamos no Japão, e aqui no Brasil a gente não sabe em quem pode confiar. Mas, se nos mantivermos juntos, seremos um feixe, e ninguém poderá nos quebrar” (Nakasato 61). Essa afirmação é um reflexo direto da violência e opressão que esses imigrantes receberam ao chegar no Brasil. Eles perturbaram o maior desejo dessa nova sociedade de parecer homogeneamente branca e “superior” em um mundo no qual

23 Terminologia que significa estrangeiro, mas dentro desse contexto Hideo usa a terminologia para descrever qualquer pessoa que não fosse japonesa (ou nihonjin).

46 essa nova nação brasileira havia acabado de se estabelecer como autônoma. Ainda de acordo com Kingsberg, a sociedade brasileira “geralmente destaca os imigrantes japoneses como um obstáculo a este objetivo, rotulando-os como ‘cistis’ inassimiláveis ao corpor nacional, “amarelos e indissolúveis como sulfúrio” (73)24.

A razão pela qual esse agrupamento foi necessário baseava-se no fato de eles não poderem se misturar ou se integrar a indivíduos que não compartilhavam dos mesmos credos e práticas culturais. Eles não queriam ser “contaminados” por outra cultura, pois só assim poderiam retornar para casa (Japão) quando fosse possível e serem aceitos como cidadãos nihonjins e não meros gaijins ou decasséguis. A tática de grupos fechados não impediu que eles sofressem os mais variados tipos de opressões da sociedade brasileira e do ambiente que os cercava, a tática faz com que a opressão seja mais forte. Afirmo que essas violências ocorriam em círculos: as opressões sofridas de fora do seu círculo iminente eram depois redirecionadas a um círculo menor de indivíduos “mais fracos” culturalmente (os membros que eles sabiam que não contribuíam para o bem comum e a sobrevivência da comunidade). Esses membros, então, rebelaram-se contra essas opressões internas do grupo e sofreram consequências trágicas. É esse o círculo que podemos perceber no primeiro capítulo do romance de Nakasato. Aqui temos uma ideia do primeiro casamento de Hideo com a personagem Kimie, que era considerada despreparada para gerenciar a família de Hideo. A mulher “fraca”, Kimie, sofre as opressões que seu marido redireciona a ela por encarar uma sociedade brasileira que não

24 “often singled out Japanese migrants as an obstacle to this agenda, deeming them unassimilable “cysts” upon the body of the nation, “yellow and indissoluble like sulphur” (73). 47 o aceita. Ela também sofre violências por não cumprir seu papel de mantenedora das tradições dentro da sua família por sentir muita nostalgia do Japão e pelo choque cultural.

2.1.3.1 Mulheres sem voz: uma análise de Nihonjin. Para essa primeira parte da minha análise, falarei sobre cada personagem feminina na ordem na qual elas aparecem e quais são as consequências dos seus encontros com

Hideo. Depois, explicarei quais foram os efeitos que esses encontros causaram em Hideo e no desenvolvimento da identidade japonesa como uma metáfora. Assim, antes de começar minha análise é necessário clarificar que o ponto de vista do narrador e as expectativas do personagem principal se divergem sobre o que é esperado de uma mulher dentro da sociedade. É preciso entender que o “patriarcado” trazido por Hideo se origina dentro do Japão, no qual há um ideal de mulher entendido por Yamato Nadeshiko (flor japonesa). Isto é, os valores associados às mulheres tem a ver com a delicadeza, compostura, polidez, lealdade, calma, capacidade de cuidar da família e de se entregar completamente à esses propósitos, a ponto de não mais pensar em si, mas no bem estar da sua família para que pudesse honrá-la desse modo. Kristin Ronzy explica na sua pesquisa que: “A mulher ideal no Japão é imaginada como uma Yamato Nadeshiko. A mídia no

Japão mostra uma dicotomia sobre o real significado desse conceito. Por um lado, ela é a dona de casa amorosa que toma conta das crianças e da casa, mas por outro ladé também a jovem bonita e inteligente” (Japanese Sexism)25.

25 “The ideal woman in Japan has largely been fantasized as a Yamato Nadeshiko. The media in Japan shows a dichotomy of what this ideal is. On one hand it is the loving housewife who takes care of the children and does the housework, but on the opposite hand it is the beautiful, smart, youthful girl” (Japanese Sexism).

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O romance de Nakasato é permeado por esse ideal de mulher que pe frustrado em

Hideo quando ele encontra personagens que não condizem com suas expectativas. É interessante notar que todas as frustrações do personagem principal se dão com outras mulheres que o confrontam. Desde sua primeira esposa até sua filha, Hideo se frustra com o comportamento das personagens femininas que o rodeiam principalmente porque elas quebram esse padrão de Yamato Nadeshiko que ele traz consigo do Japão e desafiam sua autoridade como comandante do grupo familiar.

É importante esclarecer também que tanto Hideo como Kimie vieram do Japão com práticas culturais importadas e foram comfrontados por realidades diferentes no

Brasil. Apesar de Kimie ser japonesa, ela desafia e confronta Hideo em seus preceitos sobre a esposa ideal. Sobre as outras personagens, elas não vieram do Japão, assim não compartilhavam do mesmo background cultural que Hideo. Mesmo sua segunda esposa, estando dentro de uma comunidade japonesa, já havia crescido dentro da sociedade brasileira. Assim sendo, o ponto de vista do narrador (neto de Hideo), diverge culturalmente do ponto de vista do personagem principal. Por isso há vezes nas quais o narrador mostra compaixão pela situação das mulheres no romance (como por exemplo quando sua mãe é expulsa de casa por se interessar por um gaijin, ou quando tenta entender se Shizue realmente amava Hideo, ou se somente casou-se por conveniência).

O primeiro encontro que aparece em Nihonjin é de Hideo com a personagem

Kimie, primeia esposa do personagem, que é considerada a mais fraca do seu elo familiar. Ela sofreu por causa do sistema patriarcal na qual ela estava inserida e não pode se conectar com outros sujeitos que não eram japoneses. A posição da personagem a

49 obrigou-a a assumir um papel para o qual ela não estava preparada: o de mantenedora de uma cultura com a qual ela não tinha mais nenhum tipo de ligação física, somente nostalgia. Por causa disso, ela foi o alvo das frustrações de Hideo e ao mesmo tempo, ela desafiou o marido (e consequentemente o desejo do Imperador26) com memórias e saudades da sua terra natal. Outra personagem importante que aparece ao mesmo tempo que Kimie é Maria, uma mulher negra que se aproxima de Kimie após a mulher de Hideo adoecer e questiona a autoridade do patriarca. Em seguida, foco na professora do filho de

Hideo, que faz Haruo questionar sua identidade japonesa. Finalmente, observo Sumie, sua filha que decide abandonar o casamento com um descendente de japonês para ficar com um gaijin. Juntos, todas essas personagens desestabilizam a masculinidade de Hideo, que será o primeiro passo para a transformação do seu conceito de auto-identidade ao final do romance. Entretanto, essas desestabilizações não acontecem sem consequências.

Todas as personagens femininas mencionadas acabam de alguma maneira sendo eliminadas de suas próprias histórias. Uma vez que elas abalaram parâmetros tão fortes da sociedade patriarcal japonesa, elas sofreram as maiores perdas de todas: foram

“eliminadas” da sociedade japonesa. Isto é, desapareceram do romance por terem seus discursos encerrados ou por morrerem.

26 Acreditava-se, no meio da colônia japonesa no Brasil, que era desejo do imperador que os imigrantes formassem comunidades e famílias e fossem prósperos nos novos países para a honra do Japão. Era uma ideologia de “colonização” das Américas uma vez que os japoneses imigrantes ainda consideravam a cultura japonesa superior a qualquer outra cultura. 50

2.1.3.2 Kimie: a mulher “fraca” No primeiro capítulo de Nijonhin, há a descrição dos primeiros imigrantes japoneses que chegaram ao Brasil e foram forçados a trabalhas nas plantações de café. A ideologia do indivíduo japonesa (e a mesma do personagem principal) era a de trabalhar duro para ganhar dinheiro e voltar ao Japão para abrir um negócio próprio: “Depois, com bastante dinheiro no bolso, abrir um pequeno restaurante em Yokohama, servir sashimi com um shoyu especial que sua mulher, só ela, sabia fazer” (11). Quando os sonhos de Hideo são frustrados, ele começa a ter uma visão diferente do Brasil: “Um país desconhecido, com homens estranhos, que podiam ser violentos, que poderiam querer impor normas difíceis ou até impossíveis de serem cumpridas por japoneses” (13). A opressão que sofreram ao chegar no país é então canalizada à sua mulher que supostamente deveria ser a mantenedora das práticas culturais e tradições dentro da família de Hideo.

Aqui, é necessário explicitar que Kimie não tem uma voz própria, mas é descrita por seu marido e pelo narrador, neto de Hideo (ambos homens). Assim, sua imagem e suas ações, que são consideradas rebeldes, são construídas a partir de uma perspectiva patriarcal masculina e opressiva, uma vez que os narradores -que se vêem afetados pelas ações da personagem- são homens. Kimie é descrita como uma mulher delicada e sonhadora. O narrador, porém, deixa claro que essas não são qualidades boas de uma pessoa que precisa trabalhar em uma plantação de café. Ela foi obrigada a casar com

Hideo para poder imigrar ao Brasil. No início do romance temos a seguinte descrição:

Calada. Assim eu a imaginei: ao lado de Hideo, o marido, sempre calada,

cabisbaixa, encaramujada. Os cabelos estavam presos, mas mal-arrumados, com

fios desalinhados. Usava um quimono pobre, de tecido claro com bolinhas 51

rosadas, que ia até os tornozelos. Nos pés, meias brancas e chinelos com base de

palha e tiras de pano. Parecia, então, menor do que realmente era. Quase

inexistente (11).

A mulher dentro da sociedade patriarcal japonesa era meramente um agente subserviente.

Como indivíduo autônomo, ela quase inexiste dentro da estrutura familiar e possui tarefas bem limitadas e específicas para cumprir além do seu trabalho na plantação. Ainda, a maneira como o narrador a descreve foca somente nos aspectos atrativos femininos, como a maneira de se vestir, a arrumação dos cabelos e sua personalidade

“encaramujada”. Ele, por outro lado, não considera o estado emocional da personagem que, de fato, foi retratado como maior do que deveria ser. Por suas emoções geralmente transbordarem, Kimie desafiava o marido através de seu não conformismo.

De acordo com Liza Dalby, no seu livro Gueixa (2003):

Os homens japoneses estão acostumados a serem servidos pelas mulheres. Essa

não é a única forma de interação homem/mulher no Japão, mas os japoneses do

sexo masculino a acham perfeitamente natural. O estilo cultural da masculinidade

no Japão tende a exigir a subserviência da mulher (ao menos pro-forma) e muitas

coisas contribuem para uma ideologia na qual os homens são a fonte da

autoridade (32).

No romance, a personagem criada por Nakasato é retratada como frustrada pois não estava alocada no lugar que gostaria, ela tinha sido forçada a migrar com seu marido. Ela não conseguia preencher os seus requisitos de esposa ajudando Hideo na plantação pois ela era muito delicada: “Kimie, era medrosa, fraca, não servia para o trabalho duro da

52 lavoura” (10). Então ela era vista por seu marido como uma mulher que não servia para ser esposa: “Kimie não tinha jeito, [Hideo] deveria ter se casado com uma mulher forte, que aguentasse o trabalho na lavoura, estava perdido com ela” (28). Devido à toda saudade e a depressão do deslocamento que Kimie sofria, ela não conseguia ajudar o marido no campo para arrecadar dinheiro e retornar ao Japão. Hideo não poderia contar com Kimie como uma esposa forte pois ela estava perdida nos seus devaneios nostálgicos.

Toda frustração sofrida com Kimie levou Hideo a “abandoná-la” às suas memórias. Uma vez que ela não conseguia estabelecer ligações com o Brasil, a única coisa que restava a ela era agarrar-se às memórias que representava a última gota de identidade que ela pôde carregar consigo ao deixar o Japão. Esse saudosismo apresentou uma ameaça a oportunidade de ganhar dinheiro para Hideo e às ordens do imperador. Ao desafiar seu marido, Kimie permanece “leal” à sua identidade japonesa e procura novas maneiras de se conectar com outros personagens que estivessem passando pela mesma situação. Assim, Kimie encontra Maria.

Focando nos atos de rebelião perpetrados por Kimie e Maria, vejo que Kimie é retratada como uma personagem frustrada devido à opressão que sofria e que Maria propositalmente desafiava a autoridade patriarcal de Hideo ao ver as dificuldades de

Kimie. ter um background cultural diferente, Maria afrontava o conceito de Hideo sobre sociedade e o lugar na mulher na estrutura familiar. Maria era uma mulher negra com um conceito cultural totalmente diferente e divergente do de Hideo, construído sobre um tecido social baseado no matriarcado. Assim seu contato com Kimie influencia a

53 personagem a enfrentar o patriarcado de Hideo. Então afirmo que Kimie não era em si uma personagem “fraca”, ela somente foi descrita como tal por não ser uma mulher que se conformava com seu mero papel de mantenedora de uma cultura que a oprimia e nem de comportar-se de acordo com as expectativas de uma esposa de imigrante japonês.27

Kimie não queria estar no Brasil: “Kimie também preferia ficar no Japão. Apesar das dificuldades, da falta de dinheiro, era a vida que conhecia. Não gostava de mudanças, mas Hideo decidiu, e ela era esposa” (33). Ela somente havia migrado pela pressão feita por seu marido que a obrigou também a suprimir a nostalgia pelo Japão: “Depois vi Kimie observando o piso de terra batida: os sulcos desenhando mapas no chão, o esboço de seu país [do Japão] no centro da sala” (20). Kimie não escondia seu deslocamento, por isso ela afrontava a necessidade que Hideo tinha dela apresentar um certo nível de adaptação ao novo país. A ideia de “adaptação” de Hideo era a de ajudadora do marido. Uma vez que Kimie não servia para isso, ela não tinha valor dentro da estrutura familiar. Então Kimie procura conforto em outros migrantes.

O primeiro encontro de Kimi é com Maria:

Imaginei Kimie no segundo dia, na fazenda, quando abrira a porta ao escutar dois

toques leves e dera de cara com aquela mulher alta, forte, de uma cor

inacreditavelmente escura, sorrindo, os dentes brancos em contraste com a pele,

dizendo alguma coisa.

27 Segundo Laura Hein no seu prefácio “Transnational and Time-Travelling Divas”: “the ideal Japanese woman is reserved, calm and ehxibits great forebearance while cheerfulness, pep and optimism – qualities associated with ideal women everywhere – are the attributes of delightful children rather than adult females” (xiii). Há ainda o conceito de Yamato Nadeshiko (flor japonesa), que é usado para descrever o ideal feminino japonês: comportada, graciosa, humilde, paciente, virtuosa, respeitosa, benevolente, honesta, leal. 54

-Eu sou a Maria. Vim desejar boas-vindas.

Assustada, com medo, Kimie fechou a porta com força. Que gente era aquela?

(24)

Mesmo que Kimie estivesse assustada com a diferença na cor da pele da outra personagem, Maria lhe causava um certo fascínio. Ela queria se conectar com outros personagens que estavam passando pela mesma situação, entretanto, a interação com

Maria foi logo interrompida por seu marido, que afirmava que o “tipo” da personagem:

“São uma gente de menor valor” (24). Cansada das sanções do seu marido devido a sua submissão, ela decide desafiar a autoridade de Hideo e manter a amizade com Maria, desculpando-se pelo comportamento do seu marido. Não somente ela desobedeceu ao marido, mas também o colocou em uma posição errônea e de desonra por ter uma

“subordinada” questionando suas ordens:

- Não lhe disse para não se meter com eles? Não lhe disse que eram uma gente

ignorante, que poderiam ser perigosos?

-Não são – respondeu Kimie – São trabalhadores como nós. (27)

O breve contato entre Kimie e Maria fez com que a mulher japonesa repensasse seu lugar dentro dessa nova sociedade e que ela questionasse sua própria posição dentro da sua unidade familiar. Observando a matriarca negra e forte, que confronta o patriarcado de

Hideo sobre a mulher submissa, Kimie começa a se perguntar se deve realmente obedecer a seu marido. Então Kimie começa a desafiar seu marido.

55

A passagem mais interessante desse capítulo foca na parte em que Kimie adoece.

Hideo vê-se obrigado a “passar por cima” de sua ideologia patriarcal e humildemente pedir à matriarca Maria que fizesse um ritual de cura na sua “mulher fraca”:

Então aquele homem, que sempre falava alto, que era uma rocha, afastou-se, ficou

ao lado do amigo Jintaro, de pé, humilhado, olhando Maria, que era mulher, que

era gaijin6, que era negra, mas que era grande, maior que ele, ajoelhada aos pés da

cama de Kimie, com a mão direita sobre sua cabeça, afastada um palmo,

sussurrando umas palavras (29).

Hideo se arrepende de ter casado com Kimie, especialmente pelas humilhações que ele precisou passar como homem para pode mantê-la ao seu lado. Maria, como uma matriarca africana com possível poder de cura, desafia a autoridade do homem japonês.

De acordo com Camila Telford Gibb: “No oeste africano, uma casa autônoma é composta por uma união matriacêntrica, onde as relações de produção e consumo são ideologicamente enraizadas no conceito de maternidade” (166)28. Mulheres fortes africanas constituem uma ameaça à constituição familiar da cultura japonesa, desse modo

Hideo não queria que sua mulher tivesse contato com Maria. O narrador de Nakasato explica o sentimento de Hideo sobre Maria quando ele lhe agradece por ter salvo sua mulher. Havia um sentimento de dívida e foi especialmente humilhante para o patriarca uma vez que ele considerava Maria uma pessoa de “menor valor”: “pensou que a vergonha era maior quando se devia um favor a alguém inferior, a uma mulher negra

28 “In West Africa, the autonomous household unit is a matricentric unite where relations of production and consumption are ideologically rooted in the concept of motherhood” (166). 56 descendente de escravos” (30). Assim, Hideo se curva perante Maria com um gesto de gratidão e reconhece sua incapacidade de “tomar conta” de Kimie. Ou seja, ele reconhece sua própria inabilidade de preencher suas responsabilidades patriarcais dentro dessa nova sociedade tanto quanto Kimie não conseguia cumprir seu papel de esposa dentro do novo tecido cultural.

Essa humilhação de Hideo despertou uma compreensão em Kimie que a fez perceber-se como um ser humano e não um objeto a ser possuído. Ao poder responder a seu marido e não sofrer consequências imediatas de sua “desobediência,” Kimie passa a entender que tem algum certo poder de ação dentro de seu relacionamento e que não é somente um objeto/esposa a ser possuída por Hideo. Isso também fez Kimie entender que

Hideo não era a autoridade máxima dentro daquela nova sociedade e que se ela tivesse se casado com outro homem, seu destino poderia ter sido diferente: “E por que tratava Kimie como se fosse seu dono, como se ela não fosse gente? [...] Se fosse ele, Jintaro, o marido, ela não sofreria tanto” (37). Deste modo, Kimie comete outro ato de rebeldia contra seu marido ao dormir com o agregado da família, Jintaro. A partir desse ponto, Kimie desenvolve uma certa afeição pelo agregado da família que havia migrado com eles para poder compor um grupo familiar maior. Jintaro era considerado como um “primo”: “Depois sentiu, primeiro assustada e quase contente, que Jintaro era mais pesado que Hideo, que Jintaro era maior, que quase a machucava. Mas logo sentiu, feliz, que o peso de Jintaro não lhe pesava, que ele se colocava suavemente sobre seu corpo, que seu tamanho, por fim, se ajustava a ela” (39). Ao passar a se relacionar com

Jintaro, Kimie desmoraliza Hideo não somente como marido, mas também como homem,

57 amigo e como chefe da família ao preferir o “peso” do agregado ao peso que o marido lhe impunha. O fardo que Hideo colocava sobre ela era pesado e Kimie estava exausta,

“estava cansada, e o cansaço lhe dava motivos que sua retidão não conseguia mais rejeitar” (38). Ela não queria mais opressões, assim o peso físico de Jintaro era mais leve do que o peso moral de Hideo.

O último ato rebelde de Kimie contra seu marido e contra sua situação dentro do sistema familiar foi “responder” para Hideo com o desejo de ver neve no Brasil. Nessa cena, a personagem rende-se a nostalgia e coloca seus desejos acima das vontades do seu marido. Uma das memórias de perdas que Kimie apresenta sobre o Japão é a da sua conexão com a neve, que não acontece no Brasil. A personagem constantemente sonha com ela: “Kimie olhava o cafezal coberto pela neve. [...] Era bom ficar ali, só vendo. Era o seu jeito de ser feliz” (40). A única menção de felicidade que Kimie tem nesse capítulo

é na memória de seus irmãos correndo pela neve. Quando Hideo manda Kimie fechar a janela, a personagem já tem consciência que não precisa mais obedecer a seu marido.

Assim, responde em um tom negativo e desafiador ao seu marido: “Kimie então disse o que jamais dissera a Hideo: - Estou vendo a neve” (41). Ao respondê-lo, Kimie dá voz a sua personagem por ter expressado seu desejo, mas, ao mesmo tempo, sela seu destino de apagamento. A percepção da realidade da personagem não condiz com a realidade do marido, assim Kimie é vista como louca e delirante pois faz da sua percepção sua realidade. A partir desse ponto, também, ela percebe que estava morrendo de sua doença física e emocional. Apesar de tentar curá-la, Maria não consegue fazer com que Kimie melhore. Devido a sua condição nostálgica, Kimie simplesmente se deixa morrer no

58 campo de algodão que ela percebia como uma paisagem nevada. Sua morte física também está atada a sua morte como personagem e como esposa pois já havia algum tempo de infelicidade, opressão e negligência em sua vida que selaram seu destino a ser apagado.

A rebelião de Kimie acaba em destruição: a morte física da personagem. Doente e febril, ignorada por seu marido “roncando ao seu lado” (43), Kimie toma a decisão de romper com toda opressão que sofreu e que, de certa maneira, também a matou:

Uma noite, e era a noite mais fria do ano, Kimie não conseguia dormir. Estava

doente. Tomara os chás de Maria, ficara quieta sob as suas mãos enquanto ela

rezava aquelas rezas que não entendia, mas não melhorara. De madrugada,

aumentou a febre. Quis ver a neve. Hideo roncava ao seu lado. Levantou-se,

caminhou até a porta da sala e a abriu. A neve cobria a terra. Saiu, correu até o

cafezal, correu entre os pés de café, sentindo a neve cair sobre a sua cabeça, sobre

os seus ombros. Correu durante muito tempo, estrela do espetáculo, abrindo os

braços, ela, que sempre preferia ficar na janela. Finalmente, quando se cansou,

sentou-se na terra fria. A morte chegou lentamente. Há quanto tempo morria?

Tranquila, congelada pela neve, congelada pelo sol (43).

Kimie morria lentamente, cansada de não poder retornar ao lugar de suas memórias e sendo rotulada como fraca e imprópria para o papel de esposa, ela sucumbe à opressão e se deixa levar por sua doença como uma maneira de se libertar. Ela morre na visão feliz, ao morrer em seu delírio feliz, nas lembranças de sua vida contente no Japão, Kimie resiste ao marido e liberta-se de sua condição imigrante. Nas suas horas finais, ela se leva

59 ao Japão em suas memórias, aquela que lhe foi negada por seu marido. Em seu ato final de rebelião, Kimie se entrega à sua felicidade e ao delírio/nostalgia. Ela enxerga a neve nas plantações de café e quietamente se rende ao frio de suas memórias, congelando até falecer.

2.1.3.3 A professora e o confronto patriarcal A próxima personagem que aparece no segundo capítulo do romance Nihonjin é a professora do filho de Hideo, Haruo. Além de Maria ter confrontado Hideo, há outra mulher que cruza seu caminho e desafia sua posição como chefe e cabeça da família.

Haruo é filho do personagem principal com Shizue (segunda esposa de Hideo) e frequenta uma escola brasileira em que convive com uma professora que instruiu o menino a questionar sua identidade, transitando entre brasileiro ou japonês. Usando um argumento lógico, a professora questiona a identidade japonesa de Haruo:

Um dia, na escola, a professora disse:

- Haruo, Hitoshi, vocês não são japoneses, são brasileiros. Vocês não nasceram no

Brasil? Pois então? Quem nasce em Portugal é português, quem nasce no Japão é

japonês, quem nasce no Brasil, é brasileiro! (62-63)

Quando Hideo percebe que seu filho tinha sido educado para se identificar como brasileiro e, de certo modo, a distanciar-se dos reais indivíduos japoneses, ele decide ir até a escola para confrontar a professora. Ele explica que mesmo que a certidão de nascimento do menino diga que ele é brasileiro, o que importa é que ele tinha sido educado na cultura japonesa, o que o caracterizaria como japonês e não brasileiro (69).

Entretanto, “A professora, que era pequena, magra e falava num tom de voz apenas 60 suficientemente audível, não se deixou intimidar pelo modo seguro, quase autoritário de

Hideo” (69). Aqui é interessante observar que as mulheres que confrontam Hideo parecem ser descritas com terminologias pequenas, ou baixas. Assim como Kimie era pequena e cabisbaixa, a professora era magra e mansa. E, ainda assim, são essas as personagens que carregam a força insuspeitável para confrontar o patriarcado intrínseco em Hideo.

O medo de Hideo era que seu filho não se relacionasse mais com a cultura japonesa. Devido aos esforços da professora brasileira, Hideo temia que Haruo não pudesse mais ser considerado japonês e não poderia participar das mesmas tradições e práticas culturais com a mesma profundidade e entendimento que seus pais.

Consequentemente, Haruo nunca poderia retornar ao Japão e ser aceito como um membro da sociedade japonesa. Mais adiante nesse capítulo, explicarei a conexão das práticas culturais, a preservação da língua, e o sonho do retorno ao Japão. Uma vez que Haruo havia sido educado por uma mulher brasileira, sua identidade iria mudar, e ele se reconheceria como sendo mais brasileiro do que japonês. Aqui percebemos um pequeno passo no processo de mudança identitária que ocorreu no Brasil. Houve, entretanto, protestos e ressalvas com relação a essa mudança de identidade (que também é ilustrado no romance pelos receios de Hideo). Assim, essa transformação/ assimilação não ocorreu pacificamente e nem completamente, como também demonstrarei adiante.

O fato de que mesmo a professora sendo pequena e dócil tenha a capacidade de irritar Hideo (esse a compara com Kimie e Maria) demonstra a importância de sua presença no desmantelamento da identidade patriarcal japonesa. Ela também participa da

61 redefinição da identidade do filho e acaba por distanciá-lo da sua faceta japonesa e aproximá-lo da sua nacionalidade brasileira. Isso causa um desequilíbrio na família porque eles não conseguem mais manter e praticar as tradições que trouxeram do Japão com integridade, o que os força a encarar a realidade da sociedade brasileira e o fato de que o retorno ao Japão não era mais possível.

Aqui também vemos que, quando Hideo compara a professora a Maria e Kimie, el cria uma categoria de mulheres que “não são boas”. Ele classifica os obstáculos humanos na sua vida, especialmente com relação ao papel das mulheres a sua volta, como bons ou ruins. No caso da professora do seu filho, ela era uma mulher que não sabia seu lugar.

Hideo encarava a sociedade pelos olhos da cultura japonesa, na qual a mulher tem um papel submisso reconhecido por ambos. Quando ela se impõe e continua explicando ao filho de Hideo o porquê de não ser japonês, ela quebra as expectativas do personagem principal e se coloca como uma ameaça à identidade do seu grupo familiar.

Ainda, a professora provoca Hideo ao lembrá-lo que ele é o estrangeiro na sua terra, então deveria se conformar com as condições daquela sociedade: “Hideo não insistiu mais. Despediu-se educadamente, curvando as costas, mas sem cordialidade, porque aquela mulher, tal como a preta que curara Kimie na Fazenda Ouro Verde, lembrava-lhe que estava em terra estrangeira e que gaijin, na verdade, era ele” (70).

Assim como sua primeira esposa e Maria, a professora desafia Hideo e consequentemente também a sua identidade como homem cabeça da família. Pior, ela também põe em xeque a possibilidade de retorno do personagem a sua terra natal quando ela começa a

“corromper” a identidade de seu filho, afirmando que ele é primeiramente brasileiro e

62 então japonês em casa. Até o período após a Segunda Guerra Mundial e a derrota do exército japonês, a maioria dos cidadãos japoneses espalhados pelo mundo ainda acreditava que seria possível seu retorno para casa algum dia. Era imperativo que seus costumes, línguas e identidade não fossem corrompidos pelas práticas dos países nos quais eles estavam vivendo “temporariamente”, caso contrário eles seriam considerados gaijins de si mesmos ao retornar ao Japão. Esse sentimento extremo de não pertença levaria muitos deles a agarrarem-se aos mínimos detalhes que costuravam o tecido de suas identidades. No caso do romance, vemos Hideo ligando seu medo à educação de seus filhos, uma vez que ele tinha receio de que eles não seriam recebidos na sua terra natal como verdadeiros japoneses: “Não poderia permitir que a escola o deseducasse, que a professora desmentisse a sua autoridade, que Haruo crescesse se sentindo um gaijin”

(71). Hideo, todavia, foca sua frustração na personagem feminina, a qual insiste em mostrar a Haruo sua identidade brasileira.

Deste modo, percebe-se um padrão na obra de Nakasato, no qual as personagens femininas são sempre o agente causador da frustração do personagem principal.

Especialmente quanto se trata de sua identidade japonesa, Hideo coloca a “culpa” da dissolução da identidade sua e da sua família sobre o papel das mulheres da sua casa ou que rodeiam sua família. Kimie era muito fraca porque não conseguia cumprir as expectativas do marido de ajuda-lo a trabalhar na nova terra e construir uma família. A amiga de sua mulher não servia como boa influência pois era de uma etnia diferente, com uma composição familiar matriarcal -o que desafiava Hideo diretamente. A professora de seu filho lhe impunha um obstáculo na preservação da identidade de sua família e,

63 consequentemente, impediria sua volta ao Japão quando fosse possível. Assim, recai sobre as mulheres a culpa que Hideo direciona sobre a “falência” de sua identidade japonesa no Brasil.

A professora eventualmente acaba desaparecendo da narrativa uma vez que ela estava comprometendo a identidade e os credos da identidade japonesa da família do personagem principal. Haruo, que é o narrador de sua própria história, não mais menciona a personagem. A professora que trouxe dúvidas sobre a família teria que ser eliminada da história e memória se Haruo quisesse crescer como filho de japonês, e não como gaijin brasileiro. Assim como Kimie e Maria, suas histórias no romance chegam a um fim, uma vez que todas as personagens que desafiam a masculinidade de Hideo e seu lugar como autoridade patriarcal encontram algum tipo de fim. Kimie morre, Maria desaparece da narrativa e, agora a professora também desaparece da narrativa, como se sua influência não tivesse sido importante.

É interessante notar como há a necessidade de sumir ou desbotar narrativamente personagens que impõem um obstáculo ao personagem principal. O narrador, sendo um homem e sendo neto de Hideo, apresenta esses obstáculos femininos ao público, pinta-os como um problema a ser enfrentado pelo personagem e, ao final, simplesmente desbota a narrativa dessas mulheres. Não há homens nihonjin dentro do romance que se configuram como obstáculos ao narrador. Mesmo a existência de um amante para sua primeira mulher e do gaijin com quem sua filha vai fugir no final da narrativa não parecem incitar frustrações em Hideo. Por outro lado, a reação das mulheres (Kimie e Sumie

64 especificamente) a esses homens é o que faz com que Hideo sinta desonra e se frustre com as personagens femininas.

2.1.3.4 Sumie: a ovelha desgarrada A última personagem que desafia a autoridade do patriarca é Sumie, sua filha com

Shizue, sua segunda esposa. Ela trabalhava nos negócios da família quando, um dia, conhece e se apaixona por Fernando. Após vários encontros na loja, Fernando tem a coragem de beijar Sumie longe dos olhos do seu pai: “Um mês depois, Sumie confidenciou a sua amiga Matiko que ele a havia beijado. E que ela havia gostado” (102).

Mas Sumie tem medo de contar a seu pai porque “Você sabe que eu não posso nem pensar em namorar gaijin” (103). Fernando não era japonês ou nikkei, logo não adequando para namorar Sumie. O medo da personagem se baseia na história de outra mulher que é contada no romance, Sanae, que namorou um gaijin e foi banida do seu grupo familiar por seu pai. Naquele tempo, era de extrema importância que os japoneses somente se relacionassem com outros japoneses para que eles pudessem preservar a cultura, a língua e as tradições da colônia. Como mencionado previamente, os primeiros imigrantes tinham um medo constante de distanciarem-se do que eles consideravam o

Japão ou as práticas culturais que os definiam, pois isso acarretaria a sua expulsão da cultura da sua terra natal e a impossibilidade do retorno.

Mais uma vez, a personagem feminina vai desafiar os conceitos patriarcais e culturais de Hideo ao trazer “desonra” para dentro de sua casa uma vez que ele não pode aceitar sua filha se relacionando com um indivíduo que não era japonês. Hideo afirma:

“era uma vergonha para a família, que se fosse sua filha, não permitiria, que se houvesse 65 teimosia a expulsaria de casa, e, então, seria como se ela tivesse morrido” (106). Em primeira instância Sumie não é narrada como submissa. Ela planeja fugir com Fernando e abandonar sua família, suas tradições e sua cultura em um ato de “violência” contra seu pai opressivo. O ponto mais interessante nessa pare da história é que a mãe da personagem recebe voz na narrativa pela primeira vez e convence sua filha que ser a esposa de um nihonjin seria melhor do que se casar com um gajin. Quando confrontada por sua filha, Shizue (segunda esposa de Hideo) acaba recorrendo às diferenças culturais.

Então, mesmo estando sob um sistema de controle patriarcal com uma mobilidade e voz bem limitada, era melhor casar-se com alguém similar para evitar disparidades culturais:

- Não fuja como se fosse uma ladra, será uma verdadeira vergonha. Pense bem, não

daria certo, nihonjin é nihonjin, gaijin é gaijin, e não tem essa história de que

nihonjin é melhor que gaijin, não é isso, é que... Imagine, ele não vai gostar da

comida que você fizer, vai implicar com a nossa religião, e você não vai deixar de

ir ao templo budista, não é? Ele logo vai se cansar, você vai sentir falta do ofurô,

do tsukemono de okachan, de todos nós, e será pior que perder alguém que morre,

porque com a morte a gente se conforma. (112)

Questões como religião, tradições culturais, comida e adaptação social a um novo ambiente pesaram na decisão de Sumie. Sua mãe, então, explica que ela se sentirá melhor assim que estiver casada com um homem que compartilha do mesmo passado cultural pois ele não seria apenas seu companheiro, mas também seria uma parte de uma sociedade que a entenderia. Se ela fugisse com um gaijin, ela seria excluída de tudo que

66 fez parte de seu mundo. Então, ela não teria nenhum referencial identitário quando se relacionando com sua faceta japonesa fora da sua comunidade imediata.

As palavras de Shizue convencem Sumie a ficar e a temer a perda da sua faceta identitária japonesa, que é parte fundamental do seu eu. Também, Shizue dá a entender que mesmo que ela viva dentro de um sistema patriarcal opressor, seu marido (sendo japonês) poderia prover conforto cultural a ela. Sumie não precisaria renegociar sua identidade com simbologias diferentes de referenciais que não eram japoneses, e ela também teria sua família a seu lado. Assim, por não ter fugido com um gaijin, ela teria o suporte de sua família. Entretanto o oposto era verdade: fugir com um gaijin causaria a expulsão de seu grupo familiar e o seu apagamento da memória da família.

Devido a esse medo, Sumie se casa e vive uma vida miserável com um marido japonês que não compreende nem suas necessidades e nem sua cultura nipo-brasileira.

Ela ainda está sob um sistema de opressão patriarcal que a oprime a pensar que “agradar seu marido e tomar conta das crianças” seriam fontes suficientes de felicidade. Na passagem a seguir, é possível ver o sofrimento vivido por Sumie e é justificável compará- la com a situação de Kimie. Também é possível vermos Sumie como uma continuação de

Kimie, que era triste e frustrada em um casamento que lhe trouxe morte:

Os anos que se seguiram ou os anos que ficaram fizeram minha mãe ir

murchando. Não bastaram os adjetivos de Ossamu, que foram se confirmando,

mas eram insuficientes para fazê-la feliz. E quem sabia da sua infelicidade? Não

eram indícios as músicas que cantava no kaikan, invariavelmente tristes . . .

Também, não eram indícios os seus olhos parados, perdidos em algum ponto que,

67

depois, ela não conseguiria identificar . . . Quando Sumie lhe pediu, depois de

dois anos de casada, para voltar a trabalhar na loja do pai, disse não: era seu dever

cuidar da casa e do meu irmão, que tinha um ano. Não lhe faltava nada, e por isso

não tinha motivos para trabalhar. E ela se conformou: varreu o quintal com a

vassoura de piaçava, teve uma filha, foi à quitanda comprar verduras, legumes e

frutas, teve outro filho. (117-118)

Considerando por um ponto de vista ocidental, a alegria de Sumie pela vida desaparece pois ela não pode ser considerada como indivíduo singular e viver seus próprios desejos.29 Ela precisa de permissão para trabalhar, para fazer atividades que não são relacionadas com o cuidado de sua família ou com o kaikan30. Como o narrador (que é o filho de Sumie) descreve, ela começa a desbotar e seus olhos tornam-se sem brilho, como os olhos de Kimie. Kimie e Sumie são ambas personagens que perderam a felicidade e a vontade de viver devido a um casamento opressor. Kimie não conseguia relacionar-se com a nova sociedade, então ela não tinha alegria em estar no Brasil e Sumie sente-se deslocada dentro de seu próprio casamento e família, então ela não consegue sentir alegria em estar em um arranjo na qual ela não é vista como pessoa. A rotina da personagem não muda e ela é confrontada com a monotonia da sua vida diária (“varreu o

29 É interessante fazer um parêntesis aqui para explicar que, mesmo que estejam dentro de uma comunidade japonesa dentro do Brasil, Sumie já era nascida no Brasil e tinha contato com outros indivíduos que não eram japoneses. Assim o conceito do papel de mulher com relação à felicidade dentro de um relacionamento que ela tinha provinha, também, de uma sociedade ocidental. Isso lhe causava conflito dentro da família.

30 Kaikan é a terminologia usada para designar o clube japonês dentro de uma comunidade. No clube eles desenvolvem atividades que visam a preservação de tradições e da língua japonesa como, por exemplo, performances musicais e de dança, literatura, impressão de jornais e o estabelecimento de escolas de língua. 68 quintal, teve outra filha, foi ao mercado, teve outro filho”). Ela está presa não somente por essa monotonia, mas também pela impossibilidade de transformar sua vida dentro de uma sociedade que não lhe dá voz.

Mesmo ao ser confrontada com questões sobre seu bem-estar, Sumie, como sua mãe, responde sobre seu marido e família: “Ossamu está bem, os filhos estavam bem então estava tudo bem” (118). Essa resposta está diretamente ligada com a ideia de que tudo que uma mulher precisa para ser feliz é que o marido e os filhos estejam bem, assim ela não tem nada a mais com o que se preocupar, então não há motivos para infelicidade.

Ela era constantemente lembrada por sua mãe (que havia crescido em um ambiente com mais influências japonesas do que brasileiras) de que: “... é pecado ser infeliz quando se tem tudo para ser feliz” (120), porque as mulheres não poderiam ser felizes com suas próprias escolhas.

