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O MOSTEIRO DE DE O MOSTEIRO DE SANTA CRUZ DE COIMBRA

MARIA DE LURDES CRAVEIRO

MoSeIRo d STA CRVZ d CoIMBRA

O MOSTEIRO DE SANTA CRUZ DE COIMBRA

MARIA DE LURDES CRAVEIRO

MoSeIRo d STA CRVZ d CoIMBRA 2

060 ESPAÇOS FÍSICOS E SIMBÓLICOS

061 A LINHA DAS FACHADAS A IGREJA DO MOSTEIRO A IGREJA PAROQUIAL DE SANTA CRUZ (CAFÉ SANTA CRUZ) TÍTULO A CÂMARA MUNICIPAL DE COIMBRA O MOSTEIRO DE SANTA CRUZ DE COIMBRA 087 A IGREJA AUTOR 1 A CAPELA-MOR MARIA DE LURDES CRAVEIRO AS CAPELAS LATERAIS

EDITOR 004 008 108 DIRECÇÃO REGIONAL DE APRESENTAÇÃO O PODER DA FÉ. A SACRISTIA CULTURA DO CENTRO A CONSTRUÇÃO A CAPELA DAS RELÍQUIAS 006 DE UM PERCURSO O LAVABO RESPONSÁVEL DA EDIÇÃO INTRODUÇÃO ANA MARIA BOTELHO 009 115 A FUNDAÇÃO A SALA DO CAPÍTULO COORDENAÇÃO EDITORIAL A CAPELA DE S. TEOTÓNIO MARIA JOSÉ BENTO 020 A CAPELA DE S. MIGUEL A TRAVESSIA MEDIEVAL FOTOGRAFIA 121 PEDRO MEDEIROS 023 O CLAUSTRO O PERÍODO MANUELINO A CAPELA DE JESUS ASSISTENTE DE FOTOGRAFIA CAPELAS DO CLAUSTRO JOÃO MOURA RELVAS 030 OS RELEVOS DE A CULTURA DO NICOLAU CHANTERENE DESIGN RENASCIMENTO OS ANDARES ALTOS DO CLAUSTRO FEB DESIGN 047 135 IMPRESSÃO O “LONGO SÉCULO XVI” A PATARIA E O REFEITÓRIO GRÁFICA MAIADOURO 049 142 ISBN A REVITALIZAÇÃO O CADEIRAL 978-989-95354-3-5 CULTURAL 145 DEPÓSITO LEGAL 055 O SANTUÁRIO xxx xxx A RENOVAÇÃO BARROCA DOS ESPAÇOS TIRAGEM 150 1000 exemplares 058 BIBLIOGRAFIA Coimbra 2011 A EXTINÇÃO DAS ORDENS E A DESAMORTIZAÇÃO 153 DOS BENS CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS ANTÓNIO PEDRO PITA DIRECTOR REGIONAL DA CULTURA DO CENTRO DO MINISTÉRIO DA CULTURA INTRODUÇÃO O mosteiro de Santa Cruz é um dos espa- terial e espiritual, da conquista de uma capa- MARIA DE LURDES CRAVEIRO ços patrimoniais de maior importância em de pressão política e religiosa (que, Coimbra. A sua categoria de panteão nacio- do século XII ao século XVI, apenas teve pa- nal, assumida em 2003, justifica que seja ralelo com o mosteiro cisterciense de Alco- um dos locais mais visitados do país e rei- baça), das qualidades forjadas na pronta vindica agora um estatuto de protecção a assimilação de um cultura de vanguarda que nem sempre se atendeu. ou do talento demonstrado pela auto-cons- tituição de uma espécie de centro irradia- Com a extinção das Ordens religiosas, o mos- dor de fórmulas capazes de potenciar uma teiro mergulhou em letargia acelerada pela cultura artística de forte projecção. Desde a devassa dos circuitos internos e pela destrui- sua fundação, em 1131, até ao século XIX, o ção e desvio de um espólio que identificava mosteiro de Santa Cruz escreveu uma pá- o requinte cultural dos crúzios. Da turbulên- gina brilhante nos capítulos da cultura e das cia das lutas liberais às diferentes ocupações artes e a sua relevância ultrapassou a cir- dos espaços, o recinto religioso foi dando cunscrição concreta da cidade de Coimbra. sucessivamente lugar a um processo civil im- Cabe agora honrá-lo através da recuperação parável e hoje está confinado ao bloco que de uma dignidade que, apesar de tudo, con- compreende a igreja, a sacristia, a sala do tinua latente nas faixas qualitativas cujos Capítulo, o claustro do Silêncio e o Santuário. contornos se adivinham a cada passo.

Em 1185, o rei Afonso Henriques (e depois o Um livro constitui o resultado de uma in- seu filho Sancho I) escolhia o mosteiro crú- vestigação, mas o objecto estudado não se zio para sua eterna morada, estando, desde esgota no “aprisionamento” da leitura di- logo, lançado um desafio de responsabili- vulgada. Por essa razão, o mosteiro de dade na protecção do régio sepulcro, tal Santa Cruz continuará a desafiar as inter- como se garantia um protagonismo assegu- pretações extraídas de todos os potenciais rado pela salvaguarda de uma matéria de envolvidos e de uma mística muito própria tão fortes implicações políticas e espirituais. e sempre presente. O esforço da Direcção A riqueza do mosteiro, construída a partir dos Regional de Cultura do Centro na publica- muitos apoios que os crúzios souberam ad- ção desta monografia traduz o investi- ministrar ao longo do tempo, não se circuns- mento possível na verificação dos níveis creve à tutela dos corpos dos dois primeiros categorizados do edifício, tal como res- reis de , cujos efeitos propagandís- ponde à necessidade de captação organi- ticos não deixaram nunca de ser explorados. zada do conhecimento, para que este possa Decorre, sobretudo, de um percurso feito de cumprir a sua missão vocacionada para o inteligência na gestão de um património ma- respeito e salvaguarda deste património. O PODER DA FÉ. A FUNDAÇÃO A CONSTRUÇÃO 1 DE UM PERCURSO

primeira pedra do mosteiro de Até ao século XVII, as informações sobre a Nicolau de Santa Santa Cruz foi lançada a 28 de Junho vida do mosteiro serão, principalmente, ex- Maria, Chronica da A Ordem dos Cónegos de 1131, com a protecção do futuro traídas dos relatos dos cronistas, com par- Regrantes do rei Afonso Henriques. Pela mão do arce- ticular relevo para o testemunho de Patriarcha diago D. Telo, o seu principal impulsiona- Nicolau de Santa Maria. S. Agostinho Lisboa, na officina dor, a nova comunidade religiosa adoptava de Ioam da Costa, então a regra de Santo Agostinho, com A definição dos espaços fundados em 1131 1668: BGUC, base no exemplo do mosteiro de S. Rufo no sítio dos Banhos Régios e que incluiu JF-39-5-6 em Avinhão e no texto de Hugo de S. Victor, também o horto comprado para o efeito à o Expositio in Regulam, que haveria de se diocese em 1129 permanece rodeada de in- constituir em modelo orientador da con- certezas. À indicação da preexistência de duta canonical. A Vita Tellonis, integrada um templo da invocação de Santa Cruz no Livro Santo da Sé conimbricense, equi- deve sobrepor-se o carácter ideológico da para a missão do arcediago, acompa- invocação do mosteiro sediado em terreno nhado por uma “falange de homens de da Judiaria Velha, no contexto da projecção primeiro plano em número igual ao dos citadina perante os avanços da doze Apóstolos”, ao desempenho de Cristo e da rivalidade expressa entre a Mitra e o na evangelização do mundo e no lança- recém-fundado mosteiro. Em momento mento de primeiras pedras com profundo decisivo para a consolidação das estrutu- carácter iniciático, ao mesmo tempo que, ras políticas, administrativas e clericais sintomaticamente, o inscreve no capítulo (cujo protagonista haveria de ser, logo a dos “arquitectos” da cristandade. S. Teo- partir de 1128, D. Afonso Henriques) e tónio, um dos fundadores, seria, entre 1132 numa altura em que o clero se entregava e 1152, o primeiro prior da comunidade. às disputas suscitadas pela obediência

008 | 009 dotada com as duas fontes construídas na atenção crescente ao espaço e às formas transição dos séculos XIV-XV: a fonte de arquitectónicas que reflectem a digni- S. João Baptista, em frente do mosteiro fe- dade dos conteúdos materiais e espirituais minino de S. João de Santa Cruz (ou das expostos. Donas), e a fonte de Sansão em frente da igreja do mosteiro de Santa Cruz. Em rigor, a distribuição dos espaços cons- truídos no século XII apresenta-se hoje de Referências contemporâneas da fundação difícil reconstituição. Com segurança, a do mosteiro indicam a presença de depen- igreja e o claustro edificaram-se com a dências hospitalares, com uma pequena mesma localização que hoje ocupam. capela dedicada a S. Nicolau e com cemi- Sobre as áreas ligadas ao lazer, à meditação tério anexo, a norte da mole conventual, contemplativa ou às zonas de obrigatória devidamente separado das outras áreas construção como os dormitórios, o refeitó- do mosteiro mas com acesso facilitado. rio, a cozinha, os celeiros (onde se acumu- Os investimentos patrimoniais necessá- lava o produto das numerosas rendas do rios à manutenção do , tal como o mosteiro) ou o anexo convento das Donas é apetrechamento dos livros ligados à medi- mais legítimo fazer-se, a partir das referên- cina ou a respectiva adequação dos mes- cias dispersas existentes, um esboço aproxi- tres credenciados na escola do mosteiro mado da sua implantação. E se bem que os constituíam a garantia de uma aliança de espaços definidos no século XII não te- excelência à comunidade. Também pela via nham sofrido modificações de grande da assistência hospitalar, os crúzios enri- monta permanecendo, no essencial, até às queciam a engrenagem interna da rituali- grandes reformas do período manuelino e zação ao mesmo tempo que ganhavam as as indicações literárias mencionem a gene- Túmulo de progressiva ao estipulado pela reforma gre- papal da independência nacional (1179). duras batalhas da implantação e da credi- ralidade das construções efectuadas, a ver- D. Miguel Salomão goriana, com o a apoiar a nomeação De uma habilidade diplomática exemplar, bilidade. dade é também que estas se revestem sécs. XII-XIII, claustro do mosteiro do bispo D. Bernardo (1128-1146) para a dio- os crúzios garantiam, assim, a protecção muitas vezes de um carácter vago, acrescido de Santa Cruz cese coimbrã, o mosteiro desenvolveu a sua do papa e colocavam-se também sob a Em todas as frentes são claras as preocupa- ao facto de que, ao longo dos tempos,

Torre dos sinos força no equilíbrio das tensões políticas e re- guarda régia. ções com a montagem de uma estrutura foram mudando as designações atribuídas do mosteiro ligiosas, acolhendo-se à protecção das mais material coerente com os propósitos ini- a esses espaços, o que acentua a possibili- de Santa Cruz altas instâncias do poder. As doações e compras de terrenos levaram ciais, voltados quer para o recolhimento e dade dos equívocos em termos da icono- sécs. XII-XVIII, à instalação da comunidade nos edifícios exegese dos textos bíblicos (espelhados na grafia das plantas. IC, AG-0178 No contexto da rivalidade com a Sé, os crú- rodeados pela cerca que se foi posterior- intensa e refinada actividade desenvolvida zios ganhavam a contenda da independên- mente dilatando em extensão. O Largo de a partir do scriptorium que levaria à cons- cia face ao bispo, obtendo o privilégio de Sansão ficaria fora da muralha crúzia, cujos tituição de impressionante unidade de A igreja, sagrada a 7 de Janeiro de 1228, é, Isento, dado por Inocêncio II por bula de 26 limites a poente deveriam coincidir com a saber e conhecimento), quer para a articu- desde logo, o maior exemplo dessa situa- de Maio de 1135, que colocava o mosteiro fachada da igreja e projectar-se no seu ali- lação ao mundo exterior, antecipando as ção. As capelas laterais à nave organizam-se sob a protecção directa do papado. Os con- nhamento. A poderosa torre (redefinida no práticas mendicantes desenvolvidas depois tal como foram definidas na primitiva flitos nesta matéria arrastar-se-iam durante século XVIII e demolida no século XX) que a por dominicanos e franciscanos. Paralela- construção com três capelas por lado. anos e haveriam de serenar apenas em partir do século XVI serviu de torre sineira, mente, uma acção concertada entre as di- Da parte do Evangelho construíram-se Março de 1162, pela chamada Carta de Li- integrar-se-ia na cerca primitiva e seria ro- versas faixas sociais e culturais escudava-se as capelas românicas sob a invocação de berdade concedida ao mosteiro pelo bispo deada de um conjunto de casas (do século numa política de angariação de fundos patri- S. Pedro, S. Vicente e Santo Antão e do D. Miguel Pais Salomão, cujo túmulo se lo- XIII) destinado à morada dos priores-mores moniais que haveria de fazer a imensa ri- lado da Epístola as correspondentes de caliza no claustro, logo abaixo da lápide de e depois adaptado para celeiro. O Largo, queza do mosteiro e transformá-lo no S. Miguel, Santo André e S. Tiago. A capela sagração da primitiva igreja. A autonomia pólo importante de uma sociabilidade cons- interlocutor de respeito entre as várias ins- de S. Pedro deu lugar à capela de Nossa face à tutela diocesana seria reconhecida por truída fora da protecção da muralha da ci- tâncias de poder ao longo de toda a Idade Senhora da Graça, designação pela qual já Alexandre III logo no ano seguinte, quase dade e dominado pelo mosteiro, foi sendo Média. A arquitectura e a definição de era conhecida no século XVI, e é actual- duas décadas antes do reconhecimento aumentado numa estrutura regularizada e novas espacialidades denunciam uma mente a capela do Senhor dos Passos.

o mosteiro de santa cruz 010 | 011 Santo André, no século XVII foi dedicado a Em 1934, Nogueira Gonçalves aclarava a corpo da igreja ainda em pleno século XII Santa Mónica e hoje é local de passagem organização do espaço interno da igreja ro- (Real, 1974, pp. 141-148). para a sacristia. Estas duas capelas foram mânica. A estrutura espacial edificada no unificadas no priorado de D. Gomes (1441- século XII identificava-se como o “labora- Na cabeceira da igreja, o espaço da ca- 1459) que as converteu na ampla capela dos tório experimental” de um românico tecni- pela-mor no topo a nascente apresentava Mártires de Marrocos, com cobertura abo- camente mais evolucionado em Coimbra e dimensões mais reduzidas, com uma badada de eixo paralelo ao da nave da igreja constituía-se de uma única nave coberta configuração em coro recto seguido de he- e um arco de entrada que denuncia o gótico com abóbada de berço e três capelas de miciclo pentagonal dotado de colunas quatrocentista, com evidentes paralelismos cada lado também abobadadas, com eixos adossadas. Estava acabada à morte de com as empreitadas de mestre Huguet na transversais que permitiam uma contrafor- D. Telo (1136) embora o altar só tenha sido Batalha e, possivelmente, sob a acção di- tagem de grande eficácia na segurança do sagrado em 1154 pelo arcebispo D. João recta de Fernão de Évora. Aí se situavam edifício. Para este historiador, o arquitecto Peculiar. A cabeceira era constituída ape- também diversos altares de invocação dife- mentor do projecto seria o francês Roberto, nas por uma capela, mesmo que Nicolau de renciada. Finalmente, a primitiva capela de a quem caberia também, em momento Santa Maria refira a presença de duas pe- S. Tiago (da encomenda de D. Fernando Co- posterior, a edificação da Sé Velha e a cris- quenas capelas laterais que acolitavam a gominho e sua mulher D. Joana Dias) trans- talização de uma corrente marcada como capela-mor (do lado do Evangelho a capela formou-se na designada capela dos Mártires “românico B”. Na realidade, estudos mais do Espírito Santo, do lado da Epístola a ca- (invocação pela qual era conhecida em recentes apontam para alternativas de lei- pela de Santo Agostinho) que, na reali- 1540) dando depois lugar à presença do tura que inviabilizam a continuidade tipoló- dade, deveriam corresponder a arcos Santíssimo Sacramento que aí se manteve gica entre os dois edifícios. No domínio das abertos lateralmente à capela-mor com até inícios do século XX, altura em que técnicas construtivas (amplo recurso a sis- uma definição de capelas-nichos. Junto ao mudou para a invocação do Coração de temas de alvenaria no mosteiro crúzio e primeiro, embora o respectivo altar só Jesus e, recentemente, para capela de Nossa cantaria na Sé) ou na organização dos es- tenha sido sagrado entre 1147 e 1152 pelo Senhora de Fátima. paços (nave única com capelas laterais bispo D. João Anaia, colocaram-se já os Arco de entrada da A capela de S. Vicente foi também transfor- inter-comunicantes e cabeceira com ca- restos mortais de D. Telo. A matriz da antiga capela dos Mártires de Marrocos mada no primeiro quartel do século XVI As descrições seiscentistas sobre a organi- pela única no mosteiro; três naves e cabe- planta poligonal “constitui um dos mais ine- c. 1458, igreja de para receber as estruturas de acesso ao púl- zação do espaço interno da igreja românica, tripartida na Sé), as divergências quívocos elementos-base dos templos re- Santa Cruz pito e a Deposição de João de Ruão que se já todas posteriores às reformas de frei Brás apontam para uma impossibilidade prá- grantes, utilizados nas absides da abadia de encontra no Museu da cidade, transfor- de , vão no sentido de uma definição tica de que o principal arquitecto da Sé, São Rufo de Avignon e do mosteiro ... de mando-se, nessa altura, na capela do Se- explícita de três naves. Terá sido com base mestre Roberto (que na década de 60 era Coimbra. As semelhanças entre as capelas pulcro. A capela de Santo Antão teria, logo nestes depoimentos que Jorge Rodrigues chamado para controlar a construção do laterais de São Vicente (em Lisboa) e a pre- no século XIII, mudado a invocação para defendeu já a tese das três naves com cabe- portal a poente), se possa constituir, na sumível capela-mor de Santa Cruz ... suge- Santo António. As maiores transforma- ceira tripartida para o espaço da igreja crúzia distância temporal entre as duas constru- rem, mesmo, a existência de uma relação ções ocorreram nas capelas do lado da aproximando-o, embora noutra escala e ções, como o principal ideólogo do espaço de modelo-cópia entre ambas, uma vez Epístola, por onde passaram as reformas de com outras dimensões, à proposta espacial erigido em Santa Cruz. A coincidência que que em ambos os casos, estes espaços D. Gomes Eanes, posteriormente adapta- contemplada na Sé Velha da cidade (Rodri- se verifica entre as marcas de canteiro en- são poligonais interiormente” (Fernandes, das às reformas manuelina e renascentista. gues, Jorge, 1995, p. 255). No mesmo sen- contradas nos paramentos dos dois edifí- 2010, p. 87). O espaço mais próximo da capela-mor, ini- tido expressa-se Paulo Almeida Fernandes, cios identifica tão somente a utilização de cialmente dedicado a S. Miguel, é depois referindo que “estas naves laterais se limi- um corpo laboral que atravessa as diferen- Na fachada da igreja permanece, no funda- reconvertido na capela de Santo André (in- tam a apertados corredores intercomunican- tes encomendas na cidade. A partir da mental, o resultado das campanhas qui- vocação corrente nos séculos XVI-XVII), tes com a nave central, esta de muito maior configuração do nártex da fachada româ- nhentistas. A estrutura que se mantém possivelmente consagrada a Santo Agosti- amplitude que aquelas... em Coimbra, nica da igreja de Santa Cruz e da indaga- obedece, por um lado à distribuição de pla- nho no século XVIII, adquirindo, por úl- optou-se por uma inovadora forma de abó- ção da proveniência do modelo, Manuel nos anteriores ao século XVI e definidos timo, a designação de S. João Baptista até badas transversais, que obrigou a que os tra- Real declara a sua matriz borgonhesa e pelo edifício românico, por outro à natureza que as recentes obras aqui efectuadas, em mos das naves laterais fossem o verdadeiro reduz a eventual participação de Roberto dos dois materiais que nela se harmonizam 1972, acabaram por descaracterizá-la por sistema de contrafortagem à tripla abóbada ao nártex não incluído nos planos iniciais obtendo poderoso efeito lumínico: o calcário completo. O recinto intermédio começou transversal de 11m que cobria o espaço da e, portanto, revelador de alterações de amarelo da zona do Bordalo e o calcário por constituir-se na capela românica de nave central” (Fernandes, 2010, p. 89). monta que implicaram a fragmentação do branco de Ançã.

o mosteiro de santa cruz 012 | 013 nártex, definem as medidas da sua grandeza e o espaço nas suas três dimensões. A par- tir do piso térreo do nártex e acrescentando, em altura, um outro piso, porventura com semelhante organização, poder-se-á deter- minar a altura da fachada românica que não deverá exceder o nível dos contrafortes late- rais de secção quadrangular coincidindo, aliás, com a localização do aparelho româ- nico que sobrevive no contraforte a norte. Que a primitiva fachada era mais baixa, dizem-no as cláusulas do contrato de 1513 quando se referem às novas obras a realizar por mestre Boytac: as três frestas presentes na fachada românica desapareciam para dar lugar a duas mais largas, à semelhança das que foram construídas na capela-mor, e co- meçariam exactamente ao nível da cimalha anterior. No desconhecimento do que es- conde a composição “retabular” em pedra de Ançã colocada já na década de 20 de Qui- nhentos, a fachada acabaria por ser apenas dotada de um grande janelão central que in- verteu os primeiros projectos de uma cam- Reconstituição das Nogueira Gonçalves elevou o esquema da panha que deveria estar terminada no Natal naves e quatro tramos, com a largura e com- panos de parede intermédios que terminam Arcos do primitivo épocas construtivas fachada românica, de três corpos salientes de 1513. primento da nave românica e na continua- na balaustrada protectora da grande cruz do nártex da igreja de fachada da igreja Santa Cruz de Santa Cruz alternados com dois reentrantes, à catego- ção desta até à linha da fachada coincidente Calvário são, pois, o prolongamento manue- séc. XII ria de modelo cuja repercussão mais fla- À semelhança do que parece acontecer na com a linha definida por Boytac, é, assim, a lino de uma fachada pré-estabelecida, agora séc. XII grante se encontraria na fachada próxima torre românica de S. Vicente de Fora em Lis- categoria fundamental que determina a es- com uma carga simbólica ligada à Salvação, 1518 da velha Catedral. Mas, na igreja crúzia, a boa, observável na vista quinhentista de trutura da fachada românica, com naturais possível através dos esforços conjuntos do 1522-1525 intervenção quinhentista levou à modifica- Bráunio (Civitatis Orbis Terrarum) e no de- intenções defensivas num tempo ainda prior do mosteiro e do rei. c. 1531 ção da estrutura quadrangular dos dois cor- senho da Biblioteca da Universidade de Lei- ameaçado pelo elemento muçulmano e num c.1750 pos laterais (sensivelmente a uma altura de den, também o nártex de Santa Cruz seria local desprotegido da muralha citadina. É exactamente centrada no nártex que sur- dois terços) que funcionam como grandes encimado por estrutura idêntica à sua con- giu, entretanto, uma das interpretações contrafortes, dando lugar a uma formação génere lisboeta: a partir de um hipotético As siglas dos canteiros deste período româ- mais sugestivas de todo o espaço româ- octogonal encimada por composições pira- terraço com ameias elevar-se-ia um campa- nico que se encontram distribuídas um nico. Walter Rossa, apoiado no exemplo midais também oitavadas. É o contrato esta- nário rematado por coruchéu de feição inde- pouco por todos os panos de parede da fa- leonês da Real Colegiada de Santo Isidoro, belecido em 1513 entre o mosteiro e o finida. A fachada da igreja de Santa Cruz chada, incluindo os níveis altos e concentra- integrada num plano de reconstituição da arquitecto Boytac que determina o resul- incorporava, pela primeira vez na cidade, a das, aliás, na parte superior do octógono a própria cidade de León a partir dos inícios tado ainda hoje visível na fachada da igreja. torre sineira como modelo importado do norte, só podem indicar a reutilização das do século XI, constrói um paralelismo ex- De facto, se o plano onzecentista condiciona centro e do norte da Europa. A reorganiza- pedras, novamente aparelhadas nas obras pressivo entre esta e Santa Cruz (Rossa, a fachada do século XVI no jogo de saliên- ção da fachada no período manuelino levaria dirigidas por mestre Boytac. Encontram-se 2001, pp. 336-343). Tal como em Coimbra, cias e reentrâncias bem como estipula a sua à deslocação da torre do campanário para inclusivamente pedras sigladas formando os também em León a comunidade de religio- dimensão em largura, já o mesmo não junto da sacristia obedecendo, porventura, cantos, tanto na parte quadrangular como sos, substituindo os beneditinos em 1149, acontece relativamente à altura definitiva ao projecto (não realizado) de inscrever a nos octógonos, que devem ser interpretadas era de Cónegos Regrantes de Santo Agosti- que viria a ter com a intervenção de Boytac. matriz paroquial no espaço das três capelas no universo laboral do reaproveitamento nho, sendo o mosteiro elevado à categoria Os registos presentes nas paredes interio- do lado da Epístola e, portanto, com a cabe- dos materiais disponíveis. Os botaréus octo- de abadia em 1156, data a partir da qual lhe res da igreja, que estabelecem a definição do ceira próxima da sacristia. O nártex, de três gonais encimados pelas pirâmides e os foi concedido o privilégio papal de Isento.

o mosteiro de santa cruz 014 | 015 restos mortais do rei. A ligação afectiva que tal valor regulador torna-se, assim, uma das Afonso Henriques não deixaria de ter a prioridades a cumprir, acompanhando o er- Santa Cruz determina para aqui a localiza- guer das zonas mais prementes à vida co- ção da sua última morada mas, tal como munitária. Os relatos de D. Nicolau de Santa veio a suceder, direccionada para o recolhi- Maria são explícitos em afirmar que as pri- mento claustral. Em 1185 era hora de salva- meiras campanhas construtivas decorreram guardar o país com a construção das com grande rapidez, estando o claustro aca- estruturas políticas e administrativas colo- bado em menos de um ano. cadas mais a sul; o rei, o primeiro símbolo da unidade territorial, descansaria no espaço Com ligação ao claustro situava-se também o emblemático ainda forjado no sonho da in- primitivo refeitório dos cónegos. Sem elemen- dependência. tos físicos ou documentais precisos, o pri- meiro refeitório de Santa Cruz encontrar-se-ia As imprescindíveis dependências afectas ao na ala nascente do claustro, complemen- mosteiro românico ter-se-iam basicamente tado com a fonte cuja localização foi tam- fixado nos espaços onde viriam a desenvol- bém mantida na época manuelina. ver-se a partir das reformas manuelinas. Com efeito, à excepção da mudança operada Os dormitórios representaram especial na localização do pequeno mosteiro das preocupação na definição dos espaços, com Donas e da alteração do refeitório ou das articulação funcional ao claustro e à igreja. portarias, provocadas pela redefinição de es- A solução mais comum ao longo da Idade tratégias de circulação, os vários espaços Média encontra-se na constituição de uma monacais mantiveram-se fiéis às primitivas vasta dependência destinada a albergar ali- intenções impostas na geografia crúzia. nhadamente os leitos dos religiosos sem a Escultura jacente de De idêntica forma, a construção românica reis forão postos em a igreja que oje de Os cronistas constituem ainda a principal privacidade de que só disporiam mais D. Afonso Henriques leonesa integra um nártex que funciona M.bctoxxiij (1623) serve em o lugar a que fonte de informações para a reconstituição tarde. Para o mosteiro medieval as referên- Nicolau Chanterene, 1518-1522, igreja de como pórtico da igreja e oferece um se- chamamos o cruzeiro em as duas capellas do mosteiro medieval, se bem que nem cias documentais sobre este espaço são Santa Cruz gundo piso dotado de tribuna que dá para a que oje são de nossa Senhora da Graça, e sempre coincidentes ou mesmo contradi- inexistentes ou com carácter tão lacunar nave. Finalmente, as conexões estabelecidas na outra que he de S. Andre. hua fica para o zendo-se ao longo das suas crónicas. que não é possível a sua reconstituição. entre a importância atribuída às relíquias norte outra pera o sul defronte hua da Com segurança, deve colocar-se nos pisos de Santo Isidoro, recolhidas por Fernando outra. daqui os tirou o mesmo rei D. Manoel O acesso ao mosteiro medieval pelo exte- altos do claustro, provavelmente nas alas Magno em Sevilha, a gradual estabilização pera a capella mor onde oje estão” rior contemplava duas entradas, sempre de- norte e nascente com acesso facilitado à desta invocação para a nova igreja de León (B.P.M.P.: D. José de Cristo, Miscelaneo, fl. 11). nunciadas pela generalidade dos cronistas: igreja e ao coro. e o papel das relíquias de S. Vicente, guar- Enganou-se o cronista apenas na mudança a porta da Trindade, localizada na área da ac- dadas em Lisboa em 1173, permitem-lhe para a capela-mor, já efectuada no reinado tual sacristia, e a porta de Espada à Cinta, A sacristia teve várias campanhas construti- avançar com a teoria sedutora do nártex de de D. João III. situada ou no ângulo formado pelas alas vas mantendo a localização original. A pri- Santa Cruz entendido como “coro régio”. norte e nascente do claustro do Silêncio ou meira, mais pequena e sem qualquer Por outro lado, o pressuposto da localiza- Dada a conhecida protecção do primeiro no ângulo sudeste do mesmo claustro. vestígio, foi alargada nos princípios do sé- ção inicial dos túmulos régios no pavi- monarca português ao mosteiro de Santa culo XVI. Também a primeira e mais pe- mento do nártex, estimulou também a Cruz, não é difícil adivinhar as intenções ré- O claustro é um elemento imprescindível quena casa do Capítulo, embora sem proposta de identificação do nártex como gias de aqui materializar a representação da para a vida religiosa e para a regularização referências documentais precisas, terá sido panteão régio. Na realidade, os reis foram, sua hegemonia. Se é, assim, legítimo avan- do espaço monástico. Mais do que qualquer construída com a mesma localização que inicialmente, sepultados no claustro e não çar com a ideia de um programa inicial de outra unidade, o claustro concorre para a ar- hoje ocupa. Aí se colocou o corpo de S. Teo- no nártex da igreja: “Elrej D. Afonso Henri- fortíssimos contornos de capitalidade que ticulação das várias partes do conjunto, or- tónio (falecido em 1162) em túmulo alto pro- ques e seu filho D. Sancho estavão sepulta- “manobrava” também a implantação crúzia, denando-o de forma coerente, promovendo vido de arco vazado na parede e que, dos em hua capella da claustra, e não em a já é mais ousado aceitar que a construção hierarquias na nobilitação simbólica dos di- entretanto, seria deslocado até à sua defini- igreja... elrej D. Manoel na reedificacão do do nártex implicava, igualmente, a definição ferentes espaços e assumindo a sua própria tiva instalação em capela própria também templo reedificou tambem a claustra, e os expressa do panteão régio que acolheria os especificidade. A construção da quadra com na mesma casa.

