Andressa Marzani

Da Amazônia misteriosa ao banquete dos mortícolas: reflexões sobre medicina, raça e território nacional em Gastão Cruls

Dissertação submetida ao Programa de Pós- Graduação em História da Universidade Federal de Santa Catarina para a obtenção do título de Mestre em História. Orientador: Prof. Dr. Adriano Luiz Duarte

Florianópolis 2019

Ficha de identificação da obra elaborada pelo autor, através do Programa de Geração Automática da Biblioteca Universitária da UFSC.

Marzani, Andressa Da Amazônia misteriosa ao banquete dos mortícolas : reflexões sobre medicina, raça e território nacional em Gastão Cruls / Andressa Marzani ; orientador, Adriano Luiz Duarte, 2019. 273 p.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em História, Florianópolis, 2019.

Inclui referências.

1. História. 2. sanitarismo. 3. miscigenação racial. 4. modernismo no . 5. Gastão Cruls. I. Duarte, Adriano Luiz. II. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.

Andressa Marzani

Da Amazônia misteriosa ao banquete dos mortícolas: reflexões sobre medicina, raça e território nacional em Gastão Cruls

O presente trabalho em nível de mestrado foi avaliado e aprovado por banca examinadora composta pelos seguintes membros:

Profa. Maria Teresa Santos Cunha, Dra. PPGH/UDESC

Profa. Maria Mezzomo Rodrigues, Dra. CCE/UFSC

Prof. Luiz Alberto de Souza, Dr. PPGH/UFSC

Certificamos que esta é a versão original e final do trabalho de conclusão que foi julgado adequado para obtenção do título de mestre em História.

______Prof. Dr. Lucas de Melo Reis Bueno Coordenador do Programa

______Prof. Dr. Adriano Luiz Duarte Orientador

Florianópolis, 14 de outubro de 2019.

Aos meus pais, Osmar e Maria, e as minhas irmãs, Carol e Tati. Vocês não sabem o quanto são importantes para mim.

AGRADECIMENTOS

Ao longo do mestrado, contei com a ajuda de diferentes pessoas e instituições, sem as quais o processo teria sido muito mais difícil – quem sabe até impossível de ser executado. Em primeiro lugar, agradeço pelo apoio, compreensão e o amor da minha família, que desde o processo seletivo estiveram presentes me incentivando, apoiando minha mudança para outro estado, e me esperando com carinho a cada visita. Especialmente a Carol, cujo período como mestranda coincidiu com o meu, e nessa e tantas outras aventuras da vida dividiu comigo experiências, discussões, impressões de livros, dificuldades, alegrias, cafés e chocolates. Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Adriano Duarte, pela condução da orientação, pelas indicações de leitura e pela paciência. Por ter me apresentado novos autores e novos debates, com os quais eu ainda não estava familiarizada, trazendo outras possibilidades para a análise da literatura. Agradeço também aos colegas do Núcleo de Estudos de História, Literatura e Sociedade (NEHLIS) pelos encontros, pelas discussões, trocas de ideias e sugestões. Em especial ao Luiz, que além das conversas e afinidades, também foi uma importante companhia e, como “nativo da ilha” me apresentou a cidade e suas trilhas. A Dra. Marília Mezzomo Rodrigues, pela atenção desde as primeiras conversas no NEHLIS, as impressões sobre “curitibanices”, e pelos valorosos apontamentos, tanto em minha banca de qualificação, quanto na de defesa. As reflexões de sua tese e, principalmente, suas sugestões e comentários marcaram os rumos tomados em minha pesquisa. Agradeço também aos professores do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC, pelas discussões e pelo aprendizado. Aqui cabe um agradecimento especial à Professora Maria de Fátima Fontes Piazza, pela gentileza e alegria dispensada a seus alunos, e pelo interesse demonstrado por meu trabalho. Seus apontamentos e sugestões na banca de qualificação foram um alento para continuar a pesquisa, e uma indicação do caminho a seguir. Sou grata também aos debates trazidos pelos professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura, durante as duas optativas da área de que participei. Por fim, um agradecimento aos membros de minha banca de defesa, que muito contribuíram para o formato final que este trabalho ganhou.

Aos colegas e amigos que fiz no percurso do mestrado, sou grata pelos aprendizados compartilhados, pelas conversas e por todo o apoio: Natália, Lídia, Priscila, Natan, Rodrigo (Urso), Raisa, Thiago, Juan, Josy, Lucas [in memorian], Dani, Rodrigo Candido, Kelly, Cissa, André Luiz, Arielle, Jana, Jessica, Lê, Ana Carolina, Silvia, e tantos outros. O companheirismo que demonstraram foi essencial para que eu pudesse me sentir “em casa”, mesmo em uma universidade que me era até então desconhecida. Meu obrigado à Cecília, a Maíra e ao Bruno, por serem uma boa companhia tanto em manifestações de rua como em festas de final de ano, pelas risadas e por sua alegria. À Cassi, pelas palavras sempre gentis, pelas pedaladas e outras aventuras, que me ajudaram a suportar os dias mais difíceis. À Emily pela amizade, pelos cafés, pelas risadas e pelo apoio imenso, durante a dissertação e depois, em todos os caminhos que resolvi seguir. Agradeço ainda aos moradores que passaram por aquela república na rua Luiz Pasteur em que vivi por dois anos: os colegas de mestrado André (Carrinho) e Isaac, Tales, Gustavo, Kath, Marie, Nelsinho, Rafa, Marina e também a Ana, com quem acabei convivendo só poucas semanas. Minha estadia na ilha não teria tanta graça se não eu tivesse dividido as alegrias e agruras do cotidiano com vocês. Muito obrigada pelas inúmeras conversas regadas a café, as sessões de série, as festas e todo o resto! Meu obrigado aos amigos e familiares em Curitiba e região metropolitana, que devido à distância eu por vezes pouco vi, mas que tornaram as idas e vindas mais alegres. Entre tantos que os encontros e desencontros da vida proporcionaram, não posso deixar de citar: Carlos, Leda, Bruna, Nay, Nayamin, André, Monique. Os amigos Arlindo, Jones e Bárbara, sempre tão contestadores. Os companheiros de trilhas (e outras aventuras nada saudáveis) Gil, Yvy, Lize, Debora, e também o Jones, o Arlindo e meu primo Paulo Vitor. Sou grata ainda aos muitos tios, tias, primos e primas, que mesmo longe, sempre marcaram presença com seu carinho. Ao Diego, que levou comigo esse último ano de escrita da dissertação, e me acompanha nos caminhos pelo sul do país e outros afora, me apoiando com seu amor, sua paciência e as delícias culinárias que prepara pra mim. Essa pesquisa foi facilitada pelo apoio financeiro conseguido com a bolsa de estudos concedida pela CAPES durante o mestrado.

“Por muito tempo fui uma pessoa dos livros: a realidade me assustava e atraía. Desse desconhecimento da vida surgiu uma coragem. Agora penso: se eu fosse uma pessoa mais ligada à realidade, teria sido capaz de me lançar nesse abismo? De onde veio tudo isso: do desconhecimento? Ou foi uma intuição do caminho? Pois a intuição do caminho existe...” (Svetlana Aleksiévitch, A guerra não tem rosto de mulher, 2015)

RESUMO

A década de 1920 ficou conhecida por ser o período em que uma concepção de Brasil moderno ganhou corpo, formulando pontos de vista, diagnósticos e projetos que marcaram as gerações subsequentes. Contudo, o movimento da modernidade brasileira já estava sendo gestado desde as décadas anteriores, em um processo complexo de transformações, rupturas e continuidades. Nesse ínterim, uma parte importante dessas discussões esteve relacionada a questões médicas, diante das novas descobertas científicas e da ascensão de uma classe médica, que iria cada vez mais reivindicar para si a participação na construção dos rumos da nação. Nesse sentido, premissas médicas como saneamento, higiene, miscigenação racial, eugenia e saúde pública passaram a fazer parte dos debates mais amplos da sociedade. Entendendo que a literatura desempenhou importante papel na formulação dessas visões e projetos nacionais, o presente trabalho tem por objetivo analisar as primeiras obras do escritor e médico carioca Gastão Cruls (1888-1959), com o intuito de fomentar o debate sobre a relação entre as questões médicas, a produção literária e a construção de identidades nacionais desenvolvido entre as décadas de 1910 a 1930. Cruls formou-se em medicina em 1910, mas abandonou a profissão por volta de 1926, em prol de sua carreira como escritor. Contudo, sua produção literária está permeada pelas discussões médicas do período, como os limites éticos dos experimentos científicos, o sofrimento humano, a dificuldade de cura para algumas doenças, a morte. Desta forma, Cruls projetou, através da literatura, anseios, questionamentos e reflexões próprias do exercício médico. Do mesmo modo, expressou ideias e debates da medicina do período, entre eles o saneamento das zonas rurais e os projetos de melhorias para a nação. Assim sendo, este trabalho tentou observar as fontes literárias como chave para o entendimento das diferentes visões de Brasil em desenvolvimento.

Palavras-chave: Sertões. Sanitarismo. Miscigenação racial. Modernismo no Rio de Janeiro. Gastão Cruls.

ABSTRACT

The 1920 decade was known as the period in which a conception of modern took form, formulating points of view, diagnoses and projects as which would mark the subsequent generations. However, the movement of Brazilian modernity was already being developed from previous decades, in a complex process of transformations, ruptures and continuities. In this context, a important part of this new discussions passing by medical issues, new scientific discoveries and the rise of a medical class, based on the opening of colleges and the expansion of positions, would increasingly claim for themselves the participation in construction of the nation's directions. In this sense, medical premises such as sanitation, hygiene, racial miscegenation, eugenics and public health have become increasingly part of society's broader debates. Understanding that the literature played an important role in the formulation for national visions and national projects, this paper aims to analyze the first works of Gastão Cruls (1888-1959), born in Rio de Janeiro, in order to stimulated debate on the relationship between medical issues and the construction of identities developed between 1910 and 1930. The 1920s was known as the period in which a conception of modern Brazil took form, formulating points of view, diagnoses and projects that have marked the subsequent generations. However, the movement of Brazilian modernity was already being developed from previous decades, in a complex process of transformations, ruptures and continuities. In the meantime, an important part of these discussions was related with medical issues, new scientific discoveries and the rise of a medical class, would increasingly claim for themselves the participation in the construction of the nation directions. Therefore, medical premises for instance sanitation, hygiene, racial miscegenation, eugenics and public health became part of further debates of society. Understanding that the literature played an important role in the formulation for national visions and national projects, this paper aims to analyze the first works of writer and doctor Gastão Cruls (1888-1959), born in Rio de Janeiro, in order to stimulated the debate on the relationship between medical issues, the literary production and the construction of national identities developed between the decades of 1910 and 1930. Cruls graduated in medicine in 1910, but ended his profession by 1926, on behalf of his career as a writer. However, his literary production is permeated by medical discussions of the period, such as the ethical limits of scientific experiments, the human suffering, the difficulty of cure for some diseases, death. In this way, Cruls projected, through the literature, expectations, inquiries and reflections of the medical practices. Morover, he expressed ideas and debates of the medicine of the period, including rural sanitation and improvement projects to the nation. Consequently, this present study tried to observe the literary sources as a key to the understanding of the different views of Brazil developing.

Keywords: Sertoes. Sanitarism. Racial miscigenation. Modernism in Rio de Janeiro. Gastão Cruls.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13 1 A MODERNIDADE CARIOCA, DA “ALMA ENCANTADORA” (E BOÊMIA) DAS RUAS AO ESPIRITUALISMO CATÓLICO ...... 25 1.1 MARCOS DE UMA CULTURA DO MODERNISMO NO BRASIL ...... 29

1.2 O MODERNISMO NO RIO DE JANEIRO ...... 44

1.2.1 “O Rio civiliza-se” ...... 44

1.2.2 A vida literária carioca: um caldo de cultura heterogêneo ...... 49

1.2.3 Quixotes e turunas ...... 64

1.2.4 O Grupo de Festa ...... 71

1.3 UM MÉDICO NO FANTÁSTICO MUNDO DAS LETRAS ...... 78

2 INCURSÕES PELA AMAZÔNIA FICCIONAL DE CRULS ...... 92 2.1 A IMENSIDÃO CÓSMICA DA AMAZÔNIA ...... 97

2.1.1 Os contatos com grupos indígenas ...... 104

2.1.2 O “duende” da Amazônia ...... 110

2.2 INTERPRETAÇÕES DO BRASIL ...... 114

2.2.1 De médico interessado na literatura a escritor interessado nas discussões médicas ...... 117

2.2.2 A cidade das icamiabas ...... 126

2.3 DESCOBERTAS...... 135

2.3.1 Ficção e eugenia ...... 148

2.3.2 A Festa das Pedras Verdes ...... 174

2.4 OS LIMITES DO PROGRESSO E DA UTOPIA ...... 179

3 FACETAS DA EXPERIÊNCIA MÉDICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX: DAS EPIDEMIAS TROPICAIS ÀS REFORMAS SANITÁRIAS URBANAS ...... 191 3.1 UM BANQUETE DE MORTÍCOLAS ...... 194

3.2 DO HOMEM DE CIÊNCIA, A CRÍTICA À RELIGIÃO ...... 215

3.3 A “ERA DO SANEAMENTO” ...... 218

3.3.1 A doença como niveladora social ...... 219

3.3.2 A gestão Oswaldo Cruz ...... 223

3.3.3 O saneamento rural ...... 227

3.4 A EXPERIÊNCIA DE GASTÃO CRULS NA COMISSÃO DE SANEAMENTO RURAL ...... 234

3.4.1 O sertão ficcional de Cruls ...... 234

3.4.2 Modernidade e decadência ...... 241

3.4.3 Visões do rural e do urbano ...... 247

13

INTRODUÇÃO

Em tempos de crise política e econômica como o atual, forças antagônicas em disputa tomam emprestadas várias interpretações do país, remetendo a diferentes períodos de nossa história e ressignificando-os. Entram em conflito diversas visões do que é o Brasil, qual é o melhor caminho em termos de políticas públicas ou de economia a ser tomado, enfim, a que projeto se atentar. Permeando essas discussões, está a ideia de um país moderno – seja aquele que se moderniza porque flexibiliza suas leis trabalhistas, em prol de maior produtividade, ou aquele que é moderno porque concilia lucros e produção com preocupações com o meio ambiente ou com a qualidade de vida dos trabalhadores. Diferentes contornos esse debate ganhou ao longo do século XX, não cabendo aqui uma discussão detalhada; contudo, sua gênese está, certamente, na década de 1920. Foi o período em que a concepção de Brasil Moderno tomou corpo, ganhando pontos de vista, hábitos e diagnósticos que marcariam várias gerações. A concepção de “moderno”, que já vinha se delineando desde fins do século XIX, emerge de maneira clara nesta década e na posterior. Influenciou não apenas “nossa maneira de ver e pensar o mundo, com enorme legitimidade, até, pelo menos, meados dos anos 60, como também nos forneceu retratos do Brasil com que temos lidado até hoje”1 – sendo o limite para o “hoje”, para os autores, a década de 1970 em diante, considerada de início da crise desse modelo. Apesar de anterior, nos anos 1920 foi que a decepção com os rumos do regime republicano se tornou incontornável. Tratou-se de uma crise da oligarquia e descrença quanto à capacidade do excludente sistema liberal de criar uma sociedade nova. No âmbito dos debates intelectuais, questionamentos até então inéditos foram levantados, influenciando as décadas seguintes. E

não apenas concepções tradicionais são atacadas, mas também as instituições republicanas – identificadas com uma legalidade que não tem correspondência no real –, elevando o pathos de ruptura, trazendo à tona novos atores e a problemática dos direitos e da participação.2

1 HERSCHMANN, Micael M.; PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 11. 2LAHUERTA, Milton. Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista, modernização. In: LORENZO, Helena e COSTA, Wilma (org.). A década de 20 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: UNESP, 1997. p. 93-114. p. 95. 14

Nesse sentido, o ano de 1922 é emblemático: foi o ano em que ocorreu a cisão intraoligárquica mais contundente, quando da indicação dos nomes para a sucessão de Epitácio Pessoa3; bem como o movimento dos 18 do Forte de Copacabana – dissidência militar que, apesar de logo sufocada, demonstrou o descontentamento de algumas camadas médias, e culminou no movimento tenentista. Além disso, eventos como a comemoração do Centenário da Independência, a fundação do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a criação do Centro Dom Vital, espaço da militância católica leiga, e o movimento modernista, implicaram em mudanças significativas do cenário político e cultural do país. No cerne desses acontecimentos, a necessidade de modernização da nação e seu futuro projetado, para a qual concorriam múltiplas e por vezes divergentes propostas4. Parte importante desses projetos para o país passava por questões médicas: sanitarismo, saúde pública, higiene e eugenia, bem como a aplicação desses temas em áreas como urbanismo, educação e trabalho. Com as novas descobertas científicas, que permitiram avanços na área, além da abertura de Faculdades de Medicina e a ampliação de postos e cargos, as premissas médicas passaram a fazer cada vez mais parte do debate público, ao sabor de correntes de pensamento diversas, gerando acaloradas discussões e orientando políticas públicas. Exemplo disso pode ser visto na importância que o discurso higienista deteve nas primeiras décadas do século XX. Muitas expedições foram enviadas aos lugares mais recônditos do país, em busca das raízes dos males nacionais – como as viagens empreendidas pelos médicos ligados ao Instituto Oswaldo Cruz. De acordo com Marília Mezzomo Rodrigues5, havia um esforço na divulgação em larga escala das informações recolhidas, bem como dos avanços da medicina de modo geral. Tentando levar a cura e a erradicação das doenças para diversas partes do país,

3 FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 387- 415. 4 GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio...: modernismo e nacionalismo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999. p. 49. 5 RODRIGUES, Marília Mezzomo. Filho de tigre sai pintado: medicina, hereditariedade e identidade nacional em textos de Érico Veríssimo. 2009. 184f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. Disponível em: Acesso: 12.março.2016. 15 esses profissionais queriam também chamar a atenção das populações citadinas e das autoridades para a situação precária das regiões mais afastadas6. Para Micael Herschmann e Carlos Alberto Messeder Pereira, os especialistas dos saberes técnicos relacionados à medicina, à educação e à engenharia, em conjunto com a geração literária de 1920, elaboraram discursos paradigmáticos sobre a modernidade, cristalizados na década subsequente7. Por volta dos anos 1930, essa influência poderia ser mais claramente observada:

A eugenia e a miscigenação eram temas obrigatórios dos debates, a higiene já fazia parte dos currículos escolares e os médicos também queriam para si a missão de construtores da nação, partindo de ideias como saneamento, saúde e doença e seus reflexos no mundo do trabalho e na formação das futuras gerações.8

Considerando então essa efervescência política e cultural dos anos 1920, esse trabalho se propõe a analisar algumas obras literárias do médico e escritor carioca Gastão Cruls (1888-1959), partindo das fontes para tentar entender as discussões sobre medicina do período, bem como sua relação com os projetos de nação emergentes. Entrei em contato com esse autor – hoje praticamente desconhecido fora de alguns meios literários e acadêmicos – pela primeira vez ainda nos anos finais da graduação, através de um capítulo da coletânea Nas tramas da ficção: História, Literatura e Leitura, de organização de Clóvis Gruner e Cláudio DeNipoti (2009). À época, meus interesses de pesquisa eram outros; no entanto, meu trabalho já contemplava a utilização de fontes literárias na pesquisa histórica. O capítulo em questão abordava discursos eugênicos na literatura do início do século XX, trazendo-me um novo nome: Gastão Cruls, um médico que atuara também como escritor, e autor de um dos primeiros romances considerados de ficção científica (ou algo congênere) no Brasil, A Amazônia misteriosa (1925). Uma das coisas que mais me chamou a atenção em sua biografia, além da suposta “paternidade” de algum gênero, foi o fato de que Cruls iniciou sua carreira como médico, mas em algum momento trocou a medicina pelo exercício da literatura. No entanto, a curiosidade ficaria guardada por algum tempo, até que, dois anos mais tarde, eu retornasse ao autor. Por conta de uma disciplina do curso de

6 Ibid., p. 15-16. 7 HERSCHMANN; PEREIRA, op. cit., p. 46. 8 RODRIGUES, op. cit., p. 9. 16

Especialização em Literatura Brasileira e História Nacional da UTFPR, entrei em contato com alguns contos do autor9. A partir daí, decidi me aprofundar em sua obra, partindo da interessante relação entre medicina e literatura. Além disso, o fato de ser um autor ainda pouco conhecido fora dos meios acadêmicos e especializados (e ainda pouco estudado dentro desses) me motivou a dar continuidade à pesquisa. Gastão Cruls se formou em Medicina em 1910, e atuou nos anos seguintes como médico sanitarista na Comissão de Saneamento Rural. Cultivou um interesse paralelo pela literatura, passando a publicar alguns contos na Revista do Brasil, por volta do fim da década de 1910, ainda sob pseudônimo. Com o tempo, acabou abandonando o exercício da profissão para se dedicar à literatura e a atividades culturais correlatas. Entre as décadas de 1920 a 1950, lançou três livros de contos e cinco romances, além de relatos de viagens, o estudo histórico Aparência do Rio de Janeiro, e de Antonio Torres e seus amigos, uma compilação de cartas e discursos do escritor mineiro. O autor frequentou alguns círculos literários e manteve contato com nomes como Alberto Rangel, Antônio Torres, Gilberto Amado e Monteiro Lobato10. Além disso, durante a década de 1930 administrou a editora Ariel, juntamente com Agripino Grieco. A editora manteve, entre 1931 e 1939, o Boletim de Ariel, mensário de Literatura, Artes e Ciências – e segundo Lawrence Hallewel, “a revista literária mais importante da época”11. Ao falecer, em 1959, Cruls deixou ainda dois romances inacabados. Desde os primeiros contos, sua escrita dialoga com suas experiências enquanto médico. Em alguns casos, o autor se utiliza de cenas que presenciou na

9 Para o artigo final dessa disciplina, selecionei à época o conto “G.C.P.A.”, do livro Coivara (1920). Neste texto, um enfermeiro fica doente e é internado na própria clínica em que trabalhava, passando a questionar procedimentos e cuidados que antes achava normal. Uma das mais expressivas narrativas de Cruls sobre as questões éticas que envolvem a medicina, apresenta em um dos trechos a expressão “[...] zêlo farisaico de mortícolas”, para se referir aos cuidados dos residentes com seus pacientes – mais interessados nas possibilidades de pesquisa científica, do que na cura das doenças (CRULS, 1951, p. 39). O termo aparece em outros momentos, geralmente relacionado a “banquete”, “carneada” e a outras palavras que imprimem o terror e o descaso ao atendimento médico do início do século no país; por isso, foi escolhido para figurar no título do presente trabalho. 10 MENEZES, Raimundo de. Verbete “Gastão Luís Cruls”. In: ______. Dicionário literário brasileiro ilustrado. Vol. II. São Paulo: Edição Saraiva, 1969. p. 411-412. 11 HALLEWEL, Lawrence. O livro no Brasil: sua história; trad. Maria da Penha Villalobos e Lólio Lourenço de Oliveira, revista e atualizada pelo autor. São Paulo: T.A. Queiroz: Ed. da Universidade de São Paulo, 1985. p. 345. 17

Paraíba do Norte12, enquanto médico sanitarista. Em outros, sua escrita suscita discussões sobre a capacidade de cura da Medicina, ou a face antiética que a ciência (ou seus profissionais) poderia apresentar. Expressando na literatura sua experiência enquanto profissional e seus contatos com a produção científica, Cruls constitui uma importante fonte de observação dos diversos debates, visões e projetos de nação que ganharam força durante a década de 1920. O diálogo entre a produção do conhecimento histórico e a produção literária em âmbito acadêmico vem já de algum tempo. Este já ultrapassou antigas posturas que observavam, no caso dos estudos literários, a estrita contextualização histórica do período de em que a obra e seu autor estavam inseridos; e no caso da historiografia, a narrativa literária apenas enquanto “ilustração complementar” dos fatos históricos apurados. Outros enfoques enriqueceram essa relação, abarcando a complexidade das novas formas de percepção da realidade e novas definições sobre os limites de cada campo, ampliando as discussões sobre as proximidades e distâncias entre os mesmos. No que se refere à escrita da História no Brasil, temos a partir dos anos 1980 o surgimento de diversas obras historiográficas que discutiram o literário, seja a partir do estudo da obra como ponto de inquirição pelo historiador, seja tomando a literatura como substrato para o estudo das percepções, sentimentos, representações, enfim, todos os aparatos de construção de um imaginário de determinada época13. Um dos primeiros exemplos nesse sentido é a obra Literatura como missão, de Nicolau Sevcenko, de 1983. O autor aparece no cenário historiográfico brasileiro como o primeiro historiador a utilizar a literatura como ponto de partida para uma análise de determinado período, observando os embates, tensões e disputas sociais presentes na escrita, caminho que viria a ser ampliado posteriormente. Em sua especificidade, a literatura compõe-se de forma expressiva ficcional alçada à condição de obra de arte por seu valor estético e narrativo, e cujo produtor figura atualmente como artista, em um processo de individualização. Trata-se de

12 Antiga denominação do atual estado da Paraíba. 13 CAMILOTTI, Virgínia, NAXARA, Márcia Regina C.. História e literatura: fontes literárias na produção historiográfica recente no Brasil. História Questões & Debates, Curitiba, n. 50, p. 15-49, jan./jun. de 2009. Disponível em: .Acesso: 20.02.2017.

18 criação que se utiliza, em maior ou menor grau, de resíduos da realidade, ficcionalizando-os, relacionando sentimentos, imagens e percepções com a preocupação com questões estéticas. A produção literária também pode ser considerada um processo histórico, visto que o texto só existe enquanto parte de uma dinâmica histórica, mutável. Uma obra não tem um sentido estático: seus significados e sentidos podem mudar ao longo do tempo, a partir de suas releituras, das críticas, de sua recepção, de sua própria materialidade enquanto objeto. Deste modo, embora ficção assumida, a literatura contém elementos do real, diluídos em fronteiras flexíveis entre a invenção e as reinterpretações. Nesse sentido, partiu-se, aqui, do pressuposto de que a literatura também elaborou discussões fundamentais para o período, e não apenas se serviu delas como material. De acordo com Antonio Candido, as grandes expressões de pensamento e de sensibilidade têm no Brasil geralmente assumido a forma literária, caracterizando a literatura como “o fenômeno central da vida do espírito”14 do país, mais do que a filosofia ou as ciências sociais. E completa:

[...] a literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros.15

Reconhece-se, aqui, a literatura enquanto uma categoria social e histórica, sem diminuição de sua especificidade e importância, mas considerada em seus termos de forma particular de desenvolvimento social da linguagem, marcada por conflitos, mudanças e transições16. Assim sendo, evitou-se fazer aquilo Candido chama de “ponto de vista paralelístico”17, que consiste em separar alguns aspectos sociais ou históricos, e encontrar seus correspondentes na obra literária, sem delinear a real interpenetração entre essas duas esferas. Para Candido, apenas uma análise

14 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9ª ed. revisada pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. p.136. 15 Ibid., p. 138-139. 16 WILLIAMS, Raymond. Marxismo y literatura. 2ª ed. Barcelona: Ediciones Penísula, 2000. p. 59- 66. 17 CANDIDO, op. cit., p. 9. 19 dialética da obra, que una texto e contexto, possibilitará sua compreensão de maneira abrangente. “Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno.”18 A opção proposta neste trabalho foi a leitura de alguns contos das três primeiras publicações de Cruls: Coivara (1920), Ao embalo da rede (1923) e Quatuor – “quatro historietas ou que outro nome tenham [...] divulgadas pela Revista do Brasil (2ª fase), de fim de 1926 a começo de 1927”19, e presentes na coletânea Contos reunidos, de 1951. Além disso, o romance A Amazônia misteriosa (1925) também foi analisado. Por outro lado, ficaram de fora da seleção os romances Elza e Helena (1927) e A criação e o criador (1928), bem como o livro de contos História puxa história (1938) e as demais obras produzidas na década seguinte – que de certa maneira marcam um novo momento, de teor psicológico20, que destoam de suas primeiras produções. A leitura das obras ficcionais foi complementada também por correspondências trocadas entre o autor e outros escritores, disponíveis no acervo literário da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e outras fontes do período, como algumas críticas literárias, resenhas de livros publicadas em periódicos, e afins. Buscou-se também a relação entre as fontes e as discussões presentes no Boletim de Ariel, revista literária editada por Gastão Cruls na década de 1930, e outras fontes literárias brasileiras e estrangeiras do período. Apesar de temática heterogênea, vários dos contos dialogam com as experiências do autor na área da saúde. Ao embalo da rede, por exemplo, parte da vivência de Cruls enquanto médico sanitarista na Paraíba. Em muitos, está a imagem constante da doença, por vezes associada a problemas sociais, à decadência moral, ou a questões de regiões específicas, geralmente áreas rurais. Não raro, está a figura do médico desiludido com sua profissão, o que parece ter sido uma constante em sua vida. Em A Amazônia misteriosa, por sua vez, o personagem principal também é um médico que abandonou o exercício da medicina. Perdido com uma expedição em

18 Ibid., p. 13. 19 CRULS, Gastão. Contos reunidos. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1951. p. 7. 20 MOISÉS, Massaud; PAES, José Paulo (Orgs.). Verbete “Gastão Luís Cruls”. In: ______. Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967. p. 83.

20 plena floresta amazônica, o protagonista trava contato com uma tribo peculiar, composta só de mulheres, a exceção sendo apenas um cientista alemão e sua esposa francesa, hospedados na aldeia. Ao longo de situações estranhas, o protagonista descobre que o cientista está conduzindo experimentos com as crianças do local. Com essa premissa, Gastão Cruls aborda as teorias evolucionistas, a miscigenação racial, a eugenia e a degenerescência, debates importantes e constantes da literatura produzida no período (RODRIGUES, 2009; IACHTECHEN, 2008; SILVA, Alexander, 2008). Desta forma, tendo como foco esse eixo temático, tentei aprofundar o debate sobre as questões que envolvem a saúde e o exercício da medicina, e sua relação com as discussões sobre a identidade nacional e os projetos de Brasil então emergentes. Embora a parca produção acadêmica sobre Cruls se volte majoritariamente para A Amazônia misteriosa, sua obra mais conhecida, o enfoque aqui proposto buscou iluminar aspectos do romance ainda pouco discutidos por outros estudiosos, relacionando-o também a outras produções do autor, em uma continuidade de temas e vieses que não podem ser dissociados nem de sua trajetória particular, nem das discussões mais amplas do período. O recorte efetuado compreende as duas primeiras décadas do século XX, de efervescência do debate, e em cujos limites as obras selecionadas foram produzidas. Contudo, embora entendendo a década de 1920 como referência na emergência de um “Brasil moderno”, optei por tentar apreender o processo que levou a essa mudança em níveis políticos, econômicos, sociais e culturais – retrocedendo, portanto, ao fim do século XIX. Por outro lado, tentei também estender os limites do estudo até o início da década de 1930, tendo em vista os desdobramentos gerados por esses novos debates. Do mesmo modo, falar sobre literatura brasileira na segunda década do século XX é falar sobre o modernismo e a Semana da Arte Moderna de 1922, seja o autor em questão participante ou não dos quadros modernistas. Deve-se levar em conta a dinâmica de relacionamento entre os diversos grupos no interior do movimento, as disputas modernos x anti-modernos/anti-modernistas, e as influências que o movimento exerceu na produção literária brasileira como um todo. Nesse sentido, fez-se necessário partir da problematização dos conceitos de modernidade e modernismo, reavaliando seus pontos de contato e dissensão, e reconsiderando a 21 multiplicidade e a variabilidade de projetos, por vezes conflitantes, para os quais diferentes grupos e produções apontavam. Assim sendo, o primeiro capítulo tentou dar conta desta problemática, repercutindo o atual debate historiográfico sobre a Semana da Arte Moderna de 1922 e o movimento modernista – em especial no que concerne ao modernismo no Rio de Janeiro, cidade em que Gastão Cruls nasceu e produziu grande parte de sua vida. Pois afinal, “a história dos primórdios da República é indissociável da história da cidade, que exerce influência significativa no mundo da cultura”21. Do mesmo modo, tentou-se também recriar a vida literária da cidade, inserindo o autor nela, a partir dos dados biográficos levantados sobre o mesmo. De acordo com Raymond Williams, o ser social determina a consciência, e toda consciência é social. Endossando sua teoria, está a ideia de “determinação”. Não se trata, contudo, da ideia corrente que se tem do termo, geralmente associado a uma objetividade abstrata, em que os indivíduos não conseguem controlar o seu destino; mas sim, de limites dentro do possível histórico.

[...] la ‘sociedad’ nunca es solamente uma ‘cáscara muerta’ que limita la realización social e individual. Es siempre un proceso constitutivo con presiones muy poderosas que se expresan en las formaciones culturales, económicas y políticas y que, para asumir la verdadera dimensión de lo ‘constitutivo’, son internalizadas y convertidas en ‘voluntades individuales’.22

Tendo em vista esse pressuposto, foi que os dados sobre a trajetória do autor e sobre a vida literária carioca foram levantados e analisados. Deste modo, buscou- se refletir sobre a mudança de profissão por parte de Gastão, sua atuação na literatura, de que grupos participou. Como homem de seu tempo, Cruls vivenciou sua carreira e a compreendeu de determinado modo; suas acepções, sentimentos e frustrações não podem de todo ser dissociadas de uma vivência social do que era ser médico no período, considerando-se então todas as vicissitudes das mudanças tecnológicas e científicas, a que cada indivíduo respondia de maneiras variáveis ou até contraditórias. Nesse sentido, um autor nunca é um sujeito desligado de seu meio. Mesmo quando parece um indivíduo único, “fora de seu tempo [histórico]” – expressão

21 VELLOSO, Monica Pimenta. Modernismo no Rio de Janeiro: turunas e quixotes. Rio de janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 32. 22 WILLIAMS, op. cit., p. 107. 22 comumente usada para designar autores e obras conhecidos por sua originalidade e criatividade –, essa expressão se dá no convívio em sociedade. Não é possível, como afirma Raymond Williams, compreender a totalidade das vidas somente juntando uma experiência individual a outra23. Assim sendo, buscou-se aqui apreender as acepções dinâmicas da formação social, do desenvolvimento individual e da criação cultural relacionados a Gastão Cruls; e, ainda, as tensões e contradições reais das relações entre o indivíduo e a sociedade. A reconstituição da vida cotidiana e literária do período foi feita tendo como fontes a obra de Brito Broca (1975), crítico literário e jornalista que viveu entre 1923 e 1961 no Rio de Janeiro, entrando em contato com os diversos movimentos literários e discussões estéticas do período; e os escritos de Luís Edmundo (2001), um jornalista e escritor carioca que atuou em diferentes áreas culturais (poesia, crônica, teatro) ao longo das primeiras décadas do século, participando ativamente do movimento chamado de “boêmio”. Além disso, tentei abarcar os debates da historiografia atual sobre o tema, sobretudo Monica Pimenta Velloso (1996; 2003) e Angela de Castro Gomes (1993; 1999). Esses elementos foram trabalhados conjuntamente, com o objetivo de apreender com quais correntes literárias Gastão Cruls dialogava, de que ideias partilhava, as redes de sociabilidade com as quais entrou em contato, etc. No segundo capítulo, tentei dar conta da análise do romance A Amazônia misteriosa, tendo por balizas as discussões sobre gêneros narrativos, dado o romance apresentar elementos da narrativa fantástica (TODOROV, 1981), dos romances de aventura e do romance científico ou do que seria posteriormente caracterizado como ficção científica (CAUSO, 2003; SILVA, Alexander, 2008; SKORUPA, 2002). Do mesmo modo, a temática abrangente de romances sobre a Amazônia, diversa e profícua, possibilitou a relação entre diversas narrativas ficcionais que abordaram a região. Desde o primeiro contato com o ambiente amazônico até a leitura de outras obras sobre a floresta, tentei reconstruir um processo de contatos, amizades e leituras que fomentaram a criação ficcional da Amazônia de Cruls. Seus contatos com a região foram muito além de sua escrita ficcional. De fato, o autor a conheceria em 1928, em comissão liderada por Candido Rondon, que

23 Ibid., p. 221-224. 23 resultou no diário A Amazônia que eu vi, publicado em 1930. Retornaria em 1938, recolhendo o material que posteriormente seria publicado em Hiléia amazônica: aspectos da flora, fauna, arqueologia e etnografia indígenas (1944). Na impossibilidade de abarcar essas obras em minha análise, tentei me focar na produção ficcional do autor e em sua relação com outras produções do período. A influência mais nítida notada nas obras de Cruls foi a de Euclides da Cunha. Não apenas as observações que o autor de Os sertões fez sobre a região amazônica, escritos derivados de sua experiência no Alto Purús, em 1904, e que só foram publicados postumamente em À margem da história (1909). Mas uma visão mais geral, presente tanto em sua obra máxima quanto nas publicações posteriores, que tentava recuperar positivamente a imagem do homem do interior, um discurso de denúncia do abandono e das péssimas condições em que viviam sertanejos, trabalhadores da borracha, homens simples do campo. Do mesmo modo, a narrativa me levou a entrar em contato com os debates sobre eugenia, raça e miscigenação, indissociáveis dos projetos de nação debatidos no período. Tentando entender as visões de mundo e proposições particulares presentes na obra, e relacionando-as à trajetória intelectual e particular do autor, retomei as discussões sobre eugenia feitas por Marília Mezzomo Rodrigues (2009), Nancy Stepan (2004) e Pietra Diwan (2007). Destarte, a tentativa foi entender como esses debates aparecem na obra ficcional de Cruls, associando-o ao seu contexto geral de produção. Por fim, o terceiro capítulo concentra a análise de alguns contos dos livros Coivara, Ao embalo da rede e as “historietas” de Quatuor, todos publicados nas duas primeiras décadas do século XX. A opção escolhida foi fazer um recorte que privilegiasse as temáticas explícitas da medicina, como em “G.C.P.A.” e “A eutanásia”, ou que tocassem de alguma maneira experiências particulares de Gastão Cruls enquanto médico sanitarista, como os contos “Ao embalo da rede” e “Biró”, derivados de sua experiência na Paraíba. A partir das fontes, tentei brevemente elaborar uma história do exercício da medicina no início do século, me apoiando nas discussões feitas por Gilberto Hochman (1998), Luiz Antonio de Castro Santos (2004), Dominichi de Miranda Sá (2006), Simone Petraglia Kropf (2009), bem como várias discussões produzidas pelo Instituto Fiocruz. 24

Assim sendo, os rumos dos debates acabaram por me levar entre a diferenciação entre cidade e campo, os diferentes tipos de projetos nacionais em questão, as visões por vezes antagônicas entre o habitante do campo e o morador da cidade. Ainda que rapidamente, tentei abarcar esse enfoque dentro da literatura, onde foi observada a predominância da visão euclidiana – que, aliás, estava em consonância com uma visão mais geral do movimento sanitarista do período – do sertanejo alquebrado por conta da miséria e do péssimo estado de saúde em que se encontrava. Nesse sentido, fazia-se necessário sanear os sertões, domá-los, levar a ideia de “civilização” aos lugares mais recônditos. Tomando esse rumo, o presente trabalho tentou dar conta de entender parte da produção literária de um autor hoje desconhecido, e também ainda pouco discutido em meios acadêmicos, mas que, contudo, passou por relativo reconhecimento e popularidade nas primeiras décadas do século XX. Além disso, produziu obras ficcionais que perpetuaram ou endossaram visões sobre o Brasil, em cujas páginas se pode apreender um pouco mais dos debates e projetos de nação do período, que envolviam diferentes regiões do país, diferentes habitantes, e também diferentes alternativas para os problemas mais urgentes. 25

1 A MODERNIDADE CARIOCA, DA “ALMA ENCANTADORA” (E BOÊMIA) DAS RUAS AO ESPIRITUALISMO CATÓLICO

“A paisagem que me rodeia, não é mais inédita: conta-me a história comum da cidade e a longa elegia das dores que ela presenciou nos segmentos de vida que precederam e deram origem à minha.” (Lima Barreto).

A literatura produzida entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX está localizada pela crítica, de maneira geral, dentro do “Pré-modernismo”. Este termo está tensionado no período intervalar compreendido pelo desaparecimento da Geração de 1870 e pelo crepúsculo do Realismo, de um lado; e pela eclosão do movimento modernista em 1922, de outro. Compreenderia, sobretudo, uma produção literária conhecida por sua estagnação em termos temáticos e estéticos. Poucas obras teriam conseguido criar fissuras na consciência dominante, capazes de apreender as diferenças entre as várias regiões do país e destas com a cultura oficial24. No entanto, diversos estudos têm problematizado essa conceituação nos últimos anos. Para Sergio Miceli25, o termo “pré-modernista”, consolidado em nossa historiografia literária, e intimamente relacionado a uma visão específica de “modernismo”, constituiu um “recurso político” sob o qual se uniformizou diversas tendências e uma produção variada. Desta forma, cristalizou-se uma imagem de estagnação literária, de escritores deslocados de grandes causas políticas. Na contramão dessa imagem, Miceli recupera sua importância para o desenvolvimento da profissionalização do trabalho intelectual. Para o autor, o período foi fundamental para a expansão da atividade intelectual no país, ajudando na construção do campo tal como o conhecemos hoje. Do mesmo modo, discorre em outra obra:

Por força de uma série complexa de injunções atinentes ao poderosíssimo efeito de dominação simbólica exercido até bem pouco tempo atrás pelos competitivos “herdeiros” do movimento modernista, a maioria das leituras e

24 BOSI, Alfredo. Pré-modernismo e modernismo. In: ______. História concisa da literatura brasileira. 3ª ed, 13ª tiragem. São Paulo: Cultrix, 1989. p. 341-428. p. 345-346; 375. 25 MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Cia das Letras, 2001. 26

interpretações da história cultural contemporânea no país – Álvaro Lins, Otto Maria Carpeaux, Afrânio Coutinho, Fernando de Azevedo, Antonio Candido, Wilson Martins, os concretistas, cada uma dessas vertentes instituindo hierarquias distintas em seu panteão de “admirações” e “recusas” – mostrou-se inescapavelmente impregnada dos princípios e dogmas do cânon literário, podendo assim estender seus procedimentos aos demais campos de expressão artística, as artes plásticas em particular.26

Criou-se então um paradigma, retomado e consolidado ao longo das décadas de 1940 a 1960 por diversos intelectuais. Vale ressaltar que os próprios modernistas auxiliaram nessa construção, visto que se entendiam enquanto vanguarda, percebido tanto nas palavras de Mário de Andrade, para o qual “São Paulo tocou o sino”, quanto nas de Menotti de Picchia, de orientação estética diversa, que falava em uma “bandeira futurista” (e paulista) no país27. Nesse sentido, para Sergio Miceli construiu-se uma espécie de narrativa mítica, em que o modernismo aparece como marco que delimitaria uma ruptura não só estética, mas cujos efeitos abrangeriam outras esferas, como as instituições e até mesmo a política. Por estar “atados em demasia à noção de ‘vanguarda’ (vanguardas estéticas, vanguardas revolucionárias, vanguarda do pensamento nacional ou consciência do ‘nacional-popular’”28, boa parte da crítica e da história literária endossou esse modelo interpretativo. Nesse sentido, aceitar o marco implica “se submeter a um padrão local – o Modernismo paulista – para avaliar um fenômeno nacional: a literatura moderna”29. Seguindo lógica similar, Monica Pimenta Velloso30 problematiza a conceituação, na medida em que ela delimita os diversos movimentos em função de um evento (posterior) elegido como chave para o entendimento de outros períodos (anteriores). Velloso entende o modernismo como um processo contínuo, que vai desencadeando outros movimentos através dos tempos. E nesse sentido, propõe um novo olhar para seu significado, entendido em seus termos de simultaneidade, pluralidade e continuidade. Como afirma Anderson Pires da Silva, o desafio para não

26 MICELI, Sergio. Imagens negociadas: retratos da elite brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 15. 27 Citado em GOMES, 1999, páginas 7 e 48, respectivamente. 28 HARDMAN, Francisco Foot. Antigos modernistas. In: NOVAIS, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 289-305. p. 290. 29 SILVA, Anderson Pires da. Mário e Oswald: uma história privada do Modernismo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 15. 30 VELLOSO, Monica Pimenta. O modernismo e a questão nacional. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Orgs). O Brasil Republicano. O tempo do liberalismo excludente: da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 353-386. 27 repetir os velhos chavões consiste em deslocalizar o movimento31. Se for considerado em sua problematização da realidade, a “Geração de 1870”32 também pode ser considerada modernista. Sinais de uma modernidade já vinham despontando. Até mesmo o resgate do folclore e dos contos populares, tão caro a modernistas como Mário de Andrade, viu em Silvio Romero um dos primeiros expoentes. Assim sendo, podemos questionar a utilização de termos como “pré(s)” e “vazio”, que acabam por reforçar a data de 1922 como marco. Não se trata, nesse sentido, de negar sua influência, mas sim de relativizá-la. Para Anderson Silva, as primeiras historiografias sobre o movimento, como Contribuição à história do modernismo, de Alceu Amoroso Lima (1939), ajudaram a cristalizar a literatura paulista (e em especial 1922), como marco da literatura moderna brasileira. Foi esse autor que cunhou o termo “pré-modernismo”, acabando por construir as “divisas oficiais” do modernismo33. Embora fosse utilizado com o intuito de inclusão – de determinados autores no rol dos “grandes” – o termo acabou por ser excludente. Deste modo, Monica Velloso traça um percurso que recupera ações paralelas, mas de igual importância: a fundação de diversas revistas literárias em estados como Minas Gerais, o primeiro Congresso Regionalista do Nordeste, organizado por Gilberto Freyre em 1926 (ambos, portanto, fora do eixo cultural Rio-São Paulo), e a importância da cultura boêmia da então capital federal, bem como das charges e caricaturas das revistas ilustradas, que se utilizavam do humor para discutir os problemas sociais e políticos. E assim, reinterpreta-se o termo “modernista”, aqui reconsiderado não só em seu caráter de movimento artístico, mas em sua relação com a dinâmica do cotidiano na urbe, construída também em seus espaços informais e diversidade de expressões. No mesmo sentido, afirma Angela de Castro Gomes: o modernismo pode ser entendido como “um movimento de idéias renovadoras que estabelece fortes conexões entre arte e política, e que é caracterizado por uma grande

31 SILVA, Anderson, 2009, p. 18. 32 A Geração de 1870, conjunto heterogêneo de intelectuais, ficou conhecida por sua atuação pela abolição da escravidão e no movimento republicano no Brasil. Dentre os participantes, destacam- se os nomes de Tobias Barreto, Graça Aranha, Silvio Romero, Capistrano de Abreu e Euclides da Cunha. A ela retornarei posteriormente. 33 SILVA, Anderson, op. cit., p. 16. 28 heterogeneidade”34. Por isso, a caracterização do período compreendido entre as últimas décadas do século XIX e 1922 não como um intervalo à espera de renovação, mas por uma “cultura do modernismo”35, parte do mesmo processo de resposta às transformações que estavam ocorrendo, marcado por intensos debates. Para Francisco Foot Hardman, “entre projeções futuristas e revalorizações do passado, escritores do Brasil na passagem do século tentavam fazer o que o modernismo, depois, adotaria como programa: redescobrir o país”36. De diferentes (e por vezes conflitantes) maneiras, os literatos, jornalistas e cronistas que atuaram no período problematizaram as questões de seu tempo, tentando entender um país em construção, convulsionado pela abolição da escravatura, pela mudança de regime político e transformado diariamente pelo advento das novidades tecnológicas e científicas nas grandes cidades. Seguindo esse raciocínio, José Aderaldo Castello37 afirma, ainda, que uma melhor compreensão do Modernismo enquanto movimento estabelecido (com esta denominação) a partir de 1922 deve considerar as contribuições das duas primeiras décadas do século XX como um todo. Para o autor, trata-se de um período amplo e complexo, que deve ser reavaliado em suas nuances, rupturas e persistências com os diversos movimentos literários que o antecederam. Devemos repensar o início do século XX literário não perdendo o foco do processo de assimilação e continuação de soluções do final do século XIX, bem como no entrecruzamento de diversas e por vezes contraditórias tendências. Nesse complexo processo, devem ser considerados que há elementos dominantes, residuais e emergentes que se relacionam dentro do desenvolvimento cultural de maneira complementar, e por vezes também em oposição38.

34 GOMES, Angela de Castro. Essa gente do Rio...: os intelectuais cariocas e o modernismo. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, p. 62-77, 1993. p. 63. 35 VELLOSO, 2003, p. 360. 36 HARDMAN, 1992, p. 289. 37 CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. Vol. II. 38 Esses conceitos se referem a estágios ou variações de todo o processo cultural hegemônico. O dominante, ou efetivo, compreende o hegemônico. Por sua vez, o residual é um elemento formado efetivamente no passado, contudo ainda em atividade dentro do processo cultural. Diferente, portanto, do “arcaico”, reconhecido como um elemento do passado observável e por vezes até revivido, mas como elemento já ultrapassado. Para Raymond Williams, “por lo tanto, ciertas experiencias, significados y valores que no pueden ser expresados o sustancialmente verificados en términos de la cultura dominante, son, no obstante, vividos y praticados sobre la base de un remanente – cultural tanto como social – de alguna formación o institución social y cultural anterior.” (2000, p. 144). Esses elementos são significativos tanto pelo que falam de si mesmo, 29

Dito isso, propõe-se uma passagem por outras datas que também podem ser consideradas marcos do modernismo brasileiro, para então partir-se para reflexão das peculiaridades que marcaram esse contexto que antecedeu a Semana de Arte Moderna, especialmente na cidade do Rio de Janeiro.

1.1 MARCOS DE UMA CULTURA DO MODERNISMO NO BRASIL

Retomando a discussão feita por José Castello, proponho a utilização das balizas temporais propostas pelo autor, que auxiliam o entendimento do modernismo como um processo histórico: o interregno entre 1889/1902 e 1922. Além disso, insiro outras balizas, pautadas pela discussão feita por Monica Pimenta Velloso. A primeira delas se refere à Geração de 1870, considerada moderna por problematizar as questões de seu tempo de maneira inédita. Como parte da dinâmica econômica internacional, a Guerra do Paraguai eclodiu em 1865, envolvendo Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai, e perdurando por cinco anos. O endividamento e o descontentamento provocados pela guerra auxiliaram na derrocada da monarquia, servindo o fim do conflito como “verdadeiro divisor de águas entre o tempo antigo e o moderno”39. Hardman também localiza o movimento como um momento original de ideias e reivindicações que renovaram o cenário intelectual brasileiro, e pode ser considerado, portanto, moderno40. Ainda em 1870, lançou-se o Manifesto Republicano (ou Manifesto de 1870). O movimento teve como desdobramento o surgimento de uma nova elite de intelectuais, artistas, militares e políticos que propunham a modernização das estruturas econômicas e políticas vigentes. Esse grupo tinha como inspiração as premissas científicas oriundas da Europa e dos Estados Unidos. Através da produção e crítica literária, o grupo proclamava a necessidade da abolição da escravidão, a opção pelo republicanismo, e a abertura da economia aos capitais estrangeiros. Guardava similaridades com seu homônimo português:

quanto pelo que indicam do dominante; em alguns casos, o elemento residual pode se relacionar alternativamente ou mesmo em oposição ao hegemônico. Já o elemento emergente refere-se às novas práticas, novos valores, novos significados e novas relações criadas. Dada a dificuldade de distinção entre os elementos que constituem verdadeiramente uma nova fase da cultura dominante, e elementos que a ela se contrapõe, o autor prefere o termo “emergente” antes que simplesmente “novo”. Vale ressaltar, ainda, que as definições de emergente e residual só podem ser produzidas a partir de sua relação com o dominante. 39 VELLOSO, 2003, p. 354. 40 HARDMAN, op. cit., p. 290-291. 30

Tratava-se do mesmo movimento auto-analítico, fundamento e estratégia de um projeto político ambicioso – (re) criar a nação –, cujo conteúdo crítico dirigia-se ao anacrônico sistema monárquico, aos modelos arcaicos de pensamento e de ensino e à produção e consumo de uma literatura, a romântica, considerada sentimental e escapista. Tanto a Geração de 1870 portuguesa, quanto a brasileira, indicavam a urgência em promover a superação dessas condições político-culturais para que se produzisse a renovação de suas respectivas sociedades, libertando-as da decadência, ou do atraso.41

Essa geração se inspirava nas correntes de pensamento denominadas cientificistas. A avultada industrialização, somada a um período de crescimento econômico geral, possibilitou o otimismo no progresso tecnológico e científico. Inaugurava-se, então, a era da sciencia: o “triunfo de uma certa modernidade que não podia esperar”, marcada pela velocidade, pelo desbravamento de fronteiras, pela superação de barreiras – as certezas da Belle Époque que marcavam presença.42 De fato, essas certezas só seriam solapadas pelas destruições e mortes ocorridas durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) 43. Datam desse contexto o surgimento dessas novas correntes de pensamento, denominadas cientificistas, como o darwinismo social e o positivismo francês. A influência do impacto do desenvolvimento industrial e tecnológico nessas correntes era visível. Nesse ínterim, uma nova noção de tempo emerge, e com ela novas categorias para se pensar a sociedade:

41 MOTA, Maria Aparecida Rezende. A Geração de 1870 e a invenção simbólica do Brasil. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História – ANPUH, Natal, RN, 2013. Disponível em: Acesso: 06.maio.2016. p. 3. 42 COSTA, Angela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1890-1914: no tempo das certezas. São Paulo: Cia das Letras, 2002, p. 9. 43 De acordo com Eric Hobsbawn, a Primeira Guerra transformou completamente a organização mundial até então conhecida, a ponto do autor delinear seu início como o verdadeiro começo do “breve século XX”. Foi este o maior combate envolvendo um número significativo de nações já visto. No século XIX, a maior guerra em números e proporção havia sido a Guerra Civil Americana, uma guerra interna, entre 1961 e 1965. Entretanto, o século XX observaria em seu alvorecer o sangrento conflito que deu fim à Belle Époque e assinalou o colapso da civilização ocidental em suas bases capitalista, liberal, burguesa e exultante da ciência. A guerra foi também o primeiro conflito em que os produtos do desenvolvimento científico foram utilizados exclusivamente para destruir e matar, caso da metralhadora, do submarino, do tanque de guerra, dos projéteis explosivos, o gás mostarda e tantas outras invenções de espantoso poder destrutivo. Mesmo seu fim, em 1918, não significou a paz. Diversamente, trouxe a desestruturação de diversos países, que se viram às voltas com revoltas, crises financeiras e profundas transformações políticas, cujos desencadeamentos culminariam com a Crise econômica de 1929 e o advento da Segunda Guerra Mundial. Cf.: HOBSBAWN, Eric. A era da catástrofe. In: ______. A era dos extremos: 1914-1991; trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. pp. 29-222. 31

Uniforme, rigidamente controlado, cada vez mais veloz e pautado pela eficiência, o tempo é visto como um continuum entre dois pólos que especificam seu ponto de partida e seu telos, situado no pólo que assinala a sempre renovada conquista do progresso e da civilização, marcado com um sinal de positividade e oposto ao pólo do atraso e da barbárie, negativado.44

Através dessas duas medidas, mover-se-iam as nações, que em maior ou menor escala tentariam encaixar sua imagem à de “modernas”, na medida em que conseguissem alcançar as descobertas e conquistas da época. Exemplo claro desse período são as Exposições Universais, que desde meados do século XIX serviam de espaço de exposição das novidades tecnológicas e descobertas científicas, com pompa e circunstância. A visão predominante de nacionalidade que estava emergindo era, então, pessimista, pois considerava nossa mestiçagem como prejudicial e razão de nosso “atraso cultural”. Para esses intelectuais, isso só viria a ser modificado através do progresso científico, que integraria o país na marcha evolutiva internacional. Nesse sentido, caberia às elites intelectuais o papel de condução do povo para um novo momento histórico, utilizando-se do instrumental científico para tal. Essa linha de pensamento demonstra a raiz autoritária de nossa política. Contudo, embora ainda calcada por essa visão, o que mobilizava esses intelectuais era a busca pela identidade múltipla de nossa nacionalidade, configurando já um determinado avanço de interpretação do Brasil para a época45. O ano de 1900 é também emblemático para essa reflexão sobre o moderno. Nesse ano, comemorou-se o IV Centenário do Descobrimento do Brasil, favorecendo uma onda patriótica que varreu o país. Nesse ínterim, surge a publicação A pátria, de Alfredo Varella, e o livro Por que me ufano de meu país, de Afonso Celso, ganha uma segunda edição (1901). Contudo, embora comemorada com pompa e euforia, a data trouxe também a reflexão sobre nossos rumos políticos. O pretexto para a comemoração parece ter explicitado nosso “atraso” frente à Europa; havia de fato uma angústia, um ensejo em ser moderno – embora

44 NEVES, Margarida de Souza. Os cenários da República na virada do século XIX para o XX. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília (Org.) O Brasil Republicano: o tempo do liberalismo excludente: da proclamação da república à revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. p. 23. 45 VELLOSO, 2003, p. 356. 32 essa necessidade não apresentasse, então, um sentido muito definido46. E parte significativa dos intelectuais permanecia reticente ante uma república incapaz de verdadeiras transformações na sociedade. Por sua vez, o ano de 1902 também é eleito por José Castello como marco, por seu significado essencialmente intelectual. Datam desse ano as publicações de Os sertões, de Euclides da Cunha, e Canaã, de Graça Aranha; bem como a edição revista e aumentada de História da literatura brasileira, de Silvio Romero. Para o autor,

Essas três obras, ao mesmo tempo fim-e-princípio-de-século, traduzem extraordinário esforço de penetração crítica na realidade brasileira, com base na formação do Brasil. Elas nos propõem, com grande repercussão, uma revisão autocrítica, alertando igualmente a criação literária para o compromisso nacionalista ou “regionalista”.47

Em sua narrativa, Canaã discute as questões relativas à imigração alemã no Espírito Santo. Trabalhando com as dificuldades de convivência entre imigrantes europeus e os demais grupos étnicos brasileiros, Graça Aranha apresenta as principais vertentes de pensamento que norteavam o processo de imigração no país, indissociáveis das interpretações de nação que estavam sendo desenvolvidas: a ideia de superioridade do elemento branco europeu versus a integração interracial. Sua abordagem mostra a violência e as contradições do processo. Seu autor, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, também acabou sendo um dos principais articuladores da Semana de Arte Moderna de 1922. Já Euclides da Cunha, apesar de ser conhecido militante da causa republicana, acreditava que o advento da República por si só não modificaria a situação do país. Sua atuação como jornalista na Guerra de Canudos, de cujos escritos derivam Os sertões, aguça essa visão e o faz perceber as contradições do regime. Esta obra conseguiu expressar os conflitos, as contradições e os principais problemas da implantação da República e de um modelo de Belle Époque importado de fora e introjetado no país, à revelia de sua estrutura agrária, das condições de vida precárias da maior parte de sua população, das diferenças culturais. De fato, o conflito entre sertanejos do sertão baiano e o Exército foi um massacre sem precedentes, e exemplifica essa tentativa de fazer com que o país

46 LAHUERTA, 1997, p. 96. 47 CASTELLO, 2004, p. 16. 33

“entrasse no rol das nações civilizadas e progressistas” a todo custo48. As palavras do próprio Euclides dão ideia do espírito da época: “estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos”49. Contudo, a diferença essencial entre os países “civilizados” e os periféricos estava na necessidade de manutenção destes últimos em sua condição, para a reprodução exponencial da riqueza e da hegemonia dos primeiros, através da exploração50. Para além desses marcos, podemos acrescentar ainda outras produções e autores que podem ser considerados modernos. Lima Barreto, negro de origem humilde, produziu obras cuja escrita aprofundou o debate sobre os problemas sociais, trazendo o estigma da cor, sentido em toda sua vida. Decepcionado com o regime republicano, o escritor via na nova configuração um sistema mais injusto até do que os acordos e privilégios do paternalismo imperial. Seus contos e crônicas problematizaram a vida nos subúrbios cariocas, os tipos à margem da sociedade, as contradições da capital federal. Marginalizado, sofrendo o preconceito de sua condição social, o autor teria incorporado a condição de boêmio em uma atitude de não conformismo51. Nicolau Sevcenko52, ao analisar comparativamente as obras e trajetórias de Euclides da Cunha e Lima Barreto, situa os dois dentro de uma camada ativa da intelectualidade do início do XX, participante e questionadora. Os autores acabaram por exprimir, na criação literária e em sua atuação na imprensa, as tensões, angústias e desejos relativos aos problemas de seu tempo. Por terem desenvolvido uma consciência apurada dos conflitos e tensões, suas obras problematizaram as questões políticas, sociais e culturais mais importantes da Primeira República. Apesar das diferenças entre os autores, acabam se aproximando no que concerne à crítica ao modo de condução do país; e há mesmo uma identificação de ambos com o homem humilde, de vida errante, levado pelo sistema ao alcoolismo, à loucura, à procura de socorro por vias religiosas heterodoxas.

48 NEVES, 2008, p. 23-24. 49 CUNHA, Euclides da. Os sertões. São Paulo: Três, 1984. Online. Disponível em: Acesso: 15.jan.2017. 50 NEVES, loc. cit. 51 BROCA, Brito. A vida literária no Brasil - 1900; introdução de Francisco de Assis Barbosa. 3ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1975. p. 10. 52 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. Editora Brasiliense, 1983.

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Refletindo sobre os antagonismos entre a vida litorânea e a do sertão, e buscando um representante típico do brasileiro, Euclides da Cunha e Lima Barreto construíram retratos do país que influenciaram a formação de nossa identidade nacional. Para eles, a literatura não deveria ser mera produção estética; antes, uma produção que dialogasse com as tensões do período, levando a reflexões sociais e políticas. Nesse sentido, a própria reelaboração literária dos diversos tipos brasileiros, o desvelamento de seus problemas e conflitos através da criação seria transformador, revelando a missão do escritor enquanto observador atento de seu tempo. Além desses autores, uma produção cultural variada, pautada pela irreverência, humor e ironia, e calcada na exploração das novas formas da cultura impressa emergente, como a caricatura, soube fazer da criação artística um meio de discutir os problemas de seu tempo. Essa produção está sediada no Rio de Janeiro, cidade que abriga as contradições do processo de modernização brasileiro, e por sua condição de capital federal, é indissociável da história de nossa primeira república. Como ressalta Margarida de Souza Neves,

[...] é preciso lembrar o papel simbólico que o Rio assume como cidade- capital: reformada, iluminada, saneada e modernizada, a capital permitia aos estrangeiros que nela aportavam, aos que circulavam pelas calçadas da grande Avenida vestidos pelo último figurino parisiense e aos líderes da República acreditar que o Brasil – nela metonimizado – havia finalmente ingressado na era do progresso e da civilização. Para o país como um todo, os estados – para utilizar a fórmula de Campos Sales –, a capital modernizada antecipava um futuro que imaginavam que um dia seria seu.53

Contudo, a crítica e a historiografia literárias posteriores cristalizaram São Paulo como o epicentro do modernismo, cuja afirmação se sobreleva em detrimento de outras cidades, em especial o Rio de Janeiro. Para esses grupos, o Rio representava, nesse aspecto, o “universo luso-brasileiro tradicional, rural e agrário”; portanto, não moderno54. Já a capital paulista seria o coração da economia cafeeira e ponto a partir do qual o país se industrializou e se modernizou. Os textos publicados nos grandes jornais (como o Correio Paulistano) por autores como Plínio Salgado, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia, nas décadas de 1910 e 1920, já

53 NEVES, 2008, p. 40-41. 54 SILVA, Anderson, 2009, p. 17. 35 falavam sobre a incapacidade do Rio de ser capital da República. Os motivos apontados são diversos, desde climáticos a culturais.

[...] Todas essas deficiências atribuídas à cidade do Rio de Janeiro podiam ser resumidas em uma só: a falta de seriedade do carioca. Argumentava-se que, de modo geral, os cariocas não levavam nada a sério, tendendo a resolver tudo na base da piada, da chacota e do riso.55

A argumentação desses intelectuais que posteriormente comporiam o grupo Verde-amarelo teria acabado por estabelecer determinados clichês que ainda hoje imperam em nosso imaginário. Neles, a cidade de São Paulo é associada à seriedade, ao espírito empreendedor, ao trabalho e à ordem, enquanto o Rio é relacionado ao humor, às festas, à desordem e à malandragem. Apesar de detentores de interpretações antagônicas em relação a esse grupo, pode-se refletir até que ponto esse discurso sobre a capital não acabou por se disseminar também nas acepções dos modernistas do grupo antropofágico. Por outro lado, a recusa do viés humorístico perpetuado por parte do movimento modernista, enquanto parte integrante dessa cultura do modernismo, também foi efetuada por alguns intelectuais do movimento espiritualista católico56 a partir de 1930. Deste modo, visões como a história satírica do Brasil e os poemas- piadas de Oswald foram condenados, bem como o espírito dionisíaco que imperou na década de 1920. Ao invés disso, esses intelectuais enfatizavam o lado “sério” do movimento, valorizando elementos tidos como expressão do sublime e do eterno, como a poesia57.

55 VELLOSO, 1996, p. 13. 56 Como reação à república, que tendia a separar Igreja e Estado, e à crescente “descristianização” da intelectualidade, surgiu na década de 1920 um grupo organizado em torno da ideia de restaurar os valores tidos como “espiritualistas” na produção literária e cultural. Guardavam críticas ao positivismo, ao socialismo e à democracia então emergentes. Marcado por conversões, vocações religiosas e apostolados, o movimento sensibilizou parcela considerável das camadas intelectuais do período. Imersos no contexto de recrudescimento do nacionalismo no período de guerra, o movimento também participou dos debates sobre a identidade nacional, relacionando-a ao passado católico, à tradição, em suma, a uma construção nacional que considerasse os valores espirituais. Dentre os nomes de destaque do movimento, se encontram o jornalista Jackson de Figueiredo e o crítico literário Alceu Amoroso Lima, concentrados em torno do Centro D. Vital, fundado em 1922, e da publicação A Ordem, datada do ano anterior. Essas ideias também tiveram influência nos escritores relacionados ao Grupo de Festa, movimento que propunha uma arte de cunho espiritualista, uma reação ao materialismo da sociedade industrial, e também reação ao socialismo e ao liberalismo. Cf. IRSCHILINGER, Fausto Alencar. O “renascimento” da Igreja Católica no Brasil: ideários de uma geração (1920-1940). Anais do XIV Encontro Regional de História – 1964-2014: 50 anos de golpe militar no Brasil, Campo Mourão, p. 1138-1161, 2014. Disponível em: Acesso: 03.jun.2017. 57 VELLOSO, 1996, p. 90. 36

Nesse sentido, vale ressaltar que essa construção não é uma questão de oposição geográfica e econômica entre dois centros; embora perpasse esses fatores, a desvalorização do humor enquanto constituinte do modernismo brasileiro também está relacionada a um debate mais amplo, de concepções específicas de nacionalidade. Pode-se perceber o mesmo na diferença de discurso entre Euclides da Cunha, para quem São Paulo representaria a “sede da civilização mameluca dos bandeirantes”, e Lima Barreto, que achava que a capital paulista era a imagem da opressão no Brasil58 – ambos cariocas. Ou, nas palavras de Angela de Castro Gomes, “é preciso situar tais disputas como um sólido indicador da competição entre projetos de modernidade com acentos estéticos e políticos distintos e não, como algumas vezes pode ocorrer, como um sinal de fúteis e estéreis bairrismos”59. Para Monica Velloso, a efetivação do modernismo paulista como marco também está relacionada com a própria dinâmica do modernismo carioca, que não se desenvolveu organizado em torno de um movimento. Desde a constituição da República – e principalmente desde o governo de Floriano Peixoto, marcado pelo autoritarismo –, uma parcela expressiva da intelectualidade se encontrava à margem do processo de modernização; portanto, a produção cultural do período deve ser compreendida a partir dessa característica específica de sua inserção na sociedade. Nesse sentido, não teria sido produzido no Rio uma reestruturação significativa da sociedade, na medida em que esta se mostrou incapaz de proceder à incorporação dos intelectuais e das camadas populares através da construção de canais eficientes de expressão. Recusando as versões “oficiais” da cidade urbanizada e remodelada, esses intelectuais se voltaram para as ruas, para o submundo, para as camadas populares, tentando captar um padrão alternativo de sociabilidade. A rua vira então o espaço por excelência onde as relações se desenvolvem, através da qual os canais de participação e organização popular são construídos: é o local do trabalho ambulante, do convívio social, do lazer, da ajuda mútua. Onde a produção cultural é fomentada através do contato e da identificação entre os intelectuais e as camadas marginalizadas da sociedade, conectando a cultura dita erudita e a popular.

58 SEVCENKO, op. cit., p. 188-205. 59 GOMES, 1999, p. 25. 37

João do Rio, Lima Barreto, Orestes Barbosa60 e Benjamin Costallat61 buscaram nas agruras do cotidiano e nos tipos anônimos das ruas o material para textos.

É patente nesses autores a idéia de se pensar a cidade e, por extensão, o próprio país através de suas ruas. Estas se apresentam como espaço pleno de significado, gerador de formas culturais inéditas, revelando a existência de uma população que se mantinha desconhecida aos olhos da República modernizadora. O submundo, a marginalidade, a boemia e as ruas constituem espaço expressivo para se pensar a modernidade brasileira, notadamente a do Rio, onde a exclusão social seria vivenciada de forma mais aguda.62

Nesse ínterim, os mesmos intelectuais que vão ao encontro dos locais alternativos de sociabilização como fonte de inspiração, são os que renegam a ideia de um movimento literário organizado, dando o tom fragmentado do modernismo carioca. Para Velloso, isso se deveu provavelmente pela contraposição a uma imagem de literatura institucionalizada, que remetia à oficialidade e à burocracia – cuja instância máxima era representada pela Academia Brasileira de Letras e seus membros, sediada na cidade do Rio de Janeiro. O principal combate travado pelos modernistas paulistas foi, inclusive, contra tudo o que a ABL representava. A fundação da Academia, em 189763, iniciou um processo de transformação da imagem do escritor, profissionalizando-a, tornando-a austera e burguesa, padronizando-a. De acordo com Maurício Silva, a fundação da ABL compreendia um

60 Orestes Dias Barbosa (1893-1966) foi um poeta, compositor e jornalista carioca. Desde cedo se envolveu com a escrita e a música popular, mantendo contato com Clodoaldo de Moraes, pai de Vinicius de Moraes, participando de concursos literários de revistas e trabalhando como revisor desde os 14 anos. Escreveu para os jornais Diário de Notícias, Gazeta de Notícias, O Dia, O Globo, O Século, A Folha, entre outros. Suas crônicas irreverentes e sua oposição ao governo o levaram para a prisão várias vezes. Suas experiências no cárcere o levaram a publicar o livro de crônicas Na prisão, em 1921. Apesar disso, Orestes Barbosa circulava entre os meios jornalísticos, literários e musicais, e continuou sua produção e suas críticas. Um de seus textos teria inspirado a canção “Não tem tradução”, de Noel Rosa. Além disso, o poeta manteve uma coluna radiofônica no jornal “A manhã”, durante a década de 1920. Fonte: . Acesso: 03.jan.2018. 61 Benjamin Delgado de Carvalho Costallat (1897-1961) atuou como jornalista e escritor no Rio de Janeiro. Foi colaborador dos jornais Gazeta de Notícias e Jornal do Brasil. Em contato com a obra de João do Rio, passou a escrever textos sobre o submundo carioca, presente influência em seu livro Mademoiselle Cinema, censurado por ser considerado impróprio. Chegou a fundar, em 1928, a editora Costallat & Miccolis, publicando livros de grande apelo popular, e autores como Ribeiro Couto, Patrocínio Filho, Antonio Celestino e o próprio Orestes Barbosa abordando temáticas polêmicas, como violência e sexo. Fonte: . Acesso: 03.jan.2018. 62 VELLOSO, 1996, op. cit., p. 29. 63Angela de Castro Gomes (1999) chama a atenção para as disputas em torno da data de fundação da ABL: 15/10/1896, ou 20/07/1897. Segundo a autora, o centenário da instituição foi comemorado em 1997; portanto, segui sua indicação de data. 38 projeto de valorização da profissão literária e institucionalização de determinados princípios estéticos, incorporados por diversos autores, mais no plano das sociabilidades do que na literatura64. “Sob o signo de Machado de Assis, a prova de compostura se tornara imprescindível para a admissão no novo grêmio, que desde o início se revestira de uma dignidade oficial incompatível com os desmandos da boêmia”65. Vale ressaltar, ainda, que essa tentativa de homogeneidade se dava de maneira não-declarada, através da propagação de certos padrões éticos e estéticos, da tentativa de manutenção do status quo e da predominância sobre os meios de produção, publicação e divulgação de obras. De qualquer modo, agremiações como a ABL forneceram aos escritores as condições necessárias para o fortalecimento de sua posição e a divulgação de suas obras, bem como para sua inserção na imprensa e nas esferas administrativas do Estado. Além disso, os academicismos fomentaram a tomada de consciência dos intelectuais, criando as bases de atuação destes na sociedade e o amadurecimento de nossa literatura. Contudo, àqueles que não conseguissem se encaixar nessa imagem, só restava a marginalidade literária. Lima Barreto e Bernardino Lopes,66 por exemplo, até tentaram entrar para a Academia, mas logo desistiram, dada a incompatibilidade de seu ritmo de vida com a de um “imortal”. Emílio de Menezes67, por sua vez, foi mais insistente, tendo por fim sido eleito em 1914 – apenas depois do falecimento de Machado de Assis, que sempre se colocara contra sua candidatura. Já outros

64 SILVA, Maurício. Tradição acadêmica no Brasil e a formação do homo academicus: o caso da Academia Brasileira de Letras. Estudos Ibero-Americanos, PUC-RS, Porto Alegre, n. 2, p. 188- 203, dez. 2008. Disponível em: . Acesso: 7 jul. 2016. 65 BROCA, 1975, p. 8. 66 Bernardino da Costa Lopes (1859-1916) foi um poeta carioca. Afrodescendente de pais livres, de origem humilde, conseguiu um emprego nos Correios, que manteria até o fim da vida. Apesar disso, viveu uma vida boêmia, e ficou conhecido por sua extravagância no modo de se vestir e se portar, chocando padrões sociais de sua época. Foi um dos articuladores do movimento simbolista brasileiro, formando um grupo coeso com Cruz e Souza, Emiliano Perneta e Oscar Rosas na capital federal. Publicou, entre outras obras, Sinhá Flor (1899), Val de Lírios (1900) e Plumário (1905), algumas de tendência parnasiana. Fonte: . Acesso: 04.jan.2018. 67 Emílio Nunes Correia de Menezes (1866-1918) foi um poeta e jornalista paranaense. Mudou-se aos dezoito anos para o Rio de Janeiro, fazendo diversos contatos e participando ativamente dos grupos boêmios. É autor de poemas e textos mordazes de crítica política e social, e conhecido como continuador da tradição de Gregório de Matos. Fontes: e . Acesso: 04.jan.2018. 39 escritores, construindo um discurso de contraponto à oficialidade acadêmica, passaram a hostilizar e satirizar o grupo na imprensa. A roda de boêmios que frequentava a Confeitaria Colombo acabou por criar uma paródia das sessões da Academia, denominada de “jornal falado” e que ocorria sobre as mesas, em meio ao burburinho local. Paula Ney68 teria chegado a criar uma Academia Livre de Letras; Alcindo Guanabara69, por sua vez, através de seu jornal A imprensa, lançou as bases para a Academia dos Novos, em 1911, inspirada pela Goncourt francesa. Segundo Brito Broca, os discursos dessa academia já falavam na necessidade de uma renovação das letras, “em termos um tanto semelhantes aos que iriam constituir mais tarde os slogans modernistas”70. Entre seus organizadores, Xavier Pinheiro, Carlos Maul71 e o então iniciante Agripino Grieco72. Ambas as academias não chegariam, de fato, a constituir-se além do papel e das primeiras votações. Uma Sociedade dos Homens de Letras também foi criada, em 1914, tendo como modelo a também francesa Société des Gens de Lettres. Seu principal objetivo seria defender os direitos autorais dos escritores. A iniciativa partiu de Oscar Lopes,

68 Francisco de Paula Ney (1858-1897) foi um poeta e jornalista cearense. Mudou-se para o Rio de Janeiro, a fim de estudar medicina, mas acabou se tornando jornalista. Na capital, fez amizade com nomes como José do Patrocínio, , e outros. Atuou pela abolição da escravidão, e participou ativamente dos grupos boêmios da cidade, além de ficar conhecido por sua capacidade de improvisação e seus discursos. Seu nome acabou sendo associado mais ao estilo de vida boêmio e às polêmicas do que à produção literária, esta pulverizada em publicações em periódicos diversos. Contudo, o poema mais conhecido do autor, “A Fortaleza”, fez com a cidade fosse até hoje conhecida como “loira desposada do sol”, em referência a um de seus versos. Fonte: . Acesso: 04.jan.2018. 69 Alcindo Guanabara (1865-1918) atuou como jornalista e político no Rio de Janeiro. Chegou a cursar medicina até o terceiro ano, abandonando então o curso para seguir como redator da Gazeta da Tarde, ao lado de nomes como Raul Pompéia, José do Patrocínio e Luís Murat. Atuou ativamente nos movimento de abolição da escravidão e em favor do regime republicano. Foi eleito deputado por duas vezes, no final do século XIX. Fonte: . Acesso: 04.jan.2018. 70 BROCA, 1975, p. 47. 71 Carlos Maul (1887-1974) atuou como jornalista e poeta no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX, colaborando com periódicos como O Dia, Correio da Manhã, Gazeta de Notícias e outros. Em sua carreira, chegou a publicar cerca de 60 livros de poesia. Fonte: . Acesso: 04.jan.2018. 72 Agripino Grieco (1888-1973) foi um crítico literário, escritor e ensaísta carioca. Lançou, entre outras publicações, o livro de poesias Ânforas (1910), os contos de Estátuas mutiladas (1913), e os estudos Evolução da Poesia Brasileira (1932) e Evolução da Prosa Brasileira, do ano seguinte. Juntamente com Gastão Cruls, fundou e dirigiu a Editora Ariel, responsável por uma das publicações mais importantes da década de 1930, o Boletim de Ariel. Ficou conhecido por fazer uma crítica literária ácida. Fonte: . Acesso: 04.jan.2018. 40 e conseguiu congregar Olavo Bilac73, Lima Barreto, Bastos Tigre74 e outros. A instituição durou até 1917; no entanto, poucas foram suas realizações concretas em termos proteção de propriedade intelectual. O maior problema dos escritores ainda continuava sendo o de encontrar quem os editasse a qualquer preço, e pouco valia discorrer sobre direitos, valores ou profissionalização, dadas as dificuldades materiais inerentes ao processo de publicação. A própria Academia, apesar de parecer um grupo homogêneo, agrupava em seu interior escritores de interesses distintos, e foi palco de discussões e contendas diversas. Muitas delas por conta de eleições de novos membros, como ocorreu com Lauro Müeller, engenheiro e político que não tinha nem livros publicados – fato que contrariava os estatutos da instituição. Ou do polêmico discurso de Silvio Romero, por ocasião da posse de Euclides da Cunha. Como estava presente o presidente Afonso Pena, Silvio Romero aproveitou para fazer um discurso de crítica política e social, denunciando a pobreza e a miséria do povo, criticando a política econômica do café e a violência da lógica oligárquica e coronelista75. Nesse ínterim, muitos escritores viveram uma relação conflituosa e por vezes ambígua com a oficialidade literária, tendo em vista também que tentavam criar canais alternativos de expressão, mas pautados pelo mesmo modelo implantado

73 Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918) foi um poeta, cronista e jornalista carioca. Ingressa aos quinze anos na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, incentivado pelo pai, também médico. Contudo, cedo seria colaborador de jornais da capital, deixando o curso incompleto. Acabou por conseguir o cargo de inspetor escolar da Escola Pedro II, profissão mantida concomitantemente às colaborações em periódicos diversos, como A Imprensa, Brasil- Portugal, Gazeta de Notícias, Diário de Notícias, entre outros. Muitos de seus sonetos seriam publicados pela primeira vez nesses periódicos. Participou da crítica antiflorianista através do jornal O combate, de 1891. Nessa situação política instável, Bilac ficou quatro meses encarcerado. Foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras, em 1897; apesar disso, estava diretamente envolvido com as rodas boêmias da capital. Em 1907, foi eleito “Príncipe dos poetas brasileiros”, em votação na revista Fon-Fon. A partir de 1917, participaria da campanha em prol do alistamento militar obrigatório, ajudando também a fundar a Liga de Defesa Nacional. De acordo com Luís Edmundo, Olavo Bilac também foi o pioneiro dos desastres de automóvel no Brasil: tentando aprender a dirigir, acabou dando com o carro no meio de uma árvore, na Tijuca, em 1897 Cf.: EDMUNDO, Luís. O Rio de Janeiro do meu tempo. Brasília: Senado Federal, 2001. Edições do Senado Federal, vol. 1. p. 66-67. Disponível em: Acesso: 17.fev.2017. 74 Manuel Bastos Tigre (1882-1957) foi um poeta, compositor e humorista pernambucano. Diplomado pela Escola Politécnica do Recife em 1906, viajou para o Ceará em trabalho das obras contra as secas. Em 1915, se mudaria para o Rio de Janeiro, atuando primeiramente como bibliotecário do Museu Nacional, e depois na Biblioteca Central da Universidade do Brasil. Colaborou com vários jornais humorísticos, criando quadras e versos, além de ter participado da criação de jingles e slogans para empresas. Fontes: e . Acesso: 04.jan.2018. 75 BROCA, op. cit., p. 66. 41 pela ABL. Essa questão se manteria ao longo dos anos posteriores. Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector nunca tiveram interesse em pleitear uma vaga; Graciliano Ramos e Mário Quintana não entraram – este último chegou a tentar por três vezes, não obtendo votos suficientes para ganhar a vaga. Quintana ainda seria indicado uma quarta vez, mas acabou por recusar a cadeira. Por outro lado, vale ressaltar que alguns escritores “imortais” circulavam também entre as rodas ditas boêmias76 – caso de Coelho Neto e Olavo Bilac77. Por fim, dentro dessa convivência contraditória com o establishment literário, preferiu-se o envolvimento com a cultura das ruas e a redescoberta do cotidiano da cidade ao invés de um movimento organizado. “Avessos à ideia de movimento, organização e projeto, os intelectuais frequentemente imaginaram outro espaço de instauração do moderno”78. Quem se organizou em um movimento em torno da ideia de “moderno”, pautado pela ruptura com o passado, foi o modernismo paulista, que tentava assim se vincular à “modernidade ocidental” das vanguardas europeias79. Questionar essa “tradição de ruptura” de que fala Silviano Santiago80, que transformou 1922 num marco, e compreender a data como um momento de confluência de ideias que já vinham sendo esboçadas dentro das novas configurações políticas, econômicas e sociais, é o que propõe Monica Velloso e o que adoto aqui. Como afirma a autora, não se trata de minimizar a importância da Semana da Arte Moderna e do movimento paulista, mas de entender outros aspectos do modernismo, tentando apreendê-lo como processo histórico. Nesse sentido, vale ressaltar, o Rio não era a única cidade que desenvolvia então uma cultura do modernismo – processo certamente acelerado por seu papel de capital federal –, tendo São Paulo também passado pelo mesmo processo antes de 1922, bem como possivelmente outras capitais.

