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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JOSÉ MANUEL SITA GOMES

Traços do Hibridismo nas Práticas de Docentes Universitários Angolanos Egressos de Universidades Brasileiras

Belo Horizonte/Cabinda 2011 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

JOSÉ MANUEL SITA GOMES

Traços do Hibridismo nas Práticas de Docentes Universitários Angolanos Egressos de Universidades Brasileiras

Tese apresentada ao Curso de Doutorado da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Educação.

Área de Concentração: Movimentos Sociais, Cultura e Educação

Orientador: Prof. Doutor, Luiz Alberto Oliveira Gonçalves

Belo Horizonte / Cabinda 2011

G633t Gomes, José Manuel Sita, 1968- T Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / José Manuel Sita Gomes. - Belo Horizonte, 2011. 179 f., enc, il.

Tese - (Doutorado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação. Orientador : Luiz Alberto Oliveira Gonçalves. Bibliografia : f. 175-176. Inclui anexos.

1. Educação -- Teses. 2. Professores -- Formação -- -- Teses. 3. Professores universitários -- Formação -- Angola -- Teses. 4. Ensino superior -- Angola -- Teses. 5. Prática de ensino -- Angola -- Teses. 6. Metodos de ensino -- Angola -- Teses. 7. Multiculturalismo -- Angola -- Teses. 8. Relações culturais -- Brasil -- Angola -- Teses. 9. Pluralismo (Ciências sociais) -- Angola -- Teses. 10. Cooperação intelectual -- Brasil -- Angola -- Teses. 11. Intercambio educacional -- Brasil -- Angola -- Teses. 12. Educação internacional -- Brasil -- Angola -- Teses. 13. Cooperação universitaria -- Brasil -- Angola -- Teses. 14. Angola -- Educação -- Teses. I. Título. II. Gonçalves, Luiz Alberto Oliveira. III. Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação.

CDD- 370.71

Catalogação da Fonte : Biblioteca da FaE/UFMG

À Adriana, minha esposa. Ao Arhtur e o Júnior, meus n´dengues. Acho que daremos um ponto final a estas aventuras, não é!?

12 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Doutor Luiz Alberto Oliveira Gonçalves. As palavras seriam poucas para ilustrar o meu agradecimento. Muito obrigado pelo aprendizado, colaboração e incentivo constante antes e durante a realização deste projecto comum.

Aos funcionários da Secretaria de pós-graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais

Ao Governo da Província de Cabinda que acreditou e financiou este projecto, muito obrigado.

Aos meus colegas docentes da Universidade 11 de Novembro e, em especial, aos meus colegas do Instituto Superior de Ciências da Educação que deram seus depoimentos, minha gratidão.

Aos discentes do Instituto Superior de Ciências da Educação que compreenderam as minhas curtas e longas ausências no decurso desta formação, muito obrigado.

13 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes RESUMO

Nosso objetivo foi o de verificar o impacto dos traços do hibridismo cultural nas práticas dos angolanos, egressos de universidades brasileiras partindo da perspectiva de si próprios e na de seus alunos. Ouvimos, por meio de entrevista semi-estruturada, quatro docentes do Instituto Superior de Ciências da Educação da Universidade Onze de Novembro em Cabinda/Angola e aplicamos um questionário a seus alunos, visando colher informações que pudessem caracterizar as práticas desses professores e evidenciar as traduções que fazem dos traços do hibridismo cultural em suas tarefas pedagógicas. Nossa principal preocupação residiu em perceber em que medida os traços do hibridismo cultural impactam a prática docente destes sujeitos em Angola e em que a tradução influencia a prática docente de profissionais que retornam à Angola para lecionar. Concluímos que as práticas pedagógicas destes sujeitos imersos naquilo que denominamos “escola angobrasileira”, possuem características que os aproximam ás práticas comuns nas instituições onde estudaram no Brasil, mas que não os distanciam totalmente daquela onde trabalham em angola, no que concerne ás formas de relacionamento que estabelecem com os alunos (menor hierarquia nas relações, abertura no trato com os alunos, facilidade de interação entre professor e alunos), no processo avaliativo (uso de seminários, trabalhos em grupo relacionado-os, ás vezes, a provas escritas), no tratamento dos conteúdos (deslocando o professor do lugar do “dono do saber” trabalhando, sempre que possível, com um olhar descanonizador) etc., o que exige que tenham que usar o diálogo e a amizade com os alunos, conceber o aluno como sujeito no processo de ensino e aprendizagem, o contrato didático e a simplicidade como estratégias de conciliação. Seus depoimentos também nos conduziram a distribuir a hibridação nas suas traduções em quatro eixos analíticos: teorias comprometidas, dialética da negação, tradução cultural e inserção do novo no mundo.

Palavras-chave: Hibridismo cultural; Tradução cultural; Práticas docentes; Ensino universitário; Cultura escolar; Relações Brasil-Angola.

14 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes RESUMEN

Nuestro objetivo fue examinar el impacto de los rasgos del hibrismo cultural en las prácticas de los angolanos, graduados en las universidades brasileñas desde la perspectiva de ellos mismos y sus estudiantes. Nos enteramos, a través de entrevista semi-estructurada, con cuatro profesores del Instituto de Ciencias de la Educación en la Universidad Once de Noviembre en Cabinda/Angola y aplicamos un cuestionario a sus alumnos, destinado a reunir información que podría caracterizar las prácticas de estos profesores y destacar las traducciones de los rasgos que hacen de la hibridación cultural en la tarea docente. Nuestra preocupación principal es darse cuenta en qué medida las huellas de la hibridez cultural impacta la práctica docente de estos profesores en Angola y en qué esa traducción afecta a la práctica docente de los profesionales que regresan a Angola para enseñar. Se concluye que las prácticas pedagógicas de estos individuos inmersos en lo que llamamos " escuela angobrasileña" tienen características que se asemejan a las prácticas comunes en las instituciones donde estudiaran en Brasil, pero no totalmente alejadas de los hogares donde trabajan en Angola, en relación con las formas de relación que establecen con los alumnos (relación de menor jerarquía, la franqueza en el trato con los estudiantes, la facilidad de interacción entre el profesor y los estudiantes) en el proceso de evaluación (uso de seminarios, grupos de trabajo, a veces, hacen las pruebas escritas relacionados con ellos) en el tratamiento del contenido (salir del lugar del maestro "dueño del conocimiento", siempre que sea posible, con una mirada descanonizadora), etc., lo que implica que tengan que utilizar el diálogo y la amistad con los estudiantes, tener el estudiante como sujeto del proceso de enseñanza y el aprendizaje, el contrato didáctico como estrategias sencillas para la reconciliación. Su testimonio también nos llevó a distribuir la hibridación en sus traducciones en cuatro categorías de análisis: las teorías comprometidas, la dialéctica de la negación, la traducción cultural y la inserción del nuevo en el mundo. Palabras-clave: hibridación cultural, traducción cultural, prácticas de enseñanza, docencia universitaria, Cultura escolar, Relaciones Brasil y Angola.

15 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Índice

Introdução 13

Capítulo I: A formação de quadros em Angola no período pós- 20 independência, o local da pesquisa e a instituição dos pesquisados

1.1 – Breve referência sobre a formação de quadros em Angola 25 no período pós-independência

1.2 – O local da pesquisa: a província de Cabinda e suas gentes 28

1.3 – A instituição dos pesquisados 31

Capítulo II: Bases da cooperação entre Angola e o Brasil, a 31 população estudada e a metodologia de pesquisa

2.1 – Introdução 31

2.2 – Bases da cooperação entre a República Federativa do Brasil 31 e a República de Angola: atos institucionais assinados de 1980 a 2007

2.3 – Angolanos formados no Brasil no nível da graduação de 36 1990 a 2007

2.3.1 – Carreiras e áreas de concentração das carreiras dos 38 angolanos

2.3.2 – O gênero, carreiras e áreas de concentração das carreiras 40 dos angolanos graduados no Brasil de 1990 a 2007

2.3.3 – Regiões geográficas em que estudaram e áreas de 42 concentração das carreiras dos angolanos graduados no Brasil de 1990 a 2007

2.3.4 – Angolanos formados no Brasil docentes do ISCED-UON e 44 outras instituições do Ensino Superior na província de Cabinda em Angola

2.4 – Metodologia 50

2.4.1 – Sobre os procedimentos das entrevistas aos docentes 53

2.4.2 – Sobre os procedimentos da aplicação dos questionários 54 aos alunos

Capítulo III – Fundamentação Teórica 57

3.1 – Os Estudos culturais 57

16 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 3.1.1 – Tradução cultural 60

3.1.2 – Hibridismo Cultural 66

3.1.3 – Hibridismo cultural: algumas designações 74

3.1.3 – O trabalho docente: tecendo algumas considerações 75 iniciais

3.3 – Quadros analíticos 78

3.3.1 – Inserção do novo no mundo 78

3.3.2 – Tradução cultural 83

3.3.3 – Dialética da negação 87

3.3.4 – Teoria comprometida 93

Capítulo IV: Desvendando as traduções nos traços do 96 hibridismo cultural na prática docente dos angolanos 4.1 – Introdução 96

4.2 – Os professores entrevistados: as origens e as trajetórias 97 escolares

4.3 – O retorno: “minha ida ao Brasil mudou-me muito” 100

4.4 – O hibridismo diante da cultura escolar: conflitos na relação 104 professor-aluno

4.4.1 – Características da “Escola angobrasileira” com base na 108 relação professor-aluno

4.4.1.1 – O que é que significa ter postura crítica no ensino? 113

4.4.1.2 - O que é que significa ter postura criativa no ensino? 115

4.4.1.3 - O que é que significa ter postura científica no ensino? 116

4.4.2 – Características da “Escola angobrasileira”: postura e 118 colocação da voz na relação professor-aluno

4.4.3 – Características da “Escola angobrasileira”: modo de agir 120 na relação professor-aluno

4.4.4 – Estratégias para a superação dos conflitos na relação 124 professor-aluno diante da cultura escolar

4.4.4.1 – Estabelecer diálogo e amizade com os alunos: “Eu 125 apostei no diálogo”

17 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.4.4.2 – Conceber o aluno como sujeito do processo de ensino e 127 aprendizagem

4.4.4.3 – Contrato didático 129

4.4.4.4 – Simplicidade 130

4.5 – Traços do hibridismo no processo avaliativo 132

4.5.1 – Revisitando o conceito de avaliação, as funções da 132 avaliação, as técnicas e os princípios básicos da avaliação no processo de ensino e aprendizagem

4.5.1.1 – O que é avaliação? 132

4.5.1.2 – Quais são as funções da avaliação? 134

4.5.1.3 – Técnicas e princípios básicos da avaliação 135

4.5.2 – Modalidades de avaliação 137

4.5.2.1 – Postura do professor angolano que estudou no Brasil em 145 situações de avaliação

4.6 – Traços do hibridismo na metodologia de ensino: manejo da 149 sala de aula, usos de recursos didáticos e relação com os conteúdos

4.7 – Traços do hibridismo na Língua Portuguesa 158

4.8 – Contribuições para o fomento das relações inter- 166 universitárias Brasil-Angola

5 – Considerações finais 170

6 – Referências bibliográficas 175

7 – Anexos

Entrevista da Professora Dituanga, docente da disciplina C

Entrevista do Professor Micanda, docente da disciplina A

Entrevista da Professora M´pemba, docente da disciplina D

Entrevista da Professora Tunga N´zola, docente da disciplina B

Questionário dirigido aos estudantes

18 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes LISTA DE TABELAS

Tabela 1: Distribuição das carreiras e áreas de concentração das 39 carreiras dos angolanos que concluíram os cursos no Brasil de 1990 a 2007. Tabela 2: Distribuição das carreiras entre angolanos graduados no 40 Brasil de 1990 a 2007, por gênero. Tabela 3: Distribuição das áreas de concentração das carreiras e 41 gênero dos angolanos graduados no Brasil de 1990 a 2007. Tabela 4: Distribuição das instituições de Ensino Superior em que se 42 graduaram os angolanos no Brasil por regiões geográficas e gênero. Tabela 5: Distribuição dos angolanos graduados no Brasil de 1990- 43 2007, por regiões e áreas de concentração dos cursos. Tabela 6: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no 45 Brasil que trabalham como docentes no ISPRA por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola. Tabela 7: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior 46 no Brasil que trabalham como docentes na ULPC por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola. Tabela 8: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no 46 Brasil que trabalham como docentes na Faculdade de Economia por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência Brasil e ano de retorno para Angola. Tabela 9: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no 47 Brasil que trabalham como docentes no ISCED-Cabinda** por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola. Tabela 10: Professores angolanos do ISCED graduados no Brasil, por 49 gênero e anos de experiência na docência antes e depois da formação.

Tabela 11: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior 54 no Brasil que trabalham como docentes no ISCED-Cabinda entrevistados em 2009, por carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola. Tabela 12: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON 110 sobre situações da relação professor-aluno com os docentes angolanos que estudaram e os que não estudaram Brasil. Tabela 13: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON em 119 relação à postura no semblante e no tom de vos dos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil.

19 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tabela 14: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON 122 relativas ao modo de agir dos professores angolanos que estudaram que estudaram e não estudaram no Brasil Tabela 15: Distribuição das respostas de discentes do ISCED-UON 144 sobre as modalidades de avaliação adoptadas pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil. Tabela 16: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON 148 sobre a posição adoptada pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil em relação à situações do processo avaliativo Tabela 17: Respostas dos alunos do ISCED-UON em relação ao 149 modo como vêem a avaliação aplicada por seus professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil Tabela 18: Distribuição das respostas de discentes do ISCED-UON 157 sobre a metodologia de ensino usada pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil Tabela 19: Distribuição das respostas de discentes do ISCED-UON 157 sobre o uso dos recursos didáticos pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil Tabela 20: Respostas dos alunos do ISCED-UON em relação à 165 presença ou não na fala e na escrita de expressões da língua portuguesa que destoam nos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil

20 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1: Angolanos graduados no Brasil de 1990-2007 por regiões 43 geográficas e IES. Gráfico 2: Representação dos docentes universitários angolanos 47 formados no Brasil, por instituições de ensino, no ano 2006. Gráfico 3: Representação dos docentes universitários angolanos 48 formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil e que atuam em Cabinda por gênero. Gráfico 4: Representação dos docentes universitários angolanos 48 formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil que atuam em Cabinda por tempo de permanência no Brasil.

21 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes INTRODUÇÃO

À marimba e ao quissange... À bela pátria angolana nossa terra, nossa mãe havemos de voltar. (NETO, 1960)

No mês de março do ano de 1994 cheguei ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro “Tom Jobim”, integrado em um grupo de angolanos provenientes de , sob a tutela do Governo da Província de Cabinda. Iniciava-se, assim, a minha caminhada na carreira escolar universitária no Brasil. Transcorridos alguns anos, desembarcava em Luanda, na “bela pátria angolana, nossa terra, nossa mãe” tal como Agostinho Neto a descreve em seu poema intitulado, havemos de voltar. Mas, desta vez, carregando na “bagagem” vários “diplomas”: os ESCOLARES e os propiciados pela EXPERIÊNCIA DE VIDA1. Este último é resultante da interação constante com as diversas manifestações (sociais, políticas, econômicas, culturais, étnicas, etc.) alimentadas pelas diversidades nas convivências nos espaços comuns no Brasil, o que contribui para que a formação que esses sujeitos levam ao deixar o país anfitrião, não se limite somente à formação profissional que recebem na universidade, mas extrapole para a vida pessoal contribuindo para a construção de novas identidades “compostas não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes, contraditórias ou não resolvidas” conforme nos ressalta HALL (2000). Tanto os dados derivados do levantamento feito na ocasião em que cursei o Mestrado em Educação, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – cujos resultados podem ser encontrados em GOMES (2002; 2007) – quanto os outros que mais tarde tive acesso2, indicam-nos que muitos angolanos buscaram suas escolarizações

1 Acerca das vivências de estudantes angolanos no Brasil, confira GOMES (2002; 2007)

2 No capítulo 2 está detalhado a distribuição dos angolanos formados no Brasil no nível da graduação por sexo, anos, Carreiras, instituições, regiões geográficas do Brasil onde estudaram etc. de 1990 a 2007.

22 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes universitárias no Brasil. Pois, embora a assinatura do acordo de cooperação cultural e científica entre ambos os países3 tenha ocorrido, em 1980, algumas instituições de Ensino Superior brasileira como, por exemplo, a UFMG, fruto das relações entre o Brasil e Angola, já recebiam angolanos desde a segunda metade do ano 1975 para se formarem em níveis que variaram desde a Graduação, nos primeiros anos, à pós-graduação nos anos mais recentes. Desde 1980 até o ano 2007, segundo os registros da Divisão de Temas Educacionais do Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil colaram grau, nesse período, mais de três centenas de angolanos cujo detalhamento sobre a composição do público em relação ao gênero, ano de conclusão do curso, instituição formadora, áreas de concentração dos cursos e outros aspectos que os caracterizam estão expresso mais adiante. É importante ressaltarmos aqui que o número total de angolanos formados no Brasil nesse período, no nível da graduação, pode ser maior, visto que, muitas instituições não informam á Divisão de Temas Educacionais (DCE) do MRE brasileira sobre as conclusões. Além disso, outro facto que, a meu ver, pode estar influenciando nisto é a diversidade de formas de ingresso4 ás universidades e das instituições mantenedoras por parte dos estudantes, pois algumas vezes, uns, em razão do equilíbrio entre as oportunidades de estudo e as condições para se manterem, tendem a não anunciar o término do curso optando por alongar suas trajetórias escolares universitárias no Brasil retardando, deste modo, seus regressos definitivos para Angola. Por essas e outras razões, não se tem dados que permitam assegurar, com exatidão, as taxas de retorno destes angolanos ao país de origem. Contudo, com base em minha experiência de estudante nessa condição e reforçado pelas palavras do atual Diretor do Instituto Nacional de Bolsas de Estudo (INABE)5, posso garantir que a maior parte daqueles que conclui os

3 O item 2.2 espelha, na íntegra, todos os atos institucionais em vigor rubricados entre a República Federativa do Brasil e a República de Angola desde 1980 até 2007.

4 Somente entre os estudantes angolanos da UFMG, em um total de 21 alunos havia quatro (4) modalidades de entrada, a saber: Programa de Estudante Convênio de Graduação (PEC-G), Programa de Estudante Convênio de Pós-graduação (PEC-PG), Refugiados Políticos e Exames de Seleção. (GOMES, 2002; 2007)

5Em entrevista publicada no Semanário Econômico, em 1/7/2010, indagado acerca do regresso voluntário dos bolseiros angolanos ao país no final dos cursos e quantos decidiram fixar-se nos países de formação, o responsável pela pasta das bolsas interna e externa de Angola afirmara 23 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes estudos, sai do Brasil embora, simbolicamente (do ponto de vista físico e mental), o Brasil continue vivendo neles e com eles. São estes “retornados” que para além de dar seus aportes ao desenvolvimento de Angola, motivo pelo qual o país, através de recursos públicos, investe neles, estes também servem de pontes de ligação entre Angola e o Brasil criando uma espécie de “escola brasileira” em Angola ou, o que nós batizamos como “escola angobrasileira” – ver capítulo 4. É sobre estes que voltaram e que se encontram na província de Cabinda-Angola (à esquerda, o mapa de Angola, circulada a província de Cabinda) exercendo suas actividades profissionais como docente que incidiu o nosso olhar investigativo buscando perceber neles os traços das vivências no Brasil em suas práticas como professores a partir das leituras que eles mesmos fazem das traduções de suas práticas e, também, a partir da visão dos seus alunos, visto que, com base no estudo em que analisamos a experiência dos universitários angolanos na UFMG que nos remetemos à cultura escolar, às relações raciais, à saudade, à língua portuguesa entre outros aspectos para explicitar e qualificar o dia-a-dia desses estudantes atestou-se também que a condição de estrangeiro destas pessoas que os acompanha ao longo de suas estadas na diáspora mantém-nos em uma espécie de “território fronteiriço” (HALL, 2000; CANCLINI, 1998) entre suas culturas de origem e a dos “outros”. Ou seja, carregam características culturais de suas origens, mas, incorporando, ao mesmo tempo, novas práticas/actitudes conjugadas às situações inerentes ao espaço e ao tempo específicos do ponto de vista da indumentária, da língua portuguesa, do gosto musical, da culinária, das práticas culturais relativas à dinâmica do cotidiano escolar no que tange as formas de socialização dos saberes, à relação professor-aluno, aluno-aluno e outros agentes integrantes dessa comunidade que “os bolseiros externos, na sua maioria têm regressado ao país. É verdade que num passado recente, muitos optavam por ficar lá fora, nomeadamente em Portugal por causa da dificuldade em encontrar emprego no mercado angolano. Mas essa fase acabou. Pois o INABE tem protocolos com algumas empresas estatais e privadas no sentido de concederem estágios ou empregos a estes bolseiros. E o resultado é optimista”. Quanto ao número dos que decidiram fixar residência no local de estudos dizia ele: “não temos um número de bolseiros que ficam nos países onde foram formados, mas temos a certeza que não são muitos”. Disponível em http://www.semanarioeconomico.co.ao/EMPREGO/Pages/ Maisbolsasdeestudosparaengenhariaemedicina.aspx. Consultado aos 23/8/2010. 24 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes como resultado das inevitáveis interações produzidas no dia-a-dia corroborando, dessa forma, com HALL(2000:13) quando define a identidade como uma “celebração móvel” formada e transformada continuamente em relação ás formas pelas quais somos interpretados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam, pois – acrescenta o autor – as pessoas assumem identidades diferentes em diferentes momentos, identidades6 que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Para ele, a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, na medida em que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente que, como resultado, produz sujeitos híbridos que, nas palavras de CANCLINI (2003), são os frutos do hibridismo cultural que ele define como o “processo sociocultural no qual as estruturas ou prácticas discretas que existiam separadas se combinam para gerar novas estructuras, objectos e prácticas”. (grifo meu). Em Angola, em contacto com os colegas “retornados” do Brasil, nota-se neles tendência a manterem em suas acções quotidianas certas prácticas que não se podiam, a meu ver, catalogá-las taxativamente como sendo brasileiras ou angolanas, mas, sim, uma mistura de ambas as culturas no que tange ás maneiras de se colocarem nas relações profissionais estabelecidas no espaço acadêmico7 mas, também, em outras áreas inerentes ás formas de ser, de fazer, de conhecer e de estar com os outros8. Muitas vezes, nos corredores da

6HALL (2000:10) analisa três concepções de identidade que ele denomina de identidade do sujeito do iluminismo; a identidade do sujeito sociológico e a identidade do sujeito pós- moderno. Para os propósitos do nosso estudo, enquadramo-nos neste último.

7 Compreendidos assim os espaços de interação entre professores e alunos no ambiente da sala de aulas, no ambiente escolar como um todo e em outras situações formais/informais de escolarização, os espaços de interação dos professores entre si em reuniões de trabalho, interação em conferências, jornadas científicas, palestras e/ou outros debates acadêmicos onde a expressão “escola brasileira” estava sempre presente de maneira explícita e implícita nas manifestações das pessoas o que contribui para o fomento de algumas características peculiares aos egressos das universidades brasileiras forjando assim uma referência grupal.

8 No Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, os relatores concluem que para poder dar resposta ao conjunto das suas missões, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros 25 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes universidade e em outros espaços, ouvi comentários dos alunos que agrupavam e nominavam, informalmente, os professores tendo em conta o local de formação. Para eles, cada grupo era-lhes peculiar por algumas características. No caso do grupo que eles denominaram como sendo a escola brasileira, “os professores são mais abertos”, “aceitam que o aluno leve contribuições para a aula”, “são muito exigentes”, “controlam com muito rigor as provas”, etc. Refletindo acerca destas e outras situações, minha inquietação residiu, como já disse atrás, em verificar nessas pessoas que vivenciaram a experiência formativa universitária no Brasil9 e que se encontram a lecionar no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) da Universidade 11 de Novembro (UON), “como se configuram os traços do hibridismo em suas práticas docentes”. Ou, dito de outra maneira, como se caracterizam os traços do hibridismo nas práticas docentes dos professores egressos de universidades brasileiras? Em que medida a tradução influencia a prática docente de profissionais que retornam á Angola para lecionar? Como objectivos específicos o estudo preconizou caracterizar as prácticas dos professores universitários angolanos do ISCED formados em Instituições de Ensino Superior brasileiras, verificar o impacto dos traços resultantes da vivência no Brasil nas suas práticas docentes, destacar as estratégias usadas por estes professores para se conciliarem entre as práticas escolares resultantes de suas vivências no Brasil e aquelas da cultura escolar angolana e, por fim, contribuir para o enriquecimento das ações de intercâmbio inter-universitário entre o Brasil e Angola no âmbito do ensino e da pesquisa. Uma vez realizadas as entrevistas aos docentes e aplicado o questionário aos discentes, feitos os levantamentos bibliográficos e demais ações previstas para o alcance dos propósitos preconizados no projeto, o texto que agora apresentamos está estruturado em quatro (4) capítulos. No primeiro Capítulo, “Formação de quadros em angola no período pós-independência, o local da pesquisa e a instituição dos pesquisados” está retratada a Universidade 11 de Novembro e o Instituto Superior de

em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes (DELORS, J. et al, 2006:89). 9 Considero assim aquelas pessoas que começaram e concluíram a graduação no Brasil. 26 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Ciências da Educação, um pouco do percurso histórico da província de Cabinda e de sua constituição étnica. Discorremos também acerca da formação de quadros no período pós-independência em Angola. O segundo (2º) capítulo intitulado “Bases da cooperação entre Angola e o Brasil, a população estudada e a metodologia de pesquisa”, por reconhecermos a relevância dos acordos de cooperação celebrados entre o Brasil e Angola para a presença de estudantes angolanos no Brasil, explicitamo-los nesta parte do nosso estudo. Além disto, aqui também referenciamo-nos à metodologia usada e caracterizamos a população do nosso estudo antecedida da estatística dos angolanos formandos no Brasil de 1997 a 2007 com base nos dados que nos foram cedidos pelo DCE do MRE do Brasil que indicam que trezentos e dezoito (318) angolanos graduaram-se no Brasil, distribuídos em quarenta e quarto (44) carreiras, em Instituições de Ensino Superior sediadas das regiões Norte (4,4% dos graduados), Nordeste (13,5 dos graduados), Centro-oeste (10,7% dos graduados), Sudeste (55,6% dos graduados) e Sul (15,7% dos graduados) do Brasil, nas áreas de Ciências Agrárias, Ciências Biológicas, Ciências Exatas e da Terra, Engenharias, Ciências Humanas, Ciências da Saúde, Ciências Sociais Aplicadas, Lingüística, Letras e Artes. No terceiro (3º) capítulo – “Fundamentação Teórica” – procuramos, com base em trabalhos de autores que se ocupam dos estudos culturais especialmente acerca do hibridismo cultural e temas correlatos (CANCLINI, 2003; HALL, 2000 e 2006; BHABHA, 1998; BURKE, 2003 e outros) procurando estabelecer as ilações entre o nosso tema e estes estudos. Foi nesse momento que evidenciamos a partir da óptica dos autores lidos e na nossa que a noção do híbrido ou hibridismo cultural implica no contacto com outra cultura, outras culturas e/ou outros objectos culturais. É nesse contacto, ou através desses contactos, que se criam os espaços para que aconteçam as misturas – produtivas ou improdutivas10 –, nem sempre homogêneas e, obviamente, sem a ausência dos conflitos que, ás vezes, são gerados por esses processos que os permitem “entrar e sair da hibridez”11 da mesma forma como “se entra e se

10 Ver CANCLINI, 2006:XXV.

11 Cornejo Pilar, 1997 in: CANCLINI, 2006. 27 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes sai da modernidade”12. A partir desta perspectiva pudemos entender que o hibridismo não é um estado fixo e permanente, mas, sim, um processo que envolve trânsito e provisionaridade, ou seja, “um processo o qual é possível ter acesso e que se pode abandonar, do qual podemos ser excluídos ou ao qual nos pode subordinar” o que permite entender melhor as posições dos sujeitos a respeito das relações interculturais, pois conforme nos esclarece CANCLINI (2006:XXVI) que “o migrante nem sempre está especialmente disposto a sintetizar as diferentes estâncias de seu itinerário, embora – como é claro – não lhe seja possível mantê-la encapsulada e sem comunicação entre si, pois a oscilação entre a identidade de origem e a de destino, às vezes, leva o migrante a falar com espontaneidade a partir de vários lugares sem misturá-los, circulando, ocasionalmente, de um lugar a outro”. Aqui também debruçamo-nos acerca da tradução cultural que, sendo um conceito chave da nossa pesquisa, entendemo-lo a partir da perspectiva de que não se trata de tradução de uma língua para outra, mas, sim, de um tempo para o outro, de uma cultura para outra. O encerramento do capítulo fazemo-lo com os quadros analíticos que ajudam a entender melhor a condição de hibridez desses sujeitos que, vivendo em diásporas experimentaram aquilo que Agostinho Neto chamou de “paradoxo do homem disperso”. Estes quadros mostram a mobilidade dos depoimentos dos sujeitos através do eixo da inserção do novo no mundo, da tradução cultural, da dialética da negação e da teoria comprometida. No quarto (4º) capítulo – “Desvendando as traduções nos traços do hibridismo cultural na prática docente dos angolanos” – é onde sintetizamos os dados resultantes das entrevistas e do questionário, entrelaçados á fundamentação teórica. Nele, apontamos as características da “escola angobrasileira” mantendo o foco na relação professor-aluno, no manejo da sala de aula onde se incluiu um olhar voltado para a metodologia e aos usos dos recursos didáticos, no processo avaliativo e nos usos da Língua Portuguesa. Foi também neste capítulo onde mostramos as estratégias usadas por estes professores nas traduções que fazem para conciliarem-se entre as culturas escolares das instituições onde estudaram e a do local de trabalho. Para fechá-lo, damos algumas contribuições para se pensar no fomento das

12 Idem 28 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes relações inter-universitárias entre o Brasil e Angola no que concerne ao Ensino e da Pesquisa. Por fim, as considerações finais e a bibliografia encerram este nosso estudo que analisou os traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras fruto dos acordos de cooperação cultural e científica celebrados entre o Brasil e Angola.

29 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes CAPÍTULO 1: A FORMAÇÃO DE QUADROS EM ANGOLA NO PERÍODO PÓS-INDEPENDÊNCIA, O LOCAL DA PESQUISA E A INSTITUIÇÃO DOS PESQUISADOS

1.1 – Breve referência sobre a formação de quadros em Angola no período pós-independência

Na região ocidental da África Austral, ao Sul do Equador, encontra-se Angola, um dos países do continente africano colonizado por Portugal sendo um dos mais recentes Estados independentes da África meridional e integrou um conjunto de territórios que fizeram parte do “colonialismo tardio praticado por Portugal” (MENEZES, 2000:91) cuja independência foi conquistada em 1975 – à esquerda, o mapa da África onde pode identificar-se Angola –. Sua superfície territorial é de 1.246.700 Km2. O país tem como limites geográficos ao Norte e NE, a República Popular do Congo (designada também de Congo francês) e a República Democrática do Congo (designada também de Congo belga); ao Leste, a República da Zâmbia e a República Democrática do Congo; ao Sul, a República da Namíbia e, ao Oeste, o Oceano Atlântico. Há que se salientar que, entre a Província de Cabinda e o extremo Norte do resto de Angola, existe uma separação geográfica por causa do rio Zaire, que passa por ali e uma parcela do território congolês que se estendem até ao Oceano Atlântico. Isso faz com que essa província não tenha ligação terrestre com a outra parte do país. A população angolana estima-se em, aproximadamente, dezessete milhões e meio de habitantes. A dominação colonial em Angola teve uma duração aproximada de 500 anos, isto é, se considerarmos nesse somatório os anos que vão desde a chegada dos primeiros portugueses à foz do rio Zaire, em 1482, até a Proclamação da Independência em 1975. Esse período pode ser dividido em dois complementares entre si: o primeiro período, que é o mais longo, o de resistência e revolta dos nativos contra a colonização (até 1961) e o segundo período o de luta de libertação nacional (1961-1975). 30 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Em relação ao primeiro período, pode-se dizer que os colonizadores sofriam oposição dos nativos de forma isolada, mas no segundo, não se pode dizer o mesmo, pois segundo nos narra a história oficial angolana, nesse período iniciou-se um processo de desestabilização da hegemonia dos portugueses com a união de várias forças nacionais e, no dia 4 de Fevereiro de 1961, o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) deu início à Primeira Luta de Libertação Nacional13 dirigindo assaltos às prisões14 de Luanda (a atual capital de Angola) para libertar os dirigentes e outros militantes que ali se encontravam presos (ANDRÉ, 1995:13). Alguns anos antes da eclosão desses conflitos em Luanda, segundo Everdosa (s/d, apud, ANDRÉ, 1995:14), o MPLA tinha distribuído, naquela cidade, um manifesto onde deixava clara a necessidade do uso da força e da união de todos os grupos nacionais para a libertação do país dos colonizadores.

“[...] o colonialismo português não cairá sem luta. É por isso que o povo angolano só se poderá libertar pela guerra revolucionária; será apenas vitoriosa com a realização de uma frente unida de todas as forças anti- imperialistas de Angola que não estejam ligadas à cor, à situação social, à credos religiosos e tendências. Será vitoriosa graças à formação de um vasto movimento popular de libertação de Angola”.

Tanto no período mais estável da colonização quanto no outro, “o objetivo estratégico dos portugueses era de manter o domínio branco e o controle do estado, da administração e da economia” (ANDRÉ, 1995:37). Para

13Essa luta se destinou à expulsão dos colonizadores e se estendeu até a Proclamação de Independência. Após essa data, o país mergulhou em outra guerra civil interna. Essa se denominou Segunda Guerra de Libertação Nacional.

14 A luta nacionalista em Angola ganha uma nova dimensão com o episódio conhecido como assalto ás Cadeias de Luanda em 4 de fevereiro de 1961. Pela primeira vez a mobilização da população dos musseques ( bairros da periferia ) participa da luta contra a repressão e dá voz á mensagem nacionalista. Esta invasão a cadeia de São Paulo visava mais do que a libertação dos seus presos políticos; portava um grito desesperado contra o regime repressor. Além disso, o ataque demonstraria o poder da mobilização popular para atingir as autoridades portuguesas. (CARDOSO, 2008:67) 31 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes isso, os negros, aos quais se destinavam os trabalhos manuais que não exigiam iniciativa, criatividade e nem uma qualificação prévia do operário, estavam cada vez mais distantes de alcançar postos de trabalho de prestígio. Não era, portanto, de interesse dos colonizadores oferecerem aos nativos uma escolarização, pois quanto mais ignorantes os mantivessem, maiores seriam as suas chances de continuarem dominando-os, pelo que lhes eram colocados todos os obstáculos possíveis para impedi-los que chegassem a níveis de escolaridade mais elevados, como, por exemplo, à universidade. De acordo com NILSSON (1979:9 In: CARDOSO, 2008:71),

[...] em 1960, dos seis milhões em Angola somente 104 000 pessoas andavam na escola. E a grande maioria dos alunos eram crianças portuguesas. Em 100 angolanos, não se encontravam mais que oito ou nove que sabiam ler e escrever. Os colonialistas construíram algumas escolas, mas quase todas elas colocadas nas cidades e nas vilas. Nas aldeias onde morava a maior parte do povo angolano, não existiam escolas. [...] os filhos da opressão cresciam ameaçados por doenças e sem acesso aos estudos. Tornando-se jovens, eram ameaçados pelo trabalho contratado. Matavam-se a trabalhar a fim a fim de conseguirem o dinheiro para os impostos e outras dívidas mais. Vendiam barato suas colheitas aos comerciantes portugueses e tinham de pagar muito caro o sal, o sabão, o tecido e outras mercadorias necessárias.

Sendo assim, uma política mais real, de alcance nacional, que visasse à escolarização e qualificação profissional de cidadãos angolanos, tanto dentro quanto fora do país, embora se tenha verificado também no período colonial – de maneira muito pouco abrangente tal como podemos apreciar nesta citação – somente após a Proclamação da Independência, quando os angolanos assumiram o poder é que se começou a investir efetivamente nesse setor.

32 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Dados do Ministério da Educação e Cultura de Angola-MEC (1999) indicam que “o país tinha herdado do regime colonial uma taxa bruta de analfabetismo de cerca de 90% da sua população economicamente ativa”. Conforme aponta ANDRÉ (1995:37), o analfabetismo foi uma das estratégias e arma dos portugueses para manter os angolanos sob seu domínio. Portanto, com o advento da independência de Angola, o Governo do partido único constituído pelo MPLA, adotou um modelo de inspiração marxista para o sector da educação, que se estendeu a todos os níveis de ensino. Obedecendo a critérios e políticas de massificação e em conformidade com o programa estabelecido pretendia- se criar um homem novo angolano, através da educação patriótica fortemente ideologizada, formando e educando novos quadros mobilizados para os grandes combates antiimperialistas da época. Nessa conformidade, com as suas virtudes e os seus defeitos, o modelo de educação deixou em Angola resultados palpáveis, permitindo a extensão do ensino primário e secundário às classes mais desfavorecidas e pobres ficando, contudo, a formação de quadros superiores, muito aquém das reais necessidades do país, em grande parte devido à falta de Universidades suficientes e de qualidade. Diante desse contexto – e pensamos nós que foi o melhor caminho – o Governo constituído pelo MPLA, empenha-se gradativamente na formação de quadros dentro do país e, através de convênios de cooperação internacional, algumas pessoas são enviadas para outros países15, principalmente para aqueles que faziam parte do Conselho de Ajuda Mútua Econômica (CAME)16 ao qual Angola estava aliada, mas também, para outros países que não faziam parte desse “bloco” e que dispunham-se, por via dos laços de cooperação estabelecidos, receber angolanos a fim de formá-los como, por exemplo, o Brasil. Creio que a decisão tomada pelos governantes de Angola, que tinham assumido o poder, estava ligada à urgente necessidade de se propiciar o acesso aos saberes escolares a milhões de angolanos que não tiveram

15A Universidade Agostinho Neto foi insuficiente na formação de quadros superiores em quantidade e qualidade, face à procura crescente do mercado interno de trabalho. Deste modo, durante os últimos 28 anos, grande parte da elite universitária angolana foi formada em Universidades estrangeiras de cerca de 30 países, com sistemas educativos diversos. (PALOP, 2010:3)

16 Por exemplo: Rep. Soc. de Cuba, União das Repúblicas Socialistas Soviético-URSS, Polônia, Checoslováquia, República Democrática Alemã-RDA, Hungria, etc.

33 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes oportunidade de fazê-lo na época da colonização. Além disso, era imprescindível a imediata preparação de profissionais que pudessem substituir àqueles que, nos períodos pré e pós-independência, abandonaram17 o território angolano para buscar refúgio em outros lugares. Para que o processo de formação de mão-de-obra nacional qualificada pudesse prosseguir sem contratempos, foi criado o Instituto Nacional de Bolsas de Estudos – INABE, entidade que se instituiu, durante muitos anos, como único Órgão Oficial do Governo angolano que, embora tenha assumido também há menos de cinco (5) anos a missão das bolsas internas18, ele nasceu inicialmente com a função de cuidar de toda a política de gestão de bolsas externas para angolanos que desejassem estudar fora do país. É, portanto, sobre essas pessoas que buscaram realizar suas formações no Brasil, seja por iniciativa privada ou através do INABE e hoje se encontram em Angola a atuar como docentes no Instituto Superior de Ciências (ISCED) da Educação da Universidade Onze de Novembro (UON) que, como vínhamos dizendo, incidiu o nosso olhar investigativo para verificar nestas pessoas que vivenciaram essa experiência formativa universitária no Brasil, “o impacto das traduções dos traços do hibridismo cultural em suas tarefas na docência”.

17De acordo com CARDOSO (2008:21), “em Angola, a caminho da independência (ambição esta sonhada por alguns daqueles que saíram), não havia lei que determinasse a obrigatoriedade para a retirada da população „branca‟. Entretanto, esta, na sua quase totalidade, acuada pelo conflito civil instaurado entre os movimentos de libertação ainda durante a guerra colonial, marchou rumo ao esvaziamento completo e imediato da sua mais importante cidade, São Paulo de Luanda, uma das mais modernas cidades da África. O desenvolvimento de Luanda era superior ás demais capitais africanas, sendo somente comparável a Joannesburgo na África do Sul [...] com uma atividade industrial promissora, comércio e serviços bancários desenvolvidos, sendo que a maior parte dos quadros técnicos era „branca‟. Havia ainda um grande número de „mestiços‟ inseridos nos quadros técnicos, e que também acabaram, em parte, por sair do país. Mesmo, diante da vontade de alguns „brancos‟ em permanecer no local e participar na edificação da Angola recém-independente, ou ainda, continuar sua vida no país, as famílias sentiam-se desprotegidas. Não havia mais condições normais de habitação e da manutenção das infra-estruturas básicas: abastecimento de água, alimentos, energia. Com a cidade sitiada e constantemente ameaçada por um conflito ainda mais pungente entre os exércitos dos movimentos que estavam próximos á capital quando de sua independência, não houve alternativa senão sucumbir ao desespero de sair imediatamente, ou prioritariamente proteger os filhos, mandando-os embora primeiro”.

18 Através deste programa o Estado atribui uma bolsa não reposta aos estudantes universitários que estejam matriculados em Instituições de Ensino Público ou privado ao longo de sua formação. 34 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 1.2 – O local da pesquisa: a província de Cabinda e suas “gentes”

Cabinda é uma das 18 províncias da República de Angola. O nome CABINDA faz-se derivar da aglutinação da última sílaba de MAFUCA (MAFUKA) com BINDA, nome de um cavalheiro e dignitário do rei de Ngoio. O Mafuca, nos antigos reinos de Loango, e Ngoio, era como que o Intendente Geral do Comércio e o homem da confiança do Rei que, em seu nome, tratava de todas as transações comerciais, de um modo muito especial com os europeus. Estes, pois, ao fundearem na Baía das Almadias (atual Baía de Cabinda) tinham de se haver, para transações comerciais, necessariamente, com Mafuca. E o Mafuca desse tempo seria um senhor de nome BINDA. O chamamento repetido de Mafuca Binda, provocou uma tendência e cadência para ficar somente no ouvido o (Mafu) CA-BINDA que acabaram proporcionando ao porto e à terra o nome de Cabinda. (MARTINS, 1972). Esta província se destaca por ser um enclave, um território separado do restante do país. Situa-se na costa atlântica africana com 7.283 Km². Possui fronteiras a Nordeste, Leste e Sul a República Democrática do Congo, a Norte com a República do Congo (Brazzaville) e a Oeste é banhado pelo Oceano Atlântico com 103 Km de faixa litorânea. (NGONJE, 2007) Como conseqüência da sua posição geográfica percebe-se constante movimento da população angolana, caracterizado por idas e vindas aos países vizinhos, com prevalência à República do Congo, a fim de obter produtos e serviços para consumo próprio ou para a comercialização. As trocas entre estas sociedades não se dão apenas no âmbito sócio-econômico, pois as trocas sócio-culturais também são intensas. A população da província de Cabinda ronda atualmente os 500 mil habitantes (Idem), distribuídos por quatro Municípios: Cabinda, Cacongo, Buco-Zau e Belize sendo que os dois primeiros são os do litoral e os dois últimos ocupando a região florestal do maiombe, a segunda maior floresta tropical do mundo. A capital da província possui também a denominação Cabinda e tem uma população estimada em 181.910 moradores albergando em si o maior número de viventes. A sede, ocupando uma área de 2 mil 348

35 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes km² foi elevada à categoria de cidade em 28 de maio de 1956, através do despacho legislativo nº 2.757, proposto pelo então governador português do distrito do Congo, Jaime Pereira de Sampaio Forjaz de Serpa Pimentel19. As explicações tradicionais sobre a origem do processo de povoamento de Cabinda são fontes ricas para a compreensão de aspectos desta sociedade tais como as crenças, as práticas e os costumes locais, e se fazem presente entres os populares até os dias atuais. Dentre as várias versões encontradas sobre o povoamento desta província, destacam-se as seguintes: em uma delas, diz-se que, nove dos sobrinhos do Rei do Congo, filhos de Vua Li Mabene – a de nove seios – teriam atravessado o rio Zaire (Nzadi) ao se dispersarem teriam originado os noves clãs descendentes do Rei do Congo. Outra versão relata que o Rei do Congo possuidor de longa extensão de terras, após a suspeita de ter sofrido um atentado, devido ao sabor peculiar de um vinho de palma que lhe fora oferecido, deixa a margem do rio Zaire onde vivia e junto de toda a sua gente pôs-se em marcha. Numa terceira versão o Rei do Congo era muito afeiçoado a um escravo de nome Lenchá, o primeiro a extrair o vinho de palma e o azeite do dendê. O sobrinho mais velho do Rei, chamado Makongo, juntamente com seus oito irmãos queimaram-no vivo, pois julgavam que o serviçal havia envenenado o tio, mas o que os sobrinhos basearam como fato para acreditarem que o Rei estava a sucumbir era resultado de uma bebedeira. Passado o mal estar, o Rei foi tomado de cólera ao saber o que ocorrera com seu escravo e resolveu dar o mesmo destino aos sobrinhos, que tiveram que fugir de Mbanza Kongo e atravessar o rio Zaire. Makongo por ser o mais velho fez a distribuição das terras entre ele e os irmãos. Em mais uma versão, conta-se que a princesa Meu Puenha gerou três filhos antes de passar pelas cerimônias da puberdade, delito considerado grave pelos conselheiros do rei e resultou na expulsão da jovem. Esta atravessou o rio Zaire e se casou com Mibinbi Pukuta que era rico e nobre. O Rei do Congo, ao saber do casamento da sobrinha deu-lhe ordens para tomar conta dos reinos do Ngoio, Cacongo e Loango.

19 Fonte htt//www.gpcabinda.com/noticiasnsimbote.cfm?id=23, acessado em 25/05/2009. 36 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes A cidade de Cabinda possui um conjunto diversificado de habitantes o que fica evidente no estudo realizado por BICALO (2006:50) onde identificou moradores oriundos de várias etnias da província como os Bawóio, Bakuakongo, Balinge, Baluango, Basundi, Baiombe, Bavili, Bakotchi e pessoas de outras partes do país como os bassonrongos e kimbundos, emigrantes como cabo-verdianos, santomenses, portugueses e dos dois Congos. A transição inter-fronteiras é um fenômeno característico do continente africano e se faz presente em Angola e, de forma especial, na província de Cabinda, jogando um importante papel na composição demográfica local, pois as demarcações oficiais de fronteiras não coincidem com as “fronteiras étnicas”, contribuindo para que diferentes povos transitem, de um lado para outro das fronteiras oficiais (MENEZES, 2000:98), resultando na existência de membros de uma mesma família, distribuídos entre os três países (Angola- Cabinda, República Democrático do Congo e República do Congo), o que reforça a mútua influência lingüística, musical, artesanal, culinária, na indumentária e nos rituais religiosos. Este aspecto peculiar da sociedade cabindense nos remete a definição de sociedade cunhada por ELIAS (1994:23) quando afirma que “essa rede de funções que as pessoas desempenham uma em relação á outra, a ela e nada mais, que chamamos de sociedade”. Nessas redes de interdependências tanto pessoal quanto territorial – como é o nosso caso –, [...] cada pessoa singular está realmente presa; está presa por viver em permanente dependência funcional com outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não menos fortes.

Consideramos que o pensamento de GIDDENS (2005:38), pode complementar esta idéia, uma vez que, para ele a sociedade “é um sistema de inter-relações que conecta os indivíduos uns com os outros” e as relações sociais existentes entre estes são estruturadas em consonância a uma cultura.

37 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 1.3 - A instituição dos pesquisados

A Universidade 11 de Novembro (UON) é uma instituição de Ensino Superior criada a partir do Decreto nº 7/09 de 12 de Maio que estabelece a reorganização da rede de instituições de Ensino Superior Público, a criação de novas instituições de Ensino Superior e o redimensionamento da Universidade Agostinho Neto. Ela é dirigida por um Reitor, coadjuvado por um Vice-Reitor para Área Acadêmica, um Vice-Reitor para Área Científica e um Pró-Reitor para a Cooperação, todos nomeados pelo Conselho de Ministros conforme o Decreto nº 47/09 de 11 de Setembro. Engloba as Províncias do Zaire e Cabinda sendo esta última a sua sede. De acordo ao Decreto de sua criação, ela é constituída pelas seguintes unidades orgânicas: 1) Instituto Superior de Ciências de Educação, 2) Faculdade de Direito, 3) Faculdade de Economia, 4) Faculdade de Medicina e 5) Instituto Superior Politécnico todas na Província de Cabinda. Na Província do Zaire está a Escola Superior Politécnica, conhecida por Escola Superior Politécnica de M`banza Kongo. Quanto ao número de cursos, em 2010, a UON albergou catorze (14) cursos no nível da licenciatura, distribuídos da seguinte forma:

 O Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), Unidade Orgânica com cinco (5) cursos, nomeadamente: Pedagogia, Ensino de Psicologia, Ensino de História, Ensino da Matemática e Ensino de Biologia;  A Faculdade de Direito, com um (1) o curso de Ciências Jurídicas com três opções, a partir do 5º e último ano: Ciências Jurídico- civis, Ciências Jurídico-política e Ciências Jurídico-económica;  A Faculdade de Economia, com o curso de Economia e Gestão de Empresas;  A Faculdade de Medicina, com o curso de Medicina;  A Escola Superior Politécnica de M´banza Kongo, com os cursos de Gestão de Empresa, Ensino de Psicologia, Ensino da Química, Ensino da Física e Ensino da Matemática.

