Cadernos de Geografia nº 33 - 2014 , FLUC - pp. 163-167

Uma região em busca de identidade A region in search of identity

Carlos Ascenso André Departamento de Línguas, Literaturas e Culturas. Faculdade de Letras. Universidade de Coimbra. [email protected]

Construirá o observador seu miradouro, lugar fora, como se aguardasse, em cada esquina de cada de afadigada vigia e aturada vigília, de onde possa dia, de cada ano, o eriçar das lanças guerreiras, o contemplar o longe e o perto, o tempo e o espaço, tropel dos cavalos que para Aljubarrota se aprestam o vai­‑e­‑vem dos dias e o vai­‑e­‑vem das gentes, os ou o despertar dos fantasmas sepultados pelo terra- rostos e os passos, as vozes e os silêncios, as mansões moto de 1755. Ou um outro, ainda, que resplandece e os casebres, o marulhar do vento e o mergulhar de verdes beirais ante o sol a pino, em Porto de Mós, das águas. Construirá o observador seu miradouro. altivo no cume da colina, como que a espreitar E, com precisão, nele há­‑de desenhar seu posto de exércitos perdidos no tempo, acautelado de invaso- vigia, a coberto de tempo e de olhares, resguardado, res hostis que rumam à mesma batalha. Ou as ruínas porventura, de si mesmo. de um outro, em Alcobaça. Ou um fortim a desafiar Dali espreitará as serranias, sejam as que al- as vagas, lá em baixo, na Nazaré. Ou uma fortaleza bergam sombras frondosas e segredos insuspeitados, em cujas celas se escondem segredos de torturas e nos cumes da Serra de Sicó, sejam as que se expõem gemidos que as águas não apagam, em Peniche. Ou, ao sol, na aridez de Aire e Candeeiros, prenhes de enfim, as longas muralhas que, em Óbidos, parecem pedraria e de grutas por esventrar, sejam as falésias querer abraçar a lagoa, ameias alçadas ao sol poen- alcantiladas que a pique resvalam sobre as marés te, onde se adivinham lanças e capacetes e estan- imponentes de Peniche. Serão diferentes, talvez; dartes, que de armas e cor é feita a bordadura do mas serão, também, semelhantes, na sua altivez de castelo. Serão diferentes, todos eles, sem dúvida, serra e pedra e na sobranceria com que desafiam o no recorte, no desenho, na construção, na cor e, olhar e o sol e os pequenos abismos que delas pare- até, na grandeza. Mas são, também, semelhantes na cem ter­‑se desprendido no correr dos anos. altivez do porte, na ostentação da força, no peso Dali espreitará rios e ribeiras, arroios e riachos, dos anos, da história, das lendas, semelhantes, afinal, valas e levadas. Dali verá serpentear o Arouce, ainda na sua função de guardiães da memória e dos rostos cristalino entre pinhais, ou a Ribeira de Pêra, onde de quem a habita. se guardam memórias de fiandeiras. Dali verá a Ribei- Dali espreitará templos, catedrais, mosteiros e ra de Seiça, que ao mar parece fugir, para se refugiar conventos. Uma pequena ermida na Golpilheira ou no Nabão, logo ao lado. Dali verá o Lis e o Lena e em Tomaréis ou em Seiça ou em Cela, em Cós, em tentará perscrutar­‑lhes histórias e lendas de encantar, Redinha, em Monte Real, na velha cidade termal de cantos pastoris e novelas de amores que nas pregas Caldas, uma pequena ermida, no fim de contas, em alongadas da memória se disfarçam, ainda, como se cada aldeia, em cada povoado, a ecoar cantos de nas águas dos amorosos rios lograssem esconder­‑se, sabor medievo. Dali contemplará catedrais e sés, até que, enlaçados, se deixem suavemente mergulhar como em , imponente aos pés do castelo, alça- nas areias da Vieira. Dali verá o Alcoa e o Baça e, da sobre o lajedo com as cores dos séculos e dos quem sabe?, os hinos de monges que neles ficaram a passos que o pisaram, ou em Ourém, erguida das ecoar sob as arcadas do Mosteiro. Serão diferentes, cinzas do terramoto, para albergar a velha cripta do por certo, todos eles, diferentes no serpentear, dife- fundador, ou em Milagres, na grandiosidade do san- rentes no dedilhar da memória; mas serão semelhan- tuário, ou em Atouguia da Baleia. Ou em Fátima, sem tes, também, na sua essência de água fresca, nascida o peso do tempo, mas com o peso