Coa Telenovela
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MARIA LOURDES MOTTER ○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○ A telenovela: documento MARIA LOURDES MOTTER é jornalista, professora da ECA-USP e ccoordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisa de Telenovela da ECA-USP. m 7474 REVISTAREVISTA USP,USP, SãoSão Paulo,Paulo, n.48,n.48,o p.p. 74-87,74-87, dezembro/fevereirodezembro/fevereiro 2000-20012000-2001 Uma síntese deste trabalho foi apresentada no X Encontro Lati- no-Americano de Faculdades de Comunicação Social – São Paulo 2000 – 23-26/10/00, no GT Telenovela e Sociedade, seção de 23/10/00. ○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○ histórico e lugar de memória “Controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar tanto as dominações como as rebeldias” (Marc Ferro) (1). ○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○○ Investigar o cotidiano na telenovela nos permitiu identi- ficar um modo fundamental de relação que ela mantém com a sociedade. Pudemos, a partir dessa categoria, enten- der melhor como se atenuam e se intensificam os diálogos que se processam entre ficção e realidade e como a produ- ção de sentidos ganha em convergência quando a proximi- dade temporal reduz o distanciamento temático. A atuali- dade intensificada sugere o simultâneo, o presente compar- tilhado e a suspensão das linhas que desenham os contor- nos dos mundos do ser e do parecer. A telenovela constitui um gênero amplo, abrangente, sob o qual subclasses de gênero se abrigam e se multiplicam 1 M. Ferro, A Manipulação da nas combinatórias possíveis autorizadas pelo cruzamento História no Ensino e nos Meios de Comunicação, São Paulo, dem tendências, traços, marcas e influências diversas. Ibrasa, 1983, p.11. o REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 75 Produtos típicos da indústria, como os cussão nos limites do presente texto, ape- da mexicana Televisa, convivem, sob igual nas buscamos demonstrar como a teleno- denominação, com criações artísticas que vela cumpre esse papel documental ao re- carregam marca autoral e propostas que fletir e refratar o momento do qual ela par- transcendem o melodrama, a simplificação ticipa enquanto ficção que se apropria do narrativa, a linearidade das personagens, a cotidiano e do qual participa inserida na economia cênica e se firma como drama- vida diária do público telespectador. turgia de grande qualidade. Para essa últi- É possível delinear uma história das ma temos insistido na denominação tele- transformações da vida cotidiana através novela brasileira (2) por se caracterizar pelo da telenovela nos seus 40 anos (TV em cuidado com todos os aspectos envolvidos geral) de existência e sua apropriação pela no processo de produção, entendido como cultura brasileira. Nesse sentido, podemos o espaço que vai da arte de fazer bons rotei- tomá-la como documento de época, como ros, sobre bons temas, para bons atores, à memória histórica e promover seu estudo qualidade que se expressa na requintada diacrônico. Nosso propósito tem um cará- produção audiovisual – com todas as im- ter sincrônico, ou seja, tomamos a teleno- plicações de preparação, elaboração e aca- vela em exibição para destacar as marcas bamento nas diferentes etapas produtivas. de época que ela contém e que autorizam Se o fio melodramático condutor da sua categorização como documento de valor história, o apelo à emoção, o caráter de histórico. A opção por trabalhar com o pre- serialidade e duração a situam no espaço da sente deve-se à universalidade do seu co- novela, o compromisso social, um modo nhecimento e à possibilidade, aberta a to- peculiar de estruturação do cotidiano e a dos, de estarem avaliando nossas observa- incompletude – que lhe permite manter com ções seja pela memória recente do que já se o telespectador um diálogo vivo – configu- construiu narrativamente, seja pelo proces- ram um fazer próprio, aprimorado e em so de vir a ser dessa construção. Trata-se, permanente renovação que individualiza a pois, de trabalhar com um objeto disponí- telenovela como produção genuinamente vel para observação e verificação dos as- brasileira (3). pectos que estaremos pontuando (5). O objetivo que orienta o presente traba- Partindo dos estudos da memória de- lho não diz respeito, portanto, à telenovela senvolvidos por autores como Le Goff e tomada no seu sentido lato, mas no sentido Halbwachs, por exemplo, e de teorias da stricto, no qual identificamos a caracterís- história elaboradas por Adam Schaff, 2 M. L. Motter, Ficção e Realida- tica universal do gênero que é o melodra- Michel de Certeau e da escrita da história, de: a Construção do Cotidia- no na Telenovela, tese de livre- ma, à qual se acrescentou a dimensão so- numa discussão que envolve lingüistas, docência, São Paulo, ECA-USP, dez./1999. cial e um rigoroso critério de verossimi- semiólogos, filósofos e historiadores, pro- 3 Idem, “Telenovela: Arte do Co- lhança. Esse critério, levado às últimas con- pomo-nos a investigar os vínculos que a tidiano”, in Comunicação e seqüências, dota-a de um caráter realista telenovela mantém com a história e com a Educação, ano 5, n. 13, São Paulo, Moderna, set.