Uma Região Em Busca De Identidade a Region in Search of Identity
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Cadernos de Geografia nº 33 - 2014 Coimbra, FLUC - pp. 163-167 Uma região em busca de identidade A region in search of identity Carlos Ascenso André Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. Faculdade de Letras. Universidade de Coimbra. [email protected] Construirá o observador seu miradouro, lugar fora, como se aguardasse, em cada esquina de cada de afadigada vigia e aturada vigília, de onde possa dia, de cada ano, o eriçar das lanças guerreiras, o contemplar o longe e o perto, o tempo e o espaço, tropel dos cavalos que para Aljubarrota se aprestam o vai‑e‑vem dos dias e o vai‑e‑vem das gentes, os ou o despertar dos fantasmas sepultados pelo terra- rostos e os passos, as vozes e os silêncios, as mansões moto de 1755. Ou um outro, ainda, que resplandece e os casebres, o marulhar do vento e o mergulhar de verdes beirais ante o sol a pino, em Porto de Mós, das águas. Construirá o observador seu miradouro. altivo no cume da colina, como que a espreitar E, com precisão, nele há‑de desenhar seu posto de exércitos perdidos no tempo, acautelado de invaso- vigia, a coberto de tempo e de olhares, resguardado, res hostis que rumam à mesma batalha. Ou as ruínas porventura, de si mesmo. de um outro, em Alcobaça. Ou um fortim a desafiar Dali espreitará as serranias, sejam as que al- as vagas, lá em baixo, na Nazaré. Ou uma fortaleza bergam sombras frondosas e segredos insuspeitados, em cujas celas se escondem segredos de torturas e nos cumes da Serra de Sicó, sejam as que se expõem gemidos que as águas não apagam, em Peniche. Ou, ao sol, na aridez de Aire e Candeeiros, prenhes de enfim, as longas muralhas que, em Óbidos, parecem pedraria e de grutas por esventrar, sejam as falésias querer abraçar a lagoa, ameias alçadas ao sol poen- alcantiladas que a pique resvalam sobre as marés te, onde se adivinham lanças e capacetes e estan- imponentes de Peniche. Serão diferentes, talvez; dartes, que de armas e cor é feita a bordadura do mas serão, também, semelhantes, na sua altivez de castelo. Serão diferentes, todos eles, sem dúvida, serra e pedra e na sobranceria com que desafiam o no recorte, no desenho, na construção, na cor e, olhar e o sol e os pequenos abismos que delas pare- até, na grandeza. Mas são, também, semelhantes na cem ter‑se desprendido no correr dos anos. altivez do porte, na ostentação da força, no peso Dali espreitará rios e ribeiras, arroios e riachos, dos anos, da história, das lendas, semelhantes, afinal, valas e levadas. Dali verá serpentear o Arouce, ainda na sua função de guardiães da memória e dos rostos cristalino entre pinhais, ou a Ribeira de Pêra, onde de quem a habita. se guardam memórias de fiandeiras. Dali verá a Ribei- Dali espreitará templos, catedrais, mosteiros e ra de Seiça, que ao mar parece fugir, para se refugiar conventos. Uma pequena ermida na Golpilheira ou no Nabão, logo ao lado. Dali verá o Lis e o Lena e em Tomaréis ou em Seiça ou em Cela, em Cós, em tentará perscrutar‑lhes histórias e lendas de encantar, Redinha, em Monte Real, na velha cidade termal de cantos pastoris e novelas de amores que nas pregas Caldas, uma pequena ermida, no fim de contas, em alongadas da memória se disfarçam, ainda, como se cada aldeia, em cada povoado, a ecoar cantos de nas águas dos amorosos rios lograssem esconder‑se, sabor medievo. Dali contemplará catedrais e sés, até que, enlaçados, se deixem suavemente mergulhar como em Leiria, imponente aos pés do castelo, alça- nas areias da Vieira. Dali verá o Alcoa e o Baça e, da sobre o lajedo com as cores dos séculos e dos quem sabe?, os hinos de monges que neles ficaram a passos que o pisaram, ou em Ourém, erguida das ecoar sob as arcadas do Mosteiro. Serão diferentes, cinzas do terramoto, para albergar a velha cripta do por certo, todos eles, diferentes no serpentear, dife- fundador, ou em Milagres, na grandiosidade do san- rentes no dedilhar da memória; mas serão semelhan- tuário, ou em Atouguia da Baleia. Ou em Fátima, sem tes, também, na sua essência de água fresca, nascida o peso do tempo, mas com o peso da fé e das multi- da terra e que com ela se confunde. dões. E deter‑se‑á em mosteiros com mil segredos Dali espreitará, ainda, fortalezas e castelos, por desvendar, com pedras que albergam, ainda, os carregados de tempo e de história, habitados por fazedores de uma história de oito séculos e uma ar- moiras encantadas e lendas de encantar. Aquele que quitetura especiosa nos seus arcos, suas naves, suas em Pombal se ergue, sobranceiro à planície e ao capelas feitas ou imperfeitas, e seus silêncios e seus Arunca, sentinela atenta a perscrutar os domínios do cânticos, seus monges, suas preces, seus rituais; e Marquês. Ou estoutro que serve de