da fé e das multi- da terra e que com ela se confunde. dões. E deter­‑se­‑á em mosteiros com mil segredos Dali espreitará, ainda, fortalezas e castelos, por desvendar, com pedras que albergam, ainda, os carregados de tempo e de história, habitados por fazedores de uma história de oito séculos e uma ar- moiras encantadas e lendas de encantar. Aquele que quitetura especiosa nos seus arcos, suas naves, suas em Pombal se ergue, sobranceiro à planície e ao capelas feitas ou imperfeitas, e seus silêncios e seus Arunca, sentinela atenta a perscrutar os domínios do cânticos, seus monges, suas preces, seus rituais; e Marquês. Ou estoutro que serve de sombra proteto- seus heróis, também, venturosos ou malditos, amados ra a Leiria, irmanado com a Catedral, habitado por ou odiados, heróis no seu tempo e heróis adiados, e, sombras da fidalguia que, nas noites de verão, pa- com eles, seus mitos e suas crónicas por escrever. rece, ainda, contemplar dos paços senhoriais a cida- Verá, talvez, Pedro e Inês, em Alcobaça, os Príncipes de que a seus pés se desdobra, rente ao Lis. Ou de Avis na Batalha, rostos sem nome em Cós. Serão essoutro que conserva a memória dos Condes de diferentes esses templos perdidos em aldeias por Ourém, entregue ao seu ermo desassossegado, de descobrir, essas largas igrejas, sés e catedrais, esses onde contempla os vales que dali se espraiam serra conventos e mosteiros, cada um com suas linhas, seu

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retrato, afinal, cada um com seu orago e seu orácu- prolonga, num tumulto infindo de águas revoltas, a lo, cada um com sua raiz e seu presente, cada um longa voz do pai oceano. com sua arte e seu artista, quando o tempo no­‑lo E descobrirá, ante a surpresa e a emoção, que deixou, que as mais das vezes se perdeu nos meandros o retrato da fera bruta e abrupta, traçado a carvão dos séculos o nome do arquiteto. Serão diferentes, por Loureiro Botas, mantém plena atualidade, seja sim. Mas serão, também, semelhantes na sua essên- ele desenhado na Vieira, onde o foi, seja na Nazaré, cia de templos, no seu silêncio e quanto nele se seja nos areais de Peniche: guarda de vozes vindas de longe, na sua traça apon- tada ao azul do céu, na sua presença dominadora “Tomado de uma bárbara beleza o mar sobre léguas em redor, na crença com que foram era outra vez a fera desvairada a vomitar feitos, na esperança que os ergueu, nas paredes raivas. Cruzava as suas ondas sobrepostas, rasgadas de preces que os encerram. entrechocando­‑as, espadanando­‑as, Deter­‑se­‑á o observador em seu miradouro, qual reabsorvendo­‑as para lhes dar maior posto de vigia e posto de combate com o tempo, com força, espalhando­‑as pelo ar, em franjas a história. E dali verá como são diferentes as águas de cristal: arrancava das entranhas ri- que se vão espraiando na Vieira, no Samouco, no Osso bombos e rugidos, uivos que se diriam da Baleia, no Pedrógão, daquelas que perdem o vigor soluços de monstro extenuado. Erguia­‑se São Martinho adentro, na placidez da enseada; dife- e tombava: e desmaiava, e ressurgia, rentes, também, das que embatem com fúria destrui- chocalhando castelos, sacudindo gigantes dora contra a penedia de São Pedro de Moel ou contra indomáveis, torcendo, derruindo, fume- as falésias castigadas de Peniche. E experimentará gando, arremetendo com a terra, a babar­ olhar todas as vagas com o olhar sentido de Afonso ‑se todo em amarelentas espumas que Lopes Vieira, poeta de terra e de mar: vinham rebentar em brancuras de neve. A praia era barreira alta de areia cavada “Vejo no mar, para onde os olhos deito, pelas marés: e as ondas rojavam­‑se até ondas altas quebrando com bravura: essa areia sedenta, regressando, rápidas, para embater com outras que se apres- e um penedo alevanta a rocha dura, savam a expandir os ímpetos incontidos.” onde o limo pegou com brabo jeito.” (Litoral a Oeste, Lisboa, Livraria (O poeta saudade, p. 41) Portugália, 1940). Ou, mais tomado da grandeza do areal: Do seu miradouro perscrutará o observador mulheres e