UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARRTES

THINKING OUTSIDE THE LABEL “ABORIGINAL”

Maria Inês do Vale Rocha

MESTRADO EM ESTUDOS CURATORIAIS

2012

II

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARRTES

THINKING OUTSIDE THE LABEL “ABORIGINAL”

Maria Inês do Vale Rocha

MESTRADO EM ESTUDOS CURATORIAIS

Dissertação orientada pelo Prof. Doutor José Fernandes Dias

2012

IV

Resumo

Esta dissertação pretende desvendar os subterrâneos de uma sociedade que se afirma como um lugar pacífico e de grandes oportunidades, a Australiana. A série de conflitos a que se assistiu no seu próprio território com um grupo particular de habitantes, com as políticas opressivas e racistas que tiveram início com a colonização da Austrália e perduraram até ao final do século XX, transformaram uma população pacífica, numa das mais reivindicativas e lutadoras. Esta, luta pelos seus direitos de igualdade sociais, políticos e culturais. Através da persistência em partilhar a sua cultura com o ‘outro’ acabou por conseguir reivindicar um lugar de destaque numa sociedade que a excluía. Observa-se hoje um reescrever de toda a história de um país devido a uma população que se recusou manter na sombra de um com que não concordava. Atualmente a arte apresentada por artistas aborígenes é reputada como uma das mais críticas, conscientes e reivindicativas dentro do panorama da arte australiana. Oferece uma plataforma discursiva constante para o debate de todas as incongruências e paradoxos que afetam não só as população aborígenes mas todo um país. É não só considerada como o movimento artístico mais bem-sucedido na Austrália, mas o que toda a arte australiana sempre aspirou ser.

Palavras-chave: Arte Contemporânea, Arte Aborígene Australiana, Ativismo, Identidade, (Pós) e Colonialismo, Sobrevivência.

I

Abstract

This thesis aims to uncover what subsists under a society that sees itself as a peaceful and prospectful one - the Australian. The series of conflicts, focused on a specific group of inhabitants, targeted with racists and oppressive politics, had it start in the beginning of Australia’s colonization and persisted until the end of the 20th century. These have transformed a peaceful population into one of the most vindictive and battler ones that have been fighting for their equal rights in society, politics and culture. Through their perseverance in sharing their culture with the “other” they were able to secure a prominent place in a society that had excluded them. We are now facing a country’s story been rewritten as a consequence of the actions of a population that refused to stay in the shadow of a country which politics they did not agree. Nowadays the art presented by these aboriginal artists is reputed as one of the most critical, conscientious and vindictive inside the Australian art field. It offers a critic discursive platform that debates the incongruities that are affecting not only the aborigines’ populations but also the entire country. It is considered not only as the most successful artistic movement in Australia, but also what Australian art has always aspired to be.

Keywords: Contemporary art, Aboriginal Australian Art, Activism, Identity, (Post) Colonialism, Survival.

II

Agradecimentos

Quero agradecer o precioso apoio prestado das seguintes pessoas. Em primeiro lugar ao meu orientador de mestrado Prof. José Fernandes Dias pelo tempo disponibilizado e pelos valiosos conselhos académicos e partilha de sabedoria; ao Nelson Santos pelo carinho e paciência demonstrada e por fim à minha família por todo apoio prestado.

Por ordem alfabética, agradeço ainda pelo apoio, fornecimento de documentação e opinião sobre o estado da arte australiana, especialmente no que se concerne às diversas problemáticas que a Arte “Aborígene” tem vindo a enfrentar ao longo dos tempos: Karla Dickens, Damien Smith, Djon Mundine, Djambawa Marawili, Jenni Kemarre Martinello, Karen Casey, Margo Neale, Reko Rennie, Yhonnie Scarse.

III

Siglas

AAA – Aboriginal Artist's Agency (Agência para Artistas Aborígenes), criada em 1976. AAB – Aboriginal Arts Board (Comissão para as Artes Aborígenes), criada em 1973. AAAC – Aboriginal Art's Advisory Committee (Comissão para a Arte Aborígene), criada em 1970. AAC - Aboriginal Arts and Crafts (Artes e Artesanato Aborígene) criado em 1971. ACA – Australian Council for Arts (Concelho Australiano para as Artes), criado em 1968. ACT – Estado de Australian Canberra Territory (ACT), abarga a capital Canberra. ADC – Aboriginal Development Commission (Comissão do Desenvolvimento Aborígene), substitui DAA em 1980, estando ativa até 1989. AGSA - Art Gallery of South Australia. AGNSW - Art Gallery of New South Wales. ANZUS – ANZUS (das inicias dos topônimos na língua inglesa Australia, New Zealand e United States) é a sigla pela qual ficou conhecido o tratado celebrado por Austrália, Nova Zelândia e Estados Unidos da América, formando uma aliança militar defensiva no Pacífico Sul. Criada em 1951, com sede em Canberra, Austrália. Com a finalidade de uma aliança militar tripartido, comprometida a revidar qualquer agressão direta aos seus membros. ATSIC – Aboriginal and Torres Strait Islander Commission (Comissão para assuntos Aborígenes e das Ilhas de Torres Strait), substitui a DAA e a ADC em 1989. ATSIS – Aboriginal and Torres Strait Islander Services (Serviços para assuntos Aborígenes e das Ilhas de Torres Strait) assume algumas das responsabilidades ATSIC em 2003, deixando de existir em 2005. CAA – Council for Aboriginal Affairs (Concelho para os Assuntos Aborígenes);Ativo entre 1967 - 1973. DAA – Department of Aboriginal Affairs (Departamento dos Assuntos Aborígenes), substitui OAA em 1973, estando ativa até 1980. G20 – O Grupo dos 20 (G20) é um grupo formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia. NSW – Estado New South Wales.

IV

NACC – National Aboriginal Consultative Committee (Comité Consultivo Nacional Aborígene), substitui CAA em 1973 estando ativa até 1977. NAC – National Aboriginal Conference (Conferência Nacional Aborígene), substitui NACC em 1977, estando em funcionamento até 1985. NGA – National Gallery of Australia. NGV - National Gallery of Victoria. NMA - National Museum of Australia. NT – Estado de . OAA – Office for Aboriginal Affairs (Gabinete de Assuntos Aborígenes); ativo entre 1967 - 1973. ONU – Organização das Nações Unidas (ONU), ou simplesmente nações unidas (NU), é uma organização internacional cujo objetivo declarado é facilitar a cooperação em matéria de direito internacional, segurança internacional, desenvolvimento econômico, progresso social, direitos humanos e a realização da paz mundial. OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), é uma organização internacional de 34 países que aceitam os princípios da democracia representativa e da economia de livre mercado. Os membros da OCDE são economias de alta renda com um alto índice de desenvolvimento humano (IDH) e são considerados países desenvolvidos, exceto México, Chile e Turquia. OMC – Organização Mundial do Comércio (OMC) é uma organização internacional que trata das regras do comércio internacional. Em inglês é denominada World Trade Organization (WTO) e conta com 156 membros à data de dezembro de 2011. QLD – Estado de Queensland. SA – Estado de South Australia. TAS – Estado de Tasmania. VIC – Estado de Victoria. WA – Estado de Western Australia.

V

a

a Michael Aird, Vincent Brady leads a protest march, série Everybody is important: Elders, Leaders and Other Important People, 1987.

VI

Índice Geral

Resumo ...... I

Abstract ...... II

Agradecimentos ...... III

Siglas ...... IV

Índice Geral ...... VII

Preâmbulo ...... IX

I. INTRODUÇÃO ...... 1

II. DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE AUSTRALIANA ...... 3

II.I. “Australia is a happy country, paradise on earth with smiling people" ...... 3

II.I.I. A construção do país ...... 3

II.I.II. O passado negro ...... 7

II.I.III. Austrália multicultural ...... 14

II.II. “There is nothing like Australia...to try something new “ ...... 21

III. DESENVOLVIMENTO DA ARTE ABORÍGENE: “Mina de Ouro” para balandas. .... 37

III.I. The dawn of Art ...... 37

III.II. De primitiva a Fine-Art ...... 39

III.III. Arte Aborígene como Fine-Art ...... 42

III.IV. Novos desenvolvimentos: Papunya Tula e o papel do Governo no impulsionamento da Arte Aborígene ...... 44

III.V. Um novo rótulo: Arte Aborígene Contemporânea ...... 48

III.VI. Bicentenário da “Invasão” Australiana ...... 50

III.VII. Arte Aborígene na Voga ...... 54

III.VIII. O mercado da Arte Aborígene ...... 55

VII

III.IX. O Triângulo do Desconforto ...... 56

IV. ARTE ABORÍGENE URBANA ...... 59

IV.I. Uma arte criticamente consciente ...... 59

IV.II. Artistas Aborígenes Ativistas ...... 63

V. CONCLUSÃO ...... 85

VI. ÍNDICE DE IMAGENS ...... 87

VII. ÍNDICE DE QUADROS ...... 89

VIII. BIBLIOGRAFIA ...... 90

IX. ANEXOS ...... 93

IX.I. Anexo 1 - Discurso do Primeiro Ministro Kevin Rudd (2008) ...... 93

X. NOTAS E REFERÊNCIAS ...... 95

VIII

Preâmbulo

A vontade de tentar conhecer o ‘outro’, experienciar e aprender, leva-me a tentar sair da minha realidade aprendida e penetrar no que me provoca. Esta vontade de olhar e sentir faz com que procure, descubra e estude para que adquira um conhecimento sobre o que me rodeia, para que posteriormente possa reparti-lo para com quem deseje entender um pouco mais do mundo de pessoas que cruzam diariamente as nossas “bolhas individuais“/realidades.

Esta dissertação de mestrado resulta de uma destas vontades. De estar disponível para observar o que me rodeava, num dos países que me despertara uma necessidade de desvendar para além da superfície de uma sociedade aparentemente perfeita; e através da análise de uma prática artística, que se debruça sobre alguns dos conflitos que residem nesta sociedade, procurar conhece-la.

Em 2011, auferi uma bolsa para realizar um estágio profissional na Austrália. Esta bolsa permitiu-me estagiar como assistente de curadoria no Canberra Contemporary Art Space. ‘Inocentemente’, como todo aquele que idealiza um lugar que nunca experienciou, também eu percorri os ares até aterrar em Sydney com uma ideia pré-formatada deste imenso país. Os slogans que ecoavam detinham uma posição de relevo na minha imaginação: paisagens naturais, mares, praias, vida selvagem e uma cultura ancestral que chegava mesmo a ter representações artísticas ainda mais remotas que as pinturas de Lascaux ou as do Vale do Côa. Ao vaguear pela primeira vez na cidade de Sydney, deitei-me na relva do Royal Botanic Gardens. Ao observar o céu, vi que toda aquela paisagem estava rodeada por enormes e cinzentos arranha-céus que desviam o nosso olhar para que os contemplássemos. Aqui, tive a nítida sensação que possivelmente estaria num lugar que realmente detinha uma forte identidade territorial e cultural mas, que estava como que como submerso ou oprimido, por uma vontade que de conquistar uma oportunidade de se destacar no mundo.

Este tipo de estágios tem como uma das suas finalidades conhecer e apreender o atual mercado de trabalho e extrair algo útil para um futuro profissional. Deste modo, a instituição IX que me acolheu era considerada uma entidade que procurava gerar, apresentar e promover a arte contemporânea australiana inovadora - seria uma oportunidade para conhecer um pouco da prática artística deste país. Nas primeiras semanas experienciei o meu primeiro contacto direto com a dita “arte urbana aborígene contemporânea”, através das três exposições simultâneas que esta instituição estava a preparar. Aqui infelizmente, deparei-me com a hipocrisia, desrespeito e preconceitos que muitos australianos ainda têm sobre a cultura e povo aborígene, e constatei que uma das grandes razões de se exibir este tipo obras na Austrália, não está relacionada com sua qualidade ou relevância artístico, mas sim com a imagem que possivelmente se atribui à instituição que as acolhe. Das instituições e do governo australiano, que afirmam apoiar a prática artística produzida por aborígenes, a maioria apenas pretende continuar a explorá-los, de modo a conquistarem públicos e obterem benefícios

Ao deparar-me com esta controvérsia, senti-me motivada a iniciar uma pesquisa sobre os possíveis conflitos históricos, económicos e/ou socioculturais que pudessem estar na origem destes comportamentos por parte da sociedade; e sobre a separação que existiria entre arte australiana e a aborígene, e o papel que a prática artística ‘aborígene’ contemporânea detinha dentro deste cenário obtuso.

Note-se que para não ferir subtilidades sempre que se referir nesta Dissertação de Mestrado a denominação – Aborígene ou Indígena Australiano – é uma referência à população Aborígene Australiana e das Ilhas de Torres Strait.

X

“Please forget about freedom, it doesn’t exist”

Ingrid Jonker

XI

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I. INTRODUÇÃO

A dissertação Thinking outside the label ‘aboriginal’ tem como objetivo apresentar os efeitos que se prescreveram na arte e sociedade australiana que resultaram numa mudança total dos paradigmas globais que definiam o que era arte contemporânea. Esta pretende retirar o rótulo de “aborígene”, que a sociedade australiana criara ao segregar esta população; e assim, apresentar a arte aborígene out of the box, como uma arte simplesmente contemporânea, um reflexo de uma sociedade atual. Apesar desta intenção, é difícil falar desta arte sem utilizar o rótulo de aborígene, dado que é a único mecanismo disponibilizado pelo mundo da arte para focar esta prática artística especifica. Mesmo a nova geração de artistas que estão completamente inseridos no mercado de arte contemporânea, vêm a sua arte catalogada como arte ‘urbana’ aborígene. Esta pode indicar não só os elementos que caracterizam este tipo de arte, mas igualmente a identidade e localização geográfica do artista. Existe portanto, uma continua divisão entre “classes”, onde estes artistas são inseridos num grupo distinto, resultante de uma marginalização, embora por vezes denominada de ‘discriminação positiva’.

Para entender esta divisão é necessário analisar o contexto no qual foram concebidos os parâmetros da mesma, que têm início aquando a colonização da Austrália e, nos problemas gerados pelas diversas políticas discriminatórias que a Austrália impôs ao longo do tempo. A ideia atual da Austrália, uma imagem imaculada de um sítio paradisíaco é aqui escrutinada, trazendo à superfície os fantasmas e a história negra de um país colonizado. Paralelamente são apresentados os problemas de identidade que emergem desta união forçada de povos e que constituem um dos contínuos dilemas que este país ainda se defronta.

Esta dissertação ramifica-se em três grandes núcleos, Desenvolvimento da sociedade australiana, Desenvolvimento da arte aborígene e Arte aborígene urbana.

O primeiro capítulo, Desenvolvimento da sociedade australiana, pretende apresentar uma contextualização histórica da evolução da sociedade australiana, desde o momento colonial até aos dias de hoje. A secção Australia is a happy country, paradise on earth with smiling 1

people é responsável por descortinar o modo como este país é percecionado e deslumbrado internacionalmente, ao mesmo tempo que contrabalança os factos históricos que provocam os conflitos com a população indígena, supostamente inexistente. Explora a criação da sociedade australiana, com os seus ideais racistas, e a sua evolução até aos dias de hoje, onde é catalogada como uma sociedade multicultural. A seguinte, There is nothing like Australia...to try something new, começa por aprofundar a problemática da identidade na Austrália, e o confronto existente com o seu passado. Nomeadamente a problemática da usurpação de terras de um povo, e a consequente tentativa de aniquilação do mesmo. Um passado histórico identitário que qualquer nação tencionaria esconder. O texto desenvolve a problemática desta usurpação a as suas consequências na vida dos povos indígenas australianos. O desenvolvimento do turismo na Austrália é também aqui analisado em detalhe. Um assunto aparentemente desconecto da arte, mas que está associada não só à evolução da identidade do “australiano”, mas também às razões para a devolução de terras a esta população, e à consequente criação de um mercado de arte aborígene.

O capítulo seguinte, Desenvolvimento da Arte Aborígene, aborda o desenvolvimento da arte aborígene, desde os paradigmas primitivos até aos dias de hoje. A razão da evolução da arte aborígene é examinada, bem como a sua aceitação no mundo da arte contemporânea e da arte australiana. Por um lado, analisa-se a arte de um ponto de vista comercial, identificando- se os principais impulsores desta arte, revelando o papel significativo do Governo Australiano nesta matéria. Por outro, existe uma investigação do ponto de vista teórico, que foca os principais acontecimentos nacionais e internacional, que acabaram por influenciar o modo como o governo e a massa crítica australiana encaravam a população aborígene e sua respetiva cultura.

O terceiro capítulo, Arte Aborígene Urbana, faz a contextualização desta prática artista, apresentando a sua evolução histórica e as principais diferenças pela qual esta arte se destaca das restantes. Este aborda o modo como a arte aborígene “urbana” reflete, questiona e provoca um repensamento da sua própria prática artística, apresentando o carácter político e ativista que a caracteriza como a arte mais reivindicativa e consciente dentro do panorama artístico australiano.

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II. DESENVOLVIMENTO DA SOCIEDADE AUSTRALIANA

II.I. “Australia is a happy country, paradise on earth with smiling people"1

II.I.I. A construção do país

A Austrália é provavelmente um dos países com uma maior frequência nos rankings top 10 do mundo, sendo avaliada por muitos como um dos melhores lugares da Terra para se viver2. Tal é devido a diversos fatores, como o rendimento monetário, saúde, benefícios sociais, oferta cultural e direitos humanos, sendo ainda o segundo país com o maior índice de desenvolvimento humano do mundo3. A nível económico, é também considerada uma das grandes potências do mundo de hoje, estando associada às grandes transações comerciais e frequentemente inserida em decisões sociopolíticas e económicas significativas que afetam consequencialmente inúmeros territórios, sendo um dos países membro do G20, Comunidade das Nações (The Commonwealth of Nations), ANZUS, OCDE, OMC ou da ONU4. Pelo que está associada a inúmeras campanhas de ajuda humanitária. Para quem pretende imigrar, este país é sem dúvida um dos destinos mais cobiçados, sendo considerado como um “Paraíso na Terra” para quem procura uma vida melhor. Contudo apesar deste fantástico panorama repleto de “boas novas” que ecoam sobre este território, a edificação da Austrália enquanto país ou nação, tal como acontecera em muitos outros territórios que foram colonizadosb, foi bastante tumultuosa. Estas múltiplas incongruências conflituosas, que ainda residem e persistem, estão maioritariamente interrelacionadas com as comunidades “Indígenas australianas”, que conseguiram sobreviver às diversas atrocidades que se perpetuaram por gerações após gerações, após a apropriação do Continente Australiano para o Império Colonial Britânico em 1770, através da incorreta

bAqui subentende-se que a palavra ou expressão “colonização” é utilizada não só no uso e significados estandardizados, como uma palavra que traduz no seu significado genérico uma conquista de um povo a outro; mas no caso desta dissertação poderá também ser compreendido como uma sociedade contemporânea que ainda insiste ou persiste em utilizar e abusar do seu poder enquanto maioria sobre a minoria do povo autóctone, continuando a explorar, repreender e discriminar a diversos níveis sociais, culturais, políticos ou mesmo humanos o povo que “afirmou” ter sido “conquistado” noutros tempos.

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classificação do território como Terra Nulliusc,um território sem habitantes, e portanto sem dono. Esta classificação quase que poderia ser verdadeira, se não exxistissem antes da sua colonização, entre 300.000 a 750.000 aborígenes a habitar o território australiano5. Tal como em qualquer território que é forçosamente espoliado pelo poder que procura imperar sobre ele, observamos uma quase aniquilação da população indígena, intencional ou em consequência da presença dos novos habitantes. O número de indígenas foi reduzido na melhor das hipóteses para uns insignificantes 75.000 (10%) na década de 1920, sendo que atualmente o número ronda os 410.000 aborígenes. Um valor aindda inferior ao máximo estimado aquando da colonização, e que apenas corresponde aproximadamente a 2.2% da população total atual6. O número de línguas aborígenes também representa a diminuição da diversidade de povos aborígenes. Estima-se que antes da colonização falavam-se cerca de 250 línguas (Figura 1) sendo que hoje apenas cerca de 19 línguas autóctones se podem considerar em uso, e incrivelmente somente cercca de 10% da população aborígene fala a sua língua indígena7 (Quadro 1).

Figura 1 - Mappa da Austrália: 250 povos e línguas aborígenes australianas8.

c Terra Nullius é uma expressão latina decorrente do direito romano que significa "terra que pertence a ninguém", terra de ninguém, ou seja, terra vazia, desolada, aplicando o princípio geral do res nullius aos bens imóveis, em termos de propriedade privada ou como território ao abrigo do direito público”.

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Quadro 1- Línguas Indígenas ou Crioulo falado na Austrália (1996)

LÍNGUAS INDÍGENAS OU CRIOULO FALADO NA AUSTRÀLIA 1996910 Língua Número de pessoas que falam a língua Línguas Indígenas 44,000 Arrernte (Aranda) 3,800 Dhuwal- 3,600 Warlpiri 2,700 Pitjantjatjara (b) 2,100 Tiwi 1,800 Alyawarr (Alyawarra) 1,400 Murrinh-Patha 1,400 Kunwinjku (Gunwinggu) 1,400 Anindilyakwa 1,200 Anmatyerr (Anmatyirra) 1,200 Crioulo Australianos 4,200 Crioulo 2,200 Crioulo Torres Strait (Broken) 1,700 Total 48,200

O povo aborígene, devido à própria categorização unificadora de aborígene, é muitas vezes compreendido como um único povo, no entanto, o próprio indicador da pluralidade linguística e a sua dispersão territorial pelo vasto continente, leva-nos a confirmar a multiplicidade de sociedades, cada uma com as suas regras, tradições e língua. Tais fatores acabaram por dificultar a compreensão dos povos aborígenes pelo colonizador, que os via como um único, e que os tratava como tal. Esta noção e comportamento acabam por se perpetuar no inconsciente dos australianos nos dias de hoje. A própria conceptualização unificadora atual do continente australiano como um único país facilita por outro lado a idealização da existência de um único povo aborígene. No entanto, esta suposição da existência de um só povo na Austrália, um país que possui uma dimensão quase superior a todo o continente europeu, seria tão errado como assumir que os povos da Europa seriam um só.

Ao longo do tempo foram postas em prática várias ações por parte do governo colonial com o intuito de suprimir a população indígena de forma a apropriar-se livremente dos seus recursos naturais. A primeira foi de tentar empurrar estes povos dos terrenos férteis para zonas inóspitas, através da força ou ameaça. Esta simples apropriação de terrenos férteis adjacentes e a sua exploração para a pastorícia, obrigava à realocação dos povos 5

aborígenes em zonas circundantes, dado que esta prática resultava na poluição de furos, poços de água, afetando não só as propriedades potáveis da água, mas igualmente a vida animal, ambas necessárias à sobrevivência do povo indígena.

Do ponto de vista ocidental, na antiga historiografia, a Austrália era considerada uma nova terra, que não possuía qualquer história, uma autêntica tábua rasa onde seria possível formar não só uma nova nação, mas também um lugar onde se poderia reiniciar uma vida, envolvida por uma fantástica e fértil paisagem11. Os ideais políticos que dominavam na altura da proclamação da independência da Austrália, em 1901, e de algum modo perduraram até ao final do século XX, acabaram por definir as principais ideologias e itinerários que tornaram este país o que é atualmente. Este período inicial foi dedicado à construção da sua identidade enquanto nação, uma identidade que fosse para o “colono” algo cómodo e sem dúvida exclusivamente branca!

Segundo Geoffrey Stokes12, a Austrália foi idealizada de acordo com nove ideais e princípios13, que esboçavam os valores que acreditavam ser necessários para atingirem uma democracia estável e pacífica, quer ao nível humano, social, político, religioso ou económico. O estabelecimento de tal nação era sustentado, no entender dos seus fundadores, pelo facto de o território estar supostamente vazio de habitantes - o princípio de Terra Nullius - o que possibilitava a criação de uma nova sociedade, branca e dominada pelo homem - respectivamente os ideais White Australian e Masculinism. Esta nova sociedade acolheria conceitos como a democracia, estado secular, e apoiaria os seus cidadãos através de benefícios sociais, ao mesmo tempo que promoveria o desenvolvimento económico do país. Estes últimos ideais, que aparentemente protegem e respeitam a condição humana, eram circunscritos apenas aos que se inseriam no seu molde de cidadão, segundo os seus padrões.

A Austrália não era de facto um território vazio, sendo que os seus habitantes nativos não se enquadravam neste molde, cimentado por ideais racistas. Por tal, foram considerados seres inferiores e foi-lhe negado o direito de ter direitos. Esta política é a White Australia, oficialmente aprovada em 1901, no mesmo ano da independência da Austrália, que tal como o nome indica se refere a uma Austrália exclusivamente Branca. Ao contrário dos objetivos que pretende atingir, nomeadamente ao nível humano e social, esta política encontra-se

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assente em ideologias racistas e discriminatórias. Tendo em conta o facto de existirem indivíduos nativos estabelecidos no território, a sua aceitação e implementação pelo estado Australiano acaba por demonstrar o seu objetivo de erradicação de toda e qualquer raça que não a branca, criando consequentemente uma identidade racial australiana exclusivamente branca. Estes discursos de uma identidade branca, seriam reforçados através da criação de diversas restrições, quer ao nível de direitos humanos, civis e sociais, no que concerne ao povo indígena australiano; e adicionalmente migratórias, no sentido de limitar futuramente a entrada e aceitação de pessoas de cor na Austrália, algo que iria perdurar durante mais de 70 anos.

II.I.II. O passado negro

O sentimento generalizado no final do século XIX na Austrália, antes da sua independência, é que era impossível domesticar ou civilizar estes povos aborígenes segundo os padrões de bom senso, e deste modo inexequível integrá-los na sociedade e cultura britânica. A crescente percentagem de mestiços na população aborígene, resultante das relações entre colonos e indígenas, apresentou um novo desafio para os governantes da Austrália. A solução para o problema dos indígenas estava agora firmada numa nova justificação, baseada na própria existência deste novo grupo de indivíduos - denominados half-castd. Aos olhos do governo, pelo facto de possuíram uma fração de sangue branco, já merecedora e possível de ser educada, atribuía-lhes o direito e o dever de os “acolher”.

Um dos princípios fundadores da nação, o Welfare Minimalism, na qual o estado tem a responsabilidade social de cuidar aqueles que são pobres ou vulneráveis, seria a justificação para realização de um vasto processo de remoção de crianças, não só half-cast mas também sangue puro, no sentido de acelerar a erradicação deste povo. A visível atenuação da fisionomia aborígene nos half-cast, resultante da fusão de aborígenes e brancos - na terceira d Half-Cast: significa na tradução direta para a língua portuguesa, os meia-casta ou mestiços. Esta denominação foi utilizada pelo governo Australiano, para se referir à população mestiça aborígene australiana. Nesta dissertação decidiu-se utilizar a expressão anglo-saxônica “half-cast”, pois acredita-se que é a mais indicada, para realçar os ideais e metodologias empregadas pelo Governo Australiano durante aquele período.

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geração os traços aborígenes estariam quase erradicados - levou a crer que seria possível eliminar qualquer traço indígena. Assim, e segundo o governo, a inclusão dos aborígenes “puros” nesta estratégia, e a sua consequente reintrodução na sociedade branca iria acabar por promover a fusão de povos, evitando o prolongamento da raça aborígene.

Esta estratégia de assimilação forçadae, dissimulada em boas intenções, mas com o objetivo de suprimir a população negra australiana, é posta em prática através de diversas políticas de assimilação. Consistiam primordialmente na remoção de crianças aborígenes das suas famílias, a sua encarceração em abrigos a milhares de quilómetros de distância da sua família, limitando quaisquer hipóteses de fugirem e dificultando qualquer contacto com familiares aborígenes, e por fim a sua introdução na sociedade branca. Sendo continuamente controlados em aspetos como o trabalho, casamento e família aborígene. Não existe consenso sobre a idade à qual estas crianças eram separadas das famílias, mas especula-se que seria o mais precocemente possível. Uma criança mais nova ainda não tem os seus hábitos, linguagem, tradições e laços familiares criados, indo portanto de encontro com os próprios objetivos do processo de assimilação, que procurava retirar a sua “aboriginalidade“.

Quadro 2 - Idade das crianças retiradas das famílias, no estado de New South Wales (NSW), entre o ano de 1907 e de 1932.

