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RAUL SEIXAS E O ANO DE 1968: O que houve na França vai mudar nossa dança

PAULO DOS SANTOS1

RESUMO: Este trabalho tem por objetivo analisar o estudo da formação tanto pessoal, quanto artístico-poético-musical do cantor e compositor (1945-1989), no contexto histórico-musical brasileiro durante a década de 1960, em especial, ao ano de 1968. Busca-se a compreensão da originalidade de fatos ocorridos com o artista, contextualizando-os com os acontecimentos históricos e musicais pertinentes à sua contemporaneidade, uma vez que, na maioria das pesquisas, ou em quase todas, não há tal preocupação com a contextualização histórica do período em questão, ou seja, os anos 1960, com especial destaque, aos movimentos de maio de 1968, na França, a Marcha dos Cem Mil e, consequentemente, a implantação do AI-5, no Brasil e, no cenário musical, o rock dos Beatles e Bob Dylan, os movimentos da , da Tropicália e dos Festivais da Canção. Por fim, observa-se que em muitos trabalhos relacionados ao artista, é frequente o estudo do mesmo em relação à Ditadura Militar, nos anos 1970 e 1980, todavia, o assunto sobre a sua formação, nos anos 1950 e 1960, ainda é abordado superficialmente. Há o diálogo entre o conceito de cultura, a história da Música Popular Brasileira e ao estudo do sociólogo Luciano Martins sobre acontecimento conhecido como Maio de 68.

PALAVRAS-CHAVE: Raul Seixas, História do Brasil, Música, Subjetividade, Cotidiano.

1 Doutorando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) – CAPES/PUC [email protected]

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1. Introdução [...] A história começa quando você concebe que é o ser responsável pela própria concepção. Raul Seixas (, 1975)

O presente artigo pretende demonstrar a relação do cantor e compositor baiano Raul Seixas (1945-1989), com os episódios de maio de 1968, na França e os movimentos políticos da década de 1960, no Brasil. Um momento histórico caracterizado pelo autoritarismo a partir de 1964 e por uma rígida censura implantada, por meio do AI-5, em dezembro de 1968. Sabe-se que esse período foi regido pela repressão e pela censura em uma época em que cantores e compositores se tornaram importantes para o entrave contra a censura, divulgando suas obras que, por meio da música, combatiam a realidade política vigente, de forma metafórica e poética, ajudando a fomentar o imaginário de liberdade de expressão da arte musical. Partindo da afirmação que a história se faz a partir das ações do homem, pretende-se desenvolver uma revisão historiográfica no período de juventude e fase adulta de Raul Seixas, tendo em vista a necessidade de elaborar uma discussão contextual voltada, em especial, para as décadas de 1950 e 1960. O tempo histórico de Raul Seixas durante o período inicial de sua formação poético- musical foi um fruto da tensão entre suas experiências e suas expectativas no que se refere à intenção de ingressar na música, desde sua adolescência, numa relação intrínseca entre seu passado e seu futuro, caracterizando uma parte integrante da geração que introduz o rock´n´roll, como estilo musical, no Brasil. Neste espaço da experiência e em seu horizonte repousa o processo de temporalidade de sua história. A expectativa de iniciar na carreira artística proporcionou ao jovem Raulzito, como era conhecido na época, um caráter otimista em relação ao seu futuro, condicionada à dimensão temporal localizada no espaço de sua experiência vivenciada na cidade de Salvador e, consequentemente, no Rio de Janeiro. Em sua vida cotidiana, são encontradas experiências incomuns traduzidas por um garoto ainda, que propiciaram reflexões sobre a sociedade brasileira naquele período, representando uma série de documentos e narrativas bem detalhadas carregadas de sentimentos e sensações pessoais. Portanto, o artigo abordará questões sobre a memória, a política e a cultura, analisando-se a escrita de si, depoimentos sobre si mesmo e depoimentos de terceiros.