Anos mais tarde, quando Fernando retorna à cidade da personagem e se encontra com ela, Sumie tem certeza que, mesmo tendo o conforto de sua família, todas as incertezas que rodeavam em sua mente quando considerava fugir com Fernando tornaram-se verdadeiras ao casar-se com Ossamu. Ela estava desconfortável dentro de seu próprio arranjo cultural e decidiu seguir sua felicidade com Fernando. Olhando para seu marido a noite, Sumie reflete: “Retornou ao quarto, deitou-se ao lado do homem que abandonaria. Era o pai-de-seus-filhos. Era o homem-que-comia-a-comida-que-lhe- preparava-e-vestia-as-roupas-que-ela-lavava-e-passava. Era o homem-que-trabalhava-e- repetia-que-o-trabalho-dignificava-o-homem. Era o homem-que-dia-após-dia-fazia-o- que-se-esperava-dele. E como tudo isso poderia significar tão pouco?” (121). Em última

69 instância, argumento que porque Sumie já tinha nascido no Brasil, o modo de vida japonês não era tão significante para ela como era para seus ancestrais ou os primeiros imigrantes. Então, mesmo que Ossamu tenha sido considerado como um bom marido dentro da sociedade japonesa, ela ainda “via a si mesma como alguém que estivesse visitando aquela família” (121). Sendo parte de um sistema de patriarcado opressor dentro da colônia japonesa no Brasil fez com que Sumie (uma nipo-brasileira) fosse infeliz, uma vez que ela não se sentia parte desse sistema/ família que a oprimia. Ela não pertencia àquele contexto cultural e havia decidido que não seria oprimida por ele. Ela foge com Fernando e acaba sendo excluída de seu contexto familiar.

Observando pelos olhos do narrador (filho da personagem), as ações de Sumie trouxeram uma grande desonra sobre sua família. Ossamu explica que “. . . antes de ser filha, seria esposa. Por isso, a vergonha era do marido, do homem” (126). O personagem acaba não se casando novamente por causa da vergonha que ele sentiu ao ser abandonado por sua esposa, sua propriedade. Se mesmo ela recusou um homem que lhe deu tudo, como ele poderia ser visto como bom marido dentro de sua comunidade outra vez? Sumie tenta entrar em contato com seu pai, mas ela também acaba sendo rejeitada por ele:

“Hideo não pensava assim: era pai somente dos outros filhos” (127). Ainda mais, além de ser rejeitada por seu primeiro marido e por seu pai, ela também é rejeitada por seus filhos, uma vez que “Também os filhos: eram filhos só do pai” (127). A violenta rejeição que a personagem sofre ao tentar seguir sua felicidade ilustra o quanto as mulheres eram depreciadas ao não cumprirem suas obrigações morais/sociais/culturais dentro da sociedade japonesa. Ela não poderia mais ser esposa, filha ou mãe porque havia decidido

70 desafiar o sistema patriarcal o qual ela pertencia e encontrar sua felicidade com um gaijin.

Assim como todas as outras personagens femininas que desafiam uma autoridade masculina no romance, Sumie encontra um destino trágico pois ela é eliminada de todo contato cultural japonês e acaba morrendo só: “Dias depois, um amigo me dirá que assistiu na televisão a uma reportagem sobre uma senhora japonesa que foi encontrada morta em seu apartamento em Pinheiros” (130). O sistema patriarcal dentro de Nihonjin abada sendo um retrato de como da eliminação de personagens femininas rebeldes tanto na narrativa como na sociedade japonesa que ainda nos dias atuais baseia-se fortemente em uma cultura masculina. Não há o reconhecimento dos sonhos e aspirações das personagens femininas e todas trazem vergonha e desonra sobre suas famílias. A nostalgia de Kimie envergonha Hideo e prejudica seu trabalho no campo e sua estrutura familiar, que acaba não sendo forte o suficiente para impressionar o imperador com suas conquistas no Brasil. A professora confronta a suposição de Hideo que seus filhos não poderiam se relacionar com outra cultura que não fosse a japonesa, então Hideo é humilhado mais uma vez devido às dúvidas que seu filho desenvolve sobre sua identidade. Finalmente, sua filha aspira a um casamento feliz com um gaijin, o que traz vergonha não somente a Hideo, mas também a seu marido e filhos. Todas essas personagens foram excluídas, desbotadas de seu círculo narrativo ou tiveram suas identidades/ imagens detrimentadas pelo narrador. Todas eliminadas.

71

2.1.3.5 Um parêntese: a segunda esposa (Shizue) Finalmente, gostaria de focar em Shizue, segunda mulher de Hideo e a personagem oposta a Kimie uma vez que ela era considerada um modelo de mulher dentro da colônia japonesa. Durante a narrativa, os comentários de Hideo sobre as mulheres são patriarcais e esses pensamentos críticos não mudam ou se desenvolvem com confrontos com outras personagens femininas que são fortes. Maria, Kimie, a professora e Sumie representam mulheres que desafiaram o sistema patriarcal da cultura japonesa, Shizue é retratada como dominada e conformada com sua situação. Ela não tem voz no romance para expressar seus pensamentos e opiniões, sendo majoritariamente descrita por seu marido. Ela foi colocada no seu lugar, foi treinada a se comportar de uma certa maneira e foi doutrinada dentro de certos valores sobre o que ela deveria ou não preservar culturalmente, e por isso ela era considerada uma boa esposa.

Ao analisar os capítulos seguintes do livro, vemos que Kimie causou problemas para a família de Hideo e seu status social não apenas dentro da cultura japonesa, mas também de acordo com as leis de imigração brasileiras.31 Para que os trabalhadores imigrantes pudessem entrar e trabalhar no país, era necessário que fizessem parte de um grupo familiar. De acordo com Masterson era necessário que somente os grupos de famílias fossem trazidos para trabalhar nos cafezais, o que prepararia um terreno

31 O livro Código Amarelo (2016), de Joaquim Shiraishi Neto e Mirtes Tieko Shiraishi mostra que as leias de imigração permitiam que não somente japoneses viajassem para o Brasil, como também outros asiáticos. O Ato n. 4547, de 9 de julho de 1870 afirma que os únicos sujeitos imigrantes permitidos no país seriam aqueles que pertencessem a um grupo familiar ou, então, homens solteiros, maiores de 18 anos e que estivessem dispostos a trabalharem nas fazendas. Entretanto, o Japão exigia que seus emigrantes estivessem inseridos dentro de um grupo familiar para poder deixar o país. Essa era uma situação específica do Brasil, uma vez que os padrões de migração para o Peru e México eram aqueles dos homens maiores e solteiros para trabalharem nas fazendas (Masterson 44).

72 totalmente diferente para que a identidade japonesa se desenvolvesse no Brasil. Então, quando Kimie morre, Hideo não tem outra opção a não ser entrar para outro grupo familiar como um membro agregado.

Nakasato explica a situação de Hideo:

Após a partida de Jintaro e a morte de Kimie, o administrador da fazenda lhe disse

que não poderia ocupar uma casa sozinho, pois isso representaria um desperdício,

que deveria se agregar a uma família. Seu contrato seria rescindido se não o

fizesse, e então teria que se aventurar na cidade, procurar um emprego na

construção civil ou como empregado doméstico. Sentiu-se humilhado, embora

não o admitisse. (47)

O personagem sentiu-se humilhado pela situação: ele não era chefe de família, o que lhe acarretava um status de fraqueza dentro da colônia japonesa. Ele era o dependente da família de outro homem, o que trouxe grande desonra para ele. Ele sabia que “Tinha seu valor” (48). Então, rapidamente após se juntar a uma outra família ele se casou, pois

“Não nascera para ser um Jintaro, viver na casa comandada por outro homem. Embora soubesse que seria genro, sabia, também, que genro era muito melhor que um agregado”

(49).

Hideo não queria se comprometer com outra mulher fraca como Kimie. Ele não estava interessado em casar-se com uma mulher que lhe desafiaria ou desobedeceria a suas ordens. Ele estava fadado a casar-se com uma mulher que se encaixasse nas formalidades patriarcais e que lhe ajudasse com a fazenda. Ele estava procurando por uma mulher que, diferentemente de Kimie e de sua primeira filha Sumie, fosse feliz

73 dentro do seu papel social e pudesse tomar conta da casa e da família de Hideo. A descrição de Shizue por Hideo parte da premissa de “boa esposa”:

E já se surpreendera observando Shizue na cozinha, rápida na lavagem de panelas

e pratos, em meio ao cafezal, vigorosa na capinação de ervas daninhas. Era uma

moça bonita, de rosto com as maças cheias, de olhos brilhantes, como se visse

sempre uma novidade, muito diferente dos olhos da Kimie, que viam o dia como

viam a noite, que estavam sempre perdidos em alguma imagem do passado . . .

Precisava ao seu lado de uma mulher forte, que não reclamasse do trabalho da

capina ou da derriça. “E não é bom para um homem ficar só”, pensou, lembrando-

se dos conselhos que dava a Jintaro. (49)

Shizue é introduzida ao leitor pelos olhos de Hideo, que não consegue achar nela nenhum sinal de fraqueza como em Kimie. Hideo simplesmente não consegue entender a nostalgia de Kimie como um laço forte com a cultura japonesa. Ela era considerada fraca não porque havia desonrado sua identidade, língua cultura ou nação. Ela simplesmente era considerada inadequada pois não conseguia ajudar seu marido na plantação devido ao seu passado como uma mulher delicada no Japão. Ela não tinha vindo de uma família de fazendeiros, ela nunca havia cultivado a terra, nunca havia encarado outras culturas antes de migrar ao Brasil, e seu marido não conseguia compreender seu valor como mantenedora de laços fortes com o Japão.

Quando Hideo compara Kimie com Shizue, é difícil não notar a avidez do personagem em encontrar uma mulher que fosse boa para ele. A mulher que fará sua parte dentro da família e não se preocupará com a terra que deixou para trás. Na minha

74 análise dessa comparação, acredito que Shizue foi trazida ao Brasil muito jovem ou, ainda, nasceu já em terra estrangeira. O fato dos olhos de Kimie carregarem uma escuridão de memórias do passado e os olhos de Shizue se ascenderem com as novidades de diferentes situações mostra que a segunda esposa não nutre uma memória específica do Japão ou o desejo de retorno. As memórias de Kimie a assombravam durante seus dias no Brasil pois ela sabia o que tinha deixado para trás. Nakasato não diz ao leitor se

Shizue foi trazida ao Brasil ainda jovem ou se nasceu lá. Somente sabe-se que ela era significantemente mais jovem que Hideo e complacente com suas visões patriarcais do que uma “boa esposa” seria.

O tom patriarcal é sentido através de toda narrativa. Entretanto, essa inclinação não reflete uma visão pessoal do autor, mas é uma tradução da cultura japonesa que estava entranhada em conceitos que desvalorizavam ou deslocavam as mulheres dentro de seus grupos. Assim, mostrarei a partir desse ponto alguns casos que a narrativa ilustra.

Quando Hideo se casa com Shizue, não é explícito dentro da história se ela havia concordado com o arranjo ou não. As negociações aconteciam entre o noivo e o pai da noiva, que quer casá-la com algum indivíduo que não traria desonra para a família: “disse que ele deveria se casar com ela, pois já moravam sob o mesmo teto, que já ouvira comentários sobre o fato, insinuações maldosas, e o casamento poria fim àquilo” (48). Os tratados feitos e as vozes ouvidas são vozes exclusivamente masculinas no romance, incluindo a descrição do comportamento feminino e os papéis de trabalho: : “As mulheres beberam limonada, os homens beberam pinga” (50), “ (Shizue) sabia que deveria aguardar calada que o marido dissesse o que ainda não sabia” (57), “A esposa,

75 que também era mãe, e as filhas, que também eram irmãs, aguardavam de pé ao redor da mesa, enchiam o prato que ficava vazio, levavam ao fogão a tigela e a traziam de volta com o missoshiro fumegante” (93), etc. Mais adiante no romance, percebe-se que mesmo o resistente Hideo passando por vários momentos de desonra ao confrontar personagens femininas, ele ainda insiste em tratar Shizue como inferior: “Porém era Hideo a sua principal fonte das informações, e ele não a informava de tudo. Quando dizia algo, era eufemístico para protegê-la: ela era mulher, e há assuntos que são para os homens” (147).

Essas passagens ilustram a mente fechada dos imigrantes que primeiro chegaram ao

Brasil contra aqueles que eram considerados inferiores, sejam mulheres japonesas ou gaijins.

A voz de Shizue é apenas ouvida explicitamente quando ela aconselha sua filha a não fugir com o gaijin Fernando. Ela explica que apesar de eles passarem por situações difíceis, ela sempre teria sua família a seu lado caso casasse-se com um nijonhin.

Entretanto, Sumie pergunta a sua mãe: “- Okachan, a senhora é feliz? Ela não respondeu”

(107). Shizue finalmente responde que desde que seu marido estivesse feliz e suas crianças saudáveis, ela também estaria feliz. Não há nenhuma ressalva sobre seus próprios desejos, mas, pelo contrário, vemos que o que era esperado dela é que se conformasse dentro de seu papel de mulher dentro de um sistema de família patriarcal.

No final do romance, Shizue, entretanto impacta Hideo uma última vez antes de morrer. Em seu leito de morte no hospital, ela pede para ver a filha Sumie uma última vez. O personagem concorda com o pedido da esposa pois “não se nega um pedido à mulher moribunda, mas não esperou para vê-la” (174). Para Hideo, o desejo de Shizue de

76 ver a filha rebelde antes de morrer é compreensível somente pelo seu estado de moribunda, entretanto ele não espera a filha chegar para poder vê-la também. Shizue morre uma morte simples no hospital. Há, no romance um tom triste sobre a morte da personagem pois, pela primeira vez, Hideo exibe remorso por suas ações. Já na última página do romance, o narrador confessa a Hideo que sabe onde sua mãe (Sumie) mora, e ele confirma que também sabe. Ou seja, mesmo tendo excluído a filha da sua vida e da convivência com seus filhos, Hideo ainda se preocupa o suficiente com a filha a ponto de acompanhar sua vida, mesmo que a distância. Com o pedido de Shizue em ver a filha antes de morrer, Hideo pode se confrontar com suas escolhas do passado.

Por conta do pedido da mulher “boa” ter sido atendido por seu marido, ele pôde reconsiderar os caminhos de exclusão que impôs à filha que lhe desafiou. É importante destacar que Shizue teve seu desejo de morte atendido pois tinha sido uma boa mulher para Hideo. Ao contrário de Kimie que somente pode rever o Japão em seu delírio de morte, Shizue teve seu desejo fisicamente atendido pelo marido, que compreendeu sua situação e se compassionou dela.

2.1.4 Considerações finais sobre os papeis familiares na obra de Nakasato

Nesta análise de Nihonjin de Osacar Nakasato, é possível notar que Hideo foi forçado a deixar seu país dentro de um grupo familiar para tentar ganhar dinheiro no

Brasil, e ele tinha também o sonho de retornar ao Japão para ajudar sua mãe. Era importante para ele (e para vários outros grupos dentro do Brasil) que as práticas culturais não fossem esquecidas. Sem a manutenção das práticas culturais japonesas, sua

77 identidade desapareceria e o sonho de retorno para casa como cidadãos japoneses e não expatriados não se tornaria realidade. De acordo com Hsiao-Chuan e John H. Scanzoni no seu artigo “Rethinking the Roles of Japanese Women”: “The Japanese housewife, whose territory and responsibility clearly defined, takes pride in her home and her family.

She enjoys social approval of her skill and devotion, and she takes pride in her emotional strength, in being the central integrating force of the family. Indeed, Japanese women treat housework and mothering as their profession and careers” (322). Kimie não tinha orgulho do seu papel de esposa no Brasil. Por outro lado, ela almejava cumprir suas funções como mantenedora da família, o que se constituía como um confronto das expectativas de seu marido sobre o que seria uma boa esposa. Então, Hideo tinha que ser responsável por assumir o papel que era de sua esposa e manter as tradições e culturas japoneses enquanto Kimie não estava apta a cumprir com suas responsabilidades. Assim,

Nihonjin apresenta ao leitor um personagem que incorpora a mentalidade patriarcal e que

“faz de tudo” para manter sua identidade intacta dentro das possibilidades do seu papel de esposo dentro do seu grupo familiar.

Podemos enfatizar alguns pontos de contato entre as personagens Kimie, Maria, a professora e Sumie, e também podemos observar como Shizue sofre para obedecer às regras da sua cultura patriarcal: ela não tem uma própria voz, não pode expressar seus reais sentimentos, perde o contato com uma filha. Shizue mostra ao narrador que há uma dicotomia entre pertencer ao ideal de mulher japonesa e o não pertencer. As mulheres que não se encaixam têm seus fins desconsiderados ou são taxadas como “loucas” e impróprias para a família de Hideo. A mulher que se encaixa não possui voz própria a

78 não ser em seu leito de morte, quando tem um único desejo atendido. Todas as personagens foram descritas por homens e somente foram permitidas a ter voz devido à ruptura da ordem patriarcal de Hideo, assim seus atos de “rebelião” também foram descritos sob uma perspectiva masulina. Os desfechos trágicos foram traçados pela sua recusa de aceitar as regras indivisíveis da cultura japonesa com uma narrativa dominantemente masculina. Dentro da família de Hideo, todas essas mulheres eram vulneráveis e foram consideradas impróprias para seu destino dentro do grupo, assim suas memórias não foram preservadas. Foram transformadas em contos de advertência para outros dentro da família de Hideo. Foram eliminadas de sua própria narrativa para se encaixar em um modelo de consequências sobre quem enfrenta o “sistema”. Essa necessidade de eliminação está baseada nas leis de lealdade e traição dos ideais do bushido e ela é constante para a preservação da cultura japonesa através das gerações.

O bushido é o código de honra dos samurais, instaurado na sociedade japonesa da

Era Tokugawa para regular a nação e instalar uma prática governamental baseada na honra dos guerreiros. De acordo com o código, atos de rebeliões ou traições eram considerados como infrações sérias e os envolvidos deveriam ser eliminados de dentro do ambiente social para que não se manchasse a honra dos indivíduos ou do grupo como um todo. No romance, um processo similar ocorre quando Hideo elimina as mulheres

“fracas” de sua família. A tarefa do patriarca era proteger a honra da sua identidade japonesa ao proteger também as práticas culturais e tradições. Uma vez que essas mulheres desafiavam tais diretrizes, elas são retiradas da história pelo medo de Hideo de manchar a moral de sua casa. Essa mancha ou estigma eliminaria a possibilidade de que

79 ele pudesse se relacionar com sua terra natal como um indivíduo inteiramente japonês, assim ele não poderia correr o risco de perder a sua identidade e a identidade de sua família por atos de rebeliões de mulheres fracas no romance.

Particularmente no Brasil, o patriarcado de Hideo também se relaciona à mentalidade de estado de escravidão que também ocorria na época. Jessé Souza, argumentando sobre o conceito de patriarcado no Brasil de Gilberto Freyre, comenta que

“patriarcalismo para ele [GF] tem a ver com o fato de que não existem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos” (83). Hideo era então a autoridade máxima de acordo não só com os padrões japoneses, mas também brasileiros dentro do seu grupo familiar. A destruição dos elementos mais vulneráveis (as mulheres rebeldes, nesse caso) não é discutida ou contestada na narrativa em nenhum momento pois ninguém poderia desafiar a autoridade do patriarca sobre suas “posses”.

A partir do próximo segmento, retomarei minha análise sobre como Hideo carregou a responsabilidade de mantenedor da identidade japonesa e porque ele o fez tão intensamente. Até o presente momento, analisei a obra de uma perspectiva opressora patriarcal focado em como a cultura japonesa masculina intrinsecamente espera um certo tipo de desempenho das mulheres dentro de um grupo familiar. Na obra de Nakasato, a violação desse desempenho acarreta ao personagem principal um desafio a ser contornado para que ele consiga preservar sua identidade familiar no novo país.

A próxima parte da minha análise focará em Hideo e no desenvolvimento da identidade japonesa da sua família através das gerações. Focarei na maneira como ele se coloca como responsável por não deixar a identidade japonesa desaparecer. Analisarei o

80 romance seguindo a ordem dos capítulos de 1 a 7 e, também, a ordem cronológica de evolução identitária generacional presente na narrativa e nos discursos dos personagens.

Vou destacar seus encontros com os desafios identitários que ele encontra e analisarei mais profundamente como e por que era importante para esses imigrantes a manutenção dos laços com o Japão.

2.1.5 Memória história e lembrança: a importância dos laços em Nihonjin de Oscar Nakasato

A partir desse ponto, começarei a olhar para a memória como um campo discursivo no qual os personagens se baseiam para construir a sua identidade japonesa e, mais tarde, nipo-brasileira. Para avançar minha análise, usarei uma estratégia na qual considero os personagens como sujeitos compostos por linguagem e, portanto, detentores de uma agência limitada no enredo. Analisando as composições discursivas de Hideo e outros personagens que aparecem através das suas memórias, focarei sobre como as memórias das suas experiências passadas são fundamentais para construir e consolidar sua identidade em um novo país. Hideo é intrinsecamente formado pelos discursos dos contextos culturais que traz consigo do Japão e os confrontos que enfrenta no Brasil justamente pelo sonho de retornar ao Japão um dia. No primeiro capítulo vemos o personagem rebater as maledicências sobre sua imigração ao Brasil:

- Desculpe eu dizer, Kimurasan, mas ter uma ideia tão negativa a respeito da

nossa ida ao Brasil e falta de patriotismo, é um desrespeito ao imperador. Ele quer

que emigremos, fiquemos um tempo em terra estrangeira, mas que voltemos

depois, com bastante dinheiro, e ajudemos no desenvolvimento do país. Será a 81

nossa contribuição. E ninguém vai pensando que encontrará um trabalho fácil,

que não exigirá suor. O governo não nos enganou dizendo que iriamos ganhar

dinheiro com arte. Se kimurasan não aguenta empunhar uma enxada, não deveria

estar nesse navio. (14)

Assim, vemos que o discurso de Hideo apresenta uma performance ligada à sua identidade: o valor do trabalho duro. Ele esperava trazer suas habilidades de “empunhar enxada” para honrar o imperador e seu país com o seu retorno um dia. Não esperava ficar no Brasil e muito menos ter que se adaptar a uma nova sociedade como parte intergrante dela. Assim, seu discurso identitário se baseia exclusivamente na sua bagagem cultural japonesa mesmo quando lidando (ou não) com sua adaptação ao Brasil.

A partir desse momento, discutirei constituição do sujeito discursivo e a sua capacidade em seu próprio contexto narrativo/histórico. Stuart Hall afirma que representação somente ocorre por meio da linguagem. De acordo com Hall, representação

é a “produção do significado dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem” (34).

Quando pensamos sobre representação do sujeito narrativo, fazemo-lo por meio da fala.

Representamos pelo uso de articulações de linguagem em um discurso. Linda Hutcheon também afirma que a capacidade do sujeito de representar a si mesmo pelo uso do discurso é uma habilidade da linguagem fundamental (215).

Benveniste destaca que “é dentro e por meio da linguagem que o homem se constitui como um sujeito, porque só a linguagem estabelece o conceito do ‘ego’ na realidade” (224). Hutcheon apresenta algumas ressalvas nessa definição. Quando pensamos sobre um sujeito do mundo real (não-ficcional), o sujeito falante é considerado

82 constituído dentro da linguagem e pela linguagem, por isso ele/ela não pode ser completamente autônomo uma vez que ele/ela está sujeito as regras desse sistema

(Hutcheon 215). Ou seja, o sujeito é cativado e subordinado a um único sistema discursivo. Os sujeitos analisados nessa pesquisa não são completamente autônomos.

Eles são subordinados a suas memórias (suas ou de algum outro personagem) que os definem e definem suas narrativas. É por isso que trabalho com a ideia de que a identidade desses personagens é limitada por seu discurso e pelo fato de que eles são constituídos única e exclusivamente pela manipulação da linguagem e da memória ficcional.

Jean Carlos Moreno afirma que o sujeito nacional é construído social e discursivamente: “identidade é uma categoria social discursivamente construída, expressa e percebida por diferentes linguagens: escritas, corporais, gestuais, imagéticas, midiáticas

. . . a identidade estaria ligada, desta forma, à representação da cultura de um ou mais grupos humanos” (7-8). Assim, verei que a identidade japonesa se choca com a representação da identidade brasileira. Quando os primeiros quais imigrantes chegaram, a missão era proteger sua identidade a todo custo para que não se derivassem e fossem excluídos da sociedade japonesa. Assim, não era (e continua não sendo) uma tarefa fácil para as gerações nikkei decidirem a qual identidade ser fiel. A batalha é mostrada no romance de Nakasato quando Hideo tem que encarar a professora de seu filho e as dúvidas que surgem sobre sua nacionalidade, e mais uma vez quando sua filha decide abandonar a colônia e a identidade japonesa para entregar-se a vida brasileira. No final, e

83 depois de vários confrontos, Hideo se pergunta se toda a fidelidade que ele manteve o

Japão valeu a pena.

É notável que uma escolha definitiva identitária não seja possível, então somente resta aos nikkeis navegar os diferentes espectros de suas próprias representações. Até os dias atuais, descendentes de japoneses relacionam a ideia do que é o Japão àquela ideia antiquada trazida ao Brasil pelos primeiros imigrantes e que permaneceu entranhada ao longo de gerações sucessivas. A maioria dos sujeitos nikkeis preservam o discurso de um império japonês, a terra que foi deixada para trás, e que permanece intocada pelo tempo.

O descendente de japonês moderno no Brasil (segunda e terceira gerações) geralmente não tem outro retrato do Japão que não o descrito acima porque os discursos passados de geração em geração visionavam a preservação de valores ancestrais.

Apesar de ter sofrido algumas alterações com o passar dos anos e das gerações, a base dos valores preservados nos discursos nikkei é a honra, honestidade, lealdade, educação, polidez, etc. Valores esses também associados à classe samurai antiga japonesa. No Brasil moderno vive-se um Japão antigo, uma ideia de samurais e moral bushido que influencia e faz parte da identidade nikkei. O Japão moderno não é parte do imaginário identitário das gerações atuais de nikkeis. As poucas influências modernas provenientes do Japão são as relacionadas ao mundo tecnológico e ao mundo imaginário de mangas e animes. Isto é, o imaginário identitário e de valores culturais dos nikkeis no

Brasil ainda se baseia no Japão medieval. Então, quando esses indivíduos decidem retornar a terra de seus ancestrais, que afirmam conhecer através das gerações, há uma

84 incompatibilidade de discursos representativos (o que é o caso dos decasséguis).32 Ou seja, os nikkeis contemporâneos não conseguem formar uma imagem de Japão (moderno) sem que ela entre diretamente em confronto com seus credos pessoais e identidade.

Demonstro a seguir como os conflitos de identidades mistas são manifestados no romance de Nakasato seguindo a ordem dos capítulos do livro. Começarei focando em

Hideo e sua memória do Japão e na articulação dessa lembrança com os valores que ele trouxe para o Brasil quando imigrou. Então, analisarei como ele projeta esses valores sobre as personagens a sua volta ao olhar para o modo como ele se dirige a esses no seu discurso. Focarei em como Kimie, Haruo e Sumie são envoltos com a corrupção da identidade japonesa, trazendo assim perigo à estabilidade do grupo dentro do novo país.

Finalmente, olharei para como os encontros com esses personagens fez com que Hideo reconsiderasse o lugar de sua identidade depois de muita violência sofrida para defende- la.

2.1.5.1 Hideo e a memória japonesa do indivíduo Hideo é o personagem principal retratado no romance como um guardião de tradições, trabalhador, chefe de família e homem orgulhoso. A introdução do romance e a história de fundo é cheia de incertezas e medo da nova terra e dos novos homens do

Brasil porque, afinal, era “Um país desconhecido, com homens estranhos, que podiam ser violentos, que poderiam impor normas difíceis ou até impossíveis de serem cumpridas

32 Os decasséguis eram trabalhadores sazonais que tipicamente migrava entre as regiões para encontrar trabalho. Nos dias de hoje, a terminologia é usada para caracterizar os descendentes de japoneses que voltaram ao Japão em busca de trabalho e melhores condições de vida. Os decasséguis não são o foco do desse trabalho. 85 por japoneses. Um país subdesenvolvido, onde podia haver epidemias” (13). Portanto,

Hideo intervém nos processos de integração identitária de seu filho, explicando sua visão do Brasil e a missão que o Imperador havia dado aos migrantes: “Ele quer que emigremos, que fiquemos um tempo em terras estrangeiras, mas que voltemos depois, com bastante dinheiro, e ajudemos no desenvolvimento do país” (14).

No início do século XX a imigração japonesa em massa mais do que aliviou as dívidas do país ao mandar indivíduos mais carentes para o exterior, os migrantes foram condicionados a pensar que eles eram verdadeiros “colonizadores” de nações menos

“desenvolvidas” (Kingsberg). Os indivíduos japoneses que migraram nunca deveriam pensar que estavam deixando a terra natal, mas deveriam crer que estavam a serviço do

Imperador e que ele os traria de volta com riquezas para investir no crescimento da nação. Como a autora afirma:

O Japão buscava evitar uma colonização por grandes poderes através do seu

remodelamento como uma nação no estilo ocidental. Entretanto, o estado havia

historicamente desencorajado ou mesmo banido a movimentação para fora das

ilhas principais. Assim, começando em 1868, líderes adotaram a nova solução da

emigração financiada pelo governo para lidar com medos antigos de uma

crescente população rural e a pressão nos recursos já escassos. Nos próximos

setenta anos, japoneses se estabeleceram nas américas de norte a sul, bem como

em vários estados asiáticos que se renderam ao controle imperial. Muitos

emigrantes, guiados pela pobreza, viram-se como “pessoas abandonadas” (kimin)

86

e ardentemente esperavam “retornar para sua casa vestidos de ouro” (kokioe

nishiki). (Kingsberg 70)33

Assim esses viajantes japoneses nunca se misturaram propositalmente nem se adaptaram

às novas sociedades com o propósito de tornarem-se indivíduos das nações que os recebiam. Kingsberg também afirma que, em um esquema geral, parte do plano era tornarem-se familiares com as populações inferiores para poder colher seus recursos, lucrar com a produção local e trazer glória ao Japão (72). Entretanto, ao chegarem ao

Brasil, esses japoneses encontraram cenários diferentes (não imaginados) que colocaram empecilhos no caminho dessa colonização.

A ideia do Brasil como nação unida ainda estava caminhando a passos lentos, então a identidade nacional estava sob o processo de tornar-se menos instável. O Brasil foi fundado sobre um processo de ideal nacional de embranquecimento da população.

Quando pensamos sobre as leis de imigração e os sujeitos que foram admitidos no país, é sabido que o governo favorecia sujeitos europeus que se misturariam com a população presente no país no início do século XIX. Esse processo foi feito para que o Brasil tivesse uma população de pele mais branca para “balancear” o montante de escravos negros e o escurecimento da população, e então o país poderia ter um status de nação mais

33 Japan sought to forestall colonization by the great powers by remodeling itself as a Western-style nation. Although the state had historically discouraged or outright banned movement beyond the home islands, beginning in 1868 leaders adopted the new solution of publicly sponsored emigration to address old fears of rural overcrowding and pressure on scarce resources. Over the next seventy years, Japanese settled throughout North and South America, as well as in the various Asian states that came under imperial control. Many emigrants, driven out by poverty rather than enticed by a new destination, viewed themselves as “abandoned people” (kimin) and ardently hoped to “return home wearing brocade” (kokioe nishiki). (Kingsberg 70)

87 desenvolvida internacionalmente: “Branqueamento” não se referia simplesmente à transformação da cor da pele, mas também carregava a tomada de uma identidade nacional “moderna” euro-americana” (Kingsberg 72)34.

Os imigrantes japoneses somente se encaixariam parcialmente dentro desse ideal porque o conceito comum que circulava no Brasil era de que os japoneses eram os

“brancos” da população asiática. Ou seja, eles compartilhariam de valores morais e sociais similares aos valores europeus, então eles eram mais desejáveis como imigrantes do que qualquer outro grupo proveniente da Ásia.35 Ainda de acordo com Kingsberg, o

Japão era louvado como

Como um modelo para o futuro do Brasil como um estado homogêneo,

“civilizado” e economicamente produtivo dentro do ranking dos outros grandes

poderes. Defensores dos japoneses valorizavam sua suposta lealdade, patriotismo

e vontade de trabalhar duro. Para muitos brasileiros, cientistas sociais e

legisladores, bem como para os próprios japoneses, os japoneses eram os

“brancos da Ásia,” cujas características sociais poderiam influenciar

positivamente a população doméstica heterogênea. (73)36

34 “Whitening” did not simply refer to a transformation of skin color, but also encompassed the assumption of a “modern,” Euro-American national identity” (Kingsberg 72)

35 É interessante fazer uma ressalva que no caso do Peru, as primeiras populações asiáticas a chegarem no país foram os chineses. Sob as mesmas premissas que a população japonesa, os chineses vieram em busca de oportunidades e para suprir uma demanda de mão de obra, entretanto, como o país peruano não tinha em mente o branqueamento da população, a entrada de sujeitos asiáticos “menos brancos” não foi vista como um problema como seria no caso brasileiro.

36 as a model for Brazil’s future as a homogenous, “civilized,” and economically productive state within the ranks of the great powers. Defenders of the Japanese valorized their alleged loyalty, patriotism, and willingness to work hard. For many Brazilian social scientists and policymakers, as well as Japanese 88

Ter uma população que compartilha dos mesmos valores desejados para a futura nação brasileira era a tentativa da implementação dessa nova ideologia, que também estava pareada com a necessidade japonesa de aliviar a crise econômica. Esses foram fatores fundamentais que influenciaram a abertura das fronteiras para esses novos sujeitos.

Entretanto, o resultado desses acordos entre as nações levou milhares de pessoas a deixarem seus países para encontrar no Brasil um governo despreparado, com um arranjo migratório diferente daqueles mencionados nos contratos de trabalho japoneses e que tinha muito preconceito contra esses sujeitos. esses fatores alinhados ao sonho do retorno para a casa (Japão) criaram uma resistência nos migrantes japoneses à assimilação dentro da sociedade e cultura brasileira. Os imigrantes japoneses não eram iguais ou eram considerados inferiores aos brasileiros, “o compromisso de inclusão permanente dentro da comunidade nacional mitigou sentimentos de abandono37 e proveu uma sensação de valor individual e mesmo de superioridade face as discriminações sofridas nas mãos dos vizinhos ‘brancos’” (Kingsberg 74)38.

Quando analisando o romance de Nakasato, é compreensível que Hideo seja visto como a representação discursiva da incorporação dessa jornada e da frustração desses primeiros migrantes. Como na análise de Jean Carlos Moreno, sua identidade é ligada a

themselves, the Japanese were the “whites of Asia,” whose attributed racial characteristics might positively influence the heterogeneous domestic population (Kingsberg 73)

37 Kingsberg explica que o sentimento de abandono é derivado da necessidade de migração para fora do país. Uma vez que eles chegassem nas terras novas, com contratos que não estavam nem perto do que eles pensavam ser verdade, haveria um sentimento de abandono pela pátria japonesa, mas eles ainda permaneceriam fiéis ao Japão (70).

38 “the promise of permanent inclusion in the national community mitigated feelings of abandonment and provided a sense of self-worth and even superiority in the face of discrimination at the hands of ‘white’ neighbors” (Kingsberg 74) 89 representação da sua cultura (7-8). Uma vez que ele não pode manifestar suas crenças culturais em um nível que o permitiria se reconhecer inteiramente como um sujeito japonês, ele se torna frustrado e com medo do novo ambiente. Hideo pode tampouco ser reconhecido como brasileiro, uma vez que ele não compartilha dos mesmos credos culturais e práticas de representação que caminham juntas àquelas praticadas no Brasil.

Então, Hideo é um personagem que constantemente se encontra em um limbo identitário, somente navegando pequenas ondas de nuances culturais que trazem um pouco de sentido a sua individualidade. Sidinalva Maria S. Wawzyniak explica o desenvolvimento dessa navegação identitária da seguinte forma:

A linguagem simbólica estabelecida no confronto entre as duas culturas marcou a

construção da identidade dos imigrantes a partir das imagens estereotipadas do

outro. Ao mesmo tempo, permitiu a identificação e a relação entre os dois

mundos, a partir do domínio de códigos que passaram a ser manipulados no

processo de aproximação e estabelecimento de fronteiras. Ao acionar os códigos e

regras da sua cultura de origem, o imigrante está dando visibilidade aos seus

símbolos e representações culturais revelando a sua visão de mundo. (6)

Hideo se mostra comprometido à terra natal ao aceitar migrar para o Brasil, mesmo que ele tenha ficado apreensivo sobre trabalhar em uma terra estrangeira e obedecer a leis de outro país (14). Entretanto, ele entendia que essa entrega demonstraria sua lealdade ao imperador então ele aceitou se comprometer a emigrar. No romance percebemos o personagem como um turbilhão de emoções sintetizando a opressão que sofreu de outros membros da família, projetando sobre eles os medos de se misturar à população brasileira

90 e as ansiedades de não ser capaz de completamente se conectar com sua identidade japonesa.

No primeiro capítulo, Hideo é visto como uma figura ríspida na interação com sua esposa e outros membros de sua família (em parte) por causa do sistema patriarcal internalizado no qual ele foi criado e também por causa do deslocamento que o personagem sentia ao ter que navegar uma sociedade que não condizia com sua bagagem cultural japonesa. Apesar do sistema patriarcal, Hideo tem a necessidade de manter os laços com a identidade japonesa. O papel que sua mulher teria nessa nova aventura migratória determinaria se, no futuro, sua geração manteria a memória e a identidade japonesa vivas. Como explicado na parte anterior, Kimie é a primeira esposa de Hideo que encara o choque da migração ao Brasil que acontece contra sua vontade. Ela nasceu no Japão e as tradições e culturas que trouxe consigo não eram compatíveis com a realidade da sociedade brasileira. Como uma via de mão dupla, porque ela era considerada uma personagem fraca, ela não se adaptaria à nova sociedade e vice-e-versa

Sidinalva Wawnzyniak uma vez mais explica que as mulheres eram responsáveis pela estrutura familiar:

De qualquer maneira, “lugares, eventos, símbolos” e “histórias particulares”

foram tecendo a identificação e a identidade desses grupos, sobretudo de suas

mulheres, que, como em todas as culturas, eram responsáveis pela manutenção da

estrutura familiar, mesmo em conjunturas muito adversas . . . Nesse momento, os

valores culturais das mulheres japonesas funcionaram como um ponto de

identificação e apego que serviu para deixar de fora, e distanciar, “para

91

transformar o diferente em ‘exterior’, em objeto”, e assim simbolicamente excluí-

lo. (6)

As mulheres japonesas eram responsáveis por recriarem um senso de conexão com a terra natal uma vez que eram elas que deveriam manter e adaptar as tradições, práticas culturais, língua e criar condições para amenizar a sensação de deslocamento que essas famílias imigrantes sentiram naquele momento. As mulheres japonesas eram, também, vasos de suas histórias. Uma vez que Kimie não pôde prover isso a Hideo, e vem a enlouquecer/falecer o personagem sentiu a necessidade de se casar novamente com uma mulher que pudesse o ajudar com os deveres familiares.

Ao olharmos para o segundo capítulo de Nakasato, é notável em uma escala maior que essas opressões patriarcais podem ser vistas como um dos reflexos da violência externa que esse primeiro grupo sofreu de indivíduos brasileiros. Kimie sentia saudade do seu próprio ambiente cultural e língua, então a adaptação à nova terra trouxe a ela desejos que não se encaixariam com o ideal de honrar o legado japonês em terras estrangeiras

(desejos de retorno, de não adaptação, de se relacionar com outro homem). As influências da mudança cultural, mais a violência do trabalho nos campos brasileiros impostas às famílias japonesa gerou uma opressão em uma escala que geralmente se refletia no membro mais “fraco” da família. Porque Kimie era mulher, não era adequada ao trabalho e estava com muita saudade de casa e em um choque cultural, ela era o alvo das frustrações de Hideo. Ele, sendo o cabeça da família, e de acordo com a tradição japonesa, tinha que encarar a maioria das “desonras” provenientes da cultura brasileira sem esquecer sua cultura de origem.

92

A partir do segundo capítulo, é possível ver a continuação da história de Hideo de ter que se juntar a outra família como agregado uma vez que sua mulher havia falecido.