38 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Sobre a UON podemos ressaltar ainda que na ausência de um campus universitário – está em construção – capaz de congregar no mesmo espaço as distintas faculdades, atualmente, encontram-se pulverizadas em pontos diferentes da Cidade de Cabinda, algumas em instalações cedidas provisoriamente como é o caso do ISCED. Sobre o ISCED interessa-nos realçar que, sendo ele uma Unidade Orgânica, é dirigido por um Decano e coadjuvado por dois Vice-Decanos sendo, um para a Área Acadêmica e o outro para a Área Científica, nomeados pelo Secretário de Estado para o Ensino Superior através do Despacho 101/09 de 22 de dezembro de 2009. Constituem objetivos fundamentais desta instituição, a formação de professores para o ensino de base, para o ensino médio e superior e de pessoal qualificado no domínio da Educação, bem como promover a Investigação Científica. Ele nasce com a criação do Centro Universitário de Cabinda da Universidade Agostinho Neto20, em 1998, mas dependente científica e pedagogicamente do Instituto Superior de Ciências da Educação de Luanda (Capital de Angola), onde eram definidos os currículos, as disciplinas – tanto para inclusão e/ou exclusão de alguma delas –, os respectivos programas, as modalidades de avaliação, os docentes – admissão e/ou demissão –, etc. Até a sua emancipação para a categoria de Unidade Orgânica, em 2002, os professores vindos de Luanda, iam periodicamente a Cabinda a fim de dar

20Solicitado a falar sobre o histórico desta instituição, o seu Reitor destaca que “ao falarmos da Universidade Agostinho Neto, falamos do ensino superior público. Esta Universidade é o símbolo da soberania intelectual de Angola. O ensino superior em Angola iniciou em 1962, com os chamados Estudos Gerais Universitários. Esta foi uma tentativa de Portugal, no período colonial, para acalmar os ânimos dos portugueses que estavam em Angola, dos filhos dos colonos que residiam aqui e eram obrigados a ir para Portugal estudar. Ao mesmo tempo, esta foi uma forma de acalmar os ânimos da elite emergente angolana, os chamados assimilados, que foi criada pelo próprio sistema colonial. Os Estudos Gerais Universitários não eram uma instituição autônoma, visto que eram dependentes da universidade portuguesa. Em 1968, cria- se então a Universidade de Luanda, já uma instituição com autonomia administrativa, científica e acadêmica. A maior parte dos estudantes e dos docentes, algo como 99%, eram portugueses, por razões óbvias, sob o ponto de vista colonial, visto que nenhum sistema dominador tem interesse em criar elites locais, evitando assim protestos e reivindicações”. Acerca da expansão da universidade pelo país reforça: “fizemos um projeto para a expansão da Universidade a nível nacional para dar oportunidades aos jovens que não tiveram possibilidade de aceder aos estudos de ensino superior. Era da nossa responsabilidade criar oportunidades para que os jovens pudessem ter oportunidades nas Províncias. Nesta época, o Governo nos deu três objetivos principais: massificar, investigar e diversificar”. Foi no âmbito deste projeto que nasce o Centro Universitário de Cabinda e, concomitantemente o ISCED. (João S. Teta em entrevista a Winne World Investiment News, 23/5/2008 e disponível em http://www.winne.com/dninterview.php?intervid=2261) 39 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes as aulas. Muitas vezes, as aulas eram dadas nos fins de semana e as disciplinas lecionadas de maneira condensada e intensiva. Foi preciso um esforço muito grande para conseguir um corpo docente que pudesse dar sustentabilidade á instituição tendo recorrido, para o efeito, aos técnicos locais – sobretudo os que possuíam formação no nível de doutoramento – e á cooperação estrangeira. Atualmente, o Instituto Superior de Ciências da Educação, integrado a Universidade 11 Novembro, sendo uma de suas Unidades Orgânicas, nos termos da lei, goza de autonomia científica, pedagógica, administrativa, financeira, disciplinar e patrimonial. Naturalmente, essa autonomia deve ser exercida em harmonia com os interesses maiores da Universidade e respeitar as decisões e orientações dos órgãos de gestão da UON.

40 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes CAPÍTULO 2: BASES DA COOPERAÇÃO ENTRE ANGOLA E O BRASIL, A POPULAÇÃO ESTUDADA E A METODOLOGIA DE PESQUISA.

2.1. – Introdução

Por reconhecermos a relevância dos acordos diplomáticos celebrados entre o Brasil e Angola para a presença de estudantes angolanos no Brasil, consideramos ser importante explicitarmos, neste estudo, os passos que foram dados para sua concretização. Serão detalhados os seguintes pontos: os principais acordos de cooperação que alimentam as relações bilaterais entre República de Angola e a República Federativa do Brasil de 1980 a 2007, detalharemos também a caracterização da população do nosso estudo e a metodologia usada nesta pesquisa.

2.2 – Bases da cooperação entre a República Federativa do Brasil e a República de Angola: atos institucionais assinados de 1980 a 2007.

As relações entre a República Federativa do Brasil e a República de Angola remontam a partir do seu passado colonial comum. Mas, em 1975 quando Angola se torna independente de Portugal e o Brasil reconhece esse fato histórico, tendo sido o primeiro país do mundo a fazé-lo, é que essas relações se tornaram mais fecundas. De acordo às informações disponibilizadas pela Divisão de Atos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil21 existem, ao todo, trinta e quatro (34) atos de cooperação, em vigor, assinados entre os dois países de 1980 ao ano 2007. O primeiro ato firmado em Luanda, aos 11/06/1980, denominado “acordo de cooperação cultural e científica entre o governo da República Federativa do Brasil e o governo da República Popular de Angola” é composto por vinte (20) artigos que espelham no seu corpus alguns dos que devido a sua relevância para o nosso estudo comentá-los-emos aqui.

21 Disponível em www.mre.gov.br/dai/biango.htm, consultado aos 8/04/08. 41 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes O primeiro dos artigos do acordo prevê que as partes deveriam promover a cooperação mútua nos domínios da cultura, da educação e da ciência, da arte, e dos desportos e da comunicação social ao passo que o segundo realça a necessidade de estimular os contatos entre os estabelecimentos de ensino superior entre os dois países promovendo o intercâmbio de seus professores, por meio de estágios no território de outra parte, a fim de ministrarem cursos ou realizarem pesquisas, troca de delegações e documentação de caráter científico-pedagógico. O mesmo documento destaca ainda no seu artigo terceiro que cada parte contratante concederia ou estimularia a concessão de bolsas de estudo a nacionais da outra parte para iniciar ou prosseguir estudos, estágios, cursos de especialização ou de aperfeiçoamento e que, aos beneficiários dessas bolsas ser-lhes-ia concedida dispensas de exames de admissão e dos pagamentos de taxas de matrículas. Porém, as condições de envio e estadia destes bolsistas, no território de outra parte, seriam definidas em protocolos22 específicos. O convênio firmado entre as partes previu também a forma de anunciação da oferta de vagas que foi estabelecida com periodicidade anual, por via diplomática, sendo que os diplomas e títulos expedidos por instituições de ensino superior de uma das partes contratantes teriam validade no território da outra parte, desde que preenchessem as condições de equiparação exigidas pela legislação vigente em cada parte contratante. Por fim, é importante realçarmos, de igual modo, o artigo nono desse convênio que prevê que cada parte contratante esforçar-se-á por promover no território da outra o conhecimento do seu patrimônio cultural nomeadamente por meio de: a) conferências, colóquios e outras reuniões de caráter análogo; b) exposições artísticas, bibliográficas e outras; c) intercâmbio de grupos artísticos, musicais ou de folclore; d) intercâmbio de filmes, gravações em discos ou noutro material, de livros e periódicos, de publicações de caráter científico, cultural ou técnico.

22 O Manual do Estudante Convênio de Graduação (PEC-G) está disponível em http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/CelpeBras/manualpec-g.pdf, consultado aos 20/06/2008. O Manual do Estudante Convênio de Pós-graduação (PEC-G) pode ser consultado em http://www.capes.gov.br/export/sites/capes/download/bolsas/Manual_PECPG.pdf, consultado aos 20/06/2008. 42 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes A partir deste acordo “mãe” – ou, como diriam outras pessoas, acordo base ou ainda, “chapéu” – desenvolveu-se ações decorrentes dos parâmetros nele estabelecidos. Sendo assim, dentre as ações levadas a cabo podemos destacar aquelas que propiciaram a presença de angolanos estudantes em instituições de Ensino Superior brasileiras, respaldados pelo estabelecido nos artigos supracitados. É neste contexto que puderam ser testemunhadas, a partir do ano de 1990 até o de 2007, as graduações de trezentos e dezoito (318) angolanos – cuja caracterização quanto ao gênero, áreas de formação, regiões do Brasil em que estudaram e outros aspectos serão detalhados mais adiante – em instituições de Ensino Superior brasileiras que se beneficiando dos atributos pré-estabelecidos entre as partes como, por exemplo, o reconhecimento dos estudos realizados numa das partes pela outra, dispensas de exames de admissão, dos pagamentos de taxas de matrículas e de outras taxas, hoje contribuem para o desenvolvimento de Angola em seus vários setores da vida nacional. Ao longo do período em referência (1980-2007), rubricaram-se trinta e quatro acordos entre as partes, mas foi no ano de 2003 onde se verificaram o maior (14)23 número deles. Revendo a evolução dos fatos históricos de Angola, as ações diplomáticas de 2003 têm a ver com o ano de 2002 que é considerado como o ano da paz, visto que, aos 4 de abril, assinou-se o cessar fogo definitivo entre o Governo de Angola liderado pelo Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Libertação Total de Angola (UNITA) dando fim, a uma guerra fratricida que já durava mais de um quarto de século. Penso que esse contexto criou as condições políticas mais favoráveis ao fortalecimento de relações com outras nações que pudessem caminhar no sentido de privilegiar o desenvolvimento socioeconômico, científico e cultural de Angola.

23 Fizeram-se alguns ajustes ao acordo de 1980 para contemplar especificamente projetos no âmbito da "Reorganização, Fortalecimento Institucional e Inovação Metodológica da Extensão Rural como Estratégia de Desenvolvimento Rural Sustentável em Angola, projetos no âmbito do meio ambiente, no âmbito do programa "Escola para todos", no âmbito do Fortalecimento Institucional dos Institutos de Investigação Agronômica e Veterinária de Angola, no âmbito do projeto do fortalecimento da Educação Ambiental em Angola, e outros. Também se rubricaram vários protocolos, dentre eles um, no domínio dos petróleos.

43 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Embora o ano de 2003 tenha se destacado pelo número de atos institucionais rubricados entre os dois países, os precedentes também têm sua importância nestas relações bilaterais, pois, quatro anos depois, em 2007, rubricaram-se, em Luanda, entre outros atos, o ajuste complementar ao acordo de Cooperação Econômica, Científica e Técnica para Implementação do projeto de "Capacitação para a Reforma Curricular" que já vinha acontecendo em Angola desde 2001 e um memorando de entendimento para Incentivo à Formação Científica de Estudantes. O esforço resultante dos grupos de trabalho que contaram com a participação de muitos dos angolanos graduados no Brasil e de técnicos contratados através deste ajuste complementar ao acordo, possibilitou adequar o Ensino Superior público24 angolano à nova realidade do país e a reforma curricular do ensino geral que modificou o sistema vigente que se subdividia em ensino do primeiro nível (da 1ª à 4ª classe), segundo nível (5ª e 6ª classe), terceiro nível (7ª e 8ª classe), o ensino médio profissionalizante e o não profissionalizante, ambos com duração de quatro anos cada. A reforma do sistema educativo, aprovada pela lei 13/01, de Dezembro de 2001, cuja implantação é faseada até o ano escolar de 2011, incluiu novas divisões dos níveis de ensino, alterações no sistema de avaliação dos alunos, criação de novas disciplinas e reformulação dos conteúdos curriculares para corresponder às expectativas de valorização humana e de desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Ela alarga em dois anos o ensino primário de mono-docência, que passa a abranger da 1ª a 6ª classe, dispondo cada classe de apenas um professor para todas as disciplinas. Por outro lado, é criado um complemento do ensino básico, entre a 7ª e a 9ª classe, acabando com a denominação de ensino médio que abrangia no sistema vigente os níveis de ensino entre a 9ª e a 12ª classe. Com esta reforma, o ensino secundário é dividido em dois ciclos, sendo o primeiro entre a 7ª e a 9ª classe e o segundo entre a 10ª e a 12ª classe. Relativamente ao ensino técnico-profissional, que passa a ter uma duração de quatro anos, a principal alteração introduzida com a reforma tem a ver com o facto de apenas poderem aceder a ele os alunos que completem o 9º ano de

24Criaram-se seis (6) novas universidades públicas, perfazendo sete (7) universidades, em igual número de regiões acadêmicas. 44 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes escolaridade (9ª classe) e não o 8º ano (8ª classe) como acontecia anteriormente. Em relação às ações relativas ao memorando de entendimento para incentivo à formação científica de estudantes universitários, de acordo com os dados que tivemos acesso, em 2010, por exemplo, disponibilizaram-se oitenta (80) vagas para estudantes universitários angolanos ingressarem nesse programa que viabiliza, no período de férias, estágios nas universidades brasileiras, em áreas previamente selecionadas. Especificamente nesse ano, os estágios estavam direcionados para sete Universidades Federais nomeadamente a Universidade Federal do Ceará (11 vagas), Universidade Federal de Goiás (6 vagas), Universidade Federal da Grande Dourados (4 vagas), Universidade Federal de Rio Grande do Sul (46 vagas), Universidade Federal de Santa Catarina (2 vagas), Universidade Federal de Santa Maria (4 vagas) e a Universidade Federal de Uberlândia (7 vagas). Tomando como base os acordos aqui referenciados e outros que talvez não tenham chegado ao nosso conhecimento, podemos dizer que as relações entre o Brasil e Angola são fecundas. É, portanto, ancorados nesses acordos que muitos angolanos deslocaram-se ao Brasil a fim de realizarem seus estudos universitários e, ao fim destes, conforme estabelecem os princípios reguladores destes programas25 retornarem para Angola.

25 Acerca das regras relativas ao regresso ao país dos alunos formados através dos programas PEC-G e PEC-PG, podem ser consultados os manuais disponíveis também na internet.

45 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 2.3 – Angolanos formados no Brasil, no nível de graduação, de 1990 a 2007.

Os dados obtidos no DCE do MRE no Brasil possibilitaram-nos perceber que ao longo desse período formaram-se no Brasil, no nível da graduação, trezentos e dezoito (318) angolanos cujas áreas26 de concentração dos cursos variam bastante. Porém, apesar disso, há áreas com um grande número de estudantes e outras, com uma incidência menor. A diversidade dos estudantes angolanos nesses cursos teria a ver principalmente com a disponibilidade de vagas oferecidas pelas Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras com base nas condições negociadas nos acordos de cooperação firmados entre os governos dos dois países, tal como vimos atrás, que levavam em consideração as áreas prioritárias que contribuiriam na estabilização e no desenvolvimento do país. É nessa conformidade que podemos ver que em cada momento histórico do país, há algumas áreas que mais se destacam e outras não em número de formados. Por exemplo, nos primeiros anos da vigência acordo “mãe”, num momento em que o país estava mergulhado em guerra fratricida, a área das Ciências da Saúde, Ciências Sociais Aplicadas e Engenharias sobressaem-se as demais áreas. A essa planificação, naturalmente, conformam-se, posteriormente, as instituições estatais e privadas financiadoras de bolsas de estudos por parte de Angola e até pelo Brasil assim como aqueles indivíduos em condições custear, por conta própria, seus estudos no Brasil quando optam por usar o convênio tinham que contar-se com as vagas disponibilizadas. De acordo com a distribuição/classificação das carreiras universitárias dos angolanos graduados no Brasil no período em referência, os quarenta e quatro (44) cursos identificados podem ser redistribuídos em oito (8) áreas de concentração, a saber: Ciências Humanas; Ciências da Saúde; Ciências Biológicas; Ciências Exatas e da Terra; Engenharias; Ciências Sociais

26 Para a análise desses dados relativamente às carreiras e áreas de concentração das mesmas, tomou-se como referência a classificação/distribuição feita pela Universidade Federal de Minas Gerais para os cursos ministrados na graduação: Ciências Humanas; Ciências Biológicas; Ciências Exatas e da Terra; Engenharias; Ciências da Saúde; Ciências Sociais Aplicadas; Ciências Agrárias; Lingüística, Letras e Artes. Disponível em http://www.ufmg.br/cursos. Consultado aos 10/06/2008.

46 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Aplicadas; Ciências Agrárias; Lingüística, Letras e Artes. Porém, é na área das Ciências da Saúde em que se concentram a maior parte das carreiras (9) e o menor número na área de Lingüística, Letras e Artes, com apenas uma (1) carreira no total. Na Tabela 1 onde algumas destas informações estão elucidadas, podemos ver nela também que apesar da área das Ciências da Saúde concentrar o maior número de carreiras, não é nela que se encontra o maior número de graduados. Eles estão na área das Ciências Sociais Aplicadas com 36,79% do total de graduados, sendo o curso de Economia o que deteve o maior índice (13,50%). Entre estes graduados, há três cujo curso e área de concentração não foi declarado, totalizando 0,94% dos graduados. Quanto ao índice de homens e mulheres entre os graduados, há 199 (cento e noventa) homens e 119 (cento e dezenove) mulheres. Tanto para as mulheres quanto para os homens, o curso de Economia é onde está o maior número. No primeiro caso, são 21(vinte e uma) mulheres que fizeram o curso o que representa 17,6% do total delas. Para os homens, são 22(vinte e dois) o que representa 11% do total destes, sendo que a grande maioria dos angolanos (177) graduou-se em instituições de Ensino Superior situadas na região Sudeste do Brasil. Destacaremos estes dados nas tabelas que apresentaremos na seqüência.

47 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 2.3.1 – Carreiras e áreas de concentração das carreiras dos angolanos

Embora os cadastros da Diretoria de Registro Acadêmico da Universidade Federal de Minas Gerais indiquem a presença de angolanos estudantes nesta instituição, ainda no fim do ano da proclamação da independência de Angola (ver GOMES, 2002), em 1975, um número expressivo de ingressantes em instituições de ensino superior brasileiras, a partir das ações decorrentes do acordo de cooperação rubricado entre as partes, em 1980, somente acontece a partir da segunda metade da década de oitenta cuja conclusão dos cursos começa no início da década de 90. Como se pode ver na Tabela 1, as carreiras da área das Ciências Sociais Aplicadas concentram 36,79% dos graduados angolanos, seguido pelas Engenharias (19,49%), Ciências da Saúde (15,72%), Ciências Humanas (8,80%), Ciências Exatas e da Terra (8,40%), Ciências Agrárias (5,03%), Ciências Biológicas (4,08%) e outras. Quando analisamos as carreiras prioritárias nessas áreas, vemos que de acordo com o momento histórico que o país vivia, destacam-se carreiras como, Economia, Direito e Administração com quarenta e oito (48), vinte e oito (28) e vinte e um (21) graduados entre todos os angolanos. Na área das Engenharias, o curso de Engenharia de Minas e o de Engenharia Civil ocupam entre os graduados, 15 vagas cada no período. Na área das Ciências Médicas, o curso de Medicina e o de Enfermagem & Obstetrícia têm, respectivamente, vinte (20) e onze (11) graduados no período, tal como podemos ver espelhado na tabela a seguir.

48 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tabela 1: Distribuição das carreiras e áreas de concentração das carreiras dos angolanos que concluíram os cursos no Brasil de 1990 a 2007.

Nº. Carreiras Freqüência % Áreas de concentração Total das carreiras Freq. % 1. Enfermagem & Obstetrícia 11 3,45 2. Farmácia 02 0,62 3. Medicina 20 6,28 Ciências da Saúde 50 15,72 4. Educação Física 04 1,25 5. Fisioterapia 07 2,19 6. Nutrição 01 0,31 7. Biomedicina 01 0,31 8. Odontologia 03 0,94 9. Fonoaudiologia 01 0,31 10. Biologia 12 3,77 Ciências Biológicas 13 4,08 11. Genética & Melhoramento 01 0,31 12. Ciências da Computação 12 3,77 13. Matemática 01 0,31 Ciências Exatas e da 27 8,49 14. Geofísica 01 0,31 Terra 15. Análise de Sistemas 01 0,31 16. Física 03 0,94 17. Geologia 09 2,83 18. Engenharia Química 09 2,83 19. Engenharia Eléctrica 11 3,45 62 19,49 20. Engenharia Mecânica 08 2,50 21. Engenharia Naval 03 0,94 Engenharias 22. Engenharia de Minas 15 4,71 23. Engenharia de Pescas 01 0,31 24. Engenharia Civil 15 4,71 25. Veterinária 07 2,19 16 5,03 26. Agronomia 05 1,57 Ciências Agrárias 27. Fitotecnia 03 0,94 28. Engenharia Florestal 01 0,31 29. Arquitectura & Urbanismo 11 3,45 30. Ciências Contábeis 07 2,19 31. Direito 28 8,80 32. Administração 21 6,60 Ciências Sociais 117 36,79 33. Economia 43 13,50 Aplicadas 34. Geografia 01 0,31 35. Jornalismo 01 0,31 36. Comunicação Social 05 1,57 37. Publicidade e Propaganda 01 0,31 38. Ciências Políticas 03 0,94 Ciências Humanas 28 8,80 39. Pedagogia 04 1,25 40. Psicologia 09 2,83 41. Relações Internacionais 03 0,94 42. Ciências Sociais 07 2,19 43. Relações Públicas 01 0,31 44. Letras 02 0,31 Lingüística, Letras e Artes 02 0,62 45. Não declarada 03 0,94 Desconhecida 03 0,94 46. Total 318 100,0 - 318 100,0 Fonte: Elaborado com base nos dados fornecidos pelo DCE-MRE do Brasil, aos 18/04/2008.

49 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 2.3.2 – O gênero, carreiras e áreas de concentração das carreiras dos angolanos graduados no Brasil de 1990 a 2007.

Tabela 2: Distribuição das carreiras entre angolanos graduados no Brasil de 1990 a 2007, por gênero. Gênero No. Carreiras Masculino Feminino Total Freq. % Freq. % Freq. %

01 Enfermagem & Obstetrícia 04 1,3 07 2,2 11 3,4 02 Farmácia 01 0,3 01 0,3 02 0,6 03 Medicina 11 3,5 09 2,8 20 6,2 04 Educação Física 04 1,3 00 0,0 04 1,2 05 Fisioterapia 03 0,9 04 1,3 07 2,2 06 Nutrição 01 0,3 00 0,0 01 0,3 07 Biomedicina 00 0,0 01 0,3 01 0,3 08 Odontologia 01 0,3 02 0,6 03 1,0 09 Fonoaudiologia 00 0,0 01 0,3 01 0,3 10 Biologia 03 0,9 09 2,8 12 3,7 11 Genética & Melhoramento 00 0,0 01 0,3 01 0,3 12 Ciências da Computação 05 1,6 07 2,2 12 3,7 13 Matemática 01 0,3 00 0,0 01 0,3 14 Geofísica 01 0,3 00 0,0 01 0,3 15 Análise de Sistemas 00 0,0 01 0,3 01 0,3 16 Física 01 0,3 02 0,6 03 1,0 17 Geologia 07 2,2 02 0,6 09 2,8 18 Engenharia Química 04 1,3 05 1,6 09 2,8 19 Engenharia Eléctrica 11 3,5 00 0,0 11 3,4 20 Engenharia Mecânica 07 2,2 01 0,3 08 2,5 21 Engenharia Naval 03 0,9 00 0,0 03 1,0 22 Engenharia de Minas 09 2,8 06 1,9 15 4,7 23 Engenharia de Pescas 01 0,3 00 0,0 01 0,3 24 Engenharia Civil 14 4,4 01 0,3 15 4,7 25 Veterinária 04 1,3 03 0,9 07 2,2 26 Agronomia 04 1,3 01 0,3 05 1,5 27 Fitotecnia 03 0,9 00 0,0 03 1,0 28 Engenharia Florestal 01 0,3 00 0,0 01 0,3 29 Arquitectura & Urbanismo 08 2,5 03 0,9 11 3,4 30 Ciências Contábeis 02 0,6 05 1,6 07 2,2 31 Direito 19 6,0 09 2,8 28 8,8 32 Administração 17 5,3 04 1,3 21 7,0 33 Economia 22 6,9 21 6,6 43 14,0 34 Geografia 01 0,3 00 0,0 01 0,3 35 Jornalismo 00 0,0 01 0,0 01 0,3 36 Comunicação Social 02 0,6 03 0,9 05 1,5 37 Publicidade e Propaganda 01 0,3 00 0,0 01 0,3 38 Ciências Políticas 02 0,6 01 0,3 03 0,9 39 Pedagogia 03 0,9 01 0,3 04 1,2 40 Psicologia 06 1,9 03 0,9 09 2,8 41 Relações Internacionais 03 0,9 00 0,0 03 0,9 42 Ciências Sociais 05 1,6 02 0,6 07 2,2 43 Relações Públicas 00 0,0 01 0,3 01 0,3 44 Letras 02 0,6 00 0,0 02 0,6 45 Não declarada 02 0,6 01 0,3 03 1,0 46 Total 199 62,6 119 37,4 318 100 Fonte: Elaborado com base nos dados fornecidos pelo DCE-MRE do Brasil, aos 18/04/2008.

50 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Em relação ao gênero, o número de homens supera ao de mulheres em 25,2% totalizando cento e noventa e nove (199) graduados, diferentemente ao de mulheres que é de cento e dezenove (119) correspondendo a 37,4% do total de graduados. Quando analisamos os dados por carreiras, podemos perceber que elas estão em número menor em quase todas elas mas, é nos cursos da área de Engenharia onde é maior o desequilíbrio em quase 100% dos graduados em relação aos homens. Nessa área, por exemplo, todos os graduados em Engenharia Civil (100%) e 93,3% da carreira de Engenharia de Minas são homens. Contudo, conforme vêem demonstrando os estudos a esse respeito, estas carreiras são tradicionalmente mais aderidas por homens do que mulheres. Quando analisamos os dados relacionados ás áreas de concentração das carreiras, o cenário não difere. Enquanto elas superam aos homens na área das Ciências Biológicas (3,1%) e empatam nas Ciências da Saúde com 7,9% para cada gênero, nas demais áreas os homens são a maioria. Ao fazermos, em Cabinda, o levantamento dos dados referentes aos professores angolanos formados no Brasil que atuam como docente em Instituições de Ensino Superior nesta província de Angola se constatou também que o número de homens supera ao das mulheres coadunando com os índices aqui apresentados.

Tabela 3: Distribuição das áreas de concentração das carreiras e gênero dos angolanos graduados no Brasil de 1990 a 2007. No. Gênero Total Áreas de concentração das carreiras Masculino Feminino Freq. % Freq. % Freq. % 01 Ciências da Saúde 25 7,9 25 7,9 50 16,0 02 Ciências Biológicas 03 0,9 10 3,1 13 4,0 03 Ciências Exatas e da Terra 15 4,7 12 3,8 27 8,4 04 Engenharias 49 15,4 13 4,1 62 19,4 05 Ciências Agrárias 12 3,8 04 1,3 16 5,0 06 Ciências Sociais Aplicadas 71 22,3 46 14,5 117 36,7 07 Ciências Humanas 20 6,3 08 2,5 28 9,0 08 Lingüística, Letras e Artes 02 0,6 00 0,0 02 0,6 09 Não declarada 02 0,6 01 0,3 03 0,9 10 Total 199 62,5 119 37,5 318 100 Fonte: Elaborado com base nos dados fornecidos pelo DCE-MRE do Brasil, aos 18/04/2008.

51 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 2.3.3 – Regiões geográficas em que estudaram e áreas de concentração das carreiras dos angolanos graduados no Brasil de 1990 a 2007.

Os dados em nossa posse ilustram-nos que a maioria (55,6%) dos angolanos graduados no período, fizeram seus estudos na região sudeste do Brasil e o menor número (4,4%) no norte. Concomitantemente quando vemos esses dados pela óptica do gênero, constata-se que elas foram a maioria (8,8%) no sul, comparando ao número de homens na mesma região que é de 6,9% do total de formados. Mais uma vez, essa distribuição obedece a critérios que estão fora do controle dos estudantes, visto que, estes são definidos com base nos acordos firmados que levam em consideração as necessidades das partes.

Tabela 4: Distribuição das instituições de Ensino Superior em que se graduaram os angolanos no Brasil por regiões geográficas e gênero.

No. Regiões Instituições Formados por região Total geográficas do de Ensino Masc. Fem. Brasil27 Superior por F % F % F % região 01 Norte 02 07 2,2 07 2,2 14 4,4 02 Nordeste 11 31 9,7 12 3,8 43 13,5 03 Centro-oeste 04 21 6,6 13 4,1 34 10,7 04 Sudeste 24 118 37,1 59 18,5 177 55,6 05 Sul 10 22 6,9 28 8,8 50 15,7 06 Total 51 199 62,6 119 37,4 318 100 Fonte: Elaborado com base nos dados fornecidos pelo DCE-MRE do Brasil, aos 18/04/2008.

27 Distribuições das regiões geográficas de acordo com a informação de IBGE/Geografia Homem & Espaço de Elian Alabi Lucci, Editora Saraiva – 2000, disponível em http://www.brasilrepublica.com/mapa.htm, consultado aos 16/08/2008. 52 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes

Gráfico 1: Angolanos graduados no Brasil de 1990-2007 por regiões geográficas e IES.

r graduados r Angolanos por egião 200 180 160 140 120 100 IES por região 80 Alunos por região 60

egião 40 20

0 Norte Nordeste Centro- Sudeste Sul oeste Regiões geográficas do Brasil

Fonte: Elaborado com base nos dados fornecidos pelo DCE-MRE do Brasil, aos 18/04/2008.

Tabela 5: Distribuição dos angolanos graduados no Brasil de 1990-2007, por regiões e áreas de concentração dos cursos.

No. Áreas de Regiões geográficas do Brasil Total concentração dos Norte Nordest Centro Sudest Sul cursos* e -oeste e 01 Ciências Humanas 01 01 10 15 01 28 02 Ciências Biológicas 00 00 01 09 03 13 03 Ciências da Saúde 05 03 05 26 11 50 04 Ciências Exatas e da 00 02 05 17 03 27 Terra 05 Engenharias 01 18 03 27 13 62 06 Ciências Sociais 05 12 05 82 13 117 Aplicadas 07 Lingüística, Letras e 00 00 01 01 00 02 Artes 08 Ciências Agrárias 00 03 06 05 02 16 10 Total 12 39 36 182 46 315 * Na lista em nosso poder, três graduados estão sem as áreas de concentração dos cursos e as regiões do Brasil. Fonte: Elaborado com base nos dados fornecidos pelo DCE-MRE do Brasil, aos 18/04/2008.

53 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes

2.3.4 – Angolanos formados no Brasil, docentes no ISCED-UON e outras instituições do Ensino Superior na Província de Cabinda em Angola.

Embora nosso estudo estivesse limitado aos docentes do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) da Universidade Onze de Novembro (UON) consideramos pertinente realizar um levantamento mais pormenorizado acerca de todos os angolanos formados no Brasil e que atuam como docentes em Instituições de Ensino Superior na Província. Foi nessa perspectiva que fizemos a busca nas instituições universitárias sediadas na província de Cabinda (Universidade Aberta; Instituto Superior de Ciências da Educação-ISCED; Faculdade de Economia; Faculdade de Direito; Faculdade de Medicina; Universidade Lusíada de Angola pólo de Cabinda-ULPC e Instituto Superior Privado de Angola-ISPRA) para averiguar tal fato. Identificamos, ao todo, 15 (quinze) docentes angolanos formados em universidades do Brasil – incluindo o pesquisador. Do número apurado, três (03) estão no ISPRA, três (03) na ULPC, dois (02) da Faculdade de Economia e sete (07) no ISCED – incluindo o pesquisador – sobre os quais incidiu o nosso olhar investigativo. Nessa conformidade, analisando os dados concentrados nas tabelas (6, 7, 8 e 9) e gráficos (1, 2 e 3) que apresentaremos na seqüência, podemos verificar que dos angolanos que estudaram no Brasil e que atuam como professores universitários na província de Cabinda, a maioria (11) é do sexo masculino. Por outro lado, tomando como base o ano por eles indicado como sendo o dos seus retornos para Angola, o tempo médio de permanência no local de estudos é de oito (8) anos e efetivou-se do ano 1996 ao ano 2003 sendo que a maioria (5) regressou no ano 2001. As carreiras concentram-se, em maior número (4) na área das Ciências Sociais Aplicadas onde se destaca o curso de Economia e o de Arquitetura com dois (2) formados cada. O menor número de carreiras verificou-se nas Ciências Biológicas e nas Ciências Exatas e da Terra com um (1) formando em cada uma delas sendo um (1) em Biologia e o outro em Química respectivamente. Esta realidade coaduna com os dados atrás analisados que indicam um índice menor de formandos angolanos nas áreas das Ciências Biológicas e nas Ciências Exatas e da Terra onde se

54 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes formaram respectivamente 8,4% e 10% dos 318 angolanos que concluíram os cursos, de 1990 a 2007. A maioria (38,6%) dos concluintes concentrou suas formações na área das Ciências Sociais Aplicadas (cf. tabela 3). Ainda sobre os angolanos formados no Brasil e docentes do ISCED, podemos acrescentar ainda que a exceção de dois (2), a maioria já exercia a docência antes de partir em estudos ao Brasil (cf. tabela 10). Esta constatação remete-nos à realidade verificada junto aos angolanos estudantes da UFMG (Gomes, 2007) quando se analisou suas ocupações antes da ida ao Brasil e o exercício da docência destacava-se, em primeiro lugar, como a actividade remunerada mais realizada entre os entrevistados. Um dos entrevistados dizia que ser professor em Angola era uma actividade inerente à condição da maioria dos jovens angolanos.

Eu fui professor, como a maioria dos jovens angolanos, a gente termina a 8ª classe vai dar aula na 1ª, 2ª, 3ª e 4ª classe; termina o ensino Médio; vai dar aula na 8ª classe. Quando vai para a faculdade, no 2º ano, vai dar aula no ensino Médio então, essa era a minha vida. Eu dividia os afazeres com as obrigações nas FAPLA, onde eu trabalhava, com as aulas. Lecionava História e Geografia Econômica nessas escolas do 2º grau e no Ensino Fundamental. (GOMES, 2007:18)

Tabela 6: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil que trabalham como docentes no ISPRA por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola.

N Gênero Carreira Área de Tempo de Ano retorno concentração permanência para das carreiras no Brasil Angola (anos) 01 M Arquitetura Ciências 08 2002 02 M Arquitetura Sociais 08 2002 03 M Direito Aplicadas 07 2001 Fonte: Levantamento feito junto aos formados, em Cabinda, no período de 07 a 20/08/2008. 55 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes

Tabela 7: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil que trabalham como docentes na ULPC por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola.

N Gênero Carreira Área de concentração Tempo de Ano retorno das carreiras permanência para no Brasil Angola (anos) 01 M Economia Ciências Sociais 07 2001 02 M Economia Aplicadas 07 2001 03 M Sociologia Ciências Humanas 09 2003 Fonte: Levantamento feito junto aos formados, em Cabinda, no período de 07 a 20/08/2008.

Tabela 8: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil que trabalham como docentes na Faculdade de Economia por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência Brasil e ano de retorno para Angola.

N Gên. Carreira Área de concentração Tempo de Ano retorno das carreiras permanência para no Brasil Angola (anos)

01 Masc. Administração Ciências Sociais 07 2001 aplicadas

02 Masc. Agronomia Ciências Agrárias 12 1997 Fonte: Levantamento feito junto aos formados, em Cabinda, no período de 07 a 20/08/2008.

56 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tabela 9: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil que trabalham como docentes no ISCED-Cabinda** por gênero, carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola.

N Gênero Carreira Área de concentração das Tempo de Ano retorno carreiras permanência no para Angola Brasil (anos) 01 Masc Pedagogia 07 2000/1 02 Masc. Pedagogia Ciências Humanas 09 2003/1 03 Masc Sociologia 10 2004/1 04 Fem Pedagogia 06 1996/2 05 Fem Biologia Ciências Biológicas 07 2001/2 06 Fem Química Ciências Exatas e da 09 2003/1 Terra Fonte: Levantamento feito junto aos formados, em Cabinda, no período de 07 a 20/08/2008. **Embora não esteja incluído na tabela o próprio pesquisador faz parte deste grupo.

Gráfico 2: Representação dos docentes universitários angolanos formados no Brasil, por instituições de ensino, no ano 2006.

8 7

6 ULPC 5 ISPRA 4 3 ISCED-Cabinda Docentes 2 Faculdade Economia 1 0 ULPC ISPRA ISCED-Cabinda Faculdade Economia Instituições de Ensino

57 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Gráfico 3: Representação dos docentes universitários angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil e que atuam em Cabinda por gênero.

3

Homens Mulheres

11

Gráfico 4: Representação dos docentes universitários angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil que atuam em Cabinda por tempo de permanência no Brasil.

1 1 3 6 anos 7 anos 8 anos 5 9 anos 12 anos 4

58 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tabela 10: Professores angolanos do ISCED graduados no Brasil, por gênero e anos de experiência na docência antes e depois da formação.

Nº Gênero Experiência Experiência docente depois Tempo total docente antes da formação no Brasil (anos) na docência da formação no Brasil (anos) 01 Masculino 15 08 23 02 Masculino 03 09 12 03 Feminino 03 07 10 04 Masculino 05 04 09 05 Feminino 00 12 12 06 Feminino 00 08 08 Fonte: Levantamento feito junto aos formados, em Cabinda, no período de 07 a 20/08/2009.

59 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 2.4 - METODOLOGIA

Dado o problema atrás descrito, sua complexidade, e os princípios teóricos que orientam tal pesquisa, optei por uma abordagem qualitativa e quantitativa, pois, a meu ver, permitir-me-ia chegar à compreensão ou interpretação deste fenômeno, com base nas perspectivas dos atores e através da participação em suas vidas o que possibilitaria compreender bem as situações deles de maneira mais clara. Nesse sentido, para conseguir captar, a maneira como essas pessoas vêem a si mesmas, suas experiências e práticas na docência, fez-se necessário o uso de uma abordagem que permitisse conhecer os fenômenos sociais e humanos, as perspectivas implícitas nas ações e nos discursos dos atores envolvidos, reconhecendo-os a partir da sua condição de professores universitários. Portanto, optei por fazer um estudo de caso, pois essa técnica possibilita ao pesquisador “reunir informações tão numerosas e tão detalhadas quanto possível com vistas a apreender a totalidade de uma situação”28. ROESE (1998:193) acrescenta ainda que o estudo de caso nos permite responder como e por que aquelas características específicas que observamos são possíveis, em um quadro teórico mais amplo; como as grandes tendências se manifestam, ou não, em realidades sociais concretas. Portanto, diz ele, a especificidade do caso é o traço diferenciador dessa técnica, o que, ao contrário de ser uma característica fragilizadora, é a sua grande força. Ele enfatiza ainda que, através de estudos de casos, “muitas vezes, a vida de uma comunidade, que é um facto cotidiano e banal para esta, é reconstituída pelo cientista e mostra aspectos inusitados e que suscitam grandes questões sociológicas”. Becker (1997), em sua obra Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais, ressalta que,

O estudo de caso geralmente tem um propósito duplo.

28 Bruyne et all, 1991: 224-225 Apud ROESE, M., 1998:189.

60 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Por um lado, tenta chegar a uma compreensão abrangente do grupo em estudo: quem são os seus membros? Quais são suas modalidades de actividade e interação recorrentes e estáveis? Como elas se relacionam umas com as outras e como o grupo está relacionado com o resto do mundo? Ao mesmo tempo, o estudo de caso também tenta desenvolver declarações teóricas mais gerais sobre regularidades do processo e estrutura sociais.

O mesmo autor ressalta também que o pesquisador que efetua o estudo de caso sobre uma comunidade ou de uma organização, normalmente faz uso do método de observação participante aliada, muitas vezes, a outros métodos mais estruturados, tais como as entrevistas, que podem realizar-se isoladamente ou em grupo. Nas entrevistas individuais – diz ele – o pesquisador poderá “examinar as origens sociais e as experiências anteriores de um participante, assim como suas opiniões particulares sobre questões correntes”. Porém, fazê-las em grupo poderá fornecer-lhe aspectos que são mais perceptíveis por meio da interação do indivíduo com os outros no interior do grupo, pois “a diferença entre opinião particular e comunicação pública pode fornecer indicações importantes das normas de convivência do grupo”. Para colher as informações que precisávamos para clarificar o nosso objeto de estudo, de acordo com a proposta metodológica aqui adotada que privilegia o trabalho intensivo com um número pequeno de informantes e que coaduna também com a proposta investigativa seguida pelos estudos culturais29 que, segundo Schulman (In: JOHNSON et al, 1999), buscam investigar de forma intensiva os significados da experiência humana, na medida em que eles se efetivam na linguagem e em outras práticas de significação, procurando também examinar de forma sistemática as práticas institucionais, a estrutura da sociedade e os movimentos políticos contemporâneos, tais como se manifestam nas práticas políticas e educacionais utilizando o trabalho de campo etnográfico, a entrevista, a análise de textos e de discurso e, por outro lado, olhando para os estudos de TARDIFF e LESSARD (2007:8) que ressaltam que “a maioria dos

29 Acerca dos estudos culturais britânicos pode ser lida a obra de JOHNSON, R. et all. O que é, afinal, estudos culturais? Belo Horizonte:Autêntica, 1999.

61 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes pesquisadores em Ciências da Educação reconhece plenamente, agora, a importância de partir da análise dos contextos cotidianos nos quais atuam os agentes da educação, para melhor descrever e compreender sua atividade, com suas particularidades e seus pontos fortes”, entrevistaram-se30 individualmente quatro (4), dos seis (6) professores do grupo alvo. Os dados colectados visavam obter informações acerca das traduções que estes docentes fazem no processo, no manejo da sala de aula, na metodologia de ensino, nos parâmetros que balizam a relação professor-aluno, nos usos dos meios didáticos e da língua portuguesa. Por outro lado, é importante realçarmos que na impossibilidade de podermos presenciar in loco, como pesquisadores, a atuação profissional desses professores, sujeitos do nosso estudo, pelo fato de ser pesquisador e ao mesmo tempo fazer parte da comunidade estudada, portanto, participando ativamente da mesma vida institucional com a maior parte dos alunos e dos professores envolvidos no estudo o que traria alguns constrangimentos por causa da minha presença na sala de aulas, optou-se por colher e analisar os dados que seriam captados via observação direta, através das informações que saíram da voz dos próprios docentes, dos questionários aplicado aos discentes e da análise de documentos institucionais pelo que se fez necessário do uso do método de análise documental que, nas palavras de LUDKE e ANDRÉ (1986:38), “pode se constituir numa técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja complementando as informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema”.

30 Fiz entrevistas no modelo não estruturado, que consiste na não padronização das questões a serem dirigidas ao informante, mas, sim, no apontamento de alguns tópicos que servem de base para que não nos perdermos, ou seja, não corrermos o risco de deixar de lado aspectos importantes do estudo. Pois, como bem ressalta THOMPSON (1992:258), “a entrevista completamente livre não pode existir, já que, para começar, já é preciso estabelecer um contexto social, o objectivo deve ser explicitado, e pelo menos uma pergunta inicial precisa ser feita; e isso tudo, juntamente com os pressupostos não expressos, cria expectativas que moldam o que vem a seguir”. Nesse sentido, os tópicos circundaram aspectos inerentes ao processo avaliativo utilizado pelo professor, na metodologia de ensino, nos usos da língua portuguesa, nos parâmetros da relação professor-aluno e na trajectória escolar – ver entrevistas em anexo. 62 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 2.4.1 – Sobre os procedimentos das entrevistas aos docentes.

Tal como estava previsto no projecto que apresentamos e reafirmado aqui em linhas atrás, nossa intenção foi sempre a de trabalhar intensamente com um número pequeno de informantes do grupo alvo. Nesta perspectiva, para optarmos pelos professores que foram entrevistados cujos alunos concomitantemente questionados, fizemo-lo levando em consideração a carreira que o docente fez no Brasil, o tempo de permanência no Brasil, o ano de retorno para Angola e o tempo de exercício da docência em Angola. Nesse sentido, trabalhou-se com dois (02) professores da área das Ciências Humanas, uma (01) docente da área das Ciências Biológicas e uma (01) docente das Ciências Exatas e da Terra conforme está explicitado na Tabela 11. As entrevistas duraram, em média, trinta (30) minutos cada. Realizaram- se no local que parecia melhor ao entrevistado desde que oferecesse as condições para tal. Dessa forma, três (3) efetuaram-se no local de trabalho e uma (1) em um espaço fora do local de trabalho, porém, previamente combinado. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente por mim e remetidas aos entrevistados para que, se necessário, pudessem fazer os ajustes julgados pertinentes tendo em conta a temática em estudo. A devolução das entrevistas transcritas aos inquiridos cumpria uma dupla função. Por um lado permitia, mais uma vez, a implicação do entrevistado à pesquisa e, por outro lado, poderíamos ajustar aspectos considerados pertinentes para a pesquisa que tenham escapado no momento da entrevista. Uma vez entregue, concluído o período combinado para o retorno, devolveram-nos sem a necessidade de se acrescentar nem retificar nada. Sendo assim, concordamos de que os textos estavam coerentes.

63 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tabela 11: Angolanos formados em Instituições de Ensino Superior no Brasil que trabalham como docentes no ISCED-Cabinda entrevistados em 2009, por carreira, área de concentração da carreira, tempo de permanência no Brasil e ano de retorno para Angola.

N Carreira Área de concentração das Tempo de Ano retorno carreiras permanência no para Angola Brasil (anos)

01 Filosofia Ciências da Educação 08 2001/1

02 Pedagogia 06 1996/2

03 Biologia Ciências Biológicas 07 2001/2

04 Química Ciências Exatas e da Terra 09 2003/1

2.4.2 - Sobre os procedimentos da aplicação dos questionários aos alunos.