76 As rodas boêmias tem sua inspiração no movimento artístico homônimo da França, surgido em meados do século XIX como um grupo à margem do romantismo. Impulsionado pelos escritos de Henri Murger, Scènes de la vie bohème, e de Balzac, Un prince de la bohème (1844), obras que retratavam os artistas sem grande fortuna, sem ocupações fixas, que viviam a agitada vida noturna de Paris, o movimento cresceu, ligando muitos artistas jovens ao estilo de vida boêmio. Nomes como o poeta Arthur Rimbaud e o artista plástico italiano Modgliani foram influenciados pela boemia, assim como diferentes produções, entre elas La bohème, ópera de Puccini de 1896, baseada no livro de Henri Murger. No Brasil, a boemia enquanto manifestação artística chegaria já tardiamente, segundo Brito Broca (1975), mas marcaria a vida cultural da capital federal, caracterizando-a pela ebriedade, desregramento, e aversão à oficialidade de muitos escritores. 77 GOMES, 1999, p. 36. 78 VELLOSO, 1996, p. 30. 79 SILVA, Anderson, 2009, p. 19. 80 Apud VELLOSO, 1996, p. 31. 42

Outro ponto ainda deve ser levantado sobre essa discussão: a característica irreverência teria impedido que o modernismo carioca fosse reconhecido por seu valor artístico e literário, embora tenha sido consagrada como uma tradição cultural. Relegou-se a importância da veia humorística, das charges e caricaturas como ferramentas de discussão dos problemas políticos e sociais. Destarte, um importante ponto de inflexão do debate sobre a construção da nacionalidade foi deixado de lado: o humor como uma das características (positiva ou negativa, dependendo do grupo a que a ela recorria) que seria inerente ao brasileiro. Uma tradição de irreverência e humor já pode ser delineada desde Gregório de Matos81, conhecido como o “Boca do Inferno”, por conta de suas sátiras e críticas contra a sociedade e as instituições da época, como a Igreja. Na virada do século XIX para o XX a veia humorística era uma das principais características da produção jornalística e de periódicos culturais da capital federal, que ganhava visibilidade e criava novas formas de entender a(s) identidade(s) nacional (is): a de um povo alegre, bem-humorado, que sabia tirar partido de seus problemas através do humor. Vale ressaltar, porém, que essa não era a única forma de interpretar a brasilidade; pelo contrário, a busca pela identidade nacional, processo constituído ao longo de várias décadas e que ainda se iniciava nesse momento, foi marcado por diferentes formas, ainda que abstratas, de ver o(s) brasileiro(s). Como contraponto, está a obra Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira, escrita entre 1926 e 1927 por Paulo Prado, um dos articuladores da Semana da Arte Moderna de 1922. Na obra, o autor explora os fatos de nossa história que teriam dado o tom melancólico característico do brasileiro, como a colonização e a escravidão. De todo modo, “por seu caráter de impacto, condensação de formas, ilustração do cotidiano e agilidade na comunicação, [o humor] apresenta-se como uma linguagem amplamente identificada com as demandas da modernidade”82. De fato, a ironia, o sarcasmo, os elementos relacionados ao humor também seriam uma das armas de combate mais utilizadas contra o academicismo pelos paulistas. Havia

81 Gregório de Matos Guerra (1636-1696) foi um advogado e poeta luso-brasileiro, nascido em Salvador. Estudou em Lisboa e em Coimbra, e em 1663 foi nomeado juiz de fora da região de Alcácer do Sal. Retornaria à colônia em 1679, época em que já era conhecido por seus poemas satíricos. Sua produção e suas críticas à instituição religiosa o levariam a ser denunciado para a Inquisição, fato que não resultou em maiores complicações. Por conta de novas inimizades feitas por seus poemas, em 1694 é deportado para Angola. Gregório de Matos ainda retornaria mais uma vez ao território brasileiro, se estabelecendo em Recife até o fim da vida. Fonte: Acesso: 04.jan.2018. 82 VELLOSO, 1996, p. 41. 43 um verdadeiro intercâmbio cultural entre os escritores das duas cidades, como se verá adiante. Essa irreverência também estava presente na modernidade paulista antes de 1922, como mostram as crônicas de Juó Bananere83 – que se utilizava de uma linguagem que tentava mimetizar a fala mesclada dos imigrantes italianos em São Paulo – e as caricaturas de Voltolino84. Por fim, mas não menos importante, vale relembrar que o movimento iniciado em 1922 foi financiado e estimulado por uma fração da burguesia rural, sem a qual talvez o alcance do movimento tivesse sido bem menor. A ligação entre os participantes mais ativos do modernismo e a velha política oligárquica transformou- se ao longo dos anos; contudo, foi recorrente. Oswald de Andrade, Plínio Salgado e Menotti Del Picchia trabalharam no órgão oficial do Partido Republicano Paulista (PRP), o Correio Paulistano. Outros jovens intelectuais, que buscavam trilhar uma carreira à margem do situacionismo, como Mário de Andrade, Sérgio Milliet, e os irmãos Prado, aderiram ao Partido Democrático (PD). Além disso, muitos atuaram também na administração pública do estado de São Paulo. Para Sergio Miceli, o envolvimento com intelectuais e projetos culturais seria também uma estratégia desses grupos oligárquicos na tentativa de manutenção de um poder já em declínio. Por sua vez, esses jovens acabaram esbarrando com as dificuldades da estrutura de funcionamento desses partidos – em especial o PRP, o que acabou frustrando as intenções reformistas. Não por acaso, vários deles acabaram por se envolver com as organizações mais radicais, à direita e à

83 Juó Bananere foi o pseudônimo utilizado por Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (1892-1933) em suas criações em que incorporava o linguajar dos numerosos imigrantes da colônia italiana de São Paulo. Formado em engenharia pela Escola Politécnica de São Paulo, Alexandre Machado acabou se tornando jornalista, onde tomou contato com a cultura imigrante da capital paulista. A partir de 1911, atuaria com seu pseudônimo no periódico literário e humorístico O pirralho, capitaneado por Oswald de Andrade. Além disso, publicou versos paródicos de famosos poemas de Gonçalves Dias, Camões, Olavo Bilac, além de paródias de Machado de Assis e La Fontaine. Fontes: e . Acesso: 04.jan.2018. 84 João Paulo Lemo Lemmi (1884-1926) foi um caricaturista e ilustrador paulista. Descendente de imigrantes italianos, Lemo Lemmi vai aos 12 anos para Pisa, na Itália, para completar seus estudos. De volta ao Brasil, passa a colaborar com seus desenhos para a imprensa, primeiro em periódicos italianos locais, e posteriormente para O Malho, entre 1908 e 1909. A partir de 1911, colaboraria também com O pirralho, tornando-se nacionalmente conhecido. O caricaturista colaboraria também com as revistas A Cigarra, D. Quixote, Revista do Brasil, entre outras. Deu vida gráfica ao pseudônimo Juó Bananere, e ainda ilustrou cartazes, anúncios e livros, como a primeira edição colorida de A menina do narizinho arrebitado (1920) e Marquês de Rabicó (1922), de Monteiro Lobato. Fonte: Acesso: 04.jan.2018. 44 esquerda, principalmente quando verificaram as dificuldades que o desmonte do antigo esquema traria para suas carreiras85. Esses fatos indicam uma contradição aparente, em diferença de outros locais, nos quais a arte moderna emergiu a partir do desenvolvimento da sociedade industrial. No Brasil, uma importante fração da burguesia industrial provinha da burguesia rural; de fato, muito do desenvolvimento industrial anterior à Primeira Guerra Mundial se deve aos capitais oriundos dessa área. “Educada na Europa, culturalmente refinada, adaptada aos padrões e aos estilos da vida moderna, não apenas podia aceitar a nova arte como, na verdade, necessitava dela.”86. Isso explicaria também o caráter “localista” que o modernismo ganha no país, apesar de sua roupagem cosmopolita, aliando o culto à modernidade internacional às práticas tradicionais brasileiras.

1.2 O MODERNISMO NO RIO DE JANEIRO

1.2.1 “O Rio civiliza-se”

O Rio vivia, no início do século XX, um processo de transformações sem precedentes. Nesse período, a cidade contava com um contingente de ex-escravos, libertos e seus descendentes, além do contingente de ex-escravos oriundos das fazendas de café do Vale do Paraíba, que haviam migrado em busca de trabalho assalariado. Extremamente pobre, essa população não foi absorvida pelo mercado – que preferia os imigrantes europeus –, encontrando então poucas oportunidades de trabalho formal e melhoria de vida, e tendo que viver em subúrbios e casarões antigos no centro. A grande concentração de pessoas fez com que as condições de vida no local se degradassem: os edifícios eram geralmente divididos em diversos cubículos, habitados por muitas pessoas, vivendo em parcas condições. “Para as autoridades, eles significavam uma ameaça permanente à ordem, à segurança e à moralidade públicas”87; por isso, as práticas próprias da cultura negra, como as danças, a

85 MICELI, 2001, p. 252. 86 LAFETÁ, João Luiz. 1930: a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974. p. 14. 87 SEVCENCKO, Nicolau. O prelúdio republicano, astúcias da ordem e ilusões do progresso. In: NOVAIS, Fernando; SEVCENKO, Nicolau (Orgs.). História da vida privada no Brasil. Vol. 3. 45 capoeira e os rituais religiosos foram perseguidas. Vale ressaltar, contudo, que essas práticas atraíam também indivíduos de diversas camadas sociais e diferentes etnias, se popularizando como parte de uma ambiência cultural carioca. Contudo, as perseguições não pararam por aí. O advento de novos padrões e hábitos fez com que as questões relativas à higiene, ao saneamento e à saúde pública ganhassem relevância. Como capital federal, principal porto marítimo do país e o terceiro em exportações do continente americano, o Rio era a vitrine brasileira, símbolo da nação emergente aos olhos do mundo. Era um momento de abertura ao capital estrangeiro e de vinda de imigrantes europeus; acreditava-se que a cidade deveria espelhar o que havia de mais moderno. No entanto, a cidade era frequentemente assolada por epidemias, e apresentava focos constantes de doenças como malária, tifo, febre amarela, tuberculose, entre outras. Essas prejudicavam geralmente as populações mais pobres, bem como os estrangeiros, que não detinham os anticorpos já desenvolvidos pelos habitantes locais. Em suas rememorações, Luís Edmundo comenta sobre a morte massiva de imigrantes estrangeiros, em sua maioria portugueses, que vinham para o Rio a trabalho.

Por vezes todo esse logradouro feio e imundo enche-se de homens que desembarcam, vindos das bandas do mar, sopesando canastras, baús, sacos, trouxas, pacotes, taramelando em voz alta, aos brados, em exclamações ruidosas largando por onde passam um cheiro ativo e amorrinhado que fica entre o do suor humano e o do alho cozido. São imigrantes que chegam. [...] Do bando enorme alguns sobram, ao fim do certo tempo. Caprichos da amarela, que faz a ronda sinistra da cidade. Os outros... Contar, nos cemitérios, por cruzes, os que tombam para sempre88.

Mesmo recebendo ofertas de trabalho “no campo”, onde se sabia, não havia a peste, preferiam a cidade grande, lugar de maiores oportunidades e chance de enriquecimento. Não muito tempo depois, segundo Edmundo, o obituário estamparia muitos nomes portugueses. “No Largo enorme, a massa de imigrantes espalha-se, palpita. Contam-se duzentos, trezentos, quatrocentos, quinhentos... Desses, quantos serão os poupados pela peste fatídica? Nem um quinto, talvez!”89.

República: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 7-37. p. 21. 88 EDMUNDO, 2001, p. 69-70. 89 Ibid., p. 72. 46

Além disso, o porto carioca apresentava uma estrutura obsoleta, que vinha sendo incapaz de dar conta do crescente volume de transações. Para solucionar esses problemas, o então presidente Rodrigues Alves encabeçou um plano levado a cabo entre 1903 e 1906. Técnicos das respectivas áreas foram nomeados: o médico sanitarista Oswaldo Cruz, responsável pelo saneamento; o engenheiro Lauro Müeller na reforma do porto; e o prefeito e engenheiro Francisco Pereira Passos, que ficaria a cargo da reurbanização. Segundo Sevcenko, aos três foi dado “poder ilimitado” para executar suas tarefas, sem ônus de futuras ações judiciais, criando uma situação ímpar na cidade90. Vistos como entrave ao fácil acesso ao porto, como problema de saúde pública e também como bloqueio ao livre trânsito, os casarões em que vivam as populações pobres, negras e mestiças foram então demolidos. Outras ações foram tomadas com o intuito de sanear e embelezar a cidade, como o escoamento das águas pluviais e a inauguração de escolas primárias, transformando o Rio em um imenso canteiro de obras. Essas mudanças foram saudadas pela grande imprensa como uma “Regeneração”, através da qual “o Rio civiliza-se” – slogan criado à época por Figueiredo Pimentel, colunista da Gazeta de Notícias. No entanto, o “bota-abaixo”91 implicou na destituição de diversas famílias de suas casas, que não receberam nenhum tipo de indenização. Marginalizadas do processo de modernização, só restou a esses grupos construir casebres nas áreas mais afastadas da cidade, onde não seriam perseguidos. Iniciava-se, então, o processo de constituição das favelas nos morros e encostas92. Várias críticas foram feitas à reforma, especialmente por parte dos intelectuais humoristas. Trovinhas satíricas surgiram contra a abertura da avenida central (atual Rio Branco), que causou forte polêmica entre os intelectuais, principalmente porque

90 SEVCENKO, 1998, p. 23. 91 O nome popular “bota-abaixo” se refere à demolição de diversos edifícios históricos no centro da cidade, utilizados como cortiços e moradias das camadas mais pobres da população. 92 O termo “favela” deriva dos desdobramentos da Guerra de Canudos. Ao final do conflito, em 1897, muitos dos soldados que regressaram ao Rio não encontraram nenhum tipo de apoio financeiro. Tiveram, então, que se instalar em precárias habitações provisórias erigidas no Morro da Previdência. Este passou a ser chamado então de “Morro da Favela”, devido à abundância da planta de mesmo nome, encontrada pelos soldados nas cercanias do arraial construído pelos conselheiristas. No início do século XX, o termo virou sinônimo de habitações improvisadas, geralmente em morros, áreas sem infraestrutura e abandonadas pelo poder público. Luís Edmundo já observava, em 1938: “no Rio de Janeiro, os que descem na escala da vida, vão morar para o alto” (2001, p. 121). 47 mudava o traçado original da Rua do Ouvidor, um de seus redutos93. Periódicos parodiaram a remodelação, e a revista Tagarela chegou a publicar um mapa da cidade, obra de Pederneiras94 que subvertia os nomes e as características dos locais principais. O Rio aparece então numa metáfora grotesca do regime republicano, em que os nomes das ruas são usados como alegoria para a corrupção e falcatruas do sistema político: as travessas dos Filantes (das notas falsas) e a dos Pistolões têm ligação direta com a Praça da República95. As populações expulsas pelas mudanças da reforma de Pereira Passos passaram a ocupar os “zungas”, cortiços e hotéis baratos, em condições subumanas. Por sua ameaça a um ideal de higiene, essas populações foram novamente alvo das autoridades: batalhões de vacinação foram recrutados, acompanhados de destacamento policial, para vacinar seus moradores. Se fossem constatados sinais de risco epidêmico – quase inevitável naquelas circunstâncias – os batalhões tinham autorização para expulsar os moradores e demolir os abrigos. Foi o estopim para a Revolta da Vacina, rebelião popular espontânea ocorrida no centro da cidade em novembro de 1904. As medidas de higiene impetradas por Oswaldo Cruz foram ironizadas e tratadas com humor na imprensa. Muitas foram as caricaturas em que se criticava o caráter autoritário da vacinação obrigatória. Em uma delas, o médico aparece na

93 A Rua do Ouvidor já teve várias denominações: Aleixo Manuel, Rua da Cruz, Rua do Gadelha, Beco dos Mercadores, e outras mais, seus nomes por vezes designando só um trecho da rua. Por volta de 1660, chamava-se Rua Homem da Costa, e teve seu nome alterado por conta do Juiz- Ouvidor Francisco Berquó da Silveira, que residiu na localidade, por volta de 1750. Em inícios do século XX, a Rua do Ouvidor havia se transformado em local de um comércio especializado de ourivesaria, produtos importados, boutiques de luxo, entre outros. Muito frequentada, foi denominada “o coração da cidade” (EDMUNDO, op. cit., p. 40), especialmente entre o Largo de S. Francisco e a Rua do Ourives. Além do variado comércio, a rua se destacava por conta dos cafés, livrarias, redações de jornais, escritórios, confeitarias e outros espaços de sociabilidade, frequentada por tipos variados, comerciantes, médicos, engenheiros, jornalistas, literatos – fato possibilitado por ser uma rua em que não transitavam veículos. 94 Raul Paranhos Pederneiras (1874-1953) foi um caricaturista, professor, pintor, escritor e dramaturgo carioca. Obteve sua formação inicial em Direito, e passou a atuar como caricaturista em 1898, no diário Mercúrio. No mesmo período, publicou os livros de poesia Com Licença e Versos Líricos. Colaborou com suas ilustrações e textos em diversos periódicos, entre eles O Tagarela, D. Quixote, Jornal do Brasil, O Malho, Correio Paulistano (SP), Eco do Sul (RS). Em 1924, publicou o álbum Cenas da vida carioca, uma reunião de suas caricaturas, que teria sua segunda parte publicada em 1934. Atuou também como professor de Anatomia Artística na Escola Nacional de Belas Artes e como professor de direito da antiga Universidade do Brasil, ambas na cidade do Rio de Janeiro. Fonte: . Acesso: 04.jan.2018. 95 VELLOSO, 1996, p. 113. 48 pena de Kalixto96 como Luís XIV, com vassoura e seringa como insígnias reais, seguido da legenda “Le Tas c’est moi!”. Do mesmo modo, tais medidas inspiraram modinhas populares, que expressavam a insatisfação popular. A revolta tomou tal proporção, que foi necessária a ação conjunta de forças da Guarda Nacional, dos bombeiros, do Exército e da Marinha, depois de mais de uma semana de combate. Finda a revolta, seguiu-se uma dura repressão, em que todo indivíduo que não conseguisse comprovar estar empregado e com residência fixa, acabava detido. Numa economia de empregos temporários e informais, o ato envolveu quase toda a população pobre. Muitos ainda foram levados para a Amazônia, literalmente despejados no meio da selva97. Por conseguinte, a instauração da modernidade na capital teria se dado de forma exclusivista, excluindo os acessos ao trabalho formal e melhores condições de vida à boa parte da população, especialmente a pobre, negra e mestiça, que vivia nas fronteiras entre a legalidade e a ilegalidade. A essa população só restou o exercício de uma cidadania paralela. Como discutiu José Murilo de Carvalho, o próprio processo de implantação da República teria ocorrido sem a participação do povo, que assistira a proclamação “bestializado”, segundo a afirmação de Aristides Lobo, sem saber exatamente o que estava acontecendo98. Para além da visão elitista de uma massa não ativa politicamente, o autor problematiza a questão, discutindo a peculiaridade da passagem da monarquia para o sistema republicano no Brasil, afirmando que “havia algo que não se encaixava”99 na expectativa da elite política e dos reformistas com relação à participação da população na vida pública. No entanto, essas massas não eram inativas em todos os casos; ao contrário, havia grande adesão em determinados acontecimentos, principalmente aqueles que não eram da esfera política, como as festas populares e

96 Calixto Cordeiro (1877-1957), que assinava como K. Lixto foi um ilustrador, pintor, litógrafo, caricaturista e professor carioca. Iniciou suas atividades artísticas em 1890, na Casa da Moeda, aprendendo técnicas de química, gravura e xilogravura. Em 1893, se tornaria professor assistente de gravura da instituição. Em 1895, entra para a Escola Nacional de Belas-Artes. Colaborou com diversos periódicos, entre eles Mercúrio, Kosmos, Gazeta de Notícias, D. Quixote, O Cruzeiro, além de ter ajudado a fundar, junto com Raul Pederneiras, a revista O Tagarela, em 1902, e assumir a direção artística da Fon-Fon, a partir de 1907. Foi o responsável por uma série de charges críticas à vacinação obrigatória impetrada por Oswaldo Cruz na capital federal. Fonte: . Acesso: 04.jan.2018. 97 SEVCENKO, 1998, p. 26. 98 CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados – o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia das Letras, 1987. p. 9. 99 Ibid., p. 140. 49 organizações diversas: o entrudo, as festas religiosas, as sociedades de auxílio mútuo, entre outros. Certamente, havia uma mobilização para ocasiões e métodos considerados ineficazes ou inadequados na visão dos reformistas. No entanto, não se tratava de um desinteresse total, e a mobilização popular contra a vacina obrigatória é exemplo emblemático nesse sentido. Como discute Carvalho, além do fator de desorganização e fragmentação da ação popular, havia uma visão do Estado como algo fora do controle, externo à vida cotidiana do cidadão comum. Neste caso, não se reivindicava uma participação efetiva na construção deste Estado, mas apenas protestava-se contra o que era considerado abuso ou distorção. O exercício da cidadania, quando feito, acontecia à margem do sistema político estabelecido. Episódios como o da Revolta da Vacina demonstram as vicissitudes do processo de implantação do regime republicano no país. A ordem aparecia, então, como precondição para a efetivação do progresso, como o lema positivista bordado em nossa bandeira já denunciava100. Nesse processo, foram desconsiderados os problemas sociais advindos de uma sociedade com passado colonial, recém-saída do escravismo, integrante de um território imenso, plural e ainda quase desconhecido. E o Rio de Janeiro, como capital federal, abarcava em seu âmago todas essas contradições: sua história é indissociável da história dos primeiros anos republicanos no Brasil.

1.2.2 A vida literária carioca: um caldo de cultura heterogêneo

De acordo com Monica Velloso, a modernidade trouxe em seu bojo uma profunda diversificação dos meios de comunicação, com a emergência de novas linguagens, como o cinema e a fotografia, colocando em cheque os valores tradicionais da literatura, do teatro e da pintura. Nasce então uma tensão entre a cultura chamada erudita, e a consumida mais amplamente. Nesse contexto, o “moderno” emerge não sem resistências; por outro lado, colocam-se ao intelectual novos problemas, criando um clima de ansiedade e dúvidas. “A polêmica sobre os rumos da arte e o papel do artista na sociedade moderna está inscrita no próprio

100 NEVES, 2008, p. 40. 50 processo de instauração da modernidade”, sendo um de seus principais componentes a tensão entre arte e técnica101. Um dos exemplos é a criação da fotografia no século XIX, vista inicialmente com desconfiança pelos pintores, que a acusavam de mecanizar a realidade e comprometer a obra de arte. Tanto que, na Exposição Universal de 1855, em Paris, ela não integrava o pavilhão destinado às artes, e sim o dos artefatos industriais. O mesmo se dá com o jornalismo, que na enquete feita por João do Rio em Momento literário (1905) é acusado de empobrecer a criação literária, pelo tipo de linguagem utilizada e por sua pressa característica. O próprio João do Rio, que atuava como jornalista, detinha uma relação ambígua com a área. Vale ressaltar, contudo, que essa relação entre arte e técnica nem sempre se dava de maneira conflituosa. A partir da leitura de Flora Süssekind, pode-se dizer que ocorreu uma consubstancial transformação da própria técnica literária, a partir do advento da modernidade e desses novos meios de comunicação e expressão. De fato, nesse período a literatura passava por um processo de redefinição, um momento importante para a profissionalização da profissão de escritor, a abertura de editoras, o nascimento da imprensa empresarial, o crescimento de publicações diversas. Do mesmo modo, a literatura incorporou essas mudanças, não apenas as representando em suas temáticas, mas em suas estruturas internas, na linguagem. A partir de procedimentos característicos do cinema ou do jornalismo, por exemplo, o próprio fazer literário foi transformado, em sintonia com as mudanças nas formas de percepção e sensibilidade que ocorriam com o advento da modernidade102. Nesse caldo de cultura heterogêneo das primeiras décadas do século, somavam-se também debates sobre brasilidade e regionalismo, ideologias pan- americanista e latinoamericanista e noções de civismo e civilismo da República Velha. Além disso, segundo Monica Velloso, o discurso monarquista de interpretação do Brasil, exposto por intelectuais pró-Império como Joaquim Nabuco e Rocha Pombo, prevaleceu até meados de 1920, inviabilizando até mesmo a imagem de uma República-consenso103.

101 VELLOSO, 1996, p. 24-25. 102 SÜSSEKIND, Flora. Cinematógrafo de letras: literatura, técnica e modernização no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1987. 103 VELLOSO, 1996, p. 38. 51

Essa ambiência ainda é complementada pelo recrudescimento do sentimento nacionalista durante a Primeira Grande Guerra, com o surgimento das “Ligas nacionalistas” – a exemplo da Liga pelos Aliados, de 1914, composta de nomes como Rui Barbosa, José Veríssimo e Nestor Vitor –, bem como a ação impetrada pela revista de orientação católica Brazílea (1917), berço da Propaganda Nativista (1919), e da Ação Social Nacionalista (1920), com seus esforços para refletir sobre a situação do país e a identidade brasileira. Além disso, essas iniciativas se constituíram numa das primeiras a questionar a corrupção e as fraudes do processo eleitoral, lançando campanhas pela moralização da política, intensificadas depois. Um dos exemplos de grande importância nesse contexto é o surgimento da Revista do Brasil, em 1916, propondo um reexame de nossa identidade nacional. A Revista fazia parte de um conjunto de publicações do grupo ligado à família de Júlio Mesquita, empresário paulista que inovou em técnicas e estratégias mercadológicas as comunicações no país. Mesquita iria ainda atuar como importante figura na fundação do Partido Democrático, grupo dissidente dentro da oligarquia paulista. De acordo com Monica Velloso, o editorial de lançamento da Revista já previa a elaboração de um núcleo de propaganda nacionalista. A palavra de ordem passa a ser, então, criar a nação: “Tomados deste sentimento de orgulho e resignação, os intelectuais brasileiros se auto elegem executores de uma missão: encontrar a identidade nacional, rompendo com um passado de dependência cultural”104. Tal identificação irá transformar aos poucos o marco valorativo de uma obra literária, que passava então a ser considerada em sua capacidade de expressão da terra e da sociedade brasileiras. Em pouco tempo, a revista atinge enorme sucesso editorial, tornando-se o “mais lido, o mais importante veículo cultural do país”105, e o marco da hegemonia paulista no campo cultural. Nesse amálgama, ainda conviviam o simbolismo, movimento ainda em processo e produzindo frutos no início do século XX, bem como o destaque que ainda detinham certos nomes consagrados do parnasianismo e do realismo- naturalismo. Inclusive, a presença de alguns desses nomes na Semana da Arte

104 VELLOSO, Monica Pimenta. A brasilidade verde-amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 11, p. 89-112, 1993. Disponível em: Acesso: 15.abril.2016. p. 89. 105 CAVALHEIRO apud MICELI, 2001, p. 90. 52

Moderna, como Graça Aranha, ajudou a dar visibilidade ao movimento106. Nesse sentido, José Castello ressalta a importância da influência dessa mistura de tradições para os poetas modernistas, cujos primeiros livros permitem-nos perceber, como em Há uma gota de sangue em cada poema (1917), de Mário de Andrade, de influência parnasiano-simbolista. Ainda de acordo com Castello,

O delineamento da perspectiva literária é de interpenetrações temáticas. São repercussões da poesia científica, da socialista, realista, parnasiana, simbolista conjuntamente com heranças românticas, provenientes do século XIX, simultaneamente com posições inovadoras e divulgação de vanguardas europeias.107

Nesse sentido, o simbolismo foi um dos movimentos mais expressivos do clima de efervescência cultural, embora de curta duração. Foi “boêmio, espiritualista e antiacadêmico”108, e atraiu escritores como Graça Aranha, Coelho Neto e Afrânio Peixoto. Para Angela Gomes, havia no Rio dos anos 1910 uma rede de intelectuais que se reconhecia pertencente a uma tradição simbolista, de cunho espiritualista e místico. Embora não possa ser diretamente associado à emergência da militância católica que iria se firmar nas décadas posteriores, há que se assinalar as convergências entre os dois movimentos, bem como os pontos de contato entre as trajetórias de alguns intelectuais dos dois grupos. A esse ponto voltarei posteriormente. Persistências dos movimentos residuais ainda conviviam com a influência modelar de autores já consagrados pela crítica, como Machado de Assis e Olavo Bilac, assim como o papel que a crítica exercia. Vale atentar, ainda, para o fato de que essa heterogeneidade de estéticas estava relacionada com a eclosão de uma “vida literária”, formas de sociabilidade, de trocas e intercâmbios ativa e talvez sem precedentes no país109. Como aponta Francisco Foot Hardman, esse amplo e heterogêneo “mosaico” de produções culturais diversas (literatura, crônicas jornalísticas, textos de cunho sociológico) ainda estava em contato constante com o

106 Graça Aranha, embora tenha participado ativamente como organizador da Semana, foi posteriormente descartado da posição de “líder” do movimento, sendo até acusado por alguns modernistas de oportunismo. Para Anderson Silva (2009), esse fato é indicativo das tensões e disputas relativas à construção da memória do movimento, que serão retomadas posteriormente. 107 CASTELLO, 2004, p. 17. 108 GOMES, 1999, p. 39. 109 CASTELLO, op. cit., p. 18. 53 nascente movimento operário nas urbes, bem como a presença maciça de imigrantes de diferentes países – uma das principais responsáveis, em última instância, pela renovação linguística, estética e temática do período110. Brito Broca afirma que, após um período de crises políticas, entre 1893 e 1894, a vida literária se recompôs na capital federal, atingindo sua plenitude durante a presidência de Rodrigues Alves. O próprio prefeito da época, Pereira Passos, a incentivava, promovendo atividades como as batalhas de flores no Campo de Santana111. Para Broca, essa febre do que chama “mundanismo” – novas formas de sociabilidade, marcadas por bailes, recepções, corridas de cavalo, corsos, conferências e outros – teve seu reflexo nas relações literárias, visto que a produção do período se alimentava das novas experiências e tecnologias do fin-de-siècle, se utilizando da fotografia e das ilustrações, por exemplo, para atrair o público112. As relações entre os escritores eram cada vez mais influenciadas por esse cenário. Um dos exemplos eram os encontros na Confeitaria Colombo, que reuniam nomes como José do Patrocínio113 e Martins Fontes114, entre outros, todos orbitando em torno da figura de Olavo Bilac, autor mais conhecido do público, e ponto de

110 HARDMAN, 1992, p. 291. 111 Com a ideia de imitar as batalhas de flores europeias, por iniciativa do prefeito Pereira Passos, organizou-se uma batalha na Praça da República, no dia 15/08/1903. A festividade foi acolhida com entusiasmo pela elite e por parcela da população. No evento, toda a região, bem como os carros alegóricos, era enfeitada com flores, que eram usadas como armas de batalha a serem atiradas no “inimigo”. 112 BROCA, 1975, p. 4. 113 José Carlos do Patrocínio (1853-1905) foi um farmacêutico e jornalista carioca. Filho de um religioso com uma jovem escrava, obteve desde cedo a liberdade, tendo acesso à educação primária. Mudou-se para a capital do estado em 1868, conseguindo trabalho como pedreiro na Santa Casa de Misericórdia. Ingressou no curso de Farmácia, em 1874. Por essa época, entrou em contato com membros do Clube Republicano, como Quintino Bocaiúva, e outros. Patrocínio obteve destaque como uma das figuras mais importantes dos movimentos abolicionista e republicano no Brasil, ajudando a fundar, com Joaquim Nabuco, a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, em 1880. Colaborou também com diversos periódicos, entre eles Gazeta de Notícias e a Gazeta da Tarde; em 1887, ajudaria a fundar o periódico A cidade do Rio. As convulsões do período republicano florianista o fariam ser deportado para o estado do Amazonas, em 1892. Retornaria no ano seguinte em terras cariocas, se estabelecendo nos subúrbios até o fim de sua vida. Fonte: e Acesso: 04.jan.2018. 114 José Martins Fontes (1884-1937) foi um poeta e médico paulista. Formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1906. Trabalhou no Hospital dos Alienados, no Rio de Janeiro, e integrou a comissão de obras que viajou ao Acre, como médico. Em 1910, auxiliou Oswaldo Cruz na campanha de saneamento da então capital federal. Colaborou com os jornais Gazeta de Notícias e O Paiz, e nas revistas Careta e Kosmos, entre outros periódicos. Foi também diretor da Revista do Hospital Nacional. Mudou-se em 1914, e lá fundou, com Olavo Bilac, uma agência americana para serviços de propaganda de produtos brasileiros na Europa. Pubicou, entre outros: Verão (1917), Marabá (1921), Rosiclair (1928), A flauta encantada (1931), Calendário positivista (1938), entre outros, a maioria de filiação parnasiana. Informações retiradas de: Acesso: 04.jan.2018. 54 contato entre o oficialismo da academia e o mundo boêmio. Embora as rodas se tornassem cada vez mais desfalcadas com o passar do tempo, os antigos foram sendo substituídos por nomes como Gustavo Barroso115, Goulart de Andrade116, Joaquim de Sales e outros. Lima Barreto, por exemplo, era assíduo do Café Papagaio, transitando em torno do “Esplendor dos amanuenses” – nome dado devido à presença de alguns funcionários públicos, entre os quais o próprio Barreto –, grupo sob o qual faziam parte Bastos Tigre, Emílio de Menezes, Patrocínio, Domingos Ribeiro Filho117, desenhistas e caricaturistas como Gil (Carlos Lenoir)118, Kalixto, Julião Machado119, entre outros.

115 Gustavo Adolfo Luiz Guilherme Dodt da Cunha Barroso (1888-1959) atuou como advogado, professor, escritor e folclorista. Nascido em Fortaleza (CE), mudou-se para o Rio de Janeiro com o intuito de concluir seus estudos em direito, bacharelando-se em 1911. Colaborou com diversos periódicos enquanto estudante, entre eles o Jornal do Ceará, o Jornal do Commercio, a revista Fon-Fon (da qual foi diretor, a partir de 1916), e outros. Além disso, desenvolveria uma gama variada de atuações, que vão de secretário da Superintendência da Defesa da Borracha, no Rio, em 1913; deputado federal pelo Ceará, entre 1915 e 1918; inspetor escolar do Distrito Federal, entre 1919 a 1922; diretor do Museu Histórico Nacional (a partir de 1922), e outras mais. Sua carreira literária seguiria em paralelo, com a publicaçãode Terra de Sol, em 1912, Praias e Várzeas (1915), O ramo de oliveira (1925) e outras, muitas sob o pseudônimo João do Norte. Gustavo Barroso foi também um dos principais ideólogos da Ação Integralista Brasileira (AIB), além de notadamente antissemita, tendo inclusive publicado obras sobre a suposta atuação dos judeus em ordens secretas e na desestruturação da economia nacional. Fonte: Acesso: 05.jan.2018. 116 José Maria Goulart de Andrade (1881-1936) foi um escritor alagoano. Aos 16 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, cursando engenharia civil na Escola Politécnica da capital. Acabou conseguindo um posto na prefeitura depois de formado; paralelamente, desenvolveu sua carreira literária, vinculando-se aos grupos boêmios, especialmente a nomes como Olavo Bilac, Guimarães Passos e Emílio de Menezes. Publicou os livros de poesia Névoas e Flamas (1911), Assunção (1913), Ocaso (1934), além de coletâneas diversas; e as peças de teatro Os Inconfidentes (1909), Um dia a casa cai (1923), entre outros. Atuou também na imprensa, através do periódico O Imparcial e da Revista da Academia Brasileira de Letras. Foi eleito membro da ABL em 1915. Fonte: . Acesso: 05.jan.2018. 117 Domingos Antonio Alves Ribeiro Filho (1875-1942) atuou como jornalista, escritor e funcionário público no Rio de Janeiro. Envolveu-se com o movimento anarquista no início do século XX, contribuindo com os periódicos militantes A Guerra Social, Barricada, A Plebe, entre outros. Entre as obras literárias, publicou O cravo vermelho (1907), Vãs torturas (1911) e Miserere (1919). Fonte: Acesso: 05.jan.2018. 118 Carlos Lenoir (1878-1906) foi um caricaturista carioca. Era funcionário de uma repartição pública, quando travou contato com Santos Maia, colaborador de O Malho e O Avança. Mostrando seus desenhos para Maia, Carlos foi convidado para colaborar com A Avenida, semanário fundado em 1903. Neste periódico, fez ilustrações para os textos de Bastos Tigre. Participando das rodas boêmias, adotou o nome artístico de Gil, e passou a colaborar com outras revistas, entre elas O Tagarela, O Malho, Gazeta de Notícias, entre outras. Em 1905, ajudou ainda a fundar o semanário infantil Tico-Tico. Sua rápida carreira seria encerrada com sua morte em 1906, vítima da tuberculose. Fonte: . Acesso: 05.jan.2018. 119 Julião Félix Machado (1863-1930) foi um caricaturista e ilustrador português nascido em Luanda, Angola, à época uma possessão portuguesa. Foi para Coimbra concluir seus estudos, mas seu interesse pela vida boêmia o levaram a retornar brevemente para a cidade natal, e depois mudar- se para Lisboa, onde se tornaria membro ativo da intelectualidade boêmia do período, junto a 55

Esse grupo, consagrado pela historiografia literária posterior como boêmio, era extremamente heterogêneo quanto à sua composição, e perpassou mais de uma geração. Foi marcado por um estilo específico de vida, que valorizava as horas de lazer, a criatividade, a irreverência, a sensibilidade artística. Dadas as parcas condições do mercado editorial e o número reduzido de leitores na virada do XIX para o XX, nenhum desses intelectuais conseguia viver exclusivamente da escrita – nem mesmo Machado de Assis, que não era boêmio e obteve reconhecimento em seu tempo –, tendo que conciliá-la com cargos públicos, na maioria das vezes. Os que não pertenciam ao funcionalismo viviam precariamente de colaborações esporádicas para jornais, casos de José do Patrocínio Filho e Emílio de Menezes. Suas reuniões geralmente ocorriam após o expediente de trabalho normal, às rodas de cafés e confeitarias, onde discutiam cultura e problemas nacionais, faziam pilhérias, sonhavam com novos mundos. Essas atitudes iam à contramão de uma lógica que começava aos poucos a se impor no mercado de trabalho, pautada por horários controlados, pelo individualismo e pelo mercantilismo. De fato, esses intelectuais se contrapunham a esses valores, geralmente identificando-se com uma visão mais crítica do progresso, e desconfiando das possibilidades da racionalidade científica e de sua capacidade de transformação social. No entanto, foi através das novas formas de expressão possibilitadas pela modernidade que os boêmios buscaram demonstrar sua visão de mundo. A utilização de novas formas de expressão, como a fotografia e o cinema, bem como a inserção de alguns na publicidade era exemplar nesse sentido. Sua relação com o mercado era ambígua, contendo participação e ao mesmo tempo recusa, e própria dos conflitos de uma sociedade – e especialmente de um grupo intelectual – que se deparava com os problemas da sobrevivência e das dificuldades do exercício da criatividade na modernidade. Por exemplo, Libertinagem (1930), obra de Manuel Bandeira expressiva do modernismo, continha poemas com conteúdo humorístico e erótico, entre eles o conhecido “Vou-me embora pra Pasárgada”. Com versos adotando a linguagem

Rafael Bordalo Pinheiro, Fialho D’Almeida e outros. Chegou ao Brasil em 1894, fundando no ano seguinte a revista ilustrada A Cigarra, junto com Olavo Bilac, e em 1896 A Bruxa. Inovou nas técnicas de caricatura, utilizando-se das novas tecnologias de produção de imagens por litografia, e apresentando traços limpos e simples. Deixou extensa obra na imprensa brasileira, visível nas principais revistas ilustradas do período. Fonte: . Acesso: 05.jan.2018. 56 técnica sobre doenças (“Pneumotórax”), ou críticas ao formalismo na poesia, em “Poética” (“Estou farto do lirismo comedido/ Do lirismo bem comportado/ Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente/ protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor”; e “Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbedos/ O lirismo difícil e pungente dos bêbedos/ O lirismo dos clowns de Shakespeare/ Não quero mais saber do lirismo que não é libertação”), o livro é uma das expressões mais conhecidas das contradições vividas por esses escritores. Contudo, segundo seu autor não teria sido escrita sem o convívio diário do autor com o círculo de seus amigos boêmios: Jaime Ovale120, Dante Milano121, Osvaldo Costa e Geraldo Barroso do Amaral, reunida no Bar Nacional. Embora já em um momento de transformação das atividades boêmias (as décadas de 1920 e 1930), percebe-se a importância e a influência que a boemia deteve para a cultura carioca. Manuel Bandeira recupera em seus escritos as figuras mais características da cidade: o malandro boêmio José do Patrocínio, o aristocrata Kalixto, que se insurge contra a banalidade burguesa, e a figura popular Sinhô122, capaz de unir, através da música, os diversos segmentos sociais. Por sua vez, o círculo citado por Manuel Bandeira, apesar de composto de caricaturistas e escritores, formava um grupo relativamente coeso e bastante expressivo em seu tempo, que atuou em conjunto em diversos periódicos. Entre as

120 Jayme Rojas de Aragón Y Ovalle (1894-1955) foi um compositor e poeta paraense. Atuou por muito tempo no Rio de Janeiro, trabalhando com composições populares e participando ativamente dos grupos boêmios da cidade. Apesar da formação precária em música, dedicou-se ao aprendizado do violão e do piano, e compôs canções em parceria com Manuel Bandeira, como o “Azulão”, regravado por Elisabeth Cardoso e Nara Leão. Trabalhou também para o Ministério da Fazenda, residindo em cidades como Nova York e Londres. Fonte: . Acesso: 05.jan.2018. 121 Dante Milano (1899-1991) foi um poeta carioca, irmão do poeta Atílio Milano. Entre as profissões que exerceu, estão as de conferente na Gazeta de Notícias, funcionário do Juizado de Menores, empregado da contabilidade da Ilha das Cobras, entre outros. Paralelamente, desenvolveu uma carreira literária, publicando seus primeiros poemas por volta de 1920. Colaborou com os periódicos A Manhã e o Boletim de Ariel, já na década de 1930. Seu primeiro livro só seria publicado em 1948, intitulado Poesias. Trabalhou nos anos seguintes como tradutor, e em 1979 publicou Poesia e Prosa. Fonte: e Acesso: 05.jan.2018. 122 José Barbosa da Silva (1888-1930), mais conhecido como Sinhô, foi um instrumentista e compositor carioca. Desde cedo, foi estimulado pela família a estudar instrumentos como flauta, piano e violão. Entrou em contato com os chorões, músicos de choro do período, tornando-se posteriormente pianista profissional. Era frequentador assíduo da Casa da Tia Ciata, um local de efervescência cultural nos morros cariocas do início do século, participando da primeira fase de constituição do samba carioca, juntamente com Germano Lopes da Silva, Donga e outros. Entrou em polêmicas com outros sambistas pela primazia da composição Pelo telefone, registrada com esse nome por Donga em 1918, e considerada o primeiro samba gravado. Fonte: e . Acesso: 05.jan.2018. 57 causas em que se envolveram, estão a abolição da escravatura e o advento da República. O entusiasmo com a República Velha se dissolveria, contudo, com as turbulências dos primeiros anos, especialmente no exercício de Floriano Peixoto. Marcado por diversas revoltas, o governo de Floriano Peixoto tendeu à centralização, contendo de forma enérgica os movimentos políticos dissidentes. Foi um período de perseguições, mortes e exílios – principalmente ao que restava dos setores monárquicos e aos republicanos mais radicais, os jacobinistas. A partir de seu governo, marcado pelo decreto de estado de sítio em 1892, se acentuariam as divergências entre a intelligentsia brasileira e a elite dominante, fato que só se aprofundaria com as contradições da política oligárquica nos anos seguintes. Durante as perseguições florianistas, a boêmia se fragmentou e praticamente deixou de existir por cerca de dois anos. Nesse contexto, Guimarães Passos e Luís Murat fugiram para a Argentina, Olavo Bilac para Minas Gerais, José do Patrocínio foi deportado, Pardal Mallet faleceu, e Paula Nei praticamente desapareceu das reuniões. Contudo, nos anos do governo de Rodrigues Alves (1902-1906) esse grupo já se mostrava em plena atividade e renovado. Bastos Tigre e Emílio de Menezes, responsáveis por uma coluna humorística no Correio da Manhã, impetraram então uma campanha satirizando o Ministro da Justiça J. J. Seabra. Essa durou meses e acabou por tornar popular o refrão: “só tu, Seabra, não sais”, replicado em rimas e músicas de carnaval. Proibido, o refrão foi reformulado em rimas que terminavam sempre em “ais”, driblando criativamente a censura. Como se vê, o grupo marcou presença na vida cultural da cidade, transformando-se e renovando seus quadros, com a entrada de outros intelectuais. Segundo Monica Velloso, essa boemia carioca atuante e à margem do sistema político duraria até às vésperas da Primeira Guerra Mundial123, e mesmo posteriormente. O recrudescimento do nacionalismo nesse período, que fez emergir a Liga de Defesa Nacional, bem como a ruptura de Olavo Bilac com os boêmios – a partir do viés nacionalista e militarista que seu discurso tomou –, marcaram um novo rumo seguido então pela intelectualidade124. Destarte, a boemia do fim do século XIX, passada entre as redações dos jornais e as horas vagas nos cafés e confeitarias da Rua do Ouvidor e do Largo da Carioca, se transformava, aos poucos,

123 VELLOSO, 1996, p. 36. 124 GOMES, 1999, p. 39. 58 na “boemia dourada” da frequência em salões fechados (ao invés da movimentação das ruas), de hábitos sofisticados, das vestimentas exóticas:

[...] na medida em que decaía a boêmia dos cafés, surgia uma fauna inteiramente nova de requintados, de dândis e raffinés, com afetações de elegância, num círculo mundano, em que a literatura era cultivada como um luxo semelhante àqueles objetos complicados, aos pára-ventos japoneses do art nouveau. Em lugar dos paletós surrados, das cabeleiras casposas, os trajes pelos mais recentes figurinos de Paris e Londres, os gestos langues e displicentes dos blasés, que constituíam a chamada jeunesse dorée; em substituição às mesas de cafés, os clubes e salões chiques, onde imperava o esnobismo e se aconselhava o último livro de D’Annunzio à grande dama que não suportava Paul Bourget.125.

Importam-se costumes: não mais os cafés, e sim o five o’clock tea inglês, mostra de que nos civilizávamos; ou antes, um “aburguesamento” dos costumes boêmios126. Adaptam-se novos vestuários ao calor da capital federal; o estilo de vida dândi torna-se popular, de cujo maior exemplo é o cronista João do Rio (1881-1921). Oscar Wilde torna-se então o grande modelo127. No entanto, vale ressaltar que essa mudança não ocorreu de forma linear e ininterrupta; foi antes um processo marcado pela coexistência de diferentes valores, em que as atitudes dos boêmios e dândis por vezes se confundiam. Por outro lado, a figura de João do Rio, criticada por seus excessos, deve ser problematizada. Para Marcos Guedes Veneu128, o escritor ligou marcadamente sua escrita ao processo de modernização e das transformações urbanas de modo radical. Nesse sentido, é um dos exemplos da vida vertiginosa das grandes cidades, que vivencia as diversas sensações possibilitadas pela modernidade. Frequentava os salões da jeunesse dorée da mesma maneira que subia o morro de Santo Antônio com um bando de seresteiros, ou ia aos presídios entrevistar sentenciados.

125 BROCA, 1975, p. 20. 126 MATTA, Carmen da. Rio de Janeiro, solo configurador da literatura nacional, Revista Rio de Janeiro, n. 10, p. 259-278, maio-ago.2003. p. 267. Disponível em: Acesso: 16.jun.2017. 127 De acordo com Brito Broca, a partir das traduções e artigos sobre Oscar Wilde feitos por João do Rio, inaugurou-se verdadeira moda de Wilde no Brasil, marcada, sobretudo, pelo exemplo “requintado, aristocrático e displicente” que João do Rio criou para escandalizar a cidade dos anos 1900, assim como fizera Wilde na Londres vitoriana (BROCA,op. cit., p. 111). Oscar Wilde também é tema de um dos contos de Gastão Cruls, “A noiva de Oscar Wilde”, sobre uma moça que sustenta uma paixão platônica pelo escritor inglês, presente em Contos reunidos (1951). 128 VENEU, Marcos Guedes. O flanêur e a vertigem: metrópole e subjetividade na obra de João do Rio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 3., n. 6., p. 229-243, 1990. Disponível em: < http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2305> Acesso: 20.jul.2016. 59

João do Rio tematizou os problemas da subjetividade individual que enfrenta o ritmo da cidade moderna e que nela encontra, ao mesmo tempo, sedução e ameaça. A opção pelas novas formas que estavam surgindo, como a crônica, mais curtas e de alcance rápido, e a alusão a invenções como o cinematógrafo, são indicativos desse caminho. Contudo, João do Rio não foi um entusiasta irrestrito do progresso; em suas obras, este constitui uma “utopia ambígua”, contraditoriamente sedutora e destruidora129. O progresso que cria a metrópole moderna não traz em seu bojo o “triunfo das luzes” – antes, libera a irracionalidade e o desejo130. Para João do Rio, a cidade é moderna porque europeia e, por isso, decadente. Os modelos que João do Rio segue (Wilde, Jean Lorrain, Poe, Dickens) são autores que se detém sobre os aspectos mais ameaçadores e contraditórios das cidades e suas multidões. O que parece mera cópia de modelos e costumes europeus acaba por ser o meio através do qual a complexidade do processo de modernização carioca é apresentada. Nesse sentido, João do Rio consegue, copiando Paris, descrever detalhadamente o Rio, e não apenas quando a cidade tenta ser parisiense. Persegue-se então um modelo de civilização; mas, para o decadentismo – estética de que João do Rio se serve – a própria ideia de civilização implica em decadência, em aumento da criminalidade, na impunidade, em nevroses. Outro escritor considerado excêntrico e dândi, e que acabou relegado, foi Elísio de Carvalho. Para Clarice Caldini Lemos, “as percepções posteriores de sua obra, e os valores atribuídos às ideias das quais era adepto o colocaram no segundo escalão literário, caindo assim no esquecimento”131. O autor foi posteriormente inserido, então, dentro de uma “ideologia ilustrada” de uma “falsa vanguarda”, cuja militância intelectual preconizaria a modernização conservadora do país, sem romper realmente com o sistema de ideias arcaico132. Contudo, Elísio percorreu uma trajetória intelectual marcada pelo contato com diferentes correntes de pensamento – que incluem antagonicamente anarquismo e autoritarismo –, participando dos

129 Ibid., p. 232. 130 Ibid., p. 234. 131 LEMOS, Clarice Caldini. Os bastiões da nacionalidade: nação e nacionalismo nas obras de Elysio de Carvalho. 2010. 203f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. p. 17-18. Disponível em: Acesso: 07.set.2016. 132 Cf.: PRADO, Antonio Arnoni. Itinerário de uma falsa vanguarda: os dissidentes, a Semana de 22 e o integralismo; prefácio de Sérgio Miceli. São Paulo: Editora 34, 2010.

60 principais debates sobre nacionalidade na Primeira República. Esses contatos devem ser entendidos em um contexto de formação e circulação de ideias ainda em processo de amadurecimento, antes de projetos acabados. O autor foi o editor da revista América Brasileira (1921-1924), um periódico cultural de assuntos variados, e contou com a colaboração de importantes intelectuais brasileiros, europeus e dos países hispanofalantes da América. Entre os colaboradores, podemos encontrar Mário de Andrade (que publicou suas Crônicas de Malazarte pela primeira vez na revista), Paulo Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Tasso da Silveira, Oliveira Vianna, Graça Aranha e outros. Além disso, o autor foi um intelectual ativo de seu tempo, tentando se inserir na cena carioca e escrevendo artigos para periódicos nacionais e internacionais, promovendo o intercâmbio cultural entre Brasil e o exterior, e mantendo contato contínuo com escritores do porte de Mário de Andrade e Manuel Bandeira. Entre as principais discussões de que participou, destacam-se a questão da raça, o iberoamericanismo, a lusofilia, o autoritarismo, elementos que compunham um projeto de nação para o país. Muitos dos debates presentes na revista editada por Elísio eram nacionalistas, e muito se falava no grande potencial brasileiro para o futuro. Entendia a mestiçagem como fator constitutivo da identidade nacional, e se posicionou contra o culto ao arianismo e contra a ideia de superioridade da raça germânica – embora enfatizasse a importância da raça branca como “base” de nossa formação étnica e de nossa “unidade moral”133. Em suma, Elísio também foi um intelectual relevante e um intérprete do debate nacional de seu tempo, à semelhança de João do Rio, com quem guardava similaridades. Inclusive, e “guardada a devida distância, João do Rio é para Elísio de Carvalho o exemplo verossímil da modernidade num meio até então considerado provinciano e canhestro.”134. Seguindo o proposto por Marcos Veneu, pode-se afirmar que muito do que se faz de crítica a esses escritores se deve ao fato de que suas produções não corresponderam exatamente às propostas literárias dominantes relacionadas ao academicismo e ao formalismo da ABL, fato que irá ter repercussão

133 LEMOS, Clarice Caldini. O nacionalismo na América Brasileira: a questão da raça. Anais do XXVII Simpósio Nacional de História, ANPUH, 2013. p. 13. Disponível em: Acesso: 20.out.2016. 134 PRADO, op. cit., p. 69. 61 na crítica posterior135. No caso de João do Rio, isso ocorreu apesar de seu sucesso como cronista e de sua consagração como imortal. Outra característica do momento foi a crescente valorização dos salões estritamente literários, em alta por conta da valorização de um tipo de literatura produzida – e de seu produtor, por consequência –, bem como da relação desta com outras atividades culturais similares. Um dos mais conhecidos salões seria o de Laurinda Santos Lobo136, no alto do bairro Santa Teresa. Nesse salão, teriam acorrido nomes como Isadora Duncan, Paul Adam, Anatole France e outros. Nas pautas do dia, sobretudo as novidades parisienses. Coelho Neto também possuía um salão, de grande influência quando do auge de seu prestígio enquanto escritor. Em sua casa, passaram nomes como Olegário Mariano137, Humberto de Campos138, Gustavo Barroso, e Olavo Bilac. Esse último teria sido aclamado “Príncipe dos poetas” numa noite festiva, em que Gustavo

135 VENEU, 1990, p. 230. 136 Laurinda Santos Lobo (1878-1946) foi uma dama da elite carioca, herdeira de uma das mais ricas famílias da cidade. Ficou conhecida como mecenas de diversos projetos culturais, entre eles os salões que realizava em seu palacete no bairro de Santa Teresa, a partir de 1911. Para suas reuniões, acorreram figuras posteriormente ligadas ao modernismo paulista, como o compositor Villa-Lobos e a pintora Tarsila do Amaral, ao longo da década de 1920. Além disso, recebeu nomes conhecidos internacionalmente, como a bailarina Isadora Duncan. O edifício foi abandono após a morte de Laurinda, que não deixou herdeiros. Saqueado e ocupado por moradores de rua e pelo tráfico, o edifício foi finalmente tombado pelo governo estadual em 1993. Em 1997, foi criado o Parque das Ruínas, do que restava da propriedade. Fontes: e < http://www.oguialegal.com/08- laurindasantos.htm>. Acesso: 06.jan.2018. 137 Olegário Mariano Carneiro da Cunha (188-1958) atuou como poeta, político e diplomata no Rio de Janeiro. Foi inspetor de ensino secundário e censor de teatro, atuando também como secretário de embaixada na Bolívia, na Missão Melo Franco, em 1918, deputado na Assembleia Constituinte em 1934, e embaixador do Brasil em Portugal entre 1953 e 1954, entre outras profissões. Colaborou com diferentes periódicos, entre eles Careta, Fon-Fon e Para Todos. Entre 1911 e a década de 1950, publicou diversos livros de poesia. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1926. Fonte: Acesso: 06.jan.2018. 138 Humberto de Campos Veras (1886-1934) foi um jornalista, político e escritor maranhense. De origem humilde, mudou-se de Miritiba, onde nascera, para São Luís, e posteriormente para o Pará, onde exerceria a carreira jornalística através dos periódicos Folha do Norte e A Província do Pará. Em 1910, publica sua primeira obra, Poeira, atraindo a atenção para seu nome. Em 1912, transfere-se para o Rio de Janeiro, passando a atuar em diversos periódicos da capital, e posteriormente também de outras capitais brasileiras, como São Paulo. Entre seu círculo de amigos, estavam os escritores Coelho Neto e Emílio de Menezes. Em 1919, é eleito imortal da ABL. Exerceu também uma breve carreira política como deputado por seu estado natal. Em 1930, tem seus direitos cassados por conta das mudanças políticas; contudo, logo conseguiria ser nomeado Inspetor de Ensino no Rio de Janeiro e, posteriormente, diretor da Fundação Casa de Rui Barbosa, por conta de seus contatos políticos. Fonte: Acesso: 06.jan.2018. 62

Barroso lera páginas da revista Terra de Sol, Alcides Maia139 de seu romance Ruínas vivas, recitações do “O corvo”, de Edgar Allan Poe, entre outros episódios célebres140. Os salões de Sousa Bandeira, tio de Manuel Bandeira, por sua vez, reuniam nomes consagrados como José Veríssimo, Olavo Bilac e Graça Aranha, embora também abrisse espaço para nomes novos, como Alceu Amoroso Lima. Em São Paulo, também havia alguns salões, como o da residência de José de Freitas Vale, poeta simbolista que mais tarde apoiaria os modernistas. A essa casa acorriam novos como um jovem Oswald de Andrade, e políticos como Altino Arantes141. Dentre as atividades, debates, concertos de música, campeonatos de pingue- pongue, almoços de carnaval à fantasia e outros. Além dos salões, as conferências literárias se constituíram em outro elemento de difusão cultural importante. Embora tenham sido associadas ao mundanismo e à cultura do supérfluo por Brito Broca – principalmente porque muitas delas traziam temas genéricos como “o belo”, “o amor”, que quase nada tinham de literário, servindo muitas vezes apenas de fonte de lucro e demonstração de erudição para os conferencistas –, as conferências desempenharam papel relevante na vida cultural da cidade, e na própria organização da sociabilidade intelectual142. Além disso, há de se ressaltar que algumas significaram verdadeiras inovações temáticas, como a em que Alfredo Pujol apresentou um dos primeiros estudos críticos sobre a vida e a obra de Machado de Assis, ainda em 1917; ou o evento em que Viriato Correia

139 Alcides Castilho Maia (1878-1944) foi um jornalista, ensaísta, escritor e político riograndense. Aos 18 anos, mudou-se para São Paulo, a fim de cursar a Faculdade de Direito. Contudo, logo em seguida abandonaria o curso, para voltar a Porto Alegre, onde se debruçaria nas atividades de escritor e jornalista. Em 1903, faria sua primeira viagem à capital federal, quando já detinha certo reconhecimento. A partir de então, viveria alternadamente entre as duas cidades, Porto Alegre e Rio, mantendo contato com escritores como Machado de Assis. Atuou como deputado federal por seu estado entre os anos de 1918 a 1921. Na década de 1930, dirigiu o Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre. Posteriormente, se mudaria definitivamente para o Rio, vivendo na cidade até o fim de sua vida. Foi eleito imortal da ABL em 1913. Fonte: Acesso: 06.jan.2018. 140 BROCA, 1975, p. 27. 141 Altino Arantes Marques (1876-1965) foi um político paulista. Formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 1895, atuou seguidas vezes na política, como deputado federal, em sucessivos mandatos entre as décadas de 1920 e 1930, e deputado constituinte, em 1946. Foi governador do estado de São Paulo de 1906 a 1920. Participou do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Academia Paulista de Letras. Também exerceu a função de primeiro presidente do Banco de Crédito Hipotecário e Agrícola do Estado de São Paulo, futuro Banco do Estado de São Paulo. Fonte: . Acesso: 06.jan.2018. 142 VELLOSO, 1996, p. 66. 63 discorreu sobre as cantigas do sertão, inovando ao trazer ao palco um grupo de música sertaneja. Nesse quesito, os intelectuais de verve humorista das revistas ilustradas foram os que mais inovaram, se aproveitando da dinâmica comunicativa da cultura do modernismo. Elaboradas pelos caricaturistas da Fon-Fon por volta de 1907, as “conferências humorísticas ilustradas” apresentavam, juntamente com as falas, caricaturistas criando suas obras ao vivo. Por fim, as livrarias também eram muito frequentadas, sendo a Garnier – a “Sublime Porta”143 – a principal delas. Ali, seria encontrado um dos únicos escritores que não frequentava outros círculos: Machado de Assis, bem como Coelho Neto, José Veríssimo, Joaquim Nabuco, e outros; em suas reuniões, teria surgido o embrião da ABL. Por sua vez, em contraposição a essa roda, se encontrava a roda compostas por simbolistas, à qual se uniam membros de tendência socialista e anarquista, frequentada por nomes como Rocha Pombo144, Múcio Teixeira145 e Nestor Vítor146, e Fábio Luz147. Esse grupo nutria certo

143 BROCA, op. cit., p. 40. 144 José Francisco da Rocha Pombo (1857-1933) foi um jornalista, historiador, professor e escritor paranaense. Ajudou a fundar o jornal O Povo, em sua cidade natal Morretes, marcado pelas lutas abolicionistas e republicanas. Além disso, colaborou com outros periódicos paranaenses, e em 1886 foi eleito deputado provincial. Em 1897, mudou-se para a capital federal, formando-se pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro. Em 1900, foi admitido como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Em fins do mesmo século, tentaria fundar uma universidade no Paraná, sem obter sucesso. Entre as obras que publicou, estão Honra do Barão (1881), Visões (1891), A Guairá (1891), O Paraná no Centenário, de 1900, No hospício, de 1905, e outras. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1933, mas faleceu antes de ser empossado. Fonte: Acesso: 06.jan.2018. 145 Múcio Scevola Lopes Teixeira (1857-1926) foi um poeta, jornalista e diplomata gaúcho. Ainda em Porto Alegre, ajudou a fundar a Sociedade Partenon Literário. Por volta de 1880, mudou-se para a para a capital federal. Publicou, entre outras obras, Vozes Trêmulas, de 1873, Curso de Literatura Brasileira, de 1876, Cantos do Equador (1881), Os Ciganos no Brasil (1886) e Festas Populares do Brasil (1886), muitas sob pseudônimos. Fonte: e Acesso: 06.jan.2018. 146 Nestor Vítor [que também aparece grafado como Victor] dos Santos (1868-1932) foi um escritor, crítico literário e ensaísta paranaense. Mudou-se para o Rio de Janeiro, para cursar o secundário. Na cidade, dedicou-se ao magistério, que exerceria tanto na capital federal, quanto posteriormente em sua residência na França. Na capital parisiense, atuou como corresponde dos jornais O País e o Correio Paulistano. Retornando ao Brasil, continuou no magistério, além de passar a se dedicar à crítica literária, através de uma coluna em Os Anais, e posteriormente n’O Globo. Tornou-se amigo de Cruz e Souza, participando ativamente do movimento simbolista na capital federal. Posteriormente, apoiaria o Grupo de Festa, já nas primeiras décadas do século XX. Fonte: . Acesso: 06.jan.2018. 147 Fábio Luz (1864-1938) foi um médico, escritor e professor baiano. Desde a juventude, era a favor da causa abolicionista; e durante o curso de medicina, entrou em contato com a obra de Kropoktin, que o fez seguir o anarquismo. Contudo, o escritor só viria a entrar em contato com um movimento anarquista organizado na capital federal, no início do século XX. Já no Rio de Janeiro, atuou como médico higienista e inspetor escolar. Em 1903, publica o romance O ideólogo, onde expõe suas 64 ressentimento contra Machado e tudo o que representava, por serem colocados à margem da oficialidade literária. Como se percebe, esses locais de sociabilidade fomentaram o intercâmbio entre escritores, a circulação de ideias e consequentemente a propagação de diferentes estéticas, fato que certamente influiu no desenvolvimento de uma cultura do modernismo que culminou na Semana. De fato, a participação dos modernistas paulistas nesses salões e conferências, bem como a troca entre paulistas e cariocas foi de suma importância nesse processo148. Como capital federal, o Rio de Janeiro acabou por congregar literatos e artistas de diversos locais; muitos modernistas paulistas vivenciaram também essa ambiência cultural. Oswald de Andrade frequentou ativamente a cena carioca nos anos 1910, se tornando amigo de Emílio de Menezes e participando da edição do jornal O pirralho, de verve satírica. Foi no Rio, no apartamento de Ronald de Carvalho, que Mário de Andrade leu pela primeira vez em público Paulicéia Desvairada. Entre os presentes, Sérgio Buarque de Holanda, Austragésilo de Ataíde e Manuel Bandeira – chamado por Mário de “São João Batista do Modernismo”. Manuel Bandeira foi um dos principais articuladores de 1922, e seu poema “Os sapos”, uma crítica ao parnasianismo, foi lido por Ronald de Carvalho durante a Semana. Sua poesia seria prenunciadora de várias características da estética modernista: o verso livre, a linguagem coloquial, a mescla entre poesia e prosa. Contudo, quando instilado por Mário de Andrade a se assumir “modernista”, Bandeira teria respondido que era simbolista, e o simbolismo já era moderno. Por fim, o mesmo Mário, depois de um primeiro momento iconoclasta, em 1924 disse em carta à Bandeira que já não era mais modernista, e sim moderno, e se considerava então “descendente do simbolismo”149.

1.2.3 Quixotes e turunas

ideias políticas. A partir de 1904, se envolveria em um projeto de uma Universidade Popular do Ensino Livre. Além disso, atuaria em prol da higiene pública, através de conferências, textos em periódicos. Publicou ainda outros romances de cunho social, como Os emancipados (1906), e Elias Barão (1915), além de histórias infantis e da publicação de textos de crítica literária. Fonte: . Acesso: 06.jan.2018. 148 SILVA, Anderson, 2009, p. 19-20. 149 SILVA, Anderson, op. cit., p. 18. 65

Monica Pimenta Velloso recupera dois personagens principais da vida cultural carioca de fins do XIX e início do XX: os turunas, palavra que significaria um “chefe, valente”, usada para identificar o malandro carioca – e remetendo, portanto, “ao universo da boemia, do humor, da irreverência e também da marginalidade”150; e os quixotes, que à semelhança da obra de Cervantes, eram aqueles sonhadores, idealistas, altruístas, que escapavam ao senso comum. Nas revistas de humor cariocas, a imagem do intelectual era associada muitas vezes à D. Quixote, representando um esforço de justiça imenso, embora por vezes patético, porque em vão. Por sua vez, entre seus pares os intelectuais se viam também como turunas, utilizando-se de tratamentos irreverentes nas charges e revistas ilustradas. A imagem desse intelectual humorista é contraditória e complexa, na medida em que este se encontra à margem da produção cultural oficial acadêmica, bem como à margem do processo de decisões políticas, fazendo papel de crítica e oposição. Deste modo, seu papel social está constantemente sendo questionado, tanto por outros intelectuais como internamente, uma das principais características da modernidade. Essas duas figuras nos possibilitam outra visão do modernismo brasileiro, pautada pelo olhar humorístico, caricatural, de imagens contrastantes. Por seu caráter de marginalidade, esses grupos buscaram a inserção em outros meios. “Daí a centralidade da conquista de espaços em jornais e da formação de revistas de todos os tipos, pois estes eram os veículos de penetração reconhecida por um público já estabelecido que precisava ser conquistado”151. Desde meados do XIX, as revistas estavam assumindo uma importância cada vez maior como fonte de informação e meio de expressão, dada a rapidez e a eficácia de sua intervenção. No fim deste século e início do seguinte, surgiriam diversos periódicos, fato que reflete o anseio de informação do público, incrementado por camadas médias, com interesses culturais mais definidos. “Tratando de fatos do cotidiano, traduzindo- os em caricaturas ou na linguagem telegráfica dos trocadilhos, chistes ou crônicas, as revistas cariocas alcançaram inédita popularidade na época”152. Como criação coletiva, traziam uma escrita plural, pautada por um humor polissêmico, que comportava ao mesmo tempo diversão, denúncia e irreverência. Detinham uma

150 VELLOSO, 1996, p. 12. 151 GOMES, 1999, p. 30. 152 VELLOSO, 1996, p. 56-57. 66 relação próxima com a publicidade – seu principal meio de sustentação econômica – e acabaram por inovar a linguagem utilizada na imprensa. Muitas foram criadas nos próprios locais de encontro da boemia. Nas reuniões do Café Papagaio, por exemplo, surgiram Mercúrio (1898), Tagarela e O Malho (1902), e Avança (1904). Entre os periódicos mais importantes do período, O Rio Nu (1898), O Pau (1905), Fon-Fon e O Diabo (1907), entre outros. As caricaturas também ganharam importância nesse contexto, saindo nas capas e lugares nobres das revistas, com grandes proporções gráficas. Muitos caricaturistas chegaram mesmo a dirigir publicações: Pederneiras dirigia sozinho o Tagarela e O Malho, e em conjunto com Kalixto e Décio o Avança. Esses periódicos se posicionavam contra o sistema oligárquico, e teciam críticas à padronização e à homogeneização que a transformação das grandes cidades parecia gerar. A vida vertiginosa da urbe e as inovações tecnológicas modificavam algumas percepções e sensibilidades de maneira inédita, afetando desde a ordem social até a maneira de organizar as afeições humanas153. Como discute Francisco Alberto Skorupa, ao apresentar o contexto em que a ficção científica surgiu, entre o século XIX e o XX,

A participação da ciência e da tecnologia na construção do que foram os dois últimos séculos, particularmente no Ocidente e nas nações ocidentalizadas, ocorreu em uma relação interdependente de transformação do entendimento dos indivíduos sobre sua realidade e os mecanismos que nela atuam, entre esses a ciência e a tecnologia. Paulatinamente modificaram-se os pensamentos, os valores e os modos de existir.154

As inúmeras transformações implicaram na perda de alguns dos referenciais sobre os quais a sociedade estava assentada; o mundo parecia se tornar fugidio, instável, fantasmagórico155. Contrastado com os ambientes rurais brasileiros, o abismo cultural parecia se alargar ainda mais, com ritmos de vida e percepções muito distantes entre si. As reações foram diversas e comportavam espanto, euforia

153 SEVCENKO, 1998, p. 8-9. 154 SKORUPA, Francisco Alberto. O ser e o estar ficção científica. In: ______. Viagem às letras do futuro: extratos de bordo da ficção científica brasileira: 1947-1975. Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2002. p. 19-69. p.3. 155 Francisco Foot Hardman se utiliza também do termo “fantasmagoria” para indicar as sensações e significações que tiveram as transformações modernas. Em princípio uma categoria estritamente ótica, a denominação ganhou, ao longo do XIX, uma conotação de ilusão de ótica em termos histórico-sociais. Cf. HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 67 e resistência; contudo, era nítido o sentimento de perplexidade ante uma modernidade que destruía os laços afetivos, as paisagens, reformulava constantemente a vida. Essas características são próprias da experiência moderna, que comporta diversas facetas e sentimentos contraditórios, marcada por reformulações constantes. Lima Barreto já falava sobre a destruição de manifestações populares cariocas com a modernização do Rio. Para esse grupo de intelectuais, a transformação da cidade e a importação de costumes vindos de fora vieram a modificar drasticamente a vida de seus habitantes, destruindo formas de sociabilidade e manifestações culturais específicas.

A padronização do tempo destoava da visão de mundo do grupo boêmio carioca do qual faziam parte Emílio de Menezes. Avessos a horários e compromissos rígidos, eles reagiam aos padrões comportamentais impostos pela sociedade que então se modernizava.156

Nesse sentido, vão buscar no submundo e nas ruas um padrão alternativo de sociabilidade, vivenciando em profundidade a cidade e passando a se identificar com as camadas populares. Nelas, as imagens paradoxais da modernidade são encontradas; o lado marginal da modernização, seus aspectos de exclusão e desigualdade são revelados. Por outro lado, o contato entre as produções culturais ditas eruditas e as populares é fomentado, criando um intercâmbio que possibilitou novas estéticas e enriqueceu a cultura do modernismo que estava se desenvolvendo. De acordo com Silvia Cristina Martins de Souza, o ambiente cultural carioca do período era de efervescência, e o Rio seguia como “empório” da produção poética nacional, onde não havia um indivíduo, “mesmo maluco, que não tenha feito versos”157. Produção essa que se apresentava heterogênea quanto às divisões de classe ou espaços. A cidade transbordava de músicos e poetas de rua, não letrados, que conviviam com os “poetas literários”, designação usada pela autora para indicar os que possuíam formação letrada.