STOLEN GENERATION EM NSW (1907-1932)14 Idade Número Percentagem de Crianças 0 – 5 74 10.6 % 6 – 12 158 22.6 % 13 – 19 462 66.0 % 20 – 21 6 0.9 %

A pouca informação oficial disponível, nomeadamente a relativa ao estado de New South Wales (NSW), no período compreendido entre 1907 e 1932 (Quadro 2), aponta para uma

e As Politicas de Assimilação foram oficialmente aplicadas sensivelmente até ao final dos anos 60 e tinham como função “integrar” os “não-puros indígenas” (entenda-se indivíduos que não fossem 100% indígenas) na sociedade branca australiana, se bem que também incluiu aborígenes “puros”. Acreditava-se que após a sua integração entre a população branca, a presença visível da raça aborígene seria completamente anulada após sensivelmente três gerações de fusão com “sangue branco”.

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idade média entre os 13 e 19 anos, onde os agora jovens já se encontravam numa idade adulta de acordo com as tradições culturais indígenas. Tal não vai de encontro com a maioria das fontes, que indicam que por volta dos dezoito anos eram libertos na sociedade branca15, o que acabava por deixar um curto período para a sua ‘reeducação’. A enorme polémica gerada em torno desta Stolen Generation pode explicar a quantidade limitada de informação disponível. No sentido de evitar um acréscimo dos conflitos legais levantados contra o estado australiano, a informação disponibilizada é limitada.

Por um lado, o facto de serem retiradas muito novas, contribui para o sucesso da assimilação da cultura branca, fomentando a quebra por completo dos laços com as suas origens indígenas, ao não recordarem quer do seu território onde nasceram, quer da sua família ou comunidade. Estas crianças vulgarmente recebiam um novo nome anglo-saxónico, o que contribuía para a formação de uma identidade de acordo com os valores e normas australianas. Por outro lado, ao serem retirados numa fase semi-adulta, a resistência seria mais forte e a probabilidade de uma reeducação ‘positiva’ seria menor.

Segundo políticas sem qualquer enquadramento legal, muitos aborígenes foram retirados pelas autoridades e colocados em ‘abrigos educativos’, até que em 1909, a ação é legitimada através da aprovação da lei Aborigines Protection Act. Embora este ato tenha sido criado para proteger o aborígene das condições de quase escravatura em que se encontrava, nomeadamente nas quintas, este ato em vez de punir as ações praticadas acaba mesmo por dar mais poder às organizações governamentais que controlavam a vida da população aborígene. Cada estado passou a ter um Chefe Protetor dos Aborígenes, que tinha plenos direitos legais sobre a população aborígene. Este guardião oficial de todas as crianças dentro da área geográfica do seu estado, definia quem era removido das suas famílias aborígenes ou mesmo quem se podia casar e com quem.

Os “abrigos”16 onde as crianças eram colocadas, tinham como objetivo ‘benévolo’, o de disponibilizar todo o conhecimento e valores que a cultura australiana tinha para oferecer. Às crianças eram ensinadas os bons costumes ocidentais, sendo cristianizadas, educadas e aprendiam um ofício, para que posteriormente pudessem contribuir positivamente para a sociedade australiana branca, sendo colocadas em casas de famílias australianas brancas após a sua “libertação”. As raparigas eram por norma treinadas para serem empregadas

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domésticas e os rapazes para trabalharem nas quintas. Se por um lado as políticas de assimilação pretendiam oferecer uma integração destes aborígenes na sociedade, ao serem tomados em conta os ofícios oferecidos e as consequentes oportunidades de trabalho e papel na sociedade, observa-se que de facto estes indivíduos são colocados a um nível inferior. Essencialmente postos a servir as necessidades dos indivíduos brancos, de forma semelhante aos escravos africanos levados para as colónias nas Américas.

Nestes ‘abrigos educativos’ que existiam por todo o país (Figura 2), as regras impostas eram extremamente rigorosas e tinham como objetivo reprimir qualquer conexão com a cultura aborígene, entre elas, a proibição de falar qualquer língua que não a inglesa. O cenário que se vivia neste período é bem retratado no filme Rabbit Proof Fencef. Por um lado, descreve as tristezas e as ansiedades que estas políticas infligiam em muitas comunidades aborígenes, que viram as suas crianças retiradas, ou que viviam diariamente com a angústia de tal possibilidade. E por outro, a forma como a sociedade branca australiana encarava e praticava estas políticas de assimilação.

As gerações que provieram do resultado destas iniciativas do governo australiano são usualmente designadas como “Lost Generation” ou “Stolen Generation”g. A maioria dos indígenas submetidos a este tipo de ações, perderam por completo o contacto com as suas raízes culturais e identitárias. Estas políticas de assimilação continuaram oficialmente até aos anos 70, e calcula-se que entre 1910 e 1970 cerca de 50.000 crianças foram retiradas à força das suas famílias, muitas das quais com idades inferiores a cinco anos17. As estatísticas oficiais, apontam para cerca de 6.200 crianças entre 1883 a 1969 somente no estado de NSW. Segundo o relatório da Australian Bureau Statistics, em 1994, um em cada dez aborígenes com mais de 25 anos de idade foram anteriormente retirados das suas famílias.18 Um relatório elaborado em 1997, “estima que uma em cada três crianças aborígenes e uma em cada dez crianças half-cast tenham sido retiradas das suas famílias fO Filme “Rabbitt Prood Fence” de Phillip Noyce é baseado no livro Follow the Rabbit-Proof Fence de Nugi Garimara, conta a história verídica de três crianças “half-cast” (Molly, Gracie e Daisy), descentes de Aborígenes do território de Jigalong, situado no Norte-oeste Australiano. Estas 1931, foram retiradas à força da sua família e transportadas por 2.400 Km e recolocadas no Moore River Native Settlement, a norte de Perth. Tendo conseguido fugir deste “Abrigo” percorrem sozinhas todo o caminho de regresso a Jigalong durante 9 semanas, tendo como orientação as vedações “para coelhos”. g Geração Perdida ou Geração Roubada.

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entre 1910 e 1970, para serem educadas por famílias brancas”.19 Aqui observa-se que a proporção de remoção de aborígenes puros supera mesmo a proporção de half-casts.

Figura 2 - Mapa elucidativo da localização dos “abrigos educativos” – Western Australia (WA), Northern Territory (NT), South Australia (SA), New South Wales (NSW), Victoria (VIC) e Tasmania (TAS).20

Apesar destes incontornáveis factos, a maioria dos governos australianos recusaram assumir publicamente toda a violência a que sujeitaram deliberadamente a população indígena australianaa. O Primeiro-Ministro John Howard (Governo Conservadoor) chegou mesmo a

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afirmar, durante o seu mandato entre 1996-2007, que se recusava a pedir desculpas oficiais pela “Stolen Generation” pois isso poderia provocar “intermináveis” pedidos de indemnizações. Ao contrário destes ideais, Michelle O´Byrne, do Governo da Tasmania (TAS) afirma em 2006, que uma “compensação financeira não resolve o passado, mas é uma forma de pedir desculpa”, desobstruindo no mesmo ano cerca de 5 milhões de dólares para compensar alguns casos da Stolen Generation. No entanto, os requerentes tinham de prestar provas de terem sido retirados das suas famílias entre 1935 a 1975 e pelo menos durante 12 meses.

No mandato de John Howard, apontado como dentro da “década da reconciliação” (1991- 2001)h 21, muitas das políticas relacionadas com a população indígena, tal como o Título Nativo22 ou as Politicas de Reconciliação foram lentamente abandonadas ou desprezadas23, o que acaba por ir contra a própria reconciliação. A 13 Fevereiro de 2008, com um novo Governo Australiano, que prometera durante as suas campanhas eleitorais resgatar muitas das injustiças feitas à população indígena australiana, o Primeiro-Ministro Kevin Rudd pede oficialmente desculpas aos povos indígenas pelos maus-tratos e iniquidades que estes sofreram no passado (Anexo 1 - Discurso do Primeiro Ministro Kevin Rudd (2008)). Este dia é assinalado como o “Sorry Day” (Dia da Desculpa) e comemorado anualmente. “Este gesto não representa uma solução mas sim uma tentativa oficial de reconhecer a dominação da raça branca”24. Apesar deste gesto significativo, ainda existe uma parte da população australiana que se considera contra as “Desculpas” de 2008, que tal geração alguma vez tenha existido. Para algumas, os aborígenes não foram roubados, mas sim resgatados; outras, apesar de estarem a par do sucedido, acreditam que tal pedido de desculpa pode levar a recompensações financeiras25 intermináveis, e não pretendem que tal aconteça.

Embora estas “Desculpas” terem provocado um efeito extremamente comovedor entre a maioria da população australiana, sendo considerado como um dos grandes passos para uma “cura” e restauro das relações entre a população indígena e a população branca, estas não se traduziram em qualquer efeito legal. Prova disto é que em Agosto de 2009, o Governo Australiano continua a negar a concessão de qualquer compensação à população indígena, h Período em que houve um abrir de entendimento entre a população branca australiana para assuntos relacionados com a população indígena, bem como para as diversas opressões que esta suportara.

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mesmo após a recomendação da ONU, que demonstram uma preocupação pela carência de adequados recursos à justiça por parte dos povos indígenas26.

No mesmo dia em que o Primeiro-Ministro Kevin Rudd pede desculpas oficiais à população indígena australiana, o Jornal Koori Mail reporta a criação de ‘2.500 novos abrigos” para crianças, pelo Governo de NSW, afirmando que cerca de 12.700 crianças são “incapazes de viver com os seus parentes, devido a abusos, negligências ou falta de afetividade“27. Apesar de afetar crianças independentemente da sua origem, conclui-se que esta ação foi primordialmente focada para e nas comunidades aborígenes, com o intuito de retirar os poucos poderes e direitos readquiridos pelas comunidades aborígenes. Tal como acontecera no passado, o controlo da vida dos aborígenes passa a estar ainda mais dependente das decisões do Governo da Austrália, ao mesmo que os restantes cidadãos australianos continuam a gozar os seus direitos em pleno. O Governo introduz mais uma vez uma lei “protetora” para no fundo usurpar para si os territórios que de algum modo poderão ser explorados economicamente.

Hoje ainda, existem inúmeras leis restritivas que afetam fundamentalmente as comunidades indígenas australianas. A Intervention ou Northern Territory Emergency Response (NTER)28, uma das últimas iniciativas do governo em prática desde 2007 no Northern Territory (NT), é uma nova lei que suspendeu a ação do Ato de Descriminação Racial até 201029. Permite ao governo e às autoridades readquirirem direitos e poderes diretos sobre as comunidades aborígenes e suas terras, tais como a remoção do sistema de licenças para acesso a territórios aborígenes, a aquisição compulsiva de terrenos, a abolição de projetos comunitários para o desenvolvimento de emprego e a apreensão de metade dos subsídios de pessoas aborígenes. Esta iniciativa acabou por retirar às comunidades aborígenes “os seus direitos como cidadãos australianos (...) [bem como] o controlo sobre as suas comunidades e sobre as suas próprias vidas”30 31, acabando por “descriminar racialmente mais de 45.000 pessoas de 73 comunidades”32. Apesar de ter sido atenuada com a reaplicação do Ato de Descriminação Racial em 2012, as medidas de descriminação continuam em vigor, sendo agora apelidadas de “medidas especiais”.

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II.I.III. Austrália multicultural

Apesar dos ideais racistas continuarem fortemente implantados na sociedade branca australiana no início do século XX, grandes factos mundiais levam a uma abertura da política australiana, mudando as suas estratégias políticas. Com as Grandes Guerras a Austrália vê a sua população decrescer drasticamente, e é levada a tomar a emigração como forma principal de reabilitar os seus índices demográficos. Já no fim da Primeira Guerra, é iniciado um programa de imigração que acabará por quadruplicar o número de habitantes. No entanto, durante este período, visto que as políticas de restrição racial ainda continuavam em vigor, esta imigração confinou-se essencialmente a pessoas oriundas da Europa. Efetivamente muitos dos outros governos coloniais aplicavam leis restritivas similares ao tipo de imigração que permitiam para o seu território, nomeadamente a Nova Zelândia, que as iniciou em 1899. Num caso de estudo apontado por Margaret Allen33 sobre a imigração de Indianos para a Austrália entre 1890 e 1911, é referido que apesar destes cidadãos serem considerados British subjectsi e de supostamente poderem-se mover livremente entre os diversos territórios que pertenciam ao Império Britânico, era-lhes negada tal regalia, dada a sua determinação em impedir a entrada de pessoas que não fossem brancas. Assim, à exceção daqueles que já residiam antes da aprovação da Política Austrália Branca, a imigração de indianos para Austrália após 1901 foi tornada praticamente impossível, através da introdução de diversos protocolos como o Teste Educativo34, que dificultava a obtenção de vistos para a Austrália. Dados estatísticos confirmam a introdução de tais medidas: em 1901 existiam cerca de 7.637 indianos a viver na Austrália e em 10 anos os números decresceram para 3.698, menos de metade.35 Com o fim da II Guerra Mundial, o governo Australiano depara-se com mais um decréscimo significativo na sua população, e perante o estado debilitado em que a Europa se encontrava, entra em negociações com alguns dos governos europeus a fim de dar “assistência” a muitos dos refugiados ou desalojados, vítimas da guerra. Com esta diligência, a Austrália inicia um processo de imigração com o intuito de repor a força de trabalho perdida

i O termo British Subject refere-se a qualquer individuo com uma ligação com o Reino Unido. Até 1983, qualquer cidadão dos países da Commonwealth era considerado um British Subject.

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e desenvolver-se economicamente. Entre 1945 e 1955 recebe cerca de 170.000 pessoas oriundas da Europa de Leste que se encontravam nessas condições36. Paralelamente a estas ações de foro humanitário, o governo começa a aprovar leis para promover a permanência de recém-habitantes, ao proporcionarem-lhe direitos paralelos aos de um cidadão australiano. Em 1948, aprovavam o ‘Ato de Nacionalidade e Cidadania’37, que “introduz o princípio da cidadania como australianos e não como cidadão britânicos. Tal como todos os cidadãos que pertenciam à Commonwealth, os cidadãos australianos permaneceram British subjects, contudo com a proclamação deste ato em 26 Janeiro de 1949, foram reconhecidos como cidadãos do seu próprio país.”38j Os aborígenes também foram incluídos neste ato tornando-se cidadãos australianos, porém com direitos diferentes.

No final da década de 50, assiste-se a uma abertura de consciência no que diz respeito a questões raciais. Em 1958, a Lei de Imigração deixa de ser restringida por questões de raça, impulsionando um programa de imigração não-discriminatório, baseado em qualificações independentemente da origem do país do candidato. Quase dez anos depois, em 1967, dá- se o Referendum39, uma discussão pública sob a forma de um referendo sobre os direitos dos aborígenes, nomeadamente sobre questões como a aplicação real de cidadania, e o direito ao voto. Anteriormente o aborígene apesar de ser considerado cidadão australiano, possuía direitos inferiores ao branco. Podia votar mas o seu voto não era contabilizado. Como resultado de tal debate, assiste-se à atribuição do direito de voto pleno e a inclusão de aborígenes no processo político, permitindo como consequência, pela primeira vez, a eleição de um aborígene no Parlamento Australiano, em 1971. Este referendo, no qual 90.7 % da população vota a favor da igualdade de direitos, foi um marco importante na luta dos direitos indígenas, assinalando um ponto de viragem nas políticas em vigor na Austrália. E em 1973, assiste-se finalmente à abolição da Política de Austrália Branca (White Australian Policy), e em 1975, à aprovação da lei de Descriminação Racial40, permitindo a qualquer pessoa imigrar para a Austrália, abrindo o continente à multiculturalidade. Dados oficiais apresentam que entre a II Guerra Mundial e o ano de 1977 mais de 2 milhões de pessoas imigraram para a Austrália, sendo que em 2000, 5.9 milhões da população australiana é imigrante, ou seja, dois em cada sete australianos.

j O ato foi aprovado em 1948, contudo apenas entrou em vigor em 1949.

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A este tipo de imigração acima referido, acrescenta-se uma enorme percentagem de imigração que resulta de ações humanitárias, que trazem para a Austrália inúmeros refugiados anualmente de várias localidades do mundo. Tendo as primeiras vagas de refugiados sido recebidos após a primeira e a segunda Guerra, a ajuda humanitária que deteve maior impacto foi o acolhimento de refugiados após a Guerra do Vietname, tendo sido acolhidos mais de 155.000 após 1975. Tal como sucedera com as políticas de imigração, também as normas de ajuda humanitária foram reformuladas e, a partir de 1981, este apoio deixou de ser exclusivo a territórios com relações diretas com a Austrália. Sendo alargado a territórios como a América do Sul, Médio Oriente ou África41, tendo-se registado cerca de 7 milhões de pessoas a receberem o visto de imigração permanente.

Apesar de todos estes atos políticos que acolhem os novos imigrantes, as comunidades indígenas australianas continuam a ser visivelmente marginalizadas. Mesmo após a realização do Referendum, o governo continuou as suas ditas políticas de assimilação, adotando agora um slogan que subtilmente sugere que os aborígenes deveriam viver como o branco. “Todos os Aborígenes de nascença, puros ou mestiços, deveriam viver na Austrália como qualquer Australiano branco”42, desprezando a sua individualidade, etnicidade e cultura. Mesmo com estas incongruências discriminatórias raciais, sociais, económicas ou políticas que se observam face à população indígena, a “Austrália orgulha-se de ter conseguido efetuar após o final dos anos 70, uma passagem subtil das suas políticas iniciais, baseadas em princípios políticos mono-culturais e raciais, para multiculturais”43, sendo hoje considerada como uma das nações mais multiculturais do mundo. Sem dúvida, as múltiplas ondas de migração influenciaram a forma como hoje apercebemos a sociedade australiana, ao trazer uma multiculturalidade para o seu território. Contudo, esta multiculturalidade já poderia ter sido atingida sem tal imigração, bastava que o governo Australiano tivesse equiparada a cultura aborígene à sua, em vez de promover a sua aniquilação.

Não obstante os esforços conduzidos aquando da sua independência, continuamos ainda a assistir a um debate conflituoso no que diz respeito à identidade da Austrália como nação. Melissa Lovell apresenta no seu artigo sobre a Identidade Australiana (2007)44 os sentimentos que os Republicanos na Austrália compartilham, desde a incompatibilidade da dualidade identitária entre Australianos e Britânicos, à adoção da herança indígena como fundação da identidade nacional. Esta última é notoriamente problemática, por um lado,

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devido ao número reduzido de indivíduos que reclama verdadeiramente a sua herança indígena (cerca de 2% da população), e por outro, pelo facto de a maioria das instituições australianas, tal como o Governo, serem na sua maioria constituídas por indivíduos descendentes de colonos ou imigrantes, e portanto não indígenas.45 Esta aceitação acaba por ser algo hipócrita, dadas as inúmeras políticas praticadas no passado de erradicar esta cultura “inferior”, assistindo-se agora à sua exaltação. Dá que pensar sobre as razões que levam ao acolhimento deste povo como representação de uma nação, que a meu ver, são exclusivamente económicas.

A própria imigração a que se assistiu, acabou por promover a aceitação de povos que não o branco, nomeadamente o Aborígene. Esta onda de multiculturalidade, que trouxe milhões de indivíduos com uma cultura distinta, impulsionara uma maior aceitação dos pontos de vista, histórias e ideais, quer de indígenas ou imigrantes no discurso político australiano. Porém, a “habilidade do multiculturalismo para abordar as preocupações das comunidades indígenas depende do nível pela qual as noções de pluralismo multicultural aceitam a diferença na cultura preponderante. A prática do multiculturalismo tende a privilegiar a cultura colonizadora, e tal reflete-se na estrutura da sociedade e do sistema político”.46 Como tal, as preocupações com as minorias étnicas não são relevantes, se elas próprias não o são para a sociedade colonizadora, porque o seriam para os novos imigrantes? E, se estes não aceitaram a cultura do povo que os recebe, porque iriam acolher os seus problemas com o povo indígena?

Nestes novos imigrantes, observa-se um desconhecimento do passado colonizador da Austrália, fruto do marketing propagandeado, e um desinteresse nos problemas que esta sociedade enfrenta. Aqui, pode-se fazer referência ao pedido de desculpas oficial, que para muitos destes imigrantes, considerados cidadãos australianos, não tem qualquer impacto pessoal, desleixando as responsabilidades sociais e humanas, para com um povo que continua a ser descriminado na sociedade em que vivem. “Tal como as ideologias coloniais relativas à identidade nacional procuram a normalização das crenças e narrativas do colonizador, as ideologias multiculturais buscam uma institucionalização de uma visão multicultural de identidade nacional”47. Esta visão multicultural simplista acaba por nivelar as diversas culturas existentes no território, equiparando o valor de cada uma delas para a sociedade, deixando os interesses do aborígene, cujos problemas continuam carecidos de

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resolução, para o esquecimento. Num país em que, segundo os últimos censos de 201148, a proporção de aborígenes corresponde a uma fração de 2.2%k, as preocupações para com esta minoria são consideradas secundárias e portanto completamente negligenciadas.

O 11 de Setembro de 2001 vem trazer na Austrália um retrocesso no expurgo do racismo na mente dos seus habitantes. Com as múltiplas ameaças terroristas a propagarem-se pelo mundo, observa-se notoriamente em muitos países recetadores a imigração, uma crescente hostilidade para com a sua própria multiculturalidade, mais direcionada a um tipo particular de imigrante. Na situação australiana esta hostilidade foca-se essencialmente em indivíduos islâmicos ou com ascendência africana. Em 2006, a imprensa australiana começa a reportar que muitos dos refugiados africanos traziam para o país doenças contagiosas, como a tuberculose, Hepatite C ou VIH. Estas notícias sensacionalistas sobre as “doenças africanas”, que reforçavam estereótipos contra pessoas de cor, foram imediatamente acolhidas por alguns políticos australianos, iniciando uma série de rivalidades políticas entre cidades e partidos. A cidade de Tamworth em NSW, recusa receber mais refugiados sudaneses e o Partido Australian First (pequeno partido político de direita) começou a distribuir milhares de folhetos pelas ruas, alertando para o que estes novos imigrantes poderiam trazer para a cidade: violência, crime e doenças.49 Em oposição a estes ideais atitudes racistas, na cidade de Toowoomba em Queensland (QLD), são apresentados à população, relatórios comprovativos do sucesso dos refugiados sudaneses na sua cidade, apresentando os êxitos que estes adquiriam nas escolas, universidades e no mercado de trabalho.50

Outro episódio, ocorrido entre 2007 e 2008, viu a Austrália recusar acolher refugiados oriundas do continente Africano, ao recearem dificuldades de adaptação. Tal ganha forma na catalogação de comunidades africanas como muito violentas, e o receio de uma destabilização da sociedade australiana. Esta decisão, apoiada pelo Primeiro-Ministro Kevin Andrews, é suportada pela exibição de notícias sensacionalistas em diversos canais televisivos, que denunciavam elementos de comunidade sudanesas a roubarem e a cometerem atos de violência física para com a população branca. A reportagem da ABC 1- k Taxa de imigração é de 6.03 por 1000 habitantes (6 milhões, 27% da população total). De um conjunto de 22 milhões de habitantes, 95% são Europeus, 3.5% são Asiáticos e apenas 2.2% são Aborígenes

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Watch Media - “Australia shuts down African immigration for 2007 / 2008”51, analisou concretamente as filmagens e entrevistou diversas testemunhas, concluindo que estes eram na sua maioria casos isolados de roubos, sendo mesmo na sua maioria cometidos por brancos. Ocorrências como estas, levam a crer que atualmente o asilo de refugiados ou mesmo a imigração para a Austrália tem inerente um “elemento racial” como fator determinante. Numa reportagem do canal Aljazeera, em 25 de Maio de 201152, assiste-se mesmo à expulsão de 800 exilados muçulmanos em troca de 4000 refugiados “genuínos”53.

Este fomentar do medo para com o outro, o outro que não o branco, é aqui suportado pelo poder dos media australianos, que tal como no “vizinho” Estados Unidos da América detém um papel fulcral na exploração do medo e manipulação dos princípios ideológicos de uma sociedade. O Governo Australiano soube utilizar esse medo em seu proveito, nomeadamente na catalogação do aborígene como bêbado, violento e irresponsável, e por tal incapaz de lidar com os seus problemas. O Governo, assume o papel de benfeitor, ao cuidar de tais “coitadinhos”, e garante o controlo dos seus recursos e a sua exploração visceral em nome do lucro e da ganância.

Apesar dos “australianos serem internacionalmente apelidados como amigáveis, respeitáveis e acolhedores”54 e a Austrália se considerar um país multicultural e respeitante dos direitos e valores humanos e sociais, por baixo de todo este manto de aceitação das diferenças do outro existe outra realidade. Na sua sociedade maioritariamente branca observa-se de um modo geral, uma enorme discriminação e mentalidade racista para com as comunidades notoriamente imigrantes, em outras palavras, não branca; e para com os aborígenes australianos. Este racismo para com o aborígene foi mesmo comprovado através de um estudo realizado pela University of Western Sydney em 2011, que conclui que mais de um quarto dos Australianos salientam sentimentos anti aborígenes55.

Desde a colonização até aos dias de hoje, as políticas e ideais australianos, principalmente as iniciais, originaram genocídios, etnocídios e enorme opressão sobre os povos indígenas australianos, provocando a perda dos seus territórios, cultura, língua e mesmo identidade. Muitas das políticas direcionadas às comunidades aborígenes que vimos acontecer no território australiano, vão mesmo contra alguns dos artigos fulcrais da Declaração Universal dos Direitos do Homem56 da ONU, assinada em 1948, da qual inacreditavelmente a Austrália

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foi um dos seus membros fundadores. Esta apresenta alguns dos direitos considerados fundamentais e defende que todos os seres humanos devem ser livres de falar e crer; libertos do terror, miséria, tirania e opressão.

“As ideologias atualmente em prática na Austrália, apesar de conterem elementos baseados em ideias históricas relevantes, que se correlacionam a noções de identidade ou raça, são ideologias essencialmente contemporâneas que se enquadram nos procedimentos das políticas australianas no mundo pós-colonial”57, favorecendo a nação em detrimento das minorias autóctones. Tal usurpação, quer de direitos de terras, soberania, autodeterminação e direitos no processo decisivo do governo, tem sido debatida globalmente nas últimas décadas. As Nações Unidas detiveram um papel determinante na definição de tais direitos face aos sistemas políticos dominantes, através da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas em 2007, que aborda cada uma dessas problemáticas. Não é de estranhar que as únicas nações que votaram contra esta declaração foram a Austrália, Estados Unidos da América, Nova Zelândia e Canadá, os únicos países colonizados cujos governos continuam a ser maioritariamente brancos.

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II.II. “There is nothing like Australia...to try something new “l

“... ‘the native’ is not allowed out of the show, forever condemned to perform to attract crowds” em Trapped in the aboriginal reality show.

A Austrália é usualmente encarada como um lugar “ocidentalmente civilizado”, um território onde as regras socioculturais se baseiam em estruturas políticas ditas civilizadas, como supostamente as europeias ou americanas. Note-se que este modo de reconhecer a estrutura sociopolítica australiana como civilizada, não inclui intimamente a população aborígene, que ainda é considerada por esta estrutura, como um grupo de habitantes que normalmente vive ou sobrevive fora da sociedade australiana. Este habita e vive segundo paradigmas não constitucionalizados, de acordo com as regras criadas pela estrutura sociopolítica ou cultural australiana, e são uma população totalmente discriminada.

A imagem ou ideia identitária que temos deste país-continente é o resultado de uma construção de marketing colossal. Este, cria como que uma aura à sua volta, dando origem a um lugar-paraíso, completamente exótico onde o aborígene e toda a sua memória e cultura detêm um papel fulcral, sendo mesmo considerados como o último reduto de um povo “primitivo”. O Aborígene, que na realidade, é visto como um alienado, um não adaptado ou incivilizado acaba juntamente com a sua cultura por ser utlizado como o grande símbolo nacional. Não será este mecanismo de lucro, maioritariamente criado para suportar mais uma estrutura usurpadora privilegiada implantada no sistema preponderante?

A identidade nacional sempre foi um assunto extremamente problemático em países que foram colonizados. A história colonizadora alberga por norma, violentos confrontos com a população indígena, bem como políticas discriminatórias e racistas na qual as suas nações são cimentadas, algo que nos dias de hoje pode ser difícil de aceitar ou compreender. Na Austrália, observa-se que a questão da identidade nacional é uma das grandes problemáticas com que o governo ainda se depara. Aquando do estabelecimento da nação, l Tourism Australia 2012. Hiperligação: http://www.australia.com/news.aspx

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existiu um esforço acrescido na criação de uma identidade, baseada em ideais e pressupostos completamente racistas, que talvez por se encontrarem aparentemente ultrapassados neste momento dada a mudança de mentalidade a que se assistiu no último século, acabaram por esmorecer. A própria definição desta identidade, aquando da sua idealização, fora tornada mais difícil, sobretudo pelo facto de a Austrália fazer perdurar a sua ligação com o Império Britânico, que suportou até à altura a definição do carácter da colónia. A Austrália continua a fazer parte da Commonwealth e a Monarquia Britânica permanecera a sua figura líder de estado. A imigração e multiculturalidade que se assistiu na década de 40 e 70 respectivamente vêm também quebrar os laços afetivos com a Inglaterra, ao provocar uma redução da proporção de descendentes de britânicos na Austrália, agora substituída por europeus em geral, e complementada por minorias asiáticas e africanas.