Isso trouxe sobre ele um grande sentimento de descontentamento porque agora ele era obrigado a trabalhar para outra família (não mais como o cabeça). Nesse capítulo ele procura encontrar uma esposa que seja o oposto de Kimie: “Precisava ao seu lado de uma mulher forte, que não reclamasse do trabalho da capina ou da derriça. ‘E não é bom para o homem ficar só’, pensou, lembrando-se dos conselhos que dava a Jintaro” (49). Ele queria uma esposa que traria honra dentro da sociedade japonesa e que não o humilhasse quando passassem por dificuldades dentro da sociedade brasileira. Era primordial que o grupo familiar de Hideo prosperasse no Brasil para que eles impressionassem o imperador, caso fossem chamados a retornar ao Japão. Durante seu processo de imigração para o Brasil, no navio, Hideo comenta “. . . ter uma ideia tão negativa a respeito da nossa ida ao Brasil é falta de patriotismo, é um desrespeito ao imperador. Ele quer que emigremos, que fiquemos um tempo em terra estrangeira, mas que voltemos depois, com bastante dinheiro, e ajudemos no desenvolvimento do país. Será a nossa contribuição” (14).

2.1.5.2 O confronto de identidades e a diferença dos olhos O terceiro capítulo de Nihonjin elabora e define um retrato das dificuldades da identidade de Hideo e como a geração nisei já estaria mudando sua visão sobre suas próprias questões identitárias. Nesse capítulo, o filho de Hideo, Haruo, é confrontado sobre sua identidade brasileira na classe pela sua professora brasileira; ele também é

93 desafiado pelo pai em casa, que insiste que ele mantivesse os credos culturais japoneses vivos.

O capítulo inicia com Haruo sofrendo bullying na escola por outros estudantes por ser diferente. Em um ambiente onde várias crianças, filhos de imigrantes, eram colocados juntos, Haruo era um que não conseguia esconder o fato de que ele era diferente dos outros. Seus olhos o denunciavam: Não gosto que me chamem de japonês, eu sou Haruo”

(59). Entretanto, Haruo não cresceu em um grupo no qual ele não conseguisse se dissociar da sua outridade. Ou seja, Haruo não havia crescido em um ambiente exclusivamente japonês, o que o forçava a entrar em contato com várias outras crianças que eram diferentes dele, mas não eram tão diferentes entre si. Haruo, sendo um dos

“diferentes”, é o centro dos comentários de seus colegas. Outro importante fato é que eles usam sua etnicidade para se referir a ele, que é uma prática ainda comum no Brasil.

Chamar o outro pela característica que ressalta sua outridade, como “japonês”, “negro”, etc, é uma prática que perpetua as diferenças de uma maneira derrogatória dentro do país.

Haruo não queria ser diferente, ele queria ser tratado como igual pelos colegas: “Era diferente. Queria ser igual” (60), o que divergia diretamente dos planos de seu pai Hideo.

Hideo, por outro lado, sabia dos perigos de se associar à identidade brasileira.

Como afirma Miriam Kingsberg, a associação ou assimilação à cultura hospedeira era vista como “assimilação como perda”, na qual a faceta japonesa iria desaparecer em detrimento da identidade brasileira (74). Então, eles não seriam considerados japoneses reais (com exceção dos traços físicos). Isso implicaria que eles não mais seriam bem- vindos à sociedade japonesa e trariam sobre si mesmos o fardo de se tornarem gaijins de

94 si mesmos entre seu próprio povo. Hideo sabia desse perigo: “No meio de gaijin, um nihonjin sozinho é fraco, é uma vara fácil de ser quebrada. Não estamos no Japão, e aqui no Brasil a gente não sabe em quem pode confiar. Mas, se nos mantivermos juntos, seremos um feixe, e ninguém poderá nos quebrar” (61). O personagem estava explicando a suas crianças a importância de manter o grupo de indivíduos migrantes fechado com os mesmos credos culturais. Se eles se mantivessem unidos dentro de sua cultura, a sociedade de “fora” não quebraria essa união. Assim, eles poderiam permanecer com sua cultua intacta para quando fosse hora e retornar ao Japão para honrar o imperador e a missão dos migrantes.

O processo de habitar uma nova terra para agradar o Imperador e se misturar à população local era visto mais como um processo de colonização do que assimilação. A missão dos primeiros migrantes era fazer do Brasil uma terra “melhor” pela presença dos sujeitos japoneses. Entretanto, o contato com brasileiros não significaria que os japoneses se desvencilhariam de sua identidade. Ao contrário, a ideia era que a sociedade brasileira se transformasse com a presença japonesa. Para muitos desses indivíduos migrantes, misturar-se com brasileiros e adquirir novas práticas culturais em detrimento da sua própria cultura significava a perda de parte de sua identidade e, então, a assimilação estava fadada a um processo de perdas. Ou seja, tornarem-se mais “abrasileirados” significava tornarem-se menos japoneses, então eles não permaneceriam mais à sociedade japonesa e tampouco não se encaixariam na sociedade brasileira.

95

Haru, entretanto, era um personagem em conflito. Diferentemente de seu pai,

Hideo que nunca precisou questionar sua identidade e suas raízes, Haruo desenvolve sentimentos mistos quando ele é confrontado por sua professora sobre sua brasilidade:

Porém, quando ela lhe disse que não era japonês, não enxergou mais os seus

grandes olhos azuis e lembrou que seu pai sempre lhe ensinara que era nihonjin, e

que nihonjin era diferente de gaijin, que cada nihonjin era representante de um

povo de tradição milenar. Então, ou seu pai ou a professora estavam equivocados,

pois quando dois diziam coisas diferentes, se um estava certo, o outro estava

errado, já não existiam duas verdades diferentes sobre o mesmo tema. (63)

Haruo é um personagem que não sabe (ainda) como navegar a dualidade de sua identidade. Dentro dos conceitos de completude, ele não pode ser nem japonês e nem brasileiro, o que implica que ele teria que renunciar certos aspectos de sua vida para que ele pudesse ser um indivíduo completo (inteiro em sua identidade). Devido a esses conflitos que ele sofre, Haruo torna-se ansioso sobre definir sua identidade ao negar sua outridade dentro de si. Ele conversa com seu pai, que indubitavelmente afirma que Haruo

é japonês, e ele explica o “problema” a sua professora, que responde: “Você nasceu aqui no Brasil, portanto, você é brasileiro. E você deve se sentir orgulhoso por ser brasileiro, afinal, por algum motivo seus pais escolheram o Brasil para viver” (64). A professora não tinha consciência da missão japonesa no Brasil e nem do sonho do retorno a terra natal, assim não consegue compreender essa dualidade que Haruo sofre em casa.

Esse ambiente conflituoso é o pano de fundo da formação identitária de Haruo.

Eventualmente, o personagem é ensinado por seu irmão maior uma estratégia que

96 permaneceria por muitos anos dentro da comunidade japonesa, e até os dias de hoje: “Na escola você é brasileiro, em casa você é nihonjin” (64). Haruo, e muitos outros descendentes de japoneses, viveriam essas palavras como verdade para poderem sobreviver no Brasil e, ainda, preservar suas práticas culturais e tradições intactas. De acordo com Abril Trigo: “Desgarrado entre la supervivencia del aquí-ahora y la nostalgia del entonces‐allá, el migrante va configurando una subjetividad fragmentada y heterogénea, incapaz de sintetizar sus experiencias de vida sin sufrir grandes pérdidas y condenado a vivir en un mundo ancho y ajeno” (“Introducción” 17). Há uma necessidade constante de negociação entre os indivíduos nikkeis brasileiros, uma vez que precisam constantemente ajustar seu discurso identitário para navegar a sociedade brasileira.

Vivendo entre “sou brasileiro” e “mas sou japonês,” cabe ao sujeito somente pertencer a um “mas”, um entre-espaço no qual não habita o Japão e nem o Brasil. Assim, Hideo não sofre dessa dissonância identitária no princípio, então ele não entende as dificuldades que o filho enfrenta por habitar um entre-lugar. Como Hideo vê o discurso narrativo nikkei como uma “assimilação como perda identitária,” ele não tem a intenção de corroborar a ideia do filho de tornar-se brasileiro se isso implicasse que ele rejeitaria a faceta japonesa.

Durante algumas entrevistas etnográficas que fiz com japoneses no Brasil, cheguei ao entendimento que o discurso de Haruo é lema para a maioria dos sujeitos entrevistados: “habitar duas realidades, mas não pertencer totalmente a nenhuma”. Sejam eles mais velhos ou mais novos, quando perguntados sobre o porquê seria importante preservar a identidade japonesa, vários responderam que é necessário manter a cultura e as tradições de seus ancestrais. Mesmo que a maioria dos sujeitos não falasse mais

97 japonês em casa, ou nem mesmo tenham aprendido a língua, eles ainda mantêm tradições japonesas quando estão entre seus grupos familiares e/ou kaikans39 de suas cidades.

Afirmo que essas práticas são a reminiscência dos ideais dos primeiros migrantes mantendo uma manifestação cultural forte entre um grupo fechado para que essa cultura não desapareça e se dissolva dentro da cultura hospedeira (seja ela brasileira, peruana, americana ou de qualquer outro país para onde eles tenham migrado). Até os dias de hoje, há a ideia de “preservar as raízes e a cultura”, mas de também ser brasileiro. Uma dualidade.

O conflito de Haruo é a exemplificação desse discurso de via-de-mão dupla. Ele não podia descartar o fato de que havia nascido no Brasil e que ele queria pertencer a cultura na qual ele estava transitando. Entretanto, Hideo não concorda: “Harou fora educado como um japonês, e isso era muito mais importante que ter nascido no Brasil, que o filho, além de ter a cara de japonês, fizera-se japonês através da aprendizagem da língua japonesa, que falava melhor que a língua portuguesa, e da cultura japonesa, o que o qualificava como um japonês” (69). É possível ver que Hideo concorda com Stuart Hall sobre a representação ser a “produção do significado dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem” (34) quando se trata do fato da afirmação da identidade ser baseada sobre discurso. Isto é, porque Haruo podia falar a língua e pertencer a um grupo que possuía certas práticas culturais, ele não poderia pertencer a outro grupo. A discursão se formava em torno da ideia de que “uma vez que meu filho fala mais japonês do que

39 Kaikans são centros estabelecidos para que os grupos de japoneses na cidade se reúnam e aprendam sobre sua cultura e pratiquem suas tradições. Também servem para discutir seu envolvimento político e para ensinar a língua japonesa. O kaikan serve também como ponte de conexão com outros grupos/sociedades de japoneses pelo país. 98 português, ele não pode ser brasileiro”, e isso seria suficiente para caracterizar a identidade de Haruo para Hideo. Dentro da ideia do personagem principal/ protagonista sobre identidade, a língua e as práticas da cultura são características que qualificam um indivíduo japonês, entretanto, ele esquece que seu filho também conseguia navegar a cultura e falar em outros ambientes. Para Haruo, pertencer a um grupo que possivelmente o rejeitaria por causa da sua outridade (a parte brasileira)40 era mais importante para definir a sua identidade do que reafirmar um outro bloco diferente de sua identidade que já era fortemente consolidado (a parte japonesa, que visualmente e culturalmente consolidavam seu eu).

O fato de a identidade de Haruo estar tendendo a ser mais brasileira do que japonesa se baseia no episódio no qual seu pai o bane de casa por uma semana. Ao tentar usar um método disciplinar japonês (kinshin) para educar seu filho nascido e criado no

Brasil, Hideo direciona seu filho para encontrar conforto em uma família de imigrantes italianos:

. . ficaria em kinshin, uma semana fora de casa, com a roupa do corpo e um par de

sandálias. Poderia dormir com os bichos, abrigar-se na tulha, comer o que

encontrasse no pomar, caçar passarinho, depená-los, assá-los em espetos de pau.

Não se apiedaria. Que ninguém abrisse a porta para ele, que ninguém lhe desse

nada para comer, pois se alguém o fizesse também seria penalizado. (76)

40 Ou seja, caso afirmasse sua identidade como brasileiro (ou parte brasileiro) ele não mais poderia pertencer à comunidade japonesa imigrante, pois a assimilação era vista como perda. Assim, aqueles que se assimilassem à comunidade brasileira não teriam mais condições de pertencer à comunidade japonesa pois lhes faltam partes identitárias compatíveis com o grupo. 99

Após procurar ajuda em várias casas japonesas, Haruo decide encontrar conforto na casa de seu amigo italiano Pietro, que o recebe sem nenhuma restrição. Com relação a sua identidade, esse fato foi um momento decisivo no qual ele se vê temporariamente/condicionalmente excluído do mundo japonês. Assim, faria mais sentido a ele dedicar-se a desenvolver o lado de sua identidade que não o excluiu. Ao ser negligenciado o direito de estar com sua família por acreditar na dualidade de sua identidade, ele acaba sendo empurrado em direção à faceta brasileira ao invés de reconsiderar sua pertença na comunidade japonesa.

Após esse incidente, e durante o romance, Haruo confronta seu pai sobre sua identidade brasileira tentando fazer com que Hideo reconheça que ele nunca mais seria inteiramente japonês, uma vez que ele era, de fato, brasileiro. Então, ele deveria agir como brasileiro, falar português e participar em eventos culturalmente relevantes que iriam lhe ajudar a consolidar sua identidade como brasileiro. Entretanto, é somente no final do romance, depois que Haruo perde é assassinado por acreditar na derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e ser perseguido por fanáticos da Shindo Renmei41, que

Hideo chega a conclusão que por ele ter forçado tanto a identidade japonesa sobre seu filho, ele fez com que Hideo se distanciasse do Japão e eventualmente perdesse sua vida por tal fato.

41 Os capítulos 4 e 6 de Nihonjin vão explicar as consequências da Segunda Guerra Mundial sobre a sociedade japonesa no Brasil e a criação da organização chamada Shindo Renmei. Esse grupo tinha como objetivo a eliminação de qualquer indivíduo japonês que acreditasse que o Japão havia perdido a guerra Renmei pois eles eram considerados como traidores da pátria e teriam que ser eliminados da sua sociedade. Explicarei mais sobre essa organização no último capítulo da minha análise, quando focarei no filme Corações sujos (2011) de Vicente Amorim. 100

2.1.5.4 Valeu a pena? No capítulo final do romance de Nakasato, percebe-se que tanto o personagem principal quanto o narrador fazem uma retrospectiva sobre as perdas de Hideo. Eles comentam e conversam sobre o filho que faleceu devido a esse confronto identitário, fala sobre a filha que foi expulsa do convívio da família por amar um gaijin e fala da esposa que morre pedindo para ver a filha desgarrada. Na última página, nota-se um conflito interno quando o narrador afirma para o narrador que sabe onde sua mãe (Sumie, filha desgarrada) mora atualmente. Hideo responde que também sabe. Isto é, apesar de

“cortar” laços com os confrontos identitários e patriarcais que sofreu, Hideo não se separa completamente. O fato de ele ainda acompanhar o paradeiro da filha demonstra um certo remorso nas atitudes do personagem e faz o leitor questionar se todo o esforço que Hideo fez para manter sua família como exclusivamente “japonesa” teria valido a pena.

Hideo, sendo o guardião da identidade japonesa dentro do romance de Nakasato e o personagem principal, têm sua vida aberta em um discurso narrativo que o caracteriza como o patriarca mantenedor das tradições e identidade. Mesmo depois da confirmação que sua família não retornaria ao Japão, ele insiste em perpetuar a língua e as práticas culturais que ele trouxe do Japão. Hideo não estava disposto a negociar com o Brasil ou com seus filhos, que foram forçados a escolher o caminho japonês ou serem excluídos da família.

No final do texto, somos apresentados mais explicitamente ao narrador que é neto de Hideo sobre seu avô. Ele quer saber mais sobre os arrependimentos da vida de Hideo.

O narrador é parte de uma geração de brasileiros decasséguis (niseis, sanseis ou yonseis),

101 que decidem retornar à terra dos seus ancestrais para trabalhara e juntar dinheiro para voltar ao Brasil. Entretanto, o narrador tem um outro motivo:

. . . ir ao Japão é quase um retorno, que na primeira oportunidade me

desvencilharei dos sapatos, pisarei na areia branca e sentirei um contato antigo, os

pés revivendo o toque, moldando-se a formas desenhadas há muitos e muitos anos

e ignoradas pelo tempo, que me sentarei em um campo de cerejeiras brancas e

permanecerei ali por uma, duas horas, que irei aos pés do monte Fuji, olharei o

pico coberto de neve e o reconhecerei, que será um reencontro. (162).

Durante a história, o narrador ouviu um discurso de ancestralidade sobre uma terra antiga, que é o Japão que seus ancestrais deixaram para trás. O imaginário que sustenta sua identidade japonesa é baseado em um discurso que parcialmente se modificou do discurso dos primeiros imigrantes. Isto é, a parte da sua identidade japonesa foi construída sobre as histórias que seus ancestrais contaram sobre o Japão e sua cultura.

Entretanto, ele nunca experimentou/ vivenciou essa cultura descrita, e ele nunca havia estado no Japão antes. O narrador está viajando a trabalho e também para entender uma parte dele que ele acreditava ainda existir da maneira que lhe foi ensinada. Ele quer viajar para descobrir se o Japão do discurso da sua identidade é igual ao Japão que ele nunca conheceu.

Aqui é importante explicar que uma grande parte dos decasséguis que retornam ao

Japão se encontram em uma posição de não pertença, ou de redescobrimento de sua identidade latino-americana (brasileira no caso). Entre os decasséguis há um ideal de reunião com uma parte da sua identidade da qual lhes falta referência, assim ao viajarem

102 para o Japão eles pensam que vão “tapar o buraco” identitário do seu discurso nikkei.

Entretanto, ao chegarem ao Japão, a realidade é que não pertencem à população japonesa e acabam sendo (muitas vezes violentamente) discriminados por serem “diferentes”. Esse processo reacende sua conexão com suas identidades latino-americanas e eles acabam se descobrindo mais brasileiros/peruanos que japoneses. O próximo autor analisado,

Augusto Higa Oshiro, escreveu um romance chamado Japón no da dos oportunidades

(1994), no qual ele descreve o processo de redescoberta da sua identidade peruana enquanto trabalhava em uma fabrica no Japão.

Por causa da sua inexperiência, ele decide visitar seu avô materno (ojiichan)

Hideo. Ao chegar na casa de seu avô, o narrador acaba encontrando um homem conformado:

- Ojiichan, quer que eu lhe envie alguma coisa do Nihon [Japão]?

- O que eu posso querer do Nihon?

- É furusato de ojiichan.

Ele levantou os olhos.

- Furusato... O meu furusato não existe mais. (169)

Hideo não tem a necessidade de se conectar a um furusato do avô (furusato é uma terminologia japonesa que determina cidade natal ou um lugar seguro) que, na sua visão não existe mais. O personagem admite que sua cidade natal, seu conforto no Japão, não existe mais para que ele se relacione a ela. O Japão no qual ele cresceu havia “falecido” e se modificado do que sua geração conhecia. Assim, sua identidade somente está ligada pela memória que ele possui do lugar e não pela fisicalidade da cidade.

103

Assim como muitos indivíduos nos dias de hoje, a sua identidade japonesa no

Brasil segue o mesmo padrão que Hideo. Sua identidade japonesa, suas tradições culturas e discursos estão atados a uma memória que vem sido passada de geração em geração. O nikkei moderno tem sua faceta japonesa ligada a um Japão que não existe mais, exceto no discurso do imigrante japonês brasileiro.

Hideo é transformado pela morte de seu filho: “. . . depois da morte de Haruo, nada lhe interessava mais. Não tinha mais vontade de ir ao estádio ver os jogos de beisebol, custava-lhe levantar-se cedo para abrir a loja da Conde de Sarzedas, o missoshiro de obachan perdera o sabor . . . pensou que a vida perdera todo o sentido”

(172). O personagem perde o significado da vida quando seu papel de mantenedor das tradições é quebrado pela morte de seu filho. Ele não tinha mais uma posição para preencher pois não havia ninguém mais em sua família que questionasse a sua identidade japonesa. Ele não tinha mais que corrigir e proteger Haruo da sociedade pois seu filho havia dado sua vida defendendo uma causa que contradizia os credos de Hideo. Haruo foi assassinado pela Shindo Renmei (o grupo “terrorista” de japoneses fanáticos que acreditavam que o Japão tinha de fato vencido a guerra. Assim eles deveriam eliminar todos os outros japoneses traidores que acreditassem o contrário).

Ele se arrepende profundamente de ter mantido laços tão fortes com a identidade japonesa pois isso lhe custou a perda de dois filhos (Sumie e Haruo). No final, Hideo entende a transformação da sua identidade e afirma definitivamente que o Brasil é o lar da sua família. Dirigindo-se ao narrador, diz: “Ojiichan ergueu os olhos cansados, quase sem brilho, e disse em palavras nuas que o Brasil era a minha terra” (173). Aqui é preciso

104 chamar a atenção para os olhos sem brilho, assim como os de sua primeira esposa Kimie, que parecem significar que ele não tinha mais esperanças de retornar para um Japão.

Diferentemente da primeira esposa, que sonhava em retornar a sua “casa,” e acaba entregando-se ao delírio do sonho do retorno, Hideo também se entrega ao aceitar que nunca iria voltar para o Japão pois o Brasil era sua casa agora. Ele não reconhece mais o

Japão como o seu furusato. O que lhe resta é fazer do Brasil um novo furusato para ele mesmo e para sua família.

2.2 La iluminación de Katzuo Nakamatsu, por Augusto Higa Oshiro: a dualidade identitária e o sofrimento do indivíduo nikkei

Augusto Higa Oshiro é um autor peruano que é inspirado pelo mundo urbano de

Lima e por sua ancestralidade japonesa. O autor fez parte da Generación de 70, movimento literário poético peruano e, junto a outros autores nipo-peruanos como José

Watanabe, publicou a revista Narración, a partir de 1966, com a qual divulgou seus escritos. O movimento nasceu sob o contexto revolucionário nacional e internacional da revolução cubana e os movimentos de guerrilha do Ejército de Liberación Nacional de

Héctor Bejár42 e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria43. O movimento floresceu

42 O ELN comandado por Héctor Béjar surgiu em apoio ao MIR em 1962, mas foi rapidamente derrotado em 1965-66 quando começou suas operações de guerrilha. (Roberts 207)

43 De acordo dom José Luis Rénique, o Movimento de Esquerda Revolucionária Peruana começou: “Entre el ímpetu guevarista nisei la crítica filo-trotskista del comunismo pro-soviético se delineaba una nueva forma de ser izquierdista. Apuntando en esa dirección, los peruanos aspiraban a superar el "camino evolucionista" del "compromiso nisei la componenda" para vincularse directamente con la movilidad social de un país en erupción… Una Reforma Agraria "radical nisei profunda" era, en este sentido, la medida prioritaria. De ahí que la organización del campesinado en el plano nacional fuese "la tarea imperativa del momento actual".

105 entre 1968 e 1979, sob o regime reformista do governo de Juan Velasco Alvarado e introduziu o espírito crítico e a coloquialidade como recurso literário. De acordo com

Rosina Valvárcel, foi a geração caracterizada por “El ansia de vivir, la bohemia, la militancia, el amor contestatario, y casi nada en los bolsillos” (La Generación).

É dentro desse cenário político e social que Augusto Higa Oshiro começa a desenvolver suas escritas. Inspirado pelo movimento esquerdista de liberação nacional e pela representação das vozes que não eram ouvidas pela sociedade latino-americana,

Higa Oshiro projeta as vozes de seus personagens para representar memórias de minorias oprimidas e de seus ancestrais. Considera-se que o autor tenha tido dois grandes períodos de escritura. O primeiro engloba livros de contos como Que te coma el tigre (1978) e La casa de Albaceleste (1987); e o romance Final del Porvenir (1992). Em todos esses textos há uma forte influência de outros escritores peruanos como Julio Ramón Ribeyro,

José Maria Arguedas e Mario Vargas Llosa, nos quais há a representação dos mundos do mestizo e do criollo de bairros marginais. Depois de 1990, quando o presidente Alberto

Fujimori ascende ao poder, Higa Oshiro viaja ao Japão por causa de dificuldades financeiras. Devido a condições de exploração que o autor passa no Japão, sua jornada o força a redescobrir sua identidade. Por causa dessa experiência, ele escreve e publica

Japón no da dos oportunidades (1994), considerado um ponto de transição na sua carreira. A partir desse momento, Augusto Higa Oshiro dedica os temas de suas escritas ao testemunho em favor da identidade japonesa e da condição nisei. A análise que o autor faz sobre os niseis floresce no livro analisado nessa pesquisa, La iluminación de Katzuo

Nakamatsu (2008), que é considerado um dos mais importantes textos do autor. Mais

106 tarde, ele também publica Okinawa existe (2013) que reflete seus pensamentos mais profundos sobre a comunidade okinawense. Também, o tema do seu romance mais recente Gaijin (2014) circula em torno da discriminação e das dificuldades que os imigrantes japoneses enfrentaram dentro da sociedade peruana, o que os forçaram a reconhecer sua condição de “gaijins” (estrangeiros).

Em vários de seus textos, o autor reflexiona sobre o tema do testemunho nas suas escritas. Porque ele faz parte do grupo que representa nos seus textos, e por ter sofrido os mesmos dilemas, ele coloca seu sofrimento entranhado dentro da narrativa para expressar uma voz coletiva através do discurso de um único personagem.

De acordo com Paul Riccoeur, o testemunho é nele mesmo uma “prestação de conta” de vozes do passado e o que lhe dá credibilidade é o fato de que o autor/narrador

“estava lá” para vivenciar o fato (163). Entretanto, testemunho de um autor como

Augusto Higa Oshiro gira em torno da sua visão de realidade e das suas técnicas de narração através de um livro ficcional. Ou seja, ao mesmo tempo em que há uma grande quantidade de “verdade” nas palavras de Higa Oshiro devido ao fato de que o autor sintetiza sua rejeição pela sociedade peruana, há também um elemento questionável de ficção que faz com que a novela se enquadre mais em uma esfera ficcional do que em um

“testemunho” ou “documentário”. Riccoeur afirma: “A especificidade do testemunho consiste no fato de que a sua afirmação de realidade é inseparável do pareamento com a auto-designação do objeto de testemunho” (163)44. Riccoeur também afirma que, com

44 “The specificity of testimony consists in the fact that the assertion of reality is inseparable from its it? being paired with the self-designation of the testifying object” (163)

107 relação ao gênero de testemunho: “a relação entre realidade e ficção continua a nos atormentar até o estágio da representação histórica do historiador” (163)45. Isto é, a versão do historiador recebe mais crédito de verdade devido a sua posição perante o testemunho dos fatos. Ele carrega um fardo de verdade mais pesado do que um escritor recontando suas memórias, como é o caso de Augusto Higa Oshiro por exemplo.

Entretanto, mais do que a mera representação do passado, La iluminación the

Katzuo Nakamatsu é um romance que objetiva o “malabarismo” entre as vozes e memórias coletivas da sociedade japonesa, a voz/ memória particular de Katzuo, e a voz do próprio narrador onisciente. O narrador nos conta que é por meio da profunda reflexão sobre essas memórias que o personagem principal consegue trabalhar nos traumas pessoais e coletivos da sociedade nikkei peruana. Riccoeur também afirma que essa estratégia pode ser considerada um parâmetro de cura entre os traumas coletivos e pessoais quando elaborando um testemunho:

Superar obstáculos através das lembranças, que tornam a memória em uma

espécie de trabalho, pode ser corroborada pela intervenção de um terceiro

elemento, o psicanalista entre outros. Ele possivelmente poderá organizar o

paciente para relembrar… Essa autorização, a qual Locke nomeou “forênsica”,

está ligada à palavra de memória que é performada pelo paciente – chamada pelo

analisador – que tenta juntar os sintomas, fantasmas, sonhos e outros dentro de

45 “the relation between reality and fiction will continue to torment us, right up to the stage of the historian’s representation of the past” (163) 108

um discurso em um esforço para reconstruir uma cadeia mnemônica

compreensível, aceitável a ele ou ela [paciente]. (129)46

É dentro desse cenário de fantasmas elaborados em palavras que Augusto Higa Oshiro inscreve Katzuo e sua narrativa. Através da sintetização da memória em língua, seja ela pessoal ou coletiva, Katzuo se encontra como vaso/ receptáculo para aquelas vozes mal interpretadas. Ele conserva memórias e vozes que não são exclusivamente suas, mas que necessitam um canal para se manifestarem. Assim sendo, elas atormentam Katzuo até que ele consiga liberá-las com a ajuda da yuta. É somente com a ajuda de uma personagem feminina, a yuta Miyagui, uma médium okinawense, que o personagem consegue trabalhar essas memórias fantasmagóricas:

Y las mismas voces y fantasmas retornaban a su consciencia, y se repregaban allí,

vivas en el abismo del pasado, como un grito de escarnio, girando y revolviéndose

en el pantano del orgullo, sobre enconos y resentimientos. Pero Nakamatsu,

postrado en el suelo, en aquella habitación del hospital, naufragaba en

convulsiones, parecía un cuerpo inerte y debilitado que no respondía a las

urgencias vitales, e era la yuta Miyagui quien lo sostenía y auxiliaba con sus

crepusculares energías. (112)

46 Overcoming obstacles through remembering, which makes memory itself a work, can be aided by the intervention of a third party, the psychoanalyst among others. The latter can be said to authorize the patient to remember . . . This authorization, which Locke termed “forensic”, is linked to the work of memory performed by the patient – better called the analysand – who attempts to bring symptoms, phantasms, dreams, and so on, to language in an effort to reconstruct a comprehensible mnemonic chain, acceptable to him or to her. (129)

109

Isto é, ela consegue guiar Katzuo e as memórias para que elas deixem de atormentar o personagem tanto psicologicamente quanto fisicamente. É ela que, segundo Riccoeur, organiza o pensamento do personagem em um discurso que representa as vozes que o atormentam e assim lhe traz paz.

Em minha análise do romance de Higa Oshiro, sigo o padrão através do qual: trabalharei a questão da identidade dando continuidade a análise de Nihonjin. Entretanto, diferentemente do romance de Nakasato, olharei para La iluminación para identificar uma

única camada identitária que representa em larga escala outros sujeitos japoneses dentro do Peru. Isto é, enquanto no texto de Nakasato é possível reconhecer a necessidade de preservação de uma dupla camada de identidade dentro dos japoneses e dos seus descendentes, no romance de Higa Oshiro o processo torna-se distinto. É necessário distanciar-se da identidade nacional de camada única e mesclada (como na frase “ser japonês é uma forma de ser peruano”) para o reconhecimento da faceta japonesa como uma camada separada identitária. É preciso debater sobre as tradições, culturas e traumas da identidade peruana para que a faceta japonesa se destaque e seja reconhecida dentro dessa trama nacional específica. Então, procederei comentando o papel da yuta okinawense no processo de representação da identidade nikkei, que vai ser um processo oposto ao explicado em Nihonjin. Isto é, enquanto no romance de Nakasato as mulheres eram as responsáveis por mancharem a memória da identidade japonesa, no texto de Higa

Oshiro a mulher é a única responsável por trazer à tona a memória japonesa esquecida e enterrada através da voz de Katzuo Nakamatsu. É interessante comparar que as personagens femininas funcionam de formas diferentes. Na obra de Oscar Nakasato, as

110 primeiras seriam um obstáculo a um futuro possível idealizado pelo patriarca da família; já na obra de Augusto Higa Oshiro a segunda personagem é um veículo a um passado já concluído e um futuro determinado de Katzuo Nakamatsu.

2.2.1 Assimilação à comunidade: um parêntese

Um importante parêntesis a ser feito aqui abrange a explicação sobre o processo de assimilação que a comunidade peruana japonesa passou. De acordo com Nusta

Carranza Ko, esse processo foi dividido em duas fases significantes: pré e pós Segunda

Guerra Mundial. O autor explica que os imigrantes que estavam no Peru dentro do período pré-Segunda Guerra Mundial sofreram muitas opressões e violências pelas condições da sua imigração ao país, seu desenvolvimento e o envolvimento do Japão com o Eixo.

Quando os imigrantes chegaram em Lima e Callao, o sucesso econômico de tais grupos não foi visto com bons olhos pela maioria da população já presente nessas cidades, especialmente pela explosão de imigrantes em tais áreas e a formação de uniões econômicas por tais grupos. Nos primeiros dez anos da migração japonesa em massa para o Peru, um entre cinco imigrantes japoneses vivia em Callao (Masterson e Funada 117).

Quando a recessão econômica atingiu o Peru em 1930, as elites peruanas, os partidos políticos e certos jornais formaram uma aliança para desacreditar sujeitos japoneses dentro do país. O rumor que forças militares japonesas estavam se infiltrando no país, levou à perseguição e saque de negócios japoneses em Lima em 1940: “O prejuízo contabilizou 6 milhões de dólares: 640 famílias japonesas perderam suas propriedades,

111

200 pessoas ficaram feridas e 10 foram mortas (Shintani 2007: 83)” Carranza Ko, 82)47.

Depois que o Japão atacou Pearl Harbor, a comunidade japonesa foi mais uma vez violentada e oprimida no Peru.

A ideia original de manter viva a identidade japonesa era um sentimento compartilhado pelos primeiros imigrantes no Brasil e no Peru. De acordo com Lausent-

Herrera, antes da Segunda Guerra Mundial a comunidade japonesa no Peru tinha 27 escolas com mais de quatro mil alunos (45). Essas instituições seguiam o programa de ensino japonês e as classes eram ensinadas na língua nipônica com professores que eram trazidos diretamente do Japão especificamente para educar crianças imigrantes em Lima e Callao, onde a concentração de imigrantes japoneses era maior. Assim, devido a essa educação, essas crianças tinham dificuldade em identificarem-se com a cultura peruana e em aprender espanhol pois eles não haviam sido expostos a essa cultura o suficiente para construírem suas identidades baseadas em elementos culturais peruanos. Por outro lado,

“peruanos também achavam difícil aceitá-los como parte da nação” (Carranza Ko 83)48.

Havia um “forte senso de discriminação” dos japoneses contra os peruanos (Higashide

90) e também um sentimento de rejeição pela população hospedeira contra eles. Os japoneses não queriam se misturar e os peruanos não queriam se integrar com eles.

47 “The damage amounted to 6 million dollars: 640 Japanese families lost their properties, 200 people were injured, and 10 were killed (Shintani 2007: 83).” (Carranza Ko, 82).

48 “Peruvians also found it difficult to accept them as part of the nation” (Carranza Ko 83).

112

O resultado da guerra mudou as expectativas da comunidade de diáspora no Peru.

Uma vez que supostamente o Japão não havia perdido uma guerra em mais de 200 anos49, a rendição da nação pegou os migrantes japoneses espalhados pelo mundo de surpresa.

Vistos como um grupo hostil dentro das nações hospedeiras e depois vistos como perdedores de uma guerra, um grande sentimento de vergonha começou a fazer essas comunidades diaspóricas reconsiderarem o ideal do retorno ao Japão. Devido a situação da guerra e o ambiente opressivo no Peru, vários negócios japoneses foram forçados a fechar, incluindo escolas e jornais. De acordo com Carranza Ko, a melhor estratégia para que acontecesse uma integração era aprender espanhol (13). Ainda segundo o autor conforme as escolas japonesas fechara, as crianças começaram a frequentar escolas peruanas, isso preveniu o surgimento de “uma nação japonesa dentro da nação peruana”:

Como a literatura sobre migração afirma, educação padronizada, incluindo a

difusão de língua nacional e cultura, “transform[ou] pessoas em cidadãos de um

país específico” (Hobsbaw, 1983: 264) . . . a educação de niseis e sanseis (terceira

geração japonesa) em escolas públicas facilitou a comunicação com o público

falante de espanhol e a construção de uma irmandade. Mais tarde, escolas

japonesas que reabriram integraram o currículo peruano na sua educação. (13-

14)50

49 De acordo com a informação fornecida na contracapa do livro de Fernando Morais, Corações sujos (2001).

50 As the literature on migration notes, standard education, including the diffusion of the national language and culture, “transform[ed] people into citizens of a specific country” (Hobsbawm 1983: 264). . . Nisei and sansei (third generation Japanese) education in public schools enabled communication with the Spanish- speaking public and the construction of fellowship. Later, re-opened Japanese schools integrated the Peruvian curriculum into their education. (13-14) 113

Ao serem forçados a se integrarem com a sociedade peruana, o fato de não terem acesso ao seu sistema educacional e não conseguirem manter o estilo de vida japonês dentro do

Peru foram fatores que contribuíram para a transformação da identidade desse grupo migrante que passam de japoneses para nipo-japoneses para, finalmente, peruanos. Outro fator importante foram os investimentos econômicos do Japão no Peru após sua reconstrução pós-guerra nos anos 60. Uma vez que o Japão possuía uma economia boa e estável, companhias japonesas começaram a ganhar presença no Peru, o que acelerou o processo de integração entre os peruanos e os sujeitos japoneses (Carranza Ko 83).

O marco mais importante dessa transição/integração aconteceu em 1989 quando

Alberto Fujimori, concorrendo à presidência do país contra Mario Varga Llosa, ganha a corrida e torna-se o primeiro descendente japonês no mundo a assumir uma posição presidencial. A manobra política usada por Fujimori foi uma estratégia tribal na qual ele se posicionou como um representante de diversos grupos de minorias os quais podiam todos encontrar nele algo com o qual se identificar. Ele atraia os mestizos e populações indígenas pela afinidade dos seus olhos e como um candidato que não fazia parte de uma classe alta e branca (López-Calvo 11). Fujimori usou sua imagem “mista” para que ele pudesse “se distinguir, como um forasteiro, de Varga Llosa e da elite. Seu slogan ‘um presidente como você’, as roupas ameríndias que usava, e sua maneira de falar espanhol, que parecia ter um ‘sotaque do povo quéchua rural’, marcou-o como o candidato das minorias em oposição a elite” (Rousseau apud Carranza Ko 86)51. Com essa manobra,

51 “distinguish himself, as an outsider, from Vargas Llosa and the elite. His slogan ‘a president like you,’ the Amerindian clothes he wore, and his way of speaking Spanish, which ‘resembled the accent of Quechua people from rural areas,’ identified him as a candidate of the minority as opposed to the elite (Rousseau 2010: 142)” (Carranza Ko 86). 114 um descendente de japoneses que poderia se passar por um representante dos mestizos e comunidades indígenas foi empossado como chefe político da nação peruana. Essa foi a concretização do desenvolvimento da camada singular da identidade dos “nipo-peruanos” até o ponto no qual o autor Augusto Higa Oshiro afirma que “ser japonês é uma forma de ser peruano”.

2.2.2 O fantasma das identidades passadas: memórias coletivas versus pessoais

"Yo no soy el Outro. / Yo no puedo decirte sone lo de mí mismo / ¿Pero quién soy entre

lo que no soy? / ¿Dónde estará mi destino?” (Higa Oshiro, 40).

Para poder analisar o romance de Augusto Higa Oshiro, é necessário olharmos para a dicotomia das memórias coletivas versus pessoais e como essas memórias afetam a identidade pessoal do personagem principal. Primeiro, explicarei essa dualidade baseada em Paul Riccoeur apud David Leichter e então migrarei para a comparação de seus achados para um estudo que sugere que comunidades do leste asiático preservam mais as memórias coletivas do que as memórias individuais/pessoais. Assim, ocorrerá um afeto significantemente da identidade nikkei dentro da malha identitária nacional.

De acordo com David Leichter a narrativa das memórias está intrinsicamente conectada com o desenvolvimento da identidade do sujeito dentro de um coletivo. O autor faz uma leitura de Riccoeur na qual afirma que a identidade narrativa conecta um modo transcendental de consciência com o entendimento de que a existência humana é corporizada e comunal (115). Ele continua:

115

Os recursos oferecidos pelas narrativas dão um enquadramento útil para o

entendimento de continuidades e descontinuidades entre tempo, ação e identidade

na medida em que conseguem divulgar como a temporalidade das ações de um

indivíduo ocorrem juntamente com outros [indivíduos]. Memória orienta

temporariamente um sujeito para um passado, assim recontar o seu próprio

passado necessariamente também implica se referir a outros. Ao fazê-lo, a

lembrança articula maiores possibilidades para ação e oferece testemunho de

ações que aconteceram ou foram sofridas, desse modo elas permitem que uma

pessoa constitua o seu próprio senso de si ao compartilhar uma vida em comum

com outros. (115)52

Assim, mesmo que somente haja um personagem dentro do romance de Higa Oshiro, é ele que carrega e reconta um passado coletivo. Em última instância, ele é uma importante peça no quebra-cabeças dessa identidade/memória coletiva pois, ao recontar sua própria história representa o passado da sua comunidade.