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2. Um breve recorte das temporalidades de Raulzito Seixas (1959-1969)

No tempo histórico ou físico de Raul Seixas (1945-1989), pode-se observar que há vários tempos internos ou temporalidades, no que diz respeito à sua trajetória musical. Dentre as várias temporalidades, são encontradas, desde o final da década de 1950, mais precisamente, em 1959, quando funda o primeiro clube de rock da , o Elvis Rock Club até, o ano de 1969, quando o mesmo volta para Salvador após a gravação do primeiro álbum, na cidade do Rio de Janeiro, como podem ser destacadas:  1959 - fundação do Elvis Rock Club, com seu amigo Waldir Serrão;  1962 - formação do seu primeiro grupo musical, Os Relâmpagos do Rock, com Thildo Gama e Enelmar Chagas;  1963 - mudança do nome do conjunto para The Panthers, com outros integrantes;  1964 - tocando e cantando músicas dos Beatles, apresentam-se em diversas cidades pelo interior da Bahia;  1965 - o conjunto passa a se apresentar no Cine Roma, localizado na Cidade Baixa, em Salvador, ao lado de grandes nomes da Jovem Guarda, como Roberto Carlos, , Wanderléia, Wanderley Cardosos, entre outros;  1966 - participando do Festival da Juventude, já com novo nome Raulzito e os Panteras, namora Nadine Wisner, americana, filha de um pastor protestante e passa no vestibular para estudar Direito na Universidade Federal da Bahia;  1967 - casa-se com Nadine Wisner e viaja para o Rio de Janeiro, com esposa e os integrantes do conjunto para acompanharem Jerry Adriani em shows pelo Brasil;  1968 - gravação e lançamento do primeiro álbum Raulzito e os Panteras, no Rio de Janeiro;  1969 - retorno à Salvador desiludido com o fracasso de vendas do primeiro álbum.

Durante todo o período da existência de Raul Seixas no cenário artístico-musical brasileiro, notou-se que em muitos de seus depoimentos, escritos ou gravados, como também de seus familiares, a respeito de sua formação e de suas inspirações, ficou clara, em sua obra, a presença do hibridismo musical entre o baião de (1912-1989) e o rock´n´roll de (1935-1977).

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Na década de 1950, veicula um novo ritmo que revolucionaria o mundo, o rock´n´roll, uma linguagem global da cultura dos jovens. Sabe-se que Elvis Presley foi uma figura enigmática na construção do cotidiano de Raul Seixas:

Nasci em 1945, no final da guerra, portanto minha juventude foi uma juventude pós- guerra necessariamente. [...] Anos 50: nossa família com meu pai saíamos viajando por todo o interior da Bahia inspecionando estações de trem. Ouvia muito Luiz Gonzaga e os repentistas da estrada de ferro; meu irmão e eu tomávamos cachaça escondido junto com os matutos do norte. [...] Naquela época a Bahia estava infestada de americanos que trabalhavam para a Petrobrás. Em 54, surgem nos Estados Unidos Elvis e o Rock´n´Roll caipira, além do blues dos negros do sul. [...] Aprendi blues e rock antes mesmo destas músicas terem chegado ao Brasil. Além disso, aprendi inglês fluentemente. [...] Quando Elvis veio com aquele estilo sexual, agressivo ele quebrou aquele clima denso de machismo. Eu vi nele uma liberdade incrível, de sexo, de se mover, sendo um homem. E não importava, pô. Foi um negócio incrível, a porrada que ele me deu com aquela dança dele. Elvis era considerado um maníaco sexual, cabelo cheio de brilhantina. As músicas dele eram pornográficas, sabe; é o que se dizia na época. Me lembro do pai de um amigo meu, do consulado, que dizia que Elvis era um communistplot, uma conspiração comunista. (SEIXAS, 1992:19)

A respeito da cultura musical, ao resgatar a memória de Raul Seixas, o mesmo sofreu influência direta do rock´n´roll, desde sua infância, porque teve contato com garotos estadunidenses, filhos de engenheiros que vinham dos Estados Unidos para trabalhar na Petrobrás, em Salvador. No que se referia à música e à juventude, a cidade de Salvador se dividia entre a turma do rock americano, formada por Raulzito, Thildo Gama, Waldir Serrão e Edy Star que frequentava o Cinema Roma, na Cidade Baixa e de outro lado, a turma da , que se reunia no Teatro Vila Velha, em Campo Grande, na chamada Cidade Alta, rememorando os grandes sucessos da Música Popular Brasileira entre os anos de 1930 e 1950. Dentre aqueles que ficavam no Teatro Vila Velha, destacaram-se , e José Carlos Capinam, entre outros. Para os pais de Raulzito, ser artista não constituía uma profissão decente, principalmente se tratando daquele tipo de música voltada à rebeldia e com palavras sensuais e gestos violentos. As pessoas, em geral, associavam os roqueiros àqueles jovens quebrando cinemas e vidraças, bebendo, fumando e roubando chicletes, logo, arruaceiros. Quanto a algumas passagens destes episódios, no Cine Guarany e no Cine Roma, alguns filmes significavam, naquele período, o autêntico comportamento a ser seguido por determinados jovens da sociedade baiana. Eles saíam às ruas quebrando vidraças ou roubando pertences de lojas, inspirados na rebeldia dos atores, retratada nos filmes, principalmente, do