homens, rostos tisnados de tempo, corpos “Quando o Mar, rouco e demente, marcados de terra, com odor a resina, uns, com odor arma as ondas para a guerra, a maresia, outros. Mulheres e homens que na terra e avança raivosamente, buscam seu sustento e seu alento, que na terra lavram cravando as unhas na Terra, suas agruras e seus desvarios, que madrasta é ela (....) para quem dela vive, como em , em Óbidos, p’ra grande fúria do Mar em Caldas, em Alcobaça. Mulheres e homens que em sua alma lhe diz nessa outra terra mergulham as mãos, barro chama- p’los ramos a baloiçar: da, dele fazendo formas e cores e sonhos e pão. Senhor Mar, que mal lhe fiz?” Mulheres e homens que em Alcobaça, em Caldas da (Ar livre, p. 29­‑30) Rainha, em Porto de Mós, na Bajouca porfiam, ainda, na afirmação da arte cerâmica, tão velha, tão gasta, E declamará os versos mil vezes recordados do mas tão sua, apostados numa crença que no passado mesmo poeta, em homenagem ao Pinhal de Leiria: encontra a sua raiz. Mulheres e homens que à boca de um outro forno assomam, presos dessa outra arte, “Catedral verde e sussurrante, onde a do vidro, por terras de Marinha Grande, e dessas a luz se ameiga e se esconde bolas de fogo constroem formas e cores e novelos de e aonde ecoando a cantar luz e lampejos de azul, como se na transparência do se alonga e se prolonga a longa voz do mar.” vidro e do cristal se inscrevesse e se escrevesse, em (Ilhas de bruma, p. 75) cada dia, um poema. Mulheres e homens que traba- lham o ferro e o aço, na mesma Marinha Grande, na E, ao dizer, assim, os versos do poeta, não Vieira, apostados, quem sabe?, num futuro que mer- saberá o observador com qual dessas praias melhor gulhe alicerces em algo mais que a fragilidade da casam, de quantas, em sua contemplação solitária, argila. Mulheres e homens que dão o corpo ao mar, acabara de visitar. Como ficará o observador incerto que arrastam as redes, que empunham os remos, que sobre a catedral do poeta; era ela, então, sabe­‑o rompem as águas, que suportam os batéis, que ga- bem, o velho pinhal da lenda e do rei; mas pode ser rimpam o peixe, nessa luta desigual e quase sempre qualquer outra floresta de pinho, que tantas há na inglória, mas que não deixa nem faz esmorecer as região, pois em todas elas parece alongar­‑se a longa gentes de Vieira, de Pedrógão, de Nazaré, de Peniche. voz do mar; e podem ser as fundas cavas de Peniche Talvez se interrogue o observador, perplexo no ou de São Pedro, onde não menos se alonga e se seu ponto de vigia, sobre quais os laços de identidade

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que unem os pontos cardeais deste breve território que identidade, a indústria dos lanifícios; verá como mor- com o olhar vem visitando. E aventurar­‑se­‑á, porven- reu de morte natural, sem clamores de indignação, tura, à conclusão de que poucos serão e de escassa quase, sem estertor em excesso nem desmesurado legitimidade para neles se fundar um parentesco. alarido, o mesmo é dizer, quase sem jornais nem mi- Distintos são, com efeito, os campos onde vi- nutos de abertura em televisões no horário nobre. E, ceja a pêra rocha, de Caldas a Bombarral, rumo a sul, do mesmo modo, esse outro labor, mais a sul, entre daqueles que reverdecem da pujança hortícola, em Porto de Mós e Alcobaça, com extensão a Caldas da Valado ou Caldas, ou desses outros onde se arredondam Rainha, a indústria da cerâmica. Por ali se vai manten- de cor e sabor os pêssegos de Alcobaça; como distin- do, é verdade, há quem diga que em lenta agonia ou, tos são os campos do Lis, outrora vasto paul e hoje como sustentam outros, menos pessimistas, trocando recobertos de milheiral, ou as pequenas courelas por a filosofia do sucesso pela filosofia da sobrevivência. Ourém, por Figueiró, por Alvaiázere, ali, rente à Mas também sem que o som desse definhar se faça serra, mais dadas a receber a sombra dos pinhais que ouvir, por ser quase em surdina que se assiste, com a produzir miríades de fruta ou alimento. tristeza e impotência, aos chamados dias da crise. Não