156 VELLOSO, 1996, p. 22. 157 SOUZA, Silvia Cristina Martins de Souza. “Quantos poetas perdidos para sempre, quanta rima destinada ao olvido da humanidade!”: produção e circulação de poesias no Rio de Janeiro de fins do século XIX e início do XX. Varia Historia, Belo Horizonte, vol. 31, n. 6, p. 581-606, maio/ago.2015. 68

Apesar de contar com grande parcela de analfabetos e semialfabetizados, houve uma expansão do mercado editorial brasileiro ainda nas últimas décadas do século XIX. A publicação de livros se diversificou, englobando desde textos jurídicos e traduções de ficções estrangeiras, até novas formas editoriais, como revistas ilustradas, livros em formatos populares, entre outros; além disso, o número de livrarias na cidade do Rio também aumentou. Muitas das produções eram tidas como “populares”, obras produzidas a baixo custo e destinadas à ampla circulação, pois que acessíveis a diferentes públicos158.

As transformações materiais que levaram à produção destas publicações baratas, acessíveis a diferentes gostos, que João do Rio pejorativamente denominou “literatura sarrabulhenta”, contribuíram para a ampliação do público leitor. Com isto, tanto leitores abastados, quanto os de menor poder aquisitivo, puderam adquirir os livros de sua preferência para ler solitariamente ou “escutar” em leituras em voz alta e comunitárias.159

Havia, para além das produções de letrados, grande circulação de poemas por indivíduos com quase nenhuma instrução formal. Essa produção percorria de forma oral os mais diversos espaços (botequins, cortiços, cadeias) e se alimentava de eventos cotidianos, abordados de maneira satírica e irreverente. Essa ambiência cultural com certeza fomentou a irreverência característica do modernismo carioca. Nesse sentido, vale ainda ressaltar que a percepção de que a modernidade destruía todos os laços afetivos era apenas uma das visões sob as quais as transformações apareciam; de fato, se observados a partir de outro prisma, antigas formas de sociabilidade e produção cultural, em especial as encontradas nas ruas, passavam por um processo de adaptação aos novos tempos, que incluía rejeição, mas também incorporações e reelaborações. Por volta de 1910, por exemplo, Hermes Fontes, Bastos Tigre, Emílio de Menezes e Afonso Arinos de Mello Franco frequentavam a república onde moravam os compositores de ritmos populares Heitor dos Prazeres, Pixinguinha e Donga (responsável pela primeira gravação de um samba, Pelo telefone, em 1917). Pela sua proximidade com os sambistas, provavelmente Emílio de Menezes e Bastos

158 Sobre esse tema, Alessandra El Far apresenta um interessante estudo, abarcando a produção de romances de crime e mistério, os chamados “romances de sensação”, bem como a literatura considerada pornográfica, emergida entre a virada de séculos. Cf.: EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação: literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Cia das Letras, 2004. 159 SOUZA, Cristina, op. cit., p. 262-263. 69

Tigre tenham frequentado também o famoso terreiro de candomblé Casa da Tia Ciata160, além de garantirem presença na Festa da Penha – lugares que, à época, “não só funcionavam como espaço de afirmação da tradição cultural africana, como atraíam alguns setores da emergente classe média e da intelectualidade cariocas”161. Aliás, lideranças femininas como a de Tia Ciata eram relativamente comuns, e manifestavam-se principalmente através da socialização, intercâmbio e proteção entre intelectuais. No meio carioca, vale ressaltar os salões de Suzana Castera (conhecida como Tina Tatti)162, além do já comentado de Laurinda S. Lobo. De acordo com Velloso, a figura de Tina Tatti era controversa, pois ela transitava entre as elites políticas, mas também protegia os intelectuais das investidas policiais; militante da causa abolicionista, defendia ainda os negros marginalizados163 . Nesse contexto, a figura do turuna, o malandro, aparece como um dos principais elementos. Desde fins do Império, quando começou a se estabelecer o conceito de vadiagem, o malandro já era associado ao pervertido, ao viciado, ao preguiçoso. Transformada em tema da literatura, contudo, essa e outras figuras da rua são vistas como integrantes de outra ordem; o malandro, nesse sentido, passa a ser aquele que trabalha a seu modo, o que conhece a lógica própria das ruas. Em “Dialética da malandragem”, Antonio Candido164 discute sobre a figura do malandro na literatura, em sua diferenciação com outras similares, como o pícaro espanhol. Assim o seu correspondente, o malandro é uma espécie mais ampla de aventureiro, comum a todos os folclores, que comporta o dinamismo dos astuciosos

160 A Casa de Tia Ciata era o local de moradia de Hilária Batista de Almeida, uma cozinheira e mãe- de-santo baiana. Iniciada no candomblé em Salvador, migrou para o Rio de Janeiro para vender doces e sustentar sua família. Moradora dos morros, foi uma das responsáveis pela popularização da cultura negra no Rio, através das festas que promovia, sambas e também da religiosidade. Como uma das diversas “tias baianas”, como eram denominadas as ialorixás (sacerdotisas) baianas que tinham migrado por conta da perseguição policial. Em sua residência, localizada na Praça Onze (denominada de Pequena África à época), recebeu os sambistas mais conhecidos do início do século XX, como Donga, Sinhô e Hilário Jovino Ferreira. Foi numa dessas festividades em que o primeiro samba registrado conhecido, Pelo telefone, foi composto. 161 VELLOSO, 1996, p. 44. 162Suzana Castera foi uma dançarina do Teatro Alcazar, e acabou virando proprietária de um rendez- vous na praia do Flamengo. Uma figura das mais conhecidas do período, “a mais audaciosa das cocottes”, nas palavras de Luís Edmundo (2001, p. 51), tinha contato entre os membros da elite cultural e dos dirigentes políticos. Lutou em prol das causas abolicionistas, e criou uma caixa de pensão para artistas. Em 1904, iria para a França, passando seus últimos dias em terras estrangeiras. 163 VELLOSO, op. cit., p. 55. 164 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 8, São Paulo, USP, p. 67-89, 1970. 70 das histórias de cunho popular. Contudo, sua estilização pela produção literária mesclaria essas características gerais de tipos folclóricos com costumes e cenas de determinados locais e períodos, sofrendo também influências de correntes literárias do momento. Nesses termos, o primeiro exemplo é o personagem Leonardo Pataca, de Memórias de um sargento de milícias (1853), de Manuel Antônio de Almeida. Para Candido, a obra comporta níveis, em que se veem características universais, como os arquétipos relacionados ao aventureiro licencioso, em um primeiro momento, e representações sociais características do país165. Através da dialética da ordem e da desordem, o romance é estruturado de maneira a recriar esteticamente circunstâncias específicas da vida social. Nesse sentido, a construção da ordem social é relacionada à desordem, que a circunda e com ela comunica-se, através de um jogo dialético – relacionadas, em Memórias, com situações específicas da sociedade carioca de meados do século XIX. Outra das características desse tipo de enredo é uma ausência de julgamentos morais, “libertas do peso do erro e do pecado”166. Alternando momentos de ordem e desordem de forma nivelada, narrativas como esta colocam o leitor em uma situação em que também é incapaz de julgar, aceitando “o homem como ele é”167, porque o autor retirou qualquer aparato necessário para isso. Como aponta Candido, esse tipo de ficção indica uma estrutura social específica em que foi forjada a sociedade brasileira, em diferença da estadunidense, por exemplo – marcada desde cedo pela presença constritora da lei, tanto religiosa como civil, delineando comportamentos específicos. Bebendo dessa fonte, vários autores se debruçaram sobre esse elemento, entre eles Orestes Barbosa e João do Rio. O primeiro refletiu sobre a origem da malandragem, e publicou, em 1922, uma obra sobre o bamba, gíria utilizada para designar o valentão. João do Rio, por sua vez, descreveu a música produzida nas ruas, as pinturas murais nas periferias, as profissões fora da lógica capitalista de mercado, como as de tatuadores e selistas, apontando para a necessidade de se escrever a história do “ventre do Rio” (inspirados na obra de Emile Zola, Le ventre de Paris, de 1873), habitado pelas pessoas que viviam à margem da sociedade. Por

165 Ibid., p. 77. 166 Ibid., p. 84. 167 Ibid., p. 79. 71 sua vez, os caricaturistas de O Malho e o concurso de caricaturas promovido pela Fon-Fon elegeram como tipos representativos brasileiros os personagens das ruas: o português da venda, a empregada mulata, os músicos carnavalescos. Esses intelectuais boêmios, misto de turunas e quixotes, atuaram também em diversas áreas, fato que demonstra uma tentativa de inserção em diferentes meios e afirmação de sua identidade. Raul Pederneiras compôs algumas músicas inspiradas no folclore nordestino, ainda na década de 1920. Pesquisou também as gírias e o linguajar cotidiano da cidade, publicadas depois no livro Geringonça carioca (1946). Em 1916, membros do grupo boêmio conseguiram criar o Salão Nacional dos Humoristas, no Liceu de Artes e Ofícios, reunindo os principais nomes da caricatura. Além disso, organizaram, no ano seguinte, a Festa do Riso, que contou com nomes da intelectualidade da época. Em 1919, fundaram também a Sociedade Brasileira de Belas Artes, que tinha por intuito documentar a arte colonial de Minas Gerais. O estado entrou então no circuito de viagens dos artistas brasileiros – fato que seria repetido em 1924 por Mário de Andrade. O embate pela sucessão presidencial de Nilo Peçanha em 1909, e posteriormente a figura controversa do presidente foram inspiração para dois filmes de José do Patrocínio – entre eles, nosso primeiro filme “sonoro”, Paz e amor, de 1910 – e um filme de caricaturas de Seth. Bastos Tigre, por sua vez, montou um dos primeiros escritórios de publicidade do país, que criou slogans até hoje usados como “quem tem boca vai a Roma” (para um restaurante homônimo) e “se é Bayer é bom”. Além disso, foi ele o inventor do termo “crediário”.

1.2.4 O Grupo de Festa

Diferente da intelectualidade boêmia, emergiu no Rio da década de 1920 um grupo que se considerava herdeiro da tradição simbolista e, ao mesmo tempo, propunha inovações literárias. Tratava-se do Grupo de Festa, articulado em torno da revista homônima, que se aproximava de um ideário de cunho conservador e reacionário, e também da militância católica leiga. Seria, nesse sentido, um correlato no plano literário do projeto de modernização conservadora do plano político. A revista foi o amadurecimento da experiência de seus organizadores com publicações anteriores, mostrando um percurso de elaboração de reflexões que 72 culminariam no espiritualismo do grupo. Nestor Vitor, Tasso da Silveira e Andrade Muricy vinham de um cenário de efervescência simbolista – o Paraná foi o único lugar, com exceção do Rio, em que o movimento ganhou tanto fôlego. Moraram e atuaram na capital federal e, portanto, produziram e teceram suas redes de sociabilidade nessa cidade, mantendo também contatos com sua terra natal e/ou articulando outros contatos com diversas partes do país, fato que ampliava as possibilidades de “nacionalização” de seus valores168. A primeira dessas publicações foi América Latina (1919-1920), que abordava temas como teatro, filosofia, crônica jurídica, história, música, educação, literatura estrangeira, além de apresentar textos de poesia e prosa inédita, e contou com contribuições de Pontes de Miranda, Muricy, Tasso da Silveira, Nestor Vitor, Rocha Pombo, Ronald de Carvalho, Jackson de Figueiredo e outros. O periódico trazia discussões sobre o nacionalismo, pautando-se na vertente autoritária de Alberto Torres169, além de debates sobre o pan-americanismo e o espiritualismo católico. Além disso, consideravam-se herdeiros de uma tradição simbolista, ao mesmo tempo em que abriam espaço para novos escritores, como Manuel Bandeira. Nesse sentido, as propostas da revista comportavam inovações, sem, contudo, perder de vista uma determinada tradição da qual eram caudatários. Um dos colaboradores, Ronald de Carvalho, despontava como um dos nomes mais proeminentes da intelectualidade então. Vindo de uma tradição simbolista, participou também de grupos modernistas, como o português Orpheu, do qual participava Fernando Pessoa. Desde a sua estréia, em 1913, “ele era capaz de frequentar a vanguarda literária do Brasil e de Portugal, escrever sonetos, estar no Itamarati e ser premiado pela ABL, sendo um jovem de apenas 27 anos”170. Além

168 GOMES, 1999, p. 19. 169 Alberto Torres (1865-1917) foi um político, bacharel em direito e jornalista de Itaboraí/RJ. Publicou durante a década de 1910 obras sobre a unidade nacional e a organização social brasileira, desenvolvendo uma vertente de pensamento autoritária, marcada pela recusa tanto das ideias socialistas quanto do individualismo. O caminho a ser seguido, para ele deveria passar pela compreensão das particularidades da realidade social, e pela unidade nacional a partir da construção de um Estado forte. De acordo com Angela de Castro Gomes, Alberto Torres faleceu sem nenhuma repercussão, e só foi recuperada nos seguintes por parte da intelectualidade – principalmente a partir do término da Primeira Guerra Mundial, que fez com que o problema da identidade nacional adquirisse caráter de urgência (ibid., p. 46). Seu resgate acabou por criar consenso – à direita e à esquerda – quanto à necessidade de unificação nacional, além de reforçar a ideia de que apenas por um Estado forte a modernização do país seria consumada (LAHUERTA, 1997, p. 100). 170 GOMES, 1999, p. 47. 73 disso, foi fundamental para as conexões culturais entre Rio e São Paulo, principalmente por conta de seu salão, muito frequentado à época. A segunda revista, Árvore Nova (1922), teve duração efêmera, e não encontrou a mesma acolhida da primeira. Entre as dificuldades encontradas, problemas financeiros e a doença de Andrade Muricy, que o fez mudar para Fraiburgo entre 1922 e 1923, e depois de 1924 para a Suíça, com o intuito de se tratar. Esse ano foi também o de lançamento de Klaxon, revista de divulgação do modernismo paulista, e também ano da vinda da Revista do Brasil para o Rio, com direção de Paulo Prado e Monteiro Lobato. A terceira publicação, Terra do Sol (1924), alcançou maior receptividade do que as anteriores, cujo fato pode ser entendido também pelo cuidado gráfico com que era elaborada. Em suas páginas, ganhava destaque o pensamento de Alberto Torres. Havia uma clara militância nacionalista, além da abordagem de questões relacionadas ao panamericanismo e ao catolicismo espiritualista. Entre os colaboradores, autores como Rocha Pombo, Victor Vianna, Elísio de Carvalho, Ronald de Carvalho, Tasso de Carvalho e Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima). O simbolismo continuava a ser a tradição para a qual o grupo se voltava. Havia, ainda, uma interlocução com Portugal. Vale lembrar que esse era um momento de instabilidade no cenário nacional, tanto em níveis políticos, com o levante tenentista de São Paulo, quanto no ambiente cultural. Foi o chamado “segundo momento” do modernismo paulista: depois de uma primeira fase que uniu diferentes intelectuais em prol da atualização cultural, adveio um período de agitação e embates, de reavaliação e crítica interna, de delineamento de propostas, cisões e alianças. Para Sergio Miceli, essas querelas e rachas ocorridos no interior do modernismo estão relacionadas, sobretudo, a questões de ordem político-ideológica171. Exemplo disso foi a publicação do Manifesto Pau-Brasil de Oswald e a réplica de Menotti, o “Manifesto Antipau-Brasil”. No mesmo ano surge Estética, herdeira carioca de Klaxon e dirigida por Sérgio Buarque e Prudente de Morais Neto,

171 Oswald, por exemplo, rompe definitivamente com Paulo Prado, Alcântara Machado e Mário de Andrade em 1929, por divergências políticas, visto que ele estava em sintonia com a situação, e os demais com a oposição democrática. Por volta de 1931, Tarsila e Oswald teriam os primeiros contatos com o socialismo, que os faria posteriormente se filiar ao PCB. Após 1930, alguns modernistas se engajaram na fundação de movimentos autoritários de direita (caso de Plínio Salgado), ou então manifestaram apoio às tendências autoritárias do governo vitorioso, como Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo (MICELI, 2001, especialmente as páginas 103 e 252). 74 com duração efêmera. A revista foi batizada por Graça Aranha à revelia de seus criadores, quando este já caía em desgraça com os modernistas. Por esse período, Graça Aranha não agradava mais nem os paulistas (tanto os ligados aos Andrades, como o grupo verde-amarelo), nem os de Estética. Não agradaria também aos de Festa. Ficou ao lado de alguns amigos fiéis, entre os quais Ronald de Carvalho. Em 1925, Muricy retorna da Suíça. É quando o Grupo de Festa se organiza, em torno de publicação homônima, nome tirado de Festa inquieta, livro que Muricy escrevera no exterior. A publicação conheceu duas fases: a primeira como um “mensário de arte e pensamento”, de 1927 a 29; e a segunda, “revista de arte e pensamento”, de 1934 a 35, e contava com colaboradores como Cecília Meireles, Correia Dias, Tasso da Silveira, Andrade Muricy, bem como com ilustrações de Cecília, Ismael Nery, Manoel Santiago e outros. Sua periodicidade foi mantida financeiramente com subscrições, e também com o mecenato do médico paranaense Moyses Marcondes, amigo de Nestor Vitor. O que caracterizava a publicação, de maneira geral, era o

[...] anseio pela afirmação da nacionalidade, sobretudo no campo literário e das artes em geral, com a defesa de uma cultura brasileira autêntica, autônoma quanto à influência europeia, e por isso livre de artificialismos e imitações, elemento que, no plano continental, ainda correspondia a um necessário aprofundamento de nossa consciência latino-americana, com a maximização do intercâmbio intelectual com nossos vizinhos latinos. E, de outro lado, interpretações da nossa nacionalidade manifestas por intelectuais brasileiros, e também portugueses, calcadas geralmente numa visão negativa de nossa formação racial, tida, na maior parte dos casos, como uma das explicações para o atraso civilizacional do país.172

Nesse sentido, o Grupo de Festa se inscrevia em uma linha de pensamento conservadora, pautada pela ligação a uma tradição literária e religiosa. Opunha-se também às concepções primitivistas, que buscavam a origem de nossa identidade apenas em elementos folclóricos ou populares. De acordo com Angela de Castro Gomes, essa era uma das chaves identitárias do grupo, que recusou tanto a “estratégia do escândalo”, como uma ruptura radical com o passado ou um nacionalismo radical173. Por sua vez, o artista deveria ser o responsável por perscrutar a “realidade total”, as verdades da existência – por isso uma arte de

172 VIKTOR, Tiago Alexandre. Trajetória de constituição e fundamentos do modernismo do Grupo de Festa. 2016. 183f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis. p. 10. 173 GOMES, 1999, p. 59. 75 cunho espiritualista, que constituía uma reação ao materialismo da sociedade industrial e à degradação do homem moderno, ao mesmo tempo em que reação ao socialismo e ao liberalismo. O grupo considerava o seu modernismo “o mais representativo da alma brasileira, por se constituir com base na ‘tradição’ nacional, e não na recepção das vanguardas artísticas europeias”174. Se por um lado Mário de Andrade considerou que “a agitação, a vida nova principiou com essa gente”, por outro, afirmava-se que, tendo preferido o isolamento ao escândalo e à ruptura, o grupo teria se mantido à surdina, tendo posteriormente se aproveitado da situação quando do rompante modernista. Para Angela de Castro Gomes, Mário de Andrade estava certo no que se referia à avaliação dessa estratégia:

A mudança, em tempos tão agitados como os do início do século 20, requeria certas cargas de iconoclastia e não se poderia culpar os que a usaram por terem monopolizado o cenário. Esse monopólio dos modernistas de São Paulo e também de alguns do Rio, reunidos na Semana de 22, mesmo que injusto, aplainou caminhos, permitindo simpatias para com inovações que antes deles causariam escândalos175.

No entanto, para a autora há que se relacionar o sentido do projeto com os meios empregados para executá-lo; deste modo, as escolhas do grupo não podem ser dissociadas de sua vinculação a uma tradição simbolista, marcada pelo espiritualismo e pelo misticismo, e parte da ambiência cultural na qual esses intelectuais emergiram. Para Gomes, embora essa tradição não possa ser mecanicamente associada ao boom da militância católica laica dos anos seguintes, havia uma convergência de interesses, bem como a proximidade e laços de amizade entre alguns intelectuais simbolistas e os do laicato católico. São essas conexões entre as trajetórias que nos permitem transitar entre o simbolismo e o modernismo carioca dos anos 1920 e 1930, marcado majoritariamente por um viés conservador. Desde os anos 1910, o Rio vinha sendo “sede e laboratório” de um grande projeto da militância laica católica, que recuperou para a Igreja espaço no campo político e intelectual brasileiro: “pode-se aventar que, talvez pela primeira vez na história da Igreja no Brasil, desenvolveu-se esforço tão refinado, sistemático e bem-

174 VIKTOR, op. cit., p. 11. 175 Ibid., p. 44. 76 sucedido de expansão da catolicidade”176. Exemplo disso foram as atuações do cardeal dom Sebastião Leme e dos líderes leigos Jackson de Figueiredo e Alceu Amoroso Lima, envolvidos na direção da revista A Ordem e no Centro Dom Vital. Figueiredo foi um dos colaboradores de Festa, apesar de sua não filiação ao grupo, por ser contra o modernismo; teria sido mesmo o conversor de Tasso, mantendo laços de amizade com esse e outros intelectuais do grupo. Sua morte, em 1928, impactou toda a intelectualidade carioca. No ano de lançamento de Festa, forma-se em São Paulo o grupo Verde- amarelo, que pouco tempo depois desembocaria no Anta, liderado por Plínio Salgado. O grupo surgiu de um rompimento de Plínio, Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia com os modernistas de Terra Roxa e Pau Brasil. Entre as divergências, concepções distintas de nacionalidade e regionalismo, e da incorporação ou recusa de elementos estrangeiros em nossa cultura. Os verde-amarelos detinham uma concepção ufanista de nacionalismo, pautada pela ideia da cultura brasileira como uma esfera isenta de conflitos e harmônica. São Paulo, e em especial o mito bandeirante, agora atualizado, emergia então como um modelo de brasilidade a ser seguido. Segundo Monica Velloso, o grupo foi influenciado pelas ideias nacionalistas e civilistas de Olavo Bilac, para o qual o intelectual deveria se portar como um “mestre em relação às multidões” – que deveriam ser educadas como as crianças –, além de ser um soldado lutando contra as invasões estrangeiras177. A crise dos valores europeus implicou na ascensão de um pensamento que opunha a velha à nova civilização. Vale ressaltar, ainda, que essa crise também se configura numa crise do liberalismo, que no Brasil se somou à crise do sistema oligárquico178. Para Monica Velloso,

Tais idéias tendem a adquirir força crescente entre os intelectuais brasileiros por tornarem patente a decadência dos valores civilizatórios europeus. A visão pessimista do ser nacional, o atraso econômico do Brasil e os problemas racial e climático são repensados em função das modificações determinadas pelo panorama internacional. Verifica-se, então, uma tentativa de reverter a situação. Os fatores negativos atribuídos à nossa civilização

176 GOMES, op. cit., p. 30. 177 VELLOSO, 1993, p. 90. 178 Sobre esse assunto, ver: FERREIRA, Marieta de Moraes e PINTO, Surama Conde Sá. A crise dos anos 1920 e a Revolução de 1930. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (Org). O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 387- 415. 77

não o são, na realidade. Se aparecem assim é porque as elites brasileiras se pensaram e pensaram o seu país de acordo com a mentalidade européia. E se esta demonstra sua falência, sua inaptidão para gerir a comunidade internacional, não há mais sentido em continuar tomando-a como modelo.179

Contudo, essa mudança de percepção de nossas origens, especialmente no que concerne às questões raciais, foi um processo complexo de avanços e recuos, inúmeros debates e posições ambíguas, com elementos residuais e emergentes180 – processo que será mais bem abordado nos capítulos seguintes. O que cabe pontuar, por ora, é que havia uma interconexão de ideias, que marca a trajetória individual desses intelectuais e coletiva dos grupos, por vezes de maneira contraditória. A crítica ao cosmopolitismo e à homogeneização da vida na urbe, por exemplo, irá encontrar respaldo tanto no discurso dos regionalistas do Nordeste, como, em partes, no grupo Verde-amarelo181. Festa, por exemplo, apresentava elementos contraditórios em seu discurso, visto que afirmava a necessidade de libertação do pensamento europeu e a criação de uma arte brasileira, e ao mesmo tempo propugnava pelo branqueamento do país, através da vinda de imigrantes da Europa. Oliveira Vianna, um dos expoentes dessa corrente, colaborou com vários artigos sobre o tema na revista. Tasso da Silveira, por sua vez, chegou a integrar a campanha integralista ao lado de Plínio Salgado. Por outro lado, nem todos os membros da revista estiveram envolvidos com grupos políticos de direita; muitas vezes seu conservadorismo esteve relacionado a um pensamento religioso, discussão que, para ser aprofundada, deve atentar para a trajetória individual desses intelectuais. Trata-se de um momento de críticas diversas ao liberalismo, sob diferentes matizes, que vão desde o autoritarismo integralista, às propostas conservadoras que não estão ligadas ao autoritarismo, e críticas liberais ao funcionamento do regime oligárquico. Além disso, nesse período as opções estéticas e políticas ainda estavam se delineando. Em 1926, ano da publicação de O estrangeiro, de Plínio Salgado, Mário de Andrade rompe com Graça Aranha; data do mesmo ano o Manifesto Regionalista do Nordeste, capitaneado por Gilberto Freyre em Recife. Foi também o momento de nacionalização do modernismo enquanto movimento organizado, com o surgimento

179 VELLOSO, op. cit., p. 91. 180 WILLIAMS, 2000, p. 144-146. 181 VELLOSO, op. cit., p. 96-97. 78 dos periódicos A Revista (1925-26), em Belo Horizonte; Terra Roxa e outras terras, em São Paulo (1926); a fase chamada modernista da Revista do Brasil, com Rodrigo de Melo Franco e Prudente de Moraes Neto (1926-27); e Verde de Cataguases (1927). Por fim, é o momento do Manifesto Antropofágico, com o confronto entre o esteticismo de Mário e o primitivismo de Oswald (1928-29). Destarte, não é casual a ocorrência de polêmicas e embates entre os intelectuais, situados em grupos que se reorganizavam com o passar dos anos e dos eventos estéticos e políticos. Mais do que indicadores de disputas individuais ou coletivas, elas exprimem “a intensidade e a dificuldade das questões então enfrentadas pelo país, em busca de uma modernidade sentida como necessária e iminente no período do entreguerras”182. Trata-se do momento em que as direções ainda estavam sendo tomadas. A ambiguidade será, nesse sentido, a marca do modernismo, tendo em vista que os intelectuais, de maneira geral, ainda mantinham certa distância do “povo”, visto como quase com exotismo, como uma massa à qual se deve dar forma – questão que retomarei em outros capítulos. Não houve, por exemplo, uma atenção maior às questões operárias emergentes. Como já comentado, o modernismo paulista foi possível graças à união de uma intelectualidade viajada com o apoio da burguesia cafeeira. Mesmo a atuação política se dava aos velhos moldes: Mário de Andrade e Sérgio Milliet pertenceram ao PD, Oswald de Andrade, ao PRP – configuração que só viria a se modificar com as mudanças políticas e a polarização ideológica da década de 1930.

1.3 UM MÉDICO NO FANTÁSTICO MUNDO DAS LETRAS

Após essa longa introdução ao universo cultural brasileiro do período, trata-se agora de inserir o autor aqui estudado nesse meio. Gastão Cruls nasceu no dia 04 de maio de 1888, no antigo Observatório Astronômico do Morro do Castelo183, de

182 GOMES, 1999, p. 13. 183 Localizado próximo ao mar, o morro tinha surgido como povoado ainda nos tempos da invasão francesa, ganhando logo uma pracinha central e uma igreja, a primeira sé da cidade, segundo conta Luís Edmundo (2001, p. 122-123). Seu nome deriva de uma fortaleza, chamada de Fortaleza de São Sebastião do Castelo. O morro também abrigou as primeiras construções da cidade, como a Casa de Câmara e da Cadeia, o Colégio dos Jesuítas e outros; em seu entorno, se concentravam a Santa Casa de Misericórdia e diversas fortalezas. Até meados do século XIX, era considerado local de “morada nobre”, um dos lugares mais frescos e salubres da cidade. 79 que seu pai foi diretor por muitos anos. Era filho de Maria Margarida Neves e do cientista belga Luís Cruls184. As informações encontradas sobre sua família dão conta de que ele teve outros irmãos homens, entre os quais um falecido ainda criança. Acabou se tornando o único homem adulto, em meio a mais quatro filhas. Gastão Cruls fez os estudos primários no Colégio Rush. Após esse período, viveu por um tempo com a família em Petrópolis, estudando então no Colégio Kopke, onde conheceria Miguel de Ozorio Almeida, e no Ginásio Fluminense. Após o fechamento da instituição, Cruls passou pelo Colégio São Vicente de Paula, ainda em Petrópolis, e acabou por concluir os preparatórios para a faculdade no Colégio Pedro II, na capital. Filho de um engenheiro e astrônomo, o autor optou pela profissão médica, ingressando na Faculdade de Medicina em 1905. Marco Aurélio Santos indica que por volta de 1902 o pai de Gastão teria contraído malária durante uma expedição185, vindo a falecer antes de ver o filho formado. Como estudante, Cruls foi interno do Professor Miguel Couto186, e também frequentou a enfermaria do Professor Paes Leme, concluindo seu curso em 1910.

Contudo, entrou em decadência com a abertura de diversas estradas e povoamentos nos subúrbios. Além disso, passou a ser considerado um dos principais fatores da insalubridade da cidade abaixo, visto que não permitia que os ventos circulassem e as águas escoassem. No alto, destoando do conjunto de habitações antigas e casebres com animais pelos pátios, se encontrava o Observatório Astronômico, “onde o Dr. Cruls, muito importante, vive a espiar manchas de sol, a calcular eclipses” (EDMUNDO, ibid., p. 134). No afã das reformas urbanas, o morro foi completamente destruído em 1922, como parte dos preparativos para as comemorações do Centenário da Independência do Brasil. 184Luís Cruls (Louis Ferdinand Cruls) foi um cientista belga (1848-1908). Nasceu em Diest, e chegou a seguir carreira militar por um tempo, mas acabou por se formar em Engenharia Civil na Universidade de Ghent, na década de 1860. Incentivado por amigos, veio para o Brasil em 1870, onde logo travou contato com Joaquim Nabuco, e membros da elite imperial. Acabou casando com uma brasileira e se estabelecendo no bairro Laranjeiras, no Rio. Luís Cruls dirigiu o Observatório Imperial (depois Nacional) entre 1801 e 1908. Por esse período, participou da primeira observação do Grande Cometa, em 1882, que posteriormente recebeu seu nome. Há também uma cratera em Marte batizada em sua homenagem. O astrônomo chefiou uma expedição de exploração de reconhecimento da futura capital federal, entre 1892 e 1895, indicação do próprio Floriano Peixoto. A expedição contava ainda com geógrafos, médicos, higienistas, engenheiros, botânicos, e resultou na publicação Planalto central do Brasil. Luís Cruls também integrou a comissão de limites com a Bolívia, até 1902. Foi ainda catedrático de Astronomia e Geodésia na Escola Superior de Guerra, e o criador do primeiro periódico científico do Brasil, a Revista do Observatório. Cf.: SANTOS, Marco Aurélio Martins. Louis Cruls: o homem que seguiu as estrelas até a futura capital do Brasil. In: SENRA, Nelson de Castro (Org.). Pelas veredas de Brasília: as expedições geográficas em busca de um sonho. Rio de Janeiro: IBGE, Centro de Documentação e Disseminação de Informações, 2010. p. 48-50. Disponível em: . Acesso: 04.nov.2016. 185 Ibid., p. 49. 186 Questão a que retornarei no próximo capítulo. 80

Ainda acadêmico, entrou para a Assistência Pública, exercendo as funções de auxiliar, subcomissário e comissário médico. Como indica em entrevista concedida a Homero Senna, por esse período Cruls já estava desgostoso da profissão; no entanto, tentou insistir por mais um tempo, atuando na ambulância de socorros urgentes, que passava por diferentes lugares da capital federal187. Também por esse período, o então médico participou da Comissão de Saneamento Rural enviada à Paraíba, em 1918. De acordo com a nota da editora José Olympio em Quatro romances188, Gastão Cruls teria começado a escrever por volta de 1914 ou 1915, publicando logo depois seus primeiros contos na Revista do Brasil, fase Monteiro Lobato, sob o pseudônimo de Sérgio Espínola. Por essa época era ainda desconhecido; apenas um de seus amigos era de fato escritor: Alberto Rangel, autor de Inferno Verde (1908), obra que tem como pano de fundo o cenário amazônico. Data de 1917 a aparição de Cruls nos meios literários do Rio, quando conheceu pessoalmente Antônio Torres. Introduzido por Torres no cenário literário carioca, Gastão Cruls passou a frequentar mais assiduamente a Livraria Castilho, de cujo proprietário era amigo. Estabelecida desde finais do século XIX, a livraria se tornara ponto de encontro de diferentes escritores, discutindo as novidades literárias e realizando até mesmo pequenas palestras. Por ela passaram, em momentos diferentes, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Osório Duque Estrada, Emílio de Menezes, Viriato Correia, Lima Barreto, Agripino Grieco, entre outros189. Na livraria, também se encontrava a “rodinha do Bar Nacional”, grupo heterogêneo de amigos que posteriormente seguia para o bar. Os membros do grupo também se autodenominavam “pilotos”, por conta do apelido que Antonio Torres deu a Efigênio Sales, e que depois foi generalizado para todos os membros. Como comenta o próprio Cruls, a “rodinha do Bar Nacional” era “das mais ecléticas”190, sendo composta por escritores como Gilberto Amado191, Costa

187 SENNA, Homero. República das letras: 20 entrevistas com escritores. 2ª ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora/ Instituto Nacional do Livro, 1968. p. 218. 188 CRULS, Gastão. Quatro romances. São Paulo: Livraria José Olympio Editora, 1958. 189 CAVALCANTI, Joaquim. O livreiro que a cidade esqueceu: A. J. de Castilho. Tribuna da Imprensa, 30-31.dez.1950, p. 10. 190 SENNA, op. cit., p. 222. 191 Gilberto de Lima Azevedo Sousa Ferreira Amado de Faria (1887-1969) foi um advogado, jurisconsulto, escritor, jornalista e político sergipano. De uma família de escritores, entre os quais 81

Rêgo192, Adoasto de Godói, Cândido de Campos193, políticos como Flores da Cunha, e artistas como o pintor Fiúza Guimarães194. Para o autor significava, sobretudo, uma roda “de amigos, que ali se reuniam diàriamente para conversar um pouco e tomar uns aperitivos antes do jantar.”195. Seu livro de estreia, Coivara, foi lançado em 1920 pelo editor Castilho (e que chegou até a 3ª edição, em 1958). Em 1922, Gastão Cruls publica seu segundo livro de contos, Ao embalo da rede, cuja temática foi em muito inspirada em suas experiências como sanitarista na Paraíba do Norte. Em 1925 publicou A Amazônia misteriosa, narrativa escrita sem que o escritor tivesse ainda conhecido a Hileia, baseada apenas em uma extensa pesquisa bibliográfica. A Amazônia misteriosa foi seu romance de maior visibilidade, chegando à sua 9ª edição na década de 1970. Logo em seguida publicaria Elza e Helena, em 1927, romance transformado em filme pela Atlântida Cinematográfica na década de 1950

está seu primo Jorge Amado, formou-se pela Faculdade de Direito de Recife, em 1909. Logo em seguida, tornou-se um catedrático em Direito Penal. Em 1910, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde exerceria a colaboração jornalística, através de periódicos como o Jornal do Comércio e O País. A partir de 1915, iniciaria sua carreira na política, atuando como deputado federal pelo Sergipe. Em 1934, passaria também pela diplomacia, residindo em cidades como Santiago, Helsinque, Roma e Berna. Um dos episódios mais controvertidos de sua carreira foi o assassinato do poeta Aníbal Teófilo, em 1915. Em uma cerimônia da Sociedade Brasileira dos Homens de Letras, os dois se desentenderam por conta de uma publicação, e o escritor sacou o revólver e matou Aníbal, ali mesmo. Apesar de absolvido na justiça, a carreira de Gilberto Amado esteve para sempre associada a esse episódio. Foi eleito membro da ABL em 1964. Fonte: e < http://academia.org.br/acadêmicos/gilberto-amado/biografia> Acesso: 06.jan.2018. 192 Pedro da Costa Rego (1889-1954) atuou como jornalista e político no Rio de Janeiro. Alagoano, veio para a capital federal em 1900, com o intuito de completar seus estudos. Logo a seguir, passaria a atuar na imprensa, com colaborações nos jornais Gazeta de Notícias e Correio da Manhã. Retornou para Alagoas na década de 1910, atuando como secretário da Agricultura (1912), deputado federal (1915 a 1918), governador do estado (entre 1924 e 1928) e também senador, na década de 1930. Em 1951, atuou como delegado brasileiro na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). Fonte: . Acesso: 06.jan.2018. 193 Cândido Torres Rangel de Campos (1885-1954) foi um jornalista carioca. Chegou a ir para São Paulo com o intuito de estudar medicina, em 1903, mas abandonou o curso. Retornando ao Rio, participou de diferentes empreendimentos, até ser convocado para dirigir o suplemento dominical da Gazeta de Notícias. Em 1915, fundaria junto com Coelho Neto a revista Concórdia. Em 1921, viraria diretor de A Notícia, jornal que durou até as convulsões políticas de 1930, quando foi empastelado. Nesse período, Cândido Torres se refugiou no Peru, retornando alguns anos depois. Em 1936, retomaria o projeto de A Notícia. Fonte: Acesso: 06.jan.2018. 194 José Fiúza Guimarães (1868-1949) foi um artista português. Por volta de 1883, vem para o Rio de Janeiro, fixando residência e passando a estudar pintura na Academia Imperial de Belas Artes. Atuou como pintor e decorador carnavalesco. Entre 1896 e 1901, vai para a Alemanha, graças ao prêmio de estudos concedido pela Escola Nacional de Belas Artes. A partir de 1916, se tornaria professor dessa instituição. Fonte: Acesso: 06.jan.2018. 195 SENNA, 1968, p. 222. 82 com o nome de A sombra da outra. Em 1928, o autor acompanhou a expedição do General Rondon aos limites do Brasil com a Guiana Holandesa, pelo rio Trombetas, até Tumucumaque. Tal expedição resultou na obra A Amazônia que eu vi, publicada em 1930 (editada pela quinta vez em 1973 pela José Olympio e pelo Instituto Nacional do Livro/MEC). Por volta de 1926, Cruls abandonou definitivamente a medicina196. Sua dificuldade de adaptação às vicissitudes da profissão, suas críticas à conduta antiética de alguns profissionais, parecem ser alguns dos motivos que o levaram a deixar a carreira. Apesar disso, a preocupação com as questões médicas continuaram presentes em sua obra, marcando-a de forma peculiar, questões estas que serão aprofundadas nos capítulos subsequentes deste trabalho. O autor também foi sócio de Agripino Grieco na Editora Ariel, já na década de 1930, momento em que o mercado editorial configurava-se então como importante meio de inserção e sobrevivência intelectual para muitos escritores. De acordo com Tania Regina de Luca, a Ariel tornou-se uma empresa importante e, ainda que apresentasse um catálogo variado, dedicou muito de sua atenção a escritores brasileiros e à literatura197. De fato, a editora acabou por publicar nomes de peso da literatura da época, como Jorge Amado, Raul Bopp, Gilberto Amado, Murilo Mendes, Graciliano Ramos, Lúcia Miguel Pereira, Cornélio Pena, José Lins do Rego e outros. As capas de suas publicações, geralmente ilustradas por Tomás Santa Rosa Júnior, artista paraibano que trabalhou com Portinari, apresentavam cores fortes e belos desenhos, que acabaram por se tornar sua marca. A editora foi responsável também pela publicação do Boletim de Ariel, entre 1931 e 1938, mensário que abordava temas do mundo do livro, com especial atenção à literatura. Cruls era redator-chefe, enquanto Grieco atuava como diretor da publicação. Como a editora não possuía livraria própria, o Boletim se tornou uma importante fonte de renda e de divulgação de seus autores e livros – principalmente em um momento de expansão do setor editorial e de acirrada competição pela vendagem de livros. De acordo com Lawrence Hallewel, esta foi a revista literária

196 Ibid., p. 218. 197 LUCA, Tania Regina de. Editoras e publicações periódicas: o caso do Boletim de Ariel. Anais do XVIII Encontro Regional de História – o historiador e seu tempo. ANPUH/SP – Unesp/ Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Disponível em: Acesso: 20.jul.2016. 83 mais importante do período198. Segundo Tania de Luca, muitos autores assinavam o Boletim e esperavam as resenhas de suas obras publicadas pela editora, como a autora percebeu no material epistolar de Graciliano Ramos, por exemplo. Para Sergio Miceli, a coalizão de novas forças em disputa depois da ascensão de Getúlio Vargas, que incluía grupos diversos em expansão nos grandes centros, dinamizou o mercado e a produção cultural, colocando-os em situação de maior autonomia frente aos antigos grupos oligárquicos e seus fomentadores, bem como frente às principais instituições políticas e religiosas. Mesmo com os crescentes investimentos dessas instâncias em políticas para a cultura, e os mecanismos de controle desenvolvidos pelo Estado, que afetavam a produção e a difusão dos bens culturais, houve um crescimento real do mercado de livros. Em último caso, o fato possibilitou a ascensão de “romancistas profissionais”, indivíduos que pela primeira vez puderam sobreviver apenas à custa de sua produção literária (casos de Érico Veríssimo e Jorge Amado). Assim sendo, vale ressaltar a diferença entre o Boletim e as publicações de vanguarda, como Klaxon, bem como aquelas fundadas por grupos com posições ideológicas claras, como a Ordem (uma publicação católica), a integralista Anauê ou ainda as revistas oficiais do regime, como a Cultura Política, por exemplo. Como aponta Tania de Luca, o fato de ser uma publicação periódica de uma empresa, destinada ao público mais amplo, contribuía para o esmaecimento do tom polêmico da revista, congregando indivíduos de tendências estéticas e políticas diversas e marcando a publicação com um “ecletismo bem comportado”199. Poucas vezes a revista abordou temas mais específicos do contexto sócio-político, como a edição de agosto de 1935, com a questão da esquerda e da direita literárias, por exemplo. A editora fecharia suas portas em 1939, juntamente com a Schmidt (de Augusto Frederico Schmidt), por não conseguirem competir com a presença da José Olympio no Rio. Paralelo a esse empreendimento, Cruls seguiu com a carreira de escritor, publicando Vertigem, em 1934, e História puxa história, livro de contos de 1938. Em fins desse mesmo ano, o autor retornou ao território amazônico, viagem que resultou na obra Hileia amazônica, de 1944 (sua única publicação com edições no século XXI, pelo que apreendi).

198 HALLEWEL, 1985, p. 345.

199 LUCA, op. cit. 84

Em 1947, seu estudo histórico Aparência do Rio de Janeiro conquistou o Prêmio Vieira Fazenda, da Prefeitura do Distrito Federal. O livro chegou até sua 3ª edição, na década de 1960. Por fim, o autor lançou ainda Antônio Torres e seus amigos, em 1950, e De pai a filho, de 1954, que obteve o Prêmio Luísa Cláudio de Sousa, instituído pelo Pen Clube do Brasil. Já seus quatro livros de contos seriam posteriormente reunidos em Contos reunidos, de 1951, e seus romances em Quatro romances, em 1958. Gastão Cruls foi ainda o primeiro bibliotecário da antiga Universidade do Distrito Federal, cargo em que ficou por pouco tempo. Em 1939, foi nomeado Chefe da Divisão de Bibliotecas e Cinema Educativo da Prefeitura do Distrito Federal. O autor exerceu também a função de tradutor, nas obras Ciúme, de René-Albert Guzman; A caminho da forca, de T.S. Matthews; Minha vida, de Isadora Duncan; Nijinsky, de Romola Nikinsky; Luxúria, de J. Kessel; e As grandes expedições científicas no século XX, de Charles Key. Faleceu no dia 5 de junho de 1959, deixando um romance inacabado, Angra, e outro em projeto, Glória – que também teria a Amazônia como pano de fundo. Por vir de família que foi capaz de lhe transmitir determinado capital social, já pertencente às camadas intelectuais da sociedade – seu pai foi um cientista conhecido, que atuou tanto no Governo Imperial, quanto no período republicano –, sua inserção social em uma elite científica foi certamente facilitada. Contudo, como aponta Sergio Miceli, as novas configurações advindas com as mudanças políticas, sociais e culturais a partir de 1930 transformaram as feições dos bens culturais, na medida em que envolveram novos atores. Estes vão desde um público diversificado, com novas exigências (estudantes de cursos superiores, docentes, entre outros), passando por novos grupos de elite capazes de financiar essa produção (as famílias cultas e abastadas, a Igreja, as autoridades públicas, as editoras, etc), até a diversificação dos produtores (com a entrada de “romancistas profissionais”, por exemplo). Na mudança de regime, os trunfos de educação formal e bagagem cultural passaram a ser cada vez mais valorizados – fatores que certamente também influenciaram na particular inserção de Gastão Cruls no exercício da variada gama de atividades que desenvolveu. O escritor apresentava uma postura claramente antiacadêmica, adotada também por alguns membros do grupo de escritores que frequentava, notadamente 85

Gilberto Amado – pelo menos no começo do século, visto que nos anos 1960 Amado entraria para a academia – e Antonio Torres. Esse fato é emblemático do relacionamento conturbado entre o oficialismo e o grupo boêmio, com o qual o autor se identificava. Nesse sentido, a única instituição de que se tem notícia de que participou foi a Sociedade Carioca de Escritores, de 1952, e que contava com nomes como José Lins do Rego, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Múcio Leão, Miguel Ozorio de Almeida, Manuel Bandeira, Dinah Silveira de Queiroz, Lucia Miguel- Pereira, Otávio Tarquínio de Souza, Cassiano Ricardo, Ciro dos Anjos, Rubem Braga, entre outros escritores cariocas ou com carreira estabelecida no Rio200. Antonio Torres era um costumeiro crítico das instituições e personalidades culturais oficiais brasileiras, e denominava a ABL de “preguiçosa e inútil”201. Chegou mesmo a utilizar, nas correspondências trocadas com Gastão Cruls, os epítetos de “Academia de Letras Vencidas do Rio”202 e “Acuremia de Tretas”203; além de prever sua breve transformação em “Academia Brasileira de Lixo”204. Cruls, por sua vez, expressaria suas críticas ao formalismo acadêmico em textos como o “Conto de natal”, publicado pela primeira vez na Revista do Brasil, entre 1926 e 1927, e presente em Contos Reunidos (1951). A história narra o desejo de um menino de sete anos de ganhar uma armadura de cavaleiro, com “peitoral reluzente, capacete empenachado de vermelho, largo escudo brazonado e cinturão de espadim à ilharga”205, igual à de seu vizinho, uma criança rica. Quando chega o Natal, a criança faz um pedido e deixa seus sapatinhos junto à janela, para que o Papai Noel venha lhe trazer o presente. Acorda cedo na manhã da data festiva, e descobre feliz que não havia sido esquecido. No entanto, sua alegria se transforma em choro, quando percebe que, ao invés de uma armadura, recebera “umas coisas esquisitas e amarrotadas”:

[...] um fraque prêto, um chapéu-côco, um guarda-chuva de cabo de ouro e também um anel simbólico tendo apenas um grande chuveiro de brilhantes e ao qual faltava juntar a pedra característica, esmeralda, safira ou rubi, conforme a profissão abraçada.206.

200 FUNDADA a Sociedade Carioca de Escritores. Tribuna da Imprensa, 28.jul.1952, p. 9. 201 SILVA, Anderson, 2009, p. 195. 202 CRULS, Gastão. Antonio Torres e seus amigos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1950. p. 146. 203 Ibid., p. 155. 204 Ibid., p. 240. 205 CRULS, 1951, p. 244. 206 Ibid., p. 245. 86

Seu pai tenta lhe acalmar, afirmando que no dia seguinte traria uma armadura igual a do vizinho. Apesar disso, comenta para sua esposa que aquele presente era melhor do que qualquer outro, pois com essa vestimenta e com a observância de certos costumes, o pequeno poderia ser quem quisesse na vida. Através da armadura de brinquedo, Gastão Cruls estaria caricaturizando a vestimenta oficial dos membros da Academia Brasileira de Letras – com seus bordados, espadas e demais adereços peculiares à vestimenta tradicional, utilizada até hoje207. Afora outros detalhes do conto, que serão retomados posteriormente, o autor parece ironizar a aura de que se envolviam os membros da ABL, parte de uma postura antiacadêmica compartilhada por seus amigos escritores. Em “A viagem”, datado do mesmo período de “Conto de natal”, um “homem de fraque, de anel simbólico e de guarda-chuva de cabo de ouro” vai à Europa, levado apenas pelo desejo de ver aquilo de que seus pares falavam, e ele não podia citar em suas palestras e nos seus escritos. Sua partida é marcada por grande agitação:

E ao seu embarque foram amigos e admiradores. E à sua senhora foram oferecidas inúmeras corbeilles de flores. E os jornais falaram no ilustre médico, bacharel ou engenheiro, doublé de um primoroso escritor, membro da nossa Academia de Letras, que no desempenho de importante comissão do Govêrno, partia para o Velho Mundo. E as revistas ilustradas publicaram o seu retrato à hora da partida, cercado de amigos e admiradores, outros muitos homens de fraque, de anel simbólico e de guarda-chuva de cabo de ouro, e entre inúmeras corbeilles de flores, que haviam sido oferecidas à sua senhora.208

Contudo, o desembarque no continente europeu não foi marcado por recepções, flores ou notas nos jornais. O homem de fraque imputa a situação ao momento político por que passava a França. Resolve então ir ao Louvre, pois “era

207 O famoso fardão da ABL, e tudo o que simbolizava, foi alvo de cobiça e, ao mesmo tempo, muito criticado por diferentes escritores ao longo de nossa história literária. Jean-Jacques Brousson, secretário de Anatole France, em visita do escritor ao Brasil em 1909, descreveria em tom irônico: “[...] nunca vimos uniformes tão dourados. Havia mais galões do que costuras. E espadas, e penachos, e botões de metal, grandes como escudos...”. In: JORGE, Fernando. A academia do fardão e da confusão: a Academia Brasileira de Letras, e seus “imortais” mortais. São Paulo, Geração Editorial, 1999. p. 51. A vestimenta foi matéria, mesmo que de maneira metafórica, de diferentes obras. Cf., por exemplo: AMADO, Jorge. Farda, fardão, camisa de dormir. São Paulo: Cia das Letras, 2009. 208 CRULS, 1951, p. 241. 87 preciso ver aquilo de que os outros falavam e que êle nunca pudera citar nas suas palestras e nos seus escritos”209. Narrado de forma repetitiva e irônica, a “historieta” vai demonstrando a estupidez do homem que queria ser reconhecido. O protagonista passa pela estátua Vitória de Samotrácia, que continua impassível. Devia ser porque não tinha cabeça, visto que só por esse motivo se explicaria não ter sido saudado “como devem ser saudados todos os homens de fraque, de anel simbólico e de guarda-chuva de cabo de ouro”210. Posiciona-se então em frente à Vênus de Milo, que haveria de saudá-lo. Contudo, também não é reconhecido. Nem pela Gioconda. Nem posteriormente em outros países. E assim, o homem de fraque resolve retornar, ao que é recebido novamente com pompa, corbeilles de flores para sua senhora, artigos e notas na imprensa como um todo. Assim sendo, o homem de fraque se anima novamente: agora ele já poderia falar sobre aquilo que seus conterrâneos falavam, já poderia citar sua ida à Europa em seus escritos. E assim o fez, tornando-se autoridade no assunto. Criticando a política e a sociedade de sua época, Cruls finaliza, indicando o marasmo em que se encontrava também a cultura do oficialismo acadêmico:

E dizia, então, que a sua terra, a terra dos homens de fraque, de anel simbólico e de guarda-chuva de cabo de ouro, era o país mais adiantado do mundo. E com isso dava desempenho à importante comissão que lhe fôra confiada pelo Govêrno, um governo também de fraque, de anel simbólico e de guarda-chuva de cabo de ouro. E todos o ouviam satisfeitos. E todos ficavam convencidos. E foi assim que êle viveu feliz. E foi assim que morreu feliz.211

Na supracitada entrevista concedida a Homero Senna, Cruls é questionado sobre a sedução da Academia. Ao que responde:

Deixemos a Academia. Ela está lá... e eu aqui, cada vez mais distanciados, pois sou por temperamento um homem inteiramente avêsso a tudo o que é pompa, solenidade e sobretudo, consagração de corpo presente. Deixemos,

209 Ibid., p. 242. 210 CRULS, loc. cit. 211 CRULS, 1951, p. 243. 88

assim, o embalsamento para mais tarde, se os meus livros merecerem tanto.212

E – apontando para um cocar que adornava a sala em que a entrevista se desenrolava – completa, ironizando: “penas, só nesses capacetes indígenas, mas nada de plumas em chapéu de dois bicos...”213. É curioso que a própria instituição, em determinado momento, demonstrou interesse em ter o autor entre suas fileiras, como indica a matéria da Tribuna da Imprensa de 22/09/1956. Comentando sobre as eleições próximas, o texto fala das sugestões de novos membros discutidas internamente, e aponta o escritor como um dos nomes cogitados.

Também está sendo ferventemente cogitado para a próxima vaga um escritor que jamais escondeu o seu desinterêsse pela Academia e jamais se aceitou vestindo um fardão. Trata-se de Gastão Cruls, carioca da gema. Apesar de sua profissão de fé antiacadêmica, o autor de “Aparência do Rio de Janeiro” tem um invejável ambiente no “Petit Trianon” e há um grupo de “imortais” que querem sufragá-lo na próxima oportunidade.214

Ao que parece, Gastão Cruls se manteve distante da instituição até o fim de sua vida. Até onde pude apreender, o escritor cultivou maior afinidade com os grupos boêmios, especialmente o grupo que se encontrava no Bar Nacional, local que seus amigos Gilberto Amado e Antonio Torres frequentavam; e por onde também circularam nomes como Manuel Bandeira, Jaime Ovale, Dante Milano, Osvaldo Costa e Geraldo Barroso do Amaral, durante as décadas de 1910 e 1920. De fato, Cruls foi uma das fontes consultadas por Brito Broca para a escritura de seu livro A vida literária no Brasil – 1900. Apesar disso, o autor não ficou marcado pelo estilo de vida boêmio. De fato, pareceu transitar entre diferentes grupos e tendências entre as décadas de 1910, quando, ainda médico, começava a frequentar os círculos literários; e as décadas de 1930 e 1940, já como autor conhecido de obras de ficção e não-ficção, além de editor e tradutor consagrado. Contudo, suas obras chegaram ao final do século XX e início do XXI praticamente desconhecidas fora de alguns meios especializados.

212 SENNA, 1968, p. 228-229. 213 CRULS, loc. cit. 214 PRONTO o Petit Trianon para a “Operação Sul”. Tribuna das Letras, suplemento de Tribuna da Imprensa, 22.set.1956, s.p. 89

Embora só se possam fazer conjeturas, acredito que o ostracismo posterior em que a obra caiu se deve a diferentes fatores. Em que pese a validade ou não de suas opções estéticas215 – discussão de que me isentarei por pensar não caber a nós, historiadores – acredito que a historiografia literária acabou por contribuir para a dissociação de seu nome do movimento literário “oficial”. Quando mencionado em histórias literárias, o autor é geralmente colocado dentro da alcunha de “pré- modernista”216, e mesmo assim brevemente. Penso que o mesmo movimento que desconsiderou a peculiaridade do modernismo no Rio de Janeiro, bem como o fato de Gastão Cruls ter se relacionado mais constantemente com as rodas literárias à margem da oficialidade acadêmica – portanto, fora de algumas instâncias de consagração – contribuíram para seu progressivo esquecimento. Além disso, sua produção ficcional envolve um romance considerado um dos primeiros de ficção científica (ou algo congênere) no Brasil, além de contos com temas sobre o medo, o sobrenatural, alucinações, e outros próximos da estética decadentista217. Nesse sentido, pode-se refletir até que ponto essas opções temáticas ou estéticas não teriam influenciado sua exclusão dos cânones literários, considerando-se principalmente a tendência a documentar a realidade de parte considerável da literatura brasileira. A esse assunto retornarei posteriormente. Do mesmo modo, Gastão Cruls foi amigo de longa data de Gilberto Amado, figura marcada por um assassinato. Também manteve amizade com Antonio Torres, homem polêmico pelas inimizades que fez e pelas opiniões que sustentou, como o antilusitanismo. Nesse sentido, embora sua trajetória fosse profícua, envolvendo a produção de ficção, atividades culturais e até mesmo a edição de autores modernistas, suas publicações e sua atuação foram deixadas de lado da construção de uma história literária consagrada nos cânones.

215 Sobre a fortuna crítica de Gastão Cruls, há um interessante trabalho de Cláudio Maia. Cf: MAIA, Cláudio Silveira. Gastão Luis Cruls: uma nova recepção. 2005. 279f. Dissertação (Mestrado em Estudos Literários) – Programa de Pós-graduação em Estudos Literários, Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, Araraquara, São Paulo. 216 Cf., por exemplo: MENEZES, Raimundo de. Verbete “Gastão Luís Cruls”. In: ______. Dicionário literário brasileiro ilustrado. Vol. II. São Paulo: Edição Saraiva, 1969. p. 411-412 e MOISÉS, Massaud; PAES, José Paulo (Orgs.). Verbete “Gastão Luís Cruls”. In: ______. Pequeno dicionário de literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967. p. 83. 217 FRANÇA, Júlio. Espaços tropicais da literatura do medo: traços góticos e decadentistas em narrativas ficcionais brasileiras do início do século XX.Anais do XIII Congresso Internacional da ABRALIC – Internacionalização do regional, Campina Grande, PB, 2013. Online. Disponível em: Acesso: 12.set.2017. 90

Por fim, vale ressaltar que o próprio autor manteve outros interesses ao longo da vida, que desembocaram num crescente foco em discussões antropológicas, especialmente no que se refere às populações indígenas – uma trajetória semelhante ao progressivo interesse de Mário de Andrade por folclore –, fato que talvez o possa ter dissociado da imagem de literato especificamente. Além disso, o autor não parecia fazer questão de marcar sua presença nos meios específicos de forma excessiva, como indica a entrevista a Homero Senna. Essa opção parece ter sido mantida pelos herdeiros de seu espólio literário, ao que indica a pesquisa de Vitor Vivolo218, a que retornarei posteriormente. Percebe-se que seu envolvimento com a literatura se deu de modo gradual, primeiramente por um interesse enquanto leitor, e depois pelas rodas das quais participava, assim como pela amizade com Alberto Rangel. Como indica o texto inaugural do Boletim de Ariel, escrito pelo próprio Cruls, desde o início de sua carreira médica o autor já fazia parte do “pequeno grupo de médicos atentos às novidades literárias”219 da Assistência Municipal, grupo que trocava livros, comentava as novidades e discutia literatura informalmente. Acostumado às discussões científicas desde criança, participando de debates médicos e da efervescência cultural da vida literária carioca, e influenciado certamente pelo “caldo de cultura heterogêneo” de que fala Castello, Gastão Cruls percorreu uma trajetória literária peculiar. Passou de uma produção que pode ser considerada de ficção científica e da escrita com influência decadentista, para a tentativa de descoberta do “Brasil profundo” através da exploração de suas regiões. Parte da trajetória intelectual de Gastão Cruls, nesse sentido, se assemelha a diferentes escritores da virada entre o século XIX para o XX, como Euclides da Cunha e Mário de Andrade. Como discutem Nísia Trindade Lima e André Botelho220, relatos de expedições científicas e viagens aos lugares mais distantes (e ainda desconhecidos) do país como o da Comissão de Reconhecimento do Alto Purús

218 VIVOLO, Vítor da Matta. Gastão Cruls e a auscultação da sociedade brasileira. 2017. 126f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. Disponível em: Acesso: 14.set.2017. 219 CRULS, Gastão. Conversa fiada... Boletim de Ariel – Mensario critico-bibliographico Lettras, Artes e Sciencias, n. 1, vol. 1, out. 1931, p. 1. 220 LIMA, Nísia Trindade; BOTELHO, André. Malária como doença e perspectiva cultural nas viagens de Carlos Chagas e Mário de Andrade à Amazônia. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 20, n. 3, p. 745-763, set. 2013. Disponível em: Acesso: 15.out.2016. 91

(1904-1905) produziram imagens emblemáticas, que se tornaram ponto de partida para os debates sobre o território e a identidade nacional das gerações seguintes. Os relatórios e documentos produzidos a partir dessa experiência chefiada por Euclides da Cunha acabaram por se tornar paradigmáticos. Outros textos que ganharam visibilidade no período também estavam relacionados, ainda que indiretamente, às discussões levantadas pelo autor de Os sertões. Como exemplos, estão os relatórios da comissão do Instituto Oswaldo Cruz à região de produção da borracha, liderada por Carlos Chagas entre 1912 e 1913, e os escritos das viagens de Mário de Andrade à Amazônia, ao final da década de 1920. Como apontam André Botelho e Nísia Trindade, esses autores, bem como outros escritores – notadamente parte do movimento modernista – estabeleceram diálogos profícuos com esses relatos e suas interpretações para o país.

Itinerários nos quais se deslocavam ideias, leituras e impressões sobre a natureza, a cultura, as populações locais e as relações entre região e nação, e mesmo entre o Brasil e o mundo, esses deslocamentos e seus correspondentes relatos permaneceram cruciais nas duas primeiras décadas do século XX.221.

Guardadas as devidas diferenças de formação intelectual, de atuação e de visibilidade da obra, Gastão Cruls também se interessou por descobrir o Brasil “real”, seja através do estudo de suas lendas, mitos e tradições, seja através de viagens imaginárias ou reais por diversas regiões. Aprofundar esses contatos, bem como ressaltar as diferenças através da leitura das fontes literárias, é o que pretendo no próximo capítulo.

221 Ibid., p. 746. 92

2 INCURSÕES PELA AMAZÔNIA FICCIONAL DE CRULS

“Seria que me atraísse a miragem do desconhecido, nesta Amazônia fantástica e misteriosa em que cada imaginação prefigura o Eldorado e todo indivíduo se julga um novo Juan Martinez a caminho de Manoa?” (Gastão Cruls).

A Amazônia misteriosa saiu em livro pela primeira vez em 1925222, através da Livraria Castilho223, do Rio de Janeiro. A livraria era uma antiga conhecida do autor, o espaço aonde o autor entrou em contato pela primeira vez com as rodas literárias. Por volta de 1917, a Castilho era usada como ponto de encontro de um grupo composto de nomes como Gilberto Amado, Cândido de Campos, Flores da Cunha, Fiúza Guimarães e outros. Da livraria, o grupo geralmente seguia para o Bar Nacional, na Galeria Cruzeiro. A capa desta edição apresenta apenas o nome do autor, seguido pelo título do romance (ainda com a grafia “mysteriosa”), e uma epígrafe: “Não se me afigura bem omittir certas cousas, prinicipamente das que se passam longe do mar, embora a muitos possam algumas dellas parecer prodigiosas e incriveis”, citação da História Natural de Plínio, livro VII, cap. I. Essa epígrafe foi mantida (só na folha de rosto) pelo menos até a 4ª ed., em 1935, já pela Editora Ariel. O conjunto completa-se com uma imagem de um pequeno sapo verde – um muiraquitã224, objeto que o leitor descobre ser importante ao longo da narrativa.

222 Optei por me utilizar desta primeira edição para as análises, e mantive, nas citações, a grafia original da obra. Até aonde pude verificar, contudo, não há grandes modificações entre as edições, a não ser quanto a mudanças ortográficas. Apesar de exigente com sua produção, Gastão Cruls afirmou uma vez: “[...] jamais modificaria meus contos, romances ou livros de viagens, a não ser em novas edições, na substituição de uma ou outra palavra, ou em detalhes insignificantes. É que, com maiores ou menores defeitos, todos marcam uma fase na minha carreira literária.” (SENNA, 1968, p. 216). 223 O livreiro-editor Antônio Joaquim de Castilho foi um grande amigo de Cruls. Sua livraria era usada como ponto de encontro de diferentes escritores. Em meados da década de 1930, contudo, a empresa já se encontrava com muitas dívidas, e foi vendida. Alguns anos mais, tarde, em 1938, Gastão Cruls se utilizaria de sua influência junto ao então Ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, para indicar o “antigo livreiro” Antonio Joaquim Castilho para um cargo no Instituto Nacional do Livro. O pedido foi feito em um abaixo-assinado em conjunto com outros intelectuais, e foi atendido no ano seguinte. Acervo CPDOC GC b CRULS, G. Disponível em: . Acesso: 20.jul.2017. 224 O muiraquitã (também grafada como muyrakytã, ybyrakitã, mirakitã, uuraquitan, baraquitã e outras formas similares) é um artefato indígena feito de pedra ou argila, geralmente em formato de animal. Apresenta cor esverdeada, e é considerado um amuleto de sorte. Aparece também em 93

Além disso, a obra traz nas primeiras páginas uma dedicatória a Álvaro Ozorio de Almeida225. Álvaro foi colega de Gastão Cruls quando os dois eram internos da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, comandada pelo professor Miguel Couto, da Faculdade de Medicina (atual UFRJ). Também era irmão de Miguel Ozorio de Almeida (grafado em algumas referências como Miguel Osório)226, amigo de juventude de Cruls e com quem este iria se reencontrar quando da entrada na faculdade. Logo após a graduação, Miguel e Gastão tentaram manter juntos um consultório médico – empreitada que, ao que se denota de sua entrevista a Homero Senna, parece não ter dado muito certo para o escritor, que pouco comparecia ao estabelecimento, já demonstrando sinais de insatisfação com a profissão. O romance foi escrito sem que o autor tivesse conhecido a região amazônica; no entanto, foi fruto de extensa pesquisa sobre a geografia, fauna, flora, habitantes, lendas e outros aspectos. O interesse do autor pela Amazônia vinha de longa data: seu pai, Luís Cruls, havia participado de uma comissão de demarcação de limites na região, por volta de 1902 – ocasião em que contraiu a doença que o levaria à morte, em 1908. Posteriormente, Gastão Cruls também entraria em contato com a obra de Alfredo Rangel, Inferno verde: scenas e scenarios do Amazonas (1908).

outras obras ficcionais, como Macunaíma, de Mário de Andrade (1928), que será abordada em outro momento deste texto. 225 Alvaro Ozorio de Almeida (1882-1952) também se formou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1905. Em 1906, foi para Paris, a fim de concluir sua especialização no Instituto Pasteur. Ao voltar para o Brasil, instalou um laboratório de Fisiologia nas dependências de sua casa, realizando importantes estudos, que instigaram seu irmão Miguel a seguir a carreira médica. Posteriormente, o laboratório foi transferido para um local maior e mais bem equipado, e funcionaria regularmente até 1932, a atrair para suas pesquisas nomes como Gastão Cruls, Afrânio Peixoto, Pedro Augusto Pinto, Marie Curie e Albert Einstein. Álvaro Ozorio também atuou no ensino e na pesquisa em instituições como o Serviço de Saúde Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Inspetoria Geral de Higiene e Saúde Pública do Rio de Janeiro, e as faculdades de Medicina e de Farmácia e Odontologia, ambas do Rio. Em 1927, foi eleito membro da Academia Nacional de Medicina. Fonte: Verbete ALMEIDA, Álvaro Ozorio de. Dicionário Histórico- Bibliográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832-1930). Online. Disponível em: . Acesso: 13.out.2017. 226 Miguel Ozorio de Almeida (1890-1953) formou-se em medicina no ano seguinte a Gastão Cruls, e seguiu a área de Fisiologia. Atuou como livre-docente na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, bem como na Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária; e também como pesquisador nos institutos Oswaldo Cruz, Instituto de Biologia Animal do Ministério da Agricultura, entre outras instituições. Foi, ainda, reitor da Universidade do Distrito Federal. Desenvolveu uma atividade paralela como ensaísta, através das publicações como Homens e coisas de ciência (1925) e A vulgarização do saber (1931, publicado também pela Editora Ariel) e outras. Por sua atuação na área médica e científica, foi laureado com prêmios no Brasil e no exterior. Entrou para a Academia Brasileira de Letras em 1935. Junto com seu irmão Álvaro, é considerado um dos responsáveis pelo nascimento da disciplina de Fisiologia no Brasil. Fonte: Verbete ALMEIDA, Miguel Ozorio de. Dicionário Histórico-Bibliográfico das Ciências da Saúde no Brasil (1832- 1930). Online. Disponível em: Acesso: 13.out.2017. 94

Rangel havia escrito os contos de Inferno verde durante sua estadia na região, onde atuara como diretor da Repartição de Terras, Minas, Navegação e Colonização do governo federal, e como secretário do governo do Estado do Amazonas, entre 1901 e 1904. Durante o período, recebeu em sua casa Euclides da Cunha, seu amigo dos tempos da Escola Militar da Praia Vermelha. Destarte, o material para o livro foi reunido aos poucos, fruto tanto da leitura e dos debates com Euclides, cuja influência em Alfredo Rangel é declarada, quanto de estudos realizados pelo escritor. Apesar disso, só em 1908 a obra foi lançada, contando com um prefácio do autor de Os sertões. A obra de Rangel deixou Gastão Cruls impressionado, e instigou ainda mais a sua curiosidade sobre a Hiléia 227. Em 1909, aparecia À margem da história, livro de Euclides que retomava a temática da Amazônia e que também geraria grande impacto no escritor carioca. Utilizando-se do capital social de que dispunha, Cruls pode conhecer pessoalmente Alfredo Rangel, por volta de 1912, visto que o escritor havia sido aluno e amigo do pai de Gastão Cruls na Escola Militar. A partir desse contato, nasceria uma amizade que duraria até o fim da vida do autor de Inferno verde. Segundo o próprio autor, Alfredo Rangel foi seu primeiro amigo literato228. Rangel ainda contribuiria com alguns textos para o Boletim de Ariel, mensário literário publicado na década de 1930 pela editora de Cruls e Grieco. Já a ideia para A Amazônia misteriosa surgiria em uma conversa entre Gastão Cruls, Miguel Ozorio de Almeida e Afrânio Peixoto, todos médicos. Os três tinham pensado em criar em parceria um romance que abordasse o tema das experiências fisiológicas em seres humanos, projeto que acabou sendo deixado de lado. Essa opção mostra ainda proximidades com o movimento naturalista, bem como com a Geração de 1870, ambos influenciados pelas discussões de cunho cientificista do século XIX. Mais tarde, Cruls pensou em ligar o tema ao da lenda das Amazonas e, com a aquiescência de Miguel e Afrânio, tomou a criação para si e pôs-se a trabalhar. Reunindo uma bibliografia diversificada, que inclui relatos de viagens, crônicas de naturalistas, estudos históricos, etnográficos e folclóricos, o autor incrementou a descrição de sua Amazônia, construindo uma narrativa detalhada e verossímil. Entre

227Hiléia foi o nome com que Alexander Von Humboldt denominou a floresta amazônica. Derivado do grego, a palavra significa “mata inexplorada”. Gastão Cruls se utiliza muito desse termo. 228 SENNA, 1968, p. 220. 95 as diversas fontes – a maioria citada diretamente ao longo do romance – se encontram a História Geral das Índias de Lopez de Gomara (1552); a viagem empreendida por Gonzalo Pizarro e Orellana (entre 1540 e 1542), narrada por Gaspar de Carvajal em sua Relación del nuevo descubrimiento del famoso río Grande que descubrió por muy gran ventura El capitán Francisco de Orellana (só publicada completamente em 1895); relatos de naturalistas-exploradores do século XIX, como Henry Bates e Richard Spruce; a obra Nuevo descubrimiento del gran río de las Amazonas, de Cristóbal de Acuña, que relata a expedição de Pedro Teixeira (1641); as observações feitas pelos cientistas Charles-Marie de La Condamine (publicadas em 1745) e Alexander von Humboldt (publicadas pela primeira vez em 1807); o padre João Daniel, com o seu Tesouro descoberto no máximo rio Amazonas (escrito entre 1757 e 1776); os poemas de ode à natureza de Byron; e claro, as expedições comandadas pelo Marechal Cândido Rondon – com quem Cruls posteriormente também desbravaria as fronteiras amazônicas, em 1928. Uma anedota curiosa sobre o processo de escrita d’A Amazônia misteriosa é narrada no livro Antonio Torres e seus amigos, organizado por Gastão Cruls a partir do espólio epistolar de Torres. A pesquisa sobre a Amazônia demandou ao autor muitas horas na Biblioteca Nacional, ocasião em que sempre encontrava um sujeito também entregue a leituras. Gastão descobriria que o indivíduo era conhecido de Antonio Torres, de nome Amaral Marcondes, que vinha preparando um estudo sobre as amazonas descritas por Orellana229. O fato deixou o autor muito aborrecido e preocupado, especialmente porque seu amigo comentava que as duas pesquisas se pareciam muito. Contudo, no fim das contas tudo não era mais do que uma “balela” contada por Torres, que na verdade nem conhecia o indivíduo em questão. O escritor se inspirou nesse suposto concorrente para batizar o protagonista de seu romance Vertigem (1934). A brincadeira voltaria à ficção no conto Meu sósia230, publicado em História puxa história (1938). Na narrativa, o protagonista Paulo de Alencastro, um alter ego de Cruls, se depara em suas pesquisas na Biblioteca Nacional com um homem em tudo semelhante a si – desde a aparência física, passando pelo hábito de fumar, até o fato de emprestar sempre os mesmos livros que Paulo. O protagonista descobre

229 CRULS, 1950, p. 187. 230 O conto aparece também no livro Mário de Andrade: seus contos favoritos, seleção organizada por Luiz Rufatto em 2011. 96 que seu sósia também estaria, assim como ele, produzindo um livro sobre as lendárias amazonas, em uma referência óbvia a A Amazônia misteriosa. Abordando o recurso do doppelgänger231, Gastão Cruls cria uma dubiedade narrativa, na medida em que não conseguimos ter certeza da existência real do sósia, nem podemos descartá-lo de todo, e menos ainda acreditar totalmente na sanidade mental de Paulo. O protagonista chega mesmo a ter uma “crise criativa”, talvez originada pelo roubo de ideias e energias por seu duplo. Por fim, Paulo resolve tirar a limpo suas dúvidas com o sósia. A conversa gera uma discussão, e acaba em luta física, fazendo com que o protagonista se machuque gravemente.

Agora estou aqui, na Casa de Saúde. [...] Dizem que eu me joguei escada abaixo, como um louco, gritando, e vim parar no meio da Avenida, onde um automóvel me atropelou. E o outro? Ninguém acredita que eu me tivesse atracado com alguém e rolássemos juntos a escada. Mas como é que se explica a poça de sangue, que ficou no lugar do acidente, e de que os jornais falaram? Dos meus ferimentos é que não foi. A não ser fratura interna, eu só tive contusões e escoriações. [...] Para mim, o outro está gravemente ferido, e está aqui. Ainda ontem, quando eu ia para a sala de curativos, num carrinho, ao passar pelo corredor, ouvi alguém que gritava com a minha voz.232

Semelhante a outros contos sobre um doppelgänger, “Meu sósia” tem a dubiedade como marca. No conto “William Wilson”, de Edgar Allan Poe233, por exemplo, o protagonista homônimo é um indivíduo que mesmo adolescente já apresenta tendências autoritárias, e cuja personalidade domina a de seus colegas de classe. O único que não consegue ser dobrado é um aluno que, por coincidência, tem o mesmo nome e sobrenome que o seu – além da semelhança física –, e por quem o protagonista guarda certo medo. Apesar disso, o seu duplo não parece ter a mesma ambição e vontade de se sobressair frente aos colegas. Outras coincidências vão se somando ao caso: os dois ingressaram na escola no mesmo dia, e até apresentam a mesma data de nascimento. Apesar de terem desentendimentos quase diários, existia entre os dois Wilson uma mútua admiração

231 Essa temática foi frequente na literatura produzida entre os séculos XIX e XX, geralmente indicando um personagem que tem suas características físicas e/ou psicológicas, e até mesmo aspectos da trajetória particular, duplicados em outro personagem. No decorrer da trama, ambos se encontram, gerando um evento traumático ou conflitos. Entre os autores que já trabalharam com o tema do duplo, estão Ernst Hoffman, Edgar Allan Poe, Dostoiévski, Guy de Maupassant, e autores brasileiros como Aluísio Azevedo e Coelho Neto. 232 CRULS, 1951, p. 297-298. 233 POE, Edgar Allan. William Wilson. In: ______. A carta roubada e outras histórias de crime & mistério; trad. de William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 115-145. 97

– fato que fazia com que mantivessem relações cordiais, e andassem geralmente juntos. No entanto, a avalanche de sentimentos contraditórios que o protagonista sentia por seu sósia faz com que a relação entre eles passe de uma disputa pueril a um crescente ódio nos últimos anos de sua estadia na escola. Após uma briga, o protagonista dirige-se ao quarto do outro William Wilson, planejando uma brincadeira de mau gosto. Só que a pessoa que encontra dormindo é completamente diferente daquela com quem convivia diariamente. Assustado, o protagonista abandona a escola e nunca mais volta. Os anos passam, e o derradeiro encontro entre os dois se dá apenas na universidade, durante um jogo de cartas. Numa noite de jogatina, William Wilson ganha desonestamente toda a fortuna de um jogador inexperiente. Logo em seguida, o apartamento em que está recebe a visita inesperada de seu sósia. O rival de Wilson entra em cena apenas para denunciar suas trapaças no jogo. Descoberto, o protagonista é obrigado então a abandonar Oxford. Sai em uma viagem de fuga através do continente europeu, só para descobrir que seu rival estaria a postos, sempre disposto a desmascará-lo. O personagem principal passa então a beber descontroladamente, e duvidar de sua sanidade. Parecia a Wilson que, quanto mais fraco ficava, mais seu rival se fortalecia – sensação experimentada também por Paulo de Alencastro no conto de Cruls. Por fim, o desfecho da história se dá de maneira trágica: em um baile de máscaras, William Wilson acaba encontrando novamente seu sósia. Irado, chama-o para um lugar reservado e o mata; contudo, após o incidente apenas o protagonista é encontrado morto, em frente a um espelho quebrado e ensanguentado...

