VISIBILIDADE MEDIÁTICA, VIGILÂNCIA E NATURALIZAÇÃO DO DESEJO DE AUTOEXPOSIÇÃO 1 Cíntia Dal Bello2 Debora Cristine Rocha3
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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 VISIBILIDADE MEDIÁTICA, VIGILÂNCIA E NATURALIZAÇÃO DO DESEJO DE AUTOEXPOSIÇÃO 1 Cíntia Dal Bello2 Debora Cristine Rocha3 Resumo: Este estudo tem por objetivo refletir sobre como a relação entre visibilidade e vigilância nos meios de comunicação contribui para a naturalização do desejo de autoexposição. Para tanto, parte das considerações de Foucault (1979) sobre a dinâmica do panopticon de Bentham e a instituição moderna do exercício do poder disciplinador pelo olhar; considera, com Santaella (2010), a sobreposição dos regimes de vigilância panóptico, escópico e por rastreamento; e propõe que a naturalização do desejo de autoexposição, tanto em plataformas ciberculturais de relacionamento quanto em reality shows, a despeito das possibilidades de indexação pelos regimes de vigilância, advém do modelo sinóptico, tributário da sociedade do espetáculo e da indústria cultural, conforme Bauman (1999). Palavras-chave: Cibercultura. Visibilidade midiática. Vigilância. Redes sociais digitais. Reality show. 1. A problemática questão da privacidade Em dezembro de 2010, Paul Butler, engenheiro de sistemas e estagiário do Facebook, divulgou em seu perfil o mapa que criou a partir do banco de dados da plataforma com o objetivo de visualizar o fluxo de amizade entre cidades e regiões, a despeito de fronteiras políticas e geográficas. Para tanto, tomou uma amostra de cerca de 10 milhões de pares de amigos, identificou a sua localização (cidade geográfica atual) e traçou linhas entre eles, de forma que os vínculos reincidentes pudessem, sobrepostos, brilhar mais sobre o 1 Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação e Cibercultura do XXI Encontro da Compós, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, de 12 a 15 de junho de 2012. 2 Doutoranda em Comunicação e Semiótica pelo PEPGCOS-PUC/SP (bolsa CAPES), coordenadora, pesquisadora e docente do curso de Publicidade e Propaganda da Universidade Nove de Julho. É membro da ABCiber e do grupo de estudos Plurimídia: Perspectivas plurais das mídias (Uninove). E-mails: [email protected]; [email protected]. [www.cintiadalbello.blogspot.com]. 3 Doutora em Comunicação e Semiótica pelo PEPGCOS-PUC/SP (bolsa CAPES), jornalista, coordenadora e docente do curso de Jornalismo da Universidade Nove de Julho. É membro do Grupo de Pesquisa Espacc (Espaço-Visualidade/Comunicação-Cultura). E-mail: [email protected]. www.compos.org.br 1 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 fundo escuro4. Após o processamento, o mapa das relações humanas estabelecidas via Facebook evidenciou continentes e algumas fronteiras internacionais (figura 1), além da força das conexões locais em comparação aos fluxos globais de comunicação. Figura 1. Mapeamento das relações humanas via Facebook Fonte: Butler (2010). Embora não possa ser tomado como representativo das condições de acesso à internet – China e Rússia, por exemplo, praticamente não “aparecem” no mapa, o que se deve à baixa penetração do Facebook nesses países (conforme mapa de Vicenzo Cosenza 5, figura 2) e não à inexistência de infraestrutura tecnológica –, o mapeamento de Butler é revelador do poder de alcance desta rede social no mundo, bem como de sua capacidade de rastreamento e indexação a partir dos dados alimentados cotidianamente por seus mais de 600 milhões de usuários. 4 Veja o texto na íntegra no perfil de Butler, disponível em http://www.facebook.com/notes/facebook- engineering/visualizing-friendships/469716398919. 5 Disponível em http://www.vincos.it/2011/06/13/la-mappa-dei-social-network-nel-mondo-giugno-2011/. Acesso em 29 jun. 2011. www.compos.org.br 2 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 Figura 2. Mapa das redes sociais digitais. Fonte: Cosenza (jun. 2011). Henrique Antoun (apud ROMANELLI, 2010) acredita, inclusive, que a rede presta-se a extrair informações a serviço dos Departamentos de Estado e Defesa dos Estados Unidos, onde está sediada. Afinal, o potencial deste dinâmico banco de dados não passou despercebido às autoridades de segurança dos Estados Unidos, que têm estudado a proposição de “novas leis e formas de controlar as mensagens que os usuários trocam pela web”. A campanha contra o terrorismo, a grande obscuridade do século XXI, exige que se contemple “a necessidade de equilibrar a segurança nacional e a privacidade dos usuários” (AGUIARI, 2010). A questão da privacidade, aliás, tem se imposto em meio ao discurso mediático de