Em toda essa terra se recobre o solo de vinhedos, assim na Marinha Grande, a terra do vidro e uma das é verdade. Mas longa é a distância que separa as uvas capitais da luta operária. Os confrontos de rua, as de Óbidos e Bombarral e o vinho que delas se produz manifestações quase diárias, a teimosia em não aceitar das cepas de Cortes ou de Ourém ou da Batalha ou de o destino, a violência da reivindicação, a consciência Pombal, menos afamadas, talvez, não menos especio- de classe, o vigor do combate, a união de trabalhado- so o seu produto, também. Mas são vinhedos, valha a res, de tudo isso se encheram páginas de jornais; e verdade; e neles se encontra um traço unificador do com cargas policiais e bastonadas e cortes de via pú- espaço que vai das faldas de Sicó à raia estremenha blica e ocupação de instalações, com tudo isso se que se afunda entre o mar e as portas de Lisboa. inundou o prime time das televisões e das rádios um Dirão alguns, não sem ironia, porventura, haver pouco por todo o país. Quando outros, poucos quiló- uma mancha que cobre, com regularidade pouco me- metros mais além, assistiam ao declinar da sua idade nos que uniforme, o território que o observador veio e de seu ganha­‑pão, reinava, na Marinha Grande, o visitando e que dá pelo nome pomposo de suinicultu- inconformismo, ganhava espaço a capacidade de luta ra. Desvios do nosso tempo, valha a verdade, mais e afirmava­‑se a coesão de camaradas de armas. Desti- apostado em buscar soluções de emergência e contin- nos iguais, afinal, reações tão diversas e tão distintas!... gência que arrimos radicados na tradição. Condição Não se dará por contente o observador. Olhará não bastante, em todo o caso, para nela fundar traços o passado, na busca de raízes, tentando encontrar definidores de identidade (e que identidade seria essa?); nelas a identidade que o presente parece querer além de que não são poucas as ilhas que escapam a negar­‑lhe. Mas nem mesmo esse passado é propício essa cobertura mais abonada que abonadora e a custo a certezas. Haverá laços de parentesco, é verdade, definidora de qualquer identidade que seja. num território bordejado de castelos, desde Óbidos Mas olhem­‑se as pessoas, dirá a teimosia insis- até Pombal, num território semeado regularmente tente à perplexidade indagadora do observador. Se de templos, desde Bombarral até Ourém, num terri- olharmos as pessoas, nem essas mesmas parecem tório povoado de pequenas aldeias acobertadas à pertencer a um qualquer clã de raízes ancestrais e proteção de quase minúsculas ermidas, de norte a rostos que mergulham os seus traços nos abismos sul, de este a oeste. Mas quão diversa acaba por ser insondáveis de um tempo jamais comum. Bem dis- a história de Figueiró ou Ansião da de Peniche, da tintas serão, por desprevenido que seja o olhar, de Óbidos; quão distinta a de Bombarral da de Ourém. mulheres e homens do norte, entre Sicó e Lousã, com Até que, no seu posto de observação e medita- marcas de uma estranha interioridade, meio monta- ção, dá consigo o observador a ler retratos espaçados nhesa, meio campesina, daquelas e daqueles que que outros fizeram. Encontra­‑se com Francisco Rodri- suas courelas lavram nos vales entre Aire e Cande- gues Lobo, o poeta de Leiria, de Coimbra, de Pena- eiros e entre seus montes e o mar; ou das gentes cova, das planuras alentejanas, o poeta do Lis, do mais a sul, de Caldas a caminho da Estremadura Lena, do Arunca, do Mondego e do Tejo, o mesmo que, lisboeta, o mal apelidado oeste, que oestinos serão na hora derradeira, o sorveu em seus abismos; e todos e todas quantas esta região habitam; diferen- deter­‑se­‑á em dois passos, dos quais, deliberadamen- tes nos costumes, distintas na personalidade, diver- te, retira as referências mais concretas: sas nas práticas, nas crenças, no retrato, até, se afinada for a câmara e polida a lente. E quão distin- “Entre as fragosas montanhas de Lusitânia, tas, enfim, essas mulheres de Nazaré e os homens na costa ocidental do mar Oceano[...... ] que com elas dividem a faina do