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ator norte-americano James Dean (1931-1955) que viveu em sua própria vida, a rebeldia de seus personagens, morrendo prematuramente em pleno auge da carreira ou em filmes como Sementes da Violência (Blackboard Jungle), de 1955, em que os jovens alunos se rebelam contra um professor recém-chegado à escola. Influenciado pelo cinema e pelo rock, Raulzito fundou, em 1962, ao lado de Thildo Gama e Enelmar Chagas, o grupo Os Relâmpagos do Rock, que um ano mais tarde teria seu nome mudado para The Panthers, com a chegada de Délcio Gama – irmão de Thildo – no lugar de Enelmar e, em 1964, para Raulzito e os Panteras. Nessas primeiras formações cantavam músicas de artistas estrangeiros, dentre eles, os Beatles. Raul Seixas, mais tarde rememorou que os Beatles, além de inovarem na melodia, inventaram uma nova forma de se dizer algo.

Foram os Beatles que me deram a porrada. Foi quando os Beatles chegaram e passaram a cantar as próprias coisas deles que eu vi, pôxa, esses caras estão cantando realmente a vida, estão dizendo o que há pelo mundo, o que pensam. Então eu posso fazer a mesma coisa, dizer exatamente o que penso em minhas músicas. Foi quando eu comecei a compor, juntando tudo no meu caderninho. (PASSOS, 1992:77)

Em 1964, Raulzito e Os Panteras faziam sucesso tocando e cantando músicas dos Beatles e já ganhavam dinheiro se apresentando em programas de rádio e televisão, em Salvador. No referido ano, excursionaram pelo interior da Bahia e, em muitas ocasiões, foram contratados para acompanhar artistas consagrados da Jovem Guarda durante suas apresentações no Cinema Roma, como Roberto Carlos, Wanderléa, Wanderley Cardoso e Jerry Adriani. Estabeleceu-se, assim, uma sintonia musical perfeita, uma vez que, estes artistas também cantavam músicas inspiradas nas letras dos Beatles, mas no ritmo ie ie ie2, e faziam várias versões da banda inglesa no Brasil. Ainda em 1964, eclodiu no Brasil o Golpe Militar, entretanto, nada interferiu no conjunto, uma vez que os seus integrantes eram tachados de entreguistas por cantarem músicas estrangeiras e pouco se importaram com o rótulo. Mesmo depois deste episódio, o conjunto não se ateve aos acontecimentos políticos do país e continuou a excursionar por várias cidades da Bahia, aproveitando o momento propício para acompanhar artistas conhecidos do rádio e da televisão. Dessa forma, Raul

2 O termo “ie ie ie” acabou se tornando sinônimo dos seguidores da beatlemania, pois na música “She loves you”, de 1964, os Beatles entoavam o refrão “ie ie ie”.

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Seixas, no início de sua carreira, foi considerado alienado, entreguista e adepto aos ideais norte-americanos por não incluir assuntos políticos em suas letras, como fazia uma boa parte da MPB e do Tropicalismo. Após três anos acompanhando vários artistas em Salvador e nas cidades do interior da Bahia, Raulzito e os Panteras foram convidados por Jerry Adriani a participarem de um programa na TV Tupi, do Rio de Janeiro, chamado A Grande Parada, apresentado pelo próprio cantor. Embarcaram para o Rio de Janeiro, em 1967, Raulzito Seixas e Edith Nadine Wisner, recém-casados, Mariano, Carleba e Eládio, integrantes do conjunto3. Após a apresentação na TV Tupi, Jerry Adriani os levou para a Odeon, onde gravaram seu primeiro álbum, que recebeu o mesmo nome do grupo. O álbum não vendeu muito, como anos mais tarde Raul Seixas rememoraria:

Por azar chegamos no final da safra, não entendíamos nada do que se passava. Agnaldo Timóteo num lado e Caetano, Gil e Mutantes do outro [...] Tivemos que compor. Complicamos demais. Não tínhamos ideia do que era ou não comercial em matéria em português. Algo estava errado. Ninguém conhecia Chuck Berry, Mick Jagger, Vanilla Fudge, Frank Zappa e outros caras desses por aí. (Idem: 25)

Naquele momento, as canções compostas pelo grupo não agradaram no mercado comercial, o que foi assim justificado, posteriormente, pelo cantor: “[...] a gente não sabia como fazer. Tocávamos umas coisas complicadas, minhas letras falavam de agnosticismos, essas coisas.” (Ibidem. 44) ou da dor de um amor que provocaria o sofrimento, como no caso de Menina de Amaralina:4

Menina de Amaralina Eu quero o seu amor Menina Oh, menina linda Volta por favor Aaaaaaai menina Eu quero lhe rever Aaaaaai menina Sou louco por você Agora a praia chora Querendo lhe rever Nem mais a lua quer Lá no céu aparecer Menina de Amaralina Volte por favor

3 Raul Seixas “Raulzito” (vocais), Carlos Eládio (Guitarra), Mariano Lanat (contrabaixo) e Carleba Castro 4 SEIXAS, Raul (Compositor). “Menina de Amaralina.” In: Raulzito e os Panteras (LP). Raulzito e os Panteras. Rio de Janeiro: Odeon (0544225721A), 1967.

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Na composição, Raulzito dá ênfase a uma garota, Nadine Wisner, sua namorada e, posteriormente, sua esposa, que morava em Amaralina, praia importante no cenário paisagístico de Salvador, indo para os Estados Unidos e o autor pede para que ela volte para ele e para a sua cidade. Em outra canção, Um Minuto Mais5, nota-se que a peculiaridade do enredo romântico é encontrada em toda a canção.

Eu já bem sabia Que você não ficaria Um minuto mais Eu que já fui tudo Que você já quis no mundo Há algum tempo atrás Jamais esquecerei Aquelas horas que passei Junto ao teu lado amor Embora eu soubesse Que mais tarde O amor esquece E só deixa a dor Quando a gente ama mesmo É cego e não reclama Nunca o que tem Pois ainda te quero A qualquer hora Eu espero por você Meu bem Se estiver sofrendo E quiser voltar correndo Sabe onde me encontrar Bem feliz serei Eu juro! Não me importarei O tempo que ficar

Na música Trem 1036, Raulzito faz referências à cidade de Dias D´Ávila, distante 58,5 km de Salvador, onde ficava a casa de veraneio da Família Seixas, local muito reverenciado pelo artista em muitos depoimentos posteriores.

Trem trem Levou meu bem Trem trem

5 GLASSER, Dick (Compositor). “Um minuto mais.” Versão de “I Will.” In: Raulzito e os Panteras (LP). Raulzito e os Panteras. Rio de Janeiro: Odeon (0544225721A), 1967. 6 SEIXAS, Raul (Compositor). “Trem 103.” In: Raulzito e os Panteras (LP). Raulzito e os Panteras. Rio de Janeiro: Odeon (0544225721A), 1967.

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Me leva também Eu não quero ficar Sozinho aqui Oh, trem me leva Que eu também quero ir Quero encontrar O amor que perdi Trem trem Levou o meu bem Trem trem Me leva também Eu quero voltar Por onde eu vim Fecho os meus olhos Ao trilho sem fim Oh 103, não me deixes aqui Mais aqui Trem trem Levou o meu bem Trem trem

As músicas narravam histórias sentimentais com inocência ou de lugares da Bahia, diferenciando-se dos temas da Jovem Guarda, com seus carrões e brotos ou do Tropicalismo, com seus arranjos psicodélicos e, até mesmo, dos enredos intrínsecos em algumas canções de protesto dos grandes festivais da televisão. A canção Você ainda pode sonhar7, uma versão de Lucy in the sky with diamonds8, dos Beatles, era na época a música mais conhecida e arrojada do conjunto.

Pense num dia com gosto de infância Sem muita importância procure lembrar Você por certo vai sentir saudades Fechando os olhos verá Doces meninas dançando ao luar Outras canções de amor Mil violinos e um cheiro de flores no ar Você ainda pode sonhar Você ainda pode sonhar Você ainda pode sonhar Feche os olhos bem profundamente Não queira acordar procure dormir Faça uma força, você não está velho demais Pra voltar e sorrir Passe voando por cima do mar Para a ilha rever Vá saltitando sorrindo a todos que vê Você ainda pode sonhar [...]