que é preciso tornar o mundo “mais aberto” e “conectado” – e seu nível de complexidade parece aumentar conforme surgem novas possibilidades de exploração comercial dos dados depositados nas plataformas (DAL BELLO, 2010). Entretanto, a despeito das preocupações que cercam o debate, mais e mais pessoas têm aderido às redes sociais digitais, compartilhando dados particulares cotidianamente – o que reforça a constatação de Sibilia (2008) de que está em curso um movimento generalizado de evasão de privacidade ou, conforme Bauman (2008), de conformação de uma sociedade confessional, cuja lógica afeta todos os meios de comunicação, além de recuperar e fortalecer a oralidade e a visualidade, presentes de forma clara ou velada na estrutura de funcionamento desses meios. Neste novo contexto cultural, a autoexposição nos meios de comunicação é vista, sentida e buscada com ansiedade – visibilidade e subjetividade jazem intrínsecas, validando o www.compos.org.br 3 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 trocadilho “Apareço, logo existo” ou inaugurando a era do “apareSer” 6. Ou seja: só existe aquele que alcança a dimensão mediática (quer seja massivamente, nas telas da TV ou nas capas de revista, quer seja na exposição digital das redes) e é visto/reconhecido pelo outro, tomando-lhe a percepção e a atenção. O preço inconteste da desejada visibilidade, entretanto, é a possibilidade de ficar à mercê da vigilância alheia. Diante desse fenômeno, esse artigo propõe uma reflexão sobre o processo de naturalização do desejo de autoexposição nos ambientes mediáticos e ciberculturais. Para tanto, pontua a relação entre visibilidade e vigilância nos meios de comunicação, a partir das considerações de Foucault (1979, p. 209-227), Bauman (1999, p. 56-62) e Santaella (2010, p. 153-181), localizando-a tanto nas plataformas ciberculturais de relacionamento e projeção subjetiva quanto no gênero televisivo reality show. 2. Transparência panóptica e cultura da delação nas redes sociais digitais O modelo estrutural do panopticon de Benthan propõe o exercício do poder pelo olhar, ou seja, pela instituição da visibilidade e da transparência como estratégia de submissão e dissuasão. Aplicável a internatos, hospitais, fábricas, prisões e escolas, o panóptico correspondeu à premente necessidade de controle de poucos sobre muitos na incessante inflação das cidades, ao cabo das Revoluções Francesa e Industrial, além de materializar, na prática, a esfera da opinião pública como instância preventiva. Para Foucault (1979, p. 216-217), “o simples fato de que as coisas são sabidas e de que as pessoas serão vistas por um tipo de olhar imediato, coletivo e anônimo” parece suficiente para inibir o outro de agir mal. Para tanto, não deve haver espaços escuros, ou seja, lugares nos quais seja possível o anonimato. 6 O termo “apareSer” é depositário da reflexão sobre construção, projeção e promoção de identidades em ambientes ciberculturais de alta visibilidade, objeto de estudo sobre o qual Cíntia Dal Bello debruçou-se de 2007 a 2009, considerando a porosidade das subjetividades trespassadas pelos fluxos informacionais (COUCHOT, 2003; MACHADO, 2007) e as inúmeras tensões constantes na dinâmica relacional com a alteridade nas redes sociais digitais. No contexto dos novos processos de subjetivação na conjunção entre aceleração, excesso e produção de simulacros característicos da visibilidade cibercultural (BAUDRILLARD, 1991; TRIVINHO, 2007), o neologismo foi proposto para cumprir a árdua tarefa de desfazer a dicotomia aparência-essência e descrever, se não a natureza mesma, híbrida e complexa, do ser/estar na transparente intermitência entre a dimensão dos lugares e a dimensão comunicacional das redes (TRIVINHO, 2007), ao menos a lógica reinante, coercitiva na medida em que sujeita a todos: para ser, ser reconhecidamente alguém, é imprescindível aparecer, estar na mídia. www.compos.org.br 4 Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação XXI Encontro Anual da Compós, Universidade Federal de Juiz de Fora, 12 a 15 de junho de 2012 Um medo assombrou a segunda metade do século XVIII: o espaço escuro, o anteparo de escuridão que impede a total visibilidade das coisas, das pessoas, das verdades. Dissolver os fragmentos de noite que se opõem à luz, fazer com que não haja mais espaço escuro na sociedade, demolir estas câmaras escuras onde se fomentam o arbitrário político, os caprichos da monarquia, as superstições religiosas, os complôs dos tiranos e dos padres, as ilusões da ignorância, as epidemias. (FOUCAULT, 1979, p. 216) A fórmula disciplinar moderna, ao conjugar visibilidade e vigilância, esconjura a privacidade