2.1 A IMENSIDÃO CÓSMICA DA AMAZÔNIA

O romance A Amazônia misteriosa se inicia apresentando as páginas finais de um diário sobre uma expedição ao interior da floresta; contudo, o texto não esclarece os objetivos ou a motivação da viagem. A história é narrada em primeira pessoa, por um narrador anônimo. O diário aparece datado dos últimos dias de algum ano não identificado; contudo, há uma referência à Primeira Guerra Mundial: “Que nos trará de bom o anno novo? Ainda perdurará pela Europa o sôpro de loucura que ensanguentou os paizes mais civilizados?”234. A escolha do mês

234 CRULS, 1925, p. 29. 98 também é significativa: trata-se de um período que ainda permite a exploração por terra, antes das cheias que limitam a locomoção ao transporte fluvial235. A linguagem utilizada por Gastão Cruls tenta incorporar termos indígenas e regionais, como se denota pelo “Elucidário” existente ao final do livro. O autor informa que a maioria dos vocábulos e locuções elencados já aparece em dicionários; mas, dada a imensidão do território brasileiro, e a especificidade de alguns termos – circunscritos apenas a determinadas regiões – fez-se necessário esse complemento. Nessa empreitada, Cruls também contou com a contribuição de Candido de Mello Leitão, Adolpho Ducke e Alípio de Miranda Ribeiro. Além disso, parte do léxico provém da experiência do autor “durante uma estada no Norte”236, em contato com o falar nordestino. Esse linguajar também aparece, em tom de pilhéria, em uma carta do autor endereçada a Antonio Torres, de 21/09/1921. Na missiva, reclama do amigo, que “não passa de um taioca muito safado, um tipo esfarelado que se perdeu de vez nesse meio mundo crapuloso da estranja”237. Compara os diferentes lugares, afirma que o Brasil sai em vantagem, diz que não faz questão das “inglesas debarás, cheias de rebiques e iludimentos”, mas que andava “muito abijornado e arrasado por voltar ao Rio”, pois não havia nada como o seu mundo particular, e a vida por lá já estava “um serviço de gancho”. Muitas das expressões usadas na carta apareceriam mais tarde no romance. A expedição contada na ficção é formada por oito pessoas. Além do narrador, conta com Pacatuba, sujeito de origem nordestina, protagonista de alguns momentos cômicos; o prestativo Piauí (nesta edição ainda grafado “Piauhy”); Manoel, o violeiro oficial e o único que já pisou em território amazônico antes; João, Braulino, Trindade e Galdino, todos introduzidos nas primeiras páginas. Apesar de não identificado, o protagonista aparece nas vozes de seus companheiros como “Seu doutor” ou “Doutor”, e aparenta ser o chefe da comitiva. Há diversas indicações de que se trata de um médico, como o fato de carregar uma farmácia particular, que contava até mesmo com quinino, de uso restrito para o combate da malária.

235 IACHTECHEN, Fabio Luciano. O discurso eugênico através da literatura: impressões sobre oinício do século XX. In: GRUNER, Clovis; DENIPOTI, Claudio (Org.). Nas tramas da ficção: história, literatura e leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008. p. 77-103. p. 79. 236 Cruls se refere à sua experiência como médico sanitarista na Comissão de Saneamento Rural na Paraíba, tema que pretendo aprofundar no próximo capítulo. 237 A carta foi enviada quando Gastão Cruls se encontrava em exercício na comissão supracitada, e Antonio Torres na Inglaterra, a serviço do Consulado brasileiro. In: CRULS, 1950, p. 320. 99

Desde o começo da narrativa, o autor delineia os conflitos existentes entre esses elementos, vindos de diferentes regiões do país. O nordestino Pacatuba, por exemplo, não gostava de Galdino, um local amazônico, por sua origem e cor de pele mais escura. Também não se dava muito com indígenas – a quem chamava “bugres”, em um misto de medo e afronta. De todos, é o personagem que parece estranhar mais o ambiente da floresta, sempre a falar da saudade que sente de Mamanguape, sua terra.

Não sei onde elle foi buscar essa prevenção contra os portuguezes, mas o facto é que é de todas as horas. Quando ainda estavamos em Manáos, pensei contractar um portuguez muito desejoso de viajar comnosco, mas elle tantas me disse a respeito dos marinheiros, que acabei por não trazer o homem. É verdade que elle tambem não gostava dos cafusos, aos quaes chama taiocas, e só por esse motivo até hoje não vae muito com o Galdino, um dos nossos melhores auxiliares. [grifos do autor] 238.

Essa prevenção se repete em outras passagens, como quando estão perdidos na floresta: “– Se não cahirmos antes na mão dos bugres, que é do que eu tenho mais medo. [...] Chi! indio é serviço de gancho! O senhor nem imagina do que essa gente é capaz. Olhe...”239. Mas Pacatuba não é o único a entrar em discórdias.

Por ser dia de excepção, o pessoal teve hoje abrideira ao almoço; e, á tarde, tambem carreguei um pouco mais nas doses que lhes costumo distribuir. Não sei se foi por isso que o João e o Galdino tiveram um forte bate-bocca á noitinha. [...] Junto do nosso acampamento, nos galhos de uma ingazeira, havia vários ninhos de japins, como são conhecidos aqui os nossos guaxes, mas que o João, cearense, queria que fossem xexéus. Japins do extremo norte, guaxes do sul e xexéus do nordeste, é tudo uma unica e mesma cousa, e ambos teriam razão se não quizessem que fossem pássaros differentes. O Pacatuba, como bom parahybano, ia metter o bico na discussão, mais talvez para inticar com o Galdino, de quem não gosta, do que mesmo para apoiar sinceramente o João. Por fim, tudo serenou da melhor maneira, emquanto os japins continuavam na sua algaravia, travesseando nos ramos da ingazeira e não sei se discutindo tambem a sua identidade240.

Esses elementos são contemporizados pela presença do doutor protagonista, indivíduo proveniente da cidade grande, e também o homem da ciência, a voz de autoridade no grupo. Essa passagem parece indicar ainda um discurso de união em torno de uma identidade comum: “japins do extremo norte, guaxes do sul e xexéus

238 CRULS, 1925, p. 17-18. 239 Ibid., p. 44. 240 Ibid., p. 21-22. 100 do nordeste, é tudo uma unica e mesma cousa”, ele afirma. Aos olhos do narrador, essas discussões – que encerram as diferenças regionais – seriam ínfimas e deveriam ser deixadas de lado, pois todos ali faziam parte do mesmo grande território, do mesmo país, e portavam a mesma identidade nacional. Com uma igarité, uma canoa grande coberta com um toldo de madeira, o grupo segue o curso de um rio – também não nomeado –, passando por locais ermos e por vezes de difícil acesso. Viajam normalmente durante as horas amenas do dia, e fazem seus pousos à noite e nas horas de maior calor, em pequenas ilhas ou em praias à beira do rio. Como fontes de alimentação utilizam-se principalmente da pesca e da caça. A narrativa se constrói também a partir de detalhada descrição da paisagem que rodeia os viajantes. A descrição rica da natureza transita entre o deslumbramento e o mistério, passando da “monotonia triste e enfadonha”241 causada pela “monocromia”242 ao fascínio exercido pela diversidade de cores e tipos. “[...] Ainda se vê um ou outro ingá em flôr, pondo uma mancha branca entre as franças rubras das sorveiras e cumarús e os ramilhetes amarellos dos altissimos piquiás.”243. A representação da Amazônia em Cruls “retoma uma natureza fascinante, misteriosa e imensa”244, em que as cartas geográficas não dão conta da totalidade das distâncias percorridas e nem das dificuldades encontradas. Às vezes parecendo calma e agradável, estar em meio a essa natureza implica, na verdade, em um mergulho no desconhecido, cheio de surpresas, nem sempre agradáveis.

Mais alguns minutos e a chuva cahia a jorros, entre relampagos que lanhavam o ceu de lado a lado. Nunca vi trovões tão fortes e repetidos. Era um estrondear constante, a repercutir longamente na mattaria. [...] Se não me falha a memoria, é de Bates a justa observação de que a natureza tropical vive intensamente e, livre do inverno, faz no curto espaço de algumas horas o cyclo das tres outras estações. Tivemos hoje um dia destes: primavera pela manhã, com uma temperatura agradabilissima e flócos de neblina esgarçando-se sobre a corrente; verão ao meio dia, de sol

241 CRULS, op. cit. p. 18. 242 LIMA, Susane Patrícia Melo de; COSTA JÚNIOR, Waldemir Rodrigues. Geografia e representação na Amazônia misteriosa de Gastão Cruls: da monocromia à monotonia, do fantástico ao misterioso. Ra’EGa, Departamento de Geografia UFPR, Curitiba, n. 23, p. 221-237, 2011. Disponível em: . Acesso: 03.mar.2017. p. 228- 229. 243 CRULS, 1925, p. 26. 244 LIMA; COSTA JÚNIOR, op. cit., p. 228. 101

a pino e bochorno inaturavel; outomno fugidio á tarde, com o aguaceiro que esgalhou as arvores e tapeçou o chão de folhas seccas e flôres murchas.245

Essas sensações são enfatizadas pelo autor, por exemplo, quando vestígios de tribos indígenas desconhecidas (e talvez pouco amigáveis) põem os homens em estado de alerta, ou quando animais ferozes são ouvidos. Até mesmo os habitantes da floresta têm cautela. O rugido de uma onça desperta e provoca um verdadeiro “[...] salve-se quem puder entre os habitantes da floresta. Num clamor confuso, ouvem-se então roncos e assobios de macacos, gritos afflictivos de passaros, estalidos de ramos que se partem, tropeada de animaes nas folhas seccas.”246. Além disso, o grupo enfrenta dificuldades diárias relacionadas à alimentação, altas temperaturas, a presença de insetos, entre outros. Afora o território hostil, os homens sentem saudade de suas famílias e de seus locais de origem – fato que fica pungente no Natal. À melancolia da data se somam a tristeza do que deixaram pra trás, o medo do ambiente inóspito e as incertezas quanto ao retorno, piorados pela sensação de opressão causada pela mata fechada. De acordo com Susane Lima e Waldemir Costa Júnior, a representação da natureza amazônica transmite a ideia de isolamento, em que os elementos naturais contribuem para o arranjo de mistério, fantasia e medo247. Em 1943, Vianna Moog publicou um sistema interpretativo sobre a literatura brasileira em que a dividia em diferentes núcleos ou ilhas culturais, de acordo com suas características e peculiaridades, mas de modo a não criar definições demasiado limitadoras. Seriam elas: Amazônia, Nordeste, Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro. Apesar das limitações de sua proposta – que não dá conta de toda a complexidade da produção cultural do país – se sobressai a sua conclusão descentralizadora, como uma das primeiras interpretações sobre a natureza heterogênea de nossa cultura, “condenada a uma estonteante diversidade”248. Nesse sentido, a visão de sua tese compreende que “[...] apesar da continuidade do território, não constituímos um continente; somos

245 CRULS, 1925, p. 23-24. 246 Ibid., p. 14. 247 Op. cit., p. 235. 248 MOOG, Clodomir Viana. 2ª ed. Uma interpretação da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Edições Antares; Brasília: INL, 1983. p. 19. 102 antes um arquipélago cultural. Com muitas ilhas de cultura mais ou menos autônomas e diferenciadas”249. Assim sendo, a literatura produzida na ilha cultural da Amazônia abarca um território imenso em extensão geográfica (os estados do Pará, Amazonas e parte do Mato Grosso, somados a trechos de mais seis países). Caracterizada por uma “imensidade cósmica”, é um lugar impenetrável, cheio mistério, cuja natureza “[...] não se abandona, não se entrega, não faz confidências”250.

É preciso conhecer o que é a immensidade da Amazonia para poder avaliar a mesquinhez ridícula que assumem as cartas geographicas, quando, diante dellas, procuramos refazer mentalmente algum trecho percorrido. Distancias enormes, entrecortadas de rios caudalosos e florestas immensas, minguam então aos nossos olhos e o que exigiu dias e dias sem conta de lutas e sacrificios para ser vingado, apparece como o itinerario de qualquer jornada amena e ao alcance do primeiro turista displicente.251

Nela, o homem se sente permanentemente sobressaltado pelo “terror cósmico”:

Em face dessa natureza estranha que não possui o encanto da beleza tranqüila que pacifica e repousa os sentidos, mas é de um belo terrível que esmaga e acabrunha, outro não poderia ser o sentimento que domina o homem. Em outros mundos o homem pode comungar com a natureza, penetrar a terra com sentimentos de confiança e de devoção panteísta. Ali, não. Na Amazônia, onde o perigo está por toda parte, na água e no ar, não será nunca o homem um pagão no sentido helênico do termo.252

Ao homem hostilizado e diminuto diante desse cenário, resta tentar desvendar-lhe os segredos. E é nesse sentido que segue a produção literária sobre a Amazônia, para Viana Moog uma literatura de exclusiva interpretação da terra. Vale ressaltar que ela não compreende só escritores nascidos na região, mas também (e principalmente) autores de outros estados ou mesmo estrangeiros, todos sucumbidos ao terror cósmico253. Entre os exemplos, temos o brasileiro Alfredo

249 MOOG, ibid., p. 20. 250 Loc. cit. 251 CRULS, 1925, p. 20. 252 MOOG, op. cit., p. 21. 253 Pedro Maligo aponta que a produção ficcional sobre a Amazônia inicia-se em meados do século XIX, contando inicialmente com autores locais (Inglês de Sousa e José Veríssimo), e se amplia no auge do ciclo econômico da borracha. Ainda segundo o autor, esse ciclo econômico, que implicou na migração de trabalhadores nordestinos para a região, produziu situações de grande potencial dramático para a ficção – como a figura do “cearense” migrante, a busca pela fortuna, os conflitos entre os nativos e os migrantes, a oposição entre o mundo da seca e o da água, temas que Cruls 103

Rangel (Inferno verde, de 1908), o colombiano José Eustásio Rivera (com La Vorágine, de 1924), o venezuelano Romulo Gallegos (Doña Barbara, de 1929), o português Ferreira de Castro (com A selva, de 1930), o argentino Gastón Figueira (Mi deslumbramento en el Amazonas, livro de poemas de 1935),o alemão Alfred Döblin, com sua trilogia sul-americana Amazonas (escrita entre 1937 e 1947); entre outros. Deste modo, não adiantaria nem mesmo ter nascido por aquelas paragens, ter vivido numa aparente intimidade da terra – a exemplo de Raimundo de Morais, sempre às voltas com os problemas que a Amazônia punha à sua imaginação. “Como também não deu tréguas a imaginação de Gastão Cruls, que dela não consegue libertar-se. Os que um dia se aproximaram da planície ficaram pra sempre enfeitiçados”254. Nesse sentido, embora a interpretação de Vianna Moog pareça implicar em uma talvez excessiva vinculação da literatura à geografia – dando importância demais ao local de nascimento ou de vivência do escritor –, essa vinculação só é possível, em sua proposta de análise, tendo como ponto de partida o tipo de literatura e os temas de interesse em cada autor analisado. A despeito disto, se a viagem da comitiva na narrativa tem suas dificuldades, apresenta também alguns prazeres proporcionados pela exuberância da natureza, como as noites de luar, em que Manoel dedilha sua viola. E outras também:

Tenho agora por habito fumar, á tardinha, um cigarro, estirado sobre a tolda da igarité. Serve-me de colchão macio o pary de ubussú trançado pelo Trindade. A manobra requer algum equilíbrio, mas tem suas compensações. Voltado de face para o ceu, a esta hora de um azul muito terno e onde, por vezes, já começam a scintillar as primeiras estrellas, acompanho o vôo das aves retardatarias, que vão em busca de seus ninhos.255

Conforme vai avançando, o grupo encontra mais vestígios de indígenas na região. Ao se depararem com uma cachoeira, os homens têm de transpô-la com o auxílio de cabos, fazendo então pouso forçado para construir novas embarcações. Para passar o tempo, o narrador, acompanhado de Pacatuba e Piauí, resolve sair em busca de caça. Neste ponto da narrativa, o diário é interrompido.

também aborda no romance, apesar de não serem os motivos principais em sua trama. Cf.: MALIGO, Pedro. A Amazônia de Alberto Rangel, Gastão Cruls e Peregrino Jr.: o paraíso diabólico da floresta. 1985. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Mimeo. 254 MOOG, 1983, p. 23. 255 CRULS, 1925, p. 30. 104

A partir do segundo capítulo, narrado também em primeira pessoa, mas sem o recurso epistolar, descobrimos que os três se perderam do acampamento. Confiante no conhecimento de Piauí, o grupo se deixara levar; entretanto, sua fama de “mateiro” não é o suficiente para achar o caminho de volta. Passam então o dia tentando encontrar uma saída. Por fim, acabam tendo que acampar na floresta, perto de um córrego, à deriva dos perigos da vida noturna. Pela voz de Pacatuba, Gastão Cruls retoma lendas diversas do folclore nacional, como a de Anhangá, entidade protetora das matas e dos animais. Anhangá era também um ente zombeteiro, e podia deixar um lastro de destruição por onde passava, principalmente se isso significava vingar a natureza prejudicada. As lendas geralmente surgem nas falas de Pacatuba ou Piauí. Diante dessas narrativas, observa-se um geralmente incrédulo “doutor”, que em contraste com seus companheiros, se apresenta como o homem cuja base de conhecimento é a científica e que, por isso, duvida das lendas e narrativas similares.

2.1.1 Os contatos com grupos indígenas

No dia seguinte, o grupo resolve tentar voltar ao acampamento, no que é atacado por indígenas. Pacatuba é o primeiro a sacar a arma, e é contido pelo narrador. Seguindo “os ensinamentos de Rondon”256, o “doutor” impede a luta armada, e tenta agir como mediador, tentando explicar a situação para os nativos por gestos. Aqui, faz-se referência a uma das várias expedições iniciadas pelo governo federal a partir de 1890, que tinham por objetivos melhorar a comunicação com regiões mais afastadas da capital, promover a integração de áreas ainda desconhecidas, e aumentar a defesa das fronteiras. A mais conhecida, a Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Mato Grosso ao Amazonas foi uma expedição de caráter civil e militar, ocorrida entre 1907 e 1915, e chefiada pelo então Major Cândido da Silva Rondon257. Foi organizada em duas grandes expedições militares, que foram desmembradas em etapas, sessões e

256 CRULS, ibid., p. 47-48. 257 Rondon só foi nomeado Marechal em 1955, ou seja, muitos anos depois da Comissão. Informação obtida no site do Exército Brasileiro: . Acesso: 20.ago.2017. 105 expedições menores. Envolveu as regiões dos atuais estados do Mato Grosso, Rondônia e Acre – sem chegar, contudo, a seu destino Manaus258. A “Comissão Rondon”, como ficou conhecida, visou também avaliar o potencial de ocupação e desenvolvimento econômico da região, incentivando a agricultura, executando obras de infraestrutura nos povoamentos, realizando estudos sobre doenças endêmicas, entre outras ações. Nesse sentido, foi considerada uma “missão civilizatória” do Estado, cuja intenção era “a incorporação de espaços do interior que estariam isolados do restante do país”259, e um dos maiores esforços nesse sentido260. Essa ação se ligava a outras do governo federal, que tinham por intuito ampliar a autoridade central sobre os confins do território nacional261. Muitas expedições (sobretudo militares) foram enviadas, para diferentes regiões, visando a construção de linhas telegráficas. No mesmo período, o Brasil tinha acabado de adquirir a região do Acre, através do Tratado de Petrópolis, assinado em 1903 com a Bolívia. Efetivamente ocupado por brasileiros quando da exploração da borracha, depois da permuta o território passou pelos trabalhos de construção da Ferrovia Madeira-Mamoré262, entre 1907 e 1912, planejada para o escoamento da produção.

258 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo: EDUC, 1998. p. 15. 259 VITAL, André Vasques. Serviço sanitário e profilaxia contra a malária na Comissão Rondon: medicina tropical e militar na Era Tanajura. Anais do XXV Simpósio Nacional de História – ANPUH, Fortaleza, 2009. p. 1-9. Disponível em: . Acesso: 20.set.2017. p. 4. 260 DOMINGUES, Cesar Machado. A Comissão das Linhas Telegráficas do Mato Grosso ao Amazonas e a integração do Noroeste. Anais do XIV Encontro Regional da ANPUH-Rio: Memória e Patrimônio, Rio de Janeiro, p. 1-24, 2010. Disponível em: Acesso: 29.nov.2017. p. 9. 261 Cesar Machado Domingues relembra a dificuldade de controle e domínio do governo brasileiro sobre suas fronteiras, em episódios então ainda recentes: “Entre estas lembranças estavam certamente: a facilidade com que as tropas de Solano Lopes haviam invadido o território brasileiro através da isolada, e praticamente indefesa, província do Mato Grosso e o verdadeiro pesadelo logístico que era a transmissão de ordens e notícias desde a frente de batalha até a capital do Império” (ibid., p. 3-4). Do mesmo modo, havia uma necessidade de intercâmbio de informações, e mesmo de imposição da autoridade do Estado sobre as populações locais, fatos dificultados pelas impossibilidades do acesso. Nesse sentido, outro exemplo foi a demora com que a notícia da Proclamação da República chegou à Cuiabá: somente cerca de um mês depois, em dezembro. 262 A construção da ferrovia estava prevista no próprio acordo entre os dois países, e ficaria a cargo do Brasil, através do governo federal ou de empresa particular. A estrada de ferro deveria ligar o porto de Santo Antônio, no rio Madeira, até Guajará-Mirim, no rio Mamoré (localizações do atual estado de Rondônia), contando com uma estação em Villa Bella, na Bolívia – e beneficiando, assim, os dois lados. A fundação da capital de Rondônia, Porto Velho, foi fruto das obras da ferrovia. Apelidada de “Ferrovia do Diabo” (nome compartilhado entre os trabalhadores e a imprensa da época), a Madeira-Mamoré chegou a ter índices de até 80% de trabalhadores doentes; seu saldo final foi de cerca de 6000 trabalhadores mortos. Depois de várias tentativas de 106

Contando com militares (dentre eles alguns médicos) e cientistas de diferentes áreas, como botânicos e zoólogos, a Comissão Rondon conseguiu reunir material diversificado para estudos de flora e fauna, riquezas minerais, clima e geologia das regiões por onde passaram; além de rico acervo etnográfico e iconográfico (composto por filmagens e fotografias), reunido a partir do contato com diferentes etnias indígenas. Inclusive, “é por se incumbir de tarefas que extrapolavam a simples construção da linha telegráfica que a Comissão Rondon conseguiu manter-se em funcionamento, mesmo depois de concluída a linha” 263. Fomentando os debates em torno do posicionamento do Estado com relação aos grupos indígenas264, a experiência da Comissão inaugurou uma nova maneira de ver a questão. Tentando estabelecer relações pacíficas, seus membros seguiram a política de não-agressão – propagandeada através do lema de Rondon “morrer se preciso for; matar, nunca!”. Partiam para outros modos de contato, como a doação de objetos agrícolas e o ensino de novas técnicas de agricultura ou de construção de casas. Em 1910, Rondon criaria o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, mais tarde rebatizado como Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura. A Comissão também exerceu um papel de elemento ordenador e integrador dos ideais nacionalistas da época, difundindo a história e o culto aos símbolos nacionais, especialmente através de cerimônias cívicas. O ideal que a pautava era o positivismo, que defendia a inexorabilidade do progresso tecnológico e científico 265.

construção, foi inaugurada em 1912. No entanto, sua rentabilidade foi logo abalada por uma crise nas exportações da borracha brasileira, superada por produções de países orientais como Ceilão e Java. Em 1966, foi desativada, dando lugar a uma rodovia, que cobre boa parte de seu trecho original. Depois disso, chegou ainda a operar em algumas ocasiões, notadamente para fins turísticos; por fim, foi tombada como patrimônio cultural brasileiro pelo IPHAN em 2005. Cf.: HARDMAN, Francisco Foot. Trem-fantasma: a modernidade na selva. São Paulo: Cia das Letras, 1988 e BENCHIMOL, Jayme Larry; SILVA, André Felipe Cândido da. Ferrovias, doença e medicina tropical no Brasil da Primeira República. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.3, p.719-762,jul.-set. 2008. Disponível em: Acesso: 13.set.017. 263 DOMINGUES, 2010, p. 12. Segundo esse autor, a organização burocrática e corpo de funcionários seriam mantidos até 1930; entretanto, parte dos técnicos continuou trabalhando na elaboração da carta topográfica do Mato Grosso até 1942. 264 Tratei os diferentes grupos indígenas aqui de forma genérica, pelo próprio modo como a Comissão Rondon via o indígena em si – uma das “diferentes raças” que compunham a identidade nacional, sem se atentar para as especificidades de cada etnia. Apesar disso, a Comissão travou contato com diversos grupos étnicos, como as tribos “já pacificadas” dos paresí e bororó, e as consideradas mais arredias, a exemplo dos nambiquaras (DOMINGUES, ibid., p. 13). 265 A participação dos positivistas (de diferentes vertentes) no advento da República em 1889 foi considerável, bem como na formulação dos símbolos nacionais, como o hino e a bandeira. Segundo Laura Antunes Maciel, estes foram “o grupo mais ativo e habilidoso na tentativa de dar 107

As ideias desenvolvidas pelo francês Auguste Comte (1798-1857) colocavam a organização social sob responsabilidade de elites intelectuais, que seriam as detentoras do conhecimento necessário para “regenerar a sociedade”. Embora com diferenças internas, de maneira geral havia no positivismo uma clara relação com a ideia de missão salvadora. E essa missão seguiria o curso de um destino inevitável: a marcha natural da civilização, o progresso inexorável, implicando em uma visão determinista do homem. O vasto material fotográfico266 produzido ao longo das expedições demonstra um pouco desta emblemática relação entre seus membros e os indígenas. Algumas das imagens mais icônicas apresentam índigenas envoltos pela bandeira nacional; em outras, são retratados portando objetos da cultura ocidental industrializada, como câmeras fotográficas e gramofones. Nesse sentido, a Comissão se colocava como portadora de um modelo de “civilização”, a ser espalhado pelo restante da “nação”. O modo de abordagem utilizado por Rondon consistia em tentar inserir o índio dentro de um contexto histórico e cultural, levando-o a se sentir parte da nação chamada Brasil. O indígena seria o primeiro habitante, anterior à chegada dos portugueses e, portanto, parte da identidade nacional. O autóctone de regiões como os atuais estados do Acre e Amazonas seria ainda o morador das fronteiras, seu natural “vigia” – cabia, portanto, integrá-lo, nacionalizá-lo. Por outro lado, o escritório da Comissão, sediado no Rio de Janeiro, desenvolvia um trabalho de defesa dos interesses e divulgação de suas conquistas. Enviando artigos e cartas a periódicos, organizando exposições e conferências, divulgando o acervo fotográfico e audiovisual produzido, o escritório conseguia atrair a atenção do Estado e do público, criando em torno das expedições uma aura de epopéia, de sacrifícios heróicos em prol da nação267. Há de se levar em conta que, para a maioria dos habitantes das cidades e regiões próximas ao litoral, essas notícias eram as únicas que chegavam sobre os locais mais distantes do país. Havia mesmo uma ideia de “abandono”, de “vazio” e

conteúdo à República e transformá-la em regime amado pela população, lançando mão, nessa tarefa, da palavra escrita, das conferências, das salas de aula tanto quanto da manipulação dos símbolos nacionais” (MACIEL, op. cit., p. 18). Cf. ainda: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1990 e LINS, Ivan Monteiro de Barros. História do positivismo no Brasil. Cia. Editora Nacional, 1967. 266 Esse material pode ser consultado no Setor de Antropologia Visual do Museu do Índio, no Rio de Janeiro. 267 DOMINGUES, 2010, p. 10. 108 mesmo de “atraso” sobre as regiões norte e noroeste268. Desta forma, algumas das representações produzidas pelo grupo de Rondon sobre os sertões e seus habitantes acabaram perpetuadas por muito tempo no imaginário popular. Vale ainda ressaltar, contudo, que muitos desses espaços considerados “vazios” e passíveis de serem “civilizados” já eram ocupados por diferentes grupos indígenas. E mesmo o trabalho de contato pressupunha uma interferência forçosa na vida cotidiana dos povos originários, e uma aculturação em algum nível. De acordo com Laura Antunes Maciel a história oficial de proteção aos índios criou uma espécie de ficção, em que o grupo comandado por Rondon teria perpetrado, nos cantos mais distantes do país, uma ação “civilista” e guiada por ideais humanitários no que concerne às questões indígenas. No entanto, essa ação de desbravar e “amansar” os sertões, movida pela intenção de conquista e embasada em desejos de ordem e progresso, acabou em atos de força e vontade de domínio, e pressupunha certo nível de violência, mesmo que velada269. Essa visão sobre Rondon teria ainda mascarado sua intensa atuação no Exército, suas ações contra os “rebeldes” tenentistas em 1924 e outros fatores que o relacionam com os modos específicos de ação militar e de imposição da autoridade do governo federal nos primeiros anos republicanos. Igualmente, é um equívoco supor que a atuação da Comissão fosse resultado apenas de aspirações vagas de jovens militares idealistas e patriotas. Assim sendo, geralmente não se levam em conta os objetivos e motivos políticos que possibilitaram a Comissão, apaziguando as dissidências de concepções e projetos diferentes de república para o país e construindo uma imagem idealizada e “sem arranhões” de Rondon e seu grupo.

O tema nacional, ou a questão da formação da Nação, e a consequente superação dos problemas, como a escravidão, a diversidade racial e a própria busca da ‘identidade’ nacional, discutidos desde o Império, tiveram de ser enfrentados pelos republicanos já no início do regime. Liberais, positivistas e jacobinos vivenciaram e experimentaram essa tarefa de diferentes maneiras, a partir da visão que cada grupo possuía desses ‘problemas’ brasileiros.270

Nesse sentido, a Comissão implicou em uma conquista ordenada do sertão, indicando que “a expansão das fronteiras brasileiras não foi espontânea, mas, ao

268 DOMINGUES, ibid., p. 7. 269 MACIEL, 1998, p. 17. 270 Ibid., p. 18. 109 contrário, resultou de um projeto de republicanização com base no pensamento positivista, na ciência e na ordem” 271. Apesar disso, a Comissão prezava, em certa medida, pelo respeito à pelo menos parte dos hábitos culturais indígenas, e pela observância da não violência – o que pode, apesar de tudo, ser considerado um avanço para a época272. De todo modo, as ações da Comissão Rondon exerceram influência nas gerações subsequentes, construindo um imaginário bastante difundido sobre as regiões distantes do país e seus grupos étnicos. Por sua vez, Gastão Cruls apresenta muito dessa dicotomia da visão rondoniana sobre o contato com os povos originários em sua ficção. Se por um lado o exemplo de contato pacífico perpetuado por Rondon é louvado, por outro os indígenas ainda são designados por nomeações como bugres, selvagens e termos depreciativos similares. As categorias manipuladas para se pensar a sociedade ainda são as de civilização, apresentada como positiva, em oposição à barbárie, negativada273.

Quando dei accordo de mim, estava mais proximo do corrego, dizendo cousas aos selvagens, mais por gestos do que por palavras, e mostrando- lhes o meu relogio e corrente de ouro e um espelhinho de bolso, os únicos objectos que tinha sobre mim com probabilidades de interessal-os. [grifos meus]. 274

E é dentro desse processo que esse ideário de civilização terá vez em propostas e projetos em disputa para a nação, a exemplo da frenologia ou do modelo eugênico, a serem discutidos posteriormente. Retornando à narrativa, o primeiro contato com os indígenas, embora dificultado pela barreira da língua, é amigável. O narrador tenta explicar que estão perdidos, e os índios convencem o grupo a os seguirem, sem violência de nenhuma parte. Parece haver sempre uma possibilidade de troca pacífica. Pacatuba era o personagem que parecia mais curioso, e ao mesmo tempo amedrontado com o contato. Sem sair de seu lugar, dizia: “– Mas, seu doutor, o senhor quer mesmo se fiar nesta bugrada? Qual! nós estamos perdidos...”275. O nordestino exemplifica bem as contradições com que os habitantes das diferentes

271 MACIEL, 1998, p. 296. 272 DOMINGUES, 2010, p. 16. 273 NEVES, 2008, p. 23. 274 CRULS, 1925, p. 48. 275 Ibid., p. 50. 110 regiões do Brasil viam uns aos outros, especialmente no que concernia às etnias indígenas. O país ainda era um grande desconhecido para seus próprios habitantes. Destarte, ações como as comissões militares ou médicas ajudaram a formar determinadas imagens do país para seus habitantes, especialmente os urbanos. Papel semelhante exerceu a literatura, que “[...] contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros” 276, revelando o país aos seus próprios moradores, em imagens que perduraram por décadas.

2.1.2 O “duende” da Amazônia

Na narrativa, o grupo segue com os nativos, comandados pelo líder Pororê; mas, ao invés do acampamento inicial, acabam se deparando com um tapiry (ou tapirí), um local de parada temporária. Por mais que tentasse ser compreendido, o doutor não consegue explicar sua vontade de retornar; apesar disso, todos são tratados com gentileza. Acabam por fim fazendo refeição e pouso forçado no local. Nesse trecho, o sanitarista Cruls se revela: o narrador hesita em aceitar a comida indígena (carne moqueada, beijú e cará), pois “as iguarias não eram nada appeteciveis e estavam de mistura, no balaio, com pontas de flecha, pennas de passaros, folhas seccas e outras miuçalhas” 277, parecendo preparadas com pouco asseio, e em franca decomposição. Os perdidos são instigados, no dia seguinte, a continuar viagem, primeiro por trechos de vegetação espessa e campo aberto, e depois em uma ubá, uma espécie de canoa. Ficam cada vez mais desconfiados, na medida em que parecem ser levados mais para longe do local provável do acampamento. Percebe-se então o desalento do grupo, que a essa altura se deixava levar, entre curioso e amedrontado. “Seria que me attrahisse a miragem do desconhecido, nesta Amazonia phantastica e mysteriosa em que cada imaginação prefigura o Eldorado e todo indivíduo se julga um novo Juan Martinez a caminho de Manôa?” 278.

276 CANDIDO, 2006, p. 138. 277 CRULS, 1925, p. 54. 278 Ibid., p. 60. 111

Embora geralmente cético, o narrador por vezes sucumbe à força das lendas e mitos sobre a região. Entre divagações, relembra a lenda do rei Dorado e de sua cidade reluzente próximo ao lago Parima, mencionada em algumas narrativas de viagem do século XVI. O grupo prossegue por mais três dias assim, até que aporta em uma praia, onde encontra povos de feição bem diversa. Neste momento, os indígenas encontrados eram altos e musculosos, e apresentavam uma pele mais clara e azeitonada, e “tinham o rosto longo e de traços bastante correctos, o que lhes dava um caracter de raça mais pura.” 279. Portavam ainda amuletos de pedra verde, aparentando ser jadeíta, trabalhada de diferentes maneiras. Parecem, ao narrador, os muyrakytãs (muiraquitãs ou pedras verdes, em grifos do próprio autor) descritas por Orellana nas lendas sobre as Amazonas, a tribo das mulheres que guerreavam e viviam “sem marido”. Neste trecho, o narrador e seus companheiros acabam se separando dos nativos que os haviam conduzido até ali, e são orientados a prosseguir viagem com os portadores dos amuletos. Chegam ao anoitecer na aldeia, guiados pelo líder do bando Iurau. Acabam participando do banquete da tribo, e assistindo as danças ao redor da fogueira. Entretanto, o grupo não se demora muito na taba, pois são compelidos a viajar por mais cinco dias a fio para um local desconhecido. Os três ainda tinham a esperança de serem reconduzidos para seu acampamento. O grupo todo consegue aguentar longas marchas, e dão o crédito a uma espécie de confeito de tapioca. Mais tarde, o narrador iria descobrir que a iguaria continha o ipadú, a folha de coca usada como excitante pelos incas. Os efeitos do confeito iam além de dar resistência, conferindo mesmo um torpor em seus usuários, que não se viam claramente postos em acontecimentos ruins. E é dessa maneira que o doutor e Pacatuba não percebem o que acontece com Piauí. O ajudante é atacado por um “surto violentíssimo” de impaludismo, um dos nomes da malária. Pela escassez de recursos (como o quinino), é deixado descansado em uma rede improvisada próxima à fogueira; e acaba sumindo no avançando das horas, sem ser mais visto. De fato, esta era uma das moléstias que

279 Ibid., p. 65. 112 mais atingia os moradores e visitantes da região, denominada “duende da Amazônia” por Oswaldo Cruz280, por ir consumindo o doente aos poucos. De acordo com Roy Porter, o advento da agricultura, em especial em áreas que necessitavam de irrigação, tornou endêmicas diversas doenças graves. Os assentamentos permanentes implicaram em “oportunidades de ouro” para vermes, insetos e outros agentes patogênicos281. Além disso, a Revolução Agrícola levou a uma dependência exagerada de monoculturas de baixo teor nutritivo, como o milho, gerando desnutrição e, portanto, maior propensão a doenças, bem como o desenvolvimento de outras moléstias causadas por deficiências na dieta. Não seria diferente com a malária, até hoje um flagelo em algumas regiões de climas quentes. A doença migrou

[...] da África (que até hoje tem alta incidência dela) para o Oriente Próximo, o Oriente Médio e o Mediterrâneo. A Índia também se mostrou madura para receber a infecção, assim como a faixa litorânea da China meridional. E, a partir do século XVI, os europeus a transportaram de navio para o Novo Mundo.282

Apesar de já conhecida desde a Antiguidade, somente no início do século XX é que o processo de transmissão e os sintomas da malária foram detectados em termos científicos satisfatórios, com o desenvolvimento da medicina tropical283. Na região amazônica, o ciclo econômico da borracha, ocorrido entre o final do século XIX e início do XX, fomentou o crescimento de cidades e vilarejos, e a imigração em massa de trabalhadores, em especial do Nordeste. Essa concentração populacional, aliada à devastação da natureza e a condições insalubres, tornou a malária um dos principais problemas enfrentados durante a vigência da Primeira República.

280 Citado em LIMA; BOTELHO, 2013, p. 747. 281 PORTER, Roy. Das tripas coração; trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 20. 282 Ibid., p. 21. 283 Definida por Jaimy Larry Benchimol e André Felipe Cândido da Silva como “[...] aquela que lida com complexos ciclos de vida de parasitas em múltiplos hospedeiros e com sinergias muito dinâmicas entre tais processos biológicos e os ciclos econômicos das sociedades humanas” (2008, p. 720), esse ramo da medicina surgiu no final do século XIX com o intuito de lidar com os problemas de saúde que ocorrem sobremaneira nas áreas de clima tropical ou subtropical. No afã das explorações imperialistas de meados do século, a maior penetração do homem branco europeu nos continentes africano e asiático acabou criando a necessidade de estudos mais aprofundados sobre a malária, a febre amarela e outras. No Brasil, as ações de transformação e modernização do território, bem como os estudos impetrados por institutos de saúde, como o Instituto Oswaldo Cruz, levaram à intensificação das pesquisas e ao desenvolvimento dessa especialidade médica. 113

Aos olhos de diferentes referências, como sanitaristas e engenheiros, o conhecimento e profilaxia da malária se configuravam, então, como essencial para o desenvolvimento da Amazônia. Havia o intento de se erigir uma civilização nos trópicos; para isso, doenças como a malária deveriam ser erradicadas. Um dos exemplos é o documento Instruções para o serviço sanitário das Secções Norte e Sul, redigido pelo higienista militar Dr. Joaquim Augusto Tanajura, em 1910. Tratava-se de uma série de medidas sanitárias para a contenção de doenças e higienização dos espaços, a serem observadas pelos membros da Comissão Rondon durante sua exploração do território amazônico. O documento é quase todo voltado para o problema da malária 284. Essas instruções, inclusive, foram publicadas um pouco antes dos estudos e medidas de profilaxia escritos por Oswaldo Cruz para a construção da ferrovia Madeira-Mamoré 285. Deste modo, médicos, epidemiologistas e sanitaristas se colocavam como portadores de um projeto civilizatório frente ao “atraso” das regiões mais recônditas286, em um deslocamento do discurso estritamente médico para uma interpretação da sociedade e interferência mais ampla. Entrava também em jogo a autoridade sobre a doença nos discursos científicos então em construção, espaço disputado por outros atores e dificultado pelas peculiaridades da manifestação da malária em território amazônico.

Portador de um projeto civilizatório, o cientista, ao refletir a partir de sua experiência na Amazônia sobre os novos conhecimentos relativos à higiene e à medicina tropical, identificava uma tensão entre a afirmação positiva sobre o papel da ciência e os desafios representados pela instabilidade que caracterizava o quadro epidemiológico. Isso ocorria, sobretudo, pelas formas desconhecidas de manifestação da malária e de como elas acometiam as populações ribeirinhas da Amazônia. Em suma, algumas certezas eram relativizadas, ainda que se reiterasse a possibilidade de superar fantasias e promover a civilização nos trópicos. Essa teria de ser promovida por um esforço que conjugasse cientistas e governo, por meio de iniciativas de saneamento, estímulo à migração e ao povoamento.287

Nesse sentido, ocorreu um progressivo interesse pela identificação e erradicação desta e de outras doenças endêmicas, vistas então como empecilhos ao

284 VITAL, 2009, p. 4. 285 Ibid., p. 6. 286 Vale ressaltar, como já foi feito ao longo do capítulo, que isso não era exclusividade da área de medicina: projetos de “civilização” similares eram compartilhados por militares (muitos deles engenheiros, como Rondon, mas também alguns médicos), intelectuais e profissionais das áreas de educação, bem como por parte da elite detentora do poder. 287 LIMA; BOTELHO, 2013, p. 758. 114 progresso. Diversas expedições científicas e campanhas de saneamento foram impetradas ao longo da década de 1910, para várias regiões do país – muitas delas possíveis a partir da consolidação do Instituto Oswaldo Cruz, e de sua atuação em parceria com o governo federal. Como exemplos de expedições bem-sucedidas, estão os estudos desenvolvidos por Carlos Chagas em Minas Gerais sobre a doença que posteriormente levaria seu nome, entre 1908 e 1909; a posterior viagem de Chagas à Amazônia, em 1912; e a expedição de Belisário Penna e Arthur Neiva aos vales dos rios São Francisco e Tocantins (nos atuais estados de Goiás, Bahia, Pernambuco e Piauí), no mesmo ano288.

2.2 INTERPRETAÇÕES DO BRASIL

Assim sendo, nem mesmo o doutor, narrador da história, pudera ajudar Piauí. Sem conseguir encontrá-lo, o grupo segue viagem por mais nove dias, chegando, por fim, a uma muralha alta e extensa, em que enormes blocos de pedra se encaixavam perfeitamente, mesmo sem nenhuma argamassa. Tratava-se, para espanto dos viajantes, de uma cidade em meio à selva amazônica, com casas bem construídas, jardins, praças e ruas regulares. Apesar de cogitarem estar em um puesto de caucheiros289, o narrador e Pacatuba descobrem que a cidade na verdade abrigava uma tribo desconhecida. Os homens são recebidos por belas jovens, tratadas com grande deferência por Iurau e seus companheiros. Os dois viajantes são então convidados a adentrar o local, já sem os homens que os acompanharam no longo percurso. Percorrem a estrada que vai dar no povoado, e vislumbram roçados diversos, trabalhados exclusivamente por mulheres, geralmente muito novas.

288 Essas iniciativas ainda renderiam outros frutos, como a criação da Liga Pró-Saneamento, em 1918. Pretendo aprofundar estes dados no capítulo posterior. 289 A “caucheiro” se designava o homem explorador do caucho (castilloa ulei), árvore da qual se extrai uma goma também utilizável industrialmente, produto concorrente da seringueira. De acordo com Euclides da Cunha, a exploração da árvore na região amazônica da fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru era então recente, desde meados de 1860. O extrativismo, pela própria natureza da árvore, se dava de maneira diferente dos seringais: “O caucheiro é forçadamente um nômade votado ao combate, à destruição e a uma vida errante ou tumultuária, porque a castilloa elástica que lhe fornece a borracha apetecida, não permite, como as heveas brasileiras, uma exploração estável, pelo renovar periodicamente o suco vital que lhe retiram. É excepcionalmente sensível. Desde que a golpeiem, morre, ou definha durante largo tempo, inútil.” In: CUNHA, Euclides da. À margem da história. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/ Departamento Nacional do Livro, s.d. Online. Disponível em: Acesso: 30.jan.2017. p. 24-25. 115

Em uma das casas, uma mulher clara e de cabelos loiros é avistada. Tal é a impressão do narrador:

Creio que ao divisar tal vulto, a minha satisfação não foi menor á de Humboldt, quando, subindo o rio Orinoco, se lhe deparou, em plena selvatiqueza da floresta equinoxial e de mistura á numerosa tribu dos Salivas, uma rapariga do mais puro sangue aryano, e que elle soube depois ser irmã de um religioso ali em missão.290

Se o termo “do mais puro sangue aryano” espanta, pois remete imediatamente às ideias de pureza de raça difundidas pelo nazismo nas décadas de 1930 e 1940, devemos considerar sua utilização em termos de processo histórico. Como demonstra Lilia Moritz Schwarcz, desde meados do século XIX o Brasil era apontado como um dos países mais mestiços do mundo, um verdadeiro “festival de cores” 291. Contudo, essa característica era geralmente vista como um estigma, um empecilho para o progresso da nação. Segundo Schwarcz, ganhou força – principalmente a partir das discussões produzidas pela Geração de 1870292 – um modelo evolucionista de análise, que foi respaldado por uma percepção bastante consensual. O cruzamento das raças passou a ser, desta forma, uma questão central para os destinos do país. Encontrando acolhida em diferentes instituições de ensino e pesquisa – então centros de congregação da reduzida elite intelectual do país –, essas teorias raciais foram reelaboradas e readaptadas em função de nossa realidade, de diferentes formas. Nesse sentido, o termo “raça”, antes de ser um conceito fechado e fixo, é entendido como um objeto de conhecimento a ser explorado e experimentado, e cujo significado será constantemente renegociado293. Em alguns casos, suas utilizações podiam aparentar usos deliberados de modelos excludentes entre si; todavia tratavam-se, como defende a autora, de

290 CRULS, 1925, p. 90. 291 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo: Cia das Letras, 2015. p. 15. 292 Como já discutido no capítulo anterior, Monica Pimenta Velloso (2003) aponta para as inovações em termos de reflexão efetuadas pela Geração de 1870, a ponto de considerá-la, assim como Francisco Foot Hardman (1992), um dos pontos chaves para entender a ascensão de uma consciência moderna no país. No entanto, esses intelectuais de 1870 consideravam então a nacionalidade como uma matéria-prima ainda a ser trabalhada pelo saber científico das elites, em uma discussão por vezes “envergonhada” ou mesmo autoritária sobre o país, marcada pelas ideias de civilização e progresso. Apesar disso, essas reflexões não deixavam de ser uma tentativa de compreensão dos tipos brasileiros, marcando certo avanço na mentalidade da época. 293 SCHWARCZ, op. cit., p. 24. 116 adaptações conforme as necessidades, ganhando formas diversas, como a frenologia dos museus etnográficos, os modelos liberais da Faculdade de Direito de São Paulo, ou a influência do social-darwinismo de Haeckel e Spencer nas instituições de ensino em Recife.

Misto de cientistas e políticos, pesquisadores e literatos, acadêmicos e missionários, esses intelectuais irão se mover nos incômodos limites que os modelos lhes deixavam: entre a aceitação das teorias estrangeiras – que condenavam o cruzamento racial – e a sua adaptação a um povo a essa altura já muito miscigenado.294

Oriundas de um contexto de expansão imperialista europeia, essas ideias foram incorporadas no Brasil por uma elite profissional interessada em encontrar novos argumentos de explicação da nação. Tentando entender o atraso econômico, científico e tecnológico do país, esses grupos viram negros, escravos, ex-escravos e trabalhadores como “classes perigosas”295, sob as quais recaia o discurso da inferioridade racial. De igual modo, a mestiçagem passou a ser vista como perniciosa e combatida. Embora de maneiras diferentes entre si, as diversas teorias evolucionistas acabaram por passar as diferenças sociais a categorias raciais, de modo a apagar conflitos e problemas eminentemente estruturais, nos termos de uma interpretação que perpetuaria as diferenças e preconceitos. Fomentando debates, incentivando a criação de instituições e influenciando medidas políticas – como a migração europeia para o Centro-Sul do país (entre o final do século XIX e início do XX) –, essas teorias possibilitaram a adoção de uma espécie de “imperialismo interno”, em que a ciência era utilizada para identificar diferenças e definir hierarquias raciais. Predominariam no cenário intelectual brasileiro até por volta da década de 1930, quando, já decadentes, foram de vez substituídas pelas interpretações culturalistas, a exemplo da obra de Gilberto Freyre. Na narrativa de Cruls, quem aparece para recepcionar os visitantes é um homem, também branco e

[...] exquisitíssimo, alto, corpulento e com o rosto enquadrado numa barba ruiva e intonsa, que descia muito abaixo do peito. Completando-lhe a curiosidade do aspecto, havia a bisonhice dos trajes: uma bata ou roupão

294 SCHWARCZ, 2015, p. 25. 295 Ibid., p. 38. 117

de côr escura, esgargalado ao pescoço e atado na cinta, e que se abria com os movimentos da marcha, deixando entrever umas pantalonas, também parduscas. Vinha em cabellos, ou melhor, mostrava a calva já pronunciada e a contrastar com o rosto hirsuto. Quando mais perto, pude vêr que tinha uns olhos azues, claros e muito frios, sumidos numa face larga, de bochechas gordas, e onde dominavam o nariz adunco e as sobrancelhas cerradas.296

Percebendo se tratar de um alemão, o protagonista passa a travar conversa na língua germânica. Medindo cautelosamente as palavras, o interlocutor pede desculpas pela penosa viagem: aquilo só poderia ser um equívoco, que resultara os índios os levarem até ali, e tentaria saná-lo da melhor maneira. Contudo, não se apresenta, nem conta quase nada sobre os motivos de sua estadia no local, fazendo mais perguntas de que as respondendo. Mostra-se também um bom conhecedor das imediações e das duas tribos encontradas até então. Durante a conversa, descobre-se mais sobre o próprio narrador:

– E por falar em língua, disse-me num tom amavel, como é que o senhor conhece tão bem o allemão? – Contei-lhe, então, que logo depois de formado, tinha ido em viagem de estudos á Europa e havia praticado por quase dous annos nos hospitaes de Berlim. – Ah! Então o senhor é medico? inquiriu, sem poder conter a sua surpresa. – Sim, ou melhor, fui, porque agora ando totalmente afastado da profissão.297

É apenas através do relacionamento do narrador com outras pessoas que se fica sabendo mais de sua vida. Nem seu nome é apresentado, e pouca informação se tem sobre ele além do supracitado.

2.2.1 De médico interessado na literatura a escritor interessado nas discussões médicas

Neste trecho, como ao longo do romance, alguns dados sobre o protagonista remetem à biografia do próprio Gastão Cruls. De acordo com Roberto de Sousa Causo, a estratégia de um protagonista-narrador não nomeado, e que parece se colocar como alter ego do autor é comum à literatura do século XIX298. Como já

296 CRULS, 1925, p. 91-92. 297 Ibid., p. 95. 298 CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 174. 118 comentado, o autor também fora um médico que, em algum momento de sua trajetória, abandonou a profissão para se dedicar à literatura e atividades correlatas. Além disso, também viajou para o exterior por meio do exercício da medicina, participando do Congresso Nacional de Higiene em Paris, em 1926. Gastão ainda passaria cerca de oito meses no Velho Continente, conhecendo países como a Inglaterra e a Bélgica, país de seus ascendentes. Observações de suas experiências como médico são uma constante em sua produção literária, desde os primeiros escritos, ainda na década de 1910. Em alguns casos, como nos contos de Ao embalo da rede (1923), Cruls utiliza-se de cenas que presenciou na Paraíba, enquanto médico sanitarista da Comissão de Saneamento Rural. Em outros momentos, como nos contos “G.C.P.A.” e “Um aasvero moderno”, do livro Coivara (1920), deixa transparecer alguns motivos que o levaram a abandonar a carreira, como suas dúvidas quanto à capacidade de cura da medicina, ou as questões éticas envolvidas no trato com o paciente. Essas narrativas serão abordadas no próximo capítulo. Os conflitos sobre a escolha da profissão ainda são temas, mesmo que indiretamente, de textos como “Conto de natal” e “O bom moço”, ambos divulgadas pela Revista do Brasil entre 1926 e 1927, e reunidos no livro Contos Reunidos (1951). Como já visto, a primeira “historieta” narra o desejo de um menino de sete anos de ganhar uma armadura de cavaleiro, igual à de seu vizinho rico. Quando chega o Natal, o menino faz um pedido ao Papai Noel. No entanto, ao invés da armadura de brinquedo, ganha um fraque, um chapéu-côco, um guarda-chuva e um anel simbólico que poderia ser moldado à profissão desejada. Acalmando o menino, que caíra no choro, decepcionado com o presente, seu pai afirma que no dia seguinte lhe traria uma armadura. Contudo, comenta com sua esposa que aquele era o melhor presente que seu filho poderia receber, pois “se êle fôr jeitoso e tiver uma certa compostura de maneiras, poderá alcançar tudo o que quiser na vida”299. Nesse sentido, o Papai Noel presenteara a criança não apenas com o vestuário comum aos jovens das classes mais altas, mas também com um símbolo. O anel com a pedra da profissão – azul para as áreas de exatas e engenharias; verde para as biológicas, cor também associada à cura; e vermelha

299 CRULS, 1951, p. 245. 119 para as ciências humanas e as áreas de educação – indicava não apenas a formação do estudante, mas também denotava seu status social. Por consequência, o presente significava a porta de entrada para uma carreira profissional com formação de nível superior, um acesso que poucos indivíduos tinham na época. Para Vitor da Matta Vivolo 300, com esta historieta Cruls apresenta uma crítica em duas frentes. Primeiramente, o escritor estaria ironizando a vestimenta oficial da Academia Brasileira de Letras, ponto discutido no primeiro capítulo. O conto também pode ser visto sob a ótica de uma crítica mais geral do exagero relacionado ao status profissional. Comentando sobre o conto, em carta datada de 28/02/1927, Antonio Torres brinca que Cruls parecia estar com fobia “dessa gente” de fraque e anel de grau, afirmando ainda que também sofre desse mal. “O Brasil é um país anulo- maníaco. [...] E fazem questão do título de doutor. É o único país em que se ouve falar de Capitão doutor Fulano e do General doutor sicrano.” Completa, ironizando:

O brasileiro nasce com as veias túmidas de sangue sifilítico e doutoral. [...] Eu conheci um tenente do Exército, que nunca relaxava o anel de engenheiro militar, e não gostava de ser tratado por tenente. Era preciso tratá-lo por doutor, principalmente se havia moças na sala de visitas. É o cumulo do coronelismo universitário.301

Por outro prisma, Gastão Cruls estaria problematizando também a interferência dos pais na vida dos filhos no que concerne à escolha da profissão. Segundo Vitor Vivolo, o escritor foi incentivado pelos pais a seguir carreira médica, fato então considerado comum à parcela masculina das famílias das classes médias

300 Este autor realizou uma minuciosa e inédita pesquisa nos acervos particulares de Gastão Cruls, composto por cartas, manuscritos, blocos de notas, fotografias, rascunhos de romances batidos a máquina, clipping de críticas e resenhas, entre outros. Os documentos estão sob a guarda de sua família, através de seus sobrinhos-netos Anna Maria e Tadeu de Araujo Penna, atuais herdeiros da memória literária de Cruls. Seu trabalho também abordou fontes orais, depoimentos com os familiares supracitados. Por se tratar de um trabalho que conta com algumas fontes diferentes das abordadas aqui, e também por se propor a analisar o mesmo corpus documental de que me utilizei a partir de uma abordagem teórica e propondo questões diversas, creio que sua menção só tende a enriquecer minha discussão. O trabalho me possibilitou, ainda, descobrir dados pessoais sobre o autor que não obtive de outras formas, visto não ter conseguido o contato de nenhum de seus herdeiros. Cf: VIVOLO, Vitor da Matta. Gastão Cruls e a auscultação da sociedade brasileira. 126fl. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Estudos Pós-graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: Acesso: 14.set.2017. 301 Citado em CRULS, 1950, p. 114. 120 e altas302. Os cursos de medicina, bem como os de direito e engenharia, se constituíam nos mais procurados, dotados de grande prestígio social e status. Às mulheres, por sua vez, era reservada geralmente a carreira de magistério. Ao que tudo indica, Gastão Cruls foi parar nas fileiras médicas menos por certeza da escolha do que por pressões externas, fato que talvez não o animasse a continuar. Na supracitada entrevista a Homero Senna, o autor contou sobre as vicissitudes que o levaram a se afastar da profissão:

– Consta que tinha tudo para ser um grande médico... –Talvez. Menos vocação... De fato, fiz um bom curso, gostava do estudo da Medicina, tive, além de ótimos professôres, a sorte de me tornar amigo e discípulo de Miguel Couto, não saía de hospitais e enfermarias, era interno da Assistência... Estava, pois, bem começado. Uma coisa, porém, é a medicina estudada como ciência, nos compêndios e nas enfermarias, e outra, muito outra, é a que deve ser praticada cá fora pelos jovens médicos que deixam os bancos acadêmicos. [...] Não pude, porém, suportar cá fora o contacto com os doentes, e sobretudo saber que estavam sob minha inteira responsabilidade, que confiavam em mim, que suas vidas pendiam de minha habilidade ou de minha ciência.303

Os dilemas éticos com que o médico lidava, as dificuldades encontradas no exercício da profissão, o sofrimento e a dolorida verdade da finitude humana, vivenciados diariamente, pelo que se percebe foram problemas difíceis de superação. No entanto, em outro trecho o autor comenta que sua mãe, D. Maria, fazia muita questão de que fosse médico; por isso, o autor ainda tentou insistir um pouco mais. Buscou se especializar em cirurgia e dermatologia; chegou mesmo a dividir as despesas de um consultório, como já comentado, além do trabalho desenvolvido desde 1909 na Assistência Municipal. Por essa época, “cruzava e recruzava diàriamente a cidade”304, atuando no socorro a emergências. Entrementes sua carreira, passou a publicar seus textos ficcionais. Por fim, em 1921, Gastão Cruls saiu da Assistência para atuar na Saúde Pública; e, em 1926, acabou desistindo de vez da medicina. Por esse período, já havia se tornado então o escritor relativamente famoso de A Amazônia misteriosa305, publicada no ano anterior.

302 VIVOLO, op. cit., p. 25-28. 303 SENNA, 1968, p. 216. 304 Ibid., p. 218. 305 O romance chegou à sua nona edição na década de 1970, e foi a obra de maior visibilidade de Gastão Cruls. Apesar disso, não teve mais edições subsequentes, e pode ser considerada uma obra relativamente difícil de ser encontrada nos dias atuais, mesmo em bibliotecas ou livrarias e 121

Na historieta “O bom moço”, o autor também critica sutilmente a pressão externa (pais, sociedade em geral) que um jovem sofre quanto às suas escolhas pessoais.

Quando chegou aos trinta anos, ainda rapaz solteiro e sempre sôzinho consigo mesmo, embora já formado e perfeitamente encarreirado, mas sem nenhum alarde das muitas qualidades que possuía, fêz-se o côro à sua volta e todo o mundo começou a dizer e repetir: – “Mas, como êle é bom moço!” “Que bom moço que êle é!” E foi só então que êle viu o risco que estava correndo e do qual era preciso fugir prontamente, cortando o mal pela raiz e antes que a desgraça ainda fôsse maior. 306

O “bom moço” sabia o quão difícil era se livrar de uma reputação dessas, o que fatalmente o levariam à situação de “medalhão”. Difícil não lembrar o conto homônimo de Machado de Assis, em que um pai dá como conselho ao filho cultivar características de um medalhão, caso outras escolhas de carreira não dessem certo. Esse “figurão importante” aparece, de maneira irônica, como alguém desprovido de talento e inteligência, e que para sobreviver, se dedicava com afinco à manutenção da fama:

– Não te falei ainda dos benefícios da publicidade. A publicidade é uma dona loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição. Que D. Quixote solicite os favores dela mediante, ações heróicas ou custosas, é um sestro próprio desse ilustre lunático. O verdadeiro medalhão tem outra política. Longe de inventar um Tratado científico da criação dos carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante os olhos do mundo.307

sebos. O autor é hoje praticamente um desconhecido fora dos meios acadêmicos e especializados. Todavia, o romance foi ainda transformado em quadrinhos, em 1955, com desenhos de André Blanc e capa de Monteiro Filho. Também foi adaptado para o cinema, na recriação Um lobisomem na Amazônia, filme de Ivan Cardoso de 2005. Na trama, um grupo de jovens se embrenha na floresta atrás de experiências alucinógenas com o Santo Daime; ao mesmo tempo, um médico realiza experiências bizarras em seres humanos e às vezes se transforma em lobisomem. O gênero cinematográfico a que o diretor se relaciona, o “terrir”, mistura cinema de horror com comédia, fazendo com que a história narrada soe bem diferente do romance. 306 CRULS, 1951, p. 249. 307 ASSIS, Machado de. Teoria do medalhão. In: ______. O alienista e outros contos; orientação pedagógica e notas de leitura Douglas Tufano. São Paulo: Moderna, 1995. p. 54-60. p. 57. 122

Já o jovem narrado por Cruls, incomodado com a possibilidade de ter esse destino, passa a indagar outras pessoas porque seria um bom moço: porque era cumpridor de seus deveres, mantinha bons costumes, era prendado e de boa família; parecia um bom partido para as filhas e um bom genro para as mães. E, se auto-questionando: “Você é bom moço porque êles pensam que você tem também o equilíbrio indiferente das esferas e, no jogo do gude social, pode ser bolinha, e rolar como os outros e ir sempre para diante, até chegar à casa dos medalhões.”308 Foi assim que teve a certeza de que não era isso que queria para sua vida. O jovem elabora então um plano, executado com a ajuda de uma moça, cuja atuação fora já previamente “tarifada”. Em uma noite de espetáculo, à porta do Teatro Municipal, se engalfinha em uma briga com sua ajudante, conhecida por ser “mulher de má fama”. Acaba indo parar na delegacia, aonde a moça afirma coisas terríveis sobre ele. Além do mais, estava embriagado, e em seus bolsos são encontrados uma navalha e alguns frascos de cocaína, previamente lá plantados. O escândalo é tão grande que a notícia da briga sai nos jornais, e ele acaba ganhando a fama de ébrio, viciado e caften, em substituição a de bom moço. Ouvia já das pessoas que era ordinário, e que não prestava para nada. O jovem, desnorteado, questiona-se outra vez, ao que é respondido por “uma voz interior”: “– Fique sossegado. Você não mudou nada e ainda tem tôdas as qualidades. Apenas, já não é mais bom moço e nunca mais poderá chegar a medalhão.”309. O rapaz então fica aliviado, finalizando assim a historieta. Assim como no primeiro conto, o tema das imposições externas sobre as escolhas pessoais retoma um assunto que parece incomodar o autor e que parece ter a ver com sua biografia. Por outro lado, a figura do medalhão, em seus modos, relembra a aura de comedimento que os membros da ABL tentavam passar. Centralizada na figura de Machado de Assis, cultor de uma imagem discreta, circunspecta e que tentava se apartar de polêmicas, a Academia acabou se revestindo de uma austeridade incompatível com os comportamentos dos escritores tidos boêmios, como já discutido no primeiro capítulo. É esse exemplo que o personagem de Cruls tenta evitar: não queria ser bom moço da mesma maneira com que o autor não queria ser relacionado ao oficialismo literário e aos academismos, como talvez o indique sua participação nos meios

308CRULS, op. cit., p. 250. Grifos do autor. 309 Ibid., p. 252. 123 boêmios e à margem da oficialidade. É essa curiosa inversão que faz com que o medalhão de Machado de Assis seja referido posteriormente por outro autor numa alusão crítica à Academia, instituição de que o próprio Machado era símbolo. Nesse sentido, a historieta “O bom moço” apresenta a dupla negativa de um indivíduo que não quer ser exemplo, e também não deseja ter sua personalidade delimitada de todo por pressões sociais. No “jogo do gude social”, o autor sentia a necessidade de ser autêntico; e, ao mesmo tempo, lidava com as dificuldades de contemporizar suas intenções profissionais e pessoais com o que se esperava dele, em especial pelo lado familiar. Isto posto, podemos repensar essa questão a partir do conceito de “determinação”, formulado por Raymond Wiliams, em termos de uma ideia geral de sociedade como um processo de forças múltiplas, que agem sobre as escolhas individuais. Para Williams, longe de ser um conceito abstrato que indica os limites que se impõe ao indivíduo e o impossibilitam de controlar seu destino, a ideia de determinação deveria indicar limites dentro de um possível histórico concreto, através do qual o indivíduo age no mundo, por meio de consciência, práticas políticas e culturais específicas. Além disso, a determinação não seria só uma fixação de limites, mas também um exercício de pressões.

Por lo tanto, la ‘sociedad’ nunca es solamente una ‘cáscara muerta’ que limita la realización social y individual. Es siempre um proceso constitutivo conpresiones muy poderosas que se expresan em las formaciones culturales, económicas y políticas y que, para asumir la verdadeira dimensión de lo ‘constitutivo’, son internalizadas y convertidas em ‘voluntades individuales’.310

Nesse sentido, “el ser social determina la conciencia”311, ou seja, a consciência individual é delimitada pelo vivenciado em sociedade. Repensado nesses termos, Gastão Cruls pode ser compreendido como um indivíduo levado a escolher uma profissão por sua origem, formação familiar, status profissional e mesmo falta de opções. E, por outro lado, um intelectual que, por ter sido médico e experienciado os problemas e questionamentos próprios de sua vivência

310 WILLIAMS, 2000, p. 107. 311 Ibid., p. 93. 124 profissional, trouxe à sua criação literária seu universo particular de dúvidas e reflexões, chegando por fim a optar pela mudança de carreira. Por outro lado, esse universo era comum à pelo menos uma parcela dos indivíduos que exerciam a medicina, com as dificuldades inerentes a então incipiente pesquisa científica no Brasil, marcada também por percalços no exercício da profissão – em especial na saúde pública, área em que o escritor atuou por um tempo. Como demonstra Luiz Antonio de Castro Santos312, até a segunda década do século XX o país apresentava uma organização precária dos serviços de saúde pública, pautada pela não institucionalização e pelo arcaísmo. Somente em 1920/1921, com a reforma sanitária impetrada por Carlos Chagas, e a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública, se veria um envolvimento efetivo do aparelho estatal federal nas questões de higiene e saúde. No período imediatamente anterior à reforma, o país viveu diferentes estágios de desenvolvimento das ações voltadas à saúde pública, especialmente na década de 1910, contando com grandes diferenças regionais. Dada a estrutura política federalista da Primeira República, muitas tentativas de mudança encontraram barreiras econômicas e, sobretudo, políticas à sua realização. Nesse ínterim, se sobressaíram as ações de saneamento impetradas por Oswaldo Cruz no Instituto Manguinhos (depois renomeado Instituto Oswaldo Cruz). De fato, ocorreu um lento desenvolvimento ao longo das duas primeiras décadas do século, marcado por avanços e recuos. A partir de um ambiente cultural propício, que possibilitou a ascensão de um pensamento sanitarista, as questões relativas à saúde foram aos poucos incorporadas ao debate público – ou seja, a saúde se tornou pública, adquirindo grande importância na tomada de decisões a partir de 1920. Vale ressaltar que esse processo está relacionado ainda a uma ideia de nacionalidade, parte de um esforço de construção nacional. Deste modo, o saneamento, bem como a educação, foram ocupando um lugar central no conjunto de possibilidades de intervenção efetiva na realidade brasileira, principalmente nos sertões mais recônditos, áreas devastadas por epidemias e que apresentava condições precárias de vida para seus habitantes. Por

312 SANTOS, Luiz Antonio de Castro. Poder, ideologias e saúde no Brasil da Primeira República: ensaio de sociologia histórica. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (Org.). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. p. 249-294.

125 sua vez, o Estado via nessas ações um meio para a expansão de seu alcance e consequente fortalecimento. Na medida em que os interesses desses dois grupos confluíam (institutos e poder público), ocorreu um efetivo processo de interiorização dos serviços de saúde, marcando a presença maciça do Estado na elaboração de políticas de “salvação nacional”, por meio da educação e da adoção de medidas profiláticas. Retornarei a essa questão no capítulo subsequente. Por fim, havia também uma inserção de uma parte da elite médica nos debates intelectuais mais amplos da sociedade, processo construído ao longo das mudanças e convulsões políticas, sociais e culturais durante a passagem do século XIX para o XX. Essa inserção compreendia também a passagem pela literatura, como mostra esse trecho de Gastão Cruls publicado no Boletim de Ariel:

Vae para vinte annos (como nos foge a mocidade!), entre os medicos e estudantes que formavam o corpo clinico da Assistencia Municipal, havia sempre alguns, como hoje, talvez, ainda os haja, que por pendor especial ou menor atribulação nas lides profissionaes, liam muito e acompanhavam mais de perto o que se passava no mundo das lettras. A esses, como era de esperar, dada a diversidade dos seus conhecimentos, cabia sempre a melhor parte nas palestras que os fortuitos companheiros de pernoite entretinham á hora do chá, por vezes já pela madrugada, quando a cidade dormia a somno solto e as ambulancias rareavam as suas sahidas.313

Embora “[...] pelo menos até aquella data, sem nenhuma projecção além do circulo de seus amigos”314, existia um debate sobre literatura fora dos círculos estritamente literários. E que, por sua vez, encontrava em intelectuais de outras áreas a discussão de temas caros às questões nacionais, para os quais a literatura servia de material e até mesmo meio de expressão, a exemplo dos médicos que exerceriam a escrita ficcional, como o próprio Cruls, Pedro Nava (1903-1984) e Afrânio Peixoto (1876-1947). Como indica um texto de Brito Broca, escrito para a Revista Cultura Política, a interação entre medicina e literatura (e entre a medicina e as artes de maneira geral) vinha já de algum tempo. Ganhando impulso com o naturalismo no século XIX, os temas da medicina se tornaram populares em literatura; e nem sempre as obras que serviram de influência para o século seguinte eram de escritores que provinham da medicina. Como exemplos, pode-se citar os nomes de Gustave Flaubert, Emile Zola

313 CRULS, Gastão. Conversa fiada..., op. cit., p. 1. 314 Loc. cit. 126 e Honoré de Balzac, escritores que não eram médicos, mas publicaram obras abordando temas relacionados à área da saúde. Como ressalta Broca, a medicina possibilitava um campo de experiência humana extraordinário ao observador, os flagrantes mais trágicos e inéditos da existência.

Que pretende o médico? Curar. E não há, constantemente, a intenção de cura individual ou social no escritor? Não é o livro apontado, com freqüência, como uma terapêutica? Não tem êle restituído a saúde moral (e, conseqüentemente, por vezes, a física) a certos doentes, considerados incuráveis? 315

Essa mesma ideia é encontradao na entrevista feita por Homero Senna. Quando questionado se havia se arrependido de ter cursado medicina, Gastão Cruls responde:

– De modo algum. No meu tempo de estudante não havia ainda aqui Escolas de Filosofia e Letras. Portanto, mesmo para aquêles que se quisessem dedicar à Literatura, o melhor curso seria ainda o de Medicina. Pelo menos êsse curso, com a obrigatória frequência aos hospitais, lhes daria um rico campo de observações, um grande contacto com a vida, com as faces dolorosas da vida. E dores nem sempre apenas físicas. Dramas também muitas vêzes morais. [grifos do autor] 316

Nesse sentido, o exercício da medicina aparece como espaço privilegiado em que esses homens da ciência observavam dramas humanos, mas também as limitações de ordem prática, materiais, bem como as teóricas, de ordem científica, que impunham empecilhos ao exercício de sua profissão. Do mesmo modo, esses profissionais podiam encontrar ainda um espaço de discussão sobre o que andava de mais novo no mundo da ciência e da cultura, bem como de debates e reflexões que os levariam também a formular suas próprias interpretações sobre o país.

2.2.2 A cidade das icamiabas

Retornando à narrativa d’A Amazônia misteriosa, o narrador é então apresentado à Malila, que sabia falar francês. “Pensei não ter ouvido bem, mas ella, no mesmo francez revesso, convidou-nos a seguil-a. Estavamos em pleno dominio

315 BROCA, Brito. Literatura e medicina, Revista Cultura Política, ano IV, n. 39, abril.1944, p. 250. 316 SENNA, 1968, p. 218. 127 do inesperado. Depois do allemao enygmatico, uma india que falava o francez!”317. O estrangeiro então incumbe a jovem a ficar à disposição dos viajantes para o que precisarem, e sai sem maiores explicações. Conforme a conversa com Malila evolui, fatos mais estranhos vão surgindo, confundindo os perdidos. Pouca coisa, porém, sobre o habitante alemão, chamado pelas índias de Amauta (“homem sábio”): o narrador descobre que ele já estava havia alguns anos na tribo, mas nada mais sobre seus objetivos ou o motivo de sua demora na região. Não havia outro homem na tribo além do estrangeiro, apelidado de “barbaças” por Pacatuba. Por fim, o protagonista descobre que a moça loira avistada era sua esposa, Rosina; Malila havia aprendido francês com ela, e a chamava de Mananchic, ou “nossa mãe”. O espanto é maior quando o estrangeiro afirma para um incrédulo narrador que aquela era a tribo das “authenticas Amazonas” ou icamiabas318 avistadas por Orellana, e relatadas em antigas crônicas de viagem. Diferenciando-as das lendas gregas, o interlocutor conta as peculiaridades das “Amazonas brasileiras” – ou cunhapuyaras (“grandes senhoras”), como as denominavam outras etnias da região. Viviam somente entre mulheres, e só abriam exceção para a visita dos homens de determinada tribo vizinha, por ocasião dos rituais de perpetuação da espécie, uma vez ao ano. Estes eram seus vassalos, e lhes protegiam o território de qualquer tentativa de invasão. Quando viravam mães, as amazonas ficavam apenas com as crianças do sexo feminino, matando ou doando as do masculino. As icamiabas utilizavam colares de pedra verde, que o interlocutor estrangeiro confirma serem os legítimos muyrakytãs das lendas sobre as amazonas. Para o alemão, consistiam em uma das mais curiosas descobertas dos primeiros exploradores da Amazônia, “[...] porque, pelo seu alto gráo de acabamento, revelavam uma civilização muito superior á das tribus da região”319, e também pelo mistério de seu fabrico. A dúvida que pairava era sobre a sua origem, dada a dificuldade em encontrar jazidas de pedras daquele tipo (jadeíta ou feldspato laminar verde) no local. Uma das conjecturas, mencionada pelo estrangeiro, se referia às hipóteses desenvolvidas por João Barbosa Rodrigues sobre o muiraquitã como prova

317 CRULS, 1925, p. 96. 318 Ibid., p. 106. 319 Ibid., p. 109. 128 irrefutável da origem asiática dos primeiros habitantes americanos. A menção à Rodrigues indica que Gastão Cruls conhecia alguns debates científicos de campos alheios à sua área de formação, como as nascentes arqueologia e antropologia. João Barbosa Rodrigues (1842-1909) foi um engenheiro, naturalista e botânico mineiro, participante de uma expedição científica imperial enviada entre os anos de 1874 e 1875 à Amazônia, e que desenvolveu suas hipóteses por volta de 1875. O próprio interlocutor comenta que a hipótese de Barbosa já não era mais considerada válida, pois já tinham sido encontradas, então, jazidas da jadeíta na América. Contudo, o mistério perdurava, visto que “a confecção dos muyrakytãs, com figuras e inscripções numa pedra tão dura como é a jade, não parecia possível ter sido executado pelos selvagens atrasadissimos da Amazonia”320, em uma clara concepção de atraso ou “barbárie” do indígena versus o ideal de civilização europeu. O trabalho de Cruls parece ter sido profícuo nas leituras que fez acerca da Amazônia em seus diversos aspectos, entrando em contato tanto com descrições geográficas, de flora, fauna, como com um leque variado de teorias arqueológicas, narrativas de antigos viajantes, lendas, etc. Menciona as diversas ocorrências, na literatura de viagem, dos amuletos. Percorre, além disso, um percurso que o liga às primeiras trocas comerciais entre índios e europeus, e sua simbologia como amuletos de proteção e com supostas propriedades curativas. A outra história contada na narrativa para explicar a origem misteriosa dos amuletos diz respeito a um lago, o Yaciuaruá ou Espelho da Lua, em cujas águas habitaria a mãe das pedras verdes. Em dias de festa, as índias mergulhariam no lago a fim de buscar o barro que, modelado e exposto ao sol para secar, se transformava nos amuletos. Esse ritual coincidiria com os de procriação, e, aquele índio que, em anos anteriores, havia dado uma filha à icamiaba, era presenteado com um muiraquitã. De acordo com o estrangeiro, o uso do amuleto era forte indício da veracidade da história. Semelhante à lenda, havia nas proximidades um lago em que as índias dessa tribo mergulhavam para obter a matéria-prima de suas pedras verdes. Do mesmo modo, estas mulheres estavam protegidas pelos guacarís – a tribo de Iurau –, os mesmos das lendas. E não havia, realmente, vestígio de nenhum outro homem na cidade indígena, além dele. Apenas alguns pontos as

320 CRULS, 1925, p. 110. 129 diferenciavam dos mitos: essas amazonas não queimavam o seio direito para o manejo do arco, nem combatiam a cavalo, como suas homônimas. Por isso, o alemão preferia denominar o local de Reino das Pedras Verdes. Para o “barbaças”, a origem destas mulheres estaria no Império Inca, por seu “gráo de civilização, muito superior ao de todos os selvicolas do valle do Amazonas”321, e também por falarem a língua quíchua. Provavelmente teriam emigrado por conta da conquista espanhola. Algumas lendas afirmavam se tratar de mulheres que, inconformadas com a derrota de seus maridos e a consequente queda do Império Inca, haviam fugido e criado uma sociedade exclusivamente feminina. Outras, diziam que estas mulheres se tratavam das vestais guardiãs dos Templos do Sol, hipótese defendida por Spruce e endossada pelo interlocutor estrangeiro, que aventava que o grupo provavelmente teve que combater outras tribos, de onde a fama de guerreiras. Aos poucos se fica conhecendo melhor o funcionamento da cidade amazona. À rainha, Ccoya,cabiam as funções de governança e a distribuição igualitária dos bens, que pertenciam a todos. Estes eram recolhidos em armazéns e depois repassados, conforme as necessidades de cada um.