7 LENNON, John; McCARTNEY, Paul (Compositores). “Você ainda pode sonhar.” Versão de “Lucy in the sky with diamonds.” In: Raulzito e os Panteras (LP). Raulzito e os Panteras. Rio de Janeiro: Odeon (0544225721A), 1967. 8 LENNON, John; McCARTNEY, Paul (Compositores). “Lucy in the sky with diamonds.” In: Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (LP). Beatles. Londres: Parlophone, 1967.

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Por fim, foram forçados a adiar o sonho da carreira artística. Os membros do grupo tiveram que retornar a Salvador. Apesar das dificuldades financeiras, Raul e Edith ainda permaneceram no Rio de Janeiro por mais dois anos, como contaria o cantor, mais tarde, na música Ouro de Tolo, de 1973: “Depois de ter passado fome por dois anos aqui na cidade maravilhosa [...].”9

3. Baby o que houve na França... Raul Seixas e a História

Há uma dificuldade em analisar e interpretar a obra musical de Raul Seixas, pois suas entrevistas e seus depoimentos se entrecruzam no que diz respeito à sua veracidade, porque em quase todas elas, há sempre algo de diferente em relação à anterior, há sempre outras verdades que emergem em seus diversos relatos, quase sempre confundindo o espectador, o apreciador e até mesmo críticos de sua arte. Todavia, parte-se do princípio que o mito está presente em seus discursos na construção de seu imaginário e fomentando toda a sua obra poético-musical. Isso se deve ao fato do artista mencionar em suas composições o seu cotidiano que acaba por ser introduzido no imaginário de seu público, incorporando, por vezes, a necessidade de dizer aquilo que se pensa e que se encontra nas músicas do artista. Neste caso, o artista, em relação à suas temporalidades, ao seu espaço e em sua sociedade é inculcado no processo da construção de seu tempo histórico, uma vez que o mesmo integra sua realidade no âmbito social, por meio de sua linguagem. Ao tratar dos episódios ocorridos em 1968, vale destacar dois importantes fatos que desencadearam a reação por parte de um grupo considerado prejudicado, no sentido de se manifestar por meio de protestos estudantis, o maio de 1968, na França e a Passeata dos Cem mil, em junho de 1968, no Brasil, respectivamente. O ano de 1968 foi marcante por irromper uma série de reivindicações contra o poder autoritário de alguns países, no tocante, na França e no Brasil, respectivamente. Para tanto, observa-se que na América Latina essas práticas autoritárias foram substituídas por uma cultura autoritária de cunho socialista, praticando censuras, violências policiais e desrespeitos aos direitos individuais.

9 SEIXAS, Raul (Compositor). “Ouro de Tolo.” In: Krig-há, Bandolo! (LP). Raul Seixas. Rio de Janeiro: (6349078), 1973.

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Práticas essas que começam a condicionar a existência dos indivíduos na medida em que, não apenas passam a definir as relações entre poder e sociedade, mas penetram e ordenam os mais variados domínios da vida cotidiana. (MARTINS, 2004:16)

O que ocorreu em alguns países da América Latina, diferentemente do que ocorreu com os países totalitários na Europa, durante a década de 1930, foi uma série de ditaduras imprecisas no que dizem respeito a uma ideologia. Sabe-se que os regimes totalitários se espelharam no capitalismo se opondo ao comunismo. Na contramão, os países latino- americanos apoiaram-se em ideologias comunistas e se opuseram ao capitalismo. Dentro dessa cultura autoritária, começa a emergir a contracultura. Observa-se, que no Brasil, a ditadura teve um cunho a favor do capitalismo, norteado pela dependência econômica dos Estados Unidos. País em que a contracultura também foi encontrada, opondo- se, principalmente, à Guerra do Vietnã, surgindo diversos grupos de opositores à cultura dominante, no caso específico deste trabalho, a música, na figura de Bob Dylan, como um porta-voz da contracultura daquele país. Sobre o poder autoritário é um poder de ordem social em que se consolida um regime forte e opressor, no qual, os direitos individuais são fragmentados em razão da consolidação do Estado sobre a sociedade, neste contexto, encontram-se dois obstáculos sobre a implantação de uma contracultura, em especial, no caso do Brasil:

O primeiro advém da circunstância de as atitudes e pautas de comportamento que caracterizam esse universo se esgotarem ao nível da experiência quase-inarticulada de seus atores; uma experiência meramente instintiva e que parece destituída de qualquer capacidade de reflexão sobre si própria enquanto experiência existencial. Essa incapacidade de pensar a própria situação tornou-se evidente, inclusive pela pobreza e desarticulação do discurso. O segundo obstáculo é representado pelo fato de que o que se apresenta como contracultura não chegou (ou não chegou ainda) a ser captado por nenhuma obra-testemunho – na literatura, no cinema ou no teatro – que seja digna desse nome; quer dizer: de uma obra capaz de cristalizar o fenômeno e, ao mesmo tempo, transcender seus aspectos imediatos através da captação de seu conjunto de significações. (Idem: 24-25)

Relacionando o sujeito em questão, Raul Seixas com o acontecimento na França e no Brasil, o mesmo só iria perceber, diretamente, tempos depois, uma vez que estava ascendendo profissionalmente, mesmo após alguns contrastes ocorridos em sua vida particular que quase desarticularam a ratificação da futura profissão, pois o mesmo, em 1969, foi convidado para ser produtor musical de uma multinacional, sediada na cidade do Rio de Janeiro, portanto, nada afetaria seu desenvolvimento artístico.

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Anos mais tarde, mais precisamente no início da década seguinte, o artista se encontraria com certo desafeto à realidade vivida por muitos em 1968, tornando-se um dos maiores porta-vozes contra a ditadura no Brasil, nos considerados Anos de Chumbo, entoando composições, consideradas por muitos, como canções de protesto. Vivendo uma utopia de uma determinada Sociedade Alternativa que prevaleceria os fundamentos de um anarquismo delimitando-se a ser chamado de cantor de contracultura, contra a cultura autoritária que se instalara no Brasil após a implantação do AI-5, em dezembro de 1969.

[...] numa situação na qual prevalece uma “cultura autoritária” que, difusa mais penetrantemente, limita e ao mesmo tempo desorganiza comportamentos em três domínios fundamentais da interação do indivíduo com o mundo: o da sua liberdade, o da sua consciência crítica e o da sua capacidade de ação política. Será nesses três domínios violados pelo autoritarismo que vão surgir pautas específicas de comportamento que serão vividas como uma “contracultura”. (Ibidem: 35)

Todavia, havia uma certa desarticulação do discurso alienante do artista, uma vez que, muitos artistas, políticos e intelectuais se encontravam exilados, coube a alguns, que no país restaram, defender os interesses dos oprimidos, porém, longe de serem articuladores políticos defensores de uma sociedade mais justa e igualitária contra uma cultura opressora como foi, no caso, do Brasil no inícios dos anos 1970. Segundo Martins, “pobreza de recursos e a desarticulação do discurso é o segundo elemento da síndrome alienante que expressa o universo que é vivido como contracultura.” (Ibidem: 59) Raul Seixas encontraria em sua música, durante o auge de seu sucesso, o protesto como uma forma de lutar contra o poder, todavia, de certa maneira vazia de elementos constitutivos de ser considerado um artista de músicas de protesto

a multiplicidade dos alvos sob protestos constitui uma característica facilmente identificável onde quer que esses movimentos ocorram. Embora tais movimentos possam receber classificações diferentes, ou assumir expressões distintas em função dos contextos culturais e sistemas políticos em que se originam, o fato é que os alvos dos protestos abrangem tanto a esfera mais privada das pautas individuais de comportamento quanto a esfera da organização social, a das relações de poder, ou até dos termos em que é estabelecida a ordem mundial. Assim, já não se trata de uma opção alternativa ou prioritária de objetivos: trata-se de relacionar simultânea e integradamente todas essas esferas, atribuindo a cada uma delas igual importância. É como se todas as contradições entre o homem e a sociedade fossem compreendidas como sendo principais. Esse enfoque globalizador não se limita às formulações teóricas: está introjetado no próprio comportamento daqueles que protestam. Assim, o protesto recupera socialmente, no nível da consciência e no nível do comportamento, aquilo que se constitui no dado distintivo mais característico de nossa época: o viver no mundo moderno implica uma experiência existencial total, na medida em que a própria evolução da espécie e a integridade do ser humano dependem da atuação em todas essas dimensões – e de sua realização em todas elas. (Ibidem: 131-132)

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Percebe-se que a categoria de juventude e protesto na pessoa de Raul Seixas, seriam caracterizados apenas em sua fase inicial, sendo uma forma de protesto alienante e entreguista, embalado por seus ídolos da música e do cinema.