o mosteiro de santa cruz 016 | 017 A livraria captou, desde sempre, a atenção e escolásticos, aos quais se acrescentavam criada a de Santa Cruz, ocupando Donas nelas se instalassem. Se D. Telo tri- dos cónegos, embora não se possa referen- hagiografias, textos pedagógicos, tratados a sua igreja que serviu também de paroquial plicou o número das Donas, talvez em seu ciar um espaço preciso até ao século XVI. de retórica ou obras de física, astronomia, com a invocação de S. João Baptista, onde tempo se tenham comprado casas para alo- O empenho nesta área saldou-se, ao longo medicina ou cosmografia. Em suma, o tri- permaneceu até à construção quinhentista jar as novas freiras. E o “convento”, afinal, de toda a Idade Média, pelo aumento cons- vium e o quadrivium desde cedo implanta- de S. João de Santa Cruz. Com dimensões não será anterior à própria fundação do tante da colecção que abrangia as matérias dos na escola crúzia. A área de implantação reduzidas, a primitiva capela adequava-se à mosteiro de Santa Cruz? do espiritual ligadas à liturgia e à música, ao desta riquíssima colecção teria de se situar comunidade diminuta das Donas e articu- reconhecimento actualizado dos textos pa- algures na estratégia de circulação claustral. lava-se também ao restante espaço organi- A norte do “mosteiro” das Donas, e entre trísticos e escolásticos, à generalidade das Sem que seja possível localizá-la com rigor, zado em torno de um claustro a partir do este e o ribeiro dos Banhos, ficariam as artes liberais do trivium e do quadrivium e é legítimo pensá-la com acesso facilitado às qual se desenvolveria o futuro claustro da casas de Salvado Peres e de Martinho Fo- passava também pelas preocupações de or- diferentes funções reservadas aos livros, di- portaria. Todas as dependências imprescin- cino, vendidas aos cruzios em Outubro de namentação dos códices, pacientemente re- rigidas para consumo interno e externo ao díveis à vida comunitária estariam localiza- 1175... Ambas confrontavam com o mosteiro produzidos e iluminados. A importância de mosteiro. das a norte da igreja, encaixadas entre esta das Donas, que lhes ficava a sul. Por outro um espólio constantemente actualizado faz a sul e o claustro do Silêncio a nascente lado, a casa de Martinho Focino e a de de Santa Cruz a instituição de Saber sem O problema da implantação do mosteiro formando, porventura, uma quadra regular. Salvado Peres confrontavam com a de um concorrência credível na cidade, ao mesmo das Donas, desde o início integrado na cerca A documentação sobre a disposição con- D. Godesteu que, ao professar no mosteiro tempo que cria as condições necessárias ao conventual dos regrantes e sob a directa ad- creta dos espaços é omissa, sendo hoje im- de Santa Cruz (quando, exactamente?), a papel vanguardista que iria assumir na con- ministração do prior-mor permanece em possível a recuperação de quaisquer vestígios havia doado aos crúzios – casa que, ainda dução da cultura do Humanismo e do Re- aberto. Embora se lhe conheçam referências materiais concludentes. Globalmente, é a in- em 1175, os crúzios trocaram por outra que nascimento em Coimbra. Até à primeira a partir de 1133, a documentação medieval serção das Donas no recinto hoje ocupado era de Pedro Gontades e ficava juxta murum metade da década de 40 de Quinhentos, o persistiu num quase silenciamento, com um pela Câmara que justifica a “insólita” deslo- Sancta Crucis” (Alarcão, 2008, pp. 285-286). mosteiro de Santa Cruz configurou um pro- relevo diluído pela importância do mosteiro cação do claustro crúzio para nascente, não jecto cultural de liderança, substituído de- masculino. Apenas em momentos de al- acompanhando, como habitualmente, um Num discurso pautado por interrogações, o pois pela Universidade, em conjugação de guma conflitualidade, como as contendas dos alçados do corpo da igreja. autor acaba por assumir que, “Apesar dos esforços com outros institutos religiosos. que envolveram a saída de D. Mor Dias confrontos que nos citados documentos se É, em suma, ao património cultural e inte- para fundar o mosteiro de , de Tentando uma outra via de análise docu- mencionam, não conseguimos, porém, arti- lectual de Santa Cruz que, obrigatoriamente, pendor franciscano, o mosteiro feminino mental (o Livro Santo e o Livro de D. João cular estes prédios entre o “mosteiro” (ou as se têm de ir buscar as referências de base saltaria para a ribalta dos acontecimentos Teotónio, o segundo prior de Santa Cruz) e casas) das Donas e o Ribeiro dos Banhos” que dimensionam também as estratégias ci- protagonizando a atenção dos cónegos. escudado num discurso historiográfico (Alarcão, 2008, p. 286). tadinas no plano do artístico. Normalmente recrutadas entre a aristocra- sempre hipotético, Jorge de Alarcão cons- cia fundiária, as “sorores”, em número redu- truiu recentemente uma possibilidade de re- O mosteiro de Santa Cruz enfrentou os con- Ainda sem o carácter organizado pela cultura zido que não excedeu a dezena, arrastaram constituição alternativa para o mosteiro das dicionalismos presentes num território que humanista que viria a desembocar na cria- para a posse dos crúzios novos domínios Donas: ”Na opinião dos historiadores que teve de gerir as tensões religiosas entre os ção dos colégios de Santo Agostinho (inte- em sucessivas doações patrimoniais de que se têm dedicado ao estudo do mosteiro de defensores do rito romano ou os que prote- grando o célebre geral de Santa Catarina) e estes não prescindiram facilmente. Santa Cruz, o mosteiro das Donas ficava no giam o ritual hispânico, que teve de cons- de S. João Baptista, e depois nos colégios de espaço que o edifício da Câmara Municipal truir os equilíbrios entre a sujeição a Castela S. Miguel e de Todos-os-Santos, a estrutura A posição historiográfica mais divulgada hoje ocupa. Mas não terá sido esse o seu as- e o partido independentista de Afonso Hen- monástica exigia uma reflexão e comentá- sobre a igreja das Donas situa-a a norte da sento primitivo. Ainda na década de 1170, o riques, que teve, em suma, de consagrar as rios aos textos sagrados em permanente ar- igreja crúzia, ocupando o espaço que fun- mosteiro das Donas ficaria entre o rivulum “fortalezas” da fé como bandeiras avança- ticulação com o espólio presente na livraria. cionou depois como geral de Santa Catarina. de Balneis e a via Sororum que passava a sul das na conquista do espaço cristão. O trabalho de actualização desse espólio e da A igreja românica encaixar-se-ia entre as pa- da casa de Egas Godinho... Imaginamos a realização de cópias sucessivas dos códices redes do topo poente da capela de Santo via Sororum correndo ao longo e a norte da destinava-se a apetrechar o coro, o capítulo, Antão e a correspondente ao lado norte do cerca do mosteiro. o claustro, a mesa, a escola e a disponibi- nártex crúzio, avançando (com orientação lizar os livros para empréstimo externo. nascente-poente) para poente até onde se Talvez o primitivo convento das Donas de Dessas colecções faziam parte os livros li- vê hoje a parede terminal do antigo geral de Santa Cruz não fosse um edifício construído túrgicos (Leccionários, Saltérios ou Bí- Santa Catarina. Praticamente ao mesmo de raiz, mas uma série de casas que teriam blias), Regras Canonicais, textos patrísticos tempo que as Donas se instalavam era sido compradas (e adaptadas) para que as

o mosteiro de santa cruz 018 | 019 A TRAVESSIA MEDIEVAL

Busto-relicário mosteiro de Santa Cruz nasceu num A vitalidade do mosteiro de Santa Cruz, capaz A construção de uma imagem de poder re- as potencialidades que decorrem da estadia Santo António de S. Teotónio tempo de intensa renovação espiri- de interferir nos desígnios camarários e es- flecte-se também no permanente cuidado em Santa Cruz de figuras proeminentes no madeira estofada e prata e bronze, O policromada, 1624, mosteiro de tual que orientava expressamente tabelecer um planeamento urbanístico no com que os crúzios encararam a exposição campo do religioso, como S. Teotónio ou séc. XVI, mosteiro Santa Cruz a vida dos cónegos para a oração, para a lei- território da sua proximidade, encontra-se das relíquias. Ponto de passagem recorrente Santo António, são alicerçadas pela presença de Santa Cruz

tura dos textos sagrados e para a ajuda assis- evidente em várias fontes. O relato de D. José para os peregrinos vindos do sul que deman- no mosteiro de símbolos maiores da luta Bustos-relicários dos tencial aos pobres. Ao mesmo tempo, a de Cristo, remetido para o ano de 1359, de- davam, sobretudo desde o século XII, a ex- contra o pecado e o universo do mal. Mártires de Marrocos acumulação de poder e riqueza ao longo de nuncia a agitação civil que, ao longo da piação dos seus pecados e a salvação à vista prata, 1510, mosteiro toda a Idade Média inscreveu o mosteiro num Idade Média, preenchia a vida do Largo de do túmulo do Apóstolo Santiago, Coimbra, As relíquias dos mártires de Marrocos, pode- de Santa Cruz clima cerrado de concorrência e constantes Sansão e coabitava de paredes-meias com e particularmente o mosteiro de Santa Cruz, roso instrumento na conquista da espirituali- disputas com outras instituições religiosas. o mosteiro: “A redor do Adro de S. Cruz avia ofereciam as condições propícias à paragem dade, são, assim, alvo dessas preocupações As polémicas mantidas com Alcobaça e com antiguamente huas cazas as quais estavão retemperadora das agruras do caminho, no expositivas que passam pela promoção da o núcleo cisterciense que ia consolidando fundadas sobre colunas entre as colunas es- descanso e na ajuda assistencial que integra- sua acessibilidade aos fiéis e pela dignifica- prestígio e riqueza material ou com o mos- tavão huas portas, onde se vendia a ortalisse, vam os propósitos da comunidade crúzia. ção do espaço envolvente. O túmulo trecen- teiro de Santa Clara em Coimbra, cuja funda- e fructas dos caseiros de S. Cruz junto destes Ao mesmo tempo, era oferecido aos fiéis tista dos mártires franciscanos em pedra de ção por D. Mor Dias levava consigo os bens esteos estavão huns asentos onde as molhe- um reportório espiritual que preparava a re- Ançã, colocado na capela-mor do lado do patrimoniais das Donas dissidentes de Santa res partião os sestos. e entre estes poais e o denção, intensificava o fervor religioso e ali- Evangelho, seria secundarizado pela mu- Cruz, são apenas alguns dos ingredientes que adro hia a rua publica e querendo a Cidade mentava também a piedade dos cónegos. dança das relíquias para nova arca de prata pautaram então a vida agitada do mosteiro. fazer por esta Rua hua calsada pretendia As relíquias e a sua visibilidade criteriosa de- esculpida e colocada na capela do lado di- Os conflitos particularmente acesos com a Sé tirar estes poiais e esteios pera que tudo sempenharam papel fundamentalíssimo reito da igreja, mandada construir pelo 21º de Coimbra mantiveram os cónegos regrantes fosse Rua Mas o prior D. Afonso (D. Afonso neste processo de enaltecimento do mos- prior de Santa Cruz, D. Gomes Eanes, e aca- de Santo Agostinho numa atitude constante Pires, 1349-1377) resestio e pos demanda a teiro, progressivamente erigido em espaço bada em Janeiro de 1458. O magnífico abade de desafio, escudada na directa sujeição do Cidade, e pagou a Cidade as custas. foi isto emblemático do ritual de passagem na pere- da Badia de Florença, falecido em 1459 e se- mosteiro a Roma e no seu estatuto de Isento em tempo delrei D. Pedro” (B.P.M.P.: D. José grinação dos crentes em direcção à morte e pultado em campa rasa junto do altar de face aos direitos reconhecidos do bispo. de Cristo, Miscelaneo, fl. 20). à possibilidade da salvação. Neste sentido, Santo André que acolhia então as relíquias,

o mosteiro de santa cruz 020 | 021 O PERÍODO MANUELINO

Cristo Negro destacava-se também em Coimbra pela Um dos grandes aliados neste processo de no reinado de D. Manuel (1495-1521) da motivação emocional do rei D. Manuel, madeira policromada, visão moderna da unificação do espaço e engrandecimento, do momento fundacio- que se desencadeia a revitalização dos perplexo com a simplicidade dos conjuntos séc. XIV, MNMC, É Inv. nº 10891; E295 pela aposta na actualização denunciada no nal do mosteiro até aos primeiros anos do espaços do mosteiro, interpretando tumulares dos primeiros reis. O que estava gótico flamejante, herdado do mosteiro da século XVI, acabou por ser o primeiro rei uma vocação expressa pela cultura de um já então por detrás da decisão régia e que, Batalha, que identifica o arco da capela que Afonso Henriques. A cuidadosa gestão de tempo que reivindica novos comportamen- certamente, o humanista não desconhecia, ainda se mantém. uma ideia de protecção eterna e incondi- tos políticos e institucionais provenientes era a aposta num programa construtivo de cional do rei, cujos restos mortais se guar- das exigências modernas. Os mosteiros da forte incidência política e ideológica de que Ao longo da designada Idade Média, os davam no mosteiro, colocou os crúzios em Batalha e dos Jerónimos funcionam como o mosteiro de Santa Cruz, pela presença do crúzios construíram um património consi- situação de privilégio no esgrimir das vá- uma espécie de contraponto a uma prática fundador da Nação, não podia ficar arre- derável e alicerçado não apenas numa ri- rias contendas e desencadeou um volume ideológica centrada no enaltecimento da dado. A ocasião haveria de surgir com a queza fundiária que se estendia do Alentejo considerável de textos tendentes à canoni- dinastia de Avis e serviriam, mais do que morte do prior D. João de Noronha em ao rio mas também, e sobretudo, zação régia. Os potenciais decorrentes da inspiração e modelo, de elementos estru- 1506, altura em que Roma aproveitou para numa capacidade de intervenção política e construção da imagem mítica do rei seriam turadores da coerência discursiva imposta tentar controlar as cobiçadas rendas do religiosa, naturalmente acompanhada por então aproveitados por D. Manuel para a no período manuelino. priorado-mor. A pretensão de Júlio II de en- um espólio sempre crescente no interior exposição de um outro percurso imperial e tregar o priorado de Santa Cruz em co- do mosteiro. A quase totalidade das peças igualmente consolidado pelos desígnios Até à definitiva implantação da Universi- menda a Galiotto Franciotto Della Rovere, do período medieval encontram-se hoje ou do divino. dade (1537), gerando novas prioridades seu sobrinho, foi a mola de arranque para em circuitos museológicos ou em bibliote- construtivas no âmbito citadino, o mosteiro uma apertada vigilância régia sobre a ri- cas e arquivos nacionais. Os níveis expres- de Santa Cruz constituiu-se em formidável queza do mosteiro e o momento crucial sivos de uma qualidade artística operativa estaleiro de arquitectura onde o velho edi- para implementar os mecanismos da re- no interior da Casa detectam-se, por exem- fício românico se transfigurava, ganhando forma. Alegado em Roma o estado de ruína plo, no Cristo Negro, peça escultórica de nova dimensão espacial e simbólica. As ra- da Casa e a necessidade de empregar nas superior categoria onde a plasticidade da zões aludidas por Damião de Góis para a obras os capitais provenientes das rendas, execução é verdadeiramente tocante. reforma situam-se (ingenuamente?) ao nível o Papa renunciou à sua pretensão.

o mosteiro de santa cruz 022 | 023 É, assim, com o bispo da Guarda, D. Pedro de fundamental importância na definição Túmulo de Vaz Gavião, que começa a ampla campa- de novas espacialidades geradoras de ou- D. Pedro Gavião séc. XVI, capela de nha de renovação do mosteiro que haveria tros circuitos e na projecção de uma ima- Jesus no mosteiro de se prolongar durante décadas. Capelão gem carismática de força evangélica de Santa Cruz do rei, acompanhou-o a Castela e Aragão coadjuvada pela autoridade dos poderes Planta geral do em 1498, na viagem a Santiago de Com- temporais. O prior “acabou a Igreja noua mosteiro de postela em 1502, estando então juntos no que he de abobeda de pedra, com boas la- Santa Cruz mosteiro de Coimbra e, possivelmente, aí çarias, & de hua só naue, & acabou a DRCC discutido de forma antecipada a necessi- Claustra principal do Mosteiro da mesma dade da reforma do edifício. À morte de abobeda, como tambem a casa do Capi- D. João de Noronha, e com o apoio diplo- tulo, & Capella de Iesus na mesma Claus- mático do Cardeal de Alpedrinha em tra, nas quaes obras pellas Armas Reaes do Roma, D. Manuel evitava a saída das ren- Reyno, & as Esferas, Armas particulares das do priorado-mor para fora do país e delRey D. Manoel, como o erão o Pelicano conseguia a nomeação dos priores-mores del Rey Dom Ioão II. & poz tambem o para o mosteiro. De uma assentada, o rei Bispo Prior nas abobedas, torres, & por- reforçava a sua posição como interlocutor taes das ditas obras o escudo das suas de respeito na trama das influências de Armas, que saõ sinco gauiões em aspa, & Roma e impunha a última palavra na con- por orla do escudo, hum chapeo, & cor- dução dos destinos dos crúzios. doens de Bispo, & nestas obras não gas- tou mais que trinta & sinco mil & tantos O priorado de D. Pedro Gavião (1507-1516), cruzados...” (Santa Maria, Nicolau, 1668, o primeiro de nomeação régia, revela-se T. II, p. 275).

024 | 025 Abóbada da igreja O contrato, celebrado a 24 de Janeiro de 1513, e um vasto património fundiário a adminis- reis no cruzeiro da igreja. Morria, entretanto, dos arcos triunfais e o grau de actualização Galeria sul do do mosteiro de entre o bispo e mestre Boytac revela a exten- trar), o arquitecto depressa abandonou Coim- Marcos Pires. A direcção estética que já se das formas e dos temas transformam o es- claustro do Silêncio Santa Cruz Marcos Pires, mestre Boytac,1507- são da reforma, iniciada anteriormente, que bra. Em Santa Cruz, à frente das obras ficava adivinhava nos túmulos dos reis e se decla- paço do sepulcro em alegoria de eternidade e c. 1520, mosteiro de 1513 abrangia toda a igreja e passava ainda pelas Marcos Pires, nomeado também mestre das rava impetuosamente no púlpito (1521), con- redenção cuja proposta não podia andar afas- Santa Cruz

mais importantes dependências monásticas. obras reais na cidade em 1517. Em Janeiro denava também à morte a fogosidade do tada dos círculos directos do rei D. Manuel Nicho de Com a capela-mor já aumentada e com o de 1518, andava sobretudo ocupado com as manuelino e abria caminho a outras inter- e do seu arquitecto régio João de Castilho. Santo Agostinho magnífico cadeiral do escultor flamengo obras do claustro do Silêncio e era o respon- pretações mais serenas e com diferentes A Diogo de Castilho, Nicolau Chanterene e a púlpito da igreja do Machim incorporado, tratava-se agora de re- sável pelo trabalho de “cinqoenta oficiaes e preocupações de cunho humanista. toda uma equipe credenciada caberia a ma- mosteiro de Santa Cruz, Nicolau definir o corpo da igreja até à nova fachada xx criados” (Viterbo, 1914, p. 26). terialização do projecto. Chanterene, 1521 (mais elevada do que a fachada românica), Da globalidade da reforma, um dos temas desmantelando a abóbada e o nártex, Entre 1518 e 1522 as obras não pararam no mais “celebrados” continua a ser o sepul- A obra “retabular” da fachada da igreja, criando outra espacialidade na sacristia li- mosteiro. Acabou-se o claustro; fez-se uma cro régio, remetido mais tarde para a ca- embora montada e acabada entre 1522 e gada à capela-mor e dando outra amplitude capela dedicada a S. Teotónio e a capela de pela-mor. Verdadeiro remate de um política 1525, já em reinado de D. João III, obedecia, ao pequeno mosteiro das Donas, situado a S. Miguel, acima das quais se colocaram o ideológica de vocação imperialista e provi- na realidade, a um plano anterior também norte da igreja crúzia. cartório e a livraria; reformulou-se o refeitó- dencialista, os novos túmulos dos reis, e da presumível autoria de João de Castilho. rio na ala nascente do claustro com a fonte particularmente a sepultura de Afonso A conjugação de uma estratégia que en- É o arquitecto régio mestre Boytac que as- de Paio Guterres; refez-se o dormitório; Henriques, davam ao rei D. Manuel a legiti- globa o portal e os túmulos passa pela for- sume a campanha reformista. Rapidamente guarneceram-se a igreja e as torres de guir- mação de uma cadeia governativa fundada tíssima imagem da supremacia do mosteiro chamado à urgência da construção da defesa landas; fizeram-se retábulos (com a colabo- no momento mítico, de contornos iniciá- como núcleo capaz de um domínio tempo- dos interesses do reino em África, com res- ração de João Alemão) e o púlpito (de ticos e celebrativos, das origens do reino. ral e espiritual sobre a comunidade envol- ponsabilidades em diversos edifícios como Nicolau Chanterene) que permaneceu até O Fundador justificava, assim, uma outra vente, ao mesmo tempo que explicita a o convento da Pena em ou o mosteiro hoje inacabado; proveu-se o mosteiro de al- fundação, a de um Império sustentado tam- vontade régia num percurso que reivindica a dos Jerónimos e com ligações pouco explíci- faias litúrgicas, colocou-se a grade na igreja bém por Deus. O programa iconográfico ex- tutela do processo em exposição marcada tas às obras na Batalha (onde tinha residência (de António Fernandes) e enterraram-se os posto nos túmulos, a definição compositiva de actualidade e erudição compositivas.

o mosteiro de santa cruz 026 | 027 Mesmo depois da morte de D. Manuel meu de Paiva, o amo do rei, os termos dos Túmulo de deu-se, pois, continuidade a uma campanha trabalhos a executar. No primeiro, mestre D. Afonso Henriques João de Castilho; de obras iniciada por volta de 1507. Progres- Boytac obriga-se a, “ffazer ao dito sõr bpo e Diogo de Castilho/ sivamente, o programa construtivo assumiu prior no dito seu moesteiro e Igreja de sam Nicolau Chanterene também carácter mais disciplinado e com o João estas obras” (Garcia, 1923, p. 152); no e outros, 1518-1522, igreja do mosteiro rei a prescindir cada vez menos de uma tu- segundo, Castilho comprometia-se com as de Santa Cruz tela cerrada. De facto, não é inocente que, “obras que ora sua alteza mãda ffazer no Fachada da igreja com a morte do bispo da Guarda, seja no- mosteiro de sãta cruz da dita cidade” (Gar- do mosteiro meado o cardeal D. Afonso, apenas com 11 cia, 1923, p. 177). de Santa Cruz anos de idade, como prior-mor e se coloque séc. XVI no mosteiro um vedor das obras, Gregório À morte do rei em 1521, o mosteiro tinha já Lourenço, com a responsabilidade da orga- dado todos os passos que lhe permitiriam nização dos trabalhos (com meticuloso então enveredar por apostas mais decisivas “caderno de encargos”), da sua fiscalização, no sentido da construção da cultura huma- da angariação de fundos ou de circunstan- nista que, em Coimbra, tornaria possível a ciados relatórios para o rei. Uma situação ascensão da Universidade. que evolui para autêntico centralismo polí- tico em que a encomenda directa do mos- teiro se encontra cada vez mais ausente. Lembre-se apenas a distância que vai entre a formulação do contrato das obras em 1513, em que o prior intervém directamente, e o contrato de 1528 relativo a nova reforma, onde Diogo de Castilho assina com Bartolo-

028 | 029 A CULTURA DO RENASCIMENTO

Ecce Homo e o Renascimento deve ser entendido continuidade à política de D. Manuel man- Cristóvão de como cultura abrangente onde se cru- tendo apertada vigilância sobre o processo Figueiredo, óleo S sobre madeira de zam as vontades públicas e privadas interno de reforma que iria conduzir à im- carvalho, 1522-1530, na captação de um ideal que conjuga com- plementação de uma estratégia mais lata mosteiro de portamento e saber, que gere “antigo”e de poder, em estreita concordância com o Santa Cruz “moderno”, que concilia o protagonismo fortalecimento dos valores do Estado Mo- Imperador Heráclio laico com interesses religiosos, que es- derno. Acabados os projectos manuelinos, com a Santa Cruz grime o poder (político, económico, reli- é o espírito reformista que domina toda Cristóvão de Figueiredo, gioso ou cultural) na conquista de um uma actuação com directas implicações óleo sobre madeira patamar de exclusividade e distância, a sobre a vida no mosteiro. de carvalho, “bandeira” renascentista não surge no mos- 1522-1530, MNMC, Inv. nº 2512; P24 teiro de Santa Cruz apenas no século XVI. Logo em 1522, rematavam-se as obras da Ao longo de toda a Idade Média o mosteiro capela-mor com a construção do impressio- preparou e desenvolveu os mecanismos de nante retábulo pintado que hoje se encon- suporte a uma cultura humanista de exce- tra disperso entre o mosteiro e os museus lência, ao mesmo tempo que a dinamiza- nacionais de Machado de Castro e de Arte ção das escolas medievais, apoiada então Antiga. Cristóvão de Figueiredo (o pintor em fortíssima estrutura financeira, criou os do cardeal-infante D. Afonso desde 1531) potenciais de conhecimento que estimula- assumia então a responsabilidade da em- ram o sucesso das estratégias avançadas preitada enquanto João Alemão se encarre- nas realizações do século XVI. gava das obras de marcenaria. Permanece ainda na igreja de (Baixo Mon- Numa aliança forjada entre o mosteiro e a dego) o grupo escultórico de Cristo de- vontade régia, o reinado de D. João III deu posto da Cruz, acompanhado de várias

o mosteiro de santa cruz 030 | 031 Calvário figuras de vulto que, provavelmente, per- Cristóvão de Figueiredo na empreitada do controladores do Estado Moderno e muito Em 1543 extinguir-se-ia o priorado de Santa Cabeça de Apóstolo, Cristóvão de tenceu ao retábulo, organizando-se com retábulo e que, com este e com Gregório menos expressava o grau de actualização Cruz, cujas rendas seriam então canaliza- Última Ceia Figueiredo, Hodart, barro, óleo sobre madeira ele e estabelecendo a centralidade da com- Lopes, haveria de formar a equipa mais de que se revestia o poder. Nesta aposta, das para a nova aposta régia a ganhar uma 1530-1534, MNMC, de carvalho, posição (Dias, 1983, pp. 3-14). No mosteiro conhecida deste período em Portugal. que envolve conhecimento, confiança po- liderança remetida à extensão ultramarina – Inv. nº876 E120 1522-1530, mosteiro mantêm-se as tábuas do Ecce Homo e do Um conjunto assinalável de artistas, pinto- lítica e uma diplomacia de fino recorte, é a a Universidade. A partir daí também, os de Santa Cruz Apóstolo, Calvário, bem como as quatro tábuas re- res, escultores, arquitectos, marceneiros Ordem de S. Jerónimo que se revela como priores do mosteiro passariam a ser esco- Última Ceia S. Pedro e S. Paulo cortadas e molduradas que compõem os ou carpinteiros, juntava-se assim em Santa a grande aliada dos desígnios régios (Cra- lhidos em capítulo, já fora da ingerência di- Hodart, barro, Cristóvão de apóstolos aos pares e faziam, talvez, parte Cruz para marcar uma época de prestígio veiro, 2009, pp. 63-73). À frente de Tomar recta do rei. 1530-1534, MNMC, Figueiredo, Inv. nº 877; E122 óleo sobre madeira da predela do retábulo. A expressiva con- no domínio da criação. passou a estar o jerónimo frei António de de carvalho, torção dos corpos, a capacidade de resol- Lisboa (com responsabilidades de vigilân- O contrato celebrado em Março de 1528 Apóstolo, 1522-1530, mosteiro ver diferentes espacialidades, o uso de A visita do rei a Coimbra em 1525, estando cia também sobre Alcobaça), como, à entre o amo Bartolomeu de Paiva e o arqui- Última Ceia de Santa Cruz Hodart, barro, tonalidades em velatura ou em quentes den- ou não directamente ligada aos destinos frente dos crúzios, frei Brás de Barros (ou tecto Diogo de Castilho constitui a maior 1530-1534, MNMC, sidades cromáticas, a clara influência de crúzios, tem sido entendida como factor de Braga) assumiria, a partir de 1527, o con- evidência do vendaval reformista que afec- Inv. nº 676; E121 autores flamengos (como Quentin Metsys) determinante no arranque da reforma que, trole do brilhante percurso de Santa Cruz. tou os espaços do mosteiro e testemunha a no tratamento caricatural das figuras ou longe de ser pacífica, estava de acordo com aceitação de um comportamento humanista ainda a actualização do ornamento “ao ro- a cadeia de reformas sobre as mais pode- À reforma espiritual haveria, obrigatoria- traduzido em ampla reorganização formal mano” mostram a criatividade e a excelên- rosas instituições religiosas. Idêntico pro- mente, de corresponder a reforma dos es- e espacial que desenvolve todos os formu- cia do pintor que já em 1515 ocupava o cedimento de mudança, visando um maior paços. É esse esforço conjunto de erudição lários da arquitectura do Renascimento. cargo de “examinador dos pintores de Lis- controle das Casas religiosas, operava-se pela aproximação às correntes humanistas boa” (Rodrigues, 2009, pp. 89-95). também sobre a cisterciense Alcobaça e que vai marcar toda a reforma liderada De todas as obras referenciadas no contrato cairia, a partir de 1529, sobre os Cavaleiros por frei Brás, pelo menos até aos inícios da o espaço mais bem preservado é o novo re- Está também documentada no mosteiro da Ordem de Cristo. Tal como em Coimbra, década de 40, momento em que começa feitório, a construir no piso térreo encostado (c. 1530) a presença de outro pintor, Gar- o Convento de Tomar herdado das reformas a declinar o protagonismo do mosteiro e à ala norte do claustro do Silêncio e a modi- cia Fernandes, possivelmente auxiliar de manuelinas já não servia aos propósitos as prioridades avançam noutro sentido. ficar o circuito anteriormente estabelecido.

o mosteiro de santa cruz 032 | 033 estrutura organizada em dois blocos que se lhante ao do bloco do dormitório. Afinal, encontram em ângulo recto formando um T e todas as dependências ligadas à enfermaria fabricando também a geometrização dos es- acabariam por se fixar no bloco a oriente no paços. Com 110 m de comprimento e 12,32 m claustro da Manga. de largura, com cinquenta celas dispostas ao longo do corredor (de cerca de 4 m de Em última análise, o contrato de 1528 cons- largura) e dotado de duas grandes janelas titui verdadeiramente o primeiro manifesto nos topos, o longo bloco poente/ nascente em Coimbra de uma cultura arquitectónica do dormitório começava ao nível da cozinha do Renascimento que depois o mosteiro ha- e chegava ao novo claustro da Manga. veria de desenvolver e implementar na ci- dade. De forma evidente, consagram-se aqui Na filosofia de regularização dos espaços que os grandes preceitos que já os tratadistas do estava em causa no contrato formavam-se Quattrocento, a começar por Alberti, ha- os novos claustros da Portaria, ocupando a viam divulgado: as preocupações relativas à zona do mosteiro das Donas, e da Manga. segurança dos conjuntos edificados; a fun- Os trabalhos a desenvolver decorriam, cionalidade com a adequação dos espaços assim, a partir do núcleo pré-existente defi- aos programas previstos e a respectiva arti- nido pelo claustro do Silêncio com particu- culação desses espaços; a sua implantação lar incidência nas três alas norte, nascente e racionalizada através da repetição dos mó- poente. A livraria projectava-se agora na ala dulos e da imposição de esquemas geome- poente, no piso superior, do cunhal do dor- trizantes ou o cuidado com as proporções mitório até às paredes da igreja de S. João, estabelecidas pelas superfícies parietais e formando um corredor lateral de serventia com os vãos das portas e janelas, são as li- às casas do piso inferior e apresentando nhas de força que, constantemente, acom- Fachada norte do A importância do refeitório decorre, para A gestualidade intensa e a tremenda expressi- outra dignidade que passava não apenas panham o texto do contrato. No capítulo das antigo refeitório com registos do dormitório além da articulação a um programa constru- vidade que decorrem da atitude dos Apósto- por mais amplas dimensões mas também escalas propostas são sistemáticas as impo- no mosteiro de tivo de maior arrojo, do seu papel como su- los já conduziu a historiografia às perturbações por novo enquadramento de visibilidade na sições relativas às devidas proporções a es- Santa Cruz porte assumido de toda uma estrutura que classificatórias e dirigidas ao Renascimento, geografia do mosteiro. A sua longa fachada tabelecer. Sem que se possa, muitas vezes, c. 1528 também tinha por objectivo a preservação ao Maneirismo ou ao Barroco. Na realidade, poente, guarnecida com quatro janelas, di- encontrar explicitamente o recurso à desig- da clausura, a partir de agora mais afastada é tão só a eloquente evidência das manifes- reccionava-se em situação de frontalidade a nada secção áurea, de longínqua referência da portaria e dos espaços mais devassados. tações mais qualificadas da cultura huma- quem entrasse pelo claustro da Portaria e ex- pitagoriana, outras vezes são claríssimas as O recentíssimo refeitório manuelino, con- nista que orientava o pensamento e a prática pressava também as potencialidades erudi- preocupações na manutenção da “correcta cluído em finais de 1522 na ala nascente do de execução dentro do mosteiro. tas do mosteiro. proporção”. O rigor verificado no cumpri- claustro do Silêncio, era um obstáculo à mento dos prazos e do projecto, “polo teor construção do ideário reformista que prefe- O texto contratual de 1528 começa pela de- Na ala nascente do claustro do Silêncio, o e ordenãça de hum debuxo”, que envolve riu então afastá-lo da fonte que se manteve. finição dos novos dormitórios a construir contrato referia-se à construção das casas toda a estrutura espacial, denuncia também O refeitório renascentista seria então acom- nos pisos superiores em duas alas do claus- da enfermaria no piso acima das abóbadas uma percepção global, e não apenas parcial, panhado pelas estruturas de apoio (as cozi- tro. Na ala norte, substituindo o dormitório do claustro, num bloco que, no piso térreo do edifício. Mesmo que se venham a regis- nhas e a pataria) bem como pela desaparecida acabado nos finais de 1522, e na ala nas- para o lado da Manga, seria dotado de uma tar algumas alterações de pormenor, como capela da Ceia e com os dois púlpitos inscri- cente por cima do antigo refeitório. A totali- galeria porticada em cerca de metade da nas dimensões do refeitório ou nas celas do tos na parede nascente. Para aqui faria o es- dade das setenta e seis celas rectangulares sua fachada; a outra metade, correspondente dormitório, ou ainda que a localização de al- cultor Hodart o magnífico conjunto (acabado organizava-se a partir da montagem racio- à enfermaria acima, ficaria em parede fe- guns espaços tivesse sido reconvertida, a es- em 1534) das 13 figuras sentadas à mesa. nalizada de um sistema em que cada uma chada criando diversos espaços necessários. trutura planimétrica de conjunto e a ideia Obra maior da escultura quinhentista em ter- delas funciona como uma unidade modular Em 1530 já se registavam algumas mudan- que a gerou permanecem intactas. racota, a Ceia (no MNMC) organiza os Após- invariavelmente repetida e apenas com ligei- ças nos planos iniciais. A enfermaria pas- tolos dotados de uma volumetria vigorosa e ras alterações ao projecto inicial que não co- sava para o piso térreo com dimensões O contrato exibe também a preocupação retirada dos modelos humanizados enquanto lidem com a estrutura pensada. Diogo de ligeiramente alteradas, cabendo aí doze celas sistemática com a definição decorativa en- a figura de Cristo assume outra serenidade. Castilho comprometia-se a construir uma com corredor central, num esquema seme- volvente aos elementos da arquitectura.