Esse emaranhado de memórias coletivas/pessoais tem a ver com a comunidade cultural porque o fato de preservar-se a memória coletiva em detrimento a memória do indivíduo significa preservar também a memória individual. Isto é, quando os indivíduos

52 For Ricoeur, narrative identity connects a transcendental model of consciousness with an understanding of human existence as embodied and communal. The resources offered by narratives provide a useful framework for understanding the continuities and discontinuities between time, action, and identity insofar as it is able to disclose how the temporality of an individual’s action occurs in community with others. Memory temporally orients an individual to a past, such that recounting one’s own past necessarily refers to others. In so doing, remembering articulates further possibilities for acting and offers testimony of actions that have been carried out or suffered, thereby enabling one to constitute a sense of oneself as sharing a common life with others. (115)

116 nikkeis preservam o legado coletivo da sua identidade, eles estão preservando e construindo também sua auto-identidade pois esses sujeitos majoritariamente se consideram partes fundamentais de comunidades. Assim, os imigrantes japoneses em terras estrangeiras tendem a reconhecer a memória coletiva de seu povo em detrimento a sua própria memória pessoal para que se preserve a unidade da sua comunidade. De acordo com um estudo intitulado “Culture, memory, and the self: An analysis of the personal and collective self in long-term memory”, por Brandon M. Wagara, e Dov

Cohen, um contraste psicanalítico feito entre asiáticos canadenses e euro-canadenses demonstrou que os asiáticos canadenses tinham uma resposta retardatária em reconhecer traços que pertenceriam ou que referenciariam a memórias individuais em oposição à rápida taxa de reconhecimento de memórias coletivas. Ambos pesquisadores afirmam:

Usamos um paradigma de memória para testar se a natureza das representações do

indivíduo dentro de uma memória de longo prazo seria diferente do seu

funcionamento como bagagem cultural. Em exemplos de ocidentais, palavras

codificadas com relação ao indivíduo são tipicamente lembradas melhor, e

participantes Euro-Canadenses nesse estudo mostraram esse efeito padrão de

auto-referência. Entretanto, participantes asiáticos-canadenses demoraram mais

para reconhecer traços pessoais (em oposição aos traços coletivos) quando esses

traços haviam sido codificados com referências ao indivíduo, sugerindo uma

117

melhor elaboração da representação do “eu” coletivo do que o “eu” individual em

memórias de longo-prazo. (498)53

Assim, mesmo de um ponto de vista psicanalítico, indivíduos do leste europeu tendem a priorizar memórias coletivas sobre memórias pessoais. Isso também indica que a narrativa das suas identidades também tende a preservar a coletividade das vozes sobre uma única voz isolada. O fato de que Katzuo Nakamatsu experimenta essas memórias fantasmagóricas de um passado coletivo aponta para o seu conflito com a sua identidade nikkei. O personagem perambula entre uma identidade singular como peruano e sua identidade nikkei coletiva.

2.2.2.1 Perambulação Katzuo Nakamatsu começa sua narrativa com a descrição de seus sentimentos de não pertença dentro do cenário limeño. O personagem relata suas observações pela exclusão da sua participação na sociedade como um indivíduo igual aos outro, especialmente por ser nisei:54

Era este mundo que debía abandonar, esas calzadas tantas veces trajinadas, olidas,

percibidas, retobadas, y que irremediablemente se pulverizaban y se extinguían

53 We used a memory paradigm to test whether the nature of representations of the self within long-term memory differed as a function of cultural background. In Western samples words encoded in relation to the self are typically remembered better, and Euro-Canadian participants here showed this standard self- reference effect. However, Asian-Canadian participants were slower to recognize personal traits (as opposed to collective traits) when these traits had been encoded in reference to the self, suggesting a more elaborate representation of the collective self than the personal self in long-term memory. (498)

54 Nisei é a segunda geração de imigrantes japoneses já nascidos no país hospedeiro. Um isei é a primeira geração que migrou para um outro país. Enquanto o nisei é a primeira geração nascida no país, eles também são a segunda geração dentro da nova nação. 118

ante sus ojos. No, jamás, nunca pudo ingresar a esa realidad, simplemente no lo

había vivido con indiferencia y lejanía, sin involucrarse, impasible, extraño,

marginal, pues era un hijo de japoneses, un nisei, casi un extranjero, y todos

aquellos lugares, sus gentes, le eran ajenos, y solo constituían su proximidad, la

zona neutra donde depositaba su mirada, y le estaba vedado ingresar, y ser como

ellos, tener piernas, tener ojos, tener brazos. (29)

O personagem principal deixa claro para o leitor que ele não se identifica com a sociedade que o cerca. Assim como eles, Katzuo tambem tem pernas, olhos e braços, entretanto seu sentimento de não pertença o previne de se ligar a qualquer realidade que ele estivesse experimentando no momento.

Outro aspecto importante dessa passagem é que ele atribui o sentimento de não pertença a sua faceta japonesa. Ele se chama de marginal e se coloca longe do centro de realidade da qual, de acordo com ele mesmo, não conseguia participar por seu nisei.

Entretanto, a narrativa parte do olhar de Katzuo, assim, essa “proibição” que ele constantemente encara é uma realidade que é filtrada por seus olhos somente. Ele não se enxergava como parte do que o cercava e culpava seus ancestrais por isso. Por outro lado, não há uma evidência clara dentro dessa parte do texto que diz ao leitor que o personagem era excluído da sociedade por força maior. Katzuo era indiferente à sociedade peruana uma vez que carregava todas as vozes dos traumas passados que o preveniam de ser parte de uma realidade que violentou seus ancestrais.

Quando o narrador se torna mais familiar com as vozes e os fantasmas que cochicham o passado na sua cabeça, ele tenta entender aquelas vozes:

119

Aquellos japoneses que le eran familiares, sus propios padres, díscolos e

inexpresivos, habían peleado inclementes, arrostrando odios y rencores por ser

extranjeros que nunca se avenían. Porque nada les perturbaba, incluso preservaron

su ethos, y su raza no contaminada, y sus costumbres, y su altanería, y su fragor

en la lucha, su noción de fraternidad, y la ambigüedad, y su indeterminación al

margen de los blancos, los cholos, y los mestizos del país. No obstante, habían

muerto en olor de braveza y tenacidad, y se refundieron en sus hijos, los nisei

como Katzuo Nakamatsu, un desarraigado sin misericordia, quien aún en el

confín de los años, luego de insensatas experiencias y derrotas morales, en la

vejez, no dejaba de preguntarse: ¿por qué que nuestro pellejo, nuestros ojos

japoneses, nuestros humores físicos, generaban suspicacias y rechazos?, ¿por qué

éramos racistas, choleros y pedestres? Todas las perplejidades, los resentimientos,

las insidias personales, desgarraban al oscuro Nakamatsu, y todavía lo

exacerbaban hasta el límite del revoltijo mental ahora que el destino intempestivo

o quienquiera que fuese le entrampaba el camino, y lo deslizaba al precipicio de

suicidio. (48-49)

Especialmente nessa passagem, é possível notar que Katzuo, como personagem que vive em um limbo identitário (não é inteiramente peruano e nem inteiramente japonês), constitui-se numa metáfora para a memória coletiva e identidade dos imigrantes japoneses no Peru. Augusto Higa Oshiro usa Katzuo para deixar claro que os traumas que essas pessoas ao imigrarem e depois ao integrarem-se à sociedade peruana definitivamente moldaram a identidade coletiva nikkei no país. O personagem explica

120 que seus ancestrais tiveram que se estabelecer a margem dos brancos, nativos e dos mestizos uma vez que não eram bem-vindos dentro de nenhum desses grupos identitários.

Ainda, por não serem capazes de se “misturar”, os ancestrais de Katzuo eram chamados de racistas.

A resistência a integração vem da ideia previamente discutida de uma possível volta ao Japão. Assim como aconteceu no Brasil, os imigrantes que chegaram no Peru também migraram com o pensamento de ganhar um dinheiro “fácil” para poder voltar ao

Japão com melhores condições de manter suas famílias. Como Ayumi Takenaka afirma:

“imigrantes japoneses no Peru foram incorporados como trabalhadores por contrato na transição de uma economia escravocrata para o capitalismo” (83).55 Entretanto, diferentemente do Brasil, as condições geográficas do Peru preveniram que essa nova onda de imigrantes permanecesse isolada em comunidades que pudessem preservar suas práticas culturais e tradições intocadas. Takenaka explica:

Ao fugirem ou terminarem seus contratos, a maioria não retornou para o Japão

apesar das suas intenções; nos primeiros dez anos após a imigração, somente 6

por cento retornou para casa sem poderem economizar dinheiro suficientemente

(Peru Shimpo, 1975). Outros 4 por cento foram para outros países como a Bolívia,

Argentina, México e Estados Unidos (Peru Shimpo, 1975). Alguns permaneceram

nas áreas rurais do Peru. Ainda, oportunidades além dos trabalhos contratuais nas

plantações eram limitadas para os imigrantes japoneses, terras aráveis pertenciam

55 “Japanese immigrants in Peru were incorporated as indentured laborers in transition from a slave economy to capitalism” (83).

121

aos colonos, e o sistema preestabelecido controlado pelos espanhóis negava aos

japoneses o acesso a essas terras. O decreto de maio de 1910 claramente

estipulava que os “colonos na região da montanha Sierra somente poderiam ser

peruanos ou europeus” (Gardiner, 1975). Consequentemente, a maioria dos

imigrantes japoneses seguiu para centros urbanas como Lima e Callao. (84)56

Uma vez que esses imigrantes japoneses encararam a realidade da impossibilidade do retorno ao Japão, as opções eram a de ficar nas mesmas condições de trabalho, mudar-se para outro país, ou migrar para Callao (subdistrito de Lima). Assim a imigração para

Callao parecia a opção mais viável para esses indivíduos. A preservação da cultura japonesa na esperança do retorno para casa não foi mais uma prioridade nesse cenário.

Consequentemente, a necessidade de misturarem-se com as populações peruanas e europeias era agora a nova estratégia de sobrevivência.

De acordo com Ñusta Carranza Ko: “os processos ou efeitos da migração dependiam da aquisição da língua, da interação dos imigrantes com os valores culturais peruanos (por exemplo, adotarem tradições peruanas que produziriam novas culturas peruanas misturadas aos valores asiáticos), e o papel do ‘outro’ que ajudaram a construir

56 Upon fleeing or termination their contracts, the majority didn’t return to Japan despite their intentions; within the first ten years after immigration, just 6 percent returned home, having been unable to save enough money (Peru Shimpo, 1975). Another 4 percent left for other countries such as Bolivia, Argentina, Mexico and the United States (Peru Shimpo, 1975). Some remained in Peru’s rural areas. Yet, farming opportunities beyond contract plantation work were limited for Japanese immigrants, arable lands belonged to the colonists, and the preestablished Spanish-controlled land system denied Japanese access to new lands. The decree of May 1910 clearly stipulated that the “colonists in the Sierra mountain region can only be Peruvian or Europeans” (Gardiner, 1975). Consequently, the majority of Japanese immigrants headed for urban centers such as Lima and its neighboring port city, Callao. (Takenaka 84)

122 uma identidade que era mais peruana” (74)57. Além da geografia que que contribuiu para criar um ambiente de choque de culturas entre as populações, a outridade peruana é mais um fator que contribuiu para uma integração mais rápida dos valores japoneses dentro da cultura nacional. Devido a vários outros sujeitos marginalizados que também pertenciam a esse limbo identitário em trânsito entre margem e centro da cultura peruana, tais como as populações indígenas, os criollos e outros povos migrantes, a associação e a mistura de valores e culturas diferentes tornou-se um processo menos complicado do que no Brasil.

Porque a população mista era forçada a coabitar as áreas urbanas do Peru, o processo de integrações de cultura, língua e valores tradicionais foi mais intenso e rápido.

O fato de que Katzuo Nakamatsu acesse suas memórias japonesas enquanto contempla o cenário onde cresceu em Lima ilustra essa mistura de identidades que está constantemente se movendo do centro para a margem e vice-versa dentro dos indivíduos nikkei. Na passagem acima onde ele comenta sobre sua família e os fantasmas da sua cabeça, percebemos outro traço notável que é a culpa que o personagem carrega por ter se desviado da sua identidade japonesa “original”. Como segunda geração nisei, Katzuo não sente que pode ser igual aos seus pais. A primeira geração de imigrantes prosperou em certas maneiras para estabelecer a comunidade para as futuras gerações. Katzuo não sente que ele consegue manter sua identidade japonesa tão intacta quanto seus pais. Assim vê- se a culpa e a tendência ao suicídio por não ser capaz de se encontrar nesse limbo entre margem-centro. A faceta japonesa de Katzuo migra da margem de sua identidade ao

57 “The processes and effects of migration depended upon language acquisition, immigrants’ interaction with Peruvian cultural values (e.g., by adopting Peruvian traditions that produced new Peruvian culture fused with Asian values), and the role of the ‘other’ that helped build an identity that was more Peruvian” (74) 123 centro em certos pontos do romance, dependendo da sua relação com os outros personagens. Sentindo-se culpado por não preservar as tradições japonesas “dentro de si,”

Katzuo imagina-se um traidor do seu povo.

Após entendermos o tormento do personagem principal no primeiro capítulo, descobrimos mais sobre a vida de Katzuo. No peru, ele foi casado com Keiko que, na

época da narrativa, estava morta havia vinte e cinco anos. Entretanto, quando o autor/ narrador começa a descrever Keiko, ele o faz em oposição a Katzuo. A mulher era uma empreendedora, que conseguia facilmente navegar a sociedade peruana sem encarar as ambiguidades e sem ser envergonhada pela sua história imigrante. Ela é posta lado a lado com o marido que é descrito como um sujeito bipolar, que não consegue estabelecer relacionamentos com nenhum lado desses mundos (nisei e peruano) devido à vergonha das suas origens. Higa Oshiro descreve:

Siempre lo supo Nakamatsu, era un orden bipolar, sin hijos, recogido sobre sí, con

Keiko emprendedora, agenciándose en pequeños negocios de tempuras y platillos

japoneses en la calle Capón. Era luchadora, sin reservas, realista, gentil, y en lado

opuesto, Katzuo especulador, intelectual, ambiguo entre su original mundo nisei,

y el mundo criollo, como si no perteneciera a nadie. [...] Katzuo cerraba los ojos,

escindido, avergonzado de su extranjería, llenándose la cabeza de ilusiones,

impasible, dictando sus clases, tolerando sin desconsuelos su fractura racial. (53)

Por não ser capaz de se relacionar com nenhum dos lados da moeda peruano/nisei,

Nakamatsu tende a esconder seu lado japonês ou sentir-se envergonhado dele. Como é

124 sua mulher quem mantém os laços dele com as tradições nisei, quando perde sua mulher que lhe serve como ponto de referência, ele se desvia da identidade japonesa

Nakamatsu é um personagem que foi criado durante o período de transição que a comunidade japonesa enfrentou. Ele parece estar vivendo em um limbo identitário no qual ele não consegue se relacionar a sua identidade japonesa (mesmo possuindo uma memória coletiva dentro da sua cabeça), mas também não consegue se integrar a sociedade peruana, permanecendo recluso dentro de seu limbo identitário. Keiko, por outro lado, parecia ter ultrapassado o estágio da vergonha por ser “estrangeira” no Peru.

Ela navegava grupos japoneses e criollos como um indivíduo harmonizado dentro desses cenários. Enquanto a identidade de Nakamatsu ainda era indefinida, Keiko mostrava-se afirmativa e dentro de uma camada identitária única. Keiko era uma japonesa sendo peruana e vice-versa. Após o falecimento de Keiko, vemos a decadência de Katzuo: “El equilibrio precario se desplomó con la muerte repentina de Keiko, entonces Katzuo se recluyó en sí mismo, y dejó de frecuentar la colonia japonesa, perdió sus amigos nisei que le eran afines, y sintió más forastero que nunca entre tanto mestizo arrivista y pacharacos andinos” (54). De acordó com López-Calvo e Iwasaki, Katzuo Nakamatsu joga com sua etnicidade e é capaz de entrar e sair quando lhe mais é conveniente (104).

Katzuo vive uma identidade de duas camadas e anseia por viver em uma única camada. Essa característica é vista quando observamos o quanto o personagem luta para transitar entre as margens da sua identidade/etnicidade (entre japonês e peruano). Não há um senso do Japão ser parte da cultura peruana para Katzuo. Ele vive uma circunstância de ou/ou com a sua identidade, enquanto sua mulher é capaz de navegar e englobar várias

125 dessas transições. Várias descrições do personagem mostram que ele sempre havia procurado por sua voz: “y siempre se había orientado a la austeridad, el rigor de las ideas y la búsqueda de su propia voz, sin debilidades, sin estruendos” (58). Ele não consegue encontrar sua própria voz porque seu discurso/voz/identidade é múltiplo transpassado pelas memorias e vozes de fantasmas do passado. Assim, sem poder se agarrar a nenhuma característica que lhe traria sentido, ele torna-se um “vaso” para a história dos seus ancestrais e ele também se sente compelido a dividir-se entre o papel de justiceiro para essas vozes oprimidas e estar em paz com sua identidade nisei. Afirmo que Katzuo se torna um “vaso” que contém identidades que não são suas por dois motivos: 1) o conceito de identidade asiática baseia-se fortemente na experiência/memoria coletiva e 2) porque Katzuo estava vazio de sentido individual. Assim ele transitava entre as várias memórias dos fantasmas que não lhe pertenciam tentando costurar uma narrativa que lhe oferecesse sentido.

Em última instância, devido a essa guerra identitária dentro da sua cabeça, Katzuo torna-se vazio de identidade própria. Os elementos que trazem sentido a sua vida como nisei ou como peruano são apagados da sua história para trazer à luz as vozes de memórias dos seus ancestrais. Como é notável na passagem:

modo algún, él, Ka-tzuo, no era más que un mueble desvencijado, agotado,

tiritando, asustado por voces, presencias, movimientos, hirviendo, soñando

imágenes que regresan, que transcurren, totalmente encogido, inerte, el cuerpo

inmóvil, sentado en cualquier quiosco, el cualquier restaurante inmundo, los

126

codos en la mesa, los pies cruzados, la frente apaciguada, los lentes caídos sobre

la nariz, la barbilla desaliñada, mugriento. (96)

Após ser assombrado por vozes do passado, o personagem encontra uma maneira de cooperar com sua situação ao re-criar as figuras de dois alter egos baseados na existência de pessoas “reais”. Katzuo escolhe ambas figuras para poder balancear equilibrar sua identidade e encontrar um personagem peruano e outro japonês para interpretar papeis dentro de sua identidade e afetar orientar a maneira com a qual Katzuo se relaciona com o mundo fora da sua mente. Explicarei como vejo esses “alter egos” trabalhando no próximo seguimento.

2.2.2.2 Alter egos: a manifestação do sofrimento de Katzuo Para cooperar com essas transições e as vozes que o trespassavam, afirmo que

Katzuo relaciona-se com dois personagens que são na verdade seus alter egos. O primeiro deles é um personagem ficcional criado pelo autor: Etsuko Untén, um extremista nacionalista descendente de japonês que havia sido amigo do pai de Katzuo. Etsuko era um militante a favor do estado nacionalista japonês no Peru e defendia que a rendição do

Japão na Segunda Guerra Mundial era “fake news” para desmoralizar o Japão em frente da nova ordem mundial (López-Calvo e Iwasaki, 104). A outra figura é o personagem

Martín Adán, que é baseado no pseudônimo do real poeta peruano Rafael de la Fuente

Benavides. Mesmo parecendo temeroso ao entrar em contato com outros personagens que são peruanos no romance, Katzuo reconhece sua própria tragédia na história de vida de

Adán.

127

Katzuo torna-se um fã dos tormentos de Adán e imita sua queda perante a sociedade. A crise mental, sonhar acordado, a embriaguez alcoólica e as alucinações no centro de Lima são somente algumas atitudes que Katzuo copia de Adán. Segundo Rick

London, Martín Adán cresceu em um ambiente com família tradicional que englobava uma mistura de tensões políticas novas e antigas. Seu pai era de uma família tradicional do norte do Peru que mais tarde tornou-se boêmio, e sua mãe era de uma família de valores aristocráticos. O autor inscreve-se em uma escola cosmopolita que o fez abrir-se a diferentes sensibilidades. Assim, ele incorporou e sintetizou algumas das maiores crises que o Peru passou antes do século XX (“Introduction”). De acordo com Víctor Vich, o poeta sofreu todas essas crises e acabou usando sua escrita para aliviar os conflitos políticos e sociais que enfrentou como membro da sociedade peruana. Também, Adán tornou-se boêmio como seu pai (471). Assim, após a ruína de sua família, o poeta começou a perambular pelos hotéis de Lima e pelas clínicas psiquiátricas, de onde escreveu a vários de seus poemas. O próprio Adán se internava nos hospitais para poder buscar alívio dos seus sintomas psiquiátricos e alcoolismo, mas, como vivia em um regime aberto, ele conseguiria deixar o hospital quando quisesse. Também, foi preso várias vezes e levado a instituições pela polícia (Vargas Durand 82-88).

Através de ambos esses personagens, Katzuo Nakamatsu navega as relações das suas identidades. Quando escolhe olhar para seu lado japonês, ele incorpora Etsuko e se envergonha por não ser mais nacionalista como ele; quando é confrontado pelo seu lado peruano, Adán influencia as ações excêntricas do narrador. Esse vai-e-vem identitário acaba levando-o a tornar-se um cidadão peruano e japonês desmoralizado. O personagem

128 ser identifica tanto nessa crise de identidade do poeta ao ponto de citar os poemas de

Adán dentro da sua própria narrativa identitária: “Recitó: ‘yo no soy el Otro. / Yo no puedo decirte sino lo de mí mismo. / ¿Pero quién soy entre lo que no soy? / ¿Dónde estará mi destino?” (40). a busca constante de Adán por sua identidade dentro das crises emocionais e alcoólicas são a base para a criação dos problemas de Nakamatsu. Como um espelho, o personagem se identifica com a “bipolaridade” de Adán e reflete essa dualidade ao imitar o estilo de vida boêmio que o poeta levava na “vida real”.

Ao misturar personagens históricos (reais) aos personagens ficcionais, Augusto

Higa Oshiro dá a sua narrativa uma credibilidade de veracidade. Quando introduz Adán no discurso de Nakamatsu, ele dá ao leitor algo para agarrarem-se e então os faz questionar se Katzuo Nakamatsu poderia ter sido uma pessoa real. Isto é, pelos elementos de veracidade no texto, o autor dá a sua narrativa um tom de testemunho e não de romance, que faz com que o leitor se relacione mais intensamente com o romance.

Assim, é mais provável que os leitores se identifiquem na história das dualidades identitárias de Katzuo.

Martín Adán também aparece na narrativa antes de Etsuko Untén. Após sentir-se em conflito pela sua autoconsciência japonesa, Katzuo começa a analisar a vida de Adán, a quem ele via nas ruas de Lima: “Alguna vez en su juventud, Katzuo había visto a

Martín Adán alcoholizado por las calles del centro, la época en que vivía en el manicomio, atrincherado en su yo, clamando su monólogo para nadie, y luego había terminado sus días en el asilo. . .” (40). Assim, o narrador começa a seguir o mesmo padrão do comportamento de Adán e torna-se um alcoólatra que vaga pelas ruas de Lima,

129 atormentado pela sua própria busca identitária. Suas andanças somente o tornam mais isolado da sociedade. Quando relacionando-se ao seu alter ego peruano (Adán), o personagem é um solitário e um estigma da sociedade.

Após a morte da esposa de Katzuo, ele encontra seu segundo alter ego na narrativa: Etsuko Untén. Enquanto ela ainda estava viva, ele conseguia se conectar com a cultura e as práticas das tradições dos seus ancestrais. Após seu falecimento, Katzuo precisa de outra referência forte para balancear sua identidade entre o boêmio Martín

Adán e sua herança japonesa. É então que somos introduzidos a Untén:

Etsuko Untén, un japonés altanero, amigo de su padre Zentaró. Los hechos eran

más o menos irreales, o tal vez domésticos, y no recordaba mucho. Pero Etsuko

Untén, ante la inminencia de la guerra, había aceptado solo su fatalidad, orgulloso

y desabrido, pugnaba consigo mismo, y se enfrentaba al país y desarmado,

empujado por su estricto código de honor, y por su deseo de morir. (60)

Untén é a figura forte que segura Katzuo a sua ancestralidade japonesa, especificamente por ser descrito com uma paixão nacionalista ideal. Untén é o extremo da identidade

“bipolar” de Katzuo que inclina ao lado japonês. Assim, Adán é o extremo oposto de

Untén. De um lado da personalidade de Nakamatsu há um poeta boêmio e do outro lado um guerreiro militar japonês.

O narrador divide seu ser para poder navegar através de ambas essas figuras: “. . . discernía que debía transformarse y vestirse como Etsuko Untén, aquel amigo bravío de su padre, tal como aparecía en las fotos que conservaba en su archivo. Y al mismo tempo, era un modo de expresar su reconocimiento al entrañable Martín Adán, y ser exactamente

130 como él, asumir las mismas reacciones, los mismos gestos, la misma caminada, el mismo espíritu extrañado” (70). A identificação com Etsuko Untén vem da sua necessidade de encaixar-se na comunidade japonesa, já sua conexão com Martín Adán vem do fato de que o poeta é um indivíduo que não se encaixa na sociedade peruana. Assim como o poeta, Katzuo também não se moldava à sociedade peruana. Nikkeis prósperos eram considerados uma ameaça à sociedade limenha e, ao mesmo tempo, os próprios japoneses não apreciavam os indivíduos de seu grupo que não tinham interesse em prosperar, como

Katzuo (que era professor). A dualidade da sua identidade é materializada em ambos alter egos que ele cria através da narrativa, até o dia que ele faz as pazes com as vozes dentro de sua cabeça e as libera após a intervenção da yuta. Ao liberar ambas identidades,

Katzuo se liberta dessa dualidade e falece pouco após esse evento pois ele não tem mais nenhuma referência identitária a qual se agarrar. Isto é, uma vez que ele não poderia mais sustentar essa bipolaridade identitária, não poderia mais existir. Assim, o falecimento era a única saída para Katzuo, que se torna vazio de identidade, assim como a personagem

Kimie de Nakasato.

Afirmo que Katzuo e Kimie tornam-se vazios de identidade porque perdem suas referências às perspectivas que fundamentam seu “eu”. Kimie perde sua cultura e ambiente japonês ao imigrar para o Brasil, e não consegue se adaptar e/ou reinventar para sobreviver. Ela acaba sucumbindo à loucura e a morte ao se entregar a uma visão delirante, uma memória da sua terra natal que preenche seu vazio existencial. E Katzuo, ao perder sua esposa, e depois perder as duas identidades que o mantinham (de certa

131 forma) balanceado entre o Peru e o Japão, sucumbe ao vazio identitário que lhe resta, deixando-se morrer.

A polaridade de Katzuo pode ser vista como uma metáfora para a sociedade peruana que absorveu os imigrantes japoneses no tecido identitário nacional. Japoneses ou identidades japonesas deixaram de existir no Peru, o que permanece é um conceito de nikkei/nisei que não existe no Japão. Segundo uma conversa que tive com Doris

Moromisato, o que os nipo-peruanos acreditam ser identidade japonesa dentro do Peru é na verdade um conceito sincretizado que mistura peruanos, indígenas e japoneses, suas culturas e tradições, para criar uma ideia única e singular de nikkei que não é específica de nenhuma nação. É por isso que nikkei/nisei é uma parte fundamental da identidade peruana, pois não há nada mais para “segurar” o conceito de nikkei/nisei dentro da cultura daquele país exceto o fator único de que ela já é parte da identidade nacional. Ser nikkei ou nisei, como no caso de Augusto Higa Oshiro e Katzuo Nakamatsu, também significa ser peruano. Como o autor já afirmou, é uma maneira de ser peruano. Assim, afirmo que o nikkei/nisei é uma nuance de uma camada única identitária. É por isso que

Nakamatsu sente a necessidade de dar voz aos fantasmas da sua cabeça, para que ele pudesse manter as tradições nikkei/nisei que poderiam ter sido silenciadas. É necessário que elas sejam ouvidas não somente para a validação da identidade migrante japonesa no

Peru, mas também para a validação da identidade peruana que é multifacetada.

No próximo segmento, analisarei como as vozes que habitam Katzuo e constituem parte significante de sua identidade, almejam reconhecimento. A identidade do personagem está baseada no fato de que ela é fragmentada (especialmente entre ambos

132 alter egos), e também por ela ser precedida por essas vozes que precisavam ser ouvidas.

Os fantasmas de Nakamatsu são uma benção e uma maldição, e quando ele finalmente os libera, ele se torna vazio de sentido.

2.2.3 Vozes oprimidas

“En su relato alucinado, el atormentado Katzuo Alcanzó a decir: ‘Me persiguen’. Juan

Miyazaki preguntó: ‘¿Quién te persigue?’. Katzuo Nakamatsu respondió: ‘Tengo

fantasmas en la cabeza’” (68).

Após o personagem principal apresentar ao leitor as suas principais preocupações sobre a sociedade ao seu redor e suas questões morais e sociais, ele começa a vagar atrás de algo que traria significado para seu ser. Katzuo tinha uma esposa que era muito próxima tanto da comunidade japonesa como da comunidade peruana. Ela era uma pessoa sociável que mantinha Katzuo com os “pés no chão” com relação a sua identidade pois ela lhe supria a falta de habilidades sociais. Após sua partida, ele precisou construir seu próprio conceito de identidade. Consequentemente, devido a sua falta de habilidades sociais, Katzuo acaba dividindo-se entre dois extremos que são materializados no romance através de dois “alter-egos”. As dúvidas que eram mantidas afastadas pela presença da mulher Keiko tornam-se mais fortes pela falta de referências concretas que reasseguravam o lugar de Katzuo na sociedade. Assim, a única solução encontrada por ele era a de se relacionar a ambos alter egos completamente opostos e navegar entre eles.

Por causa dessa primeira fragmentação, afirmo que o personagem ganha o status de “iluminado” por causa da dualidade que a maioria dos imigrantes sofria ao chegar no

133

Peru. A iluminação de Katzuo Nakamatsu é ganha precisamente quando ele se faz como espelho para os subalternos do início da imigração que não tinham voz para contar suas próprias narrativas (Spivak 308). Katzuo, então, começa a ser confrontado por essas vozes. Além de Martín Adán e Etsuko Untén, ele também começa a lidar com outras narrativas imaginárias. Essas eram as histórias que nunca haviam sido contadas. Vozes que nunca haviam sido ouvidas antes e, porque tinham sido silenciadas, Katzuo não poderia seguir adiante na sua vida sem dar a essas entidades vocais uma plataforma para que se manifestassem sobre as injustiças que foram cometidas contra elas. Então ele torna-se um vaso que contém essas narrativas. Vagando pelas ruas de Lima, assombrado pelos fantasmas das gerações passadas de companheiros oprimidos. Não havia nada mais para ele a não ser deixá-las falar através dele.

Katzuo, por outro lado, não sabe como manifestar esses discursos propriamente.

Assim como Martín Adán também era perseguido por seus fantasmas na vida real,

Katzuo começa a lidar com essas vozes da maneira que ele imagina que Adán teria lidado. Assim como seu autor favorito, ele se torna um vagabundo, maníaco aos olhos da sociedade peruana. Isto é, Katzuo lida com as vozes japonesas que haviam sido oprimidas no Peru usando seu alter ego aplicando uma abordagem peruana a elas e internalizado os discursos que precisam ser ouvidos.

O confronto que permeia a mente do personagem principal está baseado na história de seu pai. Quando Zentaró, pai de Katzuo, chegou ao Peru, ele, assim como outros imigrantes, não temeu um começo fácil na sociedade peruana: “Aquellas voces perecían un moscardeo vivaz, y monologaban y decían: ‘Está en los origines. No olvides,

134 aquel grupo de japoneses, todos menores de veintitrés años, llegando en el carguero Anyo

Maru a las costas del Perú en 1918, soberbios, fosforescentes, y para bien y para mal, desembarcaron en la coleta de Cerro Azul, en una echa barcaza, contratados como peones en la hacienda Santa Bárbara.’” (73). A narrativa continua descrevendo os personagens como se ele estivesse esperando essas vozes chegarem a sua consciência. Como se ele tivesse sido iluminado e encontrado seu propósito, Katzuo Nakamatsu, descobre que ele teria que dar voz a esses discursos, mas não compreendia como poderia fazê-lo.

As vozes na sua cabeça são de um grupo de imigrantes de Okinawa que chegou primeiro no país para trabalhar nas plantações de algodão na Fazenda Santa Bárbara, mas que também sofreu com preconceitos sociais e discriminações em tempos de guerra pelo seu relacionamento com o Japão. Como mencionado anteriormente, o estigma que esses imigrantes carregaram era devido a esforços duplos: colonos japoneses não queriam se integrar ao Peru e peruanos criollos e mestizos não aceitavam os inúmeros sujeitos que, de alguma maneira, “invadiram” seu país e economia dentro de um curto período de tempo. Etsuko Untén era um desses indivíduos. Ao recontar a história de Etsuko em sua mente, e ao agir como Martín para a sociedade peruana, Nakamatsu sintetiza e sincretiza ambas narrativas identitárias para poder cooperar com essas vozes fantasmas.

O personagem principal narra:

“No hubo piedad con los japoneses, y por el contrario los corporales y sus

secuaces, los enviaban a tumbar el monte porque eran tareas que ni un negro

aceptaba. Socavados por el sol, los obligaban a recuperar la tierra estéril,

extensiones de matojos, despojo de rocas, cascajos, cizaña, y excoriaciones del

135

terreno que debían novelar, así se enfrentaron a los pantanos, apilando maleza,

arbustos silvestres, troncos y alimañas. Los cholos y sus mujeres indias, y los

yanaconas, pastores, herreros, y motoristas, se arremolinaban en los promontorios

para ver el espectáculo de esos horrendos japoneses, entre ellos, Zentaró, tu padre,

y Etsuko Untén, con sus lampas y picos, desnudos bajo el calor, entraban al monte

agreste para desbrozar aquella tierra que no era nuestra, pero que la hincaron con

fuego, la cincelaron a brazo partido, y la sufrieran en cada rastrojo, deslomándose,

tragando lagartijas, solamente para que aquellos mestizos en el promontorio,

formando círculo con sus hijos y mujeres, pudiesen exclamar: oh, japoneses

bestias, son como animales”. (76-77)

Katzuo escuta as vozes descrevendo a discriminação que sofreram com o processo de adaptação a nova nação e entende que as vozes querem contar a história do seu sofrimento. Os sujeitos dessas vozes foram ostracizados pela sociedade até chegar ao ponto de serem considerados como animais e não humanos. Foram forçados a fazer atividades que os escravos se recusavam a fazer, o que colocaria os japoneses em um status social de importância mais baixa do que a dos escravos negros no país.

Proponho olhar para esse caso de imigração e desumanização como uma colonização fora de lugar. No artigo “Frantz Fanon: Luchar Contra La Bestialización,

Demoler El Biopoder”, vemos que Norman Ajari diz:

La discriminación racial (ya sea práctica o teórica) funciona bien como un

trazado, en el seno de la población, de una línea de demarcación entre dos tipos de

poblaciones. Pero, dentro del régimen colonial, esta bipartición es, mejor dicho, la

136

producción jurídica de dos tipos de ciudadanías (Fanon escribe en el vigor de la

ley Lamine Guèye del 7 de mayo de 1946), es decir, de dos tipos de vidas muy

diferentemente valorizadas por el derecho, pero cuya diferenciación se resume

más a través de privilegios políticos y posibilidades de inserción socioeconómica

jerarquizada que por una oposición entre los que merecen vivir y los que pueden

morir. (54-55)

Assim, simplesmente colocar os japoneses em um status de sujeito desumanizados configura uma estratégia de colonização para garantir que os habitantes “originais” do

Peru na época mantivessem seus sistemas de poder. Isto é, os japoneses foram perseguidos naquela sociedade uma vez que se mostravam como uma ameaça que poderia desestabilizar a atual ordem social e econômica que garantia a certos grupos sociais acesso ao poder e ao controle da economia. Ao introduzir outro elemento imigrante dentro da sociedade, a discriminação e bestialização de tais indivíduos serviu como uma maneira de contê-los dentro de um grupo irrelevante que não teria uma voz para ser ouvida e perturbar o sistema socioeconômico. Esses sujeitos imigrantes eram ameaças aos outros chollos na narrativa, então foram censurados e silenciados e sofrerem um apagamento social.

Katzuo então torna-se uma ferramenta para a manifestação de tais discriminações.

Sendo um membro da sociedade que já o aceita e possui diferentes sistemas de poderes econômicos, ele poderia “falar” pelos indivíduos bestializados. Assim, uma vez que ele também era iluminado por andar um caminho duplo de consciência (Martín Adán e

137

Etsuko Untén), ele também seria o canal de comunicação entre ambos mundos pois ele era o único que habitava ambos:

. . . aquellos sonidos provenían de la lejanía, de la distancia, de un tiempo remoto

y acabado. Eran murmullos del ayer, multiplicados en figuraciones, hombres y

mujeres en tropel, en realidad una turba de japoneses indesmayables, braceando

en una tierra que no era suya, destilando sudores y lágrimas, viejos espectros de la

infancia de Katzuo, emergiendo, desairando, estallando aquí y allá, irreversibles,

furiosos, desquiciados, en un ajetreo irresoluble. (106).

Devido ao constante tormento dessas figuras e vozes do passado, Katzuo encara o mesmo destino de Adán e adoece. Ser internado em um hospital psiquiátrico, “Instituto

Psiquiátrico de la Seguridad Social” (101), levou Nakamatsu a buscar a ajuda da única entidade que poderia lhe aliviar dos seus fantasmas.

Quanto mais perdido se sente, mais iluminado se torna. Quando Katzuo elimina seu eu e permite que as vozes o dominem, ele cria uma interação de espaço/ambiente entre seu corpo presente e a memória dessas vozes perdidas. Sua iluminação, então, é definida pela sua habilidade de conectar o passado e o presente, o perdido e o encontrado, o silêncio e as vozes daqueles que não acharam representação dentro da sociedade que as cercava.

No próximo segmento, analisarei como a presença das mulheres na vida de

Nakamatsu o ajudou a entrar em contato com suas raízes japonesas e também a fazer as pazes com sua identidade. Pelas intervenções de Keiko e da yuta Miuagui, Katzuo encontra paz dentro dos seus alter egos quando as vozes dos fantasmas são libertas.

138

2.4.3.1 Mulheres e as vozes: um caminho para a liberdade Após analisarmos a história escrita por Oscar Nakasato, notamos que a ideia de migração coloca as famílias migrantes em uma situação difícil por ter que manter a cultura japonesa o mais intocada possível fora de seu país e sem os recursos necessários.

Dentro da estrutura familiar japonesa, as mulheres eram as responsáveis por manter as tradições vivas e manter a cultura o mais “fiel”58 possível às práticas japonesas. Na narrativa de Augusto Higa Oshiro, a mulher de Nakamatsu, Keiko, era a responsável por assegurar que ele e sua família estivessem o mais próximo da comunidade japonesa no

Peru possível. Quando Keiko falece, essa função de conexão do indivíduo migrante às raízes japonesas e à comunidade se perde dentro da tristeza de Katzuo: “El equilibrio precario se desplomó con la muerte repentina de Keiko, entonces Katzuo se recluyó en sí mismo, y dejó de frecuentar la colonia japonesa, perdió sus amigos nisei que le eran afines, y se sintió más forastero que nunca entre tanto mestizo arribista y pacharacos andinos” (54). Ele não mais sentia a necessidade de se conectar com a comunidade japonesa pois o único laço que o mantinha ancorado a essa identidade havia desaparecido.

58 Isso aconteceu por causa da ideia de retorno para “casa”. Até que a resolução da Segunda Guerra Mundial fosse notada no Peru e no Brasil, o sonho de retorno ao Japão ainda estava vivo dentro daquelas comunidades. Assim, para não serem ostracizados pela nação de seus ancestrais, esses imigrantes deveriam manter-se o mais fiéis possível às tradições originais japonesas que conheciam quando deixaram o país. Eles acreditavam que ao retornar poderiam se reintegrar completamente à sociedade japonesa se continuassem respeitando as tradições e língua japonesa enquanto estivessem no estrangeiro.

