Os Vidreiros Da Marinha Grande**
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Maria Filomena Mónica * AnáliseSocial ,vol. XVII ( 67-68),l981-3.º-4.º ,505-57 1 Poder e saber: os vidreiros da Marinha Grande** INTRODUÇÃO Este artigo nasceu de um projecto de estudo da comunidade da Marinha Grande após a revolução de 1974, com particular incidência nos aspectos relativos à cultura operária. Cedo verifiquei, contudo, ser indispensável um conhecimento do seu passado. E, pouco a pouco, fui sendo atraída por novos tempos e problemas. Dada a riqueza e diversi- dade do material recolhido, decidi limitar-me a um período de tempo, tendo acabado por centrar a investigação na análise dos fundamentos do poder operário no imediato após-guerra, tópico que, durante o estudo, se viria a revelar particularmente interessante. Aliás, contrariamente ao que de início imaginara, muitos dos vidrei- ros contemporâneos não são descendentes da élite vidreira tradicional. Se a comunidade operária se manteve coesa durante um longo período da sua história, sofrera profundas alterações e rupturas. Durante as décadas de 1920 e 1930, a indústria do vidro espalhara-se para além das fronteiras tradicionais. Por outro lado, nos anos 60 haviam-se verificado alguns fluxos migratórios importantes: enquanto velhos artesãos do cristal emigravam para a Alemanha, a garrafaria mecânica atraía, além dos proverbiais camponeses vizinhos, muitos rurais alentejanos e transmon- tanos. A comunidade operária tradicional que me interessara analisar desaparecera para sempre com a mecanização e a deslocação espacial da indústria. Mantive, no entanto, a escolha feita, quanto ao grupo e local, por três razões fundamentais: em primeiro lugar, os vidreiros eram um dos poucos grupos de proletários com várias gerações de trabalhadores indus- triais atrás de si; em segundo, constituem um caso indiscutível de traba- lhadores qualificados; por último, é deles uma conhecida tentativa revo- lucionária, o 18 de Janeiro de 1934. Pareceu-me, por conseguinte, que um estudo monográfico sobre os vidreiros ilustrava particularmente bem a situação das aristocracias operárias. Se o enquadramento temporal se alterou, a perspectiva teórica básica manteve-se: interessou-me sempre mais o quotidiano dos vidreiros no local de produção e na comunidade do que a luta política ou a análise dos aparelhos partidários. • Gabinete de Investigações Sociais e Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. ** Este artigo insere-se numa obra mais vasta sobre a formação da classe operária portuguesa. Na recolha de algumas fontes foi preciosa a colaboração da Dr.* Aida Valadas de Lima. Gostaríamos ainda de agradecer a todos aqueles que, na Marinha Grande, se prestaram de boa vontade a dar-nos informações. 505 Pretendi neste estudo responder às seguintes questões: como reagiu este grupo de operários à evolução industrial e, em particular, como se comportou em fases de expansão e recessão económica? Qual a impor- tância da vivência em comum numa vila de província? Qual o papel das associações de classe? Quais os factores explicativos da revolta de 1934? Qual a génese e modalidades do seu poder? As lutas pelo «controlo operário» ressuscitaram, em Portugal, após o 25 de Abril. Houve quem o tentasse pôr em prática. E quem o rotu- lasse de utopia. Eis uma razão adicional para analisar um exemplo his- tórico concreto, para debater as razões deste particular episódio e para reflectir um pouco sobre o que, neste caso, existe de arcaico e de moderno. A ideia de uma classe-sujeito, formada por produtores associados, capaz de gerir a produção e a sociedade, surgia naturalmente a partir da experiência destes trabalhadores de ofício exercendo um real poder no local de trabalho. Detinham conhecimentos técnicos insubstituíveis, que os colocavam, na oficina, no topo da hierarquia. Existia assim um poder operário de raiz técnica, paralelo ao poder social e económico do capital, capaz de a ele se opor e de pensar a sua supressão. Esse poder não era o de todos os operários agrupados; pelo contrário, pertencia aos profissionais que, ajudados e assistidos pelos trabalhadores auxiliares, ocupavam o cume de uma hierarquia operária, independente e concor- rente da hierarquia social global. Esta sua posição permitiu-lhes certa- mente forjar uma cultura autónoma e uma escala de valores própria 1. Este artigo vem na sequência de um estudo, já publicado, sobre uma outra aristocracia operária: os chapeleiros dos finais do século Xix. Aí se analisaram, em particular, duas temáticas: a reacção à mecanização e as atitudes em face da polémica sobre o proteccionismo 2. A preocupação central actual será a caracterização sociológica de uma aristocracia operária e o estudo dos fundamentos do seu poder. Para tal objectivo escolhemos o caso dos vidreiros da Marinha Grande, no período que vai da instalação da fábrica de Stephens, em 1769, à supressão do sindicalismo livre, em 1934. I —O VIDRO E OS SEUS OPERÁRIOS A) PROCESSOS DE TRABALHO Desde o século xviii até aos princípios do século xx, o ofício de vidreiro permanece substancialmente idêntico. Os vidreiros da Marinha Grande não serão sujeitos a profundas transformações no processo de fabrico: em termos europeus, a mecanização viria muito tarde, ocorrendo, de início, fora da Marinha Grande3. 