o mosteiro de santa cruz 034 | 035 Claustro da Manga As referências à decoração de mísulas, de planos a Diogo de Castilho, a verdade é que funcionais sem desvirtuar a estrutura de con- cuja orientação vinha ainda de Lisboa ou Institutiones tum e bloco com a lucide, tum torre dos sinos frisos e molduras de arcos não escondem a o projecto e o arquitecto têm andado de tal junto. Esse seria o papel de frei Brás, o mo- dos centros da Corte. Abstraindo do ambí- compendiose, do mosteiro de exigência de adequada articulação entre as forma associados que permanece uma iden- derador e eterno vigilante no cumprimento guo episódio do colégio das Artes, estaria a latinarum, literaruz, Santa Cruz partes e uma atitude de moderação relati- tificação confusa entre os dois. Mas, o pro- de uma missão que requisitava os espaços partir daqui pronto para a responsabilização tradite dialogo, fotografia da década vamente ao ornamento que, no entanto, jecto apresentado no contrato de 1528 não para os submeter à reforma monástica, cre- da execução de projectos com a enverga- candidisae vere piis de 70 do séc. XIX, cenobitis sancte IC, A-304 não se explicita como sendo “ao romano”. pertence a Diogo de Castilho que, nesta al- ditada também pela nobilitação da reforma dura da Rua da Sofia. crucis... As “boas molduras” que preenchem o texto tura, funciona como empreiteiro, o responsá- construtiva. Tip. do mosteiro de contratual, e que nesta altura já não podem vel pela execução dos trabalhos decorrentes Embora não referenciado no contrato de Santa Cruz, Coimbra (1535, 1544), BGUC, ser sinónimo da exuberância festiva do Ma- de uma ideia que não lhe deve ser atribuída. Em 1528 os arquitectos capazes da realiza- 1528, a construção do claustro da Manga en- R-3-11 nuelino, expressam mais a ideia de equilíbrio Aliás, esta distinção entre a autoria do pro- ção de um projecto de tanta importância no contrava-se já prevista. Localizado a nas- Planta da fonte do na montagem das estruturas decorativas e jecto, com o debuxo e respectivos aponta- capítulo das intenções régias para a refor- cente e a uma quota superior face ao claustro da Manga contribuem em larga medida para o refina- mentos, e o controlo da execução, é bem mulação da vida monástica podem restrin- claustro do Silêncio, com o qual tinha comu- do mosteiro de mento de uma unidade renascentista à es- uma expressão da prática construtiva do Re- gir-se a poucos nomes entre os quais avulta nicação, o novo claustro obedecia a um Santa Cruz cala do mosteiro. nascimento. O contrato foi, provavelmente, o de João de Castilho: credor da confiança plano regular onde cada uma das alas atingia assinado em Almeirim onde cinco dias de- régia, já tinha tido um papel relevante no 44 m, integrando uma galeria com 3,30 m Continua em aberto o problema da autoria pois D. João III o viu e aprovou. Com a assi- mosteiro, com os projectos para os espaços de largura. Na ala nascente localizar-se-ia a deste projecto que envolve a quase com- natura do amo, Bartolomeu de Paiva, o paradigmáticos dos túmulos dos reis e da enfermaria, substituindo o velho hospital de pleta redefinição de uma Casa conventual projecto tem de ser colocado no círculo de fachada da igreja, com provas dadas em di- S. Nicolau; a ala sul foi entregue às oficinas pré-existente e apela insistentemente aos gravitação do rei, cuja determinação e en- recção ao Renascimento no mosteiro dos Je- tipográficas, instrumento de persuasão na modelos organizativos do Renascimento. volvimento nas obras também se explicita. rónimos e preparando-se também para a divulgação eficaz da autoridade do mosteiro De facto, a historiografia nunca se preocu- Os planos foram gerados longe do mos- amplíssima reforma do convento de Cristo. e da reforma humanista. A norte, no prolon- pou com a proveniência da representação teiro por quem tinha uma ideia bastante Ao seu meio-irmão Diogo, o mestre das gamento do refeitório e no centro desta ala, mental que o contrato denuncia. Sem que precisa do objecto a tratar mas não ao ponto obras do rei em Coimbra, caberia, porven- projectar-se-ia a capela dos ossos e a poente jamais fossem directamente atribuídos os de decidir a ocupação de certos espaços tura pela última vez, a função da execução, o dormitório dos noviços.

o mosteiro de santa cruz 036 | 037 Fonte do claustro da Mantendo-se o espaço claustral aberto pela buição da responsabilidade criativa da fonte A obra dos tanques, dos cubelos e dos tenha sido confrontado com a Manga por al- Retábulo de Manga do mosteiro destruição da ala norte já no século XX e as da Manga. Não se registando até então arcos (no que toca às alvenarias) ficava, em turas da coroação do rei Filipe em Portugal. S. Jerónimo de Santa Cruz João de Ruão, 1533, João de Ruão, 1533 outras alas reformuladas com diferentes ocu- qualquer paralelo no país, é legítimo pensar 1533, a cargo de Pero de Évora, Diogo Fernan- A ideia da centralização do espaço, da rela- fonte do claustro da pações, do antigo claustro da Manga resta que a ideia aqui executada faria parte dessa des e Fernão Luís (Garcia, 1923, pp. 87-88). ção de interdependência de cada um dos Manga do mosteiro sobretudo a fonte central, com uma tradi- cultura arquitectónica importada que colo- Jerónimo Afonso encarregou-se do trabalho elementos constituintes ou da cristalização de Santa Cruz ção que perpetua a lenda do desenho feita cava no plano centrado a sua expressão das cantarias e João de Ruão da escultura re- da simbólica da Fons Vitae, estão presentes Gárgula da fonte do pelo rei D. João III na manga do seu gibão. mais erudita e mergulhava fundo no tempo tabular e demais imaginária (Correia, 1946, em Coimbra e no Escorial. Na Manga, cujas claustro da Manga do mosteiro de Na realidade, é mais razoável pensar numa à procura das raízes do equilíbrio cósmico. p. 270; Dias, 1988, pp. 208-210). afinidades são incontornáveis, o espaço é Santa Cruz cultura instalada que, começando pelo pró- E se, no mesmo âmbito cronológico lato, mais fluido e as unidades compositivas com João de Ruão, 1533 prio rei, encontrava em Coimbra os intérpre- existem em território nacional as evidências O claustro da Manga não era reservado à ex- maior suavidade na articulação. Em resumo, tes adequados à sua corporização. Frei Brás materiais dessa cultura estimuladas por clusividade dos cónegos na celebração dos a mesma ideia na materialização do Paraíso de Braga ou sobretudo João de Ruão (e não idêntica encomenda de elite, não se conhe- rituais processionais, no usufruto das de- que se expressa de maneira diferente em tanto Diogo de Castilho que completa a cem as referências que, mais directamente, pendências anexas ou no recolhimento que tempos também diferenciados. A pureza tríade construtiva que materializa a revolu- possam ter influenciado a articulação da implicava a presença dos quatro cubelos da das linhas e das formas que se estendem ção estética protagonizada pelo mosteiro múltipla centralidade na Manga. Sem que fonte. A ele tinham, desde logo, acesso ou- no espaço humanista da Manga encontram, crúzio) são, legitimamente, os homens a haja o menor indício de que as plantas e de- tras individualidades que pertenciam ao afinal, o paralelismo adequado no espaço quem se tem de entregar a ideia deste plano senhos de arquitectura executados pelos tra- grupo contínuo de visitantes, religiosos ou controlado do Escorial pela política cristã. centrado complexo que conjuga as figuras tadistas italianos de créditos firmados (como não, que passavam pelo mosteiro. A hipó- O modelo haveria de percorrer um caminho geométricas do círculo e do quadrado na ar- o caso de António Averlino – Filarete) pu- tese de colocação da fonte da Manga como mais longo. Às portas de Paris, na região de ticulação harmoniosa entre o macro e o mi- dessem, nos primeiros anos da década de modelo inspirador do conjunto central ins- Île-de-France, na catedral de Saint-Maclou crocosmos. O governador do mosteiro e o 30, circular em Portugal, pelo menos, as crito no claustro dos Evangelistas do Esco- de Pontoise, o arquitecto Pierre Lemercier arquitecto-escultor de maior notoriedade em ideias divulgadas nos tratados estariam em rial (concluído em 1593) justifica-se pela ainda erigiu, nos finais do século XVI, uma Portugal neste período constituem, em boa voga no seio da encomenda mais prestigiada possibilidade de que Herrera (o suposto espécie de “fonte da Manga” em miniatura verdade, a hipótese mais credível para a atri- e entre a mão-de-obra mais esclarecida. projectista da fonte no pátio do Escorial) a rematar a grande torre da igreja.

o mosteiro de santa cruz 038 | 039 Torre da igreja de A expressão erudita que, porventura, alcan- Os dois colégios tiveram uma construção pro- artificial a fazer a ligação entre as duas alas ao mosteiro que, ao longo de toda a Idade Gravura de Coimbra Saint-Maclou çou maior visibilidade no complexo crúzio foi longada. Projectados em 1535, ainda em 1547, que substituem as antigas fachadas de S. Mi- Média, também tinham contribuído para o (1562-1567) de Pontoise Georg Hoefnagel, Pierre Lemercier, a implantação sistematizada dos colégios. quando se decide a sua entrega ao colégio guel e Todos-os-Santos. maior envolvimento dos cónegos com o ex- em Civitis orbis finais do séc. XVI A extinção do mosteiro das Donas e a cons- das Artes, decorriam as obras no de S. Miguel. terior, vinha, de igual modo, cortar a proxi- terrarum, ed. por trução do novo claustro da Portaria (a norte) O colégio de Todos-os-Santos, mais pequeno Com a construção dos colégios de Santa midade com os espaços de clausura pelo Georg Braun, 1599 e da nova paroquial de S. João de Santa Cruz do que o vizinho de S. Miguel, ficaria também Cruz começava não só a maior aventura no estabelecimento de uma cadeia rígida de su- a sul da igreja monástica inscrevem-se nos mais cedo a funcionar. Alargando por com- plano urbanístico da Coimbra Moderna, li- cessivos obstáculos na aproximação ao in- planos reformistas que incluíam também a pra ou troca o espaço físico dos colégios e derada pelo mosteiro com a vigilância do rei, terior do mosteiro. vertente, nunca descurada e de longa tradi- canalizando para aqui o contingente de pro- mas também se alicerçava uma cooperação ção medieval, do ensino. fessores mandado vir de França pelo rei, as de esforços promovendo a especificidade ci- Desta forma, a remodelação operada na re- obras começaram no ângulo hoje ocupado tadina e criando um registo de unidade em forma de 1527 abrangia também a face ex- Ocupando um espaço apenas generica- pelo edifício da Caixa Geral de Depósitos. torno dos espaços fabricados. A rua da Sofia, terna do mosteiro. Não já a fachada da igreja, mente identificável junto à igreja de Santa Planeados para doze colegiais cada um, onde se haveriam de montar os colégios re- basicamente concluída nos anos 20 e ainda Cruz, os colégios de Santo Agostinho e de “os de Todos-os-Santos deviam ser estu- ligiosos sistematicamente integrados na no seguimento das propostas manuelinas, S. João Baptista mantinham cursos regula- dantes teólogos e artistas; os de S. Miguel Universidade, foi empreendimento apenas mas, tanto quanto possível, um outro pro- res a funcionar (para os religiosos e para o ou todos canonistas, ou canonistas e teólo- possível graças à intervenção organizada do jecto cuja concepção para as superfícies exterior) pelo menos a partir de 1535. Na sua gos” Brandão, 1924, I, p. 47). mosteiro que cedeu terrenos, mão-de-obra exteriores se moldava na cultura huma- descrição em 1540, Francisco de Mendanha qualificada e ciência construtiva. nista que os colégios ajudavam a solidificar. limita-se a referir os dez gerais ou aulas que O colégio de Todos-os-Santos, acompa- O protagonismo do espaço urbano configu- integravam o espaço lectivo do mosteiro e nhando a via pública de Montarroio, era um rado no Largo de Sansão dirigia, assim, a que eram, a partir de Fevereiro de 1535, alvo bloco rectangular com corredor a meio e A década de 30 do século XVI foi, assim, cru- atenção dos crúzios na promoção dos volu- de obras de carpintaria. A varanda alinhada seis celas por lado. O colégio de S. Miguel, cial em termos de uma projecção erudita para mes que se estendiam sobretudo a norte da na fachada da nova portaria do mosteiro e mais complexo e dotado de claustro, projec- fora dos muros conventuais, sempre acom- igreja. Com a criação da nova portaria neste que dava acesso ao geral de Santa Catarina, tava-se pela rua da Sofia de forma mais panhada pela reforma dos espaços internos. local, já denunciado no contrato estabele- constituía a face exterior dos colégios. ampla. Embora estivesse já a funcionar em cido em 1528 (“...honde agora estaa o moes- Atrás dela se organizaria então parte das vá- 1542, as obras prolongaram-se até à entrega A mudança operada com a portaria, a mais teiro das donas”) (Garcia, 1923, p. 184), rias dependências colegiais, dispostas de ao colégio das Artes, num trabalho de cola- directa acessibilidade ao exterior, é uma ques- estava também definitivamente transfor- maneira regular entre a parede norte da boração entre Diogo de Castilho e João de tão que se reveste da maior importância no mado o circuito interno de circulação. O con- igreja e o claustro da portaria. Ruão. Os dois colégios crúzios acabaram âmbito das reformas espiritual e espacial. texto da reforma condenava, desta forma, as por se integrar no colégio universitário das Tal como sucederia com a reforma dos Ca- Donas que, em Junho de 1529, ainda se A projecção definitiva de um ensino e cul- Artes (a funcionar a partir de 1548) e, depois valeiros de Cristo em Tomar, frei Brás não mantinham junto do mosteiro (Campos, tura liderados pelos crúzios encontra-se es- de 1565, todo o conjunto foi entregue à In- deixou de promover em Santa Cruz a maior 1889, p. 442) e aproveitava esse espaço, tabelecida nos colégios de S. Miguel e de quisição que reformulou o espaço para dife- preservação da clausura, afastando o mundo acrescido de outras casas, para a constitui- Todos-os-Santos, promovendo também a rentes ocupações. O desenho de José Carlos de uma ingerência facilitada ao circuito in- ção da elegante portaria que passaria tam- formação da Rua da Sofia, intimamente ligada Magne, em 1796, ainda se reporta ao ter- terno do mosteiro. A nova portaria em bém a expressar os conteúdos de erudição à transferência da Universidade para Coimbra. reiro de S. Miguel, elevado em plataforma Coimbra, substituindo os anteriores acessos intrínsecos aos crúzios.

o mosteiro de santa cruz 040 | 041 É a conciliação entre a descrição de Fran- propostas de Alberti quanto à definição dos Planta topográfica cisco de Mendanha em 1540 e o desenho de pórticos e loggias de entablamento (à maneira da praça de Sansão José Carlos Magne, Carlos Magne em 1796 que oferece a visão grega com as colunas encimadas pela arqui- tinta da china e mais clara do projecto realizado para a por- trave e as pilastras pelos arcos). Protegido aguada sobre papel, taria a ocidente. Os trabalhos, que decorre- pelo ângulo formado pelas superfícies parie- 1796, MNMC, Inv. nº 2941; DA133 ram sobretudo na primeira metade da tais da fachada desenhada em 1796, encon- década de 30, mantiveram-se em articulação trava-se também o templete, assente sobre com o plano geral da reforma, incluindo, em três degraus semi-circulares, com quatro pila- toda a linha poente, a nova igreja paroquial res (dois na parede à maneira de pilastras) de de S. João Baptista, o coro alto da igreja e a capitéis “ao romano”, a partir dos quais se er- definição do claustro da portaria com as de- guia a implantação da semi-cúpula dotada de pendências anexas. Desta forma, a superfí- lanterna com remate. Os motivos ornamen- cie mural confinante com o Largo fechava a tais que preenchiam o friso foram comple- ocidente os espaços do colégio de Santo tamente eliminados no desenho de Magne. Agostinho, do claustro da portaria e de um pátio interno com as hospedarias. Acredi- O resto da fachada poente visível no mesmo tando que o desenho de Magne mantém a es- desenho, não pertence já a este período. trutura global definida nesta altura para o piso A pequena capela patente no ângulo for- térreo, à excepção do corpo do dormitório que mado pelo avanço do dormitório resultou de mais tarde sofreria acentuado prolongamento um pedido formulado ao mosteiro, em No- para ocidente, o muro situado entre a igreja e vembro de 1767, pela Irmandade do Senhor o ângulo noroeste seria sucessivamente preen- dos Passos do colégio da Graça, no sentido chido por uma colunata jónica arquitravada de obter autorização para a construção de que antecedia a zona colegial e pela porta uma capela de Santa Verónica. por onde “entra & sae a gente nobre”, reves- tida de solene aparato com “deãbulatorio pe- A construção do bloco do dormitório redefi- queno quadrado cõ hum semicirculo de graos niu, posteriormente, a organização dos vãos de pedraria que tem o põto em o meyo do por- dos andares altos, ao mesmo tempo que su- tal. Sobre estes graos se armã huas collunas primia o pátio das hospedarias. A localização estriadas & quadradas cõ seus bases & capi- das hospedarias junto da portaria já estava tees romanos, sobre as quaes vay hua alque- anunciada no contrato de 1528, integrando-se traua cõ sua frisa & corneia de pedraria laurada num pátio interno situado a norte do claus- de romano & cõ sua cimalha rica & muyto tro da portaria e com ligações ao Largo de ao proposito. Desta sae abobeda a maneyra Sansão e às zonas funcionais do mosteiro. de ciborio cõ hua lanterna que tem o remate. A hospedaria, encostada ao lado poente do Debayxo desta abobeda sta o portal de pedra- pátio, pode entender-se como um bloco de ria cõ algua obra custosa” (Révah, 1958, s/p). configuração rectangular de dois pisos e do- tada de torres nas extremidades. No piso Em 1796 mantinha-se ainda a colunata com o térreo encontrava-se o refeitório e demais que parece ser a ordem jónica, organizada por dependências necessárias ao acolhimento três colunas com mais duas adossadas às pa- dos hóspedes, criando as condições para a redes laterais, que Rafael Moreira aproximou preservação dos espaços de clausura; no piso do nártex da igreja da Graça em Évora (Mo- superior corriam doze casas para dormir ser- reira, 1991, p. 388), no entendimento de um vidas, quase todas, por uma varanda estreita. registo cultural progressivamente “colado” às sugestões italianizantes. Na realidade, o A entrada quinhentista do mosteiro assenta que se verifica nesta varanda que antecede o numa política de engrandecimento que geral de Santa Catarina é a consagração das reflecte a estrutura humanista do interior.

o mosteiro de santa cruz 042 | 043 O pequeno templete que se ergue diante da equivale a um espaço regular de 22 metros de arquitectónicos clássicos e ornados “ao ro- rência, nunca totalmente descodificada, em porta respira simultaneamente das catego- comprimento, dotado de galerias porticadas mano” que preenchiam nesta altura o es- Santa Cruz dos arquitectos Diogo de Tor- rias do sagrado, que também se levantavam com uma profundidade de 3,30 m. Assiste-se, paço humanista do mosteiro. A disposição ralva (a 28 de Setembro de 1528) ou de na fonte do claustro da Manga, e de um pois, a um esforço de regularização, apoiado das entradas, a sul para a casa do conselho Diogo de Arruda (a 21 de Junho de 1530), comportamento formal que não esconde a pela prévia definição do claustro do Silêncio e a poente para o claustro da portaria, não abstraindo agora da ingerência dos arquitec- preferência pelas estruturas centradas que a nascente e pelo espaço ocupado pelas ca- fazia, afinal, mais do que acentuar a acessi- tos régios em Lisboa, por exemplo em mo- acompanham igualmente a arquitectura civil pelas da igreja (do lado do Evangelho) e as bilidade da capela a uma população interna mento político-cultural tão delicado como a e militar. dependências colegiais a sul, que converte o e externa ao mosteiro, ao mesmo tempo adaptação dos colégios crúzios ao colégio claustro da portaria, tal como o entendeu Rui que promovia a nobilitação do “memorial”, das Artes, para compreender que as causas As raízes da ideia materializada na portaria Lobo, no “primeiro claustro do Renascimento transformado em “capela-mor”, cujos efei- construtivas de Coimbra não se esgotavam do mosteiro crúzio podem abranger um de Coimbra” (Lobo, 2006, p. 48), indiciando tos eram sublinhados pelo “arco romano” na mão-de-obra presente na cidade. leque vasto de inspiração que vai desde a a suspeita de que aqui se encontra, afinal, o fronteiro revestido com grades especiais. cultura arquitectónica a circular às já invo- embrião do designado claustro castilhiano. A construção do claustro da Portaria e a ex- cadas ligações remotas à arquitectura cas- Mesmo que seja legítimo recorrer a projec- tinção do pequeno mosteiro das Donas a trense e às sugestões vindas da arquitectura As informações mais próximas do tempo da tistas estranhos à cidade e ao mosteiro, em norte da igreja obrigaram também a nova militar (Moreira, 1981, p. 301); mas também construção deste claustro e que permitem a João de Ruão e Diogo de Castilho, com a projecção da igreja paroquial de S. João de podem passar pela reinterpretação de mo- reconstituição dos espaços iniciais aí pre- atenção constante de frei Brás, encontra-se Santa Cruz, em situação de coincidência com delos fixados na arquitectura além-Pirinéus sentes são fornecidas pelo importante có- a presença da ideia capaz de se materializar, a igreja das Donas até ao período manuelino. em decisiva direcção ao Renascimento. dice manuscrito que se guarda no , numa cooperação tão cara a Coimbra, entre As dimensões reduzidas da igreja, cada vez Com nítidas evocações à arquitectura fortifi- embora contenha anotações que chegam ao a força dos elementos arquitectónicos e a ex- menos adequadas aos fregueses da paró- cada, as estruturas centradas encontram-se primeiro quartel do século XVII. Assim, a sul pressão decorativa que estes adquirem tam- quia de Santa Cruz, acabariam por ser alvo de nos castelos que a mais fina nobreza fran- situava-se a casa do despacho e a casa da bém pela via do ornamento. De facto, a obrigatória atenção. Como aclarou Nogueira cesa construiu também pela mesma altura fazenda; a poente a cela do prior acrescida definição da colunata que se encosta à igreja, Gonçalves (Gonçalves, 1988), em 1513 consi- ao longo do Loire, no prolongamento de de outras casas ligadas à rouparia; a ala tal como o templete que antecede o portal derava-se já (num projecto abortado) esten- uma atitude que a encomenda italiana de norte não é referida, provavelmente porque do claustro da portaria, constitui a marca da der o espaço inicial da igreja para poente até elite já tinha avançado desde o século XV. por esta altura (cerca de 1531) não se encon- novidade em Coimbra e, portanto, passível à linha da igreja do mosteiro masculino, com As torres circulares que se colocam nos trava ainda concluída. Finalmente, a nas- de uma atribuição ao arquitecto-escultor fran- a capela de Santo António a desempenhar as muros ou nos seus ângulos contribuem po- cente encontrava-se a casa da lenha e a casa cês que não passou por um processo de rea- funções de capela-mor da igreja das Donas. derosamente para a conciliação entre o sen- do parlatório, transformada já em 1540 em justamento aos registos do Renascimento. A rápida mudança de planos levaria, pri- tido de fortificação medieval e o ambiente casa do conselho, também com ligação di- Já o claustro de arcaria repousando sobre co- meiro a pensar a deslocação da matriz da palaciano de festa e lazer. Portugal não dei- recta à capela de S. Vicente, ou do Espírito lunas e dotado de peitoris configurou o mo- paróquia para o lado sul da igreja crúzia, xou de adoptar este elemento em contextos Santo, pelo lado norte. A capela para onde, delo que Diogo de Castilho haveria de aplicar abrangendo as capelas do lado da Epístola e também diversificados. Basta lembrar a sua em 1535, Vasco Fernandes executava o retá- até ao fim da sua vida. Identicamente, o por- abrindo a porta axial no topo poente da ca- presença imperativa na Quinta da Cardiga bulo que ainda hoje sobrevive, é importan- tal geminado com mainel central na capela do pela de S. Tiago, depois à construção da de- (que ocuparia João de Castilho pelos anos tíssima no capítulo da representação do Espírito Santo mais não fazia do que repetir finitiva igreja paroquial, agora remetida a sul. 30, 40 de Quinhentos, ao serviço dos Cava- régio poder. Quadrangular com 4,40 m. por um esquema formal que Castilho já tinha leiros da Ordem de Cristo) ou na Quinta da lado, com cobertura de madeira artesoada e usado, meia dúzia de anos antes, na cons- A nova igreja (cerca de 1530), de uma ampli- Bacalhoa um pouco mais tarde. Uma uni- ornada com as pombas pintadas em articu- trução do portal principal da igreja do mos- tude onde se inscrevem as capelas-nichos dade cujas origens radicam fundo no tempo lação com a iconografia do retábulo colo- teiro. Porventura, utiliza-o também na área laterais e dotada de capela-mor quadrangu- e encontra, afinal, legitimação pela sua rein- cado na parede a norte, a capela do Espírito da portaria, complementado com os lavores lar, é revestida com abóbada de perfil rebai- terpretação na arquitectura do Renasci- Santo ostentava sintomaticamente na parede “ao romano” que denunciam a sua entrega xado com nervuras curvas, de feição idêntica mento em contextos religiosos ou profanos. a oriente a expressão desse poder, semanal- a uma moldura mais clássica que esse inter- à que o arquitecto Diogo de Castilho fazia, mente renovado. À maneira de retábulo, e valo de tempo não deixaria de lhe imprimir. nas mesmas datas no coro alto da igreja crú- O portal dava acesso ao designado claustro coadjuvado pelo outro onde “Apeles” pintou zia. O pavimento primitivo, à mesma cota do do conselho, “hua claustra muyto airosa de a Virgem no momento expressivo do Pente- Em obras de reconhecido envolvimento plu- da igreja vizinha, foi substancialmente ele- cem palmos de cõprido & quinze de largo cõ costes, com moldura de João Alemão, a ral, há que ter também em conta a constante vado ao mesmo tempo que a fachada poente arcos de pedraria cõ hum poco de agoa em o pedra com inscrição laudatória à glória do vigilância do rei no processo da reforma do foi adquirindo as configurações que se iden- meyo do ceo della” (Révah, 1958, s/p), o que rei encontrava-se rodeada pelos elementos mosteiro. Basta apenas lembrar a compa- tificam em gravuras e fotografias antigas.

o mosteiro de santa cruz 044 | 045 O “LONGO SÉCULO XVI”

O historial dos conflitos com os jesuítas re- monta à propriedade crúzia coincidente com o espaço dos antigos colégios de S. Miguel e de Todos-os-Santos. Pedido de empréstimo pelo rei em 1547 para albergar o colégio das Artes, todo o conjunto foi submetido às obras de adequação a um dos mais importantes institutos da Universi- dade também reformada (Craveiro, 2002, pp. 186-224). Espelho da cultura humanista em Coimbra, o colégio das Artes começou a funcionar em 1548 sob a chefia do Princi- Casa da quinta Até 1543 coube ao mosteiro de Santa Cruz efectiva de terrenos e quintas localizados so- m 1545 era criada a diocese de Leira, pal André de Gouveia (chamado pelo rei do Colégio das Artes do Marujal escrever uma das páginas mais brilhantes bretudo na área do . A título anexando a jurisdição e rendas que o colégio de Guyenne em Bordéus) e juntou Diogo de Castilho, Diogo de Castilho (?), E 1548, Coimbra séc. XVI, desenho a do país no capítulo da construção erudita de exemplo, refira-se apenas a quinta do priorado de Santa Cruz tinha na cidade um escol de professores distintos na credi- tinta da china, José dos espaços. Uma conjugação de eficácia, Marujal (Montemor-o-Velho) com casa e ca- e seu termo. Para aí transitava então frei bilização dos círculos europeus. Para aqui Luís Madeira, 1995 na administração dos recursos culturais e fi- pela (datada de 1541) e onde se reconstitui Brás de Barros, deixando para sempre o pe- fabricou Diogo de Castilho, possivelmente nanceiros acumulados ao longo da Idade um espaço de matriz cultural humanista noso governo dos crúzios e assumindo-se, com a colaboração de João de Ruão, o arro- Média, estabelecida pela vontade politica de que teve, certamente, a intervenção de até 1556, como o primeiro bispo da nova jado programa construtivo que implicava mudança, com a força de uma acção gover- Diogo de Castilho. A quinta foi incorporada diocese. um modelo regularizado com pátios e va- nativa esclarecida e mão-de-obra qualificada, no padroado da Universidade a 10 de Junho randas sobrepostas e onde se aplicava, elevaram o mosteiro à mais alta categoria de 1546. Em Coimbra, o reformado mosteiro de pela primeira vez com tal clarificação na ar- no domínio da cultura e das artes do Renas- Santa Cruz passaria a gerir a alegada maior quitectura da cidade, a ordem jónica, con- cimento. O rei desistia da nomeação dos priores precariedade dos meios financeiros, a agi- siderada adequada ao estudo e à (num longo percurso de controle e autori- tação interna e a conflitualidade desenca- concentração. A insólita posição das volu- A extinção do priorado-mor e a canalização dade balizada entre 1507 e 1543) que volta- deada contra as instituições e as forças tas dos capitéis (alvo de grandes interroga- de grande parte do seu património, com as riam a ser eleitos em Capítulo. Em Coimbra, culturais politicamente actuantes na cidade. ções historiográficas), com uma rotação de respectivas rendas, para a Universidade e e até ao final do século, a régia dedicação vai, Num jogo desgastante de poder e influên- 90º face à canónica definição clássica, para as novas dioceses de e Miranda por inteiro, ao encontro da instituição univer- cia, as querelas mantidas com a Universi- mais não faz do que reproduzir os dese- do Douro ditou a instabilidade governativa sitária e das necessidades sentidas com a dade, a Câmara, as Ordens religiosas ou o nhos gravados que circulavam e não falta- no interior do mosteiro e a crescente falta de instalação dos Estudos, reunidos nos Paços Bispado são realidades constantes ao longo vam também no mosteiro de Santa Cruz. capacidade e vontade na prossecução de régios a partir de 1544. Esgotava-se então do século. Particularmente agudas foram as A partir daqui, toda a experiência colegial uma reforma interna, basicamente dada em Santa Cruz o sonho acalentado de tutela disputas contra a Universidade, tendo como quinhentista irá passar pela adopção da agora por concluída. Os rendimentos prove- e gestão sobre a Universidade. Pouco mais pano de fundo as rendas desviadas, e contra mesma ordem jónica, agora já em “cor- nientes de inúmeras propriedades foram do que um cargo honorífico, restava ao prior a Companhia de Jesus. recta” definição. então desviados e o mosteiro perdia a posse a dignidade de Cancelário da Universidade.

o mosteiro de santa cruz 046 | 047 dos crúzios que jamais veriam satisfeitas as A REVITALIZAÇÃO (seguindo o ritual imposto na procissão do suas reivindicações, num longo processo CULTURAL Corpo de Deus), os conventos citadinos (o que implicou uma energia sistematicamente mosteiro de S. Pedro da Ordem Terceira de minada, acabando por enfraquecer também S. Francisco, S. Francisco da Ponte, Eremitas a vitalidade construtiva e a capacidade de li- de Nossa Senhora da Graça e S. Domingos), derança do mosteiro. todos os clérigos das igrejas colegiadas de Coimbra, os membros do Cabido, o bispo, os Até ao final do século as obras confina- fidalgos, o reitor da Universidade (D. Afonso ram-se praticamente aos acabamentos in- Furtado de Mendonça), o corregedor, o juiz ternos de um programa construtivo definido de fora, os vereadores da Câmara e o povo. anteriormente. As capelas do claustro do Si- Em suma, o reconhecimento global dos va- lêncio, à excepção da manuelina capela de lores expressos no universo simbólico das Jesus, fazem parte dessas escassas realiza- relíquias e a entrega, da sociedade em unís- ções levadas a cabo dentro dos muros con- sono, à consciência da eficácia representa- ventuais. Com a mão-de-obra especializada tiva do ritual. A insistência na presença das e formada nos estaleiros crúzios entregue às figuras alegóricas tem um dos pontos cul- campanhas construtivas dos colégios uni- minantes no espectáculo que se desenrola versitários, o mosteiro de Santa Cruz perdia no adro da igreja de Santa Cruz, com a a força do trabalho qualificado, ao mesmo montagem de um teatro onde actuam du- tempo que perdia também a propriedade zentos figurantes em redor de um trono de- (ao longo da rua da Sofia) cedida compulsi- finido “a modo de Eça”, sobre seis degraus. vamente às diversas Ordens religiosas. Dele partem quatro colunas de 25 palmos que sustêm um dossel onde se senta a Virtude. Foi para fazer face às dificuldades que, em Junto dela, outro trono mais pequeno assente Livro das Entre 1555 e 1565, o colégio das Artes, en- 1556, os diversos mosteiros sob a regra de os finais do século XVI o mosteiro sobre três degraus é reservado ao Prémio. Constituicoens e tregue à tutela dos jesuítas, permaneceu Santo Agostinho se uniram em Congrega- de Santa Cruz voltaria a encontrar o Do cenário montado constam ainda uma costumes que se N guardam em os no mesmo local, enquanto a rua da Sofia ção religiosa. Estabelecida a rotatividade sopro da energia capaz de um novo máquina de doze mastros com estandartes Moesteyros da fervilhava na construção dos colégios das dos priores, a Congregação passaria a inte- estímulo construtivo. preenchidos com imagens de santos e duas Congregacam de sancta Crurz de Ordens religiosas (já desde os inícios da dé- grar (para além do mosteiro crúzio de Coim- escadas orientadas para norte e para Coimbra... cada de 40), sistematicamente integrados bra) desde o mais significativo mosteiro de A utilização das relíquias, na sequência do oriente. A Fama e o Tempo posicionam-se Impresso no na Universidade. Em 1565, depois de quei- S. Vicente de Fora (Lisboa) aos mosteiros de labiríntico processo de imposição do poder junto à escada do oriente, a Fortaleza e a mosteiro de Santa xas sucessivas quanto à insalubridade do es- S. Jorge e S. Pedro de Folques (próximos a conventual ao longo da Idade Média, man- Justiça junto à escada do norte. Momento Cruz, Coimbra, 1558, BGUC, R-12-7 paço, os jesuítas rumaram à proximidade Coimbra), S. Salvador de Moreira da Maia, tém-se como ferramenta poderosa no xa- alto do cerimonial é o do recebimento das com a Universidade (fabricando o complexo S. Salvador de Grijó ou o mosteiro da Serra drez das influências esgrimidas na cidade. relíquias à porta da igreja pelo Anjo Custó- onde, a partir de 1772, se instalaria a nova do Pilar. Generalizava-se, assim, a assistên- A descrição da vinda de relíquias da Flan- dio da Ordem de Santo Agostinho acompa- Sé e as dependências afectas à Reforma cia mútua mas também a obrigação da dres, do mosteiro de S. Marcos, e a sua en- nhado pela Fortaleza, a Justiça, o Trabalho, Pombalina da Universidade), levando con- ajuda financeira (em função dos respectivos trada em Santa Cruz em 1595 (Santa Maria, o Merecimento, o Prémio (com dois anjos) sigo o colégio das Artes e deixando vago o rendimentos) às obras consideradas, em Nicolau, 1668, P. II, Liv. VII, pp. 75-83) é um e a Virtude. A coroação dos santos precede espaço junto ao mosteiro para a ocupação reunião capitular, como prioritárias ou rele- exemplo revelador. Os festejos então ocorri- a entrada das relíquias na igreja até à ca- do Santo Ofício. O mesmo espaço que seria vantes para os mosteiros da Congregação. dos contemplaram uma procissão de grande pela-mor, “onde foraõ collocadas as Santas disputado pelos crúzios reivindicando, du- aparato, da Sé ao mosteiro, onde não falta- Reliquias em hum alto, & bem laurado rante anos, uma propriedade que não mais ram os arcos triunfais e o fogo de artifício a throno, que estaua sobre o Altar mòr, & era lhes seria entregue. acompanhar o tecido social da cidade hie- de tres faces dourado em partes, & todo lau- rarquicamente distribuído. A abrir a procis- rado de brutesco” (Santa Maria, Nicolau, Da mesma forma, as rendas do priorado-mor são, a alegoria da Fama com duas trombetas 1668, P. II, Liv, VII, p. 81). Daí, a procissão canalizadas para a Universidade em 1543 era precedida pelo Tempo, ao qual se se- seguiu então pelos claustros, do Silêncio e suscitaram uma onda de protestos por parte guiam as bandeiras dos Ofícios da cidade da Manga, onde parou junto à “...fonte, que