mar, nos seus ritu- há um espaçoso sítio partido em verdes ais, nos seus medos, na sua ousadia, no seu folclore. outeiros e graciosos vales que a natureza E concluirá o nosso observador, contra as aparências com particular graça povoou de arvoredos de primeira leitura, que, de tanto pesarem as dife- e fontes que fazem nele perpétua prima- renças, o rosto da região é múltiplo, polícromo, vera, em meio do qual se levanta um multiforme e que está longe de ser único. monte agudo de penedia; [...... ] é culti- E o seu sentir coletivo? Perguntar­‑se­‑á. Pois bem, vada a terra de muitos pastores que na- olhará o observador o modo como se extinguiu, em queles vales e montes apacentam, pas- Castanheira de Pêra, o labor que lhe deu pujança e sando a vida contente com seus rebanhos

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e com os fruitos que a terra em abundân- E eis senão quando o nosso observador adota cia lhe oferece, assim de Ceres como de nova via. E nela se pergunta qual a identidade de Pomona, porque com a benina inspiração povos e reinos e nações. Quais os traços, por exemplo, do Céu e disposição da terra não somen- que definem a identidade de um dos mais poderosos te são as plantas mais fermosas à vista, do mundo, o povo americano, se é que povo ameri- os fruitos mais saborosos ao gosto, as cano existe; e descobre, para seu espanto e de seus flores mais suaves ao cheiro e alegres aos críticos, que os únicos laços de identidade que possui olhos, mas ainda os penedos mais engra- são o hino, a bandeira, o Presidente. E nesses três se çados e parece que menos duros” funda o ser americano. E neles três radica a coesão. (A Primavera, Vales e montes entre o E nessa nova via se pergunta sobre os laços de Lis e Lena, “Floresta Primeira”). identidade dessa enorme nação chamada Itália, que a História viu crescer desconjuntada em estados e Ou ainda: ducados e principados e casas senhoriais. E descobre que nenhuma resposta há e que a construção desse “E dali foi sair a um fermoso prado co- estado italiano assentou em contingências adjetivas, berto de graciosa verdura onde, como mais do que em razões substantivas. Chamemos­‑lhe em jardim próprio da natureza, havia políticos a esses elos de identificação e não nos en- toda a variedade de flores e boninas; em ganaremos, comenta, em surdina, o nosso observador. roda era cercado de muitas árvores que, E nota, logo depois, que o mesmo pode dizer­‑se de sem ordem mas com um aprazível des- Espanha, aqui ao lado, somatório de pequenas nações concerto, estavam entremetidas: em meio que dão por nome Galiza, Catalunha, Castela, País do copado salgueiro e sombrio freixo se Basco, Astúrias, Andaluzia; e que, na fusão de estados levantava o fúnebre acipreste; sobre o dentro do estado, a identidade de cada um se não sagrado louro e branco álamo se derra- esbateu e sobrou, apenas, para o povo espanhol, a mava em curiosos laços a verde parreira identidade política, não raro alicerçada na força. e da amorosa murta, que com miúdas Não caminha mais longe, no mergulho que fará ramas cercava os silvados representando dentro de si, o nosso observador. Porque depressa artificiosas figuras que de outras cheiro- há­‑de concluir que a identidade de cada povo, de cada sas flores se cobriam; e ao longe aparecia território, de cada região é tecida, antes de mais, da com agudas folhas o áspero pinheiro pelo vontade das gentes que constituem esse povo, que pé de ũa serra que por ambas as partes habitam esse território, que povoam essa região. se alevantava, e na decida dela ficavam Regressará, então, o nosso observador às terras algũas cabanas de pastores obradas com que do sul de Coimbra se estendem até às franjas muito artifício e galantaria” mais a norte das terras vizinhas de Lisboa; que do mar (A Primavera, Vales e montes entre o se vão alargando até confinar com as serranias que Lis e Lena, “Floresta terceira”). separam de um outro interior. E, no seu regresso à observação iniciada, depara­‑se com uma pergunta, A terra assim descrita, com a emoção