A incorreta aplicação do termo Terra Nullius continua a ser um dos episódios marcantes da sua história, continuando a assombrar a sua imagem política. Tendo sido utilizado para justificar uma das maiores desapropriações de terrenos de povos indígenas, sem qualquer necessidade de tratados ou acordos - algo que teve lugar na Nova Zelândia, Canadá, Estados Unidos da América e também na América do Sul – este continua a marcar negativamente a sua imagem. Este perpetuamento estará necessariamente relacionado com o facto ‘de o mal’ ainda não ter sido reparado. Exemplo disso são as inúmeras diligências apresentadas pelos povos indígenas, para reclamar os direitos às suas terras ancestrais, que continuam à espera de resposta.

A luta dos povos indígenas pelos direitos às suas terras ancestrais já percorreu um longo caminho, e já colheu alguns frutos. No entanto, muito permanece por ser enfrentando, nomeadamente numa altura em que o Governo continua a exploração mineira em territórios ancestrais, ameaçando a sustentabilidade e a herança cultural que acarretam. A exploração destas terras teve início aquando da chegada da primeira frota, em Janeiro de 1788, na qual os Britânicos formalizaram a possessão da Austrália. A introdução do Terra Nullius, anulava a necessidade de tratados com as populações indígenas - a única forma legal de tomar para si tais territórios a não ser pela guerra - o que possibilitava o controlo das terras que necessitassem, através da força ou coação. Tal originou diversos conflitos quando as populações indígenas resistiram a ser expulsas das suas terras, e mais grave, diversos genocídios como retribuição de ataques a brancos. Um dos mais marcantes foi a aniquilação

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da população da Tasmânia58. De notar que o Império Britânico em altura nenhuma declarou guerra contra a população indígena. Tal daria indícios que existiria uma população indígena, o que inviabilizaria o princípio proclamado.

O aumento da indústria da pastorícia na Austrália trouxe um acréscimo da colonização no continente, e consequentemente a apropriação de novos terrenos de povos indígenas. Em casos pontuais, a prática da pastorícia não obrigou as comunidades indígenas a saírem destes terrenos. Existia uma certa recetividade por parte dos aborígenes, em partilhar a terra, caso fosse respeitada, o que levaria a uma cooperação ou uma mútua concomitância, entre colonos e indígenas em algumas regiões da Austrália, repartindo a riqueza produzida. Com o crescimento do número de colonos, e uma perscrutação de terrenos férteis, assiste-se a um agravamento do deslocamento das populações indígenas das suas terras ancestrais, e relocação em terrenos menos apetecíveis aos colonos, denominadas em alguns casos como reservas.

Ao longo do tempo, em parte devido às políticas de assimilação, muitos dos aborígenes acabaram por trabalhar nessas mesmas quintas que iniciaram o processo de expurgo de aborígenes das suas terras. Em 1930, sem qualquer visível melhoramento das condições de trabalho e salário, os aborígenes começaram a juntar-se e a lutar pelos seus direitos. Este foi provavelmente o primeiro movimento significativo de luta pelos seus direitos. Algo que começa circunscrito ao trabalho, cedo se expande para outras áreas, como o direito ao acesso e gestão das suas terras tradicionais onde estas quintas foram erguidas. Nas décadas de 40 e 60 estes movimentos ganham uma dimensão nacional e impulsionam a maior greve de indígenas na história da Austrália. A greve Pilbara (1946)59 consegue paralisar mais de 10.000 km2 de quintas no estado do Western Australia (WA), com a participação de cerca de 800 aborígenes. O próximo evento relevante na luta dos aborígenes acontece apenas em 1966, no NT, no qual o povo Gurindji realiza uma nova greve, reclamando melhores condições de trabalho e salário. Esta acaba por se tornar na primeira manifestação, que reivindica os direitos às terras, a ganhar suporte a nível nacional, bem como a atenção dos media, e representa um ponto de viragem nesta luta de direitos dos povos indígenas australianos. Nove anos depois, a reivindicação ganha finalmente creditação, e em 1975 as terras em disputa são devolvidas ao seu povo, num evento protagonizado pelo próprio Primeiro-Ministro Australiano Gough Whitlam (Figura 3).

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No ano seguinte, dá-se um novo desenvolvimento, ao ser criada o Northern Territory Land Rights Act, a base pela qual os aborígenes do Northern Territory poderão reclamar direitos a terras alicerçados na ocupação ancestral. Nas décadas seguintes assiste-se a uma época reivindicativa no que diz direito a direitos a terras, sendo que a primeira e mais importante vitória se dá em 1992, no caso Mabo. Através desta ação judicial, que contesta com sucesso a aplicação do Terra Nullius (algo que inviabilizou as ações precedentes), tem como resultado o reconhecimento do povo Meriam da ilha Murray, como Figura 3- Mervyn Bishop, Primeiro- os proprietários nativos das suas terras ancestrais nas ministro Gough Whitlam coloca terra Ilhas de Torres Straits, dando uma base legal para que na mão do proprietário tradicional , Northern Territory, várias comunidades aborígenes pudessem concretizar 1975. o mesmo feito. Estima-se que cerca de 3000 processos foram acordados e assinados para devolver os direitos de terra a comunidades aborígenes. Exemplo disso, é o caso do povo Noonkanbah, que em 2004 consegue obter direitos legais sobre 1811 km2 de terra no estado de WA. No NT, cerca de 40% de terrenos costeiros passam a pertencer à comunidade aborígene (esta percentagem inclui a zona costeira das ilhas deste estado).

Apesar de todos estes favoráveis avanços para as comunidades aborígenes no que diz respeito à reapropriação de terrenos, por diversas vezes observa-se que esta foi somente conseguida através do compromisso e aceitação de diversas contrapartidas. Tome-se como exemplo o caso das terras agora incluídas no Parque Nacional de Kakadu, no estado do NT. Em 1973, o governo australiaano cria uma comissão de inquérito para tratar dos direitos de terra aborígenes no NT, com o intuito de encontrar a melhor forma de reconhecer os interesses das comunidades aborígenes, ao mesmo tempo que promove a gestão e conservação do território. Por outras palavras, como comprometer-se com as comunidades e simultaneamente continuar a controlar a terra, viabilizando-a economicamente através da exploração do turismo ou das minas. Assim, ao devolver as terras aos seus proprietários legítimos, estes terão de aceitar a gestão dos territórios segundo um conselho constituído por brancos e aborígenes, em que a palavra final é a do governo. O resultado de tal compromisso é a criação de um parque nacional aberto ao turismo, e uma aceitação de atividades mineiras em áreas circundantes. Um facto aberrante é a existência da mina

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subterrânea de urânio, Ranger60, e a adjacente Jabiluka61. Inseridos em terrenos fora do parque, completamente circundados por áreas de reserva protegida pela UNESCO, são excluídas da área do parque aquando do seu estabelecimento em 1981. Ainda hoje em dia continua a exploração deste minério poluente, que afeta não só os habitantes aborígenes locais, mas igualmente a fauna e flora envolvente. Este é uma das cláusulas visíveis62 que revela o compromisso dos Aborígenes para a reapropriação de parte das suas terras, o que nos leva a perguntar quais serão as restantes, menos evidentes ao público em geral.

O turismo gerado por estes parques continua a ser uma das principais razões para a ‘libertação’ destes territórios, que apesar de serem geridos lado a lado por brancos e indígenas, continuam a ser visivelmente controlados pelo governo, sobre a forma de alugueres ou compensações financeiras. Se analisarmos os terrenos convertidos em parques nacionais, observa-se que na sua maioria correspondem a terras ancestrais reclamadas por comunidades indígenas. Estes terrenos agora certificadas como terras ancestrais, ao serem devolvidas aos seus legítimos herdeiros, representam uma extraordinária oportunidade para o Governo as promover no mercado do turismo, validando todo o sistema de marketing que explora um turismo direcionado para a unicidade da cultura indígena australiana.

Ao devolverem estes terrenos e cooperarem em “harmonia” no controlo destas reservas, o governo demonstra por outro lado, uma união com o aborígene na qual ambos procuram perpetuar a preservação do lugar ancestral. Contudo, este é manifestamente apenas mais um mecanismo que estimula a economia do país. Se refletirmos sobre o historial das diversas políticas que o governo australiano implementou para com o indígena, pode-se pressupor que estas reservas são possivelmente um mecanismo em que o indígena pode finalmente contribuir positivamente para a sociedade branca, prostituindo a sua própria cultura em prol do progresso económico do “seu” país.

Estas reservas ou parques têm como objetivo o de exibir ao turista um pouco da cultura aborígene. Por um preço e tempo limitado, o visitante pode vaguear pelo imenso terreno, apreciando a sua flora e fauna. Aqui, neste terreno privilegiado, cheio de misticismo, é lhes oferecido a hipótese de se educarem sobre a cultura e tradição indígena, através da informação disponibilizada no centro cultural do próprio parque, ou de visitas-guiadas

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realizadas por rangers do parque, geralmente aborígenes. Paralelamente ao propósito educativo que estes lugares possibilitam, são também espaços onde o visitante pode saciar os seus desejos consumistas e de ostentação. Nos centros culturais, igualmente espaços de comércio, o turista tem a oportunidade “única” de adquirir uma obra de arte ou artesanato tradicional autêntico, produzida pela comunidade indígena local. Pode também obter um íman, crachá ou postal com a imagética aborígene, que neste caso são provavelmente fabricados na China. Nestas bolhas “aborígenes” o turista-consumista encontra a relíquia exótica que tanto desejou possuir, retornando ao seu habitat com o seu souvenir, aclamando-o como um pedacinho do território australiano ancestral, reduzindo a sua experiência aborígene a um mero artefacto.

A zona onde atualmente se insere o Parque Nacional de Uluru-Kata Tjuta, também localizado no NT, fora durante vinte anos, desde 1870, um terreno no qual existiu uma tentativa, embora falhada, de exploração da indústria da pastorícia. Ao ser considerado um terreno demasiado árido para qualquer ocupação ou exploração, no início do século XX, o estado australiano cria uma série de reservas para as comunidades indígenas locais – os Anangu. A serem utilizadas como santuários, o seu propósito primordial é o de os proteger do contacto com o branco enquanto o seu processo de reeducação ainda não é concluído. Porém, este povo resistiu à assimilação, fugindo das missões e dos colonatos governamentais, retornando ao estilo de vida tradicional.

Com o desenvolvimento industrial, e a construções de vias de acesso na década de 40, mais especificamente uma via principal que atravessa todo parque, os Anangu depararam-se com uma forma fácil de fazerem dinheiro. Através da exploração do seu território para o turismo acabam por ganhar alguma independência das pensões do governo. Contudo, em 1958, o governo, talvez no seguimento dos rendimentos das atividades turísticas dos aborígenes, vê neste território uma oportunidade de negócio lucrativa. Esta área é então transformada num parque nacional, sendo controlada e gerida pelo próprio governo através do Northern Territory Reserves Board. A comunidade Anangu é interdita de trabalhar neste parque até ao final dos anos 70, data em que lhes foi permitido desempenhar o papel de rangers. Passados quase 30 anos desde a criação deste parque, em 1985, seguindo o exemplo de sucesso do Parque Kakadu, cedido anos antes, este solo adquire o título nativo e o Estado aceita como proprietários tradicionais a comunidade Anangu, passando esta a beneficiar de algum poder

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de decisão sobre o parque. A primeira exigência que o povo Anangu requereu foi a alteração do nome do parque de Ayers Rock - Mount Olga National Park para o que hoje em dia é denominado, Parque Nacional de Uluru-Kata Tjuta 63(Figura 4). Este parque nacional possui na sua área geográfica, um dos símbolos de marketing da Austrália, a Ayers Rock (denominação ocidental) ou Uluru (denominação indígena). Um dos lugares mais sagrados para o povo aborígene, este é completamente prostituído por este mercado turístico. Propagandeado como um dos locais imperdíveis do outback australiano, é quase que um logótipo da Austrália, sendo destacado em quase todos os roteiros turísticos como a imagem de capa.

Figura 4 - Parque Nacional de Uluru-Kata Tjuta. Da esquerda para a direita: percursos envolta do Uluru; Turistas a contemplarem o amanhecer no Uluro; Vista do Uluru (Imagens de autoria de Maria Rocha, 2011).

Desde o final dos anos 60 até aos dias de hoje, que este lugar fora transformado num autêntico parque de diversões, onde o turista é levado supostamente a conhecer “o lugar sagrado”, onde rituais aborígenes são praticados e nós turistas podemos presenciar um lugar envolto em misticismos, sobretudo após a sua cedência aos aborígenes. Aqui, as pessoas são levadas a conhecer o centro cultural, onde um pouco da história deste lugar é recontada e partilhada, dando a conhecer o valor do lugar e como o deveremos respeitar. Uma das formas de respeitarmos as tradições aborígenes seria o de não subir ou escalar o Uluru, ou mesmo não coletar nenhum elemento natura, para que não se incomode os espíritos que habitam este lugar, pois eles são supostamente extremamente poderosos e sensíveis. Contudo, apesar de todas as consciencializações sobre a importância do lugar para os povos aborígenes australianos, quando nos aproximamos desta enorme formação rochosa, o turista é imediatamente confrontado com uma estrutura que o auxilia a escalar livremente. Claro que como modo de alerta, para se protegerem de qualquer responsabilidade legal, a gerência deste parque de diversões coloca uma pequena tabuleta a alertar o visitante que é 27

perigoso escalar o Uluru, e que muitos já pereceram ao fazê-lo. Alertam também, de forma ridícula, dado que fornecem as estruturas para o fazer, que devem respeitar as vontades dos donos tradicionais do território de não o escalar, tal como fora pedido no centro cultural. Poderemos então concluir que tudo o que fora incentivado ou consciencializado a não praticar é contradito e, o turista vê-se provocado a realizar muitas das infrações que minutos antes fora solicitado a não exercer, assistindo-se a um completo desrespeito pelas tradições e cultura indígena. Para o governo, o importante é maximizar a experiência do turista no lugar, de forma a ampliar o marketing e o lucro associado.

No turismo indígena, a Austrália encontrou uma identidade nacional que regenera e valida a sua relação com o território. Com uma história com mais de 60.000 anos, a questão da identidade nunca fora um problema para os povos aborígenes. Numa “nação colonial que desde o início luta por uma identidade australiana branca, a presença indígena e a sua sagrada conexão com a terra sempre fora um desafio neste processo e ocupara uma posição inquietante (...) Este sentimento, que associa o conceito de sagrado ao território, é algo que acumula um significado tão profundo, que é capaz de reestruturar a sensibilidade de uma nação“64. Ao aceitar e incluir o indígena na história da nação, a Austrália poderá obter um reconhecimento de que efetivamente a Austrália é território indígena, e mais que isso, sagrado, obtendo estranhamente uma certa legitimidade para a ocupação das terras por não- indígenas. Ao reconhecer que a Austrália é indígena, e não confundir com o pertencer a um povo indígena, é permitido a um alienígena (o australiano) ou a um recém-chegado tornar-se indígena, isto é, tornar-se nativo, e por esse modo obter uma condição equiparada à dos povos indígenas. Tome-se, por exemplo o caso da Nova Zelândia, onde atualmente se observa um respeito e um apreço pela cultura maori e também para com a população indígena. Aqui, a própria definição de indígena acaba por ser elevada à identidade nacional, alastrando a sua definição a qualquer pessoa que habite o território. Tal como o presidente da África do Sul, Nelson Mandela, ambicionou unir um país e criar uma identidade nacional através do rugby, a Nova Zelândia adotou a mesma estratégia. A promoção da identidade neozelandesa não foi associada diretamente ao branco, como a Austrália o fez com a White Australia, mas sim ao nativo, herdeiro ancestral e protetor da cultura e terras indígenas. O resultado é um país cujos habitantes, tal como os nativos, respeitam e valorizam não só a sua terra, mas a cultura associada, e ao sentirem esta empatia, sentem-se parte dela, e por tal, nativos. Com isto em mente, ao refletir sobre a realidade Australiana, é talvez

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inconcebível idealizar o mesmo desfecho. A Nova Zelândia possui um passado igualmente conturbado no início da colonização, contudo a diferença é que Austrália decidiu continuar tal legado, ao tentar criar uma identidade branca, expulsando os aborígenes para fora das fronteiras do Estado. Tornou-os assim, alienados na sua própria terra, associando-os a uma imagem denegrida, de vagabundos ou de incultos, sendo que esta é uma imagem que continua atual na mente de muitos dos australianos. O processo de associação deste povo a uma identidade da nação, além de propósitos de marketing, é e será uma tarefa árdua e improvável.

A distinção entre o branco e o aborígene é algo que perdura. Um distanciamento entre o Eu e o Outro, aparentemente serena. A presença do aborígene, do “outro não causará problema, mas apenas enquanto a sua presença não é intrusiva, enquanto o outro não é realmente o outro (...) aqui a tolerância acaba por coincidir com o seu oposto (...) o dever de ser tolerante para com o outro, efetivamente significa que eu não me devo aproximar demasiado (...), intrometer-me no seu espaço, devendo respeitar a sua intolerância pelo meu excesso de aproximação (...). O que atualmente mais emerge como direito humano central nesta sociedade capitalista é o direito de não ser assediado, o que revela ser um direito de me manter afastado perante o outro”65 o aborígene. A divisão entre australianos e indígenas é acentuada na divisão entre terrenos dos aborígenes e terrenos dos “brancos”, apesar de tal fato demonstrar perante o turista a simbiose entre ambos, em termos identitários acaba por criar mais uma barreira entre o “nosso” território e o do aborígene. Este comportamento, de apenas aceitar a cultura indígena como algo identitário, que apenas existe para vender a sua imagem dentro da estratosfera do turismo, acaba por denegrir a relação entre o ”australiano” e o indígena, dado que o último certamente deve se sentir nas mãos de um “chulo”, que simultaneamente o promove e enaltece, ou difama e insulta.

Este estratagema de lucro praticado pelo australiano, não é algo desconhecido em sociedades que foram colonizadas. O exotismo e a exaltação falseada do Outro é uma ferramenta para encobrir a degradação e desrespeito pela cultura indígena, ao mesmo tempo que logra economicamente, rentabilizando estas idealizações em artefactos comerciais que alimentarão a imaginação do visitante. Ao focarem a unicidade que apenas este lugar poderá ostentar perante outras culturas ou sociedades, produz-se a fantasia que neste território se possa experienciar algo de único e totalmente imperdível, deixando obscurecido ao olhar do

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visitante, o lado prostituído de como estas estruturas subsistem e são geridas de forma manipulada. Este estereótipo ou prostituição das diversas formas culturais das culturas indígenas são patrocinadas por inúmeras corporações multinacionais, e é algo que se pode observar em inúmeros locais. Nos E.U.A. temos o caso do Havai, que devido a um excesso de turismo pela procura do lugar paraíso, acabara por se transformar num local totalmente descaracterizado. Recortado por autoestradas, e repleto de complexos turísticos que acompanham toda a sua costa, a extrema pobreza e extensa poluição existente é cuidadosamente dissimulada nos circuitos turísticos criados para experienciar a sua beleza única.

O investimento do governo australiano num turismo focalizado na cultura indígena é algo que tem apresentado frutos consideráveis, pelo que as entidades responsáveis pelo impulsionamento e melhoria do turismo têm procurado reconhecer o tipo de “atrações” que o turista anseia encontrar na Austrália, de forma a maximizar os seus lucros. Desde 1999 que a entidade responsável pelo turismo no WT procura aprofundar estas necessidades, no sentido de colmatá-las, gerando novas propostas turísticas para que a cultura aborígene possa ser “experienciada” ao máximo pelo visitante. É de frisar, que no caso da Austrália, o turismo direcionado para a cultura indígena representa um dos sete “ingredientes” chave do seu mercado, sendo um dos grandes trunfos que destacam a Austrália na competitiva arena do mercado do turismo global66. A receita que este tipo de turismo fomenta na economia da Austrália é extremamente significativa. No ano fiscal de 2004/2005, o turismo no estado do NT gerara cerca de 1.5 milhares de milhões de dólares, sendo que desses, 58.1 milhões de lucros provêm diretamente do Parque Nacional do Kakadu, que recebera 165.300 visitantes nesse ano67. O turismo é a grande fonte de rendimento de estados que ostentam claramente a cultura indígena, e existe por tal, a tendência de certificar estes locais como genuínos. A validação destes lugares passa sem dúvida por uma necessidade de introduzir ao máximo a participação dos indígenas australianos, de modo a tornar a experiência mais verosímil ao olhar do visitante. Esta arena do turismo é o local apropriado para o nativo ostentar a sua individualidade e unicidade da sua cultura, de modo a cooperar com o slogan que ecoa neste mercado de exploração, always was, always will be, Aboriginal land!

De todas as grandes cidades que existem na Austrália, Alice Springs no NT é provavelmente o lugar onde é mais visível o impacto da cultura aborígene no mercado cultural e turístico.

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Este estado possui uma população de 232.400 residentes68, e a cidade de Alice Springs abarca 12%69 do total da população total deste estado, cerca de 27.481 habitantes, entre os quais 19% são indígenas. Esta cidade está como que envolta num grande “DOT”, onde quer queiramos ou não, somos visualmente “invadidos” por todos os produtos que se podem consumir correlacionados com a cultura indígena australiana, e é por tal, considerada a capital da Arte Aborígene na Austrália.

Nesta cidade, onde quase todos os bens essenciais são ainda mais inflacionados do que no resto do país, basta caminharmos nas suas ruas para presenciar a magnitude deste mercado, viciado em cultura e arte indígena. Aqui, observa-se uma excessiva presença de instituições, cooperativas, galerias e lojas que se dedicam exclusivamente à venda e ou revenda de produtos “made by” aborígenes. Estes “pontos de venda” apresentam ao público a possibilidade de adquirem objetos artísticos, maioritariamente de comunidades indígenas de town camps70 que rodeiam a cidade, ou de comunidades mais isoladas. A competição que se sente entre os diversos espaços comerciais é manifestada nas inúmeras promoções que aliciam possíveis consumidores de cultura e arte aborígene. Apesar de observarmos que esta cidade se nutre da cultura aborígene australiana, gerando consequencialmente uma forte receita para o Estado e para o país, este é um dos Estados com mais problemas ao nível social. O número de desemprego por entre a população indígena e índices de crime são notoriamente superiores comparados com outros estados da Austrália. Relatórios apresentados pelo Departamento de Justiça do NT, entre 2004 e 2010, confirmam que os assaltos subiram 87%, crimes sexuais 97%, e assaltos a habitações 64%, colocando esta cidade em segundo lugar entre as cidades com o maior índice de crime, sendo mesmo a cidade com maior taxa de homicídio na Austrália.71. A mesma fonte afirma que “apesar de os povos indígenas compreenderem um terço (30%) da população do estado de NT, foram vítimas de 59% dos ataques pessoais, 50% dos assaltos sexuais, e quase dois terços (65%) de todos homicídios e ofensas relacionadas, em 2008”.72 Infelizmente, o mesmo estudo não revela a etnia do ofensor. Caso o fizesse, poder-se-ia questionar a ideia generalizada, de o aborígene ser considerado por muitos o ofensor e não a vítima.

A arte está no centro da vida e sociedade aborígene desde sempre, “quer esta seja executada com propósitos políticos, sociais, utilitários, didáticos”73 ou mesmo com propósitos aparentemente económicos. Quando associamos este modo de encarar a arte a um lugar

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como Alice Springs, que conta com inúmeras instituições que procuram impulsionar e disseminar a cultura e arte aborígene, observa-se que muitos indígenas australianos olham para esta cidade como um lugar de oportunidades, onde poderão obter uma independência financeira, e conseguir ajudar as suas comunidades. Por tal, muitos acabam por se fixar em Alice Springs e iniciam-se no mercado da arte, trabalhando como artistas numa das muitas cooperativas que apoiam e comercializam arte aborígene. Uma destas é o Centro de Arte Tangentyere Artists que afirma patrocinar mais de 400 artistas, que vivem em 18 comunidade em town camps que rodeiam a cidade de Alice Springs. Este centro procura divulgar e comercializar os trabalhos artísticos e representar alguns destes artistas em feiras de arte, exposições ou prémios de arte aborígene.

Algo impossível de imaginarmos acontecer no mercado europeu, é utilizar a arte ou a cultura como um modo de sobrevivência num sistema capitalista que não valoriza o poder da cultura. No entanto, na Austrália, uma das ferramentas mais fáceis que os indígenas encontraram como forma rápida de sustento e de independência das pensões do Estado, foi através da sua arte e cultura.

Como em qualquer negócio rentável surgem sempre situações fraudulentas, onde instituições ou indivíduos exploram os seus colaboradores. No caso da arte indígena australiana estas situações são ridiculamente frequentes. Artistas que vivem em zonas mais remotas estão mais propícios a serem objeto de exploração. Muitas vezes produzem obras que são vendidas em “outlets” em vez de Centros de Arte Indígena. Outro género de exploração que se observa na Austrália é o modo de pagamento aos artistas indígenas, que ainda hoje é muitas vezes efetuado através de carros usados, combustível ou mesmo álcool74.

No centro da Austrália, as situações de burla são regulares, e devem-se provavelmente ao facto de existirem muitas comunidades isoladas, e de o índice de pobreza destas regiões ser muito elevado. As pessoas vivem em condições extremamente precárias comparadas com o resto da população na Austrália, ou mesmo com países considerados do “terceiro mundo”. Um relatório da Amnistia Internacional publicado em Agosto de 2011 apresenta um estudo focalizado nas habitações da região de Utopia, localizado a cerca de 250km de Alice Springs. Nesta região vivem aproximadamente cerca de 1.400 pessoas, que se dispersam por 16

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comunidades e por cerca de 115 habitações. O número de habitações disponibilizadas pelo governo não é suficiente, e frequentemente numa casa de dois quartos habitam cerca de 15 pessoas. Muitas outras moram em abrigos improvisados, chamados de humpies, que não têm eletricidade, água ou saneamento75. De um modo geral, este relatório concluiu que a maioria das habitações em as comunidades aborígenes vivem não estão de acordo com os standards mínimos do UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights (ICESCR), da qual Austrália aceitou fazer parte.

Paralelamente aos problemas de exploração dos artistas aborígenes surgem questões relacionadas com a autenticidade e a qualidade das obras no mercado da arte. Para enfrentar estes problemas, em 2009, foi introduzido o Indigenous Australian Art Commercial Code of Conduct. Este estabelece os standards mínimos para a prática e comércio de arte indígena, protegendo de algum modo artistas e clientes, controlando desde o pagamento aos artistas até aos valores limite (máximos e mínimos) que a obra de arte poderá valer no mercado de arte. No filme de Warwick Thornton, Samson & Delilah (2009)76 observa-se como alguns artistas que vivem em comunidades, são representados por galerias de arte contemporânea em Alice Springs, e a forma como são ludibriados e de certa forma extorquidos pelos intermediários, contribuindo para a perpetuação da exploração que faz parte do monopólio do mercado de arte indígena. Estima-se que a “indústria de arte indígena australiana equivale entre cerca de 36 milhões a centenas de milhões de dólares por ano.”77. Dado o contributo para o desenvolvimento económico que a cultura aborígene potência no seu país é compreensível que a Austrália se propagandeie como o lugar onde podemos “experimentar um pouco da vida exótica (...) através do aborígene, os nativos deste pequeno continente”78. Por tal, continuamente procurará criar as infraestruturas necessárias para sustentar “o anseio e imaginação do branco” pelo outro, pelo exótico.

Em 2011, o Watch This Space79, em Alice Springs, apresentou uma exposição que explorava criticamente algumas das problemáticas que interligam o turismo ao exotismo atribuído ao indígena australiano. Os artistas expuseram projetos que exploravam criticamente a imagética indígena, o poder do turismo e do colonialismo, que se refletem especificamente no turismo no centro da austrália. A obra “Culture appropriApron” de Hannah-May Caspar (Figura 5) explora a simbologia do aborígene e da sua cultura, através de uma análise do que é usualmente representado em objetos decorativos comercializados na maioria dos espaços

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comerciais. Pinturas “dot”, cangurus ou homens aborígenes a segurar a lança, são usualmente empregados em objetos decorativos que acabam por atribuir às nossas casas um “ar autêntico e tribal”. A artista aproppriou-se deste tipo de ícones e reproduziu-os em dois objetos utilitários - dois aventais - que como afirma, têm como objetivo primordial, o de proteger do constrangimento de sermos “salpicado com molho” durante uma conversa diária sobre o racismo.

