Revist'Entrevista

Entrevista com Oaniel Peixoto em 28 de outubro de 2008.

Bruno - Então, Daniel, pra começar: em Então, essa estética tinha voltado a ganhar Nascido em Fortaleza entrevista à Folha de S. Paulo (jornal fundado uma notoriedade justamente na época. É uma em 5 de janeiro de 1982, Daniel Peixoto Cordeiro de em 1921 com o nome de Folha da Noite, é, coisa que instiga muito. (risos) Eu ainda não Farias foi o primeiro neto segundo dados do Instituto Verificador de Cir- consegui entender o porquê. Mas é muito, de Edênia e Idelci Peixoto. culação, o jornal de maior circulação no país), muito, muito forte essa coisa da ambigüidade Seus pais são Valéria Pei- você disse que, quando era criança, por ter sexual. Até hoje eu me olho no espelho e não xoto Cordeiro de Farias, ex-miss Crato e hoje fun- traços finos e o cabelo comprido, as pessoas me acho parecido com uma mulher. Mas em cionária pública, e Osvaldo chegavam a confundir você com uma meni- fotografia, em vídeo, com uma luz, com a rou- Cordeiro de Farias, falecido na e isso lhe incomodava muito. Como é que pa, com uma maquiagem, é muito fácil. Até o em 2007, jornalista natural isso se transformou, que isso evoluiu pra o Leco (Leonardo Jucá de Oueiroz, 32 anos, for- do Rio de Janeiro que gos- tava muito de viajar. artista que você é hoje, que usa essa coisa da ma com Daniel o duo de eletroclash Montage; androginia como proposta estética? DJ, comanda o groovebox, aparelho que solta Oaniel - A família do meu pai é alemã. Eu as bases eletrônicas da banda nas apresenta- não nasci no Crato (cidade que fica no extre- ções ao vivo) brinca que é só botar um brin- mo sul do Ceará, região conhecida como Ca- co, já virou (risos). E, quando eu vi que isso riri, perto da fronteira com Pernambuco). Na despertava muito, eu comecei a pegar isso ao verdade, eu nasci aqui (em Fortaleza), mas eu meu favor. Hoje em dia já é uma coisa faz par- passei uma época - antes de morar lá - que eu te da minha identidade artística, pelo menos. ia muito com a minha mãe pra visitar meus pa- Essa coisa de saber lidar, talvez pela mode- rentes e tal. E essa coisa dessas confusões era ração, e eu nunca ter virado um homem de nessa época até quatro, cinco anos. Que era peruca, saca? Ou nunca ter virado um homem natural. Eu era um bebê muito branco, com vestido de mulher. Eu sei dosar e as pesso- cabelo comprido; enfim, um bebê, voz fina ... as sabem compreender essa coisa de querer E, às vezes, as pessoas cumprimentavam ou brincar com a estética dos dois sexos. falavam, direcionavam pra minha mãe como Andréia - Você acabou de falar que isso se eu fosse uma menina. Mas isso era uma virou um ponto de identidade sua ou mesmo coisa que me incomodava porque, na minha da sua apresentação no palco ... cabeça, quando eu olhava no espelho, eu não Oaniel - (interrompe) Menina, eu já não te- conseguia enxergar uma menina ali. nho mais paciência. (risos) Eu só saía maquia- Isso me incomodava nessa época. Depois, do, muito produzido. Hoje eu fujo disso porque quando eu comecei a trabalhar com moda, eu já enchi o saco mesmo. Mas, quando tem a em 1997, as pessoas começaram a querer coisa do trabalho, então realmente já vira uma despertar isso ... Foi aquela coisa, eles defi- coisa ... É tão bacana isso, porque, quando a nem o que você é. Se você é a loira fatal, se gente subverte, acaba chamando uma aten- você é o saradão da praia. Como eu via que ção igual. Eu fiz um editorial de moda pra uma funcionava muito, muito bem mesmo (a an- revista que chama Lounge. Foram oito fotos droginia) pro que eles queriam - e isso era publicadas. Eu e o Leco em todas as fotos de uma característica estética que tava muito em terno e gravata, sem maquiagem. Meu cabelo alta =, eu fui começando a ver que isso pode- tava muito grande nessa época, mas tava pre- ria ser revertido ao meu favor. E, quando eu so. Foi uma outra coisa que impressionou da montei a banda, tava no auge dessa volta da mesma forma, então já serve de contra ponto. O casal se conheceu androginia, porque foi uma época que Brian É uma coisa que eu me ligo que dá pra funcio- quando Osvaldo viajou para o Crato. Iniciaram um Molko, (vocalista) do Placebo (banda de indie nar, porque já causa estranheza, como se eu namoro, mas não casa- rock formada em 1994 por Brian Molko, Ste- tivesse maquiado ou de vestido. ram. Quando Valéria ficou fan Olsdal e Robert Schultzberg), tava muito Andréia - Como é que você faz uma defini- grávida, Idelci não aceitou "estourado", Shirley Manson, (vocalista) do ção do que seria sua identidade hoje? Já que a situação e ela teve de sair de casa. Vanessa Peixoto, Garbage (banda de rock com elementos ele- você tem essa identidade mais voltada pro irmã mais nova de Valéria, trônicos formada em 1995 por Duke Erikson, palco, pro show ... Qual seria a sua? morava em Fortaleza e a Shirley Manson, Steve Marker e Butch Vig) ... Oaniel - Cara, minha identidade pessoal já recebeu em sua casa.

DA IEL PEIXOTOI 71 Os pais de Daniel não tá formada há muito tempo. Eu sei o que eu ria. Mas como as coisas vão tomando outros ficaram juntos. Quando ele gosto, eu sei o que eu quero, pra onde eu que- rumos, as coisas foram aparecendo e eu fui tinha cinco anos, voltou com a mãe para o Crato, ro ir. Então, já é o começo de tudo. Quando me adaptando às situações, (o estudo) ficou onde ela se casou com você sabe pra onde você quer ir, você já sabe um pouco de lado. Mas, quando eu comecei a Evandro, com quem Daniel quem você é. É mais ou menos isso mesmo. banda, que eu tava fazendo exatamente o que tem uma boa relação. Va- São as coisas que eu sinto, são as coisas que eu sempre quis, eu parei tudo o que eu fazia. léria teve mais dois filhos: Mateus, hoje com quinze eu gosto, são as coisas que me definem. Acho Bruno - E de onde veio essa vontade? anos, e Varna, de oito. que, no final desta entrevista, vocês já vão ter Oaniel - Não sei te explicar de onde veio muito mais essa informação das coisas que essa vontade... Porque, na minha infância, eu falo do que eu estar dizendo quem eu sou, eu não tinha acesso a artistas, as coisas que quais são as minhas características, enfim ... eu via eram as coisas da televisão. Não sei, Bruno - Falando em saber o que quer, Da- mas, nos anos 1980 - eu não vejo mais isso niel, é verdade que na primeira vez que você hoje, porque as crianças não se interessam pisou no palco você tinha quatro anos de ida- por isso mais -, tinha muita banda formada de? Foi um show infantil? Como é que foi? por crianças: Balão Mágico, Trem da Alegria, Oaniel - Não, não foi um show infantil, Abelhudos, bla-bla-blá ... E acho que, de uma foi um ... Tem um evento, que eu não sei se certa forma, aquilo chama a atenção de uma tem aqui em Fortaleza, deve ter aqui também, criança você ver que uma criança estava fa- todo ano no Crato tem. É a feira dos livros in- zendo aquilo. Então juntava os discos, ficava fantis do SESC (Serviço Social do Comércio). dublando, cantando no espelho, pra ver como Lá no Crato funcionava numa praça que tinha era. Hoje eu não vejo mais essas bandas de - hoje foi destruída -, tinha uns músicos, acho criança. Os artistas que as crianças gostam que era um karaokê (evento em que as pesso- não são crianças. As crianças de hoje gostam as podem cantar acompanhados de arranjos da Ivete (Sangalo, cantora baiana). pré-gravados em algum tipo de mídia), algu- Alan - E como é que foi seu início no mun- ma coisa nesse sentido. A minha mãe pergun- do da moda? Como foi que você entrou? tou se eu não queria cantar. Eu fui, cantei o Oaniel - Então, eu morei em 1996, 1997 no repertório inteiro deles e as pessoas ficaram Rio (de Janeiro) e, na época que eu morava no loucas com isso, batendo foto ... No final, eu Rio, eu tava no shopping; eu recebi um cartão ganhei vários livros de presente. Talvez ali eu de uma galera de uma agência, pedindo pra pensei: "Posso ganhar alguma coisa se eu fi- eu visitar, que dava pra fazer algumas coisas. zer isso". E, depois, eu sempre quis, é verda- Eu acho que eu tinha uns 14 anos nessa época de, desde criança, eu sempre quis fazer o que (Daniel faz as contas em voz baixa) ... Quinze •• eu faço hoje. Essa lembrança é muito forte, anos. Eu tinha um metro e sessenta e cinco, assim, de eu querer tá no palco, cantando. E, falei: "Esse cara deve tá querendo me comer. daí, da música, poderiam vir outras formas de Porque não faz sentido". Eu sempre soube expressão, como teatro, enfim, moda ... Mas que a primeira coisa pra você trabalhar com eu sabia que a onda seria essa: no palco, can- moda é que você tinha que ser alto. Meu pai tando. perguntou: "Não, você não tá a fim de ir lá? Logo depois eu procurei, eu fiz aula de can- Vamos". E o cara falou que tinha uma outra to, estudei piano, recentemente eu fiz aula de segmentação, que era a parte comercial, que guitarra ... Porque eu sabia que, uma hora ou era pra foto, VT (mídia que permite a gravação outra, caso acontecesse, eu ia precisar dessas de arquivos de vídeo - aqui, Daniel se refere ferramentas. Eu acho que poderia ter estuda- à publicidade audiovisual de maneira geral), do muito mais, já que eu já sabia o que eu que- essas coisas. Quando eu comecei a me interessar por IIEu sei o que eu isso, e ver que tinha um caminho possível a ir, nessa época, eu voltei pro Ceará. E, do Rio, eu gosto, eu sei o que fui pro Crato de novo. No Rio, eu falo, porque meu pai era carioca. Lá no Crato, eu conheci eu quero, pra onde uma menina que tinha acabado de se formar em estilismo, que era amiga minha da época Desde 2005, Daniel Pei- eu quero ir. (...) do teatro, e tava fazendo alguns eventos de xoto e Leco Jucá formam a moda lá no Crato e tava vindo (para Fortaleza) banda de eletro punk Mon- Quando você sabe tage. Por trás do palco está fazer alguma coisa aqui também. Quando ela o produtor Ricardo Lisboa, veio pra cá, ela trouxe algumas fotos minhas formado em Comunicação pra onde você quer e apresentou pro pessoal de uma marca, dei- Social pela UFC. Ele é o xa eu ver se eu lembro qual era o nome da responsável pelos conta- ir, você já sabe marca ... (faz careta) Packway (marca e loja tos que garantem inser- fI ções em festivais, clubes e quem você é. de roupas voltada ao público jovem, popular casas de shows país afora. nos anos 90). E o cara imediatamente quis

REVISTA ENTREVISTA I 72 fazer umas fotos e eu ficava vindo todo final funk, numa coisa assim, do que nessa coisa Essa banda sem pu- de semana pra trabalhar com as coisas aqui. da tendência de moda. E o Nicolas me mos- dores nasceu numa festa homônima organizada E a coisa foi crescendo tanto que aí a agência trou as coisas de forma muito honesta: "Não por Ricardo. Já a idéia (de modelos, empresa que gerencia a carreira é o conto de fadas que as pessoas pregam". do nome veio de Patrick desses profissionais) do Rio indicou a agência Eu lembro que a primeira coisa que o Nicolas Bachi, guitarrista que par- daqui, que era a Book, representante da Ford me deu na vida foi um livro dessa grossura ticipou da banda nos pri- meiros anos, mas saiu por Models (uma das maiores agências de mode- (faz um gesto pra mostrar que o livro tinha desavenças com os outros los do mundo, fundada em 1946 por Eileen e muitas páginas), que se chamava Modelo - o integrantes. Jerry Ford, possui filiais em diversos países). mundo feio das pessoas lindas. Ele: -ó. lê isso Eu fiquei trabalhando uma época com a Ford. aqui imediatamente pra você saber qual é". E E eu trabalhei muito, eu fiz muita publicidade, foi me dando referências. Até hoje, ele é um muito comercial de clube, comercial de refri- conselheiro, eu confio demais em tudo que gerante, comercial de... (risos) "arro. Rolava ele fala. Justamente porque, no começo, ele umas coisas assim. E, quando eu fazia uma acreditou e viu que poderia sair dali alguma coisa mais fashion mesmo, era mais voltado coisa interessante, sabe? E ele me ajudava pra pra isso que eles queriam, um cara que pare- caramba, ele me indicava pros trabalhos. Os cesse uma menina, então sempre era isso. trabalhos que eu fazia, que eu pegava direto Com o tempo, depois que eu conheci mui- sem fazer casting, eram por indicação dele. E ta gente, eu fui começando a encher o saco ele foi virando um amigo mesmo, assim, da de coisas do tipo ... Você fica três horas na fila, minha casa. Eu era muito novo, a minha famí- aí: "Oh, você é louro? A gente quer um mo- lia me deixava sair com ele, porque eles viam reno". Horas numa fila, aí o cliente te recebe: que ali existia uma cumplicidade, que ele gos- "Não, você não tem a cara do verão do Cea- tava de graça de mim. rá", umas coisas tipo isso assim. Você perdia Ele me dava revista de moda internacio- muito tempo com coisas que poderiam ser nal, me levava pros trabalhos dele. Eu ficava muito mais óbvias, mas parece que eles estão fazendo assistente de fotografia. Então, eu o tempo inteiro te testando pra saber se você pude também fazer a coisa do outro lado, da quer realmente aquilo. Nunca tive um sonho, produção ... Eu também não sei fazer nada se nunca vislumbrei alguma coisa nesse sentido. eu não tiver envolvido na produção. Eu não Fui me distanciando disso de uma forma qua- sou um artista tão livre ao ponto de (mexe nos se que repugnante. Fiquei com os meus ami- gravadores sobre a mesa) - isso eu falo dos gos da moda pra sempre, são meus amigos meus trabalhos - ao ponto de simplesmen- até hoje. te alguém chegar e dizer o que fazer ou me Depois, quando eu passei a trabalhar na dirigir, ou dizer quem vai trabalhar, quem vai TV União (emissora com programação volta- fazer a luz. Eu gosto de escolher tudo. Isso é da ao público jovem e baseada em videocli- uma coisa que eu peguei com ele também: pes musicais. Estabelecida em Fortaleza em saber quem vai ser o fotógrafo, saber quem 2002, sua transmissão via satélite tem alcance vai ser o iluminador, saber quem vai gravar nacional, chegando até à América e parte da minha voz. Tudo isso eu prefiro saber antes, e Europa), e depois com a banda, que voltaram é uma característica que eu peguei dele, essa a me fazer convites pra trabalho de moda, já coisa de saber com quem você vai trabalhar, tinha uma outra regalia, já era uma coisa mui- to mais fácil. Porque eles já sabiam quem eu era, o que eles queriam comigo. Não tinha "Nunca tive um essa coisa de ficar em casting (processo de seleção de atores ou modelos para determi- sonho,nunca nado trabalho), de ficar fazendo teste, de ficar vislumbrei alguma levando 'não' por coisas, enfim ... Bruno - É verdade que foi o Nicolas Gon- coisa nesse sentido dim (fotógrafo de moda cearense, fez várias colaborações para o jornal O Povo, além de (a carreira editoriais para as revistas Criativa e Mane- quim) quem te deu os primeiros toques, de como modelo). Fui como você devia se portar, como é que você O Montage se apresen- me distanciando tou na Parada pela Diver- devia se vestir? sidade Sexual de 2006 em Oaniel - Foi. O Nicolas foi quem abriu o Fortaleza e atingiu recorde mundo. Porque eu cheguei do Rio com uma disso de uma de público, com 400 mil referência completamente inversa do que pessoas, superando a fa- forma quase que çanha da parada de 2005, eu tava vivendo na época. Eu tinha saído do quando tocaram por 3 Crato, tava numa grande cidade sozinho pela repugnante." horas no trio elétrico para primeira vez, então eu tava muito mais no 300 mil pessoas.