A juventude não chega a funcionar, porém, como uma variável independente. Ademais, nem todos os jovens participam dos protestos. São, sobretudo, os estudantes que o fazem. (Ibidem: 139)

O episódio na França, em maio de 1968, pode ser examinado como uma profunda crise social em uma sociedade capitalista desenvolvida e em expansão, além de uma temporária redução à impotência de um poder que parecia incontestável. Houve também a violenta quebra do consenso em uma sociedade já padronizada pelo consumo e culturalmente presa à ideia da grandeza reconquistada, além da exploração de uma juventude que não tinha sequer adotado as formas hippies de inconformismo e de um desfecho político formalmente em desacordo com as premissas. Na relação com o ocorrido na Europa, aqui no Brasil, Baby o que houve na França, seria apenas um início de uma bela canção de Raul Seixas, uma vez que se passara meia década após os episódios de maio de 1968, quando o mesmo lançou a canção Cachorro Urubu10 entoando versos que dizem respeito ao que aconteceu naquele país e que, de fato, alteraria a ordem mundial.

[...] Baby o que houve na França Vai mudar nossa dança Sempre a mesma batalha Por um cigarro de palha Navio de cruzar deserto Todo jornal que eu leio Me diz que a gente já era Que já não é mais primavera Oh baby, oh baby A gente ainda nem começou

10 SEIXAS, Raul; COELHO, Paulo (Compositores). “Cachorro Urubu.” In: Krig-há, Bandolo! (LP). Raul Seixas. Rio de Janeiro: Philips (6349078), 1973.

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4. Considerações Finais

Quanto aos sentidos políticos do artista, durante as décadas de 1950 e 1960, não houve uma forma de resistência durante sua formação, porque o que mais lhe interessava na gênese de sua trajetória artística era, justamente, conquistar o seu espaço como cantor de rock´n´roll ou um rebelde, quebrando cadeiras de cinemas ou transgredindo as ordens vigentes da sociedade central de Salvador nas décadas de 1950 e 1960. O mesmo era tachado como entreguista por não se interessar por política, como no Golpe de 1964, que pouco o abalou ou simplesmente, o incomodou, uma vez que o Golpe foi uma ratificação do que ele já sentira na capital baiana, por manter e, até mesmo, fortalecer os laços de amizades entre ele e seus amigos, filhos dos engenheiros estadunidenses que vinham trabalhar no Brasil, em especial, na cidade de Salvador. Pelo visto, o Golpe, mesmo ele não entendendo o que se passava em Brasília, facilitou o convívio com os filhos dos trabalhadores estrangeiros, pois os Estados Unidos deram grande apoio ao ocorrido em 1964. Em 1968, Raulzito, pôde perceber o que acontecia tanto no mundo quanto no Brasil. Fatos como o Movimento Estudantil, na França, assim como o Feminista naquele mesmo país, além do advento dos movimentos dos negros, dos hippies e dos homossexuais nos Estados Unidos, dentre outros que fomentaram sua preocupação e/ou indignação com a sociedade. Percebe-se que tal indignação com a ordem vigente no país governado pelos militares deu-se pela frustração em não ter conseguido seu êxito como artista, pois fora decepcionado após gravar o primeiro álbum sem nenhum grande reconhecimento. Já maduro, após esta fase, no final da década de 1960, observou as mudanças sociais, políticas e culturais, fatores que o propulsionaram a transgredir a ordem vigente na década seguinte, a de 1970, solidificando-se como um dos porta-vozes vorazes contra a Ditadura Militar.

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5. Fontes e Referências Bibliográficas

5.1 Fontes (Álbuns):

Krig-há, Bandolo! (LP). Raul Seixas. Rio de Janeiro: Philips (6349078), 1973. Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (LP). Beatles. Londres: Parlophone, (3C 064-04177), 1967. Raulzito e os Panteras (LP). Raulzito e os Panteras. Rio de Janeiro: Odeon (0544225721A), 1967.

5.2 Referências Bibliográficas

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