o mosteiro de santa cruz 048 | 049 em o meyo desta claustra cobre hua abo- que D. Nicolau escreve a sua Crónica, as re- Com uma imposição sobre a muralha da ci- Antonio Labacco, beda de meya laranja, sustentada de oito líquias estariam já concentradas em local dade, com acesso facilitado ao mosteiro e, Livro de Arquitectura Roma, 1557, BPMP, colunas de marmore fixas, sobre quatro emblemático, expressamente destinado ao mesmo tempo, numa área de proximi- RES. XVI-C-10 pontes de pedra, por baixo das quaes se para o efeito, “no principio do Dormitorio dade física à Universidade, o colégio de communicão as agoas de oito tanques pos- principal do mesmo Mosteiro, que corre do Santo Agostinho afirmou-se no terreno da tos em cruz. Aqui estaua a figura de Apolo poente ao Nascente, (onde) está hua fer- concorrência e da credibilidade dos Estudos. com as tres Graças...” (Santa Maria, Nico- mosa casa com a porta pera o mesmo Dor- O seu estatuto privilegiado isentava os cole- lau, 1668, P. II, Liv. VII, p. 83). Ou seja, socor- mitorio, & hua janella rasgada pera a Rua de giais, a partir de Provisão dada por D. Sebas- rendo-se de um vastíssimo conjunto de S. Sofia: he esta casa feita a modo de Igreja tião, da comum deslocação à Universidade figuras alegóricas, onde não falta a carga com sua Capella, cõ hum arco de pedra para a celebração de todos os Autos anterio- erudita das componentes mitológicas do branca de grande artificio, todo retocado de res ao doutoramento que eram efectuados classicismo, o mosteiro cedia “generosa- ouro; he a Capella de abobeda da mesma no mosteiro de Santa Cruz. Este regime di- mente” a público a visão apoteótica dos pedra branca toda cozida em ouro, com di- ferenciado relativamente às outras Ordens mecanismos que sustentavam a credibiliza- versas laçarias, ramos, & serafins. Dentro religiosas permitiu, assim, a reivindicação de ção do seu poder. Por outro lado, o com- desta Capella se leuanta sobre hum Altar o um papel determinante para o espaço cul- plexo ritual que decorre internamente, throno das Santas Reliquias... em que estaõ tural dos crúzios onde se tinha, em primeiro gerando também a distância, promove a eli- collocados os Reliquarios... Do arco da Ca- lugar, acolhido a Universidade. tização de um espaço restrito à comunidade pella pera fóra està a casa toda de rico azu- arvorada em fiel depositário das engrena- lejo pellas paredes, & o tecto todo pintado O projecto para o colégio, cuja construção gens da Fé. de brutesco...” (Santa Maria, 1668, P. II, Liv. se iniciava em 1592, deverá pertencer a Jeró- VII, p. 84). nimo Francisco (+ 1598) (Craveiro, 2002, Outros sintomas de revitalização encon- pp. 278-283), arquitecto régio na cidade tram-se nesse exercício de substituição dos onde teve também uma acção destacada ao equipamentos necessários tanto à apresen- Sintoma claro dessa preocupação com os serviço da Universidade, da Misericórdia, do tação de uma modernidade actualizada valores de eternização da espiritualidade re- O colégio de Santo Agostinho, fora dos cir- bispo D. Afonso Castelo Branco, da Câmara, quanto à obrigatória adequação a uma li- ligiosa que transportam as relíquias é tam- cuitos intra-muros, foi a grande aposta cons- da Ordem do Carmo ou do cisterciense co- turgia renovada. O antigo retábulo da ca- bém o enaltecimento desde sempre trutiva de uma época pautada pelas légio do Espírito Santo (Craveiro, 2002, pp. pela-mor, da autoria de Cristóvão de conferido à figura de S. Teotónio e que have- dificuldades. Das várias alternativas surgidas 487-496). O conjunto colegial passou por al- Figueiredo, foi apeado para colocar um novo ria de culminar na construção da sua capela. ao longo da segunda metade do século XVI terações substanciais desde o século XIX pintado por Simão Rodrigues e Domingos para a instalação dos colegiais que continua- para adaptação ao colégio dos Órfãos, e de- Vieira Serrão (com a intervenção do ensam- A capela de S. Teotónio (1582-1588) rasgou vam no recinto do mosteiro ganhou corpo pois à Misericórdia e à Faculdade de Psico- blador régio Bernardo Coelho) em 1611 (Ser- a parede fundeira (a sul) da sala do Capítulo a ideia de uma construção sediada em ter- logia e Ciências da Educação, mas ainda se rão, 1992, II, pp. 470-471). As tábuas e assumiu-se como “capela-mor” de uma renos previamente comprados à Câmara e preserva a estrutura que identifica uma di- subsistem ainda no colégio do Carmo à rua estrutura que ganhou, assim, uma sacrali- aos herdeiros de João de Ruão (as antigas nâmica da modernidade. Com o recurso a da Sofia, tal como outras executadas em dade acrescida. Marcando uma posição que casas e quintal do escultor normando, junto uma estratégia cenográfica que falseia a ver- 1620 também para as diversas dependên- se afastava da acção construtiva de outras à ermida da Madalena e à torre dos Sinos). dade dos volumes, o colégio de Santo Agos- cias do mosteiro crúzio e pela mesma parce- Ordens religiosas, o mosteiro entregou a O colégio fundava-se exactamente no espaço tinho integra um comportamento formal de ria de pintores (Serrão, 1992, II, p. 471; obra aos oficiais mais reconhecidos na ci- pretendido para a instalação da Universi- base tratadística e serliana, novo na cidade, Garcia, 1923, pp. 138-141). dade. Ao arquitecto e escultor Tomé Velho dade (com projecto feito pelo arquitecto Fi- e explora uma energia ornamental que inte- coube a responsabilidade do projecto e exe- lipe Terzi e nas mãos do rei), gorados os rage com a versão mais contida e “triunfal” No primeiro quartel do século XVII, as obras cução de um conjunto (não o arco triunfal anteriores projectos para a colocação dos da arquitectura chã. A fachada poente mos- que conduziram à reformulação do longo nem a escultura do santo) onde ainda de- Estudos, ainda na tentativa de salvaguarda tra a simulação da fachada da igreja que, na bloco do dormitório poente-nascente (que corre o vigor e a audácia reinterpretativa da da integridade dos Paços régios. O embargo realidade, lhe não corresponde, reflectindo corria por cima do refeitório e se alongava cultura humanista da primeira metade do lançado em 1592 às obras de fundação do sobretudo a vontade de imposição da estru- até ao claustro da Manga) englobaram, a século, enriquecida agora com novas e re- colégio seria levantado logo no ano se- tura religiosa na cidade. Circundando o poente, o espaço adequado às relíquias con- frescantes contribuições vindas da tratadís- guinte, resolvendo-se a causa a favor das morro, esta fachada acompanha o lado cebido “a modo de Igreja”. Ao tempo em tica e da gravura europeias. pretensões crúzias e com a Universidade de- poente do claustro principal para, seguida- finitivamente remetida para os Paços. mente, e depois do refeitório, descrever

o mosteiro de santa cruz 050 | 051 Portal da igreja do apertada curvatura, guardando as zonas uti- Como parte integrante dos planos iniciais, reveste o portal principal e o interior da (em particular a Serlio) estabelecem o com- Sacristia do mosteiro antigo colégio de litárias do colégio, até entestar na longa faixa encontravam-se a igreja, o claustro maior, os igreja, desde as pilastras ao intradorso dos pleto afastamento da “norma” vigente na ci- de Santa Cruz Santo Agostinho Manuel João, década de 30 do do dormitório. Pelo alçado nascente é pos- dormitórios com a portaria (com uma se- arcos e aos dois púlpitos, segue os modelos dade que impunha repetidamente o modelo 1622-1624 séc. XVII sível determinar os vários corpos da sacris- gunda virada a Sobre Ripas, rapidamente su- nórdicos numa sequência arrebatadora de castilhiano. Claustro do Igreja do tia, da cabeceira da igreja (dividida em dois primida), o refeitório e as zonas utilitárias molduras em “ferronnerie” que integram antigo colégio de antigo colégio de níveis separados por cornija dupla encimada de apoio aos diversos serviços. Basicamente, motivos geométricos de rectângulos, círcu- Santo Agostinho Santo Agostinho por mais um frontão triangular), dos dormi- os espaços que ainda se mantêm do antigo los e ovais, máscaras e “pontas de dia- A sacristia do mosteiro teve várias campa- Jerónimo Francisco (?), séc. XVII tórios altos e das salas no piso térreo onde colégio dos crúzios. Na linha poente, o piso mante”. Na mesma cultura estética, note-se, nhas construtivas mantendo a localização 1596 se incorpora a entrada da antiga portaria térreo seria preenchido pela livraria, pela que ditou a construção do portal da capela original, a sul da capela-mor. A primeira, com a capela. sala dos Actos (no eixo da igreja) e por salas das relíquias, anexa à sacristia do mosteiro mais pequena e sem qualquer vestígio, foi de aula, acompanhando já a ala poente do crúzio. alargada nos princípios do século XVI. Se todas as fachadas sofreram arranjos ao claustro maior. Esta, “era da mesma obra da igreja ainda longo dos tempos, a parte do sul é, sem dú- Inteiramente nova na cidade é a concepção que na abobeda não era toda de pedra mas vida, a mais reformada pela configuração A igreja, pequena e cujas dimensões tiveram plástica que envolve o claustro rectangular so quatro rompantes que fazião duas cruzes dada à nova entrada, pela mutilação efec- de se adequar ao espaço disponível, obedece datado de 1596. Tanto os quatro alçados nas quais se fundava a mais abobeda de ti- tuada no pequeno claustro (construído ape- às fórmulas espaciais divulgadas sobretudo como as abóbadas das galerias baixas jollo, ao modo de abobeda de aresta como nas por volta de 1630, tal como a sacristia, o a partir da igreja da Graça, com nave única constituem aqui a mais absoluta novidade, dizem os architectos” (Cristo, D. José, fl. 52). acabamento dos dormitórios altos e o guar- acolitada por capelas laterais intercomuni- porventura paradigmática do esforço de Ou seja, uma dependência de dois tramos necimento a estuque da abóbada da igreja) cantes. E, tal como se verificou na cidade demarcação do mosteiro relativamente à erguida, portanto, em paralelo com as obras e pela construção da torre que segue o mo- desde o exemplo da igreja de Santa Cruz, poderosa instituição da Universidade. a decorrer desde o priorado de D. Pedro Ga- delo da emblemática torre da Universidade. também aqui o coro alto se desenvolve ex- Com afinidades marcantes com o claustro vião. A ligação à capela da igreja atesta ainda O claustro, encostado ao flanco sul da traordinariamente absorvendo os dois primei- de Torralva em Tomar, o ambiente clássico o período manuelino na sequência dos con- igreja, teria uma configuração regular que as ros tramos da igreja. Abstraindo os estuques que se respira em Santo Agostinho e a sua tratos estabelecidos com mestre Boytac. obras posteriores lhe retiraram. colocados cerca de 1630, a decoração que aproximação aos esquemas tratadísticos Nesta altura, da sacristia sairia também

o mosteiro de santa cruz 052 | 053 A RENOVAÇÃO BARROCA DOS ESPAÇOS

Antiga enfermaria “hua escadinha de pedra... que va tomar o preserva-se um corredor da antiga enferma- mosteiro de Santa Cruz não ficou curvilíneas que condenaram a iconografia Órgão da igreja do mosteiro de caracoll que ja estaa feyto e desentulhará e ria crúzia, cuja construção ocorreu entre os indiferente à plástica barroca. Pelo quinhentista e suprimiram o mainel central. do mosteiro de Santa Cruz O Santa Cruz séc. XVII, Escola acrecentará até çima honde hã de estar os anos 30 e 50 do século XVII. Ainda hoje contrário; a visibilidade adquirida Manuel Gomes Jaime Cortesão synos” (Garcia, 1923, p. 154). existe o alinhamento definido por um ritmo pelo dinamismo cenográfico de linhas e es- Perdidas as referências sobre a sua autoria Herrera, 1719-1724

Antiga enfermaria cadenciado de abóbadas de berço inter- paços seduziu os crúzios tanto quanto a ge- ou sobre uma datação precisa das obras, do mosteiro de Uma campanha efectuada por volta de 1590 rompidas por cinco “unidades” (à maneira neralidade das Ordens religiosas e do país. resta a suspeita de que a escritura, datada Santa Cruz aumentou a sacristia que sofreria ampla e brunelleschiana) cupuladas (dotadas de lan- No século XVIII era hora de imprimir tam- de 22 de Março de 1755, pela qual o mosteiro séc. XVII, Escola definitiva remodelação no século XVII (1622- ternim no século XVIII) e onde se verifica bém um sinal de erudição actualizada e de Santa Cruz compra, por 7.200 reis, um Jaime Cortesão 1624), sob a provável responsabilidade do uma ordenação regulada por intuitos de si- construir, mais uma vez, e marcando uma talhão de pedreira, no sítio da Copeira, limite arquitecto local Manuel João (+ 1628) em- metria, detectada também nos arcos cen- posição de força e inteligência, dentro e fora de Portunhos, para pedra para as obras do bora, e com base no testemunho de D. José trais (agora entaipados) da fachada virada à de muros. mosteiro (A.U.C., Livros de Notas de Santa de Cristo, a atribuição a Tinoco rua. Na “capela” que se identifica central- Cruz, T. 43, Liv. 150, fls. 190/v-191/v, 194-197) se mantenha ainda firme. No entanto, é pos- mente, os elementos presentes e definidos Já avançado o século XVIII, a remodelação possa constituir a alusão em falta para esta sível que apenas o lavabo lhe deva ser atri- pela abóbada de caixotões reportam ainda a do portal da igreja com a inclusão do óculo empreitada. buído, enquanto que o “gosto local” uma filiação de recorte clássico que alimen- de molduras sucessivas acima da porta de (Soromenho, 1995, p. 391) já reconhecido na tou incessantemente a cultura dos crúzios. verga recortada, teria funcionado como a so- Na mesma centúria, as obras a decorrer na configuração de sabor flamenguizante da lução adequada à época para resolver a igreja passavam também pelo novo órgão nova sacristia possa ser identificado com as eventual deterioração do portal. Porventura, (1719-1724) executado pelo mestre organeiro orientações de Manuel João. fruto da reforma efectuada por D. Gaspar da espanhol Manuel Gomes Herrera ou pelo re- Encarnação (1723-52) (à memória de quem o vestimento azulejar do corpo e da capela-mor, A vontade de iniciativa que dava corpo à advogado, magistrado e poeta brasileiro em suma, pela exposição do espectáculo modernização dos vários circuitos não dei- Cláudio Manuel da Costa haveria de dedicar barroco de que os cónegos regrantes de xou de se manifestar a vários níveis: nos an- o seu Epicédio), a nova entrada do templo Santo Agostinho não quiseram, igualmente, dares altos da actual Escola Jaime Cortesão optou pela conjugação de linhas rectas e prescindir.

o mosteiro de santa cruz 054 | 055 fonte de poderoso efeito cenográfico e com- posta pela estrutura da cascata (com a es- cultura de Nossa Senhora da Conceição) ladeada, em plano recuado, por dois meda- lhões azulejados. À esquerda, em moldura oval amparada pelos evangelistas S. Lucas e S. João, os , de perfil rococó e com legenda latina, transmitem a história bíblica de Agar e Ismael no deserto de Bersabeia, retirada do Livro do Génesis, 21. O momento em que o anjo enviado por Deus anuncia à escrava egípcia uma grande nação para o seu filho Ismael tem correspondência no ali- nhamento à direita onde se processa, com S. Mateus e S. Marcos, a história relatada no Segundo Livro dos Reis, 2, 19-22: o profeta Eliseu deita sal na fonte de Jericó, purifi- cando as águas e restabelecendo a fertili- dade na cidade. Parque de A capela das Relíquias constitui momento Ferreira o Mestre mais perito que houver quatro golfinhos a apontar os quatro ele- Fonte do Santa Cruz alto da consagração crúzia no capítulo da neste Reyno a quem se pagará a custa delle A triangulação definida pelas escadarias mentos da Natureza, num conjunto rema- Jardim da Sereia séc. XVIII séc. XVIII, Parque autoridade em matéria espiritual. O desig- conforme o que com o dito mestre se ajus- que partem deste conjunto e vencem as di- tado pela urna partida, encontra-se hoje de Santa Cruz Agar e Ismael nado Santuário eleva-se nos pisos altos tar...” (A.U.C., Livros de Notas de Santa ferentes cotas da encosta atrás acentuam numa geografia desactivada de regulação. no deserto sobre o bloco formado pela capela de Jesus, Cruz, T. 38, Liv. 137, fls. 76/v-77/v). os níveis de um espectáculo montado em medalhão azulejado na fonte do Jardim sala do Capítulo e capela de S. Miguel e torno de uma espiritualidade que congrega Pelas mesmas cronologias, o remate nas- da Sereia, séc. XVIII, apresenta interiormente a forma elíptica tão o lúdico e o prazer no usufruto da Natureza. cente da ala da enfermaria inserida hoje na Parque de cara também ao barroco português. Aqui se Fora dos circuitos internos da casa conven- O escadório que se projecta à direita ab- Escola Jaime Cortesão abriu-se a uma área Santa Cruz alinhavam as mais de mil relíquias à salva- tual, o jardim da Sereia (dos meados do sé- sorve vários patamares com taças de água e de lazer para os enfermos onde se reconsti- guarda do mosteiro e se expunha a sua tu- culo XVIII), no parque de Santa Cruz, remata bancos revestidos de azulejos com temas di- tuiu grande parte da atmosfera gerada no tela sobre os mecanismos intrincados da fé. o percurso da cerca para nascente e oferece versos. O percurso, acompanhado de piná- jardim da Sereia. A organização idêntica dos Também por esclarecer a autoria (João Fre- aos cónegos um espaço privilegiado de culos piramidais, culmina na fonte da torreões que fecham o espaço e onde se pre- derico Ludovice?) ou as datas concretas da lazer e contemplação. Preenchido com uma Nogueira onde se encontra o motivo que dá servam as fontes dotadas também de uma construção, continua por desvendar o con- vegetação arbórea diversificada (em 1774 re- o nome ao Jardim: sob a estrutura setecen- estrutura cénica com moldura oval e preen- trato não especificado, celebrado a 9 de No- feria-se a abundância de laranjeiras e limoei- tista do nicho onde se acolhe a Virgem com chidas por uma decoração que simula terra vembro de 1731, entre o mosteiro e o mestre ros) situa-se fronteiro à Praça da República, a pomba do Espírito Santo permanece o tri- (feita de concreções calcárias), estabelecem Gaspar Ferreira (em que o arquitecto rece- com acesso entre as duas torres (com pin- tão (confundido com a sereia) que abre a a exacta medida de uma cultura pragmática beria 70 moedas de ouro de 4.800 reis “das tura a fresco interna e externamente) que boca de um golfinho por onde corre a água. que não prescinde do espectáculo revitaliza- correntes neste Reino” e se obrigava a assis- antecediam o jogo da Péla e enquadram A água que é, aliás, e em enquadramento bí- dor da Natureza. tir à obra da igreja, “todas a vezes que ne- um arco tripartido e rematado pelas escultu- blico, o tema que protagoniza todos os re- cessario lhe for, e outrossim for chamado ras alegóricas das Virtudes teologais da Fé, gistos azulejares deste patamar. pera ella”), E não a dando acabada no prazo Esperança e Caridade. A alameda criada a de três anos, “o Convento mandará buscar partir daqui encontra um “núcleo” de dis- Assumindo uma posição de centralidade no pera assistir a dita obra a custa delle Gaspar persão no patamar que integra a magnífica espaço do Jardim, o grande lago com os

o mosteiro de santa cruz 056 | 057 A EXTINÇÃO DAS ORDENS E A DESAMORTIZAÇÃO DOS BENS

Fachada da igreja s efeitos da Revolução Liberal che- Arquivo da Universidade de Coimbra ou na a sua entrada até 1997 e sustentavam a cota Fachada da igreja do mosteiro de garam também ao mosteiro de Biblioteca Geral da Universidade de Coim- mais elevada da Praça. Em 1940, o receio de do mosteiro de Santa Cruz O Santa Cruz fotografia, c. 1960, Santa Cruz. Em 1834, a presença bra. Muito do crúzio acabou como bombardeamentos ditava a cobertura do fotografia, 1940, IC, C-086 das tropas liberais semeou a desordem e a parte integrante das colecções dos museus portal da igreja. IC, A-121

destruição sobre o espaço físico dos crúzios que nasciam, também como fruto da cul- Queda da torre dos enquanto se desmoronava o edifício cultu- tura positivista e romântica, ávida da sal- No dia 3 de Janeiro de 1935 rematava-se sinos do mosteiro ral construído durante séculos. Os longos e vaguarda de uma memória identitária. ainda um capítulo de destruição: ruía a velha de Santa Cruz perturbantes anos de solidão que se segui- Particularmente, a acção de figuras desta- torre dos sinos (Gonçalves, 1980, pp. 219-225) fotografia, 3-1-1935, IC, F-070 ram ditaram, não apenas a extinção das cadas na cidade, como António Augusto que durante séculos configurou a paisagem Ordens religiosas mas igualmente, em Gonçalves, haveria de conduzir parte subs- citadina. clima de acéfala iconoclastia, a perca e a dis- tancial do espólio crúzio para o que viria a seminação de uma riqueza patrimonial a ser, em 1911, o Museu de Machado de Cas- Em 1907 o mosteiro de Santa Cruz era ele- que não se furtou nenhuma Casa religiosa. tro em Coimbra. vado à categoria de Monumento Nacional Muitos dos espaços do mosteiro foram reivindicando, assim, a protecção e o esta- sendo sucessivamente ocupados e o espó- Em 1877 era destruído o claustro da Porta- tuto qualificado que, em 2003, levaria a lio da livraria acabou parcialmente salvo e ria para dar lugar ao edifício da Câmara igreja a assumir, em parceria com a igreja de dirigido a várias instituições que, entretanto, Municipal. A linha das fachadas era defini- Santa Engrácia de Lisboa, uma outra dis- se fundavam. Hoje avalia-se a dimensão tivamente alterada, com a igreja do mos- tinção. Pela salvaguarda do sepulcro régio desse património através (fundamental- teiro a desempenhar as funções de paroquial a igreja transformava-se então no novo mente) da sua consulta no Arquivo Nacional de Santa Cruz enquanto a sul, na antiga Panteão Nacional. da Torre do Tombo, na Biblioteca Nacional, paroquial, nasceria o café que ainda se na Biblioteca Pública Municipal do Porto mantém. A fachada da igreja centenária de (graças aos esforços de Alexandre Hercu- Santa Cruz foi então guarnecida com a es- lano), na Biblioteca Pública de Évora, no trutura das grades (c. 1870) que protegeram

o mosteiro de santa cruz 058 | 059 ESPAÇOS FÍSICOS A LINHA DAS 2 E SIMBÓLICOS FACHADAS

teiro de Santa Cruz se deveu, tanto a regu- larização da malha urbana circundante que permanece até hoje como o alinhamento definido pelas fachadas. O protagonismo exercido sobre a actual Praça 8 de Maio, na confluência do “canal” com origem no Largo da Portagem e articulando a sequência para a Rua da Sofia, estabelece agora o primado dos poderes civil e religioso, numa recon- versão de autoridade que, até 1834, perten- ceu por inteiro ao mosteiro de Santa Cruz.

data da fundação do mosteiro de Santa O restauro da fachada da igreja, promo- (página seguinte) Cruz (1131) o recuo do perigo muçul- vido pelo IPPAR e concluído em 1997, deu Linha das fachadas À com a Câmara mano permitiu uma implantação a actual configuração à Praça. Sob projecto Municipal de já fora da protecção da muralha. O com- do arquitecto Fernando Távora, o antigo Coimbra, a igreja de Santa Cruz e o café plexo edificado que se formaria a partir daí Largo de Sansão desceu à cota da igreja Santa Cruz projectou também a linha da cerca que coin- (anulada a elevação que a mantinha com cidia, a poente, com a frente definida pela impressão de soterrada, obrigando a um fachada da igreja e se desenharia para nas- acesso por escadas protegidas por gradea- cente num circuito próximo às actuais ruas mento) e colocaram-se as rampas de Nicolau Rui Fernandes e das Figueirinhas. acesso aos planos laterais mais elevados. O “lago” fabricado frente à igreja recria a A linha das fachadas que abrange hoje o antiga fonte de Sansão que se articulava edifício da Câmara Municipal de Coimbra, com uma outra dedicada a S. João (desac- a igreja do mosteiro e se prolonga pela fa- tivada com D. Sebastião). Ao mesmo chada mais recuada do café é o resultado tempo, entre o “lago” e a igreja, as linhas de um longo caminho feito de muitos mo- marcadas no pavimento sugerem uma li- mentos construtivos que implicaram outras gação explícita entre a água e o território tantas abordagens sobre o tempo cultural do sagrado; um compromisso de purifica- em que decorreram as transformações. ção assumido no espaço que vive ainda, Desde a implantação do mosteiro medieval pese embora a agitação proveniente dos sobre o sítio dos banhos régios e marcando vários sectores políticos, económicos ou fortíssima área de sociabilidade numa estra- sociais e culturais, à sombra do edifício tégia urbanística que implicava o domínio que, durante séculos, protagonizou os des- sobre o Largo formado à sua frente, ao mos- tinos traçados no Largo.

060 | 061

uma altura que não excedia o momento em em Coimbra, as balizas cronológicas para a que os botaréus laterais assumem a forma oc- estrutura em pedra de Ançã do portal têm, togonal. O contrato celebrado a 24 de Janeiro assim, sido situadas entre 1522 e 1525. de 1513 entre o mosteiro e mestre Boytac (Garcia, 1923, pp. 152-159) assinala a ocasião Com as sepulturas dos reis acabadas, Nico- propícia para a redefinição o corpo da igreja lau Chanterene e Diogo de Castilho, os em- que implicaria a nova fachada. preiteiros, puderam então dedicar-se ao trabalho do portal. Com eles transitaria, pelo A surpreendente assinatura que se desco- A saída de Coimbra do arquitecto régio have- menos, parte dos artistas vindos também bre, em letra cursiva, numa das faces da ar- ria de promover a ascensão de Marcos Pires, das obras de Belém para a empreitada dos quivolta superior do portal, situada no entretanto à frente das obras em Santa Cruz túmulos. Neste período, os artistas que se prolongamento marcado pela aduela cen- e nomeado mestre das obras reais na cidade encontram presentes em Santa Cruz, teste- tral, é a abreviatura de Diogo mas não cor- A IGREJA DO MOSTEIRO em 1517. A ele caberia o acompanhamento munhando diversos contratos com a desig- responde às que Diogo Pires-o-Moço da obra em calcário amarelo do Bordalo, in- nação de pedreiros, são: Fernão Martins, colocou nas suas obras. Acompanhando a cluindo a formação do grande janelão em João Aires, Sebastião Gomes, João Marques, abreviatura encontra-se, em jeito de pico- calcário de Ançã, o seu remate com as guir- Domingos Pereira, João Português, Fernão tado na pedra, a letra C. O ponteiro que fez landas superiores e a colocação da iconogra- Pires e João Rodrigues, todos moradores em estas marcas não foi mais além, mas a gra- fia da cruz. Esta obra estava concluída por Coimbra à excepção de Sebastião Gomes fia do C apresenta-se com a haste superior 1518, faltando a estrutura do portal. que reside no Botão. Destes, apenas relati- alongada, tal como Diogo de Castilho a re- vamente a João Rodrigues se dá a coincidên- petiu em centenas de documentos em papel É apenas nos começos do reinado de D. João III, cia da presença de vários homónimos nos e pergaminho. A suspeita de que é em Santa em 1522, que a fachada volta a ser uma prio- portais dos Jerónimos (Dias, 1993, p. 287). Cruz que se encontra a única assinatura, até ridade. Nos quatro anos entretanto decorridos Os outros fariam, eventualmente, parte de agora detectada, que o arquitecto colocou reformulavam-se praticamente todos os espa- uma mão-de-obra local que não deixou de nas obras que dirigiu, é realçada pela simi- A fachada da igreja do mosteiro tem consti- ços internos; guarneceram-se a igreja e as tor- ser aproveitada nesta campanha. litude da sua grafia aposta noutro tipo de Assinatura de tuído permanente desafio de interpretação. res de guirlandas e acabaram-se os túmulos. materiais mas também pela localização Diogo de Castilho c. 1525, portal da Não obstante todos os contributos historio- A urgência ia agora para o portal, a fazer, “na Diogo Pires-o-Moço, herdeiro da oficina de centrada em que se encontra. Eventual- igreja de Santa Cruz gráficos, as sucessivas alterações que aqui ordenança em que estava projectado” (Viterbo, seu pai ou de seu tio, Diogo Pires-o-Velho, e mente, não a colocou em local visível por- se verificaram continuam sem uma resposta 1914, p. 42). Os oficiais, libertos dos outros que se encontra também registado em que esse efeito não faria parte do projecto decisiva que permita o estabelecimento de espaços concluídos, puderam então concen- Santa Cruz até 1531, é um dos casos ainda pré-estabelecido. cronologias rigorosas ou o reconhecimento trar-se na fachada que teria, por esta altura, não totalmente esclarecido. A guirlanda da exaustivo da mão-de-obra envolvida. definido o grande janelão e uma porta de igreja de Santa Cruz e os dois anjos heráldi- Insólita a intenção deliberada de fixar uma entrada de organização incerta. A estrutura cos laterais, que lhe são atribuíveis, fazem assinatura que nunca poderia ser vista, mas A fachada da igreja mantém uma estrutura “retabular” de Ançã começaria, então, a ser dele um artista comprometido com as obras sem novidade a marcação de identidade na que obedece, por um lado à distribuição de montada, cercando o janelão já terminado. do mosteiro antes de 1518, às quais é lícito arquitectura deste período. Para além de ou- planos anteriores ao século XVI e definidos pensar que se terá mantido ligado depois tras formas de representação dos artistas pelo edifício românico, por outro à capaci- Em carta régia, infelizmente não datada, desta data. Sendo incerta a sua participação envolvidos nas obras, como a figuração es- dade renovadora do período manuelino que dava-se ordem ao recebedor das rendas do na campanha dos túmulos e na estrutura em cultórica, letras isoladas ou outros sinais, prolonga as obras pelos inícios do reinado priorado, Nicolau Leitão, para que fossem pedra de Ançã do portal, mantém-se a forte muitas vezes de difícil interpretação, encon- de D. João III. Das transformações ocorri- pagos cem cruzados de ouro a Diogo de possibilidade de que aí tivesse colaborado. tram-se, por exemplo, assinaturas em abre- das, o resultado mais significativo é a eleva- Castilho e a Nicolau Chanterene, “pedreiros Diogo Pires não era apenas um imaginário viatura nos muros interiores das Capelas ção da fachada românica e a construção do e empreiteiros do portall do dito moesteiro... de escultura avulsa de vulto. Prova a sua obra Imperfeitas do mosteiro da Batalha (Gomes, portal em pedra de Ançã, já em período joa- que lhe mando dar pera fazerem as ymagees assinada que era também um decorador de 1997, p. 163), ou no caso mais divulgado do nino. A fachada românica foi organizada em que estam por fazer no dito portall e ysto superfícies murais, tocado, a um tempo, pela portal da rotunda de Tomar, onde João de cinco corpos (com dois volumes recuados allem do que ja tem Recebido da sua emprei- influência flamenga dos muitos lavrantes nór- Castilho datou a obra e colocou o seu nome e três avançados – o central que integrava o tada” (Viterbo, 1914, p. 36). Com funda- dicos presentes na cidade (Craveiro, 1997, no meio de densa vegetação. Muito longe portal e os dois coincidentes com os contra- mento nas cartas régias publicadas e na pp. 127-135) e pelas lições mais italianizantes das marcas medievais que denunciam a fortes laterais), à maneira da Sé Velha, e a estadia conhecida de Nicolau Chanterene saídas do contacto com Nicolau Chanterene. individualidade por motivos financeiros,