DANIEL PEIXOTO I 73 o ontage é conhecido saber com quem você vai se envolver, se Daniel - Depende. Quando a gente vai pela espontaneidade de aquela pessoa tem uma afinidade profissional fazer algum editorial pra alguma revista, por suas letras. "Raio de Fogo é uma canção de umban- com você ... exemplo, normalmente o diretor de arte da da, que tem essa entidade Alan - Foi um contato, então, que acabou revista já sabe o que ele quer. Então, a gente e tal que é a pomba-gira te ajudando na construção do Daniel do Mon- chega e já tem uma roupa ali, ou então, pelo Raio de Fogo", conta Leco tage? menos algumas opções pra gente escolher. Jucá. "Benflogin foi ele (Daniel) também que fez, Daniel- Certeza absoluta! E não é nem um Quando as fotos são nossas, de divulgação mas começou de improvi- contato. O Nicolas, é engraçado, virou um ami- ou para um álbum, enfim, qualquer coisa; a so no dia". go mesmo, logo, rápido, na primeira semana. gente conversa - eu, Leco, Ricardo (Ricardo Eu cheguei aqui, fui fazer um casting pra um Lisboa, empresário e produtor do Montage, é desfile e ele tava. Ele ficava falando que que- considerado por Daniel como o terceiro mem- ria falar comigo. E eu com medo. "Meu Deus, bro da banda) -, o que é que a gente quer, (risos) o que é que esse louco que nem me co- criar um conceito em cima do que a gente nhece querfalar comigo?". Depois, eu fui num quer passar. E a gente vai atrás do estilista, desfile do Lino (Vil/aventura, estilista nascido ou, enfim, do produtor de moda que possa di- em Belém, fez carreira no Ceará e hoje é dono recionar a gente até aquilo. de uma marca que leva seu nome, comercia- No primeiro disco, a gente usou Lino Villa- lizada nacionalmente), ele tava fotografando. ventura. Por quê? Porque, como a gente ti- Ele falou: "Ó, vi você naquele dia", tal, tal. nha acabado de sair do Ceará e tinha vontade Pronto, assim, me apresentou logo às pesso- de fazer essa ligação direta da música com a as, a gente começou a conversar; virou um moda, o caminho mais fácil seria o Lino - por amigo mesmo. Tá voltando comigo agora pra ser um estilista daqui que tinha conseguido São Paulo, na próxima semana, e vai ficar lá notoriedade espetacular aqui e fora. E, como três semanas, trabalhando lá em casa. eu tinha acesso ao Lino justamente por cau- Débora - E, Daniel, você disse que conse- sa dessa época e porque os profissionais guiu muitos amigos no mundo da moda ... que trabalhavam com ele - eu não conhecia Daniel - Muitos. o Lino daqui, conhecia (de falar:) "Oi, tudo Débora - ...E muitos continuam até hoje. bem, Lino?", mas não era meu amigo ... Só Mas o mundo da moda também é muito com- que todas as pessoas que trabalham com ele petitivo, né? Também tem muita ... são meus amigos dessa época. Foi muito fácil, Daniel - (interrompe) Eu acho que justa- com um telefonema a gente conseguiu. E foi mente por eu nunca ter competido com nin- muito generoso da parte dele abrir o acervo. guém. Como, aqui em Fortaleza pelo menos e Ele levou a gente num depósito, onde tinha nos trabalhos que eu fiz fora, realmente eu era tudo que era de todas as coleções, de todos os aquela pessoa pra aquele papel, então nunca desfiles dele, e eu já era muito fã, eu (imita um tinha essa coisa da concorrência. E eu nunca grito histérico): "Aaaah!" (risos de todos). Fui fiz. Os meus amigos - tenho amigos que são pegando tudo assim (faz gestos com a mão, modelos dessa época, mas não são os meus como se estivesse pegando várias roupas). grandes amigos - eram mais as pessoas do Então tem, geralmente, um propósito. Nes- estilismo, os fotógrafos, os maquiadores, os sa da revista, da Lounge, que eu falei, a gente produtores de moda, mais essa galera do ba- mesmo sentou: "Que que a gente quer?". Essa ckstage (palavra inglesa para "bastidores'1 revista Lounge é uma revista mais sofisticada, mesmo. eu tinha acabado de fazer um editorial pra Débora - Muitos desses estilistas acaba- uma revista daqui, que chama Seven (revista ram tendo contato também de figurino com cearense de moda, cultura e gastronomia) e o Montage, né? o tema era Victor ou Victória (filme alemão de Daniel- Total. 1933, dirigido por Reinhold Schünzel, conta a Débora - Como é que é feita essa produ- história de uma cantora que se disfarça de ho- ção? Quem é que chama? Ou é uma coisa mem para poder cantar - é mais conhecido, mais casual? porém, pela refilmagem de 1982, dirigida por Blake Edwards, com Julie Andrews no papel principal). E eu falei: "Leco, a gente acabou de fazer uma revista que tem esse tema. Vamos o primeiro álbum saiu subverter agora, vamos pôr terno, vamos fa- pelo selo Segundo Mun- do do produtor Dudu Ma- zer uma coisa mais ...", Então, a gente sempre 'o e, com fotos de Manuel conversa. Quando é uma coisa mais ocasio- ogueira.1 trust my dealer nal, mais cotidiana, tipo: "Ó, cês vão fazer arca uma atitude punk e uma foto pro jornal tal, tal dia, três horas". Ah, _ a batida eletrônica com ras do funk carioca, eu vou com a roupa que eu quiser, o Leco vai ra pop e elemen- com a roupa que ele quiser, e a gente grava. os. Mas, quando a gente vê que é uma coisa que

REVISTA ENTREVISTA I 74 a" circular muito mais, geralmente foto de re- Os álbuns seguintes "sta, foto especial pra jornal é escroto porque foram dois: Ao Vivo no Second Life, cujo show a gente faz um milhão de fotos, eles publicam tornou a banda a primeira uma e não dão as outras. Então a gente vê da América Latina a fazer que aquilo ali não vai ser usado mais. Mas as apresentações em ambien- nossas fotos de divulgação têm normalmente tes virtuais, e o EP Monta" ge 2008, especialmente um cuidado de pré-produção, de escolher o produzido para uma turnê fotógrafo certo, a locação correta, quem vai pela Europa. Ambos com vestir, quem vai maquiar. seis músicas. Bruno - E essa parte fica toda sob o seu controle? Daniel - Não. Tudo a gente conversa. (as- pessoas, ao mesmo tempo em que elas dan- sume um tom bem-humorado) As pessoas cem, possam assistir também, se elas quise- acham que eu sou o ditador (bate na mesa) rem. Um espetáculo pra ver e a música pra do Montage (risos)! Tudo a gente conversa e ouvir. nada eu resolvo só, nada, nada, nada, nada. Alan - E o que as pessoas não gostam de Só que, por eu ter um conhecimento de moda ver? um pouco maior do que os meninos, porque Daniel - Ah, depende ... Por exemplo, do eu já vivi nesse (meio), lógico que eles me dão público. Eu já fiz shows em lugares comple- ouvidos por conta disso. Mas não é que eu tamente contraditórios uns dos outros. Tipo imponha nada. Já tentei milhões de coisas. agora em Natal (capital do Rio Grande do Nor- Tipo: (voz de entusiasmo) "Ah, meu Deus, te), eu tinha preparado uma mistura de Nes- vista isso, Leco"; ele disse: "Não". Aí eu dis- cau com bananada e fiz essa coisa ficar muito se: "Pronto", sabe? E era uma coisa assim, eu preta. Teve uma hora que eu dei um gole e sempre tive essa idéia do que eu queria pas- joguei nas pessoas assim ... (risos). Eu vi que sar e o Leco vinha de outras bandas com lin- aquela atitude desagradou todo mundo. (ri- guagem completamente diferente. E, depois sos) Ninguém tinha curtido aquela coisa. que a gente entrou mesmo nesse circuito de E, ao mesmo tempo, é bom porque insti- moda, de tocar em desfiles ... Em São Paulo, ga, causa uma outra sensação, né? O show tem muito disso. A coisa da música é muito, do Montage eu acho que é isso, é muito do muito vizinho à moda. Onde você toca são os sensorial. Quando as pessoas tão muito con- lugares onde as pessoas da moda freqüentam centradas, envolvidas, rola mesmo de sentir e bla-bla-blá. E o fato de a gente fazer muita alguma coisa. É a função da arte. Tem pesso- revista, também, já cria essa conexão. Então, as que gostam de certas coisas, a gente não ele por si só já foi encontrando o personagem pode ser tudo que as pessoas pretendem que dele dentro do Montage. E hoje eu nem me seja. Tem que dar uma sujadinha (risos). preocupo mais, mesmo. Assim: "Vamos?". Célio - Outra coisa muito freqüente, pelo "Vamos". Já tá tudo certo. menos na sua vida pública, foi o trabalho na Andréia - Daniel... TV. Você já foi VJ da TV União (do inglês "Vi- Daniel - Já coincidiu da gente ir com a deo Jockey". Na emissora, apresentador de mesma roupa pra um ensaio (risos). programa de videoc!ipes musicais. Na ver- Andréia - Como a gente vê que várias dade, Daniel participou da primeira seleção bandas, independente do estilo musical, vêm para VJ, em 2003, mas não foi selecionado), usando muito de sensualidade em palco pra já apresentou um programa pra Internet (o montar sua performance. Como é que você programa Asterisco, que ia ao ar através do monta a sua performance, no âmbito de sexu- site Gerador Cultural - nesse mesmo progra- alidade dentro do Montage, como é que você ma trabalhavam Leco Jucá e Ricardo Lisboa, utiliza? Qual é a sua intenção? que formariam posteriormente o Montage), Daniel - É engraçado, porque eu poderia sua tia disse inclusive que você já tentou (ves- responder que seria uma coisa espontânea, tibular para o curso de) Jornalismo, a sua tia como foi no começo. Só que hoje a gente Vanessa... já chegou num nível no qual todos os meus Daniel - Foi... Mas ainda bem que não deu movimentos são friamente calculados (risos). certo. (risos)" A equipe de produção Porque eu já fiz tanto e eu já sei tanto o que as Célio - E qual foi o papel desse momento teve o primeiro conta" to próximo com Daniel pessoas gostam de ver ou o que as pessoas da sua vida pra formação do artista que você num dos encontros do não gostam de ver e o que eu faço pra pro- é hoje? projeto Literatura de Lua, vocar, que já virou meio que uma direção de Daniel- Eu sempre gostei muito dessa coi- que acontecem no café palco. Uma coisa muito espontânea, como no sa da música, mas eu sempre gostei muito da da livraria Lua Nova, no Benfica. A arte-educadora começo. Mas eu já sei exatamente como me comunicação. E a minha música não deixa de Fernanda Meireles, que moldar nisso. A minha preocupação, sempre, ser isso. Eu tê trocando uma mensagem com organiza a programação, é tentar segurar o show e fazer com que as as pessoas. E, nessa época que eu tava desis- conhecia Daniel há 5 anos.

DANIEL PEIXOTO I 75 Daniel foi convidado tindo da moda, e que justamente coincidiu a até hoje, o Liquidificador. A gente começou a ao encontro para tratar idade que eu tava ... Quando eu comecei a fa- produzir muito antes de entrar no ar. Em trinta do tema "A primeira vez", em julho de 2008. A novi- zer muita coisa de moda, eu parei dois anos de dias, o pessoal da TV já tinha perguntado se dade era ser pai. Ouvindo estudar, eu não tava conseguindo conciliar. E eu não queria fazer o meu próprio programa as histórias de vida que o eu sabia que a hora era aquela, e que estudar (que veio a se chamar Tantos Talentos). Isso rapaz contava desinibido, eu podia fazer depois. E foi o que eu fiz. Quan- foi em 2003, aí eu passei um ano inteiro. Eu o grupo se interessou pela personalidade do vocalista do eu parei, que eu voltei, tava pra terminar dirigia, eu apresentava, fazia as externas, de- do Montage. o terceiro ano, eu ficava, lógico, como todo cupava (decupar é o processo de selecionar mundo: pensando o que era que eu queria as imagens que serão usadas em um produto fazer. Eu nunca quis estudar música, porque audiovisual), editava, trilhava (botava a trilha eu acho, eu conversava com as pessoas que sonora), fazia tudo. Tinha uma menina que tinham feito Música na Uece (Universidade apresentava, que era a patrocinadora do pro- Estadual do Ceará), e todo mundo me falava grama. Então, até dirigir, falar o que ela tinha exatamente o que eu já achava: que é mui- que falar ... A gente ia pras externas, eu fazia a ta teoria, muita teoria, muita teoria, e eu tava pergunta antes, em off (em meios audiovisu- fugindo exatamente disso. Eu queria fazer e ais, tudo aquilo que não está posto em cena, aprender na prática, como tem sido. ou seja, fora do quadro ou da banda sonora Eu estudei piano, estudei guitarra; nunca - pode se referir, de maneira geral, àquilo que consegui dominar esses instrumentos. E ago- fica somente nos bastidores do programa), ra, no Montage, depois disso, eu já consigo ela repetia pro entrevistado. Então, fazia tudo. tocar teclado; se eu pego uma guitarra, eu Chegou um ponto que eu falei: "Ó, eu fui con- acompanho o que você toca. Só de ter a vi- tratado aqui pra ser produtor, eu tô fazendo vência daquilo. seis serviços, eu quero ganhar "2X", "Ah, 2X Então, não queria estudar música. E eu não dá, vou dar X" (Daniel na verdade quis di- gostava dessa coisa da Comunicação e fiquei zer um valor inferior ao sugerido). "Então con- com a idéia (de fazer o curso) muito tempo. Eu trata alguém pra trabalhar comigo". "Não". fui pesquisar cursos e ver coisas que eu podia "Tchau" (solta beijo). fazer naquela área, mas aí - e ainda bem =, Lá na TV União, as pessoas achavam que que não deu certo. Acho que eu teria me arre- eu tava fazendo aquilo porque eu queria apa- pendido muito se eu tivesse estudado, isso ou recer na TV. E não era. Eu queria fazer um tra- qualquer outra coisa também. balho bacana e eu sustentei até onde deu. Eu Célio - Mas e a experiência ... falei: "Sabe o que eu vou fazer? Em vez de Oaniel - E aí, exatamente, apareceu meio eu estar atrás de patrocinador - alguém que que por acaso. Eu fiz os testes pra TV União, e pague, tipo, 15 mil reais - que eu venha a ficar eles estavam procurando um casal. E eu não com dois, três, eu vou fazer meu próprio pro- entrei nessa seleção. Mas: 15 dias depois, eu grama na Internet". Foi a época do começo tinha sido convidado pra produzir o programa que bombou (fez muito sucesso) Orkut (site da Karine, Karine Alexandrino (cantora cea- de relacionamentos na Internet, o mais popu- rense de eletro rock e apresentadora de 7V, lar no Brasil, no qual os usuários mantêm pá- tem dois discos lançados, "Solteira Producta" ginas pessoais, participam de comunidades e e "Querem acabar comigo, Roberto"). Que foi trocam mensagens), fotolog (página pessoal ela quem tinha dado o toque pra eu procurar em que é possível postar fotos e trocar reca- a TV porque ela achava que eu tinha alguma dos), essas coisas. A gente tinha um público coisa a ver e tal. Como eu não tinha consegui- muito, muito, muito grande por conta desse do entrar pra apresentar o programa, ela indi- fervo, essa coisa fresh da Internet, da possi- cou: "Por que você não fica produzindo o meu bilidade de todo mundo ter acesso àquilo. E programa?". O programa dela, que tá no ar a gente passou um ano inteiro fazendo o pro- grama, justamente as mesmas pessoas do "Acho que eu teria Montage: eu, Leco e Ricardo. A gente fez o programa um ano. A gente me arrependido viajava, as pessoas de festival adoravam. Eles bancavam as nossas passagens, por ser um Os futuros produtores muito se eu tivesse projeto independente. A gente fez (cobertura ainda nem sabiam se iriam do) Abril pro Rock. Viajei muito, fazendo várias participar da disciplina, mas era certo o nome estudado isso coisas bacanas. E só acabamos o projeto do que lançariam: Daniel Pei- programa porque a gente começou a banda, xoto, cantor e performer (música) e deu muito certo muito rápido, tipo, em dois do Montage. Dois meses meses. Depois, a gente ainda tentou continu- depois, na votação com a ou qualquer outra turma, Daniel ficou entre ar com o programa, aproveitando o frenesi da os três primeiros escolhi- coisa também." banda, mas a gente se concentrava numa coi- dos. sa ou noutra. A gente escolheu fazer a banda.

REVISTA ENTREVISTA I 76 Roberta - Daniel, e como é que foi, pra caixei nesse perfil. Depois com a banda deu Entra e co você, desde o começo, toda a questão de tudo certo. Foi apagado, não houve nenhuma Daniel foi relativame fácil. Débora lembrou do trabalhar com a moda, trabalhar em desfiles, discussão. Ficou tudo ótimo e pronto. Eu pre- contato que tinha com cantar no coral e tudo mais? Como é que foi a firo. Rafael Bandeira, um dos vivência, com a família, pra isso? Alan - E por que você acha que aconteceu proprietários da casa de Oaniel - Hum... A minha mãe sempre assim, de uma hora pra outra? shows HeyHo. Rafael nos repassou o telefone do apoiou só em não ser contra as coisas que Oaniel- Porque eles começaram a ver que empresário e produtor Ri- eu fazia. E a coisa da música sempre houve tava dando certo, que eu não tava mais pe- cardo Lisboa. um incentivo. Quando eu comecei a trabalhar dindo dinheiro, que eu tava ganhando minha com moda, eu já não tinha um controle fami- própria grana, que eu morava fora, que todos liar. Eu já era solto no meio do mundo. os meus primos e as minhas primas da minha Roberta - Era aos dez anos (em uma das idade que todo mundo passou a vida inteira entrevistas para a produção da pauta, a equi- mandando estudar e que estudaram pra cara- pe de produção apurou que Daniel teria co- lho nenhum tá fazendo o que queria e eu tôo meçado a desfilar aos dez anos)? Henrique - Daniel, essa trégua é importan- Oaniel- Não, dez anos, não! Era aos quin- te pra ti? ze. Por mais que eu fosse muito novo, por Oaniel - Não. Chegou um limite da minha mais que ela dissesse que não, pra mim, não vida que eu comecei a me importar muito, ia mudar em nada. Depois, com o Montage, muito pouco com isso mesmo. Ou eu virava quando o Montage teve uma abertura maior, vários amigos que eu tenho, que se restringi- tudo virou maravilha, todos os problemas aca- ram a fazer milhões de coisas e se frustraram baram, tudo que não gostava virou ok. Porque por não fazer as coisas que faziam bem pra é aquela velha história: eu sempre repeti os eles por conta do que as pessoas iam achar ... mesmos erros porque eu sabia que os meus E eu tinha certeza que não queria viver daquela erros iam resultar no que eu estava procuran- forma. Então, começou a ser desinteressante. do. E, pra eles, era muito complicado enten- Eu sempre tive um respeito enorme pela mi- der isso, já que a galera estava no Crato, numa nha mãe e pelo meu pai, mas sempre tentan- cultura completamente diferente. do mostrar a eles que eu não ia deixar de fazer Alan - Mas que erros eram esses? nada que eles viessem a reprovar. Eu ia fazer Oaniel- É muito complicado, por exemplo, do mesmo jeito e, infelizmente, eles gostas- você (se refere a ele mesmo) chegar, com 16, sem ou não, ia ser feito. Foi o que aconteceu. 17 anos, pra minha avó, que tem 74, e dizer Com o meu pai não tive muito contato nessa que eu ia ter uma banda de eletro e ia tirar a formação artística, mas (ele) sempre adorou, roupa no palco, as pessoas iam ficar gritando sempre apoiou, sempre me deu a maior força e que eu ia pegar o microfone e botar no cu em tudo. Hoje, está tudo certo. Não tenho tan- (risos). Talvez ela não achasse isso interessan- to contato com a minha família hoje, porque te. Depois que veio a coisa do reconhecimen- antes eu morava lá - era diferente. Eu tinha to, deu tudo certo. Mas eu comi o pão que o que viver naquela sociedade, mesmo que diabo amassou quando eu morava no Crato, obrigatoriamente. E lógico que hoje eu vou, por vários fatores. As pessoas me achavam visito, falo com todo mundo, sou muito bem um ET (sigla para extra-terrestre). Tudo o que recebido, mas eu não tenho a importância de eu fazia ninguém entendia como se eu tives- se tentando expressar alguma coisa artística. As pessoas sempre viam como afronta, como Meus primos da agressão, como anarquismo. E não era essa a intenção. Nunca foi. Eu não sou assim. Nunca minha idade que me esforcei em agredir as pessoas. Eles me ensinaram a fazer isso (risos). todo mundo passou Alan - E isso partia da própria família? a vida inteira Oaniel - Também. A questão do interior - não sei se vocês já moraram em interior - tem mandando uma coisa muito assim: a culpa não é minha, a culpa é da minha mãe que não soube me estudar e que educar ou a culpa é de fulano que não deu Ricardo nos deu o tele- fone da residência de Da- a instrução correta. Então, acaba que as pes- estudaram pra niel em São Paulo. O per- soas vêem e começam a cobrar uma postura former aceitou de pronto dos terceiros, que são minha família, mas ... Eu caralho nenhum participar do projeto. Ele respondo por mim e você responde por você. avisou que estaria em For- tá fazendo o que taleza em setembro para Isso vem muito da cobrança familiar. Então, uma apresentação e que ) eles se questionavam até que ponto aquilo queria e eu tôo poderíamos realizar a en- e poderia ser tido como normal. Nunca me en- trevista nessa época.