139

Keiko não poderia mais cumprir seu papel de mantenedora de culturas e tradições dentro da sua unidade familiar, e Nakamatsu não estava apto a assumir esse papel após sua partida. A conexão japonesa tornou-se mais fraca e Katzuo sentiu a necessidade de substituir sua esposa pela presença do nacionalista Etsuko Untén,59. Assim seus laços com a terra natal seriam balanceados equilibrados ao ligar-se a esse alter ego extremo que representava a força da identidade de seu povo e que estava substituindo um papel essencial dentro da unidade familiar de Katzuo.

Entretanto, os papeis mais significantes dentro da narrativa são o da yuta (o conceito mais comum de yuta em espanhol é “polícia”. Entretanto, também pode significar marginal/ criminoso)60. Miyagui e as vozes na cabeça de Nakamatsu que contam a verdadeira história de Etsuko Untén. Quando o leitor nota o título da personagem yuta, já está implícito que ela terá um papel de mediadora na narrativa. Ela vai organizar, trazer ordem e policiar as interações de Katzuo Nakamatsu. A personagem

é descrita assim: “una médium okinawense, aventajada en rastrear las emanaciones de las almas muertas y las urgencias de los seres incorpóreos, a través del frangollo de su sensibilidad” (104). Ela é a única que pode ajudar Katzuo a organizar as vozes na sua cabeça em um discurso coerente, em uma história coletiva que precisa ser contada.

59 Após consultar-me com Augusto Higa Oshiro, descobri que a intenção do autor com a introdução desse personagem japonês era o despertar homoerótico de Katzuo Nakamatsu, o que também vai contra o estabelecimento patriarcal japonês. O foco dessa pesquisa não se baseia na formação de identidade queer dos personagens, mas é interessante destacar que Etsuko Untén, além de ser a conexão do narrador com seu lado japonês, também é visto como amante do mesmo, e o desperta novamente para um lado adormecido de sua identidade (étnica e sexual).

60 Em japonês, dependendo do kanji usado para escrever o nome, essa terminologia pode significar uma pletora de referências, mas todos os significados revolvem em torno do conceito de “múltiplo”, de “ser maior” ou de “ser superior.”

140

Quando a personagem principal fica doente e precisa ser internado no hospital psiquiátrico para tratamento após afirmar ter atingido o satori (102) (a iluminação, o despertar), ele começa a apresentar episódios de convulsão. Isto é, uma vez que ele tenha alcançado a iluminação, seu corpo perde o controle pois está imitando sua mente

(desorganizada e descontrolada). Seus pensamentos iluminados e as vozes na sua cabeça não podiam mais ser controlados por nenhum alter ego. Uma vez que ele não podia controlar mais a sua identidade e sua mente, seu corpo começa a ceder e a sucumbir às vontades da sua mente iluminada e então torna-se incontrolável e incontrolado. Desde modo, o personagem procura o conselho de seu amigo, Juan Miyazaki, que lhe sugere a ajuda da yuta Miyagui.

Miyagui começa a trabalhar com Nakamatsu para entender as vozes que o personagem ouve. A narrativa descreve: “En la oscuridad total, entre bramidos, se próximo al cuerpo trastornado, y palpó su calentura y su íntima consistencia, y sin más remedio vio surgir el aura evanescente de Katzuo, un destello amarillo, y más tarde un fogonazo de luz” (105). Ao trabalhar suas mãos pelo corpo do personagem principal a yuta percebe a origem das vozes na sua cabeça. Elas são de um passado distante, carregando suor e lágrimas e o amargor da escravidão daqueles que trabalharam em uma terra que não era deles (106). Carregam a vergonha e a desonra de estarem em trabalhos que nem mesmo os escravos fariam. Carregam o peso da desumanização de um grupo inteiro. Entretanto, entre todas aquelas vozes amargas, uma delas era mais alta e clara:

“aquella voz huraña y revuelta, según la yuta Miyagui, pertenecía a una mujer que en los cascajos del recuerdo, se expandía coruscante por el cuerpo tembloroso de Nakamatsu

141 como si hubiera recorrido aguas turbulentas, desiertos estériles, y hondonadas inflamadas por el rencor” (107); “Aquella voz exasperada, cargada de llantos, arrebatos e indignación, se desplazaba inagotable. Tenía el acento de una nesan, una antigua nisei marcada por los horrores, y según la yuta Miyagui, se dirigía invariablemente a Katzuo por ser hijo de Zentaró, el amigo de Etsuko Untén” (111-112).

A yuta trouxe a luz as vozes entranhadas nos traumas da comunidade japonesa.

Ao colocar suas mãos sobre Katzuo, ela consegue ouvir

aquellos sonidos que provenían de la lejanía, de la distancia, de un tiempo remoto

y acabado. Eran murmullos del ayer, multiplicados en figuraciones, hombres y

mujeres en tropel, en realidad una turba de japoneses indesmayables, braceando

en una tierra que no era suya, destilando sudores y lágrimas, viejos espectros de la

infancia de Katzuo, emergiendo, desairando, estallando aquí y allá, irreversibles,

furiosos, desquiciados, en un ajetreo irresoluble. (106)

Alinhando aos argumentos que fiz anteriormente, a pessoa que facilita a manifestação desse turbilhão de vozes silenciadas tinha que ser uma mulher pois elas eram as responsáveis por cultivarem as práticas da cultura que manteriam a identidade japonesa viva. Aliviar o fardo de Katzuo significava também liberar as narrativas que foram escondidas dos olhos e ouvidos da população peruana de uma parte significante de seu povo: “ . . . era la yuta Miyagui quien lo sostenía y auxiliaba con sus crepusculares energías” (112). Não contar as atrocidades cometidas contra os japoneses inevitavelmente acarreta o apagamento de sua história e, consequentemente, sua memória e identidade.

142

Por ser mulher, okinawense61 e também ser uma figura de autoridade, ela ordena a história e a cultura a não ficarem escondidas da sociedade, cumprindo seu destino como mantenedora das tradições japonesas dentro da comunidade.

Outro ponto importante a ser levantado sobre a presença dessas mulheres na narrativa é a escolha do gênero da voz que narra as violências. Ela conta a história de

Etsuko Untén, mas o faz de um ponto de vista feminino pois era o dever das mulheres passar as histórias e tradições adiante. Assim, era o dever dessa voz feminina também denunciar as violências cometidas contra seu povo pois esses atos estavam impedindo os japoneses imigrantes de se comprometerem totalmente com a sua identidade japonesa.

Ao revelar essas narrativas escondidas, a história de Katzuo Nakamatsu torna-se uma metáfora para os imigrantes japoneses/okinawenses no Peru: o personagem principal, assim como a comunidade nikkei, é torturado pelas memórias silenciadas. Esse silenciamento tortura a comunidade pois não permite que ela compreenda inteiramente sua própria identidade como indivíduos e nem como grupo dentro do Peru. Assim como explicado anteriormente, a memória coletiva influencia grandemente populações asiáticas ao construírem suas identidades como coletivos e não como indivíduos. Então, quando um sujeito perde essa referência coletiva, o indivíduo (japonês) também se perde do seu grupo identitário. O não entendimento de sua história torna-se uma manobra para manipular esses sujeitos para que eles não exijam seu lugar de direito/fala dentro da

61 A figura okinawense é especificamente significativa nesse caso uma vez que essas pessoas eram consideradas como sujeitos inferiores pela comunidade japonesa. Okinawa é uma ilha que foi incorporada ao território japonês, mas não compartilhava dos mesmos costumes e cultura, assim, quando eles imigraram para as américas, seu status inferior também migrou com eles. Japoneses eram superiores ao okinawenses dentro das comunidades japonesas imigrantes.

143 sociedade peruana e para que eles não peçam por justiça em reparação ao que lhes foi feito. A voz feminina é uma camada extra ao conjunto de narrativas esquecidas e desprivilegiadas, uma vez que essas mulheres são consideradas como sendo menos que os homens tanto pela cultura patriarcal japonesa e como pela peruana. Usar a voz “mais fraca” para romper a narrativa identitária da nação traz ao romance um poder de reconhecimento não só pelos sujeitos descendentes de japoneses, mas também por outros membros da sociedade peruana que foram imigrantes e marginalizados e que também não tiveram suas histórias/vozes ouvidas.

A voz feminina nos reconta a história de Etsuko Untén, que é descrito como um nacionalista/extremista:

Le llamaron loco, bakatare, imbécil, recibió miles de vejaciones, le dijeron la

espalda sus propios paisanos, pero él continuó aguardando, insobornable y

recalcitrante, pues consideraba que era una cuestión de honore, al margen del

tiempo, de los avatares de la historia, de las pequeñas circunstancias de la vida,

aun después del descalabro de Hiroshima y la rendición incondicional del Japón.

(113)

Entretanto, pelo tom da narrativa que a voz feminina apresenta, é possível notar que ela está procurando justiça para Etsuko. Ao recontar a história e mostrar como ele pretendia levantar a comunidade japonesa no Peru depois de juntar-se ao nacionalismo extremo, ela chama a atenção para o quão importante é a conexão desses imigrantes com a sua identidade japonesa.

144

A história de Etsuko de certa maneira, a mesma história parece com a história contada por Corações sujos, de Fernando Morais, onde um grupo de extremistas nacionalistas não aceitava a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. Eles juntaram um grupo de kachigumis62 para honrar a memória japonesa ao manterem uma total lealdade ao Japão. Entretanto, diferentemente de Corações sujos, Etsuko acaba criando uma rede de múltiplos colaboradores entre os indivíduos que ainda juravam fidelidade ao

Japão: “Ya para aquel entonces, Etsuko Untén empezó a fundar locales de los kachigumi, en Barrios Altos, en el Rímac, en Breña, para atender a los japoneses pobres, a los que habían quedado sin trabajo, y a merced de la población que nos odiaba y nos despreciaba” (107). Etsuko tinha sido difamado dentro da sociedade peruana e seu nome somente era lembrado por ser um extremista. Mas as vozes das mulheres que anseiam por contar a verdade trazem uma luz sobre a narrativa dizendo que o que se acreditava como verdade era meramente um mal-entendido sobre Etsuko e todas suas conquistas para o povo japonês. Etsuko acaba se tornando uma metáfora para a história dos indivíduos japoneses/okinawenses no Peru. Perseguidos e ostracizados da sociedade, esses sujeitos foram o alvo de ódio e preconceitos da maioria dos mestizos na sociedade peruana quando chegaram.

62 Kachigumi é uma terminologia usada para designar os imigrantes japoneses que eram extremistas e não acreditavam na derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial. 145

2.2.4 Considerações gerais sobre a obra de Augusto Higa Oshiro

Em conclusão a essa parte é importante ressaltar que sem as vozes femininas na narrativa de Katzuo, não haveria contato com a memória coletiva japonesa nesse grupo migrante no Peru. Como já argumentado, há uma noção de identificação dentro desse grupo pelo uso de memórias coletivas em detrimento da memória individual, assim lembrar não somente do eu, mas também das tradições compartilhadas tece uma trama entre as identidades das pessoas que pertencem a esse grupo (no caso, os japoneses no estrangeiro) que os mantém ligados a sua nação de origem e a sua identidade. Não fossem as mulheres, mantenedoras de tradições e símbolos, especialmente dentro da cultura okinawense, que é mais centrada sobre a figura da mulher como organização social, não haveria essa manifestação da cultura coletiva em La ilumniación de Katzuo Nakamatsu.

Essa metáfora traz a luz não somente a importância da manutenção das práticas culturais como parte integrante da identidade nacional, mas também o papel das mulheres que, diferentemente do romance de Nakasato, não são eliminadas por darem voz a uma identidade que havia se perdido na integração à sociedade peruana.

Por isso afirmo que há uma única camada identitária dentro da sociedade peruana.

Essa camada pode ser multifacetada, mas em contraste com o Brasil que carrega o “mas” em “sou brasileiro, mas sou japonês,” o nikkei peruano carrega um aditivo “e” na sua identidade ao dizer “sou peruano e japonês”. Já Katzuo luta para encontrar uma divisão que o leve às suas raízes. O personagem anseia por ser diferente e relembrar um traço da sua identidade que havia se apagado no processo de assimilação identitária ocorrido no

Peru. Segundo Doris Moromisato, o nikkei é um sujeito que precisa lutar para ser

146 reconhecido como tal, uma vez que a assimilação e a semelhança dos traços faciais os colocam na mesma camada identitária que os indígenas dentro do Peru. Nos dias atuais, ainda segundo a autora, há a necessidade de se destacar o povo nikkei que é uma grande maioria no país, mas que não tem sua cultura como reconhecida separadamente da cultura peruana, afinal “ser nikkei é uma forma de ser peruano”, consequentemente, há uma camada identitária a ser navegada e uma falta de reconhecimento de raízes.

2.3 Considerações gerais finais

Em Nihonjin, vimos como o sistema patriarcal discriminou as mulheres que não preenchiam seus papéis de mantenedoras da cultura e tradições japonesas e/ou questionariam a autoridade de um personagem masculino. Essas mulheres eram vistas como um obstáculo ao objetivo do personagem principal masculino, que era manter a identidade japonesa intacta a todo custo. Assim, esse questionamento desafia a autoridade masculina/patriarcal e as personagens são destinadas a serem apagadas da comunidade e da história familiar para não manchar a “honra” da família. Logo após, analisei como

Hideo (personagem principal de Nihonjin) sintetizou os confrontos identitários que sofreu ao trazer consigo a memória de um Japão que não pôde se materializar no novo território, acarretando o afastamento de sua família. Ou seja, devido a sua insistência nessa memória de um Japão antigo e na manutenção de tradições que o manteriam ligado a essa parte da sua identidade, ele impede que sua identidade se modifique e se integre à nova sociedade como fez sua família, criando assim a camada dupla de identidade que afirmo existir no Brasil.

147

Já em La iluminación de Katzuo Nakamatsu (2008), de Augusto Higa Oshiro, foquei na importância da memória que Katzuo (o protagonista do romance) guarda em si e como ela influenciou seu comportamento dentro da sociedade peruana. Explicitei a importância de dar voz aos traumas que os migrantes japoneses sofreram no Peru e o processo que passaram para construir e fazer parte de uma nova identidade nacional.

Continuando o paralelismo da presença das personagens femininas, analisei também a importância da presença da personagem yuta. Ao contrário das personagens de Nihonjin, a yuta torna-se uma ferramenta que ajuda o personagem masculino principal a organizar sua identidade e a materializar memórias e identidades japonesas que estavam em conflito dentro de Katzuo. Uma vez que ele consegue organizar e liberar essas múltiplas identidades, o personagem se liberta do tormento de uma identidade bipolar que sofria.

Essa navegação que ele fazia entre dois extremos identitários é uma metáfora sobre a integração da identidade japonesa dentro da sociedade peruana: uma vez que os migrantes japoneses moldaram sua identidade dentro da identidade nacional e também foram aceitos pela população, puderam se considerar parte integrante do país exatamente por serem nikkei (“ser nikkei é uma forma de ser peruano”)

148

Capítulo 3. Nikkei no cinema: representações e visões

Enquanto Brasil e Peru podem possuir diversas similaridades no que diz respeito a produção literária e cultural nikkei, o mesmo não é verdadeiro quando comparamos os dois países na esfera cinemática. Embora o Peru tenha avançado no campo literário para outros campos além das fronteiras da identidade nikkei, o Brasil caminhou para o desenvolvimento de novas maneiras de recontagem da história nipo-brasileira dentro do país. Por isso, há maior desenvolvimento cinematográfico que envolve a identidade nikkei no Brasil, com filmes, seriados e novelas como: Corações sujos (2011), de Vicente

Amorim, (baseado no livro homônimo de Fernando Morais), Gaijin – caminhos da liberdade (1980) e sua sequência Gaijin: ama-me como sou (2005), ambos pela diretora

Tizuka Yamasaki, assim como novelas como “Sol nascente” (2016), escrita por Walther

Negrão, Suzana Pires e Júlio Fischer. Todas essas produções recontam o caminho feito pelos primeiros imigrantes, passando pelas guerras mundiais e culminando em uma sociedade atual (com “Sol nascente”). Um aspecto interessante da escolha de elenco para os filmes é que os diretores optaram por usar atores japoneses ou nipo-brasileiros que pudessem falar tanto português quanto japonês pois havia uma preocupação com os filmes serem culturalmente “fiéis” (“Globo admite”).

No caso da televisão abertas há novelas que lidam com o legado da imigração japonesa. Entretanto, somente uma dessas produções foca exclusivamente na herança

149 japonesa no país: “Sol nascente” (2016). Apesar da tentativa de representar a colônia nipônica, esta novela recebeu muitas críticas com relação à seleção de elenco, “fidelidade cultural”, e má interpretação da linha histórica da imigração (“Globo admite”). Para essa pesquisa, também é importante destacar as más interpretações da cultura japonesa que ocorrem dentro de ambos países (Brasil e Peru), uma vez que esses “erros” contém um grande significado sobre o que sociedade ao redor do imigrante japonês espera que ele seja. A maneira dos brasileiros que estão fora da comunidade japonesa perceberem essa identidade como um sinal de como a cultura dos imigrantes do Japão precisa ainda ser firmemente consolidada dentro do conceito de identidade nacional.

Ao focarmos no Peru, as produções cinematográficas e televisivas específicas sobre a comunidade nikkei no país não são prolíficas. Há apenas alguns poucos documentários produzidos sobre a imigração japonesa no país, e a maioria dessas produções está relacionada ao testemunho pessoal ou familiar de quem as produziu.

Talvez, a produção mais recente sobre o tema seja Nikkei (2011), dirigido por Kaori

Flores Yonekura. A diretora escolhe recontar a jornada de seus avós saindo do Japão, passando pelo Peru e terminando sua imigração na Venezuela em 1937. Ela destaca o processo e as dificuldades que eles sofreram para imigrar para o Peru e as lutas diárias naquela sociedade estranha. Também foca na decisão de partida para a Venezuela em busca de novas oportunidades econômicas. O documentário não é especialmente focado na história da imigração em si, mas na busca de melhores condições e oportunidades, culminando na ida para a Venezuela. Este documentário ilustra (sem romantizar) as batalhas que os imigrantes enfrentaram para poderem se estabelecer e as negociações

150 identitárias que tanto os avós quanto a própria diretora precisaram fazer. Além da busca pela história dos avós, Kaori acaba calando uma inquietação identitária e redescobrindo sua voz nikkei.

Podemos pinçar semelhanças com o discurso de Augusto Higa Oshiro sobre o nikkei na sociedade do Peru: “nikkei é uma forma de ser peruano”. O nikkei (ou a descendência japonesa), sempre esteve presente dentro da sociedade peruana moderna, assim sendo, devemos tratá-la como constituinte de uma identidade nacional. Ao contrário do Brasil, que separa a identidade migrante de uma identidade nacional, o “ser imigrante” é uma forma de ser peruano. Assim defendo que há uma dupla camada identitária que permeia a comunidade nikkei no Brasil enquanto no Peru essa camada é singular quando se trata da colocação dos sujeitos na sociedade peruana. Para tal, escolhi analisar os materiais: Gaijin, caminhos da liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki,

Corações sujos (2010), de Vicente Amorim, como estudos de caso no Brasil, e Nikkei

(2011) de Kaori Flores Yonekura e o episódio documental “Historia de la inmigración japonesa en el Perú” (2019) produzido por Norma Martinez para TVPerú. Deste modo, ilustro minha hipótese de que o nikkei no Peru já está entranhado ao conceito de identidade nacional, enquanto no Brasil ainda há certa resistência a essa conexão.

3.1 Cine-narrativas nipo-brasileiras: um campo prolífico

Como demonstrarei, cine-narrativas como as do filme Gaijin – caminhos da liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki, e Corações sujos (2011), de Vicente Amorim, são apenas alguns dos trabalhos que recontam a história do processo migratório e o

151 estabelecimento da colônia japonesa no Brasil. O estudo que fiz nesse capítulo foca na projeção internacional do entre-lugar que a cultura japonesa sempre se encontrou dentro do país. Assim sendo, um estudo sobre a exposição das agressões e violências pelas quais esse grupo passou para construir uma comunidade dentro do Brasil configura o testemunho e um retrato sobre o porquê deste grupo ter permanecido fechado por tanto tempo.

Também é necessário chamar atenção para a distância dos acontecimentos sendo retratados nos dois filmes e a data de lançamento de ambas obras. Esse hiato temporal de grande porte entre evento e recontagem reflete a dificuldade de a sociedade brasileira enxergar a presença histórica deste grupo como parte do tecido da identidade nacional do país. O vácuo entre “história e estória” simboliza a “via de mão” dupla que vou explicar melhor quando analisar Corações sujos: ao mesmo tempo que os imigrantes japoneses enfrentaram muitas dificuldades, sofreram grandes agressões e foram excluídos da sociedade brasileira, estes mesmos sujeitos também não tinham interesse em tornarem-se parte de uma nova nação/cultura.63

Tanto Corações sujos quanto Gajin incorporam histórias de um povo que foi negligenciado por sua nação (em grande maioria por não serem imigrantes europeus), e ao mesmo tempo são representações cinematográficas que ultrapassam as fronteiras

63 Segundo Kingsberg (71-72), havia o interesse em partir para outras nações a mando do imperador japonês. Entretanto, essa migração aconteceu sob duas condições: a esperança de retorno à pátria, e a ideia de que eles deveriam “colonizar” a nova nação com seus costumes “superiores”. Assim sendo, a teoria da via-de-mão-dupla encaixa-se adequadamente na minha hipótese.

152 nacionais e ganham representação internacional fora de seus próprios nichos e fora do

Brasil. De acordo com Jeffrey Lesser no seu livro Negotiating National Identity (1999):

Imigrantes não-europeus geralmente têm sido ignorados na lacuna historiográfica

apesar dos milhões de pessoas envolvidas. Ainda, pesquisas com pessoas do

oriente médio e asiáticas geralmente acontecem paralelamente aos arquivos

convencionais, e nesses mundos invisíveis, mas onipresentes, termos como

“estrangeiro” e “brasileiro” podem ser sinônimos. Para muitos brasileiros,

identidades múltiplas eram comuns muito antes dos aviões fazerem as viagens

internacionais em horas ao invés de semanas ou meses. (ix)64

A multiplicidade étnica presente nesses nos dois filmes não pode ser ignorada. Tampouco o espaço que abrem para que novas produções no campo ganhem representatividade.

Assim sendo, ressalto essas obras como filmes que ultrapassam seus próprios limites e os limites de suas comunidades,65 línguas e nações.66 Isto é, além de constituírem-se como metaficções historiográficas (que analisam seu próprio papel na construção de sua

64 Non-European immigrants have been generally ignored in the historiography, surprising lacunae, given the millions of people involved. Yet research in the Middle Easterners and Asians often take place out of the mainstream of archives, and in these unseen but omnipresent Brazilian worlds terms like “Foreigner” and “Brazilian” may be synonyms. For many Brazilians, multiple identities were common long before airplanes made international travel a matter of hours rather than weeks or months. (ix)

65 Gaijin (1980) foi exibido em várias salas de cinema no mundo inteiro e recebeu menção honrosa no Festival de Cannes em 1980. Já Brazil-Maru (1992) tem sido estudado em cursos de literatura comparada em instituições acadêmicas brasileiras e norte-americanas, como podemos observar nos textos de Cláudio Braga e Gláucia R. Gonçalves, Elizabeth Espadas, Maria Teresa Rinaldi, etc, por exemplo.

66 As narrativas circulam a mesma temática histórica: como ocorreu a imigração japonesa no Brasil e seus possíveis desdobramentos.

153 narrativa histórica) e mitologemas67, os filmes de Vicente Amorim e Tizuka Yamasaki são, também, transnacionais (Clingman 6-11).

Gaijin – caminhos da liberdade (1980), drama brasileiro,68 é o trabalho de estreia da diretora e produtora Tizuka Yamasaki.69 O filme é narrado por uma voz heterogênea da personagem Titoe (interpretada por Kyoko Tsukamoto). A protagonista apresenta sua visão e memórias entrelaçadas à uma reflexão sobre como ocorreu o estabelecimento da comunidade Japonesa no Brasil.70 De uma perspectiva pessoal, ela interfere na narrativa histórica com comentários e analepses sobre sua vida no Japão que conferem à narrativa a perspectiva da personagem e envolvem a audiência em sua experiência pessoal única. O filme inicia com sua visão sobre a imigração forçada ao novo país devido à miséria que assolava o Japão. A partir dessa reflexão, o filme foca nas dificuldades enfrentadas pela personagem e sua família que englobam problemas que vão desde a perda da esperança a

67 Károly Kerényi nos explica que os mitologemas são histórias ou essências características de um povo que se repetem incansavelmente. Essa repetição acaba por engessar essa essência como definidora de identidade: “come nella natura puramente formale dell’inconscio si possano reperire le matrici universali dei temi mitologici che per la vastità e l’intensità del loro ricorrere debbono a ragione essere chiamati universali” (6). 68 Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural, Gaijin é considerado o primeiro filme brasileiro de ficção a ter como tema a imigração japonesa no país. A produção de Gaijin data do início do período da abertura política do Brasil pós-ditadura militar, época na qual o movimento operário encontra-se em ascensão. Segundo Maria Ligia do Prado Coelho, citada na enciclopédia, “Gaijin era um filme didático, um filme de combate. A narrativa indireta e segura pretendia provar uma tese, a necessidade de liberdade diante da opressão.”

69 A diretora e produtora brasileira Yamasaki é filha de japoneses imigrantes que se assentaram no estado de São Paulo. Ela se graduou em cinema pelo Instituto de Arte e Comunicação Social da UFF e fundou sua própria produtora em 1978 (chamada CPC) (Enciclopédia). Em 1980 ela desenvolveu e produziu seu filme de estreia: Gaijin – Caminhos da liberdade. A narrativa é baseada nas histórias contadas por sua avó sobre sua experiência como migrante (Kishimoto 152).

70 De acordo com Jeffrey Lesser: “For many viewers in São Paulo, Gaijin helped to explain the presence of Japanese products and people in their everyday lives” (A Discontented Diaspora 66).

154 volta para casa até a decisão de deixar a fazenda e viver na cidade em busca de novas oportunidades. Titoe (uma adolescente de 16 anos), casa-se com Yamada (um jovem que sonha em ficar rico trabalhando nas lavouras brasileiras) para poder imigrar ao Brasil dentro de um grupo familiar71. Ao chegar no novo país, Titoe enfrenta condições de semiescravidão e tem problemas com a adaptação cultural. Movida pelo sentimento de injustiça causado pela quebra das expectativas e pela morte de seu marido, ela decide fugir para a cidade, onde ela poderá trabalhar e conseguirá sustentar sua filha já nascida no Brasil.

Corações sujos (2011), de Vicente Amorim, é um filme baseado no romance de mesmo nome Corações sujos (2000), do autor nikkei Fernando Morais72. O autor escreve sobre as condições que favoreceram a criação do grupo, os atos de violência que eles praticaram, as consequências ideológicas, políticas e sociais que sofreram por parte do

Brasil e da própria colônia japonesa. Morais corrobora seu livro com excertos e dados estatísticos, fotos e documentos e imagens emprestadas de vários arquivos nacionais

(Morais 337-340). Entretanto, o autor apresenta esses dados por meio de uma linha narrativa ficcional coerente, com introdução, desenvolvimento e desfecho. Isto é, ao criar uma narrativa ficcional sobre a Shindo Renmei, ele corrobora sua história com dados factuais (extraídos das fontes mencionadas), o que confere ao seu texto um caráter mais jornalístico e não tanto uma faceta ficcional.

71 Como mostrado no filme, somente grupos familiares poderiam deixar o país em condição de imigração.

72 O seu texto, pelo cunho jornalístico, tem por objetivo descrever factualmente a história da Shindo Renmei. 155

Não obstante, a adaptação fílmica de Vicente Amorim foca e reconta uma parte do esqueleto narrativo do livro de Morais. Isso significa que o filme privilegia um corte mais ficcional do livro e transforma esse segmento em um retrato cinematográfico da história da Shindo Renmei. Amorim trabalha com a história do fotógrafo Takahashi e seu relacionamento com o Coronel Watanabe, sua esposa Myiuki e a Shindo Renmei. Um fato interessante é que os personagens mencionados não fazem parte da narrativa de

Morais (ou não são considerados personagens principais do livro). A escolha do diretor lida com a humanização do personagem principal e narradora para que a audiência crie certa empatia por Takahashi enquanto observam sua relação com a Shindo Renmei.

Ambas produções refletem perspectivas históricas e transnacionais que florescem de movimentos diaspóricos. Ambas se engajam em diálogos entre si e alcançam projeção internacional. Assim sendo, vou analisar a representação do desenvolvimento da construção da identidade nipo-brasileira enquanto parte constituinte do cenário nacional, e o fenômeno de dupla camada que esse processo gerou. Ou seja, ao analisar o desenvolvimento identitário por meio das representações contidas nos filmes, pretendo explicar como se deu a separação identitária da comunidade nikkei em duas vertentes: a linha que afirma a pertença à comunidade brasileira, e a linha que afirma a distinção de tal comunidade por seus laços fortes com o Japão (não sendo, assim, parte integrante da identidade nacional como um todo).

Em Gaijin vou atender ao aspecto de como a personagem principal se estabelece dentro da narrativa fílmica e as comparações que faz entre sua comunidade e a sociedade brasileira. Olharei para elementos como: o título do filme, a comunidade representada, o

156 conceito de gaijin, e como a narração da personagem interfere na linha histórica sendo descrita. Já em Corações sujos, olharei para aspectos de como um filme que está adiante na linha histórica (no período da Segunda Guerra Mundial) enfoca na integração da comunidade à sociedade brasileira. A partir deste foco, desenvolvo meu conceito de violência de via de mão dupla, no qual afirmo que ao mesmo tempo que a sociedade brasileira não aceitava os japoneses, esses não queriam ser aceitos por uma comunidade que não fosse a japonesa. Por fim, também olharei para Corações sujos da perspectiva da traição linguística entre o japonês e o português. A complicação linguística representada do filme possui uma ligação direta à razão pela qual essa comunidade levou tantos anos para passar a relacionar-se com sua faceta brasileira em português. Para tal, vou analisar ambos os filmes separadamente e olhar para alguns elementos que representam o relacionamento direto que esses trabalhos possuem com as comunidades que representam: em Gaijin, olharei para a evolução das comunidades desde a chegada até as fazendas até sua migração para a cidade em busca de melhores condições; já em

Corações sujos, que é uma continuação histórica de Gaijin, olharei como se deu o desenvolvimento dessas comunidades que já faziam parte de uma sociedade maior

(cidade), quais foram os confrontos que enfrentaram, e como isso se refletiu em sua identidade.

3.1.1 Gaijin: caminhos da liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki

A proposta desta parte do capítulo é focar em como se deu a representação do estabelecimento das comunidades japonesas em solo brasileiro por meio da representação

157 que Tizuka Yamasaki faz em sua narrativa fílmica Gaijin: Caminhos da liberdade de

1980. Uma narrativa que culmina na hifenização metafórica da identidade nipo-brasileira.

A história do filme conta a trajetória de migração dos personagens Titoe e Yamada do

Japão para o Brasil. Titoe é uma jovem de 16 anos que se casa com Yamada para poder imigrar ao Brasil dentro de um grupo familiar. O filme conta o trajeto de cinquenta e dois dias de viagem dos personagens e sua chegada à Fazenda Santa Rosa, onde trabalhariam nas plantações de café. Ao chegarem, são tratados hostilmente, roubados e forçados a trabalhos de semiescravidão. Somente são tratados com respeito pelo contador da fazenda

(Tonho) que, ao final do filme, ajuda Titoe a escapar para a cidade em busca de melhores condições para sua filha.

A diretora opta por recontar o início da imigração japonesa e as dificuldades que sofreram para se estabelecer no novo país. No entanto, ela o faz pelo ponto de vista de uma personagem/narradora feminina que tem um relacionamento desafiador com a nova cultura na qual ela começa a habitar por sentir muita falta da cultura japonesa. Apesar de haver uma tentativa de continuar as práticas culturais japonesas mesmo estando no Brasil,

Titoe serve de exemplo para a audiência de como sua identidade dividiu-se entre os conflitos culturais novos e as memórias fraternais de sua infância no Japão.

3.1.1.1 O título: forasteiros de si mesmos De acordo com Vieira Braga e Gonçalves (95), grupos pós-diaspóricos são caracterizados pelo sentimento de pertença a dois espaços distantes: a terra natal e o novo país. Esse sujeito é aquele que vive em mais de um espaço cultural ao mesmo tempo.

Consequentemente, o sujeito acaba substituindo o ideal da volta para a “casa” pelo ideal 158 da transculturação da sua pátria dentro da nova sociedade, que é descrito pelos autores como um processo de “homing” (86). Ao habitar dois espaços diferentes, o indivíduo liga com a negociação entre aceitar a nova cultura e/ou implementá-la com suas antigas práticas culturais. Assim sendo, esses indivíduos transculturais vivem duas heranças culturais simultaneamente e negociam formas de adaptação entre ambos espaços (95). No caso de Gaijin (assim como de outros trabalhos analisados), os personagens negociam entre a segurança de sua casa e suas tradições, e a adaptação à nova vida/sociedade.

O título do trabalho de Yamasaki, Gaijin – caminhos da liberdade, é por si só ambíguo, uma vez que “gaijin” é uma terminologia usada para descrever em japonês

“homem” ou “pessoa” e “estrangeiro”. A etimologia da palavra “gaijin” originou-se justamente para descrever os sujeitos que migravam de uma área para outra dentro do país em busca de trabalhos temporários. Assim, ela é usada para “marcar” o sujeito que não pertence a uma certa região/cultura no Japão. De acordo com Jeffrey Lesser, outro ponto interessante é que o título do filme brinca com a descrição do estrangeiro: seriam os japoneses em terra estranha os gaijins, ou essa terminologia seria direcionada às pessoas que se encontraram na nova terra (os brasileiros) (Discontented 64)? O título ilustra o sentimento de deslocamento vivido pelos japoneses: o conflito identitário entre os que chegaram e a cultura dos povos já existente o que produz um sentimento de não pertença. O título reflete a situação vivida pelos primeiros japoneses imigrantes em

Gaijin que se tornaram estrangeiros ou gaijins de si mesmos.

159

3.1.1.2 A comunidade e as memórias coletivas As comunidades construídas em ambos os filmes são representações de como a comunidade japonesa no Brasil tentou se encapsular o máximo possível para preservar intacta sua língua, seus costumes e sua identidade. Ao passar dos anos, as novas gerações de descendentes que cresceram dentro dessas capsulas nipônicas e, ao mesmo tempo, frequentavam escolas/ eventos sociais brasileiros aprenderam a hifenizar sua identidade nipo-brasileira. Gaijin ilustra o início do estabelecimento dessas capsulas identitárias. O filme representa uma memória coletiva73 e, também, o entrelaçamento do sentimento de pertença à nova terra e seu relacionamento nostálgico com a pátria japonesa pré- imigração.

Em Gaijin, é possível ver que o sentimento de nostalgia é suavizado dentro das comunidades por meio da adaptação e incorporação das práticas culturais tradicionais, como por exemplo o uso de quimonos, o uso da língua japonesa, as reuniões, a criação de centros comunitários, etc. Há que se chamar atenção ainda para a intenção do retorno desses imigrantes ao Japão: Yamada (marido de Titoe) constantemente relembra a Titoe

(personagem principal) que ele vai conseguir juntar dinheiro suficiente para retornar à casa algum dia. Entretanto, ao olharmos para a narradora, é notável que ela está em conflito entre optar por voltar ao Japão com seu marido, ou ficar no Brasil e construir um futuro melhor para sua filha. Após a morte de Yamada, Titoe escolhe ficar na cidade. É possível notar que, apesar do sentimento nostálgico por um Japão que somente existe em

73 Uso essa terminologia me referindo à definição de Kátia da Costa Bezerra: “um quadro social constituído a partir de fatos, valores e crenças que servem de pontos de referência para os indivíduos e a sociedade como um todo”. (36)

160 sua saudade, Titoe desiste de perseguir a ideia do retorno a pátria (pois ela já não existe mais). Ao ter sua filha no Brasil, a protagonista finca raízes na nova cultura e encara as possíveis mudanças e adaptações que serão necessárias na criação de sua filha.

3.1.1.3 Imigrações e o “El Dorado”: gaijins de si mesmos Os primeiros imigrantes que chegaram ao Brasil e ao Peru tinham migrado em busca do “El Dorado.” Eles se frustraram quando foram forçados a trabalhar nas plantações de café. Devido às condições de trabalho de semiescravidão, vários desses sujeitos fugiram das plantações para estabelecerem seus próprios negócios na cidade ou em pequenas propriedades no interior do país. A ocupação das áreas virgens no nordeste do estado de São Paulo no início de 1910 levou à criação de colônias e cooperativas.

Essas comunidades desenvolveram-se baseadas no arranjo que as interações sociais proveram: cooperativas foram criadas entre todos os membros com o objetivo comum da preservação mútua de práticas culturais. As cooperativas eram a maneira que esses imigrantes encontraram de isolarem-se e protegerem-se da “ameaçadora” sociedade brasileira.

Em Gaijin, vemos os donos da fazenda conversando sobre o aumento na produção da plantação com o investimento no trabalho dos japoneses quando Felícia (filha do dono da plantação) diz: “Eles não passam de chinfrins. Nós somos muito mais ricos e poderosos que esses pés-rapados, pai.” A personagem não acredita na evolução social dos japoneses. Outra situação que aparece no filme é quando uma carroça fica presa na lama e Tonho (o administrador da fazenda) decide ajudar esses imigrantes devido à simpatia que sentia pela sua situação. O personagem que estava acompanhando Tonho comenta: 161

“Tudo bundão mesmo. Bando de japonês frouxo, cambada de bicho-do-mato. Vieram pro

Brasil pra isso? Pra fazer corpo-mole?” O filme representa uma hostilidade que já havia sido pré-construída dentro da cultura brasileira com relação aos novos imigrantes. Gaijin apresenta, também, as dificuldades que eles enfrentaram e as consequências que o trabalho forçado trouxe à comunidade e que estão refletidas no desenvolvimento da identidade nipo-brasileira. Quando os primeiros grupos de migrantes japoneses explorados decidiram fugir para as cidades e novas áreas rurais, eles tornaram-se um grande problema para os donos das plantações. As comunidades que foram estabelecidas, como aquelas mostradas em Gaijin, prepararam o cenário social e cultural do país para aceitar comunidades como aquelas de Corações sujos.

A interação com a sociedade brasileira é um outro aspecto importante do trabalho de Yamasaki. Apesar do status social comprometido pelas condições de trabalho, os personagens de Gaijin precisaram interagir e desenvolver relacionamentos com a sociedade que os rodeava: precisaram aprender a língua, entender práticas culturais e compreender as burocracias da plantação. Precisavam fazer isso para se protegerem. O primeiro desafio ocorre quando o grupo precisa se comunicar com Tonho sobre os lugares de estadia na fazenda: era tão difícil para Tonho se fazer entender quanto era complicado para os japoneses manifestarem suas reclamações. Seguindo essa cena, Titoe diz: “Foi assim que começou minha nova aventura no novo país que eu não tinha escolhido pra mim.” A participação na nova sociedade e cultura em Gaijin era uma necessidade e não uma opção, como nos casos de Corações sujos e Nikkei.

162

3.1.1.4 Narração: perspectivas de uma mulher nikkei Um dos aspectos importantes a ser destacado nas análises de Gaijin, Corações sujo, Nikkei e Sucedió en el Perú está nos recursos que são usados na narração dos eventos. Os sujeitos narrativos são compostos pela maioria issei74, indicando os diferentes níveis de aproximação à cultura nacional no processo migratório. Apesar de somente termos uma voz em Gaijin e Corações sujos, elas demonstram ser heterogêneas e repletas de recursos narrativos como intervenções críticas no processo de narração e analepses. No caso de Nikkei, a voz da narradora é trespassada pela voz dos agentes que a ajudam a compor sua história, ou seja, sua voz é constantemente interrompida por outras vozes da memória coletiva nikkei.