– Como vê, aqui não ha propriedade privada e todos os bens pertencem á collectividade. A esse e outros armazéns é recolhido tudo o que a tribu produz, e que vae sendo depois distribuído, de accordo com as necessidades de cada um, mas sempre sob a rigorosa fiscalização da Ccoya.322

A curiosa menção à propriedade privada aparece em outro trecho, que discorre sobre os incas propriamente. “Ali não se conhecia a propriedade particular e não havia razão para a existencia de qualquer systema monetario.”323. De acordo com o narrador, a sociedade inca – da qual as amazonas provinham – “sob o regime de tão sabio communismo” “vivia cohesa e prospera, na communhão geral dos seus bens e das suas crenças e sem jamais ter conhecido os odios e as paixões que se nutrem das desigualdades sociaes e das oscillações da fortuna”324. Em que pese seu aparente desligamento das questões da práxis política de seu tempo, Gastão Cruls manteve relações pessoais com intelectuais de esquerda, como Jorge Amado e Carlos Drummond de Andrade. Chegou a participar da

321 CRULS, 1925, p. 114. 322 Ibid., p. 125. 323 Ibid., p. 163. 324 Ibid., p. 164. 130

Esquerda Democrática, denominação utilizada por um grupo de intelectuais e políticos de tendências socialistas que marcaram oposição a Getúlio Vargas. Para esse grupo, interessava reunir as diferentes frentes de oposição ao Estado Novo, que atuavam na clandestinidade, e posteriormente organizar um partido que pudesse conjugar as ideias socialistas com a prática democrática. Em junho de 1945, em aliança com a União Democrática Nacional (UDN), o grupo apoiou a candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes325 à presidência da república. Em agosto do mesmo ano, lançaram seu primeiro manifesto, que contou com nomes como Antonio Cândido de Melo e Souza, Aziz Simão, Febus Gikovate e Renato Sampaio Coelho, integrantes da União Democrática Socialista (UDS) de São Paulo; Emil Farhat e Edgardo de Castro Rebelo, simpatizantes comunistas; Carlos Amoreti Osório, Juraci Magalhães, Herculino Cascardo, indivíduos de tradição tenentista; Paulo Duarte e Saldanha da Gama, liberais dos antigos Partido Democrático e Partido Constitucionalista de São Paulo; Germinal Feijó, Wilson Rahal e outros militantes do movimento estudantil paulista; José Maria Rabelo, Hélio Pelegrino e Marcos Aurélio Moura Matos, intelectuais mineiros; pernambucanos como Antônio França, Francisco Julião e Pelópidas Silveira; e intelectuais já consagrados no meio literário e político carioca, como José Honório Rodrigues, Rubem Braga, José Lins do Rego, Sérgio Buarque de Holanda.

325 Eduardo Gomes (1896-1981) foi um aviador, militar de carreira e político. Participou ativamente do movimento tenentista durante a década de 1920, tendo sido preso algumas vezes. Em 1930, ficou definitivamente em liberdade; auxiliou, então, na deposição do presidente Washington Luís. Como militar, ainda se envolveu diretamente nos conflitos da Revolução Constitucionalista de 1932. Em 1935, comandou o 1º Regimento de Aviação contra a Intentona Comunista. Com a ascensão do Estado Novo, se afastou do comando, continuando apenas na carreira militar. Participou dos esforços de guerra brasileiros no conflito mundial e, em 1941, foi condecorado brigadeiro. Fazendo oposição ao governo Vargas, saiu em 1945 como candidato de uma frente ampla denominada União Democrática Nacional (UDN), mas foi derrotado. Uma das histórias curiosas que se contam sobre ele refere-se à venda de doces para angariar fundos para sua candidatura – doces que mais tarde se popularizariam como “brigadeiros”. Eduardo Gomes ainda sairia candidato em 1950, sendo mais uma vez derrotado. Foi Ministro da Aeronáutica no governo de Café Filho, entre 1954 e 1955, e apoiou o golpe militar que depôs João Goulart em 1964. Apesar do apoio recebido por setores de esquerda em 1945, sua carreira política tendia para um caminho mais conservador, diferente de seus apoiadores. Nesse sentido, a UDN nasceu, pois, de uma frente ampla, que conseguiu reunir em seu interior membros dos mais diferentes posicionamentos ideológicos e trajetórias políticas. Nesse sentido, a luta contra a ditadura getulista perdeu o caráter de luta de massas para ganhar ares de campanha presidencial. Como o que os unia era sobretudo o antigetulismo, depois da deposição de Vargas o grupo viveu cisões internas, que geraram diferentes tendências e partidos políticos no pós-1945. Cf.: HECKER, Alexandre. Renovando o plantio. In: ______. Socialismo sociável: história da esquerda democrática em São Paulo (1945-1965). São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. p. 51-86. 131

O grupo ainda participou das eleições da Assembleia Nacional Constituinte no mesmo ano, coligado com a UDN. Reunindo-se em convenções nacionais nos anos seguintes, a Esquerda Democrática rompeu a coligação e passou a se denominar Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1947. Nesse ano, lançou vários candidatos para a Câmara dos Vereadores. No Distrito Federal somou-se um total de 45, entre jornalistas (Joel Silveira, Pompeu de Sousa e outros), professores (Alice Flexa Ribeiro e Bayard Boiteux), advogados (Clóvis Ramalhete, Emil Farhat e Vitorino James) e médicos (Benjamin Albagli). Gastão Cruls também se candidatou, como se depreende de carta trocada entre Carlos Drummond de Andrade e Lauro Escorel326. Portanto, a despeito da aparente distância que Cruls mantinha de uma militância, pode-se perceber em seu trabalho indícios de que compartilhava dos ideais de parcela da esquerda, falando sobre a abolição da propriedade privada e de uma nova organização social. Nesse sentido, vale relembrar que um dos principais pontos de divergência entre a UDN e a Esquerda Democrática era uma reforma estrutural mais profunda, como indica o manifesto da ED:

Democrática por seu método e seus objetivos, essa corrente política é igualmente de esquerda, porque sustenta, desde logo, que a propriedade tem, antes de tudo, uma função social, não devendo ser usada contra o interêsse coletivo: e defende um programa de reforma econômica inclusive uma gradual e progressiva socialização dos meios de produção, à medida que exigirem as condições objetivas do desenvolvimento material do país. E isto tudo como expressão da vontade, da maioria, manifestada pelo processo democrático.327

Assim sendo, para Cruls a sociedade coletivista incaica não era exemplar apenas de um passado distante, mas poderia servir também para o presente: “[...] por todos os lados eu me certificava do que fôra esse extraordinario imperio communista que, ainda hoje, e por varios aspectos, poderia servir de paradigma ás mais justas aspirações da humanidade”328. Vale ressaltar, contudo, que a ideia que o

326 AMLBCDA-76. Drummond ainda afirmaria, pessimista: “[...] encheram a cidade de faixas e cartazes, recomendando Astrojildo, Jorge de Lima, Osorio Borba, Gastão Cruls ao lado da sub- humanidade política do Distrito. O melhor que poderá acontecer a esses escritores é não serem eleitos...”. Desses candidatos, apenas o jornalista Osório Borba conseguiria um cargo, sendo posteriormente reeleito. 327 MANIFESTO da Esquerda Democrática. Rio de Janeiro, 1945. Disponível em: . Acesso: 15.dez.2017. p. 5. 328 CRULS, 1925, p. 163. 132 autor fazia do Império Inca não corresponde exatamente aos estudos historiográficos contemporâneos. Do mesmo modo, mesmo em sua descrição da sociedade amazona se depreende níveis hierárquicos, visto que as jovens que trabalham nas roças, avistadas logo na entrada dos visitantes à cidade, se vestiam de maneira mais simples, e tinham de executar o trabalho mais duro. Essa hierarquia, como se verá, advém de questões religiosas, e se estende a todas as amazonas da mesma idade. Por fim, a índia Malila aparece em uma posição serviçal quanto aos elementos não- indígenas da trama – os visitantes e os estrangeiros –, fato que denota a complicada noção de civilização que permeia o texto, e que será retomada posteriormente. Na continuação da descrição da cidade amazona, o protagonista revela a abundância não só de alimentos, mas de utensílios diversos, cerâmica e vestuário. Toda a produção era feita de acordo com a faixa etária. As amazonas propriamente ditas, ou ccossanac, jovens de até vinte e cinco anos, se dedicavam ao trabalho mais pesado de caça, pesca e cuidado das plantações. Deveriam guardar sua virgindade durante esse período e viver sob rígida disciplina. Após essa idade, as mulheres se dedicavam à perpetuação do grupo, e podiam então se ocupar de tarefas mais amenas, como cuidar dos filhos e trabalhar como tecelãs. Por fim, às mais velhas eram atribuídas atividades como a produção de cerâmica, o preparo de alimentos como farinhas, óleos e conservas, e a elaboração de substâncias tóxicas, como o curare e o niopo329. Já sua rainha era escolhida entre as jovens de vinte anos. Era aquela que conseguia vencer as tarefas mais difíceis, e dar mostras de grande resistência física, coragem e agilidade. Seu reinado durava cinco anos, e podia se estender por mais cinco, caso a jovem resolvesse manter o voto de castidade e vencesse novamente as provas – como a atual Ccoya, quase no fim de seu mandato. A descrição da sociedade das amazonas encerra a dicotomia entre a ideia de civilização versus atraso. Sua divisão em classes laborais e modos de produção e divisão de bens funcionam muito bem, evitando conflitos, e apresentam um

329 Curare é um composto venenoso feito com a extração de diferentes plantas, utilizado nas pontas de flechas por diversos grupos indígenas da América. Entre eles, os Kachuyana do Amapá, e os Tikuna e Maku, ambos da região amazônica entre Brasil e Colômbia. O veneno possui ação paralisante e letal. Já o niopo é uma árvore originária da América do Sul, com cujas sementes e folhas se faz um pó, utilizado à semelhança do rapé. Seu uso era comum a várias tribos de regiões como o Brasil e as Antilhas, e foi difundido na Europa logo após os primeiros contatos, ainda no século XVI. 133 conhecimento tecnológico não visto em outras tribos da região, “[...] a attestar o gráo de adiantamento e operosidade daquelle povo”330. Contudo, praticam atos execrados pelos interlocutores, como a rejeição dos filhos varões. Mesmo esse grau de desenvolvimento tecnológico é contestado pelo elemento estrangeiro: “– Oh, isto é uma indústria que está a morrer entre ellas e mal chega a ser uma pallida reminiscência do que os Incas faziam com a lã do lama e da vicunha.”331. Destarte, quando comparado à “civilização” europeia, o mais avançado conhecimento indígena sai perdendo aos olhos dos estrangeiros, como as roupas rudes que o casal tem que usar – batas de “tecido aspero e grosseiro”, aos olhos de Rosina muito longe de “algum modelo de Paris”332. Todavia, parece haver uma diferença de apreensão e interpretação daquele modelo de sociedade indígena entre o casal europeu e o narrador brasileiro, que geralmente aparenta estar positivamente surpreso: “[...] a Ccoya offereceu-me um espelho de pedra polida, pequena joia de inimitável lavor artistico e que eu, até hoje, não me conformo de haver perdido.”333. Por outro lado, embora haja uma diferença de visões, o narrador também se utiliza, em diversos momentos, de termos que refletem ideias similares aos estrangeiros: “E o senhor acredita ter sido o primeiro civilizado a penetrar nestes domínios?” 334.

E mais eu pensava, e mais me parecia impossivel que tudo aquillo fosse mesmo uma simples tribu de selvagens, arrincoada em plena matta, vivendo dos seus instinctos, e inteiramente entregue á lei da natureza. 335.

Retornarei a essa questão mais tarde. Nas visitas aos armazéns de abastecimento, o narrador pouco entra em contato com as índias. Seus intermediários são, além de Malila, os dois estrangeiros, conhecedores da língua quíchua. Acaba mantendo mais contato com o casal e tenta, então, descobrir como chegaram até ali, e o motivo da estadia. Entretanto, seus esforços são em vão; os dois acabam sempre mantendo segredo. Os europeus não parecem interferir nas práticas perpetradas pelas icamiabas. Aparentam respeitar os limites de onde lhes é dado e de onde lhes é negado

330 CRULS, 1925, p. 122. 331 Ibid., p. 123. 332 Ibid., p. 124. 333 Loc. cit. 334 CRULS, ibid., p. 125. Grifos meus. 335 Ibid., p. 154. 134 acesso, como é o caso do templo religioso. Inicialmente, o doutor pensa ser o alemão um etnografista. No entanto, Hartmann336– e é só por volta do meio da narrativa que seu nome é revelado – afirma nunca ter se dedicado a tal pesquisa, que fora levado à região por outros motivos, e apenas por acaso encontrara aquela tribo. Sua permanência devia-se à curiosidade sobre as amazonas. Dada a insistência do narrador, o alemão adverte que é melhor o protagonista não insistir, porque se viesse a conhecer as razões que os levaram até ali, teria de manter os visitantes prisioneiros daquele lugar. O ocorrido só aumenta as desconfianças do protagonista e de Pacatuba, mas nada mais conseguem descobrir. Enquanto isso, e devido a uma torção na perna do sertanejo, os viajantes acabam por adiar sua partida. Por conta disso, o doutor passa longos períodos passeando na região, geralmente em companhia da francesa, visto que Hartmann tinha “ocupações inadiáveis” e não podia acompanhá-lo, e Pacatuba se encontrava em repouso forçado. Nestas ocasiões, Rosina se mostrava mais comunicativa, demonstrando que sua longa estadia na floresta, como cerca de oito anos, fazia a jovem ansiar pelo retorno, já que o plano inicial nunca fora permanecer tanto tempo em “degredo”. Nesse sentido, a moça ainda nem sabia da deflagração da guerra entre Alemanha e França (alusão à Primeira Guerra Mundial), fato então contado pelo doutor. Como Rosina se mostrasse aflita, o narrador comenta pormenores sobre a guerra – causada, na narrativa, pelos desvarios da ambição sem limites da Alemanha. “Felizmente, a victoria com que ella contava está longe de realizar-se, e é muito provavel até que a lição lhe custe muito caro. Pode-se mesmo dizer que todo o mundo está voltado contra ella.”337. A disputa aparece também em um nível simbólico da narrativa, em que as forças contrárias são representadas por Rosina, francesa, de um lado; e seu marido Hartmann, alemão, de outro, construídos como pessoas de índole e objetivos de vida muito diversos. A relação entre Rosina e o narrador vai se tornando cada vez mais próxima. Adentra a intimidade da moça, que expõe ao protagonista suas frustrações com seu casamento e com o isolamento na floresta. Rosina sentia-se apreensiva e solitária. “Não foi só a notícia da guerra. Eu já estou nervosa há muito tempo. Não é

336 Pelo que se depreende de supracitada entrevista, o nome do personagem é uma homenagem ao livreiro Kurt Hartmann, proprietário de um sebo que Cruls visitava (SENNA, 1968, p. 219). 337 CRULS, 1925, p. 141. 135 brincadeira passar oito annos neste isolamento. Depois... o meu marido é tão differente de mim!...”338. Só se mantinha ainda reservada quanto aos motivos que os levaram até ali. O título do capítulo deste trecho é “Venenos...”, à primeira vista uma alusão à visita do narrador ao barracão em que se fabricavam os “venenos”, as substâncias tóxicas preparadas pelas índias mais velhas. No entanto, o título é ambíguo ao parecer indicar, ao mesmo tempo, a “venenosa” informação que o doutor dá para a francesa, fazendo-a ficar preocupada e ainda mais chateada com o marido. Por fim, em um terceiro nível indicaria outro tipo de “veneno”. Pacatuba, ao observar o entrosamento entre o protagonista e Rosina, alerta: “olhe, seu doutor, o veneno mais perigoso que tem aqui são os olhos dessa franceza. [...] Chi! Seu doutor tenha mão, que isso é mulher até debaixo d’água.”339.

2.3 DESCOBERTAS

Em um dia de festa, observando as danças das Amazonas, o narrador percebe estar em presença de “um typo altaneiro e ainda moço, de porte airoso e olhar dominador e grave”340. Tratava-se do último Inca, Atahualpa, que o leva a conhecer o antigo esplendor das civilizações mesoamericanas e inca. Através de um “vôo” por lugares desconhecidos, o protagonista tem uma miragem em que contempla palácios, templos, canais, estradas bem construídas, jardins suspensos, mercados a céu aberto, cidades inteiras em sua magnitude. Como aponta Fabio Iachtechen, apesar de aparentemente deslocado do eixo narrativo principal, esse trecho mostra algumas intenções de Cruls, que apresenta uma descrição positiva das culturas ameríndias341. De fato, essa intenção já estava delineada desde o momento de construção do romance, como demonstra o já mencionado conto “Meu sósia”, em que um alter ego de Cruls está pesquisando materiais para um romance sobre as amazonas.

Ora, os assuntos que me preocupavam então e por longos meses me fizeram um assíduo freqüentador da Biblioteca Nacional, são todos de

338 Ibid., p. 150. 339 Ibid., p. 151-152. 340 CRULS, 1925, p. 154. 341 IACHTECHEN, 2008, p. 86-87. 136

interesse restrito: antigas relações de viagens, velhas crônicas fradescas, – tudo relativo à História da América. É que tinha um romance em preparo e nêle haveria páginas de evocação ao brutal despertar do Novo Mundo, sob o pulso implacável dos Conquistadores.342

Na narrativa do romance, o líder inca também leva o protagonista a refletir sobre a sangrenta conquista da América pelos brancos, principalmente o domínio sobre culturas que se perderam. Os povos originários se mostraram desde o início prestativos, acreditando que os homens brancos eram verdadeiros Filhos Do Sol, portadores do fogo sagrado (uma alusão às armas de fogo). Contudo, foi a descoberta de ouro que impulsionou a conquista.

Avidos de lucros, famintos de proventos materiaes, num permanente delirio de riquezas que lhes desaçaimava os instinctos mais torpes, toda essa gente, bando de aventureiros rapaces e insaciáveis, atirou-se despejadamente á procura do ouro.343

O narrador assiste, então, a toda sorte de tiranias e violências cometidas durante a conquista. Apresenta-se uma crítica contumaz ao processo como um todo, abarcando desde seus comandantes, até os indivíduos que foram enviados para “desbravar”344 e colonizar as terras descobertas – muitos criminosos condenados em seu país de origem, cuja pena fora trocada para o exílio em terras americanas. Nada escapa à fala de Atahualpa: a destruição da natureza, as epidemias desconhecidas, a morte de milhões de indígenas, a extinção de diferentes etnias, os horrores da escravidão: “era a desolação e a dôr por onde quer que elles passassem”345. Seu discurso também menciona a religião: “[...] e dizer-se que toda aquella gente tinha tambem as suas crenças, e adorava um Deus, e todas as manhãs cantava hymnos religiosos, antes de recomeçar as tropelias e barbaridades!”346. O Inca aborda, por fim, o processo da conquista portuguesa no Brasil, indicando como diferença as tribos que, “mais primitivas”, ainda não se haviam fixado totalmente no solo e “só por isso, a luta foi mais surda e os embates menos violentos, embora de consequencias tão funestas”347.

342 CRULS, 1951, p. 287. 343 CRULS, 1925, p. 168-169. 344Aspas usadas pelo próprio autor. 345 CRULS, ibid., p. 170. 346 Ibid., p. 171. 347 Loc. cit. 137

A crítica apresentada por Cruls traça um caminho de denúncia dos feitos dos conquistadores, aqui vistos a partir do prisma dos conquistados. Outrossim, propõe a construção de uma história “alternativa” à História oficial, em diversos aspectos. Oferece a possibilidade de sobrevivência ao Império Inca, a partir da migração de suas sacerdotisas, as amazonas, e deste modo a manutenção de seus conhecimentos, costumes e ritos. Por outro lado, retoma debates de uma escrita da história brasileira pensada em outros termos: e se uma “civilização”, aos moldes das culturas mesoamericanas e incaica, tivesse se desenvolvido em território nacional? Essa reflexão remete a Carl Friedrich Phillip Von Martius (1794-1868), botânico que participou de comissão austro-alemã de naturalistas e artistas que acompanharam a grã-duquesa austríaca D. Leopoldina, futura esposa de D. Pedro I, pelo território brasileiro. A viagem foi feita entre 1817 e 1819, perpassando os territórios do Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste, até chegar à fronteira com a Colômbia, em plena selva amazônica. Dessa expedição, resultaram publicações de botânica, estudos de folclore, etnografia e linguística indígenas por Von Martius. Em 1840, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) propôs uma premiação a quem elaborasse uma monografia do melhor sistema para se escrever a história do país, reflexo da intenção das elites letradas em formular uma História do Brasil independente. Von Martius foi o vencedor, com a proposta “Como se deve escrever a história do Brasil”, publicada em 1845. Em que pese sua visão eurocêntrica, foi o primeiro a afirmar a contribuição conjunta de brancos, negros e indígenas para a formação de nossa identidade. Von Martius delineou uma escrita da história que deveria contemplar tanto os movimentos econômicos regionais e mundiais que proporcionaram a colonização, a contribuição das três “raças” na formação brasileira, como a observância da história do direito, eclesiástica, literária e mesmo do cotidiano da colônia. Considerava o elemento português “o mais poderoso e essencial motor” de nossa história; contudo, afirmava que a produção historiográfica que não levasse em conta as contribuições negra e indígena incorreria em erro, pois “tanto os indigenas, como os negros, reagiram sobre a raça dominante”348. Essa contribuição seria, em sua discussão,

348 VON MARTIUS, Carl F. P. Como se deve escrever a História do Brazil – Dissertação offerecida ao Instituto Historico e Geographico do Brazil, pelo Socio honorario do Instituto o Dr. Carlos Frederico Ph. de Martius. Revista trimestral de Historia e Geographia ou Jornal do Instituto Historico e Geographico Brazileiro, Rio de Janeiro, Tomo sexto, vol. 6, 1844. pp. 381-403. Disponível em: Acesso: 25.nov.2017. p. 382. 138 desigual, visto que “o sangue Portuguez, em um poderoso rio deverá absorver os pequenos confluentes das raças India e Ethiopica (sic.)”349. Por outro lado, a visão de Martius se mostrou original para sua época na medida em que sustentou que os índios não eram selvagens, e sim estavam em estado selvagem. Nesse sentido,

[...] aqui não se trata do estado primitivo do homem, e que pelo contrário o triste e penível quadro, que nos offerece o actual Indigena Brasileiro, não é senão o residuum de uma muito antiga, posto que perdida história.350

Através de estudos comparativos com etnias de outros países americanos, estudos de costumes, mitologia, línguas, se poderia recuperar a história desse “unico e grande Povo”, que “de um estado florescente de civilisação” havia decaído para o atual estado de degradação e dissolução, de acordo com o autor. Para ele, o fato de ainda não se ter notícia de construções monumentais como as deixadas por astecas ou incas não era o suficiente para duvidar que outrora houvesse florescido uma “civilização muito superior” em solo brasileiro. De fato, Von Martius defendia a criação de empreitadas arqueológicas que pudessem investigar mais a fundo o país:

Se considerarmos que em alguns logares, v.g. em Pauplata, se elevam mattas altissimas e millenárias sobre as construcções de antigos monumentos, não se ha de achar inverosimil que o mesmo se encontrará nas florestas do Brazil, tanto mais que até agora ellas não são conhecidas nem accessiveis senão em muito pequena proporção.351

Embora não mencionada, é possível pensar na influência dessa leitura da história brasileira na obra de Cruls, que através da ficção aventou a possibilidade da existência de uma cidade aos moldes incas em plena floresta amazônica, exemplo de “adiantamento e operosidade”352 – e no entanto somente “desprezivel resquicio de civilizações que sossobraram ao guante implacavel do conquistador feroz”353. Contudo, vale ressaltar que, se as culturas inca, asteca e maia são tomadas por Carl Von Martius como exemplos de grandes civilizações – inaugurando um referencial americano, em detrimento de modelos europeus já bastante utilizados – por outro

349 VON MARTIUS, ibid., p. 383. 350 Ibid., p. 385. Grifos meus. 351 Ibid., p. 389. 352 CRULS, 1925, p. 122. 353 Ibid., p. 166. 139 lado o autor carioca insere em sua obra a crítica à colonização, não vista em Martius e outros textos similares. Em que pese esse fato, as contradições da noção de civilização manipuladas por Cruls não desaparecem com sua crítica. Em um sentido, sua narrativa mostra que a destruição provocada pela conquista acabou com grandes sociedades indígenas existentes anteriormente. Sob outro prisma, contudo, as culturas indígenas do solo brasileiro, sem grandes construções, são descritas como “primitivas” e “atrasadas”, pautando as populações originárias em escalas de valores que remetem a um olhar eurocentrado e determinista das sociedades humanas. Ao final de sua viagem pelas cidades ameríndias, o narrador descobre estar em sua rede, sob o efeito do ayquec, um alucinógeno que fora colocado na comida por Malila, a pedido de Rosina. Trabalhando a todo o momento com a matéria do fantástico, Gastão Cruls deixa essa incerteza se alguns acontecimentos realmente ocorreram ou não –, como é o caso da alucinação que, apesar de provocada por um psicotrópico, posteriormente se mostrará reveladora de verdades sobre as amazonas. Sobre o gênero fantástico, Tzvetan Todorov afirma:

En un mundo que es el nuestro, el que conocemos, sin diablos, sílfides, ni vampiros se produce un acontecimiento imposible de explicar por las leyes de ese mismo mundo familiar. El que percibe el acontecimiento debe optar por una de las dos soluciones posibles: o bien se trata de una ilusión de los sentidos, de un producto de imaginación, y las leyes del mundo siguen siendo lo que son, o bien el acontecimiento se produjo realmente, es parte integrante de la realidad, y entonces esta realidad está regida por leyes que desconocemos.354

Nesse sentido, a ocorrência de um fenômeno estranho gera a incerteza, a hesitação (na versão em espanhol aqui consultada, vacilación). Esse fenômeno pode ser explicado de duas maneiras: por tipos de causas naturais e sobrenaturais. Na primeira, implica a existência daquele fenômeno, mesmo que extraordinário, dentro de leis já estabelecidas; a segunda, por sua vez, refere-se a um mundo de leis desconhecidas. É essa possibilidade de hesitar entre ambas que cria o efeito fantástico. De acordo com Todorov, caso se opte por um dos caminhos acima mencionados, deixa-se o terreno do fantástico para adentrar em outro, o do estranho

354 TODOROV, Tzvetan. Introducción a la literatura fantástica; trad. esp. Silvia Delpy. 2ª ed. Cidade do México: Premia, 1981. p. 18-19. 140 ou do maravilhoso. “Lo fantástico implica pues una integración del lector con el mundo de los personajes; se define por la percepción ambigua que el propio lector tiene de los acontecimientos relatados.”355. Por outro lado, necessita uma maneira de ler específica, isenta de alegorias ou tons poéticos: trata-se da ocorrência mesmo do fato. A própria escolha de um narrador-personagem reforça a dúvida que o fantástico exige. Como aponta Todorov, não se duvida do testemunho do narrador; diversamente, o leitor percorre o mesmo caminho do personagem na busca de uma explicação plausível para os fatos estranhos356. Ainda segundo o autor, o fantástico pode subsistir em obras de ficção científica, mesmo marcadas pela racionalidade da ciência. Neste tipo de narrativa, o sobrenatural está explicado por leis científicas – entretanto, leis desconhecidas em nosso mundo. É o caso de parte da narrativa d’A Amazônia misteriosa, cujos encadeamentos lógicos pressupõem a existência de dados irreconhecíveis para a ciência atual: a própria existência das Amazonas, e as atividades realizadas por Hartmann, de que falaremos adiante. O primeiro fato, explicada por uma história perfeitamente crível, mas que a historiografia oficial desconhece. O segundo, baseado em um sistema de leis científicas inexistentes na ciência contemporânea. Mais do que um gênero autônomo, o fantástico parece existir no limite entre o estranho e o maravilhoso. Sua predominância ocorreu no curto período entre meados do século XVIII e a produção de Maupassant, no final do XIX, transmutando-se então em outros gêneros. Para Tzvetan Todorov, textos como A metamorfose (1915), de Franz Kafka, marcaram uma ruptura no modo de se produzir o estranhamento na literatura. Nele, se parte de um fato estranho (Gregor Samsa acorda transformado em um inseto) para uma situação de normalidade (este fato é aceito como normal, embora não possa ser explicado pelas leis correntes) – justamente o inverso do que costuma ocorrer em obras de cunho fantástico. Do mesmo modo, o advento da Psicanálise freudiana também transformou os temas com os quais lidava esse tipo de produção, revelando e trazendo os tabus à discussão e retirando-lhes a explicação “sobrenatural”, em prol de uma explicação de cunho psicológico.

355 TODOROV, ibid., p. 23. 356 Ibid., p. 62. 141

A obra de Gastão Cruls se encontra precisamente nesse entremeio de produções fantásticas da virada de século. Influenciado pela literatura produzida na virada de século – especialmente pelo conto maupassatiano, como veremos no próximo capítulo –, Cruls trouxe para sua escrita a hesitação das narrativas fantásticas, somadas às discussões propriamente científicas, em uma mescla de temas e gêneros. “Es cierto que el siglo XIX vivía en una metafísica de lo real y de lo imaginario, y la literatura fantástica no es más que la conciencia intranquila de ese siglo XIX positivista.”357. Retornando à narrativa, como Pacatuba continuasse doente, e acreditasse não se tratar só de uma torção, mas também de reumatismo, submeteram-no aos cuidados de uma velha feiticeira. O médico, descrente de tais rituais, tentara dissuadi-lo:

–Você acredita então que uma índia bocal seja capaz de curál-lo sem mais aquela? – Ah, isso é que eu não sei... O doutor me desculpe, mas eu tenho muita fé nos catimboseiros. Quem já viu como eu, a filha do seu Coronel Zacarias, lá do Sapé, nos meus mundos, ficar trez mezes na cama e ser vista por todos os doutores, que não atinavam com o que ella tinha, e depois chegar o Gaudencio da Quenga e só com umas resas botas a menina outra vez nos pés...358

Através de rituais, a pajé acaba por retirar uma larva branca, supostamente o mal causador da dor alojada no tornozelo do doente. O médico quase ri da operação, tentando argumentar com Pacatuba de sua ineficácia, mas se contendo por fim. A todo o momento, Gastão Cruls retoma a discussão entre o conhecimento popular, representado por seus companheiros de viagem e também pelos indígenas, e o científico, denotado por “homens da ciência”, como o próprio narrador. Este aparece geralmente como incrédulo da eficácia dos meios populares, embora por vezes de maneira contraditória. A vida na aldeia segue entre conversas e passeios, até que um dia, aproveitando a ausência de Malila, o narrador resolve explorar o local a sós. Além das poucas explicações sobre as ocupações de Hartmann, o doutor percebera certa área que lhe era cuidadosamente vedada, e sobre a qual só recebia informações desencontradas. A localidade ficava atrás da casa das amazonas, em um espaço

357 TODOROV, 1981, p. 122. 358 CRULS, 1925, p. 174. 142 mais afastado e desabitado, e coberto por uma espessa sebe viva, dificultando sua visualização. O protagonista então planeja sua ida com todo o cuidado, contando com a cumplicidade de Pacatuba. Lá, encontra um grande barracão de madeira, com amplas janelas, parecendo povoado de vultos; além de outras habitações menores e grandes gaiolas de madeira espalhadas. Tendo cuidado para não ser visto, o doutor se aproxima o máximo que consegue, pelo lado de fora. Tal é sua surpresa ao perceber uma criança presa em uma gaiola, um indígena de talvez dois ou três anos, apresentando formas estranhas e movimentos lerdos.

Aquellas fórmas não enganavam e eram bem humanas. Mas, então, seria um monstro? [...] Observando-lhe as attitudes e a flaccidez das carnes, massa sem sustentação e que tomava as mais exquisitas posições, dir-se-ia que a misera não possuia ossos. E, no emtanto, o seu aspecto era perfeito, os membros tinham todos os segmentos, o rosto, tirante um certo empastamento dos traços, não apresentava nenhuma anomalia, e os olhos eram até bem vivos e expressivos.359

Entre pena, nojo e revolta, percebe a aproximação de Hartmann e outro homem, de nome Hans, e até então desconhecido. Receando ser descoberto, o médico escapa dali. No dia seguinte, despistando todos, acorre novamente ao local das gaiolas. Cercando-se dos engradados mais distantes, o protagonista surpreende alguns com macacos barbados e coatás. Encontra também uma casinha de barro, próxima a uma árvore, da qual se aproxima. Seu espanto aumenta quando visualiza uma índia sentada próxima a casa e ocupada de vigiar outra criança. Tratava-se de um pequeno, pela aparência ainda com poucos meses, de compleição estranha e “ar bestial”, “não raro em certos idiotas microcephalos”. Apresentava o corpo coberto de pelos, de tal semelhança com um símio que até corria de quatro com agilidade.

Todavia, se por muitas feições o seu aspecto era francamente pithecoide, outros caracteres o humanizavam, como certos gritos e sons que eu o ouvia emittir, ainda grosseiros e guturais, na verdade, mas onde já se podia adivinhar um esboço de linguagem articulada.360

359 CRULS, 1925, p. 190-191. 360 Ibid., p. 203. 143

Outras crianças estranhas aparecem: uma de porte agigantado, forte e robusta; outra minúscula, com apenas algumas polegadas de comprimento. Nenhuma delas parecia ter qualquer deformidade física, aparentando mesmo saúde. Escutando passos, novamente o narrador consegue se esconder de Hartmann por pouco, desta vez conseguindo ficar tão próximo a ponto de flagrar uma conversa sua. Descobre que os seres ficam em gaiolas separadas, só se encontrando na hora “do recreio”, e que o hominídeo recebia lições todo dia, e já balbuciava as primeiras palavras em alemão. Contudo, em um momento de distração, o protagonista acaba sendo surpreendido por Hartmann. Os dois entram em discussão, até que Hartmann relembra que teria então que fazer do narrador seu prisioneiro, cumprindo o que havia prometido antes. A frase, pronunciada em tom de ameaça, irrita o protagonista, que retruca:

– Ah, não me espantarei, mas... veremos. Agora eu comprehendo toda a sua reserva. O senhor tem receio que eu vá denunciar os seus crimes. – Crimes? – Sim, crimes... affirmei resoluto. Eu já vi a creancinha que é tratada como um bicho e vive no fundo de uma jaula. Notei que o allemão não tinha gostado nada dessa minha asserção, que o fez mudar de maneiras e perguntar-me com accento mais brando: – Ah, então o senhor já andou a correr isso tudo? – Tudo, não; mas o bastante para ficar mais que revoltado e poder julgá-lo um novo Dr. Moreau, e da peior espécie..361.

O médico se referia ao personagem do romance The island of Doctor Moreau, traduzido no Brasil como A ilha do Dr. Moreau (1896), de H. G. Wells (1866-1946). Nesta obra, Charles Prendick, um náufrago a deriva, é resgatado por um navio que levava diversos animais selvagens a uma pequena ilha desconhecida. Recebido pelo Dr.Moreau, um cientista exilado, e seu auxiliar Montgomery, Prendick se depara com as experiências bizarras praticadas pela dupla em animais, visando transformá- los em humanóides através da horripilante técnica da vivissecção. Alguns tipos são verdadeiros arremedos humanos, possuindo fala e até mesmo uma organização social. Instigando temas ainda atuais como a discussão da ética na ciência, a relação entre animais e seres humanos e questões sociais, a narrativa do livro foi influência nítida para Gastão Cruls em A Amazônia misteriosa, dada a similaridade das

361 CRULS, 1925, p. 208-209. 144 histórias. Assim sendo, Cruls relaciona a história de Prendick com a do narrador de seu romance, fazendo-o vivenciar situações semelhantes às vividas pelo inglês. Enriquece-a, transformando-a em uma narrativa em solo brasileiro, e que, além disso, sofreu outras influências diversas, como os de relatos de viajantes dos séculos XVI e as expedições científicas do século passado. Desconhecendo a referência, e como seu ajudante se aproximasse, Hartmann afirma que mais tarde explicaria a situação, expulsando o doutor do local. Aguardando o estrangeiro, o protagonista recebe a visita de Rosina, que já sabia do ocorrido. A francesa comenta, envergonhada, que embora soubesse ser um pouco egoísmo de sua parte, estava até um pouco feliz com a prisão forçada dos viajantes, visto que assim poderia ficar mais tempo em companhia do narrador. O alemão o faz esperar até o dia seguinte. Explica então que, por uma série de razões, não queria se deixar conhecer, mas a imprudência do dia anterior o havia forçado a falar. Comenta que seu nome completo era Jacob Hartmann, que também era médico, e que fora por muito tempo assistente do professor Steinach. A referência é a Eugen Steinach (1861-1944)362, fisiologista austríaco e pioneiro da Endocrinologia. Os estudos de Hartmann, assim como os de seu mestre, se voltavam para “[...] certos assumptos curiosíssimos e do mais alto interesse para a ciencia”363, como o problema da sexualidade animal e do rejuvenescimento de organismos já envelhecidos. Esse tipo de pesquisa possuía então sérias restrições, lamentadas por seu mestre: a necessidade de experimentação científica em seres humanos.

Já por esse tempo eu tinha tambem os meus pontos de vista e, na verdade, uma das questões que mais me preoccupavam dependia exclusivamente da

362 Eugen Steinach atuou em instituições como a Charles University, na cidade de Praga, como professor, e na direção do Institute for Experimental Biology of the Academy of Science de Viena. Através de experimentos hormonais e alterações biológicas em animais, desenvolveu importantes contribuições sobre os hormônios relacionados à sexualidade. Uma de suas principais pesquisas buscava entender mecanismos de rejuvenescimento e melhora do desempenho sexual em homens através de experimentos com hormônios; nesse sentido, realizou diversas cirurgias, ganhando notoriedade nas duas primeiras décadas do século XX – portando, no auge de sua carreira, quando da menção em A Amazônia misteriosa. Contudo, com o passar dos anos Steinach recebeu muitas críticas por conta de seu procedimento de rejuvenescimento, pois as intervenções que fazia geralmente causavam esterilidade masculina. Em 1938, Steinach e sua esposa passavam férias na Suíça, quando Hitler marchou sobre a Áustria. De origem judia, os dois nunca puderam retornar, ganhando então residência permanente e vivendo até o fim de suas vidas no país. Informações extraídas de: . Acesso: 03.jan.2018. 363 CRULS, 1925, p. 219. 145

experiencia directa sobre o organismo humano. O diabo é que essas experiências, alem de delicadissimas e expondo os indivíduos a serios riscos de vida, deixariam sempre lesões graves e irreparaveis.364

Mostrando não se importar muito com as questões éticas envolvidas, Hartmann defende suas pesquisas, através da citação de diversos casos na história que contaram em maior ou menor grau com experimentos em humanos. Segundo o estrangeiro, tratava-se de um gênero de experimentação “insubstituivel muitas vezes, ainda que cruel e revoltante”. Sua opção pela Amazônia se deu pelo fato de acreditar que nesta região existiam tribos que se mantinham “na mais completa barbaria”365 e que, lutando entre si, prescindiriam de prisioneiros de guerra – que poderiam ser usados nas experiências, caso se conseguisse alguma ascendência sobre a tribo em questão. Em sua opinião, não era algo difícil, e tratava-se mesmo de uma ação benéfica, visto que os prisioneiros seriam condenados à morte. Foi assim que Jacob Hartmann resolvera impetrar sua viagem, escolhendo a Amazônia por também já ter lido Bates, Humboldt e outros, que despertaram sua curiosidade sobre a floresta. O que o estrangeiro não contava era encontrar as amazonas, obra do acaso e que apenas mostrava como aquele lugar ainda era inexplorado. E por fim, como as tribos ditas “selvagens” e “combativas” já quase não existiam por aquelas paragens, o professor teve que lançar mão de outros recursos para realizar suas experiências. Passou então a se utilizar de crianças oriundas de gestações gemelares e crianças com alguma má formação física, vistas com maus olhos por algumas etnias indígenas. O acaso de ter encontrado as lendárias índias, que desprezam todos os filhos varões, possibilitou material abundante e quase inesgotável para seus experimentos. Com que pese o absurdo da situação, Hartmann ainda se lamentava só poder pesquisar em organismos jovens. Apesar da indignação do narrador, o médico alemão parece não se importar com o elemento humano em suas pesquisas:

O Snr. Hartmann, inteiramente absorvido pelo assumpto, dizia-me estas cousas com a maior serenidade e referia-se ás creanças como se falasse de cobaias ou rãs com que trabalham os physiologistas nos laboratorios366.

364 CRULS, 1925, p. 219-220. 365 Ibid., p. 220. 366 Ibid., p. 223. 146

Assim se refere aos prisioneiros de guerra de que pretendia dispor para seus experimentos: “[...] não poucos haviam de ser os casos em que elle pudesse poupar a vida dos indivíduos, substituindo-lhes a morte immediata por uma enfermidade que, mesmo definitiva, poderia ter marcha longa e perfeitamente supportavel”367. Hartmann desconsiderava totalmente que, para além da vida miserável que poderia causar a esses prisioneiros, seu ato poderia ser considerado uma ofensa para algumas culturas, que relacionavam a morte a certos rituais. O narrador, ainda que revoltado com a situação, finge concordar com as ideias do estrangeiro para, deste modo, descobrir todos os seus segredos. Considera sorte Pacatuba não conseguir depreender nada da conversa, pois sua reação seria inesperada. Aprofundando o contato, descobre que o programa inicial do estrangeiro era uma pesquisa de meses sobre a afasia, uma alteração na função da linguagem. No entanto, suas descobertas o levaram a outras pesquisas, como os assuntos abordados por Steinach (a preocupação com as glândulas de secreção interna e sua relação com a sexualidade, o crescimento e o envelhecimento), fazendo-o permanecer ali todo esse tempo. Viera acompanhado de dois auxiliares, Hans e Adolpho, e trouxera aos poucos seu material, dada a fragilidade de alguns itens e as dificuldades de acesso ao local. Hartmann vai se empolgando com a narrativa de suas experiências, sem mencionar nenhuma preocupação com suas cobaias. Reafirma a admiração por seu mestre, mas comenta estar certo de que ele estava ainda longe das conclusões a que chegara assim, com a possibilidade de experimentação humana. Sobe a um nível de entusiasmo similar à loucura: combinando genes de diferentes espécies, teria conseguido a síntese biológica, permitindo o cruzamento de animais muito diferentes, e acabando de vez com a teoria da fixação das espécies.

Apoiado nos resultados colhidos pela transplantação de orgãos de um animal para outro, ao fim de pouco tempo elle se convencera de que por ligeira modificação no chimismo de uma dada espécie animal se poderia perturbar de tal maneira a sua constituição intima, que ella se tornaria apta á fecundação por outra espécie totalmente diversa e até, talvez, por animais de classes afastadas. Tudo era questão de uma sensibilização precoce e demorada do organismo por humores e secreções da especie diferente, que

367 CRULS, 1925, p. 221. 147

acabaria por preparar em organismo alheio um meio interno propicio ao desenvolvimento da sua própria semente.368

O estrangeiro acreditava realmente ter encontrado a síntese biológica, descoberta que iria revolucionar o mundo. Sua explanação empolgada põe dúvidas na cabeça do narrador, que chega a duvidar do equilíbrio mental de Hartmann. Deste modo, o médico alemão conseguira cruzamentos bizarros como o produto de uma ave, a cigana, com o jacuarú, um réptil; da cotia com a preguiça, e o do peixe-boi com a anta. Além disso, já fizera cruzamentos de aves das mais diferentes espécies, e também desenvolvia um estudo sobre a ação dos ácidos aminados no crescimento – daí as crianças de porte anormal que o narrador vira. Mas seu objeto de maior interesse estava mesmo no filho de uma mulher indígena com um macaco coatá, “esboço flagrante do homem phitecoide da era neozoica”369. Ainda mais bizarro era o fato de suas experiências se darem muitas vezes sem o conhecimento dos envolvidos, como era o caso da índia que gerara o híbrido com o macaco. Contudo, para Hartmann não havia conflito ético existente no caso. Mesmo que a mulher soubesse detalhes da fecundação, não faria diferença, pois para o médico ela ganhara em troca alguns anos de vida, através de um enxerto dos ovários de uma coatá. Remetendo aos objetivos das experiências do Steinach real, através desse tipo de procedimento a indígena teria remoçado muito, visto que já contava com uns sessenta anos e parecia ainda jovem, “de feições muito moças e fórmas roliças, e com os seios em plena apojadura”370. Mais uma vez, ficção e realidade se misturam na construção da verossimilhança da narrativa fantástica, visto que Eugen Steinach buscava o rejuvenescimento de seres humanos através de procedimentos duvidosos – o que, sabe-se hoje, não ser possível (ou pelo menos não possível ainda). O estrangeiro também não se preocupa com o destino de suas cobaias depois das intervenções cirúrgicas. Como revisse a criança disforme e molenga que o narrador avistara antes, Hartmann explica ao primeiro que havia lhe tirado a tireoide e o timo, com o intuito de estudar os distúrbios de ossificação nos organismos humanos. Contudo, tratando das consequências dessa experiência, o estrangeiro comenta apenas: “Não vê as posturas que elle toma? É uma massa

368 CRULS, 1925, p. 227. 369 Ibid., p. 229. 370 Ibid., p. 234. 148 quasi sem esqueleto... Comtudo, não me deu os resultados que esperava”371. E logo muda de assunto, sem parecer preocupado com o que iria acontecer ao pequeno.

2.3.1 Ficção e eugenia

De acordo com Alexander Meireles da Silva372, a temática da eugenia e dos experimentos genéticos é recorrente nas ficções científicas produzidas em fins do século XIX e início do XX, tanto da Europa e Estados Unidos como do Brasil. O termo, embora indique práticas que podem ser localizadas em sociedades antigas373, foi criado por Francis Galton em 1865 para indicar “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente”374. Baseando-se nas ideias evolucionistas de Darwin e de Thomas Malthus, Galton sugeriu que a inteligência no indivíduo era herdada, e não fruto do meio ambiente. Assim sendo, surgiu um movimento que propunha o melhoramento da espécie humana, através de um campo de ação na política e na sociedade. Como aponta Fabio Iachtechen, as ciências biológicas proporcionaram novas formas de compreender a estrutura física dos seres vivos, implicando em uma explicação alternativa à visão religiosa, e ganhando papel central nas discussões sobre os problemas da humanidade.

Assim, a biologia passou a ter uma conotação política cada vez mais acentuada, na medida em que serviu como fundamento para a defesa de uma série de práticas que, teoricamente, visavam melhorar a condição da espécie humana.375

Essas ideias andavam em consonância com as teorias do darwinismo social, que – embora sem a anuência de Charles Darwin – aplicavam a teoria da evolução das espécies aos meios sociais, reafirmando a dominação de uma classe por outra.

371 CRULS, 1925, p. 231. 372 SILVA, Alexander Meireles. O admirável mundo novo da República Velha: o nascimento da ficção científica brasileira no começo do século XX. 2008. 193f. Tese (Doutorado em Ciência da Literatura/ Literatura Comparada) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível em: Acesso: 05.ago.2015. 373 Cf.: DIWAN, Pietra. Raça pura: uma história da eugenia no Brasil e no mundo. São Paulo: Contexto, 2007. 374 GALTON apud SILVA, op. cit., p. 133. 375 IACHTECHEN, 2008, p. 91. 149

Além disso, podem ser relacionadas ainda à obra de Joseph-Arthur de Gobineau, Essai sur l’inégalité des races humaines (1853), no Brasil Ensaio sobre a desigualdade da raça humana, que dividia os seres humanos em raças diferenciadas entre si, e afirmava ser a miscigenação um fator de degeneração social. Há muito tempo a teoria eugênica já foi refutada, devido a seu caráter pseudocientífico, visto ter Galton se baseado, sobretudo, em estudos de biografias (a maioria de membros de sua família) e dados imprecisos. Além disso, após a Segunda Guerra Mundial, a eugenia passou a ser associada aos métodos de esterilização e limpeza étnica promovida pelos nazistas, e por isso evitada. Entretanto, entre as décadas de 1900 e 1940 as ideias eugênicas se desenvolveram e foram amplamente divulgadas, inclusive no Brasil, e desempenharam importante papel na constituição das sociedades modernas latinoamericanas. 376 Aterrissando em solo nacional através de sociedades internacionais, a eugenia acabou por adquirir particularidades em cada local (Estados Unidos, Brasil, Alemanha, Ásia) onde se instalou377. De fato, Nancy Stepan aponta particularidades que aproximam as ideias eugênicas desenvolvidas na América Latina das da França e Itália, mais do que da eugenia anglo-saxônica. Em todo caso, no período compreendido entre as duas guerras, a eugenia “esteve associada a uma série de congressos e conferências e à legislação social sobre bem-estar infantil, saúde materna, direito de família, controle de doenças infecciosas e imigração.” 378. Para esta autora, as origens do movimento eugênico brasileiro, embora em sintonia com o desenvolvimento científico europeu, esteve mais relacionada a assuntos internos. A entrada do Brasil na Primeira Guerra fortaleceu as discussões sobre controle, ordem e capacidades raciais, bem como a ascensão de um movimento nacionalista que visava projetar o país internacionalmente. Do mesmo modo, a busca de respostas para a chamada “questão social” – a miséria, a fome, as doenças que flagelavam boa parte da população, especialmente a negra e mestiça, bem como as convulsões sociais (greves, revoltas, entre outros) por que passava o

376 STEPAN, Nancy. STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (Org.). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. p. 331-391. 377 DIWAN, 2007, p. 16. 378 STEPAN, op. cit., p. 333. 150 país no período – foram fatores que propiciaram a ampla aceitação das ideias eugênicas em solo nacional. Igualmente, o estágio de desenvolvimento em que se encontrava a ciência brasileira no início do século, ainda mal estabelecida, influenciou o interesse pela eugenia e as particularidades que o movimento adquiriu no país. Diferente do movimento europeu, associado a questões em torno da biometria e da genética mendeliana, no Brasil a eugenia fez parte de um interesse crescente pela ciência como sinal de “modernidade” cultural. Isso ocorreu por conta do sucesso das campanhas sanitárias nas primeiras décadas do século, e pela profissionalização e ascensão de uma classe médica de orientação científica, que estava cada vez mais em contato com as discussões políticas de seu tempo379. Para parcela da intelectualidade que se debruçava sobre os problemas brasileiros, a eugenia aparecia como uma possibilidade de regeneração nacional, fato que contrabalanceava as tradicionais ideias de decadência. Nesse sentido, o movimento eugênico esteve muito associado aqui ao patriotismo e a uma ideia de construir e dar visibilidade internacional ao país. Dada a peculiaridade de nossa formação étnica, os intelectuais brasileiros que entraram em contato com essas discussões formularam concepções particulares para o país, que guardam também suas diferenças e contradições internas. Assim sendo, o desenvolvimento das ideias eugênicas no país foi condicionado pela formação miscigenada de sua população. Desde meados do século XIX, as ideias racialistas já estavam em circulação no Brasil, trazidas pelos filhos da elite que viajavam para a Europa. As expedições científicas europeias em solo brasileiro também desempenharam importante papel, visto que ajudaram a propagar, interna e externamente, a visão de um país atrasado, um território exótico e promíscuo racialmente380, especialmente após a ascensão republicana. Nomes como Louis Agassiz (1807-1873), Arthur de Gobineau (1816-1882) e Gustave Le Bon (1841-1931) popularizaram a ideia de um Brasil incapaz de acompanhar o progresso científico e tecnológico mundial, por conta da mistura degenerativa entre raças. Por volta do fim do mesmo século, médicos da Faculdade de Medicina da Bahia discutiam sobre a miscigenação, considerada então um fator causador de

379 STEPAN, 2004, p. 335-337. 380 DIWAN, 2007, p. 88. 151 doenças, criminalidade e loucura. A maior influência para esses médicos era a do médico-legista e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues, autor de diversos textos em que expunha suas ideias sobre a inferioridade racial negra e a loucura das multidões. De fato, Lilia Moritz Schwarcz sublinha uma diferença entre a produção científica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e a da Bahia, parte de um processo de construção da prática profissional. Enquanto os médicos da faculdade do Rio de Janeiro se focaram em doenças tropicais, que deveriam ser combatidas através dos programas “hygienicos”, a produção baiana entendia o cruzamento racial como o grande problema brasileiro381. Contudo, os programas e debates intelectuais por vezes conversavam entre si, e havia mesmo um intercâmbio, principalmente a partir de médicos baianos que se estabeleceram na cidade do Rio e atuaram como professores da Faculdade de Medicina. Além disso, os projetos médicos por vezes entravam em disputas com projetos alternativos para o país, como aqueles propostos por juristas. Um dos primeiros momentos em que o termo eugenia apareceu foi na conferência do médico Agostinho José de Souza Lima, em 1897, pronunciada a favor do exame pré-nupcial e de impedimentos legais para os casamentos de portadores de sífilis e tuberculose. Em 1916, a tese Eugenia seria apresentada por Alexandre Tepedino à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Desta forma, ao longo dessa década o conceito passaria a fazer parte tanto dos debates estritamente médicos, como de discussões mais amplas na imprensa. O principal divulgador das ideias eugênicas no Brasil foi Renato Kehl382. A partir de 1917, o médico iniciaria uma campanha em prol da eugenia, fomentada pelo recrudescimento do nacionalismo do período de guerra e pelas discussões de

381 SCHWARCZ, 2015, p. 248-250. 382 Renato Ferraz Kehl (1889-1974) formou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1915. Depois de formado, atuou como médico sanitarista no Departamento Nacional de Saúde Pública. Na década de 1920, tornou-se diretor da Bayer, indústria farmacêutica estabelecida no Brasil. Sua figura pública está mais relacionada à eugenia, da qual foi um dos principais propagadores, fundando em 1918 a primeira sociedade eugênica da América Latina, em São Paulo. Envolveu-se também em polêmicas, ao radicalizar suas opiniões, e elogiar publicamente as políticas adotadas pelo Terceiro Reich, na década de 1930. Deixou diversas obras sobre o assunto, entre elas A cura da fealdade (1923), Eugenia e Medicina Social (1923), Lições de eugenia (1929), Sexo e civilização: aparas eugênicas (1933), Pais, médicos e mestres: problemas de educação e hereditariedade (1939), entre outras. Fonte: Acesso: 15.out.2018. 152 nossa identidade e de nossos problemas sociais. Tratava-se de ver a população brasileira através do prisma biológico, que se esperava saudável383 Em 1918, a primeira sociedade eugênica da América Latina foi fundada em São Paulo. Contava não apenas com médicos, mas com membros de diferentes setores da sociedade interessados em discutir o tema. Dentre os médicos, estavam Arthur Neiva, Francisco Franco da Rocha, fundador do Hospital Psquiátrico do Juqueri, em São Paulo, Arnaldo Vieira de Carvalho, um dos fundadores da Faculdade de Medicina de São Paulo em 1913, Vital Brazil, bacteriologista do Instituto Butantã, em São Paulo, Fernando de Azevedo, que iria se destacar por sua atuação na educação, Belisário Penna, que atuou como vice-presidente honorário da instituição, entre outros. Desde seu início, a Sociedade Eugênica de São Paulo contou com o acesso quase irrestrito aos grandes meios de comunicação do país, publicando notas de conferências, textos explicativos, entre outros. Vale observar que um dos membros, Vieira de Carvalho, detinha relações de parentesco com Júlio de Mesquita, dono d’O Estado de S. Paulo. A sociedade tinha como uma das principais premissas promover o debate sobre uma intervenção direta nos corpos dos indivíduos, através de propostas (por vezes conflitantes entre si) como o controle matrimonial, a restrição à imigração, a esterilização dos indivíduos, a higienização dos espaços, entre outras. A instituição duraria até 1919, finalizada pela mudança de Renato Kehl para o Rio de Janeiro (onde se tornou genro de Belisário Penna) e pela morte de Carvalho, um de seus membros mais ativos. Na capital, Kehl continuaria a divulgar a eugenia, através da publicação de panfletos e livros, de palestras e debates. Outras instituições com influência eugênica surgiriam no país, como a Liga Brasileira de Higiene Mental384, de 1922. Do mesmo modo, outras obras com intuito eugenista foram publicadas, como O problema vital (1918), de Monteiro Lobato, e Exército e

383 DIWAN, 2007, p. 96. 384 Fundada por Gustavo Reidel, à época diretor da Colônia de Psicopatas de Engenho de Dentro, no Rio, a instituição contava com membros de equipes de asilos mentais e reformatórios, e primava pelas discussões sobre psiquiatria e higiene mental. Por volta de 1925, reunia entre seus participantes nomes como Afrânio Peixoto, Miguel Couto, Carlos Chagas, Edgar Roquette-Pinto, entre outros; além do próprio Kehl. Um dos propósitos principais da liga, nesse sentido, era o de criar um programa de higiene mental e eugenia que atingisse a vida cotidiana individual e social – especialmente para as então chamadas “patologias dos pobres”: os crimes, o alcoolismo, a delinquência e a prostituição. Tratava-se de uma verdadeira variante da eugenia brasileira, aparecida em círculos de medicina, e que relacionava os problemas de crime às questões eugênicas e raciais. Cf.: STEPAN, 2007, p. 343-344. 153 saneamento (1920), de Penna; além disso, em 1929 seria realizado o primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Assim sendo, vale ressaltar que os médicos sanitaristas e eugenistas partilhavam ideias semelhantes em alguns pontos, com muitos grupos e indivíduos demonstrando interesses convergentes. Apesar disso, a disputa por espaços numa crescente medicalização da sociedade, simbolizada pela importância que as questões de saúde adquiriram na esfera pública nesse período, bem como a fundação de faculdades, oferta de cátedras, entre outros, acirrou as diferenças e separou mais os campos de atuação. Como discute Marília Mezzomo Rodrigues, as propostas eugênicas se constituíram num campo amplo e multiforme, contendo divergências e reelaborações, que uma análise mais simplista não consegue abarcar – crítica especialmente dirigida a alguns pontos da obra de Pietra Diwan. Nesse sentido, a imagem cristalizada da eugenia após a Segunda Guerra Mundial acabou por nivelar os diversos atores e ideias em um conjunto homogêneo, caracterizando-os como racistas. Para a autora, contudo,

Os adeptos de eugenia e higiene como forma de se construir um país moderno foram tantos quantas foram as teorias difundidas sobre o assunto, com leituras de mundos diferentes, sempre mediadas por filtros de diferentes contextos.385

Ao analisar as obras de ficção de Érico Veríssimo, a autora observou pontos de contato com as discussões médicas do período, como a defesa do exame pré- nupcial obrigatório, e a presença de médicos no governo. Contudo, o autor está muito distante dos intelectuais que propunham uma ação de Estado autoritária, como alguns eugenistas. Discutidas por diferentes setores da política e da intelectualidade do período, essas premissas foram absorvidas e reinterpretadas de diferentes modos. Assim sendo, as ideias eugênicas não adquiriram um sentido único, ou uma abordagem bem definida e delimitada, como parece a um primeiro olhar. Nancy Stepan segue na mesma direção, apontando para as variantes que o debate eugênico ganhou ao longo dos anos, como a relação entre ciência e saúde, ou a maior ou menor interferência direta sobre os indivíduos. Aponta, ainda, para a

385 RODRIGUES, 2009, p. 81. 154 predominância das vertentes interpretativas neolamarckianas, influência da tradição cultural e científica francesa, que partiam da ideia da herança de caracteres adquiridos, em diferença das concepções mendelianas de genética. O movimento está relacionado com a própria constituição do lamarckismo internacionalmente, que readaptava suas concepções, tentando adequar em termos científicos a noção de influência do meio com as novas descobertas de Mendel. A ausência dos estudos de genética nas instituições de ensino nacionais também deu o tom eclético dos discursos. Portanto, predominou uma visão “otimista” da eugenia lamarckiana – apesar de não ser a única –, que via relação entre melhorias na formação e melhoramento hereditário ao longo do tempo; bem como uma ideia de “prevenção” dos fatores considerados disgênicos. Nesse sentido, houve uma proximidade entre as ideias de “sanear” a nação e eugenizá-la – ou como nas afirmações de Kehl, “sanar é eugenizar”386 –, uma cooperação e interrelação entre o movimento sanitarista e o eugênico. Como aponta ainda a autora, “estrutural e cientificamente, a eugenia brasileira era congruente, em termos gerais, com as ciências sanitárias, e alguns simplesmente a interpretavam como um novo ‘ramo’ da higiene”387. Vale ressaltar, ainda, que a característica conservadora da sociedade brasileira trazia a oposição, em termos gerais, de métodos de um eugenismo mais radical, como a esterilização e o aborto. Nesse contexto, a eugenia brasileira esteve mais relacionada às discussões sobre maternidade, saúde da família, exames pré-nupciais e outros, que visavam sanar problemas como as altas taxas de mortalidade infantil e a baixa densidade demográfica em algumas regiões. Finalmente, vale lembrar que as tentativas de interpretação do Brasil e de busca de uma identidade nacional, que ganharam força entre a Primeira Guerra Mundial e a década de 1920, bem como a radicalização do movimento eugênico no final da década, acabaram por transformar os sentidos dos debates sobre eugenia. As divisões internas do movimento, ideológicas e científicas, bem como uma nova leva de cientistas, formada de acordo com preceitos biológicos anglo-saxões e norteamericanos, passou a questionar a eugenia praticada no país, ao fim dos anos 1920. Por fim, a passagem da década de 1920 para 1930 veria uma lenta mudança

386 STEPAN, 2004, p. 346. 387 Ibid., p. 348. 155 de pensamento, que culminaria com a ascensão das teorias culturalistas, especialmente a partir da obra de Gilberto Freyre, já na década de 1930388. Nesse sentido, interpreto aqui as ressonâncias eugênicas na obra de Gastão Cruls como fruto de sua experiência enquanto médico. Vale relembrar aqui o contato com o laboratório de fisiologia dos irmãos Ozorio de Almeida, sua experiência clínica com Miguel Couto, professor que partilhava dos ideais de eugenia, os diversos debates com que tomou contato. Além disso, a ideia inicial do romance A Amazônia misteriosa partiu tanto de Cruls como de Miguel Ozorio e Afrânio Peixoto, membros de sociedades eugênicas. Contudo, esses fatores não podem ser dissociados de dois elementos. O primeiro está relacionado às experiências que Cruls adquirira enquanto médico sanitarista, observando a realidade de diferentes regiões do país. Esse interesse pela realidade plural brasileira pareceu permear toda sua vida, extrapolando o exercício da medicina e continuando em sua carreira de literato e nas viagens que fez, fato que o permitiu entrar em contato com diversos debates sobre saneamento, higiene e temas afins. Assim sendo, a relação entre eugenia e saneamento de que fala Nancy Stepan me parece clara, e creio ser apenas nesse sentido que podemos apreender seu romance como uma obra de cunho eugênico. O segundo elemento se refere ao ceticismo característico do autor quanto à medicina, fato que o fez construir personagens cientistas de moral dúbia, levados à ação mais por questões pessoais e pela vontade de êxito profissional, do que por um interesse genuíno de cura ou de uma descoberta que beneficiasse seres humanos. Esse me parece um fator-chave para entender o romance, que apresenta uma crítica aos limites da experimentação científica. Deste modo, se as questões da transformação em corpos humanos e seu “melhoramento” são aventados, logo a dúvida sobre seus limites e mesmo sua eficiência também aparecem – é só observar na narrativa os frutos dos experimentos de Hartmann, até então apenas seres disformes e sem grandes capacidades intelectuais. Essa dúvida parece também ser a própria dúvida do autor, que deixa entrever um sentimento contraditório com relação às pesquisas, dado que será retomado abaixo. De todo modo, vale ainda relembrar que o terreno fértil de aplicação das teorias racialistas se dava sobre as camadas menos favorecidas da população, haja

388 SCHWARCZ, 2015, p. 285 et. seq. 156 vista o arraigado preconceito das classes sociais mais abastadas em relação aos primeiros. De acordo com Pietra Diwan, “a ameaça popular advinda com a Comuna de Paris, em 1848, assim como a emergência das teorias de esquerda, espalharam- se pela Europa e transformaram a pobreza, sinônimo de perigo e inferioridade”389. Em conjunto com as péssimas condições de saúde e salubridade das grandes cidades, como Londres, esses fatores possibilitaram a emergência de ideias de higienização dos espaços e controle populacional. No Brasil, esses problemas de classe estavam intimamente ligados aos de raça, visto que entre as classes menos favorecidas se encontrava a maior parte da população mestiça e negra. Tentando encontrar explicações condizentes com as particularidades do país, o movimento eugênico chegou a propor que a miscigenação seria regenerativa, e não degenerativa como propunham as explicações europeias, porque favoreceriam o branqueamento da população390. E de acordo com Alexander Meireles da Silva,

Percebe-se que o apelo das teorias eugênicas na segunda metade da República Velha residia em sua proteção do status quo e na defesa de remédios científicos e tecnológicos para solucionar problemas sociais que demandavam mudanças estruturais profundas. No caso do Brasil, um país em que as desigualdades sociais têm resistência secular, os eugenistas ignoravam fatores econômicos e sociais na criação de projetos que acreditavam que seriam capazes de modernizar seus países e os levarem ao desenvolvimento.391

E assim, era mantido o status quo das classes dominantes, sobretudo do colonizador branco europeu. Nas ficções produzidas no começo do século XX, essa temática aparece problematizada, em diferentes níveis. Pode ou não assumir uma postura de consonância com esses pressupostos. Como aponta Roberto de Sousa Causo, o próprio H. G. Wells foi um indivíduo oriundo das classes aristocráticas e que apresentava, principalmente em textos não-ficcionais, um preconceito contra as

389 DIWAN, 2007, p. 33. 390 Vale ressaltar, ainda, que embora pautado por um raciocínio de uma elite sobretudo branca, que governava uma sociedade multirracial em uma época dominada pelo racismo, o ideal de branqueamento possibilitou uma avaliação mais positiva da contribuição dos mestiços – quando não dos negros – para a sociedade brasileira. As visões negativas com relação à sociedade brasileira foram, nesse sentido, transformadas em visões otimistas que consideravam fatores como educação, saneamento e reformas sociais como respostas aos problemas brasileiros, mais do que a segregação ou a perseguição racial. Sob essa perspectiva, “o resultado foi a ascensão de um movimento eugênico que, conquanto se fundasse em ideologia racista, foi sutilmente afastado de um racismo declarado” (STEPAN, 2004, p. 359). 391 SILVA, Alexander, 2008, p.133-134. 157

“massas”, vistas como inferiores e até mesmo perigosas. Tais opiniões estavam em sintonia com outros intelectuais:

Em carta, D. H. Lawrence antecipou o uso da câmara de gás, e pensadores como Niezstche, Freud e Ortega y Gasset falaram contra o princípio democrático e pediram por líderes fortes, baseados ou não em uma aristocracia intelectual.392

Nesse sentido, Wells teria sido um dos escritores mais conhecidos que podem ser chamados de darwinistas sociais. Ainda de acordo com Causo, a recepção de H. G. Wells no Brasil incorporou suas inovações para o romance científico393, como a superação de uma narrativa onde a aventura e o exótico predominam, para a recriação de realidades alternativas, que levam à reflexão. Contudo, na maioria dos casos as reflexões do inglês parecem ter sido incorporadas sem maiores hesitações, gerando obras que fomentaram um questionável discurso. O presidente negro ou O choque das raças (1926), de Monteiro Lobato, é uma desses exemplos. Na narrativa, um rapaz de nome Ayrton sofre um acidente, e por isso se obriga a ficar alguns dias em repouso na casa do homem que o resgata, o cientista Professor Benson. Entre as engenhocas criadas por Benson, está o “porviroscópio”, que permite a visualização de eventos futuros. Através desse objeto, os personagens assistem a um futuro em que, em 2228, os Estados Unidos elegeram seu primeiro presidente negro. O acontecimento gera uma reação contrária, que acaba com o surgimento de um tratamento capilar, cuja aparente função seria alisar os cabelos dos negros – mas que na verdade tinha por função a esterilização dos indivíduos. Com essa premissa, Lobato acabou por alimentar o discurso darwinista social, eivado de preconceitos de cor. É curioso denotar que o autor supunha que seu romance faria sucesso nos Estados Unidos; contudo, a obra foi rejeitada neste país394. Em 1945, a obra foi reeditada “em plena maturidade e com anuência do

392 CAUSO, 2003, p. 136-137. 393 “Romance científico” é o termo utilizado por Roberto de Sousa Causo para denominar os romances que problematizavam a relação com a ciência, surgidos em meados do século XIX no escopo das transformações trazidas com a Revolução Industrial, especialmente as transformações de caráter tecnológico e científico. Um dos principais representantes desse gênero seria H. G. Wells. Esse tipo de narrativa guarda semelhanças com o “romance de antecipação”, nome pelo qual as histórias de Jules Verne eram denominadas à época, na França; contudo, o autor prefere esse termo, por indicar uma gama vasta da produção literária que se debruçou sobre a problematização da ciência, fazendo ela projeções futurísticas ou não. 394 CAUSO, ibid., p. 141. 158 autor, sem nenhuma alteração”395, diferente do personagem Jeca Tatu – “redimido” com o passar do tempo –, expondo assim o racismo de Monteiro Lobato. Contudo, como bem lembra Marília Mezzomo, a produção escrita e as ideias de Monteiro Lobato não devem ser desvinculadas de um pensamento das elites agrárias brasileira, herdeiras de um passado escravista recente, de que o escritor provinha. Esse dado, aliás, era comum a boa parte da intelectualidade atuante nas primeiras décadas do século XX396. Nesse sentido, cabe a observação de que Monteiro Lobato endossou e se utilizou das teorias racialistas, a partir sobretudo da influência de Wells, na medida em que também iam de encontro com suas próprias premissas, características da classe de que provinha. Outro exemplo de ficção que faz o elogio do controle social através de procedimentos científicos é Sua Excia. a presidente da república no ano 2500 (1929), de Adalzira Bittencourt. Nesta obra, o Brasil tem no ano acima citado sua primeira presidente mulher, a Dra. Mariangela de Albuquerque, formada em direito e medicina. Através de uma série de reformas, a presidente transforma a nação em uma potência mundial: o analfabetismo é erradicado, territórios longínquos como a Amazônia são urbanizados, as pessoas são saudáveis, o exército está bem estruturado, o sufrágio universal é adotado, a educação e o acesso à cultura se estendem até as classes das zonas rurais, não há oscilações de ordem econômica. A mudança teria sido operada com a ascensão das mulheres ao mundo da política, e pela adoção de um rígido programa de eugenia e higiene social. Entre as medidas adotadas estão a eutanásia em leprosos, o extermínio dos malformados, o rígido controle dos nascidos (desde o casamento e dos primeiros meses da gravidez), além da expulsão de todos os negros e seus descendentes mais diretos para a África. Assim como em Monteiro Lobato, a miscigenação e, em especial, o elemento negro, aparecem como causadores da degeneração dos indivíduos e dos problemas sociais. Como aponta Causo, apesar de trazer importantes discussões sobre a participação mais ativa das mulheres na vida pública, Adalzira Bittencourt recorre ao mesmo discurso do darwinismo social, fazendo a defesa da eugenia e da eliminação dos indivíduos considerados “menos aptos”397. A autora faz até mesmo uma defesa

395 SILVA, Alexander, 2008, p. 160. 396 RODRIGUES, 2009, p. 80. 397 CAUSO, 2003, p. 148 et. seq. 159 xenófoba do controle de fronteiras contra imigrantes. Nesse caso, as desigualdades sociais, bem como as enfermidades que assolavam o país, aparecem não como consequência de problemas de ordem estrutural, mas por conta da mistura aleatória de elementos muito diferentes entre si.

[...] para a sensibilidade atual, a destruição de um modo de vida de um grupo é inaceitável mas tal destruição cabia muito bem na sensibilidade da época, que via com naturalidade o conceito do desaparecimento de espécies ou organizações sociais tidas como “atrasadas” ou “primitivas”, dentro da chave de luta pela sobrevivência do mais apto, própria do Darwinismo Social.398

Por conseguinte, as elites políticas e letradas, de maneira geral, incorriam em uma espécie de imperialismo interno, um indicativo de nosso estatuto neocolonial, na medida em que viam o país de maneira semelhante aos colonizadores europeus da época. Para estes, as colônias apareciam como áreas de grandes riquezas a serem exploradas, e cuja dificuldade se daria pela existência, nessas regiões, de “raças e culturas inferiores”, num indicativo da falácia desse tipo de discurso. De acordo com Causo, A Amazônia misteriosa se apresenta como uma exceção notável ao modo de absorção da influência wellsiana em nossa literatura, sob diferentes aspectos. Em detrimento da figura do Dr. Moreau, o cientista Hartmann fazia seus experimentos visando solucionar problemas bem específicos, e não pelo simples prazer de manipulação; embora pareça haver para o personagem alguma espécie de compensação nisso, seu objetivo último eram as descobertas e a posterior fama que lhe granjeariam. Por outro lado, a obra de Gastão Cruls escapa das reflexões transcendentais apresentadas no romance inglês, preferindo, por sua vez, um caminho que conduz ao debate sobre as questões éticas que envolvem a medicina e a pesquisa científica. Assim sendo, Cruls apresenta uma crítica aos limites da ética na pesquisa científica, ao expor o espanto e a revolta do narrador – que também era médico – com as experimentações em indígenas. Sua crítica parece ainda apontar para a suposta abnegação e sentido de missão de que se investiam os pesquisadores, em verdade muitas vezes mais preocupados com os méritos que ganhariam com a publicação de suas descobertas. Nesse sentido, o romance teria conseguido absorver a influência do autor britânico sem comprometer a originalidade das ideias

398 Ibid., p. 140. 160 apresentadas no texto. Pelo contrário, os aspectos que dariam o tom de “brasilidade”, como o deslumbramento pela natureza e a simpatia pela vida simples do autóctone, são aos olhos de Roberto Causo mais penetrantes que a influência de Wells, que ao final está limitada ao domínio da forma, a soluções narrativas criadas pelo autor britânico399. Retornando à narrativa, o protagonista depois tenta se mostrar um entusiasta das pesquisas de Hartmann, reparando sua comparação com o Dr. Moreau de Wells: “Aquillo fôra uma expansão irreflectida e que não deixava de ser justificada. Eu tinha visto apenas um quadro horrendo e capaz de revoltar a qualquer um que não soubesse de sua finalidade. Os altos interesses da sciencia, entretanto...” 400. Sua atitude é dúbia, pois demonstra ser fruto da cautela quando às ações do alemão, e ao mesmo tempo de uma esperança de que este os deixasse ir embora sem maiores problemas; mas, ao mesmo tempo, parece vir de uma admiração real pelas descobertas do cientista. Devido à revelação de seus segredos, Hartmann impõe a necessidade de manter os visitantes no local, para que suas pesquisas lograssem êxito. Muito diferente seria se apresentar ao mundo como o autor de descobertas importantes, e ser flagrado ali como um louco ou sanguinário. Os viajantes deveriam então aguardar a conclusão das pesquisas, que durariam no máximo mais uns três meses, para que todos regressassem juntos. Mesmo reafirmando sua discrição e dando sua palavra, o protagonista não consegue convencê-lo; não havia, pois, chance de fuga, dadas as dificuldades de um espaço desconhecido e cercado por tribos cujos territórios seriam impenetráveis. O narrador também não tenta ajudar as cobaias; de fato, nem reflete muito sobre isso, em uma indicação de que parecia não haver escapatória para a situação. Deste modo e apesar de frustrados, Pacatuba e o protagonista permanecem na tribo, e não os resta muito a não ser desfrutar de passeios e caçadas em companhia de Malila e Rosina, e conhecer um pouco mais da vida cotidiana das amazonas. Hartmann, conquanto os mantivesse prisioneiro, facilitava-os passeios a grandes distâncias. Por sua vez, essas saídas só confirmavam ao narrador a certeza do narrador quanto à impossibilidade da fuga: Hartmann jamais consentiria que os viajantes

399 CAUSO, 2003, p. 176. 400 CRULS, 1925, p. 235. 161 saíssem muito longe de suas vistas se não estivesse seguro de que fracassariam fugindo. Em sucessivas conversas entre os dois viajantes, Rosina e Malila, o grupo chega à conclusão de que uma fuga apressada seria frustrada. A Pacatuba, dada a sua “alma rustica”401 foram ocultados os verdadeiros propósitos e experimentos do médico alemão – fato que poderia levá-lo a uma tentativa de fuga malsucedida. Rosina e o médico brasileiro apresentam visões discordantes sobre as pesquisas de Hartman. A moça se colocava horrorizada, e preferia viver na ignorância de que seu marido fazia. O narrador, entretanto, hesitava, rendendo um diálogo revelador.