DANIEL PEIXOTO I 77 As entrevistas para a saber se fulano tá bem, se fulano tá vivo, nem Oaniel - o Diego (Linard). A Dani (Daniela produção da pauta co- aí mesmo. Guesseri, que é uma amiga minha de muito meçaram com Fernanda Meireles. Por indicação do Emanuele - Daniel, você falou que os seus tempo, mora em São Paulo. Quando eu tô por produtor do Montage, pro- pais, de certa forma, te apoiavam. Além deles, aqui, eu sempre visito meus amigos de infân- curamos a tia de Oaniel, que outras pessoas da tua família te apoiavam cia. Quando eu vou pra lá, uma vez na vida, Vanessa Peixoto, e os ami- também? eu sempre encontro todo mundo, saio, feste- gos Raquel Pessoa Cortez e Gabriel Morais. Oaniel - Muitas pessoas isoladas. Porque jo, farreio, parece que eu nunca fui (embora), as minhas idéias, muitas delas, o que eu que- parece que fui pra casa no dia anterior e en- ria fazer, eu sabia que eu não podia executar contrei com eles no dia seguinte. Porque, an- ali. Então, eu não ia poder contar com a aju- tes de tudo isso, eu sei, na verdade, que essas da daquelas pessoas porque elas não tinham pessoas são meu porto seguro. Eu sei que não ferramentas pra me ajudar. Podiam me ajudar têm nenhum interesse, essas pessoas não me num conselho, numa coisa nesse sentido. conheceram numa festa, sabe, num show ou Mas não tinha mesmo alguém que pudesse ... alguma coisa nesse sentido. São pessoas que Porque nada das coisas que eu queria fazer gostavam de mim e eu sinto esse amor antes estavam ali. Quem me apoiou mesmo foi mi- de qualquer coisa ter acontecido. nha tia Vanessa, que sempre foi minha amiga Célio - Sua tia Vanessa chegou a comen- e é minha segunda mãe. Foi quem me hospe- tar, em uma pré-entrevista, que você tinha dou quando eu saí fora do Crato e vim pra cá, uns amigos "loucos". Como era esse grupo então, morava com ela. Ela, sim, me ajudou dentro do Crato? Que lugares vocês freqüen- muito. Mas as pessoas que estavam lá, muito tavam, o que é que vocês faziam? pouco. Oaniel - Tínhamos um grupo que éramos Luar - E o que é que você queria fazer lá e o Gabriel, que vocês entrevistaram, o Diego, não podia? que é esse menino que morava na Espanha, Oaniel - Não tinha o que fazer. Eu queria que mora hoje lá em São Paulo, tinha o Ale- fazer o que eu faço hoje. Eu queria cantar, eu xandre (Herbert), que é filho do dono da Ca- queria fazer alguma coisa com Comunicação, juína São Geraldo (marca cearense de refrige- de repente, fazer um espetáculo - eu estudei rante feito à base de caju), e o pai dele era o teatro muito tempo -, mas não tinha um ca- prefeito de Juazeiro (do Norte, cidade do Cari- minho ali. Eu trabalhei no Crato numa loja de ri cearense, distante 600 km de Fortaleza, po- bicho, vendendo ração, e trabalhei em duas pular pela romaria dedica da ao Padre Cícero. lojas de roupa como balconista de shopping. Foi emancipada em 1911, tendo cerca de 240 E eu já tava ficando louco, eu sabia que não mil habitantes em 2008). Então, era um gru- dava pra ficar naquela muito tempo. po de umas dez, quinze pessoas, que a gente •. Emanuele - E amigos lá do Crato? queria trazer um pedaço da Europa pro Crato Oaniel - Muitos. Até hoje. São meus ami- (às gargalhadas). Pros lugares que a gente fre- gos de infância, são pessoas que construíram qüentava a gente já levava os nossos próprios uma história comigo e fazem coisas completa- discos; já dominava, as pessoas ficavam com mente distintas, mas, ao mesmo tempo, existe ódio, porque a gente tava tirando o forró. Eujá um carinho, um amor pra sempre. Olha: meu me vestia, eu juro por Deus, exatamente (en- melhor amigo é do Crato e mora a 50 metros fático) assim com 14, 15, 16, 17 anos. E eu era de mim em São Paulo. Porque ele morava em o mais ok (no sentido de mais "normet"i de Barcelona, mas sabia que queria estar do meu todos eles. E sempre tinha um choque mui- lado nessa época da minha vida. Ele se for- to mais pelas pessoas, aquela velha história, mou em Cinema e sabia que São Paulo era né? "Meu Deus, por que a família desse povo um campo bom pra atuar. deixa eles fazerem isso?" Nunca era: "Por que Alan - Quem é? é que esse povo faz isso?". (imitando voz de espanto) "Meus Deus, o filho do prefeito ...", IJEraum grupo (de Nunca ninguém ligou. A gente se divertia hor- rores. Esse meu amigo, que é filho do dono da amigos) de umas Cajuína, que era então prefeito, também mora a 50 metros de mim. Não nos despregamos Fernanda Meireles nos dez, quinze pessoas, até hoje, continua a mesma máfia (risos). recebeu à tarde em casa, Bruno - Você falou do seu pai. Você nunca bem disposta e gentil como costuma ser. Ouvi- que a gente queria chegou a morar com ele... mos histórias de Oaniel e Oaniel - Morei. da vida musical e noturna trazer um pedaço Bruno - Morou? E como é que era a rela- de Fortaleza no começo ção com ele? dos anos 2000. Pra encer- da Europa pro Crato rar bem a reunião, boli- Oaniel - Era maravilhosa. Sempre foi mui- nhos, refrigerante e torra- (risos)." to boa. Quando eu era criança, eu tive menos das com patê. contato. Eu ia só passar férias. Quando eu

REVISTA ENTREVISTA I 78 nasci, eu fui direto pro Rio, fiquei lá um tem- estudos, por exemplo? MA bicha oura a' c e- po, voltei pro Ceará, fui pro Crato e depois Oaniel - Afetava muito. Eu repeti a sétima gar do Crato", Fernanda Meireles ainda não sabia, eu sempre ia, sempre passei férias com ele. série justamente por uma brincadeira dessa. mas essa seria a primeira Teve uma época em que eu comecei a ficar Porque eu fui, fiquei os seis primeiros meses e vez que ela ouviria falar de seis meses com ele e seis meses com a mi- eu já não tava querendo voltar. Eu tava adoran- Daniel Peixoto. Era ainda nha mãe. Que era quando eu já estava mais do viver essa nova vida no Rio e tal. Eu fiquei 2001 e aquele ano marca- va a chegada do cantor a crescido e já tinha decidido isso. E teve uma enrolando, enrolando e agosto e setembro ... E Fortaleza. época em que eu fiquei só com ele que foi jus- minha mãe já desesperada e acabei voltando, tamente 1996 e 1997. E foi maravilhoso assim, mas não consegui mais acompanhar nada. O eu tenho só lembranças boas. nível de ensino no Rio é muito superior ao en- Alan - E você passou oito anos sem vê-to, sino no Crato, apesar de lá eu ter estudado em não é? escolas boas. Mas era outra história, comple- Oaniel - Foi, de 1997, o ano que eu vim tamente diferente. E foi mais ou menos nessa embora ... Não foi tudo isso, não, eu acho. época que eu comecei a me desinteressar. Eu Será que foi? Até 2004. Uns seis, sete anos. fui um ótimo aluno, mas chegou uma época Bruno - E por que todo esse tempo? que eu não tinha mais nenhum interesse em Oaniel - Porque, assim, quando eu fui em- estudar, lá pelos 14, 15 anos. Eu levei o se- bora do Rio, eu fui embora porque eu tive mui- gundo grau de uma forma muito, muito, mui- tos problemas com a ex-mulher dele. Existia to nas coxas. Parei dois anos depois, na época uma família formada: ele, ela e os meus dois em que eu tava trabalhando já. Vim terminar irmãos, e eu caí de para-quedas naquela si- a duras penas. tuação, tentando me adaptar àquilo, e foram Emanuele - Você acha que isso te influen- caminhos completamente contraditórios. Pra ciou a não querer se formar? mim, é até difícil falar sobre isso com vocês, Oaniel- Não, porque é engraçado isso: eu porque é a mãe dos meus irmãos e eu não nunca gostei de estudar as coisas que eu via quero estar difamando ela. Mas não havia na escola, mas eu sempre tive vontade de fa- entendimento. Nenhum! Eu fui até o limite, zer faculdade. E, durante a adolescência, eu onde deu pra conviver e acabou que não deu pensei em várias coisas até chegar na decisão mesmo. E teve uma série de fatores que ela do Jornalismo. Acho que também, talvez, por apontava e que meu pai passou a desacreditar uma influência do meu pai, que era jornalista. em mim e acreditar nela. Então, eu vi nessa E, de uma certa forma, eu já tinha circulado época que não fazia sentido eu ficar conviven- naquele universo meio que de penetra, mas, do numa situação onde eu estava sendo de- enfim, tava ali dentro. sacreditado. Depois, quando os anos foram se Emanuele - Mas como era essa circula- passando e ele pôde constatar que tudo o que ção? eu tinha alegado era verdade, aí ele voltou e Oaniel - Meu pai tinha uma agência de eu vi que ele tava reconhecendo o erro, mas notícias, que era uma agência de publicidade não teve uma coisa de perdão, não teve uma também uma época. Então, eu tava sempre lá.

briga. U Ah, eu briguei com meu pai e por isso Ele trabalhou em redação, me levava, então, eu ...", Foi mais uma questão de situação. En- eu freqüentava esse universo. Ele ficava es- quanto aquilo estivesse acontecendo, eu não crevendo em casa. Escrevia e lia sobre o que poderia estar ali. ele tava escrevendo. Eu comecei a usar a In- A1an - Que coisas eram? ternet nos primórdios. Eu me lembro de usar Oaniel - Ai, cara, coisas terríveis! É muito a Internet em 1995 (a rede mundial de compu- di 'c' pra eu contar isso em entrevista porque tadores surgiu a partir da ARPANET, que pos- não da. É a mãe da minha irmã, que eu amo suía fins militares, tendo ganhado seu nome e rnui o, e não vou ficar contando essas coisas formato definitivo no começo dos anos 1990, bizarras. as eram coisas muito, muito pesa- teve seu lançamento comercial no Brasil jus- das mesmo. Ponto. tamente no ano de 1995). Nenhum dos meus Bruno - as hoje você se dá bem com amigos que eu pergunto, nenhum começou a ela? Oaniel- Com quem? Com a mulher? Não. De forma nenhuma. Encontrei com ela, depois Depois de Fernanda, a desse dia que eu fui embora, no velório do equipe procurou a irmã da mãe do cantor, Vanessa meu pai. E lógico que eu fui educado, como Peixoto. A rotina da tia Va- eu fui com todas as pessoas, mas nada de nessa, que estuda Direito chorar no ombro. ão fazia sentido nenhum. e trabalha na Procuradoria Emanuele - Daniel, essas suas idas ao Rio, de Justiça, quase não dava folga para um encontro. que você disse que chegava a passar seis me- Mas, para compensar, o ses com a sua mãe aqui no Ceará e seis me- papo foi espontâneo e ses com seu pai no Rio. Isso não afetava nos emocionado.

DANIEL PEIXOTO I 79 Vanessa, que é muito usar a Internet antes de 1998, que foi quando houve nesse período um momento de crise, parecida com Daniel, abri- veio se popularizar - em 1997, 1998. Porque de dúvida, se você chegou a tombar e cair e gou o sobrinho no aparta- mento dela quando ele se tinha Internet nas redações, discado, caríssi- achava que não ia mais levantar, se foi real- mudou para Fortaleza, em mo, enfim ... E talvez isso tenha influenciado, mente assim, o tempo passando, essas coi- 2001. Vanessa fala dele de certa forma. Eu nunca fui avesso a estudar, sas se colocando no seu caminho e você está como um filho que não só não gostava das coisas que estavam se aqui hoje, por exemplo. teve. Mostrando sintonia, na entrevista, o cantor passando naquela época. Talvez pela minha Oaniel - Eu sempre senti que eu era uma reconheceu na tia uma vida já ter uma intensidade muito grande, já pessoa só. Não só no sentido de não ter ami- grande amiga e também a me despertando pra outras coisas. Eu achava gos, mas só no sentido de que, se eu quero segunda mãe. - olha que bobo! =, eu achava que, naquela alguma coisa, quem tem que trabalhar por época, estava perdendo tempo estudando (ri- ela sou eu. E isso sempre foi uma meta que ... sos). E eu já tava fazendo outras coisas. Depois Foi uma recordação que eu tive desde sem- é que você começa a se ligar da importância pre. Eu sempre fiz de tudo para que as coisas que aquilo tem e vai atrás do prejuízo. Como acontecessem conforme o meu planejado. eu fui depois. Além de eu terminar, eu fiz um E eu também sabia que muitas vezes ia dar curso supletivo, só pra poder estar atualizan- errado, como ainda dá errado até hoje, como do as informações que, pra mim, já estavam essa história de Londres* e outros contratem- perdidas mesmo. Então, eu parei de estudar pos que a gente enfrenta, que são inevitáveis. em agosto, no ano em que eu tava fazendo o Mas eu sempre soube que eu não poderia de- terceiro ano, e fiquei dois anos parado e voltei sistir, mesmo nas quedas. Essa história da TV do começo de novo ao terceiro ano e ainda União, que eu contei, quando eu fui ter a reu- fiz o segundo grau inteiro de novo pelo suple- nião com a direção, eu tinha certeza absoluta tivo. que eles iam topar minha proposta. Pra mim, Edgel - Em algum momento, você temeu ali, não fazia mais sentido eu continuar traba- sair do Crato, ter uma independência tão pre- lhando o tanto que eu trabalhava pra ganhar o coce? tanto que eu ganhava. E essa reflexão de eles Oaniel - Não. Eu já tava louco pra que isso acharem que o que eu tava cogitando naquele acontecesse. (risos) Quando eu vim pra cá, universo era estar com minha cara exposta ... eu vivi uma vida miserável mesmo no come- E não era. E depois disso eu comecei tudo de ço, mas eu sabia que era o preço que eu tava novo. Tudo que eu tinha construído. E, dessa pagando pela minha escolha. E eu sabia que vez, sozinho, fazendo meu próprio programa, aquilo ia mudar um dia. Engraçado, porque eu com meu próprio equipamento, editando na sempre tive certeza de que tudo ia dar certo e minha própria casa. Quando eu via que uma ~ era isso que me motivava. coisa não ia dar certo ali, eu começava de Henrique - Era exatamente nesse ponto novo, por um outro caminho e foi assim des- que eu queria chegar antes da pergunta do de sempre. Edgel. A partir das respostas que você dá, a *Nota da edição: Em novembro de 2007, gente percebe que você tem uma seguran- o Montage realizaria por conta própria uma ça muito grande da sua trajetória. E isso não pequena turnê pela Europa, onde lançaria um apenas hoje, mas parece que foi um traço que disco e faria shows na Inglaterra, Alemanha, lhe acompanhou desde a infância, como você França e Portugal. A entrada dos integrantes acabou de falar, você é muito precoce. Real- seria pela Inglaterra. Entretanto, Daniel foi de- mente, contando, parece que os problemas tido na chegada ao aeroporto de Heathrow, iam surgindo, mas você ia driblando ... em Londres. A polícia britânica confiscou ba- Oaniel - Sempre foi. gagem e documentos do cantor, que ficou Henrique - Era isso que eu queria saber, se detido com outros imigrantes por 31 horas. Segundo declarações de Daniel, o tratamen- to que recebeu foi discriminatório e ilegal. O "Eu sempre senti incidente repercutiu pela mídia nacional, ten- do sido noticiado em veículos como Folha de que eu era uma São Paulo, O Povo e no portal G1. Houve tam- bém grande número de manifestações de so- Com muitos anos de pessoa só. (...) só lidariedade na Internet, em páginas pessoais e convivência, Vanessa des- de redes sociais. creve os hábitos noturnos no sentido de que, do sobrinho: "Ele não dor- Lívia - Daniel, voltando um pouco no tem- mia durante a noite, ele po, qual é a lembrança que você tem mais sempre dormia durante o se eu quero alguma marcante da infância? dia. Até hoje é assim. Ele Oaniel- Mais marcante? Vixe ... fica agora no computador. coisa, quem tem que Embora ele não saia, ele Bruno - Tem a história do Xou da Xuxa não dorme, ele fica acor- trabalhar por ela eu." (programa infantil matinal de variedades, dado." apresentado por Xuxa Meneghel na TV Glo-