sombra proteto- seus heróis, também, venturosos ou malditos, amados ra a Leiria, irmanado com a Catedral, habitado por ou odiados, heróis no seu tempo e heróis adiados, e, sombras da fidalguia que, nas noites de verão, pa- com eles, seus mitos e suas crónicas por escrever. rece, ainda, contemplar dos paços senhoriais a cida- Verá, talvez, Pedro e Inês, em Alcobaça, os Príncipes de que a seus pés se desdobra, rente ao Lis. Ou de Avis na Batalha, rostos sem nome em Cós. Serão essoutro que conserva a memória dos Condes de diferentes esses templos perdidos em aldeias por Ourém, entregue ao seu ermo desassossegado, de descobrir, essas largas igrejas, sés e catedrais, esses onde contempla os vales que dali se espraiam serra conventos e mosteiros, cada um com suas linhas, seu 163 Cadernos de Geografia Carlos Ascenso André retrato, afinal, cada um com seu orago e seu orácu- prolonga, num tumulto infindo de águas revoltas, a lo, cada um com sua raiz e seu presente, cada um longa voz do pai oceano. com sua arte e seu artista, quando o tempo no‑lo E descobrirá, ante a surpresa e a emoção, que deixou, que as mais das vezes se perdeu nos meandros o retrato da fera bruta e abrupta, traçado a carvão dos séculos o nome do arquiteto. Serão diferentes, por Loureiro Botas, mantém plena atualidade, seja sim. Mas serão, também, semelhantes na sua essên- ele desenhado na Vieira, onde o foi, seja na Nazaré, cia de templos, no seu silêncio e quanto nele se seja nos areais de Peniche: guarda de vozes vindas de longe, na sua traça apon- tada ao azul do céu, na sua presença dominadora “Tomado de uma bárbara beleza o mar sobre léguas em redor, na crença com que foram era outra vez a fera desvairada a vomitar feitos, na esperança que os ergueu, nas paredes raivas. Cruzava as suas ondas sobrepostas, rasgadas de preces que os encerram. entrechocando‑as, espadanando‑as, Deter‑se‑á o observador em seu miradouro, qual reabsorvendo‑as para lhes dar maior posto de vigia e posto de combate com o tempo, com força, espalhando‑as pelo ar, em franjas a história. E dali verá como são diferentes as águas de cristal: arrancava das entranhas ri- que se vão espraiando na Vieira, no Samouco, no Osso bombos e rugidos, uivos que se diriam da Baleia, no Pedrógão, daquelas que perdem o vigor soluços de monstro extenuado. Erguia‑se São Martinho adentro, na placidez da enseada; dife- e tombava: e desmaiava, e ressurgia, rentes, também, das que embatem com fúria destrui- chocalhando castelos, sacudindo gigantes dora contra a penedia de São Pedro de Moel ou contra indomáveis, torcendo, derruindo, fume- as falésias castigadas de Peniche. E experimentará gando, arremetendo com a terra, a babar- olhar todas as vagas com o olhar sentido de Afonso -se todo em amarelentas espumas que Lopes Vieira, poeta de terra e de mar: vinham rebentar em brancuras de neve. A praia era barreira alta de areia cavada “Vejo no mar, para onde os olhos deito, pelas marés: e as ondas rojavam‑se até ondas altas quebrando com bravura: essa areia sedenta, regressando, rápidas, para embater com outras que se apres- e um penedo alevanta a rocha dura, savam a expandir os ímpetos incontidos.” onde o limo pegou com brabo jeito.” (Litoral a Oeste, Lisboa, Livraria (O poeta saudade, p. 41) Portugália, 1940). Ou, mais tomado da grandeza do areal: Do seu miradouro perscrutará o observador mulheres e homens, rostos tisnados de tempo, corpos “Quando o Mar, rouco e demente, marcados de terra, com odor a resina, uns, com odor arma as ondas para a guerra, a maresia, outros. Mulheres e homens que na terra e avança raivosamente, buscam seu sustento e seu alento, que na terra lavram cravando as unhas na Terra, suas agruras e seus desvarios, que madrasta é ela (....) para quem dela vive, como em Bombarral, em Óbidos, p’ra grande fúria do Mar em Caldas, em Alcobaça. Mulheres e homens que em sua alma lhe diz nessa outra terra mergulham as mãos, barro chama- p’los ramos a baloiçar: da, dele fazendo formas e cores e sonhos e pão. Senhor Mar, que mal lhe fiz?” Mulheres e homens que em Alcobaça, em Caldas da (Ar livre, p. 29‑30) Rainha, em Porto de Mós, na Bajouca porfiam, ainda, na afirmação da arte cerâmica, tão velha, tão gasta, E declamará os versos mil vezes recordados do mas tão sua, apostados numa crença que no passado mesmo poeta, em homenagem ao Pinhal de Leiria: encontra a sua raiz. Mulheres e homens que à boca de um outro forno assomam, presos dessa outra arte, “Catedral verde e sussurrante, onde a do vidro, por terras de Marinha Grande, e dessas a luz se ameiga e se esconde bolas de fogo constroem formas e cores e novelos de e aonde ecoando a cantar luz e lampejos de azul, como se na transparência do se alonga e se prolonga a longa voz do mar.” vidro e do cristal se inscrevesse e se escrevesse, em (Ilhas de bruma, p.