o mosteiro de santa cruz 064 | 065 S. Jerónimo e o universo das assinaturas presentes na arqui- flamengo Nicolau Clenardo e janta à mesa tal como o mosteiro de Santa Cruz se cons- Apóstolo tectura dos inícios do séc. XVI inscreve-se do arcediago de Évora, o doutor João Petit. tituía em estaleiro privilegiado para a divulga- (esculturas da fachada da igreja), noutra mentalidade que coloca o artista na es- A sua estadia em Coimbra comprova-se ção do equilíbrio formal do Renascimento. Nicolau Chanterene, fera do individualismo humanista nascente. através de vários testemunhos mas, funda- Em 1530 já se encontrava na cidade onde vi- 1522-1525, mosteiro mento documental, para além da sua parti- veria até morrer em 1580, estabelecendo aqui de Santa Cruz Nicolau Chanterene e Diogo de Castilho são cipação nas obras do mosteiro crúzio, têm uma escola sólida, cujas repercussões have- precisamente os artistas que, na Coimbra do apenas o retábulo de S. Marcos e o túmulo riam de perdurar na produção escultórica primeiro quartel do séc. XVI, melhor encar- de D. Leonor de Vasconcelos no mosteiro local, avançado o século seguinte. As “muy- nam o espírito de libertação das velhas ca- de Celas, convertido em porta. Os jacentes tas e boas hobras” (Garcia, 1913, p. 2) que os deias corporativas medievais. O primeiro, dos primeiros reis e, sobretudo, os relevos crúzios já lhe deviam em 1530, não podiam cuja importância na renovação do sentido do claustro e o púlpito no mosteiro de Santa deixar de estar relacionadas com a grande estético da produção escultórica em Portu- Cruz, bem como o retábulo de S. Pedro na campanha iniciada em 1527 com frei Brás de gal e respectivo acompanhamento das es- Sé Velha, da sua indiscutível autoria, e datá- Braga e que iria afectar toda a antiga estru- truturas mentais do Renascimento, em veis de cerca de 1520-1526, desautorizam a tura do mosteiro. Por 1531, o coro alto estava estreita ligação a uma elite político-cultural, atribuição a mestre Nicolau para a concep- acabado e as alterações no janelão provoca- são bem conhecidos (Dias, 1996), tem igual- ção geral do portal dos crúzios. Mesmo que vam a necessidade de preenchimento de mente um trabalho destacado nas áreas em aqui se detectem claras afinidades, sobre- um novo espaço. Os três nichos com as es- que a actividade escultórica se confunde e tudo em certas faixas decorativas que preen- culturas de David, da Virgem e do Profeta coabita com os mais elementares preceitos chem os elementos de arquitectura, com o têm, portanto, de situar-se cronologica- da arquitectura. Assim podem ser entendi- portal axial dos Jerónimos onde, em 1517, mente na década de trinta, tal como o indica das as composições retabulares do mosteiro Nicolau Chanterene tem uma responsabili- a serena expressividade das imagens, tão ca- jerónimo de S. Marcos, da capela de S. Pedro dade comprovada, a sua participação como racterística de João de Ruão nesta altura. da Sé Velha de Coimbra ou do mosteiro da empreiteiro do portal de Santa Cruz tem ex- Pena em Sintra que contribuíram, na criação clusivamente de ser entendida ao nível das A João de Castilho se atribui a traça dos dois de uma espacialidade arquitectónica fictícia, tempo, os mecanismos sociais de poder no grandes esculturas de vulto nos pilares late- portais da igreja do mosteiro de Belém, para a fixação das formas normativas de re- sentido da aquisição de um outro estatuto rais. Toda a sua produção, quando se ocupa mesmo que a Nicolau Chanterene caiba a presentação do espaço num estrato de va- de público reconhecimento. A presença de do ornamento que convive com as estrutu- responsabilidade de execução do portal axial. lores mais humanizado e, simultaneamente, Chanterene em Coimbra estimula a neces- ras arquitectónicas, é reveladora de conheci- A organização compositiva do portal sul dos mais afastado dos códigos de interpretação sidade de redefinição das estruturas for- mento prévio do vocabulário classicizante, Jerónimos ou, sobretudo, do portal dos Cava- correntes no primeiro terço de Quinhentos. mais e decorativas que apenas o mosteiro com o emprego de grutescos e referências à leiros em Tomar (1515) denuncia os elos de A exibição dos temas sagrados é agora de Santa Cruz estava em condições de pro- mitologia clássica e, ao mesmo tempo, de uma cadeia montada, justamente, pelo maior acompanhada por uma multidão de figuras mover. As rendas do priorado-mor, agora grande delicadeza no tratamento decorativo, arquitecto régio da primeira metade do sé- profanas que convivem serenamente com nas mãos do infante cardeal D. Afonso, quase ausentes no portal de Coimbra. culo XVI. Pela mesma ordem de razões, o os mistérios do divino e, em conjunto, são “mui douto na lingua latina” (Santa Maria, projecto do portal de Santa Cruz, feito antes enredadas num ambiente de referências 1668, P. II, p. 279), terceiro filho de D. Ma- A participação de João de Ruão na fachada de 1522, a ele deverá ser entregue. Por 1518, clássicas e intrigantes sugestões decorati- nuel e D. Maria, não faltavam para respon- da igreja crúzia não se extrai de prova docu- Diogo de Castilho, muito novo para que o vas. E se a mudança estética é acompa- der às despesas das obras, controladas em mental, mas a análise das três esculturas rei lhe confiasse empresa de tal importân- nhada pelos pressupostos teóricos que última instância pelo rei. centrais do rei David, da Virgem e do Profeta, cia (os planos dos túmulos dos reis) saía circulam entre uma elite esclarecida que gra- que têm de se remeter já para os primeiros das obras dos Jerónimos rumo a Coimbra. vita sobretudo à volta da Corte, as novas re- A mestre Nicolau não se pode atribuir o pro- anos da década de 30, não oferece quais- Consigo levaria os desenhos, feitos pelo irmão, gras do espaço, da forma e do ornamento jecto do portal em pedra de Ançã, como a quer dúvidas no tocante à sua atribuição. que trariam nova dignidade aos reis e mais transformam-se em léxico dominado pela tradição oral, no seio do mosteiro, ainda alicerçado orgulho na nação. A possibilidade encomenda de prestígio que ostenta o es- perpetuava no primeiro quartel do século se- O percurso do escultor normando é hoje ra- de que, também nessa altura, levasse o pro- pectáculo do conhecimento. Num meio ar- guinte. Tal o resultado da projecção do ar- zoavelmente bem conhecido. Depois das jecto para o portal da igreja afigura-se alta- tístico de proto-renascimento, o pedreiro, o tista que convive com os poderosos da primeiras encomendas em Portugal, realiza- mente provável. Tal como tinha sucedido lavrante ou o produtor de artefactos tem de Corte, se associa à elite intelectual do Reino, das para os Meneses na igreja da Atalaia e com a obra dos túmulos, também os traba- aprender a conversão para o nível presti- priva com figuras de primeiro plano na es- na capela da Varziela (Cantanhede), Coim- lhos do portal seriam dados de empreitada giado da criação e compreender, ao mesmo fera do Renascimento humanista como o bra transformou-se no seu destino “natural” a Diogo de Castilho e a Nicolau Chanterene.

o mosteiro de santa cruz 066 | 067 Fachada poente da A organização da fachada de porco selvagem com cachaço proemi- igreja do mosteiro de Santa Cruz nente e “barbatanas” em forma de asas; à séc. XVI A fachada não se organiza em modelo de esquerda também um animal híbrido que completa simetria mas as estruturas arqui- integra uma cabeça de leão com orelhas tectónicas basilares definem-se por inten- disformes e o corpo revestido com uma ções declaradas de um programa simétrico membrana mais própria do mundo aquático. que radica as suas origens no equilíbrio ro- A conciliação dos elementos aqui reunida mânico e o desenvolve nos tempos manue- deveria ser igualmente visível nas duas gár- linos. A própria composição em pedra de gulas centrais que desapareceram na sua Ançã manifesta, globalmente, uma “raciona- quase totalidade. Idêntica formulação esté- lidade” simétrica indesmentível, aplicada tica se encontra, afinal, ao longo das guir- também ao universo decorativo na insistên- landas laterais da igreja do mosteiro, cia de um programa iconográfico rico, diver- denunciando a unidade das intenções ico- sificado e adverso à repetição. nográficas, da cronologia da execução des- tes espaços e da mão-de-obra envolvida. A estrutura básica da fachada em calcário amarelo da zona do Bordalo é definida As duas superfícies murais reentrantes da pelos dois contrafortes laterais de secção fachada terminam em plano inclinado e co- quadrangular que, sensivelmente a uma al- roado por uma balaustrada composta es- tura de dois terços, se prolongam adqui- sencialmente por dois estratos decorativos: rindo a forma octogonal. A articulação entre um primeiro nível acima do friso com os flo- as partes quadrangular e octogonal é feita rões e cinta encordoada, preenchido com através de uma espécie de trompas que se dois motivos alternados de cesta gomada e enquadram de maneira feliz no conjunto. estrangulada com asas e dois animais mari- Culminam com grandes pirâmides tam- nhos também unidos por estrangulamento. bém oitavadas e preenchidas por séries de Os dois temas repetem-se, mais uma vez e folhagem recurvada, ornamento que é, sempre em alternância, ao longo das três aliás, comum à generalidade da fachada. faces (frontal e laterais) do corpo central da Contornando a base de cada um destes co- fachada e nas guirlandas laterais da igreja ruchéus apresentam-se dezasseis cruzes pe- (nos remates do claustro sobrevive ainda o quenas de galhos nodosos, à semelhança de mesmo tema da cesta gomada). Acima des- todas as outras que, encimando estas pirâ- tes motivos corre o parapeito da balaustrada mides ou na parte central, celebram a apo- ornamentado, na parte inferior, com outros teose do motivo da cruz. temas ligados entre si por um filete arredon- dado e que se assemelham a pequenos no- Um corpo central avançado entre duas su- velos com estrangulamento ou não por corda perfícies murais reentrantes estabelece o ao centro (similar à decoração que se encon- ritmo de alternância da fachada. Herdeira da tra numa das fontes do claustro do mosteiro antiga fachada românica, a nova frontaria conimbricense de Santa Clara-a-Velha) e manuelina tem a particularidade de apresen- que, hipoteticamente, se podem situar na tar cornijas sucessivas (interrompidas pelo linha de continuidade dos feixes vegetalistas portal em pedra de Ançã) que permitem que inundam a decoração dos portais late- também uma leitura horizontal estruturada rais da Sé de Lamego (1514) ou no mosteiro em cinco níveis. Na base do coroamento dos Jerónimos. Três cruzes por lado termi- corre um friso decorado com os florões nam esta sequência que estabelece a ligação usuais na ornamentação manuelina, apenas ao corpo central da fachada em Coimbra. interrompido nos panos frontais para a im- Aqui, uma nova balaustrada ligeiramente posição das gárgulas: à direita uma espécie elevada e formada pelos mesmos motivos

o mosteiro de santa cruz Ao tempo de D. Pedro Gavião, até 1516, não estava ainda concluída a fachada da igreja de Coimbra e o portal só seria executado mais tarde. Mas, em período do bispo esta- vam definidas as linhas fundamentais da fa- chada com o aproveitamento do jogo rítmico da velha organização românica. Não se co- nhece qualquer risco para o portal da igreja mas é provável que o bispo não negligen- ciasse parte tão importante na projecção da imagem do mosteiro crúzio. Porventura, não teve tempo para o fazer e, a partir de 1519, Diogo de Castilho e Nicolau Chante- rene estavam na cidade para apresentar ou- tras propostas de maior arrojo.

A ter existido um eventual primeiro projecto situar-se-ia, com certeza, na linha divul- gada por mestre Boytac e pelo seu seguidor Marcos Pires, a quem cabe também a res- ponsabilidade de execução dos portais da capela de S. Miguel do Paço Real (na futura Universidade) e da igreja de Ega, cujas afi- nidades com o portal principal da Sé da Motivo decorativo acompanha os três lados frontal e laterais do Enquanto nas cruzes laterais mais pequenas também, possivelmente, na figura do bispo Guarda são incontornáveis (Craveiro, 2000, Fachada da na balaustrada da rectângulo, definido também pelas quatro os galhos são apenas sugeridos por nódu- que, a partir de 1496, se empenha na con- pp. 75-85). Por outro lado, também na cate- Sé da Guarda igreja do mosteiro Pêro e Filipe de Santa Cruz cruzes que se elevam acima de pequenos pi- los volumosos, aqui há um cuidado especial tinuidade da construção da sua Catedral na dral da Guarda, a denúncia da individuali- Henriques, 1º quartel c. 1518 lares de secção quadrangular que terminam na definição da tipologia da cruz que tem Guarda. As sucessivas empreitadas em zação, em claríssima aproximação aos do séc. XVI

Base da cruz na em composições “capitelares” de arco em paralelo na atenção conferida ao nível supe- 1504, 1510, 1514 e 1517, a cargo de Pero e preceitos humanistas, é feita em locais es- balaustrada da ferradura que, por sua vez, dão acesso aos rior do monte do calvário onde as máscaras Felipe Henriques (Viterbo, 1904, pp. 6-7), tratégicos de visibilidade, através da coloca- igreja do mosteiro motivos da cesta gomada. O parapeito face- são deliberadamente marcadas, ao contrá- filhos do mestre da Batalha Mateus Fernan- ção sistemática dos brasões que identificam de Santa Cruz tado desta balaustrada central estabelece rio do que sucede nos estratos inferiores, de des, revelam as campanhas manuelinas ex- o bispo e a sua obra. Agora na base e em si- c. 1518 um rectângulo imperfeito sem sequência na mais difícil visibilidade, mas com massas pressas nos pilares torsos do cruzeiro, nas tuação frontal nas fortíssimas torres sinei- parte posterior. Assinale-se uma clara inten- desenvolvidas a identificar os volumes cra- abóbadas ou na fachada principal da Sé. ras, o chapéu episcopal e os cinco gaviões, ção de frontalidade virada à Praça, realçada nianos em conjugação com as tíbias. O resultado desta fase construtiva, extraída mais do que identificar o bispo, reclamam a pelo tratamento dado aos motivos orna- da conciliação entre a protecção régia e os sua autoridade na condução da comunidade, mentais que sofrem um corte abrupto na Esculpido em pedra de Ançã, o brasão do interesses específicos do bispado, reside arvorando-o a um papel de incontestável parte traseira. bispo D. Pedro Gavião repete-se, em com- nos mesmos efeitos cénicos que, por esta guardião na defesa dos valores cristãos. posições diferenciadas, por três vezes nos altura, varriam o país. A fachada principal As impositivas torres da fachada da Sé, de A meio do rectângulo central, no plano in- panos frontais e salientes da fachada, osten- do edifício constitui, assim, o exemplo secção triangular na base e octogonal na clinado que marca o pavimento, ergue-se o tando os cinco gaviões enquadrados em su- dessa vontade formal irrequieta e exube- parte superior, comungam, mais uma vez, grande monte do calvário formado por sete perfícies adornadas de “pontas de diamante”. rante de que se revestia a arquitectura po- do espírito compositivo adoptado nas tor- níveis compostos de máscaras e tíbias, Sem preâmbulos, a expressão do orgulho in- pular ou erudita. Mas a sua proximidade à res laterais da fachada da igreja de Coimbra: acima do qual se eleva a grande cruz cen- dividual contido na política mecenática do fachada da igreja do mosteiro de Santa a mesma partilha de diferentes secções e a tral de 3,33 metros de altura por 2,02 me- Renascimento emergente. Cruz é bem mais notória. Na realidade, a mesma aplicação de moldura envolvente a tros na extensão das hastes transversais. paixão construtiva vinha rigorosamente das dividir verticalmente o espaço. Mais diluídas Particular atenção foi dada a esta cruz, A chave de decifração de semelhante es- mesmas direcções: do rei e do bispo da no conjunto em Santa Cruz, mais imponen- marca fundamental de toda a iconografia. quema organizativo na fachada crúzia estará Guarda também prior-mor de Santa Cruz. tes na catedral.

o mosteiro de santa cruz 070 | 071 Pilar do portal da Se a parte constituída em calcário amarelo também mutilados, se prolongam estes pi- constituem a versão simplificada dos pilares coluna encontra-se mais um tronco ador- S. Gregório e igreja do mosteiro do Bordalo se mantém razoavelmente na fa- lares, agora de secção triangular, termi- laterais, repetindo alguns dos ingredientes nado com delicado motivo de laçaria, a par- Santo Ambrósio de Santa Cruz (cópias) 1522-1525 chada da igreja de Santa Cruz, já o revesti- nando em corte abrupto e envoltos por formais e decorativos dos mesmos. Encon- tir do qual nascem duas cornucópias da Nicolau Chanterene, mento em pedra de Ançã acusa uma folhagem de pujante volumetria. tram-se também mutilados na parte supe- abundância com tratamento escultórico de 1522-1525, portal da deterioração acentuadíssima, tendo desa- rior, terminando numa “rede” cruzada dos grande finura, e cujo prolongamento dá igreja do mosteiro de Santa Cruz parecido não só parte considerável das Da primitiva entrada apenas subsistem os filetes de cada pilar e prolongam-se em pe- acesso às mísulas compostas que susten- micro-arquitecturas que lhe dão forma mas grandes arcos que enquadravam a porta, quenos pináculos ornamentados com folha- tam os Padres. A coluna entre os Doutores, S. Jerónimo e também uma decoração emblemática do com arquivolta preenchida por uma decora- gem e substâncias bulbosas (à direita). de fuste liso e anel a meio, termina ao nível Santo Agostinho (cópias) período que, a permanecer, revelaria com ção composta maioritariamente pelos sím- da cabeça destes por capitel de volutas que Nicolau Chanterene, maior clareza as intenções iconográficas bolos da Eucaristia (troncos de videira com O campo entre os pilares definidores da es- saem do ábaco, de estrutura triangular e 1522-1525, portal da que, assim, apenas se podem intuir. abundante folhagem de parras e cachos de trutura do portal é preenchido com os ele- pontas cortadas com decoração floral e ve- igreja do mosteiro de Santa Cruz uvas) onde se apoiam pássaros diversos mentos que se interligam com as esculturas getalista. A cesta do capitel é preenchida A composição do portal elaborado em pedra (todos igualmente mutilados). Um deles, dos Padres da Igreja. Com registo de nasci- com folhas de acanto presas por duplo dra- de Ançã assenta numa estrutura fundamen- sem cabeça e empoleirado em tronco de vi- mento também no arco do portal, através de peado. Os nichos dos Doutores apresentam tal de dois grandes pilares laterais compos- deira com uma asa aberta, representa um uma folhagem que se cola à superfície arre- a parte superior em concha e com o trabalho tos que, ao longo de uma trajectória olhada mocho, símbolo ambivalente de conheci- dondada da última arquivolta, apresenta-se do formão em grande evidência. Por cima na vertical, vão sendo preenchidos com três mento mas também das sombrias regiões um tronco nodoso, possivelmente a repre- projecta-se um “tímpano” definido por arcos nichos por banda e baldaquinos diferencia- da cegueira nocturna. Na mesma arquivolta, sentação da Árvore da Vida, que inflecte de volta perfeita que nascem dos pilares la- dos que se interligam com “bacias” defini- restam também os membros posteriores e numa curvatura de 90º para ser interrom- terais e são interrompidos pelo lado do ja- das por micro-arquitecturas em jeito de parte do tronco de um leão ou, eventual- pido em corte vertical, constituindo o su- nelão. Destes arcos, arrancam outros em pequenos templetes. Ao nível dos Padres da mente, o que sobrevive de um grifo. porte da coluna que se situa entre os dois formação conupial que atravessam os pila- Igreja, encontram-se mais dois nichos por pares dos Doutores; à esquerda S. Gregório res que enquadram o janelão e se interrom- lado, enquadrados por volumosa armação Nascendo do grande arco do portal, mais dois e Santo Ambrósio e à direita S. Jerónimo e pem abruptamente ao nível dos capitéis mais de troncaria disposta em X, no final da qual, pilares compostos enquadram o janelão e Santo Agostinho. Na base multifacetada da exteriores das arquivoltas do mesmo janelão.

o mosteiro de santa cruz 072 | 073 O entablamento coincide com o parapeito arco da janela, com ligação a este através de da janela que se constitui em jeito de portal mais um enrolamento vegetalista. reentrante. Na realidade, toda a estrutura do janelão se demarca da restante composição As esculturas avulsas que ainda preenchem em pedra de Ançã, pela presença de uma ar- alguns nichos da fachada em pedra de Ançã gamassa separadora entre os dois conjun- são todas cópias feitas em cimento em ofi- tos, o que permite conferir à janela um cina do Porto e substituem as originais que estatuto de unidade e anterioridade face à se encontram em várias capelas do claustro. construção que se lhe adaptou. A composi- O avançado estado de deterioração destas ção montada a partir de 1522 “colava-se” ao esculturas, fruto da exposição às intempé- janelão, organizado já pelas campanhas de ries, levou a Direcção-Geral dos Edifícios e Boytac. A junção entre os dois não foi exem- Monumentos Nacionais à sua substituição plarmente conseguida mas o efeito visual de a partir de 1976, num processo que seria harmonia e unidade permanece, tendo tal concluído em 1981. Nos dois nichos laterais “anomalia” passado sempre despercebida. e inferiores do pilar direito da fachada en- contram-se dois apóstolos não identificáveis Os intercolúnios e as arquivoltas que for- e no nicho superior direito do mesmo pilar mam os arcos de volta perfeita da janela são reconhece-se S. Tiago. No pilar esquerdo os preenchidos por decoração diferenciada nichos inferiores estão vazios e só na parte onde a sequência dos florões manuelinos dá superior está colocado o apóstolo S. Pedro. lugar a uma vegetação vigorosa de folhas de As figuras dos Padres da Igreja e as três cen- acanto que também compreende uma trais completam o conjunto das onze escul- “fauna” expressiva, como o grifo (repetido turas que sobrevivem na fachada. na parte superior da arquivolta) e o cavalo, Rei David A solução triangular que assim se constitui nichos, muito cavados e com remate supe- unicórnio ou a figuração de Pégaso, coloca- Todas elas, excluindo as três últimas, adqui- João de Ruão, é preenchida na base com argamassa de ci- rior também em concha. dos sobre redes de cestaria que assentam rem proporções desmedidas relativamente c. 1530, mosteiro de Santa Cruz mento, escondendo um espólio soterrado em bases tratadas de forma tosca no para- ao espaço onde se inserem, obrigando à des- no desnível formado entre os diversos panos Com uma definição arquitectónica de com- peito da janela. No intercolúnio e arquivolta truição dos elementos que formam os seus Virgem da fachada. A decoração destes “tímpanos” pleto despojamento decorativo, a cornija interiores, a decoração desenvolve-se pela nichos. Assim, S. Pedro e S. Tiago medem João de Ruão, c. 1530, mosteiro de é composta por arcos polilobulados e caire- onde assenta todo este conjunto mantém representação de fita que se enrola à volta respectivamente 1,72 m e 1,76 m de altura, Santa Cruz lados de onde pendem “cachos” de romãs, ainda as mísulas que, perdendo a funciona- de tronco nodoso (tal como acontece com o encaixando-se num campo enriquecido por

Profeta Isaías figos, mirtilos e outros frutos e plantas não lidade no contexto onde ficaram depois inse- portal que faz o acesso do claustro à sala do grossos troncos cruzados e obrigatoriamente João de Ruão, identificáveis, com ausência de simetria ridas, se situam no prolongamento dos capítulo, corroborando a atribuição do jane- mutilados pela colocação das esculturas. c. 1530, mosteiro de pelos três motivos à esquerda e quatros des- colunelos exteriores do janelão. Estas mísu- lão a mestre Boytac). Este motivo, por vezes Os apóstolos da zona inferior atingem 1,65 m Santa Cruz tes motivos à direita. las, ligadas à respectiva cornija, indiciam com um tratamento sinuoso de grande vir- (o da esquerda) e 1,63 m (o da direita) para pois uma situação inicialmente mais pró- tuosidade e independência, é repentina- os nichos cujas dimensões não ultrapassam Logo acima do grande arco do portal encon- xima da janela, alterada depois pela inserção mente cortado sem ligação cuidada ao 1,60 m. Por seu lado, S. Gregório e Santo tra-se o espaço reservado aos três nichos dos três nichos. A comprová-lo, atente-se na parapeito, apresentando-se com desconti- Ambrósio medem 1,86 m e 1,90 m respecti- que albergam as esculturas do rei David, da presença de vestígios de diversa coloração nuidade clara em várias aduelas. Mais uma vamente, e estão colocados em nichos cujo Virgem e de um profeta, possivelmente que ainda se detectam na mísula da es- vez, a presença de indícios que denun- remate atinge 1,70 m. Finalmente, as figuras Isaías. Uma trilogia que contempla a pre- querda. A elas se fixariam então as bases ciam as alterações a que a janela foi sujeita. de S. Jerónimo e Santo Agostinho medem sença de Cristo embora dela se ausente fi- dos colunelos que enquadram a janela, num Os capitéis dos colunelos são também 1,70 m e 1,75 m de altura, colidindo o último gurativamente: descende da linhagem de mesmo tempo estético que a decoração de preenchidos por uma vegetação constituída com o remate do seu nicho situado a 1,74 m. David, a sua vinda foi profetizada por Isaías folhagem e a máscara (na mísula à es- por folhagem diversa onde se inscrevem Acrescente-se que também a corporalidade e nasceu da Virgem. Os elementos arquitec- querda), espécie de face demoníaca de cuja parras, cachos de uva e alcachofras. A enci- dos apóstolos, sobretudo dos dois colocados tónicos deste conjunto central, com pilastras boca sai vegetação indefinida, numa “alego- mar este conjunto, um motivo pentagonal na zona inferior, acabam por interferir com molduradas, de bases e capitéis classici- ria do Tempo” (Pereira, 1990, p. 174; Pereira, moldurado (tema usual em mestre Boytac) as dimensões em largura dos respectivos ni- zantes e de feição tratadística, definem os 1995, II, p. 143), também denunciam. e de campo vazio assenta sobre o último chos, acentuando esta insólita inadequação.

o mosteiro de santa cruz 074 | 075 Portal da igreja O “portal da Majestade” Jesus de Setúbal, no portal sul do mosteiro de Santa Cruz dos Jerónimos ou, desde logo, na capela real João de Castilho; Diogo de Castilho/ A primeira descrição conhecida da fachada de S. Miguel. Nicolau Chanterene data de 1540 e foi dada à estampa no pró- e outros, 1522-1525 prio mosteiro no ano seguinte. Expressa-se O janelão sofreu alterações. Em data incerta nestes termos a pena de D. Francisco de foi alteado e reduzido em altura, como o Mendanha: “O portal da Igreia principal sta comprovam os colunelos que ainda se entre duas torres mocicas de altura mediana podem ver na parte interna do coro da igreja, & de canto talhado, & dizese portal da Ma- que descem 1,61m até ao pavimento, e pelos gestade porque em o frontespicio delle sta a remates inferiores dos intradorsos que for- imagem de deos Padre em a forma que co- mam as arquivoltas do janelão. As razões mummente se soe pintar, & em redor ima- desta alteração têm de se situar na edifica- gens de alguns Patriachas & Sanctos do ção do coro alto e na necessidade de protec- velho Testamento, & da Virgem gloriosa que ção deste espaço. E se o novo coro estava foy principio do nouo, & todo em perspec- pronto em 1531, é por essa data que a remo- tiua contrafeyto per o natural, esculpido em delação tem de ser pensada, com o preen- pedra muy custosa & especial” (Révah, 1958). chimento desse campo, então vazio, pelos três nichos que albergam as esculturas de Por volta de 1589, Frei Jerónimo Roman, pos- David, da Virgem e do Profeta. Na realidade, sivelmente decalcando a versão de D. Fran- se estas esculturas se adequam ao mo- cisco de Mendanha ou outros apontamentos mento ruanesco que tem correspondência disponíveis, haveria de fazer novo relato das explícita noutros contextos como a não dis- suas memórias sobre a visita ao mosteiro: tante Porta Especiosa da Sé, surpreende, por “Está el portal dela Iglesia entre dos Torres esta data, a intenção de “canónico” classi- fuertes y masissas, de mediana altura, lavra- cismo com a mais absoluta contenção de- das de piedra muy buena, y esta puerta es corativa nos registos arquitectónicos aí dicha dela Magestad, porque en el frontespi- presentes. Na década de 30 do século XVI, cio de ella está Dios Padre con estremada João de Ruão (porque, pela análise estilís- postura y grandeça de manera que le enca- tica, se não pode duvidar da sua atribuição dea mucho el titulo, y está tan acompanhada para as três esculturas, que se distanciam esta imagen de muchos Patriarchas, y algo da força anímica das restantes imagens do mas abaxo la Reyna de el Cielo, que nó ay portal) empenhava-se na divulgação dos mas que desear y ver; porque las figuras tie- mais delicados ornatos que cobriam as su- nen tanta perspectiva, y está todo tan al na- perfícies parietais dos motivos arquitectó- tural, y con tanta costa que muestra bien el nicos dos seus retábulos. Por outras poder del Monasterio: A la entrada tiene una palavras: se as três esculturas do enxerto coluna, de manera que siendo solo un arco central se enquadram cronologicamente sobre que se arma la puerta haze dos con na década da construção do coro alto, já a aquella division dela coluna, y con ser dos, estrutura arquitectónica onde se inserem pa- cada puerta es mui grande, y mui capaz” rece fugida ao tempo, como que prefigu- (Correia, 1946, I, pp. 215-216). Se bem que rando uma sensibilidade de futuro que não completamente explícitas, e dando azo rejeita a carga ornamental envolvente. a interpretações diversas, estas descrições Decorrente da empreitada estabelecida no têm o mérito de revelar o conteúdo icono- contrato de obras com Castilho em 1528, o gráfico do portal e a sua constituição em en- portal que estabelece a ligação entre o refei- trada formada por arco duplo definido por tório e o claustro do Silêncio, já evidencia uma coluna ao centro, à semelhança da essa preferência pela sobriedade decorativa opção tomada no portal do convento de e a aposta nos caminhos do classicismo.

o mosteiro de santa cruz E, também não deixa de ser interessante o Completamente desfigurado no século XVIII paralelo visível entre as linhas de força que e perdendo a visibilidade com a colocação regem as arquitecturas dos nichos ruanes- do arco triunfal, têm sido esquecidas as po- cos e o Pentecostes de Vasco Fernandes tencialidades iconográficas que seria capaz (1535), executado para a capela do Espírito de conter. O desenho à escala da fachada Santo e onde a “contradição entre o classi- em pedra de Ançã possibilita uma melhor cismo da arquitectura e a ideia nervosa e percepção do enorme campo do tímpano dramática das figuras está expressa numa que era dotado de uma iconografia imposi- obra de intensidades e contradições” tiva virada à praça dominada pelo mosteiro. (Rodrigues, 1992, p. 153). O tímpano corresponderia, assim, ao “fron- tespicio” evocado nas descrições contendo, As dimensões do primitivo janelão, ideado à maneira de composição pictórica e trata- por mestre Boytac, e cujo peitoril vinha bater, mento em perspectiva, a multidão figurativa sensivelmente, pela cintura das três escul- da qual se excluem os Apóstolos. A posição turas (contando do exterior o mesmo 1,61 m da Virgem estaria, deste modo, remetida para que se conta no interior), não deixavam es- o mainel central (à semelhança do que acon- paço alargado para a inserção de tão convicto tece com a escultura do infante D. Henrique e determinante programa iconográfico. A con- no portal sul do mosteiro dos Jerónimos) ou, jugação dos elementos sobreviventes no por- com maior verosimilhança, para o campo do tal com as fontes documentais disponíveis próprio tímpano. Assim acontece com mui- determina a colocação de todo o conjunto tas das composições pictóricas da época, de- figurativo descrito no século XVI no tímpano nunciando um programa iconográfico de do portal. As argolas de ferro e os três tiran- leitura acessível ao qual a encomenda recor- tes que o peitoril da janela ainda preserva, e ria frequentemente. Desenho do portal cuja função seria a de pendurar os “Sanbe- em casos afins. Com efeito, apenas as três es- Portal da igreja da igreja do mosteiro do mosteiro de de Santa Cruz nitos que alli debaxo de el Coro tiene puesto A remodelação do portal nos meados do sé- culturas de Ruão se adequam às dimensões Santa Cruz José Luís Madeira, el Santo Oficio en testimonio de la dureça culo XVIII, com a inclusão do óculo de mol- dos seus nichos. Todas as outras colidem sécs. XVI-XVIII 1997 de esta gente, y su inconztancia en la fé” duras sucessivas acima da porta de verga com os elementos dos respectivos nichos (Correia, 1946, I, p. 216), inviabilizam a colo- recortada, contribuiu para a perda definitiva sendo mesmo necessário destruí-los para que cação de qualquer frontão naquele lugar. da primitiva composição. Com possível liga- aí se possam encaixar. Assim acontece com Atentando melhor nas palavras das duas des- ção à reforma efectuada por D. Gaspar da En- os quatro Doutores da Igreja que, nalguns crições, a figura de Deus Pai tem “em redor” carnação (1723-52) (Gonçalves, 1979, p. 34), casos, partem o remate da concha do nicho, de si ou está “acompanhada” de Patriarcas a nova entrada do templo imprime outra es- com o S. Pedro e S. Tiago que, nos extremos e Santos tendo, “algo mas abaxo”, a Virgem. tratégia decorativa ao portal e estabelece um laterais (à esquerda e à direita) dos grandes Mesmo que a Virgem pudesse coincidir com vazio iconográfico no espaço mediador das pilares laterais, têm de partir os elementos de a Senhora que se situa no nicho central, as re- sensibilidades quinhentista e setecentista. troncaria dos nichos e com os dois apóstolos duzidas dimensões que teria de ter o suposto no nível inferior do pilar direito que, igual- frontão, aleatoriamente colocado acima, não Problema, por enquanto insolúvel, é o da esta- mente, destroem os remates dos seus balda- poderiam ser suficientes para albergar a mul- tuária que preenche a estrutura em pedra de quinos. Nestes dois pilares laterais fundou-se tidão formada pelo Padre Eterno, Patriarcas e Ançã. A crítica tem sido unânime em atribuir espaço para albergar dez imagens tendo de- Santos do Velho Testamento. O tímpano, que as três esculturas centrais a João de Ruão e saparecido seis. Mas, o nicho superior que o portal teria obrigatoriamente dada a existên- as oito restantes, dos Doutores da Igreja e dos se encontra vazio no pilar esquerdo conserva cia de coluna medial, afigura-se, assim, como quatro Apóstolos sobreviventes, a Nicolau ainda parte de uma decoração saída da volu- a alternativa mais credível para a colocação, Chanterene. E se a sua análise não permite mosa troncaria disposta em X que se consti- com imediata visibilidade, de uma iconogra- discordar de semelhantes atribuições, a ver- tui à maneira de dossel. Se aqui tivesse estado fia de conciliação entre o Velho e o Novo Tes- dade é que a dissonância entre as suas dimen- alguma vez uma escultura da envergadura tamento. De facto, nunca foi dado o real valor sões e aquelas dos nichos onde se inserem das outras, tal não poderia acontecer, por não às extraordinárias dimensões deste tímpano. cria uma situação verdadeiramente insólita caberem as duas, a escultura e a decoração.