Para a apreensão dos traços do hibridismo cultural nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras, prevíamos ouvir os próprios docentes e também os seus discentes. É nesta senda que aplicamos, ao todo, setecentos e trinta e um (731) questionários aos alunos do curso de Pedagogia, Ensino Psicologia, Ensino da Matemática e Ensino de História do segundo ao quarto ano destes cursos. Deste total, quatrocentos e vinte e nove (429) questionários destinaram-se ao levantamento dos dados referentes à atuação de professores angolanos que estudaram no Brasil e os demais (302) para obter informações dos professores cuja formação universitária foi realizada em Angola. Estes últimos buscamo-los para conhecer de suas práticas, mas, sobretudo para que servisse também de ponto de comparação entre os dados que resultariam do questionário aplicado aos discentes dos seus colegas que estudaram no Brasil. Quanto ao procedimento da aplicação dos questionários este foi aplicado aos alunos que estavam presente na sala aula. Uma vez entregue ao aluno, após um período de tempo pré-definido (1 hora/aula) para responderem

64 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes era, em seguida, recolhido. Todos os questionários eram devolvidos no ato da aplicação não sendo permitido entrega posterior. Mesmo correndo o risco de receber o questionário com algumas incoerências no preenchimento das respostas, tomamos essa decisão para evitarmos que levassem o questionário e não o devolvesse, o que acontece com freqüência quando usamos instrumentos como estes na recolha de dados. Para a aplicação foi, previamente combinado com o docente da disciplina que correspondia ao horário para que nos dispensasse uma (01) hora/aula. Durante a aplicação, segundo a informação dos aplicadores, não ouve necessidade de acréscimo de tempo. Para diminuir a contaminação nos dados, considerando o fato de ser docente destes alunos que seriam questionados, pessoalmente apliquei o questionário piloto aos delegados das turmas – equivalente a chefe de turma no Brasil –, cujos alunos responderiam ao questionário, para treiná-los afim de que pudessem saber como proceder no momento da aplicação aos seus colegas. Foi a forma que encontramos para diminuir um pouco a inferência sobre o resultado do inquérito, pois a minha presença no ato da aplicação poderia dar maior ou menor influência (negativa ou positiva) no resultado. Após a aplicação, feitos os levantamentos, consideram-se válidos somente os questionários respondidos corretamente sem fugir dos parâmetros orientadores e sem deixar nenhuma pergunta sem resposta. Foi partindo destes parâmetros e considerando o número de alunos presentes ás aulas nos dias da aplicação do instrumento é que totalizaram-se setecentos e trinta e um (731) questionários distribuídos sendo, 120 para os alunos do curso de Pedagogia; 94 para os alunos do curso de Ensino de Matemática; 108 para os alunos do curso de Ensino de História e 107 para os alunos do curso de Ensino de Psicologia totalizando 429 que responderam o questionário relativamente aos docentes que estudaram no Brasil. Por outro lado, os 302 alunos respondentes ao questionário acerca das práticas docentes dos professores que não estudaram no Brasil, 83 são do curso de Pedagogia; 69 do curso de Ensino de Matemática; 77 do curso de Ensino de História e 73 do curso de Ensino de Psicologia. Ao separá-los por disciplinas, os 731 respondentes ao questionário temos a seguinte configuração: 65 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes  Relativamente aos docentes que estudaram no Brasil Disciplina A – 117 estudantes Disciplina B – 105 estudantes Disciplina C – 122 estudantes Disciplina D – 085 estudantes

 Relativamente aos docentes que não estudaram no Brasil Disciplina E – 110 estudantes Disciplina F – 100 estudantes Disciplina G – 092 estudantes

66 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes CAPÍTULO 3 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.1 – Os Estudos Culturais

Nós partimos do princípio de que as experiências migratórias – sendo elas definitivas ou temporárias, como as vivenciadas pelos sujeitos deste estudo – deixam marcas nestas pessoas resultando-as em sujeitos híbridos, cuja identidade estaria fundamentada em duas ou mais culturas diferentes e se manifestando sob uma forma de negociação ou não com a nova cultura, ao mesmo tempo em que propicia um densenraizamento parcial em relação à cultura de origem, colocando-o numa situação de tensão constante. Para CANCLINI(2003), o hibridismo é o “processo sociocultural no qual as estruturas ou prácticas discretas que existiam separadas se combinam para gerar novas estructuras, objectos e prácticas”. (grifo meu) Analisando a experiência dos universitários angolanos no Brasil (GOMES, 2007) constatou-se que estes, para além de estar na condição de imigrantes temporários, situação que por si só já abre espaço para o surgimento de conflitos resultantes da interação com outras culturas e que os conduz ao aparecimento de estruturas híbridas, também se encontravam imersos nos meandros da cultura escolar universitária exercendo o ofício de aluno (PERRENOUD, 1995). Nesse sentido, as características específicas desse ofício exigem dos migrantes adequações radicais e de maneira rápida para conseguir corresponder ás demandas desse lugar de aprendente (idem) no que tange as maneiras de procederem-se diante do professor e dos colegas, e diante dos saberes ali repartidos e negociados, mas, também, para adequar-se às formas de ouvir e falar, nas formas de conceber os tempos e os espaços, etc., pois viver a experiência da migração significa ver-se obrigado a negociar com as novas culturas, sem ser totalmente assimilado por elas e sem perder completamente a própria identidade (Fernando Ortiz, 1963 apud CARREIRA, 2004). Sobre “os produtos” culturais resultantes dos processos interativos entre pessoas de origens diferentes, sobretudo nas situações entre migrantes e autóctones, Stuart HALL (2000) destaca que essa co-presença espacial e

67 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes temporal de sujeitos de origens diferentes e o conseqüente intercâmbio cultural gerado por essas circunstâncias, levam ao processo pelo qual os grupos migrantes selecionam e recriam o que lhes é transmitido pelos autóctones gerando, como efeito, o hibridismo. Por sua vez, a identidade híbrida não é mais nenhuma das identidades originais, embora guarde traços dela. (HALL, op cit) Nessa conformidade, para entender melhor os processos sócio-culturais que envolvem os sujeitos deste estudo, buscamos amparo teórico nos estudos culturais e nos estudos sobre a Sociologia da Educação com ênfase para o trabalho docente. No primeiro caso, fazemo-lo porque embora originalmente estes tenham sido, segundo ESCOSTEGUY (1999:136), uma “invenção britânica, hoje, na sua forma contemporânea, transformaram-se num fenômeno internacional não estando mais confinados ao território de sua origem espraiando-se para outros territórios”. Sendo assim, dada a sua contribuição no tratamento dos fenômenos culturais na investigação, concebendo-os de uma maneira interdisciplinar relacionado-a ao contexto cultural onde nos encontramos, acreditávamos que uma ancoragem teórica nessa vertente nos seria útil, pois nas palavras de HALL(1980:7), “os estudos culturais não configuram uma „disciplina‟, mas uma área onde diferentes disciplinas interagem, visando o estudo de aspectos culturais da sociedade”. Na sua essência, os estudos culturais podem incluir na sua discussão a pós-modernidade, a globalização, a força das migrações e o papel do estado- nação e suas representações sobre o processo de construção das identidades (HALL, 2006; BHABHA, 1998; BURKE, 2003), temas estes em que se enquadram também os aspectos em epígrafe neste estudo. Contudo, importa ressaltarmos aqui que embora sabendo que os estudos que focalizam o hibridismo cultural tenham como foco principal os indivíduos na nova cultura, nossa decisão de nos apoiarmos em estudos culturais se deu com vistas à compreender a influência dos traços resultantes das vivências no Brasil desses (as) angolanos (as), professores (as) universitários (as) em Angola, no espaço geofísico e sócio-cultural de sua origem. Ou seja, ver de quê maneira esses sujeitos que viveram na condição de imigrantes temporários no Brasil, agora regressados (as) a sua terra de origem, traduzem na sua atuação como docente as influências das culturas dos países para os quais se deslocaram, ao 68 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes voltarem ao país de origem e como as referidas influências são traduzidas nas relações com seus alunos, em todas as suas práticas pedagógicas. A vinda desses estudantes para universidades brasileiras e a sua formação nas suas unidades remete à caracterização que Pierre Bourdieu faz dessas instituições e de seu papel no mundo ocidental, a saber: trata-se de um importante espaço de domínio do capital cultural. A condição que marca a presença de estudantes angolanos nas universidades brasileiras se define por aquilo que Homi Bhabha (1998) chama de “deslocamento cultural”, ou seja, condição que reflete a vida de pessoas que saem de suas culturas de origem para viverem ou realizarem seus objetivos em “terras alheias”, em outras culturas. Seguindo essa trilha argumentativa, pretendeu-se, na presente tese, situar todos os procedimentos teórico-metodológicos “nas margens deslizantes do deslocamento cultural”, vivenciadas por alguns docentes angolanos que estudaram fora de seu país natal. (idem, p.46). Assim, para se construir, como diria Bhabha, uma “perspectiva teórica comprometida”, tomou-se o “hibridismo” cultural e histórico do mundo pós- colonial como “lugar paradigmático de partida” (op. cit.). Para melhor esclarecer o que se está a dizer com “perspectiva teórica comprometida” usa-se o mesmo paralelo que Bhabha fez entre teoria e ativismo. No nosso caso, a distinção é de outra natureza, o foco centrou-se no paralelo entre “teoria” e “prática pedagógica”. Entretanto, cuidou-se para não distingui-las, como muitas vezes ocorre nas análises acerca do trabalho docente, ao ponto de obscurecer os “diferentes efeitos” que elas produzem no dia-a-dia da sala de aula (op. cit.). Seguindo a lógica proposta por esse autor, traduzindo-a para o nosso objecto de estudo, pode-se dizer que tanto a teoria quanto a prática pedagógica são formas discursivas e como tais, elas “produzem muito mais os objetivos aos quais elas referenciam, do que os refletem”. Segundo Bhabha, a diferença entre essas duas formas discursivas reside em “suas qualidades operacionais” (idem, p.46). Em função disso, buscou-se na análise dos relatos dos professores entrevistados, de um lado, identificar os elementos que emergem da prática docente e que, nessa condição, organizam os processos de ensino e 69 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes aprendizagem “temporalmente” vinculados ao “fazer em sala de aula”. E de outro, inventariaram-se as diferentes “teorias educacionais” que estavam subjacentes ou até mesmo explicitadas nos relatos dos docentes, por meio dos quais eles justificam suas práticas pedagógicas. As teorias que emergem nesse contexto e nas condições acima descritas aparecem, como salienta Bhabha, sob “formas híbridas”. É aí que reside o grande desafio das investigações sobre práticas que se concretizam nessas situações “enigmáticas”. Essas teorias não estão prontas. Elas são construídas na própria ação e, por isso, “são caracterizadas por tensões e ambivalências”. (BHABHA, op. cit p. 47) Na presente tese, tentou-se tratar a teoria não como algo pré-fabricado, mas como algo que “acompanha a passagem da história” nos relatos dos professores entrevistados. O primeiro passo foi evitar identificar na fala dos docentes relações binárias que separam pólos rigidamente, tais como: cultura do professor e cultura do aluno, cultura escolar e cultura não escolar, enfim, evitaram-se as polarizações estruturantes. Em geral, esse modelo que analisa os relatos dos sujeitos dicotomizando as relações no mundo foi visto (e ainda o é) como “crítico”. Pelo menos foi assim que esse tipo de análise foi considerado nas teorias educacionais. No estudo, por nós empreendido, a idéia do “discurso crítico” foi concebida na perspectiva de Bhabha, ou seja, como sendo aquele que abre um espaço para a “tradução”, esta é, segundo ele, “um lugar do hibridismo” (BHABHA, op. cit. p.51)

3.1.1 - Tradução cultural

Tradução, esse foi o conceito chave utilizado nesta tese. Por isso é fundamental desenvolvê-lo para que se esclareça o uso que dele foi feito. É claro que aqui nos referimos à tradução em sentido metafórico, mais amplo. Não se trata de tradução de uma língua para outra, mas, sim, de um tempo para o outro, de uma cultura para outra. A maior parte dos exemplos que Bhabha se apóia para examinar as “provações da tradução cultural” é tirada de 70 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes relatos de sujeitos que vivenciaram experiências pós-coloniais em África, Ásia e América caribenha31. Este é, também, o caso dos sujeitos que fizeram parte de nosso estudo, vivendo em diásporas experimentaram aquilo que Agostinho Neto chamou de “paradoxo do homem disperso”. Este, talvez, ocorra porque, como destaca Stuart HALL (2009:29), na diáspora, “as identidades se tornam múltiplas”. Aos elos estabelecidos anteriormente em Angola ou em outras viagens seguidas de longas permanências, juntar-se-ão outros laços com sujeitos de diferentes diásporas que se assemelham quando se está em “terra dos outros”. (GOMES, 2007) Para se aprofundar o conceito de tradução cultural tal como foi concebido pelos autores acima mencionados, é preciso analisá-lo tendo como pano de fundo a “experiência da diáspora”. Stuart HALL (2009:28) insiste na pergunta sobre qual é o papel dessa experiência na identidade cultural dos grupos e povos que a viveram. Para ele, esta é “uma questão conceitual, epistemológica e empírica”. Ainda nessa linha de raciocínio, Bhabha insiste no caráter imitativo da tradução cultural, destacando, entretanto, seu tom de travessura e deslocamento. No fundo, não se trata de uma reprodução pura do original, mas de uma simulação, por meio da qual se cria uma nova expressão cultural. Ressalta-se que, na presente pesquisa, a questão se aproxima pelo viés do “hibridismo”, ou seja, da produção dessa vivência diaspórica. O hibridismo não é aqui uma mescla, mas um terceiro espaço entre elas. “Espaço liminar a partir do qual são produzidas novas significações” (BAHBHA, 1990). Em que a tradução influencia a prática docente de profissionais que retornam à Angola para lecionar? Essa foi uma das perguntas que orientou a coleta de dados do nosso estudo. Os casos que serão analisados mais à frente correspondem à migração de sujeitos provocada por uma política de Estado, tal como se apresentou no capítulo anterior, com vistas à qualificação de quadros para desempenho de funções institucionais. Esta migração, junto com outras motivadas por outras causas, provocou e ampliou o movimento de dispersão de povos e

31Sobre esse tema, conferir a obra de DENNIS, Ferdinand & KHAN, Naseen (org) Voices of the Crossing. The Impact of Britain on Writers from Asia, The Caribbean, and Africain, London: Serperten´s Tail, 2000. 71 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes comunidades para diferentes partes do mundo. Esses emigrados, no Brasil, experimentaram com angolanos da diáspora o inevitável sentimento de dispersão cultural. “Como cada disseminação”, segundo Stuart Hall, “carrega consigo a promessa de retorno redentor” (op. cit , p.28), foi “a volta à Angola” que se transformou no foco da presente tese. Não se trata mais de vivências na diáspora, mas da “tradução” cultural em um espaço do qual se saiu por um tempo determinado e a ele se retorna para devolver o que se aprendeu nesse interstício de tempo. A contribuição que Bhabha e Hall deram, respectivamente, para entender a criação, na fase da modernidade dita pós-colonial, foi fundamental na análise dos relatos dos nossos professores transnacionais. O ponto central da contribuição desses autores é no campo do conhecimento, ou mais precisamente, é a reviravolta epistêmica que eles trazem para a “produção de sentido” em contextos em transição. Em direção oposta aos paradigmas epistemológicos que prevalecem ainda de forma dominante nas análises de discursos ou de relatos biográficos, tanto Hall quanto Bhabha, embora analisando experiências e produções culturais diferentes, apontam, cada um à sua maneira, para um procedimento analítico que ou expressa “o local da cultura” (BHABHA, op. cit.) ou fundamenta a “formação de um intelectual diaspórico” (HALL, 2006:385-409) no mundo contemporâneo. A intervenção na vida coletiva depende de nossa capacidade de “traduzir” os signos em espaços nos quais interagem diferentes culturas. Em sentido amplo, a tradução na perspectiva de Homi Bhabha é uma prática social e cultural. E como ela se exercita no interstício de diferentes culturas, sua influência transcende a noção de “local” habitualmente usada. O sentido que Bhabha impinge à palavra “tradução” foi o mesmo que se utilizou nesta tese para analisar o relato dos professores entrevistados. Tanto na época em que eles estavam na condição de estudantes em um país estrangeiro quanto no momento em que se encontram como docentes de uma escola de ensino superior no país de origem, esses sujeitos vivem aquilo que Bhabha chamou de “cultura de entre-lugar” (BHABHA, op. cit, p.308). O mesmo autor reafirma que espaço da tradução “está impregnado de uma temporalidade do presente que evidencia o momento de transição” (op. cit, p.308). Dito de outra forma, ao traduzir uma cultura em outra, os sujeitos 72 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes tradutores estão envolvidos em um processo constante de construção, por isso, integralmente mutantes. A tradução diferentemente da interpretação (esta, como se sabe, constitui-se em importante instrumento da teoria da hermenêutica) apropria-se dos signos advindos das culturas diferentes, “traduzindo-os e re-historicizando- os” (BHABHA, op. cit.), fazendo com que a temporalidade na “tradução” seja sempre “descontínua, intertextual e de diferenças culturais” (idem) Por isso, na análise do relato dos professores, buscou-se identificar em suas falas como eles destroem as continuidades e as constâncias das práticas pedagógicas. Nessa descontinuidade, observou-se, também, como eles, nos relatos, negociam suas identidades culturais. E ainda, seguindo a trilha de Bhabha, assinalamos nos argumentos de cada professor, como eles falam de suas práticas pedagógicas traduzindo-as para “formas ocidentais modernas de tecnologia de informação e de linguagem” (BHABHA, op. cit.) e educacionais. Na tradução, diferentemente da interpretação, há uma assimilação de elementos contrários. Vem daí, por exemplo, a instabilidade que caracteriza todo o esforço de tradução. Não é por acaso que os docentes, ao traduzirem suas próprias práticas pedagógicas em outra cultura que não aquela que as geriu, fazem com que estas práticas se tornem para ele estranhamente visível. Para quem ouviu, em grande parte da vida, que a estabilidade (seja ela qual for) é um valor a ser atingido a qualquer preço, ter de admitir, no atual contexto, que a instabilidade se torna o padrão-ouro nas relações sociais, terá de se dedicar, com essa guinada de posição, a um longo processo de reeducação. Bhabha, de certa forma, ajuda a compreender a razão da instabilidade nas traduções. Segundo ele, o instável se instaura à medida que a tradução desloca a questão de apropriação da cultura “em direção a um encontro com o processo ambivalente de cisão e hibridização” (BHABHA, op. cit. , 308). Por exemplo, os professores, ao falarem de suas práticas pedagógicas em sala de aula, deixam claro que, na maioria das vezes, ao tentarem traduzir seus aprendizados escolares no trato quotidiano com seus alunos, acabam transpondo, como diria Bhabha, “elementos que lhes são estranhos ou até avessos”, trazendo o risco de “corromper o cimento da comunidade” (idem). Assim compreendido, pode-se dizer que a cultura pedagógica traduzida pelos docentes contém em si uma “ansiedade (i)resolvível”. Isto ocorre porque essa 73 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes cultura traduzida, tenha-se consciência ou não, é fronteiriça e híbrida (BHABHA, op. cit. 309). Ao traduzir uma teoria pedagógica, há um movimento em dupla direção, a saber: apropriação e perda. Pode haver a subversão da autenticidade dessa teoria. Por isso, é inútil querer que haja uma transposição ipisis lítteris. É impossível que isso ocorra a começar pela temporalidade da teoria e a da sua aplicação. Entre uma e outra, há uma completa disjunção. Haverá sempre elementos “intraduzíveis”. Parece-nos que é em função desse teor enigmático da tradução que faz Bhabha vê-la como um “ato transgressor” (idem). Outro aspecto importante que foi observado na análise dos relatos dos docentes foi o “presente” na tradução. Como as cosias se tornam presentes nas falas, seja por imagens ou pelo uso de tempo verbal o “presente do indicativo” ou o “presente histórico” que torna todo o passado reciclado por nosso olhar e para nossa experiência atuais. Na tradução, como ressalta Bhabha, o presente não reflete o que “é”, mas o que “está sendo”, ou seja, reflete algo em “transição”. E esta nem sempre é tranqüila, mas configura uma reescrita híbrida (disjuntiva) de uma experiência transcultural (BHABHA, op. cit. 310-311). É preciso lembrar que para o nosso autor, o “hibridismo é o sonho da tradução enquanto “sobrevivência” (idem). O termo “sobrevivência” aqui não tem nada a ver com a idéia de preservação de traços culturais, mas sim com a idéia de que a tradução é sobrevivência porque é o “ato de viver nas fronteiras”. Hibridismo confere, assim, o poder de transformar. No caso específico dos docentes que participaram do presente estudo, a preocupação central era saber como o hibridismo transformou o retorno deles à Angola. Teria ele representado uma nova re-inscrição de cada um dos docentes em seu mundo ou, como diria Bhabha, uma re-descrição de suas experiências? O trabalho de análise dos relatos cuidou assim de focalizar, nos mesmos, repetições de ironias insurgentes. O desafio, para mim e para o orientador, era “descobrir como o novo entra no mundo”. Como elaborar ligações entre os elementos instáveis das normas que os docentes teriam de seguir e a vida de cada um deles (a experiência)? Nas obras estudadas o novo assume diferentes conotações e é centralizado por aspectos os mais variados possíveis. Entretanto, na presente tese, o “novo” é medido, como propõe Bhabha, pela distância epistemológica 74 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes ou mimética de uma fonte original (op. cit, p 311). O “novo” no relato dos docentes (sujeitos migrantes) tem de ser descoberto in media(s) res (no meio das coisas). É bom lembrar que essa técnica de descobrir o novo proposta por Bhabha segue a sua tradição de crítico literário. As narrativas dos docentes começam no meio da história e não no seu início. Daí a pertinência de ressaltar nos relatos como os cenários e os conflitos são introduzidos por uma série de flashbacks, como os depoentes discorrem sobre eventos passados. (op. cit.). Seguindo as pistas de Bhabha, sustentamos a idéia de novo em nosso trabalho de pesquisa fixando-nos também no “elemento estrangeiro”, uma vez que este se revela, como lembra o autor, nos interstícios, ou seja, “no entre”. No nosso caso, o estrangeirismo é o elemento instável da ligação. É por meio dele, que aparecem as condições por intermédio das quais o “novo entra no mundo” (idem p.312). O elemento estrangeiro, nessa visão intersticial, “destrói as estruturas de referência e a comunicação de sentido original”. Mas como destaca Bhabha, não é negando esse sentido, mas sim negociando as “temporalidades culturais sucessivas” que são, ao mesmo tempo, preservadas e canceladas no “mecanismo histórico” (idem). O signo da tradução, diz Bhabha, “conta continuamente os diferentes tempos e espaços” (op. cit. 312). Ele põe o “original em funcionamento para descanonizá-lo, dando-lhe o movimento de fragmentação.” (idem). Em suma, buscou-se conservar na análise das traduções feitas pelos professores, a dialética da negação, para entender como eles transformaram o brasileiro em angolano. A preocupação maior na leitura atenta dos relatos era buscar identificar a tradução que os professores davam aos seguintes signos: professor, aluno, conteúdo escolar, avaliação e outros que se relacionam com a prática pedagógica. O cuidado foi o de fazer uso da tradução cultural para dessacralizar os pressupostos de supremacia cultural. Não existe um único conceito que seja superior ao outro por causa de sua origem cultural. Ao contrário, o procedimento metodológico adotado nesta tese exigiu que encontrássemos uma “especificidade contextual, uma diferença histórica no interior dos signos sociais” (op. cit p. 314)

75 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 3.1.2 – Hibridismo cultural

Outro conceito fundamental na composição da presente tese foi o de hibridismo. Hoje, este carrega em todas as suas manifestações um sentido claro de positividade que descreve atores em situações concretas no mundo moderno contemporâneo. Mas não foi sempre assim. Em passado recente, esse conceito significava outra coisa muito diferente do que é sustentado hoje pelos ideólogos do multiculturalismo. Talvez o conceito de hibridismo mostre, como nenhum outro do arsenal vocabular dos Estudos Culturais, o quanto um conceito é construto eminentemente histórico, podendo carregar um forte conteúdo ideológico. Ainda que há muito tempo se utilize o termo híbrido para se falar de culturas ou de línguas, a expressão no seu nascedouro referia-se a cruzamento de animais e povos. Hybride na língua francesa, em 1536, designava filhos de pais que provinham de espécies diferentes. Na Escola de Sociologia de Robert Park, o termo foi associado ao conceito de “homem marginal”. Viver à margem era viver entre duas culturas e não ser aceito por nenhuma delas. Era viver um conflito permanente. Na obra de Everett Stonequist, discípulo de Park, o termo não tinha o sentido glamourizado tal como hoje figura nas obras dos autores sobre os quais trabalhamos nesta tese. 32Híbrido era um ser que vivia um conflito moral, constante e sem trégua. Era a mistura de coisas diferentes e sem uma identidade confortável, podendo beirar à esquizofrenia. Segundo Park, "é na mente do homem marginal que a confusão moral ocasionada pelos novos contatos culturais se manifesta sob formas mais patentes". Como ressalta Lídia do Prado VALLADARES(2010:34), a obra de Park reflete o drama de indivíduos que vivem um conflito de culturas, que, por sua vez, é “um conflito do self dividido [divided self], do velho e do novo self. Para Park, portanto, o homem marginal é o produto de conflitos interculturais”. Entretanto o conceito toma novas configurações quando passa a refletir a realidade transformadora da América Latina, de Ásia e África pós-colonial. Traduções do conceito aparecem em ensaios de Fredrik Barth (1969). Ganha impulso e uma nova tradução nas reflexões de Nestor Garcia

32 Sobre esse recorte do hibridismo como patologia, cf. GONÇALVES, Luiz Alberto O. 76 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes CANCLINI(2003a, 2003b e 2005). Vale lembrar, em instigante artigo, Anderson Moebus RETONDAR(2011) ressalta nos textos de Canclini o poder do conceito de hibridismo cultural como chave-analítica para se compreender a modernização da América Latina. A incorporação do conceito de hibridismo cultural como um dos componentes da modernidade aparece, sobretudo, na obra de poetas africanos, como, por exemplo, Agostinho Neto, de onde surge a bela imagem do que ele mesmo chama de “paradoxo do homem disperso”. Outra extraordinária aplicação do referido conceito aparece em uma trilogia escrita pelo nigeriano, Ben OKRI(1991, 1993 e 1998), na qual o narrador dos romances é uma “criança- espírito” (abiku), poderoso símbolo da cultura yorubá, encarnado por uma criatura que está entre (between) o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Por meio desse narrador, Okri faz seus romances emergir em um espaço de transição entre a cultura africana e acultura ocidental (CARNONIERI, 2006)33. Na realidade, examinando os diversos autores que se dedicaram a esse tema, não nos parece ser um acaso, o fato de que na sua maioria são indivíduos que vivem a experiência do “homem disperso”, ou então são indivíduos que se preocuparam em focalizar o “estrangeiro” e suas experiências culturais. São sujeitos que vivem em diásporas ou advém de países colonizados, nos quais se definiram duplas nacionalidades, grafadas com hífens: hindu-ingleses, afro-caribenhos, afro-brasileiros, afro-ingleses e assim por diante. Não dá para analisar as obras desses autores sem levar em consideração essas condições sócio-históricas. Re-traduzir o conceito de hibridismo para esses indivíduos é uma questão de vida. Um estado da arte dessa mutação conceitual encontra uma bela acolhida na obra do historiador Peter Burke (2003). Por isso, o nosso trabalho limita-se apenas a mostrar como o referido conceito foi utilizado em nossa pesquisa. Inicialmente, ele foi tomado na perspectiva posta por Homi Bhabha, a saber: como um “modo de conhecimento a ser encontrado em um objeto ou em alguma identidade crítica hibrida (...) um processo para entender ou perceber o movimento em trânsito

33CARNONIERI, Divanize. Hibridismo e Simultaneidade no Romance The Famished Road de Bem Okri, dissertação, SP: FFCL/USP, 2006 77 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes ambíguo e tenso que acompanha qualquer tipo de transformação social (...) sem transcendências de condições complexas.

Hibridismo é visto por BURKE (2003:55) como sendo um termo escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e metafórico, descritivo e explicativo. Ele parece ser mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós-modernos (CANCLINI, 2006) pelo que, num período como o nosso em que vivemos cercados, por todos os lados, pelos “símbolos” da globalização que se expressam também, a meu ver, através dos encontros culturais cada vez mais freqüentes e intensamente visíveis, “é natural que haja uma preocupação com este assunto, pois a globalização envolve hibrididação” (op cit, p.14). Por essa razão, por mais que reajamos à globalização, não conseguimos nos livrar da tendência global para a mistura e a hibridização das práticas, dos hábitos e dos costumes, visto que, “todas as culturas estão envolvidas entre si e nenhuma delas é única e pura. Todas as culturas são híbridas e heterogêneas”. (Idem) Ainda sobre este assunto, CANCLINI (2006:XXIX) destaca que as fronteiras entre países e as grandes cidades são contextos que condicionam os formatos, os estilos e as contradições específicas da hibridação, pois, para ele, estas “rígidas” fronteiras estabelecidas pelos Estados Modernos se tornaram porosas e, portanto, impossíveis de impedir tais processos de “mistura”. Nessa conformidade, “poucas culturas agora podem ser descritas como unidades estáveis, como limites preciosos baseados na ocupação de um território delimitado”. No entanto, o mesmo autor salienta ainda que “essa multiplicação de oportunidades para hibridar-se não implica indeterminação, nem liberdade irrestrita”, visto que, a hibridação ocorre em condições históricas e sociais específicas, em meio a sistemas de produção e consumo que, ás vezes, operam como coações” conforme se percebe na vida de muitos migrantes (GOMES, 2007; SALES, 1999; PASTORE, 1969). Mesmo reconhecendo que a intensificação da interculturalidade favorece intercâmbios, misturas maiores e mais diversificadas do que em outros tempos, visto que, hoje podemos encontrar “gente que é brasileira por nacionalidade, 78 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes portuguesa pela língua, russa ou japonesa pela origem e católica ou afro- americana pela religião” o que desafia, mais uma vez, o pensamento binário de pertencimento a identidades puras e simples oposições, mesmo nesse cenário, há restrições a esse movimento misturador/incorporador fazendo nascer um processo de hibridização restrita em alguns círculos o que nos abriga a ser cuidadosos com as generalizações, pois apesar de estarmos imersos a uma imensidade de inpts culturais, isso não implica que os tenhamos que aceitar indiscriminadamente, realça CANCLINI(idem). Na tradução, como vista por Bhabha, há sempre uma negociação feita pelo tradutor ao comparar duas ou mais culturas. A esse respeito, Nestor Garcia Canclini oferece um retrato claro desta negociação ao insistir, por exemplo, na tensão entre tradição e modernidade. Uma condição não substitui a outra como imaginavam os teóricos do iluminismo. Alain Touraine (1995) recupera essa tensão a partir da obra de um dos construtores da sociologia, Max Weber. Este, segundo Touraine, não pensava o processo de secularização como seus seguidores o fizeram, ou seja, como sendo o fim do mundo tradicional. Ao contrário, Weber destacou que, na modernidade, de um lado, tinha o mundo da racionalidade instrumental que permeava a vida econômica, social, jurídica e religiosa e, do outro, o mundo dos valores, a “guerra dos deuses”, a tradição, valores que não só conflitavam entre si como se revoltavam contra a racionalidade técnica. (TOURAINE, 1995) Esse é o ponto de partida de Canclini. Ao pensar a América Latina, o autor identifica processos que fundem tradição e modernidade. Ali se instala, segundo ele, a base simbólica do desenvolvimento e sustentação do próprio projeto modernizador que implicaria “tanto em processos de racionalização quanto em movimentos marcados pela hibridação cultural” (CANCLINI, 2003a). Estes movimentos, no dizer do autor, refletem um fenômeno que ele denomina de “desterritorialização”, que está “repleto de tensões típicas da vida moderna” e que está no “centro da construção de estruturas e de projetos híbridos”(op. cit.). Canclini dá um sentido muito mais denso para o termo “desterritorialização”. Não se trata apenas de rupturas, mas de uma situação por meio da qual “se torna possível a convivência de distintas temporalidades históricas no interior de um mesmo espaço social. (op. cit.)

79 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Embora Canclini utilize o conceito de pós-modernidade para caracterizar esse fenômeno, no fundo, ele caba destacando não o fim da modernidade, mas, ao contrário, enfatiza a “aceleração de um processo” que no âmbito do próprio mundo moderno o torna uma “forma de convivência tumultuada entre o moderno e o tradicional”. Assim, com o conceito de desterritorialização, Canclini busca mostrar que não tem mais sentido falar em “fronteiras culturais rígidas”. Stuart Hall vê essa desterritorialização como “um princípio responsável não apenas pela circulação de formas culturais”, mas também “pela dissolução de um estatuto ontológico dessas formas” (HALL, op. cit.). Não há mais fronteiras fixas, porque no seu interior as práticas discretas que ali existem se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (CANCLINI, op. cit.). Isso é a hibridização. Como se pode ver, esses autores descartam a idéia de sincretismo, pois esse funciona para esclarecer tão somente o intercâmbio entre distintas culturas e não o seu confronto com outras esferas que não a cultural. Essa é a razão pela qual adotamos o conceito de hibridismo e não o de sincretismo para compreender as traduções feitas pelos docentes entrevistados em suas práticas pedagógicas. Com Bhabha, entendíamos esses professores como sendo pessoas cosmopolitas que “estão situadas entre duas (ou mais) culturas, tendo de estabelecer uma negociação ou tradução constantes entre os seus sistemas de valores” (BHABHA, 2000). Pareceu-nos que com esse conceito seria possível entender como a cultura escolar era recodificada pelos docentes ao serem confrontados com as experiências culturais vividas em outras esferas não escolares. Por exemplo, as fusões entre a cultura escolar e as culturas dos grupos étnicos, entre os estilos das diferentes gerações, entre valores locais e transnacionais. Recorrendo à realidade de Angola, podemos nos referir, por exemplo, uma pessoa que nascida e moradora na Província de Cabinda, tendo a mãe de Bengo cuja etnia é Kimbundu e o pai de Cabinda, da etnia Bacongo, ou vice- versa, este conviverá com os artefatos e manifestações culturais (língua, alimentação, rituais de passagem, rituais religiosos, etc.) e outras práticas de ambos os lados concomitantemente reconstituídos buscando formas de incorporar um pouco das duas partes. Ou, para buscar um exemplo menos doméstico poderíamos nos remeter à Peter BURKE (2003:15) que, para 80 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes mostrar algumas dessas formas de hibridização, se refere aos filmes de Bollywood produzidos em Bombaim que misturam canções e danças tradicionais indianas com convenções hollywoodianas. Há, ainda, outras áreas onde os traços do hibridismo podem ser encontrados como, por exemplo, na religião – no sincretismo religioso –34, na arquitetura, na literatura, na língua, na dança, na música, etc., considerando que nesta última área, a tecnologia facilitou bastante essa prática. Contudo, conforme reforça o autor acima citado, seria insensato assumir que o termo hibridismo tenha exatamente o mesmo significado em todos estes casos. Esse paradigma fez surgir alguns teóricos que se dedicam ao estudo do hibridismo, muitas vezes, fazendo-o a partir da sua própria condição de híbridos – possuem identidade cultural dupla ou mista – como, por exemplo, o caso de Homi Bhabha, indiano, exerceu a docência na Inglaterra e nos Estados Unidos; Stuart Hall, nascido na Jamaica e de descendência mista, viveu a maior parte de sua vida na Inglaterra onde cursou o Ensino Médio e Universitário e atua como professor, chegando a descrever-se a si próprio como sendo “vira-latas, o mais perfeito híbrido cultural” e ainda, Nestor Canclini que nasceu na Argentina e trabalha no México autodenominando-se como argemex, ou seja, uma nacionalidade que não existe documentada. Nesse grupo temos que incluir ainda Piter Burke que por sua história pessoal e profissional também se enquadra nessa realidade. A noção do híbrido ou hibridismo cultural, como vemos, implica no contacto com outra cultura, outras culturas e/ou outros objectos culturais. É nesse contacto ou, através desses contactos que se criam os espaços para que aconteçam as misturas – produtivas ou improdutivas35 –, nem sempre homogêneas e, obviamente, sem a ausência dos conflitos que, ás vezes, são

34 “Mahatma Gandhi, por exemplo, foi descrito como tendo criado sua própria religião, uma mistura idiossincrática de idéias hindus, islâmicas, budistas e cristãs” (BURKE, 2003:28). Outra referência de hibridação nesse campo é dada por CANCLINI (2006:XXVIII) quando diz que “(...)sem dúvida, é apropriado falar de sincretismo para referir-se à combinação de práticas religiosas pois, a intensificação das migrações, assim como a difusão transcontinental de crenças e rituais no século passado acentuaram essas hibridações e, ás vezes, aumentaram a tolerância com relação a elas, a ponto de que países como o Brasil, Cuba, Haiti e os Estados Unidos tornou-se freqüente a dupla ou tripla pertença religiosa”.

35 Ver CANCLINI, 2006:XXV.

81 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes gerados por esses processos que permitem-nos “entrar e sair da hibridez”36 da mesma forma como “se entra e se sai da modernidade”37. A partir desta perspectiva podemos entender que o hibridismo não é um estado fixo e permanente, mas, sim, um processo que envolve trânsito e provisionaridade, ou seja, “um processo o qual é possível ter acesso e que se pode abandonar, do qual podemos ser excluídos ou ao qual nos pode subordinar” o que permite entender melhor as posições dos sujeitos a respeito das relações interculturais, pois conforme nos esclarece CANCLINI (2006:XXVI) que

“o migrante nem sempre está especialmente disposto a sintetizar as diferentes estâncias de seu itinerário, embora – como é claro – lhe seja impossível mantê-la encapsulada e sem comunicação entre si, pois a oscilação entre a identidade de origem e a de destino, às vezes, leva o migrante a falar com espontaneidade a partir de vários lugares sem misturá-los, circulando, ocasionalmente, de um lugar a outro. Em outros casos, diz o autor, o sujeito “aceita” descentrar-se de sua história e desempenha vários papéis incompatíveis e contraditórios de um modo não dialético: o lá e o cá que são, também, o ontem e o hoje...” (grifo meu)

Conjugando com estas idéias de Canclini pode-se ver isso materializado no retrato feito por SALES (1999), a partir dos depoimentos dos imigrantes brasileiros nos Estados Unidos da América, e por GOMES (2007) quando analisa a experiência dos universitários angolanos da Universidade Federal de Minas Gerais no Brasil onde percebem que estes, mesmo procurando “guardar” suas identidades, não conseguem mantê-las encapsuladas desembocando, por isso, na incorporação inevitável de alguns aspectos da cultura brasileira para angolanos no Brasil e, da cultura norte-americana para os brasileiros nos Estados Unidos da América criando-se, aos poucos, com estas pequenas fusões, novas formas de falar, de pensar, de se relacionar com

36 Cornejo Pilar, 1997 in: CANCLINI, 2006. 37 Idem 82 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes as pessoas, de comer, de vestir, do gosto musical, enfim, criando-se novas formas de ser e de estar hibridizadas. Acerca destas situações ás quais estão expostos os migrantes na nova cultura, um dos entrevistados por GOMES (2007:94) chegou a afirmar que percebia, em vão, entre os colegas angolanos no Brasil, haver uma grande luta das pessoas em tentar guardar a linguagem angolana, ao mesmo tempo em que buscavam a adaptação necessária à linguagem brasileira. Portanto, preservar-se diante das demandas do novo meio para o imigrante não é uma tarefa fácil, pois, mesmo quando o entrevistado procura criticar a forma de falar dos outros colegas, como podemos ver, na sua própria fala, ao descrever a situação, consegue-se perceber também traços do hibridamento lingüístico entre o português “brasileiro” e o português usado em Angola.

“(...) essa galera que está aqui há mais tempo, quando nós chegamos, falavam „dji‟, „tchi‟ „jdipois‟ o tempo todo. Alguns já conseguem fugir do „dji‟, „tchi‟, „jdipois‟. Outros ainda não conseguiram fugir do „dji‟, „tchi‟, „jdipois‟. Tem gente que não tinha outra saída e foi falando „dji‟, „tchi‟, „jdipois‟ com o tempo. Essas pessoas lutam para voltar a falar „de‟, „te‟, „depois‟ ”.

Para GOMES (Idem), esse esforço desesperado, feito consciente ou inconscientemente para alcançar a correção dos aspectos estigmatizados de suas pronúncias, de seus léxicos (com todos os eufemismos) e de sua sintaxe, ou então, na confusão que os faz “ficarem sem ação”, tornando-os incapazes de “encontrar suas palavras”, como se ficassem de repente expropriados de sua própria língua (BOURDIEU, 1996:39) acaba, evidentemente, por deixar essas pessoas numa situação nada confortável social e lingüisticamente, pois, conservar a língua nos moldes da aquisição primária – considerando aqui como primária a língua portuguesa no estilo do país de origem – não é uma tarefa fácil para nenhum dos que vivem na “terra dos outros” e que estão expostos, constantemente, a forças proporcionalmente opostas entre si, em função da falta de reforços que garantam o equilíbrio entre os fatores a favor e os fatores contra a aquisição da língua dos “outros”, tanto na fala quanto na escrita.

83 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Recorrendo ao estudo de GOMES (ibidem) pode-se afirmar ainda que não seja somente a língua portuguesa que é hibridada nessas interações, mas também as formas usuais de lidar com outras pessoas, as maneiras de vestir, as formas de concepção dos tempos e espaços escolares, formas de concessão do mundo, etc., digamos, ás formas de ser, de fazer, de conhecer e de estar com os outros (DELORS, 2006), mistura essa que não é apagada neles à medida que abandonam a condição de imigrantes temporários ou, a condição de estrangeiro. É, portanto, movido por esses pressupostos teóricos que nos impeliu a estudar esta temática que teve em suas linhas como objetivo geral o de verificar o impacto das traduções dos traços do hibridismo nas práticas de docentes angolanos egressos de universidades brasileiras a partir da perspectiva de si próprios e na de seus alunos.

3.1.3 – Hibridismo cultural: algumas designações

Na tentativa de busca das contextualizações entre o nosso objeto de investigação e o hibridismo cultural, convém realçarmos que por causa das características e da diversidade de terminologias que procuram designar o mesmo fenômeno – o hibridismo cultural – cria-nos alguma dificuldade para apreender de maneira única e finita esse elemento, visto que, analisada a literatura sobre o assunto, podemos encontrá-lo como ensopadinho cultural, empréstimo cultural, caldeirão cultural, tradução cultural, crioulização (BURKE, 2003) e como outros que procuram cada um, a sua maneira, decifrar o mesmo fenômeno. Nessa conformidade, a diversidade de objectos híbridos é superada pela quantidade de termos que podem ser encontrados nos textos escolares que descrevem o processo de interação cultural e suas conseqüências. Para este autor, “temos palavras demais em circulação para descrever os mesmos fenômenos. Muitos dos termos são metafóricos o que os torna, ao mesmo tempo, mais vívidos e mais enganosos do que a linguagem simples”. (BURKE, 2003:39) Quanto ao empréstimo cultural, por exemplo, embora criticado, sobretudo antes da segunda metade do séc. XX, é uma das expressões usadas para designar o fenômeno hibridismo. Para demonstrar o lado 84 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes pejorativo que essa idéia adquiriu BURKE (2003:43), pautando-se em Henri Estienne, escreve sobre “chefes de famílias incompetentes” que pedem emprestados do vizinho o que já têm em casa. O mesmo autor, apoiando-se em Adamantios Korais, um dos líderes pela independência da Grécia, condenou o “empréstimo do estrangeiro de palavras e frases disponíveis na própria língua”. Porém, na segunda metade do Séc. XX, essa idéia adquiriu um sentido mais positivo tal como podemos perceber a partir das palavras de Edward Said (ibidem) que declara que “a história de todas as culturas é a história do empréstimo cultural”. Mais recentemente o termo “empréstimo” – e outros menos relativistas - vem sendo substituído por “troca cultural”. Porém, ressalta BURKE (2003:45), o termo “troca” não deve ser entendido como implicando que qualquer movimento cultural em uma direção está associado a um movimento cultural igual, mas oposto na outra direção. Para ele, a relativa importância do movimento em diferentes direções é uma questão para a pesquisa empírica o que reforçava, de alguma maneira, o nosso intento em pesquisar esta temática entre os angolanos egressos de universidades brasileiras. Contudo, como diz CANCLINI (2006:XXXIX), talvez a questão decisiva não seja estabelecer qual desses conceitos ou expressões abrange mais e é mais fecundo, mas, sim, como continuar a construir princípios teóricos e procedimentos metodológicos que nos ajudem a tornar este mundo mais traduzível, ou seja, convivível em meio a suas diferenças, e a aceitar o que cada um ganha e está perdendo ao hibridar-se. (grifo meu)

3.2 – O Trabalho docente: tecendo algumas considerações iniciais

Em nossa opinião, a prática da atividade docente desenvolve-se necessariamente em meio a um processo de constantes traduções entre os agentes que participam do processo de ensino e aprendizagem. TARDIFF e LESSARD (2007:9) definem a docência como uma forma particular de trabalho sobre o humano, ou seja, uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu “objecto” de trabalho, que é justamente um outro ser humano, no modo fundamental da interação humana. Para eles, pode-se 85 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes chamar interativo38 esse trabalho sobre e com outrem. Essa atividade social – acrescentam – chamada instrução vem se constituindo, progressivamente, numa dimensão integrante da cultura da modernidade, sem falar de seus importantes impactos sobre a economia e os demais aspectos da vida coletiva, sobretudo políticos, tanto é verdade que o conceito moderno de cidadania é impensável sem o de instrução, pois dificilmente poderemos compreender o mundo social, no qual hoje vivemos se não nos esforçarmos por reconhecer, antes de tudo, que a grande maioria de seus membros é escolarizada em diferentes graus e sob diferentes formas. Sendo assim,

(...) pode-se afirmar que o ensino em ambiente escolar representa em igual título que a pesquisa científica, o trabalho industrial, a tecnologia, a criação artística e a prática política, uma das esferas fundamentais de ação nas sociedades modernas, ou seja, uma das esferas em que o social, através de seus atores, seus movimentos sociais, suas políticas e suas organizações, voltam-se reflexivamente a si mesmo para assumir-se como objeto de atividades, projetos de ação e, finalmente, de transformações. (op cit)

É, portanto, mergulhado nestes pressupostos teóricos que considerávamos ser imprescindível na busca dos traços do hibridismo nas prácticas dos docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras que encaminhássemos nosso estudo procurando imergir profundamente no cotidiano destes professores com o intuito de poder percebê-los na sua condição de docente, a partir da perspectiva de si próprios, mas, também através dos seus alunos, tal como afirmamos atrás. Conhecer a cotidianidade destes professores ajudar-nos-ia, inevitavelmente a percebermos como é que essas pessoas lidavam com essa condição diante do simbolismo das interações propiciadas por essa “nova”

38 Ocupação cuja característica essencial é colocar em relação, no quadro de uma organização (escola, hospitais, serviços sociais, prisões, etc.), um trabalhador e um ser humano que se utiliza de seus serviços (Maheur & Bien-Aimé, 1996 Apud Tardiff e Lessard, 2007:19). 86 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes realidade – que ao mesmo tempo em que lhes é nova, não lhes é totalmente nova, pois em algum momento de suas vidas registraram-na, ou melhor, tiveram contacto com ela afinal, são “angolanos”. Nessa conformidade, entendíamos que é buscando nas entrelinhas de suas ações ligadas ás formas de concretização de suas aulas, nas formas de avaliação, nos mecanismos de se relacionarem com os alunos, nos métodos e recursos didáticos usados em suas aulas, na postura corporal e linguagem usada na sua interação com os alunos, etc., onde detectaríamos estes traços, pois, “a maneira que cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como pessoas quando exercemos o ensino” (NÓVOA, 1995:15, grifo meu), pois, segundo CATANI (2003:29),

“Quando o nosso próprio objeto de trabalho é a formação alheia, todas essas dimensões de nossa história pessoal ganham, evidentemente, maior relevo. Pensa-se que as próprias práticas profissionais dos indivíduos enquanto docentes devem muito aos processos formadores que eles próprios experimentaram ao longo de seu desenvolvimento”.

É pensando nessas diversas facetas do trabalho docente e suas imbricações com o hibridismo que mergulhamos no cotidiano destes professores angolanos egressos de universidades brasileiras, procurando entender como processam suas práticas. Apresentados os conceitos que foram utilizados na pesquisa, passaremos às questões que orientaram a análise e, logo a seguir, o Capítulo 4 onde apresentaremos os depoimentos dos professores e extratos condensados do questionário aplicado aos discentes porém, gostaríamos de realçar que no relato dos professores, buscou-se focalizar não os fenômenos sócio-culturais híbridos, mas os processos de hibridização que produziram esses fenômenos, a saber: o contínuo entre tradicional e o moderno, entre o popular e o massivo, entre o objetivo e o subjetivo.

87 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 3.3 – Quadros analíticos

3.3.1: INSERÇÃO DO NOVO NO MUNDO

Questões Docente Docente Docente Docente orientadoras Micanda Dituanga M´pemba Tunga N´zola Insurge-se Repete A docente se Afasta-se do contra a idéia insistentemente insurge com quadro de que se de que é a confusão institucional, tenha de dar preciso ter uma que o aluno quando um tratamento relação com o estabelece entende que diferenciado aluno “ombro a entre pode modificar ao estudante ombro”; liberdade e a avaliação de Repetições que se Insurge-se falta de alunos mais insurgentes caracteriza contra a respeito; velhos para como distância que Eles, não criar neles migrante, de se estabelece segundo ela, uma imagem outra cultura; em Angola “confundem de Repete essa entre professor as bolas”. desvalorização; recusa em e aluno. Isso é O novo para Entretanto, o várias o que tem de ela, em tudo novo só se passagens do mais terrível na que vivenciou configura relato; relação; em suas assim para ela O novo para O novo para diferentes quando ele está ela surge experiências consegue naquilo que quando esteve educativas, quebrar essa ele diz ter no Brasil e viu foi descobrir referência e aprendido no que em uma que era tratar todos Brasil: não instituição de possível ser segundo aquilo lidar com em superior é amigo dos que eles de diferenças na possível alunos e fato merecem. sala de aula romper com os exigir Passa da que não seja laços desempenho. deferência por de ordem tradicionais de status à cognitiva tratamento meritocracia Diferentes Um olhar Na sua A liberdade No Brasil, sua conotações que diferenciado experiência, a dos alunos na relação no um mesmo signo do professor docente foi relação com curso de pode ter ou da professora em seus mestrado foi instituição diferentes professores sustentada educacional escolas. no Brasil é pela em relação Inclusive em justificada compreensão aos escolas porque que os estudantes é religiosas; segundo a professores lhe desejável Os ensinos são docente lá os dedicavam quando estes conotados alunos sabem enquanto

88 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes se sentem diferentemente; o seu lugar e estudante desamparado; No contexto reconhecem estrangeira. são religioso ela o do Isso lhe estrangeiros; até admite que professor. Já marcou, estão na “terra o seu lugar em Angola passou a usar dos outros”; como mulher essa mesma essa Entretanto pode continuar liberdade é compreensão esse mesmo subalterno ou vista com com alunos olhar é até mesmo reservas angolanos, profundamente nem ser porque os mas com outro rejeitado considerado. alunos significado quando os Entretanto nas “confundem “Então, estudantes escolas laicas as bolas”. cheguei aqui encontram-se essa em seus indiferença ao passei a países de lugar dos enxergar origem; Aqui a indivíduos é sensibilidade à injustificável melhor o diferença é um estudante e atributo da família e dos não ser tão amigos e não insensível em da instituição de ensino tudo. Passei a olhar melhor cada questão de cada um e fazer uma análise melhor de tudo isso. Já fui um pouco mais insensível, mas agora com essa última fase do mestrado, isso mexeu comigo. Hoje eu paro, penso e analiso para

89 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes cada um. Estou um pouco mais sensível”.