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bo, de 1986 a 1992. Foi o programa infantil uma coisa natural. Não que eu ganhasse bem, Quando tia Vanessa de maior sucesso no período. Daniel partici- mas eu tava trabalhando e eu tinha aquele di- descobriu que o bebê da irmã não era uma menina, pou de uma das apresentações, em 1990, e nheiro e, pra mim, aquilo era ótimo. teve uma reação inespe- ganhou um beijo da apresentadora)! (risos da Bruno - E o que é que você comprava com rada - como ela mesma turma) esse dinheiro? confessa: "Eu não quis Oaniel - (enfático) Não. Porra de Xuxa! Oaniel - Ah, álbum de figurinhas (risos), nem vê-Io, saí correndo do hospital, porque não acre- (risos) Teve outras coisas tão mais bonitas. A roupa, tênis, brinquedos, discos. Sempre gas- ditava que era homem". minha lembrança de infância - e é uma coisa tei muito dinheiro com disco ... que me fez ser tão precoce: a minha mãe era Alan - Você nunca chegou a parar de estu- superprotetora e eu sempre estava com ela. dar pra trabalhar, não? Então, eu sempre freqüentei um núcleo de Oaniel- Parei. Eu parei em agosto. Não era adultos, mesmo pivete. E eram todas pessoas aquela história que tava contando? Eu estudei maravilhosas que são meus amigos até hoje, o ano inteiro e em agosto eu parei pra fazer as porque criou-se isso. E eram artistas plásticos, coisas de moda. Porque eu morava no Crato cantores, pessoas que me viram bebê e aca- e eu vinha todo final de semana. E isso tava fi- bou que se criou uma conexão direta. Então, cando muito caro pros contratantes. E eu não eu tenho muita lembrança com essas pesso- tava numa condição de top-model que eu pu- as. ão sei se vocês conhecem a Aparecida desse fazer isso, saca? E, como eu também já Silvino, que é uma cantora aqui de Fortaleza. estava querendo fugir da escola, eu já estava A primeira recordação que eu tenho, eu lem- querendo unir o útil ao agradável. Quando eu bro da Aparecida cantando, em bares e com comecei a me interessar pela coisa da moda a minha família. E sempre esse universo do foi que eu fui buscar. .. Crato mesmo, a minha infância muito relacio- Alan - Mas não era uma condição de ne- nada ao Crato mesmo. Porque, quando eu co- cessidade financeira porque você parou? mecei a ir pro Rio e vivenciar mais a coisa do Oaniel - Trabalhar? Era, porque eu já mo- Rio de Janeiro, eu já tava com a cabeça em rava só e precisava do meu dinheiro. transição. Por mais que eu fosse uma criança, Lívia - Daniel, você falou de uma nova vida eu já tava raciocinando mais além. Então, as lá no Rio. O que é que essa nova vida tinha lá minhas lembranças de infância são, a maioria, que não tinha aqui no Crato? do Crato mesmo, e daqui algumas também. Oaniel - Eita, mulher, tanta coisa! A co- Bruno - Daniel, você contou lá no Litera- meçar pelo número de gente, que no Rio são tura de Lua (série de encontros temáticos se- 14 milhões e no Crato são 100 mil (segundo manais organizados pela arte-educadora Fer- os índices de 2008 do IBGE, Instituto Brasi- nanda Meireles, que acontecem no café da leiro de Geografia e Estatística, o município livraria Lua Nova, no bairro Benfica, em For- de era to tem população de 115.724 habitan- taleza) - você falou até agora também - que, tes, enquanto a cidade do Rio de Janeiro tem quando criança, chegou a trabalhar num pet 6.161.047 de habitantes). Eu tinha acesso a shop. Como foi a experiência? informações muito mais rapidamente do que Oaniel - ão era um pet shop não, baby, no Crato. Eu tinha acesso a um número muito era uma loja de bicho mesmo, saco de ra- maior de possibilidades de conhecer pessoas, ção aberto assim (risos). Era de um tio meu, eu tinha a possibilidade de me divertir muito tio-avô, irmão da minha avó. Era uma loja de mais, de lazer pra criança, de entretenimento vender alimento, ração, gaiola. E eu era bem mesmo. Culturalmente, a minha avó é uma criança, tipo 11 anos. E eu adorava, nunca foi um fardo. "Ah, trabalho infantil". (risos) Eu adorava mesmo. Eu tinha prazer em traba- "lrnaqina você sair lhar. Bruno - Mas por que você foi trabalhar lá? do Rio, cheio de Oaniel- Porque eu queria comprar minhas coisas; minha mãe não tinha dinheiro ne- idéias, sabendo nhum. Nessa história dessa relação meu pai- exatamente o que minha mãe, uma coisa que ela sempre me en- sinou é: nunca pedir nada a ele. Se ele sabia você quer da sua A família de Daniel é que eu existia, que ele desse. Tinha épocas grande: são cinco tios por parte de mãe e quatro do que ele não mandava nada e ficava por isso vida, e você pro lado paterno. Eles estão mesmo. Ele também tinha as crises dele lá. E, espalhados pelo Brasil, 11 anos, nessa época eu já ia muito ao Rio e Crato, . Eu fiquei uma se concentrando princi- voltava, eu tinha conhecimento e eu queria ter . palmente no Rio, em For- epoca meio que taleza e no Crato. Mas há coisas que as outras crianças lá do Crato não parentes também em Belo esta am nem vendo pra isso, sabe? E a minha Horizonte e em Vitória. ãe ~ nca ia poder me dar aquilo. Então, foi louco."

o IEL PEIXOTO 81 o final de 2007, o pai pessoa muito rica nesse sentido, então, ela cara maravilhoso, eles se dão super bem, vi- de Daniel faleceu por cau- sempre me levava em espetáculos de dança, vem numa sintonia super parecida. E ele me sa de um ataque cardíaco. tratou como um pai o tempo inteiro. Tinha cerca de 40 anos de em ópera, em teatro, em cinema. Pra mim, era ·dade. No fim de semana um universo muito, muito grande. Quando eu Emanuele - Você era adolescente na épo- em que Osvaldo morreu, voltei pro Crato, não tinha nem cinema. O ci- ca? Daniel tinha ido visitá-Io. O nema do Crato foi inaugurado em 1998, den- Oaniel - Não, eu era criança, tinha sete cantor contou que a perda do pai o abalou profunda- tro do shopping (o único cinema da região, o anos. Então, muita coisa que era função do mente. Cine Cariri, fica, na verdade, no Cariri Shop- meu pai, por exemplo, andar de bicicleta, foi ping, em Juazeiro do Norte-CE, cidade vizinha ele que me ensinou, sabe? O dever da escola, ao Crato. A produção da entrevista ressalta, estudar pra prova ... Coisas que, infelizmente, porém, que, antes do nascimento de Daniel, eu não podia estar com o meu pai, ele cum- até meados dos anos 7970, havia cinco salas priu essa função de uma forma maravilhosa. E de cinema no Crato: Cine Moderno, Cine Cas- eu vejo hoje, com os filhos dele, que não tem sino, Cine Educadora, Cine São Francisco e diferença nenhuma de como ele me tratava e Cine São José). Então, imagina você sair do de como ele trata os filhos dele. Rio, cheio de idéias, sabendo exatamente o Luar - E como é a relação com seus ir- que você quer da sua vida, e você volta pro mãos? Crato. Eu fiquei uma época meio que louco: Oaniel - É maravilhosa ... O problema é "Eu preciso sair daqui, urgente!". que já faz três anos que eu tê em São Paulo, Emanuele - De certa forma era isso que e, antes disso, já fazia cinco ou seis que eu você buscava, quando saiu do Crato para ir tava aqui (em Fortaleza). Então, eu não pude para o Rio passar esse período com o seu conviver tanto quanto eu gostaria. Hoje, eu te- pai? nho um irmão de 16 anos que nasceu quando Oaniel - Também. Porque também teve a eu tinha dez, e tenho irmã de... (pausa para outra parte, que foram essas confusões, es- lembrar) Oito. Então, foram duas etapas com- ses problemas, que foram muito, muito sérios pletamente diferentes. Com a Varna, que é a mesmos. No começo, e durante a época em mais nova, eu tive uma relação muito mais de que eu queria ir pra lá, em que eu ainda tava babá... Hoje ela já é uma menininha, mas eu me adaptando, essa coisa dos seis meses, era sempre vou ver ela como um bebê, porque, tudo muito lindo, assim, porque não tinha os quando eu fui embora, ela era um bebê. Mas problemas que a vida cotidiana te traz. Mas o é um mundo muito particular. Quando eu vou Rio é uma cidade que eu aprendi a amar. Eu pro Crato, as pessoas ficam com raiva de mim tenho lembranças muito, muito fortes de lá. É porque eu não saio de casa. Eu fico em casa uma cidade que eu conheço muito bem. É en- (enfático), só vivendo a minha família. Porque graçado isso; eu passo seis, oito meses, um é uma coisa tão boa, tão fora de qualquer ou- ano, sem ir pro Rio, mas eu não esqueço de tra coisa que eu vivo, das minhas outras rea- nada, eu sei exatamente onde as coisas estão; lidades, que eu adoro vivenciar. Falo todo dia no trânsito, o que é mão, o que não é; como por MSN (MSN Messenger é um programa de é que faz pra chegar em tal lugar. E eu amo troca de mensagens instantâneas, que permi- mesmo os meus amigos do Rio, com quem te ao usuário conectado à Internet conversar eu estudei na época lá, são meus amigos até em tempo real com seus contatos) com eles; hoje também, e os que eu fiz com o Montage por telefone, às vezes; mas sempre tem um são maravilhosos. Eu volto sempre, e sempre contato, troco idéia, dou conselhos. é uma certeza de que eu vou me divertir mui- Luar - Eles acham legal o Montage? to. Oaniel - Eles adoram. Meu irmão tem um Emanuele - Daniel, só voltando um pou- álbum no Orkut, ele tem os ídolos dele, e, as- co: a sua mãe casou novamente, constituiu sim, no meio, tipo: Kurt Cobain (guitarrista, família. Como é a sua relação? Como era, no compositor e vocalista da banda norte-ameri- início, a relação com o marido dela (no caso, cana de rock alternativo Nirvana. Falecido em Evandro, padrasto de Daniel, que casou com 7994, é considerado internacionalmente um Valéria Peixoto em 7990), com os filhos, e de- dos maiores artistas da década de 90), aí Mon- pois com seus irmãos? tage, Evanescence (banda norte-americana de Alan, Bruno e Débora se Oaniel - Sempre maravilhosa! A minha metal alternativo com vocal feminino, surgida perderam entre os bairros mãe conheceu o marido dela no mesmo dia em 7995). Agora é uma coisa massa, até pra Papicu e Cidade 2000 até acharem a casa de Raquel em que eu conheci ele, por conta de amigos eles, eu acho. Eu fui muito tempo o louco da Pessoa Cortez. A brasilien- em comuns dela, e eu tava lá no dia e tal. É cidade, né? Só tinha eu de louco na cidade, e se, amiga de Daniel desde tão engraçado, eu lembro de tudo; eu lembro eu fiquei com essa má-fama por muito, mui- 2002, tem um jeito man- dela me contando que tava ficando com ele, to tempo, justamente por eu sempre ter sido so de falar e ficou tímida para contar histórias dos lembro dela me contando que tava namoran- eu e nunca ter negado isso. E, hoje, a cidade írneiros tempos dele em do, lembro dela me perguntando o que eu já me vê também de outra forma. Então não Fortaleza. achava de ela casar. Eu achei ótimo. Ele é um é mais: (voz de deboche) "Olha, o irmão do

REVISTA ENTREVISTA I 82 Daniel". É: (com orgulho) "Olha, o irmão do vés dessa história de morar só que eu fui atrás Ainda assim, Raquel re- Daniel". Então, de certa forma, tem essa coisa de emprego, quando eu conheci as pessoas velou que Daniel ajudava a fazer e chegou a apresen- boa também. Mas a minha relação com todos que, de uma certa forma, me direcionaram. tar, entre 2002 e 2003, o eles, a minha família mesmo, eles dois, meus Quando eu saí de casa, que eu morava com a show de calouros chama- dois irmãos, é muito boa, sempre foi. Vanessa, eu trabalhei na Disritmia (loja e grife do Lama. O objetivo era Lívia - Quando sua mãe engravidou, seu de roupas fundada em 1991, cuja sede fica na mostrar a pior coisa que se pudesse. O produtor Ricar- avô não aceitou muito bem, ela teve até que cidade de Betim, Minas Gerais) do shopping do Lisboa ganhou uma das sair de casa ... Aldeota, fiquei um bom tempo lá. E, de lá, eu edições com a encenação Daniel - Sim. já saí direto pra TV União. E, nessa época, eu da abertura da novela Bar- Lívia - Em algum momento você se sentiu trabalhava num shopping, o Gabriel não tra- riga de Aluguel. rejeitado? Como foi isso? balhava e morava conosco também esse Die- Daniel - Nunca. Isso é tão engraçado, por- go, que tá morando em São Paulo. E a gente que é o que se fala, normalmente, pra uma passava dificuldades, mas era tão boa a nos- caso como esse. Não sei, eu acho que eu sa vida! Porque a gente tava vivendo o que recebi tanto amor quando eu nasci, que isso a gente queria viver naquele momento, então nunca foi ... E engraçado, a gente voltou pro talvez acordar e não ter um leite Ninho com Crato, eles não se falavam e eu nunca ... Não Nescau, pra mim, não fosse tão importante, sei, eu fui uma criança muito amada, e até por entende? ele mesmo, o meu avô. E também tem essa Débora - O que é que vocês queriam viver coisa de eu já ter essa consciência de quão naquela época? importantes são os valores ou os falsos valo- Daniel- A gente queria viver a nossa liber- res das pessoas que tavam lá. Eu nunca con- dade, conhecer coisas novas, poder sair de denava, eu nunca condenei ele por conta dis- casa sem ter que dar satisfação. Aquela ve- so, nem muito menos ela, lógico, porque eu lha história, adolescente que quer virar adulto entendo como é que é a cultura local, sabe, mesmo. não é uma coisa que eu vá interferir, achando Alan - E vocês acham que conseguiram vi- que ele é um escroto. ver coisas novas? Débora - Daniel, quando você veio aqui Daniel- Com certeza, absoluta! Tanto, que pra Fortaleza, era com essa vontade de sair do a coisa foi tão forte, que é aquela velha histó- Crato, essa agonia que você tinha? ria, voltando do Crato, se torna referência pra Daniel - Era a capital mais próxima que eu uma coisa já em Fortaleza. Todo mundo acha- tinha, e com uma estrutura que eu ia poder va que a gente era doido, que a gente fazia me virar inicialmente. Eu sabia que eu poderia festa dentro de casa, ouvia música, incomo- vir morar com Vanessa, e a minha vida ia ser dava os vizinhos todos. Todo mundo falava ok e que ela não ia me deixar faltar nada, por- que "meu Deus, esses meninos vão acabar na que tinha essa relação de mãe e filho, como merda". Hoje, o Diego é formado em Cinema, sempre foi. pela mesma faculdade que o Almodóvar (Pe- Alan - Mas depois você foi morar com o dra Almodóvar Cabal/era, cineasta espanhol Gabriel, né? nascido em 1949, famoso por seus filmes de Daniel - Ele que foi morar comigo (risos)! estética visual marcante e fortes personagens Isso, nessa época, eu já tinha o meu trabalho, femininos); o Gabriel é técnico em Compu- e foi a velha história, que eu já bati nessa tecla tação, já tá fazendo uma outra faculdade; eu várias vezes, das opções. Eu sabia que, saindo tenho a minha história. Tá todo mundo muito da casa da minha tia, eu ia não ter certas coi- bem obrigado, entende? Então, é muito mais sas, que eu ia morar só. Mas isso me estimu- do que eu acho que você é, ou o que eu acho lou a milhões de coisas; por exemplo, foi atra- que você queira, do que o que, de fato, você

O outro amigo, Gabriel Morais, lembra quando co- nheceu Daniel em Canoa Quebrada, no Réveillon de 2001: "A gente sabia que ia ser amigo pra sempre". Os dois moraram juntos por vários anos em For- taleza. Simpático, Gabriel só não falou mais porque teve de ir à aula.

DANIEL PEIXOTO I 83 ...

Mas, antes de partir, Ga- é. Eu tenho certeza absoluta que as pessoas queria fazer. Se eu quisesse ir pra uma festa, briel ainda teve tempo de que moravam nesse prédio achavam que nós eu tinha que comprar o ingresso, eu tinha que contar um pouco da situ- ação que deu origem ao éramos uns loucos, drogados, e a nossa vida pagar a droga que eu ia tomar, eu tinha que hit Ode to my pills: ele e vivia em torno disso, de bebida, de festa, de pagar a cerveja que eu ia beber. Eu vivi pra Daniel se encontravam em música eletrônica. E não era, a gente tava dan- mim e, numa espécie de comunidade mesmo, Juazeiro. "Aí a gente disse do início a tudo isso que a gente faz hoje, só a gente ia se ajudando. E nós sempre fomos assim: 'Vamos ter a experi- ência de tomar Benflogin?' que de uma forma livre, sem cobranças, sem muito queridos por nossos amigos mais ve- E foi muito péssimo". os nossos pais, sem pedir ajuda aos nossos lhos, então, apesar de serem quatro jovens pais. morando no mesmo lugar, a gente nunca tava Alan - E quais são as situações dessa épo- só, tinha as pessoas, as outras pessoas que ca que você lembra que foram mais marcan- entravam e saíam e que, sabe, quando a gen- tes? te achava que tava indo por um caminho que Oaniel - Como assim as situações? O que não era exatamente o mais coerente, as pes- é que você quer saber exatamente? (risos) soas vinham e davam um toque. Alan - As situações afetivas que você pas- Vivi muita coisa boa, foi o meu primeiro sou, não sei, momentos engraçados, interes- contato com a música eletrônica, foi a primei- santes? ra vez que eu pude viajar e não dar notícia pra Oaniel - Cara, nessa época, foi assim. Em ninguém, passar três meses em viagem pelo 2002, eu morei em cima da Casa do Frango Brasil e de caminhão, e as pessoas loucas (rede cearense de restaurantes, casa de pro- atrás de mim. São coisas que quando meu fi- dutos importados, alimentos e bebidas em lho vier a fazer, eu vou ficar doido (risos), mas geral), foi justamente nessa época em que eu assim, é um momento que as pessoas preci- trabalhava na Disritmia. Depois, eu aluguei sam daquilo, de certa forma. um apartamento no mesmo prédio onde era Henrique - Daniel, mas isso foi aqui em o apartamento da Vanessa. Mais pra estar Fortaleza, lá... próximo dela mesmo ... Enfim, a gente sempre Oaniel - Isso em Fortaleza. teve essa ligação muito forte. Henrique - Lá no Crato havia aquele grupo, E, lógico, que com três adolescentes mo- que tinha o filho do prefeito, da Cajuína etc. E rando juntos ... Depois, ainda chegou a Dani, o que essa vida no Crato permitia de extrava- que era uma menina ... Olha a história, que gância, por exemplo? louco: ela era uma menina que era junkie (gí- Oaniel - Permitia de extravagância? No ria em inglês para viciado em drogas) e tinha Crato eu nunca fiz tanta extravagância assim. decidido parar com tudo. E os pais dela não Era mais a má-fama do que os atos em si (ri- acreditavam mais nela. Os pais dela tinham sos). Mas é sério, as pessoas achavam que eu grana, e ela queria estudar moda. Ela veio pra era um junkie, lá eu nunca fui junkie, nunca Fortaleza, porque Fortaleza, na época, era o fui assim ... Experimentei várias drogas, mas único lugar onde tinha universidade pública eu nunca fui usuário delas no cotidiano. Mas de moda. E a gente conheceu essa menina é aquela velha história do estigma mesmo, no meio da rua, levou ela pra morar lá, jus- sabe, as pessoas tinham escolhido a gente, tamente por conta desse preconceito que por a gente ter essa liberdade, por a gente existia das pessoas, de ficarem rotulando as andar da forma que a gente é, fazer as nos- pessoas como "loucas" ou como "sem julzo", sas próprias festas, já que não tinham festas ou como ... Foi, sem dúvida nenhuma, a me- do que a gente queria ouvir. Sempre deram lhor base que eu recebi pra tudo, porque eu vários rótulos pra gente que não condiziam acordava a hora que eu queria. Se eu quises- com a verdade. E essas pessoas todas foram se comer, eu que tinha que preparar a minha embora, esses meus amigos. O Gabriel é do comida; se eu quisesse sair, eu não tinha pra Crato, o Diego é do Crato, o Alexandre é do quem pedir dinheiro. Então, eu tinha que jun- Crato, moravam aqui em Fortaleza também tar o meu dinheiro pra fazer as coisas que eu nessa época em que eu morava aqui. Então, teve muito disso: era mais o que as pessoas achavam que a gente era do que o que éra- "No Crato eu mos de fato. nunca fiz tanta Lívia - Daniel, você citou que incomodava Entre 2002 e 2003, Da- os vizinhos, e uma dessas vezes você inco- niel fez um teste para VJ da TV União. O vídeo que extravagância modou seu tio, o Daniel (o tio mais novo de ele mandou para a sele- Daniel por parte de mãe tem o mesmo nome ção o mostrava fazendo assim. Era mais a que ele), como foi esse conflito, essa relação uma de suas tatuagens, na com ele? qual se lê "Deni-se / desde 1982". Na época, ele orga- má-fama do que Oaniel - Não era que eu incomodava o nizava o brechó Dani-se no meu tio, coitado (risos). Era assim: ele, além Noise3D. os atos em si." de ser meu tio, ele era o síndico do prédio.