Figura 5 - Hannah-May Caspar, Cultural appropriApron, 2011. Esquerda: vista geral da instaalação. Direita: dois pormenores dos elementos constituintes da instalação. Apresentado na Exposição coletiva “Souvenir” no Watch This Space Gallery, AliceSprings, Setembro de 2011. (Imagens de autoria de Maria Rocha, 2011).

Figura 6 - Nick Schonkala, What tourist wants, 2011. Apresentado na Exposição coletiva “Souvenir” no Watch This Space Gallery, Alice Springs, 2011. (Imagem de

autoria de Maria Rocha, 2011).

Nick Schonkala, com a sua obra “What tourist wants” (Figura 6), explora sarcasticamente as vontades e os desejos dos turistas que visitam a Austrália. Estes, por qualquer custo ou preço, querem adquirir um pedaço da fauna, flora ou qualquer outra coisa que represente o indígena. A obra criada é uma espécie de obra-souvenir, constituída por cinco cachecóis de lã que ostentam um símbolo representativo da cultura aborígene. Esta acaba por ser uma contradição, pois devido ao seu material e às condições climatéricas desta região, será impossível de ser utilizado neste território, fazendo apenas sentido ser adquirido pelo turista, que lhe poderá dar alguma utilidade quando regressa ao seu país.

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Por vezes, esta necessidade que o turista possui em compulsivamente adquirir objetos, pode tornar-se uma “maldição”. Por toda a Austrália, quando se visita lugares que pertencem a comunidades indígenas, por norma existe sempre um pedido para respeitarmos as suas tradições e desejos. Muitos turistas acabam por as ignorar e desrespeitar, e aquando do regresso à sua rotina começam a viver infortúnios, depressa começam a atribuir os seus azares às atitudes e ações cometidas. Estas superstições acabam por tomar forma nos objetos que coletaram indevidamente ou nos souvenirs com uma imagética aborígene, que adquiriram durante as suas férias. Prova destas superstições são os diversos amontoados de pedras e as inúmeras cartas que muitas vemos expostas em Centros Culturais nos Parques Nacionais. O turista ao começar a acreditar veemente no poder mágico dos espíritos aborígenes, procura desfazer a maldição que caiu sobre ele, e acaba por devolver todos os objetos adquiridos com uma nota de desculpas, a ressentir tal feito.

Tendo conhecimento deste fenómeno que se tem vindo a amplificar desde os anos 70, a artista Beth Sometimes apresentou nesta exposição a instalação “the sorry souvenir phenomenon” (Figura 7), constituída por uma seleção de cartas e objetos que foram devolvidos à loja “Jimmy´s Souvenirs” em Alice Springs entre 1984 e 2000. Ao contrário do que é observado nos parques, aqui os objetos que angustiantemente são devolvidos são produzidos em fábricas na China, e além de reproduzirem em série, símbolos e imagens da sociedade e cultura aborígene australiana, não possuem qualquer conexão direta com a fauna, flora ou com os espíritos indígenas. Estes têm apenas como fim o de contribuir para um mercado consumista que anseia pelo original, exótico ou tribal.

Esta exploração do aborígene em pleno século XXI acaba por ser uma nova forma de colonialismo. Um neocolonialismo essencialmente capitalista com as mesmas características anacrónicas que caracterizam uma contínua usurpação do outro, aqui em termos da venda da sua cultura, trabalho ou estilo de vida. Em troca de uma sobrevivência que teima em progredir para uma vida digna de respeito mútuo com o australiano, o aborígene por muito que abdique, está condenado a subsistir no limbo da obscuridade e da ribalta, vivendo ininterruptamente preso à arena de espetáculos do mundo do branco: alguém que é catalogado como algo que não é, impedido de aceitar a realidade, vivendo na dissolução da sua cultura tradicional. Condenado a permanecer neste limbo, o aborígene terá de aceitar e

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confrontar a sua denegrida condição no mundo, para que se possa libertar de tais mecanismos que o branco criara. Só assim se poderá soltar das amarras e voltar às “suas origens”, ao seu próprio eu, algo que fora usurpado com a imensidão de políticas aplicadas, e que agora reclamam a sua “aboriginalidade” no contexto do mercado do espetáculo.

Figura 7 - Beth Sometimes, The Sorry Souvenir Phenomenon, 2011. Apresentado na Exposição coletiva “Souvenir” no Watch This Space Gallery, Alice Springs, Setembro de 2011. Esquerda: vista geral da instalação; Direita: pormenores de objetos da instalação. (Imagens de autoria de Maria Inês Rocha, 2011).

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III. DESENVOLVIMENTO DA ARTE ABORÍGENE: “Mina de Ouro” para balandasm.

“We are not turning our culture into cash. We want the whole world to know our culture... The style has changed but not the heritage” Papunya Tula Artists, 1986 Museum Art Gallery Northern Territory

Os diversos conflitos que deparamo-nos na sociedade australiana, das relações entre brancos e negros, sucedem do mesmo modo no mundo da arte. Refletindo não só os ideais políticos e sociais, mas também as modas artísticas europeias ou norte-americanas que tanto os australianos ambicionavam conseguirem estar a par, estes acabam por influenciar a forma como a arte aborígene é vista e aceite pela sociedade australiana ao longo dos anos.

A arte sempre fora uma ferramenta extremamente importante para os aborígenes australianos, e através desta puderam afirmar a sua identidade enquanto comunidade, servindo como ferramenta de negociação com o “outro”, acabando por tornar-se um forte instrumento político utilizado em questões como os direitos à terra ou justiça social.

III.I. The dawn of Art80

As primeiras manifestações da cultura aborígene observada por exploradores europeus não foram consideradas como arte, mas sim como evidências etnológicas. Nesta altura, no início do século XIX, os povos aborígenes eram situados no patamar evolucionário mais baixo, sendo considerados um povo sem cultura e arte. Só na segunda metade do século XIX é que surge um interesse verdadeiro por parte dos antropólogos em estudar os povos aborígenes, procurando desvendar as complexas estruturas religiosas em que as suas sociedades

m Pessoa ou pessoas de descendência europeia. Balanda também se refere de forma coletiva à cultura dominante de língua inglesa na Austrália e a todas as nações ocidentais. Tem origem em “Belanda”, termo que deriva de “Hollander”, que descreve o Holandês e que ainda hoje é utilizado na indonésia. Hiperligação: www.whywarriors.com.au/Definitions.php

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“primitivas” estavam fundadas. Assim os seus produtos culturais passaram a deter um papel fulcral na interpretação dos seus universos.

A primeira exposição de arte aborígene na Austrália, resultado deste interesse, acontece em 1888. Intitulada de “The Dawn of Art”, exibe publicamente desenhos de animais, plantas e figuras dançantes, realizados por prisioneiros aborígenes. Porém, só em 1929, no Museu Nacional de Victoria (NMV), é que surge a primeira grande exposição a apresentar arte aborígene. “Primitive Art” exibe um conjunto de pinturas em casca da árvore - Eucalyptus tetradonta - da tribo de Alligator River, que tinham sido colecionadas desde 1912 pelo antigo diretor do museu, Baldwin Spencer81, cuja “escrita e coleção promoverá a arte aborígene nos anos vindouros”82. No mesmo ano, segundo um olhar antropológico, é apresentada em Melbourne a exposição “Australian Aboriginal Art”, onde as obras aborígenes são equiparadas a obras cubistas e impressionista83. Nesta mesma época, alguns artistas modernistas já assumiam a influência da cultura e arte aborígene na sua prática artística, como é o caso inicial dos artistas Margaret Preston ou Len Lye. Muitos outros se lhes seguiram, ao assumirem uma afinidade entre as formas da arte aborígene e os movimentos de vanguarda europeus, especialmente o Cubismo e o Expressionismo84.

Durante os anos 3085, “várias missões desenvolveram um pequeno mercado de curiosidade exóticas nas cidades do sul da Austrália”86, onde uma série de objetos produzidos por comunidades aborígenes eram vendidos. Esta seria a primeira etapa de uma comercialização dos produtos culturais aborígenes, embora quase insignificante comparativamente ao volume atual. Nesta mesma década, Rex Battarbee, um artista australiano branco, introduz a pintura de aguarela segundo o padrão europeu, a artistas aborígenes de uma missão em Hermannsburg, perto de Alice Springs. Esta técnica foi apreendida por Albert Namatjira, que se tornou no primeiro artista aborígene conhecido. Muitos artistas aborígenes acreditavam que era possível existir uma negociação entre as duas culturas, encarando-a mesmo como um meio fundamental para a sobrevivência da sua cultura. Alguns chegaram a estabelecer colaborações com artistas brancos nesse sentido. Tal foi o caso entre Rex Battarbee e Albert Namatjira ou Yirawala e Sandra Holmes. Numa época de políticas de assimilação, o sucesso de um artista aborígene que dominava as práticas artísticas europeias, servia como prova do enorme sucesso de tais políticas, sendo Namatjira mesmo considerado como um emblema das políticas de assimilação.

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Contudo, o reconhecimento nacional que atingiu deveu-se ao facto de ter sido o primeiro australiano cuja arte sugeria uma interligação das duas culturas distintas, uma relação direta entre uma cultura indígena e o modernismo.

Rex Battarbee acreditava que a obra de Namatjira “era possivelmente a mais próxima de uma arte australiana verdadeira”87. Porém, o mundo da arte não partilhava da mesma opinião, e consideravam-no um copiador de arte de segunda categoria, “um imitador dos imitadores”, sendo a sua arte um reflexo exímio “da assimilação das artes visuais, característica duma extrema dominação cultural”88. Segundo Wally Caruana, “Namatjira realizou a maior contribuição para uma mudança de mentalidade (…) alterando a perceção negativa dos australianos em geral, para com os povos aborígenes (...) acabando por lançar as fundações para uma aceitação dos seguintes desenvolvimentos da arte aborígene”89, nomeadamente o movimento de pintura acrílica em tela nos 70, os Papunya Tula.

III.II. De primitiva a Fine-Art

Até aos anos 40, à exceção das aguarelas de Namatjira, a “arte aborígene era praticamente desconhecida e pouco apreciada pelas suas qualidades estéticas por entre o público australiano. Até à data poucos australianos levavam a sua cultura colonial seriamente”90.

Em 1941, os australianos mostram pela primeira vez a arte aborígene num contexto internacional, através da exposição “Art of Australia 1788-1941”, que viaja por 29 cidades dos EUA e Canadá91, entre 1941 e 1945. Esta apresenta simultaneamente obras de artistas aborígenes e não aborígenes, correspondendo as primeiras a três desenhos de Tommy McRae e onze pinturas em casca de árvore do NT. A exposição tinha como objetivo principal, apresentar a arte aborígene como a arte precursora na Austrália, uma contextualização histórica da arte que se fazia no outrora. Contudo acaba por ser descrita “como um ciclo, que partia de trabalhos de aborígenes, continuando para o estilo dominante do século XIX da arte britânica, terminando com a influência de trabalhos aborígenes como base para um novo olhar sobe a arte nacional australiana”92. Já nesta altura era a arte aborígene que se destacava no panorama artístico australiano, embora continuava a ser menosprezada pelos próprios australianos. No mesmo ano, em Sydney, é apresentada a exposição “Exhibition of Australian Aboriginal Art and Its Application” na Art Gallery of David Jones, que exibe

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paralelamente “artefactos aborígenes e obras de artistas não aborígenes que utilizavam motivos aborígenes ou retratavam indivíduos aborígenes”93. Esta exposição acabava por proclamar e promover a apropriação da arte aborígene pelos australianos brancos, no “sentido de fomentar a criação de uma identidade artística australiana única”94. Tal não era novidade, tendo-se já observado anteriormente na arte europeia ou americana que também se apropriara de formas e designs de outras culturas ditas primitivas.

Já desde 1942 que os antropólogos Ronald e Catherine Berndt propunham que o governo impulsionasse um mercado focado em arte aborígene, uma forma dos povos aborígenes australianos alcançarem uma certa independência económica através da sua “arte autêntica”95. Apesar da nobreza destes objetivos, o que se observaria com a criação de tal mercado de arte aborígene, caso fosse controlado pelo Governo branco australiano, seria que apesar de trazer uma aparente estabilidade económica, traria intrinsecamente uma submissão da cultura e valores aborígenes ao Governo, que gozaria de pleno controlo, ao ter na sua posse o instrumento para a sua sobrevivência. O facto de estes dois antropólogos passarem a considerar a arte aborígene como arte propriamente dita e não como mero artefacto, não implicou que esta fosse aceite como modernista ou contemporânea, pois este ‘estatuto’ apenas tinha sido adquirido até à data pela escola de Hermannsburg, da qual Namatjira pertencia96. As obras deste artista foram as primeiras a serem adquiridas por museus ou galerias estatais, datando a primeira compra em 1939, para a coleção da Art Gallery of South Australia (AGSA), em Adelaide, um ano após Namatjira ter apresentado a sua primeira exposição individual na Fine Art Society’s Gallery, em Melbourne.

Com o fim da segunda guerra mundial aumentam o número de estudos antropológicos, e começa-se a observar um crescente interesse em alguns dos aspetos da cultura e arte aborígene, resultando numa maior apreciação da arte aborígene. Com o crescente nacionalismo que se observa nesta data, a “arte aborígene providencia uma herança cultural alternativa”97 no sentido de colmatar a falta de identidade nacional que se sentia. Marco desta progressiva aceitação da arte aborígene pelo público australiano é a exposição com obras de , no final dos anos 40, na Art Gallery of David Jones. Esta atraiu só na primeira quinzena mais de 5000 visitantes. Todavia, “a crítica australiana esteve silenciosa”98, dado estarem fundamentalmente interessados numa arte ocidental, ignorando inicialmente as exposições de arte aborígene. Outra exposição que marca igualmente este

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percurso é a exposição “The Art of Arnhem Land” em 1956, curada pelos antropólogos Ronald e Catherine Berndt, no Museum and Art Gallery of Western Australia, em Perth, que foi significativa dada ser a “primeira vez que identifica os artistas dentro das suas tradições estilísticas”99.

Em 1956, a doação de obras aborígenes de Arnhem Land, colecionadas pelo etnólogo Charles Mountford durante as suas expedições científicas, a seis das galerias estatais de arte australiana, acaba por encorajar os Museus a começarem a construir as suas próprias coleções, sendo esta determinação mais visível na Art Gallery of New South Wales (AGNSW). Esta em 1959 possui um processo de compra bastante ativo que culmina na exposição “Australian Aboriginal Art” no ano seguinte, curada pelo artista e curador Tony Tuckson. Apresentando uma variedade de obras da sua coleção, segundo um desenho expositivo de acordo com as modas mais contemporâneas da época, assinala o “início de uma aceitação e integração das artes aborígenes como parte das coleções de museus nacionais”100. Segundo o crítico de arte Alan McCulloch, esta exposição “fora uma das exposições mais marcantes que itinerou pela Austrália”101 e pela primeira vez os críticos de arte começam a escrever sobre arte aborígene em modos equiparáveis a qualquer outra arte contemporânea. Porém, apesar destas associações ao modernismo, as obras de artistas aborígenes continuavam a “não fazer parte da dita arte australiana, pois eram produzidas por um dos ‘povos mais primitivos do mundo’”102, e por tal permaneciam obras de arte primitiva. Reflexo desta mentalidade é a não inclusão de qualquer referência à arte aborígene na enciclopédia sobre arte australiana, publicada por McCulloch em 1968, dado esta ”não fazer parte do mundo da arte australiana”103.

Embora alvo de diversas contradições, a exposição de Tuckson preparara o terreno para o que iria suceder nos anos 80. Ao exibir a arte aborígene como obras de arte de acordo com a estética modernista do “white cube” - um mínimo de informação necessária e uma máxima exploração do sentido formal e estético104 - acaba por desviar a atenção da sua forte carga etnográfica que possuem, retirando-as do invólucro ‘primitivo’.

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III.III. Arte Aborígene como Fine-Art

Apesar ter sido evidente nos anos 50, o investimento em arte aborígene por parte do governo e uma inigualável visibilidade para a arte aborígene em textos antropológicos e em exposições, essencialmente com as aguarelas de Namatjira e com as obras de Arnhem Land, considerava-se que a arte aborígene teria atingido o seu apogeu. A “cultura aborígene estaria condenada (...) a cultura tribal e as suas cerimónias perderam o seu significado, e a arte era produzida essencialmente com propósitos decorativos, ou pior estava ‘ocidentalizada’”105. Segundo Alain McCulloch, a arte deixara de ser autêntica e exprime assim a sua preocupação ao considerar que a “verdadeira arte aborígene estaria a desaparecer, precisamente porque tinha assimilado demasiado rápido as práticas artísticas ocidentais”106. Todavia, manter a “autenticidade” era para os povos aborígenes uma forma de resistirem às políticas brancas australianas, que pretendia afastá-los das suas tradições. O artista Yirawala, um líder cerimonial de um povo em Arnhem Land, considerava a sua arte como um veículo fulcral para a partilha do seu conhecimento e sabedoria tribal, quer para com o seu povo, quer para com o branco, o balanda. Em 1964, Yirawala convence Sandra Holmes a receber a sua doação de um conjunto de 139 pinturas em casca de árvore, que representam o ciclo completo das narrativas cerimoniais do seu povo. O artista pretendia que fossem expostas num museu com o propósito de ajudarem o branco a compreender a cultura aborígene107. Com esta visibilidade Yirawala acreditava conseguir salvaguardar de alguma forma a sua cultura e readquirir o direito das terras ancestrais para o seu povo. Este artista foi responsável pela impulsionamento das práticas artísticas num contexto de belas-artes, ao influenciar artistas aborígenes a “incorporarem as suas estéticas tradicionais no mercado da arte, através do conceito de belas-artes, em vez de arte de missão ou turística”108. Ao contrário de Namatjira que representava o aborígene ‘assimilado’, Yirawala representava o aborígene independente que utilizava a sua arte como uma ferramenta para a autodeterminação do povo aborígene. Dado o seu sucesso, acaba por ser o modelo de muitos aborígenes, que seguem o seu exemplo e iniciam uma carreira artística no ramo das belas-artes.

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A autenticidade nas obras de aborígenes acaba por ser um fator determinante na sua luta pelas suas terras ancestrais. Segundo Wally Caruana, o povo aborígene de Arnhem Land desde 1963 que tentava utilizar a sua arte como prova do vínculo às suas terras ancestrais, chegando mesmo a submeter um conjunto de pinturas em casca de árvore como prova legal para readquirem o direito às suas terras109. Em 1976, com a aprovação do Ato Aboriginal Land Rights, os povos aborígenes obtém uma fundamentação legal para requerem tal direito. Foi portanto fulcral, a determinação de defensores da ‘aboriginalidade’, como Yirawala, em manterem-se fiéis às suas tradições.

Os anos 60 foram determinantes no que concerne à promoção dos direitos civis de povos descriminados em muitos territórios. Mais especificamente na Austrália, com a abertura do país ao mundo exterior, observou-se um créscimo de liberdades políticas e uma maior abertura social e económica no país. Tal acaba por se refletir na criação e na multiplicação de entidades que se debruçavam sobre assuntos relacionados com os povos aborígenes. Especialmente após o ano 1967, ano do Referendum, são criados um conjunto de organismos governamentais para lidar com os assuntos aborígenes. Destes, os especialmente ligados a questões políticas, são o Office for Aboriginal Affairs (OAA) e o Council for Aboriginal Affairs (CAA), criados em 1967. Na área das artes foram criados diversos organismos focados no desenvolvimento do mercado da arte aborígene: Australian Council for the Arts (ACA) em 1968; o Aboriginal Arts Adviser Committee (AAAC) em 1970, e por fim, o Aboriginal Art and Crafts Pty Ldt (AAC) em 1971.

Estes organismos acreditavam na potencialidade lucrativa de um mercado de arte aborígene, mas apesar dos esforços realizados nesse sentido, o foco neste momento no mundo da arte na Austrália era direcionado para o internacionalismo, o que acabou por conduzir a um “esquecimento” da arte aborígene, sobretudo porque não se enquadrada nos padrões internacionais de arte contemporânea. Como resultado, observa-se uma perda de interesse por parte das galerias e museus em continuarem a adquirir e expor arte aborígene. Exemplo disso é o facto de quando Sandra Holmes tenta organizar a exposição com as obras de Yirawala, não existe qualquer aceitação por parte das galerias estatais, sendo os trabalhos apenas acolhidos pelas Universidades. Neste período destacam-se duas exposições importantes que não têm qualquer presença de arte aborígene. Estas pretendiam mostrar uma Austrália vanguardista, mais ocidentalizada e sem qualquer referência a uma herança

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ou influência aborígene: a “The Field” co-curada por Brian Finemore e John Stringer na National Gallery of Victoria (NGV)110, em 1968, e a “The Australian painters 1964 - 1966: Contemporary Australian painting from the Mertz collection” que iterou nos EUA. A primeira focava a Arte Australiana abstrata (minimal), e a segunda, apesar de não apresentar influências do minimalismo, apresenta essencialmente artistas australianos modernistas da geração do pós-guerra, procurando mostrar o quão “americana a arte australiana era”111. Esta última resultou de uma vontade pessoal do colecionador americano Harold Mertz, que quando visita a Austrália em 1964, fica fascinado pela paisagem, pessoas e pela arte. Achando que “a arte australiana refletia o que o fascinou decide colecionar obras de todos os artistas australianos cujo talento fosse reconhecido”112.

A escassez de interesse na arte aborígene durante os anos 60 e 70 não impediu os artistas aborígenes de continuarem a trabalhar arduamente para conseguirem penetrar no mercado de arte contemporânea segundo os seus termos. Coube à AAC, entidade governamental responsável pelo marketing da arte aborígene, conduzir durante os anos 70, agressivas campanhas de marketing para promover, divulgar e valorizar a arte aborígene, chegando mesmo “a conseguirem que os preços duplicassem literalmente da noite para o dia”113. Apesar das intenções da “Commonwealth Art Board serem essencialmente económicas, ao seguirem as recomendações de um estudo sobre o turismo australiano em 1965”114, não se deve subestimar a resistência da cultura e determinação da população aborígene.

III.IV. Novos desenvolvimentos: Papunya Tula e o papel do Governo no impulsionamento da Arte Aborígene

No começo dos anos 70 assiste-se a grandes desenvolvimentos no que diz respeito à arte aborígene: o aparecimento de um novo movimento de arte aborígene, os Papunya Tula, e a eleição de um governo que irá promover a arte aborígene, de uma forma nunca vista.

Em 1971, um professor de arte de uma escola primária em Papunyan, Geoffrey Bardon, encoraja diversos anciões aborígenes locais a participarem num mural, utilizando as influências e técnicas tradicionais. A ideia de um pintura pública utilizando imagens n Comunidade remota aborígene, 250 km a oeste de Alice Springs.

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tradicionais acaba por causar um enorme debate por entre a comunidade aborígene; por um lado, por se tratar de motivos de certa forma secretos - aqui é necessário fazer referência ao facto de cada comunidade ou mesmo praticantes individuais possuírem o direito de autoria dos seus motivos e histórias, cuja divulgação pública e a brancos não era permitida; e por outro, por esses desenhos até à data nunca terem abandonado os suportes tradicionais como a rocha, o corpo, os artefactos ou o chão. Assim, pela primeira vez o ancião Old Tom Onion Tjapangati proprietário da história “Honey Ant Dreaming” autorizou uma série de artistas aborígenes a pintarem a sua história no mural, alterando no entanto os símbolos cuja divulgação pública era estritamente proibida.

Tal mural e outros que lhe seguiam acabaram por encorajar outros artistas locais a pintar com os novos materiais acrílicos que Bardon tinha disponibilizado. O principal ator do movimento que seria desenvolvido, foi Kaapa Mbitjana Tjampitjinpa, que antes da chegada de Bardon já teria experimentado a transição para tábua de madeira, utilizando porém os materiais tradicionais. A grande mudança com a introdução de materiais sintéticos está relacionada com a extensa paleta cromática agora acessível aos artistas aborígenes, que passam de materiais essencialmente baseados em cores provenientes de matérias naturais, como o ocre e carvão, para uma paleta com novas cores nunca experimentadas.

A cooperativa de artistas Papunya Tula acaba por ser criada em 1972 pelos artistas aborígenes, e assiste a diversos desenvolvimentos aparentemente insignificantes mas com um grande impacto no mercado da arte. Os artistas que inicialmente pintavam sobre placas de madeira de tamanho reduzido, dado pintarem-nas no seu colo, ao deparam-se com uma necessidade de alargar a dimensão da superfície em que trabalham, e encaram a tela como um suporte não só fácil de acondicionar e transportar, mas também adequado à nova dimensão que ambicionavam, e assim, acabam por transpor os seus desenhos para telas de tamanhos significativos.

Já num plano político, em 1972 dá-se uma mudança significativa a favor da arte aborígene, com a eleição do governo trabalhista, liderado por Gough Whitlam. Procurando uma ‘mudança’, concebe um novo estado de espírito no país, ao tentar “eliminar o racismo, medos e preconceitos”115, instituindo uma política de autoconfiança em assuntos aborígenes e os respectivos fundos para os suportar. Como resultado, no ano seguinte, é criada a

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Aboriginal Arts Board (AAB), liderada e formada por aborígenes, um assinalar de abertura e passagem de testemunho para este povo. A AAB focava inicialmente a sua atenção na produção artística em centros remotos e empregava consultores profissionais para coordenar a produção e mercado de arte aborígene como belas-artes, tendo por tal o acesso direto à produção das obras e aos artistas. Este organismo acabou por ser também o principal colecionador de arte aborígene na Austrália.

No ano de 1975, James Mollison, diretor da National Gallery of Australia (NGA), adquire para a coleção da instituição, as obras que formam o ciclo completo das narrativas cerimoniais do artista Yirawala, as mesmas doadas por este artista a Sandra Holmes e que foram descartadas apenas anos antes. Esta compra foi possivelmente fruto das recomendações do relatório Lindsay Report116 de 1966, que aconselhava a aquisição de arte aborígene não por razões antropológicas mas pelo seu mérito estético”117. Apesar desta compra, nenhuma obra aborígene foi incluída na primeira exposição itinerante “Genesis of a Gallery – Part 1”, organizada pela NGA em 1977, antes do edifício da NGA estar construído. Segundo Ian McLean, Mollison admirava as pinturas de Arnhem Land, mas não as considerava uma forma de arte contemporânea, e por tal, no catálogo desta exposição referiu que a arte aborígene não seria colecionada de forma significativa, visto que, “quando uma área já está significativamente coberta por um museu já estabelecido, não existe a necessidade da NGA duplicar tais esforços”118. É evidente que as prioridades no que diz respeito às aquisições para a coleção da NGA por parte do seu diretor, seriam o reflexo das modas do mundo artístico, no qual a prática artista aborígene era dificilmente encarada como contemporânea ou modernista, e por isso sem qualquer interesse intelectual no panorama da arte euro- americana. Já a segunda parte da exposição “Genesis of a Gallery – Part 2” que circulou pela Austrália em 1978/79119, inclui uma obra de Yirawala, resultado das aquisições de 1975.

Durantes estas duas décadas, o esforço da AAB foi crucial para um reinvestimento na arte aborígene. A maioria das instituições artísticas estatais ou comerciais não estavam a adquirir este tipo de arte, e mesmo as que possuíssem um espólio significativo não sabiam como enquadrá-las devidamente nas suas coleções120. É compreensível a razão pela qual a AAB tinha “imensas dificuldades em persuadir museus e galerias estatais a adquirirem, quer pela compra ou oferta, arte aborígene para as suas coleções”. Contudo continuou a convencer

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diversas instituições artísticas para investirem, nomeadamente a AGSA, que em 1978 acolhe vinte pinturas aborígenes para constarem na sua coleção.