– Sim, na verdade, é esse o primeiro sentimento que se experimenta [o de revolta], e foi por isso que não me contive no primeiro dia. Mas depois que a gente se convence do alcance dos seus estudos e sabe que elle só se aproveita das creanças irremediavelmente perdidas... – Ah, bem se vê que o senhor é medico. Diante do seu protesto, busquei tornar-me mais preciso: – Não, eu não quero dizer que esteja de acordo com elle... A experimentação sobre o homem sempre me revoltou e tem a minha mais formal condemnação. Contudo, ha outros exemplos na sciencia e elle parece ter argumentos e coragem bastante para defender o seu ponto de vista.402

A dubiedade do personagem-narrador também parece ser a contradição do próprio Cruls frente às discussões apresentadas ao longo da trama. Oriundo da área médica, o autor levanta questionamentos éticos; por outro lado, parece estar a todo o momento refletindo sobre a importância das pesquisas para o desenvolvimento científico e as complicações inerentes ao processo. Escrito durante o período em que o autor dividia seu tempo entre a prática literária e o exercício da medicina, o romance parece ser exemplar de suas dúvidas pessoais sobre a carreira, bem como da diversidade de correntes e ideias que perpassavam o meio médico. O protagonista então é contestado pela francesa, que conta de um experimento que Hartmann não havia comentado: por conta de seus estudos sobre afasia, havia inutilizado um homem forte e sadio, que teria toda a vida pela frente. Tratava-se de um sírio, que também havia caído por engano na tribo das amazonas, e sofrera uma trepanação à força. O experimento havia causado uma paralisia em seu braço esquerdo, e o fizera esquecer por completo a língua portuguesa.

401 CRULS, 1925, p. 247. 402 Ibid., p. 249. 162

Em conversas anteriores com Hartmann, o narrador perguntara do andamento das pesquisas sobre afasia, ao que o estrangeiro desconversara. Para comprovar suas teorias sobre a localização dos centros da fala, teria que dispor de adultos, o que dificultava seu trabalho. Além do mais, mesmo que encontrasse algum, seriam “typos broncos e falando apenas uma língua” (uma referência aos ameríndios)403, impossibilitando seu trabalho, que então tomara outros rumos. Diante do espanto do narrador – e frente à iminência de ser ele mesmo uma cobaia ideal para os experimentos –, Rosina continua:

– E pensa que elle já não se lamentou muitas vezes por não poder fazer com o senhor o mesmo que fez com o syrio? E como eu a fixasse em ar de dúvida, ella confirmou: – Posso lhe garantir que sim. Êle é um homem que só enxerga os interesses da sciencia. E se eu disser que elle quiz fazer conmigo o tal producto que conseguiu depois pelo cruzamento de uma índia com o macaco? 404

Hartmann achava que uma índia seria “muito bronca”, e usar sua esposa permitira um resultado melhor. Ante as lágrimas repentinas da francesa, o doutor tenta acalmá-la, e os dois acabam se beijando, sem ninguém por perto. A partir desse ocorrido, passam a se encontrar frequentemente sozinhos, sem levantar suspeitas no alemão – que andava muito ocupado com seus experimentos... Nesse sentido, até o relacionamento às escondidas entre Rosina e o protagonista demonstra a cegueira da visão de Hartmann, sua intransigência. O relacionamento com Rosina instiga o protagonista à fuga, agora junto com a moça; no entanto, ela acaba por dissuadi-lo, haja vista que o alemão dizia pretender partir logo e que seria mais prudente esperar. Combinam então de retornarem juntos, e, aos poucos, o narrador esquece-se temporariamente dos experimentos de Jacob Hartmann. Nessa parte da narrativa, há uma quebra no ritmo da história, visto que após um momento de preocupação inicial do narrador, seguem-se momentos de distração dos personagens, como pescas e caçadas, como se não corressem perigo ou não se importassem com o que Hartmann fazia. Sobre esse ponto, está ancorada a crítica de Rodrigo Gurgel sobre o livro, feita para o jornal literário Rascunho. De acordo com Gurgel, a história narrada por Gastão Cruls se apresenta inverossímil e mal construída, tendo em vista as ideias

403 Ibid., p. 238. 404 Ibid., p. 251. 163 contraditórias sobre as questões científicas apresentadas pelo protagonista. Para Gurgel,

Não há espaço para crises ou conflitos no romance. O protagonista se refestela em seus divertimentos bucólicos, a possível discussão ética é jogada no limbo e os personagens, hábeis contemporizadores, simplesmente seguem a vida, cada um divertindo-se em seu universo particular — enquanto as corajosas amazonas caçam, pescam, plantam e se comportam de forma servil.405

Há realmente uma quebra narrativa, já comentada. Contudo, acredito não se tratar de “jogar no limbo” as discussões éticas. Parece-me que o texto foca momentaneamente a vida ordenada das amazonas, e as distrações dos passeios e do romance entre o casal para, ilusoriamente, dar a impressão de que tudo corre bem. Talvez fosse mesmo algo proposital:

[...] parecia-me mesmo que elle [o alemão] usava desse estratagema pra manter-me afastado do seu campo de experimentação, onde nunca mais me levara, desde a primeira e unica vez em que o visitaramos juntos.406

Esse cenário, contudo, não permanece por muito tempo, como será visto abaixo. Algumas questões realmente poderiam ter sido aprofundadas por Gastão Cruls. Como aponta Roberto de Sousa Causo,

teria sido melhor para a ficção científica brasileira se Cruls se detivesse mais nos aspectos especulativos do romance, mas por outro lado ele demonstrou que a influência de H. G. Wells pôde ser absorvida sem que a totalidade da sua ideologia fosse igualmente integrada.407

Nesse sentido, diferente de uma obra incompleta ou rasa, o autor carioca teria conseguido produzir uma obra original, a partir tanto da influência estrangeira, como de influências locais de caráter mítico, sem cair apenas na repetição de discursos ideológicos exógenos, como Monteiro Lobato408. Do mesmo modo, Causo ainda aponta outra diferença que torna o romance de Cruls interessante. Jacob Hartmann se dedica à exploração do material humano nativo, sem escrúpulos ou questionamentos. Defende a superioridade racial do elemento branco,

405 GURGEL, Rodrigo. Tediosa floresta. Rascunho, maio de 2014. Disponível em: . Acesso: 16.mai.2015. 406 CRULS, 1925, p. 246. 407 CAUSO, 2003, p. 176. 408 Ibid., p. 177. 164 e está a todo o momento reafirmando-a em detrimento dos “broncos” e “atrasados” indígenas. Para seu experimento sobre a afasia, pretendia utilizar-se do próprio narrador – um exemplo caucasiano, e que ainda por cima era poliglota, considerado mais apto para os resultados que procurava. De maneira semelhante, preferia fecundar artificialmente sua esposa, uma francesa, ao invés de uma amazona, pois acreditava que o produto resultante desse experimento seria “melhor e com outras qualidades de intelligencia”409. Os horrores a que eram submetidos as cobaias, sua transformação em objetos sem opção de escolha do próprio destino denunciam – talvez de modo conradiano, termo usado por Roberto Causo – a falácia do discurso humanista que mascarava os intentos da colonização europeia na América. Como já apontado em outro momento, a longa discussão trazida por Atahualpa reforça essa ideia, apontando para a destruição de grandes culturas originárias, e para a crueldade dos massacres impetrados pelos europeus em busca de territórios e riquezas. De acordo com Causo, a novela Heart of darkness (1902, e que no Brasil ganhou o título de Coração das trevas), de Joseph Conrad (1857-1924), provavelmente tenha inspirado mais obras de ficção científica do que qualquer outra narrativa. “Sua horripilante odisséia até o desconhecido e sua visão da Alteridade da vida alienígena, capturou a imaginação dos escritores de FC desde então” 410. Coração das trevas trata de um capitão inglês a trabalho em um barco de uma companhia de comércio belga. O capitão deveria navegar por um rio africano, e resgatar Kurtz, um famoso comerciante de marfim, para a civilização. Escrita como uma meta-história, a ficção de Conrad apresenta uma profundidade psicológica e tons de crítica ao imperialismo europeu que a tornam uma obra densa e simbólica. E é nesse sentido que a obra de Cruls pode ser vista como uma crítica em tons conradianos, indicando o absurdo da vida no mundo colonial, através de recursos como a viagem ao desconhecido, o isolamento, a natureza exuberante e ao mesmo tempo opressora, situações que beiram o fantástico. A própria escolha de Cruls em dar voz a um habitante originário, o último Inca, seria demonstrativo de algo nesse sentido. A história da conquista devia ser revisitada tendo em vista seu

409 CRULS, 1925, p. 251. 410 CLUTE apud CAUSO, op. cit., p. 313. 165 lado mais obscuro, o lado sangrento e execrável das ações dos colonizadores, e o que se perdeu em termos de culturas originárias, suas vozes sobre o ocorrido 411. Igualmente, a caracterização da invasão do elemento estrangeiro, em busca da exploração do material nativo, indica uma denúncia a um modelo de colonização racionalizante e alheio às particularidades locais. E, se por um lado isso aponta para a crítica ao imperialismo estrangeiro, enquanto reafirma a necessidade de se conhecer o Brasil, por outro delineia um discurso nacionalista em Cruls. O clima geral em que a narrativa se passa (os anos entre a Primeira Guerra Mundial) é de emergência de discursos de cunho nacionalista, fomentados pelos conflitos externos e pela possível entrada do Brasil na guerra. Inicialmente, o governo brasileiro declarou sua neutralidade, tentando manter os acordos comerciais com lados antagônicos do conflito, Alemanha e Inglaterra/ França – então países primordiais para a exportação do café brasileiro. Prejudicado nos anos anteriores do conflito pela diminuição das exportações de borracha, e ao longo da guerra por bloqueios econômicos e pela diminuição nas exportações do café, o país vivia uma situação econômica e política instável. Essa situação fora

411 Claudio Silveira Maia apresenta uma discussão interessante sobre a crítica ao imperialismo na obra de Cruls, tendo como chave de interpretação as teorias pós-coloniais. Cf.: MAIA, Claudio Silveira. Pedras perdidas: o decadentismo e a visão pós-colonial de Gastão Cruls. 2009. 304f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós-graduação em Estudos Literários, Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Araraquara, SP. 166 piorada por conflitos internos, como a Guerra do Contestado (1912-1916) 412 e por diversas greves gerais, a partir de 1917413. De fato, a queda nas exportações gerou alta na inflação e baixos salários para os trabalhadores, somados ao aumento de impostos, solução encontrada pelo governo federal para suprir a queda de rendas alfandegárias, outra de suas fontes de renda414. Tais elementos contribuíram para que a população em geral, insuflada pelas discussões na mídia, se indispusesse contra a guerra – em especial contra os países causadores do conflito. Por outro lado, não havia uma política de assimilação para as populações imigrantes, que entravam aos milhares todos os anos no país,

412 A Guerra do Contestado foi um conflito armado ocorrido na região de fronteira entre Paraná e Santa Catarina, gerada por diferentes motivos. O local já vinha sendo “contestado” pelos dois estados judicialmente, em uma disputa de limites que se estendia há anos. Além disso, a ausência do poder público gerou a ascendência dos monges na região, figuras religiosas, geralmente peregrinas, que conseguiram angariar diversos seguidores entre o final do século XIX e início do XX. O mais famoso deles foi José Maria, surgido nos anos imediatamente anteriores ao conflito. Vale ressaltar que essas figuras, misto de curandeiros e missionários, ganharam não só a confiança das populações mais humildes, mas também de vários coronéis donos de terra, o que possibilitava sua permanência nos locais, garantia sua segurança, e ainda aumentava sua popularidade. Por fim, houve a desapropriação de terras próximas ao trecho catarinense da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, ocupadas há muito tempo por posseiros, mas consideradas pelo governo federal como devolutas e, por isso, doadas à Cia. Brazil Railway Company – pertencente a Percival Farquhar, proprietário, dentre outros empreendimentos, da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Isso piorou as tensões entre o governo e os grupos marginalizados, que passaram a se reunir em comunidades, lideradas pela figura messiânica do monge José Maria, e que contavam com o apoio de alguns coronéis, prejudicados pela expansão da companhia de ferro. O conflito iniciou-se com o pedido de auxílio de coronéis rivais para o governo federal e, concomitantemente, o envio de tropas paranaenses para a região, que se sentiam acuadas pela movimentação das comunidades, num acirramento dos conflitos entre os governos do Paraná e Santa Catarina. O conflito se estenderia de 1912 até 1916, com um saldo total de cerca de 20000 mortos e 9000 casas queimadas. 413 A principal delas foi a Greve Geral de 1917, promovida por organizações operárias da indústria e do comércio em julho daquele ano. Iniciou-se dentro das dependências do Cotonifício Rodolfo Crespi, logo se espalhando para outras fábricas, e posteriormente outros estados, como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Entre as principais reivindicações, estavam o fim da exploração de menores para o trabalho, a diminuição da jornada diária, e melhores condições nos ambientes de trabalho. Apesar de seu início aparentemente espontâneo, tratou-se de um movimento de influência de ativistas e grupos organizados anarquistas e socialistas, em especial imigrantes italianos e espanhóis, em um processo de politização do operariado brasileiro. Em que pese o reconhecimento do movimento e de algumas negociações, as paralisações foram duramente reprimidas pelo governo federal, e o movimento anarquista perseguido após os eventos. 414 SOUZA, César Augusto Nicodemus de. A participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial, Revista da Cultura, Rio de Janeiro, n. 24, p. 12-21, 2014. Disponível em: Acesso: 08.dez.2017. p. 13. O artigo escrito pelo general César Augusto Nicodemus de Souza é oriundo de um ambiente conservador e, portanto, de caráter ufanista e de tendência geralmente contrária a emergência de movimentos sociais, diferente da proposta deste trabalho. Como exemplo, o autor trata o movimento grevista de 1917 como uma ação influenciada pelos “[...] movimentos de cunho internacionalista que não representavam a realidade nacional, tumultuando a paz social de uma maneira geral” (ibid., p. 13). Nesse sentido, o artigo serviu aqui apenas na medida em que trouxe dados estatísticos e técnicos sobre a participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial, próprios da área de história militar. 167 vindos principalmente dos países em guerra, como a Alemanha e a Itália. Muitos destes imigrantes não se sentiam parte da nação brasileira, isolados em sua língua e seus costumes em lugares pequenos e sem grande desenvolvimento, como as regiões serranas do sul do país. Essas ocorrências acirravam os conflitos interétnicos, como discute a obra Canaã (1902), de Graça Aranha, emblemática das questões sobre a imigração alemã no Espírito Santo. Deste modo, as relações com a Alemanha vinham sendo desgastadas, e ficaram piores com a decisão alemã de afundar qualquer navio que adentrasse sua zona de bloqueio, em fevereiro de 1917. Por conseguinte, em abril do mesmo ano o vapor Paraná, um dos maiores da frota mercante brasileira, foi abatido, causando a morte de três brasileiros e a perda de uma considerável carga de café. O evento gerou grande comoção pública, instigado pela imprensa, que de maneira geral já demonstrava simpatias pela Tríplice Entente (França, Reino Unido e Rússia Imperial). As questões caras à nacionalidade já vinham sendo debatidas no meio intelectual, sobretudo por nomes como Alberto Torres e Olavo Bilac. De fato, houve um recrudescimento do nacionalismo no período, marcando uma nova fase seguida por parte da intelectualidade415. Diferentes instituições de caráter nacionalista já estavam em atuação nesse período, como a Liga de Defesa Nacional, fundada em 1916 por Bilac, Pedro Lessa e Miguel Calmon, e que contava com a presidência de Rui Barbosa, autor de inflamados discursos a favor da Entente. Do mesmo modo, o Exército passava por uma reforma, em que se discutia a necessidade de sua reorganização e a imposição do alistamento obrigatório416. Contudo, a neutralidade ainda seria mantida por algum tempo. Frente à forte pressão popular, expressa nas ruas por passeatas e até mesmo pela perseguição a imigrantes, sobretudo de origem alemã, e a depredação de seus comércios, clubes e outras instituições417, o governo brasileiro declararia guerra aos Países Centrais

415 GOMES, 1999, p. 38-39. 416 GOMES, ibid., p. 16. 417 O “perigo alemão”, como ficou conhecido o problema, demonstrava a dificuldade de integração entre imigrantes, sobretudo de origem alemã, e brasileiros natos. Um dos resultados dessa perseguição foi a pressão da imprensa sobre o então Ministro das Relações Exteriores Lauro Müeller, de antepassados germânicos, e que ainda por cima havia trabalhado em prol da neutralidade brasileira na guerra. Lauro Müeller foi forçado a renunciar seu cargo no mesmo ano. Além disso, jornais e escolas que lecionavam em língua alemã foram proibidos. Vários textos abordam esse tema, entre eles: cf. GERTZ, René. O perigo alemão. 2ª. ed. Porto Alegre: Editora Universidade/UFRGS, 1998 e VOGT, Olgario Paulo. O alemanismo e o “perigo alemão” na 168

(Alemanha, Império Turco-Otomano, Áustria-Hungria) ainda em 1917, chegando a enviar uma Missão Militar Médica para a França, e uma Divisão Naval, composta de uma pequena frota e cerca de 1500 homens, para Dacar. Essa divisão não chegou a participar ativamente dos conflitos, tendo em vista que logo depois o armistício seria assinado; mas influenciou a modernização técnica da Esquadra brasileira. Nesse sentido,

A participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial é um acontecimento pouco conhecido, e em termos do Conflito, de pequenas consequências. Contudo, deu-se em um momento delicado de nossa história e inseriu-se dentro de uma proposta de obter uma maior participação nacional nos negócios mundiais, de forma que teve uma relativa importância local.418

Deste modo, pode-se dizer que o romance de Cruls também estava imerso neste ambiente de discussões sobre a identidade nacional, bem como das questões que nos posicionavam frente ou em detrimento ao Outro, ao elemento estrangeiro, amplificada pelo contexto de guerra. Vale relembrar, ainda, que uma das primeiras ações de guerra foi a invasão alemã da Bélgica, Luxemburgo e França, ainda em 1914. Certamente, o fato deve ter sido sentido em algum nível pelo autor, cujo pai era belga. Por outro lado, influenciado pela reflexão do escritor cubano Alejo Carpentier419, Roberto Causo aponta para a peculiaridade da identidade latino- americana, de um “Eu transplantado, que não consegue ser nem totalmente europeu, nem se deixar absorver pela nova terra”420. Fruto do complexo processo de colonização, essa identidade híbrida marcaria nossa história de modo que a imaginação e o fantástico se mesclavam à realidade cotidiana. Nesse sentido, não

literatura brasileira da primeira metade do século XX. Signo. Santa Cruz do Sul, vol. 32, n. 53, dez 2007. pp. 225-258. Online. Disponível em: . Acesso: 15.dez.2017. 418 SOUZA, César, 2014, p. 12. 419Alejo Carpentier (1904-1980) foi um escritor e músico cubano, autor de ensaios, escritos jornalísticos e obras de ficção. Com O reino deste mundo, lançado em 1949, Carpentier recria a história da independência haitiana, mesclando fatos e personagens reais a elementos maravilhosos e legendários, através de recursos narrativos inovadores para sua época. Desta forma, teria inaugurado o chamado “real maravilhoso” dentro da literatura latino-americana. Ao definir a narrativa de O reino deste mundo, o autor comenta: “o que é a história da América senão uma crônica do real maravilhoso?” (CARPENTIER apud CAUSO, 2003, p. 87), frase tornada célebre e que traz importantes reflexões sobre nossa história, além de ter influenciado gerações de literatos e delineado as bases de um profícuo caminho seguido pela literatura produzida no continente. 420 CAUSO, loc. cit. 169 há como contornar o fator maravilhoso, as lendas, em um universo onde o elemento racional e científico não conseguiu se estabelecer de todo. Numa sociedade ainda em vias de se industrializar e se tornar científica, como a brasileira deste período, o fantástico e o mítico podiam perfeitamente se unir ao científico na ficção. Nesse sentido, a existência de poucas instituições destinadas à pesquisa científica, os percalços de sua aplicação prática em um território enorme e ainda em partes desconhecido, possibilitavam a emergência de uma ficção em que tanto temática quanto gêneros tendiam ao incerto, ao limite, às fronteiras. Limite entre a fantasia e uma ficção propriamente mais científica, fronteira entre o real e o “sobrenatural”. Como aponta Antonio Candido, as particularidades de nossa colonização trouxeram o prestígio das humanidades clássicas, em detrimento de um tardio desenvolvimento do espírito científico. Entre as causas, estão a falta de instrução formal, a fraca divisão do trabalho intelectual, e a ausência desse tipo de iniciativa no estatuto colonial. Não obstante, a literatura teria se adaptado bem a esse cenário, possibilitando o desenvolvimento de uma explicação subjetiva, poética ou metafórica, frente a uma interpretação racionalizante. As ciências naturais e humanas, apesar de seu inicial impulso entre fins do século XVIII e início do XIX, acabaram por não se desenvolver no mesmo ritmo em que as letras ou o direito. Dadas as exigências da época, a tarefa premente que se apresentava era de ordem política e jurídica. Ante as dificuldades de consolidação da pesquisa científica e do pensamento filosófico, a literatura soube preencher esta lacuna, “criando mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao pensamento.”421. Assim sendo, a maneira de interpretar a realidade das elites dominantes se desenvolveu a partir de influxos sobretudo literários, e foi estilizada em termos não científicos, mas de criação ficcional. E é por isso que

[...] a literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza.422

421 CANDIDO, 2006, p. 138. 422 Ibid., p. 138-139. 170

Por outro lado, a emergência de uma ficção científica afinada com a realidade brasileira compreendia também uma percepção de nossa condição de Outro, de nossa posição ambígua, desconfortável, própria da colonização, bem como o entendimento dessa herança do sobrenatural e do maravilhoso que nos cerca. Do mesmo modo, a reflexão sobre essa realidade implicava também na compreensão da imensidão e das diferenças do território, o que possibilitou com que as histórias de “mundos perdidos” encontrassem maior ressonância entre nossa literatura. Nesse sentido, a Amazônia é palco privilegiado para este tipo de narrativa:

O vasto território selvagem da Amazônia dava (ou dá) à consciência brasileira uma paisagem colonial, ocupando o nicho mental de um império rico e inexplorado, um dos trunfos para projetar o Brasil para a esfera das potências mundiais. Embora as histórias de mundo perdido fossem “a forma mais popular de ficção científica do seu período” (as décadas de 1870 e 1930), no Brasil elas assumiram uma expressão menos relacionada ao imperialismo dirigido aos territórios ultramarinos, como as presenças coloniais européias na África e na Ásia, mas como expressão de um imperialismo interno – ou a projeção de estratégias colonialistas sobre as terras selvagens do próprio país. 423

Apesar de narrativa que encerra um mundo perdido pelo interior de nosso território, a obra de Gastão Cruls distingue-se de histórias como O mundo perdido (1912), de Conan Doyle, apresentando um viés crítico que a insere em outra tradição literária: a de Euclides da Cunha, marcada pelos tons de denúncia dos problemas sociais. Como já comentado, a atuação de Euclides como jornalista correspondente no conflito de Canudos fez o escritor perceber as incongruências de um regime republicano aplicado à revelia de sua estrutura agrária arcaica, das condições de vida precárias da população, das diferenças culturais do imenso território. Membro de uma camada ativa da intelectualidade, participativa e questionadora de seu tempo, Euclides da Cunha acreditava que o advento da república por si só não modificaria a situação geral do país. Sua obra máxima, Os sertões (1902), misto de ensaio, estudo de sociologia e produção literária, exemplifica essa tensão, discutindo as tensões do regime recém-instaurado. Embora militar de formação424, cuja base de pensamento tinha por influência principal o

423 CAUSO, op. cit., p. 190-191. Grifos do autor. 424 Euclides da Cunha estudou na Escola Militar da Praia Vermelha, localizada no forte de mesmo nome, no Rio de Janeiro. A Escola funcionou de 1857 até 1904 como um centro de formação de oficiais do Exército, bem como de engenheiros militares e também civis, visto ter sido por muito tempo a única instituição a ofertar o curso de Engenharia no país. O espaço acabou se tornando 171 positivismo, caudatário de uma tradição interpretativa baseada em termos de civilização, progresso e raça, Euclides não deixou de apontar os abusos cometidos pelos desmandos na busca por esse ideário. De fato, para o autor a Campanha de Canudos impetrada “foi, na significação integral da palavra, um crime”425, cabendo à intelectualidade denunciá-lo. Do mesmo modo, o autor coloca a figura do sertanejo em proeminência, sem o pitoresco exótico da literatura regionalista de então426, inscrevendo-a na literatura e inaugurando uma interpretação que influenciaria gerações. O homem de vida simples do interior seria um representante legítimo do Brasil, “antes de tudo, um forte”, um exemplo de determinação e altruísmo. Sobrevivente de uma “luta que ninguém descreve” – a insurreição da terra contra o homem427 –, o sertanejo vivia episódios de heroísmo e tragédias ainda desconhecidos. A terra aparece como um dos elementos centrais na reflexão de Euclides. Natureza indomada ou de difícil lide, solo seco do sertão, ou impenetrável imensidão verde da Amazônia, esse elemento caracterizaria o país de tal forma a dificultar a sobrevivência de seus habitantes, a moldar as características dos tipos populacionais, e, talvez, a retardar o progresso. Contudo, sua reflexão sobre a natureza aparece sempre relacionada ao elemento humano que com ela interage. Assim sendo, a configuração desértica dos sertões nordestinos o é também por conta do “agente geológico notável”, que explorou o solo até sua exaustão. O homem assume, então, um papel de “terrível fazedor de desertos”. Seja com o modo peculiar de agricultura indígena, pela coivara, que exigia a derrubada e queima da vegetação nativa; seja pela atitude do colonizador, que repetiu a técnica, agravando ainda a situação com a atividade pastoril, criada também a partir da utilização sem limites do fogo. Seja, por fim, pelas intenções de lucro do sertanista explorando a região em busca de ouro.

um lugar de formação e mobilização política, principalmente por conta da socialização entre os velhos e os novos alunos, e entre estes e os oficiais mais jovens. Denominada pelos estudantes de “Tabernáculo da Ciência”, a Escola Militar da Praia Vermelha proporcionou a circulação das ideias então em voga, como o positivismo e o evolucionismo. Esse clima de discussão política acabou por fomentar a emergência de uma contra-elite, com muitos indivíduos de origem humilde e de diferentes regiões do país, e cujos estratos atuariam ativamente no advento da república e em vários momentos da efervescência política e cultural logo após a mudança de regime. 425 CUNHA, 1984. A edição utilizada para referência é uma versão online; portanto, sem demarcação de páginas. 426 CANDIDO, 2006, p. 120. 427 CUNHA, op. cit. 172

Colaborando com os elementos meteorológicos, com o nordeste, com a sucção dos estratos, com as canículas, com a erosão eólia, com as tempestades subitâneas — o homem fez-se uma componente nefasta entre as forças daquele clima demolidor. Se o não criou, transmudou-o, agravando-o. 428

Já a natureza amazônica429, com seu clima quente e úmido, suas áreas isoladas e suas vazantes e enchentes dos rios, impõe uma “aclimação penosa” a seus habitantes. É a natureza em seu estado mais bruto, terra sem história e sem pátria, despreparada ainda para receber o homem. “As existências derivam numa alternativa dolorosa de vazantes e enchentes dos grandes rios”, impossibilitando a conquista e melhoramento do território, “num parasitismo franco”430 que degenera as populações. É marcante a utilização que o autor faz de termos oriundos do evolucionismo, para tentar entender a formação étnica dos sertões. Embora admita a miscigenação como principal característica do brasileiro, afirma que esta se dá de tal maneira complexa, e variada conforme a região e o clima – fatores que para o autor influenciam na formação populacional – que não há um tipo étnico único, e talvez nunca haja. De fato, a transformação do país deveria advir pelo advento de um modo civilizatório de vida.

Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social. Estamos condenados à civilização. Ou progredimos, ou desaparecemos. A afirmativa é segura. Não a sugere apenas essa heterogeneidade de elementos ancestrais. Reforça-a outro elemento igualmente ponderável: um meio físico amplíssimo e variável, completado pelo variar de situações históricas, que dele em grande parte decorreram.431

Este advento não deveria ser imposto à revelia da especificidade de nossa realidade – ou melhor, nossas realidades, diversas em cada região. O ideário de Euclides parece comportar uma noção de civilização que privilegia a instrução e o desenvolvimento do intelecto em detrimento da exploração desmedida do território e

428 Ibid. 429 Euclides da Cunha esteve na Amazônia entre os anos de 1904 e 1905 no Alto Purús, como chefe de uma comissão de reconhecimento de limites entre o Brasil e o Peru. De suas observações, resultou a publicação póstuma À margem da história, bem como o ensaio Peru versus Bolívia, publicado em 1907. Quando de sua estadia na região amazônica, se hospedou na casa de Alfredo Rangel; os contatos e discussões entre os dois autores fomentaram a escrita de Inferno verde, obra de Rangel prefaciada por Euclides da Cunha. 430 CUNHA, 1984, s. p. 431 Ibid. 173 da imposição à força sobre diferentes grupos étnicos. De acordo com Marília Mezzomo Rodrigues, as explicações que localizavam exclusivamente na miscigenação a origem dos problemas nacionais não chegaram a ser de todo descartadas, mas não constituíram a explicação científica por excelência sobre o Brasil. A ideia de tornar são e educar, diversamente, possibilitava a regeneração do ambiente e das pessoas, trazendo esperança para os grupos dominantes, em um país já muito miscigenado. “Assim, o movimento sanitarista, juntamente com a educação, integrou o conjunto de possibilidades de intervenção na realidade brasileira, que parecia apresentar mais sertões que civilização432. Essa discussão se posiciona frontalmente contra a prática política normalmente impetrada durante a Primeira República, contra a qual Euclides da Cunha faria a denúncia, decepcionado com os rumos do regime. Euclides indica como indivíduo dominante da Amazônia o “selvagem bronco”, apontado como uma raça inferior; ao lado dela, nada pode o elemento branco, anulado também pela ocorrência das doenças. Contudo, o autor não deixa de apontar para a ação predatória do caucheiro em busca da matéria-prima do caucho. De vida errante e instável, esse aventureiro é considerado um “construtor de ruínas”, homem “civilizado” que se utilizava da máscara de “bárbaro” para enganar e escravizar indígenas, explorar trabalhadores e enriquecer a custa alheia. Escravizando índios e outras etnias, causando intrigas e cisões entre grupos étnicos, o caucheiro constrói seu “império” por meio de ações que só encontram respaldo no isolamento e na falta de controles da vida social na floresta.

Abaixo do caucheiro opulento, numa escala deplorável, do mestiço loretano que ali vai em busca da fortuna ao quíchua deprimido trazido das cordilheiras, há uma série indefinida de espoliados. Para vê-los tem-se que varar os obscuros recessos da mata sem caminhos e buscá-los nas hurmas solitárias, onde assistem completamente sós, acompanhados apenas do rifle inseparável, que lhes garante a existência com os recursos aleatórios das caçadas. Ali mourejam improficuamente longos anos; enfermam, devorados das moléstias; e extinguem-se no absoluto abandono.433

432 RODRIGUES, 2009, p. 51. 433 CUNHA, Euclides da. À margem da história. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional/ Departamento Nacional do Livro, s.d. Online. Disponível em: Acesso: 30.jan.2017. p. 29. 174

Gastão Cruls também menciona, mesmo que de maneira breve, o caucheiro. Sua descrição, conquanto não tivesse ainda conhecido a região amazônica, parece mesmo beber das críticas euclidianas. Na voz de Pacatuba – que na narrativa havia passado um tempo no Alto Purús, mesma região por que passou Euclides da Cunha, em 1904 –, o “espanhol” ganha as mesmas características de explorador.

Olhe, eu lembro de um tal D. Ricardino, um typo esfarinhado e contador de vantagens, que vivia como um principe, emquanto uma porção de camaradas andavam no serviço de gancho, apanhando borracha para elle. [...] Isso é um povo amundiçado. A primeira cousa que elles fazem é escravizar os bugres (sic.), p’ra ter gente que trabalhe p’ra elles. E depois, toca a arranjar mulheres. Então, o tal D. Ricardino era mesmo que nem um pae d’egua no meio de seu lote. Não havia índia que chegasse. Seu doutor talvez nem acredite que o não sei que diga, traquejava até as caboclinhas de dez e doze annos.434

Nesse sentido, tanto Euclides da Cunha quanto Gastão Cruls transitam entre um ideário de civilização e os limites éticos que a busca civilizatória implicava, perpassando suas obras entre a influência de ideias cientificistas, como o evolucionismo e o darwinismo social, e a atenção crítica dada às questões políticas e sociais de seu tempo. A essa discussão, retornarei depois.

2.3.2 A Festa das Pedras Verdes

Entre as distrações e observações que faz da vida das amazonas, o narrador tem a chance de participar do Festival das Pedras Verdes, ocorrido em fins de abril, quando os lagos se enchiam de vitórias-régias. Nesta ocasião, em torno de duzentos guacaris chegavam para participar dos festejos, sendo recebidos com rituais. A aldeia fica então em polvorosa, e a cidade amazona se torna ricamente adornada. Durante a festa, as amazonas reafirmavam todas as suas tradições. O festejo compreendia as cerimônias em que as moças púberes se transformavam em ccossanac ou amazonas propriamente ditas, os rituais em que as mulheres recebiam seus maridos ocasionais, e ainda a entrega dos filhos homens para os guacarís. Além disso, naquela ocasião a atual Ccoya deveria passar adiante sua regência.

434 CRULS, 1925, p. 89-90. 175

Deste modo, os visitantes seriam expectadores de dois acontecimentos únicos: a escolha da nova rainha e a disputa pela primeira noite de núpcias da amazona abdicante. Através de diversas provas de habilidade física, uma nova Ccoya é eleita; Iurau, o índio que acompanhara os visitantes até a aldeia, sagra-se vencedor da disputa pela virgem. Rosina e Hartmann também não haviam presenciado ainda uma eleição de rainha em sua estadia, e todos do grupo se põem encantados com as cerimônias. Logo depois, e já à luz do luar, o cortejo segue para o lago de vitórias-régias, conhecido por Espelho da Lua. O espetáculo foi entremeado por danças e vinhos ebriáticos, que fazem o narrador hesitar, parecendo sonhar acordado. De fato, muitos elementos desse trecho lembram as lendas de Iara, Iuara ou Mãe D’Água, figura do folclore brasileiro, em especial do norte do país. Iara mora embaixo d’água, e tem a capacidade de seduzir os homens, levando-os ao afogamento ou à loucura, através de seu canto e de sua beleza. Por outro lado, Rosina informa o narrador que a sensação de aturdimento se devia ao uso “[...] de certo vinho de tucumã a que as índias costumavam juntar o caapi”435. Tucumã é uma palmeira, de castanha e fruto aproveitáveis; já o caapi é um cipó (também conhecido como cipó-mariri, jagube, yagé), ambos da região amazônica. Da mistura do caapi com o arbusto chacrona resulta o chá conhecido como ayahuasca, que provoca estados alterados de consciência e ainda hoje é utilizado em diferentes rituais religiosos. Seu uso foi descrito pela primeira vez por Spruce, por volta de 1850. Das seitas e divisões que fazem o uso ritual do composto, muitas de origem sincrética, a maioria tomou sua forma atual ao longo das primeiras décadas do século XX. Na mesma noite, as índias mergulham no lago, seguindo a ideia do Reino Encantado dos Muiraquitãs, lugar onde poderiam obter a matéria necessária ao fabrico de seus amuletos. Grande é o espanto do narrador, quando percebe que elas voltam à tona trazendo o barro com que modelam as formas dos muiraquitãs, que iriam ganhar seus contornos definitivos depois da secagem ao sol. Ao final do festejo, os rituais de procriação consumam-se, já quase ao alvorecer. O escritor Mário de Andrade (1893-1945) foi outro autor que trabalhou com a temática dos muiraquitãs. A rapsódia (como o próprio autor a denomina)

435 CRULS, 1925, p. 288. 176

Macunaíma, o herói sem nenhum caráter (1928) conta a história de protagonista homônimo, um índio de uma tribo amazônica. Preguiçoso, malandro e mentiroso, Macunaíma apronta muitas até se apaixonar por Ci, a Mãe do Mato. Da união dos dois nasce um filho, logo morto. O protagonista acaba ficando também sem sua esposa; além disso, perde um objeto que ela lhe dera, um muiraquitã. Sai então em busca do objeto, que estaria nas mãos do peruano Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piamã, na distante São Paulo. Dali em diante, suas aventuras serão em torno da recuperação do talismã perdido. Fruto de suas leituras sobre as lendas dos índios amazônicos Taulipangs e Arekunás, recolhidas pelo etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg e publicadas em Von Roraima zum Orinoco (1917, na época sem tradução para o português), o romance recupera provérbios, lendas e aspectos do folclore brasileiros ainda desconhecidos, e está escrito em uma linguagem cômica, que pode ser considerada uma modernização do indianismo. Apesar de ser “um livro de férias escrito no meio de mangas abacaxis e cigarras de Araraquara, um brinquedo”436, escrito em seis dias, sem intenções de ser símbolo ou estudo folclórico, a obra parte de sua reflexão declarada em descobrir a identidade do brasileiro, segundo o próprio Mário de Andrade. Utiliza-se para tanto da fala simples e sensualizada, retirada de suas pesquisas em contos populares e literatura religiosa – para o autor, característicos da linguagem cotidiana do brasileiro comum. Do mesmo modo, o escritor deliberadamente ignora convenções geográficas e distinções regionais, tentando pensar o país de maneira homogênea. Embora apresentando projetos estéticos e narrativas muito diversas, as duas obras têm pontos em comum, bem como a trajetória de seus autores, já discutidas no primeiro capítulo. De acordo com Telê Ancona Lopez, que observou as anotações à margem de livros da biblioteca de Mário de Andrade, rascunhos e outros materiais de apoio à produção de Macunaíma, o autor paulista teria se inspirado na figura da Ccoya para construir a icamiaba Ci, a Mãe do Mato. Telê Ancona indica que Mário se desfez de muitas das fichas de anotações de que se utilizava para a produção do texto.

436 As informações estão contidas em prefácios, anotações e outros materiais coligidos por Telê Ancona Lopez, na edição crítica de Macunaíma, publicada em 1988. Cf.: ANDRADE, Mário de. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Florianópolis: Ed. UFSC, 1988. 177

Deste modo, matrizes, além daquelas que Proença apontará em 1955 no Roteiro de Macunaíma, ficam escondidas, como a vertente do silêncio, motivo recorrente da narrativa, em Les chants de Maldoror (ed. de la Sirène, 1920), ou o molde de Ci, n’A Amazônia misteriosa de Gastão Cruls (Castilho, 1925). Vão surgindo à medida que os estudiosos exploram a biblioteca e o arquivo do escritor, hoje franqueados ao público.437

À época da criação da rapsódia marioandradiana, o romance de Gastão Cruls havia sido há pouco publicado, e contava então com relativa popularidade. Destarte, já se apontou aqui que Mário de Andrade era leitor de Cruls, tendo como um de seus contos preferidos a história “Meu sósia”. Andrade afirmou ainda em crônica de 1929, publicada no Diário Nacional, sua sensação de “reviagem” ao ler A Amazônia que eu vi (1930)438. Por fim, vale ressaltar que os muiraquitãs, artefatos mencionados em diversas lendas e antigas crônicas de viagem, realmente existiam e eram utilizados por algumas tribos da região, sendo encontrados em maior número próximos ao Rio Nhamundá – curiosamente o local descrito nas crônicas como o de encontro entre Orellana e as icamiabas, fato que acendia a imaginação popular sobre o tema.439 Retornando à narrativa, alguns dias se passam e Rosina ouve uma conversa entre seu marido e Hans, sem ser percebida. Descobre então que Hartmann não pretendia mais partir tão cedo: ao que parece, iria repetir a experiência do hominídeo híbrido, o que geraria pelo menos mais um ano de estadia na aldeia. Ela e o narrador cogitam então a fuga, sobre a qual já haviam meditado. Pensando em todos os detalhes, o casal resolve não contar com Malila, com medo de serem traídos. Deveriam pretextar um passeio, e se aproveitar do fato de Hartmann ainda não ter dado oficialmente a notícia sobre a partida. Deste modo, supondo que Rosina nada sabia, não teria motivos para uma fuga. Essa só seria apercebida muito tempo depois, deixando em vantagem os fugitivos. Iriam aproveitar ainda a época das cheias, lançando-se rio abaixo, indo cair em algum dos afluentes do Rio Negro. Pacatuba, ao saber do plano, e ao contrário do esperado, mostrara-se apreensivo; supersticioso, teria recebido sinais de mau

437 Ibid., p. XXVI. 438 NEVES, Margarida de Souza. Da Maloca do Tietê ao Império do Mato Virgem. Mário de Andrade: roteiros e descobrimentos. In: CHALOUB, Sidney e PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (Orgs.). A história contada: capítulos de história social da literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 265-300. p. 296. 439 IACHTECHEN, 2008, p. 85. 178 agouro. No dia combinado, tudo corria bem, até que foram surpreendidos por Malila, que descobrira seus planos e os esperava num trecho do rio. No entanto, a índia viera apenas para se despedir, afirmando não ter contato nada a ninguém, e dando dicas do igarapé mais seguro a seguir. Rosina então chora e pede que Malila vá com o grupo; além da afeição pela índia, ocorre-lhe a ideia de que Hartmann poderia usar a jovem em seus experimentos sobre a afasia – quem sabe já até previra isso, quando sugerira que a estrangeira lhe ensinasse o francês. E assim, o grupo acaba se atrasando. Apesar das insistências, a amazona mantém-se firme no propósito de não segui-los. O grupo então prossegue, a contragosto, em uma viagem quase sem paradas, sob a luz do luar e aproveitando a força da correnteza. Noite adentro os três ouvem ao longe o trocano, tambor de guerra usado pelos índios da região, denotando o perigo. Clareando o dia, ao passar por um trecho acidentado do igarapé, difícil de ser ultrapassado rapidamente, são atacados por saraivadas de flechas. Rosina, diante do susto, se põe de pé na embarcação; é então atingida por uma flecha e jogada contra a correnteza. Tentando salvá-la, Pacatuba cai na água, nadando rápido em sua direção. O grupo consegue fugir das flechas, parando a embarcação em uma ilhota. Pacatuba recupera Rosina da água; no entanto, a ferida aberta trouxera outros males. “– Foram as piranhas, seu doutor. A flechada talvez não fosse nada, mas isso é um bicho que não póde vêr sangue. Imagine o senhor que quando eu a puxei de dentro d’água, ainda umas quatro ou cinco vinham aboccadas na ferida.”440. A francesa então falece nos braços de um desolado narrador. Pacatuba, ao vê-los assim, conta que já sabia de seu enlace, terminando:

E seu doutor pensava então que eu não sabia? Sabia de tudo... Paixão de amor não esconde. É como o mel de pau lá do nosso agreste, mesmo mettido no oco das árvores, elle está cheirando de longe. 441

E assim termina repentinamente a narrativa do livro, que não permite saber se os viajantes conseguiram ou não chegar a seu destino.

440 CRULS, 1925, p. 313. 441 Ibid., p. 314. 179

Contudo, como discute Alexander Meireles da Silva, os mecanismos da narrativa distópica não permitem o sucesso da empreitada, à semelhança do final de 1984, de George Orwell (1944)442, em que não há escapatória; ou, nas palavras de Raymond Williams sobre as distopias: “[...] nesse tipo de construção o exilado não poderia vencer, e nesse caso não haveria nenhuma esperança”443. Nesse sentido, A Amazônia misteriosa também pode ser vinculada à longa tradição das utopias/distopias e do romance especulativo inglês.

2.4 OS LIMITES DO PROGRESSO E DA UTOPIA

O primeiro livro com a denominação utopia, de 1516, foi escrito por Thomas Morus, humanista inglês, membro de família uma burguesa enobrecida, e antigo conselheiro privado do rei Henrique VIII444. A obra foi escrita durante uma passagem de Morus pela Antuérpia, a serviço real. Reeditada na Itália por diversos anos seguintes, acabou lhe conferindo fama e prestígio. Sua publicação abriu precedentes para um gênero narrativo de características muito específicas. O livro apresenta uma estrutura complexa, misturando realidade e ficção. No início de sua narrativa, Morus recorda sua viagem à Antuérpia e seu encontro com um amigo, Pedro Gilles. Através de Gilles, trava conhecimento com um marinheiro desconhecido, Rafael Hitlodeu, que havia viajado para diversas partes do mundo. Dentre as narrativas contadas por Hitlodeu, está a do peculiar país dos Utopianos, que o Morus-narrador enseja conhecer. Antes da viagem, entretanto, Morus faz uma digressão sobre as realidades políticas e sociais da Europa. Durante o evento, o narrador e Hitlodeu discutem sobre a questão do poder e da riqueza. Em diálogo inédito para a época, o autor coloca o poder e a riqueza dos nobres ociosos como a causa das disputas e males sociais e morais. Além disso, critica a propriedade privada e o sistema penal que prevê a pena de morte, fazendo uma alusão declarada à Inglaterra de seu tempo.

442 SILVA, Alexander, 2008, p. 75 et. seq. 443 WILLIAMS, Raymond. Utopia e ficção científica. In: ______. Cultura e materialismo; trad. André Glaser. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. p. 267-290. p. 319. 444 BACZKO, Bronislaw. Verbete: Utopia. In: ENCICLOPÉDIA EINAUDI. Anthropos-Homem. Vol. 5. Lisboa: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1985. p. 333. 180

A segunda parte d’Utopia, dedicada à descrição da ilha em si, traz um relato pormenorizado, tanto de sua configuração geográfica, quanto de sua história, estrutura social e costumes. Não cabe aqui um relato detalhado da obra. No entanto, vamos nos atentar a alguns pormenores, considerados importantes para a configuração do gênero. A principal característica da sociedade utopiana é a abolição da propriedade privada: tudo é dividido igualitariamente entre seus habitantes, em sistemas de rodízios de bens. A produção é feita por todos, dividida entre a agricultura e outros ofícios. Nesse sistema, todo o luxo foi banido; portanto, pouco trabalho é suficiente para garantir o bem-estar de seus habitantes. A célula social é formada pela família, geralmente numerosa. Acima desta encontra-se uma hierarquia social constituída por magistrados, que elegem o governador (um cargo vitalício), e pelo Senado, que controla o poder do chefe máximo. Toda a vida econômica e social utopiana é rigorosamente ordenada. Deslocamento de um local para o outro, crescimento demográfico, educação, hospitais: tudo está regido por normas rigorosas, que os habitantes da ilha seguem à risca. No entanto, em suas instituições prevalece a ideia de trazer a felicidade para o indivíduo – por isso, os cidadãos adquirem paulatinamente, ao longo da vida, horas cada vez maiores destinadas ao “cultivo da alma” e à liberdade. Apesar de ainda empregarem trabalho escravo – apenas estrangeiros e homens “culpados de ignomínia” –, os utopianos pouco se lançam a guerras, somente quando outros meios de recorrer à paz se mostram infrutíferos. Estas e outras características fazem da ilha de Utopia, nas palavras de Rafael Hitlodeu “não só a melhor, mas a única que possa reivindicar com justiça o nome de República”445. De acordo com Morus, do exemplo do país dos utopianos se poderiam tirar “lições com vista a corrigir os abusos que afligem as nossas cidades, nações, povos e reinos”446. Ao final da narrativa, Morus se questiona se tal sistema funcionaria em outro lugar, desejando, entretanto, que as disposições utopianas fossem testadas em outros países. Várias leituras têm surgido ao longo dos tempos para tentar dar cabo da obra. Algumas delas afirmam que Morus teria tirado sua inspiração de algumas tribos indígenas que conhecera na América; outros, que suas fontes seriam os textos

445 MORUS apud BACZKO, ibid., p. 341. 446 Ibid., p. 344. 181 clássicos, como a República, de Platão. E, ainda, uma vertente acredita ser a obra uma das primeiras críticas à acumulação desenfreada do capitalismo nascente. Para Bronislaw Baczko,

[...] não podemos entrar em todos esses debates. Limitemo-nos a verificar que a Utopia, como qualquer grande texto literário e filosófico, define um campo de multiplicidade de sentidos, prestando-se assim a leituras igualmente múltiplas.447

Multiplicidade que se constitui em um paradigma que durou por séculos e que assumiu várias formas: trata-se de um paradigma literário, por apresentar uma viagem imaginária sob a qual o narrador descobre uma cidade diferenciada, e da qual é feita uma descrição detalhada. E também um paradigma específico do imaginário social, visto que representa a possibilidade de uma sociedade radicalmente diferente, situada em lugar indeterminado no tempo-espaço. Por fim, ainda uma representação da sociedade que se opõe à vigente. Essa característica do texto está presente no próprio nome, Utopia. Uma das interpretações é u-topia, lugar que não existe, lugar nenhum; mas pode também derivar da eu-topia dos textos platônicos, isto é, o melhor país. Pode significar ainda ambas as coisas: a melhor comunidade política como uma comunidade imaginada, mas que não existe em parte alguma. A relação entre imaginário e realidade está desde cedo presente nos textos utópicos, trazendo a questão: uma utopia se realiza porque é imaginada, criada, ou trata-se apenas de sonho distante e impossível? Essas conjecturas continuaram nos desdobramentos da utopia enquanto gênero discursivo e na utopia enquanto estrutura do imaginário social.

[...] uma vez instalado como regime do imaginário social, o paradigma utópico adquire ao mesmo tempo uma inércia e um dinamismo. Pela força da imitação, as narrativas utópicas multiplicam-se e constituem por si sós uma longa série. Contudo, o discurso utópico não fica de modo algum preso ao modelo narrativo inventado por Moro [Morus]. A utopia, enquanto representação de alteração social, da Cidade Nova situada num algures imaginário, depressa se revela multiforme no plano discursivo.448

Nesse sentido, a utopia representa principalmente uma alteração social, uma crítica ao sistema vigente. Apresentando em suas características geralmente uma

447 BACZKO, 1985, p. 342. 448 Ibid., p. 346. 182 viagem a um local imaginário – mistura de realidade e ficção –, uma estrutura social diferenciada, mais “perfeita”, ou mais bem acabada que a real, de ordenação rígida e funcionamento ideal, e um final que encerra a saída ou abandono desse local, a utopia sugere um contraste, uma comparação entre o imaginado ou desconhecido – que se dá a conhecer durante essa viagem – e a realidade. Entretanto, em que pese suas características delimitadas, o gênero sofreu mudanças ao longo dos séculos. Conforme o número de textos utópicos foi crescendo, suas fronteiras foram se alargando, abarcando diversos aspectos da dinâmica social e cultural. Além disso, o neologismo criado por Morus foi amplamente utilizado para designar gêneros distantes, concebidos em diferentes épocas, que representavam uma sociedade ideal, tal como a República de Platão. Mesmo textos declaradamente não ficcionais, como os de Saint-Simon ou Fourier, foram considerados utópicos por sua proposta de transformação da sociedade. Segundo Baczko, as utopias produzidas durante os séculos XVI e XVIII, embora abundantes, pecavam muitas vezes pela mediocridade literária, repetindo sempre a fórmula de uma narrativa de viagem imaginária, no modelo de Morus. Apenas a partir da segunda metade do século XVIII verifica-se uma mudança desse paradigma, especialmente por conta de As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift (1726), que inverte e mistura os gêneros existentes. Nessa narrativa, a sociedade imaginária transforma-se em uma contra-sociedade, visão caricata de uma sociedade autoproclamada ideal e sátira da ordem social. Swift foi, portanto, o primeiro a utilizar-se – senão a inventar – o gênero contrautópico, escrevendo uma obra de destaque entre as demais utopias. De acordo com Baczko, com o desgaste das fórmulas, a criatividade utópica ramificou- se. Seus contornos tornaram-se mais vagos. “As fronteiras das utopias tornam-se particularmente fugidias; a escolha das estratégias discursivas enriquece-se; as ideias-imagens utópicas servem de trampolins às outras formas de imaginários”449. Na virada do século XIX para o XX, as utopias ganharam as discussões sobre a transformação tecnológica de seu tempo, em exemplos como A raça futura, de Bulwer-Lytton (1871) ou Looking Backward de Edward Bellamy (“Olhando para trás”, de 1888). De acordo com Williams,

449 BACZKO, 1985, p. 366. 183

[...] quando a utopia não era mais uma ilha ou um local recém-descoberto, mas o nosso país familiar transformado por uma mudança histórica específica, a maneira de imaginar a transformação mudou fundamentalmente. Mas a agência histórica não foi apenas, como em Morris, a revolução. Foi também como em Wells, algum tipo de força modernizadora e racionalizadora: a vanguarda do samurai, dos cientistas, dos engenheiros, dos inovadores técnicos.450

O fenômeno da distopia, contudo, permaneceria isolado até o início do século XX e, sobretudo, até a Primeira Guerra Mundial, quando se tornaria quase uma regra. Ainda segundo Bronislaw Baczko, o florescimento desse tipo de narrativa vai de encontro com o aperfeiçoamento das técnicas narrativas; contudo, trata-se também de um novo posicionamento frente à utopia. A desilusão com o progresso trazida com os horrores da Primeira Guerra Mundial, as crises e profundas transformações políticas por que passou o mundo na virada do século trouxeram a incerteza e o medo – matéria primordial nas narrativas desse novo gênero. Para o autor, “à semelhança das utopias, também as antiutopias trazem sobretudo uma contribuição preciosa acerca das esperanças, angústias e temores da época em que foram escritas” 451. Indo além, as distopias ou antiutopias, através do jogo de espelhos entre o futuro suposto e o presente conhecido, questionam o papel das próprias utopias no mundo contemporâneo. Trata-se não só de pôr em cheque o futuro prometido, mas de refletir sobre as próprias promessas deste futuro que têm influência sobre o presente. Assim sendo, pode-se considerar que em alguns momentos o romance de Gastão Cruls se enquadra em uma distopia. Os elementos distópicos se fazem presentes no texto por dois vieses: por um lado, a sociedade das lendárias amazonas e, por outro, o elemento científico, encabeçado pela figura do Dr.Hartmann. Assim sendo, a narrativa da sociedade das índias guerreiras apresenta, em início, uma ordem reinante: as mulheres convivem bem com o meio que as cerca, apresentando elevado grau de desenvolvimento material, não precisam de homens para sobreviver, e, ao mesmo, são protegidas através de laços diplomáticos com outras tribos. Toda sua produção é dividida igualitariamente, em um trabalho dividido conforme as habilidades e a idade de cada indivíduo, marcando seu papel social na tribo, em uma sociedade rigidamente organizada. Aparentemente, não há conflitos, nem externos, nem internos.

450 WILLIAMS, 2011, p. 280-281. 451 BACZKO, op. cit., p. 363. 184

Contudo, sua estrutura social demonstra, longe de uma sociedade ideal, os níveis desiguais observados pela tirania de seus costumes e leis. O próprio nascimento na tribo configura uma possível história de tirania. A prole masculina, desprezada pelas amazonas, não tinha lugar nessa sociedade, devendo ser então ou doada à outra tribo, ou ficar à mercê dos experimentos do médico estrangeiro. Aliás, através de acordos que não ficam claros na narrativa, a Hartmann é oferecida a oportunidade de fazer o que quiser com as crianças, com a complacência das amazonas. Do mesmo modo, as índias mais jovens, como Malila, são designadas para servir o médico alemão e outros elementos não-indígenas da trama, à maneira de empregadas. Destarte, todas as habitantes do lugar devem obedecer rigidamente as regras; há ainda um rígido controle sobre os corpos jovens, caracterizado pela abstinência sexual. Caso contrário, são punidas, conforme percebemos através de lendas contadas sobre as indígenas desobedientes. Não há também escapatória a seu destino, visto a resolução de Malila em não fugir junto com o narrador, Pacatuba e Rosina. A uma suposta romantização da vida das amazonas, descendentes diretas do esplendor do Império Inca, percebe-se uma narrativa que demonstra a rigidez das estruturas sociais e as dificuldades inerentes a essa sociedade, ressaltando suas qualidades, mas também problematizando seus defeitos. Acredito que a obra de Cruls pode conter essa contradição entre o elogio à abolição da propriedade privada, e, ao mesmo tempo, uma crítica a uma sociedade baseada nesses termos, mas que contém uma hierarquia social rígida e restrições à liberdade. De fato, penso que o autor estava entrando em contato com essas discussões quando da elaboração do romance, formulando-as no momento mesmo de sua escrita. Por outro lado, essa questão também perpassa sua noção de civilização versus barbárie, delineada ao longo do romance através de uma utilização aparentemente contraditória. Em uma passagem sobre o desenrolar da Primeira Guerra, o narrador se questiona: “Ainda perdurará pela Europa o sôpro de loucura que ensanguentou os paizes mais civilizados?”452. Trabalhando a todo momento com os conceitos de civilização versus barbárie, o autor parece indicar-lhes sua fragilidade. A civilização do progresso, a infalibilidade da ciência são as mesmas que

452 CRULS, 1925, p. 29. 185 proporcionaram os horrores de uma guerra até então nunca vista, verdadeira barbárie em solo europeu. E ainda, a suposta barbárie envolvendo tribos indígenas parece ser questionada quando, por diversos momentos, seus conhecimentos são primordiais para a resolução de alguns problemas – principalmente o conhecimento envolvendo curas de doenças, temática cara ao médico escritor. Alguns de seus remédios, como o curare, apresentavam ao protagonista e a Hartmann – ambos também médicos – eficácia comprovada, mesmo sem os dois atinarem com a fórmula utilizada pelos indígenas453. Ao que parece, a obra está pautada por uma ideia de pujança material e desenvolvimento tecnológico e científico, haja vista o elogio às sociedades ameríndias mesoamericanas e incaia, por exemplo. Isto posto, há que se levar em conta a crítica ao modelo racionalizante europeu, introjetado à revelia da realidade do continente americano, a que parece se dirigir a crítica feita na voz de Atahualpa e na caracterização do personagem Hartmann. Contudo, por vezes a ela se mesclam debates próprios do evolucionismo e do darwinismo social, que consideravam a diferença evolutiva entre as “raças” humanas, e viam a miscigenação de forma negativa. Dadas as especificidades e nuances do tema, o retomarei no capítulo subsequente. Entretanto, penso que o elemento chave que dá forma à obra como uma distopia é o científico. Ao retratar o progresso da ciência através dos experimentos humanos do Dr. Hartmann – que segundo seu realizador “beneficiariam toda a humanidade” – Gastão Cruls ressalta seus elementos perigosos e contraditórios. Ao longo de toda obra, percebemos direta ou indiretamente o olhar crítico com que a ciência – e em especial a medicina – é colocada. Desde o início da viagem essa questão está posta: em algumas vezes, o conhecimento acadêmico do médico-narrador não é o suficiente para resolver os problemas que se lhe apresentam a vida selvagem. Como exemplo, a situação em que seu auxiliar Manoel “adivinha” a chuva, só de sentira diferença de cheiros no ar, apesar do tempo parecer limpo 454. Em outro momento, um remédio popular natural preparado por Pacatuba, à base de banha de jacruarú (uma espécie de lagarto), faz

453 CRULS, 1925, p. 144-145. 454 Ibid., p. 22. 186 mais efeitos do que o quinino receitado pelo doutor para curar o pé ferido de Braulino. Contudo, a questão mais premente se faz quando da descoberta dos experimentos de Hartmann pelo narrador. Surpreendido pela crueldade de experimentações genéticas que visavam modificar a compleição das crianças, transmutando-as em seres de físico frágil, o narrador questiona seu interlocutor, que defende veementemente a necessidade de tais atividades. Tudo em prol de um bem maior, as descobertas científicas, que poderiam proporcionar uma verdadeira revolução no que se conhecia até então. Por conseguinte, o narrador levanta questionamentos quanto aos problemas éticos envolvidos nos experimentos. Embora não pareça se desfazer de todo do aparato ideológico que o faz tomar por ideal a noção de “civilização”, o doutor parece ao menos se preocupar com os limites éticos da ciência – fato que Hartmann nem observa. Essa contradição parece inerente, como já comentado, ao próprio Cruls, médico que, apesar de distante da profissão, carrega conceitos e visões próprias do mundo da ciência. Deste modo, suas dúvidas sobre os experimentos do Dr. Hartmann e sua visão do mundo indígena se fazem entendíveis à luz do processo histórico, visto que postas à prova de suas bases de conhecimento até o momento. Nas palavras de Francisco Alberto Skorupa, a ficção de cunho científico apresentava

[...] uma visualização imaginária e hipotética das possibilidades oferecidas pela ciência e tecnologia para transformar o homem e seu modo de existir, subsistente nas criações descritas por esses autores, num espaço que eles reconheciam propício para isso.455

Esses trechos ainda iluminam os questionamentos que o autor fazia sobre a capacidade de cura ofertada pela ciência, em seu aspecto da pesquisa médica. Como aponta Roberto de Sousa Causo

para a FC, o universo é um processo dinâmico no qual operam fatores que vem sempre relativizar visões estabelecidas. No gênero, a especulação livre é a norma, e um mesmo autor se dá ao direito de escrever obras que abrigam visões contraditórias, porque a especulação em si representa a possibilidade de encarar o universo de maneira aberta.456

455 SKORUPA, 2002, p. 14. 456 CAUSO, 2003, p. 49. 187

Assim, sendo, apresentar Hartmann como um indivíduo beirando à loucura por conta de seu trabalho implica em transformar a figura do homem da ciência – aqui considerada apenas em seus extremos – como um indivíduo cujos objetivos ultrapassam as fronteiras do entendível. É o homem obcecado por seus experimentos e certo da razão e da finalidade na ciência, que não reflete sobre as questões éticas e as consequências de suas práticas. O verdadeiro pesadelo em que se configura o laboratório de experimentos de Hartmann, a impossibilidade de ajuda ou melhora de vida para suas cobaias, e por fim a descoberta da espionagem e a “prisão” forçada dos visitantes no local configuram elementos de sociedades distópicas de diversas narrativas. Como exemplos, podemos citar Nós, escrito entre 1920 e 1921 por Yevgeny Zamiatin (e publicado apenas em 1924, em língua inglesa), e que influenciaria as obras clássicas do gênero, como Admirável mundo novo de Aldous Huxley (1932) e 1984 de George Orwell (1949). E assim, apesar da aparente tranquilidade e ordem social, há a descoberta de elementos que transformam aquela sociedade em um modelo a não ser seguido (ou um possível futuro em que algo deu errado). Completa o quadro o questionamento daquela situação, por parte de um dos personagens – incentivado pelo elemento feminino, Rosina, relacionada à sexualidade, fator de subversão em diferentes narrativas distópicas457 – e a vontade/impossibilidade de fuga. Nesse tipo de ambiente, a autorrealização não pode ser encontrada em algum relacionamento ou dentro daquele tipo de sociedade, e sim na fuga, à semelhança de várias obras de ficção científica. Nesse caso, a saída do local acaba por terminar de forma trágica, com a morte de Rosina. A esse mundo distópico se sobressai a impressão de que a marcha “indelével” do progresso é, além de perniciosa, inevitável, visto que o Dr. Hartmann permanece fazendo suas experiências, com a complacência das amazonas – indicando a falta de esperança característica dessa linha narrativa. A esse pessimismo ainda se soma uma visão euclidiana da impossibilidade da existência do homem na natureza amazônica, como se o homem não estivesse preparado para a Amazônia, e muito menos esta para o homem.

A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem

457 SILVA, Alexander, 2008, p. 70. 188

ser esperado nem querido — quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso salão. E encontrou uma opulenta desordem...458

Naqueles lugares mesmo o brasileiro é um estrangeiro. A Amazônia é, pois, uma terra ainda sem pátria, sem história (de onde o título de uma das obras de Euclides, À margem da história). A natureza amazônica é opressora, faz com que os indivíduos se dobrem. “Não há que resistir nem rebelar-se. Só há o render-se. Ou então a fuga, que é de resto o pensamento global.”459 Deste modo, acredito que a obra de Cruls encerre um momento peculiar de transição de ideias, característico da crise dos valores europeus e do liberalismo, ocorrida ao longo da década de 1920 – e que teria seus momentos mais agudos com a crise do sistema oligárquico na virada da década. Por outro lado, havia um movimento de buscar a identidade nacional, tentar conhecer e entender o país em suas particularidades e diferenças, identificar e resolver seus problemas. Em sua complexidade, esse movimento abarcou mudanças nas esferas econômica, política e social, bem como no universo cultural mais amplo, e literário em particular, como já visto no primeiro capítulo deste trabalho. Desta maneira, a visão pessimista para o atraso do Brasil, pautada em termos tanto econômicos quanto em considerações sobre raça e clima, vai sendo aos poucos substituída em função de acontecimentos externos. Se a Europa não servia mais como modelo, dada sua inaptidão para gerir a situação internacional, as elites locais deveriam buscar outros modelos de entendimento para o país460. No entanto, esse foi um processo complexo, marcado por avanços e recuos, reflexões e posicionamentos que aos olhos contemporâneos pareceriam contraditórios. Essa complexidade implica em estruturas de sentimento com elementos residuais e emergentes, tais qual as conceitua Raymond Williams. O autor aplica a estrutura de sentimento dentro de um processo cultural, como um modo de entender ideologias, valores e concepções de mundo como são vividos e sentidos ativamente, no âmbito de uma geração ou período. As estruturas de sentimento seriam “experiencias sociales em solución”461, que comportam elementos residuais e

458 CUNHA, s.d., p. 1. 459 MOOG, 1983, p. 23. 460 VELLOSO, 1993, p. 90-92. 461 WILLIAMS, 2000, p. 156. 189 emergentes, e sua interrelação com os elementos dominantes, e devem ser apreendidas como um processo dinâmico e em constante reformulação. Nesse sentido, ao observar o cenário literário das primeiras décadas do século XX no Brasil, e especialmente a obra aqui abordada, verifico indícios de elementos emergentes na escrita de Gastão Cruls. De acordo com Williams,

Por “emergente” quiero significar, en primer término, los nuevos significados y valores, nuevas prácticas, nuevas relaciones y tipos de relaciones que se crean continuadamente. Sin embargo, resulta excepcionalmente difícil distinguir entre los elementos que constituyen efectivamente una nueva fase de la cultura dominante (y en este sentido “especie-especifico”) y los elementos que son essencialmente alternativos o de oposición a ella: en este sentido, emergente antes que simplesmente nuevo.”462

A meu ver, A Amazônia misteriosa apresenta uma modificação nas ideais de raça e identidade nacional, em especial no que concerne ao indígena, um dos elementos formadores tidos como “inferior” nas construções historiográficas e literárias ao longo do século XIX. Se a linha mestra que guia a concepção de mundo de Cruls é a de homem da ciência, pautada na ideia de progresso e civilização, e que tem por base de formação intelectual as referências europeias, suas experiências como participante ativo nos debates intelectuais e científicos do período o fazem vislumbrar também outras posições, a princípio conflitantes entre si. A experiência das expedições científicas, que tornaram o território nacional ao menos um pouco mais conhecido do próprio brasileiro, bem como as relativamente bem sucedidas novas formas de contato impetradas por Rondon – um dos grandes exemplos para o escritor carioca –, somada ao processo de construção da identidade nacional possibilitaram formas emergentes de concepção de nossas etnias formadoras. Me parece que uma nova concepção estava sendo gestada. Compreendia uma maneira menos negativa ou pessimista de ver a formação nacional – em detrimento da visão que se formou ao longo do XIX –; todavia, ainda estava pautada pela ideia de civilização e suas implicações e contradições. Essa visão perpassava também as novas discussões da área médica sobre higiene e sanitarismo com as quais Cruls teve contato. De acordo com Marília Mezzomo, as explicações que localizavam unicamente na miscigenação a origem de nossos problemas não chegaram a sair de todo de cena, mas não constituíram a

462 Ibid., p. 145-146. 190 explicação científica por excelência do Brasil. Assim sendo, “um povo saudável e regiões salubres poderiam receber elementos do progresso e da civilização moderna, além de poderem contribuir para este processo de modernização.”463. Processo que será abordado no capítulo subsequente.

463 RODRIGUES, 2009, p. 51. 191

3 FACETAS DA EXPERIÊNCIA MÉDICA NO INÍCIO DO SÉCULO XX: DAS EPIDEMIAS TROPICAIS ÀS REFORMAS SANITÁRIAS URBANAS

“Para êle, ia-se o melhor da existência nesse permanente contato com o sofrimento humano, que embota tôdas as sensibilidades e escurece aos olhos do médico tudo quanto há ainda de belo sôbre a terra e poderia fazer o enlêvo dos seus dias. Depois, se a medicina curasse e tivesse chegado ao grau de adiantamento que lhe conferem os leigos! Mas se na maioria dos casos o médico não era mais do que um espectador desarmado ante as misérias e aleives por que passa o pobre organismo humano?” (Gastão Cruls).

Dentre as diversas discussões sobre os problemas brasileiros das primeiras décadas do século XX, estava a concepção do Brasil como um país enfermo, cheio de doentes das mais variadas moléstias, em cujas regiões mais recônditas proliferavam epidemias de difícil controle. Nesse sentido, uma parte considerável dos projetos de modernização para o país passava por questões médicas: sanitarismo, saúde pública, higiene, eugenia. As transformações econômicas e políticas do cenário brasileiro, com a crescente urbanização, a industrialização, as mudanças nas relações de trabalho modificaram os ambientes, implicando em maior circulação de indivíduos e, consequentemente, uma gama maior de possibilidades de doenças e epidemias, especialmente as transmissíveis. Por outro lado, o avanço da ciência do período gerou novas descobertas em termos de profilaxia. Ao mesmo tempo, reformas educacionais e iniciativas privadas diversificaram o número de instituições dedicadas ao ensino e pesquisa da área médica, permitindo o intercâmbio e a discussão de ideias. Assim sendo, as premissas médicas passaram a fazer cada vez mais parte do debate público, ao sabor de correntes de pensamento diversas, gerando acaloradas discussões que ultrapassavam a área especializada, e até mesmo orientando políticas públicas. Nesse sentido, o ensino médico passou por reformas a partir de 1880, que visavam à profissionalização da medicina acadêmica e a modernização das instituições. Conhecida como Reforma Saboia, a mudança implementada entre 1881 192 e 1889 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro foi caracterizada por uma maior liberdade de ensino e pela renovação acadêmica. Novas disciplinas foram incorporadas ao ensino médico, e a prática da medicina experimental foi impulsionada, com autilização de novos instrumentos e métodos e a instalação de diversos laboratórios nas dependências das instituições464. A instituição de ensino entrava em consonância com as mais recentes discussões internacionais, através da incorporação dos estudos de microbiologia e dos métodos de Louis Pasteur. Diversas expedições foram enviadas aos lugares mais recônditos do país, em busca das raízes dos males nacionais. Havia também um esforço na divulgação em larga escala de informações recolhidas, bem como dos avanços de modo geral, através de meios de expressão que alcançassem o público leigo, como palestras e jornais diários. Tentando levar a cura e a erradicação das doenças para diversas partes do país, esses profissionais queriam também chamar a atenção das populações citadinas e das autoridades para a situação precária das regiões mais afastadas465. Como apontam Micael Herschmann e Carlos Alberto Messeder Pereira, os especialistas dos saberes técnicos relacionados à medicina, à educação e à engenharia, em conjunto com a geração literária de 1920, elaboraram discursos paradigmáticos sobre a modernidade, que seriam cristalizados na década de 1930466. Neste trabalho, optei por discutir essa longa transformação partindo das fontes literárias, entendendo-as parte do ambiente de discussões sobre a higiene, a saúde pública e demais aspectos da atividade médica e do combate a doenças do início do século. Para tanto, foram selecionados alguns contos dos livros Coivara (1920) e Ao embalo da rede (1923) – as primeiras publicações de Gastão Cruls –, reunidos posteriormente em Contos reunidos (1951), de que me utilizarei. Muitos dos contos publicados nessas obras apareceram pela primeira vez na Revista do Brasil, fase Monteiro Lobato (entre 1916 e 1925), ainda sob o pseudônimo de Sérgio Espínola – num total de cinco, de acordo com Tania Regina de Luca467.

464 KROPF, Simone Petraglia. Doença de Chagas, doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909- 1962. Editora Fiocruz, 2009. p. 67. 465 RODRIGUES, 2009, p. 15-16. 466 HERSCHMANN; PEREIRA, 1994, p. 46. 467 LUCA, Tania Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (N)ação. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999. p. 54. 193

De acordo com Angela das Neves, os livros de contos de Gastão Cruls exemplificariam uma permanência tardia do que denomina de “conto à Maupassant” no Brasil, a influência de Guy de Maupassant entre os escritores nacionais. Para a autora, contudo, Cruls apresenta um “modo de contar clássico que o resguarda da modernidade”, vinculando-o, desta forma, ao autor francês468. Dada a discussão sobre o modernismo feita no primeiro capítulo, preferi entender o autor através das transformações culturais e do “caldo de cultura heterogêneo” do período, que permitem entender a gama diversa de influências de que o escritor se serviu. Regina Salgado Campos sublinha ainda a influência de André Gide, demonstrada pela escolha de construção de alguns contos em que o narrador é alguém que ouviu uma história de terceiros, e repassa essa história aos leitores, como em “A noiva de Oscar Wilde”, analisado mais detidamente pela autora e que também faz menção direta ao autor francês469. Angela das Neves reforça que essa opção pela estrutura do “conto dentro do conto” também bebe da influência de Guy de Maupassant470. Igualmente, a eleição dos temas de cunho fantástico, como a atração sexual pelo mórbido, a loucura ou a morte trágica também estariam relacionados à Maupassant, em cujas narrativas há geralmente uma tentativa de entender racionalmente a ocorrência estranha – fato também encontrado em Cruls. Por sua vez, essa reflexão sobre as influências externas me parece proveitosa para o trabalho a que me proponho se tomadas em conjunto com a observação das influências brasileiras – tanto literárias, como extraliterárias – com as quais o autor tomou contato. Observando o clima das discussões médicas e também culturais de seu período, tentei delinear um sentido geral de sua produção, que tem por viés os debates e projetos sobre o Brasil. Desta forma, a retomada de temas da tradição fantástica ligada ao conto maupassatiano pode ser melhor entendida, a meu ver, se relacionada às questões próprias do exercício da medicina, especialmente a sanitarista, e dos contatos do autor com as diversas regiões do país e suas peculiaridades.

468 NEVES, Angela das. Contistas à Maupassant: a recepção criativa de Guy de Maupassant no Brasil. 2012. 372f. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 302. 469 CAMPOS, Regina Salgado. A noiva brasileira de Oscar Wilde ou Gastão Cruls, um leitor de André Gide. Língua e literatura, n. 20, p. 27-33, 1992-1993. Disponível em: . Acesso: 05.jan.2018. 470 NEVES, Angela, op. cit., p. 306 et passim. 194

Assim sendo, as fontes são consideradas locais privilegiados para a compreensão dessa efervescência de embates e projetos nacionais, não apenas enquanto expressão ou reflexo de um determinado contexto histórico, mas como meio de elaboração de importantes discursos sobre o período. A análise partiu, assim, do proposto por Antonio Candido, averiguando que fatores sociais e históricos externos atuaram na organização interna da produção literária, dando-lhe sua estrutura peculiar471.

3.1 UM BANQUETE DE MORTÍCOLAS

“G.C.P.A.”, do livro de estréia de Cruls, Coivara (1920), se inicia com duas epígrafes: “Science sans conscience n’est que ruine de l’âme” (“A ciência sem consciência não é senão a ruína da alma”, em tradução livre); e “A gente não se cura, mas fica bem informada de que morreu”, de Afrânio Peixoto. Júlio Afrânio Peixoto472 era médico legista e conhecido de Gastão Cruls. Os dois freqüentaram juntos o laboratório de Fisiologia dos irmãos Ozorio de Almeida, entre a primeira e a terceira décadas do século passado. Além disso, foi juntamente com Afrânio e Miguel que Gastão Cruls teve a ideia inicial para seu primeiro romance, como já visto. A narrativa de “G.C.P.A.” conta a história de Silvino, jovem do interior de Minas que atuava como enfermeiro de um hospital de Niterói. A instituição deveria ser religiosa, porque há menção a irmãs e crucifixos nos quartos. No local, clinicava o conhecido Professor Rodrigues, que atuava em conjunto com seus assistentes e internos. As terças e sextas, o professor também aproveitava um pequeno anfiteatro para dar lições aos seus alunos, utilizando-se como exemplo os casos mais interessantes que encontrava na clínica.