REVISTA ENTREVISTA I 84 Então, os outros moradores cobravam uma tava do meu lado no dia-a-dia, no cotidiano, Leco Jucá divide os postura dele como tio e como síndico, en- mas que eu sabia que existia. A gente se fala- palcos do Montage com Daniel. Por telefone, ele tende? E tiveram tretas, a gente discutia, mas va ou ele vinha pro Ceará ou quando eu ia pra contou que os dois se co- eram coisas super superficiais. E, hoje, madu- lá. Sempre era um universo completamente nheceram fazendo o curta ramente, eu observo que ele tava só tentan- diferente do que eu vivia com a minha mãe. Lola, da cearense Natércia do cumprir a função que cabia a ele naquele Então, eu vou tentar reproduzir isso de uma Pontes. "Eu fazia câmera e direção de fotografia e o momento. Era o barulho de madrugada que a forma positiva também. Assim, eu pretendo Daniel atuava. A Lola era gente fazia, batia copo, quebrava garrafa, che- estar mais perto do que ele esteve de mim ... o Daniel, que era o rapaz- gava das festas, não ia dormir, ficava mais cin- Mas eram outros fatores, eu sou tão cons- moça". co horas, frescando dentro de casa, com mais ciente de tudo. A minha infância foi nos anos dez pessoas. Domingo de manhã a pessoa 1980, a gente tava vivendo uma crise econô- queria ficar dormindo, e a gente tava ficando mica terrível, ele era (ênfase) muito mais novo doido em casa. Então, é natural que ele viesse do que eu, quando meus pais engravidaram. cobrar, e que aquilo viesse a causar atritos. E Meu pai e minha mãe, quando me fizeram, a gente tinha tido atritos antes também, mas eles tinham 20 anos, eu já vou ter 27 quando sempre coisas muito superficiais e que foram meu filho nascer. Então, já é uma outra coisa, todas superadas também. é muito mais maduro, por mais que sete anos Emanuele - Você citou seu filho, você vai pareçam pouco, mas lógico que já teve uma ser pai. Eu queria saber, desde sempre você carga ... E eu pretendo ficar mais perto, mas planejava ser pai, como foi essa história de ter o carinho vai ser sentido sempre. Ele (o pai um filho com a Regina? de Daniel) conseguia que esse amor chegasse Oaniel - Planejava não, eu queria, mas daí até mim, eu vou fazer da mesma forma. a planejar é diferente. Eu conheço a Regina faz Alan - Você tava falando de maturidade, muito, muito tempo, eu também não quero fa- a ascensão do Montage foi muito rápida. Eu lar tanto dela, porque ela tá muito avessa. O queria saber se você se sente preparado psi- pessoal tá enchendo (ênfase) muito o saco da cologicamente pra encarar a fama, toda essa coitada. E o resumo do resumo do resumo, carga. eu sempre quis ter filho, ela também. E eu fui Oaniel - Olha, eu sempre quis, mas, quan- uma pessoa que ela confiou pra essa função, do começa, você fica um pouco assustado e eu também. E a gente decidiu em comum com algumas coisas. E você fica pensando acordo; eu nunca, na minha vida, ia transar, em que direcionamento você vai dar à sua nem com uma mulher, nem com um homem, vida. E, ao mesmo tempo, eu sempre penso: sem camisinha. Nunca! Etambém não ia viver foi uma escolha, eu já sabia que ia ser assim. um relacionamento hoje com uma mulher a E, cada vez que a coisa crescer mais, vai ser ponto de querer formar uma família e ter um pior - o que as pessoas acham que é melhor, filho. Eu já sabia também que isso não ia acon- mas não é (risos). tecer. E a minha confiança foi tão grande, a Por exemplo, a decepção das pessoas gente se confia tanto - ela também é do Cariri, quando elas te vêem em algum lugar e você e a gente se conhece há muito tempo. Efoi se não tá ali "Daniel Peixoto do Montage". Tipo, criando um vínculo muito, muito grande, um eu já vi, a gente passando no aeroporto, eu e vínculo afetivo, uma proteção, uma coisa de o Leco, e uma menina falando: "Meu Deus, amizade muito bonita. Quando a gente come- como eles são feios!". Sabe, o tititi? (risos). çou a conversar sobre essa possibilidade, a Porque, como eu tava falando, eu não tenho gente viu que a gente tinha acabado de ter en- paciência pra estar montado (gíria típica da contrado as pessoas certas pra aquele sonho cena GLBTT, quer dizer muito arrumado, cheio que a gente tinha. Tanto que foi tudo muito de adereços) 24 horas por dia. Detesto! Pelo rápido e muito prático também. A gente fez contrário, eu passo a semana inteira de barba, bateria de exame, pra ver se tava tudo ok com eu uso óculos de grau, assanhado, de havaia- todo mundo. na (marca paulista de chinelas de borracha), Alan - O que você acha que, da relação com qualquer molambo. É tanta produção o com o seu pai, você vai levar para a relação tempo inteiro, que, quando eu tenho um tem- com o seu filho? po pra ficar fora disso ... Em São Paulo, que Oaniel - É, vai ter muito disso. Porque a é a rneca, onde tudo acontece, você vai em Para entender melhor o gente sempre conviveu à distância, e eu já uma padaria e tem uma pessoa apontando, meio da música indepen- dente, no qual o Montage moro em outro lugar. Só que é engraçado, eu falando uma coisa contigo. E tem situações e tem brilho próprio, a equi- sempre vivi distante dele, mas eu nunca tive tem horas em que fica desagradável, mas eu pe de produção convidou nenhuma dúvida de que ele me amava, por- sempre vejo como uma escolha, tô só pagan- o jornalista especializado que, quando a gente tava junto, era sempre tão do o preço das coisas. Eu sei que, se a coisa em crítica de música Lu- ciano Almeida Filho. Ele é bom ... E outra coisa, ele era muito inteligente, crescer, vai crescer mais e mais ... Eu me pro- editor do núcleo de Cul- sempre me ensinava muitas coisas. Então, ti- tejo da forma que eu posso me proteger, que tura e Entretenimento do nha essa coisa da referência paterna, que não é cabível a mim. Mas, por exemplo, em uma jornal O Povo.

DANIEL PEIXOTO I 85 omage se (risos); ela louca, querendo soltar. E eu falei: a a bandas de "Gente, eu faço o quê? Eu apago o cigarro no ta anos como olho ou no cu dela?". Todo mundo: "Na boca, S icide dupla que grava desde os anos 1970, con- na boca!". Eu peguei uma garrafa, fiz de conta siderada intluenciadora que ia jogar nela; ela em pânico. Todo mun- do indie-rock) e Cabaret do gritando todos os xingamentos do mundo. Voltaire (pertencente ao Depois eu só fiz soltar a menina na platéia e movimento industrial que investia nos ruídos). ela saiu voando de dentro do Noise (3D, boa- te que funcionou vizinho ao HeyHo Rock Bar, na Praia de Iracema, entre 2004 e 2007). Foi um final apoteótico (risos). Teve gente que festa, ou eu me excluo ou tenho que passar até achava que tinha sido combinado. Mas foi a noite cumprimentando pessoas, que sabem fato mesmo, ela veio e apagou um cigarro na tudo da minha vida, e eu não sei nem o nome minha perna. E tem os haters (gíria em inglês delas. E eu não consigo não ser educado com que designa pessoas que são o oposto de fã, as pessoas, eu posso não ficar te dando con- "odiedores", em uma tradução livre), vai ter fiança, ficar conversando uma hora, mas eu sempre, tem que ter o contrapeso. Seria uma nunca destratei uma pessoa na minha vida, ilusão muito confortável da minha parte achar não existe esse registro de uma pessoa que que todo mundo acha ótimo o que eu faço. tenha chegado assim pra mim, que eu tenha Claro que não. tratado mal ou algo do tipo. Bruno - Como você desenvolveu um gos- Mas, ao mesmo tempo, existe um exagero to musical tão diferente do que rolava lá no das pessoas. Eu já tive que acionar a polícia, Crato? porque tinha um psicopata que descobriu onde Oaniel - As minhas referências musicais eu morava, e ele ficava o tempo todo na porta eram muito dos meus pais, do meu padrasto da minha casa, esperando. E eu tive que ten- também. E, quando eu fui morar no Rio, que tar descobrir o nome do cara pra poder abrir eu tive acesso à MTV (rede americana de te- um processo. Porque eu fiz umas fotos na co- levisão dedicada ao público jovem, cuja filial bertura da minha casa, e os prédios em volta brasileira está no ar desde 1990), à Internet, são muito característicos. Eu falei que aquilo eu comecei a procurar as coisas que eu gos- era a minha casa. E o cara se ligou, ele ia pro tava também. Então, por exemplo, como eu shopping onde eu almoço todo dia, ia todos não tinha Internet no Crato, esse meu amigo os dias. E eu ficava observando de longe que de Juazeiro, o Alexandre, esse que é filho do aquele cara tava lá, mas ok. Teve um dia que dono da Cajuína, ele tinha aquele ... eu não sei, ele pediu pra sentar na mesa. Eu deixei. Eu acho que era DirecTV (empresa norte-ameri- comendo, com ódio, assim (faz barulho de fla- cana fundada em 1994 que transmite um sinal shes) e o cara tirando foto. E eu de saco cheio. digital com canais de televisão para antenas Eu tentei despistar ele pra ir pra casa; o cara parabólicas, em 2007 se fundiu com a maior descobriu onde eu morava e ficou um mês in- empresa do ramo, a Sky), que tem os canais teiro. Eu saía a qualquer hora do dia e ele tava de áudio. E ele gravava em VHS (sigla para lá. Eu tive que acionar a polícia. Sabe, isso é Video Home System ou Sistema de Vídeo Ca- um exagero, que eu acho que não existe a ne- seiro; idealizado pela empresa japonesa JVC cessidade, isso me dá medo. Mas nas demais em 1976, possibilitava a gravação e reprodu- situações, eu consigo administrar muito bem, ção de áudio e vídeo em fitas de vídeo) pra porque eu dou uma de doido (risos). Tá tudo mim os canais de áudio, e eu ouvia no vídeo certo, não sou eu. cassete, com o áudio da TV. Eram todas as Alan - Você declarou também na comuni- possibilidades que existiam. dade do Orkut do Montage, que aconteceu de Eu importava catálogo e pedia os CDs im- uma mulher apagar um cigarro na sua perna. portados. Eu passava meses juntando grana Como foi isso? para pagar o frete do que vinha da Inglaterra Oaniel - Foi, isso foi aqui. Não foi uma mu- ou de Berlin. E era essa a forma que eu tinha lher, foi uma criança, tadinha, devia ter uns 15 pra ter acesso às coisas que eu gostava. É tão anos. louco... Uma das bandas que mais marca- Alan - Teve outras coisas violentas assim ram minha adolescência foi o The Cardigans o último entrevistado que aconteceram? (banda sueca de indie pop, criada em 1992), foi o inventivo produtor do Montage, Ricardo Lisboa. Oaniel - Não, isso foi o ápice. Mas eu acho e a gente foi escolhido pela (ênfase) produção Saído dos bancos da UFC, que foi tão massa (risos), porque o final do do The Cardigans pra abrir a turnê deles no o rapaz já havia participa- show foi tão apoteótico com ela. Eu peguei Brasil, em 2006. E, quando eu contei isso pra do de uma das edições da ela, botei ela em cima do palco, tinha uma le- Nina Persson, que é a vocalista, ela ficou tão revista Entrevista. Isso fa- cilitou, inclusive, o acesso gião de fãs. Eu comecei: "Bom, a gente vai xin- emocionada! E eu fui explicar pra ela o que a Daniel, gar ela de quê?". Eu segurando ela pelo pulso era o Nordeste, como era a realidade de lá.

REVISTA ENTREVISTA I 86 Primeiro, eu dei uma aula sobre o agreste a dou em relação a essas referências? A entrevista com Ricar- ela, pra depois fazer ela sentir a dimensão da Daniel - Essa história da Joelma, que ela do foi gravada na casa da vocalista da banda The importância daquele momento pra mim. Era (Lívia) deve ter lido em algum lugar, é por- Dancer, Nayra Costa, às o dia do aniversário dela, saí pra comprar um que eu sempre falo isso. Eu acho ela fantás- nove da noite nos arredo- bolo, a mulher ficou desarmada na minha tica, ela é a melhor performer ever ("de todo res do Papicu. Não fosse frente, sabe? Então é justamente isso que eu o sempre': em português), ela canta e dança o carro do Alan, a equipe teria perdido esse encon- tava falando. A minha certeza era tão grande, duas horas, é foda! É a mesma coisa que eu tro e a boa conversa que que todas as coisas valiam a pena, porque eu faço (risos). Ela fica doida no palco, gritando rendeu. sabia que um dia eu poderia usar isso a meu e dançando, não tem como eu não gostar. É favor. calipso (ritmo brasileiro, de origem paraense, Débora - O que mais você escutava, além também conhecido como "brega pop", popu- do Cardigans? larizado nacionalmente pela Banda Calypso)? Daniel- Cardigans, Chemical Brothers (du- É calipso, mas ela é foda. pla de música eletrônica fundada em 1993 no Eu fiz uma comunidade no Orkut que foi Reino Unido e composta por Tom Rowlands excluída - olha isso! - que era assim: Joelma e Ed Simons), David Bowie (músico e ator para a capa da Rolling Stone (revista mensal britânico que iniciou sua carreira em 1969, norte-americana dedica da à música, política e conhecido como um dos principais represen- cultura popular fundada em 1967 e publicada tantes do glam rock, estilo musical de viés no Brasil desde outubro de 2006) (risos). Não performático e cujos artistas possuíam visual é cultura pop? Ela é a mais pop de todas. Eu andrógino), ahn ... (a cantora mais tive no Pará agora, há um mês, e eu não acre- bem-sucedida na história da música mun- ditei na dimensão que aquilo tem. Então, por dial, chamada de "Rainha do Pop" devido à que não citar, só porque as pessoas acham longa carreira e influência na música interna- cafona? Ela é maravilhosa, adoro, é igual Fag- ciona!) ... Muito Heavy Metal (estilo musical ner, que todo mundo ... É, hoje ele tá meio caracterizado pelas distorções sonoras, pelos brega mesmo! Mas as coisas do Fagner de solos de guitarra e pelas melodias complexas 1970 e 1980 são obras-primas. Tenho vonta- e marcantes)! Slayer (banda norte-americana de de fazer alguma coisa dentro do repertó- de thrash metal fundada em 1981), Metallica rio do Fagner. Não agora, mas eu sempre tive (banda norte-americana de thrash metal fun- vontade mesmo, ou de regravar uma música dada em 1981), Sepultura (banda brasileira de ou de humildemente convidar ele pra fazer thrash metal fundada em 1983), que são as uma faixa com a gente, não sei. Mas eu tenho referências do meu padrasto. Pantera (banda vontade mesmo. Quando eu escuto, hoje não - norte-americana de groove metal fundada em mais, mas as músicas do primeiro álbum eu 1981), Iron Maiden (banda inglesa de heavy acho todas (enfático) muito parecidas à minha metal melódico fundada em 1975), Black Sa- impostação de voz; não que a minha voz pa- bbath (banda inglesa de heavy metal fundada reça com a dele, mas a forma como ele canta em 1968), Janis Joplin (cantora e compositora ,a intensidade, eu acho muito parecido. Toda norte-americana de blues, com influências do vez que eu falo de referência, eu cito isso, por- rock e do sou!), quê mais? que realmente tem uma referência. As pes- Henrique - E o Fagner (cantor, compositor, soas acham que eu to fazendo uma piadinha, instrumentista, ator e produtor cearense que mas ... (não). iniciou sua carreira musical em 1971)? Emanuele - De onde é que vem essa refe- Lívia - E a Joelma (vocalista da Banda rência do Fagner? Calypso, formada no Pará em 1999. Lançada Daniel - Aqui é muito fácil, você morar no sem gravadora, a banda popularizou nacio- Ceará e ouvir Fagner. Então, comecei a ouvir nalmente o ritmo calipso e atingiu recordes e comecei a gostar. E, depois da digitalização de venda e público)? da música, eu baixei e comecei a pegar coisas Daniel - (Refere-se a Fagner) Isso aí já é que eu nunca fiz nem idéia de que existiam, outra coisa, é meu gosto mesmo, nunca nin- e passei a me encantar muito mais pela obra guém me obrigou. (Refere-se a Joelma) Isso já é 2005 (risos) ... Falando da infância ... Fagner, o Ney (Matogrosso), essas pessoas, são coi- sas que eu já tinha ouvido, porque assim, ado- Alan e Bruno já ouviam Montage há meses e ti- lescente pra criança que eu comecei a gostar nham até visto show em mesmo, tipo Elis Regina (cantora gaúcha de Fortaleza. Débora aguar- MPB que iniciou a carreira em 1961). São al- dava ansiosa uma nova guns artistas da MPB que eu escutei, ouvi e apresentação. Roberta bai- xou algumas músicas para me interessei, mas não era tanto assim. As mi- conhecer melhor a banda nhas referências eram mais essas mesmo. e entrou no clima de ex- Débora - E, hoje em dia, o que é que mu- pectativa.