1 De entre a bibliografia mais recente ver A. Gorz, Adieu au Prolétariat, Paris, Galilée, 1980, e D. Montgomery, Workers3 Control in America, Cambridge University Press, 1979. 2 M. Filomena Mónica, «Uma aristocracia operária: os chapeleiros (1870-1914)», in Análise Saciai, n.° 60, de 1979. 8 A grande fábrica mecanizada do sector da vidraça nascerá em Santa Iria da Azoia, em 1938: a Covina. Ver Indústria Portuguesa, n.os 160 e 161, de 1941 506 Para a intervenção do Estado Novo na reorganização do vidro ver II Congresso A unidade central do trabalho era o grupo fortemente hierarquizado («a obragem»). No topo, o mestre, fixando o ritmo e a qualidade de trabalho, recrutando e treinando os jovens e determinando até as con- dições de promoção. O pessoal das equipas mantinha-se o mesmo durante longos anos, o que permitia o desenvolvimento de relações muito íntimas. Uma vez que frequentemente os aprendizes eram filhos de mestres, a hierarquia do trabalho vinha, na maior parte dos casos, reforçar relações familiares, já de si autoritárias. Em função da respectiva composição, contam-se duas espécies prin- cipais de vidro: ordinário e cristal. Os seus componentes essenciais são: os vitrificantes (quase sempre a sílica, proveniente da areia) e os funden- tes (permitindo baixar a temperatura de fusão da composição, normal- mente soda). Os vidros à base de chumbo, isto é, o cristal, resultam da junção de um silicato de chumbo a um silicato alcalino. Como combustível para os fornos do vidro podia utilizar-se a lenha ou a hulha, sendo na Marinha Grande, desde sempre, a lenha o com- bustível preferido, devido não só à proximidade da floresta, mas também ao facto de a lenha resinosa ser particularmente apropriada. Dentro da indústria do vidro existem três grandes sectores: a vidraça, a garrafaria e a cristalaria. A unidade básica do trabalho era o grupo, hierarquicamente estruturado e funcionalmente organizado. Embora a mão-de-obra tivesse desde sempre pretendido manter-se cantonada dentro da sua especialidade, a tecnologia não diferia muito. A diversidade dos ofícios tinha como cimento a lógica unitária da matéria-prima comum. Possuímos diversas descrições do processo de fabrico do vidro, A mais completa é-nos fornecida pelo esplêndido relatório de Sebastião Betâmio de Almeida, relator da comissão criada em 1859 pelo ministro da Fazenda para elaborar um inquérito à Real Fábrica e de que faziam também parte João Andrade Corvo e Manuel José Ribeiro. A partir desta fonte conseguimos obter elementos muito valiosos para o estudo da vidraça, da coparia e do cristal de mesa, produtos tradicionais na Real Fábrica4. A matéria silicosa usada era a areia duma localidade próxima, a Barrosa5. A fim de a depurar tanto quanto possível da argila ferruginosa, um grupo de mulheres estava encarregado de a lavar. A soda provinha da Inglaterra, embora por vezes fosse nacional, de muito pior qualidade. A Real Fábrica gozava do privilégio tradicional de poder importar as matérias-primas estrangeiras isentas de direitos. No caso da soda, esta ficava-lhe, em 1859, por menos 15 réis por quilograma em relação ao da Indústria Portuguesa, 1957. O sector de garrafaria, mais disperso geografica- mente, tinha entretanto introduzido alguns melhoramentos tecnológicos, mas fora da Marinha Grande. 4 Sebastião Betâmio de Almeida, Relatório sobre a Fábrica Nacional de Vidros da Marinha Grande, Lisboa, Imprensa Nacional, 1860; ver ainda Actas das Sessões de Inquérito da Comissão Encarregada de Estudar a Exposição Internacional do Porto, Lisboa, Imprensa Nacional, 1865, Inquérito Industrial de 1881 e de 1890 e Relatórios e Catálogos da Exposição Industrial Portuguesa, Lisboa, Imprensa Na- cional, 1891. 5 No caso do cristal fino importava-se areia da Inglaterra ou França. O quartzo de Mangualde, usado para substituir esta areia especial, ficava, depois de trans- portado, calcinado e moído, mais caro do que a areia francesa, devido ao elevado preço do transporte nacional. Ver A. Calazans Duarte, «A indústria vidreira: aspectos gerais», in Livro do I Congresso das Actividades do Distrito de Leiria, Lisboa, IAC, 1944. 507 preço pago por outras empresas. A mistura das matérias-primas era feita à pá em caixas abertas, antes de entrar nos fornos. O combustível, a lenha do pinhal de Leiria, era obtido em condições excepcionalmente favoráveis pela Real Fábrica, que não pagava senão o transporte. O fabrico da vidraça era, de longe, o trabalho mais violento e que maior robustez física exigia do operário. De pé num estrado, debruçado sobre uma vala seca aberta no soalho, um vidreiro ia soprando através da «cana», tubo de ferro com cerca de 1,50 m de comprimento6, até conseguir um balão cilíndrico de aproximadamente 2 m, sendo o vidro constantemente aquecido ao mesmo tempo que soprado e agitado dentro da vala, num movimento cadenciado de pêndulo.