Elementos da A forma de O material A forma de A forma de fala do docente avaliar os didático avaliar os avaliar os que se alunos teve repassado aos alunos teve alunos teve distanciam de como alunos é uma como como sua fonte referência sua tradução que a referência referência sua original experiência no docente faz sua experiência no Brasil, mas das fontes experiência Brasil, mas adaptou para originais no Brasil, adaptou para a realidade mas adaptou realidade angolana, para a angolana, criando novas realidade criando novas combinações, angolana, combinações, introduzindo criando novas introduzindo novidades combinações, novidades híbridas; introduzindo híbridas; O material novidades Todo material didático hibridas didático repassado aos Todo material repassado aos alunos é uma didático alunos é uma tradução que o repassado tradução que a docente faz aos alunos é docente faz das fontes uma tradução das fontes originais que a originais docente faz das fontes originais Onde as Começa a Seu relato A história Começa histórias do contar sua começa escolar da falando de seu docentes trajetória descrevendo docente aprendizado no começam, em escolar sua história começa na Brasil, o que meio a que falando de sua escolar na ex- URSS trouxe na estada no infância, onde é bagagem e o Brasil, suas passando pelo enviada para que modificou escolhas e seu ensino médio realizar um em Angola aprendizado. em país curso técnico O que estrangeiro manteve, o que adaptou para o novo contexto Os flash backs: O docente não Os retornos da Na memória A docente introdução de abandona de memória da da docente começa novos cenários jeito algum a docente trazem está o vai-e- falando sobre e de conflitos memória de à ribalta os vem de sua sua trajetória seu conflitos que formação. acadêmica 90 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes aprendizado. sua Enviada a situando seu Seu relato vai- experiência de URSS, a não aprendizado no e-vem – migrante trouxe escolha do Brasil. A Brasil/Angola. para sua vida. curso, o vontade de O conflito mais Primeiro o papel da desistir da explícito em conflito da mulher, os carreira seu relato língua. Uma cursos no docente. O refere-se às angolana que Brasil, a lugar da mulher diferenças não falava decisão para na sociedade entre os português, mas acomodar angolana. Dar cursos médios sim Ibinda, dificuldades aulas de em Angola que Lingala, da família; assunto que preparam ou kicongo e Cenário de não era sua preparam francês. conflito: as especialidade. alunos para a Depois o relações da A Biologia universidade. sotaque que mulher dentro muda seu Os melhores não identificava do mundo modo de conceituados como sendo acadêmico e pensar; são os de angolana; do mundo do O cenário de ciências Cenários de trabalho conflito: exatas; conflito: ambiente O cenário do migração, o acadêmico conflito viver o tempo cognitivo é a todo em terra universidade estrangeira, sentir-se estrangeira no próprio país. Elementos O próprio O próprio O próprio O próprio estrangeiros deslocamento deslocamento deslocamento deslocamento nos relatos dos para o exterior. para o exterior. para o para o exterior. professores, A condição de A condição de exterior. A A condição de que destroem estrangeiro estrangeiro condição de estrangeiro as estruturas de estrangeiro referência Negociação Fala do Fala do Fala do Fala do com as passado como passado como passado passado como temporalidades se esse se esse como se esse se esse estivesse estivesse estivesse estivesse presente, presente, presente, presente, mesmo mesmo quando mesmo mesmo quando quando muitas muitas coisas quando muitas cosias cosias do do passado já muitas cosias do passado já passado já tenham se do passado já tenham se tenham se transformado; tenham se transformado. transformado. A transposição transformado. A transposição A transposição exige esse tipo A exige esse tipo exige esse tipo de negociação transposição de negociação de negociação exige esse tipo de

91 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes negociação Signos Escola Média A língua A A escola diferentes no em um mesmo portuguesa comunicação cubana e tempo e no espaço ou não falada em com os escola espaço prepara de Angola traz alunos tem brasileira na forma diferente diferenças sentidos formação do alunos para a marcadas pelo diferentes professor universidade lugar de origem Brasil e angolano do estudante e Angola a sua idade Descanonização Todos os Todos os Todos os Todos os dos conteúdos conteúdos conteúdos conteúdos conteúdos originais ministrados ministrados ministrados ministrados aprendidos em aprendidos em aprendidos aprendidos em contextos e contextos e em contextos contextos e frentes frentes e frentes frentes diferentes são diferentes são diferentes diferentes são adaptados adaptados são adaptados pelos docentes pelos docentes adaptados pelos docentes de Cabinda. de Cabinda e pelos de Cabinda. Deixam de ser deixam de ser docentes de Deixam de ser Canônicos Canônicos Cabinda; Canônicos Deixam de ser Canônicos

92 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 3.3.2: TRADUÇÃO CULTURAL

Questões Docente Docente Docente Docente orientadoras Micanda Dituanga M´pemba Tunga N´zola Faz adaptações Quando percebe O sistema O tratamento conceituais sem que os alunos avaliativo recebido em perder a não entendem controlador ao universidade especificidade sua linguagem ou qual foi brasileira em Como os do campo a essência dos submetida que era significados conceitual que conteúdos durante seu exigido são re- emergiram. ensinados, tenta curso na ex- empenho apropriados Aspectos que traduzir levando República quase que pelos fogem à lógica em consideração Soviética foi solitário do professores e da cultura a características traduzido como orientador de como eles os escolar, como, culturais do sendo uma pesquisa, é re- por exemplo, a aluno. Alguns forma de dar traduzido historicizam origem dos fatores extra- uma chance a para o alunos, o escolares que alunos contexto da docente tenta interferem no repetentes e de sala de aula analisar as aprendizado do valorizar mais a em Angola diferenças entre aluno são oralidade na como uma eles poro traduzidos como exposição do postura que critérios sendo fatores conhecimento permite ao cognitivos e “sociológicos” do que a indivíduo ser recorrendo à avaliação avaliado pelo uma avaliação escrita o que ele é da qualidade do O hábito de capaz de ensino médio professores na fazer e não segundo sua universidade pelo o que especificidade brasileira ser ele traz como chamado pelos herança ou alunos pelo tradição nome e pela designação “doutor” foi traduzido como uma possibilidade de ruptura hierárquica Ainda que siga Eu quando chego “E aí eu “Essa estritamente o na sala de aula, a procuro, abertura, programa oficial, primeira coisa principalmente essa todo evento que que tenho feito na aula de liberdade de impeça o “eu mudo o psicologia expressão, Como eles cumprimento do cenário”. Não dou pedagógica, essa destroem a objetivo: aula se não trabalhar muito facilidade de continuidade desenvolvimento formarmos um a questão do interacção

93 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes e a cognitivo, tem círculo ou uma comportamento com os constância levado a meia lua para e a mudança de estudantes nas práticas atividades que estabelecermos a comportamento, porque às pedagógicas quebram a relação “ombro a então a gente vezes é continuidade ombro”. traz muitos aquela coisa regulamentar. É uma fase de aspectos de que nós Introduzem-se construção. casa daí a vimos que o atividades de Estamos aqui pessoa tem que professor nivelamento para construir os estar um pouco está aqui o conhecimentos e desarmada, estudante que a construção porque senão está lá” é feita você não dependendo de consegue cada um, a passar a predisposição, os mensagem” condicionamentos que temos, os motivos que nos fazem estar aí Como eles Considerando Por sua trajetória A trajetória da A negociação negociam sua trajetória em escolar, a docente ajudou- passa suas universidades docente desde a a construir integralmente identidades brasileiras, sua pequena teve de formas de pela abertura culturais saída foi aprender a negociação. com o outro integrar-se ao negociar suas Sua inserção no “Acho que modelo identidades mundo isso me acadêmico sem culturais: acadêmico tornou um conflito, foi uma angolana, inicia-se por pouco estratégia de educada no imposições. Vai diferente sobrevivência. quimbo, falava para extinta porque vi Atualmente, ele língua Ibinda, só União das isso das combina na sala sabia três Republicas minhas de aula modelo palavras em Soviéticas. próprias brasileiro com português. Fez Queria fazer professoras as exigências ensino médio na Farmácia ou até agora angolanas Republica Jornalismo, que eu Democrática do mas não pode estava a Congo, tradição optar teve de fazer o belga. Acolhida aceitar o curso mestrado, por grupos que lhe foi então tudo evangélicos. imposto No isso também Estudou Teologia Brasil, foi a mexeu e Pedagogia. mesma coisa, a comigo Ocupou cargo pós-graduação porque, às que só homens teve de ser vezes, você tinham acesso, negociada por como teve que negociar outras razões: estudante sua presença as condições de tem nesse espaço e vida; situações assim por diante. Hoje a docente que você

94 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes negocia criando passa que um pacto com você precisa os alunos cujo que alguém princípio central te entenda” é o respeito (p. 6) Defende Adota Volta o curso Ciência e claramente a procedimentos para aplicação vida humana. idéia de um pedagógicos da ciência. A Quebra de currículo centrados na intervenção tabus e de baseado em construção da científica no preconceitos Como eles competências. individuação. No cotidiano a traduzem Avança com as centro de suas docente suas práticas teorias preocupações a começa com a para formas educacionais escola deve associação ocidentais que vêem a formar um entre mundo escola como indivíduo capaz físico e uma agência de de gerenciar seu construtos da formação de próprio ciência. quadros conhecimento “findo o ano lectivo para que estes conhecimentos lhe sirvam mais tarde e formem o quadro que queremos para o nosso país” Instabilidade As Saber que entre A instabilidade A 1: ambivalências os alunos muitos é produzida convivência deslocamento são de natureza não querem pela confluência de dois da cognitiva. Ter mergulhar no de duas formas padrões que apropriação de conviver com universo da de definem a cultural expectativas ciência, estão na relacionamento. sociedade (ambivalência pedagógicas universidade Uma que retrata angolana: a e diferentes até apenas para ter a convivência tradição e a hibridização) contraditórias um papel, para mais tradicional, modernidade, Assim são melhorar o hierarquia, o mundo dos possíveis de salário. Saída, mundo mais velhos e serem sem frustrar suas holístico, no o mundo corrigidas. Um expectativas, qual o indíviduo jovem. Tenta dos processos leciona em meio tem de equilibrar as utilizados é o a esse fogo conhecer desde relações sem nivelamento cruzado pequeno o seu conflito entre os papel. Outra estudantes que vislumbra a simplicidade nas relações por meio da qual sem perder

95 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes o respeito é possível tratar o outro como igual Produz São intraduzíveis A formalidade É intraduzível instabilidade o as razões que dos alunos e o que a levou fato de o aluno levam os alunos a dos docentes é a mudar de não aprender o não quererem intraduzível. postura que foi mergulhar em Não consegue diante de Instabilidade ensinado. “eu mundo cujos entender o que algumas 2: não sei como é princípios estão faz com que concessões Presença de que se sentiria, assentados no eles se que fazia a elementos ou melhor, como valor que os comportem alunos com estranhos ou é que o indivíduos têm dessa forma, base no avesso, indivíduo sentir- para si mesmas ainda que critério ideal elementos se-ia tendo percebam o intraduzíveis conhecimento tempo todo que de que ela produz uma efectivamente a distância sua mensagem grande entre as não está sendo pessoas bem apreendida” Presente Presente Presente Presente histórico: toda histórico: toda histórico: toda histórico: Como o sua trajetória e sua trajetória e sua trajetória e toda sua presente contribuições contribuições contribuições trajetória e aparece na aparecem no aparecem no aparecem no contribuições tradução: relato como algo relato como algo relato como aparecem no imagens, que se recicla que se recicla algo que se relato como tempos para entrar o para entrar o recicla para algo que se verbais: presente e presente e entrar o recicla para reciclagem explicá-lo explicá-lo presente e entrar o do passado explicá-lo presente e explicá-lo

96 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 3.3.3: DIALÉTICA DA NEGAÇÃO

Questões Docente Docente Docente Docente orientadoras Micanda Dituanga M´pemba Tunga N´zola “estudantes “Procuro O aluno às Aqui existe já têm um colocar o vezes acaba aquele hábito saber prévio aluno, como “confundindo de cábula daquilo que sujeito do um pouco as (...)Todo o vai ser processo (...) bolas” se o mundo que tratado”... de início eles professor deu passou por Como os docentes alunos e não querem, um pouco de aqui sabe traduzem os professores mas eu liberdade por disso (...) o seguintes signos: constrõem empurro e isso é que eu estudante professor, aluno, coletivamente faço eles tenho a acaba conteúdo escolar, conhecimento assumirem cautela de carregando avaliação e outros “Professor esse lugar”… logo no isso para a componentes da não é um “Procuro primeiro dia Universidade atividade em sala sabichão”… estabelecer de aula fazer e quando de aula “Pouco como o aluno um contrato aparece um importa a uma relação didáctico com professor que região de “ombro a eles… tenta cortar origem do ombro”. É isso… aluno (ou a uma fase de Eles vêm com sua etnia), o construção do aquele que importa é saber costume... seu nível de Alguns ficam com aquele conhecimento. encolhidos, se hábito (...) É o você não Não querem nivelamento reagir eles estudar. (...) de saem sem têm uma conhecimento” falar nada (..) preguiça nem o nome mental… você sabe (...) vem aqui para preencher lacuna,.para ter um pedaço de papel, para melhorar salário… Aqui o professor é o centro. Ele é que sabe e o aluno é aquele que não sabe É uma relação

97 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes terrível “Na verdade o Minha Geralmente eu a Anatomia é que nós estratégia já dou o uma disciplina estamos a sempre foi material para muito isso é seguir aqui, dialogar. eles levarem isso, aquilo é digamos que é Muito diálogo. para casa… aquilo… uma Eu apostei no Eu dito as Então temos seqüência de diálogo . Eu fórmulas que tentar sair todos os fui mostrando chave, coloco fora daquilo e ensinamentos para eles o no quadro. Eu tentar pegar que nós estilo da entro em as coisas do Como os docentes aprendemos escola onde debate (...) dia-a-dia que correlacionam não só no nós fomos com a possam conteúdos Brasil como, preparados Química, eu influenciar no advindos de também na sempre funcionamento culturas diferentes própria trabalho com o do corpo Universidade quotidiano, o humano e Agostinho dia a dia do fazer com que Neto”… aluno trazendo o aluno “Pela questões da entenda essa experiência cozinha, em interacção que que casa, do gás existe entre o trouxemos de butano, o corpo humano lá, temos açúcar... agora e o meio… estado a que estou a conjugar trabalhar com a aquilo que é bioquímica, a nosso e aquilo gente só fala que nós de frutas e aprendemos comida lá”… praticamente. Porque a gente fala de celulose, amido, carbohidratos e tudo isso a gente encontra em banana, mandioca etc, etc, então os nossos debates nesse semestre estão direccionados propriamente a construção da célula do ser humano…

98 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes

O confronto A primeira Aqui eu Eu já tive assinalado coisa que eles encontro uma muitos pelo docente diziam é que formalidade problemas Como os docentes é com o eu era muito fechada, logo no início, refletem as tensões pouco exigente. eu fico meio dando assim no confronto de conteúdo Usavam muito atrapalhada algum conteúdos trazido por a expressão: Mas eu procuro exemplo: advindos de alguns aqui não é deixar os quando você culturas diferentes estudantes Brasil não (...) alunos mais ou vai trabalhar que vêm, você não veio menos à com o corpo digamos do prá mudar vontade humano – Ensino isso... se todo eu exijo principalmente Médio, não o mundo, respeito, nós aqui, – adequado todos conhecendo o existe um tabu para dar professores contexto nosso que não se seqüência na estão aqui falava de sexo Faculdade de aceitando, por a gente precisa e as primeiras Economia. que não tomar algumas turmas que eu “A gente nota você!? junta- linhas mestres peguei eram que há uma se a equipa para que o pessoas muito ligeira que você veio aluno não adultas e não diferença encontrar... “confunda as podia se falar porque Trazer para bolas” certos temas. dependendo cá o no Brasil por Mas, eu vim das brasilísmo, mais que haja com aquela instituições, essa vossa essa toda preparação há algumas mania que simplicidade, o que estamos a que não têm de que o aluno sabe que falar do corpo cumprem aluno deve ele é aluno e o humano, se com os investigar, nós professor é não tirarmos programas do não estamos professor tem as dúvidas ensino médio” para isso todo um mérito aqui onde não... a nossa e no nosso mais! história aqui é contexto às conseguir vezes isso não alguma coisa, acontece. O te dar e aluno às vezes pronto! É por acaba aí! confundindo um pouco as bolas se o professor deu um pouco de liberdade por isso é que eu tenho a cautela de logo no primeiro dia de aula fazer um contrato

99 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes didáctico com eles Tradição não Quando estou A tradição O embate tem espaço dando aulas, reflete-se no entre tradição no relato momentos há relato da e deste que no nosso professora modernidade docente. diálogo, eu quando ela trata aparece no Qualquer vejo que não da questão do relato da referência a estão comportamento. docente no experiências chegando lá, “a gente traz momento em culturais das e eu faço muitos aspectos que ela províncias é recurso a um de casa daí a discute as Fusão da tradição e descartada provérbio na pessoa tem que formas de da modernidade por ele língua estar um pouco tratamento comparando materna, desarmada, entre os pares os que vêm então quem porque senão e entre os da província. não capta você não professores e “Inicialmente, logo, quem consegue alunos. O uso nas primeiras não é... vou passar a da deferência avaliações ter que fazer mensagem” doutor, o nós notamos uma tradução, chamar pelo que, por uma nome. A exemplo, os interpretação primeira estudantes do provérbio remete ao que têm feito que eu lancei. mundo da o Ensino Outros tradição da Médio de momentos, eu hierarquia, do Ciências sinto um respeito aos Exactas, sotaque muito mais velhos, geralmente, forte, fruto do ou os que têm um dialecto da adquirem desempenho língua status pela maior nos materna educação primeiros destes alunos momentos. que não são Agora, os que de cá (...) vêm (que) com as letras fizeram o “z” e letra “x” ensino de e por aí... às adultos e vezes devido as objectos de dificuldades gargalhadas que na sala de atravessam, a aula, então gente nota temos tido efectivamente também um certo momentos desnível” para reflectir sobre isso ou mesmo

100 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes quando fazemos referência de uma localidade da província de Cabinda por eles desconhecida, então também abrimos parêntesis para explicar o que é que estamos aí a tratar. 1º tempo: 1º tempo: 1º tempo: 1º tempo: Aulas dadas Mistura do Reconstrução Dou exemplos em função de passado, do do passado no de lá, daqui e um programa presente, o presente: também pré- tempo das quando eu quando eu estabelecido coisas que trabalho com peço Desterritorialização: vindo da fizeram com química, porque trabalhos, eu A convivência em direcção da a gente em a gente mexe peço que eles um mesmo espaço nossa casa. (p.5) muito com vão a internet, de distintas Unidade datas, dou o site até temporalidades Orgânica 2º tempo cientistas, eu já para históricas O presente dou a data e começarem a 2º tempo escolar e a dou o nome do se familiarizar Material perspectiva cientista. Então com as novas escrito que já ainda incerta cabe ao aluno a tecnologias, compilei ao para o futuro: partir da data e dou os temas, longo de possibilidade o nome do dou os sites vários anos e de fazer com cientista, onde eles que vai que os alunos desenvolver a podem sofrendo megulhem no resposta sobre encontrar algumas mundo da qual é a revisões, ciência. contribuição do 2º tempo algumas cientista a área de remodelações Biologia é rica em cada ano em figuras e aí lectivo projectam-se essas figuras 3º tempo e em cima exemplos delas vamos práticos que expondo as nós nossas colocamos. experiências como práticas, [o exemplos, os que é que já

101 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes adaptamos à viram, como é nossa que é... e vão realidade comparando porque não com o que vamos falar estamos a ver de outro país ali] há muitos dos nossos alunos não conhecem o Brasil nem de perto... então, para isso, nós partimos dos outros países mas adaptamos à nossa realidade de Angola Pelo menos Momentos há Na medida do Já tive turmas da minha que no nosso possível eu muito mais parte posso diálogo, eu procuro velhas já fui até saber que vejo que não conversar com muito mais o fulano de tal estão eles, quebrar flexível em vive no lar chegando lá um pouco o relação a isso, tem essa (...)vou ter gelo dentro da até a forma de dificuldade que fazer uma sala de aula, avaliação, Como a cultura mas isso não tradução, uma quando os ponderava escolar é impede nada. interpretação encontro digo algumas recodificada pelos Ele tem as bom dia, boa coisas, via a docentes ao serem condições tarde se eu idade, via que confrontados com realmente lembrar da alguns as experiências idênticas dos cara, se não estavam culturais vividas em outros lembrar quase prestes outras esferas não colegas que também às a irem para escolares vivem nos vezes eu passo. aposentadoria, bairros, então Mas eu acho punha tudo aí não vejo que isso isso na razão para ter depende muito balança, mas um do contexto hoje eu vejo tratamento ou onde nós que são mais uma certa estamos jovens (...) sensibilidade inseridos então, tem diferenciada que exigir mais deles. Eu acho que é mais ou menos isso

102 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 3.3.4: TEORIA COMPROMETIDA

Questões Docente Docente Docente Docente orientadoras Micanda Dituanga M´pemba Tunga N´zola Distinção está Esses dois Não há distinção Prática está na forma de elementos se entre teoria e associada à conduzir as misturam em prática. As aulas teoria. Como aulas de todo o relato são de natureza Funcionou como distinguem caráter teórico teórica com base uma espécie de teoria e e de caráter no cotidiano dos ilustração do que prática prático alunos está nos livros. A prática está vinculada à experiência das pessoas Exigindo dos - Estratégias de Faz um contrato Aplicação de alunos leituras persuasão… didático com os questões amplas prévias do alunos que leva os conteúdo a ser Diálogo como Adianta material estudantes a ministrado, uma forma de para leitura raciocinar ouvindo os cooptação do prévia Fazendo Com que alunos antes aluno Elabora roteiro questões por elementos os das Uso de técnicas de leitura meio das quais docentes intervenções para mudança Reflete sobre os alunos organizam o pedagógicas, da percepção do questões do pussam chegar a processo de propiciando aluno cotidiano uma criação. ensino e discussões de Amenização da aprendizagem todos os lógica “dura!” da alunos sobre disciplina os temas ministrada. estudados; Fornecer interferindo no antecipadamente final das aulas uma base com correções acerca do tema a ser debatido na aula para que os estudantes possam acompanhar; Adaptar os conteúdos às diferenças etárias dos alunos Cautela ao tratar temas tabu Teorias Teoria do Educação Teoria da Teoria da subjacentes currículo com dialógica, mediação transposição ao relato dos base na construtivismo, Pedagógica didática/como

103 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes docentes formação de pedagogia (professor, contextualizar competências; centrada no material didático conteúdos construtivismo; desenvolvimento como escolares. educação da mediadores Teoria da do dialógica individualidade educacionais) professor como Paulo Freire; para o Desenvolvimento um transmissor Psicologia aprendizado do raciocínio de conhecimento cognitivista lógico.

Ajudam a Contribuem para Dão base para Permitiram construir o o desmanche da trabalho de introduzir temas- perfil dos imagem de pesquisa; tabu. alunos ordem e de Orientam na Favoreceram o novatos; hierarquia. realização de debate para Permitem Fortalecem a seminários estimular a orientar a dimensão da Contribuem para autonomia escuta sobre individualidade, a confrontação intelectual dos Que efeito os responsabiliza conhecimento; estudantes. essas teorias conhecimentos os alunos pelo Fortalecem o Forçou a busca têm no dia a prévios dos próprio trabalho de de novos meios dia do alunos; desempenho. grupo como de divulgação de trabalho Balizam o Culpabilizam os fonte de conhecimento e cotidiano programa de alunos e não o avaliação de pesquisa. ensino da sistema pelo individual unidade; fracasso Sustentam a escolar. elaboração de material didático com sínteses da obra de autores; Permitem especificar os conteúdos da aula teórica e da prática

Ao mesmo Funde educação Combina dois Combina Elementos tempo em que dialógica com modelos procedimentos híbridos nas defende a estratégia de didáticos: Um avaliativos teorias idéia do aluno sobrevivência na baseado no considerando as emergentes como agente sala de aula; direcionamento diferenças nos relatos de seu próprio articula total da parte do etárias; dos docentes conhecimento, estratégias de professor dos Transita entre o docente trabalho em conteúdos valores das associa à sua grupo com a ministrados e culturas prática valorização do outro em que tradicionais de pedagógica desenvolvimento professor e Angola e procedimentos individual; alunos são co- princípios da

104 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes que tratam os combina responsáveis na ciência alunos como liberdade com produção do contemporânea; receptores, controle; conhecimento considerando os portadores de introduz na aula em sala de aula conflitos e as déficits provérbios das Coexistência de contradições cognitivos. culturas formas Adapta modelos Articula regionais avaliativas muito de ensino práticas que angolanas para diferenciadas, formulados em identificam a tornar mais resultando em outros contextos diferença entre compreensíveis um modelo à condição local; os alunos com conteúdos da híbrido em que a Media conflitos procedimentos disciplina prova escrita geracionais em que buscam lecionada pode ser sala de aula nivelá-los posteriormente defendida pelo aluno; A fusão de modelos pedagógicos no qual o trabalho feito pelo aluno pode ser a fonte sobre a qual o professor formula as questões da prova escrita

105 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes CAPÍTULO 4 – DESVENDANDO AS TRADUÇÕES NOS TRAÇOS DO HIBRIDISMO CULTURAL NA PRÁTICA DOCENTE DOS ANGOLANOS

4.1 – Introdução

Esta parte do trabalho é dedicada á apresentação, análise e interpretação dos dados colhidos por meio das entrevistas aos docentes que estudaram no Brasil, cuja caracterização de suas origens e das trajetórias escolares está patente aqui. Procuramos por meio de estes depoimentos buscar as evidências das traduções dos traços do hibridismo cultural nas práticas docentes dos professores angolanos egressos de universidades brasileiras que pudessem ser visíveis por meio de sua actividade na relação que estabelece com o aluno, nos processos avaliativos, nos usos da Língua Portuguesa, no uso dos recursos didáticos, no manejo da sala de aula, na metodologia de ensino e na relação com os conteúdos trabalhados. O levantamento destas informações foi mediado também através do questionário aplicado aos discentes cujos dados coadjuvarão os depoimentos. Porém, importa ressaltar que não foi feita uma análise exaustiva dos dados resultantes deste questionário, visto que, o nosso foco está acentuado na máxima exploração das falas dos entrevistados. Contudo, para dar visibilidade aos dados colhidos por meio do questionário, estes se encontram em anexo. Ainda nessa parte do nosso estudo, também procuramos evidenciar as características da “escola angobrasileira” e as estratégias usadas por esses professores angolanos que estudaram no Brasil na superação dos conflitos resultantes do encontro entre a cultura escolar das instituições onde estudaram no Brasil e a da instituição onde trabalham em Angola, no que tange á relação professor-aluno, na avaliação dos conhecimentos e em outras dimensões que balizam a convivência entre si e os demais participantes desta cultura institucionalizada.

106 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.2 – Os professores entrevistados: as origens e as trajetórias escolares

Tendo em conta que a noção de hibridismo cultural que tomamos como referência remete-nos à necessidade de contacto com outras culturas e experiências culturais, nos interessa, agora, situar a condição dos professores entrevistados tendo em conta suas origens39 e parte da trajetória escolar, pois para além de terem estudado no Brasil – sendo esta a condição básica que os faz integrar o estudo –, alguns deles também tiveram outras vivências (dentro e/ou fora do ambiente familiar e do país) que reforçam essa condição descrita pelos autores atrás citados.

Professora DITUANGA, é cabindense de pai e bengoense de mãe. Nessa condição, do ponto de vista da origem étnica dos progenitores, o pai é Bacongo e a mãe Kimbundo. Embora ambos os grupos compartilhem, na origem, um tronco comum (os povos Bantu)40, eles diferenciam-se entre si na língua, em alguns produtos e formas da alimentação, nos rituais de passagem e outras características e práticas sócio-culturais. Iniciou sua escolarização primária em Cabinda e quando estava na 4ª classe teve que refugiar-se da guerra de Angola indo parar, com os pais, na República Democrática do Congo onde deu continuidade a sua formação até a conclusão do ensino pré- universitário. Em 1982, retornou a Angola e, nesta altura, segundo ela, sabia falar apenas três palavras em Português: água... mãe... pai.

Inicialmente, logo depois da guerra, já estava com a 3ª classe... não conclui a 4ª... fomos para RDC [ República Democrática do Congo]. Lá... fiz o ensino médio. Depois do Ensino Médio, isso já era em 82, regressei ao país mas, apenas sabia dizer 3 palavras em português: falava

39 É importante realçarmos aqui que mesmo na situação em que toda a trajetória escolar pré- universitária tenha sido efetuada em Angola, seus “locais” de nascimento impinge-lhes um emaranhado de costumes, línguas, tradições, rituais, enfim, culturas que por si só já constitui um ambiente multiculturalizado, tal como veremos nas descrições que faremos deles.

40 A população atual do território angolano é essencialmente de origem banto, termo suegrido, em 1856, pelo lingüista e pesquisador alemão Wilhelm Bleek, e que designa o grupo de povos em cujas línguas a desinência “-nto” significa “homem” (“munto”, por exemplo, é homem, no singular; “bantu” é homens, no plural). Os bantus habitam a maior parte do território do Centro e do Sul da África atual e estima-se que, durante mais de vinte séculos, seu processo migratório foi-se dando lentamente ao Centro e para o Sul do continente. (MENEZES, 2000:101) 107 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes a palavra água... mãe... e a 3ª era pai. As 3 palavras que eu retive porque o ensino primário era feito lá no quimbo41, então, nós não falávamos português no tempo colonial, parti daqui falando fiote42, fui prá lá e não tive essa referência, a não ser as 3 palavras que eu acabei de citar. Vim para Angola com o meu Ensino Médio completo [...]

Em Angola, através de sua Igreja, em 1990, foi ao Brasil para fazer formação em Teologia numa instituição universitária religiosa. Estando no local, pouco tempo depois, fez exames de seleção (no Brasil, vestibular) em outra instituição para estudar, em paralelo, outro curso. Foi aprovada e ao longo dos anos que permaneceu no Brasil, conseguiu terminar as duas formações, uma na seqüência da outra tendo regressado a Angola no ano 1996. Iniciou, em 1998, suas atividades como docente universitária.

Pensamos que fruto destas convivências nos variados “mundos” e espaços, já sejam, em função de sua origem familiar ou a partir das migrações temporárias43, tudo isso ajudou a proporcionar-lhe muitos dos encontros e reencontros culturais que enriqueceram a sua “bagagem” sócio-cultural.

Professora M´PEMBA, cabindense de pai e a mãe da província do Zaire. Sua escolarização primária e secundária fê-lo em Cabinda, mas o Ensino

41 Aldeia. Lugarejo afastado das cidades.

42 É assim designado a língua falada entre os Cabindas, que de acordo com MARTINS (1972:9), são os habitantes do Enclave de Cabinda que abrangem todos os clãs – Bauoio, Bakongo, Basundi, Balinge, Bavili, Baiombe, Bakoki – mas que, de começo, por proveniência clánica era confinada aos do antigo reino de Ngoio e mais propriamente aos da atual região da cidade de Cabinda e arredores mais chegados, sendo povos que fazem parte da grande família bantu. Esta designação tem causado controvérsia entre os utentes, pois ela “não tem explicação da origem nem sentido válido” (idem). Essa expressão, fiote seria o aportuguesamento de unfiote, ou seja, preto ou, também, pequenino. Seria, portanto, uma invenção dos colonizadores para diminuir os nativos e as suas línguas. Atualmente está a ser adoptada a expressão ibinda (decomposição de CA-BINDA) para a designação dessa língua. Assim como acontece em outras partes do nosso país, em Cabinda também há diversos grupos etnolingüísticos, mas os dialetos usuais entre eles permitem perfeita comunicação entre si.

43 A noção de migração temporária ( ou, migrante temporário) uso-a aqui a semelhança da utilização que fiz quando estudei os angolanos estudantes da UFMG-Brasil, no sentido de que são pessoas que não estão na condição permanente no local em que se encontram pois embora, muitas das vezes, esse retorno seja objeto de múltiplas adiamentos ao longo da sua estada, sempre pensam em voltar quando a missão que os fez estar acabar. (Gomes, 2007) 108 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Médio profissionalizante foi cursado na União Soviética (ex URSS) por meio dos acordos de cooperação intergovernamentais entre a República de Angola e este país. Fiz 6 anos na União Soviética. Foi naquela altura que éramos encaminhados. A gente terminava o ensino de base aqui e havia encaminhamento. Isso foi naquele momento em que os encaminhamentos, na sua maioria, já eram para o Leste Europeu e eu fui para a União Soviética.

Regressada a Angola, atuou como docente no Ensino Secundário até a saída para o Brasil, em 1995, onde ficou a cursar os estudos universitários cujo retorno aconteceu em 2003 e encontra-se a atuar como docente universitária em Cabinda. [...] Terminei o curso em 1992 e, voltando para Angola não havia nenhuma indústria que trabalhasse com transformação de carnes, então, com isso a alternativa era a sala de aulas [...] Daí, em 1995, surge a vaga, fui para o Brasil para fazer engenharia química a princípio [...] Na época o emprego ou era a sala de aula ou era o malongo.

Professor MICANDA44, nascido na província angolana do Uíge (província fronteiriça, ver mapa de Angola). Ainda pequeno viveu na República Democrática do Congo tendo freqüentado neste país o último ano do Ensino Primário e o Ensino Secundário completo. Ao retornar para Angola, iniciou e terminou o Ensino Médio. Deslocou-se, em 1993, ao Brasil e ficou oito (8) anos onde cursou os estudos universitários. Ao regressar para Angola, admitiram-no como docente universitário onde atua até hoje.

44 Tanto o Professor Micanda quanto a Professora Tunga Nzola, as informações aqui apresentamos não constam nas transcrições que se encontram em anexo porque estes assuntos não foram abordados no acto da entrevista. Posteriormente foi feita uma nova abordagem via telefone onde levantamos estas informações que aqui espelhamos resumidamente. 109 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Professora TUNGA N‟ZOLA, nascida na província do Zaire de onde saiu com os pais, ainda criança, para fixarem residência na Província de Cabinda. Segundo ela, com o andar do tempo, aprendeu a conviver com ambas as culturas, tanto a da província de criação quanto a de nascimento, buscando sempre as fusões onde fosse possível e onde não, buscar sempre que poder, adequar. Fez todo o Ensino Primário, Secundário e Médio em Cabinda e, em 1994, saiu para cursar a universidade no Brasil onde permaneceu até o ano de 2001. Ao regressar para Angola, atuou como docente no Ensino Médio até que, em 2003, admitiram-na como docente na universidade onde trabalha atualmente. Trazemos, portanto, uma idéia daquilo que são os nossos sujeitos entrevistados cujos depoimentos passaremos, doravante a usar com maior freqüência para explicitar as facetas das traduções dos traços do hibridismo cultural em suas práticas docentes levando em consideração o quadro teórico adoptado.

4.3 – O retorno: “Minha ida ao Brasil mudou-me muito”

O referencial teórico tomado como base e os depoimentos dos nossos entrevistados levam-nos a percepção, cada vez mais nítida, de que vivenciar uma experiência migratória, de alguma forma introduz mudanças e deixa marcas na identidade dos sujeitos envolvidos nesse processo. Abandonar fisicamente a condição de migrante não retira deles os aspectos adquiridos nessas vivências tornando-se, pelo contrário, parte de suas maneiras de ser e de estar consubstanciadas nos jeitos de falar, nos jeitos de se relacionarem com outras pessoas, etc.

No caso específico do objeto e sujeitos de nossa análise, os professores angolanos que estudaram no Brasil, cujos depoimentos foram tomados, admitem ter havido muitas mudanças em si próprios nesse período de estadia neste país. Dizem, por exemplo, que permitiu-lhes ter “uma cabeça mais aberta”, ser mais sensível em relação ás situações do aluno passando a tratá- los, cada um, com sua especificidade.

110 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes

Me acho um pouco diferente. Essa trajetória me tornou um pouco diferente porque, às vezes, você como estudante tem situações que você passa que você precisa que alguém te entenda... Então, cheguei aqui passei a enxergar melhor o estudante e não ser tão insensível em tudo. Passei a olhar melhor cada questão de cada um e fazer uma análise melhor de tudo isso. Já fui muito mais insensível, mas agora eu paro, penso e analiso para cada um. Estou um pouco mais sensível. (Tunga N´zola. grifo meu)

É importante percebermos, nesse depoimento, a franqueza desta professora que já exercia a docência antes de sair para estudar no Brasil, ao retornar ao professorado em Angola tem o olhar em relação ao aluno mudado, mas também a forma dela mesma perceber-se, chegando, inclusive, a descrever-se como tendo ficado um pouco mais sensível. Ou seja, do nosso ponto de vista, o que podemos perceber nesse depoimento é que com base na nossa condição humana em sermos capazes de desenvolver certas qualidades como, por exemplo, a sensibilidade ao outro humano e nos seus problemas o que, muitas vezes, por causa das situações e circunstâncias da vida, essa capacidade pode ficar adormecida ou, como é o caso dela, realçada, tudo isto é influenciado pelos inputs que recebemos do meio em que estamos, mas também fruto dos aportes ao longo da vida, obrigando-a a ter que negociar, na tradução cultural que faz desta experiência, até mesmo sua própria identidade.

Nossa depoente, talvez propiciado pela maneira como se processaram as relações professor-aluno e outras formas de interação social no local de seus estudos no Brasil, fez com que houvesse fusão e, também, um despertamento para estes traços humanizantes, inerentes a cada um de nós, a conduzirem-na á condição de um pouco mais sensível. Isso significa, a nosso ver, que se usássemos uma escala para medir o estágio atual de sua sensibilidade humana diríamos que houve uma alteração no sentido positivo, o que não significa que passou a ser totalmente sensível após a experiência do

111 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Brasil, mas, por outro lado, não pode dizer que ela está totalmente insensível em relação a estes aspectos, tal como estava antes da ida ao Brasil, já que, com base em suas palavras, quando afirma que “[...] já fui muito mais insensível, mas agora eu paro, penso e analiso para cada um [...]estou um pouco mais sensível[...]” pode-se perceber que há um movimento em busca de um ponto de equilíbrio que não anula de si uma e nem outra característica produzindo-se, no seu contacto com os alunos, uma nova forma de relacionamento – especificamente acerca da relação professor-aluno falaremos mais adiante.

O contexto acima retratado começa por evidenciar algumas das questões que tratamos nos quadros analíticos (cf. quadro 4) relativamente aos elementos híbridos nas teorias emergentes nos relatos dos docentes o que exibe, também, os conflitos presentes nestas práticas traduzidas entre a tradição e a modernidade.

Buscando ainda a explicitação do impacto das traduções dos traços das vivências no Brasil destes professores universitários angolanos do ISCED- UON, apreciando as palavras da Professora Dituanga que veio estudar no Brasil através de sua congregação religiosa angolana, fruto das mudanças operadas em si própria, quando retornou a Angola deu-se conta que a instituição que lhe tinha enviado para estudar não estava preparada para recebê-la. Para ela, a igreja não estava preparada para receber uma mulher e deixá-la ocupar o espaço que deveria, em função da formação e da capacitação ostentada.

Quando eu voltei me entreguei 100% à vida religiosa. Acontece que a própria Igreja não estava preparada para me receber. O espaço para a mulher não havia... nem em termos de subsídio... eu acho que essa minha ida para o Brasil mudou-me muito. Abriu mais a minha cabeça... a carga intelectual que eu trouxe é maior do que antes e também ganhei uma certa liberdade porque a carga de conhecimentos que você traz isso te dá mais liberdade... (Grifo meu)

112 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tanto a Professora M´pemba, quando o Professor Micanda, ambos relataram também que a vinda ao Brasil fez-lhes criar e recriar novas formas de ser e de estar em suas vidas conjugando, desta maneira, com o estudo feito por Gomes (2007:68) que, ao indagar aos seus entrevistados acerca do que ficava como mais significativo de suas experiências no Brasil, muitas vezes surgiram expressões como: “foi uma lição de vida”, “foi uma grande experiência”, “aprendi muito”, “foi uma escola de verdade”, “é um aprendizado”, “conheci verdadeiramente a sociedade brasileira”, “a experiência foi boa”, “amadureci muito”, etc. Para ele, tal variedade de sentenças, levava-o a acreditar que estes estudantes

“... tinham tido uma experiência rica em todas as esferas de suas vidas: no lado espiritual, no lado intelectual, no lado material, no lado das relações humanas, no lado cultural, no lado estético, no lado musical, no lado político, no lado profissional, enfim, para resumir, pode- se dizer que eles tiveram uma experiência rica do ponto vista humano e profissional”.

Mas, será que essa mudança operada no nível individual, tal como nos expressaram os nossos sujeitos entrevistados, poderiam, de fato, impactar o modo de estes exercerem suas atividades como docentes? Será isto perceptível no modo de se relacionarem com os alunos, nas formas de avaliarem os conteúdos, nas metodologias adoptadas ao dar as aulas, etc.? Diante de tudo isso, que estratégias eles usariam para conciliarem-se entre o que eles foram um dia, o que eles são hoje e o que os outros esperam deles diante das demandas da cultura escolar do ISCED-UON?

113 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.4 – O Hibridismo diante da cultura escolar: conflitos na relação professor-aluno

“… aqui a relação entre professor e aluno me deixa muito triste.” “...o aluno é coisificado.”

O relacionamento entre professores e alunos envolve uma teia de interesses e intenções que acabam, muitas vezes, influenciando na realização profissional do professor e no sucesso e/ou insucesso do aprendente. Por essa razão, tratar das relações humanas no interior dos componentes do processo de ensino e aprendizagem, não é uma tarefa fácil, sobretudo quando nós mesmos fazemos parte desta relação em estudo, ou seja, somos também sujeitos e objetos desta atividade em que, como diriam TARDIFF e LESSARD (2007:9), o trabalhador se dedica ao seu “objeto” de trabalho, que é justamente outro ser humano, no modo fundamental da interação humana. Contudo, embora complexo, não podemos deixar de fazê-lo pois, é em meio a essa teia de relações e relacionamentos que podemos ver manifestadas as traduções dos traços do hibridismo cultural resultantes das vivências dos nossos sujeitos no Brasil – que, aliás, a esta altura, dada a complexidade das origens, trajectórias de vida e escolar destes sujeitos, não sei se deveríamos continuar a pensá-los apenas a partir de suas vivências no Brasil. No estudo feito para analisar a experiência dos estudantes angolanos da Universidade Federal de Minas Gerais (GOMES, 2007), na parte dedicada á discussão da relação professor-aluno, percebe-se nos depoimentos uma descrição carregada de desafetos quando, na condição de estudantes, falavam sobre a realidade escolar angolana. Os entrevistados, imersos na cultura escolar que vivenciavam na UFMG, falam da relação professor-aluno como um bom exemplo, já que, esta é percebida como propiciadora de maior interação, abertura e possibilidade de estabelecer relações mais humanizadas.

“(...) onde em Angola você vai procurar o seu professor fora da sala!? Primeiro, não pode chamar o seu professor pelo nome. Tem essa questão muito forte.

114 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Aqui você pode contestar o que o seu professor está dizendo porque lá, o professor é o dono da verdade! O professor disse tá, tá falado. Você aqui pode dizer não, professor, não concordo. Isso é fantástico! [...] [...] a relação professor–aluno aqui é uma coisa fantástica. Eu não tenho como não reconhecer isto porque os nossos professores lá, não são como aqui; você tem dúvida, mesmo na sala de aula ou fora da aula, no corredor, você vai consultá-lo, enfim, lá é como se ele tivesse o rei na barriga. Tem portões de ferro. Você não consegue consultá-lo excepto na sala de aula. A própria literatura já é escassa... ele é que tem o livro... é o rei do saber e acabou. Ao passo que aqui não tem isso não. Então, é excepcional essa área, é formidável a relação aluno–professor aqui”. (GOMES, 2007:46)

De fato, tanto a percepção que os sujeitos da nossa pesquisa tiveram, quanto a constatação verificada no estudo acima referido no que tange ás relações professor-aluno nas instituições por onde passaram no Brasil, as opiniões não diferem entre si. Há congruência na descrição que fazem desta realidade inerente ao local de estudos. Por outro lado, ao se referirem ás relações professor-aluno nas instituições angolanas, mais uma vez, concordam de que elas são muito hierarquizadas, autoritárias, o professor é detentor do saber, etc., tornando a convivência muito pesada. A Professora Dituanga, por exemplo, quando se refere á percepção que tem em Angola da relação destes dois agentes do processo de ensino e aprendizagem diz que o que ela vê deixa-a muito triste. Ela reforça ainda que o aluno é coisificado.

“… aqui a relação entre professor e aluno me deixa muito triste ...o aluno é coisificado. Nós somos das Ciências Humanas e o que vejo é como que um ciclo vicioso ou vasos comunicativos. Se nós estamos aqui a 115 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes tratar os estudantes desta forma, eles também nos níveis inferiores vão fazendo a mesma coisa e no país fala-se de democracia, e essa democracia não é vivida ou vivenciada na sala de aula, então é complicado”.

Partindo do princípio de que a cultura escolar resulta de uma construção entre os sujeitos que partilham o mesmo espaço, as mesmas regras (formais e informais) e considerando que os sujeitos da nossa pesquisa, vindos de uma cultura escolar onde puderam experimentar outras formas de convivência entre professores e alunos tendo, por isso, incorporado em suas vidas aspectos dessa cultura escolar das instituições brasileiras em que estudaram onde, como dissemos atrás, os alunos e os professores procuram estabelecer relações menos hierarquizadas, mais abertas, com liberdade de expressão, facilidade de interação entre professores e alunos, mas sempre baseadas no respeito á autoridade profissional do professor. Isso difere das relações que se estabelecem entre professores e alunos dentro da cultura escolar angolana, onde estes aspectos são minimizados e/ou exaltados. No seu depoimento, a Professora M´pemba deixa muito clara essa situação quando afirma que

“[...] no Brasil por mais que haja essa toda simplicidade, abertura, interação... o aluno sabe que ele é aluno e o professor é professor... tem todo um mérito e no nosso contexto às vezes isso não acontece... o contexto nosso aqui é totalmente diferente do contexto do Brasil, em termos de respeito, em termos de consideração [...]”

Porém, é importante relembrarmos aqui que os professores, sujeitos com os quais estamos a lidar nesta pesquisa, todos partiram ao Brasil em condições de escolaridade compatível para cursar o ensino universitário o que significa que grande parte de suas trajetórias escolares fizeram-nas em Angola ou em outro lugar, pelo que, tiveram tempo e oportunidade para entrar em contacto e conhecer a cultura escolar angolana, seja na condição docente e/ou

116 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes discente. Contudo, mesmo assim, o retorno á realidade de origem, causou-lhes certo impacto negativo, nem sempre fácil de gerir no dia-a-dia como docentes – mais adiante falaremos das estratégias usadas pelos professores para a superação dos conflitos no âmbito da relação professor-aluno diante da cultura escolar – mas que é necessário enfrentar buscando sempre formas de superação, visto que, está em jogo a própria sobrevivência material e profissional que depende do trabalho que exercem.

A Professora Dituanga compartilha com os demais colegas, ex- estudantes nas terras brasileiras, o sentimento de que as culturas escolares vivenciadas neste país diferenciam-se daquela que está em destaque nas instituições escolares angolanas. Para ela, essa diferença contribuiu para que tivesse, no seu retorno a Angola, “um choque muito grande”, pois, aprendera no Brasil que a pessoa valia pelo que era e que o ser era o mais importante sendo, portanto, o parâmetro para o estabelecimento das relações interpessoais, diferente do que encontrou a ser praticado na escola em Angola.

