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MARIA LOURDES MOTTER ○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○ A telenovela: documento

MARIA LOURDES MOTTER é jornalista, professora da ECA-USP e ccoordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisa de Telenovela da ECA-USP. m 7474 REVISTAREVISTA USP,USP, SãoSão Paulo,Paulo, n.48,n.48,o p.p. 74-87,74-87, dezembro/fevereirodezembro/fevereiro 2000-20012000-2001 Uma síntese deste trabalho foi apresentada no X Encontro Lati- no-Americano de Faculdades de Comunicação Social – São Paulo 2000 – 23-26/10/00, no GT Telenovela e Sociedade, seção

de 23/10/00.

○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○ histórico e lugar de memória

“Controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar tanto as dominações

como as rebeldias” (Marc Ferro) (1). ○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○

Investigar o cotidiano na telenovela nos permitiu identi-

ficar um modo fundamental de relação que ela mantém com a sociedade. Pudemos, a partir dessa categoria, enten-

der melhor como se atenuam e se intensificam os diálogos que se processam entre ficção e realidade e como a produ-

ção de sentidos ganha em convergência quando a proximi- dade temporal reduz o distanciamento temático. A atuali-

dade intensificada sugere o simultâneo, o presente compar- tilhado e a suspensão das linhas que desenham os contor-

nos dos mundos do ser e do parecer.

A telenovela constitui um gênero amplo, abrangente,

sob o qual subclasses de gênero se abrigam e se multiplicam

1 M. Ferro, A Manipulação da nas combinatórias possíveis autorizadas pelo cruzamento História no Ensino e nos Meios de Comunicação, São Paulo, dem tendências, traços, marcas e influências diversas. Ibrasa, 1983, p.11. o REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 75 Produtos típicos da indústria, como os cussão nos limites do presente texto, ape- da mexicana Televisa, convivem, sob igual nas buscamos demonstrar como a teleno- denominação, com criações artísticas que vela cumpre esse papel documental ao re- carregam marca autoral e propostas que fletir e refratar o momento do qual ela par- transcendem o melodrama, a simplificação ticipa enquanto ficção que se apropria do narrativa, a linearidade das personagens, a cotidiano e do qual participa inserida na economia cênica e se firma como drama- vida diária do público telespectador. turgia de grande qualidade. Para essa últi- É possível delinear uma história das ma temos insistido na denominação tele- transformações da vida cotidiana através novela brasileira (2) por se caracterizar pelo da telenovela nos seus 40 anos (TV em cuidado com todos os aspectos envolvidos geral) de existência e sua apropriação pela no processo de produção, entendido como cultura brasileira. Nesse sentido, podemos o espaço que vai da arte de fazer bons rotei- tomá-la como documento de época, como ros, sobre bons temas, para bons atores, à memória histórica e promover seu estudo qualidade que se expressa na requintada diacrônico. Nosso propósito tem um cará- produção audiovisual – com todas as im- ter sincrônico, ou seja, tomamos a teleno- plicações de preparação, elaboração e aca- vela em exibição para destacar as marcas bamento nas diferentes etapas produtivas. de época que ela contém e que autorizam Se o fio melodramático condutor da sua categorização como documento de valor história, o apelo à emoção, o caráter de histórico. A opção por trabalhar com o pre- serialidade e duração a situam no espaço da sente deve-se à universalidade do seu co- novela, o compromisso social, um modo nhecimento e à possibilidade, aberta a to- peculiar de estruturação do cotidiano e a dos, de estarem avaliando nossas observa- incompletude – que lhe permite manter com ções seja pela memória recente do que já se o telespectador um diálogo vivo – configu- construiu narrativamente, seja pelo proces- ram um fazer próprio, aprimorado e em so de vir a ser dessa construção. Trata-se, permanente renovação que individualiza a pois, de trabalhar com um objeto disponí- telenovela como produção genuinamente vel para observação e verificação dos as- brasileira (3). pectos que estaremos pontuando (5). O objetivo que orienta o presente traba- Partindo dos estudos da memória de- lho não diz respeito, portanto, à telenovela senvolvidos por autores como Le Goff e tomada no seu sentido lato, mas no sentido Halbwachs, por exemplo, e de teorias da stricto, no qual identificamos a caracterís- história elaboradas por Adam Schaff, 2 M. L. Motter, Ficção e Realida- tica universal do gênero que é o melodra- Michel de Certeau e da escrita da história, de: a Construção do Cotidia- no na Telenovela, tese de livre- ma, à qual se acrescentou a dimensão so- numa discussão que envolve lingüistas, docência, São Paulo, ECA-USP, dez./1999. cial e um rigoroso critério de verossimi- semiólogos, filósofos e historiadores, pro- 3 Idem, “Telenovela: Arte do Co- lhança. Esse critério, levado às últimas con- pomo-nos a investigar os vínculos que a tidiano”, in Comunicação e seqüências, dota-a de um caráter realista telenovela mantém com a história e com a Educação, ano 5, n. 13, São Paulo, Moderna, set.-dez./ criador de uma impressão de realidade for- memória enquanto arquivo de saber indi- 1998, pp. 89-102. te a ponto de, em alguns casos, quase fun- vidual, cuja conservação e recuperação, sob 4 Idem, Projeto e relatórios Fa- dir acontecimentos dos planos da ficção e a forma de lembrança, dependem predomi- pesp Ficção e Realidade: a Construção do Cotidiano na da realidade. nantemente da memória do grupo, confor- Telenovela, São Paulo, NPTN- CCA-ECA-USP, 1995; “O Fim Os exemplos são muitos. Já tratamos me orientação de Maurice Halbwachs em do Mundo: Ordem e Ruptura – dessa questão em outros trabalhos (4). A seu trabalho fecundo, e inacabado, sobre a Dias Gomes, um Autor em Bus- ca de um Mundo Ético”, in Éti- retomada que ora empreendemos tem ape- memória coletiva. ca e Comunicação, ano 1, n.1, São Paulo, Fiam, jan.-jul./ nas por finalidade extrair daí os pressupos- Limitamo-nos a pensar como a teleno- 2000; “Telenovela: Crônica do tos necessários para pensar a telenovela vela constrói uma memória, ao mesmo tem- Cotidiano”, in Ética e Comuni- cação (no prelo); Ficção e Re- como uma forma de memória que registra, po documental – por sua permanência físi- alidade: a Construção do Co- no curso do tempo, o processo de transfor- ca como produto audiovisual gravado, mas tidiano na Telenovela, op. cit. mação da sociedade brasileira. Sem qual- sobretudo por sua vinculação com o pre- 5 É o que faz o Jornal Folha de S. Paulo. Ver nota 14. quer veleidade de aprofundamento da dis- sente, que a impregna com suas marcas – e