DANIEL PEIXOTO I 87 , . . . ~ '.

da dele. los para estar na Internet. E hoje é exatamente ais de Andréia - Daniel, pra destacar esse papel o oposto, a grande mídia quer as coisas que de um domino - casa do ano So en- da Internet na produção de novas bandas, na estão fazendo sucesso na Internet, porque em -o o grupo se deu conta divulgação, como é que você avalia essa pers- quinze dias você tem um milhão de acessos. do aba/ho para organizar pectiva? Eu acho que é lógico que um programa de a' orrnação recolhida em Oaniel - Não teria conseguido nada, nada, TV vai querer levar uma atração que não foi dois meses. Após três dias de trabalho intenso, finali- nada. Ontem, eu dei uma entrevista pra amiga opcional: você não tava passando o contro- zaram a pauta. Rendeu 42 dele (aponta para Edgel, referindo-se a ícara le, não, elas pararam (ênfase) e decidiram ver páginas. Ferreira, repórter do jornal Diário do Nordes- aquilo. te, amiga do nosso colega), e ela me fez a se- Andréia - E, mesmo com todo esse fenô- guinte pergunta: o que você acha das bandas meno da Internet, você hoje veio pra cá pra que, hoje, começam e vão por outros cami- gravar o CD (o Montage passou os meses de nhos e não procuram a Internet? Eu falei: acho outubro e novembro de 2008 em Fortaleza, que essas bandas são muito burras! Porque gravando seu segundo CD). Qual a importân- qualquer pessoa pode ter um blog /página cia ainda desse material, de ter um CD mate- na Internet em que o usuário pode publicar rial? textos, fotos, vídeos e arquivos de áudio; ge- Oaniel- É assim, eu falei sobre isso ontem ralmente, possui cunho pessoal ou de divul- com ela (refere-se à repórter do jornal Diá- gação de projeto), um Myspace (site em que rio do Nordeste) também. É muito mais fácil, músicos disponibilizam material sobre seus pra mim, conversar contigo, e tu tá no Japão, projetos, inclusive músicas, e se relacionam e eu tô aqui em Fortaleza, e eu digo assim: com outros artistas), um Orkut, e fazer daquilo "Olhe, eu sei que você produz festival, então o seu caminho de acesso até o seu trabalho. eu tô indo agora no correio mandar um Sedex A gente tem uma sorte muito grande, eu (serviço de entrega de encomendas ofertado sempre coloco isso em pauta: o Montage co- pela Empresa de Correios e Telégrafos) do meçou no mesmo ano que o YouTube /página meu disco pra ti". Ou então eu digo: "Ó, me na Internet em que usuários do mundo todo dá o teu e-rnail, que eu vou mandar um link. disponibilizam arquivos de vídeo). E a gente já Tu baixa minhas treze músicas em quinze mi- jogava as coisas desde o começo (os vídeos nutos". Então, a coisa do CD, pra mim, passou na rede). Assim, tinha pouquíssimos vídeos. a ter uma desimportância tremenda. Só que Então a pessoa que digitasse eletro punk (es- o registro tem que ser feito, independente se tilo musical que mistura elementos da música ele for lançado como uma mídia, ou se ele vai eletrônica com elementos do punk rock) ou ser lançado na Internet. Então, precisa, sim, eletro rock (estilo musical que mistura ele- da renovação do repertório. A gente tem três mentos da música eletrônica com elementos anos, tem um disco lançado, a gente tá dentro do rock), em Berlin ou na puta que pariu, ele da meta, tá tudo ok, mas a gente quer apre- ia encontrar nossos vídeos lá. Então, isso deu sentar uma nova cara e um novo repertório uma dimensão muito, muito grande. E nosso pro público, fazer com que a coisa se renove primeiro ano, 2005, eu acho que a mídia foi constantemente. Então, essa é a importância toda pela Internet, fora a mídia local, O Povo, do disco, mesmo que ele exista, físico ou não, Diário (do Nordeste), as TVs daqui, que, lógi- mas tem que haver. co, deram uma abertura fantástica. No resto Lívia - Daniel, falando um pouco agora da do Brasil e mundo, só a Internet. E a coisa dá sexualidade, você se define como bissexual. tão certo, deu tão certo, que ocorre o efeito Como foi essa descoberta? contrário. Antigamente, as pessoas da mídia Oaniel- Eu me defino bissexual, porque eu impressa, TV, rádio, essas coisas ... A Internet já tive vários relacionamentos com mulheres, pegava as coisas que eram pop nesses veícu- não tenho essa aversão normal à mulher que a maioria dos gays tem. Mas, nos últimos cin- liA gente tem uma co, seis anos, eu vivi a minha vida gay intensa- mente, porque eu tinha um relacionamento e sorte muito grande, vivi nele muito tempo. Só que essa coisa dos rótulos, essa coisa de "se define como bis- eu sempre coloco sexual", eu nunca tinha falado isso na minha o ontage veio a Forta- vida, eu acho. Mas eu fui dar uma entrevis- eza no final de outubro de 2008 para gravar o segun- isso em pauta: o ta pra Folha (de São Paulo), que eles ficaram disco. Por estar o dia batendo muito, muito, muito nessa tecla. Eu re o em estúdio, ocupa- Montage começou não descarto a possibilidade de eu estar numa com a gravação, Daniel festa, achar uma mulher interessante e ficar, endia ao celular para no mesmo ano que a data da entrevis- de forma nenh ma mesmo. E, eu não sei, na- ficou de plantão o YouTube." tural, eu sempre soube. ,.c'Dai[c-[laPO do MSN. Desde criança, adolescente, que eu achava

REVISTA ENTREVISTA I 88 r" _p me . as eqa's, r-ias eu também achava meni- de vestido, maquiado num palco. Aquilo ali Numa das conversas nos ega s. me despertava. Eu ficava prestan- já é um protesto, de uma certa forma. Eu já via MSN, Bruno comentou com Daniel que a equipe do a e ção quando os meus amigos falavam consigo passar minha mensagem muito mais também havia entrevis- de um omem bonito, de um garoto bonito do que eu tá em cima de um carro, com uma tado o cantor Ney Mato- da nossa idade, sempre com um despeito, bandeira de arco-íris, gritando. É um outro ca- grosso. Daniel disse ser fã como se aquilo fosse uma coisa negativa ... minho, completamente diferente. Então, eu já do artista e ter conversado com a filha dele em São E eu conseguia admirar a beleza de um cara, acho rótulo péssimo, não só com questões de Paulo, que lhe contou que mesmo sem intuito sexual-lógico, uma crian- sexualidade. Tudo o que te limita a uma coi- Ney também teria simpatia ça -, mas eu conseguia achar aquele menino sa, pra mim, já é desinteressante, porque eu por ele. bonito, entende? Mas eu nunca tive cobrança nunca fui de fazer uma coisa só, nunca tive de mim pra mim mesmo, nunca foi um pro- fazendo uma coisa só. Sempre tive várias pos- blema na minha vida, nunca tive nenhum tipo sibilidades. Então, você dizer: "Ah, o Montage de discussão interna: "Meu Deus, eu sou gay! é uma banda de eletro punk (estilo musical Eu vou chorar por isso ...", nunca, nunca mes- que mistura elementos da música eletrônica mo. Sempre foi uma coisa muito natural e eu com elementos do punk rock)". Não, o Mon- apresentava as minhas namoradas e os meus tage é uma banda de eletro punk, de trip hop namorados em casa da mesma forma, tudo (música eletrônica com batidas lentas, aliadas muito ok. a instrumentos convencionais e acústicos). Edgel- E a família entendia? de funk (estilo musical dançante de origem Daniel- É aquela velha história ... Eu nunca norte-americana, que sofreu adaptações nos dei muita importância pra família, eu me im- bailes dos morros cariocas, possui uma sono- portava com a minha mãe e com o meu pai, ridade sincopada e utiliza-se de elementos da sabe, que eram as pessoas que, de fato, im- música eletrônica) e do que a gente quiser. É portavam. E tiveram horas que o que é que igualzinho com o sexo. eles podiam fazer? Nada. Era melhor aceitar Débora - E, Daniel, você disse que viveu do que eu tá vivendo uma vida de brigas e de intensamente um relacionamento de cinco conflito, por conta de uma coisa que, pra eles ... anos e tal, mais longo ... Você já tinha tido um Eu cresci no meio de um monte de homos- namoro longo antes? sexual. Eu sabia que aquelas pessoas eram o Daniel - Tinha. Eu tive pouquíssimas rela- que as pessoas chamavam na rua de veados. ções na minha vida, porque todas foram mui- Como era que eu podia, na minha cabeça, ver to duradouras. E eu acho isso ótimo, o difícil que eles poderiam repugnar alguma coisa que é acabar. (risos) Mas eu sempre namorei mui- eu via que era natural? A casa do Meu pai era to, muito, muito tempo. Um ano e meio, dois cheia de gay, a casa da minha mãe também, anos, (pausa) dois anos e meio ... Quando não sapatão, todo mundo, sabe? Sempre de uma chegou a serem anos, mas eram relaciona- forma muito ok. mentos de seis meses, oito meses ... Eu con- Andréia - Como é que você vê essas rotu- sidero um bom tempo, né? lações, por exemplo, na música, na sua músi- Débora - E como é que foi que terminou ca, que você faz? De tentarem colocar dentro, esse último relacionamento? por exemplo, de um estilo que seria uma mú- Daniel - Foi distância. Eu fui embora pra sica gay? São Paulo em março de 2006 e a gente ainda Daniel - Tem dois segmentos que fazem conseguiu ficar dois anos à distância, que é isso acontecer: tem as pessoas que são mui- muito, muito tempo. Então, porque tinha essa to inteligentes e sabem que as pessoas talvez vontade de estar junto. Só que eu comecei a entendam melhor o que é a história se elas me achar muito, muito egoísta, nesse sentido. utilizarem esses termos e tem as pessoas que Porque eu tava exposto, todo mundo sabia são o oposto delas, que são completas idio- quem eu era, nos lugares onde eu chegava. tas, que conseguem botar sexo na música: "A Toda semana, eu viajo pra um lugar diferente música homem, a música mulher e essa daqui e as pessoas já sabem onde eu tô, que é que é a música gay". (risos) Não faz sentido! Não eu sou, o que é que podem fazer pra me agra- é uma banda gay, porque a banda são os dois e tem um hétero e um gay. Então, já fica com- plicado. Porque, se eu te falar aqui: "A banda Montage é uma banda hétero porque o Leco Até confirmar data e é hétero". "Não, a banda Montage é uma ban- hora da entrevista, a equi- da gay porque você é gay!" É injusto, não é, pe viveu duas semanas de não? Tanto comigo, quanto com ele, quanto indefinição. Houve dois com a nossa música. As pessoas, às vezes, adiamentos, o que per- turbou os nervos dos en- elas cobram algum ativismo em militâncias trevistadores. A captação dessa natureza e eu prefiro fazer a minha mi- ocorreu oito dias após a litância de uma outra forma, sabe? Eu canto previsão inicial.

DANIEl PEIXOTO I 89 o professor Ronaldo Sal- dar, então, já era metade do caminho andado. porque eu sou o Daniel do Montage, porque gado revelou, na reunião E, ao mesmo tempo, a pessoa que tava do ou- você vai entrar de graça comigo na festa, por- de pauta com a turma, que era amigo da mãe de Da- tro lado morando aqui, com um emprego fixo, que você vai beber de graça, porque vai ter niel, Valéria Peixoto, desde estudando. Então, não tinha uma vida muito alguém pra lhe buscar, essas coisas. É nóia de a juventude no Crato. Só cheia de possibilidades como a minha tinha, gente que convive muito com isso, porque eu então a turma descobriu sabe? E acabou que eu precisei viver outras sinto mesmo, eu sei que existem essas pesso- também que Ricardo e o ex-guitarrista da banda Pa- coisas e ele também. Foi uma coisa muito ho- as. E elas são 80%, assim, principalmente em trick 8achi passaram pelo nesta. Eu sofri bastante, mas, ao mesmo tem- São Paulo é muito forte. curso de Comunicação. po, eu tinha a certeza de que ... Que amor é Lá em São Paulo, você só acontece, você esse que a pessoa não pode ficar com quem só tem algum valor se você é alguém na cena gosta, né? que você escolheu estar. E isso é muito forte Débora - Vocês se conheceram antes do lá, muito mais que aqui. Aqui, não, porque eu Montage, né? tenho as pessoas que eu também já conheço Daniel - Sim. antes da banda e das quais nunca me separei. Débora - Como é que é hoje em dia, com Mas, lá, que são as pessoas que já me conhe- o Montage, pra você ter um relacionamento? ceram fazendo isso, é muito complicado, é Muda alguma coisa quando você vai se rela- muito escroto! Eu não consigo mesmo ficar cionar com as pessoas? próximo logo de alguém e confiar nele, se eu Daniel - Muda. É muito complicado mes- não tiver um equilíbrio, vamos dizer assim. E mo! Eu tenho um problema comigo que eu eu vou conhecendo pessoas interessantes, ainda não consegui superar, que é dividir as mas vou medindo. pessoas que eu acredito que me conheçam E é muito difícil manter uma relação comi- e queiram estar do meu lado porque elas me go, porque eu tô sempre fora, eu tô sempre acham legal e aquelas pessoas que querem viajando, eu nunca deixei de priorizar o meu tirar alguma coisa de mim. E eu sofro muito trabalho por nada na minha vida. Quando eu com isso, muito mesmo. É dos dissabores acabei esse relacionamento, eu pensei muito dessa coisa toda que eu me propus. Só que, nisso, porque foi uma escolha que eu fiz. E eu com o tempo, você começa a perceber, quan- fiquei pensando: "Meu Deus, será se eu vol- do você convive, a separar o joio do trigo. Eu tasse no tempo, faria a mesma escolha hoje, nunca consegui me jogar numa relação depois sabendo que o que acabou o meu relaciona- do Montage, ao ponto de confiar de cara. mento, que era tão ótimo, foi isso?" E eu não Esse último namorado que eu tive, eu co- me arrependo. Eu teria feito tudo de novo. E nheci ele num dia e a gente começou a namo- eu não vou começar uma coisa que eu sei que rar no mesmo dia. E ficamos cinco anos. Hoje, vai me desestruturar daqui a pouco porque eu eu jamais faria isso, jamais mesmo! Eu fico não vou tá do seu lado na hora que você qui- supernoiado (gíria que, neste caso, quer dizer ser e você não vai tá comigo porque ... É com- "paranóico'}, sabe, eu tenho que conhecer mi- plicado mesmo. Eu tava falando hoje com a lhões de pessoas que as mesmas pessoas que minha mãe sobre isso - muito engraçado, es- eu me envolvo conheçam também essas pes- colher esse tema: "Mãe, eu tenho que namo- soas e, no convívio, o que essas pessoas fa- rar ou com o Leco ou com o Ricardo" (risos). zem... Porque eu sou completamente noiado. Mas não vai dar! Emanuele - Mas noiado com o quê? lívia - Já que você falou do Leco e do Ri- Daniel - Noiado de saber se você quer tá cardo, como é essa relação entre vocês? Vo- na minha companhia porque você gosta de cês estão sempre tão juntos, tão próximos ... mim, ou se você quer tá na minha companhia Como é que vocês lidam com a distância da família e a proximidade? Daniel - É um outro casamento. É muito IIE é muito difícil complicado isso. Quando a gente foi embora manter uma relação daqui, a gente escolheu que não íamos mo- . rar juntos, já por conta desse convívio que a comigo, porque eu gente ia ter que ter obrigatoriamente. Então, o que a gente fez? A gente alugou casas, cada Antes da reunião de tô sempre fora, eu um alugou uma casa, todos perto. Evirou uma pauta, Edgel encontrou comunidade do Ceará que não tem tamanho Daniel quando cobria um evento de moda na cidade. tô sempre viajando, (risos). Todo mundo foi morar nesse mesmo Preocupado com a marca- trecho que a gente mora. Então, tem 15, 20 ção da entrevista, Edgel o eu nunca deixei amigos nossos que moram num raio de 500 abordou e disse que fazia metros, todo mundo junto. parte do time de entrevis- de priorizar o meu tadores. O jeito simpático E a gente se dá muito bem. É uma coisa e caloroso do artista im- trabalho." que é inexplicável. O Ricardo, não, porque a pressionou nosso colega. coisa de ele ser produtor, eu tenho que fazer