O grande desafio da AAB era conseguir que a arte aborígene fosse aceite como arte contemporânea. Para ajudar à obtenção de tal fim, em 1976, a AAB cria um novo organismo, a Aboriginal Artists Agency (AAA), responsável pela promoção da arte aborígene em todas as áreas, incluindo em eventos de arte contemporânea. Com uma atuação e demarcação no território do mercado das artes em todas as frentes, vemos em 1979 a estratégia da AAB a começar a colher frutos com a inclusão inédita de obras de artistas aborígenes na Bienal de Sydney: European Dialogue. Dois anos depois, a AAB organiza uma grande exposição itinerante, “Aboriginal Australia”, que foi instrumental no desenvolvimento da sua estratégia de infiltração no mercado da arte contemporânea. A recente aceitação da arte abstrata no mundo da arte, aparentemente tornara a arte aborígene mais fácil de apreender, tendo-se mesmo criado uma relação de aproximação entre a Arte Aborígene e a Arte Abstrata no catálogo da exposição. Esta relação é consequencialmente materializada no mesmo ano, na primeira edição da exposição “Australia Perspecta” na AGNSW que apresenta o panorama da arte contemporânea australiana. Nesta, a curadora Bernice Murphy decide justapor obras abstratas australianas com três grandes pinturas acrílicas dos Papunya Tula e, pela primeira vez dentro da Austrália, a arte aborígene é afastada do habitual paradigma antropológico e com facilidade nivelada à arte contemporânea. Na realidade, anos antes, em 1978, Murphy já tinha apresentado uma exposição que enquadrava a arte aborígene segundo os moldes contemporâneos, a intitulada “Landscape and Image: A selection of Australia Art of the 1970s”, que tivera um impacto muito reduzido por ter apenas iterado pela Indonésia.

A exposição “Australia Perspecta” de 1981 foi crucial para uma mudança das políticas de aquisição da NGA, sobretudo por ter convencido o seu atual diretor. Mollison ao visitá-la depara-se com as telas dos Papunya Tula dispostas de uma forma tão excecional dentro do espaço “white cube”, justapostas a obras contemporâneas que ele tinha vindo a apostar, que ‘converte-se’ totalmente à arte aborígene e decide que irá iniciar um programa regular de aquisição de obras de arte aborígene contemporânea para a NGA121. Esta decisão, contudo, só se torna evidente em Maio de 1984, quando Mollison organiza a conferência do Institute of Aboriginal Affairs na NGA, e visita as galerias de pinturas rupestres no Parque Kakadu,

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qualificando publicamente “as telas acrílicas do movimento de arte aborígene Papunya Tula como o maior feito no campo da arte abstrata até à data na Austrália”122. Na NGA, uma proporção dos fundos provenientes da admissão de visitantes passa agora a ser direcionada para a aquisição de arte aborígene, e o seu departamento de arte aborígene, agora sobre a administração de um proeminente curador, Wally Caruana, começa a bom rigor. Um dos atuais especialistas em arte aborígene, Caruana manteve o lugar de curador sénior na NGA entre 1984 e 2001, e muito impulsionou a compreensão e o fascínio por esta arte, através das múltiplas exposições e publicações de que fez parte, dando a conhecer ao mundo da arte, o contexto e originalidade da arte aborígene.

III.V. Um novo rótulo: Arte Aborígene Contemporânea

O paradigma modernista manteve a arte aborígene e a ocidental em pontos opostos, mas com o questionamento das teorias modernistas, que se definia contra o próprio primitivismo e que assegurou que a arte aborígene nunca seria assimilada pela arte modernista, é que o mundo da arte estava agora numa posição favorável para poder ver a arte aborígene de um outro modo – num contexto pós-primitivo.

Esta transição de arte primitiva para contemporânea é sinalizada pela primeira vez em 1982, num jornal de arte australiano. Kenneth Coutts-Smith reporta a convergência entre a pintura acrílica aborígene e a arte pós-modernista minimalista.123 No ano seguinte, Clifford Possum Tjapaltjarr do movimento Papunya Tula, torna-se o primeiro artista aborígene a ganhar um prémio de arte contemporânea nacional - o prémio Alice Prize. O júri era Patrick McCaughey, um defensor da arte abstrata internacional e diretor da NGV.124 Se o governo estava a fazer pressão para que a arte aborígene fosse aceite como contemporânea, é natural que as políticas atuais tenham influenciado de certa forma esta decisão do júri. Nos anos subsequentes, os artistas aborígenes iriam receber quase metade dos prémios Alice Prize.

Com este mudar de atitudes é interessante fazer referência ao facto de a bienal ‘Australian Perspecta’, considerada o principal mostruário de arte Australiana, no ano de 1985, não incluir qualquer obra de artistas aborígenes, apesar de o ter feito em edições anteriores. Por volta da mesma altura, o historiador de arte Terry Smith identifica a “arte aborígene como

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uma ausência flagrante no discurso de arte e necessita de uma atenção urgente”125. Smith também alerta para a falta de reflexão teórica, não antropológica mas sim a nível artístico, no sentido de desenvolver uma plataforma discursiva que desenvolva a “questão das relações entre artistas brancos e aborígenes” bem como a “questão da influência da cultura subjugada e alienada Aborígene na consciência cultural branca“.126

Já em 1986, na Bienal de Sydney: Origins, Originality + Beyond, existe uma presença significativa de arte aborígene, que apesar de ter sido considerada como um ponto fulcral na rutura de ideologias anteriores, deve ser compreendida além deste contexto em que uma prática artística aborígene é reconhecida dentro de um mercado artístico maioritariamente branco. É um momento em que a “arte aborígene rompe os espaços físicos e sociais do mundo da arte”127, assinalando-se como um dos pontos inaugurais da descolonização. Vivien Johnson, socióloga e historiadora de arte, afirma em 1986, que “esta inclusão representa uma contribuição (...) para o desmantelamento de pretensões colonialistas e imperialistas que demarcam este tipo de eventos”128.

Paralelamente aos eventos que ocorriam em território australiano, as organizações governamentais procuravam também promover a arte aborígene internacionalmente. Exemplo disso foi em Portugal a exposição “Papunya: pinturas aborígenes do deserto australiano” em 1984, na Fundação Calouste Gulbenkian. Ou em Paris, no Festival de Outono, que tinha como exposição principal “The other continent: Australia, the dream and the real”, que incluía pinturas de chão e performances dos Warlpiri. Inserido neste mesmo evento, a embaixada da Austrália organizara uma segunda exposição com pinturas dos Papunya Tula. Relativamente a estas duas últimas em Paris, Jill Montgomery, um crítico de arte australiano, afirma que “se não existisse a contingência da arte aborígene, a contribuição da Austrália seria no máximo um “não evento” (...) visto que a arte produzida por colonos australianos era geralmente associada a uma assimilação faminta de igualar de ideias ou modas que tinham como ponto de origem os EUA ou a Europa”129. “Enquanto os australianos continuarem a depender da Europa e da América do Norte para confirmação da sua própria identidade, não serão mais do que uma cultura periférica”.130 Um olhar diferente sobre estas exposições é o modo como o artista australiano Juan Davilla as encarou: ”a apresentação de arte aborígene é como uma autêntica ‘telenovela’ para satisfazer os europeus do seu desejo pelo exótico”131.

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Apesar de um certo criticismo, o êxito da arte aborígene continua a manifestar-se, assistindo- se à sua elevação em diversos momentos chave, como em 1987, onde Ron Radford, futuro diretor da AGSA, manifesta a sua convicção de que “a pintura aborígene deve ser considerada como a área mais rica da arte australiana nos dias que correm”. 132 Aqui, é interessante o facto de tanto os atuais diretores de galerias estatais como os futuros diretores, apoiarem a arte aborígene e de a exaltarem mesmo comparativamente à restante arte australiana.

III.VI. Bicentenário da “Invasão” Australiana

Em 1988, assiste-se às comemorações dos 200 anos do início da colonização na Austrália, que promovem um conjunto de iniciativas para promover a herança cultural nacional, nomeadamente através de exposições de arte. As comemorações deste bicentenário incluem o evento principal, a exposição internacional World Expo 88 em , uma iniciativa que atraiu 15 milhões de visitantes133, e que apresenta pavilhões representativos de diferentes países. Esta acaba por ser uma forma de divulgação e promoção a nível internacional da sua cultura e arte, nomeadamente a produzida por aborígenes. Este evento apresentou a exposição de cultura aborígene “The Inspired Dream: Life as art in aboriginal Australia”, uma evolução da arte aborígene desde à 40.000 anos atrás até aos dias de hoje, com uma seleção de objetos do Northern Territory Museum of Arts and Science, nomeadamente fotografias documentais de pintura rupestre, pintura em casca de árvore e postes fúnebres. O intuito desta exposição era o de explorar o impacto da colonização na prática artística aborígene134.

A exposição inserida na programação da World Expo 88 fez parte de um conjunto de cinco grandes eventos culturais, sendo os restantes: 1) a exposição itinerante ”Creating Australia”, que procurava fomentar uma reflexão sobre os principais paradigmas nacionais, através de uma consciencialização sobre o passado e um impulsionamento para uma nova esperança para o futuro135, correspondendo à “primeira tentativa de ver a [arte aborígene] inserida numa contínua história da arte australiana”136; 2) a exposição internacional “Dreamings: The art of Aboriginal Australia”, na The Asia Society Galleries, em Nova Iorque, que acaba por ser a primeira exposição a apresentar e contextualizar unicamente a arte e cultura aborígene num

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contexto internacional, apresentando telas acrílicas dos Papunya Tula. O movimento artístico que estava em voga, trazendo um reconhecimento internacional à arte aborígene137; 3) a instalação “Memorial Aborígene”, apresentada na NGA; 4) o mosaico do artista Warlpiri Michael Nelson Tjakamarra, instalado em frente aoo Parlamento, na capital Canberra.

Estes dois últimos, realizados por aborígenes, expuseram sentimentos contrários às motivações das comemorações. Se os Australianos estavam a comemorar o início de uma colonização (do ponto de vista do colonizador e conquistador), os aborígenes estariam a assinalar o início da sua opressão como colonizados, com todas as repercussões negativas que esta teve para com o seu povo.

Figura 8 - The Aboriginal Memorial, National Gallery of Australia.

O Memorial Aborígene (Figura 8), constituído por 200 postes funerários de um grupo de artistas de Ramingining na Arnhem Land, situada no norte da Austrália, foi uma iniciativa de Djon Mundine, curador desta instalação. Esta já tinha sido exposta inicialmente na VII Bienal de Sydney - From the Southern Cross: A view of World Art c. 1940-1988, no mesmo ano. A instalação representa um mapa da Arnhem Land, dividida pelo rio Glyde, demarcado através da disposição dos próprios postes funerários, e que flui para o mar Aratura. O formato do rio acaba por dividir a instalação, e assemelha-se ao símbolo yin-yang, no sentido de representar forças contrárias que estão interconectadas e interdependentes no mundo natural138. “Cada poste representa um ano de colonização, bem como todos os aborígenes que pereceram na luta pelas suas terras e aos quais foi negado um funeral respeitável”139. Esta obra é um memorial de guerra, e num país que preenche o seu território com inúmeros memoriais, este é o único que recorda o povo aborígene. A instalação acaba por representar o passado, o presente e o futuro do povo aborígene140, e segundo Terry Smith, é a peça de arte australiana mais importante do final do século XX141.

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O mosaico do artista Michael Nelson Tjakamarra (Figura 9), contraposto com o próprrio Parlamento Nacional, funciona como uma representação alternativa ao poder político preponderante, e confirma de certa forma “um processo cultural extenso, desenvolvido desde 1970, no qual as obras de aarte produzidas por aborígenes abriram caminho nas vitórias políticas para o povo aborígene”142. O mosaico, baseado nos designs do povo do artista - os Warlpiri do deserto central australiano - compõe formas que significam lugares importantes onde se realizam cerimónias143, representando o “Possum e o Wallaby Figura 9 – Mosaico de Michael Dreaming” É inaugurado pela Rainha de Inglaterra e da Nelson Tjakamarra, em frente à Austrália, num “aparente simbolismo de uma reconciliação Casa do Parlamento Australiano racial tão desejada por muitos dos australianos”144. Este (Canberra). símbolo de reconciliação de 1988 é também palco de um episódio histórico protagonizado por Tjakamarra em 1993 (Figura 10), no seguimento de diversos recessos nas políticas aborígenes. Tjakamarra retorna a Canberra, e rodeado pela imprensa, num ato de revolta, remove a peça central do seu mosaico, envolta num conjunto de linnhas em círculos concêntricos representando a união de pessoas num encontro. Tjakamarra afirma: “Poovo branco. Vocês parecem não entender. Eles olham para o meu trabalho, e Figura 10 - Protesto contra a legislação anti-Mabo junto à Casa todos eles veem uma pintura bonita. Vocês, povo branco, do Parlamento (Canberra), 27 de tiraram este país de nós… Povo branco deve entender. Setembro de 1993. Este país é a terra natal dos povos Aborígenes…Nós O artista Michael Nelson Tjakamarra retira uma das peças queremos manter a nossa cultura forte para os fillhos dos centrais do seu mosaico. nossos filhos. Nós não podemos fazer isso sem a nossa (Imagem de Erin Jonasson). terra, porque é a nossa terra, os nossos sonhos, histórias, pinturas… todas estão intrínsecas à nossa terra. Tudo isto tem vindo a mudar… O Governo da Austrália não reconheceu o nosso povo e a nossa cultura, está a abusar da minha pintura e a insultar o meu povo. Eu quero levar a minha pintura de volta para o meu povo.145 146

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Em 1988, durante as comemorações deste bicentenário, a maioria dos aborígenes não estava de acordo com o motivo das mesmas, e assim organizaram uma manifestação política em Sidney, no dia 26 de Janeiro, o dia da Austrália, data que assinala a chegada da primeira frota em Sydney Cove em 1788 e a proclamação da soberania britânica sobre a costa leste da Nova Holanda. A manifestação sobre a forma de uma marcha aclamada de March of Freedom, Justice and Hope assinalava o dia da invasão147. A artista aborígene Brenda L. Croft captou a magnitude deste evento quando fotografa o seu colega ativista Michael Watson durante a marcha (Figura 11). Neste retrato, Michael, numa posição de um homem Figura 11 - Brenda Croft, Michael Watson in Redfern on the Long aborígene orgulhoso da sua identidade e a firmar a March of Freedom, Justice and Hope, sua posição, com uma estampa na sua t-shirt que Invasion Day, 26 January 1988, ridiculariza a descoberta da Austrália pelo Capitão 1988, Sydney, Austrália.

Cook, com a expressão “Cook Who, Cook – oo”.

Apesar dos aspetos negativos que rodearam este Bicentenário, os eventos culturais que ocorreram foram determinantes no impulsionamento de uma consciencialização da cultura aborígene por entre toda a população australiana. Um estudo revela que os australianos tornaram-se mais conscientes sobre o seu passado e mais interessados em preservar o seu património148.

No ano seguinte, em 1989, acontece uma das mais importantes exposições do panorama artístico, que marcará uma viragem na história da arte. A exposição Magiciens de la Terre, em Paris, altera a perceção e modo como as artes ditas ‘indígenas’ são encaradas dentro do mundo da arte contemporânea. Esta exposição curada por Jean-Hubert Martin contrapõe cinquenta artistas de práticas etnocêntricas e cinquenta artistas ocidentais, procurando colmatar o problema que Martin descrevve como “cem por cento das exposições ignorarem oitenta por cento da Terra”. Trata-se da “primeira exposição de arte contemporânea mundial, que abre uma reflexão interna potencialmente produtiva na relação entre a nossa próprria 53

cultura e as restantes culturas do mundo”149. No contexto da arte indígena australiana, a obra ‘Yarla’ dos artistas Yuendumu foi apresentada em diálogo com a obra ‘Red Earth circle’ do artista inglês Richard Long. Ambas produzidas com matérias naturais semelhantes, acabam por apresentar as influências ou contaminações que ocorrem nos diversos diálogos com o “outro”.

Os “países bem-sucedidos e dominantes impõem as suas leis e estilos aos outros países, mas ao mesmo tempo também as emprestam e tornam-se permeados por outras formas de vida. A noção de identidade cultural … é o produto de um conceito estático da atividade humana, (…) a cultura é sempre o resultado de uma crescente dinâmica de intercâmbios. Podemos mesmo ir mais longe ao dizer que a aculturação não existe.“150 Se nesta citação de Jean-Hubert Martin, estendermos a noção de país a povo, esta facilmente se pode enquadrar na situação australiana. Nesta, o povo branco australiano impõem-se perante a minoria autóctone, e ao mesmo tempo, de forma acidental a última acaba por impor a sua arte à australiana, tornando-se mesmo a preponderante, parte da identidade da nação. Os intercâmbios que ocorrerem entre estas duas, com heranças culturais distintas, acabam por se influenciar mutuamente. O ’branco’ apropria-se dos designs aborígenes e o ‘aborígene’ das técnicas ocidentais, surgindo mesmo projetos artísticos resultantes da colaboração entre ambos.

III.VII. Arte Aborígene na Voga

No mesmo ano em que sucede a exposição “Magiciens de la Terre” é apresentada a exposição “Aboriginal art: The continuing tradition” na NGA, uma exposição que preencheu todos os espaços expositivos que eram normalmente dedicados a apresentar arte branca, um visível indício da aceitação da arte aborígene como parte integrante da história e arte australiana.

Todos estes eventos que marcaram os anos 80 acabaram por permitir que a arte aborígene emergisse como o novo e o principal bilhete de entrada da Austrália para a arte contemporânea globalizada. Nas décadas seguintes, vemos a arte aborígene a proliferar de forma extraordinária em toda a extensão do mercado da arte, estando representada em grandes eventos culturais, como na 47ª Bienal de Veneza em 1997. Em que Pela primeira

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vez a Austrália é representada através de artistas aborígenes, como Emily Kame Kngwarreye, Judy Watson e Yvonne Koolmatrie.

A primeira e única grande exposição individual de um artista aborígene fora da Austrália ocorre em 1998, com a retrospectiva da obra de Emily Kame Kngwarreye que itinerou no Japão. A exposição “Emily Kame Kngwarreye: Alhakere: Paintings from Utopia” contou com a curadoria de Margo Neale, atual curadora sénior e consultora principal de assuntos aborígene do National Museum of Australia (NMA).

No final dos anos 90, observa-se o grande impacto da arte aborígene na arena internacional da arte, sendo refletida no tipo e quantidade de exposições internacionais e num evidente aumento dos preços das obras no mercado da arte, o que acaba por forçar o governo australiano a reformular e a rever toda a indústria e as normas aplicadas, o que resultou num suposto aumento do profissionalismo e uma descentralização da indústria cultural.

III.VIII. O mercado da Arte Aborígene

Em 1994, a Aboriginal and Torres Strait Islander Commission estima que o mercado de artes indígenas e de artesanato gerara receitas na ordem dos 200 milhões de dólares australianos por ano. Destes, cerca de 14.6 milhões correspondem a vendas em galerias de arte reconhecidas.151 Já em 1997, este último valor subira para 36 milhões152. Porém, é alvo de contestação pelo diretor do Centre for Aboriginal Economic Policy Research (CAEPR) da Australian National University, que considera o valor completamente subvalorizado. Este estima que em 2002, o valor do mercado de arte aborígene provavelmente terá rondado entre os 100 milhões e 300 milhões153. As razões destas divergências estão contudo relacionadas com a complexidade da própria industria visual indígena, que é deveras difícil de modelar em termos estatísticos, dados os diversos fatores divergentes associados, tais como as diversas distinções entre ‘belas-artes’ e ‘souvenirs’, e entre ‘artesanal’ e ‘manufaturada’154.

Numa pesquisa conduzida por Susan McCuloch, em 1996, a estimativa de vendas de obras aborígenes supera as de obras de australianos brancos numa relação de 3 para 1, o que dado o facto de a população aborígene representar apenas 1.7% de toda população

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australiana155, é extraordinário. Se compararmos com o ano de 1988, em que a proporção de vendas de arte aborígene representava apenas 1% do volume total de vendas, podemos concluir que a entrada e aceitação da aarte aborígene no mercado da arte conttemporânea foram cruciais na proliferação da venda de obras pertencentes a artistas aborígennes.

III.IX. O Triângulo do Desconforto

Da população Australiana, que ronda os 18.5 milhões, 365.000 pessoas identificaram-se como indígenas nos censos nacionais, e cerca de 250.0000 como aborígenes. Desta população aborígene, menos de 1.000 indivíduos identificaram-se como artistas profissionais. No entanto mais de 8.000 aborígenes são praticantes de artes ou artesanato, sendo este o seu principal rendimento. O rendimento anual dos artistas aborígenes ronda os 1.000 dólares por mês o que, comparativamente à média nacional dos artistas não indígenas, é uma pequena fração.156

Figura 12 – Richard Bell, The Triangle of Figura 13 - Richard Bell, The Triangle of Discomfort – Diagram 1, 2003.157 Discomfort – Diagram 2, 2003.158

Face a esta discrepância remuneratória entre artistas indígenas e não indígenas, podemos fazer referência ao trabalho do artista aborígene Richard Bell, com o seu teorema apresentado em 2003 - “The Triangle of Discomfort”. Neste, Bell apresenta as três diferentes realidades no que diz respeito à percentagem dos respetivos intervenientes no processo de venda de uma peça de arte aborígene. Na primeira existem três intervenientes, o artista, o centro de arte que promove o artista, e o revendedor que faz o negócio final. A proporção de lucros é distribuída pelos três numa proporção de 40%, 20% e 40% respectivamente (Figura 12). O centro de arte pode ser removido da equação, sendo que o artista retém essa fatia. O

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artista fica portanto com 60% e o revendedor mantém os seus 40% (Figuraa 13). Estas embora não sejam consideradas ideais por Bell, são contudo, algo que já considera justo. ”Infelizmente existem várias variantes a estes dois cenários. Num trabalho que venda por $1000 (..) o revendedor retém $400 e (..) o intermediário [o centro de arte por exemplo] fica com os restantes $600, tendo previameente pago (ou prometido pagar) ao artista o valor de $100 (10%). Isto é claramente um caso de exploração. Esta situação é onde o triângulo do desconforto entra em cena” (Figura 14)159. Segundo o artista, a grande razão deste desconforto é o facto de a arte aborígene não ser controlada pelo povo aborígene. Aqui o artista está no fundo da “cadeia alimentar”, sendo representado no diagrama, pelo facto de estar na base do triângulo. O artista não tendo qualquer lugar ou poder de decisão na venda final da obra, desconhece os preços de venda reais praticados, e acaba por receber apenas uma pequena fração do preço final.

Figura 14 - Richard Bell, The Triangle of Discomfort – Diagram 3, 2003.160

Este mesmo artista afirma que “não existe uma inndústria de arte aborígene, mas sim uma indústria que necessita de arte aborígene (…) os intervenientes principais desta indústria não são aborígenes (…) são sobretudo brancos cujas áreas de especialização incidem principalmente nos ramos da antropologia e da arte ocidental”161. A arte aborígene, tal como é idealizada, sem o apoio do branco não existiria.

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IV. ARTE ABORÍGENE URBANA

“If you take the land, you take the ground of our culture, you can take our children, you can take our future and if you keep taking will be nothing left to take” 162. “ So the artists of today are the cultural terrorists of a new order and their art is the weapon for our future culture survival”163.

IV.I. Uma arte criticamente consciente

O aborígene australiano vive numa realidade de constante discriminação, onde o racismo está permanentemente latente. Aí, as minorias autóctones sobressaem pela diferença e pela vontade de trazerem à superfície as realidades e memórias que constroem a sua identidade pessoal e coletiva. Após várias gerações de luta e perseverança, as comunidades aborígenes começam finalmente a ganhar terreno na arena política, social, económica e artística. O que se reflete no modo como esta geração atinge, revela e consciencializa para os diferentes problemas que têm vindo a resistir à homogeneidade imposta. O problema aborígene é algo que tem vindo a atormentar a sociedade australiana. No passado por ter sobrevivido às múltiplas políticas opressivas, e no presente por persistir na reivindicação dos seus direitos e manter ativa a memória da sua história.

A população aborígene soube usar como uma das ferramentas em seu favor algo que a sociedade australiana sempre ambicionou alcançar no mundo intelectual e artístico preponderante – a arte. Uma arma, que por muitos, ainda hoje é desvalorizada, associada a um elitismo ou a um fútil decorativismo. Através da sua cultura e da sua arte conseguiu pela primeira vez ganhar algum interesse aos olhos do “seu governante”, fazendo uso da sua ganância de alcançar um patamar de relevo no mundo a arte.

Dentro da enorme panóplia de denominações em que arte aborígene é catalogada a diversos níveis, a aclamada arte ‘urbana’ é umas das artes que tem um papel fulcral na luta e na forma como o povo aborígene é encarado na arena pública. Esta reflete essencialmente sobre os distintos conflitos que têm vindo a ocorrer na sociedade e cultura australiana. De um modo geral, podemos considerar que os artistas que atualmente se inserem nesta

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‘categoria’ são descendentes de aborígenes ‘urbanos’ a partir da terceira geração. A primeira geração de aborígenes ‘urbanos’ corresponde à lost generation, a indivíduos que foram deslocados para os centros urbanos como resultados das políticas de assimilação; a segunda corresponde aos seus descendentes diretos, ainda oprimidos pelas políticas discriminatórias, sem espaço para “manobras”; e por fim, a terceira, a uma geração recente representativa de uma atitude mais reivindicativa, que faz uso da sua liberdade de expressão.

O antropólogo Wally Caruna remete-nos para meados do século XIX, com as obras dos artistas Tommy McRae ou William Barak, dizendo-nos que estes poderão ser considerados como uns dos precursores da arte urbana contemporânea. Os trabalhos destes artistas são dos poucos que “disponibilizam uma perspetiva segundo o aborígene, face às rápidas mudanças que ocorreram no século XIX na sociedade australiana. A sua arte incorpora as perspetivas e ideais culturais que são uma parte importante da herança dos artistas [aborígenes] urbanos de hoje”164. Apesar de uma consciência de que a “arte aborígene urbana” sempre existira, desde que os povos aborígenes começaram a ser removidos das suas terras e recolocadas em zonas urbanas, esta apenas começou a ter reconhecimento nos anos 80. Pode-se considerar que o primeiro grande impacto da ‘arte urbana’ desenvolveu-se no final do século XX, um período marcado por desenvolvimentos políticos significativos no que diz respeito ao reconhecimento dos direitos dos povos aborígenes e a uma maior liberdade de expressão. Muitos artistas aborígenes utilizaram os recentes desenvolvimentos como inspiração para continuarem a produzir arte. As principais temáticas abordadas por artistas desta geração são o reflexo de uma luta por igualdade de direitos e justiça dentro da sociedade australiana, procurando escrutinar e consciencializar sobre a situação dos povos aborígenes através de temáticas como a desapropriação, famílias desestruturadas, racismo ou identidade cultural.

Os anos setenta foram um período de intensas mudanças na Austrália, no qual uma nova ideologia política acabara por apoiar a promoção e financiamentos das artes, oferecendo suporte financeiro e prático a um maior leque de artistas. Ao existir uma necessidade fugaz para a introdução da arte aborígene no mercado de arte contemporânea, intensificou-se uma enorme pressão sobre as instituições museológicas e sobre o próprio mercado da arte. “Um alargamento do conceito do que é considerado arte resulta numa explosão de atividades em

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áreas consideradas como inferiores” e artes como a “performance, (...) fotografia ou a gravura tornam-se um veículo de expressão popular (...) sobretudo pelo facto de atingirem uma maior audiência”.165 Posteriormente, estes suportes serão explorados ainda em maior profundidade na nova geração de artistas urbanos aborígenes.

Durante o final dos anos oitenta assiste-se a uma das mais significativas revoluções na arte aborígene, que coincide com a altura em que se toma consciência que esta arte também era um ato político. Galarrwuy Yunupingu afirmou em 1988, que arte aborígene “sempre expressou os conflitos existentes entre a população aborígenes e não aborígenes (…) e recentemente, de diversas formas, faz um paralelo com as nossas lutas políticas para manter a nossa cultura e os nossos direitos às terras (…) A nossa pintura é um ato político”166. Muitos dos artistas que são introduzidos no movimento de arte aborígene urbana, destacaram-se a partir dos anos oitenta pelo facto de a sua obra deter um discurso político forte e percetível ao observador. Destes posso destacar: Brenda L. Croft, Byron Pickett, Fiona Foley, Gordon Bennett, Lin Onus, Mervyn Bishop, Michael Riley, Tracey Moffatt ou Richard Bell. Todos estes artistas tiveram um papel crucial para um questionamento da arte aborígene como hoje a encaramos, desconstruindo ou reconstruindo a ideia de arte ou artista aborígene.

Em 1984 é nomeado o primeiro curador indígena para uma galeria de arte estatal, Djon Scott-Mundine na AGNSW167. No mesmo ano, a galeria de arte contemporânea ArtSpace em Sydney apresenta a primeira exposição ‘oficial’ de arte urbana168 “KOORI´84”, co-curada por Tom e Vivian Johnson em 1984. Esta apresentou obras de trinta artistas que partilhavam o facto de as suas formas expressivas residirem fora do modo ‘tradicional’ estandardizado de arte aborígene. Embora não residissem nos grandes centros urbanos, mas sim em zonas isoladas da Austrália, obras de artistas da escola de Hermannsburg ou do Papunya Tula também foram inseridas nesta exposição, dado utilizarem técnicas e meios de influência europeia.