76 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 coletiva – pelo compartilhamento dos sa- variadas formas elementos que recuperam beres que ela difunde para seu amplo públi- e presentificam o já acontecido. São exem- co. Este segundo aspecto vem sendo de- plos as revistas especializadas que contri- senvolvido paulatinamente e já foi objeto buem para divulgar a telenovela, amplian- de nossas discussões anteriores. Sua reto- do seu raio de ação e recuperando sistema- mada, no contexto do presente artigo, tem ticamente o que já se converteu em passa- por objetivo aproximá-lo do conceito de do. Do mesmo modo os cadernos e seções memória coletiva. O primeiro aspecto, ou de jornais e revistas informativas, o rádio, seja, o caráter documental de época que e a própria televisão provocam lembranças vem se acentuando no modo brasileiro de e reforçam a memória quando fazem re- fazer esse tipo de ficção, é uma reflexão trospectivas ou produzem programas espe- nova no contexto das investigações que ciais, como os comemorativos dos cinqüen- iniciamos no ano de 1995. ta anos da televisão brasileira (9) ou fixos O telespectador registrará de algum como o Vídeo Show. A permanente citação modo as histórias a que assiste diariamente que se introduz na própria telenovela, reme- no horário nobre com graus variáveis de tendo a lugares, personagens, situações, nitidez em razão da intensidade de seu cumpre essa função rememorativa. O mes- envolvimento com as questões tratadas, que mo se dá quando a telenovela é recuperada podem dizer respeito à situação, ao ator, à e introduzida em outros itens da programa- personagem, enfim, à imensa variedade de ção televisiva, como tema, paródia, ilustra- fatores estruturais ou conjunturais imbri- ção, alusão ou como objeto de crítica. Todos cados na telenovela, aí incluídos os seus, esses usos atuam na propagação de um sa- de caráter subjetivo (6), entre os quais suas ber a respeito da telenovela, com alcance próprias lembranças do passado. Por exem- para muito além do telespectador habitual, plo, as músicas que marcaram a vida das funcionando também como um reforço para personagens também reavivam as marcas a memória. pessoais do telespectador. Além deste as- Assim, a relação com a telenovela atin- 6 A construção das personagens da telenovela inclui aspectos pecto estritamente individual, a memória ge uma outra audiência que não mantém do passado que justificam con- coletiva contribui para acrescentar traços com ela vínculos de fidelidade. Outros flitos que se manifestam no pre- sente da história. A relação de ou destacar elementos com cores mais for- modos de envolvimento indireto com a te- Helena e Pedro começa na adolescência de ambos e rea- tes. “Ao lado de uma história ciência, te- lenovela podem ocorrer. Grupos profissio- parece como flash-back presen- mos uma história vivida que constitui a me- nais, minorias, setores da sociedade, insti- tificando aquele momento pas- sado. A trilha sonora marca mória coletiva, sujeita a deformações, tuições, etc., têm sua atenção requisitada também a fase de suas vidas mitificações e anacronismos. Ela é ao mes- para avaliarem como estão sendo cons- em que se formou o seu gosto, o que aparece pontuado pe- mo tempo um dos objetos da história e um truídos – enquanto caracterização do gru- las canções da época. Ela fala também das origens e das ra- nível elementar de elaboração histórica” (7). po ou de indivíduos que o representam – e ízes culturais das personagens, A memória coletiva, diz Halbwachs, “é uma como os assuntos atinentes ao seu universo como é o caso da música regio- nal gaúcha, que preenche com corrente de pensamento contínuo, de uma estão sendo tratados. A uma representação sons típicos o espaço de Pedro, freqüentemente compartilhado continuidade que nada tem de artificial, já considerada inadequada ou distorcida, a pelas personagens que nasce- que retém do passado somente aquilo que reação tem que ser pronta e rápida. Neste ram e cresceram no Rio Gran- de do Sul. A trilha de Miguel ainda está vivo ou que é capaz de viver na caso, eles respondem, tomam partido, co- acrescenta à personagem um consciência do grupo que a mantém” (8). bram correções ou se põem contra, quando traço identidade/familiarida- de com influências musicais No desenvolvimento contínuo da memó- não se instauram grandes polêmicas. Com não de MPB mas hauridas atra- vés dos clássicos do cinema ria, os limites não são claramente traçados, freqüência, são os próprios meios de co- norte-americano. mas irregulares e incertos e o presente não municação que cobram a sintonia com a 7 M. L. Motter, Ficção e Histó- se opõe ao passado, antes configuram-se telenovela, pois os representantes dos gru- ria: Imprensa e Construção da Realidade, op. cit., p. 77. como dois períodos históricos contíguos. pos são instados, principalmente pela gran- 8 Idem, ibidem, p. 78. Ela é um quadro de analogias: nela, as de imprensa, a manifestarem-se sobre o 9 Como a série TV ano 50, TV similitudes ocupam o primeiro plano. tratamento que lhes é dispensado no con- Globo ano 35, da Rede Glo- Os próprios meios atuam na preserva- texto ficcional da história. bo, em exibição nos últimos meses de 2000 (out.-nov.), nas ção dessa memória coletiva retomando sob A citação é um modo casual e nem por noites de sábado.

REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 77 isso menos intencional de relação indireta rompimento dos muros que isolam em di- que se estabelece com a telenovela. Pode ferentes espaços diferentes expressões da ocorrer em artigos assinados, em editoriais cultura produzida por homens generica- dos grandes órgãos de imprensa e nas re- mente iguais e desigualmente estratificados vistas informativas. Conforme já tivemos socialmente. Incluídos e excluídos na pro- oportunidade de assinalar em outros traba- dução/distribuição do capital cultural acu- lhos, afirmamos a telenovela como um re- mulado no processo histórico de desenvol- ferente (10) de amplo domínio público, que vimento humano. se constrói figurativamente, posto que sob Podendo penetrar em qualquer discur- a forma dramatizada. A construção de con- so, firma-se como motivo universal. Arti- ceitos se processa paulatinamente e de for- gos, ensaios, editoriais de jornais e revistas ma concreta, favorecendo sua compreen- informativas de prestígio fazem, sem cons- são e recuperação quando tratados de for- trangimento, referências a telenovelas, au- ma abstrata, ou tematicamente. Assim, lem- tores, personagens, temas, situações como brar a telenovela no contexto desses dis- recursos retóricos diversos de argumenta- cursos implica o esforço de recuperar ele- ção ou para indicar sintonia com o que está mentos figurativos conhecidos para con- presente no horizonte cultural dos leitores, cretizarem o discurso temático, ou abstra- ou seja, com os discursos que circulam nos to, que caracteriza os textos opinativos de diferentes espaços da estratificação social. que falamos. Por essa via, ela penetra em Entre esses discursos, podemos afirmar o redutos antes reservados apenas à chama- da telenovela como sendo aquele dotado da alta cultura, como os clássicos da litera- do dom da ubiqüidade posto ter presença tura, do pensamento filosófico, do mundo em todos ao mesmo tempo, em razão da das artes. generalidade que assume ao atravessar ter- ritórios, ignorar fronteiras, penetrar em 10 Entende-se por referência o “conjunto de mecanismos que guetos e superar as diferenças sociais, eco- fazem corresponder a certas unidades lingüísticas, certos nômicas e culturais. elementos da realidade REFERENTE UNIVERSAL A telenovela se oferece como uma fic- extralingüística” (Kerbrat- Orecchioni, 1980, p. 35, apud ção para todos (11), sem perder seu caráter N. H. Brandão, Subjetividade, Argumentação, Polifonia: a Pro- Assim, os lugares nobres da produção de síntese, onde cada uma trabalha, por sua paganda da Petrobrás, São editorial de caráter informativo, onde tra- vez, aspectos da realidade cotidiana bra- Paulo, Unesp, 1998, p. 47). dicionalmente o estilo mais próximo do sileira, colhidos em função das preferênci- 11 Importante considerar o que Goffman denomina consumo se- literário se exercia buscando preservar a as, inquietações e em consonância com as creto ao falar das representa- prática de uma retórica ligada à chamada vivências do autor, o que quer dizer de sua ções que o indivíduo faz de si mesmo em presença de outros. alta cultura, sem concessões ao massivo competência. Ou seja, ele (o autor-roteirista) Transposto para a telenovela, o conceito se aplica perfeita- (Martín-Barbero), voltam-se, paulatina- trabalha com as temáticas e os ambientes mente aos telespectadores (prin- mente, para a comunicação ao entender que que integram suas vivências, ele não conta- cipalmente aos homens) que, baseados no preconceito ge- seu universo de leitores é ou deve ser maior rá bem histórias sobre mundos com os quais neralizado de que a telenovela tem pouca familiaridade. “Cada autor tem é um gênero popular, femini- que uma reduzida elite. Ao trabalhar com no, sentimentalóide e menor, os discursos presentes no amplo universo seu universo ficcional e insere suas histórias entendem prejudicial à sua imagem revelar seu gosto e o social, marca-se sintonia, simultaneidade, nesse universo particular”, diz Aguinaldo consumo do produto, o que re- cumplicidade no compartilhamento de re- Silva, e Sílvio de Abreu afirma: “escrevo sultaria um traço negativo para a impressão de superioridade ferenciais capazes de assegurar a interação sobre as questões que me incomodam”. que pretendem projetar para seus auditórios. Assim, seu inte- entre os sujeitos da comunicação, situados Do mesmo modo que um único roman- resse é disfarçado, assim como em diferentes lugares sociais. ce não pode esgotar o universo que o autor o consumo se faz às escondi- das ou sob protesto. Essa, en- Longe de menosprezar a antiga cultura, busca recriar, também sua visão de mundo tre outras razões, nos leva a não se esgota aí. Antes, é não só o conjunto afirmar que a telenovela alcan- ou cultura clássica, queremos apontar a van- ça toda a sociedade brasileira tagem de colocá-la em diálogo com a cul- de sua obra e, mais que isso, a série de (I. Goffman, A Representação do Eu na Vida Cotidiana, trad. tura massiva do presente, ampliando as pos- obras na qual esse conjunto se insere que Maria Célia Santos Raposo, sibilidades de acesso e de compreensão da- irá dar contornos mais precisos à realidade Petrópolis, Vozes, 1985, p. 46). quela num processo de legitimação e de que se foi construindo na recorrência que

78 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 se localiza na totalidade das obras (12). brasileira. Sabemos que ela consolidou o Como nos lembra Halbwachs, “o espaço formato de exibição diária, com duração de dos cientistas e dos pintores é construído seis meses, podendo-se reduzir ou ampliar por eliminação de outros espaços. Mas isto ligeiramente. Na sucessão das histórias, a não prova que estes não tenham tanta no- última tende a diminuir a nitidez da anteri- ção da realidade quanto os outros” (13). or sugerindo superação e apagamento que Por que seria de outro modo com a tele- as colocariam como produto de consumo novela? Por que a ansiedade de querer ver imediato, descartáveis como o jornal do dia nela a descrição científica explicativa e totali- anterior, cujo destino é a lata de lixo. zadora da sociedade brasileira? Por que co- Vendo por essa ótica, é o que acontece brar dela o que não se cobra de outras fic- com o objeto jornal. Mas não se pode dizer ções como o romance, por exemplo? o mesmo de seus conteúdos quando absor- Por terem custos diferentes para o con- vidos, pois passam a fazer parte de nossa sumidor? Destinarem-se a públicos nume- memória e orientam nossas reflexões, nos- ricamente distintos? A telenovela, enquan- sas decisões. Além de participar do nosso to texto, organiza os acontecimentos e en- conhecimento individual sobre o mundo, cerra um modo de inteligibilidade, consti- ele terá exercido esse mesmo efeito sobre tui um recorte e se impõe um limite, como uma infinidade de outros leitores, ele re- todas as obras ficcionais ou factuais. Qual- percutirá em outros meios e irá constituir quer que seja a resposta às perguntas for- uma memória coletiva sobre os assuntos muladas ela não resolverá a questão de base. pautados e irá se converter, ainda, em do- O que incomoda – sem contudo mobilizar cumento a ser incorporado ao acervo da para a investigação, compreensão e estra- empresa e de arquivos oficiais, enriquecen- tégias de ação – é o poder subjacente ao do-os e ampliando a memória a ser preser- contador de histórias e ao encantamento vada para utilização como fonte disponível produzido pelo saber contar: os bons con- para diferentes finalidades. tam para o mar, que os ouve embevecido, Fonte secundária para os historiadores, os melhores contam para o oceano. O nos- mas primária para muitos, o que poderia so problema, pois, tem sido compreender ser superado e descartável para o analista 12 Por exemplo, no conjunto das as histórias, pensar seu modo de constru- ingênuo é, na verdade, um documento com telenovelas de Benedito Ruy Barbosa emerge paulatinamen- ção, difusão e o que fazem delas os oceanos caráter histórico. Para o historiador Marc te a relação homem-terra, que e os mares. Ferro o jornalista é o historiador do presen- vai sendo pontuada, cresce e assume a trama central em O As diversas formas de interferência/ te, posto que ele trabalha sobre o aconteci- Rei do Gado. No conjunto das telenovelas brasileiras pude- interação da telenovela com a sociedade mento imediatamente, no tempo curto da mos verificar como um outro ampliam a abrangência de seu alcance por atualidade, enquanto a historiografia tra- tema, o da homossexualidade, vai se construindo ao longo do envolver diferentes tipos de interesse. Pode- balha com o tempo longo da memória, vive tempo. se dizer que o caráter de intertextualidade de recuperar o passado. 13 M. Halbwachs, A Memória Coletiva, trad. Lurent Léon da telenovela brasileira, principalmente do Transferindo-se tais reflexões para a Schaffter, São Paulo, Vértice, horário nobre da emissora líder, tem uma telenovela, pode-se observar que ela fala 1990, p. 144. potência que a coloca em posição de gerar predominantemente do presente do qual 14 No caderno Tudo, do jornal Folha de S. Paulo, de 29/10/ discursos (14) e alimentar sua produção incorpora o cotidiano nos seus múltiplos 2000, sob o título “Novela é como nenhum outro produto da indústria aspectos: modos de viver, de pensar, sofrer Vitrine de Pequenos Negó- cios”, matéria de duas pági- cultural brasileira. e conviver com a realidade em transforma- nas discute os negócios que aparecem na telenovela Laços ção. Aspectos não claramente perceptíveis de Família e orienta os interes- ou não percebidos ganham nitidez, traça- sados em abertura de empre- sas para os investimentos ne- dos com firmeza na ficção, antes que se cessários e erros que eles não FICÇÃO E PRODUÇÃO DE MEMÓRIA consolidem como mudanças já estabeleci- devem cometer para ter suces- so no empreendimento (alguns das nas práticas sociais. são extraídos da própria tele- novela, como por exemplo as As considerações tecidas até aqui aten- Podemos dizer que a telenovela cum- consultas freqüentemente adia- dem à necessidade de demonstrar a oni- pre na ficção o papel que o jornal desempe- das por Helena em decorrên- cia de problemas de ordem presença da telenovela no cotidiano da vida nha com relação ao factual. Enquanto ele pessoal).

REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 79 trabalha com os aspectos pontuais do coti- telenovela poderá mostrar os principais in- diano em andamento, ela fala sobre hábi- dicadores de transformações por que pas- tos, costumes, preocupações que perpas- samos nos últimos 35 anos, do ponto de sam a vida cotidiana de um momento que vista das temáticas focalizadas em cada uma ela seleciona e fixa como ambiente socio- e do universo em que as histórias se desen- cultural para estruturar uma história. Ela volvem. A mesma possibilidade existe com mesma tecida de acontecimentos em relação ao processo de aperfeiçoamento sintonia com a realidade social, seus pro- técnico que ela própria registra, o que foge blemas, refletidos nos conflitos vividos no ao nosso interesse no momento. âmbito do privado, do individual das per- Pierre Nora lembra que “a memória sonagens. coletiva, definida como o que fica do pas- Ao trabalhar com o presente ela consti- sado no vivido dos grupos, ou o que os tui, com o jornal e outras mídias, como as grupos fazem do passado”, pode à primeira revistas informativas semanais, o ponto de vista opor-se quase termo a termo à memó- convergência do nível superior da ideolo- ria histórica como se opunham antes me- gia do cotidiano, de que fala M. Bakhtin: mória afetiva e memória intelectual. Até m “Existe uma parte muito importante da co- nossos dias história e memória confundi- municação ideológica que não pode ser ram-se praticamente e a história parece ter- vinculada a uma esfera ideológica particu- se desenvolvido “sobre o modelo da lar: trata-se da comunicação na vida cotidi- rememoração, da anamnese e da memo- ana. Este tipo de comunicação é extraordi- rização”. Os historiadores davam a fórmu-co nariamente rica e importante. Por um lado, la das “‘grandes mitologias coletivas […] ela está diretamente vinculada aos proces- ia-se da história à memória coletiva’. Mas sos de produção e, por outro lado, diz res- toda a evolução do mundo contemporâneo, peito às esferas das diversas ideologias sob a pressão da história imediata, em gran- especializadas e formalizadas”. Nela, o de parte fabricada ao acaso pela mídia, autor distingue diferentes níveis “determi- caminha na direção de um mundo acresci- nados pela escala social que serve para do de memórias coletivas” (18). medir a atividade mental e a expressão, e A telenovela, assim como a definimos, pelas forças sociais em relação às quais eles independentemente das possibilidades me- devem diretamente orientar-se” (15). todológicas de aferição e mensuração, per- O nível inferior desliza e muda rapida- mite-nos afirmá-la como um centro de recu- 15 M. Bakhtin, Marxismo e Filoso- mente, entre outras razões por não ser do- peração, reconstrução, produção, atualiza- fia da Linguagem, São Paulo, tado de um auditório social determinado. ção, irradiação e manutenção de memória. Hucitec, 1981. Os níveis superiores da ideologia do coti- No jogo que se estabelece entre esses dife- 16 Idem, ibidem, p. 120. diano, “em contato direto com os sistemas rentes aspectos, o presente com suas marcas 17 Estamos trabalhando com o conceito de ideologia de M. ideológicos, são substanciais e têm um ca- de época tais como o cenário, os comporta- Bakhtin, como está definido em Marxismo e Filosofia da Lingua- ráter de responsabilidade e de criatividade. mentos e os conflitos traz o passado com gem. Nessa obra o autor ana- São mais móveis e sensíveis que as ideolo- seus cenários, comportamentos e conflitos, lisa os níveis da ideologia do cotidiano referindo-se à impren- gias constituídas (moral social, arte, ciên- num diálogo em que se processam a sa como a instituição que está cia, religião)” (16). rememoração e o mapeamento do presente em contato com o nível superi- or da ideologia do cotidiano. A palavra que precede, constrói, acom- em construção apontando já para o futuro. Entendemos ser possível aplicar a categorização à mídia como panha e comenta a telenovela carrega e dá Nesse trabalho complexo, tenta-se adiantar um todo, que à época do autor forma às manifestações ainda incipientes para o telespectador o que lhe chega sempre era representada apenas pela imprensa. No uso que fazemos dos níveis inferiores que não adquiriram com atraso: a compreensão do presente an- do conceito, aplicamo-lo à te- lenovela, metonimicamente, força para ganhar expressão clara e defini- tes que ele se converta em passado. como parte privilegiada de da (17). Nesse sentido a telenovela demar- As interações entre a telenovela como expressão da ideologia do meio TV. ca no horizonte social de sua época, ou de uma vertente da memória coletiva e as m 18 J. Le Goff, História e Memória, seu momento, os temas que pontuam as memórias individuais podem se explicar a trad. Bernardo Leitão et. al., 4a preocupações e os valores dominantes na- partir das considerações de Halbwachs. Não ed., Campinas, Editora da Unicamp, 1996, pp. 472-3. quele período. Um estudo diacrônico da é raro atribuirmos a nós mesmos e comoco se

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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 idéias, reflexões, sentimentos e paixões 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

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123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 zes exprimimos como se fossem pessoais 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 reflexões tomadas de jornais, livros ou 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 conversas.