REVISTA ENTREVISTA I 90 exigências e cobranças, que, às vezes, eu te- começa." Fez o show e deu tudo certo. Então, A equipe de produção nho que ser ríspido. Mas, com o Leco, que é pra gente, foi muito mais natural, porque ele foi ao show do Montage no encerramento da Bienal de só coisa artística ... Olha, nunca, nunca, nunca já tinha as músicas, a gente só fez aperfeiçoar Dança De Par em Par, na na minha vida eu briguei com o Leco. Nem essas músicas do primeiro álbum. antiga Alfândega, na Praia de alterar a voz assim (eleva o tom de voz), E o segundo foi muito mais fácil, por conta de Iracema. Como espec- falar mais alto com ele. A gente sempre se en- dessa afinidade já existir, ser muito forte e, do tadores, a equipe cantou e dançou todas as músicas. tendeu, nunca houve um desentendimento, a principal de tudo, que, hoje, eu entendo exata- A aproximação como en- gente se protege, o Leco cuida de mim como mente o que o Leco quer passar e ele entende trevistadores é que foi di- se fosse um pai, sabe, dá uma assistência que também o que eu quero. Então, é muito mais fícil no final: ficaram bem é de família mesmo. E com o Ricardo também, fácil trabalhar isso, de casar a minha voz numa tímidos, como fãs. da mesma forma, a gente tem uma ligação. melodia duma composição dele. E, hoje, eu já A gente escolheu viver isso juntos e já ul- faço coisas que eu não fazia antes: "Olha, eu trapassou uma barreira que a gente já sabia não gosto desse baixo (instrumento musical o que esperar. Nós nos conhecemos muito de cordas que pode ser elétrico ou acústico) mais profundamente, porque essa coisa do aqui, vamos tirar e vamos botar esse". Porque dia-a-dia, de a gente passar um mês morando existe essa possibilidade de diálogo, sabe? dentro de uma mala, todo dia num quarto de Que é complicado e é por isso que as outras hotel diferente juntos ... Você acaba virando bandas acabam, porque elas não conseguem cúmplice daquela pessoa e sabendo o que ela mais ter um entendimento do que é a propos- gosta, o que ela não gosta, o que ela quer, o ta musical ou visual, enfim, do que se quer que ela não quer ... E tem dado certo. É uma passar, e as coisas começam a ir pra lados boa química, isso eu acho muito importante diferentes. E a gente, não, a gente tá sempre também. Tem a química - primeiro foi profis- junto e cada vez mais junto. sional e, hoje, já os amo, assim, de uma forma Lívia - Daniel, por conta da moda e da mú- como se eles fossem membros da minha fa- sica, você sempre teve uma relação muito ín- mília e, de fato, são. Eu me (ênfase) importo tima com a mídia. Como é essa relação, hoje, com o Ricardo e me importo com o Leco de da mídia com a banda de vocês? Tem uma uma forma igual como eu me importo com boa aceitação às críticas? um irmão, enfim. Oaniel - Eu já li muitas coisas lindas, emo- Alan - Foi essa química que fez o processo cionantes; poderia acabar tudo hoje (ele se de composição da banda, meio caótico, fun- refere ao fim da banda), que, pra mim, já tinha cionar tão bem? valido a pena. E já li coisas desagradáveis. As Oaniel - Olha, eu não tô me lembrando coisas ruins que eu leio a respeito normal- desse caos. (risos) mente são de blogs, de pessoas que não têm Bruno - Vocês nunca ensaiavam, era tudo uma, como eu posso dizer, uma importância muito de improviso ... mesmo. São mais haters do que alguém pre- Oaniel - Ah, sim, exatamente. A gente co- ocupado em passar uma informação precisa meçou o show, eu já enchia o saco do Leco, sobre aquilo. Ó ... (estala os dedos) Há muito tempo. Ele Assim, eu posso falar, sem nenhuma fal- tinha uma banda de trip hop que existe até sa modéstia, que os veículos que realmente hoje, que é o Quarto das Cinzas, que virou o me importam, todos falam muito bem. Tipo: a Jardim das Horas (banda que surgiu em For- gente foi eleito dois anos seguidos O Melhor taleza como O Quarto das Cinzas, em 2003, fa- Show, pela Folha (de São Paulo); as matérias zendo um som eletrônico e experimental com publicadas na Rolling Stone, na revista Bizz uma proposta cênica elaborada. Leco Jucá foi (revista brasileira dedica da à música e à cultu- um dos fundadores). Eu fiquei encantado com ra pop fundada em 7985), e no The Guardian as composições dele, eu sabia que ele era um (jornal de grande repercussão internacional), gênio. Só que, como ele tinha a banda, eu da Inglaterra. Todo mundo fala bem. Então, as- nunca tinha proposto: "Leco, vamo fazer uma sim, acredito que as pessoas gostam. Porque, banda", porque eu sabia que talvez aquilo fos- ao mesmo tempo que eu vejo, sobre outras se interferir na banda que já existia. Eu falei: coisas, o quanto as pessoas são cruéis quan- "Leco, faz umas músicas pra mim, me dá, que do elas querem ser cruéis ... O que eu procuro O outro show dessa eu lanço como eu sozinho", eu tinha neces- é ter uma relação muito flexível com os jor- temporada em Fortaleza, sidade de fazer isso. E as letras do primeiro nalistas. Porque ao mesmo tempo que vocês no HeyHo Rock Bar, foi o momento da comemora- disco eu já tinha quase todas. E ele: "Vou fa- (olha para a turma, rindo) podem fazer coisas ção pela realização da en- zer, vou fazer, vou fazer ..." Quando o Ricardo maravilhosas, podem fazer o oposto também, trevista. Roberta, que esta- marcou o show, o Montage, o primeiro, em como já teve milhões de casos - se eu for co- va cansada após a semana janeiro de 2005, que eu fui ouvir as músicas meçar a citar, a gente passa dez dias aqui. cheia e com a promessa de um sábado longo de dele, sem nunca ter ouvido, caiu tudo. Eu ti- Eu sempre tenho uma relação muito ... Eu compromissos, foi a úni- nha um bloco de notas: "Olha, essa é dessa, tento trazer a pessoa o mais próximo, mas eu ca da produção que não essa é dessa e essa é dessa ... Amanhã a gente só permito até onde eu acho que é bacana. E pôde ir.

DANIEL PEIXOTO I 91 •• A entrevista aconteceu tem dado certo. Os jornalistas lá de São Pau- minha solidariedade". De todas as partes, de no estúdio de TV do curso lo, de outros lugares, que fazem matérias com todas as pessoas. O carinho do público três de Comunicação. O lugar tinha excelente acústica a gente, a maioria vira amigos, o que facilita vezes redobrado. para a captação, mas o ainda mais o nosso acesso àqueles veículos. E eu tinha gastado uma fortuna nessa épo- ar-condicionado forte in- Você acaba tendo essas pessoas como alia- ca, como investimento dessa viagem, e e•..• comodou alguns. Roberta das também, porque, em problemas maiores, voltei sem um real. O Leco tinha entrado. E eu e Luar, além da tensão na- tural, tiveram de enfrentar como foi o caso da minha deportação em iria ficar duas ou três semanas em São Paulo o desconforto do frio in- Londres, eu pude contar, sem precisar pedir sem shows - porque nossa agenda tava toda tenso. a ninguém, com o apoio de todos os veículos pra Europa -, de bobeira. Eu não conseguia que já tinham feito alguma matéria ou alguma sair pra uma padaria, que as pessoas vinham coisa com a gente antes. Vai se criando essa ficar enchendo o saco, perguntando sobre corrente mesmo. Pelo menos inimigo eu não isso. E os meus amigos daqui fizeram uma va- virei, de nenhum, até hoje (risos). Só de uma, quinha, me trouxeram pra Fortaleza, pra fugir aqui. Eu não virei inimigo, mas que eu odeio mesmo. Fiquei três semanas. Porque eu não muito, porque eu dei uma entrevista, ela pe- conseguia mesmo. Era tanto carinho (risos), gou a entrevista, a minha entrevista, e fatiou que já tava virando uma coisa meio que não inteira. Fez uma outra entrevista para uma tinha outro tema. Qualquer pessoa que me outra pessoa, como se eu tivesse dado entre- encontrava na rua, obviamente, era sobre isso vista sobre aquele tema. E eu tinha dado en- que se falava. trevista sobre o disco. Então, essa pessoa era Luar - E esse fato, em que ele foi produtivo uma amiga minha antes de tudo. E eu limei da e em que foi negativo para a sua carreira? minha vida. Mas foi o único caso até hoje. Oaniel - Cara, eu acho que não foi produ- Andréia - Sobre esse incidente que houve tivo em nada, porque foi só ... Um investimen- em Londres, houve alguma coisa que fez você to altíssimo que eu tinha feito de quase dois repensar a carreira? Qual foi o sentimento que anos juntando dinheiro, que eu perdi inteiro, você teve a partir desse momento? porque, além dos bilhetes, eu tinha comprado Oaniel - Quando eu tava lá, eu pensei em os trechos aéreos dentro (da Europa), tinha tudo que você puder imaginar. Em parar, pagado os hotéis. Não era uma turnê que al- em desistir, em como eu ia voltar, em suicí- guém estava levando o Montage para Europa, dio, em tudo. Porque eu não sabia o que tava era uma turnê que o Montage estava indo se acontecendo, eu passei vinte horas sem infor- mostrar na Europa - como a gente fez, indo mação nenhuma, trancado numa sala desse pra São Paulo e pro Rio. E uma parte positiva tamanho, sem nada. Sem cama, sem cober- que eu posso ver nisso tudo seria a mídia que tor, sem nada. Então, eu não sabia o que ia teve lá. Aqui não mudou em nada pra mim acontecer comigo, eu não sabia o que estava porque, todos os locais que foram noticiados, acontecendo. Depois de vinte horas, que eu eu já tinha estado naqueles lugares por algu- consegui falar com a minha mãe, ela me disse ma coisa bacana que minha banda tinha feito. que tinha conseguido uma lista - e esse do- Então, não vejo nada assim. Dá uma notícia cumento tá com ela até hoje - com o nome ruim, e você fica: "Ah, mas toda mídia é baca- dos apreendidos pela imigração inglesa. Meu na". Só que tem horas que a mídia é bacana, nome não tava lá. Fiquei mais desesperado mas você não está disposto a vender a sua dor ainda, eles poderiam me matar, me jogar ... como um produto de divulgação. E foi o que (bate as mãos, fazendo gesto de que não se aconteceu nessa época. A coisa repercutiu lá importa) "Não tem Daniel nenhum aqui". e é o que eu falo: estão só esperando a gen- Então, passou tudo. Mas, quando eu vol- te chegar, pra coisa continuar exatamente de tei, foi um bombardeio tão grande de carinho, onde parou. Só que aqui tá tudo tão bacana, mesmo das pessoas... Tinha pessoas que tá tudo tão dando certo, que a gente já fez via- faziam questão de dizer isso: "Olha, eu não gens pra vários outros países, sem ter o pro- gosto do que você faz, mas eu tô supersen- blema que a gente teve, que por mim tá tudo sibilizado com o que aconteceu e vim prestar bem. Éramos pra ir agora em outubro (pra Eu- ropa) e acabou que a gente decidiu não ir, por causa do disco, e priorizar as coisas que estão Daniel estava mais rou- fazendo a gente trabalhar aqui dentro. co do que o habitual. Era Andréia - Você fala que houve um carinho, o efeito do show na Bie- nal, que terminou antes até exacerbado, depois desse incidente. Mas do previsto porque o som como é que você lida com esse carinho que estava abafado e Daniel depois pode ter mudado? Ou não? se esforçava muito para Oaniel - Não, não. As pessoas ficaram cantar mais alto. Nos pri- meiros trinta minutos de querendo mostrar que eu não estava só, entrevista, Daniel tossiu 15 sabe? Que elas estavam do meu lado den- vezes. tro da bizarrice toda que aconteceu. Isso foi

REVISTA ENTREVISTA I 92 assa, porque eu pude ver que os meus alia- Segundo a amiga Ra- dos realmente existem mesmo. Mas depois quel, Daniel está ficando é aquela velha história: quem é que lembra mais rouco. "Acho que 5 vem do estrago de noites j, mais de Isabela que caiu da janela (Daniel se sem dormir, cantar e to- e refere ao assassinato da menina Isabella Nar- mar gelado, fumar. A voz n doni, de quatro anos, ocorrido em São Paulo dele nunca foi muito fina, IE em março de 2008, crime do qual os acusa- sempre foi mais puxada l' para o rouco", conta ela. 3 dos são o pai e a madrasta. O caso teve in- IE tensa repercussão na mídia e gerou grande II comoção)? As coisas passam mesmo. E você li tem que estar dando notícias novas. Esse é o :c lance. Então, essa coisa da deportação eu já antigo de alguém bater na minha porta e me nem falo mais. Se falam isso em entrevista, chamar pra gravar um disco, nunca contei eu falo: "Gente, joga no Google (site de busca com isso mesmo. E eu sabia que precisava mais popular em todo o mundo). Tem a ver- investir. E todos os investimentos que eu fiz, são da Folha, da Globo, de todos os jornais". eu recebi o retorno. Pra mim, é uma coisa na- Eu tô falando com vocês aqui, porque a gente tural. Maravilha que tivesse um Diplo (célebre tá falando sobre tudo e eu me propus a isso, DJ britânico de eletro rocki, que me levasse mas numa entrevista prum jornal, pra TV, eu pra fazer a turnê com (banda inglesa mesmo não tenho paciência. Eu digo: "Pula, de eletro pop formada em 1998 por Reuben vamos logo pra próxima". Wu, , Mira Aroyo e Helen Marnie) Andréia - Então, vamos pular pra próxima. como foi com Cansei de Ser Sexy (banda bra- (risos) Você falou de uma projeção que vo- sileira de eletro rock formada por Lovefoxxx, cês estavam procurando, fizeram um grande Luiza Sá, Ana Rezende, Carol Parra e Adria- investimento pra ir à Europa; e eu queria te no Cintra, atualmente residem na Inglaterra e perguntar mais no sentido do próprio cenário fazem shows por toda a Europa) e o Bonde musical, porque existe de alguns estilos musi- do Rolê (também residindo e fazendo shows cais terem de se lançar por si mesmos, de ter na Europa, foi formada em 2005 por Rodrigo que fazer esse investimento, de investir alto Gorky, Pedro D'Eyrot, Ana 8ernardino e Laura pra conseguir um espaço; e outros terem um Taylor). Mas, se não tem, vou fazer com que apadrinhamento, que já é de conhecimento as pessoas que conheceram eles me conhe- público, e não precisar disso. Você acha que çam de outra forma. falta alguma coesão, um movimento de valo- Eu acho que cada pessoa direciona sua rização de bandas no cenário alternativo para carreira pra onde ela quer chegar. Eu acho não ter esse investimento e ter quem olhe, que, para nós, sem vínculo com nenhuma quem invista? grande gravadora, sem ser queridinho de ne- Daniel - Eu acho assim: eu sempre tive a nhuma emissora de TV aberta, a gente conse- consciência - eu falo por mim e pelo Montage guiu fazer coisas que ... Pode me mostrar qual -, eu sempre tive a consciência que o que eu é a outra banda que conseguiu. A gente tem prego, o que eu canto, o que eu faço não é méritos que eu acho que eles só existem por comercial ao ponto ... É pop até um limite. Por conta do esforço e do nosso trabalho. Todas exemplo, a coisa do apadrinhamento seria im- as coisas muito bacanas que a gente fez foi portante e a gente de uma certa forma teve, porque a gente trabalhou para que elas acon- porque o nosso primeiro disco foi lançado tecessem, por essa certeza de saber que não pelo Dudu Marote, que é o produtor do Pato tinha ninguém por nós. Éramos nós por nós Fu, do Skank (bandas de pop-rock mineiras). mesmos. Só que eu sei o que eu canto, eu sei o que eu Débora - Em 2005, quando o Montage prego, eu sei que eu não posso estar três da surgiu, apareceram outras bandas ... Telerama tarde num programa de TV da Globo porque (banda cearense de indie rock com vocal fe- o nome do meu disco é I Trust My Dealer ("eu minino), October Leaves (banda cearense de confio no meu traficante': em livre tradução rock, influenciada por bandas como a inglesa para o português). E o meu single é o nome Radiohead e a norte-americana Sonic Youth), de trezentos remédios. Plastique Noir (banda cearense de pás-punk, O cantor foi trazido à Nunca tive essa pretensão de achar que ia com influências do estilo gótico), que tão aqui UFC por Alan, Bruno e ficar pop, mesmo com um apadrinhamento, e têm uma certa projeção no cenário daqui, já Débora. Vinha de botas de plataforma e cano alto, se fosse por alguém. Porque as pessoas, elas foram pra fora ... bermuda preta e camise- têm esse bloqueio hipócrita que eu nunca vis- Daniel - É tão engraçado, eu morava com ta também preta com a lumbrei nada em cima disso mesmo. Eu nun- o Airton (Nepomuceno), do Plastique Noir, estampa da banda Ramo- ca esperei por ninguém também. Eu sempre assim que o Montage começou, em 2005. Eu nes. Nas mãos, tinha ape- nas um isqueiro verde. E achei que as minhas coisas só iam acontecer morava, na verdade, com a namorada dele, e nenhuma maquiagem no se eu fizesse elas acontecerem. Esse sonho a namorada dele tava indo embora pra Paris. rosto.