o mosteiro de santa cruz 078 | 079 Assim, ou este espaço foi preenchido com formadas por entrançado no nível inferior e É verdadeiramente um tempo de transição S. Pedro uma escultura mais pequena do que as lateral à porta de entrada. Supostamente, e que se manifesta no “portal da Majestade”; Nicolau Chanterene, 1522-1525, mosteiro suas congéneres (situação incompreensí- respeitando uma iconografia usual, aí se co- um tempo de procura de uma linguagem de Santa Cruz vel) ou então, e desde sempre, permaneceu locariam as esculturas de S. Pedro e S. Paulo impositiva que aproveita e desenvolve uma vazio. ou, como acontece no portal sul do mos- sensibilidade volumétrica do Manuelino teiro dos Jerónimos, os dois principais mas que se deixa já seduzir pelos valores do Perdida a leitura da estatuária ausente, im- apóstolos situar-se-iam nos pilares laterais Renascimento emergente. As cestas goma- pressiona a falta de coordenação entre dois à esquerda e à direita, em situação de fron- das que se alternam com os animais mari- mestres da envergadura de Castilho e Chan- talidade para com o observador. Porém, en- nhos na balaustrada superior constituem a terene na adequação das esculturas aos contrando-se superiormente à esquerda a primeira abordagem em Coimbra aos de- seus nichos. Tal circunstância, sem paralelo figura de S. Pedro, a suspeita de uma mu- signados “motivos lombardos” que, pro- nas obras executadas ou dirigidas pelo arqui- dança é inevitável, o que conduz a um in- gressivamente, iam ganhando o espaço tecto ou pelo escultor, poderia entender-se trincado labirinto de decifração iconográfica. decorativo nacional. O tronco envolto em pela distância temporal que medeia o prin- Grosso modo, terá sido a reforma do século folhagem que surge do grande arco triunfal cípio e o fim desta empreitada. Eventual- XVIII que, em grande parte, lançou as bases e que, com simetria intencional, inflecte mente, e com a estrutura arquitectónica do para um outro percurso de uma leitura que numa curva acentuada para ser subitamente portal já montada, o espaço de alguns anos hoje se confunde e perturba. cortado, dá acesso a uma coluna com deli- poderia ser suficiente para a perda das me- cados ornatos de laçaria de onde nascem didas rigorosas dos nichos. Ou as escultu- O que falta seguramente no portal é a sim- duas cornucópias cuja finura de tratamento ras foram feitas, sem rigor de medição, por bólica da majestade do rei D. Manuel, já contrasta com o mundo decorativo envol- executantes que copiaram os modelos pre- que o portal foi projectado antes de 1522. vente. Este é, assim, um projecto unitário paratórios do mestre. À fragilidade destas Na cadeia dos espaços carismáticos do rei- feito de compromissos previamente assu- hipóteses poderia ainda juntar-se a possibi- nado, os emblemas régios estão sempre midos. Os elementos aparentemente mais lidade de que as oito esculturas sobreviven- presentes em comportamento plástico de dissonantes entre si, conjugam-se em har- tes, dos Apóstolos e dos Doutores, tenham glorificação ao poder temporal. Impõem-se monia premeditada e denunciam a vontade sido executadas para outro local. Mas, da em contextos político-ideológicos de grande de actualização e de mudança sem rejeitar mesma forma, não se vislumbra, no espaço relevância como a Batalha, Tomar, Belém ou os valores da tradição. do mosteiro crúzio e em cronologia ade- as próprias estruturas tumulares de Santa quada à estadia de Chanterene, onde se pu- Cruz, e não estão nunca ausentes nos edifí- Já foi estabelecida a proximidade entre a es- desse inserir tal conjunto escultórico, cios, laicos ou religiosos, de patrocínio real. trutura “retabular” do portal e as composi- manifestamente adequado ao programa Em conjugação com o programa iconográ- ções tumulares dos reis no interior da iconográfico da fachada da igreja. fico de matriz religiosa no portal crúzio, a igreja. Mas a estrutura em pedra de Ançã da presença da esfera armilar, da cruz de fachada da igreja de Santa Cruz, concebida Também não é possível saber se estas es- Cristo ou do escudo régio, isoladamente à maneira de retábulo, situa-se igualmente culturas se encontram no exacto local de ou em articulação, daria o cunho emblemá- na continuidade do ciclo de portais-retábu- origem. Admitindo que as três ruanescas tico da partilha do poder reforçando a sua los manuelinos, cuja origem Paulo Pereira e os quatro Doutores continuam obedien- representação. A localização dos símbolos remete para as directivas emanadas do retá- tes a uma estratégia iconográfica inicial régios no portal é incerta, dada a ausência bulo de marcenaria da Sé de Coimbra, exe- (duvidando, mesmo assim, que a represen- de quaisquer vestígios disso reveladores. cutado por Olivier de Gand e Jean d’Ypres e tação de Santo Agostinho fosse original- Normalmente, organizam-se nos tímpa- terminado em 1502 (Pereira, 1995, p. 115). mente remetida para a parte direita do nos ou nas arquivoltas dos portais, espaços portal – onde hoje se encontra) os quatro privilegiados para a exposição do poder. O portal crúzio integra-se nesta galeria de Apóstolos dos pilares laterais podem, igual- Desta forma, a imagem do poder teria, por- composições discursivas, cujos exemplos mente, manter-se no seu lugar primitivo. ventura, desaparecido da face crúzia nos maiores se situam em Tomar ou Belém. Mas são dez os nichos reservados nos pi- meados do século XVIII, aquando da cam- Na realidade, todos em contexto de lares. Os dois apóstolos “em falta” encon- panha das obras que suprimiram as majes- grande relevância político-ideológica trariam o seu lugar “natural” nas bases tades representadas. onde se tornava imperiosa a articulação eficaz do discurso à sua representação.

o mosteiro de santa cruz 080 | 081 Redenção e da Glória. O grifo, símbolo solar, projecta também a dualidade ar/terra, pelo usufruto das categorias simbólicas liga- das à águia e ao leão. A reunião dos quatro elementos, consubstancia-se na presença (no janelão em equilíbrio de forças com o grifo) do cavalo, símbolo ambivalente solar e lunar, e ligado ao fogo regenerador e à água purificadora. Se, porventura, o cavalo fosse a representação desfigurada de um unicórnio, não se perderia o simbolismo lunar nem a ligação aos dois elementos do Além disso, se a mão-de-obra não era rigo- fogo e da água, mas sairia reforçada a pre- rosamente a mesma é, pelo menos, evi- sença de Cristo com o “corno da Salva- dente a familiaridade dos oficiais com os ção”, capaz de destruir o mal e o pecado. conteúdos expostos. João de Castilho é, Tal como também é um emblema da Virgem, pois, se não o criador destes grandes por- aludindo à pureza, à castidade feminina e à tais-retábulos, constitui-se, em Portugal, em virgindade, ou ainda, na sua natureza solitá- arauto privilegiado deste tipo de composi- ria, à figuração da vida monástica. A última ções arquitectónicas de grande impacto vi- possibilidade na identificação deste animal sual e simbólico, cujas relações com a tão deteriorado, e dada a presença de um Espanha proto-renascentista são manifestas elemento indefinido em curvatura a ligar o em numerosas fachadas. pescoço ao corpo, seria a representação de Pégaso. Filho de Poséidon e da Medusa, é Grifo A fachada da igreja de Santa Cruz arvora-se fonte de humana elevação e de criatividade O arco triunfal anjos fama na curvatura das aletas e substi- Fachada do mosteiro janelão da fachada também em pilar de conhecimento e das espiritual. tuiu as armas da Nação pelos emblemas de de Santa Cruz da igreja do gravura, c. 1840, mosteiro de Santa verdades cristãs, definindo regras compor- O arco triunfal que resguarda a entrada da Santa Cruz. IC, PB-00631 Cruz, c. 1518 tamentais pelos fundamentos de natureza É, portanto, a dualidade entre o humano e o igreja não é historiograficamente uma peça cristológica aí expressos. A densa vegetação divino aquilo que parece caracterizar a força “pacífica”. Atribuído a José do Couto dos O guarda-vento define-se por uma composi- que preenche o portal, constituída por fo- da iconografia religiosa que se desenrola no Santos Leal (Castro, 1867, p. 42), arquitecto ção arquitectónica de duas faces iguais a lhagem generosa onde ainda é possível vis- portal da igreja de Santa Cruz. Culminando da Reforma Pombalina da Universidade, o partir do arco de volta perfeita sustentado lumbrar os frutos sagrados como a romã todo o conjunto, o discurso da Redenção e arco não consta ainda no desenho de José pelas pilastras jónicas “em feitio de apoio de (também símbolo imperial), a alcachofra ou da Salvação através do sacrifício do Media- Carlos Magne em 1796 e não aparece tam- hermes” (Gonçalves, 1947, p. 44) e decora- a bolota, alegorias da Igreja e símbolos rege- dor supremo corrobora a mensagem triun- bém colocado em gravura datável de cerca das com flores e romãs abertas entre as vo- neradores da Salvação e do poder do Espí- fal da Igreja. Em contexto apoteótico do de 1840. Nesta circunstância, poderá ser lutas dos capiteis. Superiormente, as aletas rito, concilia-se com os signos eucarísticos e motivo da cruz, os vasos que se alternam um elemento reaproveitado e deslocado de interrompidas sustentam quatro anjos promove o caudal da Verdade no terreno com as figurações marinhas nas balaustra- um outro contexto. A sua expressão barroca fama, conservando ainda os dois virados à fecundo do Paraíso. O tronco que dá acesso das superiores, indiciam a natureza humana indicia um tempo mais próximo aos mea- Praça as respectivas trombetas. O escudo às mísulas dos Padres da Igreja pode enten- redimida pelas águas purificadoras da dou- dos do século XVIII que não se compadece da congregação crúzia, com o Agnus Dei e a der-se como a formulação da Árvore da trina e do martírio de Cristo. Sobre os sete com as estratégias plásticas de Oitocentos. cruz na face voltada à igreja e com a cruz se- Vida, da qual nascem as cornucópias da estratos a partir dos quais se eleva a grande O grande paralelismo entre o arco triunfal gura pelos dois anjos na face mais exposta, abundância espiritual contida nos ensina- cruz central da representação do Calvário de Santa Cruz e o portal de entrada do co- encimado pela coroa fechada, dominam o mentos dos Padres. ficam consumados os valores da eternidade légio de S. Jerónimo também em Coimbra programa iconográfico do triunfo da igreja. e da universalidade, recordando-se que “três acusa, pelo menos, uma fonte de inspiração O grifo repetido no janelão e no arco de en- é o primeiro número ímpar completo, que explícita para a obra crúzia. Esta incorpo- trada é, na realidade, uma alusão à dupla quatro é o primeiro número par completo e rou os elementos arquitectónicos basilares natureza de Cristo, humana e divina, atra- que dos dois resulta o sete” (Santo Agosti- do portal jerónimo, duplicou-os, ofere- vés da qual o Homem pode participar da nho, 1995, p. 1065). cendo-lhes uma segunda face, colocou os

o mosteiro de santa cruz 082 | 083 cobertura em abóbadas abatidas de comba- dos, réplicas adaptadas da abóbada do coro alto. Lateralmente e em simetria, situavam- se os altares sob os arcos de volta perfeita que ainda se mantêm. A capela a oriente forma também um rectângulo imperceptível com abóbada nervurada onde se define um círculo que acentua a ideia de rotundidade de um conjunto dominado pela simbologia expressa nas chaves (entre os usuais flo- rões, o cordeiro, o vaso eucarístico, o sol e a lua). Nas obras levadas a cabo no actual A IGREJA PAROQUIAL Café Santa Cruz, efectuadas durante o mês A CÂMARA MUNICIPAL DE SANTA CRUZ de Janeiro de 2002, foi possível apurar o DE COIMBRA (CAFÉ SANTA CRUZ) nível do pavimento original da igreja que se situava sensivelmente à mesma cota do da igreja de Santa Cruz. Visualizou-se também uma mísula de assentamento de imagem e uma faixa de revestimento azulejar (com dois anjos) que denunciam obras ocorridas na segunda metade do século XVIII. Extin- tas as Ordens religiosas, a paróquia passou para a igreja do mosteiro e o espaço da an- tiga paroquial de S. João de Santa Cruz foi A construção da igreja paroquial de S. João assumindo funções várias. O edifício da Câmara Municipal aloja-se a século XVI. Desapareceu o templete, a loggia Câmara Municipal de Santa Cruz abre uma nova frente de in- norte da igreja ocupando todo o espaço do e o gradeamento que protegia toda a frente de Coimbra Alexandre da fluência crúzia a sul da igreja monástica, A fachada do café (sob projecto datado de antigo claustro da portaria até ao claustro do colégio e das igrejas monástica e paro- Conceição, dando nova amplitude ao espaço do Isento. 1921 e assinado por Jaime Inácio dos Santos), do Silêncio. É novamente a reforma de 1527 quial mas, globalmente, mantiveram-se os 1876-1879, fotografia, Se num primeiro momento das reformas recuada relativamente à linha da fachada da que determina, na sequência da extinção do volumes e redefiniram-se os vãos. No terceiro década de 50 do séc. XX, IC, AG-0056 manuelinas se pensou na mudança da igreja igreja do mosteiro, é uma reconstrução revi- mosteiro das Donas (que em 1529 ainda se quartel do século eram visíveis os sinais da paroquial, acanhada e repartida com as valista, comum aos finais do século XIX ou encontrava aqui), a reformulação da frente ruína e da degradação a que tinha chegado Donas, para o lado sul ocupando a capela inícios do século XX, que alterou a disposi- que viria a ser ocupada pelo colégio de Santo o edifício. A destruição do claustro da porta- dos Mártires (Gonçalves, 1988, pp. 116, 127- ção inicial, porventura, mais próxima da- Agostinho, pela fachada poente da nova por- ria tornou-se então uma inevitabilidade. 132), a sua localização definitiva surge na ca- quilo que se vislumbra no desenho de José taria (que incluía acima a livraria) e pelas hos- deia dos acontecimentos provocados pela Carlos Magne (1796). Estava organizada em pedarias. Em 1796, o desenho de Magne para A Câmara Municipal (1876-1879), sob pro- reforma de 1527. A extinção do mosteiro fe- três vãos no piso térreo com o central do- a fachada a norte da igreja crúzia ainda inte- jecto de arquitectura de Alexandre da Con- minino e o aproveitamento do seu espaço tado de frontão triangular e encimado por grava a colunata jónica arquitravada que an- ceição (Madahil, 1949, p. 132), construiu pelas novas estruturas de raiz humanista, janela superior com frontão curvo rematado tecedia a zona colegial e o templete que dava uma imagem de autoridade em alternativa acrescidos à necessidade de outro dina- pela cruz. No mesmo alinhamento e junto acesso à portaria, mais uma vez, um traba- à dominação de Santa Cruz. O espírito clas- mismo para a igreja paroquial, desencadeou ao beirado situava-se uma janela mais pe- lho conjunto entre Diogo de Castilho e João sicizante da sua fachada, definida em equi- a opção decisiva e remetida para o lado di- quena. Esta estrutura sobreviveu até meados de Ruão, remetido para os primeiros anos líbrio e rigor de simetria, com o registo reito do mosteiro. Mais uma vez, a atribui- do século XIX, altura em que se destruíram da década de 30 de Quinhentos. No mesmo central destacado, mais elevado e de apare- ção do espaço a Diogo de Castilho não os frontões e se abriram mais vãos no pri- desenho, vê-se também o topo poente do lho rusticado na “galilé” que dá acesso ao oferece qualquer dúvida. meiro piso. Os inícios do século XX (o café bloco do dormitório seiscentista e a capela grande átrio interno, remata a praça a norte foi inaugurado a 7 de Maio de 1923) conferi- de Santa Verónica, construída em 1767. (continuando no bloco que destruiu tam- A igreja organiza-se num plano de corpo rec- ram-lhe o arranjo que hoje apresenta e bém a porta do carro crúzia e que se pro- tangular formado por dois tramos e uma es- transformaram o espaço no café mais caris- Ao longo do século XIX a fachada foi sendo longa até ao refeitório) e estabelece, por fim, pécie de galilé, sobre os quais se define a mático da Baixa de Coimbra. despojada do sentido humanista fixado no o diálogo entre os poderes.

o mosteiro de santa cruz 084 | 085 A IGREJA

preserva-se o registo dos arcos (quatro por lado) que pertencia ao nártex românico de- saparecido nas campanhas manuelinas.

Hoje, a entrada é dominada pela abóbada abatida, com enchimentos cerâmicos e materiais mais leves do que a pedra, que Diogo de Castilho fez, por 1531, para sus- tentar o coro alto. Desenvolvendo uma tra- dição instalada em Portugal por 1509 na capela-mor da Sé de Braga pelo seu irmão João de Castilho, é na abóbada do coro alto igreja aparece como o resultado de Coimbra que, pela primeira vez, Diogo Igreja do mosteiro conjugado das múltiplas interven- de Castilho utiliza as nervuras curvas – os de Santa Cruz A mestre Boytac, ções que nela se efectuaram ao combados – que lhe servirão de ensaio a séc. XVI longo dos tempos. A sua abóbada rebai- tantas outras coberturas em espaços do Abóbada do xada e a grande altura marca um “territó- aro conimbricense (a começar pela vizinha coro alto da igreja rio” manuelino gerido a partir de 1507 por igreja paroquial de S. João de Santa Cruz – do mosteiro de mestre Boytac, em conciliação de esforços o actual café). A construção do coro alto Santa Cruz com o prior D. Pedro Gavião, e cuja res- trouxe modificações de monta a toda a Diogo de Castilho, c. 1531 ponsabilidade passou por reformular o igreja: obrigou aos arranjos exteriores com velho edifício românico, conferindo uma a inserção dos três nichos na fachada, li- nova face à igreja e um outro sentido de bertou a capela-mor do cadeiral executado usufruto da cenografia “vertical” instalada. em 1513 por Machim e permitiu a desloca- As mísulas espiraladas de que arrancam as ção dos túmulos dos reis. nervuras que revestem a cobertura assina- lam os diferentes tramos de um ritmo di- O desenvolvimento do coro, ocupando um nâmico e agitado que se resolve na espaço rectangular que avança vigorosa- repetição harmoniosa de um modelo for- mente para a nave, haveria de influenciar mal e decorativo. todas as igrejas colegiais que em breve se construiriam na cidade. Esta opção estará, A estrutura interna deixa perceber uma porventura, no número alargado dos cóne- composição de nave única para a qual se gos e nas dimensões do nártex românico abrem as capelas laterais reelaborando que se adiantava ainda mais na nave mol- as estratégias montadas no século XII. dando, durante séculos, os horizontes vi- Nas paredes laterais à entrada da igreja suais dos crúzios.

086 | 087 Pilastra com colunas Os efeitos cénicos que decorrem da cadência Ainda no espaço coberto pela abóbada do balaústre de suporte ao coro alto ritmada e “floral” das nervuras da abóbada coro alto, à Epístola, encontra-se o túmulo igreja do mosteiro (onde as chaves emolduradas assumem um dos Cogominhos (deslocado para aqui nas de Santa Cruz, registo figurativo ou vegetalista) são comple- reformas manuelinas da igreja), já numa in- João de Ruão, c. 1531 mentados com os artifícios do ornamento terpretação de classicismo tardio e rematado Diego de Sagrado, em plena articulação com os elementos da por frontão interrompido sobre o qual se eleva Medidas del Romano arquitectura. “Leuantado em cõpetente al- a cruz assente em pequeno frontão curvo. Toledo, 1549 tura de abobeda de pedraria, cõ hum fer- À arca tumular enquadrada por duas pilastras (ed. fac-similada) moso arco perpianho a maneyra de romano” caneladas sobrepõe-se uma estrutura com Igreja do mosteiro (Révah, 1958), o coro mantém os medalhões, friso dórico e dois arcos geminados que en- de Santa Cruz em correspondência com os desaparecidos cerram os brasões e as inscrições tumulares. séc. XVI dos arcos das capelas laterais. As preferências “ao romano” (onde se integra João de Ruão) Alinhados lateralmente e em cintilações de manifestam-se com clareza na definição das azul e branco, num procedimento de desenho colunas balaústre e nos capitéis que apoiam e cromatismo comum à época, os azulejos his- lateralmente as descargas da abóbada. toriados setecentistas (de fabrico lisboeta) pro- Um tratamento capitelar que reivindica tam- clamam, ao Evangelho, os valores da Cruz de bém a linguagem decorativa dos temas fanta- Cristo. Do pecado original à entrada da Cruz sistas publicados em 1526 por Diego de Sagredo em Jerusalém transportada pelo imperador em Toledo (com edições portuguesas em bizantino Heráclio, o programa iconográfico, 1541 e 1542) e que encontra nítido paralelismo repartido entre o mal e a salvação pela Cruz, no fôlego dado ao trabalho de marcenaria contempla os seguintes temas: o pecado ori- do Pentecostes de Vasco Fernandes, execu- ginal; Moisés e a serpente; prefiguração de tado em data muito próxima à do coro alto. Cristo na Cruz; o imperador Heráclio e a Cruz;

o mosteiro de santa cruz Revestimento vitória do imperador Constantino pela visão (o mestre organeiro que trabalha em Évora azulejar da igreja na década de 40 do século XVI para o arce- do mosteiro de da Cruz (IN HOC SIGNO VINCES); a des- Santa Cruz coberta da verdadeira Cruz por Santa He- bispo de Évora e cardeal D. Henrique, fabri- (escondido pelo lena; milagre da verdadeira Cruz; entrada cando os órgãos da casa do infante e da Sé). órgão), séc. XVII triunfal da Cruz em Jerusalém, alçada pelo O órgão de Coimbra é rematado por uma Mísula da igreja imperador Heráclio. Do lado da Epístola, grande águia, com dois pequenos anjos do mosteiro de como ocorre tantas vezes com os ciclos pro- trompeteiros, ladeada por duas figuras mas- Santa Cruz pagandísticos sobre a vida das figuras mais culinas emplumadas. Tem 3420 tubos (Vieira, (escondida pelo órgão), pintura e caras às várias Ordens religiosas, a série 1991, p. 17) e continua funcional. O seu res- douramento no azulejar narra episódios da vida de Santo tauro, efectuado em 2007, permitiu a visibi- séc. XVII Agostinho: no sentido nascente-poente, lidade dos azulejos enxaquetados, em azul e Órgão da igreja Santo Agostinho recebendo a inspiração de branco com frisos de grinaldas, que deve- do mosteiro de Deus; Santo Agostinho e sua mãe Santa riam revestir a igreja no século XVII e que Santa Cruz Mónica; baptismo de Santo Agostinho; sa- encontram correspondência no refeitório, Manuel Benito Gomes Herrera, gração episcopal de Santo Agostinho; Santo na sala do Capítulo ou na capela de Jesus. 1719-1724 Agostinho entrega o livro da Regra; morte É aqui que se encontra também a evidência de Santo Agostinho (Vieira, 1991, pp. 13-14). de uma reforma que implicou não apenas o revestimento azulejar da igreja mas também O órgão, colocado no lado do Evangelho a pintura e douramento da sua abóbada acima da capela dedicada a Santo António, (Santa Maria, Nicolau, 1668, P. II, Liv. VII, interpreta o gosto pela música, presente pp. 92-96). desde sempre no espaço crúzio. A riquís- sima colecção de livros musicais, perten- Nas paredes laterais ao arco triunfal da ca- cente ao mosteiro, e que se encontra pela-mor estão os retábulos executados por espalhada por várias bibliotecas do país, João Machado (em 1906 e 1910), escultor testemunha a importância dada à música saído da Escola Livre das Artes e do Dese- na liturgia promovida pelos cónegos de nho que, em Coimbra e sob a liderança de Santo Agostinho. O órgão que sobrevive, fa- António Augusto Gonçalves, difundiu a cul- bricado pelo mestre organeiro espanhol tura revivalista dos neos. Os retábulos da Manuel Benito Gomes Herrera entre 1719 e igreja de Santa Cruz, de Nossa Senhora da 1724, compôs harmoniosamente um con- Conceição (à Epístola) e Nossa Senhora das junto de elementos pré-existentes, como Dores (ao Evangelho), projectam o sentido partes da caixa ainda executada pelo mar- neo-renascentista com que o escultor preen- ceneiro Francisco Lorete por contrato ocor- cheu o imaginário figurativo da encomenda rido em 1532 (Garcia, 1923, pp. 142-144) e laica e religiosa a partir do modelo estético onde, possivelmente, colaborou Heitor Lobo mais consagrado na cidade.

o mosteiro de santa cruz da Igreja (em iconografia correspondente Púlpito da igreja ao que se faria, logo a seguir, no portal-re- de Santa Cruz Nicolau Chanterene, tábulo da fachada), Ambrósio, Jerónimo, calcário, 1521 Gregório e Agostinho, este voltado para a capela-mor e para o rei. Profetas e Sibilas Hidra motivo decorativo acompanham a “sinfonia” da Palavra, credi- do púlpito da igreja bilizada também pela presença dos temas do mosteiro de clássicos. As micro-arquitecturas, os moti- Santa Cruz, Nicolau Chanterene, 1521 vos que ornamentam as pilastras, os frisos e toda a organização montada configuram “Os trabalhos de a cultura clássica, tal como os temas dos Hércules” púlpito da igreja do “Trabalhos de Hércules”, visíveis na base mosteiro de Santa O “objecto” mais celebrado da nave é o dos tronos de S. Jerónimo e S. Gregório, Cruz, Nicolau púlpito, datado de 1521 e da autoria de Ni- sustentam a aliança estabelecida entre a An- Chanterene, 1521 colau Chanterene. Apoiado na hidra com tiguidade pagã e a parenética cristã. E é pre- Entrada triunfal da corpo de dragão e cinco cabeças da base, a cisamente a sua capacidade de promover o Cruz em Jerusalém alçada pelo sua riqueza iconográfica expressa-se não diálogo entre a sobrecarga ornamental (ao imperador Heráclio apenas pelo preenchimento obsessivo da gosto manuelino) e o sentido formal classi- , meados sua estrutura compositiva mas também cizante, no entendimento explícito entre os do séc. XVIII, pela diversidade dos temas em comple- temas religiosos e os motivos profanos, que igreja do mosteiro de Santa Cruz mentaridade discursiva de conhecimento fazem do púlpito de Santa Cruz exemplar integrado. Na parte superior dominam, único no país e do qual os crúzios tanto se sentados e inscritos em nichos, os Padres orgulharam.

092 | 093 A CAPELA-MOR

Retábulo com o A capela-mor é um espaço rectangular que prior do mosteiro, S. Teotónio. Em harmo- trono eucarístico a campanha manuelina de mestre Boytac ins- nia conjugada com o discurso propagan- séc. XVIII, capela-mor da igreja do mosteiro talou sobre a primitiva capela românica, po- dístico, o rei Afonso Henriques interfere na de Santa Cruz ligonal e mais pequena. A cobertura segue o narrativa aparecendo a receber o hábito de

Abóbada da modelo instalado na igreja e com as chaves cónego regrante e integrado na Ordem capela-mor da igreja centrais em alinhamento com o poder que (Vieira, 1990, pp. 24-25). do mosteiro de patrocinou toda a obra. São os emblemas Santa Cruz do rei D. Manuel, o escudo régio, a cruz de O altar-mor, com o sacrário, é dotado de mestre Boytac, 1507-1513 Cristo e a esfera armilar, que voltam a ditar, a uma estrutura retabular, também do século partir das chaves da abóbada e dos registos XVIII, com o trono do Santíssimo e qua- (páginas seguintes) Túmulo de ornamentais integrados, a imagem de auto- tro anjos de fortíssima expressão plástica. D. Afonso Henriques ridade colada à politica de centralismo régio. O retábulo de talha barroca acolhia uma Diogo de Castilho, tela do pintor italiano Pascoal Parente, com Nicolau Chanterene, O vão que, ao Evangelho, fazia a ligação ao o tema da Exaltação da Cruz e datada de 1518-1522, capela-mor da igreja do mosteiro claustro (de que ainda restam vestígios) foi 1788, que foi substituída por outra no sé- de Santa Cruz fechado e revestido com molduras ao culo XIX (também retirada e deslocada

Túmulo de gosto neomanuelino, à semelhança do para junto da capela das relíquias, ligada à D. Sancho I que acontece na passagem para a sacristia. sacristia) de António José Gonçalves, pai de Diogo de Castilho, A iluminação natural decorre das duas António Augusto Gonçalves (Vieira, 1990, Nicolau Chanterene, grandes janelas que ladeiam o túmulo de p. 25). Os antigos retábulos da capela-mor 1518-1522, capela-mor da igreja do mosteiro Afonso Henriques. desapareceram ou foram dispersos por vá- de Santa Cruz rios locais. Do retábulo pintado (em 1522- Os frisos de azulejo a azul e branco, do sé- c.1530) por Cristóvão de Figueiredo culo XVIII, que correm lateralmente rela- mantêm-se ainda alguns painéis remetidos tam diversos episódios da vida do primeiro hoje ao antigo refeitório do mosteiro.

o mosteiro de santa cruz

Pero Anes, Pero Fernandes, João Fernandes e seu irmão Duarte Amaro, António Roiz, Diogo Fernandes, António Fernandes, Ro- drigo Anes ou João Pires, integra nomes que se encontram nos róis das obras dos portais do mosteiro dos Jerónimos entre 1517 e 1518 (Dias, 1993, pp. 277-291) e voltam a estar presentes em Santa Cruz entre 1518 e 1522. Outros ainda, que não se registam nestas datas em Coimbra, terão ido das obras dos Jerónimos para a cidade do Mon- dego, incorporados também na campanha dos túmulos, como talvez seja, por exemplo, o caso de Juan della Faya. É, em grande parte, essa diversidade de mão-de-obra que explica a diferença do tratamento escultórico que se processa na decoração das arquitec- turas tumulares. Assim, a par de um com- portamento formal que desenvolve a volumetria naturalista mais comum ao pe- ríodo manuelino e engloba temas retirados de um fabulário medieval encontram-se ou- tros procedimentos que avançam na direc- ção explícita da cultura do Renascimento. Pormenor decorativo Na capela-mor ganham especial relevo as tumulares sob a supervisão de Nicolau Se os jacentes dos reis constituem a pri- espaço da capela-mor suscitou, assim, a sua Virgem do Leite do túmulo de composições tumulares dos dois primeiros Chanterene (Craveiro, 1990, pp. 17-20). meira lição de uma plasticidade humani- elevação com um tratamento formal idên- “mestre dos D. Afonso Henriques túmulos dos reis”, 1518-1522, capela-mor reis de Portugal: D. Afonso Henriques ao zada em Portugal, os medalhões nos tico ao conjunto dos túmulos. A composi- 1518-1522, túmulo de da igreja do mosteiro Evangelho e seu filho D. Sancho I à Epístola. O problema da autoria do projecto e da pilares laterais dos túmulos, recriando as ção dos remates, semelhante nos dois D. Sancho I, de Santa Cruz Pensados já em 1513, quando mestre Boytac mão-de-obra envolvida nestes conjuntos de moedas romanas, mais não são do que túmulos, desenvolve-se a partir de um arco capela-mor da igreja do mosteiro de Medalhão tumular assegurava que “somente nos arcos honde tanta importância na estratégia política do uma aproximação eloquente à cultura clás- abatido com projecção conupial de onde Santa Cruz 1518-1522, capela-mor hã de ser sepultados os Reys nõ faraa cousa reinado de D. Manuel continua incerto. sica. A escultura de vulto adquire a força re- saem cogulhos que, superiormente, formam da igreja do mosteiro algua” (Garcia, 1923, p. 154), remetendo Sem que haja provas concludentes para a tirada de um programa iconográfico sólido o motivo da cruz. O tema central apresenta de Santa Cruz para soluções precisas e cuidadas ao por- sua atribuição a João de Castilho, esta con- e coerente. A dificuldade de fazer atribui- o escudo de Portugal amparado pelos anjos menor, os túmulos, da encomenda do rei tinua a ser a alternativa mais viável e já lan- ções específicas para cada uma destas enquanto nos nichos laterais se colocam as D. Manuel só seriam executados entre 1518 çada pela historiografia com base na peças, foi, mesmo assim, ultrapassada pela figuras de S. Cristóvão e Santa Helena (no e 1522 (deslocados então os ossos do pri- credibilidade do arquitecto e nos paralelis- individualização do “mestre dos túmulos túmulo de Afonso Henriques) e de S. João mitivo sepulcro localizado no claustro). mos aos portais de Tomar e Belém (Gonçal- dos reis” (Gonçalves, 1979, pp. 27-53), a Baptista e do Imperador Heráclio ou Cons- Foram inicialmente colocados na igreja, ves, 1979, p. 38; Dias, 1982, pp. 141-144). quem caberia também um papel impor- tantino (no túmulo de D. Sancho). A consis- entre o púlpito e as paredes testeiras da ca- Por outro lado, se a colaboração de Diogo tante na construção de mais firme patamar tência iconográfica dos remates, literalmente pela-mor, no espaço das capelas da Graça e de Castilho na execução das arquitecturas e na interpretação escultórica do Renasci- encaixados entre os arranques das nervu- de Santo André, antes da reforma joanina da de Nicolau Chanterene, ao nível dos jacen- mento em Portugal. ras da abóbada da capela, desenvolve a igreja que a dotou com os arcos laterais que tes, é também dado assente e reconhecido simbólica da glorificação do rei e o estabe- ainda se mantêm. Só por 1531, concluído o há vários anos, a identificação dos restantes A não ser que os túmulos interferissem lecimento claro de um fio condutor entre coro alto com a instalação do cadeiral que artistas comprometidos com os túmulos com as grandes janelas manuelinas da D. Manuel e D. Afonso I (com pretendida libertou a capela-mor das cadeiras, ficou continua vaga e de contornos imprecisos. igreja, a impossibilidade física da implanta- auréola de santidade), com extensão a espaço adequado para a colocação dos tú- A equipa formada em Belém para a em- ção dos remates superiores no corpo do D. Sancho, conferindo ao Venturoso a con- mulos. Em 1535 verificava-se ainda a neces- preitada dos túmulos de Coimbra e consti- templo obriga a retirá-los da construção sagração do mito contido na teoria provi- sidade de correcção das estruturas tuída por Afonso Pires, Gaspar Tibério, inicial acabada em 1522. A adaptação ao dencialista da origem divina do poder.