471 CANDIDO, 2006, p. 13. 472 Afrânio Peixoto (1876-1947) formou-se em medicina na Bahia, em 1897, e em 1902 mudou-se para o Rio de Janeiro, a fim de atuar na Inspetoria de Saúde Pública. Ao longo de sua vida, atuou também como professor de Medicina Legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, como diretor da Instrução Pública do Distrito Federal e reitor da Universidade do Distrito Federal, entre outras funções. Além disso, se envolveu com a literatura, publicando Rosa mística (1900), obra de influência simbolista depois renegada; A esfinge (1911); uma trilogia de obras regionalistas, entre 1914 e 1922, entre outros. Foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 1911. Ainda publicou vários estudos sobre sua especialidade médica. Também se filiou a diferentes instituições médicas, entre elas o IHGB e a Academia Nacional de Medicina Legal. Fonte: Acesso: 25.set.2018. 195

O mestre reservava para essas preleções os indivíduos portadores de moléstias raras ou mal definidas, sôbre os quais lhe fôsse fácil basofiar erudição, calcando diagnósticos rebuscados à sintomatologia falha e controversa. Hipóteses mirabolantes e ousadas desforravam-no das ignorâncias da ciência, eternamente emperrada ante os caprichos da natureza, sempre misteriosa...473

Silvino parecia satisfeito com sua profissão, até que uma doença inexplicável o acomete. Um mal que começara como uma sensação de fadiga, aliada a dores pelo corpo, passara para uma sonolência exagerada, para por fim deixá-lo de cama, totalmente sem forças. Internado então em seu próprio local de trabalho, passa a fazer intermináveis exames diários, com o fim de se lhe descobrirem a moléstia. Nesse processo, acaba virando objeto de estudo do Professor e seus assistentes, mais um dos casos curiosos sobre os quais o mestre iria palestrar para seus aprendizes. Seu estado de saúde vai piorando, deixando-o em cama por mais de um mês sem que nenhum diagnóstico definitivo ou melhora ocorresse. De início o mais prestimoso e popular auxiliar da clínica, Silvino agora estava quase irreconhecível. Inteligente e curioso por aprender, e fazendo amizade com os alunos, Silvino fora aos poucos se habituando às dificuldades da profissão. Entretanto, como consequência de sua situação de doente, vai aos poucos se mostrando desconfiado. Arrepende-se de não ter obedecido ao seu primeiro impulso, que fora o de abandonar o hospital. Contudo, a confiança ilimitada nos mestres, bem como o receio de ser um peso para seu único parente na cidade, o fizeram desistir da ideia. Diagnosticado com uma doença rara – a síndrome de Addison474, além de suspeita de um sarcoma, tipo raro de neoplasia –, o enfermeiro vira alvo principal dos interesses científicos do Professor Rodrigues. Narrado com ironia, o conto aponta a todo o momento a prolixidade do médico e seu discurso de difícil

473 CRULS, 1951, p. 31. 474 Esta doença também é conhecida como insuficiência adrenal primária, sendo causada pela produção insuficiente de hormônios esteroides pelas glândulas adrenais ou supra-renais. Seus sintomas se manifestam de maneira progressiva, e incluem fadiga, perda de peso, hiperpigmentação cutânea, dores abdominais, hipotensão postural, entre outros. A doença foi estudada pela primeira vez em 1855, pelo médico britânico Thomas Addison. O atual tratamento através da suplementação de hormônios, contudo, só seria desenvolvido na década de 1950. Cf.: SILVA, Regina do Carmo (et. al.). Insuficiência adrenal primária no adulto: 150 anos depois de Addison. Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia, vol. 48,n. 05, p. 724-738, out. 2004. Disponível em: Acesso: 20.dez.2017. p. 724. 196 compreensão, recheado de autores estrangeiros. Demonstra, além disso, uma erudição inútil, na medida em que não é utilizada para a recuperação terapêutica do doente, em um exagero característico de um profissional mais preocupado com sua pesquisa do que com a saúde do paciente. As atitudes do médico também apontam para uma especialização do trabalho em termos de uma exclusividade que separava aqueles que detinham dos que não detinham o conhecimento, relegando à ignorância os segundos.

Silvino, o olhar consultivo e ansioso, encolhido entre as cobertas do carro- leito, não perdia uma só daquelas palavras ásperas e sentenciosas que, em meio à linguagem obscura e inescrutável, lhe ditavam condenação. É que o mestre se esquecia, nos surtos do seu entusiasmo, de que o tirocínio hospitalar dera azo ao pobre enfêrmo para se familiarizar com a terminologia médica.475

A situação chega ao tragicômico, numa cena em que o médico comenta pormenores da doença aos seus alunos na frente do paciente, em meio à exibição de partes retiradas de outros doentes e conservadas para estudo. Puxando uma das peças de um frasco, o professor faz uma demonstração que deixa Silvino terrificado:

Era a mão de um desgraçado, que se finara por uma sarcomatose generalizada, e que tinha a sua palma esburgada até os ossos pelo mal roaz e proliferante. Cortada cerce pelo punho, a pobre mão parecia ainda reter, entre os dedos grossos e nodosos a se engrifarem ameaçadoramente, todo o exaspêro e dor do último estorcegão que a imobilizara.476

Para sua doença, ainda não havia cura; sua evolução geralmente conduzia à morte, segundo a palestra do professor. Silvino se desespera, mas tal fato não parece nem ser notado pelo médico, que seguia entusiasmado com o caso ímpar. Os alunos pareciam igualmente extasiados pelas lições do mestre e possibilidades de aprendizagem científica: nenhuma “palavra acariciativa ou tranqüilizadora”477 fora dirigida ao doente. Depois da lição, o paciente é rapidamente recolocado naquela mesma cama que já lhe causava feridas no quadril... Nesse ambiente inóspito, seres humanos viravam números a serem visitados e tratados em horários específicos, em uma pressa próxima ao ritmo de trabalho fabril. Médico e aprendizes só se detinham mais demoradamente para estudar as

475 CRULS, 1951, p. 35. 476 Loc. cit. 477 CRULS, ibid., p. 37. 197 minúcias do quadro clínico, como é o caso de um “futuro mortícola” que esquadrinha o corpo doente do enfermeiro, seguindo as preleções do professor, numa invasão que não permite resistências e nem dá maiores explicações. A descrição pormenorizada e cheia de termos técnicos da área médica de Cruls tende a causar desconforto e repugnância no leitor. Do mesmo modo, as imagens de que se utiliza reforçam o tom sombrio de doença, decadência e morte: “[...] sob os dedos ágeis que percutiam e apalpavam o seu corpo, ele tinha o sangue regelado, numa prematura sensação de vermes que lhe mordiscassem sequiosamente as carnes.”478. O ápice do desespero, para Silvino, chega quando ele percebe uma anotação ao seu prontuário: a sigla “G.C.P.A”, que em linguagem corrente da clínica – da qual o paciente estava familiarizado – significava “Guarde o Cadáver Para Autópsia”. O procedimento da anotação era tomado em precaução à possível reclamação dos parentes e amigos do morto, para que um ou outro cadáver não saísse do lugar sem a devida examinação póstuma. Isso ocorria especialmente em casos de doenças raras ou de diagnósticos obscuros. A decepção de Silvino foi grande, ao perceber que atenção a ele dispensada por alguns estudantes “[...] não passava de um zêlo farisaico de mortícolas, escondendo curiosidades científicas diante de um caso raro e concupiscível”479 . Até o interno Castro, que lhe parecia o mais atencioso e que a todo o momento lhe dispensava as maiores preocupações, não escapava da atitude geral. Estava mais interessado no material que iria lhe enriquecer a tese, cuja temática era justamente a doença de Addison. Em suas reflexões, Silvino reparava agora que esse interesse científico por vezes sobrepujava a função da medicina de amenizar os sintomas e ministrar a terapia correta. Silvino compara a decisão da autópsia a uma “carneada”, como se o hospital fosse um verdadeiro matadouro. As metáforas envolvendo o mundo animal são frequentes na obra de Cruls, geralmente associadas ao sofrimento; a doença também animaliza os indivíduos, transforma suas vidas para pior. Vale ressaltar que em A Amazônia misteriosa as experiências desenvolvidas em crianças pelo Dr. Hartmann as tornam muitas vezes incapazes de levar uma vida normal, pois que transformadas em seres próximos a animais, consideradas na narrativa como em um

478 CRULS, 1925, p. 38. 479 Ibid., p. 39. 198 estágio evolutivo inferior. Por sua vez, neste outro trecho do conto, os estudantes de medicina são comparados a animais necrófagos:

Tudo o que se lhe afigurara, até então, carinhos e atenções especiais dedicados à sua pessoa, quando assistentes e internos o examinavam repetidamente, preocupando-se com a sua saúde, não passava de um zêlo... Não fôsse digna de estudo a sua moléstia e, certamente, num corvejar agoureiro, êles não se revezariam com tanta presteza junto do seu leito. 480

Prevendo a morte próxima, Silvino resolve por fim à vida. Não daria o prazer de ver alguma tese engrandecida pelas observações sobre seu cadáver. “Pois perdido por perdido, êle mesmo daria fim às suas desgraças, contanto que os seus despojos se vissem poupados à sanha dos bisturis perscrutadores”481. Cria então um plano de fuga, que só poderia ser posto em prática ao anoitecer. Enquanto espera o horário certo, Silvino relembra das autópsias a que assistira e mesmo auxiliara. Uma das que mais o impressionara fora a de um rapaz jovem, falecido por conta de uma meningite aguda, narrada com uma riqueza de detalhes mórbidos.

A sua autópsia tinha sido das mais longas e minuciosas. Para a retirada do sistema nervoso abriram-lhe o crânio ao meio e esnorcaram vértebra por vértebra. Ao cabo de duas horas de porfiante tarefa, em que serras e escopros se sucediam nas mãos de dois internos, a medula surgiu numa tripa languinhenta e acinzentada, cheia de ramificações laterais, à semelhança de um mirápode de proporções desmesuradas.482

Seu desespero se mistura ao sentimento de culpa, visto que era o enfermeiro quem limpava o instrumental necessário à prática, bem como ficava responsável para que nenhum cadáver fosse extraviado após a morte. Apesar das dificuldades da doença, Silvino consegue escapar. Chega à beira do mar, e, “saboreando os efeitos da vingança que êle mesmo não gozaria” 483, aproveitando a paisagem ainda por um momento, Silvino se joga em meio às pedras do mar de Niterói. A descrição detalhada da beleza do fim de tarde à beira da praia, do revoar dos pássaros e do ar marítimo servem para prolongar a agonia do enfermo, sensação repassada também ao leitor.

480 CRULS, 1925, p. 39. 481 Ibid., p. 40. 482 Ibid., p. 40-41. 483 Ibid., p. 42. 199

No entanto, três dias depois, já deformado pela morte, “[...] com a mesma indiferença com que o havia tragado”, o mar devolve seu corpo à praia, e

[...] o futuro mortícola, feliz na inconsciência do seu crime, farejando a prêsa com volúpias de carnífice, lá foi desviscerá-lo sôbre a mesa de autópsias, na ânsia de encontrar a absconsa lesão que lhe desse à tese o cunho de interesse e originalidade484

O fim trágico passa uma impressão de fatalidade à situação, como se a autópsia – e o que ela representa, a pesquisa científica, e, em última instância, o progresso – fosse inevitável. Nesse sentido, o conto “G.C.P.A.” problematiza a desconfiança com relação aos avanços da ciência: os limites dos experimentos e pesquisas em que o cuidado com o paciente e a cura não são mais a preocupação, quiçá são meios para a finalidade última: a descoberta científica, e suas benesses em termos de conquistas intelectuais e profissionais. Outro exemplo é dado quando Silvino relembra o caso de um “impaludado”, que havia contraído a doença na Amazônia. Por conta da peculiaridade da manifestação da moléstia, um tipo raro de malária, e de parasita ainda mal conhecido, ao doente foi retardada a aplicação da medicação, até que fosse extraído quantidade suficiente de seu sangue para o estudo do acesso febril. Como se isto não bastasse, seu caso se tornara famoso, e estudantes de outras clínicas haviam acorrido ali para “morcegar-lhe o sangue”485. Assim sendo, a saúde do paciente fica em último plano – ou nem parece ser uma preocupação do Professor e seus alunos. O próprio fazer intelectual é questionado, na medida em que a função da publicação das descobertas parece ser apenas uma questão de manutenção de status, para satisfazer o ego – crítica que seria retomada pelo escritor em A Amazônia misteriosa, na figura do Dr. Hartmann. Discussão esta que também não escapa das experiências pessoais do autor enquanto estudante de medicina e depois médico atuante. Como já abordado, Gastão Cruls acreditava não ter vocação para médico. Apesar de sua boa formação, da oportunidade de trabalhar com o Prof. Miguel Couto486, dos contatos e amizades com nomes posteriormente muito conhecidos da

484 Ibid., p. 43. 485 Ibid., p. 41. 486 Miguel de Oliveira Couto (1865-1934) formou-se em 1885 pela então Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro. Foi titular da cadeira de Clínica Propedêutica da Faculdade de 200

área – como os irmãos Ozorio de Almeida e Afrânio Peixoto –, o médico-escritor não se sentia apto para exercer a profissão. Como o próprio Gastão aponta, a medicina em teoria, aquela aprendida nos bancos da faculdade, era muito diferente da prática.

No hospital, diante do professor que dá a sua aula prática, e dos alunos que lhe bebem as lições, o doente é um campo experimental, um simples motivo para belas e sábias preleções. Cá fora, porém, o que êle quer é sarar, pouco lhe importando que o seu caso seja ou não interessante, difícil, raro, do ponto de vista científico. Foi essa diferença de situações – se assim posso dizer – que chocou meu espírito quando deixei a Faculdade e caí na vida prática. 487

Como discute Dominichi de Miranda Sá488, entre o final do século XIX e o início do XX ocorreu no país uma transformação das identidades profissionais, em um sentido de profissionalização, aguçado pelo passado colonial e escravista recente. Nesse ínterim, a tradição retórica e bacharelesca do ambiente intelectual brasileiro foi duramente criticada, em um longo processo, marcado por embates, disputas pelo espaço público, resistências e posições contraditórias. Contudo, essa não foi uma particularidade da realidade brasileira; de fato, países europeus, sobretudo, passavam pela emergência de uma imagem profissional mais racional e distante de emoções, própria da influência dos discursos científicos e da racionalidade técnica. Em sintonia com o que se passava na Europa, a intelectualidade brasileira estava a par dos principais debates da época, repercutindo em solo nacional as discussões do darwinismo social, da revolução tecnológica e da microbiologia. Tentando se adequar aos novos modelos, a elite intelectual participou com avidez

Medicina do Rio de Janeiro, ocasião em que propôs reformas na cátedra. A partir de 1892, passou a ser o responsável por uma das enfermarias da Santa Casa de Misericórdia, tendo mesmo chegado a exercer o cargo de chefia nesta instituição. Em 1911, assumiria também a cátedra de Clínica Médica da Faculdade do Rio de Janeiro. Couto foi um dos responsáveis pela formação de gerações que marcaram o exercício da medicina nos anos seguintes, como Carlos Chagas e os irmãos Ozorio de Almeida. O médico também participou ativamente das atividades da Associação Brasileira de Educação, da qual era filiado, lutando em prol da criação de um ministério voltado para a área, que deveria ser relacionado também à higiene. Miguel Couto partilhava da ideia de que o principal problema brasileiro era a falta de acesso à educação. Sua atuação na política foi de mediador entre o governo e a oposição, quando do conflito de 1932, e na Assembleia Nacional Constituinte no ano seguinte – ocasião em que reforçou a necessidade de valorização da educação, bem como se posicionou contra a imigração não-europeia. Foi eleito membro da ABL em 1926; além disso, participou ainda de várias sociedades médicas. Fonte: . Acesso: 26.set.2018. 487 SENNA, 1968, p. 216-217. 488 SÁ, Dominichi Miranda de. A ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil (1895-1935). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006. 201 desses debates, chegando mesmo a oferecer valiosas contribuições no cenário mundial, como veremos depois. Assim sendo,

além de Comte e Spencer, Taine, Haeckel e Renan faziam também muito boa figura no debate de idéias que tomou a intelectualidade da época. A orientação intelectual proposta por esses autores resumia-se à predominância da razão sobre os sentimentos e a uma defesa apaixonada da adoção do método científico de estudos em toda e qualquer atividade intelectual. 489

Surgia então a imagem do homem de laboratório, do especialista devotado ao trabalho árduo e disciplinado que a pesquisa científica exigia – relacionada pelo senso comum muitas vezes a uma espécie de sacerdócio, pelo nível de dedicação e abnegação exigidos –, em detrimento da figura do sábio, portador de conhecimentos considerados inúteis. De fato, essa nova postura era geralmente relacionada às ideias de civilidade e modernidade, em um contraposto com nosso passado de tradição cultural ibérica “enciclopédica” e arcaica. Os embates públicos de então demonstravam a luta dos “homens de ciência” em prol de uma especialização dos saberes e uma divisão do trabalho intelectual, relacionando a educação formal à atividade profissional. Contrapondo os exemplos de Rui Barbosa, famoso por sua capacidade oratória e sua bagagem erudita, e Oswaldo Cruz, um dos pioneiros da pesquisa científica médica no país, considerado o “Pasteur brasileiro”, a autora aponta a transformação ocorrida entre fins do século XIX e início do XX. Do período em que Rui Barbosa dominou o cenário da discussão intelectual, à primeira década do XX, em que Cruz se sobressaiu como bacteriologista do Instituto Manguinhos, os debates intelectuais já não comportavam modelos como o escritor e político baiano, que passou a ser motivo de caçoadas. “A platéia começava a desconfiar de tamanha boa memória, insistindo em saber do préstimo dos saberes desfilados no palco.”490 Contudo, isso não impediu que, em 1917, na cerimônia em homenagem a Oswaldo Cruz, falecido havia pouco, o discurso de Rui Barbosa fosse o mais concorrido491 – dado que demonstra a disputa e coexistência entre velhos critérios de reconhecimento intelectual e novos modelos de expressão de ideias.

489 SÁ, ibid., p. 108. 490 Ibid., p. 22. 491 Ibid., p. 143. 202

Desta feita, a própria significação do que era a “literatura” se alterou nesse processo. Na linguagem culta da Corte, a literatura era compreendida como a soma dos saberes cultivados pelos “homens de letras”, e podia englobar áreas tão diversas como a história, a oratória, a medicina, o direito ou a gramática. A formação privilegiada até então era a humanista, que incorporava diferentes saberes, sendo seus representantes conhecidos por sinônimos como “homens de letras”, “sábios” ou “eruditos”. Vale ressaltar que a propagação do conhecimento através de instituições de ensino e pesquisa era ainda incipiente, e o acesso restrito, permanecendo circunscrita às camadas detentoras do poder ou aos seus afilhados ou “protegidos”. No emergir de diferentes identidades profissionais, os embates entre os cientistas e os “homens de letras” delinearam uma delimitação da “literatura” enquanto produção ficcional, relegada ao plano da imaginação, do deleite e do fantasioso. Essa discussão remonta à transformação da palavra “literatura” a nível mundial, feita por Williams, que demonstra que o conceito tal qual o conhecemos hoje, não se desenvolveu plenamente até meados do XIX492. Antes disso, seu uso mais difundido estava relacionado ao “saber culto”, e indicava uma distinção em termos de classe social.

Es importante que, dentro de los términos de este desarrollo, la literatura incluyera normalmente todos los libros impresos. No había necesidad de especialización en lo que se refería a las obras ‘imaginativas’. La literatura fue todavía, primeramente, la capacidad de leer y la experiencia de leer, y esto incluía la filosofía, la historia y los ensayos tanto como los poemas.493

O que vale retomar, para a discussão aqui presente, é que a imagem do médico a ser forjada também foi transformada. Até porque “[...] grande parte das atividades então reconhecidas como ‘científicas’ enleavam-se com a prática da medicina.”494. Nesse sentido, os futuros médicos deveriam ter autocontrole emocional, ser resilientes e totalmente dedicados ao trabalho, ideia que permeava o trabalho científico em geral. Não cabiam grandes envolvimentos ou sobressaltos emocionais na profissão. Gastão Cruls parecia ir à contramão do que era propagado, e acabaria por fim optando pela literatura, então o terreno da expressão, da criatividade e da emoção.

492 WILLIAMS, 2000, p. 61. 493 Ibid., p. 62. 494 SÁ, 2006, p. 134. 203

É curioso notar, no entanto, que a imagem que se construiu desse novo profissional médico e cientista, foi em muito forjada por nomes com os quais o autor manteve laços profissionais e de amizade, como Miguel Ozorio de Almeida e Afrânio Peixoto. Nesse sentido, a imagem que se apreende das fontes sobre Cruls – e a imagem que, em certa medida, o próprio autor criou para si – é a de um indivíduo introvertido, avesso às aparições públicas, austero, mas sensível e gentil, que “tem como poucos o dom de fazer amizades”495. Essa construção perpassa tanto entrevistas, quanto reportagens e depoimentos de amigos. “Suave e tímido, voltado para dentro de si mesmo, mas transbordante de uma profunda, ainda que sóbria e discreta ternura humana”496, o autor apresentava, segundo Ruy Santos, “uma gentileza que não se confunde, em hora alguma, com salamaleque, e uma alegria que, só de raro, vai à gargalhada, mas, assim mesmo, uma gargalhada onde não há nada de capadoçagem.” No entanto,

Introvertido como é, ser-lhe-ia difícil o exercício da profissão que buscou. A medicina é arte mais para os que se dão, para os que se abrem; o dar-se ou abrir-se de homens de temperamento de Gastão Cruls é mais fácil na criação de personagens, quando a gente se coloca na pele de outrem e fala pela boca de outrem. 497

Pelo que indica Vitor Vivolo, as cartas trocadas entre Cruls e sua mãe seguem nesse sentido, revelando uma pessoa sensível e com dificuldades de adaptação ao ambiente médico, mesmo já estando no último ano de estudo498. As dificuldades encontradas ao longo dos anos como acadêmico, bem como dos primeiros contatos com a prática, são fatos que parecem ter afetado profundamente o autor:

A medicina me seduzia muito como um estudo desinteressado, como pura pesquisa e indagação. Não pude, porém, suportar cá fora o contacto com os doentes, e sobretudo saber que estavam sob minha inteira responsabilidade, que confiavam em mim, que suas vidas pendiam de minha habilidade ou minha ciência.499

495 SENNA, 1968, p. 215. 496 LACERDA, Carlos. Gastão Cruls, Tribuna da Imprensa, 09.junho.1959, p. 4. 497 SANTOS, Ruy. Quatro romances de Gastão Cruls, Tribuna dos Livros – suplemento da Tribuna da Imprensa, ano II, n. 65, 24-25. maio. 1958, p. 1. 498 VIVOLO, 2017, p. 27-28. 499 SENNA, op. cit., p. 217. 204

Assim sendo, Gastão Cruls se viu posto em questionamentos de suas capacidades enquanto profissional, preocupado diante de suas dificuldades pessoais e do conhecimento geral da medicina frente ao sofrimento dos pacientes. Pelo que conta a Homero Senna, sempre se posicionou um pouco cético quanto à capacidade de cura da ciência. Ao mesmo tempo, se preocupava demais com seus pacientes, a ponto de saber que, se tivesse sob sua responsabilidade cinco ou mais enfermos, não pensaria em outra coisa até vê-los curados.

[...] sempre me preocupei excessivamente com os meus doentes: queria a todo instante saber como passavam, se o remédio que eu receitara tinha causado efeito, se a febre baixara ou subira, se o pulso estava normal... Ao mesmo tempo, passava a duvidar do meu diagnóstico, pensava em ouvir a opinião de colegas, em discutir o caso com outros... Numa palavra – um inferno.500

Pelo visto, a situação não poderia ser mantida por muito tempo sem prejuízo da própria saúde do médico. Cruls chegou a conversar com seu professor Miguel Couto sobre o problema, ao que este se mostrou compreensivo. Como já comentado, contudo, sua mãe fazia questão de que seguisse a carreira, fato que levou o autor a reconsiderar e tentar por mais algum tempo o exercício da medicina. Por outro lado, o escritor estudou durante esse período de intensas transformações das instituições científicas de ensino e das identidades profissionais, em que uma nova postura profissional estava sendo exigida – uma postura rígida, racional, de dedicação, em que não cabiam emoções. Além disso, as instituições de ensino também estavam em um momento de reformulação, especialmente com a Reforma Saboia, como já visto. A partir dessa reforma, foram criadas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro as cadeiras de Propedêutica e Anatomia Médico-cirúrgica. Miguel Couto, um dos professores com quem o médico-escritor teve mais contato, entraria na faculdade como substituto de Francisco de Castro, o primeiro a ocupar a cátedra de Clínica Propedêutica. Em seu exercício, Couto reformulou a disciplina, criando laboratórios para exames médicos e microscópicos, e montando também uma instalação radiológica. Antes mesmo de uma reforma educacional mais ampla e do surgimento das universidades a partir de 1930, essa geração ficou marcada por sua atuação

500 Loc. cit. 205 intelectual em diferentes espaços. Entre eles, estavam as conferências didáticas, as publicações em periódicos médicos, através das escolas médico-cirúrgicas, dos jardins botânicos, dos museus de história natural, e tantos outros. Sua atuação se deu também em instituições próprias, como a Academia Brasileira de Ciência, fundada em 1916. Esses cientistas intelectuais acreditavam ainda na reprodutibilidade do conhecimento científico; nesse sentido, marcaram presença também nos periódicos diários e semanários, especialmente da capital, em um processo de vulgarização científica, em que a linguagem utilizada era determinada pelo tipo de destinatário da informação.

A imprensa noticiava as novas descobertas científicas, as viagens dos cientistas ao exterior, a presença de cientistas estrangeiros no país, suas biografias, perfis e obituários, e ainda costumava realizar entrevistas e reproduzir as palestras, as aulas e os discursos proferidos nas mais prestigiadas instituições da época. E tudo isto graças à importância então conotada à ciência no processo de modernização e civilização do país.501

Deste modo, a valorização da ciência e a luta pela especialização profissional eram entendidas como um processo civilizatório, de construção de um Brasil moderno. Foram empreendidas por figuras como Roquette-Pinto, os irmãos Ozorio de Almeida, Henrique Morize, Carlos Chagas e tantos outros, muitos ligados à prática médica – e muitos deles conhecidos e amigos de Cruls. Paulatinamente, os espaços de consagração destinados prioritariamente aos literatos e ensaístas vão sendo ocupados também por esses “homens de ciência”, que ampliavam sua área de alcance. Nomes como Miguel Couto, Aloísio de Castro e Roquette-Pinto ingressaram na Academia Brasileira de Letras – então instância máxima de consagração intelectual –, acrescendo sua imagem de prestígio nacional e alavancando sua carreira. Essa troca era benéfica para ambos os lados: se a academia ajustou seu perfil para receber em suas fileiras esses homens de ciência, tal fato significava visibilidade à instituição, e também maiores investimentos públicos. Vale ressaltar, contudo, que não foi sem críticas que esse movimento foi recebido, tendo em vista que, fora dos muros da Academia, esses profissionais da ciência portavam discursos em que a literatura aparecia, sobretudo, como um

501 SÁ, 2006, p. 17. 206 passatempo, conhecimento sem aplicação prática instantânea e sem a importância da ciência. Como discutido no primeiro capítulo, a ABL não era homogênea, se caracterizando como um espaço de disputas pelo poder, e visões antagônicas. Para esses autores cientistas, a linguagem literária era marcada sobremaneira pelo culto à forma e pela utilização excessiva de termos de uso apenas estético, devendo ser evitada se o que se queria do texto era passar uma ideia com clareza – para o que a linguagem científica serviria melhor. Por isso as críticas a essa evidente contradição, quando um cientista como Afrânio Peixoto adentrava nas fileiras da Academia, organismo que valorizava ainda a cultura bacharelesca, e cujos membros cultivavam essa linguagem rebuscada, de difícil acesso. De todo modo, havia um tom de crítica, que percebi reproduzido no conto de Cruls. Embora se mostre um tanto cético em relação à ciência, Gastão Cruls incorporou a mesma crítica à demonstração de erudição inútil, colocada na boca do personagem Professor Rodrigues. E, por fim, vale notar ainda que o conto “G.C.P.A.” apresenta uma epígrafe do mesmo Afrânio Peixoto, uma das figuras proeminentes dessa transformação das identidades profissionais – e que, ao mesmo tempo, encontrou em figuras como Jackson de Figueiredo detratores de sua “indecisão intelectual”502. Curiosa e até irônica menção, visto que Afrânio Peixoto ainda era médico legista. A despeito de sua formação original, nomes como Oswaldo Cruz e Miguel Ozorio “[...] detestavam clinicar, passar receitas, ‘ver a língua’, ‘tomar o pulso’, e ser confundidos com ‘boçais curandeiros’.” Apesar disso, reconheciam as dificuldades inerentes à incipiente pesquisa no Brasil, a falta de instituições especializadas, que os fazia enveredarem pelas cadeiras das faculdades de medicina, espaço em que havia uma abertura à pesquisa503. Nesse sentido, pode-se perceber que havia uma diferença muito grande entre as discussões feitas em sala de aula, o incentivo à pesquisa científica, e a realidade do cotidiano de atendimento médico, marcada pelas dificuldades de aplicação do conhecimento teórico. A essas dificuldades se somava ainda uma realidade nacional com problemas estruturais, péssimas instalações, e realidades sociais diversificadas, que possibilitavam ou não acesso a medicamentos e atendimento médico. O autor se deparava com esse cenário em sua atuação na Assistência Pública, quando

502 SÁ, ibid., p. 158. 503 Ibid., p. 134. 207

“cruzava e recruzava” a cidade, passando tanto por “palacetes faustosos de Botafogo ou da Tijuca” quanto por “favelas humildes da Saúde ou do Buraco Quente”504. Retomarei essa questão depois. Como já apontava Cruls, “[...] outra, muito outra, é a [medicina] que deve ser praticada cá fora pelos jovens médicos que deixam os bancos acadêmicos.”505. Essa experiência também transparece no texto “Um aasvero moderno”, também da obra Coivara. Embora não apresente uma narrativa recheada de adjetivos mórbidos e imagens que causam estranhamento e horror, o conto também detém o tom pessimista de um médico desiludido com a profissão. A história já se inicia com uma epígrafe de Molière, “... et je vous donne avis que vous n’en viendrez point à bout, qu’il n’avouera jamais qu’il est médecin...” (“e eu lhe dou o aviso de que você não chegará ao fim, que ele não nunca admitirá que é médico”, em tradução livre). O Sr. Pimentel, funcionário do consulado brasileiro no Japão, conta sobre sua estadia no país. Fascinado pela arte nipônica, o narrador acaba se deparando com a casa de arte do Sr. Iosei, com quem logo se dá muito bem. O narrador passa a visitar sempre a loja, algumas vezes também acompanhado de seu colega de trabalho, um português de nome Arquias Medrado. Numa dessas vezes, conversando na língua materna, os dois acabam percebendo que o japonês entendia muito bem o idioma. Pressionado pelos questionamentos sobre o fato, Iosei confessa a Pimentel que na verdade era brasileiro, do Ceará, e se chamava Raulino Uchôa de Morais. Havia vivido no Rio, chegando a se formar em medicina na cidade. Quanto ao fato de parecer japonês, afirma que tratava-se de simples coincidência. “Aliás o senhor deve saber que entre nós, principalmente no Norte, há tipos francamente mongólicos, e já houve até quem nos quisesse dar uma origem asiática.”506. Essa questão seria retomada também em seu romance, através da menção à hipótese de João Barbosa Rodrigues sobre os muiraquitãs amazônicos. Muito aflito, o Sr. Uchôa comenta que o exercício da “maldita” profissão o havia levado a fugir do país. Acreditava que não havia nascido para ser médico; e como a clientela perseguisse seus serviços, havia passado seis anos de sua vida

504 SENNA, 1968, p. 218. 505 Ibid., p. 216. 506 CRULS, 1951, p. 78. 208 fugindo, entre uma cidade e outra e mesmo fora do país, tentando outras profissões, numa vida de “judeu errante” (o Aasvero do título), à procura de sossego. Na ocasião, fora muito criticado por família, amigos e clientes. Narrado de maneira extremamente detalhista e apresentando poucas ações, o conto intercala alguns momentos irônicos, como quando uma francesa com quem vivia, sabendo de sua profissão, já acordava de língua de fora para que o ex-médico visse o estado de seu tubo digestivo. Contudo, predomina o tom aflitivo e mesmo de desespero sobre as agruras do exercício da medicina. Como se tornasse relativamente afamado em sua profissão, sendo então procurado por muitos clientes, Raulino Uchôa não vê outra saída a não ser mudar radicalmente de vida. Em muitos trechos, a angústia do próprio Cruls fica visível:

O Dr. Uchôa tinha ainda uma alma sensível e repugnava-lhe sobremaneira o exercício daquela profissão, que se alimentava de tôdas as dôres e só sabia florescer sôbre os escombros da felicidade alheia. [...] Depois, se a medicina curasse e tivesse chegado ao grau de adiantamento que lhe conferem os leigos! Mas se na maioria dos casos o médico não era mais do que um espectador desarmado ante as misérias e aleives por que passa o pobre organismo humano! 507

O descontentamento entre as misérias humanas e a certeza da finitude da vida, bem como uma descrença quanto ao poder curativo da ciência são pungentes. Uma das poucas linhas que destoa desse longo desabafo é uma passagem sobre a identidade nacional. Para viver no país sob disfarce, Raulino dera um jeito de naturalizar-se japonês. Questionado por seu interlocutor, retruca:

– Espere, meu amigo, espere. Não faça mau juízo a meu respeito. Olhe: eu tenho a convicção de que ninguem é mais patriota do que eu. Fiquei certo que mesmo daqui, eu estou sempre de olhos voltados para o nosso querido Brasil, e nada me escapa do que se passa por lá. Mas, que quer o senhor, se a fatalidade, a trôco de um pouco de sossêgo, me exigiu a perda da nacionalidade? 508

Em sua maioria publicados pela primeira vez na Revista do Brasil (fase Monteiro Lobato, entre 1916 e 1925)509, compreende-se o tom nacionalista dos contos. Reformulada no auge dos conflitos da Primeira Guerra Mundial e do

507 CRULS, 1951, p. 81. 508 Ibid., p. 79. 509 Vale relembrar que Gastão Cruls e Monteiro Lobato eram bem próximos, fato indicado nas cartas trocadas entre os dois. Cf.: LOBATO, Monteiro. Cartas escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1959. 209 recrudescimento do nacionalismo no Brasil, a revista já trazia desde seu primeiro editorial a proposta de investigação da identidade nacional. De fato, fica evidente a centralidade da questão nacional nesse período da publicação – a propósito, um dos principais meios em que esse debate acontecia510. Enfim, o que se depreende do conto, de maneira geral, é o sentimento de angústia de Raulino Uchôa frente à profissão, que pode ser relacionado ao próprio autor. Seu final, como o de outros contos de Cruls, tem um desfecho desfavorável: prometendo segredo sobre a real identidade de Iosei, o próprio protagonista acaba passando mal, e se vê compelido a procurar os serviços médicos do falso japonês. A atitude faz com que Raulino Uchôa venda sua loja e suma sem maiores explicações. Fica clara, ainda, a crítica ao relevo que o status de médico detinha, frente a outras questões relacionadas à profissão. Quando conta a seus amigos sua ideia de mudar de carreira para algum cargo público, ou mesmo para a indústria ou comércio, todos tentam dissuadir Uchôa, vendo como uma verdadeira loucura o ato de “trocar a sua invejável situação na medicina por um simples lugarzinho na burocracia”511. A mesma preocupação aparenta ter Homero Senna, quando pergunta se Gastão Cruls não havia se arrependido de não ter insistido na profissão e “ser hoje um grande clínico – consagrado, ouvido, rico – um medalhão, em suma”. O autor – esboçando um sorriso, segundo o próprio Senna, uma descrição que me pareceu de complacência frente à pergunta – afirma que mesmo que quisesse, isso seria impossível, pois era “um desajustado dentro da medicina”512. E, por fim, de maneira mais direta, a questão da escolha da profissão entra novamente em cena, demonstrando que ao jovem recém-saído dos estudos preparatórios não restava muitas escolhas, a não ser seguir uma carreira delineada pelos pais.

Como todo brasileiro que se preza, ao terminar os seus preparatórios, êle também ambicionara possuir um título qualquer, e para isso foi matricular-se à Faculdade de Medicina. O Snr. Uchôa não sabia bem dos motivos que o levaram a decidir-se pela carreira médica, e talvez que as razões dessa escolha estivessem mais na opinião dos outros do que mesmo num aprofundado exame de suas próprias aptidões. De fato, por aquela época, e como acontece a quase todo rapaz, não tinha vocação definida, e tanto se

510 LUCA, 1999, p. 32-34. 511 CRULS, 1951, p. 82. 512 SENNA, 1968, p. 219. 210

lhe daria de ser médico como bacharel, confeiteiro, soldado, agrimensor ou mesmo, e até preferentemente, coisa nenhuma.513

As críticas à profissão ainda aparecem em “A eutanásia”, conto de Ao embalo da rede (1923). Como em quase todos os contos das primeiras obras de Cruls, a história começa com a epígrafe “Ne pas soutenir la vie jusqu’aux dernières limites, fut-ce au prix de tourments insoutenables, c’est peut-être tuer.”, de Maurice Maeterlinck, em tradução livre “Não apoiar a vida até o limite, mesmo a preço de tormentos insustentáveis, talvez seja matar.” A dedicatória, desta vez, vai para seu amigo de longa data, Antonio Torres514. Inicia-se com uma notícia vislumbrada pelo Dr. Flávio Marçal no jornal diário: “O Professor Ebstein515 acaba de descobrir o tratamento do câncer por meio das injeções de um novo sal de bário, tendo apresentado à Academia de Ciências vários indivíduos já curados pelo seu processo.”516. O médico então se desespera, relembrando do que acontecera a Mário, seu amigo. Mário Junqueira e Flávio Marçal haviam sido amigos de longa data, e chegaram a cursar juntos a Faculdade de Medicina. Depois de formados, seguiram para a Europa com o fim de completar os estudos. Foi durante essa estadia em solo estrangeiro que tomaram contato com os debates sobre o direito à eutanásia em pacientes considerados irremediavelmente perdidos, que geravam acaloradas discussões e opiniões tão diversas. A favor do processo, “que se lhes afigurava humano ante a desumanidade de ver infernados num círculo de torturas quantos ainda não lograram da ciência qualquer alívio para seus males”517, os dois amigos fizeram então um pacto secreto. Se algum dia, qualquer um deles viesse ser acometido de uma doença incurável, e estivesse a sofrer sem esperanças, o outro deveria aliviar-lhe o martírio,

513 CRULS, 1951, p. 79. 514 A maioria dos textos de Cruls aparece com epígrafe e dedicatória, geralmente para algum de seus amigos (médicos ou escritores). O livro Coivara, por exemplo, é dedicado a Alberto Rangel; já Ao embalo da rede, aos colegas de profissão Acácio Pires e Miguel Ozorio de Almeida. 515 Provável referência ao médico germânico Wilhelm Ebstein (1836-1912), que atuou como professor na Universidade de Göttingen, e dirigiu também o hospital universitário da instituição. Ebstein dedicou-se a estudos sobre nutrição inadequada, tentando uma série de novos tratamentos. Além disso, seu nome ficou relacionado a um defeito cardíaco congênito raro, a anomalia de Ebstein. Informações retiradas de: . Acesso: 21.dez.2017. 516 CRULS, op. cit., p. 165. 517 CRULS, ibid., p. 166. 211 proporcionando uma morte rápida. Ainda que para isso este tivesse que enfrentar os preconceitos sociais e morais, bem como as dúvidas da própria afetividade. Dez anos se passaram desde o pacto, tempo em que a união dos amigos foi somada com o laço de parentesco, possibilitado pelo casamento entre Mário e uma das irmãs de Flávio, e logo acrescido do nascimento de seus filhos. Por um infortúnio, Mário começara a ter dores de cabeça, a princípio suportáveis e espaçadas, e com o passar do tempo rotineiras e intensas, fazendo-o sofrer muito. A situação era agravada pela falta de um diagnóstico seguro sobre o problema, em que também falhavam todos os recursos terapêuticos empregados, demonstração do autor das falhas da capacidade paliativa da medicina. Seu quadro clínico só piorava, com o acréscimo de vômitos, perturbações motoras e acidentes convulsivos, descritos em detalhes técnicos por Cruls. Contudo, uma punção lombar, que identificou células sarcomatosas no líquido céfalo- raquidiano do paciente, trouxera a certeza de um tumor maligno no cérebro. Alguns dias depois, após um transe convulsivo, o doente fora atacado pela paralisia dos membros do lado direito e pela afasia518, uma alteração na função da linguagem, ficando então impossibilitado de se comunicar. Apesar de seu estado, Flávio não contara a sua irmã D. Maria da Glória, esposa de Mário, sobre o real estado do doente. Acreditava que isso pioraria a situação. É curiosa (e irônica) a caracterização que Cruls faz do modo como os médicos explicavam sobre as enfermidades aos pacientes e familiares. A um questionamento de D. Maria, “continha-se, e com a sua autoridade de médico, dizia qualquer coisa, que era fàcilmente aceita...”519. A situação chegara num crescendo de horror, quando D. Maria percebia que o doente ficava muito agitado com a presença do Dr. Flávio. De fato, o médico percebia a mesma situação, se dando conta então da memória sobre o pacto. A despeito de não poder falar,

Os olhos, porém, falavam e diziam tudo. Já, então, não devera ser apenas a dor física que o atormentava. Superando-a, uma outra, inexplicável para a família e da qual só Flávio acreditava conhecer a razão, trazia-o agora em permanente desassossêgo, como que atemorizado de todos e de tudo, ora

518 Essa parecia ser uma das preocupações de Gastão Cruls enquanto médico, pois iria desenvolver o tema, apresentando uma espécie de hipótese (ficcional) para a questão em A Amazônia misteriosa. 519 CRULS, 1951, p. 171. 212

explodindo em inesperadas e comoventes crises de chôro, ora a estampar no rosto as mais estranhas visagens de pavor.520

Embora contrafeito, o Dr. Flávio sentira-se então na obrigação de cumprir o pacto, feito há tantos anos, dando assim um fim rápido ao sofrimento de seu amigo. Tentando disfarçar o seu plano com a suposta aplicação das injeções de coloidal de cobre do tratamento – na verdade, uma injeção de clorofórmio –, o médico leva a cabo a eutanásia, sem que ninguém tivesse percebido, dado que o doente já estava muito mal. Contudo, apenas alguns meses depois, se depara com aquela notícia da suposta descoberta da cura do câncer, entrando em desespero: “Portanto, se Mário houvesse vivido apenas mais três meses, como certamente poderia ter vivido... Mas, então, eu serei mesmo o seu assassino?”521. Poucas horas depois, a cidade toda comentava o inexplicável suicídio do Dr. Flávio Marçal... A desilusão com a capacidade de cura da medicina se apresenta aqui em diferentes frentes: nas dificuldades de encontrar um diagnóstico, e depois, um paliativo à enfermidade de Mário. Posteriormente, relacionada às dúvidas que a suposta cura para o câncer havia gerado em Flávio Marçal – visto que o noticiário era breve e apenas dava conta de um experimento que vinha conseguindo algum sucesso na cura de pacientes com câncer, mas não uma certeza (como ainda nos dias atuais inexiste). Por fim, a própria possibilidade da morte enquanto único “remédio” para alguns males, que se configura como um ponto de inflexão sobre os avanços da ciência e da pesquisa médica. Na discussão levantada por Cruls, paira ainda a dúvida quanto às justificativas para o uso da eutanásia: da certeza propalada pelos amigos sobre o método, que os levara inclusive a fazer uma espécie de “pacto de sangue”, segue-se o questionamento sobre a opção feita por Flávio Marçal. E se ele tivesse esperado mais alguns meses? E se realmente Mário pudesse ser curado? Era então o assassino de seu próprio melhor amigo? Não fica claro, no conto, se o autor faz a defesa ou crítica do processo; ao que me parece, sua intenção foi antes apresentar a discussão – então em voga e ainda hoje causadora de discórdias –, levantando mais perguntas do que as respondendo.

520 CRULS, 1951, p. 170. 521 Ibid., p. 165. 213

Por fim, as dificuldades do exercício da profissão são abordadas também em “A neurastenia do Professor Filomeno”, conto de Coivara. Dada a extensão do conto, e a repetição dos temas, me atentarei apenas a alguns detalhes, que serão discutidos ao longo do capítulo. A narrativa conta a história de Raul de Aguiar, médico recém-formado que não consegue emprego na capital federal e, por isso, vai para o interior de Minas Gerais, servir como médico em substituição a um tio, único da cidade e já prestes a se aposentar. O narrador vê com maus olhos o exercício da medicina nas zonas rurais, e só vai sabendo de que existe uma possibilidade de retornar, quando uma nova reforma do ensino ocorresse, possibilitando-lhe então uma chance de se tornar assistente do Professor Filomeno Pontes na cadeira de Clínica Médica. O ambiente de reformulações do ensino médico do alvorecer do século não passou despercebido para o autor, imerso nesse meio e dele recebendo sua influência. A crítica do conto segue na direção das dificuldades para um estudante de medicina se manter depois de formado, visto que o exercício da profissão era difícil em uma cidade de grande concorrência (e grandes custos) como o Rio, em cujos arrabaldes “os doentes mínguam em proporção direta do número de placas espalhadas pelas farmácias da redondeza”522. Marília Mezzomo comenta a importância desses estabelecimentos como locais não só de comercialização de medicamentos, mas como edifícios que muitas vezes concentravam diferentes profissionais em um só espaço. Especialmente em cidades pequenas, como a Cruz Alta (RS) da infância de Érico Veríssimo, de que fala a autora – onde funcionavam também como espaços de sociabilidade523. A despeito disso, aqueles que não tinham “qualquer achego ou encôsto”524 – o que também poderia significar um casamento rico –, acabavam por largar a profissão, “cedendo os brilhos do anel simbólico à caneta dos burocratas”, parasitando (termo usado pelo narrador) os cofres públicos525. Deste modo, Raul segue para Santa Rita da Glória, interior mineiro. As dificuldades em exercer a profissão numa zona rural, com péssimas estruturas e grassada por epidemias são narradas em longas páginas, marcando a outra faceta da discussão trazia por Cruls:

522 CRULS, 1951, p. 119. 523 RODRIGUES, 2009, p. 61-63. 524 CRULS, op. cit., p. 119. 525 Loc. cit. 214 as diferenças entre as zonas urbanas e rurais, em especial no que concerne aos aspectos relacionados à saúde. Retomarei essa questão em breve. O conto prossegue com as vicissitudes do meio rural, a que aos poucos vai se acostumando Raul. Apesar disso, não espera a hora de poder retornar para o serviço junto a seu professor, um exemplo de médico e cientista para o jovem. O conto, narrado em pormenores e com uma linguagem por vezes muito técnica, apresenta, no entanto, uma sutil ironia de crítica à linguagem científica. Apesar de se considerar moderno em termos de discussão médica, Raul se espelha em seu mestre Filomeno, que por vezes se utiliza de uma linguagem rebuscada e de difícil acesso mesmo para coisas mais simples, como quando indica como medida terapêutica o cozimento de unhas de preguiça e tamanduá-bandeira a uma jovem, denominando-o como “decocto de fâneros de Bradypus tridáctilo” e de “Mirmecóphaga jubata”526. Em alguns momentos, as receitas do “sábio” professor são motivos de passagens cômicas. A um indivíduo diagnosticado com uma moléstia que o impedia de andar direito, levando-o a várias quedas, o Professor Filomeno havia receitado uma alimentação ostensiva com crustáceos. Afinal, “os caranguejos nunca andam em linha reta”; logo, a desordem do doente poderia ser neutralizada “por meio dos gânglios nervosos dos siris e caranguejos”527. Do mesmo modo, o Professor Filomeno, embora médico e catedrático dedicado, que “vivia a ditar preceitos higiênicos a todo mundo”528, não cuidava direito da saúde, sem fazer nem as horas de sono necessárias por dia. A construção irônica se dá também na diferenciação de tratamento entre a clientela rica que frequentam a clínica particular do médico – “que o impelia a deveres de sociabilidade e rebuscamentos diagnósticos e terapêuticos”529 –, e os menos favorecidos dos hospitais públicos. Após longos apontamentos sobre o Dr. Filomeno, o conto termina com seu discípulo indo encontrá-lo no Rio acamado e doente, com suspeita de neurastenia. Todos achavam que seu esgotamento nervoso se dera pelo excesso de trabalho, mas o médico afirmava outro motivo. Havia ganhado ao longo da vida muitos

526 CRULS, 1951, p. 127. 527 Ibid.,, p. 137. 528 Ibid., p. 129. 529 Ibid., p. 133. 215 guarda-chuvas com cabo de ébano e ouro de presente e de agradecimento, e seus clientes insistiam e o amolavam tanto para que os usasse, que o médico se vira obrigado a criar um sistema de classificação, para que pudesse utilizar o guarda- chuva correto e não desagradasse ninguém. Considerado louco, o Dr. Filomeno é recolhido em uma Casa de Saúde, frustrando assim as chances de retorno de Raul para o Rio.

3.2 DO HOMEM DE CIÊNCIA, A CRÍTICA À RELIGIÃO

O conto “G.C.P.A.” ainda se passa em uma instituição religiosa, com menção a freiras e crucifixos. Como se sabe, o autor foi interno da Santa Casa de Misericórdia, na enfermaria comandada por Miguel Couto. Cruls também trabalhou na enfermaria dirigida pelo Professor Paes Leme. O espaço de trabalho era dividido com Alvaro Ozorio de Almeida, irmão de Miguel Ozorio. Passando por diferentes experiências enquanto clinicava, o autor deixou impressa em sua literatura essas marcas e referências a instituições e situações. Embora sutil, há uma crítica velada à religião cristã, especialmente no que se refere à sua forma institucional. A crítica também aparece n’Amazônia misteriosa, dirigida aos indivíduos que, contraditoriamente, se afirmavam seguidores de Cristo, mas perpetravam as barbaridades da conquista sobre os indígenas, como já visto. Suas narrativas valeriam a Cruls críticas na imprensa católica carioca, que afirmava que o escritor “[...] [abstrai] da obrigatoriedade dos principios cristhãos que condenam a impureza” 530. Essa crítica é uma referência ao conto “Noites brancas”, de Coivara, que será abordado posteriormente. Esse mesmo periódico atacaria também a obra Ao embalo da rede (1923), dizendo que o autor desconhecia a religião, construindo na narrativa “O último encontro” uma história diferente para Jesus e Maria Madalena, e tratando ironicamente da fé e dos milagres em “Biró” 531. De fato, o conto “Biró” se inicia com a epígrafe “La foi est une certitude sans preuves”, de H. F. Amiel (em tradução livre, “A fé é uma certeza sem provas”). É dedicado ao escritor paraibano Carlos Dias Fernandes (1874-1942), da cidade de Mamanguape – a mesma de Pacatuba, personagem de A Amazônia misteriosa. Carlos Dias Fernandes viveu por um tempo no Rio de Janeiro, onde exerceu a

530 LIVROS Novos, A União, 13.set.1923,p. 2. 531 LIVROS Novos, A União, 21.out.1923, p. 1. 216 carreira jornalística. Sua produção literária é variada, compreendendo desde poemas, de influência simbolista, até romances de cunho regional. O conto narra o encontro de dois amigos: o narrador-protagonista, não nomeado, médico (e que parece ser um alter ego de Cruls), e Luciano, bacharel em direito oriundo do sertão paraibano (uma referência a Carlos Fernandes, talvez). Os dois haviam se conhecido durante o curso preparatório, e teriam cursado a mesma faculdade, se questões familiares não fizessem Luciano retornar ao Norte. Desde então, havia se passado muito tempo, sem que os dois pudessem se reencontrar pessoalmente. O encontro é pretexto para que Luciano narre uma história passada “nos seus mundos”532. O filho caçula de Joaquim Calumbi, Benedito, ganha do pai “um pequeno boneco de celuloide, que mexia os braços e tinha um corpinho róseo e roliço”533 – uma novidade na humilde vida do sertão –, e que passa a ser chamado de Biró. A criança acaba perdendo o boneco em uma região de rios, bem na época dos temporais, e não consegue mais recuperá-lo. Algum tempo depois, cai doente de um “febrão”, que por vezes o fazia delirar. Florinda, sua mãe, tenta por todas as formas por ela conhecidas fazer o filho melhorar: aplicação de sementes do mastruço, cozimentos de jurubeba, infusão de entrecasca de cumaru, banhos de malícia de boi, sem que nada, contudo, fizesse a criança sair da cama. Ouvindo falar dos milagres realizados por certo São Francisco das Chagas, de quem tanto falava o povo devoto de Piancó, uma região próxima, Florinda resolve apelar para as rezas. E, “fôsse por obra e graça do padroeiro de Piancó ou ainda como resultado de algumas fomentações com a banha do teju-açú”534, o fato é que poucos dias depois, Benedito melhora. Sua mãe resolve então fazer peregrinação ao lugar em que o santo estava para agradecer. Contudo, tal é sua surpresa ao descobrir, junto às exclamações inocentes da criança, que Biró, “disfarçado sob um manto roxo e com uma coroa de papelão dourado na cabeça”, presidia o altar. Levado pela enxurrada, o boneco “[...] fôra encontrado por algum devoto de S. Francisco das Chagas, que o entronizara como a imagem do mesmo santo, nascendo daí o novo culto.”535.

532 CRULS, 1951, p. 212. 533 Ibid., p. 213. 534 Ibid., p. 215. 535 Ibid., p. 216. 217

Para grande parte da intelectualidade que propunha reformas para o país, em especial os nomes ligados ao movimento sanitarista, as crenças e costumes religiosos apareciam muitas vezes como entrave ao progresso. Como discute Marília Mezzomo Rodrigues, através de ideias como saneamento, saúde e seus reflexos em áreas distintas (como o mundo do trabalho e a formação das gerações futuras), os médicos do período propuseram também soluções para os problemas nacionais. Uma das principais questões abordadas era a necessidade da internalização de métodos de higiene na prática cotidiana, a ser alcançada com a educação. Deste modo, não era apenas uma questão de manutenção da saúde, mas da transformação de pensamentos e práticas. Havia, nesse sentido, uma luta em prol da secularização das mentalidades, mudança nos costumes cotidianos, bem como a observância na necessidade de maior ingerência do poder público frente a questões antes particulares, como a criação dos filhos. “A educação e a ciência poderiam consertar o que a história havia consolidado da pior forma possível. Isso deveria ocorrer dentro das famílias e abrangê-las todas, em todas as partes do Brasil.”536 Por sua vez, as práticas religiosas, se por um lado marcavam indelevelmente o cotidiano de muitas regiões, especialmente as rurais, indicavam também o seu atraso frente a uma ideia de civilização e modernidade. De fato, a menção ao boneco em “Biró” vem quando os dois amigos discutem sobre seus tempos de estudante, relembrando Néco Ferraz, um colega do Ginásio que havia se tornado médico, a despeito da quase inexistente aptidão demonstrada nos tempos escolares. “– Qual! Mas é mais forte do que eu e, por mais que queira, nunca poderei ver no Néco um médico capaz de me inspirar confiança. Para mim êle foi e há de ser sempre um Biró.”537, caçoa Luciano, relembrando então a história do boneco. Acredito que a relação entre o falso santo e o médico suspeito não é acidental, mas demonstrativa tanto da relação entre religião e atraso, quanto de uma possível desconfiança de Cruls quanto à parcela dos médicos de seu tempo. À parte da crítica aos costumes religiosos – que parece permear toda a obra de Cruls, pautada pela ironia –, “Biró” é um dos contos em que fica clara a influência das experiências que o autor viveu na Paraíba, enquanto médico sanitarista. Sua estada em solo nordestino marcaria sua vida e sua escrita, que a ela sempre se reporta, seja através da utilização de termos regionais, seja como ambiente para

536 RODRIGUES, 2009, p. 45. 537 CRULS, op. cit., p. 212. 218 suas narrativas. De fato, uma das expressões preferidas do autor parece ser “olhos de xexéu”, referência a um pássaro das regiões Norte e Centro-Oeste do país (Cacicus cela), que possui olhos azuis. Como já comentado, em A Amazônia misteriosa o pássaro é tema de discórdia entre os membros da expedição. Além disso, a expressão “olhos de xexéu” indicava para Pacatuba alguém de “temperamento muito sanguinario”538. O termo aparece também em contos como este “Biró”, além de fazer referência ao próprio Cruls, em carta trocada com Antonio Torres de 21 de setembro de 1921, quando o autor estava no Nordeste. “Aqui, além de outros desgostos, acharam-me com olhos de xexéo, o que traduz instintos sangüinários.”539. Passagem marcante na vida profissional e pessoal do autor, que subsistiria em sua produção literária, seu trabalho enquanto médico sanitarista foi característico de um período em que os profissionais da área de saúde, assim como engenheiros, eram chamados a desbravar um território brasileiro ainda quase desconhecido de seus próprios cidadãos.

3.3 A “ERA DO SANEAMENTO”

De acordo com Gilberto Hochman540, os problemas enfrentados com relação a doenças no alvorecer da república se configuravam também como problemas de cooperação e ação coletiva, próprias das demandas contra o contágio, e pela produção de condições salubres que evitassem moléstias. Nesse sentido, o debate sobre as questões de saúde pública também acabava se relacionando a um debate sobre a ação do Estado. Assim sendo, o país passou a ser visto como um “imenso hospital”, nas palavras do discurso541 de Miguel Pereira, em 1916, cuja letalidade era causada diretamente pela ausência da atuação do poder público.

538 CRULS, 1925, p. 96. 539 CRULS, 1950, p. 321. 540 HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento. São Paulo: Editora HUCITEC/ ANPOCS, 1998. 541 Miguel da Silva Pereira (1871-1918) era médico sanitarista, professor de Patologia Interna na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e membro da Academia Nacional de Medicina. Em discurso a uma saudação ao professor Aloysio de Castro, diretor da Faculdade de Medicina, afirmou que “[...] fora do Rio ou de S. Paulo, capitais mais ou menos saneadas, e de algumas ou outras cidades em que a previdência superintende a higiene, o Brasil é ainda um imenso hospital”. Seu discurso completa-se pela afirmativa da incapacidade do povo frente ao serviço militar obrigatório, que então muito se debatia, pois que “inválidos, exangues, esgotados pela ancilostomíase e pela malária; estropiados e arrasados pela moléstia de Chagas; corroídos pela sífilis e pela lepra; devastados pelo alcoolismo; chupados pela fome, ignorantes, abandonados, 219

No período conhecido como República Velha foram delineados os contornos decisórios da estatização que se veria a partir da década de 1930. Sob essa visão, nem o regime foi um interregno no processo de formação do Estado, nem detinha, contudo, uma forma finalizada já nos tempos do Império. Para Hochman, também nem sempre houve incompatibilidade de interesses entre a criação de um poder público e o reforço dos interesses privados, especialmente oligárquicos; esse foi em realidade um processo complexo, de disputas, mas também de convergência de interesses e complementação. Com a anuência e mesmo interesse das elites políticas, ocorreu o desenvolvimento da consciência pública e da responsabilidade do governo para com as condições sanitárias do país e com a saúde da população. Deste modo, o movimento sanitarista foi ganhando proeminência, produzindo discursos, difundindo sua interpretação dos problemas nacionais, e oferecendo soluções políticas e institucionais para transformar a realidade brasileira. Aos poucos, a doença transmissível foi entendida como um fator que moldava a sociedade, uma das principais causas de nosso atraso frente a outros países.

3.3.1 A doença como niveladora social

Os processos de industrialização, crescimento populacional e urbanização implicaram em problemas cujas fronteiras ultrapassavam recortes econômicos ou territoriais: as doenças infecto-contagiosas. Até meados do século XIX, a explicação predominante sobre os agentes causadores de doenças, foi a conhecida como teoria miasmática. De maneira simplificada, as moléstias seriam transmitidas através de humores ou miasmas, componentes tóxicos que surgiriam da decomposição da matéria orgânica. Assim sendo, as primeiras reformas na saúde pública nos Estados Unidos (que repercutiram também no Brasil), deram conta de combater as condições sociais e ambientais geradoras dos miasmas, geralmente através de ações locais. Mesmo baseadas em concepções mais tarde refutadas, essas discussões chamaram a

sem ideal e sem letras ou não poderiam estes tristes deslembrados se erguer da sua modorra...” para acudir a pátria “que lhes negou a esmola do alfabeto” e queria impor agora, “antes do livro redentor, a arma defensiva” (citado em HOCHMAN, ibid., p. 64-65). Esse discurso é considerado um momento inaugurador do movimento público em prol do sanitarismo no país, gerando polêmicas e debates acalorados, tanto de apoio quanto de acusações contra o seu suposto impatriotismo. 220 atenção para as péssimas condições de vida nas cidades, promovendo os primeiros serviços públicos urbanos, como a coleta de lixo, as obras de esgoto, o controle de alimentos, entre outros. Em contrapartida, a teoria do germe, explicação que relacionava o contágio aos microorganismos, embora já existisse com proposta de certo modo concorrente à da teoria miasmática, não pode ser comprovada de todo até os avanços da bacteriologia542. Como aponta Hochman, esses debates não eram, contudo, eram apenas científicos; a perspectiva contagionista estava relacionada a uma maior intervenção das autoridades públicas sobre os indivíduos, bem como sobre relações comerciais, especialmente em regiões portuárias, que recebiam navios com possíveis doentes. Assim sendo, a predominância dos discursos liberais até então batia de frente com a característica intervencionista desse viés. Contudo, as descobertas científicas da área de bacteriologia implicaram em uma significativa mudança quanto ao modo de se relacionar com a doença. Como atestava a publicação O micróbio como nivelador social, de Cyrus Edson (1895), tornou-se clara a ideia de que os “infinitamente pequenos”, causadores de doenças infecciosas, não escolhiam classe, gênero, raça ou mesmo fronteiras nacionais, atacando indistintamente todos os indivíduos. Nesse sentido,

A preocupação dos ricos e sadios para com os menos afortunados e doentes e a decisão de agir para combater esse estado de coisas não derivariam apenas de uma concepção ética e moral, mas, principalmente, da percepção de que a ameaça da doença os tornara solidários e reorganizava a sociedade, certamente, a contragosto, para muitos. Definitivamente, as elites percebiam que tinham perdido a sua imunidade social, diante de um problema do qual dificilmente alguém poderia se eximir.543

Nesse contexto, o debate público foi tomado por um senso abstrato de responsabilidade e busca de soluções, visando melhorar a situação dos menos

542 Como ramo da microbiologia, a bacteriologia se desenvolveu no final do século XIX, a partir do estudo sistemático dos microorganismos, visando sua identificação, classificação e caracterização. Teve impulso com os estudos e descobertas impetrados por Robert Koch (1843-1910), que identificou o bacilo da tuberculose em 1882 (mais tarde denominado Bacilo de Koch), e Louis Pasteur (1822-1895), através da criação da vacina antirrábica, do método de pasteurização (que evitava que alimentos como o leite causassem doenças) e outras conquistas. Por suas características, a bacteriologia apresenta áreas de afinidade com várias disciplinas médicas, entre elas a epidemiologia e a imunologia. No Brasil, a cadeira de Bacteriologia seria instituída na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1901, embora pesquisas nesse campo já viessem sendo desenvolvidas desde o final do século XIX. 543 HOCHMAN, 1998, p. 51. 221 afortunados, certamente os mais vulneráveis com relação ao contágio – e, deste modo, atenuar a ameaça que pairava sobre ricos e sadios. O próprio contexto do surgimento de postulados científicos sobre algumas doenças teve como base essa relação desigual de forças. De fato, o desenvolvimento da medicina tropical, por exemplo, foi levado a cabo a partir do contágio do explorador branco europeu no afã das conquistas imperialistas, impetradas em territórios africano e asiático. Doenças como a febre amarela e a malária haviam sido responsáveis, ao longo do século XIX, pela morte de cerca de 94% das tropas inglesas e francesas em continente africano544. Nesse sentido, a especialidade se desenvolveu como forma de lidar com as moléstias de maior ocorrência nas áreas com esse tipo de clima, a partir de uma necessidade cuja origem era econômica e política, e não estritamente relacionada à saúde. Apesar disso e em desigual medida, as descobertas sobre os agentes causadores das doenças, seus modos de prevenção e profilaxia possibilitariam a melhoria de vida de diferentes grupos populacionais. Vale ressaltar, ainda, que a hegemonia dos discursos bacteriológicos não retirou o reconhecimento de outros elementos que facilitavam ou dificultavam a interação ser humano-microorganismo. Repensados a partir das novas teorias, os diferentes fatores climáticos, telúricos e sociais foram reconsiderados em seus termos de possibilidade de facilitação das condições microscópicas causadoras de doenças. Nesse sentido, a reflexão emergiu dos embates, disputas e recombinações entre diferentes teorias, visando os melhores meios para sanear ambientes e evitar ou minimizar o contágio. Assim sendo,

a consciência de uma dependência recíproca, via percepção da comunicabilidade das doenças, através do qual todos os indivíduos estavam inexoravelmente interligados, seja pela ameaça, seja pelos benefícios da prevenção, criava efetivamente a idéia de comunidade, na qual a responsabilidade pela profilaxia e cura da doença tornava-se uma obrigação moral e política.545

E, ainda, que essas novas concepções foram aos poucos ganhando espaço nos debates nacionais, encontrando, por certo, resistências. Em “A neurastenia do

544 VITAL, André Vasques. Medicina tropical, tratamento e profilaxia contra a malária: controvérsias científicas no início do século XX. Revista Eletrônica Cadernos de História, vol. X, ano 5, n.º 2, dezembro de 2010. Disponível em: . Acesso: 18.set.2017. p. 164. 545 HOCHMAN, 1998, p. 58. 222

Professor Filomeno”, Raul se vê obrigado a ir clinicar no interior mineiro, junto a um tio prestes a se aposentar, o Dr. Chiquinho, “mais preocupado com a aftosa do seu gado do que com a epidemia que lavrava então no Azedo”546. Ficando responsável pelos doentes epidêmicos, Raul encontra um erro de diagnóstico, pois seu tio acreditava que a doença que grassava era a malária, ao que Raul percebe ser febre tifóide, embora sem a possibilidade de exames de laboratório que o confirmassem. Fazia-se premente então mudar a medicação, baseada nas altas doses de quinino e outros elementos que poderiam ser prejudiciais em caso de infecção gastrointestinal. Discutindo com seu tio, Raul encontra uma figura médica formada na cartilha de “memoráveis fósseis”547, defensor da ideia dos miasmas e que se referia com “indizível desprezo” aos micróbios, “pois que as suas concepções no domínio dos infinitamente pequenos, não se estendiam para além do bicho de pé e do carrapato-pólvora” 548. Mesmo entre os adeptos das teorias microbianas se viam discussões, por vezes controversas, sobre a etiologia desta ou daquela doença. Campos e especialidades que estavam sendo delineados no momento, através tanto de pesquisas laboratoriais quanto de observações empíricas, o fato é que o conhecimento médico sobre as doenças infecciosas desenvolveu-se aceleradamente nas primeiras décadas do século XX. Por vezes, contudo, postulados errados eram formulados, novas formas de vida microbiana mais resistentes aos remédios e vacinas eram encontradas, produzindo um campo dinâmico que estava em constante reformulação. Diversos estudos historiográficos recentes vem demonstrando esse espaço de disputas, debates e controvérsias que foram as áreas de atuação relacionadas à saúde (microbiologia, medicina sanitária, entre outras) no início do século. Por sua vez, esses debates fomentaram estudos e novas descobertas, em que a ainda incipiente ciência brasileira ganha destaque, por conta das particularidades que demandava a pesquisa médico-científica no país. Nesse sentido, os pesquisadores brasileiros

[...] não apenas adaptavam às circunstâncias locais as prescrições veiculadas nos tratados médicos nacionais e estrangeiros, como abriam

546 CRULS, 1951, p. 120. 547 Ibid., p. 121. 548 Loc. cit. 223

novas frentes de pesquisa a partir de observações realizadas sobretudo em regiões malarígenas do interior do Brasil, onde se desenvolviam empreendimentos ferroviários, hidrelétricos, hidráulicos e agro-pecuários.549

Assim sendo, o amplo movimento em prol de melhorias na saúde pública é um dos elementos-chave para se entender a construção da identidade nacional. Permeada ainda por uma ideia abstrata e por vezes conflitante de “povo”, essas discussões apresentavam como ponto comum a necessidade de “torná-lo saudável”550. Por conseguinte, a amplidão e diversidade do território nacional, com regiões ainda desconhecidas, apresentando muitos focos de epidemias, demandavam ações específicas. Envolvendo uma gama variada de profissionais, como médicos, educadores e autoridades públicas, esse movimento compreendeu duas fases, marcadas por níveis de debate e visões por vezes conflituosas.

3.3.2 A gestão Oswaldo Cruz

A primeira fase do movimento sanitarista foi marcada pelo pioneirismo de algumas ações em território paulista, e pela gestão de Oswaldo Cruz como comandante dos serviços federais de saúde, entre 1903 e 1909. Contudo, podemos localizar ao longo do século XIX movimentos esparsos em que os debates sobre os germes já estavam presentes. Jaime Benchimol indica que o grupo organizado em torno da Faculdade de Medicina da Bahia, especialmente após a fundação do periódico de divulgação Gazeta Médica da Bahia (1866), já incorporava alguns debates recentes da medicina europeia, embora sua produção ainda se encontrasse na fronteira entre o paradigma miasmático/ambientalista e a teoria do germe551. Nesse período, a penetração das ideias cientificistas, do positivismo e do evolucionismo no Brasil foram dando proeminência, aos poucos, a etiologias parasitárias específicas, que implicava em uma rede de contatos entre os estudos brasileiros e as produções europeias, especialmente da área que posteriormente ficaria conhecida como medicina tropical. Embora o grupo tenha se dissolvido por volta da década de 1880, muitos de seus integrantes transferiram-se para o Rio de Janeiro, onde puderam continuar suas pesquisas, através da atuação em periódicos

549 BENCHIMOL; SILVA, 2012, p. 5. 550 RODRIGUES, 2009, p. 46. 551 BENCHIMOL; SILVA, op. cit., p. 61 et. seq. 224 ou nas cadeiras da Faculdade de Medicina do Rio, influenciando a nova geração de médicos da capital. Por sua vez, os primeiros passos do processo da doença como uma questão pública foram dados ainda em meados do mesmo século, com os surtos de febre amarela na capital federal, e sua compreensão de importante questão sanitária, especialmente no que concernia aos prejuízos econômicos que causava552. Em 1879, Domingos José Freire, professor da disciplina de Química orgânica da Faculdade de Medicina, publicou o resultado de seus estudos sobre uma alga, que acreditava ser a causadora da moléstia. Logo em seguida, em 1883, Freire desenvolveria uma vacina contra a febre, a partir das técnicas pausterianas. O pesquisador ainda seria, posteriormente, um dos mentores da reforma do ensino médico na faculdade. A vacina, embora tenha sido recebida com entusiasmo por abolicionistas e republicanos, bem com o apoio tácito do imperador e até de estudiosos europeus – tendo sido aplicada em cerca de 12000 imigrantes e brasileiros até 1894553 –, foi alvo de controvérsias de pesquisadores que imputavam outras causas para a febre, bem como tratamentos diversos. Os debates sobre a doença ganharam a vida pública, sendo geralmente comentados com muito humor na imprensa da época. Contudo, foi a partir das primeiras décadas republicanas que a discussão foi reforçada, marcada por embates públicos, posições contrárias e pela incorporação de novas técnicas nas pesquisas. Ainda em 1892, foram criados o Instituto Bacteriológico Domingos Freire e Instituto Bacteriológico de São Paulo, comandado por Adolpho Lutz. Dois anos depois, uma equipe composta por Lutz, Oswaldo Cruz e pelos professores da Faculdade de Medicina do Rio Francisco Fajardo e Eduardo Chapot-Prévost, diagnosticaram uma epidemia de cólera no Vale do Paraíba, propondo medidas de contenção, que encontraram críticas e resistências de setores médicos conservadores. O Instituto Bacteriológico de São Paulo ainda obteve visibilidade ao final da mesma década, quando o médico Vital Brasil chamou a atenção para um surto de peste bubônica no porto de Santos. A dificuldade de importação do soro propiciou a criação de um laboratório destinado à criação do mesmo, vinculado ao Instituto, e mais tarde convertido em Instituto Butantan. Adolpho Lutz ainda desenvolveria

552 KROPF, 2009, p. 69. 553 BENCHIMOL; SILVA, 2012, p. 64. 225 trabalhos sobre a associação entre a presença de insetos hematófagos e os surtos de febre amarela em São Paulo, marcando o pioneirismo do estado na adoção de medidas profiláticas que estavam naquele momento sendo testadas em outros países. Em 1897, seria por fim criada a Diretoria Geral da Saúde Pública, subordinada ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Por seu turno, as ações de Oswaldo Cruz concentraram-se na capital federal e nos portos, com medidas para o combate de epidemias de peste bubônica, febre amarela e varíola, que grassavam em cidades como o Rio de Janeiro e Santos. Data ainda de 1903 o documento Instruções para o Serviço de Prophilaxya Especifica de Febre Amarella, inspirado em Oswaldo Cruz, e divulgado como resolução do Ministério do Estado da Justiça e Negócios Interiores, um dos primeiros nesse sentido. Outrossim, neste período o Instituto Manguinhos, mas tarde Instituto Oswaldo Cruz, começa a dar seus primeiros passos. Fundado em maio de 1900 como Instituto Soroterápico Federal, na Fazenda de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro, a instituição tinha como objetivos iniciais a fabricação de soros e vacinas contra a peste bubônica. Contudo, o fomento à pesquisa e as descobertas a ele imputadas, fez com que o instituto ampliasse sua área de ação, participando de iniciativas em várias regiões do país, e tornando-se um referencial no combate a doenças infecto-contagiosas. A partir de 1902, o médico e bacteriologista Oswaldo Gonçalves Cruz (1872- 1917) assumiria a direção técnica do instituto. Formado em 1892 na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Oswaldo Cruz teve a oportunidade de completar seus estudos no Instituto Pasteur, em Paris, entre 1896 e 1899, então referência na pesquisa de doenças infecciosas e na produção de vacinas. Retornando ao Brasil, ficou como responsável pelo controle do surto de peste bubônica das cidades portuárias, ocasião em que convenceu o governo brasileiro da necessidade de fabricação de sorosem solo nacional, visto que ainda eram importados do Instituto Pasteur, tornando cara e demorada a operação. Não havia ainda uma tradição de institutos de pesquisa no país, salvo no estado de São Paulo. Fundado em 1888, o Instituto Pasteur do Rio de Janeiro, inspirado no original francês, restringiu-se à produção da vacina antirrábica, sem ganhar notoriedade em pesquisas científicas. Apesar disso, aos poucos as 226 novidades e descobertas científicas do exterior ganharam penetração no Brasil: a medicina ia sendo transformada pela revolução pausteriana e pela microbiologia, fomentando as pesquisas em laboratório, a fabricação de vacinas e soros e possibilitando a cura de diversas doenças, nas quais o Instituto Manguinhos iria exercer papel fundamental, marcando uma nova fase da ciência nacional. Com o intuito de sanear as regiões assoladas por doenças na capital federal, bem como modernizar a estrutura obsoleta de seu porto, o então presidente Rodrigues Alves dirigiu um plano em três frentes, levado a cabo entre 1903 e 1906. Para tanto, foram chamados os técnicos da área de engenharia Lauro Müeller, que seria responsável pela reforma do porto, e Francisco Pereira Passos, prefeito da cidade, a cargo da reurbanização da cidade. Nesse ínterim, Oswaldo Cruz foi nomeado Diretor Geral de Saúde Pública, ficando assim responsável pela reforma sanitária do Rio. Esse fato foi crucial para o desenvolvimento do instituto, que acabou se tornando referência em saúde pública. Contudo, como visto no primeiro capítulo, não foi sem problemas que Oswaldo Cruz pode impetrar sua reforma sanitária. Em 1904, o médico iria reformular o Código Sanitário, instituindo a obrigatoriedade da vacinação contra a varíola, fato que encontrou resistência e foi duramente criticado na imprensa, demonstrando o lado autoritário do projeto. Quando os chamados batalhões de vacinação foram destacados no mesmo ano, ao lado do reforço policial, para adentrar as casas e cumprir a obrigatoriedade da vacina, a população mais pobre – que já vinha sofrendo com as demolições e despejos do “bota-abaixo” da reurbanização de Pereira Passos – se revoltou. Iniciando espontaneamente nas habitações populares do centro da cidade, a Revolta da Vacina, como ficou conhecida, acabou tomando proporções enormes, transformando a cidade em um verdadeiro campo de batalha. Por fim, o motim só foi contido a muito custo, com as forças combinadas da Guarda Nacional, dos bombeiros, Exército e Marinha, depois de mais de uma semana de combate. Seguida de uma dura repressão554, a Revolta implicou também no fim da obrigatoriedade da vacina. No ano seguinte, o instituto seria reformulado, ganhando novas construções arquitetônicas. A partir de 1906, ocorreriam ainda as primeiras expedições enviadas pelo instituto a outras regiões do país, com o intuito de

554 SEVCENKO, 1998, p. 24-26. 227 combater doenças. Oswaldo Cruz é enviado para inspecionar os portos do norte do país; Carlos Chagas realiza a primeira campanha contra a malária, em Itatinga (SP); Antonio Cardoso Fontes segue para São Luís (MA), para combater a febre amarela. Todos esses investimentos também não escapavam às críticas de setores da imprensa, da política e mesmo a parcela mais conservadora da Faculdade de Medicina do Rio, que viam como altos e desnecessários os custos de manutenção do local, ainda mais depois de sua reforma arquitetônica. Além disso, havia os que criticavam a tutela do Estado na fabricação de soros e vacinas555. Em 1907, contudo, os cientistas do instituto, representando o Brasil, seriam laureados com a medalha de ouro no XIV Congresso Internacional de Higiene e Demografia de Berlim, na Alemanha, trazendo prestígio para a instituição. Por esse período, o Instituto Manguinhos ganhava proeminência, tanto como centro de produção de imunobiológicos, como de pesquisa e ensino das áreas que a medicina tropical abarcava. Isso levou o instituto a, em 1908, ser rebatizado com o nome de Oswaldo Cruz e desvinculado da Diretoria Geral de Saúde Pública, para uma vinculação direta ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, ganhando maior autonomia.