Um ponto comum interessante, que também liga estes artistas ditos urbanos, selecionados para a “KOORI´84”, é o facto de a sua arte não estar inserida no conceito ou categoria de arte aborígene. A “cultura aborígene urbana tem sido amplamente vista como ilegítima, não a culminação do bi-culturalismo mas sim como um bastardo-mestiço cuja única característica

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redentora possível de ser percecionada seria a assimilação”169. Ian McLean refere que neste período “havia uma visão geeneralizada que a partir do momento em que os aborígenes fossem assimilados em centros urbanos, já não seriam mais aborígenes autênticos e a sua arte já não seria aborígene (…) muitos acreditavam que a autêntica arte contemporânea aborígene estaria confinada às zonas remotas“170. Outro facto que explica a segregação deste tipo de arte é o facto de “abordavam temáticas demasiado políticas”171.

Jeffrey Samuels, um dos artistas participantes, foi um dos primeiros artistas Koorio ‘urbanos’ a ver a sua obra adquirida por uma galeria estatal. A sua obra “This changing continent of Australia” (Figura 15) é a primeira obra Koori a ser adquirida pela AGNSW em 1986. Este é o primeiro índice de aceitação da arte urbana aborígene por parte das instituições museológicas australianas.

Representa “uma nova era para artistas urbanos por toda Figura 15 - Jeffrey Samuels, This 172 a Austrália” , que consequencialmente reflete-se no changing continent of Australia, mercado da arte. A reavaliação ou reconstrução de 1986. Óleo s/ madeira, 187.0 x 124.2cm, modelos associados à ideia estereotipada de arte Coleção da AGNSW, Austrália. aborígene contemporânea durante o final do século XX, contribuiu para uma mudança de mentalidades, alargando as fronteiras da arte aborígene de um mapa para um grande atlas. Da necessidade de combater a associação da cultura urbana aborígene a algo ilegal, forma-se a partir desta exposição a Cooperativa Boomalli Aboriginal Artists Cooperative173. Inicialmente denominada de Ko-operative, foi criada em 1987 por dez artistas Koori residentes em Sydney: Brenda L Croft, Bronwyn Bancroft, Euphemia Bostock, Fiona Foley, Fernanda Martins, Arone Raymond Meeks, Avril Quaill, Jeffery Samuels, Michael Riley e Tracey Moffatt174. Esta cooperativa que está ativa até aos dias hoje fornece uma plataforma educativa em arte, disponibilizando aos artistas aborígenes espaços de ateliê e oportunidade de exposição, promovendo o trabalho de artistas membros. Com estas e outras iniciativas, passou a existir um reconhecimento da diversidade da arte contemporânea aborígene em todas as suas áreas. Tal possibilitou aos artistas explorarem

o Indígenas australianos que tradicionalmente ocupavam o atual estado de New South Wales e Victoria.

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as problemáticas da sua dupla situação identitária e social face à sua relação com a história e com a sociedade australiana, descortinando por exemplo questões genericamente relacionadas com o racismo, género ou política.

A arte aborígene sempre fora uma arte ativista, no entanto só a partir dos anos 80 e 90, com a nova geração de artistas contemporâneos é que esta se torna mais crítica e reivindicativa, transformando a arte numa plataforma privilegiada para a apresentação dos diversos conflitos que os aborígenes enfrentam. Como resposta às ameaças ou decisões do governo face aos assuntos aborígenes, a arte reflete o panorama político atual, e é utilizada para explorar assuntos tabus como a identidade ou o género, convertendo-se assim num manifesto mais crítico e reflexivo sobre a situação da população aborígene no passado, presente ou no futuro.

Segundo a Australian Bureau Statistic, observou-se desde os anos 60 até agora, um créscimo significativo da presença da população aborígene em zonas urbanas. Em 1966, 27% da população aborígene residia em áreas urbanas, em 1976, 65% e atualmente atinge os 75%. É expectável portanto, com este êxodo rural, uma transição acentuada da arte aborígene, com uma perspetiva ou técnicas mais tradicionais, para uma arte mais “urbana”. Contudo, com as exigências atuais do mercado, sedento de arte aborígene supostamente “autêntica”, reflecção da noção retrógrada de arte aborígene no ocidente, será que a arte “urbana” alguma vez irá conseguir ocupar um papel de destaque na história de arte “australiana”?

IV.II. Artistas Aborígenes Ativistas

A memória não é uma simples capacidade de adquirir, armazenar ou recuperar informações disponíveis. Ela é o mecanismo ou o processo pelo qual nós baseamos toda a nossa atividade social e moral, estando patente em todas as decisões e ações que efetuamos no percurso da nossa vida. Esta edifica-se no momento em que procuramos uma coerência e significado no transcorrido, sendo a consequência de uma partilha de informações. A memória compartilhada é um alicerce fundamental no desenvolvimento da identidade de grupo e de uma cultura e, é através desta que delineamos, desenvolvemos ou marcamos a

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nossa história e cultura num sentido de tentarmos dar continuidade, estabilidade e legitimidade ao que desenvolvemos. Toda a cultura aborígene se baseia numa memória coletiva. As histórias partilhadas delineiam a sua própria identidade com valores e crenças associados, sendo que todo o território australiano é “central para a organização cosmológica e social aborígene”175. Apesar de toda desapropriação de terras que a população aborígene foi e continua a ser submetida, a simbologia das suas terras permanece a base da reclamação da sua identidade e cultura.

Desde os anos sessenta que a população aborígene reclama o direito legal às suas terras utilizando a sua arte como uma prova legítima da sua relação com o território, representando um mapeamento e significado coletivo do simbolismo do lugar. O artista ativista Djambawa Marawili, líder do Clã Madarrpa, Arnhem Land, utiliza a sua arte como ferramenta principal na luta pelos direitos legais às terras ancestrais da população aborígene. Utiliza-a igualmente como um modo de perpetuar a cultura e a história do seu povo. A sua obra “The Djankawul at Yelangbara” (1968) demonstra através da simbologia da história associada “que o clã de Rirratjinu é o proprietário legal da área de Yalangbara”176.

Marawili tem intervindo na arena pública como um ativo “mediador entre a população não- aborígene e o povo de Arnhem Land”177, e deteve um papel fundamental na organização da exposição itinerante “Saltwater: Yirrakal - Bark paintings of sea country”, apresentada no Buku-larrngay Mulka Centre em 1999, que “documenta a base espiritual e legal do direito do povo Yolngu às suas terras”. O conjunto de 80 pinturas apresentadas nesta exposição representa um “mapa de centenas de quilómetros de trato costeiro”. Estas obras acabam por “providenciar uma valiosa comparação entre o conhecimento sagrado indígena e os princípios científicos ocidentais (…) que acabaram por dispor uma plataforma ideal para a promoção de conhecimento e cooperação entre indígenas e não indígenas”. 178 O artista Marawili foi fundamental na oposição a uma das estratégias que mais afetaria negativamente os aborígenes no que diz respeito aos seus direitos de terras, o Ten Point Plan179. Este foi criado pelo recém-eleito governo de John Howard, que cedo endereçou as preocupações de grupos interessados nas atividades mineiras e pastorícia, em detrimento dos direitos do povo indígena. Este plano serve como uma emenda ao Native Title Act (que legitima os títulos nativos do povo aborígene), e promove uma solução aparentemente clara

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e simples na resolução dos problemas enfrentados pela indústria no que diz respeito às terras devolvidas, ou exequíveis de serem devolvidas. Em resumo, o Ten Point Plan dá o poder de decisão aos estados no sentido de extinguir o título nativo caso existem em ou antes de 1 de Janeiro de 1994, uma permissão quer para construção residencial, comercial ou obra pública no território. Tendo em conta que a pastorícia ocupa 42% do continente australiano, tal significaria que o título nativo de territórios pelo menos parte desta porção estaria em risco de ser extinto. “Esta proposta fora considerada pelos líderes aborígenes como uma regresso ao terra nullius, a um tempo onde os aborígenes eram invisíveis em termos da lei, e não tinham qualquer conhecimento do sistema de direito de propriedades.”180 A proposta acabou por sofrer oposição não só dos povos indígenas e seus apoiantes, mas incrivelmente também pelos agricultores e pastores em particular, não por acreditarem que tal seria um ato retrógrado, mas sim porque exigiam uma completa extinção do título nativo.

O modo de usar a arte por artistas desta comunidade é semelhante a muitos outros artistas aborígenes que usam a imagética e as memórias da sua cultura para conservarem o seu território, a sua identidade e história perante a população australiana. Podemos dizer que este modo de encarar a arte como uma ferramenta útil para reivindicação dos seus direitos, sendo mesmo considerada como um utensílio de resistência ao poder político e à homogeneização que a globalização tem vindo a fomentar. No entanto é a “arte aborígene proveniente de zonas urbanas que tem sido percecionada como a mais estridentemente intervencionista”181.

Gordon Hookey é um dos artistas que tem criticado e transposto para a sua prática artística o que pensa sobre as múltiplas atitudes dos governos australianos, usando a sátira como um dos elementos chave.

A sua carreira desenvolvera-se em paralelo ao mandato de John Howard, e por tal, muitas das suas obras desse período focam o tipo de administração e as suas atitudes para com a população aborígene. Toda a sua arte tem um caráter muito político, e Hookey reage à sociedade, acreditando que a função da sua arte é de ecoar fortíssimo o que a maioria das pessoas sussurra182. Hookey ao estar ciente que a globalização tem vindo afetar cada vez mais o “local”, transpõem essa reflexão para o caso específico da Austrália, na forma como as decisões condicionam negativamente o país e a população aborígene.

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Figura 16 - Gordon Hookey, Sacred nation, scared nation, indoctrination, Óleo s/ tela, 2003.

No que diz respeito às lutas contínuas pelo direito às terras este artista cria o termo “terraism”, como uma associação ao conceito terra nullius e terrorismo. Através deste termo Hookey expõem a imoralidade e desrespeito dos investimentos multinacionais no território australiano. As obras “Sacred nation, scared nation, indoctrination” (Figura 16), “the first stolen” (Figura 17) ou “Day of wreck con in” (Figura 18) são exemplo dessa reflexão.

Nas duas primeiras faz uuma clara referência à dependência e relações da Austrália para com os EUA, tais como os protocolos que têm vindo a estabelecer com corporações multinacionais que têm afetado negativamente o terreno e a população aborígene. Faz igualmente referência ao sistema capitalista que tem imperado na Austrália, através de imagens como o Figura 17 - Gordon Hookey, The 183 MacDonalds ou as bombas de gasolina . Por fim, na first stolen, Óleo, 1994, última obra aqui referida, Hookey inverte os papéis do poder decisivo. Coloca o aborígene no lugar de poder (representado pelo canguru – animal nativo), e o branco no banco do réu, a ser julgado pela infinidade de crimes que cometera, e pelo terrorismo que tem praticado para com a sua terra e população.

O coletivo de artistas ‘urbanos’ ProppaNow tem vindo a mostrar-se atento às atitudes e ações do governo Figura 18 - Gordon Hookey, Day australiano para com a população aborígene. Os of wreck con in, Óleo s/ tela, membros deste grupo têm vindo utilizar a arte como 2006.

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uma plataforma discursiva crítica, tentando mudar a perceção geral que as pessoas têm em relação à arte aborígene.

O que é ou o que deveria ser. Muitos dos assuntos abordados por estes artistas estão relacionados com os direitos políticos, sociais ou culturais, chegando mesmo a usar as próprias histórias aborígenes para reconstruir idealizações ou estereótipos pré-formatados. Um dos artistas membros, Richard Bell, acredita que através da arte “nós podemos mudar o mundo (...) qualquer revolução na Terra começou através de pequenos grupos de pessoas”184. Este coletivo é atualmente constituído por sete artistas: Gordon Hookey, Jennifer Herd, Laurie Nilsen & Megan Cope, Richard Bell, Tony Albert e Vernon Ah Kee.

A arte aborígene realizou um grande percurso no mundo da arte, partindo do ser essencialmente primitiva, até ser considerada como arte contemporânea. Alguns artistas têm vindo a interrogar dentro da sua prática artista ou no modo como querem ser referenciados ou denominados, o que é um artista aborígene, o que é a arte aborígene; ou então como é que a arte aborígene tem vindo a ser representada e apresentada dentro das instituições museológicas.

Richard Bell é provavelmente o artista mais conhecido que defronta continuamente a representação da construção ideológica envolta do que hoje se denomina de arte aborígene. Na sua obra “Aboriginal Art is a White Thing” (Figura 19), denuncia um sistema económico e infraestrutural, que impulsiona, promove e certifica a arte contemporânea aborígene, como predominantemente branca. O artista aborígene acaba por ser um mero peão-chave dentro de uma indústria branca viciada e corrupta. Esta obra valeu-lhe o prémio 20th Telstra National Aboriginal and Torres Strait Islander Art Award em 2003, passando a ser o segundo artista ‘urbano’ a ganhar tal reconhecimento. Normalmente este prémio é atribuído a artistas de comunidades remotas, com uma obra aborígene dita mais tradicional185. Existe uma certa concordância com esta afirmação de Bell, no sentido que a arte aborígene hoje não estaria tão bem cotada no mercado da arte se não tivesse existido o apoio financeiro do estado ou uma audiência branca. Mas tendo em conta a realidade atual, Kenneth Myer, sente que a arte aborígene é algo horizontal, dado que muitos dos ”centros de artes não são controlados por instituições brancas, (…) e nascem de uma relação

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intercultural e híbrida (...) [V]isto desta perspetiva a arte aborígene é uma coisa intercultural”186.

A maioria das instituições museológicas, como as galerias ou museus estatais na Austrália, exibem a arte aborígene separadamente de todos os outros movimentos, não existindo um diálogo com a arte australiana ou mesmo entre a arte de ‘diferentes’ estilos ou regiões. A arte aborígene é colocada normalmente num espaço ou zona do edifício específica, podendo ser encardo como Figura 19 - Richard Bell, Scienta E Metaphysica (Bell's Theorum), ou um lugar de destaque ou discriiminatório. Aboriginal Art Its a White Thing, 2003.

As instalações “A Collected History” (Figura 20) ou “Rearranging our history” (Figura 21) de Tony Albert refletem exatamente sobre esta questão do posicionamento da coleção de arte aborígene num “canto” dentro dos museus australianos, ao que o artista explica “que faz parte do racismo institucionalizado australiano”187.

Figura 20 - Tony Albert, A Collected History, 240 x 600 cm, 2002-2010.

(Instalação constituída por vários objetos, esculturas e pinturas apropriados; pinturas e desenhos originais de Tony Albert e três obras originais de Vernon Ah Kee, Shane Cotton, and Arthur Pambegan, Jr., respectivamente.)

Esta última instalaçção é constituída por 97 imagens, correspondendo a reapropriações de objetos que o artista foi colecionando ao longo dos anos e que se materializaram nesta instalação para reapresentar o aborígene. A adição de frases, quase impercetíveis sobre as imagens, como ''invisible is my favouritte colour'', ''land of a fair go'', ''hopeless romantic'' acaba por provocar o espectador ao fazê-lo interrogar-se e refletir sobre a identidade atual do aborígene contemporâneo. Ao contrário de Gordon Bennett ou Tracey Moffatt que recusam expor em galerias com coleções aborígenes, este apenas acha que a arte aboríggene deverria “ser colocada no espaço da frente e não num “darkie corner””188.

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Figura 21 - Tony Albert, Rearranging Our History, 200x1150cm, 2002-2011.

Bennett e Moffatt são dos primeiros artistas a afirmarem que não querem ser meramente rotulados como ‘artistas aborígenes contemporâneos, dado considerarem que tal catalogação é racista, discriminatória e restritiva. Esta sua atitude acabara por trazer reconhecimento no mundo da arte, não como artistas aborígenes ou australianos, mas sim como artistas contemporâneos189. Segundo Djon Mundine, apesar da negação do estereótipo da sua origem, a sua identidade enquanto aborígenes nunca foi colocada em causa.190 Tal se deve ao facto de a sua obra ser um reflexo da sua ‘aboriginalidade’ e o facto de o elemento aborígene permanecer presente na sua identidade enquanto indivíduos.

Esta necessidade que temos em catalogar, rotular, denominar, de ‘enfiar em gavetinhas próprias’ tudo o que nos rodeia, supostamente para facilitar a compreensão ou análise da realidade, acaba por restringir a nossa perspetiva ou diálogo com o ‘outro’. A nossa conceptualização do ‘outro’ foi sempre determinada pela nossa diferença e superioridade para com o ‘outro’, sendo este o ‘alienígena’, o estranho ou o exótico. A história do mundo foi sempre contada segundo a perspetiva de quem detinha o poder, e por tal, esta unilateralidade era a visão do colonizador ou do opressor dominante. Artistas como Tony Albert, Brooke Andrew, Michael Cook ou Vernon Ah Kee, tentam reescrever a história australiana segundo a outra perspetiva. Expõem simultaneamente os conceitos e ideologias do colonizador, para que possam ser refletidas ou contestadas segundo uma outra perspetiva. “Welcome to Australia” de Tony Albert (Figura 22), conta a história da viagem do capitão Cook desde a Inglaterra até à Austrália, segundo a perspetiva do colonizador, de imagens apropriadas de um livro de colorir para crianças. Através desta apropriação de imagens e do objeto em si, Albert faz referência ao modo como a história da Austrália é

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ensinada no sistema educativo australiano. Faz assim referência ao facto de ser desde a escola primária que “o lugar do racismo começa”191 a ser implantado nas mentes de uma população adestrada.

Estas obras são o resultado de uma transposição fidedigna das páginas do livro para telas de grandes dimensões, denunciando ou desacreditando, pelo uso das próprias imagens e textos deste livro que circula no ensino australiano, mitos que se relacionam com a apropriação da Austrália pelos ingleses. Poderão estas “histórias fictícias que servem para entreter (e educar) as crianças australianaas ser tomadas sérias por adulttos inteligentes?”192 Figura 22 - Tony Albert, Welcome to Australia, 2007. As ‘descobertas’ de novas culturas e povos semppre foram extraordinnariamente estimulantes para quem ambiciona conhecer o ‘outro’ e a sua cultura. Estas análises ou estudos foram normalmente realizados segundo uma perspetiva romantizada ou primitivista do ‘outro’. O ‘outro’ é o objeto de estudo, que tem de ‘ser dissecado e guardado numa proveta’. Este modo de catalogação segundo paradigmas primitivistas ou exóticos sempre estiverem presentes nas diversas coleções de museus antropológicos Figura 23 - Tony Albert, ou etnográficos. Criados com o intuito de preservação, estes Welcome to Australia (Colouring museus são também lugares de mistério, sabedoria ou Book), 2007. magia sobre a evolução histórica da humanidade.

Andrew Brooke apresenta em 2011, na exposição “10 Ways to look to the past” na NGV, a obra “Gun-Metal Grey” (Figura 24). Esta é um resultado das investigações que conduziu em várias coleções sobre as populações indígenas, pertencentes a instituições museológicas. Os retratos de indígenas australianos que o artista apresenta nesta peça, são fotografias de arquivo do século XIX, que foram alteradas para a escala humana e impressas sobre um suporte metálico. O artista transforma assim, imagens que possuem uma carga social e

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política, em monumentos que enaltecem a memória destes homens e mulheres, ttornando-os relevantes dentro da história australiana.

Segundo Nicholas Thomas - Diretor do Museum of Archaeology and Anthropology da University of Cambridge, estas imagens “movem-nos emocionalmente, por representarem o sofrimento, a sobrevivência (…) e a vida a que os povos aborígenes foram submetidos”193.

A utilização de um suporte espelhado, que nos coloca metaforicamente num mesmo espaço e tempo passado, obriga-nos a refletir sobre quem tem o poder de decisão sobre o que deve recordado na história. A partir deste pensamento Brooke encara esta obra “como um meio de promover o debate sobre amnésia cultural e a situação de pessoas deeslocadas num amplo contexto mundial”194.

Figura 24 - Andrew Brooke, série Gun-Metaal Grey, 2007.

Detalhe Galang-galang (locust), Dhaaguun (earth) e Muuruun (life), cada 170x111x5 cm.

Entre 1938 e 1940, o antropólogo Norman Tindale concretiza uma expedição científica, onde documenta parte da população indígena australiana, que tinha sido ‘encarcerada’ em missões que se disseminavam pelo país. Este antropólogo fora o primeiro a constatar a complexa rede de diferentes tribos e línguas indígenas que coexistiam na Austrália. Hoje em dia, a maioria destes documentos, que pertencem à coleção Tindale, foram adquiridos pela South Australia Museum. Cópias destes documentos estão disponíveis na biblioteca estatal de Queensland, a membros das famílias estudadas. O artista Vernon Ah Kee ao ter conhecimento da existência de fotografias da sua família na coleção desenvolve um conjunto de trabalhos baseados nestas pequenas fotografias de arquivo, com o intuito de desmistificar os estereótipos associados à imagem do aborígene contemporâneo. Kee “acredita que estes retratos oferecem uma visão mais realística da vida dos aborígenes do que as populares

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pinturas do estilo ’dot’”195. Dois destes retratos, “Uncle Jack” e “Leonard”, foram inseridos em 2006 na exposição “Colonial To Contemporary” na Dell Gallerry. Kee decide apresenta-los em diálogo com outras duas peças, tipográficas, “Race” e “You Deicide” (Figura 25), incutindo uma reflexão sobre as conotações racistas associadas à população aborígene, tanto num passado como no presente.

Figura 25 - Vernon Ah Kee. Da esquerda para a direita: Race, 2005; Leonard, 2006; You Deicide, 2005; Jack Sibley (Uncle Jack), 2006.

A reflexão sobre o passado colonial e opressivo a que a população aborígene foi submetida até aos anos setenta, e o modo como o aborígene tem sido estereotipado dentro da sociedade urbana, têm sido temáticas exploradas por artistas como Yhonnie Scarce ou Destiny Deeacon.

A artista Yhonnie Scarse tem vindo a desenvolver uma obra focada na ‘lost generation’ e nas consequências que as políticas opressivas têm tido para com a população aborígene. O seu legado identitário misto, especialmente a sua herança aborígene tem-se revelado uma forte influência no seu trabalho. A sua pesquisa tem focado especialmente a remoção e descolamento dos povos indígenas das suas terras e a remoção forçadas de crianças das suas famílias. Em paralelo, a artista examina os efeitos da colonização e da perseguição dos povos aborígenes, utilizando como meio principal, o vidro, a pintura e a instalação.

Na exposição “Ectopia” apresentada em 2010 na Dianne Tanzer Gallery+projects, a artista apresenta quatro obras que se relacionam com a remoção e confinamento dos povos indígenas durante a colonização da Austrália. Cada uma destas obras explora diferentes facetas da mesma história, podendo mesmo ser vista como uma única instalação. O título “Ectopia” denota um deslocamento ou um mau posicionamento, que ainda dá um significado

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mais profundo às obras. Todas as obras da artista utilizam alimentos tradicionais, como o bush banana196 ou o yam, como símbolo dos povos aborígenes. Na obra “Shackled” (Figura 26) a artista utiliza o vidro para reproduzir os alimentos, e as algemas enferrujadas como uma metáfora do Figura 26 - Yhonnie Scarce, Shackled, 2006. sofrimento do povo aborígene. Apresentados numa prateleira, remetem-nos para artefactos aborígenes levadas para a Europa como troféus, algo alvo de estudo e guardado em museus ou coleção de “curiosidades”. Em “Shackled”, a artista partilha uma das muitas realidades Figura 27 - Yhonnie Scarce, The day we obscurecidas pela história australiana. Esta podia went away, 2004. representar o modo como muitos dos guias aborígenes eram algemados às árvores para impedir que escapassem durante a noite. Ou a forma como a polícia algemava os seus prisioneiros aborígenes, como forma de exemplo, Figura 28 - Yhonnie Scarce, Untitled, sendo celebrados como macabros troféus no 2007. século XIX197. No entanto, a história que Scarce representa nesta obra remete-nos para o século XX, para uma história verídica que sua mãe lhe partilhara.

Esta é a história de quatro homens que foram Figura 29 - Yhonnie Scarce, Burial Ground, 2012. apanhados e algemados juntos, sendo obrigados pela polícia a andar atrás dos seus cavalos, como se fossem gado. Nesta obra a artista representa através do formato irregular dos objetos de vidro, as diferentes fisionomias destes homens. Quando associamos a fragilidade e transparência do vidro Figura 30 - Yhonnie Scarce, Oppression¸ a uma história tão cruel, podemos recuar no repression (family portrait), 2004. tempo até ao primeiro barco inglês que chegou à

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costa australiana.

Na obra “The Day we went Away” (Figura 27), os yams, agora feitos de um vidro transparente, são como “uma metáfora para descrever o tratamento no passado dos povos indígenas na Austrália”198. Sendo não só símbolos da remoção forçada de povos aborígenes das suas terras, mas símbolos das ossadas de aborígenes, removidas do seu local para serem exibidos em coleções de museus por todo o mundo. Podemos ver este trabalho como uma história contínua quando comparado com a obra “Untitled” (Figura 28). Tal como em “The Day we went Away”, o objeto também representa os povos aborígenes, novamente apresentados numa prateleira de troféus, removidos das suas terras. A diferença é o facto de estarem envolvidos num cordel branco e enfiados em caixões fúnebres, com um rótulo em branco, retirando assim a sua identidade através desta omissão do nome. Tal é uma referência aos inúmeros cadáveres de aborígenes não identificados.

O que une estas duas obras à “Shackled”, não é apenas a metáfora comum mas o próprio material. A artista manipula-o, tonando-o aguçado e transformando-o numa crítica política, ao suscitar o perigo. Ao conciliar o vidro, um material associado às artes tradicionais ocidentais, com o conceito e objetos tradicionais aborígenes, a artista acaba por estender os limites do que é considerado um artista aborígene. Noutras obras como “Burial Ground” (Figura 29), o vidro é utilizado para obscurecer algo, fazendo desta forma, uma analogia à história australiana que esconde ou desacredita a história aborígene. A realidade fora que os aborígenes e a sua cultura foram levados ao ponto de rutura pela colonização e perseguição. Mas, tal como um vidro que quando é estilhaçado acaba por deixar vestígios, também os fragmentos da cultura e identidade aborígene têm permanecido. Estes fragmentos podem agora ser utilizados como armas políticas contra o tratamento do aborígene na sociedade australiana.

A obra de Scarce têm como objetivo fulcral contar ou recontar uma história. Mas além de ser um mero registo de algo que acontecera, esta torna-se num poderoso discurso político ou numa esperança para o futuro. E se existe alguma mensagem que possamos retirar destes trabalhos é que na fragilidade há esperança, resistência e determinação.

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O trabalho de Destiny Deacon pode não apresentar factos tão históricos ou verídicos como encontramos nas obras de Yhonnie Scarce. No entanto, através do seu trabalho Deacon revela-nos uma realidade muito mais próxima do que é atualmente a sociedade aborígene que vive nos grandes subúrbios urbanos. A sua obra pode ser Figura 31 - Destiny Deacon, No Fixed Dress, 2003. encarada como uma desconstrução da leitura que se tem destes lugares, ondee residem muitos dos aborígenes sobreviventes dos conflitos coloniais, ‘exilados’ do olhar da sociedade australiana. Usando as suas fotografias, instalações e comédias rotineiras, a artista conta-nos as histórias que emergem destes lugares, muitas vezes através de Figura 32 - Destiny Deacon, Being dilemas de mulher. Para Deacon “a mulher there, 1998. aborígene é o fantasma da mãe-terra em letras de músicas rock Koori que marcaram o enquadramento de uma subcultura restrita”199.

Em 2011, Destiny Deacon apresenta “Where I am” uma obra site-specific inserida na programação “Lane way – comissions 2011” em Melbourne, onde nos reconta uma possível memória deste lugar. Ao Figura 33 - Destiny Deacon, Da doo run notar que nesta zona da cidade existe uma run, 2009. “ausência quase total de crianças”200 face à sua experiencia enquanto criança que se aventurava com os seus amigos na cidade de Melbourne, a artista concebe uma instalação sob o formato de posters colados nas paredes de uma estreita rua com o intuito de “recrear um jardim de infância etéreo usando registos áudio de vozes infantis, 201 canções, discussões e passos” . Figura 34 - Destiny Deacon, Last Laughs, 1995/2004.