“A princípio foi um choque muito grande. A cultura escolar é bastante diferente e é isso que me chocou inicialmente. Eu aprendi na escola brasileira, quer no seminário, quer na Universidade, que a pessoa valia por aquilo que ela era. Para mim, o ser era muito forte. Foi o que aprendi o que contraria totalmente aquilo que eu vim viver na escola em Angola. O ser não tinha lugar... o saber em si nada vale... o que eu vejo é que o aluno está ali simplesmente em busca do certificado então, isso aí me deixa transtornada até na minha relação entre professor e aluno na sala de aula.

Ora, tudo isto nos reforça a idéia de que uma experiência migratória como a vivenciada pelos sujeitos de nossa pesquisa, marcada por uma necessária imersão nos meandros da cultura escolar universitária brasileira para exercer com afinco o “ofício de aluno” (PERRENOUD, 1995), condição

117 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes sine qua non para a permanência no Brasil como estudante de acordo com as leis que regulamentam os convênios45 a que estavam ligadas estas pessoas, conduz-nos a conclusão de houve da parte destes ex-estudantes uma incorporação de parte desta cultura escolar em suas vidas tornando-os, na ação em Angola, diferentes aos angolanos, mas, também, não iguais aos brasileiros. Revestidos da condição de docentes de uma Instituição de Ensino Superior angolana, procuram encontrar formas para conciliar-se entre uma e outra cultura escolar. É, portanto, em meio a estas traduções e na busca constante deste equilíbrio entre a cultura escolar brasileira e a cultura escolar angolana que nasce uma nova cultural escolar que vamos denominar aqui de “escola angobrasileira”. Quais são as características desta escola? Como fazem estas pessoas para se conciliarem entre uma e outra cultura escolar?

4.4.1 - Características da “escola angobrasileira” com base na relação professor-aluno

“Escola angobrasileira” é uma nomenclatura que encontramos para tentar designar o conjunto de práticas tradutivas escolares empreendidas por docentes universitários angolanos que fizeram formação no Brasil na ação em Angola. Práticas estas que não se reconhecem ser totalmente brasileiras, mas não deixam de sê-lo, assim como não são totalmente angolanas, mas guardam traços dessa cultura escolar. Podemos assim dizer que estas novas práticas que nascem da fusão destas duas culturas escolares, guardando alguns traços tanto de uma, quanto da outra cultura, mas que não é mais nenhuma das duas identidades originais, é o que estamos a chamar aqui de “escola angobrasileira” que é gerada, nas palavras de HALL (2000), pelos processos interativos entre pessoas de origens

45 Confira o Manuel do Programa de Estudante Convênio de Graduação (PEC-G) que está disponível em http://portal.mec.gov.br/sesu/arquivos/pdf/CelpeBras/manualpec-g.pdf e o Manual do Estudante Convênio de Pós-graduação (PEC-PG) disponível em http://www.capes.gov.br/export/sites/capes/download/bolsas/Manual_PECPG.pdf, ambos consultados aos 20/06/2008 para ver as regras que disciplinam a permanência dos conveniados nas instituições acolhedoras. 118 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes diferentes nas situações entre migrantes e autóctones, sobretudo nas situações de co-presença espacial e temporal de sujeitos de origens diferentes como é o caso dos professores desta pesquisa, propiciando neste processo de tradução cultural o nascimento de teorias comprometidas, a dialética da negação onde a fusão da tradição e da modernidade se faz presente na inserção nesse “novo” mundo por meio de flash becks que muitas vezes introduzem novos cenários e novos conflitos.

[...] “na verdade eu tento fazer uma mistura. Não dá para incorporar tudo de lá porque as condições aqui são diferentes. Você tem que tentar se adequar ás condições locais” (Professora Tunga N´zola) [...] ás vezes quando eu chego aqui que eu encontro uma formalidade muito fechada, eu fico meio atrapalhada. (Professora M´pemba)

Em nosso projeto de pesquisa propúnhamos como formas de identificação das traduções dos traços do hibridismo cultural nas práticas dos docentes universitários angolanos do ISCED-UON, além de ouvir os próprios professores, aplicar um questionário aos alunos destes professores. Sendo assim, entrevistamos os professores e aplicamos o questionário obedecendo aos parâmetros avançados na parte em que falamos sobre os procedimentos da aplicação dos questionários aos alunos na Metodologia desta pesquisa. Nesta conformidade, o questionário46 buscava perceber as traduções dos traços do hibridismo nas práticas dos professores que estudaram no Brasil com base em alguns aspectos que pudessem evidenciar tais traços no campo das relações interpessoais entre professores e alunos. Assim, as questões submetidas ao crivo dos alunos procuravam esclarecer sobre disponibilidade ou não em dar aulas extras aos seus alunos, se o professor incentiva ou não o

46 Ver Anexo nº 5 relativo ao questionário aplicado aos discentes. Aproveitamos para relembrar que os dados resultantes deste questionário não foram trabalhados com profundidade tendo sido dado primazia aos depoimentos dos docentes entrevistados, estando presente neste corpo apenas as tabelas que resumem os aspectos analisados tanto para os decentes que estudaram e os que não estudaram no Brasil. As demais tabelas com as informações detalhadas também estão em anexo. 119 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes aluno a buscar conhecimento por si próprio e se os conhecimentos são ou não transmitidos em forma de verdade inquestionável. Ainda na senda da busca dos traços no âmbito da relação professo- aluno, há também questões voltadas a verificar o modo de agir, a postura no semblante e no tom de vos. Estas mesmas informações também estiveram patentes no questionário dirigido aos estudantes do ISCED-UON cujos professores não estudaram no Brasil que, como dissemos atrás, fizemo-lo para termos um importante ponto de referência entre as práticas ligadas a estes professores e as dos que estudaram no Brasil. Inicialmente vamos revelar os dados contidos na Tabela 12 onde estão as informações sobre disponibilidade ou não do professor em dar aulas extras, se o professor incentiva ou não o aluno a buscar conhecimento por si próprio e se os conhecimentos são ou não transmitidos em forma de verdade inquestionável.

Tabela 12: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON sobre situações da relação professor-aluno com os docentes angolanos que estudaram e os que não estudaram Brasil.

N Situação Professores angolanos

Estudaram no Brasil Não estudaram no Brasil Sim Não Sim Não F % F % F % F % 01 O professor mostra- se disposto a dar 377 88,0 52 12,0 62 21,0 240 79,0 aulas extras 02 O professor incentiva o aluno a buscar 429 100 00 00 104 34,0 198 66,0 conhecimento por si próprio 03 O conhecimento é transmitido em forma 68 16,0 361 84,0 122 40,0 180 60,0 de verdade inquestionável Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

120 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Os dados na Tabela acima revelam que 88% das respostas dos estudantes questionados admitem que seus professores mostram-se dispostos a dar, se necessário, aulas extras para acabar com as dificuldades dos alunos em relação à matéria dada. Por outro lado, apenas 12% das respostas dos questionados, correspondente a cinqüenta e duas (52) respostas recaíram sobre a opção NÃO como reposta quando perguntados se o professor dele que estudou no Brasil mostrava-se disposto a dar aulas extras aos alunos para acabar com suas dificuldades conforme solicitado na pergunta número seis (6) do questionário em anexo. Como resultados, esses dados indicam-nos que há uma grande tendência no professor angolano que estudou no Brasil em preocupar-se com o aluno e o seu aprendizado chegando a disponibilizar-se, se necessário para dar aulas extras aos mesmos. Não se pode dizer que uma ação como essa, dar aulas extras – em horário combinado fora da carga horária contratada – teria lugar também nas universidades brasileiras, pois com base em nossa experiência, o mais comum é fazer atendimentos pré-programados como complemento á carga horária contratual. Porém, no nosso entender, vislumbra-se nesta prática nos angolanos, o surgimento de algo novo nas ações destes professores que unem a disponibilidade verificada na relação professor-aluno na cultura escolar onde fizeram seus estudos ás necessidades dos alunos de sua nova instituição. Na mesma Tabela, quando analisamos as informações sobre as práticas dos professores angolanos que não estudaram no Brasil, relativamente aos mesmos aspectos atrás apresentados para os que estudaram no Brasil – disponibilidade ou não do professor em dar, se necessário, aulas extras para acabar com as dificuldades dos alunos em relação à matéria dada – vemos que há uma grande diferença na postura destes em relação a este assunto. Embora haja uma oscilação de um professor outro, em termos gerais, os índices das respostas dos alunos indicam que há 79% de chances do professor não se dispor a dar, se necessário, aulas extras para acabar com as dificuldades dos alunos em relação a matéria dada e 21% de possibilidade de aceitar em fazê- lo.

121 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Essa situação faz-nos relembrar as palavras de FRAGO (2000:100) que reforçam a idéia de que a cultura escolar não forma somente o clima e a cultura da instituição, mas também educam os seus sujeitos nos modos de pensar, agir e desenvolverem-se tanto dentro quanto fora da sala de aulas. Nessa conformidade, se revisitarmos as palavras da Professora Dituanga podemos dar-lhe razão quando diz que “a princípio foi um choque muito grande. A cultura escolar é bastante diferente e é isso que me chocou inicialmente”. Ainda sobre os dados que estão na Tabela 12, retomamos agora para falarmos do incentivo ou não do professor ao aluno para buscar conhecimento por si próprio e se os conhecimentos são ou não transmitidos em forma de verdade inquestionável. É evidente que, neste caso pode-se dar o caso de nos questionarmo-nos se ao usar aqui o conceito de transmissão de conhecimentos ao invés de mediação, intermediação, facilitador ou, até mesmo, socialização como diriam os mais modernos dos educadores, nós assumimos esse risco porque não queríamos respostas duvidosas a esse respeito. Conhecendo o contexto, pensávamos que esta palavra descrevia melhor a situação, pois em se tratando de recolha de dados que o próprio pesquisador não estaria presente, quanto mais claro pudéssemos ser, melhor seria. As respostas dos estudantes ás perguntas 7 e 8 do questionário revelam-nos que em relação o incentivo ou não aos alunos, 100% das respostas dos quatrocentos e vinte e nove (429) alunos questionados indicaram que seus professores que estudaram no Brasil incentivam-nos a buscar conhecimento por si próprio ao passo que quando analisamos as respostas dos que não fizeram essa mesma trajetória, constatamos que 64% das respostas indicam que estes não incentivam e 34% admitem que sim. Por outro lado, quanto à forma como o conhecimento é transmitido, 84% das respostas dos alunos de professores que estudaram no Brasil negam que o conhecimento seja transmitido em forma de verdade inquestionável ao passo que essa mesma análise quando feita em relação aos alunos que os professores não estudaram no Brasil esse índice baixa para 60% das respostas. A percentagem de respostas admitindo que os docentes trabalham o conhecimento como verdade inquestionável em suas aulas é de 16% e 40%

122 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes respectivamente para os professores angolanos que estudaram e para os que não estudaram no Brasil. Considerando que o objetivo fundamental que está na origem da criação do ISCED-UON é a formação de professores, podemos afirmar que ter no quadro, profissionais dispostos a dar aulas extras buscando com isso superar as dificuldades dos alunos; ter profissionais que não se sintam “donos” dos saberes transmitidos em sala de aula antes, pelo contrário, colocam-se na “posição de quem não sabe tudo” (GADOTTI, 1999: 2); ter na equipa pessoas que procuram incentivar os alunos a buscar conhecimentos, para além daquilo que é dado em sala de aulas, considera-se tudo isso muito benéfico para a formação do professor que desejamos no nosso país. Para isso, “é necessária a conscientização do professor de que seu papel é de facilitador de aprendizagem, aberto às novas experiências, procurando compreender, numa relação empática, também os sentimentos e os problemas de seus alunos e tentar levá-los à auto-realização” (SILVA, 2005) não devendo, o professor, preocupar-se somente com o conhecimento através da absorção mecânica de informações, mas também pelo processo de construção da cidadania do aluno. Para completar este raciocínio, penso eu, é fundamental que este professor tenha “postura crítica, criativa e científica” ao ensinar. Mas, (1) o que é que significa ter postura crítica no ensino? (2) O que é que significa ter postura criativa no ensino? (3) O que é que significa ter postura científica no ensino?

4.4.1.1 - O que é que significa ter postura crítica no ensino?

Na obra “Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática docente”, Paulo FREIRE (1998) ressalta que a prática docente crítica envolve o movimento dinâmico e dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer, pois o saber produzido por uma prática docente sem essas características é, indiscutivelmente, ingênuo e vazio. Para ele,

“(...) é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha

123 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. (...) é pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática”. (Freire, 1998:43)

Nessa mesma senda de idéias, Garcia (2002) reforça que os professores e as professoras críticas devem ser intérpretes e tradutores das necessidades e aspirações da população estudantil. Devem ser organizadores e problematizadores do pensamento e do saber dos outros, e desveladores de suas contradições. Mas isso só não basta. A teoria educacional crítica e seus intelectuais, sejam docentes ou não, têm que ser não só os que indicam os problemas, mas também os que articulam e oferecem as soluções no campo programático e político (o engajamento nas lutas partidárias, sindicais e populares), de modo que aqueles que são “objetos” dos programas de educação crítica se encontrem com sua “destinação social”. Segundo ela, é necessário que todos os que militam nesse campo compreendam e assumam a tarefa “de conduzir os segmentos sociais” a um melhor entendimento da experiência histórica vivida, pois cada indivíduo, de posse dessa compreensão, irá incorporar em sua visão e em sua prática no mundo a responsabilidade de transformá-lo coadunando, dessa forma, com os valores fundamentais defendidos pelos ideais da educação para o desenvolvimento sustentável (GOMES, 2007a) cujo guia é a UNESCO. Nessa conformidade, é nessa direção que o professor deve rever os seus “caminhos”, a sua “prática intelectual” e os “riscos do compromisso” assumido. Em suma, pode-se dizer que ter uma prática pedagógica crítica é também problematizar a realidade em que vivemos, não compactuar com a falta de compromisso com a educação e despertar interesse nos estudantes para discutir os problemas abrindo espaço para que haja crítica e autocrítica.

124 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.4.1.2 - O que é que significa ter postura Criativa no Ensino?

A criatividade não é um dom especial que só algumas pessoas possuem. Podemos desenvolvê-la se buscarmos continuamente a informação sobre tudo o que nos cerca, se tivermos sensibilidade para todas as coisas que acontecem à nossa volta e curiosidade para descobrir o que se esconde nas aparências dos fatos, dos objetos, das pessoas, etc., inclusive nas nossas próprias atitudes conscientes e/ou inconscientes. Ser criativo é não ver nas dificuldades o fim de tudo, mas sim, a possibilidade de um começo ou recomeço. Em síntese, ser criativo é ser capaz de reorganizar todas as observações, vivências e aprendizados armazenados em nossa mente e no momento necessário recorrer a estes para servir de base e dar uma reposta nova a situações antigas ou uma resposta ajustada a uma situação nova.

Trazendo tudo isso à “nossa” profissão docente, eu diria que ser um professor criativo é poder reunir na sua prática como docente, elementos da formação e das potencialidades de ordem pessoal que possam contribuir na tomada de decisões em relação ao que faz na sala de aula. É importante lembrar aqui que ninguém consegue ser criativo do nada, ou seja, não se pode criar quando não se sabe onde está e para onde vai. Ou seja, para ser mais direto, quando a pessoa não sabe o que faz. Lembro-me agora dos filmes “Sociedade dos poetas mortos” (Dead Poets Society, 1989)47 e “Mentes perigosas” (Dangerous Minds, 1995)48 que algumas vezes exibi aos meus alunos de um curso para formação de professores onde, os personagens vividos por professores mostram suas “doses” de criatividade sempre partindo de muito conhecimento dos conteúdos que ensinavam, aliando a isso, muita competência técnica e outras estratégias que somente a dimensão da vida cotidiana e conhecimento do contexto podem proporcionar. Portanto, o ser

47 O filme, vencedor do Oscar de melhor roteiro original, retrata as façanhas de um carismático professor de literatura que chega a uma tradicional escola preparatória onde este tinha sido aluno. Seus revolucionários métodos de incentivar os alunos a pensarem por si mesmos, criam um choque com a ortodoxa direção da escola. É muito interessante! 48 O filme retrata a situação de uma professora de inglês que tem que lidar com alunos rebeldes logo na escola em que começa a lecionar. Oficial da marinha (vivida por Michelle Pfeiffer) abandona a carreira militar para realizar um antigo sonho de ser professora de inglês. Mas, o grupo de alunos rebeldes que tem pela frente, logo na primeira escola em que leciona, coloca à prova todo seu treinamento e experiência adquirida na caserna. Muito bom!

125 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes criativo, não significa ser um “professor aloprado”49. Muito pelo contrário, é preciso equilíbrio, sabedoria e, sobretudo bom senso no uso das estratégias, das ferramentas metodológicas, das potencialidades e das oportunidades favoráveis à produção de conhecimentos, disponíveis no tempo e nos espaços onde estamos inseridos profissionalmente.

4.4.1.3 - O que é que significa ter postura Científica no Ensino?

É reconhecer, em primeiro lugar, que somos seres humanos e vivemos na condição de “inacabados” ou “inconclusos” pelo que precisamos do auxílio de uns dos outros para superarmos a nossa própria “incompletude” e a dos outros, inclusive nos conhecimentos científicos. Portanto, o docente não deve dar aos alunos saberes finitos, ou seja, saberes prontos e acabados sem espaço para discussão; é necessário que haja espaço para a crítica construtiva, para a dúvida “destemida e persistente”, pois a ciência tem um caráter dinâmico e temos que entendê-la assim se não quisermos que os nossos alunos sejam como diriam os latinos, “tocororos”, isto é, pessoas que repetem as coisas sem saber o que é que estão a dizer.

Pode-se dizer ainda que ter uma postura científica no ensino é entender que, eu, como professor, não sou o dono do saber ou, simplesmente, o saber personificado, mas sim, parte integrante de uma rede de saberes onde atuo como facilitador naquilo que os outros – nesse caso, os alunos – são ignorantes e nunca “burros” ou, “tabulas rasas”. Essa condição significa também que a pessoa que ensina não deve levar a vida profissional com “ligeireza” ou leviandade, improvisando nos conteúdos sem uma fundamentação científica que coadune com o nível de escolaridade a que se destinam as aulas contrariando, dessa forma, os princípios que há muito vêem

49 O Professor aloprado (The Nutty Professor, 1996) é o título de um filme norte-americano que tem no seu elenco atores fascinantes como, por exemplo, Eddie Murphy, em uma atuação de muitos papéis, um homem gordo e de bom coração, fazendo pesquisa com DNA, descobre uma fórmula revolucionária, ao mesmo tempo em que se apaixona por sua colega de trabalho Carla (Jada Pinkett). Ele resolve beber a fórmula - que o deixa magro e cheio de sensualidade - para tentar conquistar Carla, o que, claro, promove muita confusão.

126 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes sendo defendidos pela didática moderna. Em poucas palavras, ter postura científica no ensino significa que o professor deve saber muito bem aquilo que vai ensinar num dado momento e local. Portanto, orientar trabalhos em grupo para temas que constam dos programas de curso e que os professores não dominam, forçando os alunos a fazerem levantamentos bibliográficos de forma “desordenada” para tentar preencher lacunas deixadas por falta de ordem, como vi suceder em algumas ocasiões, é ficar na contramão do que se defende aqui, por exemplo. Por fim, nesta parte do nosso estudo em que abordamos a relação professor-aluno no âmbito das características da “escola angobrasileira”, vamos aproveitar para reforçar a idéia de que o prazer pelo aprender não é uma atividade que surge espontaneamente nos alunos, pois, não é uma tarefa que todos cumprem com satisfação sendo, em alguns casos, encarado como obrigação por ser apenas um caminho para obtenção do diploma que dá direito á promoção salarial ou social, por exemplo. Sendo assim, a meu ver, o aprender se torna mais interessante quando o aluno se sente competente pelas atitudes e métodos de motivação engendrados em sala de aula pelo professor. Por essa razão, ao revisitamos os dados contidos na tabela 19, animam- nos as respostas dos estudantes, pois conduz-nos ao entendimento de que os docentes que compõe a “escola angobrasileira” procuram associar á cultura escolar da instituição em que trabalham em Angola, alguns aspectos das culturas escolares das instituições onde estudaram no Brasil, produzindo novas formas de lidarem com os alunos e com os saberes socializados conjugando, deste modo, com as exigências demandadas pela postura crítica, criativa e científica. Sendo assim, é possível apreender, desde já, que o fato de terem estudado no Brasil tem contribuído na criação de novas formas de praticar a docência em Angola.

127 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.4.2 - Características da “escola angobrasileira”: postura e colocação da voz na relação professor-aluno

No intuito de continuar revelando os aspectos que caracterizam a “escola angobrasileira” a partir da relação professor-aluno, para além de termos ouvido os próprios docentes acerca dessa relação, tal como estava previsto no projeto, indagamos, por meio de um questionário, os alunos destes professores para que pudéssemos revelar a atitude destes na postura do semblante e na colocação da voz ao lidarem com os alunos posturas que, no nosso entender, podem gerar aproximação ou distanciamento entre estes agentes do processo de ensino e aprendizagem. Conforme vínhamos procedendo em relação aos dados apresentados em tabelas anteriores, onde disponibilizamos informações referentes aos professores que estudaram no Brasil, mas também tabeladas as respostas dos alunos relativamente á atuação dos docentes angolanos que não estudaram no Brasil, ou seja, os docentes desta instituição que não fazem parte da “escola angobrasileira”, seguindo esta mesma linha, os dados contidos na Tabela 13 revelam-nos que 97% das respostas dos estudantes de professores da “escola angobrasileira” usam um tom de vos amigável ao se relacionarem com os alunos o que contrasta com as respostas dos alunos daqueles que não estudaram no Brasil, cujas respostas apontam para 87% de um tom de vos ameaçador. Da mesma maneira, quando apuramos as respostas dos estudantes relativamente abertura e disponibilidades do professor no relacionamento com os alunos, percebe-se que 97% dos estudantes de professores da “escola angobrasileira” apresentam um semblante aberto e disponível, diferentemente das respostas dadas em relação aos que não estudaram no Brasil que apontam um índice de 92% de indisponibilidade nas suas relações com os alunos. O cenário que nos é revelado por estes dados, traz-nos novamente a ribalta as palavras da Professora Dituanga acerca do choque que teve ao voltar a interagir com a cultura escolar angolana, uma vez que estava acostumada no Brasil com outro modo de interação entre professores e alunos baseados em

128 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes critérios menos hierarquizadores. Mas, embora tudo isso possa parecer agradável á luz das teorias que abordam o processo de ensino e aprendizagem, uma vez que os professores da “escola angobrasileira” praticam exatamente aquilo que se espera de um professor, isso não traria também conflitos para eles mesmos neste meio em que estão inseridos? Como é que eles fazem para se equilibrarem entre si próprios e as demandas da cultura institucional? Como a cultura escolar é recodificada pelos docentes ao serem confrontados com as experiências culturais vividas na escola uma vez que admitem que a ida Brasil mudou-lhes? [...] “eu acho que essa minha ida ao Brasil, mudou-me muito, abriu mais a minha cabeça... a carga intelectual que eu trouxe é maior que antes e também ganhei uma certa liberdade, porque a carga de conhecimentos que você traz vai te dar mais liberdade na sala de aula” (Professora Tunga N´zola) Finalmente, que outros indicadores há em relação ás formas de interação entre esses professores e seus alunos nesta instituição?

Tabela 13: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON em relação à postura no semblante e no tom de vos dos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil. N Situação Professores angolanos

Estudaram no Brasil Não estudaram no Brasil Sim Não Sim Não F % F % F % F % 01 O professor apresenta um tom 415 97 14 3,0 44 15,0 258 85,0 de vos amigável 02 O professor apresenta um tom 22 5,0 407 95,0 262 87,0 40 13,0 de vos ameaçador 03 O professor apresenta um 418 97,0 11 3,0 23 8,0 279 92,0 semblante aberto e disponível Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

129 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.4.3 - Características da “escola angobrasileira”: modo de agir na relação professor-aluno

As perguntas 12, 13 e 14 do questionário dirigido aos estudantes agrupam questões no âmbito da relação professor-aluno cujos resultados encontram-se condensados na tabela 16 que á continuação será exibida. Nela podemos perceber que as respostas dos alunos da “escola angobrasileira” indicam que todos (100%) eles, ao lidarem com os alunos, não se preocupam com o grupo étnico, ao passo que as respostas concernentes aos que não estudaram no Brasil apontam uma grande tendência destes de se preocuparem com o grupo étnico do aluno, visto que, os dados na tabela apontam um índice de 87% das respostas positivas em relação à pergunta “ao lidar com os alunos o (a) professor (a) se preocupa com o grupo étnico? Contudo, embora os dados nos revelem esse modo de agir em relação aos professores da “escola angobrasileira”, considerando que os próprios docentes admitiram na entrevista que não é usual preocuparem-se com o grupo étnico do aluno, pois tratam todos eles igualmente, diante da diversidade constitutiva da sociedade angolana e tendo em conta as origens dos próprios professores pesquisados, é inevitável não deixar transparecer alguns traços dessa preocupação étnica ao lidar com o aluno. Como prova disto, podemos ler nas entrelinhas do depoimento da Professora Tunga N´zola que, quando indagada se tinha alguma relação diferenciada com os alunos em função da origem étnica ou da cidade de nascimento, ela declara que não fazia distinção entre os seus alunos, mas ao mesmo tempo em que diz isto deixa escapar que presta atenção nos sotaques deles para identificar de onde são.

[...] trato todo mundo da forma equitativa. Não faço distinção. Agora, o que me chamou atenção neste semestre[...] tenho uma turma que tem dois estudantes que vieram de Luanda só para estudar[...] fizeram lá o médio. São tão dedicados [...] são tão aplicados... querem interagir e o resto da turma não aceita isso! Deu para notar que não eram daqui por causa do sotaque.

130 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Um belo dia, os dois vieram e disseram que queriam mais material para poder aprofundar a matéria. Queriam que eu desse mais material para eles e se identificaram de onde vieram e o que é que estavam fazendo aqui... conversamos e acabei percebendo... mas, logo de início eu soube logo por causa do sotaque. É interessante isso!

A percepção destes estudantes em relação aos modos de agir dos seus professores que estudaram no Brasil, quando dispensam a preocupação com o grupo étnico nos seus relacionamentos com os alunos, no nosso entender, é coerente com o que se espera de um indivíduo que tenha experimentado vivências interculturais. Mas, em se tratando de pessoas provenientes de um país em que as questões ligadas á origem (grupo étnico/cidade natal) são importantes para auto-afirmação da identidade e para a noção de pertencimento ao grupo, negar totalmente esta realidade pode parecer pouco realístico, pois o normal seria o que foi revelado com base nas respostas dadas pelos alunos dos docentes que não estudaram no Brasil onde 87% das respostas indicam que os professores demonstram preocupação com o grupo étnico ao se relacionarem com os alunos e apenas 13% das respostas dos questionados indicarem que não o fazem. Esse comportamento demonstra- nos, de certa forma, o movimento que estes sujeitos fazem no sentido da negociação de suas próprias identidades que passa, inclusive pela relação com os seus colegas docentes.

[...] entre nós colegas já existe esse conflito. É a chamada escola brasileira... escola cubana... eu acho que tínhamos que acabar com isso primeiro porque é complicado se pensar nessas relações assim porque internamente existem esses conflitos. (Professora Tunga N´zola)

131 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tabela 14: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON relativas ao modo de agir dos professores angolanos que estudaram que estudaram e não estudaram no Brasil

N Situação Professores angolanos

Estudaram no Brasil Não estudaram no Brasil Sim Não Sim Não F % F % F % f % 01 O professor se 00 00 429 100 262 87,0 40 13,0 preocupa com o grupo étnico 02 O professor se 00 00 429 100 167 55,0 135 45,0 preocupa com o gênero 03 O professor se 345 80,0 84 20,0 146 48,0 156 52,0 preocupa com a idade 04 O professor se 26 6,0 403 94,0 273 90,0 29 10,0 preocupa com a cidade natal 05 No geral, o professor 429 100 00 0,0 56 19,0 246 81,0 te inspira a gostar mais da profissão Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

Tratando-se de uma instituição voltada á formação de professores, nessa tabela chama-nos ainda atenção o índice das respostas dos alunos em relação á pergunta número 14 do questionário onde é solicitado o estudante para emitir sua opinião se o professor inspira-o ou não a gostar da profissão docente. Como vemos espelhado na tabela, todas (100%) as respostas dos alunos dos professores que estudaram no Brasil indicam que estes servem de inspiração na profissão ao passo que quando verificamos os dados referentes ás resposta dos professores que não estudaram no Brasil, o índice de inspiração é de 19% e o da não inspiração para o gosto da profissão docente é de 81% das respostas. As palavras de CATANI (2003:29) evocam elementos que nos ajudam a refletir acerca dos dados acima apresentados. Como bem diz ele, quando o nosso próprio objeto de trabalho é a formação alheia, todas as dimensões de nossa história pessoal ganham maior relevo. Pensa-se, segundo ele, que as próprias práticas profissionais dos indivíduos enquanto docentes devem muito

132 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes aos processos formadores que eles próprios experimentaram ao longo de seu desenvolvimento. Nessa perspectiva, quando olhamos para os resultados dessa pergunta não há como não despertar em nós, como professores desta instituição, a vontade de continuar fazendo alguma coisa que contribua na formação da postura crítica, criativa e científica nestes estudantes, futuros professores ou até mesmo, professores em pleno exercício de suas funções, pois como dizia a Professora Dituanga, estamos a criar um ciclo vicioso ou vasos comunicativos onde, eles fazem com os alunos dos outros níveis aquilo que nós fazemos deles. Por essa razão, acredito que temos que repensar, com urgência, a formação dos nossos professores e, concomitantemente, a forma que nós, professores do presente trabalhamos na formação da nova geração de professores, pois a esta altura, já não nos basta pensar somente nos conteúdos programáticos que devem ser “dados” ou discutidos nas diferentes disciplinas em nossas escolas, mas, deve-se pensar também, ao mesmo tempo, “a maneira mais aberta, autoritária, dialógica ou mais fechada” (FREIRE, 1998) com que esses conhecimentos são ensinados por este ou aquele professor pois, dada a complexidade que envolve a tarefa de ensinar – que alguns aventureiros julgam-na com simplicidade e ligeireza – é preciso, como já disse, repensarmos e talvez re-conceituarmos o nosso sistema educativo como um todo de modo a darmos um fio de esperança para as próximas gerações e formarmos um professor que seja capaz de atuar de maneira “crítica, criativa e científica”.

Num cenário como esse, uma pergunta não se deixa calar: como é que estes professores angolanos do ISCED-UON que estudaram no Brasil fazem para se conciliarem entre as práticas docentes inerentes a “escola angobrasileira” e as questões próprias de si e as da cultura escolar angolana inerente á instituição onde trabalham? Ou seja, para sermos talvez mais diretos, que estratégias estes docentes usam para a superação dos conflitos resultantes da relação professor-aluno diante da cultura escolar?

133 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.4.4 – Estratégias para a superação dos conflitos na relação professor- aluno diante da cultura escolar

Apresentamos parte das práticas que preconizamos para o nosso estudo em relação aos professores universitários angolanos do ISCED-UON que estudaram Brasil com base nos dados colhidos a partir do questionário aplicado aos estudantes e nos depoimentos dos próprios docentes no que concerne á relação professor-aluno. Agora vamos delinear as estratégias usadas por estes professores para superarem os conflitos que surgem no âmbito desta relação diante da cultura escolar. As estratégias percebidas nas entrelinhas dos depoimentos dos quatro docentes ouvidos indicam que taticamente adotam as seguintes estratégias: “estabelecer diálogo e amizade com os alunos”, “conceber o aluno como sujeito do processo de ensino e aprendizagem”, “contrato didático” e “simplicidade”. Contudo, importa ressaltar que embora elas estejam aqui didaticamente separadas para permitir melhor tratamento, na prática elas implicam-se entre si podendo uma complementar a outra e nunca a exclusão. Antes mesmo de nos debruçarmos detalhadamente acerca das táticas adoptadas por estes professores da “escola angobrasileira”, poderíamos nos colocar algumas perguntas sobre estas táticas, mas sem a pretensão de respondê-las aqui: será que as estratégias de diálogo e amizade com os alunos, o contrato didático e a simplicidade que estes docentes adotam no ISCED-UON são iguais aos modelos que estavam habituados nas instituições brasileiras? Caso não seja, podemos considerar essas práticas como sendo novas, surgidas a partir das traduções dos traços do hibridismo cultural?

134 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.4.4.1 - Estabelecer diálogo e amizade com os alunos: “eu apostei no diálogo”.

A relação entre professor e aluno, a nosso ver, depende fundamentalmente, do clima estabelecido pelo professor, da relação empática com seus alunos, de sua capacidade de ouvir, refletir e discutir o nível de compreensão dos alunos e da criação das pontes entre o seu conhecimento e o deles. Porém, apesar da importância da existência do diálogo, da afetividade, da confiança, da liberdade, da empatia e do respeito entre professores e alunos para que se desenvolva equilibradamente o processo de ensino e aprendizagem, os “professores não podem permitir que tais sentimentos interfiram no cumprimento ético de seu dever de professor”, pois situações diferenciadas adotadas com um determinado aluno, apenas norteadas pelo fator amizade ou empatia, não deveriam fazer parte das atitudes de um “verdadeiro professor” que prima pela postura crítica, criativa e científica. (SILVA, 2005).

É, portanto, conjugado com estes “nobres” preceitos pedagógicos que os professores provenientes de instituições de Ensino Superior brasileiras onde, segundo eles mesmos, as práticas que tratam de estabelecer um ambiente favorável á afirmação do ensino e da aprendizagem é comum, procuram aplicá- la á realidade da cultura escolar da instituição de “sua terra de origem”, sempre fazendo as adequações necessárias. Pensamos nós que essa postura conjuga com as práticas apontadas pelos seus alunos que mediante o questionário indicaram que seus docentes que estudaram no Brasil – ver itens de 4.4.1 a 4.4.4 – apresentam abertura e disponibilidade para com os alunos (97%), têm um tom de vos amigável (97%), preocupam-se com a idade (80%) dos alunos, mas não com o grupo étnico (100%) e nem com a cidade natal ( 94%) destes. Para a Professora Dituanga, por exemplo, sempre que se vê mergulhada em conflito diante das demandas da relação professor-aluno, vê no diálogo a ferramenta para reencontrar o equilíbrio entre as práticas inerentes á cultura escolar do local de sua formação no Brasil e as do local do seu trabalho em Angola. Para isso, primeiro procura atrair os alunos junto de si e lhes mostrar

135 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes que apesar de estarem a conviver, daí a pouco estarão a fazer Ciência, pois cada coisa tinha o seu tempo e o seu devido lugar.

Minha estratégia sempre foi dialogar. Muito diálogo. Eu apostei no diálogo. Eu fui mostrando para eles o estilo da escola onde nós fomos preparados. O brasileiro é um amigo. Acima de tudo, um amigo, mas nunca misturou as coisas. Cada coisa tinha o seu tempo e o seu devido lugar. Então é isso que eu queria. Primeiro atrair os alunos junto de mim e lhes mostrar que apesar de estarmos a conviver, daqui a alguns minutos nós vamos fazer a Ciência... vamos exigir, então isso lhes deixava assustados. Eles queriam trocar. Já que ela está rindo conosco, está conversando conosco, ontem passeamos juntos, então tudo fica por aí porque é isso que eles queriam. Eu dizia que não. A amizade, o diálogo, a aproximação tem que haver mesmo, mas na hora de fazermos aquilo que nos faz estar aqui, vamos exigir!

Como pudemos apreciar nessas palavras, baseada na escola de sua formação procura criar uma nova forma de relacionar-se com os alunos que certamente não seria igual á maneira como é na escola onde estudou, mas também se igualam á escola que encontrou em Angola uma vez que ela mesma mostra-se preocupada em realçar aos alunos que na escola onde estudou, o brasileiro é um amigo. Acima de tudo, um amigo, mas nunca misturou as coisas. Cada coisa tinha o seu tempo e o seu devido lugar. Porém, quando procura aplicar essa máxima aos seus alunos percebe que há outra interpretação da mensagem por parte deles: já que ela está rindo conosco, está conversando conosco, ontem passeamos juntos, então tudo fica por aí porque é isso que eles queriam. Eu dizia que não! Portanto, pensamos nós que a situação acima descrita nas palavras desta professora e que pela minha experiência posso afirmar que se repete nos demais docentes da mesma “escola angobrasileira”, somente o surgimento de

136 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes algo novo, considerado híbrido, seria capaz de englobar em si estas práticas, pois se entendermos o hibridismo tal como o definiu CANCLINI (2003) como sendo “o processo sociocultural no qual as estruturas ou práticas discretas que existiam separadas se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”, podemos afirmar que esta estratégia dos professores angolanos do ISCED-UON que estudaram em instituições de Ensino Superior brasileiras é uma prática docente hibridada, pois estas práticas docentes destoam daquelas que são usadas nas escolas onde estes angolanos estudaram no Brasil mas não deixam de sê-las e, pelos levantamentos feitos a partir do questionário aplicado aos alunos, vimos também que estas não se igualam ás práticas usuais no ISCED-UON. Portanto, em nossa opinião, temos algo novo que permite com que essas pessoas encontrem o equilíbrio necessário entre as duas culturas escolares.

4.4.4.2 – Conceber o aluno como sujeito do processo de ensino e aprendizagem

À luz das características até aqui delineadas sobre as práticas docentes dos professores universitários angolanos que se formaram no Brasil, pudemos vislumbrar que estes procuram praticar uma relação diferenciada com os seus alunos (mais aberta, menos hierarquizada, etc.) quando comparados com as práticas dos outros professores da instituição que não estudaram no Brasil. Porém, essas práticas docentes ligadas a esses professores, ao mesmo tempo em que estas os diferenciam dos seus colegas, também não se igualam ás das escolas onde estudaram no Brasil. Como já dissemos atrás essas novas práticas denominamo-las de práticas docentes híbridas. Diante dos conflitos provocados pelas práticas docentes híbridas exige- se, desse docente, algumas estratégias para poder lidar com essa situação. É nessa circunstância que entra em ação a estratégia que denominei de “conceber o aluno como sujeito do processo de ensino e aprendizagem” fazendo com que este se sinta capaz de construir o conhecimento produzido em sala de aula assumindo-se como ativo e não passivo. Essa postura conjuga

137 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes com as respostas dos alunos ao questionário onde 100% das respostas indicaram que os professores que o estudaram no Brasil incentivam-nos a buscar conhecimento por si só e que conhecimento não é transmitido por eles como sendo verdade inquestionável (84%). Relativamente á concepção de tratar o aluno como sujeito do próprio processo de ensino e aprendizagem, as palavras do Professor Micanda e da professora Dituanga sintetizam bem essa estratégia. O Professor Micanda considera que o estudante já tem conhecimento prévio daquilo que se vai tratar em função do programa e outros materiais já disponibilizados, por isso o professor não precisa agir como sabichão, mas, sim, como condutor do processo retirando-se do centro.

[...] eu tenho um princípio em que os nossos estudantes eles já têm um conhecimento prévio daquilo que se vai tratar porque nós temos um programa e estabelecemos metas e, geralmente, no início de cada aula nós colocamo-nos em pé de igualdade com os estudantes. Aliás, sabe que o professor não é aquele professor que hoje em dia já não se pode considerar como indivíduo “sabichão”... aquele que sabe tudo... que ensina tudo e o estudante só está lá para receber. Não é isso que acontece comigo. Geralmente, nas minhas aulas, a dinâmica que eu utilizo aqui inicialmente são os próprios estudantes que se devem pronunciar sobre determinado tema, os outros colegas vão complementando ou vão corrigindo aquilo que estiver errado, depois é que entra o papel do professor para efetivamente também guiar os estudantes, ajudá-los naquilo que estiverem errados e no fim nós tirarmos as nossas conclusões.

Por outro lado, a professora Dituanga chega, inclusive a forçar os alunos para assumirem esse lugar de sujeitos do próprio processo de aprendizagem, já que, algumas vezes eles não querem fazê-lo espontaneamente.

138 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes

[...] eu vejo que tenho algo também por aprender deles. Eu procuro colocar o estudante como sujeito desse processo. De início eles não querem se assumir nesse lugar, mas eu empurro e faço eles assumirem esse lugar. Faço isso como um jogo psicológico para que eles estejam na posição central. Aqui o professor é o centro... ele é que sabe e o aluno é aquele que não sabe. É uma relação terrível. No Brasil eu vi a realidade diferente, trabalhamos com o construtivismo, o fazer coletivo, então aqui também apostamos nisso.

4.4.4.3 – Contrato didático

Dizíamos atrás que tratar das relações humanas no interior dos componentes do processo de ensino e aprendizagem, não é uma tarefa fácil, sobretudo quando nós mesmos fazemos parte desta relação, ou seja, somos também sujeitos e objetos desta atividade em que o trabalhador se dedica ao seu “objeto” de trabalho, que é justamente outro ser humano, no modo fundamental da interação humana. Para tentar encontrar equilíbrio, próprio dessa relação entre humanos, mas também não se esquecendo das contradições vividas por estes professores angolanos do ISCED-UON que estudaram no Brasil diante da cultura escolar da instituição em que trabalham, adotam o contrato didático como instrumento fundamental para o estabelecimento da convivência entre eles e os estudantes com vista a criar um ambiente favorável para o alcance dos objetivos preconizados pelo grupo. Uma das grandes vantagens desta estratégia é que as regras são produzidas coletivamente entre o professor e os alunos criando assim um ambiente menos propenso á violação destes acordos. Para a Professora M´pemba que diz ter a cautela de usar sempre essa estratégia no primeiro dia de aulas, considera-a muito importante porque é o momento que ela usa para trabalhar também as questões de comportamento

139 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes dos alunos na disciplina que leciona. Estes aspectos discutidos em sala de aula, muitas vezes, extrapolam e vão para além deste espaço como ela mesma diz:

Eu procuro deixar os alunos mais ou menos à vontade. A partir do contrato didático que eu faço com eles eu exijo respeito... eu tenho a cautela de logo no primeiro dia de aula fazer um contrato didático com eles. E aí eu procuro trabalhar muito a questão do comportamento e a mudança de comportamento. Então a gente traz muitos aspectos de casa daí, a pessoa tem que estar um pouco desarmada porque senão você não consegue passar a mensagem... na medida do possível eu procuro conversar com eles, quebrar um pouco o gelo dentro da sala de aula, quando os encontro digo bom dia, boa tarde se eu lembrar da cara, se não lembrar também às vezes eu passo.

4.4.4.4 – Simplicidade

Conforme tivemos a oportunidade anunciar atrás, estas estratégias adotadas por estes professores devem ser vistas num conjunto de ações que se unem para dar vida a um modelo de relacionamento que estas pessoas estabelecem com os estudantes não podendo, portanto, ser tratadas de maneira isolada/separada entre elas. Uma estratégia, dependendo da circunstância pode ser usada para complementar a outra, visto que, tratam-se dos mesmos sujeitos em situações pedagógicas. Neste caso, em especial, quando falamos da simplicidade como estratégia para superação dos conflitos na relação professor-aluno, diante da cultura escolar, estamos nos referindo exatamente a esse modo peculiar destes professores em permitir com que o aluno fale, em criar um ambiente menos hierarquizado, em incentivar o aluno a acreditar na sua capacidade,

140 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes facilitando a aproximação emocional do aluno, interessando-se por ele independentemente do seu grupo étnico, etc. Para a Professora Tunga N´zola, tudo isso é característico na “escola brasileira” e ajuda muito na sua relação com os alunos, pois contribui que eles aproximem, interajam mais, fiquem mais à vontade, condições essas que ajudam para o sucesso no processo de ensino e aprendizagem, contrariando outros posicionamentos considerados rígidos, autoritários que, por vezes, impedem práticas como estas por parte dos alunos o que, muitas vezes, inviabiliza toda a cadeia de esforços coletivos levando o aluno ao insucesso escolar. [...] o que caracteriza essa escola brasileira é essa abertura, essa liberdade de expressão, essa facilidade de interação com os estudantes. Porque, às vezes, é aquela coisa que nós vemos aqui que o professor está aqui e o estudante está lá... mas lá no Brasil é que o professor está ali e é chamado pelo próprio nome e nós ficamos aqui com aquela pompa toda de Doutor... Doutor... aquela simplicidade deles também acho que isso também me tem ajudado muito no processo de ensino aqui. A pessoa ser mais simples e com isso o estudante tenta se aproximar mais e isso facilita... o estudante tenta se aproximar, tenta ficar mais à vontade com o docente e isso facilita essa interação, esse diálogo e até ajuda no processo de ensino e aprendizagem do que aquela coisa de você ser tão rígida, tão autoritária... isso às vezes dificulta muito, mas quando eles se sentem com mais liberdade poder tirar dúvidas, pode chegar mais perto, saber o que é que eles podem fazer para poder melhorar aquilo que está mal...

141 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.5 – Traços do hibridismo no processo avaliativo

4.5.1 – Revisitando o conceito de avaliação, as funções da avaliação, as técnicas e os princípios básicos da avaliação no processo de ensino e aprendizagem

Como seres humanos, a avaliação está sempre presente no nosso dia- a-dia. Estamos o tempo todo a recolher informações, analisando-as e tomando decisões baseados em nossos julgamentos e valores. Todo dia ao acordarmos realizamos diversas avaliações desde decidir a roupa que iremos vestir até o que iremos comer no pequeno almoço, caso o façamos. Durante o dia somos avaliados e avaliamos de diversas formas: como nos comportamos com outras pessoas, o que falamos, a maneira como falamos, o que fazemos, a maneira como o fazemos, etc. A avaliação escolar que nos propusemos a falar nesta parte do trabalho envolve tudo isto e vai, além disto. Falar da avaliação escolar não é uma tarefa fácil, visto que as concepções, as técnicas e até as motivações que permeiam essa tarefa, influenciam-na podendo, inclusive, variá-la de uma cultura escolar para outra, de um docente para outro, de uma situação avaliativa para outra, etc. Sendo assim, para iniciarmos o nosso diálogo reflexivo, vamos apontar algumas questões para que, a partir delas, possamos pensar antes de expressarmos os traços do hibridismo cultural a partir das traduções que estes docentes fazem na sua prática avaliativa. São elas: 1) O que é avaliação? 2) Qual é a função da avaliação? 3) Quais são as técnicas e os princípios básicos da avaliação?

4.5.1.1 - O que é avaliação?

Podemos encontrar, na literatura específica, diversas definições de avaliação. Contudo, aqueles que consultamos convergem em um ponto: consideram a avaliação como um PROCESSO. Essa condição de ser um processo atribui-lhe, em nossa opinião, um carácter contínuo que deve

142 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes possibilitar, em princípio, “idas e vindas” distante, portanto da estaticidade que alguns “teimam” imputar-lhe. Para Krasilchik (1998), por exemplo, a avaliação

“É um processo dinâmico que visa obter e interpretar dados sobre o aprendizado dos „aprendizes‟ e informá-lo à escola, à família e aos próprios alunos a fim de saberem de seus desempenhos visando aperfeiçoá-los”.

Nesta mesma direção, porém com alguns acréscimos, GOMES (2004) entende por AVALIAÇÃO o “processo que visa medir o desempenho pessoal ou de outrem por meio de uma escala de valores quantitativos e/ou qualitativos”50. Para LIBÂNEO (1994), “a avaliação é um componente do processo de ensino que visa, através da verificação e qualificação dos resultados obtidos, determinar a correspondência destes com os objetivos propostos e, daí, orientar a tomada de decisões em relação às actividades docentes e discentes seguintes”. Outra definição sobre a avaliação que considero ser mais abrangente por concentrar a maior parte dos segmentos da escola encontramo-la na obra de PILETTI (2000) que diz:

“A AVALIAÇÃO é um processo contínuo de pesquisas que visa interpretar os conhecimentos, habilidades e atitudes dos alunos, tendo em vista mudanças esperadas no comportamento, conforme proposto nos objetivos, afim de que haja condições de decidir sobre alternativas no planejamento do trabalho do professor, do aluno e da escola como um todo. (grifo meu)

50 Grifo conforme o texto original. 143 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.5.1.2 – Quais são as funções da avaliação?