Em Gaijin, a narradora é uma jovem japonesa que migra para o Brasil sob a premissa de estabelecer uma vida melhor para si. A lei japonesa de imigração afirmava que somente pessoas casadas ou grupos familiares poderiam deixar o país sob status de imigração, porque o propósito desse processo (para os japoneses) era o de criar comunidades “colonizadoras” fora do território do Japão (Kingsberg 71). Devido a essa imposição, Titoe casa-se com Yamada. O filme somente é contado através de uma voz que representa a história de exploração dos primeiros grupos imigrantes. A história exibida no trabalho de Yamasaki parte de uma visão unilateral. Ela é uma memória pessoal da narradora que, apesar de conter várias intervenções críticas e flashbacks, representa uma comunidade como um todo.

74 Primeira geração de japoneses trazidos do Japão para as novas terras estrangeiras. São sujeitos que nasceram no Japão e imigraram. 163

Desde o início, há em Gaijin uma implicação que as condições de trabalho não são tão favoráveis quanto esperadas contrastando com a promessa de uma vida boa que foi feita aos imigrantes antes de deixarem o Japão. Após chegarem na Fazenda Santa

Rosa, as suspeitas tornam-se realidade o que é expressado pelo comentário de surpresa na voz de Titoe: “foi assim que começou minha aventura no novo país que eu não tinha escolhido pra mim”. A narração sobreposta ao filme é também composta de analepses nostálgicas: em cenas estratégicas do filme vemos Titoe encontrando conforto em suas memórias do Japão. Uma das cenas principais é a sua chegada ao Brasil, quando ao olhar para as terras da fazenda, ela alegremente lembra-se das plantações de arroz na sua terra natal. A cena mostra Titoe caminhando e cantando pelos campos de arroz. Assim, é notável que a narração da Titoe tente encontrar sentido nessa nova cultura por meio de uma comparação com a cultura japonesa que ficou “para trás”. Sua narração sobreposta volta ao final do filme quando, depois de vermos toda sua história de sofrimento, a personagem está relembrando de suas experiências no Brasil e quais foram os motivos que a levaram a deixar o Japão.

Ao destacar essa trama, é possível estabelecer um paralelo com a definição de história proposta por Linda Hutcheon como multifacetada, complexa e não-totalizadora.

As lembranças que invadem a narrativa/narração de Titoe ilustram que o processo histórico nipo-brasileiro não ocorreu de uma maneira unificada e linear. Pelo contrário, foi permeada por intervenções internas e externas ao grupo migrante que representavam as batalhas diárias na negociação da sua identidade no Brasil.

164

Recentemente, o autor nipo-brasileiro Oscar Nakasato concedeu uma entrevista à produtora independente Pietà Filmes75 para a web série documental NipoBrasileiros

(2019) onde explica que decidiu começar a escrever Nihonjin (2011) após um estudo cronológico em que percebeu que a representatividade japonesa dentro da literatura era

“pouquíssima e sem muito destaque”. Assim como o autor, a produtora independente também entende que a representatividade de nikkeis ainda não é extensamente reconhecida em diferentes setores da sociedade brasileira, o que implica na hifenização da sua auto-identificação: nipo-brasileiros. Nakasato explica que essa dualidade na negociação de sua identidade tem a ver com o fato de ele ter crescido navegando duas culturas distintas: em casa deveria obedecer às tradições japoneses, fora de casa ele deveria ser brasileiro. O caso do autor não é uma incidência isolada. Há, em sua maioria, vários outros indivíduos cresceram em um ambiente similar. Assim sendo, traço um paralelo que os sujeitos nipo-brasileiros vivem essa dupla camada identitária que se entrelaça e se sobrepõe dependendo do terreno cultural a ser navegado.

3.1.1.5 Considerações finais sobre Gaijin Em Gaijin, observamos o início desse processo. Como Titoe, os outros membros da fazenda deveriam se comportar e agir para que Tonho e os outros personagens brasileiros pudessem lhes entender e compreender suas necessidades. Vemos ao final do filme que Titoe aprende a dividir sua identidade ao vermos a personagem habitando a

75 A Pietà Filmes produziu recentemente (2019) uma web série documental chamada NipoBrasileiros que entrevistava nipo-brasileiros que se destacaram fora das áreas exatas. Os entrevistados variavam desde autores literários até políticos, e o intuito era fazer uma quebra no estereótipo cristalizado no Brasil de que os descendentes asiáticos (em sua maioria japoneses) somente têm reconhecimento e sucesso em áreas associadas às ciências exatas. 165 cidade de São Paulo e levando sua filha a uma escola brasileira. No caso de Corações sujos (tanto no filme quanto no livro), como veremos, há a continuação histórica de

Gaijin, e essa continuação nos mostra quais foram as consequências para aqueles que adotaram a dupla-camada identitária, tanto do lado brasileiro quanto do lado japonês.

3.1.2 Corações sujos (2011), de Vicente Amorim

A finalidade deste segmento é destacar como se deu a transposição da narrativa para o cinema na adaptação do romance Corações sujos (2000), de Fernando Morais, para o filme homônimo (2011), dirigido por Vicente Amorim focando nas tensões e violências existentes que contribuíram para a hifenização da identidade nipo-brasileira.

No romance documental, Fernando Morais junta vários dados e informações técnicas que se misturam com a elaboração de poucas narrativas sobre casos que foram registrados pela imprensa. Assim, Morais elabora histórias ficcionais (baseadas em fatos reais) que são perpetradas por informações estatísticas. O filme foca em somente uma, ou duas, dessas narrativas ficcionais, deixando de lado as estatísticas para compor uma “história” de ficção. O filme conta a história da organização “terrorista” japonesa Shindo Renmei no interior de São Paulo e sua missão de limpar a sociedade japonesa imigrantes dos japoneses “corações sujos” que acreditavam que o Japão havia perdido a Segunda Guerra

Mundial. O diretor enfoca a história pelos olhos de Miyuki, esposa do samurai Takahashi que se torna o vingador daqueles que pregam a supremacia japonesa e passa a atacar todos aqueles que não acreditam que o país foi derrotado na guerra.

166

Para compor minha análise, trabalho com a ideia de múltiplas “traições” que acontecem durante o filme: traição entre as plataformas do romance e da adaptação fílmica em si, e traição linguística entre as traduções do japonês-português. Ou seja, enfatizo que há uma traição entre narrativa e adaptação fílmica e entre a confiança dos japoneses entre si e os brasileiros por meio de traduções e tradutores. Proponho três níveis de traição/ tradução entre romance e fita: a) o diretor “trai” o romance quando apresenta Miyuki para contar a audiência a história de seu marido, b) o personagem Aoki

(contador da colônia) “trai” a colônia japonesa ao traduzir para os policiais e c) a criança

Akemi (ajudante do samurai Takahashi) também é uma “traidora” da pátria ao ajudar os policiais.

3.1.2.1 A corrupção dos corações após a Segunda Guerra Mundial A perda da Segunda Guerra Mundial teve consequências devastadoras para todos os países envolvidos, tanto do Eixo quanto dos Aliados. Porém, podemos afirmar que as repercussões foram particularmente significantes para o Japão76. Tanto para os cidadãos que ainda estavam no país, quanto para seus migrantes espalhados por todo o mundo.

Entretanto, para os isseis77 estabelecidos nas Américas, os resultados da guerra pareceram

76 Além das bombas nucleares lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, houve também a questão da perda da região da Manchúria e da Coréia. No campo moral, a perda da guerra significou muito mais: o imperador Hirohito reconheceu publicamente a rendição do país (coisa que jamais havia acontecido), e se declarou humano, ou seja, se desvencilhou da sua condição divina (quebrando um conceito milenar na cultura japonesa).

77 Primeira geração de imigrantes japoneses que chegam em outro país.

167 extremamente suspeitos uma vez que, num período de 260078 anos, o Japão nunca havia perdido uma guerra.

A informação da rendição foi recebida com muita suspeita por várias colônias de distintos países da América Latina (Masterson, xi), principalmente no Brasil onde, no interior do estado de São Paulo, alguns japoneses, inconformados, resolveram criar uma associação chamada Shindo Renmei (ou Liga do Caminho dos Súditos). Para eles, a notícia da rendição era uma fraude, uma propaganda dos Aliados para quebrar o orgulho japonês no mundo. Deste modo, a colônia japonesa no Brasil passou a se dividir em dois grupos: os kachigumi, os que acreditavam na vitória do Japão; e os makegumi, os derrotistas, corações sujos.

A Shindo Renmei, assim, transforma-se em um órgão de limpeza social e ideológica dentro da colônia japonesa contra os traidores da pátria, ou os “assimilados”.

Quando falamos de assimilação cultural, nos remetemos à ideia de colonização. De acordo com Esmeralda Simões Martinez, a assimilação do outro era necessária no período colonial entre os indígenas e os escravos. Os indivíduos que conseguissem seguir as mesmas regras dos portugueses, falar a mesma língua e se “portar” de uma certa maneira teriam uma abertura maior na sociedade do que aqueles que queriam preservar suas próprias culturas. Era preciso “civilizar-se”:

O assimilar é também uma forma de negação, porque transmite a ideia de que o

que o “Outro” tem não presta, está fora do padrão. Sendo assim, para que ele

possa crescer, no caso dos indígenas, dever-se-ia “civilizar”. É preciso assimilar

78 Informação do livro Corações sujos. 168

os costumes dos que se julgam superiores, evidenciando, assim, toda a carga de

racismo que marcou todo o processo colonial (63).

O mesmo acontecia com os imigrantes (japoneses ou outros) ao chegarem ao Brasil.

Deveriam aprender português e organizarem-se de acordo com o sistema social brasileiro.

Entretanto, na colônia japonesa, o assimilar-se constituía uma forma de traição à pátria japonesa que deveria ser reprimido com o derramar de sangue.

Essa ideia de traição à pátria está atrelada ao desejo de volta para a casa. Ao imigrarem para o Brasil, os primeiros japoneses vieram com a intenção de juntar algum dinheiro para voltarem e (re)construírem suas vidas no Japão. Mesmo que as primeiras ondas de imigração tenham começado em 1908, ainda em 1940-50 havia a esperança que o imperador do Japão iria “buscar” seus súditos que estavam espalhados por todo o mundo. Como podemos perceber na passagem do livro de Morais: “Não era de surpreender, assim, que o retorno à terra natal fosse o sonho de 85 por cento dos japoneses residentes em São Paulo no começo da guerra, segundo pesquisa feita pelo governo” (27). Assim, a lealdade à pátria nipônica permanecia forte e a preservação da língua, tradições e cultura precisava ser preservada para poderem “voltar à casa”. O medo da integração também se devia à ideia de assimilação como perda, que é muito bem ilustrada no livro Fernando Morais: “A lógica baseava-se em um binarismo: ou o sujeito era japonês e vivia como tal, falando japonês e sendo leal aos costumes, ou ele era um assimilado traidor. A colônia fundamentava-se na ideia de “nós vs. eles”, e qualquer um que se envolvesse com “eles” não faria mais parte do “nós” (Fachini Zanirato 108-109).

Ou seja, qualquer um que se envolvesse com “eles” não poderia mais ser considerado

169 japonês pois estava contaminado por uma cultura que não era mais a sua e teria traído sua pátria (Japão), ou seja, ele tinha o “coração sujo”.

Destinada a eliminar a “mentira” que sujava o orgulho japonês, a Shindo Renmei começa a perseguir aqueles acusados de traição à pátria por acreditarem e proclamarem a derrota do Japão, os “corações sujos”. Batalhões de tokkotai, os guerreiros da Shindo, percorreram São Paulo entre 1945 e 1946 cometendo atentados que levaram 23 imigrantes à morte. Em um ano, o DOPS prendeu mais de 30 mil suspeitos que cometeram os crimes da seita, e mais de 380 foram condenados à prisão. O presidente da

República, Vargas, decretou a deportação dos oitenta dirigentes e justiceiros da Shindo

Renmei, acabando com a seita nacionalista que aterrorizou a colônia japonesa no Brasil.

3.1.2.2 Traições, traduções e formas de sujar a reputação japonesa O texto do autor nikkei Fernando Morais (2001), por ser jornalístico, busca descrever detalhadamente como se deu a história factual da Shindo Renmei. O autor discorre sobre as condições que levaram ao seu estabelecimento, os atentados que praticaram, suas consequências ideológicas, políticas e sociais para o Brasil e para a colônia japonesa no país. Morais corrobora seu livro com dados estatísticos, fotos, transcrições de documentos e imagens emprestadas de vários arquivos nacionais (337-

340). Porém, o autor o faz por meio de uma narrativa condutora. Isto é, por meio da história da Shindo Renmei, Morais encaixa dados factuais pela sua narrativa (colhidos das fontes citadas), dando a ela um caráter mais documental do que ficcional.

Entretanto, o filme de Vicente Amorim (2011) escolhe focar e recontar uma parte da narrativa condutora da história de Fernando Morais. Isto é, o filme foca em um recorte 170 da parte mais ficcional do texto de Morais e transforma-o em um retrato cinematográfico da história da Shindo Renmei. Amorim trabalha com a história do fotografo Takahashi e suas relações com o coronel Watanabe, sua esposa Miyuki e a Shindo Renmei.

Entretanto, esses mesmos personagens não são mencionados no livro de Morais (ou não são tratados como personagens principais). A escolha do diretor é humanizar um dos personagens ao contar sua história e mostrar suas relações familiares, para que audiência crie uma certa empatia por Takahashi enquanto observa sua relação com a Shindo

Renmei.

Uma vez que trabalho com uma adaptação, seria necessário afirmar que o conceito de fidelidade (ou traição) usado neste caso (isto é, de adaptação cinematográfica) seria o mesmo descrito por Robert Stam. Os discursos de fidelidade se apoiam na ideia que existe uma certa essência que está escondida dentro dos detalhes da trama da narrativa que necessita ser transposta quando mudamos de meio. Porém, Stam argumenta que não há essa essência transferível: “um texto de romance único carrega uma séria de sinais verbais que podem engatilhar uma pletora de possibilidades de leitura” (15)79. O conceito de fidelidade é significantemente subjetivo quando escrevemos sobre adaptação, uma vez que a obra adaptada estará, em última instância, sendo fiel à leitura que o adaptador fez da primeira obra. Creio que esse conceito provenha da ideia de Borges sobre o que é “tradução”. Sergio Waisman explica: “En el análisis de la teoría de la traducción que sostiene Borges, Waisman destaca la libertad que llega hasta la

79 “a single novelistic text comprises a series of verbal signals that can trigger a plethora of possible readings” (15).

171 irreverencia (no se prioriza el original con respecto a la traducción); la noción desestabilizadora de la ausencia de un ‘texto definitivo’” (232). Deste modo, há uma ausência de texto original definitivo (e definidor). Pode, o tradutor (ou o adaptador), então, decidir frisar na “fidelidade” da sua própria leitura do texto original: “A tradução é o fragmento de um fragmento, é quebra de um fragmento – então o vaso continua se quebrando constantemente. . .” (DeMan 91)80. Assim, o texto original não se estabelece em uma posição superior à tradução, mas se posiciona em uma categoria de igualdade a tradução.

Proponho que Vicente Amorim escolhe fazer uma “traição” na tradução obra de

Morais em fita. Tal traição manifesta-se de três maneiras no decorrer do filme: na narração de Miyuki, na tradução/ interpretação de Aoki, e na tradução/ interpretação da menina Akemi. Segundo o diretor, em uma entrevista sobre o lançamento do filme no

Japão: “o livro do Fernando se prestava a um ótimo filme sobre identidade, mas muito mais do que isso. Uma história de amor e um thriller sobre também, intolerância, racismo, fundamentalismo, e manipulação da verdade” (Myiagi, grifo meu). Entretanto, também afirmo que essas escolhas de traições e traduções acarretam desfechos trágicos, carregados de xenofobia, aos personagens. Eles acabam perdendo vidas ou mesmo referências culturais (como a queima de livros escolares japoneses mostrada na cena com

Akemi).

80 “The translation is the fragment of a fragment, is breaking the fragment—so the vessel keeps breaking constantly . . .” (DeMan 91). 172

Para explicarmos o conceito de xenofobia que levou esses japoneses a serem desrespeitados como seres humanos, é necessário que voltemos para o ideal de constituição de nação defendido no governo de Vargas nos anos 1930. Na época, o país estava tentando se estabelecer como uma nação aos olhos internacionais e era importante que se criasse se criasse uma ideia do que era ser brasileiro. –De acordo com Carlos

Haag, o Itamaraty não media esforços para contribuir com a teoria de branqueamento da população, corroborando com a política de imigração de Vargas: “Suas sugestões [de

Francisco Campos- ministro da justiça na época] ‘desejáveis’, que se encaixassem no projeto de ‘branqueamento’ da população brasileira da ditadura Vargas. Negros, japoneses e judeus, assim como idosos e deficientes, não estavam nos padrões estabelecidos e eram recusados como “indesejáveis” (81).

Por não serem imigrantes europeus e “brancos” e terem um status de indesejáveis, os japoneses sofreram com atos xenofóbicos pela população brasileira. Após a Segunda

Guerra Mundial, esse sentimento de xenofobia somente foi agravado pelas condições às quais esses imigrantes pertenciam: tinham suas origens no país inimigo (Japão).

Consequentemente, poderiam ser “desumanizados” pela população local uma vez que não pertenciam ao mesmo grupo, mas eram uma ameaça aos brasileiros. Em uma escala quase hierárquica, a população japonesa imigrante se revolta contra seu próprio grupo.

Isto é, esses atos “xenofóbicos” de violência começam a se manifestar de japonês para japonês: o critério, desta vez, é vitorista contra derrotista. Os vitoristas eram os que acreditavam na vitória da pátria amada (Japão), os derrotistas eram os assimilados à

173 cultura brasileira, já não mais defendiam a honra do país de origem, os que haviam traído o Nippon-koku81, por isso deveriam ser eliminados.

3.1.2.3 A perspectiva da narradora: o filtro da traição Analisarei aqui como as narrações distintas no romance e no filme se configuram em traduções e/ou traições entre si e entre o meio japonês. Ao sermos apresentados à trama do filme, a personagem Miyuki se apresenta ao público e conduz a abertura ao escrever em cursiva com a caligrafia kanji (alfabeto japonês derivado do chinês) as palavras: corações sujos, em japonês e português (fig 2). A mulher Miyuki deixa claro que o que está por seguir passará pelo filtro dos seus olhos, uma vez que o papel que enxergamos parte do seu campo de visão e as letras são escritas pela sua mão. Assim,

Amorim “trai” o livro por apresentar a tradução da história pelos olhos de Miyuki.

Morais não coloca um narrador específico no seu texto, além de sua própria voz como onisciente. Logo após, somos introduzidos ao contexto histórico por trás dos fatos que seguirão:

81 Japão. 174

Figura 2: Mulher escreve “corações sujos” em kanji em japonês

A obra de Fernando Morais inicia com o anúncio da derrota do Japão no rádio: “Foi como se tivessem jogado sal na ferida que a rendição, ocorrida em agosto do ano anterior, havia aberto na alma dos japoneses. O temido Exército Imperial do Japão, que em inacreditáveis 2600 anos de guerras jamais sofrera uma única derrota, tinha sido aniquilado pelos Aliados” (10). O autor não define um narrador, então assumimos que seja ele mesmo o filtro da sua narração. Essa transição de rádio, de certa maneira, leva outros cidadãos a pensarem que podiam destratar os imigrantes das colônias. O narrador descreve: “Ao final da irradiação, o lavrador sentiu-se seguro para ir à forra contra os japoneses do bairro, com os quais vivia às turras” (10). Essa segurança garante ao lavrador poder para humilhar os colonos japoneses por suas crenças: “Olha aqui, cambada de bodes: acabou de dar no rádio que o rei de vocês não é Deus merda nenhuma. É gente que nem eu, caga e mija que nem eu. O Japão perdeu a guerra, vocês

175 agora vão ver quem é que vai botar canga em quem” (11). A partir desse fato, desenrolam-se os atos xenofóbicos que ocorrem no texto.

O filme de Amorim inicia com a cena da história do fotógrafo Takahashi tirando uma foto de uma família que não era japonesa-brasileira (fig. 3). O diretor prepara a audiência para focar na história deste personagem, que será o fio condutor do drama.

Desta maneira, essa “traição” do diretor humaniza o fotógrafo (que também é um tradutor)82 e faz com que a audiência crie empatia pelo personagem. Por meio dos olhos de Miyuki observando a vida de Takahashi, a audiência experimenta como era o convívio dos japoneses com a sociedade brasileira, a colônia japonesa e a Shindo Renmei.

Figura 3: Estúdio de fotografia de Takahashi

82 Afirmo que Takahashi era um “tradutor” uma vez que sua profissão configura traduzir em imagem a vida de seus clientes. Esse caráter de tradutor-traidor irá se manifestará mais tarde quando ele questiona sua função dentro da Shindo Renmei.

176

Outro aspecto a ser mencionado é que Amorim escolhe retratar a intimidade do personagem com cenas escuras e sépia. O que pode nos remeter à sua profissão e, também, ao percurso da colônia japonesa no Brasil: a incerteza do destino, a dúvida da volta ao Japão, as lembranças amareladas de uma pátria que não existe mais. De acordo com Edward King: “Corações sujos é uma intervenção autoconsciente dentro do regime de visibilidade que as imagens foram instrumentais em criar. O filme interroga o papel da fotografia na construção do imaginário social nacional” (155)83.

3.1.2.4 A violência entre corações limpos e sujos Mostrarei a seguir como a tradução e traição se configuram em atos de violência contra o livro de Morais e contra a colônia japonesa em si. Essas violências aconteciam em escala hierárquica: a sociedade brasileira punia os japoneses “não assimilados” que, por sua vez puniam os “assimilados” por serem traidores do Japão. Esses atos de traição não ficaram impunes. As sanções contra os japoneses assimilados não poderiam passar despercebidas, uma vez que esses personagens haviam traído a honra japonesa. Segundo seus próprios preceitos de bushido84 a desonra deveria ser paga com sangue. Aqui, veremos como os personagens Miyuki, Aoki e Akemi pagaram com sangue suas aproximações com a sociedade brasileira.

83 “Corações sujos, is a self-conscious intervention into the regime of visibility the images were instrumental in creating. The film interrogates the role played by the photography in the construction of national social imageries” (155).

84 Segundo o portal Japão em Foco, o bushido, ou O Caminho do Guerreiro, era uma espécie de código de conduta usado pelos samurais. Assim, o guerreiro tinha o dever de segui-las a todo custo, não só no campo de batalha, mas como também na vida: “A vida de alguém é limitada, porém a honra e o respeito duram para sempre”.

177

Como já dito anteriormente, Miyuki é quem introduz o contexto histórico e de certa maneira se coloca como narradora da trama. A personagem, também, é quem encerra o filme. Fazendo considerações finais e observando a vida de seu marido, ela reaparece ao final para reafirmar à audiência que a história que eles acabaram de ver foi filtrada majoritariamente pelos olhos dela (fig 4). Ela narra/ traduz à audiência a história de seu povo, traindo assim a confidencialidade da Shindo Renmei e da colônia japonesa.

Por traduzir essa história para a sociedade brasileira, a narradora acaba sofrendo consequências: a perda do seu amor.

Figura 4: Miyuki olha para seu marido ao fundo

Assim, segundo a leitura das obras homônimas, o japonês que é assimilado à sociedade brasileira tem que sofrer alguma perda pessoal. Para lavar a desonra que os assimilados haviam cometido, era preciso limpar o “coração sujo” com sangue pois a sociedade imigrante japonesa ainda era regida pelos princípios japoneses. O código de honra formador da sociedade baseava-se em preceitos do bushido, ou o código de honra 178 samurai. Para compreender melhor, é necessário pensarmos sobre a ideia de honra sobre a qual a sociedade japonesa está baseada. Segundo Célia Sakurai:

Os líderes Meiji habilmente mesclaram passado e futuro na estratégia de

construção da modernidade japonesa. Em torno da concepção do Império do

Grande Japão, sedimentaram-se ideologicamente os interesses da nação em

formação em conformidade com os outros do Estado. Houve uma “capitalização

do passado”, como diz Lévi-Strauss, no sentido de glorificar a história do povo

japonês para fomentar o orgulho nacional. O alicerce da argumentação baseava-se

na ideia da uniqueness, exclusividade, da cultura japonesa e a história foi

amplamente usada para justificá-la (146).

A história que foi oferecida a esses imigrantes, que foram criados em solo japonês, foi a de um passado glorioso, do qual deveriam orgulhar-se. Desta maneira, destratar a nação é ferir e violentar a honra pessoal desses sujeitos, o que acarreta uma necessidade de vingança, a ideia de “lavar a honra”, que era praticada pelos samurais.

O segundo traidor ao qual somos apresentados no filme é Aoki85. No romance de

Morais, o personagem é chamado para interpretar o interrogatório entre a polícia violenta e os japoneses presos em Tupã, uma cidade do interior de São Paulo86. Mais uma vez, podemos observar a escala hierárquica da violência: brasileiros – japoneses – assimilados. Neste caso, temos o primeiro nível: de brasileiros para japoneses. Ao avistar

85 No texto de Morais, este personagem aparece primeiro, pois não temos a narradora. Ele também aparece com o nome de Jorge Okazaki.

86 A história de Fernando Morais se passa especificamente em Tupã, no interior de São Paulo, de janeiro de 1946 a fevereiro de 1947.

179 a bandeira japonesa hasteada em comemoração ao ano novo japonês87, o cabo Edmundo

Vieira Sá -conhecido pela truculência com a qual tratava os japoneses- sente-se no dever de invadir a festa e acabar com a reunião, uma vez que eles estavam quebrando as leis88.

Era o dever dele como policial manter a ordem e cumprir as leis estabelecidas, mas era um prazer pessoal agir com violência desnecessária contra os japoneses. De acordo com o romance:

Conhecido na colônia pela truculência com que tratava os japoneses, Edmundo já

chegou dando voz de prisão a quem via pela frente. Enquanto gritava e distribuía

tapas nos atônitos convivas de Koketsu, deu ordens para que fosse apreendido

tudo o que pudesse ser considerado “prova do crime”: cadernos infantis escritos

em japonês, livros escolares e até pequenos oratórios xintoístas. O cabo reservou

para si a honra de capturar o troféu da expedição: a bandeira japonesa (11).

87 O ano novo no Japão era contado a partir do início do reinado de um imperador. No caso, era a comemoração de anos de reinado de Hirohito.

88 Em uma transcrição, Morais mostra: “Em face da ruptura das relações diplomáticas do Brasil com a Alemanha, Itália e Japão, faço público que ficam os súditos destes últimos países, residentes neste estado, proibidos: — Da disseminação de quaisquer escritos nos idiomas de suas respectivas nações; — De cantarem ou tocarem hinos das potências referidas; — Das saudações peculiares a essas potências; — Do uso do idioma das mesmas potências, em concentrações, em lugares públicos (cafés etc.); — De exibir em lugar acessível, ou exposto ao público, retrato de membros do governo daquelas potências; — De viajarem de uma para outra localidade sem salvo-conduto fornecido por esta Superintendência; — De se reunirem, ainda que em casas particulares, a título de comemoração de caráter privado; — De discutirem ou trocarem idéias, em lugar público, sobre a situação internacional; — De usarem armas, mesmo que hajam anteriormente obtido o alvará competente, bem como negociarem com armas, munições ou materiais explosivos ou que possam ser utilizados na fabricação de explosivos; — De mudarem de residência sem comunicação prévia a esta Superintendência; — De se utilizarem de aviões que lhes pertençam; — De viajarem por via área sem licença especial concedida por esta Superintendência. Os salvo-condutos serão fornecidos todos os dias úteis, das 9 às 11 horas — das 14 às 18 horas e das 21 às 23 horas. Aos domingos das 14 às 17 horas. Olinto de França Almeida e Sá, major do Exército, superintendente da Segurança Política e Social”. (Morais 45-46, grifo meu) 180

A legalidade com a qual o cabo trata violentamente os japoneses é uma pequena demonstração das opressões que esse grupo sofreu. A partir do momento no qual uma força de autoridade recebe o poder para destratar um grupo minoritário, essa permissão estende-se de certo modo à sociedade como um todo. Deste modo, era aceitável para a sociedade brasileira rechaçar e oprimir os japoneses (tanto assimilados quanto não- assimilados). O cabo sabia, particularmente, que ele feriria a honra japonesa ao defraudar sua bandeira. Para ferir a honra japonesa, o cabo Edmundo lava as botas com a bandeira japonesa: “‘A bandeira é sagrada, é? Pois olha aqui o que eu faço com a sua bandeira, seu bode fedorento: limpo merda de vaca da minha bota!’ Agachou-se e, às gargalhadas, esfregou o pedaço de seda branca e vermelha nos coturnos imundos, enquanto dava ordens para seus subordinados” (12).

No filme, Amorim retrará a mesma situação, cometendo algumas pequenas

“traições” na sua tradução em fita. No filme as condições que levaram os japoneses a fazerem uma reunião são diferentes. Não é uma comemoração de ano novo, mas sim uma reunião do início da Shindo Renmei. Os policiais não sabem do que se trata a reunião, mas eles sabem que os japoneses não poderiam se aglomerar em grupos de 3 ou mais.

Desta maneira o cabo Garcia decide interromper a comemoração, quebrando itens, molestando as crianças, arrancando as medalhas de guerra do peito do coronel

Watanabe89, e desonrando a bandeira (fig. 5):

89 O coronel do livro chama-se Kikawa, e o cabo do filme é nomeado Cabo Garcia. 181

Figura 5: Soldado limpa as botas com bandeira japonesa

Após ser humilhado, o coronel decide exigir vingança contra as autoridades brasileiras pedindo a morte do cabo Edmundo/ Garcia. O coronel, então, convoca sete japoneses que tinham relação com a Shindo Renmei e que tinham um passado como samurais para levar vingança ao cabo. Quando percebem que seu plano falhou, os sete samurais de Tupã são presos e levados à delegacia, onde vão prestar depoimento. Como nenhum deles fala português, a polícia chama Okazaki (livro)/Aoki (filme) para colaborar com a investigação e traduzir para os policiais. Desta maneira, o destino do personagem estava traçado. Okazaki estava com o “coração sujo,” era um traidor: “Nenhum deles tinha dúvidas: Jorge Okazaki estava a serviço da polícia, contra o Japão” (21).

No filme de Amorim, temos todos os samurais revoltados contra Aoki por colaborar com a polícia (fig. 6):

182

Figura 6: Personagem japonês acusa compatriota de ser traidor

Neste segundo exemplo de violência (japoneses vitoristas contra japoneses derrotistas, ou assimilados), a lógica do grupo era polarizada: ou o sujeito era patriótico e defenderia a honra do Japão contra as mentiras do inimigo, ou ele estava a serviço do inimigo contra o

Japão. No livro de Morais vemos:

Não fosse sua aparência asiática, Jorge Okazaki podia ser visto como um perfeito

ocidental. Cristão, apaixonado pelo Brasil, ele nunca escondera o desprezo que

sentia pelos militantes da Shindo Renmei e por suas idéias exóticas. Dono do

maior escritório de contabilidade da cidade, ele era guarda-livros do homem mais

rico e poderoso de Tupã, Luiz de Souza Leão, de quem havia se tornado

compadre anos antes, quando o patrão batizara sua filha. Além de ter o perfil

típico de um makegumi, a colaboração escancarada de Okazaki com a polícia o

convertera no inimigo número um da Shindo na cidade (270).

183

Mesmo que o personagem tenha sido forçado a colaborar com a polícia, ele havia traído seus compatriotas e seu país de origem e deveria “pagar com sangue”. Deste modo, a

Shindo Renmei arquiteta o plano para assassinar Okazaki/Aoki por sua tradução.

Figura 7: Espada do personagem Takahashi ao assassinar o personagem Aoki

Takahasi (personagem samurai) assassina Aoki com um golpe de espada (fig. 7).

Ele o fere para que seu sangue lave sua desonra, remetendo-se mais uma vez ao código de honra samurai. O uso da espada samurai no filme implica a preservação das tradições e, ao mesmo tempo, exemplifica como essas mesmas práticas culturais podem

“assassinar” um indivíduo que não as segue. Entretanto, no livro de Morais, Jorge

Okazaki é assassinado com um tiro por outro militante da Shindo Renmei. A diferença no uso das armas pode ser vista como uma metáfora entre uma “colônia” japonesa que mantem as tradições trancadas “a sete chaves” e outra que incorpora adaptações, como o uso de armas de fogo. Aqui temos duas dinâmicas sendo representadas: o japonês

184 assimilado deveria morrer para pagar sua desonra contra o Japão; e a tradução/traição entre livro e filme.

A terceira traição para a qual quero chamar atenção é a da menina Akemi. A personagem não está presente no texto de Morais, é uma criação do diretor Vicente

Amorim. Akemi se insere na dinâmica de violência nas duas categorias: violência contra assimilados e contra japoneses por si só. Ela será uma peça fundamental para entendermos a polarização da identidade japonesa no Brasil através do questionamento de pertença e as consequências para os japoneses assimilados que questionam sua identidade.

Akemi é apresentada ao público junto ao fotógrafo Takahashi90. Na primeira cena do filme, vemos o personagem preparando uma família brasileira para ser fotografada.

Como Takahashi não fala português, ele precisa de uma assistente: a menina Akemi (fig.

8). Ela é a intermediária entre o mundo da colônia e a sociedade brasileira. Transitando entre os dois mundos, ela fica suscetível a questionamentos de identidade e pertença.

Exatamente por isso, ela acaba por sofrer consequências violentas por envolver-se com o

90 Takahashi é o personagem samurai que assassina Aoki e, também, é o amor de Miyuki e o fotógrafo do início do filme.

185

Brasil e trair a colônia.

Figura 8: Profissão do personagem Takahashi

Akemi é uma criança que cresce mediando entre a colônia japonesa e a sociedade brasileira. A lei brasileira era que todas as crianças deveriam ir para a escola brasileira e aprender português. Cabia a colônia transmitir o “modo de vida japonês” às crianças. Era comum muitas delas aprenderem japonês em escolas clandestinas que funcionavam durante a madrugada91, uma vez que (para os pais imigrantes) aprender a língua japonesa era mais importante do que o português. Essa mediação é manifestada nos questionamentos frequentes da personagem sobre se sua identidade é brasileira ou japonesa, como nas imagens abaixo (fig. 9):

91 Segundo o portal Grupo Escolar: “As crianças eram educadas em escolas japonesas fundadas pela comunidade. A predominância do meio rural facilitou tal isolamento. Cerca de 90% dos filhos de japoneses falavam japonês em casa. É de notar que muitos brasileiros de origem japonesa ainda possuem dificuldades em falar o português”.

186

Figura 9: O personagem Takahashi explica para a personagem Akemi que ela é japonesa

Figura 10: Escola japonesa na colônia de Tupã

Akemi sempre está sendo lembrada por outros japoneses que ela é japonesa e por isso deve falar japonês. Porém, quando a polícia invade a escola, é ela que se comunica

187 com os policiais em português e traduz para sua professora. Ela é a “Malinche”92 da colônia japonesa, que permite a comunicação entre o “conquistador” brasileiro e o povo imigrante japonês e, também, carrega em si o fardo da tradução/traição.

Na figura 10 vemos o questionamento da criança pois ela não entende por que devem ir à escola japonesa se essa prática era proibida no Brasil. Em seguida Akemi pergunta à colega: “Kiokochan, você é japonesa ou brasileira”? Logo após essa pergunta, a polícia invade a escola e confisca os livros. Como era proibido ensinar o japonês, eles precisariam queimar todo o material. A professora não falava português, então a única criança que conseguia se comunicar com o policial era Akemi:

Figura 11: Professora protege os alunos da polícia

92 La Malinche foi uma indígena da costa do Golfo do México que acompanhou o conquistador Hernán Cortéz e teve o papel de auxiliadora da conquista do México, pois falava ao menos três línguas. Como explica Vickie A. Hall: “Hernán Cortés conquered the Aztecs and established Spanish occupation in what is modern-day Mexico with the indispensible help of one woman, the native Aztec, Doña Marina or Malintzin. Immortally known as la Malinche, this controversial woman advantageously wielded language as a sword as an interpreter for Cortés. Even though she is still despised by many five-hundred years later, Todorov paints a favorable picture of la Malinche as a survivor” (20). 188

Enquanto Akemi traduz (fig. 11), ela constantemente olha para o chão e parece envergonhada da sua ação. Na montagem da cena, ao passo que ela faz a tradução, os materiais estão sendo apreendidos e a escola e a professora estão sendo reprimidas.

Ao passarmos para a cena da queima dos arquivos, vemos os alunos em frente à fogueira observando uma parte da sua identidade sendo queimada. A violência contra o seu posicionamento ideológico no mundo reflete as repressões que a colônia estava enfrentando na época. O diretor enfoca a fogueira e o policial em primeiro plano, e a professora e os alunos no plano de fundo. A desobediência às leis brasileiras resultava em uma queima de arquivo que nos remete ao sistema de violência hierárquica: ela vai de brasileiro para japonês, e de japonês para japonês assimilado.

Figura 12: Alunos observam seus livros queimando na fogueira

189

Akemi observa sua identidade japonesa sendo queimada na fogueira, porém ela não o faz em silêncio (fig. 12). Ela escolhe cantar um furusato93, que é uma cantiga infantil que fala sobre a saudade da terra natal e a esperança de retorno algum dia. Mesmo que a personagem faça questionamentos sobre qual lado ela deve pertencer, Akemi acaba afirmando sua identidade japonesa sobre a brasileira ao cantar a cantiga contra o ato de repressão do policial.

Por haver cometido uma traição contra a colônia, a personagem é “punida” com a mudança para uma cidade e morte de seu pai Aoki (nosso segundo traidor). A menina é privada do contato com a colônia de Tupã após revelar à professora que seu pai seria morto. Por medo, sua mãe decide fugir para uma cidade grande com a menina, que deixa para trás a memória de seu pai e suas memórias de criança. Ela é punida com a privação do contato com sua cultura e a comunidade japonesa. Por ser assimilada, e transitar entre ambos os mundos, ela acaba sendo rechaçada por um deles e a ela só resta habitar o outro lado.

3.1.2.5 Considerações gerais sobre uma aculturação violenta Vemos que os pontos de contato são pontes de entrada e saída de violência por meio da tradução/ traição. Ao traduzirmos romance em fita vemos o comprometimento de diretor e escritor. Neste sentido, Amorim comete certas “violências” contra a obra de

Morais, entretanto o filme não se propõe a englobar os conceitos do livro em sua

93 Furusato também é uma palavra japonesa que significa casa ou cidade de origem. Segundo Philip Seaton: “Within this process, family, friendship group or furusato identities are just three of the many identities that may be employed, but they are significant for being based on the closest emotional, biological/social and spatial bonds that human beings possess” (4).

190 totalidade. Na narração de Miyuki, estabelecemos uma ponte entre audiência e história por meio de uma intermediária, entretanto ela precisa sacrificar seu casamento para oferecer essa “tradução”. Aoki é o único personagem correspondente entre romance e fita, entretanto sua tradução tem desfechos diferentes em ambos os meios: em um, é assassinado a tiro e em outro morre dramaticamente pelo samurai Takahashi. Porém, é

Akemi que sofre a perda da sua identidade japonesa. Ao transitar entre Brasil e colônia, ela é rechaçada do círculo japonês por assimilar-se à sociedade brasileira, traindo assim, mais uma vez o Japão.

Percebemos, assim, que texto e filme evidenciam significantemente o conceito de fidelidade de adaptação cinematográfica de Stam e o conceito de fidelidade na tradução literária de Borges. Como acontece entre texto e fita em Corações sujos, somente pode haver certo tipo de “fidelidade” à própria leitura de um texto e traduzi-lo em fita significa inevitavelmente optar por “trair” alguns aspectos e ser “fiel” a outros.

A metáfora da tradução/traição se configura em realidade na comunidade japonesa uma vez que a assimilação/aceitação da cultura brasileira era vista como perda.