o mosteiro de santa cruz 098 | 099 Na mudança efectuada da igreja para a ca- tumulares de Coimbra encontram a sua ser surpreendente o flagrante parentesco (página seguinte) Túmulo de pela-mor conservou-se a estrutura decora- mais sólida fonte de inspiração, quer ao entre os baldaquinos que protegem as cabe- D. Afonso Henriques tiva inicial que ainda hoje permanece, com a nível da organização compositiva quer atra- ças de D. João I e de D. Filipa de Lencastre Diogo de Castilho, fortíssima carga expressiva de conciliação vés da cadeia de complementaridade sim- (c. 1434), no octógono central da capela do Nicolau Chanterene, entre os valores do sagrado e do profano. bólica que liga os dois conjuntos. Tal como Fundador na Batalha, os seis baldaquinos in- 1518-1522, capela-mor da igreja do mosteiro Organizados à maneira de grandes arcos na porta travessa ieronimita também as se- feriores dos Apóstolos no portal crúzio e os de Santa Cruz triunfais ladeados por dois pilares compos- pulturas de D. Afonso Henriques e de seu baldaquinos tumulares, se se pensar no es- tos onde se inscrevem dois andares de ni- filho D. Sancho I, se perspectivam em visua- tabelecimento de uma corrente simbólica chos, perfazendo para cada túmulo doze lização imposta por um grande sentido de que une o espaço fúnebre dos fundadores figuras, os “vãos” tumulares mantêm a sim- verticalidade, definido por vários planos em da dinastia de Avis aos panteões régios de bologia de acesso ao espaço do divino e altura. O janelão dos Jerónimos dá, em Coimbra e de Lisboa. A adopção desta lin- neles se conjugam as esculturas jacentes Coimbra, lugar à formação da estrutura su- guagem batalhina, que também se expressa dos reis com a vigilância das entidades sa- perior preenchida pelos relevos escultóricos nos baldaquinos situados no grande portal gradas da Virgem, dos Apóstolos, dos Dou- dos anjos segurando a heráldica do Reino, das Capelas Imperfeitas, outra vez no con- tores da Igreja, Profetas, Evangelistas, mas o protagonismo da figura da Virgem é texto da morte, tem nítida correspondência Virtudes Cardeais e Teologais... Enquanto idêntico nos dois conjuntos. E, enquanto a quer no portal de Santa Cruz, quer em al- isso, nos “tímpanos”, a presença, em evi- porta do “príncipe sem coroa” (Muchagato, guns momentos decorativos nos túmulos dência, dos emblemas mais carismáticos do 1997, p. 48) dá acesso ao panteão régio de D. Afonso e D. Sancho, quer ainda na rei D. Manuel, acompanhando o programa ideado por D. Manuel, a igreja de Santa igreja do mosteiro dos Jerónimos, aqui dis- de exaltação aos fundadores da monarquia, Cruz, que inscreve os elementos discursivos seminada no interior e no exterior do tem- ressalta a intenção propagandística “cen- do poder numa fachada românica adaptada, plo. Na realidade, a dimensão cósmica trada num autêntico mito das origens que constitui-se em espaço funerário privile- contida nas cúpulas estreladas dos balda- procurava «elevar» a figura do próprio mo- giado no acolhimento dos fundadores do quinos da igreja de Santa Cruz perfaz uma narca” (Pereira, 1995, p. 127). Reino. É como que uma cadeia regenera- intenção universalista ligada à esfera do dora cujas origens se encontram em Coim- sagrado e contempla a redenção dinástica. É flagrante a aproximação entre a estrutura bra e vão terminar no panteão manuelino de As sugestões iconográficas promovidas pelo “retabular” do portal e as composições tumu- Lisboa; um ciclo legitimador de poder, esta- fundador da dinastia de Avis continuavam, lares dos reis no interior da igreja. O mesmo belecido também pelos flagrantes paralelis- decorrido quase um século, a ser aproveita- vocabulário estético de transição, a aplica- mos estéticos, mas ao contrário. Porque das na exposição clara de uma fortíssima re- ção dos mesmos elementos ornamentais primeiro é no mosteiro dos Jerónimos que tórica de poder. que figuram no portal (aqui fruto do des- se pensa e só depois surge a reforma do gaste irrecuperável da exposição ao tempo), mosteiro crúzio. a mesma projecção de força imagética reti- rada da consciência de uma capacidade in- Nos laços apertados da iconografia da terventiva nos caminhos político-ideológicos morte vai mais longe a exposição do cerimo- da comunidade. Em Santa Cruz é, pois, re- nial ostentatório do poder. As claras afinida- forçado o carisma do poder real em Coim- des que se detectam entre o portal da igreja bra, estendido às campanhas construtivas guardiã dos corpos dos primeiros reis e, manuelinas nos Paços. portanto, dos fundamentos da monarquia, e as composições tumulares dos mesmos Os “portais” que conduzem os dois primei- passa, não só por idêntica estrutura arqui- ros reis à esfera mítica do sagrado pela mão tectónica imposta na “Porta do Império” esclarecida do rei D. Manuel, “iluminado” (Pereira, 1990, pp. 177-179) de Belém, mas pela razão que legitima o seu poder, encon- também pelo mosteiro de Santa Maria da tram nítido paralelo na obra mais paradig- Vitória, na Batalha, onde radicam as origens mática do seu reinado: o mosteiro dos de muitas das resoluções decorativas en- Jerónimos. É sobretudo no portal virado a contradas nos túmulos ou no portal da sul na igreja de Belém que as arquitecturas igreja de Santa Cruz. Com efeito, deixa de

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AS CAPELAS LATERAIS

Nas capelas laterais à nave da igreja ainda tempo que se apresentava um novo enqua- Graça (hoje do Senhor dos Passos), com corpo da igreja, estabelecendo, desta Deposição de permanece visível o conjunto das reformas dramento cenográfico. um sentido de regularização imposta tam- forma, um sentido de equilíbrio e sime- Cristo no túmulo João de Ruão, levadas a cabo no período joanino. Na re- bém pela cobertura de aresta com dois tria a partir do eixo da nave (Gonçalves, calcário, 1535-1540, presentação emblemática das “formas per- Mantendo o espaço da igreja das Donas, a arcos cruzeiros, abriram-se para a nave 1980, pp. 213-218; Gonçalves, 1988, p. 131). MNMC, feitas”, o espaço aberto à comunidade capela-mor e o inevitável bloco central do através dos dois grandes arcos que enqua- Para ocultar a abóbada da capela dos Már- Inv. nº 4085; E109 pública pauta-se pela exaltação de conhe- corpo, com abóbadas em “arte custosa & dram o púlpito (em correspondência com tires e camuflar as obras de Boytac, a altura cimento e poder, saída da reforma de 1527. mais estimada do moderno” (Révah, 1958), o ritmo do lado fronteiro). Apresentam as das novas capelas desceu e o espaço usu- É o que se passa através da reformulação reformularam-se as capelas laterais, segu- duas uma composição de talha do século fruído ficou mais pequeno, aproveitando-se operada no corpo da igreja e com a impo- ramente, sob a direcção de Diogo de Cas- XVIII. Os azulejos (sempre do mesmo pe- a oportunidade para uma configuração sição sistemática da forma quadrangular, tilho. Do lado do Evangelho respeitou-se a ríodo) da capela do Senhor dos Passos re- mais regular e, porventura, próxima da- necessariamente adaptada aos espaços maior privacidade no acesso ao púlpito e gistam os temas de S. Joaquim, Santa Ana quela que organiza as capelas do lado do prévios. Nos primeiros anos da década de criou-se um espaço intermédio, também e a Virgem. Evangelho. 30 do século XVI, na mesma altura em que revestido com azulejos setecentistas, onde estão também em curso as obras que have- se colocou a Deposição de João de Ruão A “cirurgia” do lado da Epístola revestiu-se A intervenção ocorrida no século XX (1972) riam de configurar a nova igreja paroquial (hoje no Museu N. de Machado de Castro). de maior sofisticação na reforma joanina. recuperou a capela unificada de D. Gomes de S. João, encostada a sul da igreja con- Mantém-se uma estrutura retabular pétrea A operação plástica a que foi necessário (1458) deixando à vista a sua cobertura qua- ventual, a reforma ditou então a supressão ainda quinhentista, que não prescinde dos recorrer para esconder o espaço quatro- trocentista. A primitiva capela de S. Tiago, do mosteiro das Donas. O espaço ocupado ingredientes clássicos dinamizados no centista da capela dos Mártires primeiro e frente à de Santo António, oculta a grande pela antiga igreja do mosteiro feminino plano superior com os três nichos ocupa- as reformas de Boytac depois, transforma- janela manuelina, integra o portal projec- (desactivado também das suas funções de dos pelo Salvador e por anjos músicos. ram toda esta ala. À semelhança do que tado para o exterior a poente (na realidade, paroquial) pôde, assim, ser integrado no aconteceu com as capelas da parte es- logo desactivado pelo encosto à igreja pa- âmbito da igreja crúzia, promovendo a ra- As capelas de Santo António (com imagem querda, também aqui o espaço foi dividido roquial) e ainda mantém a organização à cionalização de um programa erudito e recente e azulejos setecentistas com cenas em três unidades inter-comunicantes em maneira de templete com lanternim supe- tendencialmente geometrizado, ao mesmo alusivas ao Santo) e de Nossa Senhora da que a central permanece fechada para o rior, copiando, afinal, os mesmos motivos

o mosteiro de santa cruz 104 | 105 tantas vezes repetidos no campo da pintura Diogo de Castilho é, nesta altura, o homem Capela à Epístola e escultura e que tinha expressão paralela encarregado de todas as obras de arquitec- igreja do mosteiro de Santa Cruz no templete da portaria joanina. Abaixo do tura no mosteiro enquanto se entrega o grande arco gótico (com decoração flame- campo decorativo a João de Ruão. A este Ritmo das intervenções jante extraída da lição batalhina) da capela pertencerão os frisos e capitéis “lavrados quatrocentista e de D. Gomes preservou-se o arco renas- de romano”, os medalhões presentes no quinhentista à centista, marcando a campanha humanista coro alto ou os desaparecidos nos portais Epístola das obras ocorridas ao longo da década de das capelas laterais da igreja, tal como a igreja do mosteiro de Santa Cruz 30 do século XVI. Esta capela e a fronteira Ruão deve ser confiado o planeamento de de Santo António eram protegidas por gra- tantas outras obras no mosteiro. Nascia no des de ferro enquanto as outras estavam espaço humanista de Santa Cruz a colabo- preservadas pela grande grade situada a ração duradoura dos dois artistas que im- cerca de 4,40 m para além do púlpito. puseram e protagonizaram a cultura do Renascimento em Coimbra. Os arcos de volta perfeita com correspon- dência aos dois que, mais perto da ca- pela-mor, também se expressam com a mesma definição (substituindo os túmulos régios que aqui se encontravam até cerca de 1531) são o que resta da montagem de- finida pelos arcos arquitravados e dotados de medalhões que se impunham na nave da igreja, constituindo-se também como grandes arcos triunfais.

106 | 107 A SACRISTIA

Descida da Cruz sacristia da igreja de Santa Cruz tivo no desenho da sacristia (Craveiro, atrib. André (1622), construída pelo arquitecto 2002, pp. 514-517). Gonçalves, A séc. XVIII, sacristia Manuel João, substitui outras no do mosteiro de mesmo local com diferente espacialidade e A actual sacristia inscreve-se numa cultura Santa Cruz cujas dimensões é hoje impossível determi- artística que não abdica da dinâmica orna- Sacristia nar. Sempre com uma localização a sul da mental apoiada nos modelos da gravura a Manuel João, capela-mor da igreja, a primitiva sacristia circular, como os motivos das máscaras 1622-1624, mosteiro românica deu lugar a outra nos inícios do sobrepostas aos diversos vãos. A organiza- de Santa Cruz século XVI que sofreu nova remodelação, ção arquitectónica do espaço rectangular por volta de 1590, com um aumento do es- (rematado nos topos pela grande janela paço em direcção à rua das Figueirinhas. termal de grande efeito plástico e lumí- nico) e a agitação ritmada da sua abóbada, A autoria do projecto permanece incerta. de três tramos e exuberantemente preen- Tradicionalmente, e com base em docu- chida por motivos de “pontas de dia- mentação recolhida no texto de D. José de mante” e caixotões octogonais de onde Cristo (B.P.M.P., Ms. 86, fl. 51), tem sido pendem bocetes, fazem desta sacristia um atribuída a Pedro Nunes Tinoco, arquitecto dos exemplares mais extraordinários do régio presente em Santa Cruz nas datas género no país. Num procedimento que da construção deste espaço. Na realidade, haveria de ser seguido no mosteiro e ga- o apuramento historiográfico das creden- nharia também a adesão da arquitectura ciais de Manuel João desencadeou a rea- do período barroco, verifica-se a correspon- nálise do problema agora equacionado à dência (nos tramos e nos arcos torais) luz da possibilidade de atribuir ao arqui- entre a definição da abóbada e o pavi- tecto de Coimbra um papel mais interven- mento em pedra de duas cores.

o mosteiro de santa cruz A CAPELA DAS RELÍQUIAS

Crucifixão O expoente de glória e de brilho é alcançado O arcaz que ainda se preserva, com file- O bloco rectangular concebido a poente da sentido decorativo anda próximo da defini- Portal da sala séc. XVII, sacristia na sacristia a vários níveis. Cobrem as paredes tes de marfim em decoração de efeitos sacristia dá acesso à escadaria para os an- ção fixada em 1638 na fonte central do claus- do Tesouro do mosteiro de década de 30 do Santa Cruz azulejos padronizados de “tapete”, com cinti- geométricos, é do século XVII e da autoria dares altos laterais ao corpo da igreja e à ca- tro do Silêncio. O portal segue os modelos séc. XVII, mosteiro lações de azul, branco e amarelo, tão comuns de Samuel Tibau, embora ostente a data pela das Relíquias. Surgido na sequência da nórdicos numa sequência arrebatadora de de Santa Cruz ao século XVII e ainda podem ver-se várias de 1711 e as iniciais FPM que corresponde- construção da nova sacristia, o átrio assim molduras em “ferronnerie” que integram pinturas, entre as quais se destaca a grande rão a um restauro efectuado nesta altura. formado apresenta a abóbada com caixo- motivos geométricos de rectângulos, círcu- tela da “Descida da Cruz”, do séc. XVIII, O amituário, espécie de contador encai- tões rectangulares e almofadados, apelando los e ovais, máscaras e “pontas de dia- cópia sobre o mesmo tema de Daniel Volterra, xado na parede nascente, junto à porta que a uma sobriedade de recorte geométrico em mante”. Na mesma cultura estética, aliás, e cuja qualidade já levou à sua atribuição à dá acesso à sala do Capítulo, ostenta a em- contraste com a exuberância ornamental da que ditou a construção do portal da igreja proximidade da oficina de André Gonçalves. blemática cruz segura por dois anjos e inte- sacristia. do colégio de Santo Agostinho na cidade, Outras telas, também do século XVIII e de gra ainda algumas tabelas de marfim que também do mosteiro crúzio. oficina lisboeta, representam “Santo António identificam alguns nomes dos últimos utili- Aqui se guardam alguns paramentos, alfaias com as vestes de cónego regrante ajoelha zadores crúzios (Vieira, 1991, pp. 29, 58). litúrgicas e a grande tela, muito deteriorada, A capela, hoje designada como capela do te- perante a Virgem e o Menino”, “Santo Agos- Preserva-o um arco enquadrado por pilas- proveniente da capela-mor. Foi pintada em souro, tem cobertura rebaixada de perfil oc- tinho com Cristo e a Virgem” e a “Virgem e tras coríntias, num entendimento compo- 1876 por António José Gonçalves, com o togonal com os vários campos decorados e o Menino com Santa Isabel e S. João”. sitivo clássico e dotado de profusa tema da “Exaltação da Cruz” acompanhado integra várias relíquias atestando a impor- decoração. pelo que parece ser a representação da tância que os crúzios davam à exposição da Na parede sul dominam as grandes escultu- Praça do Comércio em Lisboa e onde ainda materialidade da devoção. Ganham especial ras de madeira da Crucifixão com Cristo, a Para além da ligação ao corpo da igreja (re- figura o torreão caído em 1755. relevo o relicário de prata que contém o crâ- Virgem e S. João, os últimos em nichos que configurando o arco que protegia o armário nio de S. Teotónio, de 1624 (com inscrição têm correspondência com os da parede fron- para os cálices) e à capela-mor, a sacristia O portal que o separa da capela quadrangu- onde se diz que, em 1621, o prior D. Miguel teira com Santa Gudula e Santa Gertrudes, dá acesso à sala do Capítulo (em estreito lar (com projecção octogonal) mais resguar- de Santo Agostinho separou o crânio do duas santas da Ordem agostinha. Todas as corredor), à casa das Relíquias e à casa do dada projecta-se como arco triunfal dotado resto do corpo do santo), e os relicários, esculturas pertencem ao século XVII. Lavabo. de assinalável capacidade de impacto e cujo também de prata e do século XVI (1510) que,

o mosteiro de santa cruz 110 | 111 O LAVABO

Casula supostamente, guardam relíquias dos cinco A casa abobadada do lavabo situa-se a nas- bordado com fio Mártires de Marrocos. Consumada a “lim- cente da sacristia e, tal como acontece no dourado, séc. XVIII, mosteiro de peza”, operada a partir de 1834, expurgando topo oposto, é revestida por azulejos do sé- Santa Cruz o mosteiro das obras com qualidade mais culo XVII. As afinidades do lavabo com ou-

Pluvial significativa, restam aqui (numa definição tras obras de Pedro Nunes Tinoco apontam bordado com fio musealizada), sobretudo, as peças de metal para a sua provável autoria. O confronto dourado, séc. XVIII, do século XIX necessárias à prática litúrgica com o túmulo de D. Duarte de Menezes mosteiro de e diversas esculturas pequenas pertencen- (1635), executado para a igreja monástica de Santa Cruz tes aos séculos XVIII e XIX. S. Francisco em Santarém e hoje colocado Lavabo da sacristia no Museu de S. João de Alporão, permite es- Pedro Nunes Tinoco, tabelecer uma linha de continuidade no tra- mármore, c. 1630, mosteiro de balho do arquitecto régio, pese embora a Santa Cruz natureza diferente da obra. O resultado da estadia de Pedro Nunes Tinoco em Santa Cruz, mais do que o projecto para a sacris- tia é, agora sim, o lavabo.

o mosteiro de santa cruz A SALA DO CAPÍTULO

sala rectangular do Capítulo resulta Os azulejos enxaquetados que cobrem Sala do capítulo da vontade reformadora extraída da ainda hoje a sala capitular derivam de deci- mestre Boytac, A 1º quartel do aliança entre o rei D. Manuel e o são tomada em 1582. Ao longo das paredes séc. XVI, mosteiro prior do mosteiro D. Pedro Gavião (1507- laterais correm ainda os bancos com os de Santa Cruz

1516). Respeitando uma estratégia de loca- respectivos espaldares. Entrada da lização configurada pela primitiva sala sala do capítulo capitular românica, o Capítulo manuelino O topo a sul é rematado pelo grande arco mestre Boytac, obedece ao projecto ideado por mestre triunfal da capela de S. Teotónio enquanto 1º quartel do séc. XVI, mosteiro Boytac e com afinidades explícitas nou- a norte se situa a entrada para o claustro de Santa Cruz tros espaços construídos pelo arquitecto. com o arco conupial, revestido de uma de- De facto, não é necessário sair do mos- coração preenchida pela fita e motivos ve- teiro para encontrar o mesmo universo getalistas, e se identifica, mais uma vez, a formal e a mesma e reconhecível plastici- marcação do trabalho de mestre Boytac. dade. A igreja apresenta idêntica defini- ção na abóbada nervurada dos quatro tramos tal como se oferece o mesmo efeito cenográfico a partir das longas mí- sulas espiraladas e dispostas ao longo das paredes laterais. Como acontece nou- tros locais no recinto do mosteiro, tam- bém aqui se processa um acordo formal entre a cobertura e o lajeado do pavi- mento; espécie de harmonia cósmica entre o céu e a terra.

114 | 115 A CAPELA DE S. TEOTÓNIO cercado de huas grades douradas pera mais veneração” (Santa Maria, 1668, P. II, Liv. IX, p. 190).

A capela funciona, na realidade, como uma espécie de capela-mor da sala do Capítulo, “sacralizando” os dois espaços separados mas unidos pelo grande arco triunfal, exe- cutado já no século XVII. A opção plástica representada em todo este conjunto é re- veladora, não apenas de uma carga que transporta ainda as heranças ruanescas no Gravura de A capela de S. Teotónio (1582-1588) justi- capítulo dos ritmos decorativos mas tam- H. Vredeman de Vries fica-se pela dimensão da imagem do pri- bém, em idêntico grau de importância, da (Variações sobre as ordens coríntia e meiro prior do mosteiro, construída ao preservação das categorias humanistas do compósita), 1563, longo de toda a Idade Média. Ainda em Renascimento que os crúzios tentaram fl. 67/v., BPMP, 1620, os crúzios contratavam com a parce- manter, à revelia de outras alternativas em RES. XVI-C-10 ria formada pelos pintores Simão Rodrigues direcção à sobriedade ornamental que ia Capela de S. Teotónio e Domingos Vieira Serrão a execução de ganhando o país e a própria cidade. O seu Tomé Velho, quatro painéis da vida de S. Teotónio a co- arquitecto, Tomé Velho (Gonçalves, 2006, 1582-1588 e séc. XVII locar nas casas do ante-coro (Garcia, 1923, pp. 742-790), saído da escola de João de pp. 138-141), revelando a manutenção insis- Ruão, com quem trabalhou também em tente da campanha propagandística em parceria, fabricou um espaço onde a arqui- torno da figura fundadora. tectura e a escultura convivem e dialogam num mesmo patamar de protagonismo. O túmulo primitivo, localizado também na Na abóbada de caixotões, nos frisos ou nas sala do Capítulo românica, seria, entretanto, colunas e pilastras laterais aos nichos, o or- deslocado até à sua definitiva instalação namento extraído dos figurinos do primeiro na capela que leva o seu nome: o corpo de Renascimento desempenha papel vital na S. Teotónio, falecido em 1162, foi colocado dinamização compositiva e prolonga a no ano seguinte em túmulo alto num arco marca humanista do mosteiro. As escultu- vazado da parede do Capítulo, onde esteve ras dos Evangelistas, S. Marcos e S. Lucas à até 1508, data em que transitou para a ca- direita e S. Mateus e S. João à esquerda, os- pela do Crucifixo até 1530. Regressou então tentam um tratamento corpóreo muito pró- ao Capítulo, “encostado á parede do Altar prio do escultor que também era Tomé Velho do mesmo Santo, ao lado do Euangelho, (seguindo, aliás, a tradição consolidada com

o mosteiro de santa cruz A CAPELA DE S. MIGUEL

S. Lucas e S. Marcos João de Ruão da categoria profissional do de S. Teotónio, que, tal como aconteceu Acede-se à capela de S. Miguel pela sala do Retábulo dos Tomé Velho, escultor-arquitecto) e imprimem a adequada com as ossadas de D. Telo, foi transferido Capítulo. A sua estrutura rectangular, de Arcanjos 1582-1588, sécs. XVI-XVII, capela de S. Teotónio gravidade ao programa iconográfico da ca- do claustro também em 1630. dois tramos, tem a abóbada com uma co- capela de S. Miguel do mosteiro de pela. A escultura central de S. Teotónio, em bertura nervurada em estrela de quatro pon- do mosteiro de Santa Cruz madeira, é de uma oficina de Lisboa (1627- A capela fomenta um discurso rico de suges- tas, numa definição que se identifica com as Santa Cruz S. Teotónio 1630) e demarca-se do “estilo” reconhecível tões iconográficas que integra também o re- coberturas das galerias do claustro e com a Abóbada da capela oficina de Lisboa, de Tomé Velho. tábulo de cinco painéis pintados, cerca de intervenção de Marcos Pires. A capela terá de S. Miguel madeira, 1627-1630, 1638, por anónimo autor local mas com cla- sido, portanto, construída em sintonia com Marcos Pires, capela de S. Teotónio 1518-1522, mosteiro do mosteiro de No arco triunfal (1627-1630) é perceptível ras influências de um “tenebrismo” lisboeta o claustro manuelino, entre 1518 e 1522. de Santa Cruz Santa Cruz uma outra sensibilidade que aposta na co- trazido pela influência das telas dos altares lagem aos modelos decorativos extraídos laterais da Sé Velha, estas eventualmente A capela deve a sua designação ao retábulo, da gravura nórdica e projectam um sentido pintadas por Martim Conrado (Serrão, I, já mais tardio, executado nos finais do sé- festivo de grande impacto sobre a sala do 1992, p. 510; Serrão, 2000, pp. 415-416). culo XVI ou inícios do século XVII, com a re- Renascimento que integra ainda cartelas Capítulo. Os temas são, naturalmente, alusivos à vida presentação dos três arcanjos: S. Miguel ao diversas e pontas de diamante, temas divul- de S. Teotónio (a cura do rei Afonso Henri- centro ladeado por S. Rafael (acompanhando gados posteriormente. O coroamento, re- Para além do túmulo do Santo, em plano de ques e de D. Mafalda, S. Teotónio em Glória Tobias) à direita e S. Gabriel à esquerda, em matado pela taça com a cruz, desenvolve as centralidade, a capela alberga lateralmente e a sua morte enquadram o motivo, ao cen- tratamento que alonga as figuras, já sem o “ferronneries” (nos remates laterais acom- mais dois túmulos: à esquerda o de D. Telo tro, do Calvário). Na propaganda encenada, carácter humanizado e a corporalidade que panhando a curvatura da abóbada), comum (falecido em 1136), um dos fundadores do a encomenda crúzia não esqueceu também tinham, até então, caracterizado a escultura. nas estratégias decorativas da segunda me- mosteiro, e cujos restos mortais foram a eficácia da “aliança” entre as duas figuras A estrutura tripartida do retábulo organiza tade do século XVI. transferidos do claustro para este local em emblemáticas das fundações: do mosteiro e uma composição simétrica e com o nicho 1630, como consta na inscrição tumular. do reino. central mais elevado. Pilastras e entabla- À direita, o do segundo prior do mosteiro, mentos são revestidos com uma ornamen- D. João Teotónio (falecido em 1181), sobrinho tação inspirada nos motivos de primeiro

o mosteiro de santa cruz 118 | 119 O CLAUSTRO

claustro manuelino do mosteiro ora com os “eternizados” símbolos régios Ala nascente do ocupa a posição do primitivo claus- da cruz de Cristo, da esfera armilar e do bra- claustro do mosteiro O de Santa Cruz tro românico. Ainda se conserva, são do rei D. Manuel. O momento “maior” Marcos Pires, embutida na parede da ala sul e logo acima dessa adesão incondicional à força da Na- c. 1520

do túmulo de D. Miguel Salomão, a lápide tureza situa-se na fonte de Paio Guterres, Abóbada no da sagração da igreja em 1228. cavaleiro medieval ligado à formação do claustro do Silêncio reino, ao rei Afonso Henriques e às casas Marcos Pires, Integrada no volume de obras a desenvol- religiosas de Santo Agostinho. O mito das c. 1520, mosteiro de Santa Cruz ver nas campanhas de mestre Boytac, a exe- origens e o papel do mosteiro na engrena- cução do claustro deveu-se inteiramente a gem fundacional, expostos na propaganda Marcos Pires que o teria concluído por 1520. montada na igreja com os túmulos dos A sua organização quadrangular e ordenada reis, passavam, assim, também ao claustro. a um ritmo de arcarias onde se perfilam os A fonte, localizada no ângulo sudeste do cinco tramos separados pelos contrafortes claustro porque servindo o refeitório ma- que sobem aos pisos superiores integram nuelino remetido para a ala nascente (do arcos apontados (contendo dois arcos re- qual não resta qualquer vestígio), dialoga na dondos e unidos por coluna central), ex- partilha de funcionalidade e carga simbólica pressivos de uma dinâmica ornamental e que não prescinde, mais uma vez, dos em- discursiva própria do tempo. Dessa atmos- blemas do rei inscritos no reino de uma Na- fera de palpitante naturalismo dá conta a tureza profusa e purificadora. Na cobertura decoração capitelar, a definição das mísulas abobadada que a protege as nervuras cur- no arranque das nervuras ou as abóbadas vas são substituídas por troncos nodosos, nervuradas e preenchidas com as chaves, num comportamento formal generalizado, ora com uma vegetação “carnuda” e rebelde, afinal, a tantas construções do reinado.

120 | 121 No plano central do claustro encontra-se a butivo dos circuitos e lugar de meditação, o Fonte de fonte que, em 1638, terá substituído outras claustro é também espaço de sepulcro por Paio Guterres claustro do Silêncio, anteriores. É rematada pela imagem de excelência. Aqui se sepultaram os primeiros Marcos Pires, S. Miguel segurando o escudo nacional. reis e muitos outros de maior ou menor pro- c. 1520, mosteiro de Com taça dupla assente sobre o tanque re- jecção. De alguns é a inscrição registada Santa Cruz cortado e sentido decorativo proveniente de pelo azulejo que anuncia o local do sepulcro Fonte de outras referências mais sóbrias, a fonte cen- e o tumulado. Paio Guterres tral inscreve-se nos mesmos circuitos cultu- claustro do Silêncio, Marcos Pires, rais e plásticos que ditaram a construção do Abaixo da lápide da sagração, na ala sul, en- c. 1520, mosteiro de arco que antecede a capela das relíquias e contra-se o túmulo de D. Miguel Salomão, Santa Cruz que, por seu turno, surge na sequência das bispo de Coimbra entre 1162 e 1176 e sem- Fonte do claustro do grandes obras da sacristia. pre próximo do mosteiro de Santa Cruz. Silêncio do mosteiro Faleceu em 1180 e à sua arca foram mais tarde de Santa Cruz No ângulo noroeste situava-se, até aos mea- (séc. XIII) acrescentados ornatos diversos. séc. XVII, Coimbra dos do século XX (altura em que a Direcção Na mesma galeria do sul, no tramo seguinte, Geral dos Edifícios e Monumentos Nacio- está o túmulo do infante D. Henrique, filho do nais a transportou para plataforma formada rei D. Sancho I. Também do século XII e com acima do actual restaurante do Jardim da uma inscrição muito mutilada, a arca apre- Manga), a fonte seiscentista que servia o re- senta relevos figurativos importantes na cap- feitório nascido do contrato de obras esta- tação de uma sensibilidade românica. O lugar belecido em 1528. da arca dos Mártires de Marrocos, tal como acontece com o túmulo de D. João Teotónio São diversos os túmulos que ainda se encon- (2º prior do mosteiro e falecido em 1181), en- tram nas galerias do claustro. Núcleo distri- contra-se meramente registado no azulejo.

122 | 123 Registo com as Entre a entrada para o Capítulo e a capela de estratégias culturais e políticas dos vários Bem-aventuranças Jesus, a lápide com inscrição quinhentista in- momentos. Alguns espaços e registos perde- azulejo, sécs. XVIII-XIX, dica um dos locais de sepulcro do arcediago ram-se para sempre; por vezes, detectam-se claustro do mosteiro D. Telo, um dos fundadores do mosteiro. ainda elementos que persistem na clarificação de Santa Cruz do conjunto. Por exemplo, junto ao relevo Registo da ligação O lambril de azulejo que corre nas galerias da Lamentação ficou visível o registo do vão manuelina entre o do claustro pertence genericamente aos fi- que estabelecia a ligação entre a capela-mor claustro e a igreja nais do século XVIII e apresenta dois regis- e o claustro, tal como, num plano mais cen- séc. XVI, mosteiro de Santa Cruz tos articulados. No plano inferior corre o tral, se pôs a descoberto parte de um grande “rodapé” marmoreado onde assenta o se- arco românico. Claustro do Silêncio gundo registo organizado em campos fi- Marcos Pires, c. 1520, mosteiro de gurativos autónomos e grande sentido Santa Cruz cromático. Os “temas” protagonizadores das molduras ovaladas e enquadradas entre grinaldas florais, em clara filiação barroca, projectam uma iconografia religiosa reti- rada dos Evangelhos e dizem respeito às Bem-aventuranças e Parábolas da pregação de Cristo (Vieira, 1991, pp. 39-40).