ALVES (In: Moreira et all, 2002:140) aponta três orientações dominantes na avaliação das aprendizagens escolares, que são: uma centrada essencialmente no resultado ou no processo da aprendizagem e tendo uma função de controlo à qual ela denomina por SUMATIVA; outra centrada essencialmente no processo e assumindo uma função de controlo que recebe a denominação de FORMATIVA e, por fim, a FORMADORA centrada no processo, mas privilegiando a auto e a co-avaliação. Outra concepção que podemos acrescer aqui é a função DIAGNÓSTICA ou ANTECIPADORA que se aplica no início do ano lectivo, no início de uma disciplina, no início de uma nova unidade temática, etc., e tem como finalidades diagnosticar as particularidades e habilidades que os alunos têm como pré-requisitos necessários para participar com equilíbrio no processo de ensino e aprendizagem. Em relação à avaliação SUMATIVA, alguns autores dividem-na em normativa e criterial com classificações quantitativas e qualitativas. Porém, na óptica de ALVES, todos coincidem em um ponto: ela destina-se a classificar51 os alunos e realiza-se no fim do processo formativo (no fim do semestre lectivo, no fim do ano escolar, no fim da unidade temática, etc.). O conceito de avaliação formativa foi estabelecido, segundo ALVES (2002:142), em oposição ao de avaliação sumativa. Segundo ela, este tipo de avaliação, mais do que uma avaliação-sansão, trata-se de uma avaliação que, como sustenta Cortesão (1993 In: Alves, 2002:143) contribui para uma boa regulação das atividades tanto no âmbito do dispositivo pedagógico assim como na regulação das atividades dos aprendentes no decorrer dos processos de ensino e de aprendizagem. Pode-se reforçar ainda que ela tem a função controladora e destina-se a informar ao professor e o aluno, o rendimento escolar possibilitando-lhes localizar as deficiências no processamento do ensino e da aprendizagem pelo que, aplica-se ao longo do processo. Por sua vez, a avaliação formadora, tal como avançamos no início, preocupa-se essencialmente no desenvolvimento de estratégias que procuram

51 Grifo meu. 144 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes posicionar melhor, dentro do processo avaliativo, os papéis desempenhados por professores e alunos “a nível da regulação das aprendizagens e da construção dos critérios de avaliação”. Assim – reforça ALTET (1999 In: ALVES, 2002:152) – a avaliação formadora tem por ambição aproximar-se mais do processo de ensino na sua globalidade, apresentando-se como um sistema assente numa pedagogia centrada no aluno. Segundo NUNZIATI (1990 In: ALVES, 2002:152), fazer participar os alunos na elaboração dos critérios da avaliação ajuda-os a regular seus próprios esforços nas atividades propostas a fim de alcançarem os objetivos propostos. Em suma, podemos dizer que as bases dessa avaliação assentam-se em dois postulados fundamentais: um primeiro que está ligado à apropriação, pelos alunos, dos utensílios de avaliação dos professores e um segundo que se prende com o domínio consciente, pelo aluno, das operações de antecipação e de planificação.

4.5.1.3 – Técnicas e princípios básicos da avaliação

Relativamente ás técnicas a aplicar para a avaliação dos saberes escolares, existe, em grande variedade, mas devem ser adaptadas ás condições e necessidades específicas de cada conteúdo a ser avaliado, pois cada um deles cumpre um papel específico neste processo. Ocorrendo a má utilização pode causar frustração aos alunos e/ou ao professor por receber resultados enganosos. Sendo assim temos, por exemplo, a prova escrita, a prova oral, a auto-avaliação e o trabalho em Grupo como algumas das modalidades usuais na escola que, quando usados adequadamente podem ajudar a medir o desempenho do aluno e a dar direção no trabalho do professor. No caso do trabalho em grupo, por exemplo, quando usado com equidade propicia a implicação e a participação ativa do aluno no processo de ensino e aprendizagem, mas quando isso não acontece, a má utilização da técnica do trabalho em grupo, em função da ausência de critérios bem definidos, produz no grupo um comportamento apelidado, na Psicologia Organizacional, por “vadiagem social” e se manifesta através do efeito boléia, 145 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes pelo efeito otário e pelo efeito da dispensabilidade percebida. (MUCHINSKY, 2004) O autor chama de “efeito boléia” quando há no grupo de trabalho indivíduos que desejam se beneficiar dos esforços dos outros. Isso acontece, segundo ele, quando uma tarefa em grupo torna as contribuições anônimas e as recompensas são divididas igualmente. Sendo assim, os membros podem reduzir seu próprio esforço individual, mas, ainda assim, desfrutar uma parcela igual dos resultados do trabalho dos demais, ou seja, tem a nota igual a aqueles que efetivamente fizeram o trabalho. Para o “efeito otário”, o autor diz que se manifesta em decorrência do efeito boléia pois, para que as pessoas não se sentirem otárias, contribuindo mais do que os outros, elas pessoas reduzem os seus esforços individuais e se nivelam abaixo dos demais. Já o “efeito dispensibilidade percebida”, esse posicionamento pode ser assumido por alguém ao perceber que é dispensável entre os membros do grupo quando outras pessoas mais capacitadas estão disponíveis para realizar a tarefa ou quando acreditam que seus esforços são redundantes porque apenas duplicam as contribuições dos demais. Por outro lado, muitas podem ser as recomendações que consideraríamos relevantes ao se definir uma avaliação ou, para se optar por uma técnica de avaliação. Porém, aqui apontaremos alguns princípios que julgamos que podem ajudar nos momentos antes, durante e depois da implementação dessa tarefa no processo de ensino e aprendizagem. Dentre estas temos as seguintes: 1) A avaliação deve ser individual para garantir o estudo e a atividade de cada aluno; 2) Deve-se criar condições adequadas ao aluno para a demonstração do seu rendimento; 3) A avaliação deve-se realizar com iguais exigências, rigorosidade e uniformidade nas normas e critérios técnicos; 4) A avaliação deve adaptar-se aos graus de escolaridade dos alunos; 5) Deve-se definir com clareza o conteúdo a ser avaliado; 6) Deve-se utilizar técnicas variadas e adequadas que permitem obter informações quantitativas e qualitativas sobre os saberes socializados ao longo do(s) período(s) letivo(s) em avaliação; 7) Ter consciência das possibilidades e limitações das técnicas adoptadas para avaliar; 8) A avaliação não deve ter um fim em si própria, mas, sim, um meio para alcançar fins. (PERRENOUD, 1995 e 1999; GOMES, 2004; BARLOW, 2OO6) 146 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Na perspectiva de que a avaliação tem um papel fundamental para o sucesso e/ou para o fracasso dos alunos, em nossa opinião, mudar a forma de avaliar os alunos sem antes alterar a maneira de encarar o ensino e a aprendizagem leva apenas a novos equívocos e poucas soluções viáveis. Não basta, portanto, mudar a forma de avaliar o aluno sem antes alterarmos o que se pretende avaliar, pois, no nosso entender, o que se ensina, dependendo de como se ensina, terá sua influência na maneira de avaliá-lo.Em nossa opinião e reforçados pelos dizeres de PACHECO (1995:12 In: MOREIRA et all, 2002:140) pensar a avaliação é uma tarefa fundamental para compreender o processo de ensino e aprendizagem. Vamos, á continuação, entender um pouco mais como se caracterizam as traduções nas práticas docentes destes professores angolanos do ISCED-UON que estudaram no Brasil por meio de suas próprias palavras, mas também como vínhamos fazendo até agora a partir das respostas dos estudantes ao questionário.

4.5.2 - Modalidades de avaliação

Convindo definir, normalizar e, em certa medida, uniformizar os princípios e procedimentos relacionados com o processo de ensino na Universidade 11 de Novembro (UON), de forma a dotar os serviços acadêmicos, os professores e os estudantes dum instrumento orientador de toda a atividade acadêmica, instituiu-se o Regimento Acadêmico (ANGOLA, 2010) no qual o Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) baseia também todas as suas ações relacionadas com o ensino e a aprendizagem. O Artigo 43º, da Secção III, deste Regimento se debruça acerca da avaliação dos conhecimentos e estabelece, nos pontos números 1, 2, 3 e 4, que “a avaliação de conhecimentos é feita através da avaliação contínua e/ou de exame final em cada disciplina sendo, a avaliação contínua aquela que o docente faz do estudante ao longo do ano ou semestre letivo, em aulas práticas, provas obrigatórios ou facultativas, exposições, trabalhos escritos, práticas de laboratório, trabalhos em grupo e outros, de acordo com a especialidade de cada disciplina. Porém, o documento realça ainda que na avaliação contínua é obrigatória a realização de provas parcelares escritas

147 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes para cada disciplina, num máximo de três e um mínimo de duas para as disciplinas anuais; e de duas e um mínimo de uma para disciplinas semestrais, sem prejuízo para a especificidade a aplicar em casos devidamente justificados. Sendo assim, além da modalidade escrita que é de obrigatório uso em todas as disciplinas, as provas podem ser feitas também na modalidade oral e/ou prática. A literatura pedagógica aponta algumas especificidades para o uso destas modalidades de avaliação. No caso da prova escrita, ela avalia a extensão de conhecimentos e habilidades possibilitando a observação de maior número de questões e um campo maior da matéria. Por requerer respostas mais precisas, desde que não sejam deixadas de lado as instruções que citamos atrás, é possível controlar a interferência de fatores subjetivos, tanto do professor quanto do estudante. Para LIBÂNEO (2004:207), a avaliação escrita exige uma técnica apropriada de elaboração e recursos materiais, pois por ser aparentemente fácil a sua elaboração favorece a improvisação e quando não bem controlada facilita a fraude entre os estudantes – sobre a cábula no ISCED-UON pode ser visto o estudo de COSTA (2009). Quanto á prova oral, embora pouco utilizada atualmente e recomendada essencialmente para o ensino de línguas, foi o recurso mais usado até ao final do século passado para avaliar os conhecimentos dos alunos (CÉLIA, 2004:301). Sua vantagem reside na possibilidade de avaliar a capacidade reflexiva e crítica do estudante, no que se refere ao tema em abordagem. Por essa razão, no meu entender, essas duas modalidades de avaliação, embora tenham formas diferenciadas na sua aplicação, possuem as mesmas finalidades que se consubstanciam basicamente em verificar o que é que os estudantes conseguiram apreender e o que é que o professor conseguiu ensinar. Baseado nesses pressupostos, os docentes universitários angolanos do ISCED-UON procuram adequar suas práticas docentes pautadas nas normas institucionais e espelhando-se, por um lado, nas práticas usuais nas instituições de sua formação no Brasil e na cultura do local de trabalho. Essa aproximação exige, necessariamente, uma adequação nas práticas avaliativas, pois no local de formação algumas dessas técnicas nem sempre 148 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes são usadas com a pretensão de atribuir nota ao aluno, mas sim uma forma de implicar e responsabilizar o aluno na produção do conhecimento, ou seja, fazer com que o aluno se sinta sujeito do seu próprio processo de aprendizagem – lembrando aqui as palavras da Professora Dituanga –. É nesse sentido que embora ao longo de sua formação no Brasil fosse comum o uso do seminário como forma de apreciação do nível dos saberes apreendidos pelo aluno sem, no entanto, atribuir nota, mesmo reconhecendo que essa técnica ajudou-a a diminuir a timidez e a soltar-se mais, a Professora Tunga N´zola admite que não é possível usar o seminário no ISCED-UON somente com essa pretensão – apreciar o nível dos saberes apreendidos pelo aluno – sem aliar á atribuição de nota. Para isso, ao longo do ano letivo procura trabalhar com essa técnica apenas uma vez por cada estudante atribuindo-lhe nota por essa atividade.

No Brasil, tínhamos provas escritas, muito poucas. Mais ou menos neste sistema também. Mas a maioria das avaliações eram seminários. Todo o mundo apresentava seminários constantemente. A avaliação geralmente era por seminários. O professor chegava, dava-nos os temas, o programa daquela disciplina e cada um de nós tinha um dia para apresentar. E até isso foi bom porque eu era muito tímida e isso me ajudou a soltar-me mais. Então a aula era da responsabilidade do estudante... e não valiam nota. Era apenas para você apresentar. Eu tento incorporar isso aqui, mas é muito difícil... mas eu faço isso só uma vez para cada estudante. Só que vale uma nota e aí dou apenas uma prova escrita e outro mando preparar um tema e eles apresentam de forma oral e também vale outra nota. Isso já ajuda um pouco nesse processo de ensino e aprendizagem. (Professora Tunga N´zola)

Nesse depoimento também estão em evidência outras técnicas usadas por ela para avaliar os alunos. Como se pode ver ela destaca a avaliação escrita que é uma modalidade obrigatória, mas também o trabalho em grupo 149 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes que é apresentado pelo grupo oralmente. Em tudo isso, sempre fazendo as adequações necessárias o que conduz ao aparecimento de novas formas de avaliar como é o caso, por exemplo, do uso do seminário aliada á atribuição de nota, pois conforme ela mesma admite, “procura fazer mistura porque não é possível incorporar tudo de lá porque as condições são diferentes”.

Na verdade, eu tento fazer uma mistura. Não dá para incorporar tudo de lá porque as condições aqui são diferentes. Nós aqui trabalhamos com turmas de 35 a 40 alunos e é inviável você ter que incorporar isso tudo. Não dá. Você tem que tentar se adequar às condições locais e dar uma parte porque se você deixar também tudo para os estudantes não dá certo porque lá fora a base é outra. Aqui você como professor tem que começar com uma parte, dar uma boa base para depois lá para o finalzinho do semestre começar a distribuir os temas porque eles já sabem mais ou menos como é que são as regras e também vão tentando criar e até para começarem a ter experiência de como amanhã poderão dar uma aula ou poder apresentar um trabalho, então tudo isso ajuda. (Professora Tunga N´zola)

Essas modalidades de avaliação apontadas por ela conjugam com as informações que percebemos por meio do questionário aplicado também aos discentes desta professora cujo resumo geral se encontra na Tabela 17 e mostra o escalonamento destas práticas entre os professores angolanos que estudaram no Brasil. Quando solicitada a falar sobre suas modalidades de avaliação, a Professora Dituanga aponta três momentos por onde passa a avaliação dos alunos. Para ela, a avaliação vai desde a prova escrita á apresentação oral de trabalhos em grupo onde procura estabelecer critérios individuais para este trabalho coletivo.

150 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Eu tenho tido três momentos. Uso a avaliação individual que é a chamada prova escrita, onde eu procuro fazer uma parte do sistema de assinalar certo ou errado, coloco também para preencher as lacunas e uma parte para a dissertação ou fundamentar... porque numa prova eu luto para misturar as três formas para criar equilíbrio na avaliação. Eu luto para fazer avaliação no grupo, mas obedecendo ao princípio de atenção individual. O trabalho é coletivo, mas eu procuro saber qual foi a contribuição de cada aluno. Já a nível de investigação, o delegado vai dizer que o fulano foi 100%, foi 50% e por aí. Na hora de apresentação do material colhido vamos avaliar. O outro sistema, a maior parte da turma fica ouvindo a exposição desse pequeno grupo que investigou. Também é um momento para avaliar. A avaliação deles vai de 0 à 10 porque nesse momento são eles que estão interagindo com aquilo que este pequeno grupo está trazendo... então, nessa interação, o que é que vocês acharam? Qual é o nível de assimilação? A cientificidade dos conteúdos? É por aí. Eles também têm uma palavra a dizer. (Professora Dituanga)

De fato, concordamos com ela nesse ponto, pois como vimos atrás o trabalho em grupo quando mal usado pode dar lugar a comportamentos que não contribuem para o bem do processo de ensino e aprendizagem, pelo que, articulá-lo em torno de critérios que possibilitem avaliar a implicação individual no processo de construção do mesmo é uma boa estratégia didática. Por outro lado, fazer com que os demais alunos, integrantes da turma, participem deste momento de apresentação do trabalho feito por um subgrupo é um dos grandes desafios desse tipo de atividade na escola. Consegui-lo é benéfico tanto para o aluno quanto para o professor. Quem delineia outra forma de controlar as variáveis negativas decorrentes do uso do trabalho em grupo,

151 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes como modalidade de avaliação, é a Professora M´pemba cujo depoimento passará mais adiante. Sempre na tentativa de buscar aproximações entre as traduções decorrentes das práticas de sua formação ás práticas na instituição de trabalho, a Professora M´pemba diz que procura fazer adaptações. O trabalho de pesquisa em grupo, posteriormente apresentado em forma de seminário e as provas escritas que contemplam aspectos trabalhados em grupo, são as modalidades utilizadas por ela na avaliação dos saberes. É importante ressaltarmos aqui que didaticamente falando, aliar a avaliação individual a aspectos apresentados separadamente por subgrupos da turma é, também, uma das maneiras de obrigar os integrantes do grupo a levar o trabalho a sério, por um lado, mas por outro é também uma forma de forçar o interesse dos demais alunos pela temática em abordagem, visto que, tendem os conteúdos a saírem na avaliação individual ficando, mais uma vez, evidente os elementos híbridos nas teorias emergentes nos relatos dos docentes tal como demonstramos no quadro analítico 4, no capítulo dedicado á fundamentação teórica

Talvez eu não adapte literalmente, mas, geralmente as minhas avaliações, a primeira avaliação eu sempre peço que os alunos façam trabalho de pesquisa em grupo e apresentem em forma de seminário. Então eu sempre trabalho em forma de seminário, porque eu acredito que o aluno pesquisando e se está predisposto a fazer o trabalho, ele acaba tendo maiores informações, então se ele vem colocar isso em forma de seminário apresentando para o professor eu acredito que acaba criando outras habilidades, não só de escrita, mas também de se apresentar na sala de aula, então mais ou menos eu faço essas adequações. Outras coisas que eu faço, quando eu peço para fazerem um trabalho, às vezes na prova escrita eu aproveito do trabalho que eles fazem, de lá retirar algumas perguntas para puder fazer dentro da sala de aula, então geralmente eu uso esse 152 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes sistema de avaliação. Mas, todos os anos, desde o PUNIV, uma das minhas provas parcelares é um trabalho de pesquisa em grupo.

Continuando ainda na senda das modalidades de avaliação, até agora fica-nos evidente de que a busca por práticas que lembrem àquelas das instituições em que estudaram os pesquisados é uma realidade, mas essa busca não os leva a transpor literalmente estas práticas á realidade do ISCED- UON, muito pelo contrário, sempre procurando fazer as adequações necessárias o que acaba constituindo-se em algo novo e peculiar característico dessa “escola angobrasileira”. Para o professor Micanda, que reconhece que o que faz ao avaliar, resulta dos ensinamentos que obteve não apenas no Brasil, mas também na própria instituição onde trabalha diz que ao avaliar procura conjugar o que trouxe do Brasil com o que é próprio da sua cultura escolar.

... na verdade, o que nós fazemos ao avaliar é uma seqüência de todos os ensinamentos que nós aprendemos não só no Brasil como, também na nossa própria universidade porque a avaliação deve cumprir com determinados objetivos portanto, nós traçamos os objetivos a atingir em função daquilo que está programado e depois também aquilo que é dado nas aulas. Então, todos os aspectos importantes referidos ou praticados, em princípio tenho como norma ter que avaliá-los fazendo uma aplicação quer seja teórica, quer seja prática... pela experiência que trouxemos de lá, temos estado a conjugar aquilo que é nosso e aquilo que nós aprendemos lá no Brasil.

Á luz do estipulado no Regimento Acadêmico da Universidade 11 de Novembro (UON) relativamente á avaliação, em função da carga horária da cada disciplina (anual ou semestral), os professores são obrigados a aplicar, durante o ano escolar, um número pré-determinado de avaliações contínuas sendo que dentre as modalidades optadas uma tem de ser necessariamente 153 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes prova escrita. Quais são as justificativas para essa decisão? Quais são as vantagens e as desvantagens dessa obrigação? São questões para outras reflexões. Mas, entendemos que o dispositivo legal teve seu efeito na prática docente, visto que, os alunos questionados quando solicitados a escalonar as modalidades de avaliação usadas por seus docentes, apontaram a prova escrita como a primeira tanto para os que estudaram quanto para os professores que não estudaram no Brasil. Porém, ao analisarmos a segunda e a terceira posição há diferença entre as práticas destes professores. Enquanto os professores que estudaram no Brasil têm o trabalho em grupo como segunda opção, nos outros docentes esta modalidade aparece em terceiro lugar. Contrariamente a prova oral que é indicada como terceira opção para os que estudaram no Brasil e como segunda opção para os que não estudaram no Brasil tal como podemos visualizar na tabela abaixo.

Tabela 15: Distribuição das respostas de discentes do ISCED-UON sobre as modalidades de avaliação adoptadas pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil.

N Modalidades Professores angolanos de avaliação Estudaram no Brasil Não estudaram no Brasil 1º lugar 2º lugar 3º lugar 1º lugar 2º lugar 3º lugar F % F % F % F % F % F % 01 Prova 429 100 00 00 00 00 302 100 00 00 00 00 Escrita 02 Prova Oral 00 00 135 31,0 294 69,0 25 8,3 237 78,5 40 13,2 03 Trabalho em 00 00 398 92,8 31 7,2 00 00 59 19,5 243 80,5 Grupo Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

154 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.5.2.1 – Postura do professor angolano que estudou no Brasil em situações de avaliação

Referimo-nos atrás acerca das práticas dos professores universitários angolanos do ISCED-UON que estudaram no Brasil no que tange á relação professor-aluno, onde destacamos as estratégias usadas por estes docentes para conciliarem-se entre as práticas captadas a partir da participação nas instituições de ensino em que estudaram no Brasil e aquelas próprias da instituição onde hoje trabalham. Percebemos, portanto, que estes professores são adeptos de uma relação mais aberta com os alunos, menos hierarquização e mais aproximação o que contribui para a construção de uma relação diferenciada com os alunos quando comparada a relação dos mesmos alunos com os demais professores. Neste momento em que continuamos na persecução dos traços do hibridismo cultural nas práticas docentes destes angolanos que estudaram no Brasil, procuraremos explicitar agora as atitudes destes professores em relação á algumas situações do processo de ensino e aprendizagem envolvendo a avaliação, consubstanciada nos modos como eles preparam as provas e os modos como os alunos percebem estas provas – se dá-lhes medo; desanima- os; estimula-os a estudar mais ou deixa-os à vontade. Quando solicitados a falar sobre os critérios tomados como referência na preparação de suas provas, os docentes reforçaram a idéia que suas avaliações procuram não privilegiar a reprodução dos conhecimentos postura que conjuga com a tendência demonstrada no âmbito da relação professor- aluno onde estes professores procuram colocar o aluno como sujeito do processo de ensino e aprendizagem. A Professora Tunga N´zola considera que é importante que o aluno raciocine, que o aluno seja capaz de criar, por isso é que não faz perguntas aos alunos do mesmo jeito como é dado no conteúdo na sala de aula. Ao invés disso, procura adotar postura que evite a reprodução pelo que tende a diversificar a forma de elaboração das provas lançando mão de situações do dia-a-dia que podem influenciar no funcionamento do corpo humano, por exemplo.

155 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Eu acho que nós damos o conteúdo e – principalmente a disciplina de anatomia – não podemos perguntar do jeito que está no conteúdo. Eu acho que é necessário que o professor faça com que o estudante tente raciocinar e não seja totalmente direto, entendeu!? É por isso que eu procuro várias formas de tentar fazer com que o aluno raciocine, que o aluno tente através daquela questão criar mais e não se deter àquilo que eu falei na sala de aula, porque a Anatomia é uma disciplina muito... isso é isso... aquilo é aquilo. Então temos que tentar sair fora daquilo e tentar pegar as coisas do dia-a-dia que possam influenciar no funcionamento do corpo humano e fazer com que o aluno entenda essa interação que existe entre o corpo humano e o meio. E aí você tem que tentar criar novas formas de questionário e não apenas perguntar como é que é constituído o osso, ou quantos ossos tem o corpo humano. Aí estaríamos tendo um ensino repetitivo e não é isso que eu quero. Por isso é que eu mudo a forma de avaliação, tentar ser um pouco mais criativa.

As palavras desta docente demonstram a tendência do que foi constatado no levantamento feito aos discentes relativamente á exigência ou não nas respostas dos alunos ás provas, tal como a matéria está nos livros. As respostas ao questionário mostraram uma tendência dos professores angolanos que estudaram no Brasil a não exigir nas avaliações que os alunos respondam ás questões que lhes são colocadas tal como está nos livros. Na mesma senda de idéias, também se percebe nas palavras da Professora M´pemba procurando evitar nas suas provas perguntas diretas do tipo o que é isto, o que é aquilo, visto que desembocam em situações em que o aluno é obrigado a responder de forma reprodutiva. Agindo dessa forma, no nosso entender, está contribuindo para a criatividade do aluno e de si próprio o que coaduna perfeitamente com a atitude de um professor com a postura crítica, criativa e científica da qual nos referimos atrás. 156 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes [...] o meu sistema de avaliação, geralmente não dou perguntas diretas. O que é isso? O que é aquilo? E quando eu trabalho com química, porque a gente mexe muito com datas, cientistas, eu já dou, geralmente, a data e dou o nome do cientista. Então cabe ao aluno partir da data e o nome do cientista, desenvolver a resposta sobre qual é a contribuição do cientista. (Professora M´pemba)

Porém, ao mesmo tempo em que abre espaço para esta criatividade do aluno para responder ás perguntas, também a cerceia na medida em que, em alguns casos, os textos que ela produz tornam-se o principal parâmetro para que o aluno tenha ou não boa nota. Ou seja, os alunos que se empenharem em ler o material produzido pela docente, e colocado á disposição deles, podem garantir já a “nota 10” o suficiente para transitarem na disciplina.

“Eu elaboro textos... tem vezes que se o aluno estudou dentro dos textos elaborados o aluno já pode tirar a nota 10... pode tirar uma boa nota porque dentro dos textos que eu elaboro eu já dou pistas e algumas vezes até as respostas então, para aqueles alunos que conseguem ler o material, estudar o material, conseguem se sair bem, mas quem não lê o material, não consegue encontrar onde estão as pistas para poder se organizar... então, mais ou menos, eu uso este tipo de mecanismo de avaliação”.

Essa forma de agir, em parte, corrobora com 21% das respostas dos estudantes questionados que indicaram que os professores que estudaram no Brasil exigem responder às questões na prova como está nos livros o que nos leva a pensar também que há entre estes docentes uma tendência á coexistência de práticas de ensino consideradas tradicionais em alguns casos

157 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes e modernas52 em outros. Mesmo assim, importa realçar ainda que grande parte das respostas dos alunos ao questionário apontou que as avaliações destes docentes não lhes dão medo, pelo contrário, estimula-os a estudar mais, conforme as informações contidas nas Tabelas 16 e 17 que apresentamos na continuação.

Tabela 16: Distribuição das respostas dos alunos do ISCED-UON sobre a posição adoptada pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil em relação à situações do processo avaliativo N Professores angolanos Estudaram no Brasil Não Situações Estudaram no Brasil Sim Não Sim Não F % F % F % F % 01 Quando o aluno falta 365 85,1 64 14,9 195 64,6 107 35,4 na prova ou perde pontos o professor dá outras oportunidades 02 Exige-se responder 89 20,7 340 79,3 250 82,8 52 17,2 às questões na prova como está nos livros Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

52 Sinteticamente as diferenças entre a didática tradicional e a moderna podem ser vistas neste esquema produzido por TEIXEIRA (2005). Contudo, a nosso ver, esquemas como estes não conseguem traduzir, na prática, aquilo que o professor e o aluno vivem no seu dia-a-dia, pois o espaço interativo entre professores e alunos e/ou entre seres humanos, são muito ricos, mas também imprevisíveis, pelo que, polarizá-las, apesar de contribuir didaticamente para estudá- las, pode prejudicar a sua compreensão de maneira mais realística. Componentes Didática tradicional Didática moderna Professor .Fator predominante. Não se preocupava · Elemento incentivador, orientador e controlador com problemas e características do aluno. da aprendizagem. Aluno · Elemento passivo. · Fator decisivo, ativo, empreendedor. São Cumpre-lhe ouvir, decorar e obedecer. consideradas suas potencialidades e limitações. Objetivo · Teórico e remoto, não influindo no · Dinamiza todo o trabalho escolar, dando-lhe trabalho escolar. sentido, valor e direção. · Elemento que escravizava alunos e · Está em função das necessidades e da Matéria professores; os alunos deviam decorá-la capacidade real do aluno. sem contestá-la. · Maneira de se expor a matéria. · É a melhor maneira de o aluno aprender. Método Problema do professor e nada tinha a ver com os alunos.

158 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Tabela 17: Respostas dos alunos do ISCED-UON em relação ao modo como vêem a avaliação aplicada por seus professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil N Professores angolanos Estudaram no Brasil Não Situações Estudaram no Brasil Sim Não Sim Não F % F % F % F % 01 Dá-me medo 33 7,7 396 92,3 52 17,2 250 82,8 02 Desanima-me 23 5,4 406 94,6 268 88,7 34 11,3 03 Estimula-me a 323 75,3 106 24,7 32 10,6 270 89,4 estudar mais 04 Deixa-me à vontade 399 93,0 30 7,0 58 19,2 244 80,8 Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

4.6 – Traços do hibridismo na metodologia de ensino: manejo da sala de aula, usos de recursos didáticos e relação com os conteúdos

Referimo-nos atrás dos marcos que balizam a interação entre professores e alunos no âmbito da avaliação e na própria relação estabelecida entre ensinantes e aprendentes (PERRENOUD,1995) dentro da cultura escolar do ISCED-UON, com base nas práticas docentes dos angolanos que estudaram no Brasil. Essas práticas, embora vistas aqui separadamente para fins didáticas, devem ser entendidas como constituintes de um mesmo corpus, pois não se pode separar, por exemplo, a avaliação da forma como são dadas as aulas e nem esta da avaliação e muito menos da relação que estes agentes estabelecem nestas etapas didáticas.

Procuraremos agora, com base nos depoimentos destes docentes, elucidar as traduções relativamente ao manejo da sala de aula o que envolve a metodologia e os usos que se faz dos meios de ensino, pois entendemos que perceber a forma como estes elementos são apropriados nas aulas destes sujeitos é também uma forma de entendermos se há ou não implicação das suas vivências no Brasil nestas práticas docentes.

O Regimento Acadêmico (ANGOLA, 2010), documento que define, normatiza e, em certa medida, uniformiza os princípios e procedimentos

159 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes relacionados com o processo de ensino e aprendizagem na UON, no seu ponto 4, do Art. 25º, da Secção I, do Capítulo III, destinado ao Ensino e Aprendizagem, esclarece que “sem prejuízo da liberdade de orientação e de opinião científica dos docentes no ensino das matérias constantes dos programas, o ensino será ministrado mediante aulas (teóricas, práticas e teórico-práticas)53 conferências, colóquios54, seminários55, estágio, visitas de estudo56 e estudos livres ou, por outros processos que os regentes responsáveis por cada disciplina julgue conveniente”. Como vemos, o próprio Regimento Acadêmico mostra grande flexibilidade relativamente ás modalidades aplicáveis ao ensino e a aprendizagem, deixando os professores mais á vontade em optar por uma ou outra forma para dar suas aulas de acordo com as especificidades da disciplina o que difere da normatização referente á avaliação onde há certa imposição da modalidade a aplicar na medição dos conhecimentos trabalhados pelos professores e adquiridos pelos alunos. Quando convidados a se debruçarem acerca do formato de suas aulas, os professores entrevistados deixam claro que procuram usar metodologias que propiciam maior interação entre si e os alunos privilegiando a interação e a produção de conhecimentos.

53 De acordo com o Regimento Acadêmico, em cada disciplina são lecionadas aulas teóricas e práticas, consistindo as práticas na elaboração de trabalhos laboratoriais, ou de campo, na resolução de problemas práticos ou de exercícios de aplicação. Cada aula teórica tem em vista propiciar a aprendizagem compreensiva de fatos, conceitos e princípios e tem uma duração de entre 50 ou 110 minutos, a fixar conforme a especialidade de cada estabelecimento, curso e disciplina. As aulas práticas têm por fim propiciar aos estudantes a aprendizagem dos métodos, processos e técnicas de aplicação da compreensão dos fatos, conceitos e princípios consideradas as aulas teóricas. As aulas teórico-práticas destinam-se a propiciar aos estudantes a aprendizagem compreensiva de fatos, conceitos e princípios, bem como, simultaneamente, a aprendizagem de métodos, processos e técnicas de aplicação prática desses fatos, conceitos e princípios. (ANGOLA, 2010, Art. 26º) 54De acordo com o Regimento Acadêmico, “os colóquios têm em vista a análise e discussão amplamente participada de um ou vários temas afins, previamente fixados”. (ANGOLA, 2010, Art. 28º)

55 Os seminários destinam-se à iniciação ou atualização dos estudantes nas matérias dos respectivos ramos do saber, através da realização de trabalhos inseridos em temas propostos pelo docente responsável pela unidade curricular e de acordo com a disponibilidade da instituição. (ANGOLA, 2010, Art. 29)

56 As visitas de estudo destinam-se a propiciar a observação e investigação direta de um ou vários objetos de estudo previamente escolhidos, situados fora do local habitualmente de aprendizagem. As visitas de estudos implicam, para alcançar os fins que se propõem uma clara definição dos seus objetivos e métodos de trabalho, uma preparação cuidada, uma boa organização das observações e expressão dos resultados obtidos. (ANGOLA, 2010, Art. 30) 160 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Na busca destes princípios interativos entre si e seus alunos que a Professora Dituanga diz que nunca dá suas aulas sem antes colocar os alunos em posição de círculo ou semicírculo propiciando estrategicamente dois objetivos: por um lado deixa transparecer que ela não quer ser o centro do saber e nem a dona do saber e, por outro lado, procura com essa ação simbólica dizer que todos podem participar com o que têm dessa conversa com vista à construção de conhecimentos científicos. Nas palavras dela, esse é o momento mais forte que tem para lhes dizer que não é a dona do saber.

Quando chego á sala de aula, a primeira coisa que tenho feito eu mudo o cenário. Não dou aula se não formarmos um círculo ou uma meia lua para estabelecermos a relação ombro a ombro. É o momento mais forte que eu tenho para lhes dizer que eu não estou aqui como dona do saber. É uma fase de construção. Estamos aqui para construir os conhecimentos e que a construção é feita dependendo de cada um, a predisposição, os condicionamentos que temos, os motivos que nos fazem estar aí... então, cada um vai colocando um tijolo em cima do outro. Há quem pode produzir um pouco menos, outros um pouquinho mais, mas que no fim cada um deve saber o que conseguiu lucrar em cada unidade, qual é o nível que alcançou... se está abaixo do rendimento... é por aí. Então eu procuro apostar pelo diálogo, ouvindo a contribuição de cada e ao mesmo tempo conseguir controlar todos na turma, porque aqui alguns ficam encolhidos lá no fundo e se você não reagir entrou e saiu sem dizer nada. E vem mês, vai outro mês o ano termina, nem o nome você não consegue descobrir... (Professora Dituanga)

Se recorrermos ao que já dissemos atrás acerca das característica da relação professor-aluno na “escola angobrasileira”, podemos ver aqui novamente realçadas nas práticas da Professora Dituanga no que se refere ás formas de lidar com o conhecimento e com os alunos uma vez que procura

161 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes tratá-los e colocá-los no lugar de sujeitos do processo de construção de conhecimento. Fica evidente para ela que o “dar aula” implica num processo bilateral aonde, ombro a ombro, tijolo a tijolo, vão-se constituindo os saberes. Num ambiente como esse, espera-se que o aluno se sinta mais á vontade do que em outro onde as relações são hierarquizadas e autoritárias. Mas, nem sempre é assim por isso a necessidade de se buscar estratégias de equilibração – já falamos atrás – entre as culturas escolares das instituições formadoras – tidas como mais abertas, menos hierarquizadas e menos autoritárias – e na que trabalham estes professores angolanos que estudaram no Brasil, pois toda a mudança causa algum desconforto até ser assimilada pelas pessoas e deixar de ser novidade.

Aqui, mais uma vez, podemos retornar ás características da “escola angobrasileira” quando falamos da relação professor-aluno e nela tratamos das estratégias usadas por estes docentes para conciliarem-se entre a cultura escolar ligada ao lugar de seus estudos e a do local de trabalho.

A Professora Tunga N´zola também elucidou a sua forma de “dar aula” e deixa claro no depoimento que privilegia a interação e a participação constante dos alunos.

Por exemplo: eu tenho um tema, digamos, pele: formações anexas. Eu chego no quadro coloco os tópicos, as diferentes camadas, coloco as funções, só tópicos e os anexos. Em cima desses tópicos eu vou fazendo comentários porque em cima de tudo isso, de todos esses tópicos, existe uma série de comentários que devem ser feitos então, eu vou comentando e vou parando e eles também vão perguntando, vão interagindo é mais ou menos isso, nesse sentido... temos mapas também que vão ajudando nesse sentido, mas eu sempre uso só com tópicos, as vezes, projeto também quando tenho muitas figuras porque a área de Biologia é rica em figuras e aí projetam-se essas figuras e em cima delas vamos expondo as nossas experiências práticas, o que é que já viram, como é que é... e vão

162 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes comparando com o que estamos a ver ali... e dessa forma vamos criando um diálogo com bastante interação... é mais ou menos nesse sentido.

Professora M´pemba, engajada na busca da constante interação entre ela e os estudantes em suas aulas, usa como estratégia a antecipação do material didático aos estudantes a fim de que estes estejam mais bem preparados para as discussões em sala. Além disso, estrategicamente, numa das disciplinas que leciona, procura abordar os conteúdos programáticos usando exemplos do dia-a-dia permitindo assim maior identificação e participação dos alunos. Ou seja, pode-se perceber que há certa intencionalidade nas práticas destes docentes na busca da aproximação e interação com os alunos a partir das atividades em sala de aula.

Contudo, do mesmo jeito que dizíamos anteriormente quando falamos da relação professor-aluno, aqui também cabe a mesma alerta no sentido de reforçarmos que estas aproximações que nos referimos, por mais que desejamos não se podem igualar àquelas praticadas nas instituições escolares aonde estes professores estudaram, pois como afirmou a Professora M´pemba, cujo depoimento já citei mas volto a fazé-lo aqui, “... no Brasil por mais que haja essa toda simplicidade, abertura, interação... o aluno sabe que ele é aluno e o professor é professor... tem todo um mérito e no nosso contexto às vezes isso não acontece... o contexto nosso aqui é totalmente diferente do contexto do Brasil, em termos de respeito, em termos de consideração...” por isso, necessariamente estas aproximações e interações são permeadas de aspectos de ambas as culturas escolares gerando-se constantes conflitos e tensões nessa tradução.

Então, geralmente eu já dou o material para eles levarem para casa, porque eu digo que a minha aula, eu não sou papagaia de chegar dentro da sala de aula onde fica só eu falando, falando, falando e o aluno não fala. Então eu já dou o material para eles, mesmo que a gente ainda não viu o assunto mas eles para terem, a noção do que é que vai se tratar no dia seguinte de aula. Então geralmente mesmo dando o material eu sempre

163 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes tiro parte dos pontos principais, conceitos, definições, teorias... isso relacionado a química. Eu dito as fórmulas, chave, coloco no quadro aí, eu entro em debate com eles. (Professora M´pemba)

Ela esclarece ainda que procura trabalhar, em suas aulas, elementos do dia-a-dia o que no nosso entender contribui para a descanonização dos conteúdos originais o que ajuda a inserir o aluno nesse novo mundo e a aproximação entre a fala do professor e a escuta do aluno.

Então, geralmente com a química eu sempre trabalho com o quotidiano, o dia a dia do aluno trazendo questões da cozinha, em casa, do gás butano, o açúcar... agora que estou a trabalhar com a bioquímica, a gente só fala de frutas e comida praticamente. Porque a gente fala de celulose, amido, carbohidratos e tudo isso a gente encontra em banana, mandioca etc, etc, então os nossos debates nesse semestre estão direcionados propriamente da construção da célula do ser humano. Então, geralmente eu trabalho assim. Já pedi para eles tirarem cópia do material que a gente vai estar discutindo agora, então é mais ou menos assim que eu organizo as minhas aulas. Eu não centro a responsabilidade só para mim, mas eu deixo também para eles, embora que eles ainda não têm essa cultura universitária, ainda não tem disciplina na leitura, mas eu tento. Mas nas aulas de psicologia pedagógica que é uma disciplina teórica, eu sempre peço para eles fazerem resumos. O menino que estava ali [referindo-se a um estudante que encontramos na sala e que saiu após a nossa chegada] já estava fazendo resumos para ter facilidade na hora do debate saber o que falar... então eu pego os resumos, levo para casa para ver o que é que escreveram e a gente faz os debates dentro da sala de aula. (Professora M´pemba)

164 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Dentre as modalidades de aulas que podem propiciar maior interação entre estudante/professor e estudante/estudante podemos incluir o trabalho em grupo e o seminário. Essas modalidades, bastante usadas entre estes professores para trabalhar os conteúdos, perdendo apenas para as aulas expositivas quando analisamos as respostas dos alunos cujos dados estão na Tabela 18, considerando que estes trabalhos em grupo são apresentados em debate aberto tal como é característico o seminário, podemos reafirmar que há um esforço nestas pessoas em buscar aproximação ás características da cultura escolar das instituições onde estudaram a partir de algo novo. Isso fica muito claro neste depoimento da Professora Tunga N´zola quando, em um dos flash backs durante o seu depoimento, se lembra como eram as aulas na escola onde estudou e fala da situação atual onde trabalha.

As aulas eram, geralmente, por seminários. O professor chegava, dava-nos os temas, o programa daquela disciplina e cada um de nós tinha um dia para apresentar. E até isso foi bom porque eu era muito tímida e isso me ajudou a soltar-me mais. Então a aula era da responsabilidade do estudante... e não valiam nota. Era apenas para você apresentar (...) Todo o mundo apresentava seminários constantemente. Então isso também fez com que a gente lesse mais. Eu tento incorporar isso aqui mas é muito difícil por causa do número de estudantes mas, eu faço isso só uma vez para cada estudante. (Professora Tunga N´zola)

Já a Professora M´pemba afirma sem dúvidas de que usa o seminário como metodologia para dar suas aulas.

... eu sempre trabalho em forma de seminário, porque eu acredito que o aluno pesquisando e se está predisposto a fazer o trabalho, ele acaba tendo maiores informações, então se ele vem colocar isso em forma de seminário apresentando para o professor eu acredito que acaba

165 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes criando outras habilidades, não só de escrita mas também de se apresentar na sala de aula.

Para finalizar esta parte que estamos a falar sobre “o manejo da sala de aula”, antes de apresentar as Tabelas onde estão os dados resultantes do questionário sobre a metodologia de ensino e o uso dos recursos didáticos, gostaríamos de finalizar com o depoimento do Professor Micanda onde ele fala do procedimento normalmente usado em suas aulas. Para ele, o aluno possuí um conhecimento prévio que precisa ser valorizado no processo de ensino e aprendizagem visando uma construção coletiva do saber. Mas, por outro lado, como podemos ver na sua fala, é contundente na necessidade de haver um “condutor” no processo de ensino e aprendizagem para “chamar a atenção e efetivamente para todos os agentes deste processo terem a certeza de que estão no caminho certo”, demonstrando aí o comprometimento das teorias por meio destes traços de práticas híbridos no uso das teorias.

Quanto ás aulas, eu tenho, por exemplo, um princípio em que os nossos estudantes eles já têm um conhecimento prévio daquilo que se vai tratar porque nós temos um programa e estabelecemos metas e, geralmente, no início de cada aula nós colocamo-nos em pé de igualdade com os estudantes. Aliás, sabe que o professor não é aquele professor que hoje em dia já não se pode considerar como indivíduo “sabichão”, aquele que sabe tudo, que ensina tudo e o estudante só está lá para receber. Não é isso que acontece comigo. Geralmente, nas minhas aulas, a dinâmica que eu utilizo aqui inicialmente são os próprios estudantes que se devem pronunciar sobre determinado tema, os outros colegas vão complementando ou vão corrigindo aquilo que estiver errado, depois é que entra o papel do professor para efetivamente também guiar os estudantes, ajudá-los naquilo que estiverem errados e no fim nós tirarmos as nossas conclusões. Isso tem sido

166 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes geralmente a minha dinâmica na sala. A questão prática é exatamente a mesma coisa. Nós colocamos determinadas questões, estas questões são resolvidas inicialmente pelos estudantes com ajuda também de outros e no final o professor complementa e onde haver algum erro, chamar atenção e efetivamente para todos termos a certeza de que estamos no caminho certo. É assim que tem sido nas minhas aulas. (Professor Micanda)

Tabela 18: Distribuição das respostas de discentes do ISCED-UON sobre a metodologia de ensino usada pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil Ordem Índice do uso de recursos didáticos Estudaram no Brasil Não estudaram no Brasil Aulas Trabalho Seminário Colóquio Aulas Trabalho Seminário Colóquio expositivas em grupo expositivas em grupo F % F % F % F % F % F % F % F % 1º 182 42,4 00 00 00 00 00 00 271 89,7 00 00 00 00 00 00 lugar 2º 00 00 171 39,9 00 00 00 00 00 00 13 4,3 00 00 00 00 lugar 3º 00 00 00 00 58 13,5 00 00 00 00 00 00 12 4,3 00 00 lugar 4º 00 00 00 00 00 00 18 4,2 00 00 00 00 00 00 04 1,3 lugar Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

Tabela 19: Distribuição das respostas de discentes do ISCED-UON sobre o uso dos recursos didáticos pelos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil Ordem Índice do uso de recursos didáticos Estudaram no Brasil Não estudaram no Brasil Data-show Quadro Filmes Jogos Quadro Data-show Jogos Filmes F % F % F % F % F % F % F % F % 1º lugar 238 55,4 00 00 00 00 00 00 217 72,0 00 00 00 00 00 00 2º lugar 00 00 128 29,8 00 00 00 00 00 00 47 15,0 00 00 00 00 3º lugar 00 00 00 00 51 11,8 00 00 00 00 00 00 21 7,0 00 00 4º lugar 00 00 00 00 00 00 12 2,7 00 00 00 00 00 00 17 6,0 Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

167 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.7 – Traços do hibridismo na Língua Portuguesa

O estudo que fiz quando analisei a experiência dos universitários angolanos na UFMG (GOMES, 2002 e 2007) dediquei parte dele para falar da língua portuguesa. Lembro-me que ao iniciar o capítulo 4, fi-lo com uma afirmação, mas, também com uma pergunta. A afirmação é: “que Brasil e Angola são países de língua oficial portuguesa, para muitos, não constitui nenhuma novidade. E a pergunta é: “Então, por que dedicar parte dessa obra somente para falar acerca dessa “nossa língua portuguesa”? Hoje, faço-me a seguinte pergunta: haveria, nos usos do português, alguma forma de expressão que pudesse estar na condição intermediária nos usos que se faz do português no Brasil e em Angola?

Naquela ocasião julgávamos pertinente abordar esse assunto porque a experiência dos sujeitos estudados – e a minha própria – não deixava dúvidas das dificuldades que tiveram nos usos da língua portuguesa e do lugar nada desprezível dessa questão em suas experiências no Brasil, visto que, alguns dos sujeitos chegaram a admitir que a questão da língua fosse significativa na vida desses que “viram, inclusive, seus rendimentos escolares diminuídos por causa das dificuldades surgidas em torno da comunicação (ou melhor, da falta dela), por não conseguirem expressar suas mensagens de maneira eficaz, tanto no ambiente acadêmico – no qual o ofício de aluno exigia-lhes uma correta expressão oral e escrita (no modelo brasileiro)57 - quanto em outros

57No Brasil, assim como em Angola, existem variações – chamados dialetos – regionais e sociais no uso da língua portuguesa em função das características culturais de cada local e dos sujeitos envolvidos no ato da comunicação. Embora reconhecendo a presença desses dialetos, dos dois lados, o estudo em causa não os teve em conta. Tomou-se como principal referência de análise a linguagem formal de uso corrente. No caso de Angola, cabe ressaltar ainda que, além dos dialetos, existem as línguas nacionais que diferem da língua portuguesa na sua estruturação e forma de expressão e que são usadas no contexto das relações sociais intra-étnicas e inter-étnicas. As pessoas aprendem-nas antes, ou simultaneamente com a língua portuguesa, em seu ambiente familiar ou social podendo este fator influenciar a relação com a língua portuguesa. Contudo, faz-se necessário enaltecer que a língua nativa em Angola representa um aspecto cultural de suma importância e, segundo KAGIBANGA (2000 In: GOMES, 2010:68), o critério lingüístico continua a servir como base metodológica de classificação das áreas socioculturais, das sociedades e comunidades étnicas de Angola. 168 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes espaços onde se fazia necessário estabelecer a comunicação”. (GOMES, 2007:87)

Ainda acerca da importância da língua no êxito escolar dos alunos, na vida social, na obtenção de emprego e no sucesso da própria comunicação com os interlocutores que podem se mostrar mais ou menos receptivos de acordo com a situação comunicativa, BOURDIEU (1996:44) afirma que

[...] as características lingüísticas influenciam fortemente o êxito escolar, as possibilidades de obtenção de emprego, o sucesso profissional, a atitude dos médicos (que dão mais atenção aos pacientes do meio burguês e às suas manifestações, tendendo, inclusive, a formular a seu respeito diagnósticos menos pessimistas) e, de modo mais geral, a inclinação dos receptores a cooperar com o emissor, a ajudá-lo ou a dar crédito às informações por ele fornecidas.