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Nesta instalação Deacon utiliza imagens de trabalhos anteriores, como “no fixed dress” (Figura 31), “being there” (Figura 32), “Da doo run run” (Figura 33), ou “last laughs” (Figura 34), para recriar todo um discurso para as histórias que aqui tenta revelar, como “uma fusão entre o real e o imaginário”.202

Nestes trabalhos somos remetidos para uma infância através do uso de bonecos, contudo esta personificação é o resultado do que hoje define a sociedade aborígene urbana. Edificada em vestígios de uma geração que perdera as suas tradições, que sobrevive na memória de um passado, e com uma identidade forjada pelos últimos acontecimentos racistas e discriminatórios, que é continuamente subjugada. A utilização destas bonecas pode ser encarada como uma metáfora à lost generation. Os trabalhos aqui referidos são uma clara referência ao dia-a-dia de diversas comunidades aborígenes, à violência domestica a que as mulheres são submetidas, aos problemas de álcool ou aos abusos raciais que enfrentam dentro da sociedade.

Um dos únicos artistas que tem vindo a explorar simultaneamente a questão da sua dupla identidade – aborígene e chinesa –, segundo uma perspetiva cultural e política é Jason Wing. As consequências de ter crescido simultaneamente entre duas culturas distintas, urbana /materialista por parte do seu pai, e rural/não-materialista refletida no modo de vida da sua mãe, acabaram por se refletir na sua prática artística e no modo de encarar a vida. Este tanto explora as múltiplas influências culturais que herdara e que o constroem enquanto homem e cidadão, como utiliza a sua ascendência aborígene para expor questões políticas e sociais que estão intimamente relacionadas com os diversos problemas que a população aborígene tem vindo a defrontar dentro da sociedade australiana. Estas temáticas apesar de partirem da sua esfera pessoal acabam por se expandir para outros territórios multiculturais e abordam problemas de construção ou identificação identitária. A sua obra expressa o lado positivo de como este encara a sua própria múltipla identidade, segundo uma possibilidade de regeneração ou de renascimento. Assim, baseando-se na sua própria experiência de negociação entre a sua dupla herança identitária, e a sua inserção na sociedade australiana, este acaba por adicionar uma nova camada à história quando se debruça e encara a sua identidade como um resultado de uma modificação genética, que aglomera pelos dois elementos distintos. Todo o trabalho de Jason Wing possui uma simbologia ou significado muito próprio e individual, que refletem a fusão das suas heranças culturais e sociais com a

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própria cultura australiana. Este duplo legado é transparecido nos métodos técnicos tradicionais, símbolos e na própria paleta cromática que este artista utiliza. As técnicas tradicionais de influência da cultura aborígene são por exemplo: papunya, crosse-stitch ou a técnica de stencil, que se encontram nas pinturas rupestres aborígenes. Outra de influência, de origem chinesa, é a técnica tradicional de recortar papel, que o seu avô paterno lhe ensinara. A restrição da sua paleta cromática também está relacionada com o universo chinês e aborígene, de que provém. Assim, acaba por utilizar de forma predominante as cores tradicionais de ambas as culturas: o vermellho, o amarelo, o preto e o branco. O seu trabalho acaba por possuir uma tremenda carga história, invocando não só os modos antigos de stencils na arte rupestre aborígene mas também toda a sua cultura urbana contemporânea, criando assim como que uma ponte que conecta o passado e o presente.

As primeiras pinturas apresentadas por este artista são como um ato de reciclar, apropriar ou reavaliar objetos urbanos inutilizados, como sinais de trânsito ou placas de aviso. O artista ao intervir sobre estes atribui-lhes um novo significado. Ou melhor, modifica ou estende a sua função na sociedade, de modo a introduzir-se ele próprio no objeto, como uma forma de se sentir adaptado ou criticar o distanciamento e barreiras que são edificadas numa sociedade racista, como a australiana.

Esta duplicidade ou multiplicidade identitária pode ser observada nas obras “City vs Country” (Figura 35) ou “White Noise” (Figura 36). Estas demostram a dupla existência, em que uma subsiste sobre a outra, acabando por ser uma metáfora à própria Figura 35 - Jason Wing, City Vs identidade de Jason Wing. Ambas as obras sãão Country, 2009. como um autorretrato ou uma autorreflexão sobre as suas origens identitárias, em que a própria figura da criança representa o próprio artista, em diálogo entre dois distintos lugares, tempos e sociedades. A duplicação de símbolos, como a seta ou o morcego, representa dois sentidos, duas orientações ou duas Figura 36 - Jason Wing, White Noise, confluências. 2009

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Associado ao facto de estes símbolos terem como ponto de expansão ou origem o próprio artista, as obras fazem-nos interrogar sobre as múltiplas inflluências que um único indivíduo pode acarretar em si mesmo.

Figura 37 - Jason Wing, Migrration Mural, 2007

A obra “Migration mural” (Figura 37) representa liteeralmente a “celebração das suas origens culturais”203. Um duplo reflexo de duas partes opostas ou complementares dispõem-se a partilhar o que eles representam, e acabam por mutuamente se contaminar. O artista ao se referir à sua mescla genealógica acaba mesmo por representar uma grande parte da população australiana. Associa-a assim às relações forçadas que a população aborígene foi submetida durante as políticas de assimilação, e acaba por fazer referência às diversas identidades que se edificam diariamente num mundo globalizado, onde as relações e construções identitárias são o reflexo de um diálogo bilateral.

A multiculturalidade é algo que marcaa a sociedade globalizada, onde as pluralidades e diferenças constroem a nossa própria identidade pessoal ou coletiva. Segundo este pensamento, a arte não poderá ser vista ou entendida isoladamente de outras sociedades ou comunidades, pois ela é o reflexo de uma contaminação com o ‘outro’ e com as suas experiências. A arte contemporânea hoje apresentada por artistas descendentes de aborígenes australianos é sem dúvida o resultado de pelo menos 200 anos de contaminação e diálogo com o ‘outro’. Deste modo a arte resultante é uma arte que explora os limites da sua própria existência num diálogo progressivo entre a sua origem e a sociedade discriminatória em que se insere.

A Austrália é um país que se vê atualmente como regime democrático, em que aos seus cidadãos é cedido uma total liberdade para se expressarem sobre os diferentes assuntos que acham pertinentes para a sua sociedade. Desta forma, os artistas aborígenes têm o privilégio 78

e o dever de usufruírem deste sistema político que lhes dá o espaço para renegociarem ou questionarem o seu lugar na sociedade australiana através da sua prática artística. A identidade, ou a dupla identidade, é uma das temáticas privilegiadas dentro da arte contemporânea aborígene, dado que é o resultado das políticas de exterminação da sua etnia. Assim, o período colonial e pós-colonial acabam por estar presentes nos vários assuntos abordados por muitos destes artistas, que refletem sobre o significado de ser aborígene dentro da atual sociedade australiana.

Os estereótipos negativos na qual a população aborígene tem sido enquadrada nos últimos anos, principalmente desde o início da Intervention no Northern Territory, têm ditado o modo como os australianos olham para toda a população aborígene. É quase imediata a associação de um aborígene a um marginal, o grande ‘podre’ ou o grande problema da sociedade australiana. Sendo associado como o grande detentor de problemas ligados às drogas, álcool, pedofilia, violência, violações sexuais, assaltos ou como o eterno dependente das ajudas económicas do estado para sobreviver.

Não se pode negar que têm existido imensos casos de abusos a mulheres e crianças dentro das comunidades aborígenes, muitos deles reportados como abusos concretizados por membros das próprias comunidades, no entanto tal também acontece na sociedade “branca”. Marcia Langton reflete no seu artigo “Trapped in the aboriginal reality show”, o caso do estado do Northern Territory, enquadrado na atual problemática da Intervention. Apesar da confirmação dos diversos casos de excessos dentro das comunidades aborígenes, Langton faz-nos igualmente refletir sobre quais serão as possíveis origens de tais comportamentos dentro de comunidades aborígenes em localidades remotas ou em famílias com índices de rendimento reduzido. Aponta assim às condições desumanas, nomeadamente às inúmeras infraestruturas improvisadas pelo governo e que se expandem por remotas zonas na Austrália; e aos vícios que estas comunidades foram assimilando, como as drogas ilícitas, o álcool ou a pornografia, importadas para dentro das comunidades aborígenes durante os anos setenta, pelo próprio estado australiano. O resultado destas substâncias dentro das comunidades aborígenes no passar destes anos não deve ser sobrestimada, visto que provavelmente contribuíra para comportamentos socialmente violentos e excessivos que resultam na maioria dos casos em negligência da vida familiar.

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Em 2011, o jovem artista Jason Wing, baseado nesta recente classificação da população aborígene, concebe uma série de autorretratos em que se apresenta com uma placa que o define enquanto aborígene segundo os padrões vigentes: alcoólico, drogado, criminoso e violador. Esta tabuleta colocada ao pescoço do artista acaaba por ser uma referência às primeiras placas colocadas em aborígenes para os identificar, aquando a colonização na Austrália.

Tomando a arte como um canal para expressar a sua raiva, frustração ou impotência, acaba por nos consciencializar sobre factos reais que estão afetar não só a população no NT, mas toda a população aborígene. Na série “An Australian Government Initiative self-portrait” (Figura 38), marca a sua posição perante estas iniciativas politicas e incita-nos a avaliar as nossas atitudes e comportamentos para com o que desconhecemos ou levianamente catalogamos.

Figura 38 - Jason Wing, An Australian Government Initiative self-portrait, 2012.

No ano de 2008, quando o governo australiano pede desculpas à população aborígene pelas atrocidades a que estes foram submetidos, a artista Bindi Cole apresenta um projeto intitulado “Not Really Aboriginal”. Este explora questões de raça e identidade, onde o assunto da cor da pele torna-se um pretexto para questionar o que significa ser aborígene. Utilizando assim a sua própria experiencia pessoal, de uma aborígene que fisicamente já não tem qualquer semelhança com um aborígene, por ser loira, de olhos azuis e pele branca. As fotografias que constituem este projeto apresentam um modeelo racista estereotipado do que é um aborígene. “Vive em comunidades remotas, tem uma pele muito escura e sofre de

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disfunções”204. Para conseguir refletir este antigo cliché que as pessoas associam, arrttista fotografa-se a si e a alguns membros da sua família, com a cara pintada de negro com uma facha vermelha na testa (Figura 39). Este trabalho acaba por revelar algumas verdades sobre as diversas incoerências que existem nas sociedades sobre o que prevalece no modo de identificar o outro e a sua cuultura, procurando sempre Figura 39 - Bindi Cole, Wathaurung nos definir por aquilo que parecemos ser, a um olhar Mob, 2008. educado por um poder predominantemente branco. No caso da Austrália, o “facto de ser-se “branco” ou “preto” é completamente supérfluo quando se aborda questões tão compleexas como a história nacional”205.

Em 2004 o fotógrafo Gary Lee concorre com um dos seus auutorretratos, ao prémio Telstra National Aboriginal and Torres Strait Islander Art Award, e acaba por ser recusado pelo júri do concurso. A desculpa oficial era que Lee não tinha realmente pressionado o botão do obturador da sua câmara fotográfica. Contudo Figura 40 - Gary Lee, Self portrait II, 2003. Lee subentendeu que o seu trabalho era "um 'autorretrato' feito por um artista aborígene mas que nada se parecia com um aborígene” 206. A ascendência de Lee é uma grande amálgama, sendo filipino, chinês, alemão, japonês e aborígene. Por tal, apesar de ter crescido e vivido na Austrália rodeado de amigos e familiares aborígenes, a sua identidade é o resultado acumulativo de todas estas culturas. Utilizando esta sua identidade particular como o seu modus operandi, explora a diversidade e beleza indígena masculina. O artista denomina estes tipos de trabalhos como “imagens de homens de cor, (..) que exibem uma imagem corporal que é uma ameaça”207.

Esta fotografia apresentada no concursso era um autorretrato que tinha tirado em 2003 na Índia, dentro do Templo Hanuman. Lee apresenta-se de mãos dadas com Manish, um homem musculado indiano. Lee escolheu Manish para este ttrabalho poor possuir as mesmas similaridades que ele, um indiano que não parecia ser indiano. Um inndiano de cabelo loiro,

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pele clara e com fisionomias extremamente semelhantes à dos europeus. Assim esta fotografia de Lee “Self portrait II” (Figura 40) é extramente provocatóória para a sociedade australianaa. Por um lado, por apresentar um homem homossexual envolto num xaile, posando para a câmara com um fisioculturista seminu, num espaço aparentemente isolado. E por outro, por questionar valores sociais, culturais, identitários e políticos. Não nos vamos esquecer que a Austrália é um país que apresenta uma população maioritariamente racista, xenófoba e conservadora. Prova disto é o recente referendo realizado na Austrália em Setembro de 2012, sobre aceitação do casamento homossexual, que por unanimidade da população foi negada. O curador Djon Mundine descreve a situação de Lee dentro da sociedade australiana, ao referir que a ele é-lhe “triplamente retirado o poder, no sentido de ser homossexual, asiático e pertencer ao povo Larrakia, um agora povo urbano nómada, que vive na região mais estereotipada da Austrália, um local onde os povos aborígenes ainda vivem uma ‘vida tradicional’”208.

Figura 41 - Tony Albert, Pay Attention Mother Fuckers, 2009-2010.

Por fim, pode-se fazer referência a uma das recentes obras de Tony Albert - “Pay Attention Mother Fuckers”- exposta na última edição da National Indigenous Art Triennial na NGA, em 2012 (Figura 41).

Esta é uma alusão à história colonial, na qual a remoção da linguagem foi fulcral para a abolição de rituais e costumes de diversas culturas indígenas. Esta obra de índole tipográfica transporta uma restituição de poder ao aborígene, através do uso da linguagem como forma de expressão. Em “Pay Attention Mother Fuckers” Albert apropriou-se do texto de um 82

trabalho de 1973 de Bruce Nauman com o mesmo título. Tal como a obra de Nauman, também Albert utiliza o poder da própria palavra escrita para declarar não só o que o seu texto afirma, mas para aliciar o observador a debater-se sobre quais as suas respostas ao que a obra lhe provoca.

Esta obra constituída por dois elementos que se espelham, um da autoria de Albert, e outro de um conjunto 25 artistas convidados a colaborar nesta obrap, sendo que o do coletivo apresenta os mesmos caracteres de Albert, mas invertidos. Cada letra acaba por deter uma individualidade muito própria, visto que a cada uma corresponde um artista com legado e motivações pessoais distintas. O confronto entre a agressiva afirmação da Obra com o modo delicado com que as letras foram elaboradas por cada artista, acaba por ser uma forte declaração de todo o percurso histórico e de vida da população aborígene na Austrália. Esta obra é uma declaração da diversidade existente dentro da arte contemporânea aborígene, não existindo na obra qualquer catalogação etnográfica, artística ou estilística, e acaba por funciona como um grande coletivo que mantém a sua individualidade. Tony Albert com este trabalho acaba por questionar a audiência sobre todos os métodos que são utilizados para classificar e representar hoje em dia a população e artistas aborígenes na sociedade australiana.

Os artistas apresentados neste último capítulo são essencialmente artistas que pertencem a uma geração que nasceu durante ou após a “grande revolução” na arte aborígene contemporânea, dos anos 80. Estes jovens artistas têm demonstrado que irão continuar o legado iniciado por artistas como Tracey Moffatt, Gordon Bennett ou Richard Bell. A complexidade heterogénea destes artistas representa os atores principais de uma ativa e crítica plataforma discursiva que reflete sobre a política e arte aborígene contemporânea, que certamente terá um papel fundamental na mudança de atitudes para com esta minoria.

p Os 25 artistas que Tony Albert convidara a participarem nesta obra são, correspondendo à palavra Pay: P - Judith Inkamala; A - Archie Moore; Y - Abe Muriata. Attention:; A - Theresa Beeron; T - Jason Wing; T - Megan Cope; E - Joanne Currie; N - Ninney Murray; T - Laurie Nilsen; I - Arthur Pambegan Jr.; O - Leah King-Smith; N - Daniel Boyd. E Mother Fuckers: M - Jennifer Herd; O - Judy Watson; T - Bianca Beetson; H - Dale Harding; E - Rahel Ungwanaka; R - Gary Lee; F - Vernon Ah Kee; U - The Last Kinection; C - Gordon Hookey; K - Craig Koomeeta; E - Tonya Grant; R - Richard Bell; S - Maureen Beeron. Hiperligação: ssfa.etools.com.au/TonyAlbert2012PressRelease.html

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V. CONCLUSÃO

Como podemos constatar, as relações entre a população aborígene e australiana ‘branca’ ao longo do tempo não tem sido amistosa. Os conflitos que advieram das múltiplas politicas opressivas e leis discriminatórias que os governos e sociedade australiana submeteram às populações aborígenes têm prolongado uma posição mútua de resistência e desconfiança. Esta rivalidade e discriminação acabaram por criar uma segregação de certas minorias étnicas dentro da sociedade australiana. No caso da população aborígene esta manifesta-se ao nível do exíguo poder social e político, refletindo-se também em todo o sistema de arte enraizado no país.

Recentemente, o historiador de arte Ian McLean refere numa conferência209 que acha interessante o facto de os ‘brancos’ só começarem a entender ou aceitar as artes produzidas por aqueles que não eles próprios, quando surge um movimento ‘branco’ que irá apropriar os seus elementos para a sua prática“. “Nós” só entendemos a arte africana quando surgiu o Cubismo, e “nós” só entendemos a arte aborígene quando surgiu a arte abstrata”210. Apesar de McLean não desenvolver esta afirmação, subentende-se que o branco, dentro da sua bolha universal, só se dispõe a entender o ‘outro’ quando necessita dele. Talvez se deva a este motivo o facto de a arte aborígene ter demorado tanto tempo a entrar na história da arte

No entanto esta aceitação não significa que esta seja tratada do mesmo modo que a restante arte. As próprias instituições museológicas australianas fazem questão de criar uma segregação dentro do espaço expositivo, separando toda a arte aborígene dos restantes movimentos artísticos, australianos ou não-australianos. Não será esta mais uma forma de marginalização da cultura aborígene?

Jacques Rancière acredita que “a arte tem que nos oferecer mais do que um espetáculo, algo mais do que deliciar passivos espectadores, porque tem de agir em favor de uma sociedade onde todos devem ser ativos. (...) A arte crítica preenche o vazio ao definir uma relação entre os seus objetivos e os seus meios: a sua meta será a de provocar uma consciência de situações políticas que levam a uma mobilização política. Os seus meios

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serão o de produzir uma forma sensorial de estranheza, um choque dos elementos heterogéneos impulsionando uma mudança de perceção”211. A arte ativista confronta as realidades e é uma manifestação consciente da complexidade de questões que subsistem num sistema viciado.

A arte aborígene emergiu inicialmente de uma necessidade de perpetuar a sua cultura, e o seu propósito não se alterou, tornou-se nos tempos atuais um fator ainda mais determinante da sua sobrevivência dentro de uma sociedade branca. É atualmente o único dispositivo artístico na Austrália, que efetivamente nos possibilita uma visão alargada deste sistema hegemónico. E é uma arte que nos ajuda a refletir sobre uma identidade global.

A arte aborígene ‘urbana’ produzida por uma geração mais reivindicativa e crítica, assinala uma mudança nos paradigmas ditos aborígenes, ao apresentar uma fusão e consciência da multiculturalidade a que se assiste na Austrália, e que irá sem dúvida ter impacto no seu lugar, provocando uma consciência mais global sobre questões que afetam aqueles que foram subjugados ou descriminados. Será esta geração de aborígenes algo semelhante a um Ceratodus?q

Esta arte aborígene crítica é o resultado de um processo orientado com o objetivo de provocar uma mudança ou consciencialização sobre a realidade, tornando-se assim uma arte útil para a sociedade contemporânea.

q Espécie de peixe, único na Austrália, que possui tanto guelras como pulmões, e que pode viver tanto em água doce como salgada. Pertence a uma de seis espécies de peixes com pulmões, sendo a única não extinta. Hiperligação: http://en.wikipedia.org/wiki/Queensland_lungfish

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VI. ÍNDICE DE IMAGENS

Figura 1 - Mapa da Austrália: 250 povos e línguas aborígenes australianas...... 4 Figura 2 - Mapa elucidativo da localização dos “abrigos educativos” – Western Australia (WA), Northern Territory (NT), South Australia (SA), New South Wales (NSW), Victoria (VIC) e Tasmania (TAS)...... 11 Figura 3- Mervyn Bishop, Primeiro-ministro Gough Whitlam coloca terra na mão do proprietário tradicional Vincent Lingiari, Northern Territory, 1975...... 24 Figura 4 - Parque Nacional de Uluru-Kata Tjuta...... 27 Figura 5 - Hannah-May Caspar, Cultural appropriApron, 2011...... 34 Figura 6 - Nick Schonkala, What tourist wants, 2011...... 34 Figura 7 - Beth Sometimes, The Sorry Souvenir Phenomenon, 2011...... 36 Figura 8 - The Aboriginal Memorial, National Gallery of Australia...... 51 Figura 9 – Mosaico de Michael Nelson Tjakamarra, em frente à Casa do Parlamento Australiano (Canberra)...... 52 Figura 10 - Protesto contra a legislação anti-Mabo junto à Casa do Parlamento (Canberra), 27 de Setembro de 1993...... 52 Figura 11 - Brenda Croft, Michael Watson in Redfern on the Long March of Freedom, Justice and Hope, Invasion Day, 26 January 1988, 1988, Sydney, Austrália...... 53 Figura 12 – Richard Bell, The Triangle of Discomfort – Diagram 1, 2003...... 56 Figura 13 - Richard Bell, The Triangle of Discomfort – Diagram 2, 2003...... 56 Figura 14 - Richard Bell, The Triangle of Discomfort – Diagram 3, 2003...... 57 Figura 15 - Jeffrey Samuels, This changing continent of Australia, 1986...... 62 Figura 16 - Gordon Hookey, Sacred nation, scared nation, indoctrination, Óleo s/ tela, 2003...... 66 Figura 17 - Gordon Hookey, The first stolen, Óleo, 1994,...... 66 Figura 18 - Gordon Hookey, Day of wreck con in, Óleo s/ tela, 2006...... 66 Figura 19 - Richard Bell, Scienta E Metaphysica (Bell's Theorum), ou Aboriginal Art Its a White Thing, 2003...... 68 Figura 20 - Tony Albert, A Collected History, 240 x 600 cm, 2002-2010...... 68 Figura 21 - Tony Albert, Rearranging Our History, 200x1150cm, 2002-2011...... 69 Figura 22 - Tony Albert, Welcome to Australia, 2007...... 70 87

Figura 23 - Tony Albert, Welcome to Australia (Colouring Book), 2007...... 70 Figura 24 - Andrew Brooke, série Gun-Metal Grey, 2007...... 71 Figura 25 - Vernon Ah Kee. Da esquerda para a direita: Race, 2005; Leonard, 2006; You Deicide, 2005; Jack Sibley (Uncle Jack), 2006...... 72 Figura 26 - Yhonnie Scarce, Shackled, 2006...... 73 Figura 27 - Yhonnie Scarce, The day we went away, 2004...... 73 Figura 28 - Yhonnie Scarce, Untitled, 2007...... 73 Figura 29 - Yhonnie Scarce, Burial Ground, 2012...... 73 Figura 30 - Yhonnie Scarce, Oppression¸ repression (family portrait), 2004...... 73 Figura 31 - Destiny Deacon, No Fixed Dress, 2003...... 75 Figura 32 - Destiny Deacon, Being there, 1998...... 75 Figura 33 - Destiny Deacon, Da doo run run, 2009...... 75 Figura 34 - Destiny Deacon, Last Laughs, 1995/2004...... 75 Figura 35 - Jason Wing, City Vs Country, 2009...... 77 Figura 36 - Jason Wing, White Noise, 2009 ...... 77 Figura 37 - Jason Wing, Migration Mural, 2007 ...... 78 Figura 38 - Jason Wing, An Australian Government Initiative self-portrait, 2012...... 80 Figura 39 - Bindi Cole, Wathaurung Mob, 2008...... 81 Figura 40 - Gary Lee, Self portrait II, 2003...... 81 Figura 41 - Tony Albert, Pay Attention Mother Fuckers, 2009-2010...... 82

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VII. ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1- Línguas Indígenas ou Crioulo falado na Austrália (1996) ...... 5 Quadro 2 - Idade das crianças retiradas das famílias, no estado de New South Wales (NSW), entre o ano de 1907 e de 1932...... 8

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Witnessing to silence: Art and Human Rights, ANU Drill Hall Gallery, Curadoria de Nancy Sever e Caroline Turner, 2003.

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IX. ANEXOS

IX.I. Anexo 1 - Discurso do Primeiro Ministro Kevin Rudd (2008)

PEDIDO DE DESCULPA AOS POVOS INDÍGENAS DA AUSTRÁLIA Câmara dos Representantes Parlamento, Canberra 13 de Fevereiro de 2008.

Hoje honramos os povos indígenas desta terra, as culturas mais antigas em continuidade na história humana. Refletimos sobre os maus-tratos que sofreram no passado. Refletimos, em particular, sobre os maus-tratos dos que fizeram parte das “Gerações Roubadas”, esse capítulo negro da história da nossa nação. Chegou o momento da nação virar uma nova página na história da Austrália, corrigindo os erros do passado e avançando assim com confiança rumo ao futuro.

Pedimos perdão pelas leis e políticas de sucessivos Parlamentos e governos que trouxeram tristeza, sofrimento e perda para estes nossos concidadãos australianos. Pedimos perdão, em particular, pela retirada de crianças de Aborígenes e de Ilhéus do Estreito de Torres das suas famílias, comunidades e do seu país. Pela dor, sofrimento e mágoa destas “Gerações Roubadas”, dos seus descendentes e de famílias deixadas para trás, pedimos perdão. Às mães e aos pais, aos irmãos e às irmãs, pela separação das suas famílias e das suas comunidades, pedimos perdão. E pela indignidade e degradação assim infligidas a um povo orgulhoso e com uma cultura orgulhosa, pedimos perdão.

Nós, o Parlamento da Austrália, solicitamos respeitosamente que este perdão seja recebido no espírito em que é oferecido, como parte da cura de uma nação. Rumamos ao futuro com coragem; decidindo que esta é uma nova página na qual a história do nosso grande continente pode agora ser escrita.

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Um futuro onde aproveitamos a determinação de todos os australianos, indígenas e não indígenas, para colmatar a lacuna que existe entre nós, na esperança de vida, no desempenho escolar e na oportunidade económica. Um futuro onde abraçamos a possibilidade de novas soluções para resistir aos problemas onde as velhas abordagens falharam. Um futuro baseado no respeito mútuo, na resolução mútua e na responsabilidade mútua. Um futuro onde todos os australianos, independentemente da sua origem, sejam parceiros verdadeiramente iguais, com oportunidades iguais e com a mesma participação na influência do próximo capítulo na história deste grande país, a Austrália. r

r Texto oficial traduzido para a língua Portuguesa. Retirado do sítio da internet oficial do Governo Australiano em http://australia-unsc.gov.au/reconciliacao/?lang=pt-pt

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X. NOTAS E REFERÊNCIAS

1 Afirmou o jugoslavo Ljubisa Ristic na conferência de impressa em 1984 do Festival de Adelaide, quando se descreve a Austrália enquanto país e local para o desenvolvimento da prática artística. “Australia´s beautiful climate, its easy life, its swimming pools, were not at all conducive to great art. The people were too happy”;

O´Brien, Geraldine. “In The Controversy Stakes, 1984 Ad Is A Real Winner”,The Sydney Morning Herald, Quarta-feira, 7 de Março de 1984.

Hiperligação: http://news.google.com/newspapers?nid=1301&dat=19840307&id=q5WAAAAIBAJ&sjid=nOgDAAAAI BAJ&pg=5783,3082723

Shewey, Don. “My Culture 'Tis of Thee Festive Noises from the Quiet Continent”, 1984.

Hiperligação: http://www.donshewey.com/theater_articles/adelaide_festival.htm 2 Edwin James Brady. Foi um poeta e jornalista que em 1912, visitou o Northern Territory, com o objetivo de encontrar material que pudesse utilizar para o seu “compêndio de oportunidades” para desenvolver economicamente na Austrália - Australia Unlimited. Apesar dos seus projetos terem falhado e nos últimos anos da sua vida mal se conseguir sustentar, este continuou a acreditar que a Austrália era o melhor país do mundo.

Bird, Deborah Rose; Davis, Richard. “Dislocating the frontier: Essaying the mystique of the outback”, The Australian National University, ANU E PRESS, 2005, p. 138; Edwin, James Brady. 'E.J. Brady, by Himself.

3 Relatório sobre o desenvolvimento humano de 2011; Sustainability and Equity: A Better Future for All, Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas. p. 126.