-dez./ criador de uma impressão de realidade for- memória enquanto arquivo de saber indi- 1998, pp. 89-102. te a ponto de, em alguns casos, quase fun- vidual, cuja conservação e recuperação, sob 4 Idem, Projeto e relatórios Fa- dir acontecimentos dos planos da ficção e a forma de lembrança, dependem predomi- pesp Ficção e Realidade: a Construção do Cotidiano na da realidade. nantemente da memória do grupo, confor- Telenovela, São Paulo, NPTN- CCA-ECA-USP, 1995; “O Fim Os exemplos são muitos. Já tratamos me orientação de Maurice Halbwachs em do Mundo: Ordem e Ruptura – dessa questão em outros trabalhos (4). A seu trabalho fecundo, e inacabado, sobre a Dias Gomes, um Autor em Bus- ca de um Mundo Ético”, in Éti- retomada que ora empreendemos tem ape- memória coletiva. ca e Comunicação, ano 1, n.1, São Paulo, Fiam, jan.-jul./ nas por finalidade extrair daí os pressupos- Limitamo-nos a pensar como a teleno- 2000; “Telenovela: Crônica do tos necessários para pensar a telenovela vela constrói uma memória, ao mesmo tem- Cotidiano”, in Ética e Comuni- cação (no prelo); Ficção e Re- como uma forma de memória que registra, po documental – por sua permanência físi- alidade: a Construção do Co- no curso do tempo, o processo de transfor- ca como produto audiovisual gravado, mas tidiano na Telenovela, op. cit. mação da sociedade brasileira. Sem qual- sobretudo por sua vinculação com o pre- 5 É o que faz o Jornal Folha de S. Paulo. Ver nota 14. quer veleidade de aprofundamento da dis- sente, que a impregna com suas marcas – e 76 REVISTA USP, São Paulo, n.48, p. 74-87, dezembro/fevereiro 2000-2001 coletiva – pelo compartilhamento dos sa- variadas formas elementos que recuperam beres que ela difunde para seu amplo públi- e presentificam o já acontecido. São exem- co. Este segundo aspecto vem sendo de- plos as revistas especializadas que contri- senvolvido paulatinamente e já foi objeto buem para divulgar a telenovela, amplian- de nossas discussões anteriores. Sua reto- do seu raio de ação e recuperando sistema- mada, no contexto do presente artigo, tem ticamente o que já se converteu em passa- por objetivo aproximá-lo do conceito de do. Do mesmo modo os cadernos e seções memória coletiva. O primeiro aspecto, ou de jornais e revistas informativas, o rádio, seja, o caráter documental de época que e a própria televisão provocam lembranças vem se acentuando no modo brasileiro de e reforçam a memória quando fazem re- fazer esse tipo de ficção, é uma reflexão trospectivas ou produzem programas espe- nova no contexto das investigações que ciais, como os comemorativos dos cinqüen- iniciamos no ano de 1995. ta anos da televisão brasileira (9) ou fixos O telespectador registrará de algum como o Vídeo Show. A permanente citação modo as histórias a que assiste diariamente que se introduz na própria telenovela, reme- no horário nobre com graus variáveis de tendo a lugares, personagens, situações, nitidez em razão da intensidade de seu cumpre essa função rememorativa. O mes- envolvimento com as questões tratadas, que mo se dá quando a telenovela é recuperada podem dizer respeito à situação, ao ator, à e introduzida em outros itens da programa- personagem, enfim, à imensa variedade de ção televisiva, como tema, paródia, ilustra- fatores estruturais ou conjunturais imbri- ção, alusão ou como objeto de crítica. Todos cados na telenovela, aí incluídos os seus, esses usos atuam na propagação de um sa- de caráter subjetivo (6), entre os quais suas ber a respeito da telenovela, com alcance próprias lembranças do passado. Por exem- para muito além do telespectador habitual, plo, as músicas que marcaram a vida das funcionando também como um reforço para personagens também reavivam as marcas a memória. pessoais do telespectador. Além deste as- Assim, a relação com a telenovela atin- 6 A construção das personagens da telenovela inclui aspectos pecto estritamente individual, a memória ge uma outra audiência que não mantém do passado que justificam con- coletiva contribui para acrescentar traços com ela vínculos de fidelidade. Outros flitos que se manifestam no pre- sente da história. A relação de ou destacar elementos com cores mais for- modos de envolvimento indireto com a te- Helena e Pedro começa na adolescência de ambos e rea- tes. “Ao lado de uma história ciência, te- lenovela podem ocorrer. Grupos profissio- parece como flash-back presen- mos uma história vivida que constitui a me- nais, minorias, setores da sociedade, insti- tificando aquele momento pas- sado. A trilha sonora marca mória coletiva, sujeita a deformações, tuições, etc., têm sua atenção requisitada também a fase de suas vidas mitificações e anacronismos. Ela é ao mes- para avaliarem como estão sendo cons- em que se formou o seu gosto, o que aparece pontuado pe- mo tempo um dos objetos da história e um truídos – enquanto caracterização do gru- las canções da época.