De fato, na ocasião os sujeitos estudados chegaram a admitir a implicação da língua nos seus rendimentos escolares. Para eles, a língua é um problema a se ter em conta, pois [...] parecendo que não, influi negativamente para nós porque eu digo que o brasileiro adotou certa linguagem que adaptou à linguagem brasileira e, isso faz com que a gente se perca um pouco. Parecendo que não, eu tive dificuldades sim. Apesar de ser a mesma língua eu tive dificuldades porque eles escrevem diferente de nós, sem dúvidas, e pronunciam também diferente de nós e têm termos que eles adoptaram, são totalmente desconhecidos e eu tive problemas sim. As vezes eu ficava na sala de aulas e não entendia nada do que estavam falando... havia relatórios de práticas de laboratório de Física, Química, eu escrevia, mas algumas palavras que eu escrevia eram tidas como 169 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes erradas, porque eu tinha que escrever como eles e, sobretudo, usam muito o gerúndio. Então foi difícil. Parecendo que não, mas influi muito para nós. (GOMES, 2007:89)

Nesta conformidade, tendo em conta que estas pessoas estavam na universidade e, para alguns, esta era uma condição sine qua non para a permanência no país, ter um desempenho escolar ruim significava o abandono do “sonho tão sonhado” de tornar-se graduado, visto que, entre as regras dos programas previa o desligamento definitivo do estudante que apresentasse sucessivos maus desempenhos escolares, tal como aconteceu em alguns casos que conheci – ver GOMES, 2002.

Como este não constituía o desejo destes, e considerando que a relação comunicativa entre as pessoas, ou melhor, entre “emissor e receptor, fundada no ciframento e no deciframento, e, portanto, na operação de um código ou de uma competência geradora, a troca lingüística é também”,

(...) uma troca econômica que se estabelece em meio a uma determinada relação de força simbólica entre um produtor, provido de um dado capital lingüístico, e um consumidor (ou um mercado), capaz de propiciar um certo lucro material ou simbólico. Em outros termos, os discursos não são apenas (a não ser excepcionalmente) signos destinados a serem compreendidos, decifrados; são também signos de riqueza a serem avaliados, apreciados, e signos de autoridade a serem acreditados e obedecidos (BOURDIEU, 1996:53)58.

Contudo, muitas vezes a insistência dos professores, dos colegas, dos

58 Gostaria de ressaltar que, apesar do estudo de Pierre Bourdieu referir-se às relações de poder dentro da mesma língua e do mesmo país, e dessa pesquisa tratar de uma análise relativa a integrantes de dois países culturalmente diferentes, ainda assim sua teoria possibilita que se faça uma ligação da mesma com a pesquisa desenvolvida, possibilitando a compreensão da situação dos universitários angolanos no Brasil em relação ao aspecto lingüístico.

170 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes amigos e as obrigações próprias da necessidade de comunicar-se com os outros, faziam com que essas pessoas adotassem para si, paulatinamente, a língua portuguesa no modelo brasileiro, ou seja, acontecesse o hibridamento da língua.

É o caso de uma das depoentes abordadas por mim que afirmou que em seu primeiro ano no Brasil, teve um verdadeiro “choque”, pois a maior parte do que falava (e escrevia) era considerado errado pelas pessoas à sua volta, sobretudo por sua professora de língua portuguesa. Mas, depois de ter vivido muito tempo no Brasil, já conseguia lidar com essas questões com maior “naturalidade” do que na época em que chegou apesar de não ter abandonado por completo sua maneira de falar e escrever.

Quando eu fiz o segundo grau, nós tivemos muitas dificuldades – digo nós porque estudei com outros angolanos. No primeiro ano, foi um choque, porque nós falamos „estou a comer‟ e a nossa professora de Português considerava errado. Então, assim... hoje que tenho sotaque brasileiro, foi bem forçado pelos professores, principalmente essa professora de Português porque para ela, o nosso infinitivo ao falar é uma forma errada do tipo „estou comendo‟. Até hoje, posso te dizer assim, com os meus colegas eu, às vezes, eu me esforço o máximo para não falar „estou a comer‟, „estou a fazer‟ e eles sempre falam: Lorena, „estou a fazer‟, não. „Estou fazendo‟. Eu falo „estou a fazer‟. Não tenho obrigação de falar estou fazendo. Se bem que eu falo, aliás, tenho doze anos de Brasil! (GOMES, 2007:92)

Como podemos apreciar nesse depoimento – conforme veremos mais adiante –, a adaptação à língua portuguesa tal como é usada no Brasil ocorre, paulatinamente – consciente ou inconscientemente –, na mesma proporção em que estes incorporam, também, outros aspectos que perfazem a cultura brasileira. Esse movimento implica, de um lado, a aproximação à linguagem brasileira, mas, do outro lado, o distanciamento paulatino, mas sem desfazer-

171 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes se da língua portuguesa no modelo usado em Angola, o que traz vantagens59 mas, também, algumas desvantagens, pois o distanciamento do modelo lingüístico de sua origem subtrai parte importante de sua identidade, dando lugar a uma nova forma de ser e de estar, ou seja, uma nova forma de falar e de escrever, que não é angolana, mas também não é brasileira, porém não deixa de ser característico tanto de uma, quanto da outra linguagem afinal, estamos a falar oficialmente da mesma língua: a língua portuguesa. “Ou não?” É para pensar!

Portanto, apossando-se desta linguagem híbrida – produzida nesse espaço de encontro intercultural para atender as necessidades de comunicação60 destas pessoas – que contém características tanto da forma brasileira quanto da angolana de falar e escrever, mas não a ponto de se colocar em pé de igualdade com os brasileiros, estes angolanos estariam em condições para emitir e receber mensagens com maior facilidade, visto que, munir-se-iam de ferramentas que lhes permitiriam codificar e decodificar os discursos dos outros, pois na visão de BOURDIEU (1996:25),

(...) o que circula no mercado lingüístico não é „a língua‟, mas discursos estilisticamente caracterizados, ao mesmo tempo do lado da produção, na medida em que cada locutor transforma a língua comum num idioleto, e do lado da recepção, na medida em que cada receptor contribui para produzir a mensagem que ele percebe e aprecia, importando para ela tudo o que constitui sua experiência singular e coletiva. (grifo do autor)

59 As vantagens é que essas pessoas poderiam, a partir daí, comunicar-se com maior facilidade com os brasileiros, já que (...) o produto lingüístico só se realiza completamente como mensagem se for tratado como tal, isto é, decifrado; além do fato de que os esquemas de interpretação que os receptores põem em ação em sua apropriação criativa do produto proposto podem ser mais ou menos distanciados daqueles que orientam a produção. Por meio desses efeitos, inevitáveis, o mercado contribui para formar, não só o valor simbólico, mas também o sentido do discurso. (BOURDIEU, 1996:24) 60De acordo com SOARES (apud GOMES, 1998:43), não se pode dissociar a linguagem da estrutura social em que é usada, pois uma relação de comunicação lingüística é, fundamentalmente, uma relação de força simbólica, determinada pela estrutura do grupo social em que ocorre a comunicação, ou seja, pelas relações existentes entre os interlocutores. (grifo do autor)

172 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Uma vez embrenhado na hibridação, embora esse processo aconteça aos poucos, um dos entrevistados no âmbito da investigação que fiz com os angolanos da UFMG, chega a mostrar certa preocupação com sua condição no momento, uma vez que, já não conseguia escrever e nem falar como antigamente, ou seja, já não podia falar nem escrever como angolano, mas também não o fazia como brasileiro assemelhando-se á condição do “paradoxo do homem disperso” simbolicamente descrito por NETO (s/d)61 ou ainda á situação dos imigrantes luso-angolanos no Brasil, descrita por CARDOSO (2008:29) quando diz que “a dupla vida imposta pela sua condição também o remete a um duplo sentimento de ausência, pois estando fisicamente no país que o acolheu, está ao mesmo tempo emocionalmente ligado ao país que deixou. Como imigrante acontece-lhe a lógica inversa, estar distante fisicamente e presente enquanto ainda ligado aos seus valores, costumes de origem. Sendo assim, diz ela, é comum o sentimento de não pertencimento, ao fim ao cabo, a lugar nenhum, e nesse sentido ser permanentemente estrangeiro. A autora finaliza reforçando que é comum haver na identificação como estrangeiro, tanto no local de partida como no de origem, fortes fundamentos para o sentimento de não pertencimento. Se os angolanos chegam a demonstrar estranhamento à condição intermediária deste indivíduo tanto na fala e quanto na escrita, os brasileiros, provavelmente menos distantes por estar no local da produção da intermediação, também tinham a mesma sensação de estranhamento, desta feita, por não ser a língua portuguesa no modelo usual para estes.

Hoje eu tenho dificuldade de escrever como escrevia antigamente; muita dificuldade. Eu escrevo para amigos, para colegas em Angola, eles dizem: o que é que aconteceu com o seu português? A gente fala português ao telefone, eles dizem: o que é que está acontecer com o teu português? Você não sabe mais falar português? Então, isso não é só em relação à ortografia, é também

61 Extraído do poema CONFIANÇA, de autoria de Antonio Agostinho Neto, disponível em http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/agostinho-neto/confianca.php. Consultado aos 16/12/2010 173 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes em relação à própria articulação da linguagem do Brasil. Então, para quem quer voltar para Angola, o conselho é que ele tenha essa articulação transcultural com o Brasil, mas, ao mesmo tempo, continue pesquisando como autodidata, para não perder aquilo que adquiriu de Angola. Agora, se o estudante quiser permanecer no Brasil, tudo bem. Querendo voltar, ele precisa realmente guardar essa parte cultural lingüística que é do país, porque vai fazer falta, com certeza! (GOMES, 2007:93)

A incorporação de traços da língua portuguesa pelos estudantes que investigamos na UFMG, na forma como é usual no Brasil, é uma realidade que pode ser extensiva também aos demais angolanos de outras instituições de Ensino Superior no Brasil.

Porém, embora haja reconhecimento da parte de uma das depoentes dessa pesquisa, docente do ISCED-UON, que afirma que ter o sotaque brasileiro não atrapalha, muito pelo contrário, os alunos gostam; para mim que também estou imerso na mesma condição da “escola angobrasileira”, cuja língua está hibridada, dificulta-me ver estes traços do hibridismo nos depoimentos, visto que, a construção gramatical destes docentes soa-me bastante familiar.

O sotaque brasileiro nunca atrapalhou. Pelo contrário. Eles torcem... vibram... fazem ligação com as novelas que eles assistem. Ás vezes até me davam nome de artistas das novelas brasileiras... (risos) no fundo eles gostam (...) muitos até não acreditavam que eu era angolana. (Professora Dituanga)

Nessa conformidade, a maneira que encontramos para tentar perceber a presença ou não destes traços nas práticas docentes desses professores foi á aplicação do questionário aos discentes. As respostas dos estudantes apontaram-nos, entre os docentes que estudaram no Brasil, índices diferentes sobre a presença e/ou ausência de 174 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes expressões tanto na fala quanto na escrita tal como se pode verificar na tabela a seguir. Por outro lado, quando avaliamos os mesmos indicadores para os professores que não tiveram formação no Brasil, vemos que os índices apontados com base nas respostas dos estudantes questionados para a presença na escrita assim como na fala, são insignificantes. Quanto aos que estudaram no Brasil, as respostas dos alunos indicam-nos que 68% destes percebem que estes docentes usam na fala expressões que destoam e 76% na escrita. Como esse assunto foi pouco explorado nos depoimentos dos docentes e sendo o questionário de pouca utilidade para maiores esclarecimentos, fica-nos difícil maiores comentários. Contudo, com base nos contatos diários que temos com os colegas, pode-se perceber traços do português “abrasileirado” e os da angolanidade – talvez estes possam ser terminologias a serem trabalhados em outros momentos.

Tabela 20: Respostas dos alunos do ISCED-UON em relação à presença ou não na fala e na escrita de expressões da língua portuguesa que destoam nos professores angolanos que estudaram e os que não estudaram no Brasil

N Professores angolanos Estudaram no Brasil Não Situações Estudaram no Brasil Sim Não Sim Não F % F % F % F % 01 Usa na fala de 290 68,0 139 32,0 13 4,0 289 96,0 expressões que destoam

02 Usa na escrita de 328 76,0 101 24,0 3 1% 299 99,0 expressões que destoam Fonte: Questionário aplicado aos estudantes do ISCED-UON, de Março a Maio de 2010.

175 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 4.8 – Contribuições para o fomento das relações inter-universitárias Brasil-Angola

Hoje em dia, a cooperação entre os países tem se constituído como o caminho para o fortalecimento e a expansão dos raios de ação de muitas economias pelo mundo. Fala-se que, em alguns casos, é o único caminho para a sobrevivência. A globalização, por exemplo, está ali para mostrar a todos nós que as “rígidas” fronteiras estabelecidas pelos Estados Modernos se tornaram porosas e, portanto, impossíveis de impedir os processos de “mistura” (CANCLINI, 2006). Por essa razão, por mais que reajamos a este fenômeno, não conseguimos nos livrar da tendência global para o intercâmbio, a mistura e a hibridização das práticas, dos hábitos e dos costumes, visto que, “todas as culturas estão envolvidas entre si e nenhuma delas é única e pura”. (Idem) É justamente nesta direção que caminham as conclusões do Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI, no qual os relatores concluem que para poder dar resposta ao conjunto das suas missões, a educação deve organizar-se em torno de quatro aprendizagens fundamentais que, ao longo de toda a vida, serão de algum modo para cada indivíduo, os pilares do conhecimento: aprender a conhecer, isto é, adquirir os instrumentos da compreensão; aprender a fazer, para poder agir sobre o meio envolvente; aprender a viver juntos, a fim de participar e cooperar com os outros em todas as atividades humanas; finalmente aprender a ser, via essencial que integra as três precedentes (DELORS et al, 2006:89). Podemos, através destes indicadores, os chamados “quatro pilares da educação” onde um deles evoca a necessidade da cooperação por meio do aprender a viver juntos e que, por sua vez, podemos ver refletidas as palavras dos sujeitos deste estudo que, ao egressar de programas de formação em universidades brasileiras entendem que a continuidade de ações como estas podem contribuir não só para o fortalecimento dos laços entre os nossos povos, mas também, para a criação de outros espaços interativos entre as universidades onde o trabalho conjunto em projetos de pesquisa, em publicações e outras ações bilaterais e/ou multilaterais poderiam ter lugar, visto que, uma base legal para atos desse calibre já estão previamente 176 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes estabelecidos nos acordos de cooperação cultural e científica rubricados entre o governo da República Federativa do Brasil e da República de Angola, em 1980, cuja atualização por meio de ajustes complementares a este acordo “mãe” vem sendo feita ao longo dos anos. O primeiro artigo desse acordo “mãe” prevê, no geral, que as partes deveriam promover a cooperação mútua nos domínios da cultura, da educação e da ciência, da arte, e dos desportos e da comunicação social ao passo que, no segundo, realça-se mais especificamente a necessidade de estimular os contatos entre os estabelecimentos de ensino superior entre os dois países promovendo o intercâmbio de seus professores, por meio de estágios no território de outra parte, a fim de ministrarem cursos ou realizarem pesquisas, troca de delegações e documentação de caráter científico-pedagógico – acerca dos acordos de cooperação entre os dois países, ver capítulo 2 nesta tese. Podemos considerar que a presença de angolanos para estudar em Instituições de Ensino Superior brasileiras é um facto, pois os números demonstram-nos isto. Mas, o intercâmbio universitário de seus professores que o acordo legisla, ainda é muito pouco visível entre as universidades angolanas e brasileiras. É nesse sentido que a Professora M´pemba, por exemplo, reforça a idéia da necessidade de “haver mais trocas”, pois, de acordo com ela, na Universidade onde estudou no Brasil, o número de estudantes angolanos a freqüentá-la tornou-se diminuto o que, no seu modo de ver, não é bom.

Que houvesse mais trocas... que praticamente já está se perdendo essas trocas bilaterais... em Belém do Pará, por exemplo, só foi um aluno de Angola, em termos de convênio. Então eu acho que não seria salutar cortar essa relação com o Brasil até porque nós temos muitas semelhanças em termos culturais.

Para ela, as relações entre os dois países extrapolam os aspectos meramente científicos e dão lugar a outros intercâmbios, pois embora o Brasil esteja, em termos de desenvolvimento mais adiantado, alguns dos problemas vivenciados em Angola também podem ser percebidos no Brasil. Por outro lado, as trocas beneficiam ambos os lados. 177 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes

[...] em termos de desenvolvimento, embora eles já sejam considerados como um país emergente e nós ainda estamos um pouco mais atrás, eles também ainda têm praticamente os mesmos problemas educacionais... o déficit educacional que a gente vive eles também vivem e muitas coisas são semelhantes a nós. Então eu acho deveria se aproveitar mais esses convênios, essas trocas porque o Brasil ele acaba enriquecendo bastante, principalmente na área educacional.

Mais adiante a Professora M´pemba reforça ainda que

Quando a gente vai estudar a pedagogia da autonomia de Paulo Freire, por exemplo, a gente vai ver que os problemas que ele discute são praticamente os problemas que a gente vive aqui. Então se a gente cortar essas relações [...] eu acho que a gente acaba perdendo muito, então é preciso perpetuar mais essas relações.

Reforçar o que já existe é uma das estratégias sugeridas pelo Professor Micanda que acredita em ações de “intercâmbio sempre se aprende alguma coisa nova”. Nessa perspectiva seria necessário aumentar a freqüência dos intercâmbios entre o pessoal de um lado e do outro em encontros previamente programados. Em termos de sugestão, o que eu posso sugerir é reforçar o que já existe. Reforçar cada vez mais esse intercâmbio porque toda vez que há esse intercâmbio sempre se aprende alguma coisa nova. De maneira geral, é isto que eu penso. Dizem que é melhor juntar-se aos bons então, já que nós vemos que efetivamente essa escola é boa, então vamos aumentar o intercâmbio e juntar-se a eles. Mas isso não quer dizer que vamos 178 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes discurar dos outros. Claro que não. Isso não! É reforçar mesmo esse intercâmbio com a escola brasileira. [...]para isso, é preciso aumentar o número de vezes que tem que haver encontros com o nosso pessoal, com o pessoal de lá... é aumentar a freqüência[...] haver encontros já programados, por exemplo, semestralmente, ou anualmente, ou periodicamente, haver sempre esse tipo de intercâmbios quer eles venham para cá ou nós lá [...]

Conforme dizia atrás, reforçar as relações entre os dois países e, especificamente entre as instituições de Ensino Superior, contribuiria não apenas para questões científicas, mas também, em outros. A Professora Dituanga, por exemplo, acredita que um intercâmbio com o Brasil seria útil para contribuir na formação dos docentes nas diversas facetas necessárias ao processo de ensino e aprendizagem.

Se o Brasil tiver que contribuir é muito mais na formação do homem cidadão, na democracia, nosso aluno passando pelo processo de humanização e não de coisificação, é por aí. Muitos de nós fomos formados numa visão muito radical, fechada, visão conservadora, não acredita nas possibilidades, habilidades e capacidades de quem aprende, então é complicado. Acho que o primeiro trabalho deve ser conosco, um seminário para nos abrir o horizonte, se calhar mudança de metodologia de trabalho porque, senão, é difícil. Isso deve ser primeiro feito com conosco, nós os docentes, porque ninguém pode dar o que não tem.

179 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 5. Considerações finais

Em quê os traços do hibridismo cultural impactam a prática docente destes sujeitos em Angola? E, em quê a tradução influencia a prática docente de profissionais que retornam à Angola para lecionar? Estas são questões que ajudamos a clarificar neste estudo onde trouxemos como objetivo o de verificar o impacto dos traços do hibridismo cultural nas práticas dos angolanos egressos de universidades brasileiras partindo da perspectiva de si próprios e na de seus alunos. Para isso, usamos depoimentos de quatro docentes que estudaram no Brasil, mas também as respostas do questionário submetido ao crivo dos estudantes que, embora tenha sido usado apenas como complemento aos depoimentos dos docentes aos quais demos mais espaço, também contribuíram com informações para o alcance do desiderato deste trabalho. Entendemos que uma vez experimentados na condição de homens e mulheres “dispersos”, os retornos destes(as) angolanos e angolanas a Angola – cuja presença no Brasil se deveu a uma política governamental sustentada por acordos bilaterais entre os dois países – não pode mais ser entendida naquela perspectiva antevista por Agostinho Neto, no poema “havemos de voltar”, pois nem a terra, nem o batuque, nem a frescura da mulemba, nem o café e o algodão, nem o diamante e o petróleo, nem as tradições, nem as pessoas e outros objectos são mais os mesmos. Tudo mudou inclusive estes sujeitos que estudaram na “terra dos outros” e que voltaram para sua “terra mãe” que agora não é mais a mesma. Com base nos dados colhidos e ancorado à base teórica que tomamos como referência, de facto, percebe-se que a tradução dos traços resultantes do hibridismo cultural não tem impacto somente na actividade docente desenvolvida por estes homens e estas mulheres, mas também nas maneiras de perceberem-se a si próprios(as) como indivíduos dentro desta sociedade, pois com bem diz a Professora Tunga N´zola – na nossa língua Ibinda isso significa “construa a amizade” ou “construa o amor” – minha ida ao Brasil mudou-me muito. Me acho um pouco diferente. Estou um pouco mais sensível.

180 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Foi, portanto, isso o que procuramos evidenciar ao situarmos, na fundamentação teórica, os quadros analíticos que mostram os fluxos das informações captadas através dos depoimentos destes docentes realçando os cenários das traduções dos traços do hibridismo cultural, em meio a suas práticas pedagógicas. Nesse sentido, percebemos que suas falas indicam-nos que as práticas distribuem-se em quatro eixos analíticos: teorias comprometidas, dialética da negação, tradução cultural e inserção do novo no mundo. No eixo “teorias comprometidas”, captamo-lo, em seus depoimentos, a partir distinção que fazem nas falas ente teoria e prática, nas teorias que estão subjacentes nos seus relatos, os elementos com que os estes decentes dizem organizar o processo de ensino e aprendizagem, os efeitos que essas teorias têm no dia a dia do trabalho cotidiano e ainda nos elementos híbridos nas teorias emergentes nos seus relatos. No eixo “dialética da negação”, enquadramos as falas dos docentes que demonstram como estes traduzem os signos escolares (professor, aluno, conteúdo escolar, avaliação e outros componentes da atividade em sala de aula), como correlacionam conteúdos advindos de culturas diferentes, como refletem as tensões no confronto de conteúdos advindos de culturas diferentes, a fusão da tradição e da modernidade, a desterritorialização (a convivência em um mesmo espaço de distintas temporalidades históricas) e, por fim, como a cultura escolar é recodificada pelos docentes ao serem confrontados com as experiências culturais vividas em outras esferas não escolares. O eixo que denominamos “tradução cultural” foi onde mostramos, a partir de suas falas, como os significados são re-apropriados pelos professores e como eles os re-historicizam, como eles destroem a continuidade e a constância nas práticas pedagógicas, como eles negociam suas identidades culturais, como eles traduzem suas práticas para formas ocidentais, a instabilidade provocada pelo deslocamento da apropriação cultural (ambivalência e hibridização) e a instabilidade provocada pela presença de elementos estranhos, avessos ou como elementos intraduzíveis e como o presente aparece na tradução (imagens, tempos verbais). Por fim, no eixo analítico que chamamos de “inserção do novo no mundo”, as traduções dos traços do hibridismo cultural aparecem nos 181 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes depoimentos por meio das repetições insurgentes, nas diferentes conotações que um mesmo signo pode ter em suas práticas docentes, nos elementos da fala do docente que se distanciam de sua fonte original, nos flash backs (introdução de novos cenários e de conflitos), nos elementos estrangeiros nos relatos que destroem as estruturas de referência, na negociação com as temporalidades, nos signos diferentes no tempo e no espaço e, na descanonização dos conteúdos originais o que é perceptível, nos depoimentos, por afirmações que indicam que os conteúdos ministrados são adaptados pelos docentes deixando, portanto, de ser canônicos. São estes elementos didaticamente separados aqui porém, teoricamente conjugados entre si – condição fundamental para seu entendimento – é que pudemos ver manifestas as traduções dos traços do hibridismo cultural destes angolanos no espaço geofísico e sócio-cultural de sua origem, diferentemente da tradição vigente neste tipo de estudos que procuram perceber o indivíduo a partir da “nova cultura”, ou seja, enquanto vivente na diáspora. Estes meandros levaram-nos a concluir que as práticas pedagógicas destes sujeitos imersos naquilo que denominamos “escola angobrasileira”, possuem características que os aproximam ás práticas comuns nas instituições onde estudaram no Brasil, mas que não os distanciam totalmente daquela onde trabalham em angola, no que concerne ás formas de relacionamento que estabelecem com os alunos (menor hierarquia nas relações, abertura no trato com os alunos, facilidade de interação entre professor e alunos), no processo avaliativo (uso de seminários, trabalhos em grupo relacionado-os, ás vezes, a provas escritas), no tratamento dos conteúdos (deslocando o professor do lugar do “dono do saber” e trabalhando, sempre que possível, com um olhar descanonizado) etc., o que exige que tenham que buscar estratégias discursivas e didáticas para se conciliarem entre as culturas escolares. Neste sentido, eis as estratégias de conciliação que percebemos em suas falas: o diálogo e a amizade com os alunos, conceber o aluno como sujeito no processo de ensino e aprendizagem, o contrato didático e a simplicidade. Mesmo assim, é bom salientar que a instabilidade por estar nesse lugar, muitas vezes traz a ribalta elementos estranhos, avessos e até intraduzíveis como, por exemplo, a formalidade existente entre professores e alunos que produz um

182 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes grande distanciamento entre estas pessoas e não há uma explicação para esse comportamento. Entendemos que com estas palavras consideradas finais, mas não definitivas, contribuir para se pensar 1) de um modo mais amplo, de que maneira nós docentes traduzimos os conhecimentos aos alunos e, de maneira mais restrita, de que forma nós docentes que vivenciamos uma experiência formativa na “diáspora” traduzimos, na prática docente, os traços provenientes dessa formação; 2) podemos também pensar em quê maneira as instituições formadoras podem contribuir, na diáspora, para que as distâncias entre as culturas de formação e as de origem não sejam tão longas; 3) pensamos ter podido contribuir ainda para se começar a pensar nos significados desta “escola angobrasileira” para os futuros programas/projectos de cooperação e intercâmbio interinstitucional entre as universidades dos dois países. Agora sim, para terminar, deixo para nossa reflexão o poema de Agostinho Neto, pois ele mesmo quando o escreveu estava na diáspora talvez, por isso, hoje temos que entendê-lo e pensá-lo como um poema diaspórico, porém não mais como eu que finalizo a escrita desta tese estando no Brasil, cujo projeto e dados foram gerados em Angola em meio a tantas idas e vindas carregando comigo as ferramentas das novas tecnologias, dentro ou fora do país, nos aviões, em aeroportos – lembro-me da feliz greve dos aeroviários no aeroporto Charles de Gaulle, em París, que fez atrasar o vôo permitindo-me traçar mais algumas linhas desta tese, ou ainda a greve geral dos trabalhadores em Espanha que me obrigou a ficar com dois dias livre de compromissos de trabalho em Madrid, aproveitando-os para tentar escrever – e tantos outros lugares e em lugar nenhum, sempre pensávamos em chegar aqui, mesmo estando agora na “terra dos outros” ou é na “minha terra”? Eis o “paradoxo do homem disperso”.

183 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes HAVEMOS DE VOLTAR

Às casas, às nossas lavras às praias, aos nossos campos havemos de voltar

Às nossas terras vermelhas do café brancas de algodão verdes dos milharais havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes ouro, cobre, de petróleo havemos de voltar

Aos nossos rios, nossos lagos às montanhas, às florestas havemos de voltar

À frescura da mulemba às nossas tradições aos ritmos e às fogueiras havemos de voltar

À marimba e ao quissange ao nosso carnaval havemos de voltar

À bela pátria angolana nossa terra, nossa mãe havemos de voltar Havemos de voltar

À Angola libertada Angola independente

Poema da autoria de António Agostinho Neto

184 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes 6 – Referências bibliográficas

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189 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Entrevista com Docente Dituanga

Sita: Vamos começar por sua trajectória escolar. Queria que me falasse um pouco dessa sua trajectória, a partir do ensino primário, caso tenha estudado em outro lugar para além de Angola. Professora Dituanga: Inicialmente, logo depois da guerra, já estava com a 3ª classe... não conclui a 4ª... fomos para RDC. Lá... fiz o ensino médio. Depois do Ensino Médio, isso já era em 82, regressei ao país mas, apenas sabia dizer 3 palavras em português: falava a palavra água... mãe... e a 3ª era pai. As 3 palavras que eu retive porque o ensino primário era feito lá no quimbo, então, nós não falávamos português no tempo colonial, parti daqui falando fiote, fui prá lá e não tive essa referência, a não ser as 3 palavras que eu acabei de citar. Vim para Angola com o meu Ensino Médio completo... almejava fazer Medicina... fiquei 6 anos cá em Cabinda, por sinal até fiquei na missão evangélica porque me sentia segura dentro da igreja. Então, aquele ambiente religioso, 6 anos depois tive a ligação com a família em Luanda porque, a minha mãe é de Luanda, o pai dela é o sexto filho de uma senhora do Bengo que altura fazia parte de Luanda e vieram 3 prá cá os 3 outros ficaram no outro lado, então consegui tabular contacto e daí parti prá Luanda. 18 meses depois consegui a travessia para o Rio de Janeiro e do Rio de Janeiro para Matogrosso do Sul, sempre buscando fazer a Medicina. Não tive bolsa. Foi por uma iniciativa própria e a família me apoiou na aquisição de bilhete de voo que por exigências era de ida e volta. A igreja, depois de uma grande discussão porque não acreditavam na mulher, achavam que estaria remando no seco, deram-me 200 dólares. Achavam que eu ficaria por lá mesmo, constituindo uma família e que não estaria lucrando em nada para os meus os estudos. Dois pastores mais velhos apostaram ainda em mim e foi graças a eles que a igreja deu-me 200 dólares que me serviu para sair do Rio de janeiro para Dorados e com isso começar a vida. Posto lá vi mesmo que a Medicina não havia um enquadramento possível para mim... ali já se encontravam duas famílias nossas que saíram de cá de Cabinda, um é meu primo e o outro só éramos amigos aqui mesmo, ou seja, duas famílias e eu a solteira éramos 5 estudantes ali no Seminário Baptista. Logo matriculei-me no curso de Educação Religiosa o que fiz 4 anos. Mas quando eu estava no segundo ano, na Educação Cristã e Religiosa, prestei vestibular na Universidade do Matogrosso do Sul e graças a Deus transitei classificada em 5° lugar. O maior obstáculo que eu encontrei ali ainda era a língua portuguesa

190 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes porque da RDC prá lá não frequentei nenhum curso de português. O que me apoiou era o facto de eu ter feito a Filosofia latina na RDC e era a minha opção e o latin estava muito próximo do português. Então, isso me ajudou bastante. Como fazia em paralelo, quando conclui o seminário já tinha dois anos feitos na Universidade por isso também fui fazer a teologia no seminário que exigia mais dois anos. Então, são os dois anos que terminei a Pedagogia e a Teologia. Logo nesse tempo, fiz a Educação Religiosa, Pedagogia e Teologia. Findo esse tempo, a igreja reconheceu e mandou uma delegação que foi a minha busca. Foram dois pastores e um deles que era o secretário, foi com a sua esposa. Eu me encontrava em Brasília a convite de um casal missionário canadense que trabalhava com a nossa igreja porque os canadenses já tinham essa visão. Estava prevendo que haveria dificuldade em me fazer retornar a pátria. Mas, só que eu sempre tive uma coisa dentro de mim: é o espírito de missão de que, para mim, fui lá buscar um pouquinho mais da experiência brasileira, e voltar prá minha terra. Nunca me senti presa no Brasil. Vi muita coisa bonita, diferente, outras coisas até iguais, vi tudo isso mas eu senti que tinha que recuar e fazer alguma coisa em prol do meu povo. O que aconteceu regressei em 94, fui em abril de 88 e voltei em abril de 94.

Sita: Assim que chega entra logo para a docência? Professora Dituanga: Não. Eu quando voltei eu me entreguei 100% à vida religiosa. Acontece que a própria Igreja não estava preparada para me receber. O espaço para a mulher não havia... nem em termos de subsídio.... nós tivemos o secretário geral que me buscou, esse sim, logo me deu uma colocação no secretariado geral. Estava chefiando o departamento de formação de quadros da igreja e com isso conseguimos enviar alguns bolseiros ao Brasil. Depois de um ano, contrai matrimónio e muda também de liderança. O outro que entrou, por sinal viemos no mesmo país mas, fecha o espaço. A própria liderança da igreja disse que já é casada, o marido está cá, então sobe. Vim a Cabinda e quando cá vim, encontrei espaço a nível da religião e me colocaram na pasta da Educação Religiosa. Comecei a marcar passos mas, também, deram-me o ensino que a igreja chama ensino secular, para cuidar das antigas missões da igreja que estavam sob o controlo do Estado já que já havia uma luz no fundo do túnel de que o Estado iria devolver as propriedades da igreja. Fomos marchando, entabulamos contacto com a Direcção Provincial da Educação que orientou que para que pudesse cuidar dessa área a nível do Estado, deveria fazer parte da fileira da função pública. Automaticamente a igreja me recomenda para estar na sala de aula. Fui para o IMNE, comecei a trabalhar

191 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes sempre com aquela intenção de estar junto daqueles que detêm o poder, para um dia depois receber as nossas missões o que aconteceu há alguns 3 ou 4 anos atrás. Daí a nossa igreja me chamou e eu disse que não tinha mais interesse. Eu mesma indiquei outro colega que concluiu o ISCED há pouco tempo. Sita: A sua entrada no IMNE acontece, quantos anos depois de sua chegada? Professora Dituanga:Eu fui para o INME em 1996. Sita: Queria que me falasse um pouquinho dessa experiência no INME. Você notava alguma diferença entre a sua forma de se relacionar com os alunos e a que estava acostumada no Brasil? Como é que era isso? Chegava essa informação? Professora Dituanga: A princípio foi um choque cultural. A cultura escolar é bastante diferente e é isso que me chocou inicialmente. Eu aprendi na escola brasileira, quer no seminário, quer na Universidade, que a pessoa valia aquilo que ela era. Para mim o ser era muito forte. Aprendi. O que contraria totalmente aquilo que eu fui viver no IMNE. O ser não tinha lugar... o saber em si nada valia... o que eu vi é que a juventude estava ali simplesmente em busca do certificado então, isso aí me deixava transtornada até na minha relação entre professor e aluno na sala de aula.

Sita: Chegou a ouvir algum depoimento dos alunos falando da qualidade do seu trabalho?

Professora Dituanga: Ah! Isso sim! Primeira coisa que eles diziam é que eu era exigente.Usavam muito a expressão: aqui não é Brasil não... aqui não é Brasil... e você não veio prá mudar isso... se todo o mundo, todos professores estão aceitando, porque não você!? junta-se a equipa que você veio encontrar... Trazer para cá o brasilísmo, essa vossa mania que têm de que o aluno deve investigar, nós não estamos para isso não... a nossa história aqui é conseguir alguma coisa, te dar e pronto! É por aí!

Sita: Mas qual era a sua estratégia, para conseguir lidar com isso?

Professora Dituanga: Minha estratégia sempre foi dialogar. Muito diálogo. Eu apostei no diálogo. Eu fui mostrando para eles o estilo da escola onde nós fomos preparados. O brasileiro é um amigo. Acima de tudo, um amigo, mas nunca misturou as coisas. Cada coisa tinha o seu tempo e o seu devido lugar. Então é isso que eu queria. Primeiro atrair os alunos junto de mim e lhes mostrar que apesar de estarmos a conviver, daqui a alguns minutos nós vamos fazer a Ciência... vamos exigir, então isso lhes deixava assustados. Eles queriam trocar. Já que ela está rindo connosco, está conversando connosco, ontem passeamos juntos, então tudo fica por aí porque é isso que eles queriam. Eu dizia que 192 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes não amizade! Amizade, o diálogo, aproximação tem que haver mesmo, mas na hora de fazermos aquilo que nos faz estar aqui vamos exigir!

Sita: Desde que começou a dar aulas até agora que está no ISCED, consegue perceber alguma mudança em você, em relação ao seu posicionamento com o aluno? Alguma coisa mudou nesse relacionamento com o aluno?

Professora Dituanga: Eu, pessoalmente tento manter aquele ritmo. Ser amiga do aluno porque eu vejo que tenho algo também por aprender deles. Eu procuro colocar o estudante como sujeito desse processo. De início eles não querem se assumir nesse lugar mas eu empurro e faço eles assumirem esse lugar. Faço isso como um jogo psicológico para que eles estejam na posição central. Aqui o professor é o centro... ele é que sabe e o aluno é aquele que não sabe. É uma relação terrível. No Brasil eu vi a realidade diferente, trabalhamos com o construtivismo em construir o fazer colectivo, então aqui também apostamos nisso.

Sita: E consegue-se fazer isso aqui, essa produção colectiva, nos nossos alunos aqui? Consegue ou tem feito adaptações?

Professora Dituanga: São adaptações. Dizer mesmo que naqueles moldes, aí estaria a me enganar a mim mesma. Só que eles alegam muitas condições sociais, vamos muito mais selo sociologismo na educação. Ah não consegui porque não houve transporte, porque o salário não caiu, é porque perdi minha tia, porque o meu vizinho, e por ai vai...

Sita: Como é que você tem feito para avaliar esses alunos nessas condições? Professora Dituanga: Eu tenho tido 3 momentos. Eu luto para fazer avaliação no grupo mas obedecendo ao princípio de atenção individual. O aluno na base do trabalho colectivo porque inicialmente eles pensavam que a nota é dada ao grupo mas, não. O trabalho é colectivo mas eu procuro saber qual foi a contribuição de cada aluno. Já a nível de investigação, o delegado vai dizer que o fulano foi 100%, foi 50% e por aí. Na hora de apresentação do material colhido vamos avaliar. Esse é o 1º sistema que eu aplico. O outro sistema, a maior parte da turma fica ouvindo a exposição desse pequeno grupo que investigou. Também é um momento para avaliar. A avaliação deles vai de 0 à 10 porque nesse momento são eles que estão interagindo com aquilo que este pequeno grupo está trazendo... então, nessa interacção o que é que vocês acharam? Qual é o nível de assimilação? A cientificidade dos conteúdos? é por aí. Eles também têm uma palavra

193 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes a dizer. E a 3ª forma que eu uso é a avaliação individual que é a chamada prova escrita, onde eu procuro fazer uma parte do sistema de assinalar certo ou errado, coloco também para preencher as lacunas e uma parte para a dissertação ou fundamentar... porque numa prova eu luto para misturar as três formas para criar equilíbrio na avaliação. Sita: Isso tem a ver um pouco com a forma como era avaliada?

Professora Dituanga: Com certeza com certeza! Isso tem a ver sim. É aquilo que eu disse na sala de aula. Nós procuramos ler um pouquinho mas, basicamente é aquilo que foi feito com a gente, mesmo em casa a educação de casa tende a repercutir na sala de aula, porque a personalidade partiu aí, se somos tolerantes, se não somos é por ai.

Sita: Quais são os modelos mais comuns nas suas aulas, em termos de formas de dar aulas?

Professora Dituanga: Eu quando chego na sala de aula, a primeira coisa que tenho feito eu mudo o cenário. Não dou aula se não formarmos um círculo ou uma meia lua para estabelecermos a relação ombro a ombro. É o momento mais forte que eu tenho para lhes dizer que eu não estou aqui como dona do saber. É uma fase de construção. Estamos aqui para construir os conhecimentos e que a construção é feita dependendo de cada um, a predisposição, os condicionamentos que temos, os motivos que nos fazem estar aí... então, cada um vai colocando um tijolo em cima do outro. Há quem pode produzir um pouco menos outros, um pouquinho mais, mas que no fim um deve saber esta unidade que é que me lucrou? onde estou? qual é o nível? se estou abaixo do rendimento é por aí. Então eu procuro apostar pelo diálogo, ouvindo a contribuição de cada e ao mesmo tempo conseguir controlar todos na turma, porque aqui alguns ficam encolhidos lá no fundo e se você não reagir entrou e saiu sem dizer nada. E vem mês, vai outro mês o ano termina, nem o nome você não consegue descobrir, porque ele vem aqui depois de um trabalho e fica aqui como que prá preencher uma lacuna que ele tem na vida, então vem prá justificar prá ter o pedaço de papel, melhorar o seu salário lá no serviço, porque se calhar não estão à busca de conhecimento... é isso que eu vejo no dia- a-dia. Então temos que estar a insistir um ou outro sim, mas a grande maioria não está aqui mesmo para saber, mergulhar no mundo da ciência. Não. A gente não vê isso.

Sita: Pelo que vejo, mais uma vez, essa sua forma de dar as aulas tem também uma certa construção que vem da sua própria experiência de formação?

194 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Professora Dituanga: Com Certeza.

Sita: Ok. Mas agora aqui nós temos turmas grandes que certamente não deve ter sido a tua experiência lá. Que adequações você consegue fazer para dar conta disso com essas metodologias?

Professora Dituanga: Eu aqui no ISCED nunca tive aulas com mais ou menos 50. Oscila entre 40 a 45 no máximo porque o nível de absentismo aqui também é bastante acentuado. Quem veio hoje, é aquele mesmo que estará faltando na próxima aula, e aquele que faltou hoje é que virá no outro dia. É isso que eu tenho controlado e a gente chama atenção porque o absentismo também tem uma conta a ver com o rendimento. Tem muito a ver por isso que não nos atrapalha bastante. Nós nunca tivemos turmas a 100% de presença, há elevados índices de absentismo, sempre tem explicação como eu já disse anteriormente, vão pelo sociologismo ou porque não teve dinheiro para pegar o táxi, ou porque teve óbito. Aqui morre-se muita gente se não é um parente é um vizinho, vizinho também é parente e aí vai...

Sita: Está bem. Em algumas turmas nós temos alunos vindos de Luanda , do Zaire e de outras províncias enfim... você estabelece alguma relação diferenciada com estes alunos especificamente?

Professora Dituanga: Em alguns casos sim. Porque eu quando estou dando aulas momentos há que no nosso diálogo eu vejo que não estão chegando lá, e eu faço recurso a um provérbio na língua materna, então quem não capta logo, quem não é vou ter que fazer uma tradução, uma interpretação do provérbio que eu lancei esse é o momento. Outros momentos também eu sinto um sotaque muito forte fruto do dialecto da língua materna destes alunos que não são de cá, principalmente com as letras “z” e letra “x” e por aí... ás vezes objectos de gargalhadas na sala de aula, então temos tido também momentos para reflectir sobre isso ou mesmo quando fazemos referência de uma localidade da província de Cabinda por eles desconhecida, então também abrimos parêntesis para explicar o que é que estamos aí a tratar, temos tido estes momentos sim, temos tido.

Sita: Mas eles não te chamam atenção especificamente pelo facto de ter tido esta trajectória fora, isto te mobiliza de alguma maneira a presença destes alunos?

195 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Professora Dituanga: Eles gostam! Gostam bastante! Muitos até comentam porque eu quando dei aula no Ensino Médio tinha o sotaque brasileiro muito forte que muitos até não acreditavam que eu era angolana. Os mais velhos vinham junto de mim dizendo: passa a falar fiote... porque eu também trabalhava num programa evangélico radiofónico e todos me tinham como brasileira. O que é que eu descobri? Nós pensamos antes de falar numa determinada língua. Eu quando cheguei como já não falava na língua que me viu nascer, não conseguia falar, mas eu falo bem o nosso dialecto tempo depois comecei a pensar como angolana e aquilo tornou-se fluentemente sem fazer qualquer força. Daí que viram que eu era mesmo angolana... essa é da terra. Mas que eles gostam do sotaque gostam do sotaque brasileiro, gostam. Muitos até lamentam, mas como é que já perdeu? Mas eu lhes digo que não forço para ganhar o sotaque brasileiro, como também não vou fazer força para muito sustentá-lo. É algo que vem pela convivência social; é isto que aconteceu.

Sita: Então quer dizer que o sotaque brasileiro nunca atrapalhou?

Professora Dituanga: Não. Pelo contrário. Eles torcem... vibram... fazem ligação com as novelas que eles assistem, ás vezes até me davam nome de artistas das novelas brasileiras... (risos) no fundo eles gostam.

Sita: Como passou por esta experiência no Brasil, tem alguma sugestão que quer dar prá pensarmos essas nossas relações de cooperação com o Brasil? No âmbito professor- professor, aluno- aluno enfim, essas coisas que possam contribuir no fomento dessas relações?

Professora Dituanga: Eu quando cheguei pensei nisso e fi-lo por escrito. É um documento que eu até hoje nunca deixei de lamentar. Eu remeti ao Ministério da Educação um documento que depois veio dar o projecto da reforma educativa. Dizem que procuraram-me e não me acharam. Localmente eu tenho reclamado que eu faço parte desse processo aí de educação, sempre que há estas histórias do currículo, reforma educativa que eu queria também estar por dentro porque aqui a relação entre professor e aluno me deixa muito triste. O aluno é coisificado. Nós somos das Ciências Humanas e então sinto uma falta muito grande e o que vejo, é como que um ciclo vicioso ou vasos comunicativos. Se nós estamos aqui a tratar os estudantes desta forma, eles também nos níveis inferiores vão fazendo a mesma coisa e no país fala-se de democracia, e essa democracia não é vivida ou vivenciada na sala de aula, então é complicado. Se o Brasil

196 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes tiver que contribuir é muito mais na formação do homem cidadão, na democracia, nosso aluno passando pelo processo de humanização e não de coisificação, é por aí.

Sita: E como é que isso pode ser feito?

Professora Dituanga: Isso deve ser primeiro feito com connosco, nós os docentes, porque ninguém pode dar o que não tem. Muitos de nós fomos formados numa visão muito radical, fechada, visão conservadora, não acredita nas possibilidades, habilidades e capacidades de quem aprende, então é complicado. Acho que o primeiro trabalho deve ser connosco, um seminário para nos abrir o horizonte, se calhar mudança de metodologia de trabalho porque, senão, é difícil.

197 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Entrevista com o Professor Micanda

Sita: Vamos começar por falar da avaliação. Analisando o material que me deu percebi que tem uma tendência a fazer com que a prova seja uma aplicação. Essa forma de elaborar as provas tem a ver com a dinâmica que se fazia na sua escola, quando estudou no Brasil?

Professor Micanda:Bom... na verdade o que nós a seguir aqui, digamos que é uma sequência de todos os ensinamentos que nós aprendemos não só no Brasil como, também na própria Universidade Agostinho Neto porque a avaliação deve cumprir com determinados objectivos portanto, nós traçamos os objectivos a atingir em função daquilo que está programado e depois também aquilo que é dado nas aulas. Então, todos os aspectos importantes referidos ou praticados, em princípio tenho como norma ter que avaliá-los fazendo uma aplicação quer seja teórica, quer seja prática. Sita: Apesar de ter passado já muito tempo do perído que estudou no Brasil, ainda consegue lembrar como é que eram as provas lá? Professor Micanda:Bom... me recordo perfeitamente. É mais ou menos o estilo que nós temos estado a usar. Sabe que nessas Universidades Federais, à princípio nós tivemos algumas dificuldades porque nós vínhamos de um sistema mais ou menos diferente e tínhamos que nos enquadrar naquele e efectivamente, até certo tempo, vimos que é a forma mais adequada, pelo menos naquele momento, mais adequada o que se aplicava. Portanto, me recordo perfeitamente e pela experiência que trouxemos de lá, temos estado a conjugar aquilo que é nosso e aquilo que nós aprendemos lá. Sita: Já que estás a dizer que a avaliação é dada em função dos objectivos, então seria bom falarmos das aulas. Qual é a dinâmica que você mais utiliza nas suas aulas? Queria que me falasse um pouco como é que você dá suas aulas? Professor Micanda:Bom. As nossas aulas são dadas em função de um programa a cumprir. Um programa pré-estabelecido vindo da direcção da nossa Unidade Orgânica e em função do programa que nós temos onde nós temos os conteúdos programáticos e a partir destes conteúdos nós elaboramos efectivamente as nossas aulas tendo sempre presente que cada aula tem um objectivo a atingir que é medido no fim de tudo pela avaliação que nós aplicamos aos nossos estudantes.