Ao longo do tempo, o claustro sofreu os rea- justamentos às diversas circunstâncias dita- das pela necessidade de actualização dos ingredientes presentes ou pela inversão das

o mosteiro de santa cruz A CAPELA DE JESUS CAPELAS DO CLAUSTRO

Capela de Jesus A capela de Jesus encosta-se à sala do Capí- obras de Marcos Pires. Na parede poente, culo XVIII, sustentada por pelicanos e preen- As restantes capelas que se encontram no Retábulo da com o túmulo de tulo e abre para o claustro no extremo da ala está o túmulo de D. João de Noronha, filho chida por símbolos heráldicos e inscrições circuito do claustro, quase todas ainda Crucifixão D. João de Noronha sécs. XVII-XVIII, séc. XVI, mosteiro sul, fechada por grade antiga. Embora deva do primeiro marquês de Vila Real, D. Pedro laudatórias. Foi restaurada em 1866 pela acompanhadas pelas dependências anexas, capela de Jesus de Santa Cruz ter sido projectada por mestre Boytac, as de Menezes, e de D. Brites de Lara, prior Câmara Municipal, tal como consta de ins- pertencem a diferentes épocas. Na galeria do mosteiro obras ter-se-ão prolongado como parece in- eleito do mosteiro em 1484 e falecido em crição junta. norte, a seguir à entrada para o refeitório da de Santa Cruz diciar a definição estrelada da sua abóbada 1506. Organizado à maneira de portal ma- campanha de obras de Diogo de Castilho abatida. A entrada para o claustro, perten- nuelino, o túmulo integra a arca com o bra- A capela de Jesus funciona também como depois de 1528, situa-se uma capela datável cerá a Marcos Pires no contexto da emprei- são de armas do prior-mor e com a inscrição um depósito de peças em pedra de prove- ainda dos meados do século XVI. Depois da tada das obras que leva a cabo até 1522, data fúnebre. Do lado fronteiro, o túmulo de niência e natureza diversas. Ganham parti- entrada em duplo arco com uma intersecção da sua morte. Os azulejos enxaquetados D. Pedro Gavião, prior-mor do mosteiro cular relevo as esculturas originais do em suspenso projecta-se a abóbada de berço que revestem as paredes têm vindo a ser entre 1507 e 1516 (o primeiro de nomeação portal da fachada da igreja, executadas com pequenos caixotões ornados alternada- substituídos. régia) e também bispo da Guarda, segue por Nicolau Chanterene cerca de 1525. mente de florões. Mantém a imagem da Vir- um modelo próximo do sepulcro do seu an- Os Apóstolos (entre os quais se identifica gem esculpida por João de Ruão para o nicho Para além do retábulo simples (do século tecessor. A ele se deve a montagem de toda S. Tiago) e os Doutores da Igreja – Santo central da fachada da igreja, cerca de 1531. XVIII) que integra as figuras pintadas da Vir- a campanha reformista manuelina, sempre Agostinho e S. Jerónimo – apresentam o gem e S. João enquadrando a imagem de em articulação com o rei. O seu brasão fi- sentido naturalista bem próprio da cultura A ala nascente tem uma capela do século madeira com Cristo crucificado (século XVII) gura, assim, no túmulo tal como em tantos renascentista que Chanterene ajudou a im- XVIII com portal barroco de concheados e (ainda com a representação em barro de outros espaços do mosteiro. plementar em Coimbra. rematado por brasão com motivo muito di- Santa Maria Madalena, na base da mesa de luído. É forrada com azulejos setecentistas altar), a capela de Jesus é fundamental- Na capela encontra-se igualmente a arca fu- Para além de um conjunto de materiais pé- com cenas da vida de S. Joaquim e Santa Ana mente espaço convertido em sepulcro. nerária de D. Rodrigo de Carvalho, bispo de treos diversos (a maior parte oriundo da fa- e guarda a imagem do rei David, o original Nas paredes laterais, de frente um para o Miranda e fundador do colégio de S. Pedro, chada da igreja), aqui se colocou também ruanesco da fachada da igreja. Nesta ala ainda outro, encontram-se dois túmulos, concluí- à rua da Sofia em Coimbra. Faleceu em uma imagem da Senhora da Piedade ainda se encontra o portal, dos inícios do século dos em 1521 e integrados nas campanhas de 1559 e a arca é da segunda metade do sé- do período manuelino e muito repintada. XVII, que servia a escadaria (entaipada) de

o mosteiro de santa cruz 126 | 127 Os relevos em calcário de Ançã que, por 1522, Nicolau Chanterene fez para o claus- tro dos crúzios constituem também lição marcante na aprendizagem da encomenda e da mão-de-obra local, rumo a uma plástica erudita de formas e espaços do Renasci- mento. Eram quatro os relevos com os epi- sódios da Paixão de Cristo (temas que exploram a humanidade de Cristo, tão caros à iconografia cristã da época), colocados em cada uma das alas do claustro e encai- xados entre os arcos formeiros da abóbada. OS RELEVOS DE Hoje restam três, entaipado que foi o da NICOLAU CHANTERENE Crucifixão que se encostava à parede da ala poente, junto às dependências camarárias. Em todos se organiza um espaço narrativo entre a multidão de figuras e composições arquitectónicas, numa articulação perspéc- tica em completo domínio de execução. Todos são “emoldurados” lateralmente pelas colunas balaústre que, no ano de 1526, viriam a ser amplamente publicitadas em Toledo pelo tratado de Diego de Sagredo, Medidas del Romano. No plano inferior Abóbada da capela acesso aos andares altos. No extremo norte, dois florões e brasão com a representação das A passagem do escultor francês Nicolau todos assentam sobre uma predela entre na ala poente do claustro do Silêncio de verga recta e datável dos inícios do século chagas de Cristo), o começo da escadaria que Chanterene pelo mosteiro encontra-se duas aletas e preenchida por enrolamentos João de Ruão, XVII, permanece o registo do portal desacti- leva aos andares altos do claustro, o registo bem documentada. Por ele passou não vegetalistas e duas figuras de grutesco c. 1543, mosteiro de vado que fazia a ligação ao claustro da Manga. da porta entaipada que estabelecia comuni- apenas a marcação de um percurso esté- (meninos no relevo do Ecce Homo) que, Santa Cruz cação entre os dois claustros (o da Portaria tico que conduziria à consciência assumida em obediência de simetria, seguram uma Na galeria sul, para além da capela de Jesus e o do Silêncio) e uma das capelas mais in- da cultura humanista do Renascimento cartela, uma caveira ou um escudo (vazio). e da entrada para a sala do capítulo, situa-se teressantes deste conjunto, que conserva mas também a carga de protagonismo do Superiormente, o campo figurativo é rema- a capela com arco do século XVI (de estru- ainda o lambril de azulejos policromos da mosteiro no domínio intelectualizado das tado pelas abóbadas de caixotões perspecti- tura ornada de circunferências e losangos) cultura rococó no século XVIII. Encostada às práticas artísticas de vanguarda remetidas vadas que serviriam de modelo e inspiração e o interior transformado no século XVIII. dependências da Câmara, a capela apresenta à década de 20 de Quinhentos. Para o às coberturas abobadadas que viriam, déca- Apresenta um altar de madeira da segunda um modelo de cobertura abatida com finas mosteiro de Santa Cruz e até aos meados das mais tarde, a ser aplicadas na arquitec- metade do século XVIII, tal como os restos nervuras curvas que, ainda em 1543, era, por da década, Chanterene já tinha executado tura portuguesa. As soluções concheadas de pintura da abóbada e o revestimento de exemplo, utilizado na capela do Sacramento os jacentes dos reis, o púlpito e as escul- dos cantos que resolvem a articulação entre azulejo com os temas da Adoração dos Pas- da igreja de Verride (Montemor-o-Velho), do turas do portal da igreja. Atendendo a as superfícies curvas das abóbadas e as pla- tores e a Fuga para o Egipto. Por aqui come- priorado de Santa Cruz. A datação de Verride outra encomenda na cidade, subsiste tam- nas dos volantes (entendendo os relevos çava a escada manuelina que subia ao andar baliza, portanto, a construção da capela claus- bém o seu trabalho na Sé, para o bispo num pacto com as composições retabula- superior do claustro e cujos degraus ainda tral entre os últimos anos da década de 30 e D. Jorge de Almeida, e no mosteiro de res) não deixariam também de ser utilizadas permanecem no vão da parede, entre a ala os primeiros da década de 40 do século XVI. Celas, para a abadessa D. Leonor de Vas- nos retábulos executados, mais tardia- claustral e a capela-mor. Nem mais nem menos do que o desenvolvi- concelos. Um pouco mais longe, o retábulo mente, por João de Ruão. O entablamento, mento formal da cultura renascentista que, e da capela da igreja do mosteiro de S. Mar- de estrutura racionalizada que integra tam- Na ala poente encontra-se a porta de ligação sobretudo na sequência da reforma de 1527, cos (Tentúgal) oferecia os modelos a reter bém o grutesco (no relevo do Caminho do à Câmara Municipal (em cota elevada de clás- chegaria também ao claustro. Aqui foi colo- para a interpretação humanista do Mundo e Calvario), é coroado por elementos vegeta- sica sobriedade dórica), o acesso manuelino cada a imagem do Profeta Isaías, de João de estimulava Diogo Pires-o-Moço a seguir as listas, frontões, vasos e medalhões, muito à igreja (com verga recortada e ornada com Ruão, retirada do nicho da fachada da igreja. mesmas pisadas. mutilados e já praticamente sem leitura.

o mosteiro de santa cruz 128 | 129 Em todos eles a conjugação de forças entre o século XV como factor decisivo para a “in- Relevo do baixo, médio e alto relevo acentua a eficácia ternacionalização” das artes. No caso do Ecce Homo Nicolau Chanterene, do campo perspéctico e dinamiza as linhas Ecce Homo, a correspondência explícita entre calcário, c. 1522, de acção contidas na cena representada. a gravura sobre o mesmo tema (c. 1480), claustro do mosteiro de Martin Schongauer (The Minneapolis de Santa Cruz Na ala nascente, junto à entrada para a capela Institute of Arts), e a figura que se apro- Ecce Homo de Jesus, encontra-se o relevo do Ecce Homo, xima de Cristo na base dos degraus (Gon- Martin Schongauer, tema amplamente retratado em pintura, e çalves, 2007); ou ainda entre a gravura do gravura, c. 1480 que Chanterene elegeu aqui como metáfora Ecce Homo (1511 – The University of Michi- Ecce Homo da condição humana. A multidão das per- gan Museum of Art) da série da Grande Albrecht Dürer, sonagens que observa Cristo em vários Paixão de Albrecht Dürer e as figuras do gravura, 1511 planos agita-se ou quase parece alhear-se menino nos degraus e do soldado de costas do sofrimento e, portanto, da salvação. provam não apenas a circulação da gravura O enquadramento arquitectónico (conju- à escala europeia mas também a capacidade gando arcos de volta perfeita, pilastras lisas de actualização do mosteiro e de Chante- ou decoradas, entablamentos, a simulação rene face aos desafios da sua contempora- da abóbada e os perfis de interioridade), neidade. responde sempre pela cultura clássica, en- quanto as lanças em riste dos soldados su- O relevo do Caminho do Calvário, inserido no gerem as lições de perspectiva de Paolo extremo nascente da parede da ala norte, en- Uccello. É pela ligação à gravura que este costado ao refeitório, inscreve-se na mesma relevo é mais conhecido. Fonte ininter- atmosfera de humanização, agora em “ruidosa” rupta de modelos aplicados às diversas explosão de espanto e dor estampados no artes plásticas, a gravura funciona desde o rosto dos figurantes que acompanham a cena.

130 | 131 Só nos “volantes”, o menino (à direita) e a do que se passa nos “volantes”) e o predo- Relevo do Virgem e S. João (à esquerda), em soberbo mínio de um campo naturalístico que de- Caminho do Calvário Nicolau Chanterene, tratamento corpóreo e estabelecendo o semboca no monte do Calvário fazem desta calcário, c. 1522, equilíbrio da composição, parecem aceitar o cena no primeiro plano um retrato mais in- claustro do mosteiro destino já traçado. A cidade fortificada que timista, apenas com a presença dos que se de Santa Cruz se observa em segundo plano faz parte de abandonam ao sofrimento provocado pela Relevo da uma estratégia decorativa que encontra afi- morte (representada pela caveira na pre- Lamentação nidades com outros conjuntos europeus, dela). Os figurantes integram, para além de (pormenor), Nicolau Chanterene, particularmente ligados à esfera de influên- Cristo, S. João e a Madalena (à cabeça e aos calcário, c. 1522, cia da cidade francesa de Ruão, a já suspei- pés de Cristo), a Virgem, as santas mulhe- claustro do mosteiro tada proveniência de Chanterene (Moreira, res e, à esquerda, as duas figuras masculi- de Santa Cruz 1991, pp. 256-260). Em Santa Cruz, como o nas (Nicodemos e José de Arimateia), uma faria de modo idêntico nos retábulos da com os instrumentos da Paixão, a outra igreja de S. Marcos, de S. Pedro para a Sé apontando, resoluta, o caminho oposto. Velha ou na Pena em Sintra, a fortificação “anima-se” pela colocação de figuras debru- çadas à varanda.

O jogo entre os motivos arquitectónicos e escultóricos dilui-se no relevo da Lamenta- ção, colocado no topo poente da ala sul, junto à porta de ligação entre a igreja e o claustro. A contenção figurativa, a quase au- sência das micro-arquitecturas (à excepção

132 | 133 A PATARIA E O era entregue à Escola Livre das Artes e do REFEITÓRIO Desenho e à Associação dos Artistas (em 1865). Já no século XX, o espaço era ocu- pado pela Biblioteca Municipal que daqui sairia apenas nos últimos anos do século. O refeitório manteve-se então na tutela da Câmara, adquirindo a designação de “Sala da Cidade” e funciona hoje como es- paço expositivo privilegiado na ligação da comunidade ao núcleo museológico pos- sível no complexo monástico.

OS ANDARES ALTOS A poente, mantém-se o arco de ligação às DO CLAUSTRO zonas da pataria e da cozinha. A pataria identifica-se ainda como o acesso actual para o refeitório, para quem faz a entrada pela porta virada à rua Nicolau Rui Fernan- des. Submetida nos últimos anos do sé- culo XX a uma campanha de escavações arqueológicas, foi possível atingir a sua cota original e recuperar o registo dos vãos laterais ao arco de passagem ao refeitório. O pavimento apresenta-se, assim, a dois níveis ligados por escada de corrimão me- Galeria sul no O acesso aos andares altos do claustro pro- (passando pela grande entrada para o órgão construção do refeitório inscreve-se tálico, registando dois momentos de ocu- piso alto do cessa-se, acompanhado de lambril de azu- resguardada por estrutura de madeira an- no âmbito da reforma espiritual le- pação: o mais baixo, original, coincidente claustro do Silêncio A mosteiro de lejos de “figura miúda”, a partir do arco tiga) e para o Santuário. vada a cabo no mosteiro de Santa com a cota do refeitório e mantendo ainda Santa Cruz quinhentista na galeria poente. Mas, na ala Cruz a partir de 1527 e constitui o espaço registos do primitivo revestimento azule- superior a sul, ainda é visível o registo da protagonista do contrato de obras cele- jar; o superior adaptado à entrada forjada porta manuelina com a escada que fazia a brado logo em 1528. O arquitecto Diogo de no século XIX para o exterior. ligação aos pisos baixos. As galerias supe- Castilho assumiria a responsabilidade da riores estão organizadas num ritmo de arca- construção que implicava também a ampla Substituindo o anterior refeitório manue- rias (três arcos abatidos por tramo) entre os reformulação que estava em curso no inte- lino, localizado na ala nascente do claus- contrafortes e com as colunas assentes rior do mosteiro e integrava, por exemplo, tro, a reforma dos espaços impôs a entrada sobre parapeito baixo. Mantêm-se algumas a formação dos novos claustros da Manga que se identifica no portal de verga recta e das gárgulas originais com claras afinidades e da Portaria. Mesmo que os planos te- estabelece a ligação, em túnel, entre o re- às gárgulas da fachada da igreja. As cober- nham sido forjados nos círculos da Corte, feitório e o claustro. O amplo espaço rec- turas são, como sempre foram, de madeira. seria a Diogo de Castilho que caberia toda tangular do refeitório encontra-se coberto A galeria nascente foi construída na primeira a montagem de um sistema que articulava, por uma abóbada nervurada que, longe de metade do século XX pela DGEMN, no na realidade, a nova concepção dos espa- reivindicar ainda os valores estéticos do mesmo espírito formal e decorativo das res- ços à reforma clerical ditada e imposta in- gótico, projecta um sentido de dinamismo tantes. Esta e a galeria norte estiveram ocu- tramuros. e energia próprios das concepções moder- padas pelos serviços da Biblioteca Municipal nas. Ou seja, as abóbadas de incómoda lei- até aos últimos anos do século XX. Com a extinção das Ordens religiosas ficou tura pelo facto de insistirem na montagem comprometida a funcionalidade de todo nervurada, de configuração recta ou curva, Mantendo algumas dependências desacti- este bloco. Rapidamente, a cozinha e de- têm sido encaradas pela historiografia vadas, é a partir dos pisos altos do claustro pendências anexas seriam absorvidas pelo como portadoras de resquícios góticos e que se tem acesso ao cadeiral no coro-alto edifício camarário enquanto o refeitório incapazes da adaptação aos novos tempos.

o mosteiro de santa cruz 134 | 135 Instalações da Na realidade, continua a ser negligenciada Ao longo das pilastras laterais alinham-se Destaca-se um conjunto de obras em Senhora da Piedade de Antuzede (Dias, Registo de entrada Associação dos a sua adequação prática ao espaço onde finos colunelos balaústre encimados pintura que traduz o elevado nível de qua- 1983, pp. 3-14; Rodrigues, 1995, p. 295). da capela da Ceia Artistas de Coimbra João de Ruão, no refeitório se inserem bem como o carácter simbó- pelas cornijas salientes de volutas que, re- lidade da encomenda e onde estão repre- c. 1530, mosteiro de do mosteiro de lico que envolve esta atitude de extracção cuperando idênticos procedimentos no ter- sentados nomes relevantes da pintura , outro pintor conceituado Santa Cruz Santa Cruz pitagórica e remetida à matematização ritório espanhol, sustentam a arquitrave portuguesa. do mesmo período, e com quem Cristóvão 1935, IC, B-231 Púlpito do refeitório do espaço (Craveiro, 2002, pp. 326-347). decorada com rosetões. Lateralmente à ca- de Figueiredo trabalhou em parceria, está e registo do acesso O refeitório, com quatro tramos organiza- pela subsistem ainda os registos dos púlpi- De Cristóvão de Figueiredo subsiste parte também representado: as cinco tábuas com João de Ruão, dos pela abóbada estrelada em sequência, tos com os respectivos acessos, tratados do retábulo que pintou, entre 1522 e 1530, os temas de S. Vicente, S. Lourenço, Santo c. 1530, mosteiro de Santa Cruz com a presença dos bancos corridos ao ao gosto marcante de João de Ruão, então para a capela-mor da igreja. O Calvário, o António, S. Sebastião e S. Roque (c. 1530) longo das paredes e com a manutenção da ao serviço do mosteiro. Por aqui começa, Ecce Homo e o conjunto dos Apóstolos mostram a finura do desenho em compo- campanha azulejar (azulejos enxaqueta- de facto, um trabalho de articulação com (inscritos depois em medalhões ovalados sições de vibrante cromatismo aplicado à dos) que ainda subsiste, constitui o ele- os extraordinários e conhecidos efeitos du- de talha) falam de uma cultura religiosa pose estudada das figuras. mento mais expressivo de uma política de radouros entre Diogo de Castilho, João de humanizada onde as formas e o espaço, regularização do complexo monástico, Ruão e Hodart. tratado em domínio da perspectiva, se re- Vasco Fernandes, o pintor de também adequada à dimensão do poder e à cultura portam à mestria de um dos mais concei- conhecido como Grão Vasco (Rodrigues, renascentista triunfante no mosteiro. Pelo refeitório estende-se hoje um cir- tuados pintores do reinado de D. João III. 2007) executou em 1535 o Pentecostes, cuito de visita a um espólio que sobrevive As outras tábuas do retábulo andam destinado à desaparecida capela do Espí- No topo nascente o refeitório incorporava no mosteiro. A maior parte das peças agora dispersas pelos museus nacionais rito Santo construída na ala nascente do a capela que albergava o conjunto escul- mais significativas da riqueza crúzia foi, de Machado de Castro e de Arte Antiga claustro da Portaria. É um dos raros exem- tórico da Ceia do escultor Hodart (hoje há muito, distribuída por instituições vá- (aceitando-se integrada neste núcleo a plos em Portugal que mantém a moldura no Museu N. de Machado de Castro), rias que souberam então colher os resulta- Deposição no Túmulo que se encontra no original executada pelo marceneiro João executado entre 1530 e 1534, sendo ainda dos de uma argumentação política e Museu de Lisboa) enquanto as figuras da Alemão. Entre o decorativismo da mol- visível a estrutura arquitravada da entrada, ideológica fundada na salvaguarda patri- Deposição esculpidas por João Alemão dura e o sentido compositivo assumido na em plano elevado sobre o pavimento. monial. foram deslocadas para a igreja de Nossa pintura parece haver um distanciamento

o mosteiro de santa cruz 136 | 137 S. Vicente cultural que é ilusório. Na verdade, en- de radical contenção decorativa e em tudo latinização da autoria, “velascus”, vertida S. Sebastião Garcia Fernandes, quanto a moldura pactua com a carga or- devedor da matéria clássica. O tratamento para o papel que “descuidadamente” se Garcia Fernandes, óleo sobre madeira, óleo sobre madeira, c. 1530, mosteiro de namental de um primeiro Renascimento, das figuras, mais absortas no acto da es- encontra no chão, são ingredientes sempre c. 1530, mosteiro de Santa Cruz transportando consigo a energia dos “mo- crita ou mais agitadas na perplexidade do explorados por uma cultura pictórica que Santa Cruz

Santo António tivos lombardos”, do grutesco e da anima- episódio retratado, ganha força anímica na não é outra coisa senão a cultura plástica S. Roque Garcia Fernandes, ção do espaço pela via da decoração poderosa atitude das duas figuras de pri- do Renascimento. O tema pintado não se Garcia Fernandes, óleo sobre madeira, organizada nos equilíbrios da simetria, a meiro plano, S. Pedro e S. João, e resolve-se encontra, afinal, tão distante da moldura óleo sobre madeira, c. 1530, mosteiro de dinâmica do Pentecostes assenta no im- ainda na cultura humanista do período. que o acolheu e as duas interpretações, jo- c. 1530, mosteiro de Santa Cruz Santa Cruz pulso criativo da ideia materializada que O mistério contido no ambíguo olhar que gando na dualidade discursiva, mais não conjuga religião e saber. No plano centrali- S. Pedro lança ao observador ou nas figu- fazem do que denunciar uma riqueza de zado que acolhe a Virgem e as santas mu- ras que espreitam, semi-escondidas pelos procedimentos alternativos que o Renasci- lheres perfila-se um modelo arquitectónico elementos das arquitecturas, tal como a mento também soube desenvolver.

o mosteiro de santa cruz 138 | 139 O espaço do refeitório alberga ainda ou- autoria de Nicolau Chanterene, destaca-se Pentecostes tros momentos pictóricos remetidos ao sé- ainda o Anjo heráldico do escultor Diogo Vasco Fernandes, óleo sobre madeira, culo XVIII como as grandes telas alusivas a Pires-o-Moço que, com o seu par no 1535, mosteiro de S. Teotónio, em oração perante um altar Museu N. de Machado de Castro, foi colo- Santa Cruz

com a representação da crucifixão e o re- cado por 1518 na guirlanda lateral da igreja. Anjo heráldico gisto da cura milagrosa de D. Afonso Hen- Encontra-se também aqui um conjunto de Diogo Prés-o-Moço, riques. O discurso laudatório contido na escultura de mais pequenas dimensões em calcário, c. 1518, protagonização do primeiro prior do mos- madeira, datável dos séculos XVI (Santo mosteiro de Santa Cruz teiro, seria um caudal sempre alimentado António), XVII e XVIII. pelos crúzios. Tapete persa Os tapetes persas dos séculos XVI-XVII, in- séc. XVII, mosteiro de Santa Cruz Outro núcleo de importantíssima expres- tegrados nas colecções do mosteiro, dão são é o da escultura. Reunindo um espólio conta de uma capacidade financeira articu- que perdeu o seu exacto contexto original e lada com o gosto pelo exótico e pela produ- que andava disperso por várias depen- ção requintada que se captava a Oriente. dências do mosteiro, a sua concentração Tal como as peças de ourivesaria (salien- chama a atenção sobre o papel da imagem tem-se, do século XVI, o porta-paz e o reli- (esculpida neste caso) dentro dos circui- cário-braço de Santo Agostinho, e, do tos monásticos e compreende uma riqueza século XVIII, as custódias de prata e a artística (em grande parte perdida) de que bacia e gomil também de prata) ou os os crúzios nunca se demitiram. Para além ricos paramentos que ainda aqui se con- das três esculturas provenientes do por- servam exprimem bem o grau de sumptuo- tal da fachada da igreja (Santo Ambrósio, sidade decorrente dos actos litúrgicos no S. Gregório e o Apóstolo S. Pedro), da espaço crúzio.

o mosteiro de santa cruz 140 | 141 O CADEIRAL

Cadeiral m 1513 o escultor flamengo Machim desapareceram consumidos pelo fogo ou (pormenor do executou o cadeiral para a capela-mor perderam-se por razões diversas. guarda-pó), Machim, E 1513, mosteiro de manuelina. A construção do coro alto, Santa Cruz por 1531, trouxe a deslocação das cadei- Ajustado à estrutura arquitectónica do Cadeiral ras para o novo espaço, libertando a ca- coro alto e das paredes manuelinas da Machim e pela-mor e permitindo a deslocação dos igreja, o cadeiral de Santa Cruz apresenta Francisco Lorete, túmulos dos reis. Ao mesmo tempo, o ne- complexo e riquíssimo programa icono- 1513, c. 1531, cessário resguardo dos cónegos obrigou à gráfico que não foi ainda totalmente deci- mosteiro de Santa Cruz mutilação do grande janelão sobre o por- frado e que terá, porventura, contado com tal da igreja e ao preenchimento com os a intervenção dos intelectuais afectos ao três nichos exteriores. Adaptando-se ao mosteiro. Nos registos superiores, onde novo espaço criado, as cadeiras foram corre o guarda pó, organizam-se várias então aumentadas com mais oito (quatro cenas alusivas a uma epopeia marítima e por lado) a rematar a sequência, numa conotada com a experiência nacional reme- execução do marceneiro francês Fran- tida às glórias do reinado de D. Manuel. cisco Lorete em sintonia com o trabalho Em alinhamento sequencial e intercalado de Machim. por pequenas figuras em alto relevo, os epi- sódios de conquista e navegação integram Deste período e com a envergadura deste, navios, fortificações, cidades, descendo não existe no país exemplar que lhe possa muitas vezes ao pormenor da identificação corresponder. A maior parte dos cadeirais de igrejas, fontes, pelourinhos... A cada um do Portugal manuelino ou foram destruí- dos registos sobrepõe-se uma coroa dos no propósito de uma substituição aberta com elementos vegetalistas entrela- mais adequada a nova cultura estética ou çados e com remate em forma de cruz com

o mosteiro de santa cruz O SANTUÁRIO

Cadeiral a alcachofra, símbolo perseguido de rege- Santuário tem uma estrutura rec- inscreve o espectáculo que decorre da Retábulo do (pormenor), neração. Em alinhamento inferior, o espal- tangular pelo exterior e formação apresentação das relíquias, agora concen- santuário Machim, 1513, O séc. XVIII, mosteiro mosteiro de dar das cadeiras é o espaço reservado à elíptica no interior, assentando nos tradas em torno de uma circularidade sus- de Santa Cruz Santa Cruz ostentação dos emblemas régios. Sempre andares altos para nascente da capela-mor tentada pela arquitectura. As janelas

Cadeiral em atmosfera de grande exuberância vege- da igreja e com acesso por porta de verga superiores estão organizadas entre os Machim, 1513, talista, aqui se repete a incansável imagem recta com decoração rococó. Construído pares de pilastras que acompanham as pa- mosteiro de do poder identificada pela cruz de Cristo, o para a reunião das muitas relíquias que an- redes, num ritmo que estabelece também Santa Cruz escudo régio e a esfera armilar. davam espalhadas pelo mosteiro, o Santuá- a presença das estruturas retabulares que Cadeiral rio é uma obra com data incerta que se se identificam como altares laterais marca- (pormenor), Em dois planos, inferior e superior, a se- inscreve, seguramente, dentro do século dos pela sequência de mísulas salientes Machim, 1513, quência das cadeiras integra pequenas es- XVIII. O contrato celebrado a 9 de Novem- onde se apoiam as pirâmides relicários. mosteiro de Santa Cruz tatuetas que suportam também a estante bro de 1731 entre o mosteiro e o mestre Gas- O retábulo principal, na axialidade da en- corrida. Representam um universo de do- par Ferreira poderá indiciar uma pista de trada e enquadrado por aparatosas colu- minadores e dominados com figuras de investigação, embora não seja seguro que nas compósitas, dialoga com o que se reis, guerreiros, escravos e prisioneiros. as obras (não discriminadas) que o mestre situa por cima da porta (que integra uma Nenhuma das cadeiras se demite de uma arquitecto se comprometia a seguir, e que forma de gaiola com seis faces de vidro) e estrutura lúdica e fantasiada. A incrível efa- deveriam estar terminadas no prazo de três com outros dois dispostos lateralmente, bulação que acompanha sistematicamente anos, correspondessem à construção do definindo uma linha cruzada dentro do cir- os dois registos do cadeiral, extensível tam- Santuário. cuito oval. Circundando o espaço, e com bém às “misericórdias” dos bancos, joga acesso a partir das quatro molduras infe- um papel decisivo no dinamismo, assim Fosse como fosse, é a cultura barroca de riores às quais faltam já as portadas, en- moralizado, do conjunto e vai longe na re- nítido recorte rococó que preside à cons- contra-se um espaço reservado de funções cuperação de um imaginário de cadeias trução deste espaço oval, na captação de pragmáticas e de acesso aos planos supe- ancestrais. um usufruto de grande dinamismo onde se riores.

o mosteiro de santa cruz 144 | 145 Pavimento da capela O lustre de vidro em amarelo, vermelho e dade de que quem ideou o seu programa do château d’Anet verde, também do século XVIII, comple- fosse conhecedor do Château a escassos Philibert de L’Orme, 1549-1550 menta a luz natural e acentua o brilho da quilómetros da cidade francesa de Dreux ou, composição. A estrutura que o suporta, pelo menos, da sua divulgação feita a partir Desenho do pavimento do igualmente oval e com pendentes em forma do tratado de arquitectura de Jacques An- santuário de pinha, corrobora os requeridos efeitos de drouet du Cerceau (1521-1586), Le premier José Luís Madeira/ grandeza e espectacularidade. No pavi- volume des plus excellents bastiments de Filipe Madeira, 2008 mento, dinamizado por pequenas lajes de France, publicado em Paris, logo em 1576 e Santuário pedra com cor e tamanhos diferenciados, 1579. A estrutura regularizada e organizada séc. XVIII, mosteiro marca-se a disposição oval no plano central à maneira de villa italiana, em íntima e lúdica de Santa Cruz a partir do qual partem as linhas espirais que conexão com a Natureza, que Philibert de organizam o restante espaço. Não sendo L’Orme projectou para Diana de inte- aqui alcançado o brilho que decorre do mag- gra a capela num diálogo permanente entre nífico trabalho de ilusionismo perspéctico as formas geométricas do círculo e do qua- realizado por Philibert de L’Orme na cúpula drado e as linhas rectas ou curvas, definindo e no pavimento da capela do Château d’Anet uma composição em cruz grega rematada (1549-1550), a ideia resulta no mesmo delírio por cúpula e lanternim. O ideário romani- compositivo que marcou tanto a cultura zado e remetido ao jogo complexo de espa- francesa do Renascimento como o barroco ços e formas ganha surpreendente vitalidade transposto para o espaço crúzio de Coimbra. na projecção da cúpula, com correspondên- cia à definição do pavimento. Os efeitos de Não é possível determinar com precisão a trompe l’oeil (que, no século XVII italiano, origem da inusitada solução do pavimento Andrea Pozzo iria elevar à sua mais alta ex- no Santuário, mas é fortíssima a possibili- pressão a partir das coberturas pintadas)

o mosteiro de santa cruz Pirâmide-relicário que decorrem da observação do interior da uma projecção recuperada para o universo Dir-se-ia, talvez, que Philibert de L’Orme possível intervenção do arquitecto-ourives Retábulo-relicário séc. XVIII, mosteiro cúpula de caixotões conjugam-se aqui com cristão, num procedimento construído pelo encontra no Santuário de Coimbra a sua João Frederico Ludovice que, aliás, se encon- séc. XVIII, santuário de Santa Cruz do mosteiro de a ciência da estereotomia remetida à quadra- pensamento e pela literatura do Renasci- mais fidedigna representação portuguesa, tra em Coimbra, em 1727, para fazer um Santa Cruz Sala do capítulo tura do círculo, já testada na visão estática mento e formalizado em textos ilustrados tal como em Santa Cruz se cristaliza a cons- frontal de prata para a capela dos Noviços João Frederico do Panteão que Philibert teria necessaria- como o Hypnerotomachia Poliphili, publi- ciência das formas sem tempo e sem neces- do colégio de Jesus e, entre 1717 e 1725, se Relicário Ludovice, 1717, séc. XVIII, santuário palácio-convento mente visto em Roma. No percurso das he- cado em Veneza, em 1499. sidade de rótulos estilísticos. ocupa da banqueta para a Sé. do mosteiro de de Mafra ranças que desembocam na iconografia Santa Cruz sustentada na capela de Anet ou em Coim- O motivo central no pavimento do Santuá- A concordância (ensaiada também noutros As relíquias do Santuário pertencem a várias bra, também o motivo das linhas entrelaça- rio articula-se com a definição oval que tão espaços do mosteiro) entre a cobertura e a épocas e integram as figuras mais caras ao das (que se estendem a outras zonas do veementemente se lhe sobrepõe a partir da definição do pavimento não deixa de ser ideário crúzio: bispos, papas, apóstolos, Château d’Anet) já tinha sido ensaiado por abóbada mas, a sua natureza oval, transfi- uma solução recorrente ao longo da histó- mártires e diversos santos apostam todos no Miguel Ângelo, por 1537, na Praça do Campi- gura-se num círculo perfeito a quem o ob- ria da arquitectura. Bastará pensar noutros valor da imagem enquanto elemento rege- doglio em Roma (Potié, 1996). Uma ideia, servar a partir da porta da entrada ou da exemplos como a igreja veneziana do Re- nerador que enaltece e dignifica a instituição afinal, transversal ao tempo e que encontra posição oposta, de costas para o retábulo dentor (1577-1592) de Andrea Palladio ou, que os acolhe. Na dinâmica propagandística ainda acolhimento no piso do Santuário em principal. Em contrapartida, a deslocação em Portugal, na biblioteca do Palácio-Con- que está aqui em curso ganham especial Santa Cruz. do observador para os topos de uma linha vento de Mafra ou mesmo na igreja de relevo as relíquias dos mártires francisca- perpendicular a esta dar-lhe-á a dimensão Santa Engrácia (Panteão) (João Antunes, nos de Marrocos (chegadas ao mosteiro em E, numa analogia que não necessita de uma assumidamente ovalada do motivo central 1690), para pressentir uma estratégia de Dezembro de 1220) ou as do primeiro prior, relação de dependência directa, também as do pavimento. As potencialidades “ilusio- complementaridade que não se esgota num S. Teotónio. No espaço que albergava mais pirâmides relicários de Coimbra não deixam nistas” do pavimento decorrem, assim, de tempo determinado. O mentor do programa de mil relíquias, o carácter de grandiosidade de evocar as duas grandes pirâmides que um domínio geométrico rigoroso onde o estabelecido no Santuário de Santa Cruz aqui assumido passava não apenas pela antecedem a entrada da capela de Anet. balanço da métrica estabelecida nos dife- permanece desconhecido mas a relação qualidade devocional dos objectos mas tam- Guardiã da Fé e sustentáculo dos valores da rentes tamanhos das lajes promove uma que se desenha entre este espaço e a sala bém pela quantidade organizada dos ele- cristandade, a pirâmide assume, assim, visão dinâmica sempre em transformação. oval (do Capítulo) de Mafra faz suspeitar da mentos referenciais da Fé.

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