própria teimosa e insistente: que território é este? E descobre do poeta, é Leiria, os vales do Lis, o recanto onde Lis que é um território que não é. Um território que já e Lena se ajuntam para, enlaçados, buscarem o mar. não é Coimbra, como bem se vê por usos e costumes, Mas, retiradas as referências aos dois rios, o retrato por linguagens e rituais, por economia e por quotidia- que nos sobra poderia ser de qualquer pedaço desta nos, por culturas e por gentes; um território que região que vem de Peniche ou Bombarral até Pombal. ainda não é Lisboa, também, por distante da cidade Todos os ingredientes ali estão, próprios dos campos grande ficar, por ter outras práticas, outras crenças, e bosques a que a nossa vista se vem acostumando, outras esperanças, outras angústias. quando tempo lhe damos para contemplar a formosu- E recusa­‑se o nosso observador a aceitar que ra da natureza que nos povoa e que povoamos. este território tenha de ser, por estranha condição Dirão os mais céticos que o observador exagera, do destino, coisa nenhuma, que é o nome que se dá neste seu afã de buscar identidades onde elas não ao que não é uma coisa nem é outra, ao que parece existem, de estabelecer laços de parentesco onde a ser por exclusão de partes, ao que se afirma apenas observação minuciosa, atenta, racional e fria lhos porque não. Porque coisa nenhuma é algo que não vinha negando; que exagera na sua teimosia, cujos é; e este território é, existe, tem gentes, mulheres resultados a própria evidência lhe nega. e homens, património, raízes, história. E pensa o Críticas duras, sem dúvida, mas a que o nosso nosso observador que um território que parece ser observador não poderá furtar­‑se, escolhido que foi o coisa nenhuma, mas que terá de recusar­‑se a ser caminho da afirmação duvidosa. coisa nenhuma tem de fazer as suas escolhas. Como Retirará, então, o nosso observador o olhar de fizeram os povos que têm como único elo de identi- sua contemplação, desviá­‑lo­‑á, por uns minutos, do dade a bandeira, o hino, o rei. território que do seu posto vinha observando, da viagem É então que o nosso observador olha, com maior que, com minúcia e atenção, veio fazendo. E fechará atenção, o território que do seu posto de vigia observou. o olhar sobre si mesmo, forma, como se sabe, de o E descobre que, para além das diferenças, muitas são lançar bem mais longe, para fora do objeto de con- as semelhanças. E conclui que o que distingue cada templação que havia escolhido. pequeno pedaço acabado de visitar desse outro pedaço

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que lhe fica ao lado ou de um outro que mais abaixo se depois de pisar o chão de Aljubarrota é desdobra, o que os distingue, repara, é circunstancial, que pude admirar plenamente o génio adjetivo, e o que os aproxima pode ser substantivo, táctico do Condestável [...... ] Em Alco- essencial, dominante. E vislumbra pontos de contacto baça, a soletrar latim, encontrava o uni- onde antes quase só lhe parecia ter encontrado dife- verso ecuménico da religião; na Batalha, renças. E repara que em todo esse território há pesso- a ler português, descobria a dimensão as e que só nelas se podem fundar os laços de paren- íntima da pátria. Cada convento, cada tesco e as sementes de identidade. E que o mais é nada. castelo, cada alpendre, dava­‑me a res- E eis que numa curva de um de seus percursos, posta a perguntas que há muito fazia em em meio de tantas encruzilhadas, se cruza o nosso vão. Na fachada de uma igreja o tempo observador com um outro colega de mester, observador, escalonava­‑se por andares, a mostrar a portanto, também ele, e, para mais, poeta, senhor de riqueza, a fé, os gosto e a filosofia de visão mais aguçada e atenta e, neste caso, insuspeita, cada época. O ritmo das danças, a can- por não ter raízes na região que observa e descreve. dura das lendas, os doces festivos, os De Miguel Torga se trata, que as contingência fortuitas trajes, os utensílios de trabalho, os jogos da vida levaram a jornadear, por algum tempo, na e