3.3.3 O saneamento rural

Já a segunda fase do movimento sanitarista foi voltada para o saneamento das zonas rurais e o combate a doenças características dessas regiões, como a ancilostomose, a malária e a doença de Chagas, entre as décadas de 1910 e 1920. Ao ascender ao poder, em 1910, Hermes da Fonseca deixou claro seu objetivo de sanear e modernizar o país. A partir da descoberta dos sertões, do abandono e das doenças que tomavam conta do território, medidas foram tomadas no intuito de sanar os ambientes, curar os doentes e integrá-los à comunidade nacional. Esse movimento não pode ser separado também do contexto de recrudescimento dos movimentos nacionalistas durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), bem como das discussões sobre sanitarismo e higiene que ela gerou. De fato, constituindo-se num marco no número de mortes militares e também civis – aliás, inauguradas neste conflito, a partir de modernos equipamentos e

555 RODRIGUES, 2009, p. 52. 228 artifícios cujo alcance ultrapassava os alvos militares –, a guerra também gerou estatísticas impressionantes no que se refere ao número de mortos devido às péssimas condições sanitárias dos campos de batalha. A adoção da guerra de trincheiras, fazendo milhares de homens viverem sob cavas barricadas com sacos de areia, “como – e com – ratos e piolhos”556 , implicou na morte por doenças e também no contágio de indivíduos de diferentes nacionalidades, aos milhares. Ao seu término, grassava na Europa a epidemia de gripe espanhola, logo espalhada para outros países, e contabilizando um total de 30 milhões de vítimas de todos os continentes (inclusive no Brasil), entre março de 1918 e janeiro de 1919 557. A emergência da expansão das doenças fazia premente o incentivo às pesquisas e a tomada de medidas profiláticas. Desta maneira, o debate intelectual, sobretudo médico, se viu às voltas com a fundação de agrupamentos que possibilitassem um maior campo de ação às suas discussões e propostas. Nesse ínterim, o debate público foi tomado pelas questões relativas à higiene e ao sanitarismo. Diversas publicações levaram ao público o estado em que se encontravam as populações das regiões mais recônditas do país, fomentando debates e demandando medidas urgentes. Entre 1907 e 1909, os médicos Carlos Chagas558 e Belisário Penna559 foram enviados para Lassance (MG), no início das obras da estrada de ferro da Central do Brasil, que ligaria Pirapora, no estado, a

556 HOBSBAWN, 1991, p. 33. 557 HOCHMAN, 1998, p. 63. 558 Carlos Justiniano Ribeiro Chagas (1879-1934) estudou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, se formando em 1902. Foi aluno e amigo de Miguel Couto, de quem ganharia as noções da clínica moderna, e de Francisco Fajardo, com quem entrou em contato com as discussões da medicina tropical. Logo depois de formado, atuaria para o Instituto Manguinhos em diversas ocasiões, combatendo doenças infecto-contagiosas em diferentes partes do país. Foi o responsável pela primeira ação bem sucedida contra a malária no interior de São Paulo, em 1905, colocando em prática medidas preventivas que evitassem o contato do homem com o mosquito transmissor da doença. Atuou também no saneamento da Baixada Fluminense, em obras para a captação de água para a capital federal. Além disso, em uma expedição de combate à malária em Minas Gerais, em 1907, identificaria o protozoário causador da moléstia mais tarde rebatizada com seu nome. Informações retiradas de: e Acesso: 12.nov.2018. 559 Belisário Augusto de Oliveira Penna (1868-1939) formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia em 1890, retornando logo em seguida para Minas Gerais, sua terra natal, onde clinicou e atuou na política por alguns anos. Em 1904, passou a fazer parte do corpo médico da Diretoria Geral de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, colaborando com ações de combate a febre amarela, malária e outras doenças. Além disso, foi um dos maiores entusiastas do movimento eugênico no Brasil. Seu envolvimento com a política o levou a participar dos levantes tenentistas, na década de 1920, e da Ação Integralista Brasileira, a partir de 1932. Fontes: e Acesso: 20.nov.2018. 229

Belém (PA), para combaterem uma epidemia de malária. Atuando durante dois anos como médico na região, e contando com um pequeno laboratório, Carlos Chagas faria ali seus primeiros estudos sobre uma nova espécie de protozoário, rebatizando- o como Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz. Observando também o inseto hematófago transmissor do protozoário em seres humanos, o mosquito barbeiro (muito comum nos casebres de pau-a-pique do interior brasileiro), Chagas identificou um mal que causava, entre outros, anemia, febre e alterações cardíacas e/ou digestiva. Tratava-se da tripanossomíase americana ou doença de Chagas560, que chegava a ser fatal em alguns casos, especialmente em crianças. Através do apoio do aparato científico do instituto, o médico conseguiu descrever o ciclo completo da transmissão, importante descoberta ocorrida em solo e por um cientista brasileiro. Nesse sentido, vale ressaltar que casos como o da doença de Chagas são exemplares de como os cientistas brasileiros se valeram de modelos teóricos produzidos fora do país, como a medicina tropical europeia,

[...] não apenas no sentido de uma inserção ativa no movimento de produção e de afirmação destes esquemas, mas, sobretudo, no sentido de conferir-lhes significados e sentidos peculiares a partir de contextos específicos da ciência e da sociedade brasileiras.561

Assim sendo, os cientistas brasileiros ressignificaram e adequaram conceitos às particularidades de nosso território, em que pese a pouca estrutura e a incipiente pesquisa científica no país, dando também contribuições valiosas no âmbito mundial. Por sua vez, a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil levou o médico Arthur Neiva para o estado de São Paulo, com o intuito de aplicar medidas de contenção de um surto de malária, no mesmo período. Ainda em 1910, Oswaldo Cruz seria contratado para inspecionar as obras de construção de uma usina

560 Como discutiu Simone Petraglia Kropf, os enunciados de Carlos Chagas sobre a doença foram questionados alguns anos depois por diferentes pesquisadores, gerando embates, visões conflitantes sobre aspectos específicos da doença (como sua associação com distúrbios endócrinos) e pondo dúvidas acerca da vigência da moléstia em outras regiões fora dos sertões mineiros. Os estudos de Chagas seriam retomados por seus seguidores, Emmanuel Dias, diretor de um posto avançado de pesquisa do Instituto Oswaldo Cruz na cidade de Bambuí (MG), e Evandro Chagas, seu filho. Esse ciclo seria fechado por volta da década de 1950, trazendo o conhecimento atualmente aceito sobre a doença, que ainda hoje é considerada importante questão de saúde, pelo menos da América Latina. Contudo, o primeiro Programa de Controle Nacional da Doença de Chagas só seria levado a cabo em 1980 (2009, p. 16). 561 KROPF, ibid., p. 41. 230 hidroelétrica em Ribeirão de Lages (RJ). No mesmo ano, Cruz e Belisário Penna viajaram para a Amazônia, para supervisionar a retomada dos trabalhos de construção da Ferrovia Madeira-Mamoré. Carlos Chagas também iria para a região amazônica, entre 1912 e 1913, juntamente com João Pedroso e Pacheco Leão, com o intuito de avaliar as condições sanitárias dos principais centros de produção da borracha. Vale ressaltar que muitas dessas comissões eram solicitadas por empresas privadas ou instituições públicas que visavam o controle de doenças entre trabalhadores, e a exploração racional dos recursos naturais de uma região. Nesse sentido, visava-se o recolhimento de informações para a elaboração de um plano que protegesse os trabalhadores dos riscos representados pela doença, mas ao mesmo tempo salvaguardasse os interesses econômicos na região. Como aponta Francisco Foot Hardman sobre a construção da Madeira-Mamoré, tratava-se, sobretudo, de administrar a vigência de mortes e doenças em níveis suportáveis para o seringueiro, otimizando a utilização da mão-de-obra disponível 562. A imagem que dominava os debates então era a de um país doente, cujo progresso se inviabilizava por conta das endemias rurais que paralisavam os trabalhadores e prejudicavam a produção. Por outro lado, o recrudescimento das discussões sobre a nacionalidade fez emergir a necessidade de se incorporar os sertões e suas populações à marcha do progresso nacional, evidenciando a gama de múltiplos interesses que associaram ciência, saúde pública e nação nesse período no país. Em 1912, uma expedição médico-científica do Instituto Oswaldo Cruz, chefiada por Belisário Penna e Arthur Neiva, percorreu o norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Pará e Goiás, regiões assoladas por grandes secas. A comissão havia sido formada a pedido da Inspetoria de Obras contra a Seca, com o intuito de realizar estudos para a futura construção de açudes, solução encontrada pelo governo federal para conter as intempéries. De fato, as viagens empreendidas nesse ano ficaram marcadas por serem expedições cujo intuito inicial já compreendia a investigação científica, e não apenas a ação sanitária pontual563. O relatório, publicado em 1916, apresentou um duro diagnóstico de uma parcela do país abandonada, devastada pela fome e por doenças, que carecia com

562 HARDMAN, 1988, p. 139. 563 RODRIGUES, 2009, p. 54. 231 urgência de cuidados. Aprofundando as informações até então conhecidas sobre a flora, fauna, e clima das regiões, o documentotrazia um quadro completo das atividades econômicas, condições de vida e doenças que afetavam as populações locais. Além disso, propunha sugestões às autoridades, como as medidas profiláticas com o intuito de evitar a expansão da malária através dos locais onde havia disponibilidade de água, ambiente para a proliferação do vetor. Além do relatório, Belisário Penna e Arthur Neiva ainda publicariam uma série de artigos sobre o tema na imprensa carioca, entre 1916 e 1917, fomentando o debate. Os artigos seriam posteriormente reunidos em livro, sob o título de O saneamento do Brasil. Do mesmo modo, a comissão capitaneada por Carlos Chagas a serviço da Superintendência da Defesa da Borracha, também em 1912, produziu imagens e revelou dados relevantes acerca das condições de trabalho e de vida na Amazônia, influenciando os discursos e ações políticas de médicos, intelectuais de diversas áreas e também autoridades públicas, que passaram a ver a prioridade no enfrentamento da questão. Nesse sentido, a Liga Pró-Saneamento foi fundada em fevereiro de 1918, com o intuito de “alertar as elites políticas e intelectuais para a precariedade das condições sanitárias e obter apoio para uma ação pública efetiva de saneamento no interior do país ou, como ficou consagrado, para o saneamento dos sertões. Esses movimentos sanitaristas estavam em consonância com as discussões nacionalistas de modo geral. Também eram caudatários das observações euclidianas sobre o sertão, partidários da ideia de que “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, presente em descrições como as do relatório de Belisário Penna e Arthur Neiva sobre as populações da Bahia e Pernambuco, resistentes e robustas mesmo em regiões inóspitas564. Por fim, as ideias sobre os “sertões” não os localizavam apenas no Norte ou Nordeste; como aponta Gilberto Hochman, em 1917 o médico Souza Araújo apresentaria para a Sociedade Médica do Paraná um relatório de sua viagem ao interior paranaense, a serviço do governo estadual. Suas observações se aproximariam muito das conclusões de Arthur Neiva e Belisário Penna, marcando a predominância das epidemias, como a malária, e relacionando a ausência do poder público com o aparecimento da doença na região. Para além de fatores como as

564 HOCHMAN, 1998, p. 67. 232 condições precárias de vida, a ignorância ou os fatores ambientais, a culpa recaía principalmente sobre a “criminosa indiferença” das três esferas de poder político565. Em última instância, esse quadro de abandono também demonstrava a ausência de qualquer sentimento de pertença nacional, à semelhança das imagens criadas pelas expedições impetradas por Candido Rondon no mesmo período. De fato, proclamava-se a necessidade de maior presença do Estado nesses locais, em um contexto de discussões sobre a identidade nacional, sobre a (re) descoberta do país, bem como de questionamentos políticos sobre o papel a ser exercido pelas elites. Por outro lado, as reformas sanitárias que adviriam na década de 1920 ocorreram por forças que Luiz Antonio de Castro Santos denomina de “modernização conservadora”. Longe de ser fruto de lutas democráticas na busca por cidadania, como nos dias atuais, as reformas sanitárias foram impetradas por determinadas elites, sem a efetiva participação popular. São típicas “[...] de conquistas ‘pelo alto’, em que estão em jogo percepções e valores de intelectuais, camadas médias e altas e a participação direta do Estado nacional”566. Muitas vezes essas reformas eram impostas à revelia dos interesses da população, causando críticas e até mesmo rebeliões populares, provocadas pela imposição à força e pela falta de maiores esclarecimentos, como é o caso da Revolta da Vacina567. De fato, mesmo em São Paulo, em que a institucionalização foi anterior a 1920, possibilitando investimentos e melhorias efetivas na saúde pública, as reformas só ocorreram por conta da relativa coesão política interna. Isso ocorreu em detrimento de estados como a Bahia, por exemplo, em que havia uma fragmentação. Vale relembrar, ainda, que essa institucionalização surgiu sobretudo em prol das necessidades econômicas das elites locais, como o controle de higiene sobre as populações imigrantes europeias568. De todo modo, esses debates representavam uma retomada da visão de Euclides da Cunha sobre os sertões, indicando que o problema do Brasil estava no descaso do poder público e fazendo emergir uma visão menos negativa do sertanejo, que iria marcar de políticas públicas à produção cultural brasileira nas

565 HOCHMAN, ibid., p. 69-70. 566 SANTOS, Luiz, 2004, p. 251. 567 SEVCENKO, 1998, p. 22-26. 568 SANTOS, Luiz, op. cit., p. 261 et. seq. 233 décadas seguintes. De fato, desde o primeiro artigo para o jornal O Estado de S. Paulo, em 1914, queixando-se do empobrecimento do solo causado pelas queimadas, Monteiro Lobato delineou uma figura depreciativa do habitante do interior. Causando inesperada repercussão para o autor, o artigo geraria a produção de Urupês, uma conjunção de temas sobre a zona rural do Vale do Paraíba e seus habitantes, publicado em 1918. Centralizada na figura do Jeca Tatu, a obra discute as características do caipira paulista, que seria naturalmente preguiçoso, desprovido de força de vontade, apático, eternamente acocorado em um canto – em suma, um símbolo do atraso da nação, inadaptável ao progresso. Contudo, ao entrar em contato com a publicação das teses de Arthur Neiva e Belisário Penna, o escritor reveria sua formulação do Jeca, redimindo-o de uma posição fatalista. A partir desse momento, o sertanejo não seria naturalmente daquele modo, mas estava assim por ser doente; desta forma, através da observância dos preceitos da medicina, poderia ser retirado de sua condição. Em 1924, estaria consolidada essa mudança: Monteiro Lobato se uniria ao farmacêutico Cândido Fontoura, criando um personagem infantil que serviu de garoto-propaganda do Biotônico Fontoura. Publicado tanto em almanaques de farmácia, quanto nas páginas da Revista do Brasil, o personagem Jeca Tatuzinho exortava as crianças a observarem os preceitos de higiene, chamando, claro, a atenção para o tônico. E assim, a figura do sertanejo simples do interior, do trabalhador do campo, forte, mas alquebrado pelas doenças, acaba por se tornar um dos principais representantes da identidade nacional no período. Para Carlos Chagas, por exemplo, as atenções das políticas públicas de saúde deveriam se voltar para essa figura, exemplo de “raça forte” dobrado pelas péssimas condições em que vivia. Esse seria o personagem principal da civilização nos trópicos. Em seus discursos, defendia mesmo a substituição do indígena nativo da região amazônica, por exemplo, pelo migrante cearense, força para os trabalhos de extração da borracha e desenvolvimento da região, desde que melhoradas as condições de salubridade do local569. Nesse sentido, a novidade residia na transferência da culpa, que não era mais considerado um problema causado por fatores naturais, raciais ou pelo próprio

569 LIMA; BOTELHO, 2013. 234 indivíduo, mas sim uma responsabilidade do governo federal. Descartava-se, assim, tanto uma visão ufanista do Brasil, quanto a pessimista, oriunda dos determinismos climáticos ou raciais que condenavam o país ao atraso. Assim sendo,

Diferentemente do período anterior, a reforma sanitária se apresentava mais como um caminho para a construção da nação, no bojo de uma corrente nacionalista que recusava o determinismo racial e climático como explicação do Brasil e dos brasileiros.570

No mesmo sentido segue a reflexão de Marília Mezzomo Rodrigues, para quem “as teorias raciais e as explicações que, desde o século 19, localizavam na miscigenação a origem das carências nacionais não chegaram a ser solapadas, mas não constituíram a explicação científica por excelência para o país.”571. Dava-se preferência, então, para a ideia de tornar o país são, que possibilitava a regeneração do ambiente e dos indivíduos, ao invés de sua condenação imediata, explicação em todo caso amoldável ao caráter mestiço da população brasileira como um todo. Deste modo, o movimento sanitarista, em conjunto com as propostas educacionais, representou uma possibilidade de intervenção e transformação efetivas da realidade brasileira. E é nesse sentido que a produção de Gastão Cruls caminha, como se verá abaixo.

3.4 A EXPERIÊNCIA DE GASTÃO CRULS NA COMISSÃO DE SANEAMENTO RURAL

3.4.1 O sertão ficcional de Cruls

O conto “Ao embalo da rede” foi publicado no livro homônimo, de 1923. Inicia- se com a epígrafe “L’esprit de lhomme est capable de tout.”, de Guy de Maupassant (“O espírito do homem é capaz de tudo”, tradução livre), e é dedicado a Gilberto Amado, escritor do círculo literário de que Cruls fazia parte. Como outros contos do autor, “Ao embalo da rede” também apresenta um narrador em primeira pessoa, construído de forma a reforçar a verossimilhança do relato, por mais estranho que

570 HOCHMAN, 1998, p. 61. 571 RODRIGUES, 2009, p. 50-51. 235 pareça. Segundo Angela das Neves, esse recurso era muito usado por Maupassant572. Ao mesmo tempo, como já indicado na epígrafe, uma das características do autor francês recuperadas por Cruls é a capacidade do indivíduo de ser seduzido por qualquer coisa. As causas do fantástico estão menos fundadas no sonho ou em algum elemento sobrenatural, do que em causas psíquicas inerentes à natureza humana. Nesse sentido,

Tanto Guy de Maupassant quanto Gastão Cruls misturam o fantástico com a sobriedade do cotidiano. O elemento insólito é trabalhado sob um ponto de visto racional e objetivo, que julga “o espírito humano capaz de tudo”. O interesse de ambos está em enredar o leitor pelo mistério do assunto e da psicologia, no que contribui a narração em primeira pessoa. Também a construção do conto em “gavetas”, isto é, com vários níveis narrativos, e o final surpreendente e simples coincidem nos dois contos [referência a “Ao embalo da rede”, e “La chevelure”, do autor francês] e enriquecem o efeito fantástico.573

Esse entendimento do fantástico também vai de encontro com o proposto por Tzvetan Todorov, como já discutido no segundo capítulo. Por sua vez, essa tendência para assuntos psicológicos assumiria cada vez mais predominância na produção posterior de Cruls, se transformando em tema de romances como Elza e Helena (1927) e A criação e o criador (1928). O conto narra a história de Otavio de Barros, estudante do Rio que vai para o Norte574, para trabalhar na construção de uma estrada de ferro. Retorna da região disposto a organizar seu casamento, marcado já há muito tempo; apesar disso, alguns dias depois Otavio vê o noivado ser desmanchado por carta pelo pai da noiva, sem grandes explicações. Através de uma conversa com um narrador não identificado, o personagem principal vai conjeturando algumas hipóteses para o fim. Parecia ao jovem que o que causara o rompimento fora um incidente ocorrido alguns dias antes, durante o velório da mãe de Elisa. Achando-se o casal um momento totalmente a sós, o jovem fora acometido por uma excitação incomum, que o faz se exceder e que “[...] o levaria sem dúvida às maiores loucuras, se a noiva, logo nas primeiras carícias, o não houvesse repelido com um gesto de horror.”575. A

572 NEVES, Angela, 2012, p. 319. 573 Ibid., p. 320. 574 Vale ressaltar que a designação “Norte” era usada também em referência ao Nordeste. 575 CRULS, 1951, p. 218. 236 partir de então, a atitude de sua futura esposa Elisa havia mudado radicalmente, até o rompimento definitivo. Como revela para o narrador, Otavio não teve apenas um ataque momentâneo: vinha vivenciando, nos últimos tempos, experiências estranhas de visitas a necrotérios, ímpeto de assistir à exumação de cadáveres, uma espécie de fascinação pelos elementos relacionados à morte. E punha a culpa em sua estadia no Norte. Nesse período, Otavio travara conhecimento de um casal composto pelo Coronel Antenor Ribeiro, dono de terras já idoso, ciumento e violento, e a jovem D. Alzira, moça da cidade que não estava acostumada com a vida no campo, e vivia infeliz. Chama a atenção os comentários sobre costumes sociais do período, como a dificuldade de relacionamento entre indivíduos de classes sociais diferentes, e os casamentos por conveniência. Mesmo antes do rompimento, o relacionamento entre Otavio e Elisa fora sempre dificultado por conta da origem social do rapaz. Por sua vez, comentava-se que a diferença de idade entre D. Alzira e seu marido só podia ser explicada por um casamento de conveniências, visto que a moça “era de uma família muito pobre e o coronel, além de chefe político, diziam ter muitos bens”576. Do mesmo modo, a figura do dono de terras e chefe político local, típico das configurações do primeiro regime republicano do país, é descrita como ignorante e violenta, “que mal sabia falar” e por qualquer coisa enviava alguém para bater em seus desafetos. “Diziam mesmo que dois ou três cabras da sua confiança eram especialistas nos surrotes de cacete curto, que derreiam sem deixar marca.”577. O contraste com sua esposa fica visível, uma moça jovem, bonita e bem educada, que havia estudado nos melhores colégios, e vivera quase sempre na cidade. Sabendo da fama do coronel, Otavio preferia manter pouco contato com o casal. Assim mesmo, o jovem encontrava afinidades com a moça. Nas poucas vezes em que se encontraram, sempre em presença do coronel, em conversas “ao embalo de rêdes578 corridas no copiar”579, a moça lhe dava mostras sutis das decepções que lhe trouxera o casamento, e de sua vontade de retornar para a cidade grande.

576 CRULS, 1951, p. 219. 577 Ibid., p. 219-220. 578 A rede parece ser ter sido uma das paixões de Gastão Cruls, visto que uma das fotos suas mais encontradas nas fontes jornalísticas das décadas de 1940 e 1950 é aquela em que o autor está sentado em uma rede, lendo. Homero Senna também a menciona como um dos detalhes principais da casa do Alto do Boa Vista, alugada por Cruls para os fins de semana, onde a 237

Uma disputa política levara ao assassinato do coronel; avisado, Otavio correra então às pressas para sua fazenda, a fim de prestar condolências. Quando chegara, encontrara o corpo sendo velado na própria casa, em simples redes, como era costume local. Como fora encontrado após alguns dias de sua morte, estava em estado deplorável, que a urgência do velório não permitira maquiar.

Estava totalmente desfigurado e irreconhecível, com um grande rombo na testa, a cabeça tôda empastada de sangue e duas postas negras no lugar dos olhos. Depois, a despeito da secura do ar naquelas paragens, já havia sinais francos de decomposição e mal se podia respirar no quarto. 580

Otavio tentara partir, mas por força das circunstâncias, fora obrigado a passar a noite no local. À alta madrugada, o jovem acabara por ficar praticamente a sós com Alzira, tendo por companhia apenas uma irmã mais velha do coronel, que dormia a sono solto. Antes de estar triste pelo que perdera, a moça se mostrava revoltada pelo que não pudera viver ainda na vida. Consternado frente aos lamentos e confissões desiludidas da jovem, o protagonista tentara consolá-la. E assim,

Veio o aturdimento dos sentidos, uma onda de volúpia que me invadiu o corpo todo. Aquêle luar, o silêncio envolvente, os meus cinco meses de vida continente no sertão... A mêdo, de olhos voltados para a rêde onde a velha continuava dormindo, trouxe a mais a mim, para um primeiro beijo em que os seus lábios procuraram os meus com avidez. Era o delírio. [...] Ia beija la novamente, mas D. Alzira, não‐ sei se arrependida ou receosa, para fugir ao meu contato, encaminhou se com passo leve para a alcova ao lado. Sem‐ hesitar, acompanhei a e, ali mesmo, remordido pela luxúria, bem junto da rêde em que repousava o morto,‐ numa outra que devia ser dela... 581 ‐ Os jovens ainda assistiriam o nascer do sol ao embalo da rede, despercebidos pela irmã do coronel e indiferentes do corpo que repousava ao lado. Recordando os acontecimentos, Otavio se sente um monstro, comparando seu ato ao de um animal no cio. O conto termina por fim com uma assertiva assombrada de Otavio sobre sua atitude com a noiva: “ –Tu dirás que foi o perfume das flores... Eu tenho a certeza, porém, de que foram os primeiros sinais da decomposição...”582

entrevista ocorre; e em que fica pungente também seu interesse por objetos da cultura indígena de maneira geral, como tangas e cocares. 579 CRULS, 1951, p. 221. 580 Ibid., p. 222. 581 Ibid., p. 224. 582 Loc. cit. 238

Essa temática da volúpia também está presente em outro conto, “Noites brancas”, do livro Coivara. Mais uma vez, a narrativa é precedida por duas epígrafes: “O bien aimé nocturne et terrible, demeure! Par ton large baiser mon visage est mangé. Enivrons-nous encore du délire des heures au creux de ce torrent qui est le lit ravagé” (“Ó bem amado noturno e terrível, fica! Por teu largo beijo meu rosto é devorado. Embriaguemo-nos ainda do delírio de horas no vão desta torrente que é a cama destruída”, em tradução livre), de Maurice Magre; e “Non! non!... mon coeur est gangrené, et mês lèvres ont bu le poison qui tue les âmes...” (“Não! não!... meu coração está gangrenado, e meus lábios beberam o veneno que mata as almas...”), de Octave Mirbeau583. A narrativa apresenta Carlos de Azambuja, um jovem acometido de uma doença, que vai passar um tempo na fazenda do Coronel Jesus, um grande amigo de seu pai, com o intuito de se recuperar. Após quinze dias tranquilos, é surpreendido por um bilhete anônimo, que dizia: “Carlos – Se tu queres conhecer a volúpia dos meus beijos, deixa a tua porta aberta e, esta noite, quando todos dormirem, no mistério da treva e do silêncio, eu te virei proporcionar o mais lindo sonho de amor.”584. Entre curiosidade e medo, fica conjecturando quem seria a misteriosa admiradora. Havendo apenas três mulheres na casa, teria de ser ou a esposa ou as filhas de seu anfitrião. Entretanto, Carlos jamais desconfiaria da atitude delas, e demonstrava o maior respeito à família que tão gentilmente o acolhera. No entanto, o mistério envolvendo o bilhete acaba por perturbar a tranquilidade de seu viver bucólico. Nasce então no jovem uma vontade de desvendar o mistério, que lhe atiça a imaginação e o faz reparar as filhas do Coronel Jesus – Leonor, de quinze ou dezesseis anos, e Olga, com aproximadamente vinte – com outros olhos. A essa vontade se somava sua curiosidade de adolescente inexperiente. “Se bem que de tipos bastante diversos, Olga e Leonor eram extremamente interessantes, e Carlos dificilmente saberia dizer qual das duas mais lhe

583 Essa recorrência a autores franceses em Gastão Cruls foi abordada por Regina Salgado Campos (1993). Segundo a autora, Cruls não só lia autores franceses, como também foi traduzido e comentado na França. Através da Revue de l’Amérique Latine (1922-1932), foram apresentados ao público os contos “Flor do tabuleiro”, em 1926; “A morte do saci” (1927); e “Biró”, em 1929. No mesmo ano, Manoel Gahisto publicaria um texto comentando os romances A Amazônia misteriosa, Elza e Helena e A criação e o criador. Em 1930, seria a vez de Jean Duriau publicar uma resenha sobre o diário de viagem A Amazônia que eu vi. Por fim, no ano seguinte este livro seria tema de uma resenha de Manoel Gahisto (ibid., p. 27). 584 CRULS, 1951, p. 59. 239 agradaria.”585. Se antes nunca lhe passara pela cabeça quebrar alguma barreira moral, o impacto causado pelo bilhete o deixara aturdido. Atormentado então pelos desejos, Carlos reflete sobre os pós e contras da proposta, sofrendo por antecipação os problemas que ocorreriam se o fazendeiro descobrisse o ocorrido, ou o remorso que sentiria, caso aceitasse o convite. Contudo, ao fim do mesmo dia, as duas filhas do Coronel Jesus o chamam para um passeio mais longo. Entrando em contato com a natureza exuberante dos primeiros após a estiagem, o jovem é tomado de sensações novas, que o contato mais íntimo com um ambiente renovado e único lhe proporciona. À descrição rica em detalhes da natureza que renascia ao “beijo fecundante das primeiras chuvas”586, sobrepõem-se o sentimento de renovação interna que o jovem sentia ao observar a beleza natural.

Dir-se-ia que a mesma seiva que corria nas plantas, latejava agora nas suas artérias, embebendo-lhe os músculos de um sangue novo, que o tornava mais leve e mais liteiro, como se um par de asas invisíveis estivesse prestes a transportá-lo para um mundo irreal e tentador, onde a vida fôsse uma eterna festa dos sentidos. 587

Novamente, Carlos é tentado pelos desejos, que pareciam florescer junto com a natureza em festa. Deste modo, acaba deixando a porta aberta na mesma noite, e passa a receber então visitas constantes da misteriosa amante. Contudo, o jovem não consegue descobrir sua identidade, pois a visita sempreia embora antes do raiar do sol, e nunca falava, nem consentia que ele pronunciasse palavra alguma, talvez temendo que fossem descobertos. O jovem vive vários dias nesse delírio de amor e mistério, em que a excitação do momento era vivida junto à tormenta de não saber de quem se tratava. Depois das noites insones, só restava a sensação de um despertar de sonho, cujas imagens já iam se apagando no subconsciente. Até alguma resposta através de carta o jovem havia tentado, sem sucesso. Por fim, vem a noite em que Carlos não recebe a visita. Passa então em vigília, aguardando um atraso e refletindo sobre os motivos da falta. Cansado de esperar, acaba dormindo um pouco pela manhã, sendo logo em seguida despertado pela visita de seu anfitrião. O Coronel Jesus vinha para lhe

585 CRULS, 1951, p. 61. 586 Ibid., p. 65. 587 Ibid., p. 66. 240 contar um fato inédito. Fazia três anos que a fazenda também abrigava uma irmã mais nova de D. Clarice, Maria Clara, de uns trinta anos e poucos anos. Maria Clara era morfética588, um dos nomes pelos quais a hanseníase era conhecida no começo do século. Sem possibilidades de ser curada, e desejosa de isolamento, Maria Clara acabou por ficar hospedada na fazenda, com o acordo de que ninguém de fora da família saberia de sua existência. “Ela tinha ciência da contagiosidade do mal e não queria de forma alguma ser causa de maiores desgraças.”589. Sua presença na fazenda deveria ser guardada com segredo absoluto, motivo pelo qual Carlos sequer ouvira falar da existência de uma irmã mais nova de D. Clarice. A jovem tinha levado a vida como podia até aquele dia, quando fora encontrada morta; havia se suicidado. Só então o Coronel resolvera contar sobre ela, sem aparentar desconfiança de sua relação com seu hóspede. Vinha sugerir que Carlos voltasse à casa dos pais, pela tristeza que pairaria na casa, e que poderia ser prejudicial à sua recuperação. “Antes de tudo a tua saúde...”, ironicamente ponderaria o coronel, provavelmente sem supor de todo o desenlace. A narrativa acaba com as reflexões do jovem: “Uma hora mais tarde, de novo entre os

588 A morféia, um dos nomes pelos quais era denominada também a lepra, hoje chamada de hanseníase, é uma doença infecciosa causada pelo bacilo de Hansen. Uma das formas de contágio é através da convivência próxima e prolongada com o portador da doença, através de secreções do nariz ou pela saliva. Conhecida desde a Antiguidade, suas causas só foram identificadas em 1873, por Armauer Hansen, que lhe emprestou o nome. A incidência da doença nas Américas se deve à colonização europeia, pois não há evidências da doença entre os indígenas, ou provas contundentes de sua presença entre os escravos africanos, segundo Letícia Maria Eidt. Foi por muito tempo um estigma social, considerada um castigo divino, sobretudo devido a interpretações cristãs sobre a doença. Por volta do século XIX, acreditava-se que a doença também era transmissível pela pele, o que causou diferentes proibições aos doentes, relativas à sua passagem ou permanência nas cidades, contato e matrimônio com não- doentes, entre outros. Perpetuando uma prática antiga, até o início do século XX ainda existiam no Brasil espaços de confinamento de doentes, os leprosários ou lazaretos, onde os indivíduos deveriam ser isolados do restante da população. Como aponta a autora, as mudanças mais significativas com relação à profilaxia e cuidados para evitar o contágio se dariam apenas nas primeiras décadas do século XX, impulsionadas pelo movimento sanitarista. Cf.: EIDT, Leticia Maria. Breve história da hanseníase: sua expansão do mundo para as Américas, o Brasil e o Rio Grande do Sul e sua trajetória na saúde pública brasileira. Saúde e sociedade, São Paulo, vol. 13, n. 2, maio/agosto. 2004. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902004000200008> Acesso: 30.dez.2017. 589 CRULS, 1951, p. 70. 241 renques dos saboeiros em flor, Carlos sentia pela primeira vez na boca o travo daqueles beijos, que se muito o fizeram gozar, mais ainda o fariam sofrer.” 590

3.4.2 Modernidade e decadência

Os dois contos ainda guardam semelhanças com outra história do período, o conto “O bebé (sic.) de tarltatana rosa”, de João do Rio, publicado em Dentro da noite (1910). A narrativa aborda uma história de máscaras ocorrida no carnaval, pois, “toda a gente tem a sua historia de carnaval, deliciosa ou macabra, algida ou cheia de luxurias atrozes. Um carnaval sem aventuras não é carnaval...”591. É assim que o narrador, Heitor, inicia a contar a seus amigos uma história passada havia pouco. Logo vai se justificando: “não ha quem não saia no carnaval disposto ao Excesso, disposto aos transportes da carne e ás maiores extravagancias. O desejo, quasi doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxuria [...]”592. No primeiro dia de carnaval, o narrador estava com alguns amigos a percorrer as ruas, atrás dos “maxixes mais ordinarios”593, quando se lembra do baile público do Recreio. O lugar era frequentado por diferentes tipos sociais, e por isso mesmo, para os convivas que ouviam a história, considerado perigoso. Contudo, como iam em grupo, não acharam problema; ainda por cima, as mulheres estavam fantasiadas. E assim, o grupo ainda conseguiria realizar seu maior desejo então: “acanalhar-se, enlamear-se bem”594. Como esperavam, o baile era “uma desolação”, cheio de tipos estranhos e de figuras das mais variadas. Logo, um “bebé de tarlatana rosa” se aproximaria do narrador, roçando-o. A pessoa distinguível por baixo da fantasia agrada ao narrador, que não tem dúvidas e passa-lhe um beliscão. Contudo, consternado por abandonar o grupo com “cinco ou seis damas elegantes”595 por uma frequentadora dos bailes do Recreio, o protagonista logo desiste da ideia.

590 CRULS, 1951, p. 71. Segundo Júlio França (2013), o conto ainda apresenta muitas semelhanças com as histórias de vampiro: os temas da femme fatale, as relações sexuais com uma amante misteriosa, a posterior ligação entre sexo e morte. 591 RIO, João do. O bébé de tarlatana rosa. Rio de Janeiro: Editora Brasileira Lux, 1925. Disponível em: . Acesso: 24.nov.2017. p. 27. 592 Ibid., p. 28-29. 593 Ibid., p. 29. 594 Ibid., p. 30. 595 Ibid., p. 32. 242

No dia seguinte, os dois acabam se encontrando novamente. O narrador ganha só um beliscão da figura, que logo se mistura à multidão. Sua imaginação fora atiçada; contudo, só iria se encontrar novamente com o “bebê” na terça de carnaval, quando já havia se desligado do grupo e caído “no mar da depravação, só com uma roupa leve por cima da pelle e todos os máos instinctos fustigados”596, ritmo que parecia contagiar toda a cidade, num período em que “a virgindade é dubia e todos nós a achamos inutil, a honra uma caceteação, o bom senso uma fadiga”597. Figura polêmica de seu tempo, João do Rio buscou nos tipos anônimos das ruas, na boemia e na “vida vertiginosa” das cidades o material para sua produção literária. Criticado tanto pela utilização da linguagem jornalística na produção literária, quanto por seus excessos como figura pública, com já visto no primeiro capítulo, João do Rio ligou radicalmente sua escrito ao processo de modernização, problematizando as transformações urbanas pelas quais o Rio de Janeiro passava à época, como já discutido no primeiro capítulo. Frequentando tanto os salões das elites cariocas, como os morros com suas serestas, o autor apreendeu uma gama variada de tipos e situações urbanas, ficcionalizando trabalhadores do porto, mulheres de rua, presidiários, ébrios e outros. Nesse sentido, a narrativa de Heitor, intercalada por comentários de seus amigos, deixa de lado a moralidade da época para adentrar num dos costumes mais típicos da cidade: o carnaval. Marcado pelos excessos, é (ou era) no carnaval que a desobediência é regra, e que as barreiras de classe são deixadas temporariamente de lado. Nesse dia, contudo, o narrador já havia tentado aqui e ali, roçando “áquella gente em geral pouco limpa”598 sem nada ter conseguido até a madrugada. Caminhando pelo Largo do Rocio, Heitor reencontraria o bebê de tarlatana rosa, não hesitando em logo abraçá-lo. Não trocaram uma palavra, mas os olhos da moça indicavam o desejo compartilhado. Encontrando uma penumbra em um canto de rua, os dois se atracam ali mesmo, pois a moça não queria ir para sua casa, e logo o carnaval acabaria, trazendo a vigilância dos guardas na rua.

596 RIO, 1925, p. 33. 597 Loc. cit. 598 Ibid., p. 35. 243

Entre beijos, o narrador sente então o incômodo do nariz postiço da fantasia, “um nariz com cheiro a resina, um nariz que fazia mal”599 . Apesar das insistências, a moça não queria tirar a peça, alegando que lhe custara muito colocar. Cada vez mais incomodado, Heitor por fim aproxima sua mão e arranca o papelão:

Presa dos meus lábios, com dous olhos que a colera e o pavor pareciam fundir, eu tinha uma cabeça estranha, uma cabeça sem nariz, com dous buracos sangrentos atulhados de algodão, uma cabeça que era allucinadamente – uma caveira com carne...600

Aturdido de pavor e nojo, o narrador solta a moça, que pede desculpas, explicando-se. Apenas no carnaval ela poderia aproveitar alguma carícia, assim disfarçada. Heitor fica possesso, e já ia para bater no “bebê”, quando o apito soa, indicando um guarda próximo. O jovem foge por fim, chegando em casa com o nariz postiço ainda nas mãos. A narrativa deixa todos os seus interlocutores chocados e sem palavra, fato que só é interrompido pelo Barão Belfort, que clama por refrigerantes para um empregado, finalizando assim o conto: “Uma aventura meus amigos, uma bella aventura. Quem não tem do carnaval a sua aventura? Esta é pelo menos empolgante.” 601 Abordando os temas do indivíduo que vivencia diferentes sensações no ritmo da grande metrópole, João do Rio traz implícita em sua obra as aventuras e desejos, ameaças e perigos das cidades e suas multidões. Não se trata, para Marcos Guedes Veneu, de uma ode ilimitada ao progresso, mas antes das contradições inerentes ao processo de modernização, associada pela estética decadente, a qual João do Rio se filia, com o aumento da criminalidade, com a impunidade e doenças, sobretudo nevroses.

O ideal do indivíduo moderno, seja em sua formulação iluminista, seja na modalidade romântica, parece estar sob constante pressão: ele é ameaçado pelo triunfo do irracional, de um lado, e pelo “esvaziamento” da subjetividade, de outro. Em primeiro lugar, o progresso ambivalente que engendra a metrópole moderna não traz consigo o esperado “século das luzes”, mas uma metamorfose ctônica e serpenteante, liberadora do desejo e da irracionalidade. 602

599 RIO, 1925, p. 39. 600 Ibid., p. 40. 601 Ibid., p. 42. 602 VENEU, 1990, p. 234. 244

A liberdade aparece então como uma espécie de armadilha, que acaba trazendo desilusão e vício. Essa denominação era utilizada, segundo Veneu, para indicar tudo o que não era considerado norma (desde o homossexualismo, até o ópio ou o sadismo), em que sujeito “sai perdedor, crendo-se livre”603. A civilização, deste modo, representa não só a vida vertiginosa e cheia de opções da metrópole, mas a decadência. Observando a partir da perspectiva do medo presente nesse tipo de narrativa, Júlio França também aponta para as similaridades entre os contos de João do Rio e Gastão Cruls. Para este autor, o espaço se configura como um elemento central do que chama de “literatura do medo”, isto é, os diferentes tipos de narrativa em que os protagonistas – e também seus leitores – passam por situações capazes de gerar sentimentos como medo, estranhamento e aversão. E esse espaço não pode ser dissociado de sua temporalidade histórica: “as percepções que os indivíduos têm dos lugares, entretanto, não são apenas idiossincráticas, elas respondem a determinadas condições culturais.” 604 Nesse sentido, França indica a confluência de uma produção literária do medo nas tradições gótica e decadentista do século XIX, que por sua vez, teriam influenciado a produção ficcional brasileira. Apesar de suas especificidades, essas duas tradições literárias apresentam em comum o desencanto com a modernidade, a recusa da estética do belo e a desconfiança em relação aos discursos da razão (iluminista, no caso da literatura gótica, e positivista, no caso da decadentista); características próprias de um mundo em transformações constantes, e suas incertezas. Assim sendo, salta aos olhos o gosto pelas patologias e por anormalidades psicológicas, segundo França, e ainda as perversões e perversidades associadas ao sexo, que “infestam as narrativas gótica e decadentista” 605. Nesse sentido, o ato sexual é associado nas narrativas ao perfil mais próximo da “natureza selvagem” do ser humano. A cessão a esse impulso, ou pelo menos aquele que foge das condutas consideradas morais na época, acaba por condenar os personagens, em uma espécie de castigo, levando-os à degradação moral, à doença, à loucura ou à morte.

603 Ibid., p. 236. 604 FRANÇA, 2013, s. p. 605 Ibid. 245

Em Gastão Cruls, o corpo humano, primeiro e último bastião de defesa contra os riscos externos, é constantemente ameaçado ao retorno de sua natureza selvagem e indomesticável. O sexo é a potência primordial, capaz de nos arremessar de volta ao nosso estado natural por excelência: a barbárie, o caos. E o paradoxo é que esse mal será capaz de nos dar prazer. 606

A decadência da civilização, a predominância de temas mórbidos, com descrições que recusam o belo em favor de sentimentos adversos, como a repulsa, são marcas tanto desses contos de Cruls mencionados, como os de João do Rio. Nesse sentido, os textos aqui tratados também estão em diálogo com as contradições e ambiguidades da experiência moderna, de que fala Marshall Berman607. Movimento de diversas facetas e sentidos possíveis, contraditório, em que convivem sensações díspares como euforia, ironia e terror, a modernidade foi marcada por variáveis e reformulações que a transformaram e a ressignificaram ao longo do tempo. Abertas pelas possibilidades de construção e reconstrução do novo, essas sensações correm paralelo à impressão de fluidez, vulnerabilidade e ameaça de destruição constante, próprias das rápidas mudanças. Delimitando a diferença fundamental entre os sentidos da modernidade encontrados nos séculos XIX e XX, Berman considera que a modernidade oitocentista refletiu as contradições do que é ser moderno em visões complexas, que por vezes comportariam em seu interior dicotomias: uma visão nostálgica do passado, a negação da modernidade, uma euforia com relação a ela, entre outros. Termos que conviveriam e fariam parte de um mesmo universo. Já sua correspondente do século XX teria suplantado essa visão contraditória por visões estáticas e antagônicas que oscilam entre a indiferença ou o entusiasmo acrítico. Ao analisar os contos, parecem-me estar mais próximos (até temporalmente) de um sentido de modernidade do século XIX do que do XX. Os dois personagens principais de Cruls, Otavio (“Ao embalo da rede”) e Carlos (“Noites brancas”) vêem suas atitudes, crenças e percepções alterados por elementos externos que lhes impõem uma nova dinâmica, sentida de maneira contraditória. O mesmo ocorre a Heitor, que vive em poucos dias a euforia e o desejo das festas e encontros da metrópole, para logo em seguida se dar conta, horrorizado, dos perigos que essa mesma metrópole apresenta.

606 FRANÇA, ibid. 607 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar: a aventura da modernidade; trad. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Cia das Letras, 1986. 246

Deste modo, suas ações ambíguas, sua possível amoralidade, suas dúvidas, medos e desejos, podem ficar inteligíveis à luz da fluidez e inconstância própria da modernidade:

Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de antigüidade e veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que é sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profanado [...]. 608

Nesse sentido, compreendem-se as dúvidas e desejos de Carlos frente ao bilhete encontrado, seus dilemas morais com relação à lealdade a família que o acolheu. Do mesmo modo, as atitudes incomuns de Otavio, que o fazem ter impulsos sexuais perto de cadáveres, agindo quase sem autocontrole, são entendidas à luz de uma constante desconstrução de crenças, opiniões e preconceitos. Uma transformação de relações e valores própria de um mundo em que o sagrado é profanado. Berman, seguindo Marx, acredita que o capitalismo minou a experiência do sagrado tal como o mundo antigo a conheceu, dessacralizando vários aspectos da vida:

De vários modos, Marx sabe que isso é assustador: homens e mulheres modernos podem muito bem ser levados ao nada, carentes de qualquer sentimento de respeito que os detenha; livres de medos e temores, estão livres para atropelar qualquer um em seu caminho, se os interesses imediatos assim o determinarem.609

Contraditoriamente, esse mesmo fator possibilita o despertar da condição de igualdade espiritual, abrindo caminho para as revoluções sociais. Característica da modernidade, essas novas possibilidades apresentam diversas facetas, entre a possibilidade de transformação e as instabilidades da mudança constante. Raymond Williams reforça essa relação entre capitalismo e a ideia de modernidade, para quem as reações diversas surgidas nesse contexto devem ser entendidas à luz das transformações que o capitalismo gerou:

[...] ao longo de séculos, seus impulsos econômicos abstratos, suas prioridades fundamentais no campo das relações sociais, seus critérios de crescimento, lucro e prejuízo vêm alterando nosso campo e criando os tipos

608 MARX apud BERMAN, 1986, p. 19. 609 Ibid., p. 111. 247

de cidades que conhecemos. Em suas manifestações finais, sob a forma de imperialismo, ele alterou o mundo.610

Alteração no campo e criação de tipos de cidades específicas, problematizadas também na literatura de Gastão Cruls. Em diferença à ficção de João do Rio, concentrada no ambiente urbano da capital, os contos de Cruls apresentados descrevem cenas da zona rural: o ambiente aparentemente bucólico de uma fazenda, em “Noites brancas”, e a simplicidade e austeridade dos sertões nordestinos, em “Ao embalo da rede”. Ou melhor, o contraste entre esses dois universos, visto que as duas narrativas são estabelecidas entre o contato entre um indivíduo urbano e o mundo rural – uma dicotomia representada por termos como “civilização versus barbárie” e “litoral versus sertão”, tornada clássica no pensamento brasileiro da virada do século XIX para o XX 611.

3.4.3 Visões do rural e do urbano

Nos dois exemplos, são personagens da urbe desenvolvida (geralmente da capital federal) que vão passar um tempo no campo, trazendo suas visões de mundo e entrando em contato com outro meio, bem diverso do seu. No caso de Otavio, sua experiência no Norte é marcada com impressões sobre as adversidades da terra, suas formas peculiares de desenvolvimento político e social, que permeiam todo o conto. A diferença entre o casal com quem trava relações também deixa claro esse abismo que entre o mundo rural e o urbano. De um lado, Antenor Ribeiro, um típico coronel da Primeira República, “tipo de sexagenário ainda robusto, mas ignorantão e violento, que mal sabia falar e, por qualquer coisa, mandava surrar os desafetos ou aplicar-lhes castigos ainda mais inflamantes” 612. De outro, sua jovem esposa Alzira, que contrastava com o marido não só pela idade e beleza, mas por ter uma educação fina de quem vivera a vida inteira na cidade. A construção feita dos personagens de “Noites brancas” segue a mesma linha. Tanto o Coronel Jesus quanto as filhas eram cultos, “a despeito da vida rural”

610 WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade, na história e na literatura; trad. Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 404. 611 NAXARA, Márcia Regina Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica: em busca de um sentido explicativo para o Brasil no século XIX. Brasília: Editora UNB, 2004. p. 278. 612 CRULS, 1951, p. 219. 248

613. Deste modo, a ideia contraditória de Cruls sobre a civilização, já comentada no segundo capítulo, também aparece no conto. Ao conjeturar sobre a responsável por ter lhe enviado o bilhete, Carlos reflete que só poderia ser a esposa ou uma das filhas do Coronel Jesus, visto que não havia mais mulheres na casa. No entanto, completa: “De fato, tirante D. Clarice, Olga e Leonor, em que mais se poderia pensar, se o resto do elemento feminino formava todo entre a criadagem, e era só composto de umas mulatinhas chucras e inteiramente boçais?”614. As empregadas, mestiças e consideradas de posição social inferior, não eram nem aventadas como possibilidade pelo protagonista, tanto por sua condição social, quanto pelo fato de que não poderiam (ou não saberiam?) nem ter escrito o bilhete, segundo o narrador. Nesse sentido, essa visão contraditória faz com que Cruls ao mesmo tempo questione os auspícios do progresso e da civilização, tanto em suas dúvidas com relação à ciência, quanto no que se refere ao ímpeto imperialista dos europeus; mas não impossibilita, contudo, em certos momentos uma visão preconceituosa da zona rural ou de indivíduos mestiços. Por sua vez, o contato dos personagens urbanos com o mundo rural em Cruls apresenta alguns sentidos possíveis. Ao longo da história, mesmo em comunidades historicamente variadas, imagens marcantes sobre essa diferença entre o campo e a cidade foram criadas. Segundo Williams,

O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples. À cidade associou-se a idéia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação.615

Contudo, como o autor aponta, há uma gama variada de tipos de “cidade” e de “campo”, e essas palavras podem tanto significar uma capital, centro religioso quanto pólo industrial quanto base militar, no caso da primeira; ou englobar práticas variadas, como as de caçadores, pastores ou empresários agroindustriais, no segundo caso. Além disso, no mundo moderno há uma gama variada de concentrações humanas entre campo e cidade, tais como o subúrbio, a favela, o complexo industrial.

613 CRULS, ibid., p. 62. 614 Ibid., p. 60. 615 WILLIAMS, 1990, p. 11. 249

Nesse sentido, deve-se atentar para as diferenças históricas específicas, que associadas às representações mais conhecidas sobre o campo e a cidade na literatura, as confirmam ou rejeitam, comportando diferentes estruturas de sentimento ao longo do tempo. “A vida do campo e da cidade é móvel e presente: move-se ao longo do tempo, através da história de uma família e de um povo; move- se em sentimentos e idéias, através de uma rede de relacionamentos e decisões.”616 A uma primeira leitura, o mundo rural aparece em Cruls como a construção bucólica e romântica mais conhecida de um espaço de tranquilidade e mesmo inocência; um verdadeiro refúgio das preocupações, problemas e doenças da vida vertiginosa das grandes cidades – ponto demonstrado quando a família de Carlos, em “Noites brancas”, o envia para uma fazenda, visando sua recuperação plena. É curiosa a inversão que faz com que o pai do jovem, aparentemente um profissional da área da saúde, veja no clima e na vida tranquila da zona rural as condições necessárias para a recuperação de seu filho – indicado nesse trecho, em que Carlos insiste em ir a uma pescaria.

– Pois vá por hoje à sua pescaria, mas não convém abusar. Olhe que eu quero que você saia daqui fazendo uma boa propaganda da fazenda, e possa convencer seu pai que o nosso clima ainda vale mais do que tôdas as drogas que êle receita. 617

No conto “G.C.P.A.”, a menção à tranquilidade da zona rural é feita através do enfermeiro Silvino, homem do interior mineiro que viera para a capital em busca de trabalho. Em dado momento, o protagonista pensa em abandonar tudo e retornar para a vida simples do meio rural, vontade que acaba não sendo concretizada. Nas horas mais críticas de sua doença, Silvino entra em devaneios sobre a labuta diária da roça, as belas paisagens, o sol claro e dourado da manhã, o calor do meio-dia, e outras imagens que completam o quadro de nostalgia618. Nesse sentido, o meio rural lhe vale como uma fuga simbólica de sua situação terrível na cidade. Contudo, é apenas parcial essa visão. Logo a narrativa de Cruls se encaminha para outro tipo de apresentação do mundo rural, personificado pelas reações que o contato com a natureza abundante provoca. Em um deles, essa presença em sua forma mais pura, digamos assim, tende a transformar o indivíduo.

616 Ibid., p. 19. 617 CRULS, 1951, p. 60. 618 Ibid., p. 36. 250

Otavio, personagem de “Ao embalo da rede”, deposita uma parte da culpa de seu estado à sua ida ao Norte; e em alguns trechos, especificamente, a elementos naturais, como o luar:

[...] nos quedamos extáticos, tocados pela magia do luar, esse fantástico luar do sertão, de que já deves ter ouvido falar, mas que é preciso conhecer de perto, para saber de que prodígios e transfigurações é capaz a natureza. [...] Veio o aturdimento dos sentidos, uma onda de volúpia que me invadiu o corpo todo. Aquele luar, o silêncio envolvente, os meus cinco meses de vida continente no sertão... 619

Do mesmo modo, Carlos passa por toda uma série de sentimentos e sensações físicas, que o fazem não apenas se sentir renovado, mas modificam sua conduta.

A medida que caminhava naquele ambiente de cenário mágico, atentando para a gama cromática dos verdes, respirando um ar pesado de perfumes sutis e capitosos, e ouvindo a grazinada dos pássaros, o estrídulo das cigarras e o sussurro dos riachos, Carlos sentia que pelo seu organismo também perpassava o mesmo sôpro ardente que animava a paisagem. 620

A mesma seiva que corria nas plantas parecia percorrer-lhe também o corpo, recordando seus desejos escondidos: “[...] do fundo do seu ser subia um louco desejo de amar, de distribuir carícias, de sentir de encontro ao seu as palpitações de outro peito, que ardesse na mesma chama de volúpia”621. Ao fim do mesmo dia, o personagem deixaria de lado todos os dilemas morais em que se via envolvido, para receber a misteriosa admiradora. O contato com a natureza em sua forma mais “pura”, representado nos contos pela vida rural, parece fazer emergir as paixões mais naturais ou “primitivas” dos indivíduos. Diferente da situação urbana do carnaval de João do Rio, há uma relação entre os processos naturais relacionados à fertilidade e utilização da terra, com os relacionamentos humanos: a fusão entre a imagística sexual, relacionada ao masculino, e a terra, relacionada ao feminino. Caracteriza-se assim a metáfora rural- sexual, que Williams localizou como constante na literatura inglesa sobre o campo

619 CRULS, 1951, p. 223-224. 620 Ibid., p. 66. 621 Loc. cit. 251 entre meados do século XIX e início do XX, delineada também em contraste com a feiúra, a morbidez fria do dinheiro e a frustração das convenções da cidade 622. Por outro lado, o ambiente rural também parece ser o local onde afloram os instintos mais duvidosos, do ponto de vista dos debates morais da época. Destarte, Otavio credita seu interesse necrófilo à sua estadia em um Norte agrário, onde a natureza exuberante domina e onde a lei e a política se impõem à base da força e da violência. Por sua vez, parece ser apenas por conta do contato com a beleza da natureza renovada, que Carlos se decide por abrir a porta para a amante. De maneira indireta, essa caracterização do rural ainda aparecia em “Flor do tabuleiro”, de Ao embalo da rede. A história mais uma vez se inicia com uma epígrafe, “Plains-moi, car jê n’eus rien à Donner à l’Amour, ni fleurs de mon Été, ni fruits de mon Automne, et La terre ou naquit mon destin sans couronne, n’a pas porte pour moi La rose ou l’épi lourd.”, de Henri de Régnier (“Tem pena de mim, pois nada tive a dar ao Amor, nem flores de meu verão, nem frutos de meu outono, e a terra onde nasceu meu destino sem coroa, não gerou para mim a rosa ou a espiga carregada.”, em tradução livre), com dedicação a Rogerio Coelho. Narrado por um médico, membro de uma comissão mista destinada pelo governo federal a explorar terras no Rio Grande do Norte que seriam destinadas para uma colônia de imigrantes alemães, a história também contém um “conto dentro de outro conto”. Passando por uma região árida, o Sr. Pádua, antigo proprietário de terras local e ajudante na comissão, comenta sobre a diferença entre os arbustos e plantas da região623, que parecem ser todas iguais para seus companheiros do sul. Apontando um cajueiro-bravo, ele recorda uma história de sua família, ocorrida havia muito tempo. Em suas antigas andanças, o local havia encontrado uma menina de vestido vermelho, descansando na sombra da árvore. Não devia ter mais de treze anos, e parecia perdida e com fome. Pádua descobrira depois que a menina havia fugido de sua casa na véspera, por conta dos maus tratos da madrasta.

622 WILLIAMS, 1999, p. 338-339. 623 A história faz menção ao “tabuleiro”, formação geológica encontrada entre o litoral do Rio de Janeiro até o Piauí, de altitude modesta e constituída por pequenos platôs, limitados por escarpas ou barreiras. Esse tipo de formação ocorre ao longo do litoral, chegando a se estender por até 60 km de largura, a partir da praia. A pobreza característica de seu solo argiloso não permite a formação de uma vegetação espessa, assemelhando-se muitas vezes à caatinga. 252

O homem resolvera então ajudar a menina. Descobrira depois que ela era Anunciata, filha de um ferreiro italiano, residente numa localidade próxima. Tentara devolver a jovem, mas o pai não sabia como resolver a história, visto que a menina já havia fugido outras vezes de casa por conta da madrasta. Acordam, então, que Pádua e sua esposa a adotariam, para ajudar nos serviços domésticos. A menina já vinha se transformando em uma bonita moça, “uma flor do tabuleiro”624 , que se destacava dos demais habitantes da região por sua feição. Por conta disso, a esposa de Pádua ficara preocupada, visto que o casal também tinha um filho em idade adolescente, Gabriel, de uns dezesseis anos. Exortando o marido, comentava: “Não sei... mas esta menina tem uns olhos de xexéu... Mais vale prevenir do que remediar.”625. Novamente, a referência é a uma experiência que o próprio Cruls passou em suas andanças pelo Nordeste. Entrando em acordo, o casal continuara com Anunciata, que cresce e se torna uma moça “bonita e boa, mas bonita de verdade, sem os rebiques e iludimentos dessas mundiças da cidade”626. Além disso, a jovem era atenciosa e grata com seus pais adotivos. Contudo, Gabriel logo caíra apaixonado por ela. Antevendo o perigo, o Sr. Pádua chamara o filho a um canto, pedindo que ele acabasse logo com aquilo, para que não acabasse tendo que tomar medidas drásticas, como a expulsão da jovem – a quem já queria como a uma filha. Apenas um mês depois, retornando de uma viagem, Pádua encontrara os dois conversando baixinho: “não tive mãos em mim. Fiquei como que alesado vendo aquela vergonheira dentro da minha casa e caí de relho em cima deles. Era para matar se minha mulher, com o furdunço, não tivesse acudido ainda a tempo.”627. Com a agressão, Anunciata fugira de casa. No dia seguinte, fora encontrada no mesmo tabuleiro de onde o Sr. Pádua a havia tirado; contudo, ela estava já com o corpo “[...] todo roxo, junto do cajueiro [...]. Ela tinha-se enforcado com uma corda de caruá.”628. Quando retornara para casa, o proprietário de terras ainda encontrara seu filho morto, suicidado com um tiro de rifle. A narrativa termina assim, com a triste constatação do narrador: “E nós atentamos tristemente para o arbusto pêco e de

624 CRULS, 1951, p. 156. 625 Ibid., p. 157. 626 Loc. cit. 627 Ibid., p. 158. 628 Loc. cit. 253 galhaça tortuosa, sob cujas ramas em desfolha fenecera a única flor do tabuleiro.” A relação entre uma presença citadina e exógena ao meio (Anunciata) e o personagem rural (Gabriel), e o contato corruptor gerado a partir desses dois elementos, também se faz presente no conto. Além disso, as alegorias se fazem por contraste: na aridez do solo (e dos costumes) do sertão surge uma “flor”, relacionada por suas características com a beleza, mas também com a fecundação – elemento que por sua natureza não pôde vingar e feneceu. Nesse sentido, o ambiente rural aparece como um espaço de transformação ou degeneração dos costumes. Contudo, as forças que concorrem para isso têm a ver com o lado ainda indomado do meio, o lado selvagem, que apresenta seus perigos e com cujo contato o indivíduo parece sempre sair perdendo. Não parecem necessariamente uma característica de seus habitantes ou do tipo de vida que levam em si, visto que no conto “Flor do tabuleiro”, quem acaba corrompido é Gabriel, o jovem dos sertões. Por outro lado, a calmaria característica da vida do interior não escapa às transformações impingidas pela modernidade. A vida tranquila nas fazendas também é alterada por esses indivíduos oriundos da cidade e que trazem outras normas, outros costumes, implicando em uma mudança do ordenamento social: Otavio e seus assaltos de volúpia, Carlos e a jovem morfética, que vem trazer o caos à vida calma da fazenda. Própria do processo de urbanização e de crescente industrialização por que passava o país no período, essa dicotomia aparece em Cruls como uma transição entre que abarca diversas visões, em uma produção variada. Em alguns momentos, o autor ainda transparece uma visão de fundo romântico, onde a natureza e o meio rural aparecem como um refúgio tranquilo, que proporciona paz de espírito e relações sociais verdadeiras, frente à ambição, aos vícios e à corrupção oriundas da civilização, e que tem na cidade seu lugar privilegiado. Contudo, percebem-se no autor outras estruturas de sentimento, em que o meio rural e a natureza aparecem como ambientes a serem reorganizados a partir dos auspícios da civilização. Como médico sanitarista e membro de uma comissão de saneamento rural, Gastão Cruls pode observar in loco os problemas que devastavam os sertões brasileiros: a seca, a fome, a quase inexistente infraestrutura, as doenças. Problemas já denunciados por outros sanitaristas e 254 mesmo por indivíduos de outras áreas (como engenheiros e educadores) interessados em desbravar e “civilizar” os sertões, como Rondon. Assim sendo, o ambiente rural, e sobretudo a natureza indomada – seja ela a selva amazônica, ou os sertões nordestinos – representam locais de perigo, de degenerescência e de decadência, na medida em que não podem ser controlados pela mão do homem. Se encontram em seu nível mais “selvagem”, levando o indivíduo, por sua vez, a um estado de selvageria próximo ao animal, como em “Ao embalo da rede”. Nesse sentido, em conformação com a discussão feita por Antonio Candido, a literatura decadentista serve ao autor na medida em que é o meio de expressão privilegiado de seu tempo para exprimir as patologias, as perversões sexuais, a decadência dos indivíduos. Antes de se filiar a alguma escola literária ou a algum movimento, Cruls parece ter sido caracterizado por um “insulamento” de que fala Austregésilo de Ataíde629. A meu ver, utilizou-se de diferentes correntes de produção literária, adequando-as a temática de sua produção, de acordo com as influências que recebia. Desta forma, pode-se afirmar que o elemento externo, representado aqui pelos medos e sentimentos contraditórios que o contato com o mundo rural causava, atuou como elemento que desempenhou um papel importante na constituição da estrutura, tornando-se interno 630. E é por esse viés que se observa nas obras de Gastão Cruls uma intenção civilizadora nos sertões, de necessidade de exploração, conhecimento e ordenação dessas regiões. Ao ambiente agreste, simples e “inculto” do meio rural, como aparece nos comentários do personagem citadino Carlos, de “Noites brancas”, percebe-se uma necessidade de fazer penetrar a educação, a salubridade, a ciência, enfim, as características que tornavam os ambientes urbanos “civilizados”. Uma fala de Raul, personagem de “A neurastenia do Professor Filomeno”, dá conta da situação em que se encontrava o exercício da medicina na zona rural, sem o apoio dos recursos técnicos e da estrutura encontrados na cidade.

Essa perspectiva de fazer medicina na roça, escanchado no lombo de um cavalo e a estipular honorários pelo número de léguas percorridas, nunca figurara entre os seus sonhos de estudante, e não fôsse a promessa do Dr. Filomeno, que lhe traçava um têrmo ao sacrifício, Raul, de ouvidos moucos

629 Apud NEVES, Angela, 2012, p. 303. 630 CANDIDO, 2006, p. 13. 255

aos rogos da parentela, ainda se teria deixado ficar pelo Rio, passando por mais algum tempo sôbre a bolsa precavida do velho. [...] Raul não se podia conformar com a prática dessa outra medicina, perra e rotineira, feita às apalpadelas e sem o recurso dos laboratórios. Perdido naqueles latifúndios, a lidar com uma clientela bronca e desconfiada, que não raro mal saberia dizer o que sentia, e amiudadas vezes lhe trocaria tôda a ciência pelos conselhos de uma comadre, beberagens de um curandeiro, ou rezas de um benzedor, parecia-lhe que em breve êle estaria reduzido a um reles segavidas, irremediàvelmente amoldado ao obscurantismo ambiente. 631

Às dificuldades inerentes da falta de estrutura nas zonas rurais, ainda se somava o desconhecimento dos médicos formados sob discussões ultrapassadas, e a ignorância popular. De fato, um dos pontos que aparecem pungentes ao longo de vários contos é a questão da ignorância das populações, especialmente as rurais, frente às doenças: tentava-se de tudo, desde rezas e curandeiros, até “beberagens” diversas. Por vezes, o homem da ciência sobreleva-se na obra, como no trecho acima citado, ou em “Biró”. Contudo, essa visão é mais dinâmica, visto que encontramos em A Amazônia misteriosa, como já visto, uma visão de certo modo positiva das técnicas de cura indígenas. Mesmo em “A neurastenia do Professor Filomeno”, Raul vai aos poucos modificando seu discurso com relação às práticas populares de cura. Frente ao poder realmente curativo de algumas medicações caseiras, observado na prática, Raul pondera:

Afinal de contas, muitas das plantas usadas para tal fim, já haviam passado das mãos do herbolário às manipulações do laboratório; e não poucos eram os medicamentos de ação comprovada e eficaz que, às furtadelas, tinham sido surrupiados à flora indígena pela medicina moderna. 632

Deste modo, essa visão comporta também uma noção mais positiva de nacionalidade, que marca uma mudança dos discursos depreciativos sobre a raça e a mestiçagem. Em outro sentido, a meu ver também marca um distanciamento – apesar das proximidades (de amizade, contatos profissionais, afinidade de temas) – certa distância com a visão preconceituosa de Monteiro Lobato. Se o Jeca Tatu é o indivíduo fraco, degenerado e eternamente acocorado do interior, as figuras sertanejas de Cruls – especialmente Pacatuba, sua personagem mais bem

631 CRULS, 1951, p. 118. 632 Cruls, 1951, p. 125. 256 construída nesse sentido, até pela forma narrativa em que aparece –, estão geralmente mais próximas do “sertanejo forte” de Euclides da Cunha. Márcia Naxara, discutindo sobre a vigência do romantismo na cultura brasileira, aponta para a permanência e coexistência de uma visão romântica concomitantemente a outras visões, sobretudo à cientificista, como explicações para o Brasil no século XIX. O que se observa, no contexto cultural dessa virada de século, é uma interpenetração entre as duas perspectivas, de “forma complexa, rica e variada, no caminho entre natureza e civilização” 633. Para a autora, esse foi um fenômeno de longa duração, ocorrido não apenas no Brasil como em outras partes do mundo, e que exerceu notável influência na cultura ocidental como um todo – adentrando pelo menos parte do século XX, e moldando nossa identidade nacional. Nesse sentido,

Na encruzilhada entre razão e sensibilidade foi-se conformando a idéia de uma identidade nacional, de uma síntese formadora da nacionalidade brasileira, para a qual contribuíram, e de forma fundamental, tanto os relatos de viagem como o romance, ambos estruturados segundo as exigências da narrativa e destinados ao mesmo público leitor.634

De forma nem sempre clara, esses movimentos e visões a princípio antagônicos projetaram visões e possibilitaram construções que auxiliaram na formação de nossa identidade nacional, forjada ao longo de pelo menos dois séculos através de formas de discursos variadas. Por fim, essa visão não pode ser dissociada de um intento de transformação política. Como já discutido, o movimento sanitarista das primeiras décadas do século XX foi caracterizado por um crescente debate sobre o papel do Estado. Questionava-se a ingerência da política nas questões de saúde, discussão que iria culminar em reformas sanitárias na década de 1920. Ajudando a fortalecer o poder central e, ao mesmo tempo, questionando suas características, os debates sanitaristas se mostraram com uma das formas de ação política concreta, através de expedições científicas, relatórios, atuação na imprensa e na literatura. Assim sendo, as críticas aos “coronéis” dos sertões brasileiros não aparecem casualmente, em Cruls, nem estão dissociados de uma visão mais ampla dos problemas no campo: influenciado sobretudo por Euclides da Cunha, Gastão Cruls

633 NAXARA, 2004, p. 294. 634 Ibid., p. 297. 257 delineou, creio eu, uma visão do rural que demonstra sua grandeza e suas misérias, das quais a natureza indomada e a violência e a corrupção da má gestão política seriam as causas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Abarcando as primeiras as três primeiras obras de Gastão Cruls, e refletindo sobre o complexo processo de produção literário do escritor – cujas influências vão desde o naturalismo do século XIX, passando pelo discurso euclidiano sobre os sertões, até a literatura decadentista francesa do fin de siècle e o romance científico à H. G. Wells –, tentei entender o autor como um modernista, em uma acepção mais ampla do termo, tal qual a propõe Monica Pimenta Velloso. Nesse sentido, Cruls pode ser compreendido como um autor participante e ativo na “cultura do modernismo” de meados do século XIX e início do XX635, um movimento diverso de tentativas de resposta às transformações que estavam ocorrendo, e sofrendo influências diversas do caldo de cultura heterogêneo no qual estava imerso. Não obstante, sua obra abarca contradições, mencionadas ao longo do texto; contradições essas que não podem ser dissociadas da própria vivência pessoal do autor: um médico que acabou se desiludindo com a carreira, tendo por fim optado apenas pela produção literária; e conhecido relativa fama ao amadurecer enquanto escritor e se envolver com diversas atividades culturais (como a edição, tradução, publicação de periódicos, o trabalho em uma biblioteca). Acredito que essas contradições, que comportam visões de crítica e ao mesmo tempo exaltação a um ideal europeu de civilização, são particulares a um indivíduo que estava inserido no debate científico, mas, ao mesmo tempo, guardava ressalvas com relação a ele – como fazia questão de afirmar publicamente. Esse potencial questionador possibilitou a construção de obras como A Amazônia misteriosa, em que, apesar do resquício de uma perspectiva negativa com relação aos indígenas, o autor já apresenta certo avanço ao reconstruir a história da conquista da América sob a visão dos povos explorados. Nesse sentido, acredito que uma estrutura de sentimento emergente pode ser percebida em suas obras, em que as culturas originárias passam a ser percebidas por valorações positivas, apesar do referencial cultural estar essencialmente ainda centrado na Europa. Se não chegou a “questionar a fundo o conjunto de valores difusos do que se considera a civilização ocidental, caminho adequado e inevitável para o

635 VELLOSO, 2003, p. 360. 259 desenvolvimento e o progresso [...]”636, o escritor não deixa de ter problematizado algumas questões importantes de seu tempo, participando dos debates sobre a nacionalidade, especialmente através das questões médicas e sanitárias. Nesse sentido, seu fazer literário está associado a uma proposta moderna de discutir sobre o social através da escrita. Parte, do mesmo modo, de um esforço por utilizar-se da literatura enquanto meio de expressão não só de anseios e questões pessoais, mas de espaço privilegiado em que novas questões podiam ser abordadas, novos problemas (e mesmo soluções) podiam ser levantados. Por outro lado, o autor não se distanciou totalmente do exercício médico, inserindo em sua produção ficcional questões caras à profissão. Sua experiência como médico lhe fornecera farto material para a produção literária; e é por meio desta que o autor dialogará com a medicina, criando sua maneira de estar em contato com os pacientes, de atuar em prol das questões de saúde pública, de produzir reflexões sobre o sofrimento humano: a literatura. Desta feita, pode-se afirmar que a construção literária observada em Gastão Cruls é pautada por esse universo intelectual que partilhava de uma ideia de “civilizar por cima”, e advogava uma vocação para si. Antonio Candido 637, discutindo a influência do subdesenvolvimento na literatura, divide parte da produção nacional (e latinoamericana) em dois momentos. O primeiro seria o de uma “consciência amena” do subdesenvolvimento, desenvolvida a partir da década de 1920 e principalmente 1930, e o segundo de uma “consciência catastrófica” do subdesenvolvimento, característica do pós-guerra. Para Candido, a plena consciência do subdesenvolvimento nacional aparece na literatura apenas após a Segunda Guerra; contudo, em sua fase amena, já se percebe uma diferença na produção, que parecia estar “[...] pressentindo ou percebendo o que havia de mascaramento no encanto pitoresco, ou no cavalheirismo ornamental, com que antes se abordava o homem rústico” 638. Já não se tratava mais de idealizá-lo, como fizeram os românticos. Uma das características dessa fase era a acepção do que Candido chama de “ideologia ilustrada”639, que

636 NAXARA, 2004, p. 294-295. 637 CANDIDO, Antonio. Literatura e subdesenvolvimento. In: ______. A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p. 140-162. 638 Ibid., p. 141. 639 Ibid., p. 145. 260 reconhece no homem pobre ou rural o modelo do atraso, a sersuperado automaticamente através da instrução. Trata-se de um modelo que prevê no acesso à educação e à cultura o ponto de partida para o progresso social. A ênfase de Gastão Cruls na diferença entre os personagens “cultos” – próprios de um mundo urbano modernizado – e os “incultos” – advindos geralmente do mundo rural – é exemplo dessa abordagem.

A partir dos movimentos estéticos do decênio de 1920; da intensa consciência estético-social dos anos 1930-1940; da crise de desenvolvimento econômico e do experimentalismo técnico dos anos recentes, começamos a sentir que a dependência se encaminha para uma interdependência cultural [...]. 640

Acrescentaria, apenas, que uma das questões principais dessa interpretação se refere não só à educação, mas principalmente ao acesso à saúde, tão debatido pelo movimento sanitarista. Assim sendo, se Gastão Cruls não desenvolve uma consciência aguda dos problemas nacionais e sociais, está ao longo de sua produção literária construindo uma nova maneira de refletir sobre eles, marcada por uma consciência amena do subdesenvolvimento. Essa consciência abdica a modificação da vida das populações pobres e/ou rurais através da instrução, e também da aquisição de condições mínimas de higiene e tratamentos de saúde. Observando as dificuldades de acesso aos cuidados médicos e a ainda incipiente produção científica do período, que mal conseguia dar conta de aplacar os males por que passava um doente; bem como descrevendo cenas de um ambiente rural que vivia sob o descaso das autoridades locais e federais, Cruls pode ser considerado, dentro de certos limites, como um intérprete da nação. Um autor cuja produção ficcional dialogou com as questões sociais de seu tempo, criando modos de ver e narrativas que tentavam alcançar o público com ideias específicas sobre a ciência, a medicina e o sanitarismo. Sua opção pela literatura, conquanto parta de um interesse, desde cedo cultivado, e de uma posterior desilusão com a carreira médica, marca um novo modo de agir que não deixa de estar relacionado ao exercício da medicina. Como aponta Marília Mezzomo Rodrigues, “os temas da medicina chegaram ao público leigo muito mais pelo romance, por almanaques e pela imprensa do que pelos manuais e

640 CANDIDO, ibid., p. 153-154. 261 tratados científicos”641, visto que as produções técnicas eram produzidas em uma escala menor, dotadas de uma linguagem específica, e destinadas a um público bem delimitado. De fato, como discute Francisco Skorupa, as necessidades de compreensão do linguajar científico teriam gerado fenômenos como a ficção científica, usada também como meio de vulgarização de temas da ciência – embora essa não seja a única maneira pela qual surgiu, nem seu único objetivo, declarado ou consequente 642. Ao eleger a literatura para falar de temas caros à medicina, Gastão Cruls privilegiou um meio de expressão de grande alcance, valorizado pelo fato de que o autor detinha, na época, um considerável reconhecimento de público e de crítica. Nesse sentido, pode-se afirmar que apesar de ter deixado de exercer a profissão de médico, Cruls nunca abandonou totalmente a medicina – as preocupações inerentes à área estavam sempre presentes em seu texto, servindo de matéria para sua escrita ficcional e fomentando reflexões que ultrapassavam as barreiras entre os campos de conhecimento. Como afirma Vitor Vivolo,

A transposição de Cruls de um campo a outro não é definitiva e muito menos excludente. A própria escolha de inaugurar sua carreira na revista de Lobato suscita sua ambiguidade como atuante intelectual, visto que a Revista do Brasil discutia não só literatura mas também questões de ciência, higiene, saneamento, medicina, psiquiatria e psicologia. Aos olhos desse novo grupo de intelectuais, tal ecletismo é indissociável da discussão “o que é nacionalidade?” 643

Suas reflexões, contudo, perpassam também a perplexidade e a incapacidade humanas diante da certeza da finitude da vida, marcando sua literatura com o tom pessimista característico. As situações estranhas, as narrativas de cunho mórbido, o sofrimento humano pareciam ser os temas de maior interesse de Cruls. Quando questionado dessa peculiaridade, contudo, o autor afirmou que os assuntos, quando levados para “outro plano”, geralmente estariam apoiados em fatos verídicos644. A estranheza, o fantástico e o mórbido da vida humana cotidiana, em especial o observado durante seu exercício na medicina, o levaram para a literatura,

641 RODRIGUES, 2009, p. 149. 642 SKORUPA, 2002, p. 11. 643 VIVOLO, 2017, p. 65. 644 SENNA, 1968, p. 228. 262 onde ficção e realidade se entrelaçam. Em outras palavras, “almas e ambientes seriam o objeto do seu trato diário até agora”645. Por fim, longe de esgotar as possibilidades de pesquisa e observação que a obra do autor oferece, mesmo no âmbito da temática proposta, esse encerramento serve como um parêntese aberto na ampla gama de possibilidades que a produção e a trajetória variada de Gastão Cruls possibilitam. Sua opção por concentrar seus personagens e temas literários na literatura de cunho psicológico nas décadas seguintes; sua atuação como editor de uma editora e uma revista cultural que ganharam destaque na década de 1930, publicando inclusive vários nomes mais tarde consagrados como modernistas; seu envolvimento crescente com viagens de cunho exploratório e antropológico, são algumas das facetas possíveis que ainda estão por ser exploradas.

645SANTOS, Ruy. Quatro romances de Gastão Cruls... op. cit., p. 1.

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