DANIEL PEIXOTO I 93 o estúdio tem uma pa- Ele ficou um tempo lá e, depois que ela foi pre tento arrastar, porque ... Mafalda Morfina rede verde para o chroma embora, ele continuou com a gente. E foi o (banda de pop rock fundada em 2004)! Essa key, uma técnica de vídeo em que se inserem ima- começo das duas bandas, somos bandas ami- era a banda que eu tava tentando lembrar, gens sobre um fundo de gas. Telerama eu já sabia que existia: eu acho que é até de uma amiga minha e eu nem sa- cor uniforme, e Daniel se que talvez antes do Montage, mas eu nunca bia que ela tocava nessa banda, que é a Carla mostrou interessado em fui muito conhecedor do Telerama. Eu vim co- (Keyse). utilizar o espaço para fazer algum dos vídeo-clipes do nhecer mais depois que eles já tinham conse- Débora - Qual a abertura que existe aqui, Montage. guido alguma notoriedade também e tal. Mas no Ceará, em Fortaleza, pra essas bandas no- eu nem lembro qual era a pergunta ... vas? Qual o espaço? Débora - Por que você acha que aparece- Daniel - É muito difícil, né? Muito, muito, ram tantas bandas em 2005? muito complexo, porque não existe um clube Daniel- Engraçado, as bandas dos últimos de rock. Qual é o clube de rock de Fortaleza? cinco ou dez anos em Fortaleza, as que tive- O HeyHo (Rock Bar; inaugurado em 2003, fun- ram uma notoriedade fora do Ceará: foram to- ciona nos arredores do Centro Dragão do Mar das bandas que trabalham música eletrônica. de Arte e Cultura, no bairro da Praia de irace- Foi o Cidadão Instigado (banda de indie rock ma), que não é um clube que funcione quinta, formada em 1999 em Fortaleza, que recebe sexta, sábado e domingo. Existem eventos influências do rock dos anos 1970 e da música nesse lugar. Tinha o Noise, que, infelizmente, brega), depois a Karine Alexandrino, depois fechou. Mas não tem uma coisa que faça mo- o Montage, o Jardim das Horas - que era o vimentar essa cena, que é tão latejante. Quarto das Cinzas - e depois o Plastique Noir. Então, o que é que acontece? Quem quiser Então, acaba que é uma galera do mesmo nú- construir alguma coisa tem que sair fora, que cleo, por mais que sejam sonoridades com- foi o que a gente fez, o que todas as outras pletamente diferentes umas das outras, mas bandas que conseguiram alguma coisa fize- tem essa característica que nos une. ram também. Tem que se mandar. Não dá, a E eu acho massa, porque tem bandas mui- gente tocou em todos os lugares possíveis e to boas em Fortaleza. Eu queria muito que o impossíveis dessa cidade. A gente já tava fa- Kohbaia (banda fundada em 1997, influencia- zendo as nossas próprias festas, pra poder ter da pelo punk rock e pelo rock das décadas de espaço pra gente tocar. Porque, se fosse es- 1960 a 1980) estourasse, que é uma banda perar por uma oportunidade de fazer um som que eu adoro, o Red Run (banda de rock alter- em algum canto, não ia acontecer. Acho que nativo formada em 2005) também é uma ban- talvez já tivesse acabado a banda. da muito boa, os meninos do Plastique Noir Lívia - Nas pré-entrevistas, seus amigos fa- também já estão aí, não precisam de mais laram, a maioria citou, que você sempre quer .~ nada. Que mais? Bandas legais ... O Garfo (trio chegar além, quer chegar longe. Onde é que que toca rock instrumental fundado em 2007) você quer chegar? é muito bom, tem uma outra banda que eu Daniel - Baby, eu quero chegar onde eu tava ouvindo, descobri esses dias, que é aqui puder parar e não fazer mais nada. Quando eu de Fortaleza, deixa eu lembrar o nome ... Ai, tiver satisfeito com tudo. Eu ainda não tô. nem meu Deus! Enfim, o Fossil (banda fundada em 10%. Se hoje as coisas acabassem, teriam 2004, realiza experimentações com música coisas que me teriam feito muito feliz e acho instrumental) é genial também, The Dancer que, ali, já teriam me complementado, mas a (duo composto por Nayra Costa e David Bra- minha ambição é muito grande. É tão grande, sileiro: fundado em 2007), que é uma banda que, às vezes, eu tenho que contrabalancear, nova de música eletrônica, que segue os mes- pra não se tornar alguma coisa louca, de me mos moldes da gente e que também são as tirar da minha linha central, que eu tenha que pessoas que trabalham com a gente, a Nayra chocar com algum valor meu. (Costa) faz os nossos backing vocaIs (vocais Porque eu sou tão obstinado, tão obs- de apoio), o David (Brasileiro) toca guitarra tinado, tão obstinado, que eu às vezes fico com a gente. Então, é a mesma galera. Mas assustado comigo mesmo. Tipo, o meu pai eu acho que poderia ser mais bem difundido. morreu em uma semana que eu tinha quatro No começo de 2008, o O problema é que a música eletrônica - o shows em cidades diferentes e eu não cance- Montage gravou partici- problema, não, a solução - é que a música ele- lei nenhum deles, sabe, eu fiz todos. Teve um pação no filme Augustas, trônica nos dá uma possibilidade muito maior namoradinho meu que se suicidou aqui em ficção de estréia do doeu- mentarista Francisco Cesar de tocar do que pra uma banda que tem que Fortaleza, e no mesmo dia, eu tinha que fazer Filho. A película é baseada montar uma bateria numa boate - é foda, né? um show - se eu não fizesse aquele show, o no livro A estratégia de Li- E a gente, não, a gente liga os nossos com- contrato tinha que ser quebrado, eu que tinha lith, do jornalista Alex An- putadores ali, se der guitarra, massa, se não que pagar. São coisas que eu passo por cima tunes, que em uma narra- tiva autobiográfica fala de der, a gente usa nossas guitarras sampleadas, mesmo naquele momento, em busca do que suas experiências na cena e o show acontece da mesma forma. Então, é eu quero fazer, por mais que aquilo esteja me alternativa de São Paulo. muito mais fácil. Mas, sempre que dá, eu sem- apertando ou não naquele momento.

REVISTA ENTREVISTA I 94 Lívia - E quais são essas coisas que você glaterra ... Mas essa coisa dos meninos terem Daniel é inquieto e em tem que fazer pra poder parar? outras idéias foi me educando a ter a paciên- pouco tempo fica à vonta- de. Gesticulava, fazia care- Oaniel - Fazer ou ter? (risos) Gata, eu que- cia correta pra isso. Por mais essa ambição tas, ria. Aos vinte minutos ro me estabilizar financeiramente. Eu ganho que eu falo que eu tenho, eu também tenho de entrevista, pôs as mãos bem, mas eu não tenho uma vida segura, essa paciência que dá uma baixada de bola. na mesinha à sua frente e principalmente agora, com o bebê. Eu quero Lívia - Numa entrevista, você se definiu afastou os gravadores to- dos de uma vez. poder ter uma condição melhor e chegar num como uma pessoa "calrninha". Como é que nível onde eu possa escolher as coisas que eu você faz essa distinção entre o Daniel cantor, faço também, entende? Infelizmente, eu ainda o Daniel artista e o Daniel filho, o futuro pai, não posso escolher tudo o que eu faço, todos amigo? os lugares onde eu me apresento, todos os lu- Oaniel- Eu sou uma pessoa realmente cal- gares que eu tenho que estar. É isso. Eu quero ma. Eu sou muito caseiro. Se eu tiver entreti- poder fazer as coisas que eu quero só, sem do na minha casa, com coisas que eu gosto ter uma segunda opção, e conseguir a minha de fazer, com pessoas que me dêem prazer estabilidade financeira dentro do que eu faço, de estar ao meu lado, eu fico na boa, tranqüi- que é a minha arte. lo. Eu não tenho essa necessidade da badala- Então, eu acho que eu não quero nada de ção, das festas, da exposição. E eu procuro ter mais, pelo menos, né? Eu nunca infringi nin- uma vida social, mesmo fora de casa, também guém, eu nunca passei por cima de ninguém, tranqüila, sabe? Entrar e sair de todos lugares eu nunca maltratei ou tive que pisar ou me de uma forma que eu possa ser bem aceito, servir daquela pessoa de guincho pra fazer al- sem causar muito alvoroço. guma coisa ... Enquanto tiver tudo dando certo Só que a coisa da arte entra de uma outra dessa forma, eu vou continuar. forma. Não é um personagem o que eu inter- a problema é que, às vezes, a minha am- preto, mas, ao mesmo tempo, não é o Daniel bição é tão grande, que as pessoas que es- que tá em casa com você, assistindo um ví- tão no mesmo barco que eu não conseguem deo no Youtube ou fazendo uma comida, acompanhar. Por mim, eu já tava morando na sabe? Então, tem esse diferencial. Eu empres- Europa há muito tempo, só que eu tenho que to um pouco da minha essência praquele Da- respeitar a coisa do Leco ter um filho e que niel do palco, que sou eu, mas tem uma coisa ele quer tá na educação do filho dele, sabe? muito mais intensificada do que o que eu sou São vários fatores, eu não tô só nessa onda. normalmente, trocando uma idéia com você Então, talvez isso seja até bom porque dê um num lugar normal, que não tem um refletor contrapeso, mas eu tô sempre trabalhando. em cima. - Eu tenho muita energia, eu me sinto ótimo, eu Bruno - Num poema seu, você descreve me sinto muito bem pra fazer as coisas, não o palco como uma gaiola cheia de luzes. Qual tenho preguiça, não tenho vergonha, eu não a importância, pra você, desse momento que tenho nada. Então, eu não tenho nada a per- você tá no palco? der. É fazer, fazer, fazer sempre. Quando tiver Oaniel - Esse poema não é meu, esse po- tudo ok, eu ligo: -ó. deu certo. Agora, sim, eu ema é da Madonna. Acho que talvez eu não posso" (risos). tenha assinado, quando eu publiquei no meu Henrique - Mas essa ida pra Europa, tem totoloq, É exatamente a definição de tudo, alguma coisa prevista? porque tem uma hora que eu reclamo mui- Oaniel- A gente vai (com) certeza. A ques- to de várias coisas, que são o lado não-legal, tão é que têm várias outras coisas dando mui- a carga excessiva de trabalho. Eu não tenho to certo pra gente aqui. E esse selo que vai preguiça, mas chega uma hora que me estafa lançar nosso disco aqui também vai lançar o demais. Por exemplo, você fazer cinco shows nosso disco na gringa (gíria que, nesse caso, seguidos, em cidades diferentes, de lugares significa "no exterior"). a filho do Leco tá indo completamente diferentes, são cinco check- morar em São Paulo, eu tô esperando o meu ins de hotel (procedimento de entrada, que nascer. Eu não vou viajar agora pra Europa dá início à diária), cinco check-outs (procedi- pra morar e chegar aqui (encontrar) um bebê mento de saída, em que a diária é fechada), de quatro meses. Eu vou me sentir muito mal. cinco check-ins de avião (procedimento ante- Então, eu prefiro que as coisas se estabilizem rior ao embarque), cinco passagens de som, Durante a entrevista, Da- muito mais e isso vai crescendo a coisa lá tam- cinco cabelos, cinco maquiagens ... No último niel tomou duas garrafas de água mineral de 500 ml bém. Porque todos os produtores, donos de dia, eu tô acabado. Eu volto pra São Paulo; na cada. Depois de beber tan- selos, de gravadoras, produtores de festivais, segunda, eu tenho que gravar e, na terça, eu ta água de uma vez, Daniel outras bandas que a gente tem acesso, troca tenho que fazer ... Sabe, então, tem horas que pediu um intervalo para uma idéia pessoalmente ou pela Internet, todo eu fico completamente perdido. Só que, tam- ir ao banheiro após uma hora transcorrida. Foi uma mundo fala - e isso é uma coisa que eu sei bém, quando eu tô no palco, é um momen- oportunidade para a turma muito bem - que a gente vai ser muito bem to mágico, de contemplar e agradecer tudo avaliar rapidamente como aceito numa Alemanha, num Japão, numa In- aquilo, que foi o que eu botei tijolo por tijolo tinha se saído até ali.

DANIEL PEIXOTO I 95 ," .. ".•.

Uma das produtoras da pra construir, né? Então, por mais que haja as que talvez tenha sido daí que tenha vindo essa edição anterior da revista lamentações - e elas existem, lógico, eu sou certeza que eu falei, de que tudo ia dar certo Entrevista, Lucíola Lima- verde, assistiu à entrevista humano - tem esse momento sublime ... sempre, porque tem essa força de uma cons- como convidada e acabou É uma coisa que eu acho que só pode sa- ciência - olha que coisa hippie (referência ao virando uma prestativa as- ber quem é artista e quem sente a mesma coi- movimento hippie, ocorrido nas anos 1960) sistente de produção. Ela sa que eu, dessa coisa do palco, da troca da que eu vou falar (risos) - de uma consciência chegou a ir até o shopping Benfica para providenciar energia com as pessoas e da percepção do astral de que existe uma coisa especial em a segunda garrafa d'água que as pessoas estão sentindo com aquele mim, que se eu estivesse lá talvez eu tivesse que Daniel tomou. momento que você tá se doando. Porque eu perdendo isso. me dôo intensamente. Nesse show que vocês Da mesma forma do filho, dessa coisa da viram sábado (o Montage havia se apresenta- espiritualidade, da continuação de uma gera- do no encerramento da XVI Bienal de Dança ção. Então, eu não sou uma pessoa que me - de Par em Par), eu tinha achado que tinha prendo a dogmas e a falsos valores de igrejas, quebrado a perna, terminei mudo. E aquilo é mas eu tenho os meus valores espirituais, que uma doação completamente da minha pessoa são meus e talvez eu ache que eu nunca vá para entreter' vária" outras que eu nunca nem mudá-Ios, por b es estarem muito bem resol- vi, sabe? Então, tem um pouco dessa troca vidos dentro de mim. Eu faço uma prece pra também, e eu acho que é disso que vem esse uma pessoa que eu gosto, eu faço uma prece carinho, das pessoas sentirem o quanto eu me pra uma pessoa que eu não gosto, porque eu dôo de verdade, que eu não tô interpretando, sei que é a forma muito mais bacana do que por mais que exista um pouco dum persona- eu tá falando mal dele numa entrevista, se eu gem ali no meio. fizer uma oração. Então, eu tenho realmente Henrique- Daniel, deixa eu fazer só uma per- esse desapego a essa coisa da matéria mes- gunta, deve ser a penúltima e a gente encerra. mo, indo pruma coisa mais espiritual. Mas é Eu queria saber se você é uma pessoa religiosa uma coisa também que não foi que eu adquiri e em que situações você costuma orar. há dois anos -fui crescendo com aquilo e isso Daniel - Eu venho do Crato, Cariri, terra foi se tornando uma coisa natural e bonita na do Padre Cícero (Cícero Romão Batista, sa- minha vida mesmo. Eu não fico rezando de cerdote católico, nascido no Crato em 1844 e joelho numa estátua, mas eu tenho uma for- morto em 1934 em Juazeiro do Norte). Então, ma muito bacana de dialogar com Deus e ... 'culturalmente, já foi uma coisa implantada. Enfim, não sei nem se é esse deus que as pes- Eu não sou católico, mas eu tenho uma espi- soas falam que é Deus, mas de alguma coisa ritualidade muito grande. Eu estudei muito o que me move e explica certas coisas que eu espiritismo kardecista (doutrina baseada nas não tenho como explicar. idéias do francês Hippolyte Léon Denizard Ri- Alan - Você falou de estabilidade. Quando vail, mais conhecido como A/!an Kardec, nas- é que você acha que você vai conseguir essa cido em Lyon, em 1804, e morto em Paris, em estabilidade? 1869). Estudei no sentido de ler livros e me Daniel - Quando eu tiver tudo o que eu aprofundar e freqüentar algumas reuniões. Eu achar que eu preciso e um pouco mais. (risos) acho muito, muito, muito bonito a coisa da ca- Fora as coisas que eu preciso, que é a vida ridade - não a caridade de eu dar uma moeda que eu tenho hoje - assim, não me falta nada a um mendigo na rua. E eu só passei a ter o -, mas eu não tenho certas coisas que eu ain- conceito real da caridade depois que eu co- da gostaria de ter. Quando eu já tiver essas - e mecei a estudar isso, de ser a forma com que eu não tô falando só de coisas materiais, não eu trato você na rua, enfim, o conceito maior -, quando eu já tiver essas, vai tá tudo bom. da caridade que eu acho que tem que haver o Por exemplo, quando eu quiser ver meu fi- tempo inteiro. E eu tenho essa coisa da espiri- lho e não tiver que fazer uma economia pra tualidade mesmo, muito forte dentro de mim, comprar um bilhete pra vir pra Fortaleza, sim- plesmente decidir pegar um vôo e vir, isso vai tá ok na minha vida também. São essas pe- "Eu não fico quenas coisas, que, pra mim, acabam sendo grandes, pelo meu histórico e de onde eu vim rezando de joelho e as coisas que eu tinha ou as coisas que eu não tinha. Tudo parece que tem uma grandio- numa estátua, mas sidade maior. Eu não sou tão megalomaníaco, eu tenho uma forma não quero a Microsoft (uma das maiores em- Depois de mais de duas presas de computação do planeta, que movi- horas de conversa em um menta bilhões de dólares. Foi fundada pelos ambiente fechado, Daniel muito bacana de pediu um cigarro empres- norte-americanos Bi/! Gates e Paul A/!en em tado a Célio, para matar a dialogar com Deus." 1975), não. vontade de fumar. Débora - E o que você se imagina fazendo,

REVISTA ENTREVISTA I 96 se, eventualmente, o Montage acabar? Quais Terminada a entrevis- são seus planos, além do Montage? ta, às 22h30, a equipe de produção levou Daniel Oaniel - Cara, isso é uma segurança que para casa. Só não o acom- eu tenho muito grande. Se o Montage viesse panharam até lá porque a acabar hoje, por qualquer motivo, se eu não ele insistiu em descer um pudesse mais desempenhar as coisas que eu pouco antes, para comprar cigarros, garantindo que faço ou, enfim, o Leco não quisesse mais ou costumava andar por ali o Ricardo, eu acho que eu ia voltar pra comu- até tarde da noite. E se foi, nicação, porque eu tenho uma abertura tão andando pelas ruas muito grande hoje. Já existem convites e eu nunca à vontade. pude aceitar, justamente por conta dessa mi- nha indisponibilidade de horários e tempos. Mas eu ainda não tenho um quadro na MTV, porque eu não quero, eu já fui chamado várias vezes pra ... Quer dizer, porque eu não quero, não; porque eu não posso, porque eu adora- ria fazer. Mas esse ano talvez, que eu saiba pelo menos que eu vá ficar os seis primeiros meses no Brasil, com certeza vai rolar. Que é uma parada sobre moda dentro do Jornal da MTV (jornal que enfoca o mundo da música, exibido pela MTV desde 2002). Então, eu acho que eu devo enveredar por essa onda. Mas eu também não largo mais a música, não. De alguma forma, eu já iria, sei lá, fazer um disco só meu ou DJ (abreviatura do termo em in- glês "disc-jockev", profissional que seleciona e roda as mais diferentes composições, pre- viamente gravadas), alguma coisa por aí. Não ia mudar tanto o que eu faço hoje, não. Alan - Daniel, pois, em nome da turma, eu agradeço demais a entrevista. Oaniel - Obrigado a vocês, pela escolha ... (palmas da turma) E eu espero vê-Ia muito rá- pido, eu tô supercurioso.

O Daniel mais novo nas- ceu no dia 30 de janeiro de 2009, em Fortaleza. Daniel Peixoto divide a autoria do filho com Regina Teixei- ra, amiga do entrevistado desde os tempos em que ele tentava a carreira de modelo. Já no dia 31, Da- niel Teixeira Cordeiro de Farias foi apresentado no fotolog do pai, que o cha- mou de "meu pequeno príncipe".

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