Devido à história da imigração japonesa no Brasil, criou-se o consenso de que uma vez que os indivíduos migrantes que se assimilarem ao novo país, eles não poderiam mais voltar ao Japão sendo visto como cidadão. Eles seriam traidores da pátria e perderiam seu status de integrante à cultura japonesa. Por isso a interação com a sociedade brasileira era vista como algo perigoso a ser evitado e que poderia acarretar consequências sérias e permanentes a quem o fizesse.

191

3.2 Cine-narrativas peruanas: a escassez da representação

Para iniciar minha discussão sobre as cine-narrativas peruanas nikkeis, é necessário explicar que há uma escassez de produções ficcionais que tratam do tema exclusivamente. A representação da identidade japonesa ou nikkei por vias cinematográficas ou telecomunicativas não é tão desenvolvida como no Brasil uma vez que esses mesmos veículos carecem de investimentos similares nos mesmos setores que no Brasil. Então, as poucas produções que tratam de processos imigratórios japoneses ao país são geralmente de cunho documental ou produzidas no Japão. Isto é, essas produções são importadas do Japão e traduzidas para espanhol. Não são produzidas por nikkeis sobre suas próprias trajetórias. Consequentemente, há um volume de material maior da parte brasileira do que da parte peruana.

Por outro lado, essa mesma disparidade simboliza o estágio de integração/assimilação das comunidades nikkeis aos países que pertencem. Enquanto no

Brasil percebemos a necessidade de se contar e recontar excessivamente a história da imigração japonesa para que sua identidade não se perca na evolução das novas gerações, no Peru parece não haver o interesse em produzir material audiovisual que cubra esse campo histórico pois ele já é parte da história da composição nacional.

Além do filme de Kaori Flores Yonekura, há produções menores em canais de televisão e de YouTube que tratam brevemente da história da imigração japonesa ao país como parte da história nacional. Ainda há outras produções que tratam de aspectos sobre a vida nikkei no país, como Chancay Nikko (2017), produzido por Onigiri Producciones, que conta a história do colégio peruano nikkei mais antigo do norte do país. De fato, o

192 canal de YouTube “História Peruana” disponibiliza um episódio televisivo feito para o canal televisivo Sucedió en el Perú sobre os japoneses e como esses fazem parte do entendimento de história nacional. Sendo assim, comentarei brevemente sobre essa produção após a análise de Nikkei.

3.2.1 Nikkei (2011), de Kaori Flores Yonekura

A história de Nikkei (2011) começa quando Kaori Yonekura Flores, diretora e produtora, encontra uma foto de indivíduos japoneses vestidos com trajes tradicionais rurais japoneses comendo arepas94. A partir desse momento, a diretora decide que iria documentar a trajetória de sua família como uma metáfora da imigração japonesa para as

Américas (“It’s good to say”). Desde uma estética pessoal, Kaori foca no processo migratório de seus avós que foram do Japão para o Peru e, depois, para a Venezuela. A maioria do documentário se passa no Peru, e uma porção final termina de representar a imigração final da família para Venezuela, portanto, focarei minha análise na porção que engloba o Peru. O motivo de incluir esse documentário que se passa parcialmente no país foco do meu estudo é pela falta de material audiovisual e cinematográfico que discuta a imigração japonesa para o país. Ainda, os materiais existentes focam em testemunhos pessoais. Entretanto, o material de Kaori Flores Yonekura apresenta uma visão global do processo imigratório. Assim sendo, a história não é somente de seus avós, mas também uma forma de recuperação/ compreensão de sua própria identidade.

94 Arepa é um prato tradicional do norte da região andina da América Latina que data desde os tempos pré- colombianos.

193

Kaori é uma diretora e produtora venezuelana com descendência japonesa. Kaori foi criada por sua avó em um ambiente japonês na Venezuela e tem orgulho de sua ancestralidade. Ela afirma na entrevista que deu a Enrique Higa Sakuda: “Tenho que abraçar uma identidade para evitar uma incerteza. Não sou nem japonesa nem completamente venezuelana; ao invés, sou nikkei. Foi nesse momento que eu entendi que ser nikkei é estar entre a terra onde você nasceu e o lugar da sua descendência. Acredito que seja ok dizer ‘sou nikkei’ porque você é parte de algo” (“It’s good to say”)95. Na sua busca por sua identidade, ela acaba refletindo sobre o senso de pertencimento no filme

Nikkei. Ao tentar compreender suas origens enquanto trabalha com a ideia de pertença a uma comunidade, Kaori tenta resgatar a memória de seu avô pelo filme. Nikkei é um filme que não tenta retratar ficcionalmente a memória e o legado da comunidade japonesa dentro do contexto peruano. Digo ficcionalmente, pois a diretora organiza o documentário através de uma linha narrativa de busca. O que o torna uma “história contada”. Apesar do personagem principal acabar migrando do Peru para a Venezuela, há uma parte importante e relevante de sua história que acontece no Peru. As interações com a comunidade peruana moldaram a maneira como o avô da diretora e sua família se relacionaram com a sociedade e cultura que os rodeavam.

Quando perguntaram sobre a importância de manter a memória da imigração viva

à diretora, ela afirmou: “O que eu realmente acho admirável é que há um lugar (Centro

95 “I have to embrace an identity to avoid uncertainty. I am neither Japanese nor completely Venezuelan; rather, I am Nikkei. It was at that moment that I understood that to be Nikkei is to be between the land of your birth and your heritage. I believe it’s o.k. to say ‘I am Nikkei’ because you are part of something” (“It’s good to say”).

194

Cultural Nipo-Peruano) que visa manter a identidade nikkei de alguma maneira; não há necessidade de analisar algo que sempre esteve presente: o que significa ser nikkei... Eu acredito que não deveríamos nos fechar, mas que sim deveríamos manter nossa cultura”

(“It’s good to say”)96. No caso da afirmação da autora, percebe-se que a maneira como ela encara sua condição nikkei vai na direção oposta das palavras de Oscar Nakasato. O autor brasileiro afirma a dualidade da identidade, a reclusão da identidade nipo-brasileira e a dificuldade de relacionamento com a sociedade brasileira. Já Kaori encara sua identidade japonesa como algo que sempre esteve presente, algo que não necessita de uma análise separada, pois o nikkei sempre esteve presenta na sociedade peruana. A diretora não concorda com o isolamento japonês da sociedade, mas afirma que é preciso que se chame atenção para essa parte da sociedade que está tão entranhada a ponto que não se destaca como cultura imigrante. Ou seja, no caso do Brasil temos um grupo imigrante com uma dualidade identitária, uma dupla camada na qual o sujeito transita diariamente entre o Japão pré-imigração e o Brasil atual; no caso do Peru, há a falta de separação entre uma identidade e outra, isto é, a comunalidade da faceta japonesa na sociedade peruana é tal que há a necessidade de se chamar atenção para a diferença devido ao tamanho entrançamento entre ambas identidades97.

96 “What I really find admirable is that there is a place (Japanese-Peruvian Cultural Center) that seeks to maintain the Nikkei identity in some fashion; there’s no reason to analyze something which is always present: What it means to be Nikkei…. I believe that we should not close ourselves off, but yes, we should maintain our culture” (“It’s good so say”).

97 Ser nikkei é uma forma de ser peruano, enquanto no Brasil ora se é “japa,” ora se é brasileiro.

195

A razão pela qual escolhi esse documentário que parcialmente retrata o Peru em sua linha narrativa deve-se à escassa produção cinematográfica peruana com foco nikkei.

Focarei minha análise nas partes do filme que retratam a migração do Japão ao Peru.

Nikkei é o primeiro documentário que retrata a história da imigração japonesa enquanto, ao mesmo tempo, segue uma linha narrativa (como no exemplo do livro de Fernando

Morais). Diferentemente de Gaijin e Corações sujos, que foram narrações fílmicas feitas com melhores recursos financeiros, o filme de Kaori Yonekura Flores, por sua natureza documental, não necessitou de tanta produção. Além de Nikkei, há alguns documentários disponíveis no YouTube sobre a vida do escritor Augusto Higa Oshiro e sobre o poeta

José Watanabe, mas não há uma produção cinematográfica peruana que seja feita ficcionalmente para retratar a história da imigração. Ou seja, a cinematografia peruano- japonesa é essencialmente documental, enquanto no Brasil, há um balanço entre produções documentais e ficcionais que retratam a história da vinda dos japoneses para o país.

O processo de imigração para os japoneses no Peru não foi o que eles esperavam quando deixaram o porto de Yokohama até o porto de Callao. Na tentativa de conversão de interesses entre as situações econômicas do Japão e do Peru, o “escoamento” da população excessiva e economicamente agonizante da pátria nipônica até a América

Latina beneficiava mutuamente ambos países. O Peru, passando por uma mudança na configuração da mão de obra básica devido à abolição da escravidão, encontrava-se necessitado de lavradores (Takenaka 82). No artigo de Ayumi Takenaka, entendemos que o Peru foi um dos primeiros países da América Latina a apresentar um crescimento

196 econômico que é resultado direto da expansão industrial da civilização europeia. O boom industrial da Europa forçou os países produtores de matérias primas (países da América

Latina) a passarem por uma revolução agrícola para poderem acompanhar o suprimento de material. O Peru, acompanhou essa expansão e complementou a falta de mão de obra ao ser o primeiro país da América Latina a abrir as portas para a imigração japonesa

(após os EUA não mais aceitarem imigrantes do Japão).

Para a análise de Nikkei, é importante que olhemos também para a situação da imigração japonesa na Venezuela (não só das primeiras levas, mas também dos casos de

“imigração de segunda-mão”, nos quais imigrantes japoneses que estavam em outros países da América Latina, como no Peru, imigram para a Venezuela). A imigração de sujeitos japoneses à Venezuela não teve um impacto considerável antes da Segunda

Guerra Mundial. De acordo com o artigo “Historia de los inmigrantes japoneses en

Venezuela antes de la Segunda Guerra Mundial”, de Shigeru Noguchi, entendemos que o processo imigratório para o país ocorreu bem tardiamente quando comparado ao Brasil e ao Peru:

En 1928 llega a Venezuela el primer inmigrante japonés, el Sr. Seijiro Yazawa.

Sin embargo, en este país no se observó una inmigración masiva de japoneses

como se registraba en otros países latinoamericanos, principalmente Brasil, Perú y

México, debido a la ley venezolana de inmigración y colonización de 1894 y sus

modificaciones, que no aceptaba ni otorgaba ningún derecho a “los individuos que

no sean de raza europea”. Esta condición jurídica obligó a los japoneses

interesados a entrar a Venezuela sin la ayuda del gobierno imperial. (28)

197

Deste modo, eram poucos os japoneses que diretamente imigraram para a Venezuela. O artigo ainda menciona que os japoneses que migraram nessas condições não passaram de trinta. O estabelecimento de uma comunidade forte e a esperança da sincronização entre o novo grupo migrante e a sociedade venezuelana também não ocorre tão cedo quanto ocorreu no Peru ou está ocorrendo no Brasil.

Assim como em outros países, o período da Segunda Guerra Mundial foi conturbado para os sujeitos que pertenciam aos países membros do Eixo. Com várias sanções aos seus negócios, línguas e práticas culturais, os japoneses na América Latina

(incluindo Venezuela, Peru e Brasil) sentiram-se ameaçados e acuados em uma posição totalmente desprivilegiada de qualquer poder sobre si mesmos. Apesar das sanções que sofreram na Venezuela, o grupo de japoneses presente no território manteve-se forte98 devido a um sistema de cooperativismo e integração entre os sujeitos que se isolaram dentro de seus próprios grupos para se protegerem. Por não ter uma política tão violenta com relação às sanções e perseguições a japoneses, a Venezuela acabou por ser o refúgio de vários imigrantes japoneses vindos de outros países da América Latina, como no caso dos avós de Kaori Yonekura Flores.

Já no cenário peruano durante a Segunda Guerra Mundial, as sanções aos imigrantes do Japão foram as mais severas quando comparadas às do Brasil e Venezuela.

Isso se deu devido à outras discriminações que esse grupo sofreu antes mesmo da explosão da Guerra e da implementação das sanções aos imigrantes dos países do Eixo na

98 De acordo com Norbert Molina Medina: “A pesar de ello, pequeños grupos de japoneses consiguieron incorporarse al modo de vida de los venezolanos.” (Medina 14)

198

América Latina. Após fugirem das fazendas nas quais trabalhavam, os japoneses migraram para Lima e Callao, trazendo sua cultura e língua e abrindo vários negócios, entre os quais barbearias e salões de cabeleireiros. Devido a sua organização e a união de sua comunidade, o crescimento econômico desse grupo ocorreu rapidamente o que acarretou o desenvolvimento de ressentimentos contra os japoneses. Medidas discriminatórias começaram a ser implementadas e chegaram ao ponto da explosão da

“guerra racial” de 1940 (Takenaka 86-87). Ainda segundo Takenaka:

Em maio de 1940 uma multidão de manifestantes liderada por estudantes saqueou

negócios e casa japoneses no centro de Lima um após o outro. Durante um dia

inteiro de saques, mais de 600 estabelecimentos – quase todos japoneses em Lima

– foram danificados (Peru Shimpo, 1975); dúzias ficaram feridos e um japonês foi

morto. A polícia falho em intervir. Os danos somaram mais do que US$1.6

milhão (Gardiner, 1975; Peru Shimpo, 1975). Considerando a extensão e os

danos, esse foi o pior tumulto da história peruana. Ainda, foi o primeiro motim

racialmente motivado contra uma população específica. De acordo com oficiais

peruanos, os manifestantes eram em sua maioria de classe baixa agindo por inveja

do sucesso econômico japonês (Connell, 1995). Quaisquer fossem seus motivos, a

manifestação tornou-se um símbolo de ódio racial. (93)99

99 In May 1940 a mob of student-led protesters looted Japanese businesses and residences in downtown Lima one after another. During an entire day of looting, over 600 establishments—almost all Japanese businesses in Lima— were damaged (Peru Shimpo, 1975); dozens were injured, and one Japanese was killed. The police failed to step in. The damage amounted to more than US$1.6 million (Gardiner, 1975; Peru Shimpo, 1975). In its extent and damage, this was the worst rioting in Peruvian history. Moreover, it was the first racially motivated riot to target a specific population. According to Peruvian officials, the rioters were mostly lower-class people acting out of envy of Japanese economic success (Connell, 1995). Whatever their motives, the riot became a symbol of racial hatred. (93) 199

Esse quadro de ódio que levou estudantes universitários a depredarem estabelecimentos de proprietários japoneses no centro de Lima ilustra o ressentimento dos cidadãos peruanos contra os novos imigrantes. Apesar de os japoneses terem adotado outra estratégia e começarem a tentar integrar a sociedade peruana, a Segunda Guerra Mundial veio e prejudicou significantemente o estabelecimento da comunidade japonesa no Peru.

Para complementar trajetória histórica dada no início desta tese, vou focar no período anterior ao da Segunda Guerra Mundial e suas consequências sociais para os japoneses no Peru, que foram violentados, deportados e forçados a migrar para sobreviver. É importante ilustrar essa necessidade uma vez que a história da família de

Flores provém da fuga do Peru em busca de melhores oportunidades na Venezuela devido ao assolamento que as tensões pré-Segunad Guerra Mundial trouxe à sua família.

De acordo com Masterson e Funada-Classen, o número de imigrantes japoneses na

América Latina, especialmente no Brasil e no Peru eram grandes com relação a outros países da América Latina, o que teria forçado o Brasil (primariamente) a “fechar as portas” para mais sujeitos provenientes do Japão a partir dos anos 1930 (72). Essa superpopulação imigrante resultou diretamente na instauração do Ato de Imigração de

1936 no Peru que especificamente afirmava que o número de imigrantes de um certo grupo nacional não poderia ultrapassar dezesseis mil indivíduos. Como imigrantes japoneses no Peru já haviam superado esse número, tal lei foi desenvolvida claramente pensando na exclusão desses indivíduos. Os autores afirmam sobre a lei:

200

Uma vez que o número de imigrantes já excedia 16.000 em 1936, o Ato de

Imigração de 1936 foi equivalente à total exclusão de quaisquer futuros

imigrantes japoneses. Ainda mais, a lei proibia estrangeiros de ocuparem mais de

20 por cento de qualquer ocupação urbana ou rural. Claramente mirando nos

japoneses, a legislação não permitiria que os japoneses viajassem para sua terra

natal e retornassem como cidadãos estrangeiros e nem permitia que eles

trouxessem suas famílias da sua terra natal. (152)100

Assim sendo, percebemos que os sujeitos que já estavam residindo no país não tinham escolha a não ser permanecer e aceitar as condições que lhes haviam sido impostas ou fugir para outros países vizinhos e não voltar mais. Aos indivíduos que aceitaram permanecer no país não sobraram várias opções a não ser tentarem se integrar à sociedade para garantir sua proteção física. Diferentemente do Brasil, no Peru não há largas regiões nas quais esses japoneses pudessem estabelecer comunidades fechadas. Assim sendo, foi necessário desenvolver um sistema de comprometimento no qual os sujeitos imigrantes aceitaram se integrar à sociedade peruana em uma escala maior do que no Brasil.

Entretanto, os japoneses que resolveram permanecer no território nacional peruano acabaram desenvolvendo uma identidade nikkei que, nos dias atuais, já é considerada como identidade nacional. Masterson e Funada-Classen citam o comentário do ex- presidente Alberto Fujimori, o primeiro nikkei a se tornar presidente:

100 Since their number already exceeded 16,000 in 1936, the Immigration Act of 1936 was tantamount to the total exclusion of future Japanese immigrants. Furthermore, the law prohibited foreigners from holding more than 20 percent of any urban or rural occupation. Clearly aimed at Japanese, the legislation would not allow the Japanese to travel to their homeland and return as foreigner nationals nor would it allow them to bring their families from their homeland. (152)

201

Dois sentimentos estão combinados dentro dos corações daqueles que pertencem

à comunidade nikkei nos seus países: o respeito pelas tradições culturais de seus

pais, e o amor profundo pela terra que os acolheu e onde nasceram. Entre o

respeito e o amor por nossos ancestrais e as raízes materiais e espirituais em

nossos países, construímos nossas casas e forjamos nossas profissões nas quais o

trabalho duro e os valores de honestidade sempre foram características que nos

distinguiram. Eu pertenço ao caldeirão [melting pot] desses valores. (234)101

Fujimori evidencia o “melting pot” dos valores que já estão presentes dentro da comunidade nacional peruana. Apesar do reconhecimento de seus ancestrais, os japoneses que decidiram permanecer no Peru e seus descendentes contemporâneos nutrem um sentimento nacionalista em sua identidade por sua faceta nikkei peruana. Já no caso da família de Kaori, as sanções impostas pelo Ato de 1936 não foram proveitosas aos seus avós, que decidiram deixar o país sem a possibilidade de retorno.

Kaori Flores Yonekura explica em seu documentário que a trajetória de sua família vem desde o porto de Yokohama até a chegada do seu avô ao Peru. Após seu estabelecimento no país, seu avô (Rinzo) arranjou um casamento por correspondência com sua avó (Kazumi)102 e fugiu da fazenda onde trabalhava para buscar melhores

101 “Two feelings are combined inside the hearts of those who belong to the Nikkei communities in our countries: the respect for the cultural traditions of our parents, and the deep love for the land that welcomed them and where they were born. Between the respect and love for our ancestors and the spiritual and material roots taken in our countries we have built our homes and forged our professions in which our hard work and the honesty of our values have always distinguished us. I belong to the melting pot of these values.” (234)

102 O casamento por correspondência ainda é uma prática muito comum nas comunidades japonesas fora do Japão. Tanto para que nikkeis casem-se com noivas japonesas quanto para que nikkeis casem-se entre si mesmos. 202 oportunidades na cidade. Entretanto, seu estabelecimento na cidade não foi tão bem- sucedido quanto imaginava. Devido às propagandas contra a população japonesa e aos recorrentes atos de violência, Rinzo e Kazumi (mais tarde renomeados de Antônio e

Rosa) decidiram partir em busca de outros lugares mais receptivos: primeiramente

Equador, depois Colômbia, até chegarem à Venezuela.

3.2.1.1 Nikkei como condição e como identidade Nikkei, o título do filme de Kaori, explora o conceito da identidade nikkei, mas também engloba a terminologia que se é usada para descendentes de japoneses no mundo. Assim sendo, é interessante que olhemos para a condição diaspórica pela qual esses sujeitos passam que, ao mesmo tempo em que os enquadra em um grupo específico, une-os longitudinalmente através de nações. De acordo com Takeyuki Gaku Tsuda, o movimento diaspórico (que não é exclusivamente nikkei/ japonês) engloba alguns fatores de reconhecimento entre si:

Assim como a maioria das identidades, a identidade diaspórica é baseada na

afiliação com um grupo ou comunidade social ao qual o indivíduo pertence, nesse

caso, a comunidade diaspórica de co-etnias espalhadas por múltiplos países que

mantém conexões sociais transnacionais tanto com a terra natal étnica quanto

entre elas mesmas. Assim sendo, uma consciência diaspórica consiste-se em dois

tipos de identificação: uma afiliação étno-nacional com a terra natal e uma

203

identificação lateral, pan-étnica, com outras co-etnias dessa diáspora dispersas em

diversas nações. (“Diasporas without a consciousness”)103

A escolha do título de Kaori não é acidental. Ao mesmo tempo em que a diretora enfoca na condição de imigrantes, dos “sem-terras” e daqueles separados da identidade nacional, ela também acaba por unir grupos diferentes de imigrantes originados de uma mesma nação (Japão). Isto é, ao nomear seu filme com uma terminologia que é comum a toda comunidade de expatriados japoneses, ela acaba unindo esses grupos passando por cima das fronteiras nacionais. Essa análise também é uma pequena metáfora para a trajetória de imigração de seus avós que, ao cruzarem fronteiras (Japão-Peru-Equador-Colômbia-

Venezuela) nunca abandonaram sua identidade/ condição nikkei.

Ser nikkei, como já definido por Augusto Higa Oshiro, é uma forma de ser peruano. Ou seja, além das conexões longitudinais através das fronteiras de países, no

Peru, há um fator complementar à identidade nikkei que é, também, a identidade peruana.

Não há uma faceta separatista dentro da identidade nacional nikkei/peruano (ora se é nikkei, ora se é peruano), mas o próprio fato de ser nikkei implica ser peruano e vice- versa. Entretanto, na experiência dos avós da diretora, ser nikkei era pertencer à uma só comunidade que poderia ser móvel/ diaspórica e que sofreu sanções e discriminações que os forçou a deixar o país que havia sido sua primeira escolha.

103 Like most identities, a diasporic identity is based on an affiliation with a social group or community to which an individual belongs, in this case, a diasporic community of co-ethnics scattered across multiple countries who maintain transnational social connections to both the ethnic homeland and to each other. Therefore, a diasporic consciousness consists of two types of identification: an ethnonational affiliation with the homeland and a lateral, pan-ethnic identification with other co-ethnics in the diaspora dispersed across different nations. (“Diasporas without a consciousness”)

204

Em um outro cenário, quando olhamos para Oscar Nakasato, vemos que a identidade nikkei anda concomitantemente e paralelamente à identidade brasileira. Isso é mostrado através dos títulos dos filmes escolhidos nesse trabalho. Como demonstrado na análise do título de Gaijin, a terminologia precisamente ilustra o sentimento de não- pertença à sua comunidade de expatriados e a comunidade brasileira ao mesmo tempo. Já em Corações sujos, o título ilustra a via de mão dupla na qual a comunidade nipo- brasileira estava durante o período da Segunda Guerra Mundial: eram traidores da pátria ao quererem se relacionar com a sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, eram perseguidos por não se integrarem ao Brasil. Seus corações (e suas identidade) estavam permanentemente manchadas com a incerteza da sua pertença identitária.

3.2.1.2 Saindo do Japão: o início da jornada A obra de Kaori enfoca no desenvolvimento de sua identidade familiar atrelada à condição migrante. A diretora desenvolve o seu documentário baseado nas fases de imigração pelas quais seus antepassados passaram. Kaori separa a narrativa em três grandes eventos: as condições que impulsionaram a saída de seus avós do Japão, sua chegada, estabelecimento e tentativa de fixação no Peru e, finalmente, a decisão de sair do Peru e sua peregrinação até chegarem à Venezuela.

Ao dividir seu filme, a diretora opta por usar pequenos haikus104 que ilustram poeticamente a imagem que ela usa para descrever cada parte. Por exemplo, ao iniciar sua viagem ao Japão, Kaori mostra a seguinte imagem:

104 A American Association of Poetry explica que um haiku é uma estética de escrita japonesa que é feita em três linhas com dezessete sílabas escritas em uma contagem silábica de 5/7/5. Também explicam que 205

Figura 13: Haiku que abre o filme Nikkei de Kaori Flores Yonekura

A imagem acima nos mostra um haiku em inglês (a configuração do filme oferece legendas em inglês). A narração desse haiku, entretanto, é feita em japonês. Antes de iniciar sua história, a diretora explica ao espectador que apesar de seu filme ter o formato de um documentário, sua intenção é contar uma “linda história” que se transformará em uma bola de neve. A metáfora usada por Kaori sobre a bola de neve pode ser encarada como uma ilustração verossímil sobre a situação de seus avós (e por consequência de todos os outros imigrantes japoneses) que deixaram sua pátria e sua identidade para trás em busca de novas oportunidades e precisaram se reinventar de acordo com a nação na qual se estabeleceram. No caso dos avós de Kaori, há camadas extras de ressignificação

esses poemas focam em imagens da natureza e enfatizam a simplicidade e a intensidade direta das expressões que usam. (“Haiku: Poetic Form”) 206 em sua bola de neve identitária uma vez que passaram por vários países até decidirem se estabelecer em um lugar fixo (Venezuela) com melhores oportunidades.

Após apresentar a árvore genealógica de sua família, a diretora reflete sobre o que ela entende sobre ser nikkei: ser nikkei não é um conceito estático, ser nikkei é ser o resultado de uma elaboração simbólica e política. Essa construção é sustentada por vários movimentos diaspóricos e identitário. Ayumi Takenaka, no seu artigo “How Diasporic

Ties Emerge: Pan-American Nikkei Communities and the Japanese”, faz uma análise transnacional entre as comunidades de nikkeis que vivem nas Américas em geral (Norte,

Centro, Sul) e elabora algumas considerações:

[...] descendentes de japoneses nas Américas cultivaram laços diaspóricos, não

tanto por causa da marginalização e da vitimização, afirmo, mas por seu status

social elevado e crescente assimilação à sociedade hospedeira bem como a

relação da diáspora com o Japão estar sempre mudando. Como membros bem-

sucedidos, bem integrados aos seus países natais, eles possuíam o recurso de

buscar laços étnicos globais. Ao mesmo tempo, eles, como líderes de instituições

das comunidades japonesas, tinham a motivação para manter suas comunidades

em meio aos crescentes casamentos inter-raciais e o distanciamento do Japão. Em

outras palavras, os líderes das comunidades nikkei tinham ambas vontade e

necessidade de mobilizar seus laços étnicos, precisamente porque eles eram bem

207

integrados – para que pudessem reforçar/assegurar suas comunidades, e seus

status ali, nos seus respectivos países. (1328)105

Deste modo, podemos traçar algumas considerações: há elos entre as diferentes comunidades nikkeis através das Américas, essas comunidades geralmente preservam laços fortes com o país de origem (nesse caso, a ideia de um Japão pré-moderno), essas mesmas comunidades reconhecem a necessidade de integração/sincronização com a sociedade “hospedeira” para que essas pudessem crescer e se proteger. Assim sendo, ser nikkei implica na manutenção das relações com o Japão, mas indica também a busca por maneiras de se integrar à sociedade hospedeira. A forma como se deu essa integração/ sincronismo varia drasticamente entre países. No caso desta análise, as comunidades estabelecidas no Peru sincronizaram-se mais do que as comunidades estabelecidas no

Brasil.

Outro ponto importante que a autora destaca antes de começar a falar do Japão no documentário é o fato de os imigrantes não transmitirem sua identidade histórica aos seus descendentes:

105 [...] Japanese descendants across the Americas have cultivated diasporic ties, not so much because of marginalization and victimization, I argue, but because of their elevated social status and increasing assimilation in the host society as well as diasporas’ changing relationship to Japan. As successful, well- integrated members of their countries of birth, they had the resources to seek global ethnic ties. At the same time, they, as leaders of Japanese community institutions, had the motive to maintain their community amid growing intermarriage and distance away from Japan. In other words, Nikkei community leaders had both the means and the need to mobilize diasporic ties, precisely because they were well integrated - in order to bolster their communities, and their status therein, in their respected countries. (1328)

208

Figura 14: Avós de Kaori que foram para a América Latina

Figura 15: Avós de Kaori que não contaram sobre seu processo de imigração

209

Figura 16: Kaori explicando que sofreu um processo de esquecimento

Antes de partir para a análise dessas imagens, é importante frisar as disparidades das imagens apresentadas aqui. Há a legenda em inglês, o áudio em espanhol, a narração do haiku em japonês, a legenda em letra de forma, mas tanto o haiku quanto os escritos que aparecem no livro de memórias são em letra cursiva. A metáfora da combinação de tantos estilos usados no tratamento visual da história de imigração dos avós da diretora reflete o próprio caminho dos japoneses em sua migração para as Américas. O melting pot explicitado pelo presidente Fujimori, e os laços inter-diaspóricos tanto com outras comunidades da mesma diáspora quanto com a terra natal (Japão) estão presentes nessas imagens: a combinação de vários elementos linguísticos e visuais pinta a audiência um quadro sobre o melting pot do processo de imigração e assimilação no qual vários elementos precisaram coabitar o mesmo espaço rapidamente para garantir a sobrevivência dos imigrantes japoneses em terras estrangeiras. E os laços diaspóricos são 210 mostrados pela conexão entre a apresentação do haiku narrado em japonês e sua legenda em inglês, o que explicita as conexões entre comunidades da diáspora nikkei.

Ao analisar as figuras 14, 15 e 16 e as narrações da diretora, nota-se uma certa melancolia e um sentimento de vazio com relação a sua identidade. Ao olharmos para o conjunto de imagens da família de Kaori e a narrativa sobre o seu esquecimento da origem da sua identidade, sentimos que ela parece não saber como racionalizar/ organizar a raiz da sua auto-imagem e da cultura da sua família. Ou seja, Kaori não está em sincronia identitária com os seus avós, uma vez que a formação das suas identidades diverge grandemente. A prática de não transmitir costumes/ culturas e línguas aos filhos era uma tática empregada dentro da comunidade japonesa na América Latina para garantir a assimilação de seus filhos e descendentes, uma vez que um dos objetivos da vinda dos japoneses para a América Latina era a “colonização japonesa.” Ou seja, como afirma Kingsberg: “Migrantes nas Américas, por contraste, encararam pressões para apresentar uma imagem positiva de um Japão moderno e iluminado ao adotarem costumes ocidentais” (70)106. Então, apesar de as primeiras gerações de imigrantes apresentarem certa aversão à ideia de assimilarem-se, o simples fato de se assimilarem à comunidade hospedeira significaria que estariam honrando o Japão e sua missão de imigração como colonização de outras nações. Ao mostrarem que “adotaram” costumes ocidentais, esses imigrantes tornam-se mais aceitáveis à nação hospedeira, entretanto, as práticas que demonstram fora de suas casas não necessariamente precisam condizer com

106 “Migrants in the Americas, by contrast, faced pressure to present a positive image of a modern, enlightened Japan by adopting Western customs.” (70). 211 sua cultura. Assim como outros grupos migrantes, os japoneses também adotaram a estratégia de demonstrarem integração fora de casa e manter costumes (especialmente religiosos) intactos. Assim, há famílias que mantém o traço significativo da linhagem sanguínea japonesa, mas estão verdadeiramente e completamente adaptados aos costumes, tradições e língua do novo país.

O esquecimento das práticas culturais de sua família sofrido por Kaori é o mesmo esquecimento que permeia a identidade nikkei no Peru (e também as comunidades de japoneses na América Latina em geral). Ao analisarmos materiais literários e fílmicos percebemos que a informação transferida entre gerações é uma informação identitária que remete a uma ideia de um Japão pré-moderno. Assim, a identidade japonesa na América

Latina é permeada pelo espírito de uma sociedade que não existe mais. De acordo com

Tsuda e seu artigo sobre a desconexão dos nikkeis com o movimento diaspórico em geral: “Como uma diáspora ‘econômica’, os nikkeis nas Américas não compartilham de uma memória histórica forte da sua dispersão migratória traumática e perseguida

(diferente de vítimas diaspóricas clássicas), nem criaram uma mobilização política coletiva através de fronteiras ( para estabelecer ou corroborar uma terra natal sitiada) que os ajudaria a manter a comunidade diaspórica intacta através do tempo” (98)107 108.

107 “As an economic "diaspora," the Nikkei in the Americas do not share a strong historical memory of past persecution and traumatic migratory dispersal (unlike classic victim diasporas), nor has there been any collective political mobilization across borders (such as to establish or support a beleaguered homeland) that would help keep the diasporic community intact over time” (98)

108 O autor se refere a grupo mais frequentemente associados a ideia de diáspora como, por exemplo, os grupos africanos e os judeus que têm uma linha em comum que atravessa todo o movimento e as comunidades originadas da diáspora através de países e continentes. O autor afirma que a comunidade “diaspórica” japonesa não carrega as mesmas características, assim sendo, não pode ser considerada totalmente como uma diáspora. 212

Quando vemos a diretora tentando recuperar essa identidade diaspórica (que teoricamente não existe), vemos o argumento de Tsuda ilustrado no fato dela não fazer parte de uma diáspora que possui essa “memória genética identitária”, o que condiz com a afirmação de Kingsberg sobre a necessidade de adaptação ao país hospedeiro (68-69). Ao contrário dos exemplos brasileiros (Gaijin e Corações sujos), o filme de Kaori demonstra que justamente por não conseguirem integrarem-se à sociedade peruana eles foram obrigados a buscar um outro ambiente/ país no qual eles pudessem preservar mais sua identidade e construir uma comunidade mais reclusa.

Kaori começa a descrever sua jornada fílmica enfatizando as raízes que sua família ainda manteria com o Japão na primeira parte de Nikkei e em seguida escolhe contar a travessia do Atlântico até a chegada e o estabelecimento no Peru. Já em uma segunda instância, a diretora escolhe enfocar nas razões pelas quais seus familiares não se assimilaram ao Peru. Por não pertencerem e não conseguirem fazer a transição entre sociedades, por terem sofrido economicamente e serem perseguidos, foram obrigados a buscar outra sociedade na qual eles poderiam se integrar mais facilmente (ou manter sua identidade japonesa intacta por mais tempo).

A diretora começa a falar do Japão, da terra-mãe de seus ancestrais e das raízes de sua identidade na tentativa de resgatar a memória de uma identidade que lhe era latente durante seu crescimento. Kaori explica a história por trás da grande “desova” dos cidadãos campesinos após a restruturação governamental japonesa, o que também afetou a linhagem da sua família. Por serem camponeses, foram obrigados a deixar suas terras para trabalharem como empregados temporários migrantes (decasséguis) em outro país e,

213 ao retornarem, poderem reinvestir o dinheiro estrangeiro na sua própria propriedade/ negócio.

Outro aspecto da jornada da diretora ao Japão é o fato de as imagens escolhidas pela autora retratarem uma mistura de um Japão antigo e da pré-modernização americana com influências ocidentais modernas atuais:

Figura 17: Mulher usando quimono no metrô de Tóquio

214

Figura 18: Japoneses usando roupas americanas dos anos 50 e dançando rock and roll

Figura 19: Kaori explicando que no Japão ela não é nikkei

É importante chamar atenção para esse aspecto do confronto entre antiguidade e modernidade que se confundem dentro do Japão uma vez que a identidade nikkei

215 construída na América Latina está baseada quase que totalmente na ideia de um Japão

“medieval” que foi trazida à América Latina pelos primeiros imigrantes. Assim sendo, a relação que a identidade nikkei tem com sua faceta japonesa provém de um Japão que não existe mais fisicamente, mas somente como memória estrutural que compõe essa identidade imigrante. Quando Kaori viaja ao país dos seus avós e é confrontada com a

“americanização” e a evolução tecnológica do país, sua identidade também é confrontada ao afirmar que “No Japão, ela não é nikkei, ela é gaijin”. Ou seja, apesar de na América

Latina ela ser considerada nikkei (ou japonesa), no Japão ela não pode pertencer àquela identidade nacional (não importam suas características físicas ou descendências/ ascendências) pois a realidade que estrutura sua identidade em parte japonesa não existe mais.

A diretora segue para a cidade onde seus avós moraram antes de partir para a

América Latina e encontra a casa de seu avô. Ao conversar com as pessoas que atualmente moram na casa, Kaori entende que houve uma separação na árvore familiar quando seu avô decidiu partir para outro continente (fig. 20):

216

Figura 20: Senhora em um cemitério japonês explicando que seus avós não estão mais ali

Figura 21: A mesma senhora explica que não pertence àquele lugar

A diretora entende que quando seu avô partiu e deixou o Japão, ele entendeu que deixaria de fazer parte daquele espaço social (fig. 21). A partir desse afastamento a diretora não

217 pode se considerar como pertencente àquele lugar. Por outro lado, Kaori também não se considera totalmente pertencente à Venezuela país que foi o destino final da migração de seus avós, uma vez que ela sente a necessidade de investigar suas raízes e afirma diversas vezes no filme como sua identidade é dividida entre a terra de seus ancestrais, a terra em que vive e todo o “resto” que preenche o meio: Venezuela, Peru e Japão.

3.2.1.3 Assentamento no Peru: desafios de uma vida nova Como já apresentado no primeiro capítulo desse trabalho, a ideia de múltipla identidade provém do sentimento de pertença a ambos e não de uma noção de mútua complementação entre identidades concomitantes. De acordo com Vieira Braga e

Gonçalves: “grupos pós-diaspóricos são caracterizados pelo sentimento de pertença a dois espaços distantes: a terra natal e a nova terra. Esse sujeito é aquele que vive em mais de uma “casa” ao mesmo tempo, ou seja, habita dois espaços culturais diferentes.

Consequentemente, o indivíduo substitui a ideia da volta para a casa pela ideia de transculturação de sua casa (homing)109” (95). Kaori enfrenta uma dualidade bipolar ao retornar ao Japão, mas a outra faceta mostrada no documentário da diretora é, também, como as identidades se complementam dentro de sua árvore familiar. A ideia de transculturação (ou homing) de Vieira Braga e Gonçalves é muito bem ilustrada durante o documentário como, por exemplo, quando Kaori visita a casa de seus parentes no Peru

(fig. 22):

109 Terminologia usada por Vieira Braga e Gonçalves em inglês.

218

Figura 22: Casa sa senhora Kiyoko Higa e sua coleção religiosa peruana e japonesa

Figura 23: Senhora Kiyoko explica o altar do botsudã com referências católicas e budistas

No caso da senhora Kiyoko de Higa (uma das parentes entrevistadas de Kaori), ilustrada nas fotos, percebemos uma sincronização cultural entre as religiões católica e budista 219

(xintoísta) em objetos que decoram sua casa (fig. 23). Quando Kaori entrevista a senhora, percebemos que ela ainda mantém práticas culturais que foram adaptadas para

“funcionarem” no Peru como elementos da cultura peruana, como por exemplo o uso de pisco (invés do saquê), que é uma bebida alcoólica derivada da uva, na tradição de honrar os antepassados e ofertar comidas e bebidas que possam agradar os antepassados: vemos

água, chá e pisco no altar. Na decoração da casa da senhora, vemos imagens de santos católicos em comunhão com pratos, velas e decorações japonesas e budistas. Ainda é importante chamar atenção para a imagem do altar da senhora, “el señor de los milagros”.

A imagem é conhecida por ser um símbolo do sincretismo das religiões africanas presentes no país e do catolicismo. A imagem foi pintada no século XVII por um escravo angolano. Assim, há também um sincretismo junto à sincronia religiosa japonesa. Ao repararmos no altar da segunda foto, notamos que há suportes de vela marcados com elementos da religião xintoísta que significam desejos de boa fé que, nesse caso, estão servindo como uma ponte entre as culturas japonesa e peruana ao também serem usados como suportes de vela para honrar os santos católicos.