4 A Organização das nações Unidas (ONU) é fundada em 1941, tendo a Austrália como um dos seus membros fundadores. Esta organização tem como objetivos estabelecer parcerias de modo a criar oportunidades de desenvolvimento para os países mais pobres do mundo; Intensificar os esforços na luta mundial pela erradicação da pobreza extrema. 5 Australian – Genocide and Crimes Against Humanity Hiperligação: www.enotes.com/australia- reference/australia

6 Censos Oficiais Australianos de 2001. Hiperligação: http://www.abs.gov.au/ausstats/[email protected]/mediareleasesbyTopic/6B8FDEDE7D86302DCA256BDA00 7BA4E1?OpenDocument

95

7 Fourmile, Henrietta; Aboriginal arts in relation to multiculturalismo; Schmidt, A.; The loss of Australia´s Aboriginal Language Heritage, Aboriginal Studies Press, Canberra,1990.

8 Hiperligação: http://mappery.com/map-of/Australia-Aboriginal-Tribes-Map 9 Censos de 1996 (População e Habitações);

Hiperligação: http://www.abs.gov.au/ausstats/[email protected]/2f762f95845417aeca25706c00834efa/aadb12e0bbec2820 ca2570ec001117a5!OpenDocument. 10 Idem. 11 Gill, Nicholas. Transcending nostalgia: pastoralist memory and staking a claim in the land: History begins – The arrival as homecoming, em Bird, Deborah Rose; Davis, Richard. Dislocating the frontier: Essaying the mystique of the outback, The Australian National University, ANU E PRESS, 2005, p. 71.

12 Hamilton. The Knife Edge: Debates About Memory and History, em Bird, Rose; Davis, Richard. Dislocating the frontier: Essaying the mystique of the outback, The Australian National University, ANU E PRESS, 2005, p. 79. 13 White Australian, Terra Nullius, State Secularism; Masculinism, Australian Democracy, State of Developmentalism, Arbitration, Welfare Minimalism, Imperial Nationalism. Stokes, Geoffrey. The ‘Australian Settlement’ and Australian Political Thought, Deakin University – Australasian Political Studies Association, 2004; Australian Journal of Political Science, volume 39, Número 1, Março, p. 20.

14 Registos de entre 1916-1928, Aborigines Protection Board, Arquivos do Estado de NSW.

Hiperligação: http://www.stolengenerations.info/index.php?option=com_content&view=article&id=86&Itemid=35.

15 Hiperligação: http://www.creativespirits.info/aboriginalculture/politics/a-guide-to-australias-stolen- generations 16As instituições (“abrigos”) mais conhecidas são as seguintes: Bomaderry Children's Home (United Aborigines Mission) entre 1908 e1981; Cootamundra Aboriginal Girls' Home (Cootamundra Domestic Training Home for Aboriginal Girls), originalmente era um hospital, funcionando como “abrigo” entre 1911 e 1969, recebendo mais de 1200 raparigas; Kinchela Aboriginal Boys' Home (Kinchela Training Institution) entre 1924 a 1970. Recebeu cerca de 600 rapazes aborígenes; Mittagong Boys' Home; Kempsey; Parramatta Girls' Home entre 1887 e1986; Kahlin Compound, Darwin; The Bungalow, Alice Springs; Box Hill Boys Home, Melbourne.

96

Hiperligação: http://www.creativespirits.info/aboriginalculture/politics/stolen- generations.html#ixzz21o6By7nw

17 Quinto Episódio: An Unhealthy Government Experiment, First Australians: The Untold Story of Australia, script by Beck Cole and Louis Nowra, SBS Television, 2008.

18 Schmidt; The Lost of Australian´s Aboriginal Laguage Heritage, Aboriginal Studies Press, Canberra, 1990; Fourmile, Henrietta. Aboriginal Arts in Relation to Multiculturalism, Capítulo 5, Culture, difference and the Arts, p. 73.

19 Borja-Santos, Romana. Austrália reconhece erros do passado e pede desculpa a aborígenes no novo Parlamento, Jornal Público, 2008.

Hiperligação: www.publico.pt/Mundo/australia-reconhece-erros-do-passado-e-pede-desculpa-a- aborigenes-no-novo-parlamento-1319378

20 Hiperligação: www.stolengenerations.info/ 21 Altman, J.C; Hunter B.H., Monitoring ‘practical’ reconciliation: Evidence from the reconciliation decade, 1991–2001, No. 254/2003. Hiperligação: https://digitalcollections.anu.edu.au/bitstream/1885/39971/3/2003_DP254.pdf 22 Colic-Peisker,Val;Tilbury, Farida. Being black in Australia: a case study of intergroup relations, Institute of Race Relations, 2008, p. 44.

23 Idem. 24Leonardo, Zeus. The Color of Supremacy: Beyond the discourse of ‘white privilege’, California State University, Educational Philosophy and Theory, Volume 36, Número 2, 2004.

Texto original na língua inglesa: “Likewise, Australians have discussed instituting a national day of grieving, a day of atonement for crimes against the aboriginal population. White Australians are encouraged to sign a ‘sorry book’ to apologize to indigenous people and acknowledge responsibility for the history of colonization and its continuing legacies, like the lost generation of aboriginal people whom the Australian government took from their families and tried to assimilate into white culture. Such a gesture does not represent a radical solution but an official attempt to recognize white racial domination”.

25 Hiperligação: www.creativespirits.info/aboriginalculture/politics/stolen-generations-sorry- apology.html

26 Hiperligação:

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http://www.creativespirits.info/aboriginalculture/politics/stolen-generations- timeline.html#ixzz1v2v2gded

27Journal Koori Mail – The voice of Indigenous Australian, Foster care places boost, 13 Fevereiro 2008, p. 41. 28 Legislação aprovada por ambos os partidos políticos (Liberal e Labour):

Removido o sistema de autorização de acesso a terras aborígenes; Abolição da Comunidade de Desenvolvimento de Projetos de Emprego (CDEP); Submeter crianças aborígenes a serem ensinadas uma língua que não falassem durantes as primeiras quatro horas na escola; Quarentena de 50% dos pagamentos de previdência social; Suspensão da Lei de Discriminação Racial (RDA), É esperado que os aborígenes arrendem propriedades ao Governo em troca de serviços básicos; Adquirição compulsória de terras aborígenes; Submeter crianças aborígenes para exames de saúde obrigatórios (além dos já efetuados).

Hiperligação:

www.creativespirits.info/aboriginalculture/politics/northern-territory-intervention.html#ixzz21o4rl9OK 29 Revista Amnesty International The land holds us – Aboriginal peoples´ right to traditional homelands in the Northen Territory, Agosto de 2011; Intervention fight - ABC News (Australian Broadcasting Corporation).

Intervention fight - ABC News (Australian Broadcasting Corporation).

Hiperligação: http://www.youtube.com/watch?v=ZZDskp2UYu0, Maio de 2011. 30 Revista Amnesty International The land holds us – Aboriginal peoples´ right to traditional homelands in the Northen Territory, Agosto de 2011;

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Hiperligação: http://www.youtube.com/watch?v=VEgiX2NPx40&feature=related 32 Revista Amnesty International The land holds us – Aboriginal peoples´right to traditional homelands in the Northen Territory, Agosto de 2011, pág.7. 33Allen, Margaret. Innocents abroad’ and ‘prohibited immigrants: Australians in India and Indians in Australia 1890-1910.

34 Idem, p. 133.

35 Ibidem, p.132.

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36 Hiperligação: http://www.immi.gov.au/about/anniversary/immigration-history-2006-today.htm 37 Nationality and Citizenship Act 1948. Hiperligação: http://foundingdocs.gov.au/item-did-26-aid-2-pid- 21.html 38 Idem.

39O Referendo de 1967 é entendido pela Reconciliam Australia como o primeiro passo ou etapa dada pelo Governo para uma reconciliação entre aborígenes e brancos australianos. 40 Racial Discrimination Act 1975. Hiperligação: http://www.comlaw.gov.au/Details/C2004C00302

41 Hiperligação: http://www.immi.gov.au/about/anniversary/immigration-history-2006-today.htm

42 “Assimilação significa, em termos práticos, que é expectável que todos os indivíduos nascidos de aborígenes ou de mestiços na Austrália iriam viver como os Australianos brancos”, Timeline of legislation affecting Aboriginal people, DECS Curriculum Services.

Hiperligação: www.aboriginaleducation.sa.edu.au

43 Colic-Peisker;Val. Tilbury, Farida. Being black in Australia: a case study of intergroup relations, Institute of Race Relations, 2008, p. 42. 44 Lovell, Melissa. Settler Colonialism, Multiculturalism and the Politics of Postcolonial Identity, Australasian Political Science Association Conference, Monash University 24-26 Setembro, 2007.

45 Idem, p.3.

46 Ibidem, p.10. 47 Ibidem, p.10.

48 Censos 2011.

Hiperligação: http://www.abs.gov.au/ausstats/[email protected]/Lookup/by+Subject/1367.0~2012~Main+Features~Estimate d+Resident+Population~8.1 49 Colic-Peisker ,Val. Tilbury, Farida. Being black in Australia: a case study of intergroup relations, Institute of Race Relations, 2008, p. 42.

50 Idem. 51 Australia Shuts down African Immigration for 2007/2008.

Hiperligação: http://www.youtube.com/watch?v=eH19okhFGno 52 Australian asylum policy has 'racial element - Top UN human rights official raises concerns over Australia's policies towards asylum seekers and indigenous Aborigines. 25 Maio de 2011.

99

Hiperligação: http://www.aljazeera.com/news/asia-pacific/2011/05/2011525714290847.html

53 Idem.

54 Hiperligação: http://www.immi.gov.au/about/anniversary/immigration-history-2006-today.htm 55 Minister raises racism as reconciliation issue, Jornal Aboriginal Way edição número 45, Junho de 2011.

56 Em 1948, a “Declaração Universal dos Direitos do Homem” afirma alguns dos direitos que consideram ser fundamentais a todos os seres humanos como que sejam livres de falar e crer; libertos do terror, miséria, tirania e opressão. Declaração Universal dos Direitos do Homem - Artigos referidos: ARTIGO 5.º Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. ARTIGO 7.º Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. ARTIGO 9.º Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado. ARTIGO 15. º 1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade. 2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade. ARTIGO 19.º Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão. ARTIGO 23.º 1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social. 4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para a defesa dos seus interesses. ARTIGO 26.º 1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional deve ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. 2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. 3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos. 57 Lovell, Melissa. Settler Colonialism, Multiculturalism and the Politics of Postcolonial Identity, Conferência: Australian Political Studies Association, Monash University, Melbourne, 2007, p.11.

100

58 Curthoys, Ann. Genocide in Tasmania: The History of an Idea, em “Empire, colony, genocide: conquest, occupation, and subaltern resistance in World History”, Berghahn Books, 2008, capítulo 10, p. 229-252, 230 e 245-6. 59 1946 Pilbara strike - Australia’s longest strike. Hiperligação: http://www.creativespirits.info/aboriginalculture/politics/1946-pilbara-strike-australias-longest-strike 60 Hiperligação: http://en.wikipedia.org/wiki/Ranger_Uranium_Mine 61 Hiperligação: http://www.umich.edu/~snre492/Jabiluka.html

62 Hiperligação: http://www.environment.gov.au/parks/publications/kakadu/pubs/management- plan.pdf.

63 Uluru-Kata Tjuta National Park. Hiperligação: http://whc.unesco.org/en/list/447 64Gelder, K. e Jacobs, J. (1998) Uncanny Australia: Sacredness and Identity in a Postcolonial Nation, Melbourne University Press. 65 Žižek, Slavoj; Violence, Big Ideas, capítulo 2, p. 35.

66 Snapshots 2011- Indigenous Tourism Visitors In Australia, Tourism Research Australia (TRA), Department of Resources, Energy and Tourism of the Australian Government .

67 Parque Nacional do Kakadu. Hiperligação: http://www.environment.gov.au/parks/publications/kakadu/pubs/management-plan.pdf

68 Censos 2011. Hiperligação: http://www.abs.gov.au/ausstats/[email protected]/Lookup/by+Subject/1367.0~2012~Main+Features~Estimate d+Resident+Population~8.1 69 Australian Bureau of Statistics (23 de Abril de 2009);

Hiperligação: http://www.ausstats.abs.gov.au/ausstats/subscriber.nsf/0/057C7AB6661166CDCA2575A0001802DC/ $File/32180ds0002_2001-08.xls#%27Table 70 Definição de Town Camps: Hiperligação: http://epress.anu.edu.au/caepr_series/no_22/mobile_device/ch04s02.html

71 Crime in the Northern Territory. Hiperligação: http://en.wikipedia.org/wiki/Crime_in_the_Northern_Territory 72 NT's Indigenous people more likely to be victims of crime than non-Indigenous people.

Hiperligação:

101

http://www.abs.gov.au/ausstats/[email protected]/Previousproducts/1362.7Media%20Release1Mar%202010? opendocument&tabname=Summary&prodno=1362.7&issue=Mar%202010&num=&view=

73 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p.7.

74 Art centres and the indigenous art debate - Revista Australia Art Collector, número 49, Julho/Setembro, 2009; “Outback art code draws line in the sand”.

Hiperligação: http://www.theaustralian.com.au/news/outback-art-code-draws-line-in-the-sand/story- e6frg8ox-1225764574177.

75 Report Digest/Amnesty International: The land holds us – Aboriginal peoples ‘right to traditional homelands in the Northern Territory: Violation of the right to adequate housing in Utopia, Agosto de 2011, p.10. 76 Hiperligação: http://www.imdb.com/title/tt1340123/

77 Art calls backer, Koori Mail, número 404, 2007, p. 5-6.

78 Hiperligação: http://www.australiaonnet.com/tourism/ 79 Hiperligação: http://www.wts.org.au/ 80 Título da primeira exposição de arte aborígene datada em 1888.

81 Baldwin Spencer doara em 1917 à National Museum of Victoria cerca de 200 pinturas em casca de árvore, gravações sonoras, filmes, e mais 1700 negativos de fotografias. Buchlon, Benjamin; Martin, Jean-Hubert. Interview, Third Text, Volume 3, edição 6, 1989, pág. 19.

Allen, Lindy. The Early Collection and Exhibition of Art Work by Aboriginal Artists, Museum of Victoria. Hiperligação: museumvictoria.com.au. Consultado em Agosto 2012. 82 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p.19.

83 Aboriginal Art Show Opened, The Herald Newspaper, Melboune, 9 Julho de 1929.

84 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 23.

85 Relatório oficial da conferência: Initial Conference of Commonwealth and State Aboriginal Authorities, Abril de 1937, p. 4.

Nos anos 30 realiza-se a primeira conferência sobre assuntos indígenas na Austrália – Initial Conference of Commonwealth and State Aboriginal Authorities (Abril de 1937) – onde estiveram representadas “todas as autoridades governamentais na Austrália que controlavam os povos indígenas” de forma a decidirem o que seria melhor para o bem-estar dos povos aborígenes. 86 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 23.

102

87 Battarbee, Rex. Modern Australian Aboriginal Art, Angus and Robertson, Sydney 1951, p. 10.

88 Graburn, Nelson. Introduction: Arts of the Fourth World em Ethnic and Tourist arts: Cultural expressions from the Fourth World, University of California Press, Berkeley, 1976, p. 7.

89 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p. 111.

90 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 24. 91 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p. 19.

92 Smith, Sydney. Art of Australia - 1788-1941, New York: Museum of Modern Art for the Carnegie Corporation, 1941.

Hiperligação: http://www.nga.gov/past/data/exh2.shtm 93 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p. 19.

94 Idem. 95 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 24.

96 Idem, p. 24.

97 Idem, p. 24.

98 Idem, p. 25. 99 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p. 19.

100 Idem, p. 20. 101 McCulloch, A. The Aboriginal art exhibition, Meanjin, 1961, p. 191.

102 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 27. 103 McCulloch, Alan. The Aboriginal art exhibition, Meanjin, 1961, p. 192.

104 Tuckson, Anthony. Aboriginal art in the Western world - Australian Aboriginal Art, Ed. Berndt, Ronald, Sydney, Ure Smith, 1964, p. 63; Morphy, Howard. Seeing Aboriginal Art in the Gallery, Humanities Research Vol. 8 No. 1, 2001, p. 39 – 41.

Hiperligação: http://www.anu.edu.au/hrc/publications/hr/issue1_2001/article05.htm 105 McCulloch, Alan. Encyclopedia of australian art, volume 1, Hutchinson of Australia, 1984, p.4.

106 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 28. 107 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p. 25

103

108 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 29.

109 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p.17.

110 Clement, Tracey. Field Notes, Art Guide Australia, 2009.

Hiperligação: www.peterpinsongallery.com/?p=1107 111 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 31. 112 Revista Alcaide, Perspectives on the Presidency - The Unversity of Texas at Austin Alumini Magazine, volume LXIV, Número 2, novembro/dezembro de 1975, p. 23.

Hiperligação: http://books.google.co.uk/books?id=OdIDAAAAMBAJ&pg=PA23&lpg=PA23&dq=exhibition+%E2%80 %9CThe+Australian+Painters:+1964- 1966%E2%80%9D&source=bl&ots=RrxVDlhee4&sig=kQfBHty0dbYNGa5KZWmFFb5ADHU&hl=en#v =onepage&q&f=false 113 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 39. 114 Idem, p. 31. 115 Woodard, Garry. Whitlam turned focus on to Asia - It's time Labor looked to Whitlam's foreign record for inspiration, Jornal The Age, Novembro, 2005.

Hiperligação: http://www.theage.com.au/news/opinion/whitlam-turned-focus-on-to- asia/2005/11/10/1131578173705.html

116 Hiperligação: http://nga.gov.au/Collection/AcquisitionsPolicy.cfm 117 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 33-34. 118 Idem, 2011, p. 34. 119 Hiperligação: http://www.nga.gov.au 120 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, p. 35. 121 Johnson, Tim. (Entrevista por Richard McMillan) The hypnotic collector, em The painted dream, Auckland City Art Gallery, Auckland, 1990, p. 22. 122 Sydney Morning Herald, 26 de Janeiro 1984, p. 2.

123 Coutts-Smith, Kenneth. Australian Aboriginal Art, Art Network 7, 1982, p. 52.

104

124 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 40. 125 Smith, Terry. Writing the history of Australian Art: Its Past, present and possible future, Australian Journal of Art, 1983, Vol.3 (1983), pp. 10-29, p. 9.

Hiperligação: arthistoriography.files.wordpress.com/2011/05/smith-writing-the-history.pdf

126 Idem. 127 Johnson, Vivien, Our appropriation is our dispossession, Praxis M, 17, 1987, p. 4-6.

128 Idem. 129 Montgomery, Jill. Australia: The french Discovery of 1983, Art&Text, 12-13, 1984, p. 3.

130 Idem, p. 15. 131 Davila, Juan. One clectism, Art network, 13, 1984, p. 51.

132 Ward, Peter. Dreamrun for Aboriginal Art, The Weekend Australian, 17 Dezembro de 1988.

133 Hiperligação: http://en.wikipedia.org/wiki/World_Expo_88

134 Hiperligação: http://www.worldsfairphotos.com/expo88/documents/expo-info-manual/q.pdf 135 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 41. 136 Thomas, Daniel. Catálogo da exposição: Creating Australia: 200 years of Art, 1788-1988, Art Gallery of South Australia, Adelaide, 1988, p. 10.

137 Hiperligação: http://www.downtownexpress.com/de_344/stunningpatterns.html 138 Visita Guiada pelo Curador Djon Mundine, aquando da conferência New Eyes: An Introduction to Aboriginal Art, na National Gallery of Australia, Canberra, 4 de Dezembro de 2011.

139 Hiperligação: http://nga.gov.au/AboriginalMemorial/ 140 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p. 226.

141 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 42. 142 Smith, Terry. Public Art between Cultures: The Aboriginal Memorial, Aboriginality, and Nationality in Australia, Critical Inquiry, Junho, 2001, p. 629.

143 Idem.

144 Ibidem.

145 Michael Nelson Tjakamarra, The Australian, 1993, p.3.

105

146 Versão Original: White people. You don't seem to understand. They look at my work, all they see is a pretty painting. You, the white people, took this country from us ... White people must understand. This country is Aboriginal peoples' homeland ... We want to keep our culture strong for our children's children. We cannot do this without our land because it is our land, our dreamings, stories, paintings-- all tied to our land. This has all been changed ... The Government of Australia has not recognized our people and our culture, it is abusing my painting and insulting my people. I want to take my painting back to my people. 147 Hiperligação: http://cs.nga.gov.au/Detail.cfm?IRN=96504 148 McVicker, Norman. Tales From Along the Wallaby Track: Tourism Topics, The Mudgee Guardian, 1991, ‘Tales From the Wallaby Track’ Clippings, Mudgee Municipal Library. 149 Fisher, Jane. The invisible labyrinth em Vampire in the Text – Narratives of Contemporary Art, InIVa, 2003, p. 216.

150 Martin, Jean-Hubert, The first World-wide Exhibition of Contemporary Art, Exhibition statement, Museé national d’art moderne, Paris, 1989, p.1.

151 Smith, Terry. Public Art between Cultures: The Aboriginal Memorial, Aboriginality, and Nationality in Australia, Critical Inquiry, Junho, 2001, p. 632.

152 Hiperligação: http://www.aboriginalartonline.com/resources/market.php 153 Altman J. C.;Hunter B.H.; Ward S.; Wright F. Some competition and consumer issues in the Indigenous visual arts industry, 2000, p. 3.

Hiperligação: http://caepr.anu.edu.au/sites/default/files/Publications/DP/2002_DP235.pdf

154 Idem, p. 4. 155 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 17-18. 156 Smith, Terry. Public Art between Cultures: The Aboriginal Memorial, Aboriginality, and Nationality in Australia, Critical Inquiry, Junho, 2001, p. 632. 157 Hiperligação: http://www.kooriweb.org/foley/great/art/bell.html 158 Idem.

159 Hiperligação: http://www.kooriweb.org/foley/great/art/bell.html 160 Ibidem. 161 Bell, Richard. Bell’s Theorem: Aboriginal art is a white thing!, Richard Bell: Positivity, Institute of Modern Art, Brisbane, 2007.

106

162 Dodson. Mick. Speech at the launch of the National Enquiry into the Separation of Aboriginal and Torres Strait Islander Children from Their Families at the Australian Reconciliation Convention, Melbourne, 26/5/199. 163 Margo Neale, Learning to be proppa: Aboriginal artists collective ProppaNOW, Revista Artlink: Blak on blak, volume 30, número 1, 2010. 164 Caruana, W. Aboriginal Art, Thames & Hudson, 2003, p.196-197.

165 Idem, p.198.

166 Yunupingu, Galarrwuy. The black / white conflict em Windows on the Dreaming, Australian National Gallery, 1989, p.13-17. 167 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 57.

168 Idem, p. 146. 169 Jones, Jonathan. Texto Introdutório no catálogo da exposição Boomalli: 20 years on, Art Gallery of New South Wales, 2007, p. 2. 170 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 146.

171 Hiperligação: www.boomalli.com.au/history.htm 172 Foley, Fiona. Traditional Boundaries, New Perpectives em Curatorship: Indigenous Perspectives in Post-Colonial Societies, capítulo 9, Maltwood Art Museum and Gallery - University of Victoria, p. 100

173 A palavra “boomalli” significa ‘greve’ ou ‘fazer uma marca’ em pelo menos três línguas aborígenes - Bandjalung, Gamilaraay e Wiradjuri. 174 Hiperligação: www.boomalli.com.au/history.htm 175 Hollinsworth, David. Race and racism in Australia, Thomson, Melborne, 2006; Suvenrini Perera, Australia: racialised punishement and mandatory sentencing, Race&Class, vol. 2, número 1, 2006, p. 77 -80.

176 Hiperligação: http://www.artgallery.wa.gov.au/education/documents/Yirrkala-artists-Education-Kit- 2009-FINAL.pdf

177 Hiperligação: http://www.yirrkala.com/theartcentre/artist/418/Djambawa%20Marawili

178 About the Saltwater collection. Hiperligação: http://livingknowledge.anu.edu.au/learningsites/seacountry/17_collection.htm

179 Hiperligação: http://www.australianpolitics.com/issues/aborigines/amended-10-point-plan.shtml

107

180 Hiperligação: http://www.culturalsurvival.org/ourpublications/csq/article/the-great-land-grab-what- every-australian-should-know-about-wik-mabo-and 181 Perkins, Hetti; Lynn, Victoria. Black artists, cultural activists, Australian Perpecta, 1993, Art Gallery of New South Wales, p. 10.

182 Hiperligação: http://www.nelliecastangallery.com/artist/10.65/gordon-hookey.html

183 Hiperligação: http://hums3001.unsw.wikispaces.net/Artists+in+Trouble#Gordon%20Hookey

184 Message Stick, ProppaNow, 2011.Link:www.abc.net.au/tv/messagestick/stories/s3264665.htm

185 Hiperligação: http://www.theage.com.au/articles/2004/09/17/1095394004183.html

186 Myer, Kenneth. Brokering Aboriginal art: A critical perspective on marketing, institutions, and the state, Bunjilaka Gallery,Melbourne Museum, 2005, p. 1.

Hiperligação: http://caepr.anu.edu.au/Publications/topical/2005TI5.php

187 Elliott, Tim. Urban experience helps artist Tony Albert rearrange history, The Sydeny Morning Herald, Agosto, 2012.

Hiperligação: http://www.smh.com.au/entertainment/art-and-design/out-of-the-corner-20120816- 249lb.html 188 Idem . 189 McLean, Ian. How Aborigines invented the idea of contemporary art, Institute of Modern Art, Power Publications, 2011, p. 57. 190 Mundine, Djon. Black on back: An Aboriginal Perspective on Aboriginal Art, Art Montly Australia, 1990, p. 8. 191 Neale, Margo; Edmundson, Anna. Learning to be Proppa: Aboriginal Artists´colectove, ProppaNow, catálogo da exposição Thresholds of Tolerance, Humanities Research centre and School of Art Gallery, The Australian National University, 2007, p. 31.

192 Idem, p. 31. 193 Thomas, Nicholas. Blow-up: Brook Andrew and the anthropological archive, Exposição individual de Andrew Brook no Museum of Archaeology and Anthropology at the University of Cambridge, 2008. Hiperligação: www.brookandrew.com 194 Devery, Jane. Texto da exposição: 10 ways to look at the past, 2011; em Langton, Marcia. Brook Andrew: ethical portraits and ghost-scapes, Art Bulletin of Victoria, Vol. 48, National Gallery of Victoria, Melbourne, 2008, p. 59.

195 Beyond the dots, revista Incubate, edição 7, 2012, p.34-35.

108

196 Hiperligação: http://bushtuckerrecipes.com/bush_food/vines/bush-banana/ 197 Crampton, E. Rewriting Australian History: +20...Remembering the forgotten - The untold stories of John Oxley’s 1817 & 1818 Expeditions, Austrália, 2008.

Hiperligação: www.crampton.com.au/+20/+20.pdf.

198 Hiperligação: http://diannetanzergallery.net.au/Yhonnie-Scarce/Ectopia 199 Langton, Marcia. The valley of the dolls: black humour in the art of Destiny Deacon, revista Art & Australia, volume 35, número 1, 1997.

200 Deacon, Destiny. Where I am em Laneway – commissions 2011: A season of contemporary Aboriginal and Torres Strait Islander public art Works, Melbourne, 2011, p. 4. 201 Idem, p. 4.

202 Hiperligação: http://ctr.concordia.ca/2005-06/sept_29/05/

203 Wing, Jason. Artnotes em Art Monthly Australia, edição 208, Abril, 2008.

Hiperligação: www.artmonthly.org.au 204 Cole, Bindi. Not Really Aboriginal, Outubro, 2011.

Hiperligação: http://bindicole.blogspot.co.uk/2011/10/not-really-aboriginal.html 205 Harvey, Jirra Lulla. A Minstrel Legacy: Typecast in Indigeneity, Centre for Contemporary Photography, 2008.

206 Pakula, Karen. Beyond black and white, Jornal Sydney Morning Herald, Fevereiro, 2008.

Hiperligação: http://www.smh.com.au/news/arts/beyond-black-and- white/2008/02/01/1201801007067.html

207 Entrevista: Interview with Gary Lee, Revista Perfil – Asian-Australian: Arts and Culture, Janeiro, 2011. 208 Mundine, Djon. Cold Eels and distant Thoughts, The University Gallery, 2011. 209 Conferência: Ideas at the house na Sydney Opera House, em 2012. 210 Conferência Aboriginal Ar tis a White Thing na Sydney Opera House, 20 Junho de 2012. Hiperligação: http://ideas.sydneyoperahouse.com/2012/aboriginal-art-its-a-white-thing/ 211 Ranciere, Jacques. Aesthetic Separation, Aesthetic Community: Scenes from the Aesthetic

Regime of Art; 2008.

109