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 “Elas correspondem tão bem a nossa ma-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 neira de ver que nos espantaríamos desco-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 brindo qual é o autor, e que não somos nós. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 ‘Já tínhamos pensado nisso’: nós não per- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cebemos que não somos senão o eco” (19). 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 unicaçãcomunica123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 “O alargamento do círculo de amizades e 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 das leituras leva a que reconheçamos o

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mérito desse ecletismo que permite ver e

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 m 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 conciliar diferentes aspectos das questões

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 e das coisas. Mas, com freqüência, nossas 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 opiniões, sentimentos e preferências não 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 comuni 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 são mais que a expressão dos acasos que 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 nos colocaram em relação a outros grupos 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 e das influências que exerceram sobre nós. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Acreditamos pensar e sentir livremente na

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 medida em que cedemos sem resistência a

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 uma sugestão de fora. É assim que a mai-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 oria das influências sociais a que obede- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cemos com mais freqüência nos passam 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 despercebidas” (20). 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 19 M. Halbwachs, A Memória 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Coletiva, op. cit., p.47. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Assim, ao lado de funções ligadas à re- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 20 M. L. Motter, Ficção e Histó-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cuperação de memória, a telenovela atua ria: Imprensa e Construção da 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Realidade, pp. 81-2. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 como um produtor e uma fonte de armaze-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 21 Conforme já mencionamos, as 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 namento de dados do presente atuando na

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 referências constantes às tele-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 composição da memória coletiva como uma novelas já exibidas, bem como 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 sua reapresentação inserida na 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 vertente de grande potência pelo seu poder 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 grade da emissora como Vale

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 a Pena Ver de Novo, assim 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 de abrangência e reiteração. Enquanto ma- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 como os remakes ou seus frag-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 terialidade, preservada sob a forma de dis- mentos em outros programas, 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 reavivam a lembrança da tele- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 positivo técnico de conservação (21), 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 novela e, com ela, reitera-se o

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 seu poder de memória. 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 permitimo-nos entendê-la como documen- comuni123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 22 A nova história é a história 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 to de época.

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 escrita como uma reação deli-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 É, pois, com apoio nas possibilidades berada contra o paradigma 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 tradicional (Thomas Kuhn) que 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 abertas pela nova história (22) que nos per- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 diz respeito essencialmente à

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 mitimos compreender a telenovela (no con- política (narrativa dos aconte- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cimentos, vista de cima e ba- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 texto da televisão e da mídia em geral) 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 seada em documentos). A nova 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 unicação123456789012345678901234567890121234567890123456789012 história passa a interessar-se 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 inserida na cultura brasileira como um lu- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 por virtualmente toda a ativi-

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 gar simbólico da memória coletiva, onde dade humana, uma história to- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 tal, tendo por base filosófica a 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 cada uma constitui um documento porta- 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 idéia de que a realidade é

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 social ou culturalmente

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 dor das marcas de mudanças culturais. m 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 construída. Ver P. Burke (org.), 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Neste sentido, portanto, consideramos ser 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 A Escrita da História, Novas 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Perspectivas, trad. Magda 123456789012345678901234567890121234567890123456789012 possível enunciar o caráter da telenovela 123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 Lopes, São Paulo, Unesp,

123456789012345678901234567890121234567890123456789012

123456789012345678901234567890121234567890123456789012 como documentocomuni de época, visto cristali- 1992.

REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 81 zarem-se nela as práticas que não adquiri- e se desenrola sustentada pelas relações que ram formas acabadas e, portanto, força de se estabelecem entre o núcleo principal de regra ou norma para todo o conjunto social. Helena (Vera Fisher), o de Alma (Marieta Tentaremos demonstrar, a partir dos Severo), onde está Edu (Reynaldo Gianec- elementos mais superficiais, portanto mais chini), e o de Miguel (Tony Ramos), aos evidentes, como se expressa, na telenovela quais outros subnúcleos se subordinam, já Laços de Família, de Manoel Carlos (TV que constituem conjuntos secundários en- Globo, 20h30, ainda no ar em novembro de volvendo relações de trabalho, de paren- 2000), o caráter documental de época, em tesco, afetivas e de amizade. particular no que diz respeito ao modo de Cada núcleo desenvolve relações que constituição da família, atividades econô- categorizamos como pertencentes aos do- micas e profissionais, comportamento dos mínios: família, trabalho e relações pesso- jovens, relações pais e filhos. ais. As várias faixas etárias representadas recobrem a diversidade própria do univer- so familiar e constituem o liame vivo das gerações, indo dos bebês para a criança, LAÇOS DE FAMÍLIA passando pelo pré-adolescente – pouco ex-

pressivo, até agora –, pelas ainda adoles- centes, pelos jovens, para a maturidade, à A história geração dos pais de Capitu, à terceira ida- de. Nesse universo, em que cada qual vive Laços de Família conta, em síntese, o o seu tempo, armam-se os conflitos que drama familiar decorrente do amor de duas ameaçam desatar e mesmo romper os laços mulheres, mãe e filha, pelo mesmo homem que unem a família.

Universo familiar: as gerações

Bebês Nina, filha de Fred (Luigi Baricelli), Bruninho, filho de Capitu (Giovanna Antonelli)

Crianças Rachel (), filha de Ivete (Soraya Ravenle) e Viriato (Zé Vitor Castiel)

Pré-adolescente Tide (Samuel Melo), filho de Laerte (Luciano Quirino)

Adolescentes Íris (Deborah Secco), Ciça (Júlia Feldens), Socorro (n/c) e Estela (Júlia Almeida)

Edu (), Paulo (Flávio Silvino), Capitu, Fred, Camila (Carolina Jovens Dieckmann), Clara (Regianne Alves) e Severino, Rita ()

Miguel (Tony Ramos), Helena (Vera Fischer), Alma (), Cíntia (Helena Ranaldi), Pedro (José Mayer), Danilo (Alexandre Borges), Sílvia (Eliete Cigarini), Maturidade Alex (Daniel Ventura), Romeu (Paulo Zulu), Glória (Xuxa Lopes), Rodrigo (Paulo Figueiredo), etc.