198 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Sita: Mas, o que eu queria mesmo é saber um pouco mais da dinâmica das suas aulas. Imagina uma aula, por exemplo, daqui a pouco vai dar uma aula. Como ela será dada? Professor Micanda:Eu tenho, por exemplo, um principio em que os nossos estudantes eles já têm um conhecimento prévio daquilo que se vai tratar porque nós temos um programa e estabelecemos metas e, geralmente, no início de cada aula nós pómo-nos em pé de em pé de igualdade com os estudantes. Aliás, sabe que o professor não é aquele professor que hoje em dia já não se pode considerar como indivíduo “sabichão”, aqule que sabe tudo, que ensina tudo e o estudante só está lá para receber. Não é isso que acontece comigo. Geralmente, nas minhas aulas, a dinâmica que eu utilizo aqui inicialmente são os próprios estudantes que se devem pronunciar sobre determinado tema, os outros colegas vão complementando ou vão corrigindo aquilo que estiver errado, depois é que entra o papel do professor para efectivamente também guiar os estudantes, ajudá-los naquilo que estiver errados e no fim nós tirarmos as nossas conclusões. Isso tem sido geralmente a minha dinâmica na sala. A questão prática é exactamente a mesma coisa. Nós colocamos determinadas questões, estas questões são resolvidas inicialmente pelos estudantes com ajuda também de outros e no final o professor complementa e onde haver algum erro, chamar atenção e efectivamente para todos termos a certeza de que estamos no caminho certo. É assim que tem sido nas minhas aulas. Sita: Esses alunos já têm consigo algum material que sustenta essa informação inicial? Professor Micanda:Sim, sim. Porque eu parto do princípio que para além do programa que é dado eu, pessoalmente, nas minhas aulas forneço material de apoio. Material escrito que já compilei ao longo de vários anos e que vai sofrendo algumas revisões, algumas remodelações em cada ano lectivo. Esse material é colocado à disposição dos estudantes e o adquirem por meios próprios. Com base aquele material é a parte central das nossas aulas portanto, eles têm conhecimento de tudo que nós tratamos. Sita: Ao longo desses anos como professor certamente foi ganhando também experi6encia na docência. Queria que me falasse um pouco, da dinâmica das aulas ao longo da sua formaçào no Brasil. Como é que eram dadas as aulas lá, no geral? Professor Micanda:Bom. Exactamente é mais ou menos parecida. Também lá no Brasil, na Universidade onde eu estudei, dependendo do tipo da disciplina, 199 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes inicialmente nós tínhamos conhecimento do programa. Havia disciplinas que o professor já fornecia os temas então, nos dias marcados nós passávamos ao debate. Debates em forma de mesa redonda e depois o professor, naturalmente fazia os seus comentários porque esse debate era assistido pelo professor, os colegas acompanham, iam complementando, corrigindo algumas coisas e no fim o professor dava o seu ponto final, sobre os aspectos mais correctos. Mas, também, dependendo do tipo de aula, havia também aquelas aulas teórico/práticas, no caso das estatísticas, métodos quantitativos... são disciplinas que requerem mais aplicação... uma parte teórica mínima e o resto é mais prática. Quer dizer dependia. Depois havia outras aulas que eram essencialmente aulas que eram mais dirigidas à parte prática que nós tínhamos que ir para os laboratórios ou então – conforme eles chamam lá casa de vegetação – onde eles fazem os ensaios e isso já era uma questão mais prática. Pronto, dependia do tipo de disciplina. Mas, no fundo no fundo, tudo no visva o mesmo objectivo que é a avaliação, saber o que é que o aluno aprendeu, como interpretar aqueles resultados e saber tirar as suas conclusões. Sita: Nós temos aqui na Faculdade de Economia, assim como no ISCED, alunos que vêm de outras províncias. Você tem algum olhar diferenciado para esses alunos? Professor Micanda: Bom. Inicialmente eu acho que também não tem sido prática muito comum. Mas, pelo menos da minha parte, no inicio do semestre, nós precisamos fazer naquelas primeiras aulas de auto apresentação, ver qual é o perfil de cada aluno, de onde é que vem, que tipo de ensino médio que fez, de onde é que veio, nós nos apercebemos efectivamente a origem de cada um deles, até porque mesmo em termos de aplicação nós notamos que para aqueles estudantes que vêm, digamos do Ensino Médio, não muito adequado para dar sequência na Faculdade de Economia, a gente nota que há uma ligeira diferença porque dependendo das instituições há algumas que não cumprem com os programas do ensino médio. Portanto, a gente nota essa diferença. É a partir daí que nós temos conhecimento dessa situação é que tentamos direccionar a nossa atenção para aqueles que estão digamos, no nível um pouquinho mais abaixo em relação aos outros, para puderem equiparar porque de nada nos adianta avançar com o programa só porque o programa está traçado quando sabe que na turma, ou na sala, existem estudantes que estão doutro lado, chamamos assim, do outro lado à margem assim a gente não vai cumprir com os nossos objectivos então, nos primeiros momentos nós tentamos nivelar, fazer uma revisão muito rápida em algumas questões

200 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes essenciais que dizem respeito à disciplina e a partir daí pegar o barco e avançar. O resto depende mais do próprio estudante. Depende da aplicação do estudante. Sita: Mas, o que eu queria saber não é sobre os alunos que vêm de uma formação diferenciada ou com um nível incompatível com a disciplina mas, sim, aqueles estudantes que vêm de outras províncias. Queria saber se estes de alguma forma despertam a sua atenção, por exemplo, pelo afecto, alguma atenção diferenciada pelo facto de ser de ser proveniente de outra província? Professor Micanda: Não. Nós relativamente a este aspecto nós não temos tocado. Aliás, não tenho feito nenhuma distinção porque os estudantes que vêm da província do Zaire ou da província de Luanda ou até aqueles que vêm de outras províncias do país, o mais importante é que ele se encontre num nível equiparado ao dos outros, por exemplo, com os daqui que se formam aqui, os que são daqui, agora de saber se veio de lá isso não é o mais essencial. O mais essencial é mais a questão do nivelamento dos conhecimentos. Agora proveniência isso nós não. Eu, pessoalmente não dedico atenção em relação a isso. Sita: O professor percebe que esses alunos têm algum desempenho melhor ou pior em relação aos demais? Professor Micanda: Não. As vezes isso até tem acontecido. Há um caso até bastante importante porque não é só, digamos, comparando os que vêm da província. Inicialmente, nas primeiras avaliações nós notamos que, por exemplo, os estudantes que têm feito o Ensino Médio de Ciências Exactas, geralmente, têm um desempenho maior nos primeiros momentos. Agora, os que vêm, por exemplo do PUNIV, alguns fizeram o ensino de adultos e devido as dificuldades que se atravessam, a gente nota efectivamente um certo desnível mas, agora, só por ser desta ou daquela província, geralmente é um bocado difícil. O que acontece é que geralmente essas Ciências Exactas, geralmente o maior grosso desses estudantes são indivíduos que vêm, por exemplo, das províncias de Luanda... daqui também temos... enfim, é a partir daí que você começa a notar que o fulano de tal, qual a sua proveniência... que tipo de ensino fez... então a gente começa a notar já uma ligeira diferença. Agora, dedicar uma atenção específica porque esse é daquela província... isso não existe comigo. Pelo menos isso não acontece. Sita: É porque nós estamos a partir do princípio que o facto de alguém ter tido experiência migratória isso o tornaria mais sensível a quem vem de outro lugar que aqi está um pouco desprovido daqueles aparatos da família, dos amigos e que haveria uma 201 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes certa sensibilidade em relação a esse indivíduo. Nós estamos a partir desse princípoio mas, agora começamos a perceber que de facto não é muito por aí, mas pelas pelas conversas que nós temos tido essa é a questão que se coloca. Será que nós ficamos mais sensíveis a este indivíduo por ele estar também na condição que nós vivemos um dia no outro lugar? Tem acontecido isso no seu caso? Professor Micanda: Me recordo que quando nós tivemos chegamos ali nas terras brasileiras, nós fomos alvo de muito carinho porque, por exemplo, lá você ingressa na universidade, há um departamento ou provedoria específica para atender essas situações onde você conhece de imediato o seu orientador, enfim... ainda não conhecemos o meio então eles tentam, tentaram nos ensinar como procedemos. Agora, nós aqui no nosso país, aqueles que vêm de fora eles têm cá sua família. Eles têm um lugar onde eles vivem é no lar onde eles devem ter exactamente esses ensinamentos. Agora, cá no recinto escolar é difícil fazer uma distinção. É muito difícil. Pelo menos da minha parte posso até saber que o fulano de tal vive no lar tem essa dificuldade mas isso não impede nada. Ele tem as condições realmente idênticas dos outros colegas que vivem nos bairros, então aí não vejo razão para ter um tratamento ou uma certa sensibilidade diferenciada. Sita: Está bem. Vamos voltar um pouco nessa questão das relações que estabelecemos na dinâmica das nossas aulas com o conhecimento e com o aluno. A sua preocupação essencial na aula é voltada para o aprendizado do aluno? Professor Micanda:Bom. Evidentemente esse é o objectivo fundamental. Esse é o objectivo fundamental porque nós como docentes, nós precisamos conforme disse inicialmente nós temos objectivos a cumprir então para que no fim do semestre nós possamos fazer portanto uma auto avaliação do nosso trabalho, o que é que eu fui capaz de transmitir ao meu estudante, isso é o mais essencial. No fim para puder fazer o balanço, então se nós não notamos que efectivamente ao longo do semestre, ao longo do ano lectivo aquilo que nós tentamos transmitir não foi devidamente acatado é porque nós alguma coisa não está certa. Temos que fazer a nossa autoavaliação. Pelo menos da minha parte eu dedico uma atenção muito especial ao aprendizado. Aquilo que o estudante efectivamente vai aprender findo o semestre, findo o ano lectivo para que estes conhecimentos lhe sirvam mais tarde e formem o quadro que queremos para o nosso país. Sita: Isso eu consigo perceber na sua prova porque é uma prova de aplicação não uma reprodução. 202 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Professor Micanda: Exactamente. Sita: O facto de ter estudado no Brasil ao longo desse período será que isso – agora eu queria que pensasse um pouco em si próprio – isso faz com que você tenha como se fosse uma obrigação moral de ter que ser competente? Professor Micanda: Bom... sim... claro... isso é um dever moral porque eu não sei como é que se sentiria, ou melhor, como é que o indivíduo sentir-se-ia tendo conhecimento de que efectivamente a sua mensagem não está sendo bem apreendida. Depois de fazer uma autoavaliação chega a conclusão de que efectivamente não está a conseguir aquilo que ele pretende! Acho que ninguém aceitaria isso então é evidente que pelo menos para mim eu tenho que trabalhar mesmo nesse sentido. Tenho que trabalhar exactamente nesse sentido e não tenho outra forma porque uma das maneiras de ver o nosso trabalho gratificado é nós sabermos que efectivamente estamos a conseguir formar, estamos a conseguir transmitir e que o nosso aluno não é um mero reprodutor que reproduz aquilo que ele encontrou mas, que pegando alguns conhecimentos seja capaz de produzir, seja capaz de fazer alguma comparação e produzir por si próprio aqueles conceitos que efectivamente foram dados ou outros semelhantes ou até outras situações não dadas mais que tenha uma certa correlação. Ele é capaz de se aperceber e ver que efectivamente é este o caminho verdadeiro. Quando isso acontece nós nos sentimos gratificados. Sita: Você concorda comigo que há uma espécie de uma “escola brasileira” aqui? Professor Micanda: Bom... eu não sei é mesmo isso que nós que se passa. Talvez até na minha forma de avaliar e dar aulas pelo tempo que eu passei no Brasil e pelos níveis que eu passei até penso que a escola brasileira sem dúvidas é uma das melhores do mundo. Agora, devemos ter em conta também que nós aqui na nossa instituição temos vários docentes provenientes de “outras escolas” e acho que a direcção da nossa própria universidade por causa disso talvez é que tem estado até, certo ponto, capacitando os docentes com esses cursos de agregação pedagógica para tentarem uniformizar a forma de actuação porque no fundo, no fundo, o que é que nós aprendemos nesses cursos? É exactamente isso! Vários módulos que nós fizemos e em cada um deles fomos aprendendo algo que nos deve guiar na administração das nossa aulas. Sita: Já que tocou na questão de várias escolas, eu tenho conversado também com os alunos e eles trazem essa diferenciação das escolas de proveniências dos 203 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes docentes e destacam com um certo rigor esta escola que estamos a denominar, entre aspas, “escola brasileira”. No entanto, eu queria saber de si, se você tem ouvido algumas manifestações a partir da sua autoavaliação, manifestações dos alunos em relação ao seu trabalho. Professor Micanda: Sim. Bom isso não é puxar a brasa para minha sardinha (risos)... mas sabe também que eu além de ser docente aqui, estou também à frente de uma repartição dos assuntos académicos onde aparecem e, como sempre, onde há homens há sempre contradições e várias questões que se colocam e algumas delas são exactamente essas: as formas de avaliar, formas de dar as aulas... da minha parte já tenho estado a receber alguns elogios enfim... pessoas há que chegam frontalmente e dizem que tem havido melhores referências possíveis e até de colegas que afirmam ter ouvido aqui, acolá e dizem que você é uma pessoa que não olha para a cara de ninguém. O que quer é transmitir os conhecimentos de uma forma igual para todos. Não olha para “b” ou “c” ou “d”. Isso não tem me sido dito. Sita: Já estamo no fim da nossa conversa. Queria pensar no ponto de vista de alguma sugestão para o meu trabalho. Diante de todas essas experiências fora do país, sei que fez estudos em Portugal também... Professor Micanda: Não. Fiz tudo no Brasil. Sita: Ah... tudo no Brasil? Sita: Não fez nenhum curso em Portugal? Professor Micanda: Não. Fiz tudo no Brasil (risos)... Sita: Ainda bem. Melhor ainda. Diante dessa longa experiência que tem em relação a esse intercâmbio Brasil e Angola, acho que nós podemos pensar em algumas sugestões para o enriquecimento destas nossas propostas de intercâmbio. O que é que poderia sugerir em relação a isso para para constar do meu trabalho? Pensando sempre no melhoramento dos intercâmbios na área de educação e agora, talvez, na sua área especificamente. Professor Micanda: Em termos de sugestão é reforçar o que já existe efectivamente. Intercâmbio já tem havido. Talvez podemos sugerir é reforçar cada vez mais esse intercâmbio porque toda vez que há esse intercâmbio sempre se aprende alguma coisa de novo. Agora, reforçando esse intercâmbio vamos aprender cada vez mais. Em termos de sugestão, em forma geral, é isto é aumentar este intercâmbio porque dizem que é melhor juntar-se aos bons então, já que nós vemos que efectivamente essa escola é boa então vamos aumentar o intercâmbio. Mas isso não quer dizer que vamos 204 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes descorar dos outros. Claro que não. Isso não. É reforçar mesmo esse intercâmbio com a escola brasileira. Sita: E o que é que pensa que pode ser feito para reforçar isso? Professor Micanda: Aumentar o número de vezes que tem que haver encontros com o nosso pessoal, com o pessoal de lá, é aumentar a frequência... haver encontros já programadas, por exemplo, semestralmente, ou anualmente, ou periodicamente, haver sempre esse tipo de intercâmbios quer eles venham para cá ou nós lá... Sita: Na verdade quer que haja esse intercâmbio até do ponto de vista micro, professor-professor... aluno-aluno... Professor Micanda: Sim. Exactamente. É que deve funcionar porque esse intercâmbio não quer dizer só entre professores. Também entre estudantes é muito bom isso. Sita: Em relação as suas aulas você tem frequentemente evocado assuntos locais ou assuntos de outros países para dar as suas aulas? Como funciona isso? Professor Micanda: Isso é um aspecto muito importante, porque conforme lhe disse no início que eu tenho material preparado. Material de apoio escrito que os estudantes têm acesso. Geralmente quando a gente faz a pesquisa desse material, os exemplos que nós pegamos é de outros países, mas nós tentamos adaptar sempre à nossa realidade. Portanto, se pegar no meu material você não verá nenhum exemplo que diga que no país tal... é tudo cá, na buala tal, na província tal, são esses exemplos práticos que nós colocamos... do nosso dia-a-dia... pegamos aqueles exemplos e adaptamos à nossa realidade porque não vamos falar de outro país há muitos nos nossos alunos não conhecem o Brasil nem de perto... então, para isso, nós partimos dos outros países mas adaptamos à nossa realidade de Angola. Sita: Ok. A não ser que tenha mais algum aspecto a acrescentar em relação ao nosso tema, se não, muito obrigado pela entrevista. Professor Micanda: Não tenho mais nada. Acho que as questões essenciais já foram abordadas. Acho que não tenho mais nada de relevante a acrescentar.

205 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Entrevista com a Professora M´pemba

Sita: Vamos começar por falar um pouco da sua trajectória escolar. Sei que estudou na União Soviética. Professora M´pemba: Sim, estudei. Sita: Quanto tempo fez lá? Professora M´pemba: Fiz 6 anos na União Soviética. Foi naquela altura que éramos encaminhados. A gente terminava o ensino de base aqui e havia encaminhamento. Isso foi naquele momento em que os encaminhamentos, na sua maioria, já eram para o Leste Europeu e eu fui para a União Soviética. A princípio eu queria fazer farmácia ou jornalismo, mas como não tínhamos opção de escolha o meu nome saiu para fazer tecnologia de carnes e aves, na área de química alimentar. Lá fomos fazer um curso politécnico. Terminei o curso em 1992 e, voltando para Angola não havia nenhuma indústria que trabalhasse com transformação de carnes, então, com isso a alternativa era a sala de aulas. Na época o emprego ou era a sala de aula ou era o malongo. A princípio fui trabalhar com desenho técnico, uma área totalmente diferente do que eu tinha feito no Ensino Médio. Se eu fosse logo para química dava para aproveitar, porque fazendo a química alimentar você tem ênfase na química, mas eu fui trabalhar com desenho uma área totalmente diferente, mas com a ajuda de algumas pessoas e muita pesquisa fui trabalhando com desenho. Agora o grande enlace que me ajudou na época, era por causa da forma em que o Soviético ministrava a aula. Eles tinham uma metodologia, sui generes em que se você reprovasse, por exemplo, e dissesse que se prepare e se encontrasse o professor no metró e você dicesse ao professor que queria fazer a prova, ele aplicava a prova aí mesmo. Uma prova oral e se você alcançasse a nota 3, que é nota regular você passava. Então, o outro método que eles usavam na hora de prova é que você recebia o comando, sentava, davam-te 30 a 45 minutos para puder elaborar as respostas e com isso eles chamavam para defender a prova. Então essa relação de defesa de provas, de elaboração de provas e a dinâmica que eles usavam dentro da sala de aula, isso me deu uma noção de como puder me situar dentro da sala de aula. Daí, em 1995, surge a vaga, fui para o Brasil para fazer engenharia química a princípio, mas a engenharia química o curso era de tarde para noite, nós tínhamos uma criança que precisava de cuidados. Geralmente nós entrávamos as 14 horas e saíamos às 22 horas e a universidade ficava muito distante da casa. Eu chegava 23:00 a 23:30 e isso foi o primeiro ano todo. Então, como nós os dois 206 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes estudávamos de tarde para noite, ele fazendo agronomia e eu engenharia química a criança ficava só, aí no outro ano optamos que eu mudasse de curso que desse flexibilidade no horário. De manhã eu ir para a aula enquanto a criança está em aula também e a tarde ficar com a criança. A princípio eu queria fazer pedagogia aí, eles negaram e disseram: já que você faz engenharia química, tem que ser um curso afim então, tinha que ser química industrial, licenciatura química ou engenharia dos alimentos. Tinha que ser um curso dentro da química. Aí, nós optamos em licenciatura química e o curso era no período da manhã. Lá fui fazendo licenciatura química, terminei voltei de novo prá vir trabalhar. Logo que eu cheguei, fui trabalhar no PUNIV já deixei o ensino fundamental fui pró PUNIV. Do PUNIV fui para o ISPRA e do ISPRA dispensei-me de novo e fui para fazer o mestrado e voltei pra cá. Essa foi a trajectória da minha construção discente-docente então, sempre sala de aula e, paralelamente a isto, estudando. Sita: Eu queria recuperar um aspecto que falou, sobre a forma de avaliação lá na Rússia. Em algum momento tentou aplicar essa forma de avaliação que os Russos usavam ou adaptá-la aqui? Professora M´pemba: Talvez eu não adapte literalmente mas, geralmente as minhas avaliações, a primeira avaliação eu sempre opto prá os alunos fazerem trabalho de pesquisa e apresentarem em forma de seminário. Então eu sempre trabalho em forma de seminário, porque eu acredito que o aluno pesquisando e se está predisposto a fazer o trabalho, ele acaba tendo maiores informações, então se ele vem colocar isso em forma de seminário apresentando para o professor eu acredito que acaba criando outras habilidades, não só de escrita mas também de se apresentar na sala de aula, então mais ou menos eu faço essas adequações. Outras coisas que eu faço, quando eu peço para fazerem um trabalho, às vezes na prova escrita eu aproveito do trabalho que eles fazem, de lá retirar algumas perguntas para puder fazer dentro da sala de aula, então geralmente eu uso esse sistema de avaliação. E o meu sistema de avaliação, geralmente não dou perguntas directas. O que é isso? O que é aquilo? Eu elaboro textos, tem vezes que se o aluno estudou dentro dos textos elaborados o aluno já pode tirar a nota 10... pode tirar uma boa nota porque dentro dos textos que eu elaboro eu já dou pistas e algumas vezes até as respostas então, para aqueles alunos que conseguem ler o material, estudar o material, conseguem se sair bem, mas quem não lê o material, não consegue encontrar onde estão as pistas para poder se organizar. E quando eu trabalho com química, porque a gente mexe muito com datas, cientistas, eu já dou, geralmente a data e dou o nome do 207 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes cientista. Então cabe ao aluno partir da data e o nome do cientista, desenvolver a resposta sobre qual é a contribuição do cientista. Então, tem aluno que lê e consegue alcançar bons resultados, mas tem aquele que não leu, não vai saber qual é o nome do cientista, não vai saber qual é a data do cientista então, mais ou menos, eu uso este tipo de mecanismo de avaliação. Mas, em todos anos desde o PUNIV, a minha prova parcelar é trabalho de pesquisa. Sita: E as suas aulas já que seminário é uma das formas de avaliação, as suas aulas fale um pouco qual é a forma que usa para organizar suas aulas? Professora M´pemba: A organização da minha aula eu sempre faço um contrato didáctico com os alunos logo no primeiro dia de aulas, a forma de avaliação, a forma de aulas, o que é que vamos abordar no decorrer do semestre, algumas coisas que a gente precisa fazer algumas amarras que é para não dar depois no meio do semestre, não mas a professora não falou então o aluno já fica a saber. Então geralmente eu já dou o material para eles levarem para casa, porque eu digo que a minha aula, eu não sou papagaia de chegar dentro da sala de aula onde fica só eu falando, falando, falando e o aluno não fala. Então eu já dou o material para eles, mesmo que a gente ainda não viu o assunto mas eles para terem, a noção do que é que vai se tratar no dia seguinte de aula. Então geralmente mesmo dando o material eu sempre tiro parte dos pontos principais, conceitos, definições, teorias... isso relacionado a química. Eu dito as fórmulas chave, coloco no quadro aí, eu entro em debate com eles. Então, geralmente com a química eu sempre trabalho com o quotidiano, o dia a dia do aluno trazendo questões da cozinha, em casa, do gás butano, o açúcar... agora que estou a trabalhar com a bioquímica, a gente só fala de frutas e comida praticamente. Porque a gente fala de celulose, amido, carbohidratos e tudo isso a gente encontra em banana, mandioca etc, etc, então os nossos debates nesse semestre estão direccionados propriamente da construção da célula do ser humano. Então, geralmente eu trabalho assim. Já pedi para eles tirarem cópia do material que a gente vai estar discutindo agora, então é mais ou menos assim que eu organizo as minhas aulas. Eu não centro a responsabilidade só para mim, mas eu deixo também para eles, embora que eles ainda não têm essa cultura universitária, ainda não tiveram disciplina de leitura mas eu tento, tento puxar. Agora, na psicologia pedagógica que é uma disciplina teórica, eu sempre peço para eles fazerem resumos. o menino estava ali já estava fazendo resumos para ter facilidade na hora do debate saber o que falar, então eu pego os resumos levo para casa para ver o que é que escreveram e, a gente faz os debates dentro da sala de aula.

208 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Sita: Estes são alguns aspectos que estão mesmo a aparecer nos questionários. O que é que fica para si de mais marcante em relação às características da população brasileira? Professora M´pemba: Eu acho que é a simplicidade. Pelo menos em Belém do Pará, eu notei isso. É um povo muito simples, você chega prá Universidade é incapaz as vezes de identificar quem é o PhD quem é que não é o PhD se alguém não te disser. É o professor fulano... então, isso me chama muita atenção. Às vezes quando eu chego aqui que eu encontro uma formalidade muito fechada, eu fico meio atrapalhada. Por exemplo, quando tem as apresentações das defesas, no princípio eu entrava em pânico porque tinha que colocar aquela túnica e o chapéu para o aluno defender, aí eu pergunto mas pra que tanta burocracia, aí tem que ter o secretário que vai ler a acta, fulano de tal não sei que... e aí levanta o júri, senta o júri (...risos...) isso daí eu acho que eu ainda não me acostumei... porque o professor já passou lá né – referindo-se ao entrevistador –, eu não sei como é que foi lá no seu Estado mas eu, tanto na minha defesa de trabalho de conclusão do curso, tanto na defesa de dissertação, tanto na qualificação agora no doutorado, foi uma coisa leve, muito simples, sem muita burocracia. Agora, que são rigorosos em termos de conteúdo, eles são. Sita: Isso é o que eu queria perguntar para si. Como é que você consegue trazer para a sua actividade como professora, essa simplicidade que vem dessa cultura escolar brasileira? Professora M´pemba: Eu acho que eu seria suspeita para falar sobre isso. Mas eu procuro deixar os alunos mais ou menos à vontade. A partir do contrato didáctico que eu faço com eles eu exijo respeito, conhecendo o contexto nosso aqui é totalmente diferente do contexto Brasil, em termos de respeito, em termos de consideração então a gente precisa tomar algumas linhas mestres para que o aluno não confunda as bolas, porque no Brasil por mais que haja essa toda simplicidade, o aluno sabe que ele é aluno e o professor é professor tem todo um mérito e no nosso contexto às vezes isso não acontece. O aluno às vezes acaba confundindo um pouco as bolas se o professor deu um pouco de liberdade por isso é que eu tenho a cautela de logo no primeiro dia de aula fazer um contrato didáctico com eles. E aí eu procuro, principalmente na aula de psicologia pedagógica, trabalhar muito a questão do comportamento e a mudança de comportamento, então a gente traz muitos aspectos de casa daí a pessoa tem que estar um pouco desarmada, porque senão você não consegue passar a mensagem, senão fica ah ela está fazendo isso mas no fundo não é bem isso... se bem que os alunos já têm uns 209 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes preconceitos sobre as pessoas... eles já estabelecem certos preconceitos o fulano é isso, então por mais que você falha nalgumas coisas até que possam lhe beneficiar, desde que fechou que o fulano é isso, acaba sendo um filtro você está falando entra aqui e sai ali, mas na medida do possível eu procuro conversar com eles, quebrar um pouco o gelo dentro da sala de aula, quando os encontro digo bom dia, boa tarde se eu lembrar da cara, se não lembrar também às vezes eu passo. Mas eu acho que isso depende muito do contexto onde nós estamos inseridos. Por exemplo, uma das coisas que chama atenção, quando eu cheguei, é a postura do aluno dentro da sala de aula. Tem aluno que vem de fato e gravata dentro da sala de aula (...risos...), no Brasil os alunos que vão de fato e gravata na aula geralmente são os que fazem Direito, Medicina que a gente chama de filhinhos de papai, mas quem faz química no meu caso, era de chinelo, porque você fica 4, 5 horas em laboratório não tem tempo de colocar salto alto (...risos...) era chinelo, então aqui você entra na sala de aula alunos de fato e gravata e aí fica opa, se você não estiver adequado fica praticamente fora do contexto, então você precisa sempre estar naquela formalidade e tal aquele ambiente meio pesado, mas a gente vai tentando se articular para ver como é que a gente se enquadra. Sita: Está bem. Já para terminar, pensando um pouco nessas relações Brasil- Angola, Angola- Brasil. Tem alguma coisa que queira acrescentar em relação a isso como sugestão enriquecer o estudo. Professora M´pemba: Que houvesse mais trocas... que praticamente já está se perdendo essas trocas bilaterais... em Belém do Pará, por exemplo, eu cheguei só foi um aluno de Angola, em termos de convénio. Então eu acho que não seria salutar cortar essa relação com o Brasil até porque nós temos muitas semelhanças em termos culturais, em termos de desenvolvimento, embora eles já sejam considerados como um país emergente já e nós ainda estamos um pouco mais atrás, mas eles têm praticamente os mesmos problemas educacionais, o défice educacional que a gente vive eles também vivem e muitas coisas são semelhantes a nós. Então eu acho deveria se aproveitar mais esses convênios, essas trocas porque o Brasil ele acaba enriquecendo bastante, principalmente na área educacional. Quando a gente vai estudar a pedagogia da autonomia de Paulo Freire, a gente vai ver que os problemas que o Paulo Freire discute na pedagogia da autonomia são praticamente os problemas que a gente vive aqui. São os mesmos problemas. Então se a gente cortar essas relações, enquanto Angola nós ainda estamos indo nessa via do desenvolvimento eu acho que a gente acaba perdendo muito, então é preciso perpetuar mais essas relações. 210 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Entrevista com a Professora Tunga N´zola

Sita: Eu estava a olhar as suas provas e percebi que usa variadas formas de formular as suas perguntas. Aqui dá para ver que tem um modelo e neste, outro. Eu queria que me falasse um pouco, de que maneira sua experiência escolar lá no Brasil está a influenciar essa forma de avaliar? Professora Tunga N´zola: Certo! Eu acho que nós damos o conteúdo e – principalmente a disciplina de anatomia – não podemos perguntar do jeito que está no conteúdo. Eu acho que é necessário que o professor faça com que o estudante tente raciocinar e não seja totalmente directo, entendeu!? É por isso que eu procuro várias formas de tentar fazer com que o aluno raciocine, que o aluno tente através daquela questão criar mais e não se deter àquilo que eu falei na sala de aula, porque a Anatomia é uma disciplina muito isso é isso, aquilo é aquilo. Então temos que tentar sair fora daquilo e tentar pegar as coisas do dia-a-dia que possam influenciar no funcionamento do corpo humano e fazer com que o aluno entenda essa interacção que existe entre o corpo humano e o meio. E aí você tem que tentar criar novas formas de questionário e não apenas perguntar como é que é constituído o osso, ou quantos ossos tem o corpo humano. Aí estaríamos tendo um ensino repetitivo e não é isso que eu quero. Por isso é que eu mudo a forma de avaliação, tentar ser um pouco mais criativa. Sita: Consegue se lembrar como era a avaliação, ao longo da sua formação lá no Brasil? Professora Tunga N´zola:Sim, consigo. Geralmente eram seminários. O professor chegava, dava-nos os temas, o programa daquela disciplina e cada um de nós tinha um dia para apresentar. E até isso foi bom porque eu era muito tímida e isso me ajudou a soltar-me mais. Então a aula era da responsabilidade do estudante... e não valiam nota. Era apenas para você apresentar. Tínhamos provas escritas, muito poucas. Mais ou menos neste sistema também. Mas a maioria das avaliações eram seminários. Todo o mundo apresentava seminários constantemente. Então isso também fez com que a gente lesse mais. Eu tento incorporar isso aqui mas é muito difícil por causa do número de estudantes mas, eu faço isso só uma vez para cada estudante. Só que vale uma nota e aí dou apenas uma prova escrita e outra mando preparar um tema e ele apresenta de forma oral e também vale outra nota. Isso já ajuda um pouco nesse processo de ensino e aprendizagem.

211 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Sita: Percebo que você não aplica da forma como era a dinâmica lá, mas também não deixa de incorporar aspectos técnicos da cultura escolar da nossa instituição? Professora Tunga N´zola:Na verdade, eu tento fazer uma mistura. Não dá para incorporar tudo de lá porque as condições aqui são diferentes. Nós aqui trabalhamos com turmas de 40, 50 alunos e é inviável você ter que incorporar isso tudo. Não dá. Você tem que tentar se adequar às condições locais e dar uma parte porque se você deixar também tudo para os estudantes não dá certo porque lá fora a base é outra. Aqui você como professor tem que começar com uma parte, dar uma boa base para depois lá para o finalzinho do semestre começar a distribuir os temas porque eles já sabem mais ou menos como é que são as regras e também vão tentando criar e até para começarem a ter experiência de com amanhã poderão dar uma aula ou poder apresentar um trabalho, então tudo isso ajuda. Sita: Isso te deixa um pouquinho aflita entre esse movimento de trazer de lá para cá e incorporar aqui sem deixar de lado ao que as pessoas estão acostumadas? Isso traz alguma tenção no seu trabalho? Professora Tunga N´zola:Eu já tive muitos problemas logo no início, dando assim algum exemplo: quando você vai trabalhar com o corpo humano – principalmente nós aqui – existe um tabu que não se falava de sexo e as primeiras turmas que eu peguei eram pessoas muito adultas... agora é que estamos a ter turmas mais jovens mas, o primeiro grupo eram pessoas muito adultas e não podia se falar de certos temas mas, eu vim com aquela preparação que estamos a falar do corpo humano, se não tirarmos as dúvidas aqui onde mais! Então eu senti que tinha um grupo de estudantes mais jovens e queriam que se discutisse esses temas e havia outro grupo que tentava evitar... então eu ficava ali tentando dizer que tinha que haver esse diálogo porque nós estávamos num meio e era o único onde nós podíamos ter esse diálogo. Então isso foi um conflito que sempre eu tive mas, a medida que os anos vão passando, estamos a receber uma geração mais jovem e agora eu estou sentindo que as coisas estão fluindo melhor em relação aos anos. Já tive muitos problemas por causa disso porque alguns queriam que alguns assuntos ficassem restritos e que não se podia falar, mais os mapas estavam lá, o conteúdo estava lá no programa e eu como já estava com a cabeça um pouco mais aberta eu sensibilizei os alunos e deixei com que as coisas andassem. Sita: Em relação a estes conflitos que você teve e provavelmente vão continuar por mais algum tempo. Nessa interacção com os alunos, você percebe alguma difereça no

212 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes seu modo de lidar com o aluno ao longo desse período que está na docência, comparando o período antes e depois de voltar do Brasil? Professora Tunga N´zola:Sim, percebo. Eu acho que essa minha ida para o Brasil mudou-me muito. Abriu mais a minha cabeça... a carga intelectual que eu trouxe é maior do que antes e também ganhei uma certa liberdade porque a carga de conhecimentos que você traz isso te dá mais liberdade na sala de aula…eu me lembro que quando cheguei a primeira turma que eu peguei eu tinha decidido que não ia dar aula porque deram-me uma disciplina que não tinha nada a ver com o que eu tinha feito e o Dr. sabe que aqui nós temos pouca bibliografia e isso me dificultou um pouco... eu saí do Brasil decida que não iria mais dar aula, mas com a bagagem intelectual que eu trouxe me senti mais segura. Agora, ainda com relação a essa essa influência, a outra coisa que também eu senti muito é com relação as avaliações voltando para as avaliações. Lá no Brasil, na Universidade pelo menos você não vê isso. Vocês estudam juntos, mas na hora da prova cada um por si. Eu acho que a concorrência lá começa dentro da sala de aula, mas aqui não. Aqui existe aquele hábito de cábula. Todo o mundo que passou por aqui sabe disso. No IMNE... no PUNIV... e o estudante acaba carregando isso para a Universidade e quando aparece um professor que tenta cortar isso... esse é o outro conflito que eu vi muito...aí eles ficam achando que ah... ela é Dra. e não quer que nós chegamos lá! E eu tenho sensibilizado os alunos que não é isso que eu quero! Eu quero que vocês sejam amanhã doutores de verdade e não dependendo do cérebro do outro. Todos nós temos a capacidade de chegar lá, mas temos que tentar fazer alguma coisa, mas eles vêm com aquele costume... com aquele hábito e para nós que trabalhamos com os primeiros anos muito complicado fazermos que os alunos entendam isso. É uma luta séria com relação a cábula. Não querem estudar... não querem estudar têm uma preguiça mental e você tem que lutar em cima disso, tens que falar antes da prova, tens que sensibilizar, depois da prova quando fazem a prova tiram negativa ainda acham que você é que deve lhes levantar o moral. Não tem nada. Mas os estudantes bons, aqueles que se dedicam mesmo você vê que têm melhoras, entendeu!? Esse é o outro conflito também: a cábula. O costume da cábula é um caso muito sério porque eu me lembro que quando cheguei no Brasil não vi isso. E eu tive que colocar a cara nos cadernos porque os meus colegas me diziam: Justina?! Estuda e o que tiver dúvida nós estamos aqui. E a partir daí eu mudei e me engrenei no sistema e hoje eu quero que isso também seja …porque o homem do amanhã, não vai ser esse que depende da cábula. 213 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Sita: Muito bem. Ao longo das suas aulas, nas suas explicações, você transita com tranquilidade entre aspectos de outros países, aspectos nossos, remete os alunos a internet, dá mais exemplos de fora... como é que é isso em relação as suas aulas?

Professora Tunga N´zola:Faço sim. Faço essa interacção toda. Dou exemplos de lá, daqui e também quando eu peço trabalhos, eu peço que eles vão a internet, dou o site até para começarem a se familiarizar com as novas tecnologias, dou os temas, dou os sites onde eles podem encontrar e, alguns até têm aquele medo, nunca navegaram, mas aos poucos vão tentando... se bem que todo o conteúdo que eu dou, eu tiro cópias dos meus livros e eles ficam com elas…mas quando é para trabalho feito por eles eu prefiro que eles vão atrás... mesmo não tendo conteúdo eu posso até dar para depois poder enriquecer mas eu sempre mando que eles vão a internet porque na verdade hoje é a biblioteca mais rica que nós temos porque nós não temos aqui uma biblioteca na nossa instituição, para falar verdade então a internet é uma das forma até também de poder lhes abrir e mostrar que olha temos isso aqui e está a vossa disposição já que ainda não temos a verdadeira biblioteca mais enriquecida e mesmo que tivéssemos é mais é mais uma alternativa que nós temos hoje para ajudar. Sita: Nós temos alguns dos nossos alunos no ISCED que vêm de outros lugares, de outras províncias. Ao lidar com estes alunos você tem algum olhar diferenciado? Quer dizer, chamam-te um pouco mais atenção, você dá alguma atenção diferenciada a esses alunos em função da sua condição de teres experimentado essa vivência longe de casa, longe dos amigos, dos familiares ... quer dizer, isto te mobiliza em relação a esses alunos? Professora Tunga N´zola:Não. Não trato todo mundo da forma equitativa. Não faço essa distinção. Agora, o que me chamou atenção neste semestre... tenho uma turma que tem dois estudantes, dois estudantes que vieram cá só estudar, vieram de Luanda, fizeram o médio lá... são tão dedicados... são aplicados... querem interagir e o resto da turma não aceita isso! É um conflito! Na verdade, o resto da turma quer o quê? Assistir a aula e ir embora, mas eles querem interagir, querem fazer perguntas principalmente quando há seminários entre os colegas quando um deles se levanta para fazer questão, todo o mundo vem contra porque não querem... quer dizer, é uma turma apática em relação aos dois. Todo o mundo fica contra os dois e eu tenho que estar sempre lutando contra isso pedindo sempre que tem que haver interacção, tem que haver diálogo e eles não querem. Quer dizer, é uma turma de professores já mais velhos já... é a atual turma

214 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes de Pedagogia que temos lá no primeiro ano. Estou vivendo esse conflito. Então eles não querem que os outros estejam ali à vontade a questionarem, a interagir. O que eles querem é que todo mundo fica ali apático só escutando o que o outro tem a transmitir e prontos! Então eu sinto que estes dois são muito dedicados. Sita: Como é que soube que eles vieram aqui somente para estudar? Professora Tunga N´zola:Primeiro é que notei logo. Pelo sotaque dá para notar. Pelo sotaque deu para notar que não eram daqui e depois, um belo dia, os dois vieram e disseram que queriam mais material para poder aprofundar. Queriam que eu desse mais material para eles e se identificaram de onde vieram, o que é que estavam fazendo aqui, conversamos mais e aí acabei percebendo, mas logo de início eu soube logo por causa do sotaque. É interessante isso. Quando o Dr. trabalhar com essa turma depois vai notar a mesma coisa! Agora nos outros não. Sita: Mas, chega a perceber se esses que vêm de outros lugares, os vêm apenas estudar são diferentes em relação ao comportamento, a dedicação, ao empenho, a procura de materiais. Percebe isso nesses alunos, ou não? Professora Tunga N´zola:Percebi apenas nesses dois. Nos outros não tanto. Tem até muitos que eu conheço que vivem no lar que vieram só para isto, mas não são... mesmo os nossos daqui também tem muitos dedicados, mas estes dois é que me chamaram atenção em relação ao resto da turma. Sita: Está bem. Mas, eu queria que me falasse um pouco mais da dinâmica das suas aulas. Quais são as dinâmicas que você mais usa em termos gerais? Como é que processa as suas aulas? Professora Tunga N´zola:Eu tenho um tema, digamos, por exemplo, pele: formações anexas. Eu chego no quadro coloco os tópicos, as diferentes camadas, coloco as funções, só tópicos e os anexos. Em cima desses tópicos eu vou fazendo comentários porque em cima de tudo isso, de todos esses tópicos, existe uma série de comentários que devem ser feitos então, eu vou comentando e vou parando e eles também vão perguntando, vão interagindo é mais ou menos isso, nesse sentido... temos mapas também que vão ajudando nesse sentido, mas eu sempre uso só com tópicos, as vezes, projecto também quando tenho muitas figuras porque a área de Biologia é rica em figuras e aí projectam-se essas figuras e em cima delas vamos expondo as nossas experiências práticas, o que é que já viram, como é que é... e vão comparando com o que estamos a ver ali... e dessa forma vamos criando um diálogo com bastante interacção... é mais ou menos nesse sentido. 215 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Sita: Então ao longo desse período que está a trabalhar como professora na universidade, você percebe que de lá para estes anos você vai ficando mais rígida em relação ao tratamento coms os alunos ou menos? O que é que você percebe em relação a isso? Professora Tunga N´zola:Não. Como o curso de biologia é novo estou pegando novas disciplinas, eu acho que não mudei tanto. Continuo exigindo mais de mim porque estou pegando novas disciplinas, estou buscando mais. Numa coisa que eu era um pouco mais flexível, no caso do estudante que tirava um ponto, eu punha cinco... mas hoje não. Agora eu decidi que quem tirar zero é zero... quem tirar um é um. Eu acho que cada um tem que assumir sua responsabilidade correr atrás do que quer e não ficar tapando buracos. Então nesse sentido eu passei a ser um pouco mais rígida. Cada um vai ter o que foi e o que conquistou. Se é o zero, é o zero! Mas antigamente, as vezes, eu dava cinco a quem tirou zero para ele não ficar tão sentido, mais hoje já não já estou colocando o que tiver. Sita: Mas acha que essa sua postura de dar quem tem zero, zero, quem tem um, é influenciado pelo próprio meio da nossa instituição? Aquilo que os colegas dizem, aquilo que os próprios alunos dizem, aquilo que a própria nossa instituição promete? Professora Tunga N´zola: Dr. Na verdade Dr. Não sei. Só sei que eu própria entendi decidir isso, não sei dizer agora qual é o factor que encandeou. De repente assim esse ano disse não. Não vou fazer mais isso. Agora vai ser isso e pronto. Assim do nada! Sita: E antigamente quando fazia isso, o que é que te mobilizava a fazer isso? Professora Tunga N´zola: Eu acho que o que me mobilizava são os estudantes mais idosos que vinham se lamentando. Dra. nós temos muitas responsabilidades! Olha a idade! Tenta ver. E aí eu tentava fazer as coisas um pouco mais flexíveis. Agora com essa geração mais jovem, eu disse: não! Tem que exigir porque eles amanhã também estarão aqui. Já tive turmas muito mais velhas então já fui muito mais flexível em relação a isso, até a forma de avaliação, ponderava algumas coisas, via a idade, via que alguns estavam quase prestes a irem para aposentadoria, então aquela coisa toda, então punha tudo isso na balança, mas hoje eu vejo mais jovens que outra coisa então, tem que exigir mais deles. Eu acho que é mais ou menos isso. Sita: O facto de ter passado pelo Brasil lhe tornou mais sensível a estes aspectos? Professora Tunga N´zola:Eu acho que também. Me acho um pouco diferente. Acho que isso me tornou um pouco diferente porque vi isso das minhas próprias professoras até agora que eu estava a fazer o mestrado, então tudo isso também mexeu comigo 216 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes porque, às vezes, você como estudante tem situações que você passa que você precisa que alguém te entenda. Então, cheguei aqui passei a enxergar melhor o estudante e não ser tão insensível em tudo. Passei a olhar melhor cada questão de cada um e fazer uma análise melhor de tudo isso. Já fui um pouco mais insensível mas agora com essa última fase do mestrado, isso mexeu comigo. Hoje eu paro, penso e analiso para cada um. Estou um pouco mais sensível. Sita: Concorda comigo que há, entre nós, uma tal escola chamada “escola brasileira”? Professora Tunga N´zola:Concordo. Sita: O que é que acha que caracteriza essa escola brasileira? Professora Tunga N´zola:Essa abertura, essa liberdade de expressão, essa facilidade de interacção com os estudantes porque às vezes é aquela coisa que nós vimos que o professor está aqui o estudante está lá... mas lá no Brasil é que o professor está ali é chamado pelo próprio nome, então nós ficamos aqui e é aquela coisa: Dr... Dr... Aquela simplicidade deles também acho que í isso também que tem me ajudado muito no processo de ensino. A pessoa ser mais simples e com isso o estudante tenta se aproximar mais e isso facilita... o estudante tenta se aproximar, tenta ficar mais à vontade com o docente e isso facilita essa interacção, esse diálogo e até ajuda no processo de ensino e aprendizagem do que aquela coisa de você ser tão rígida, tão autoritário e isso as vezes dificulta um pouco e eles aí têm mais liberdade de poder tirar dúvidas, de poder chegar mais perto, saber o que é que eles podem fazer para poder melhorar aquilo que está mal... Sita: Bem, professora. Acho que agora só nos falta um último aspecto que eu coloco aqui como possíveis contribuições para pensarmos um pouco nesse intercâmbio na área da educação ou na área de ensino e pesquisa. Se tem alguma sugestão para enriquecermos um pouco esse intercâmbio, mas no nível micro. Sugestões que irão no meu trabalho quando estiver concluído. Professora Tunga N´zola:Nesse sentido de intercâmbio entre Brasil- Angola, ou entre os estudantes- professores? Sita: Tanto faz. Eu penso, por exemplo, nós que já tivemos essa experiência, vimos e conhecemos as lacunas podemos, a partir das nossas experiências fazer com que os outros percebam oportunidades de melhorar esse intercâmbio de ensino e pesquisa do ponto de vista micro e/ou institucional. Professora Tunga N´zola:Do ponto de vista da nossa instituição? Sita: É. Da nossa instituição. 217 Traços do hibridismo nas práticas de docentes universitários angolanos egressos de universidades brasileiras / Tese, FAE-UFMG/2011/ José M. Sita Gomes Professora Tunga N´zola:O que é que a nossa experiência pode ajudar nisso? Sita: Sim. Professora Tunga N´zola:Isso em termos de um micro projecto, ou dentro da sala de aula? Sita: Eu estou a pensar mais no nível geral. Poderia sugerir, por exemplo, que nós deveríamos criar e intensificar as relações professor-professor, professor universitário daqui com outro professor de lá, mas para tornar essas relações institucionalizadas. Isso quer dizer que não pode ser eu, com o outro professor de maneira informal porque muitas vezes até existem, mas, sim, do ponto de vista institucional; formal. Por exemplo, um professor de Biologia aqui com o outro de Biologia lá... Professora Tunga N´zola:Que seja conhecido, para que haja um contínuo intercâmbio? Sita: Sim, para que isso continue. Professora Tunga N´zola:Mas, eu acho que aqui na nossa realidade eu acho que, entre nós colegas já existe esse conflito até, já existe esse conflito. É a chamada escola brasileira, escola cubana. Eu acho que tínhamos que acabar com isso primeiro porque é complicado se pensar nessas relações quando internamente existem esses conflitos. Escola isso... escola aquilo... então o estudante já sabe, ah! Esse estudou ali, aquele estudou ali, esses são assim, aqueles são assim, mas eu acho que nós como docentes tínhamos que acabar com isso. Eu acho que uma das formas seria assim promovermos seminários para vermos as vantagens e desvantagens de cada, o que é que um tem que incorporar, o que é que um trouxe de bom que possa ser incorporado por outros, para acabar com essa… Sita: E aí, quer dizer, a partir desses grupos constituídos e diferenças entre “as escolas” amenizadas se constituem os grupos… Professora Tunga N´zola:É difícil acabar com essas diferenças porque isso está incorporado. Quem estudou em Cuba vai continuar sendo o que é dele, quem estudou no Brasil, sendo o que é dele, mas eu acho que tínhamos que ter um intercâmbio daquilo que é bom que cada um trouxe. Isso é que tinha que haver e não ficar aquela coisa que isso é assim, isso é assim, ninguém quer interagir, ninguém quer saber o que é que é melhor e fica sempre aquela briga, principalmente quando chega no momento de análise dos projectos... essa coisa toda tem sempre essa briga. Então eu acho que tinha que haver essa interacção para que cada um possa aproveitar o que é de bom que vem do outro.

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