as próprias falas datavam os lugares e cidade do Lis e, a partir dela, a visitar campos e trilhos historiavam­‑lhes a vida. A erosão de uma que lhe são circundantes. E detém­‑se, por um pouco, falésia, a fixação de uma duna, o assore- o observador a ouvi­‑lo, na sua serenidade quase lírica: amento de uma barra, a drenagem de um pântano justificavam e davam sentido à “E começámos a percorrer sistematica- fisionomia de certos enigmas: à ilha fan- mente os arredores, num inventário mi- tasmagórica desgarrada à vista da costa, nucioso que começava na capela dos à argola de amarragem a um quilómetro oragos e acabava na erudição dos abades. do mar, à lagoa de água salgada a res- Marrazes, Milagres, Cortes, Monte Real, plandecer por detrás de um canavial.” Praia da Vieira, Marinha Grande, S. Pedro (Miguel Torga, A criação do mundo, de Muel... Mas pouco a pouco a circunfe- Lisboa, Publicações Dom Quixote, 3 rência foi­‑se alargando: Nazaré, S. Marti- ed., 2002: 388­‑389) nho, , Óbidos, Areia Branca, Atouguia da Baleia, Peniche, Ba- Longo foi o súbito encontro com o poeta. Longo, leal, Porto de Mós, Mira de Aire, Ourém... mas não fastidioso. Porque terá dado ensejo ao ob- E eu ia enchendo os sentidos de uma servador de, num ápice, como que em inesperada geografia terrena e humana insuspeitada, epifania, encontrar resposta para as dúvidas que vinha numa aprendizagem imprevista, de que formulando, com passo hesitante e rumo incerto, e só agora verificava a carência. À negra confirmação para as respostas que, de mão insegura, granítica e xistosa familiar, do pico e do viera construindo. Talvez, afinal, haja semelhanças. enxadão, fitava o complemento calcário Talvez, afinal, o parentesco tão pressurosamente do maço e do cinzel e o debrum oceânico buscado e não menos pressurosamente contestado não da quilha e do remo. Os livros tinham­‑me seja uma miragem. Talvez os laços, afinal, não sejam ensinado. Uma coisa, porém, era ler des- assim tão ténues e difusos. crições de compêndio e ver postais ilus- trados, e outra contemplar o próprio Construiu o observador seu miradouro, lugar de corpo pulsátil da paisagem, surpreender afadigada vigia e aturada vigília, de onde pôde con- os monumentos na sua majestade reco- templar o longe e o perto, o tempo e o espaço, o vai lhida, seguir uma vela branca na sua lí- e vem dos dias e o vai e vem das gentes, os rostos e quida planura azul. os passos, as vozes e os silêncios, as mansões e os Logo nos primeiros passeios, fora um casebres, o marulhar do vento e o mergulhar das águas. pasmo. De surpresa em surpresa, os olhos Construiu o observador seu miradouro. Dele observou quase não queriam acreditar que hou- e anotou semelhanças e diferenças, traços de união e vesse na pátria tantos encantos secretos, linhas de divergência. Verificou os pontos de ligação que pudessem testemunhar semelhante e os encaixes e sondou as falésias e os abismos. Con- festival de luz e harmonia. Cobertas por templa, agora, o caminho percorrido. E verifica que um céu escorrido de cetim claro e ves- grande é o desafio que ao território acabado de per- tidas de farrapos de cores variegadas, correr se apresenta; que grande é o desafio que se as terras altas, magras e ossudas iam apresenta a suas gentes: podem continuar de costas progressivamente descendo para o mar voltadas a edificar paredes e muralhas, é certo, e em brandas e ubérrimas colinas de ver- nesse afã desenhar um futuro incerto; ou podem, ao dura coalhada, até acabarem rasas e invés, partir rumo aos dias que aí vêm, de olhar alan- desmaiadas à beira de água ou brusca- ceado ao longe, a construir pontes. Teses e teorias, mente paradas em arribas, numa entre- há­‑as em quantidade bastante para sustentar ambas ga despida à carícia ou à fúria das ondas. as opções. Mas, como sempre, é às mulheres e homens, Mas a esse banquete dos sentidos juntava­ às gentes que são protagonistas e também obreiras do ‑se ainda a alegria da compreensão. Só destino, que compete decidir.

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