Pascoal (Leonardo Villar), Ema (Walderez Barros), pais de cíntia, Olívia (Marly Bueno) e Eládio (Humberto Magnani); Aléssio (Fernando Torres), marido de Ingrid (Lília Cabral) Terceira idade e pai de Helena; mãe de Miguel, Nilda (Yara Lins), e Irene (Cléa Simões), antiga babá de Ciça e agregada da família.

82 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 Com o assassinato da personagem, no Constituição da família , o núcleo se desfaz. Íris e Socorro vão constituir junto com Pedro um Na análise da constituição dessas famí- arranjo familiar. lias, observa-se que elas estão longe de re- Alma está no quarto casamento. Três presentar o modelo canônico de um casal vezes viúva, sem filhos, sustenta o marido, com filhos, onde a chefia é exercida pelo constituindo com ele uma família nuclear homem, reafirmando-se, na ficção, a mu- feminina. Mas, como tem sob seus cuida- dança e a diversidade que caracterizam o dos os sobrinhos Edu e Estela, temos tam- conceito atual de família na prática da vida bém um arranjo familiar. cotidiana das pessoas. Tomando-se os nú- A esse núcleo se vincula o de Cíntia, cleos principais de Helena, Alma e Miguel por relações de trabalho. Vive com a mãe, temos: Helena, mãe solteira com dois fi- que por sua vez está no segundo casamen- lhos de pais diferentes; Fred, casado, pai de to. Trata-se ao que parece de um arranjo um bebê, está em processo de separação da familiar. Podemos considerar um outro nú- mulher, enquanto a irmã, Camila, solteira, cleo, formado pelos empregados do haras, acaba de confirmar que está grávida. A che- cada qual vivendo sozinho, como famílias fia da família é de Helena, a quem cabe a monoparentais. responsabilidade de manter a casa e sus- O núcleo de Miguel, viúvo com filhos, tentar a família. Camila é estudante e Fred com a mãe e uma agregada, pode se classi- um engenheiro que ainda não exerce a pro- ficar como monoparental masculino com fissão e sustenta, com a ajuda da mãe, sua novos arranjos familiares. própria família dando aulas . Além da em- Ligado a esse núcleo por relações de tra- pregada, incorporada à casa de Helena, está balho, está a família de Pascoal, constituída sua jovem irmã, nascida do segundo casa- por ele, a mulher, a filha, o neto e uma amiga mento de seu pai. Trata-se de uma família da filha. Trata-se de uma família nuclear, monoparental feminina, com arranjo fami- com arranjos familiares e novos arranjos. liar (23). Do ponto de vista econômico, é a filha Subordinados a este núcleo, estão os Capitu, mãe solteira, quem mais contribui funcionários da clínica da qual Helena é na renda familiar. sócia. Duas personagens são solteiras, uma Pelo exposto, pode-se concluir que a delas, o médico, tem um filho, indicador de constituição da família nesta telenovela tem que já foi casado. Ivete, outra funcionária na antiga forma padrão, de um casal com e amiga de Helena, é casada com Viriato e filhos, apenas um caso, que é o de Viriato. tem uma filha, ainda garota. Ambos traba- Outra família que se apresentava como den- lham, mas os indícios são de que a mulher tro do modelo clássico era Fred (filho de é quem mais contribui para a renda famili- Helena), Clara e Nina. Mas essa situação já ar. Esta família pode ser classificada como se alterou com a volta de Fred para a casa nuclear feminina. da mãe. Também se verifica como as mu- Vinculado ao núcleo de Helena, o nú- lheres contribuem para a renda familiar ou cleo de Porto Alegre tem curta existência. mesmo são as responsáveis pela economia, Talvez o suficiente para tornar-se passado seja com seu trabalho (Helena, por exem- na vida das personagens ligadas a Helena, plo), com a administração de bens da famí- deixar marcas da cultura regional nessas lia (Alma), gerindo um pet shop e traba- personagens e caracterizar o haras como lhando como veterinária (Cíntia), como um espaço marcado por recordações liga- recepcionistas, esteticistas, domésticas, bal- das à vida campeira. A morte de Aléssio conistas, floristas, etc. Assim, a configura- 23 Classificação inspirada na categorização utilizada por deixa viúva Ingrid – mulher de seu segun- ção da família, na telenovela, revela a mu- Anamaria Fadul em sua pes- quisa Telenovela e Sociedade do casamento –, com a responsabilidade dança por que passou esse conceito na prá- no Brasil: a Evolução das dos negócios da família, pela filha Íris e tica social. Sabe-se, contudo, que o antigo Temáticas Sócio-demográfi- cas. 1995-98 (CNPq/USP – pela agregada Socorro. modelo permanece como o modelo ideal Relatório de Pesquisa).

REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 83 de família, a despeito da realidade concreta tos usuais. Vivemos sob o império da esté- que alterou não só sua composição, como tica, seja no sentido de preservar, seja no também o conceito de chefia e a clássica sentido da transformação. figura do provedor masculino. Assim, os Enquanto campo de opção profissio- novos formatos de família que aparecem nal, atender a esses anseios de nosso tem- na ficção de Manoel Carlos constituem um po equivale a uma garantia de uma opção esforço no sentido de reconfigurar concei- promissora. tos para adequação às práticas transforma- A ecologia pensada nos anos 80 como das já consolidadas pelo uso. preservação da natureza (vegetal e animal) engloba agora todas as formas de relação do ser com o ambiente físico e social. A natureza já tendo conquistado o respeito Atividades econômicas das novas gerações, ganha o cenário o res- peito aos animais e cuidados que incluem e profissionais alimentação, espaço, tratamento adequa- do, enfim, que dizem respeito à prevenção Do ponto de vista das atividades econô- de doenças e recuperação de sua saúde. Sur- micas temos uma clínica que associa esté- gem e proliferam as clínicas veterinárias, tica e medicina alternativa, a Naturallis; um principalmente para atender os bichos de haras, como atividade de criação de cava- médio e pequeno porte criados como ani- los e investimentos; uma livraria, editora e mais de estimação no ambiente urbano. Os café, a Dom Casmurro; uma floricultura e pet shops oferecem tudo para esse mundi- um pet shop. nho: o banho, a tosa e uma infinidade de Vivemos em ritmo de inauguração de mimos para os novos membros da família. shoppings, megalivrarias, da produção de Ainda maior atenção merecem os ani- flores em grande escala, do paisagismo e mais de grande porte destinados à produ- do culto do corpo sob múltiplos aspectos, ção de leite ou ao abate. As técnicas de indo da tradicional cirurgia plástica às inseminação artificial geram uma casta de modernas técnicas de rejuvenescimento, reprodutores bovinos e eqüinos. O hipis- além das práticas de modelagem corporal mo, modalidade esportiva de elite, começa das academias que garantem a escultura e a se popularizar enquanto outras práticas a forma física de acordo com os cânones da esportivas tornam o cavalo objeto de admi- moda. Surge uma nova modalidade profis- ração e desejo. Redescobrem-se suas habi- sional: o personal trainer. Se o avanço da lidades, força, elegância e beleza. Sobretu- ciência médica ampliou a esperança de vida, do quando, no que se refere ao hipismo não basta viver mais, é preciso ter qualida- clássico, o Brasil começa a despontar para de, é preciso deter o envelhecimento. Vi- o mundo, competindo como favorito nas ver bem significa preservar a vitalidade, Olimpíadas de 2000. eliminar a dor e reduzir o stress, mas signi- Se em décadas anteriores surgiram e se fica também estar feliz com a aparência. expandiram os rodeios, atraindo o interes- Aqui se associam a acupuntura como se de pessoas ligadas ao universo rural, hoje especialidade médica e a estética como uma eles se firmaram como espaço que une o atividade profissional de alta especializa- rural e o urbano. Em torno deles, criou-se ção. Ambas se encontram marcadas com uma esfera de negócios que inclui o turis- possibilidades crescentes de aceitação e mo e um amplo segmento de comércio de expansão na nossa era do culto à imagem. produtos típicos do mundo eqüestre, em Hoje, jovens mal saídas da adolescência meio à emergência da agropecuária como submetem-se a arriscados procedimentos setor de produção de cultura. cirúrgicos para se enquadrarem no padrão Tudo isso vitaliza e amplia o campo de de beleza. Implantes de silicone, lipoescul- ação de um profissional, o veterinário, res- tura, entre outros, tornaram-se procedimen- ponsável pela saúde, vitalidade e bom de-

84 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 sempenho dos animais, que exigem aten- tiva para a vida que leva, chantageada pelo ção proporcional ao seu valor de mercado. pai de seu filho, acuada e submetida por um A criação de animais e, em particular, do cliente que tem sido responsável pela se- cavalo exige uma equipe de apoio para os qüência de violências físicas e morais pra- cuidados diários que vão da compra de ticadas contra as pessoas que a cercam. Essa produtos ao controle da alimentação, higi- situação mostra o lado escuro de uma ativi- ene, exercícios, etc. dade glamourosa na aparência em razão Na telenovela, são essas as atividades mesmo de transitar pelos corredores som- predominantes: clínica de estética, comér- brios da alta burguesia, que paga regiamente cio livreiro e criação de eqüinos. As profis- pelos serviços prestados. Não exatamente sões das personagens se ligam de algum por generosidade mas pelo caráter sigiloso modo a elas. Se também temos um médico das relações. Na malha de segredos que se acupunturista, temos um outro que vacila tece, articula-se um submundo de intrigas, sobre a escolha da medicina tradicional. ameaças, chantagens, extorsões, revelador Ele já manifestou, em conversa com de seres cúpidos e mesquinhos, de onde as Miguel, estar considerando seriamente a presas não conseguem escapar. Elas tam- possibilidade de optar por uma linha alter- bém precisam resguardar o segredo da vida nativa. Atualmente a personagem tenta dupla: de boa filha de família e de prostitu- exercer a medicina num pronto-socorro. ta de luxo. Pascoal é revisor e sua filha Capitu e a Essa nova modalidade de prostituição é amiga Simone são garotas de programa, moderna sem ser tão recente e mostra ten- enquanto a mãe trabalha em casa como dência à expansão em momentos de crise costureira. Uma personagem secundária é econômica, crise de emprego e exacerba- cantora lírica e o marido trabalha como ator ção do consumo. Contribuem as incertezas em peças infantis. A crise de emprego está das escolhas profissionais e a beleza como pontuada na situação de Fred, a quem já mais um bem de consumo a ser adquirido nos referimos. Engenheiro de formação, não com dinheiro e disciplina. A revista Época, consegue exercer a profissão. A necessida- em edição de 23/10/2000, começa uma série de de sustentar a família leva-o a dar aulas de três reportagens sobre garotas de pro- para sobreviver. grama. Lamentando a falta de dados O profissional recém-formado não está confiáveis, a revista cita uma pesquisa. seguro do que quer, como já manifestou Realizada em Belo Horizonte ela estima Edu, e os jovens da história, como demons- em 1,1 milhão o número de profissionais tra a indefinição generalizada quanto à car- no país. “Se estiver correta, o Brasil tem reira a seguir, vêem-se obrigados a fazer quase tantas prostitutas quanto professo- uma escolha profissional precocemente e res do ensino fundamental – e a profissão se sentem despreparados e inseguros. representa uma faixa significativa do mer- Camila já mudou de curso, Estela hesita e cado de trabalho, sujeita apenas ao Código fala em fazer curso de fotografia. Íris gosta Penal, sem direito a benefícios ou à prote- de cavalos mas sob pressão da família, que ção legal” (24). a quer estudando, pensa na possibilidade Esse interesse pela temática que vem de fazer curso de informática. Em síntese, assumindo o primeiro plano na história rea- todos eles estão inseguros e refletem as firma nossas pesquisas anteriores sobre o dificuldades comuns a tantos outros em caráter de pauta da telenovela. O elemento meio a tantas incertezas, as decorrentes e mais polêmico sendo dado pela categoria 24 Revista Época, Rio de Janeiro, próprias da idade e, sobretudo, as que re- “garota de programa”; é ele que será tema da Ed. Globo S/A, ano III, n. 127, sultam das indefinições quanto ao futuro matéria de capa da revista informativa, sem 23/10/00, p. 63. numa sociedade em rápida transformação. qualquer alusão ao inspirador da série de 25 “Guerra na Noite: Garotas de Programa Invadem Redutos Capitu faz um curso de direito. Sua es- reportagens. Ele também está presente na de Patricinhas e Provocam colha parece mais madura, provavelmente Revista da Folha (25) como matéria de capa. Confusão”, in Revista da Fo- lha, ano 9, n. 443, São Pau- por ter sido feita mais tarde e como alterna- Já afirmamos essa situação como uma inter- lo, 5/11/00, capa.

REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 85 ferência da ficção na realidade. um jovem com a vida inteira por construir” Outros temas delicados são tratados (26). Helena teve que enfrentar o precon- ainda em Laços de Família. Um deles é o ceito do pai, quando engravidou aos 18 caso da impotência de Viriato, que ganha anos. É, pois, compreensível a naturalida- um plano frontal, e vem sendo discutido de com que encara a gravidez da filha: ela com clareza, enquanto se busca, com o mesma duas vezes mãe solteira. Contra o apoio familiar, no caso da mulher, uma so- negro não se registram expressões de pre- lução médica para o problema. O autor inau- conceito, apenas estereótipos positivos, gura, em tempos de “viagra”, de legitimação idealizações, fantasias sobre seu desempe- do prazer sexual para ambos os sexos, de nho sexual (em relação a Laerte). preservação da saúde, de cuidados com o A violência do trânsito e a violência corpo e com o retardamento da velhice, no urbana em sentido amplo são objetos de espaço da telenovela, a quebra do tabu so- consideração do autor que insiste com epi- bre a intimidade, rompendo o segredo e o sódios de acidentes, de doenças provocadas silêncio que já desfez muitos laços de afeto por eles ou não, e apresenta uma situação e condenou à tortura injustamente um nú- de seqüestro com morte por assassinato. mero nunca sabido de pessoas. Lembra ele oportunamente de articular em O autor constrói personagens jovens, suas tramas a prevenção do câncer de prós- mostrando as ambigüidades próprias da tata, já apresentou uma morte por câncer e idade. Destacamos Íris e Ciça como exem- irá, segundo consta, focalizar a leucemia e plos de jovens (ainda adolescentes) cons- as possibilidades que a medicina oferece truídas com alto teor de verossimilhança; para transplantes de medula. seus comportamentos expressam a falta de A inclusão do portador de deficiência medida, ousadia, arroubos e inconseqüên- física, conseqüência de um acidente de cia de uma ampla faixa de jovens que go- carro, mostra o esforço da vítima, as novas zam de liberdade de expressão e não alcan- possibilidades trazidas pelo avanço cientí- çaram ainda o equilíbrio exigido dos adul- fico e tecnológico e o apoio da família no tos. O autor introduz bambém na sua ficção trabalho de recuperação. Enquanto se de- uma variável de nossa época, conseqüên- senvolve esse processo, trabalha para o pai, cia das mudanças no modo de ser da vida assim como a irmã Ciça, e exercita-se como em família, que é o novo papel do homem fotógrafo. Os tipos masculinos são bem com relação aos filhos. Eles assumem cui- diferentes entre si, mas o tema será objeto dar deles com doçura, naturalidade e sem de análise em outro trabalho. reclamações, o que sugere um comporta- mento plenamente assimilado e incorpora- do como prática cotidiana. É o caso de Miguel e Fred, e de Laerte, o médico que CONSIDERAÇÕES FINAIS trabalha na clínica de Helena. Nos três exemplos temos homens empenhados em Não pretendemos esgotar os exem- cuidar de filhos em diferentes faixas etárias. plos. Acreditamos ter sido possível de- Fred cuida de Nina, que tem um ano, é ain- monstrar como a telenovela está marcada da quase um bebê. Laerte cuida do filho de pelo presente que vivemos. Os novos há- 11 anos, um pré-adolescente, e Miguel de bitos e comportamentos ainda pouco per- um filho adulto, 23, com seqüelas de um cebidos na vida cotidiana de parte signi- acidente, e Ciça, 20, e comportamento ain- ficativa da audiência estão articulados na da de adolescente. ficção antes mesmo que sejam plenamen- Manifestações de preconceito vêm dos te aceitos e transformados em conheci- mais velhos, como Alma e a mãe de Capitu. mento sobre a realidade. “Uma mulher dessas”, diz Alma com rela- Ela procura fazer ver o que na prática é 26 Material de divulgação da ção a Helena, que tem o dobro da idade de ainda invisível ou difusamente percebido. Rede Globo, Rio de Janeiro, CGCOM, 29/6/2000. Edu, “pode ser uma armadilha na vida de Nesse sentido, podemos dizer que ela cons-

86 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 titui um importante documento sobre os Lefebvre, “é a relação delas com as coisas dinâmicos processos de mudança em cur- e com os bens que se generaliza. Desde que so. Mais que isso, ela é memória no sentido elas existem, essas camadas médias procu- do que ela guarda e no sentido daquilo que ram sua satisfação: satisfações detalhadas ela faz guardar enquanto registro na me- e detalhes das satisfações. A vontade de mória coletiva, com maior força de perma- força e poder lhes escapa, a vontade de nência que outros geradores de memória criação mais ainda, por outras razões. A por sua duração e por ser única para os respeito delas seria inoportuno falar de um milhões de telespectadores. Por esse meca- ‘estilo’. Trata-se antes de uma falta de es- nismo social ela tenderá também a perma- tilo. Estendeu-se à sociedade inteira esse necer na memória de cada indivíduo. gênero de vida” (27). Independentemente de uma avaliação Dentro dos limites da ficção, e da tele- da telenovela como um todo, os aspectos novela como gênero e formato, pode-se levantados sobre o modo de constituição encontrar a lógica que orienta seu modo de da família, as questões ligadas ao trabalho/ reconstruir o universo social. Não podendo emprego, às atividades empresariais, ao ultrapassar as margens de um recorte, ater- comportamento dos jovens, às relações pais se ao estritamente particular, trabalha-se e filhos, à situação do homem e da mulher com o que é universal, válido para todo o quanto a uma nova configuração do papel grupo, porém representado pelo segmento econômico e social de cada um, percebe-se que, não tendo a maior expressividade nu- forte analogia entre a telenovela e uma si- mérica enquanto estrato social, compar- tuação que se delineia na realidade social tilha com todos os outros segmentos os concreta. Naturalmente sem pretensão de problemas que os afetam. Sua posição in- uma grande abrangência, do ponto de vista termediária a coloca em interlocução com da representação ficcional, já que ela está a base e o ápice da pirâmide social. Seu circunscrita a situações típicas expressas gênero de vida resulta em um padrão a partir por setores da classe média, que tem na do qual se examinam as especificidades. própria denominação a marca de posição Para cima (estratos sociais mais altos), elas intermediária entre a classe dominante e a são um ponto de partida, para baixo elas expressiva maioria, que pertence aos seg- são um ponto de chegada ou um ideal a se mentos socioeconômicos mais baixos. alcançar. O uso que dela faz a ficção cons- Todavia, são elas, as classes médias, que titui mais um recurso a essa lógica do que constituem um ponto de irradiação e de um privilégio estético e politicamente mani-

apoio para os estratos mais baixos. Para pulador da realidade. 27 H. Lefevbre, op. cit., p.102.

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