A sincronização dos elementos culturais distintos de uma maneira fluida e aceitável dentro de uma comunidade migrante é essencial para que essa comunidade se integre à comunidade hospedeira (por usar elementos da comunidade hospedeira e, ao mesmo tempo, tentar compreender tradições culturais que não lhes são naturais mas que serão parte da sua realidade diária no novo país). Tal sincronia também facilita com que os grupos migrantes sejam aceitos dentro da comunidade hospedeira por trazer elementos

“estrangeiros” que funcionam bem dentro da comunidade hospedeira. Isto é, por fazerem

220 uma transição não tão abrupta, há uma melhor aceitação por parte da comunidade hospedeira em receber o grupo imigrante bem como também há uma transição menos traumática para o grupo imigrante que está tentando se enquadrar à nova cultura/ sociedade. No caso dos exemplos acima, a sincronização entre o uso de pisco para uma cerimônia tradicionalmente japonesa, bem como a montagem do altar católico com elementos da religião budista exemplifica a transição/ sincronização na qual os elementos se misturam sem causarem estranhamento para os sujeitos migrantes e para os sujeitos

“nativos” da nova sociedade.

Afirmo haver uma sincronização e não um sincretismo. De acordo com o conceito de Geraldo José de Paiva: “Entende-se por sincretismo, a partir da etimologia, a reunião provisória de elementos mutuamente estranhos face a uma ameaça iminente” (521), entretanto, a sincronização (especialmente a religiosa) de tradições culturais entre imigrantes japoneses e nativos peruanos não ocorreu de forma tão abrupta em face de uma ameaça iminente. Isso é facilmente notável ao olharmos para a religião católica dentro da comunidade japonesa (dentro do Japão e nas comunidades nikkei). Percebemos que a influência cristã dentro dessa comunidade vem desde a Era Meiji. De acordo com

Shuma Iwa, a presença de missionários cristãos americanos provém desde 1858 quando o tratado de Anistia e Comércio com os Estados Unidos foi assinado, garantindo liberdade religiosa aos americanos presentes em território japonês. Uma vez que essa liberdade estava garantida, a ida de missionários evangelistas tornou-se massiva no país: “Esses missionários trouxeram a Palavra ao Japão e tentaram evangelizar os japoneses ao ensinarem inglês, aprenderem japonês e ao proverem cuidados médicos. Eles também

221 traduziram a Bíblia para japonês” (196)110. Assim, a sincronização de um elemento que não lhes era completamente estranho aos seus costumes diários facilitou com que a comunidade imigrante fizesse a transição de uma maneira mais branda.

Apesar de podermos ver a preservação desses elementos sincronizados dentro das práticas culturais nikkei-peruanas, a diretora nos mostra logo na sequência como essas mesmas práticas estão sendo descontinuadas conforme a modernização avança sobre a cultura não só japonesa, mas também peruana. Kaori foca nas dificuldades da família de agricultores de Héctor Higa que mantém uma plantação de flores a gerações, mas pode perder seu negócio devido à expansão do aeroporto que fica ao lado da sua propriedade.

Essa pequena metáfora nos serve como ilustração sobre a parte “forçada” da integração japonesa à sociedade peruana. Em contraste com a sincronização religiosa, a mudança das práticas agricultoras e de negócios foi forçada sobre os imigrantes japoneses uma vez que seu sucesso econômico estava lhes trazendo problemas. Como explica Funada-

Classen e Masterson: “Assim como em outros lugares da América Latina, a habilidade dos imigrantes japoneses de recrutar recursos e racionalmente integrarem suas atividades econômicas com uma comunidade japonesa maior deu-lhes uma vantagem significativa sobre seus competidores nativos” (65)111. Devido ao seu poder de integração econômico, as práticas de negócios japonesas começaram a ameaçar outros produtores de classe-

110 “These missionaries brought the Gospel to Japan and tried to evangelize the Japanese by teaching the English, learning Japanese, and by providing medical care. They also translated the Bible into the Japanese” (196).

111 “As was true elsewhere in Latin America, the ability of Japanese immigrants to pool their resources and rationally integrate their economic activities within the broader Japanese community gave them a significant advantage over their native competitors” (65).

222 média peruanos, o que levou a uma revolta econômica discriminatória contra esse grupo imigrante: “Sentindo-se fraca e vulnerável durante os tempos de dificuldade econômica, a população de classe média e trabalhadora do Peru aceitou o mito do domínio econômico japonês. Infelizmente, os isseis do Peru foram tratados da mesma forma distorcida que os judeus de outras nações” (66)112. Essa vulnerabilidade levou ao levante de vários ataques a negócios japoneses, o que lhes causou mudanças econômicas significativas.

É importante chamar atenção para o fato de a diretora somente entrevistar sujeitos mais velhos. A escolha dos entrevistados de Kaori, a priori, compreende indivíduos da geração de seus avós ou que passaram pelo mesmo processo que eles passaram. Os depoimentos dos entrevistados enquadram o documentário da diretora em uma categoria nostálgica e conflituosa com sua própria narração. A dificuldade de Kaori em relacionar- se com sua identidade japonesa realça o abismo existente entre as primeiras gerações de japoneses e os nikkeis que descendem deles. O desaparecimento de tradições, a falta de uso da língua e ao sentimento de “gaijin” que ela sente quando visita o país que dá estrutura a sua identidade ilustra o quão longe a diretora realmente está de “ser japonesa.”

Na contramão, há os sujeitos que preservam tradições, práticas culturais e o sentimento de pertença ao Japão nostálgico.

Em última instância, há um desbotamento da identidade japonesa até que ela se integre à sociedade latino-americana (mais especificamente a peruana). Quanto mais gerações, maior o abismo entre a identidade japonesa, a identidade nikkei e a identidade

112 “Feeling weak and vulnerable during difficult economic times, Peru’s middle- and working-class population accepted the myth of Japanese economic dominance. Sadly, the issei of Peru were regarded in the same distorted way as were the Jews of other nations” (66). 223 peruana. Antes de partir para a descrição da vida dos seus avós na Venezuela, Kaori afirma que “ser nikkei é ser um latino-americano mais a combinação de natividades, culturas e pensamentos”.

Figura 24: Kaori escreve sobre ser nikkei e latino-americana

Uma vez que a diretora caracteriza o nikkei como latino-americano pela definição da combinação de nacionalidades, culturas e pensamentos, ela descreve perfeitamente esse grupo migrante e seu processo de integração (fig.24). A combinação de elementos que lhes são familiares e estranhos e a sincronização de tais elementos em uma identidade

única produz o nikkei peruano, o que também é definido por Augusto Higa Oshiro como:

“ser nikkei é uma forma de ser peruano”.

A partir desse momento, a diretora segue retratando a próxima jornada de seus avós que deixaram o Peru antes da Segunda Guerra Mundial em direção à novas oportunidades. Por meio do uso de cartoons e computação gráfica, a autora reconta a 224 migração de seus avós do Peru, para o Equador, depois para a Colômbia e finalmente para a Venezuela. Os motivos que levaram os avós de Kaori a migrar recaem justamente sobre a afirmação de que não lhes foi possível sincronizarem e se integrarem à nova sociedade com sucesso, como foi o caso de outros indivíduos japoneses. Isso se deu ao fato de que os avós de Kaori fugiram das sanções contra a expansão dos negócios japoneses em Lima, que ocorreram “com a desculpa” de que a classe média e os nativos peruanos estariam em desvantagem social e econômica contra esse grupo de imigrantes

(Funada-Classen e Masterson 65)113.

3.2.2 Sucedió en el Perú: o retrato da imigração ao Peru e seus florescimentos

Sucedió en el Perú é um programa documental da televisão peruana (TVPerú) que

é reconhecido pela sua programação cultural e histórica. O programa, apresentado pela atriz e diretora de teatro por Norma Martínez, regularmente retrata eventos e fatos históricos importantes à constituição da nação de uma forma educativa para os telespectadores. Um dos seus episódios conta a história da imigração japonesa para o país e o estabelecimento dos descendentes nikkeis através dos florescimentos artísticos da comunidade. Esse episódio foi dedicado a um dos maiores poetas peruano-japoneses:

José Watanabe.

Através do uso alternado de narrações da apresentadora, entrevista com artistas nikkeis e amostragem de fotografias históricas, o programa compõe uma narrativa

113 Para o propósito desta tese, não avaliarei o restante do filme uma vez que ele foca na vida dos avós de Kaori na Venezuela e seu estabelecimento em sociedade pós Segunda Guerra Mundial.

225 representativa desde um ponto de vista nacional. Isto é, a perspectiva de produção do episódio documental não é japonesa e sim peruana, entretanto, há o reconhecimento de que “é impossível falar de cultura peruana sem mencionar as contribuições da comunidade japonesa” (Martínez). Nesta análise, quero chamar atenção a dois fatores presentes no documental: a criação de espaços para manifestações culturais, a assimilação entre os nikkeis e o Peru e a presença de figuras importantes representativas da comunidade.

3.2.2.1 A materialização da memória cultural A análise da representação dos espaços como forma de manifestação cultural é de suma importância para a análise do vídeo. O episódio de Sucedió en el Perú visa enfatizar a presença maciça de japoneses no país através da observação de monumentos erguidos em sua homenagem e dos espaços criados para a manifestação de sua cultura. Segundo

Luis Aires-Barros, a cultura é uma atividade específica da humanidade que é ligada a criação de objetos materiais que são a expressão desse mesmo fenômeno. Isto é, juntamente às práticas culturas vêm as manifestações materiais dessas práticas que carregam em si um patrimônio intangível (655). O artigo ainda afirma que “Com efeito, qualquer peça do património cultural é um documento polifacetado que possibilita uma leitura polivalente que, inclusivamente, permite averiguar a idiossincrasia dos povos que a fabricaram, a usaram, a veneraram ou a amaldiçoaram” (657). A escolha do documental em enfatizar a presença material da imigração japonesa no país oferece ao telespectador a visualidade de uma presença cultural que não é dissociada da cultura nacional. Ou seja,

226 seu objetivo parece ser o de chamar a atenção para a diferença do povo japonês, uma vez que ela não é expressamente enxergada pela população.

A apresentadora começa contando sobre a história da imigração para o país.

Norma conta sobre as dificuldades da viagem e dos incentivos prometidos aos primeiros pioneiros que chegaram ao Peru. Ao fazê-lo a câmera mostra a apresentadora junto ao monumento instalado na orla da praia de Cerro Azul, em Cañete (fig. 25), em comemoração ao centenário da imigração japonesa. Em seguida, Norma comenta sobre a criação do Cemitério Casablanca (fig. 26):

Figura 25: Norma Martínez em frente ao monumento da imigração japonesa em Cerro Azul, Cañete

227

Figura 26: Cemitério japonês na fazenda Casablanca, no Peru

Após as dificuldades que enfrentaram para chegar ao Peru, muitos japoneses foram confrontados pelas mudanças no estilo de vida e alimentação e acabaram falecendo. Os que permaneceram viram-se no dever de criar um espaço no qual poderiam enterrar seus mortos e prestar-lhes homenagens de uma maneira propriamente japonesa. O Cemitério

Casablanca é exclusivamente japonês até os dias atuais e fica na Fazenda Casablanca, uma das primeiras fazendas e empregar mão de obra japonesa no país.

É importante prestar atenção aos monumentos e espaços presentes dentro da nação pois seu significado enfoca a integração entre os diferentes povos. Quando os imigrantes japoneses criam o cemitério para honrar seus mortos segundo suas tradições, significa que há uma forma de adaptação cultural que parte tanto desses imigrantes quanto do governo peruano. Há uma “aceitação de mão dupla” na qual os imigrantes se adaptam para manifestar práticas culturais com os materiais presentes ao seu redor ao

228 mesmo tempo que a sociedade peruana aceita que isso seja feito dentro de seu território nacional.

O documental ainda enfoca a criação de escolas tradicionalmente japonesas que foram desativadas na época da Segunda Guerra Mundial, mas que posteriormente foram reabertas. Entretanto, sua abertura não acarretou uma educação tradicionalmente japonesa. Mantiveram o mesmo prestígio dentro da comunidade japonesa, mas estabeleceram o currículo de ensino peruano após a Segunda Guerra Mundial. O episódio ainda frisa a abertura de jornais bilíngues peruano japoneses como o Peru Shimpo em

1948, e as revistas Sakura em 1953 e Niko em 1954.

Por fim, chamo a atenção para os monumentos que simbolizam a união entre os países. No documental, a apresentadora comenta sobre as várias visitas dos imperadores japoneses e suas famílias ao país. Deste modo, a câmera registra a tradição imperial japonesa de se plantar pinheiros, que simbolizam longevidade boa sorte e firmeza, a construção de pontes que simbolizam a amizade entre ambos os povos e, também, a construção do monumento em homenagem a Manco Cápac e a cultura indígena peruana por um empresário japonês:

229

Figura 27: Empresário japonês

Figura 28: Estátua de Manco Cápac

Achei importante frisar essa contribuição por parte do empresário japonês (fig.

27) por poder ser vista como a concretização da assimilação à cultura peruana. Um empresário cuja bagagem cultural tecnicamente residiria fora do país e a qual, segundo as tradições japonesas, deveria ser fiel, decide financiar um símbolo cultural do país que o 230

“recebeu”. Acredita-se que Manco Cápac (fig. 28) tenha sido o fundador mítico do império Inca no Peru. Ao considerarmos que a maioria da identidade nacional peruana se baseia sobre sua herança inca, a homenagem feita pelo empresário japonês simboliza concretamente a adoção desses valores históricos pelo empresário e “demais nikkeis” como partes integrantes de sua identidade. Isto é, além da simbologia mitológica inca carregada pela imagem de Manco Cápac, a estátua também carrega a materialização de uma assimilação nikkei ao Peru.

3.2.2.2 Símbolos de integração É possível ver exemplos similares dessa mescla cultural nos sujeitos que os produtores escolhem entrevistar/ retratar: um toureiro japonês (fig. 29) e cantores folcloristas nikkeis. A apresentadora faz questão de perguntar ao toureiro como se deu o desenvolvimento de sua profissão e ele explica que seus pais possuíam uma pequena fazenda e os clientes lhes traziam revistas espanholas sobre as touradas.

Figura 29: Japonês toureiro

231

O sujeito nikkei, influenciado por uma prática da cultura espanhola, desenvolve suas atividades de toureiro em um país que teve sua cultura atual desenvolvida a partir da assimilação das culturas indígenas presentes no território, da cultura espanhola além das demais culturas que imigraram para o país. A imagem acima é uma representação visual da encarnação e da sintetização das várias culturas presentes no Peru.

Destaco também os folcloristas nikkei retratados por serem sujeitos descendentes de imigrantes que se destacaram por conseguirem representar/performar aspectos da cultura indígena peruana. Ou seja, apesar de não serem indígenas, eles recebem o reconhecimento da sociedade peruana por representarem valores tradicionais indígenas.

Eles são Makino Tori, conhecido como o Samurai do Huayno (gênero de música tradicional peruano), e Angélica Harada (fig. 30), conhecida como a Princesinha de

Yungay (distrito peruano). Ambos nikkeis têm sua diferenciação física reconhecida. Isto

é, as pessoas sabem que ambos cantores não são indígenas, porém são reconhecidos dentro de seus gêneros musicais como representantes “autênticos” da cultura peruana.

Figura 30: Angélica Harada, a princesinha de Yungay 232

Esse reconhecimento é um símbolo de como a identidade japonesa e os sujeitos nikkeis são aceitos e incorporados ao tecido identitário nacional.

Por fim, destaco a menção de artistas renomados nipo-peruanos que reconhecem sua “japonicidade”. O episódio documental escolhe frisar os artistas Doris Moromisato e

José Watanabe (poetas), Venancio Shinki e Tilsa Tsuchiya (pintores) e Luis Abelardo

Takahashi (compositor). Além dos artistas mencionados, há também uma faceta culinária que é brevemente mostrada como um dos grandes símbolos da presença da cultura japonesa na cultura peruana como um todo. Chefes como Ciro Watanabe Muñoz e

Mitsubaru Tsumura, grandes nomes da culinária nikkei no país são mencionados como pioneiros na representação da cultura no Peru. Todos os artistas mencionados reconhecem sua descendência japonesa e de certa forma “trabalham” com ela para construir suas peças artísticas. A aparição de tais sujeitos que também se constituem como uma simbologia da identidade nikkei no país pode ser vista como mais uma afirmação do reconhecimento da identidade japonesa já ter sido incorporada ao tecido nacional. Eles refletem sobre o seu lugar/ posicionamento ideológico, identitário, social e constroem um discurso artístico de representação de uma faceta nacional. Não há separação entre arte nikkei e arte peruana, mas sim uma mescla.

3.4 Considerações sobre cinema, imigração e o olhar nikkei

Para finalizar esse capítulo recapitulo as considerações principais que apontei em minha análise. Primeiramente, ao abordar o filme Gaijin percebemos que a maneira com

233 a qual Tizuka Yamasaki retrata o estabelecimento da colônia japonesa no país serve para entendermos como se deu a hifenização da identidade nipo-brasileira. A possibilidade de isolamento em terras distantes e dentro de bairros exclusivos japoneses dentro de São

Paulo permitiu aos imigrantes japoneses adaptarem seus costumes e tradições dentro de uma bolha em outra cultura. Ou seja, a criação de seu homing dentro da sociedade brasileira preveniu a integração deste grupo com outros sujeitos e culturas.

Na continuação histórica do filme Gaijin, vemos como Corações sujos retrata os processos violentos (tanto pela comunidade brasileira quanto pela comunidade imigrante japonesa) separaram ainda mais esse grupo de todo e qualquer contato social com o

Brasil. A perseguição do governo brasileiro, bem como a ameaça dos grupos extremistas japoneses contra qualquer individuo que se relacionasse com a cultura brasileira influenciou a cristalização da identidade japonesa a permanecer de certa maneira

“intacta” e sem “corrupções” externas. Após o final da Segunda Guerra Mundial, quando os japoneses perceberam que o Japão havia de fato perdido a guerra, o sonho de retorno para a casa e o ideal de colonização e respeito ao imperador caíram por terra. Ou seja, a base da identidade migrante japonesa fora do seu país se desmorona, deixando esse grupo migrante ausente de estrutura identitária japonesa. Somente lhes restou, por fim, tentarem se integrar à sociedade brasileira (após vários anos de permanência no país) e recriarem sua identidade.

O processo de recriação da identidade japonesa e depois nikkei dentro do Brasil ainda está engatinhando quando o comparamos ao Peru. No Brasil, por todos os fatores já citados de violência e da existência de espaços seguros para que a identidade seja

234 preservada, e também pelo fato de a base imigratória ao Brasil ser dentro de uma estrutura familiar, a aceitação do estabelecimento permanente dentro do país somente ocorreu muito tardiamente quando comparamos ao Peru.

Ao olharmos para o Peru, há alguns fatores a considerarmos que foram definitivos para que os imigrantes se integrassem ao resto da população: geografia, estrutura familiar imigratória e sanções e perseguições sofridas pelo grupo. Primeiramente, a geografia do país não permitiu aos imigrantes japoneses que saíram das fazendas onde trabalhavam encontrar terras para cultivar ou mesmo para morar. Por causa da composição do terreno e da Cordilheira dos Andes, a formação de comunidades compostas por sujeitos provenientes de uma geografia que não depende de grandes cordilheiras e regiões montanhosas concentrou esses sujeitos todos em áreas planas pois eles não estavam acostumados com o estilo de vida que as cordilheiras exigiam. Em segundo lugar: a estrutura familiar exigida aos imigrantes japoneses pelo governo peruano era totalmente diferente da estrutura exigida pelo brasileiro. Enquanto no Brasil era necessário imigrar dentro de um grupo familiar, o Peru exigia que os imigrantes fossem homens solteiros justamente para tentar evitar algum tipo de revolta ou que a família se tornasse um empecilho para que os homens jovens trabalhassem nas lavouras. Com isso, o casamento entre japoneses e nativos peruanos ocorreu em maior número do que o casamento entre japoneses e brasileiros. E por fim, as perseguições que a sociedade japonesa peruana sofreu os obrigou a integrarem-se de uma maneira não ameaçadora dentro da sociedade peruana, seja pela adoção da língua, pela prática de costumes, pelo casamento inter-racial ou pela sincronização de práticas tradicionais.

235

De acordo com Kingsberg a ideia da transformação da identidade japonesa fora do Japão é algo que escapa a maioria da literatura histórica moderna: “A significância da assimilação como ideologia e política para o ‘Japão’ e os ‘japoneses’ escapou aos estudiosos de história moderna. Mesmo assim, a literatura secundária sobre esse tópico desenvolveu-se fragmentada, impedindo as tentativas de entender como as ‘regras’ cambiantes para transformar o Eu em Outro construíram e reconstruíram o Eu” (68).114

Ao serem obrigados a se despir do seu eu para se transformarem no Outro, os imigrantes japoneses tentaram fazê-lo da maneira que mais lhes garantiria sobrevivência dentro dos países, seja por preservar sua identidade nipônica (Brasil) ou por assimilarem-se à cultura local para garantir sua preservação física (Peru). Portanto, a consequente criação da identidade nikkei veio de maneiras diferentes resultando em uma identidade de certo modo mais apegada à nostalgia de um Japão pré-guerra, o que levou à hifenização do nome nipo-brasileiro no Brasil e/ou resultou na “japonicidade” sendo aceita como um traço da identidade nacional no Peru.

114 “The significance of assimilation as both ideology and policy to ‘Japan’ and the ‘Japanese’ has scarcely escaped scholars of modern history. Yet the secondary literature on this topic has developed piecemeal, impeding attempts to understand how changing ‘rules’ for transforming the Self into the Other have constructed and reconstructed that very Self” (68). 236

Conclusão

O propósito desta tese foi analisar e discutir o desenvolvimento do conceito identitário nikkei no Brasil e no Peru. Através da análise de materiais literários e cinematográficos brasileiros e peruanos, afirmei que as condições de imigração e assentamento fizeram com que as identidade nikkeis se desenvolvessem em direções diferentes: enquanto no Brasil há uma dupla camada identitária na qual se pode ser brasileiro mas o sujeito é japonês acima de tudo, no Peru a identidade nikkei já faz parte do tecido identitário nacional como uma única camada identitária.

Afirmei também que os imigrantes japoneses no Brasil tiveram mais oportunidades de isolarem-se devido à geografia do país e também devido às condições de imigração impostas pelo governo brasileiro: só poderiam imigrar grupos familiares de japoneses, e não pessoas solteiras. Já no Peru, os japoneses que foram para o país eram na sua maioria homens solteiros. Após terminarem seus contratos com as fazendas onde trabalhavam, sua opção foi migrar para cidades grandes devido à geografia montanhosa do país. Assim, foram forçados a se assimilarem à população local pois, quando se destacaram, foram atacados e violentados. De acordo com Trigo, o sujeito migrante vive em um limbo identitário no qual navega diariamente entre o aqui e a nostalgia pelo país de origem: “Desgarrado entre la supervivencia del aquí-ahora y la nostalgia del entonces‐ allá, el migrante va configurando una subjetividad fragmentada y heterogénea, incapaz de 237 sintetizar sus experiencias de vida sin sufrir grandes pérdidas y condenado a vivir en un mundo ancho y ajeno” (17). A transição da identidade imigrante desde uma mentalidade de peregrino colonizador no senso de “colonizar o Brasil para virar um pedaço do Japão” até a aceitação da nova terra e a adaptação à mesma foi uma realidade difícil de encarar.

Por outro lado, no Peru, os isseis foram forçados a se integrarem à sociedade peruana desde os primeiros estágios do seu processo de imigração, enquanto no Brasil, o isolamento das comunidades japonesas preveniu um contato maior entre culturas.

Assim, foi possível aos imigrantes japoneses no Brasil desenvolver uma identidade nikkei “separada” da identidade brasileira. Isto é, afirmo que os nikkeis brasileiros carregam uma dupla camada identitária pois ainda após anos e gerações da chegada dos primeiros imigrantes, vemos que muitos definem sua identidade da seguinte maneira: “sou brasileiro, mas sou japonês”. O uso da conjunção adversativa “mas” de certo modo nega a sentença anterior. Então, quando nikkeis afirmam “sou brasileiro, mas sou japonês” na realidade negam a identidade brasileira em favor da identidade japonesa.

Aqui vemos o processo discursivo de preservação identitária. No caso do Peru, a faceta japonesa nikkei já se tornou parte integrante do tecido identitário. Houve o aparecimento de forças concomitantes que impulsionaram os primeiros japoneses a se integrarem e, ao mesmo tempo, contribuíram para que a sociedade peruana abrisse um espaço de aceitação dentro do tecido identitário nacional. Apesar da existência da Asociación Peruano

Japonesa com o intuito de preservar tradições, o discurso apresentado pelos próprios indivíduos que frequentam o local destaca o fato de serem peruanos com ascendência

238 japonesa, e não como uma identidade separada. No Peru, ser nikkei é tão peruano que já se enxergam como um grupo maioritário com características de minoria.

A definição de uma identidade japonesa manifesta-se através do discurso usado por esses indivíduos para se afirmarem dentro da sociedade na qual estão. Stuart Hall afirma que a representação somente se dá por meio da linguagem: “[representação] é a produção do significado dos conceitos da nossa mente por meio da linguagem” (34). A maneira pela qual esses descendentes de imigrantes decidem se posicionar dentro de ambas sociedades reflete diretamente como se enxergam.

Para traçar algumas considerações finais sobre ambas análises dos romances de

Oscar Nakasato e Augusto Higa Oshiro e dos materiais cinematográficos por Vicente

Amorim, Kaori Flores Yonekura e Norma Martinez gostaria de chamar a atenção para os pontos nos quais essas narrativas se encontram com relação a identidade nikkei e também para onde eles se divergem em processos de formação identitárias diferentes.

O primeiro ponto de contato entre Nihonjin e La iluminación de Katzuo Nakamtsu

é o papel das mulheres. Todas as personagens que são citadas em ambas obras aparecem com responsabilidades que envolvem a manutenção ou a transferência da cultura japonesa dentro dos grupos imigrantes. Na obra de Nakasato, temos Shizue e na obra de

Higa Oshiro temos Keiko. As duas esposas dos personagens principais são mostradas como “boas esposas” especialmente porque são capazes de navegar a cultura japonesa e manter contato com as tradições de seus antepassados de acordo com o papel atribuído a mulher na sociedade patriarcal japonesa. Shizue, segunda esposa de Hideo, não respondia a seu marido, não reclamava de sua vida e abria mão de sua própria individualidade em

239 prol do coletivo da família (“desde que os filhos e o marido estivessem bem, Shizue estava feliz”). Keiko, esposa de Katzuo, participava ativamente de atividades em grupo da comunidade japonesa em Lima, fazia com que o marido estivesse ligado aos movimentos e práticas culturais, o que trazia ao marido o senso de pertença na sociedade peruana. Consequentemente, por manterem as tradições e suas famílias dentro de práticas culturais (por cumprirem seus papéis de esposa) ambas personagens foram consideradas como “boas esposas.”

Ao olharmos para as outras personagens femininas também percebemos que elas têm um papel importante na manutenção da dupla/única camada de identidade nos romances. Na obra de Nakasato temos as personagens Kimie, Sumie e Maria, e na obra de Higa Oshiro temos a yuta Miyagui. Para exemplificarmos a questão da dupla camada identitária em Nihonjin, olhamos para o comportamento das mulheres que desafiaram a autoridade patriarcal de Hideo. O personagem principal teve todos os seus conceitos identitários afrontados pelas personagens mencionadas acima e ainda acreditava que precisaria manter a faceta japonesa para preservar a honra japonesa em sua comunidade e de acordo com sua ideia de patriarcado. Kimie enfrenta o marido por não se conformar com seu papel de esposa e mantenedora da cultura. Sem ter acesso aos elementos que lhe facilitariam a prática cultural, sem poder falar sua língua, Kimie, doente de nostalgia pelo

Japão, rebela-se pouco lhe importando o marido que lhe oprime por ser uma má esposa.

Maria confronta Hideo por desafiar sua autoridade dentro da sua própria família, por ser negra e “inferior” a ele e também por ser uma mulher que mostra ao personagem o quão incompetente ele é dentro do seu papel de provedor e cuidador da sua família. Shizue é a

240

última personagem a desafiar a autoridade do patriarca ao desobedecer a suas ordens de não se “misturar” a gente brasileira e fugir com o amante Fernando, deixando sua cultura, família e filhos para trás. Ao fazê-lo Shizue é ostracizada de sua própria família e cultura, o que exemplifica claramente a ideia de Hideo sobre o “abrasileiramento” de sua identidade: ao manchar sua faceta japonesa com a contaminação brasileira, o sujeito não poderia mais ser parte da comunidade japonesa, precisando ser eliminado de seu meio.

Desse modo, é possível ver a dualidade identitária que ainda prevalece na comunidade nikkei no Brasil: não é possível serem considerados brasileiros sem também afirmarem sua identidade japonesa para não serem excluídos desse meio. Não é possível afirmar ser brasileiro sem afirmar ser japonês, pois isso implica na exclusão do sujeito da parte identitária japonesa. Por haver uma regra clara de fidelidade e exclusão (ou fidelidade/ traição como visto em Corações sujos), qualquer desapego identitário por parte dos nikkeis com relação ao seu lado japonês é considerado uma “traição”, assim mesmo quando afirmam serem brasileiros, precisam necessariamente também afirmarem que são japoneses. É uma via de mão-dupla na qual uma exclusão acarreta outra: quando o indivíduo deixa de se afirmar japonês em favor de uma outra cultura, ele é excluído da comunidade japonesa e vice-versa. Por isso a narrativa de Nakasato e a dinâmica identitária de Hideo e das personagens femininas ilustra tão bem meu argumento de uma dupla camada identitária: pois narra a dinâmica de dupla exclusão pelo não pertencimento/reconhecimento/performance da identidade migrante.

Já no caso de Higa Oshiro, vemos uma personagem que influencia o narrador a organizar sua identidade após a perda da sua referência. A yuta encontra um personagem

241 principal dualizado, polarizado entre referenciais extremos de identidade (Adán e Untén) que torturam Katzuo e o fazem vagar dentro de um limbo identitário atormentado pelas vozes na sua cabeça. Quando ele pede o auxílio da yuta, Katzuo reconhece que sozinho não poderia ser o organizador e mantenedor das vozes (tradições) dos seus ancestrais, o que lhe impele a recorrer a ajuda de uma mulher especializada em estabelecer o contato xamânico entre o passado coletivo e o presente unitário de Katzuo. O papel de Miyagui é o de estabelecer/organizar um canal para que a identidade de Katzuo pare de ser bipolarizada entre extremos e para que as vozes que o atormentam se manifestem. O envolvimento da yuta exemplifica a unificação identitária peruana no romance de Higa

Oshiro pois mostra que Katzuo somente pôde estar em paz quando conseguiu navegar a sociedade peruana como membro integrante sem se render a dualismos. O personagem o faz quando estava com sua mulher Keiko e quando se liberta das vozes que o atormentam por meio da intervenção da yuta. Assim, ele pode retornar a uma breve vida de estabilidade identitária ao liberar seus antepassados identitários para se reintegrar a sociedade.

Com relação à ilustração dos processos identitários, percebemos que a obra de

Nakasato desenha o processo da formação identitária nikkei no Brasil ao demonstrar as dificuldades de relacionamento de Hideo com a sociedade que o cercava. Devido ao medo da exclusão da sua parte identitária japonesa, o personagem evita ao máximo o contato com a cultura/sociedade brasileira para não contaminar sua “japonicidade”115 e

115 De acordo com Elisa Masae Sasaki, japonicidade tem a ver com o conjunto de características que formam a identidade japonesa no Japão. Valores como “exclusividade, homogeneidade, conformidade, dependência mútua, orientação grupai e harmonia, postos em contraposição aos valores ocidentais.” (11) 242 assim não ser excluído dela. Esse processo é ainda visto nas gerações sansei em diante

(terceira geração) e foi ilustrado por algumas entrevistas que conduzi no interior de São

Paulo: todos os entrevistados ressaltaram a importância da manutenção do contato com a cultura de seus ancestrais, mesmo que ela não exista mais da maneira como lhes foi ensinado. Ao serem perguntados o porquê de tal importância, os entrevistados somente explicavam que era importante “não deixar a cultura desaparecer/morrer.” Já no caso do romance de Higa Oshiro vemos que o personagem principal se torna atormentado justamente porque bifurcou sua identidade entre duas extremidades que representavam os povos com os quais ele tinha mais contato: os peruanos e os japoneses. Katzuo tornou-se um vaso no qual não somente uma identidade viria a se manifestar, mas sim que conteria uma imensidão de vozes. Aqui, o personagem exemplifica o quão singular é a camada identitária peruana a ponto de “apagar” as vozes dos antepassados de Katzuo que divergiam da ideia de que “ser nikkei é uma forma de ser peruano.” O romance de Higa

Oshiro demonstra também o apagamento da diversidade japonesa dentro do Peru, pois os imigrantes japoneses e sua cultura já haviam sido assimilados às práticas culturais peruanas, mas sem o devido reconhecimento de sua singularidade. As vozes na cabeça de

Katzuo somente nos mostram o desejo de reconhecimento que a comunidade nikkei ainda sente de se destacar dentro de uma identidade “homogênea” devido à similaridade das suas feições.

Alguns pontos de contato podem ser traçados entre Gaijin e Nikkei no sentido de ambas produções contarem a trajetória de uma família desde os princípios imigratórios. O

No filme de Tizuka Yamasaki vemos o desenrolar da história de Titoe, uma jovem de

243 dezesseis anos que precisa se casar para poder imigrar ao Brasil. Quando a personagem chega, ela enfrenta dificuldades na fazenda em que trabalha e para se adaptar ao novo ambiente brasileiro. No final, vemos a personagem fugindo para a cidade de São Paulo para poder oferecer melhores condições de crescimento à sua filha. Já o documentário de

Kaori Flores Yonekura reconta a história de sua família de uma perspectiva não-ficcional.

Ela refaz os passos de seu avô desde sua saída do Japão, até a chegada às fazendas peruanas e depois a fuga para a Venezuela. No sentido da trama, ambas histórias são parecidas. Ambos personagens principais estavam fugindo da pobreza, encontraram dificuldades de adaptação nas fazendas onde trabalhavam e, por final, encontraram paz em seu segundo lugar de refúgio. As pequenas divergências entre ambos trabalhos é que enfatizam e revelam a desenvoltura da identidade nikkei no Brasil e no Peru. Percebe-se que Titoe ficou confinada, de certo modo, a um espaço habitado por japoneses na fazenda onde trabalhava. Seu contato com brasileiros era raro (com exceção de Tonho, contador da fazenda) e, quando a personagem migra para São Paulo, ela acaba morando no Bairro

Liberdade, um pequeno oásis asiático na selva de pedra paulistana. Já os avós de Kaori, após trabalharem nas fazendas, sofreram o preconceito da cidade grande por não conseguirem se adaptar. Ao contrário de Titoe, os avós de Kaori não tiveram um espaço onde pudessem se resguardar em sua identidade japonesa, ficando à deriva da sociedade peruana e seus preconceitos.

Nesse trabalho, também procurei focar na continuidade histórica entre os materiais brasileiros e na complementaridade entre os materiais peruanos. Isto é, em minha análise de Gaijin e Corações sujos, destaco como ocorreram os primeiros

244 processos de imigração e integração desses sujeitos pioneiros à sociedade brasileira e, depois, analiso as desenvolturas de uma comunidade nikkei já estabelecida no interior de

São Paulo que preza a unidade da identidade japonesa. Estimando que o filme de Tizuka

Yamasaki retratou um período de tempo estimado entre 1908 e 1935-1940, o filme de

Vicente Amorim aparece na sequência temporal já entre 1945-47. O filme do diretor conta a história da organização terrorista Shindo Renmei que aterrorizou os sujeitos japoneses que acreditavam na derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial.

Aqui é possível ver claramente como a preservação da identidade japonesa ainda era de extrema importância mesmo 37 anos após o início da imigração para o Brasil. Era imperativo que se preservasse a identidade japonesa, pois os pioneiros imigrantes não queriam ser recebidos como expatriados quando retornassem ao Japão. Assim, houve a criação de uma espécie de redoma em volta da identidade japonesa. Esses sujeitos não se misturaram aos brasileiros e não adotaram costumes com medo de perderem sua identidade japonesa e a ideia da possibilidade de um “passe de volta para casa”. Por isso, a separação da comunidade imigrante no Brasil foi de cunho essencial para o desenvolvimento da identidade nikkei separada da identidade brasileira. Por terem conseguido preservar a identidade japonesa de certa forma “intacta”, as futuras gerações nascidas no Brasil foram, de certa forma, obrigadas a desenvolver uma dupla camada identitária. Essa faceta reconhece sua inserção na sociedade brasileira, mas preza seus laços japoneses acima de tudo.

Ao olharmos para Nikkei e o programa documental “Historia de la inmigración japonesa en el Perú” também podemos traçar alguns pontos de contato entre os materiais.

245

O filme de Kaori abrange um espaço de tempo longo, e transcorre sobre a retratação de uma migração que termina fora do Peru. Isto é, justamente por não conseguirem se adaptar à sociedade peruana e não conseguirem sobreviver as pressões feitas pelo povo peruano, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial, os avós da diretora escolhem fugir do país. Eles o fazem não para preservar sua identidade japonesa, mas por medo de perderem suas referências nacionais. Deste modo, escolhem um país onde há poucos imigrantes japoneses (Venezuela) e onde não fossem perseguidos por manifestarem suas práticas culturais. Já o episódio do programa Sucedió en el Perú nos conta a história dos outros imigrantes que conseguiram, de certo modo, criar um nicho dentro do tecido identitário peruano. Isto é, esses imigrantes além de adaptarem-se a certas práticas culturais peruanas também abrira um espaço para que suas próprias práticas culturais trazidas do Japão fossem consideradas parte da identidade nacional.

Ainda o episódio documental traz à tona certos elementos interessantes da sincronia entre identidade japonesa e identidade indígena peruana: o Samurai de Huayno e a Princesita de Yungay. Ambos artistas são folcloristas peruanos. Ou seja, apresar de serem nikkeis, ambos representam e performam aspectos da identidade peruana que são profundamente ligados à cultura indígena no país. Esses artistas seguem na mesma linha representativa que o ex-presidente Alberto Fujimori. Segundo Ignácio Lopez-Calvo, o ex- presidente sabia “jogar” com intersticialidade da sua imagem fenotípica no Peru e dependendo da situação ele se apresentava de um jeito diferente: como homem japonês, nipo-peruano, homem de cor, ou simplesmente como um indivíduo peruano (11). Ainda,

Fujimori usava vestes tipicamente indígenas quando precisava se dirigir a uma população

246 que era mais indígena para que as pessoas pudessem se relacionar com ele mais facilmente além dos traços fenotípicos (11). O Samurai de Huayno e a Princesida de

Yungay são exemplos de outros nikkeis que são reconhecidos e sincronizados na cultura indígena peruana devido à sua “similaridade dos olhos”. Aqui vemos um exemplo claro de como a identidade nikkei desdobra-se em uma camada única dentro da identidade peruana. O ser nikkei é uma das maneiras da identidade peruana se manifestar no país.

No Brasil há um crescente destaque da existência da comunidade nikkei através das artes, culinária e presença política que, apesar de estar no país desde o início do século XIX, somente recentemente começou-se a receber mais atenção da mídia. Como afirma Jeffrey Lesser, sua presença maciça e invisível aos olhos da sociedade brasileira

(xi) somente começa ser reconhecida no Brasil ao final do século XX e início do século

XXI. Por outro lado, no Peru há uma crescente assimilação ao tecido nacional identitário, ao ponto de os indivíduos nikkeis não sentirem mais necessidade de contar e recontar sua história de imigração para se estabelecer(em) e serem reconhecidos no país. No Brasil, somente após os anos 1980 com a produção e disseminação de materiais como Gaijin é que essa faceta imigrante começou a ser reconhecida no país. Esta tese busca, então, elucidar a criação dessas identidades nikkeis distintas e destacar diferenças no olhar tanto da população nikkei do Brasil em busca de reconhecimento quanto da população nikkei do Peru que, cada dia mais, amalgama-se com a identidade nacional peruana.

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