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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA DOUTORADO EM HISTÓRIA

O ASCETISMO REVOLUCIONÁRIO DO MOVIMENTO 26 DE JULHO: o sacrifício e o corpo na Revolução Cubana (1952-1958)

Rafael Saddi Teixeira Orientador: Luís Sérgio Duarte da Silva

Goiânia-Goiás-Brasil, 2009

Termo de Ciência e de Autorização para Disponibilizar as Teses e Dissertações Eletrônicas (TEDE) na Biblioteca Digital da UFG

Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás–UFG a disponibilizar gratuitamente através da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações – BDTD/UFG, sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei nº 9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura, impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir desta data.

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1 Em caso de restrição, esta poderá ser mantida por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo suscita justificativa junto à coordenação do curso. Todo resumo e metadados ficarão sempre disponibilizados. 1

RAFAEL SADDI TEIXEIRA

O ASCETISMO REVOLUCIONÁRIO DO MOVIMENTO 26 DE JULHO: o sacrifício e o corpo na Revolução Cubana (1952-1958)

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em História. Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades.

Linha de Pesquisa: Identidadades, Fronteiras e Culturas de Migração.

Orientação: Prof. Dr. Luís Sérgio Duarte da Silva

Goiânia-Goiás-Brasil, 2009 2

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central – UFG

Teixeira, Rafael Saddi. T261a O ascetismo revolucionário do Movimento 26 de Julho [manuscrito] : o sacrifício e o corpo na Revolução Cubana (1952 a 1958) / Rafael Saddi Teixeira – 2009. 209 f.

Orientador: Prof. Dr. Luis Sérgio Duarte.

Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de História, 2009.

Bibliografia. Inclui lista de figuras e tabelas.

1. - Revolução 2. Ascetismo – Movimento 26 de Julho. I.Título CDU: 94(729.1)

Goiânia-Goiás-Brasil, 2009 3

Rafael Saddi Teixeira

O ASCETISMO REVOLUCIONÁRIO DO MOVIMENTO 26 DE JULHO: o sacrifício e o corpo na Revolução Cubana (1952-1958)

Tese defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás, para a obtenção do Título de Doutor em História, aprovada em ______/______/2009, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

______Prof. Dr. Luis Sérgio Duarte da Silva UFG

______Prof.(a) Dr(a) Silvia César Miskulin USP

______Prof.(a) Dra. Mireya Suárez UNB

______Prof.(a) Dra. Olga Rosa Cabrera García UNB

______Prof.(a) Dra. Isabel Ibarra Cabrera UFG

______Prof. Dr. Eugênio Rezende de Carvalho UFG (Suplente)

______Prof. Dr. Jaime de Almeida UNB (Suplente)

Goiânia-Goiás-Brasil, 2009 4

AGRADECIMENTOS

Quero agradecer, primeiramente, ao meu professor e orientador, Dr. Luís Sérgio Duarte da Silva, por ter me feito voltar a escrever a história com as mãos, já que sonhei que a escrevia com os pés. Por ter, também, acreditado em mim quando ninguém, nem eu mesmo, diria que este corpo alto e pesado valia mais do que alguns poucos quilos de sucata. Por ter, sobretudo, me oferecido os seus olhos, capazes de alargar de forma sempre profunda a minha percepção do objeto de estudo. Agradeço à professora Dr. (a) Olga Cabrera, primeiramente, por ter me orientado no início de nossa tese, por me fornecer, desde o mestrado, uma percepção distinta de Cuba, e por me fazer perceber que eu deveria seguir em frente, senão por mim mesmo, por aqueles que me amam. Agradeço ao meu pai (in memória), por ter sempre se orgulhado dos meus pequenos êxitos, por ter acreditado, mesmo nos seus momentos finais, que eu terminaria mais esta missão, ainda que não estivesse mais por perto. Agradeço por me fazer saber que seria o primeiro a querer ler as páginas que seguem. Agradeço à professora Dr. (a) Isabel Ibarra, por ter acompanhado toda a minha pesquisa sobre Cuba, desde os primeiros momentos no Mestrado até a qualificação de nossa Tese. Por ter, neste longo caminho, fornecido contribuições valiosas, sem as quais não poderíamos chegar até aqui. Agradeço à Dr. (a) Mireya Suárez, por ter me fornecido a indicação perfeita para que eu pudesse construir o objeto de pesquisa e por todas as contribuições na minha defesa de dissertação. Elas foram muito importantes para esta tese. Quero agradecer ao CECAB – Centro de Estudos do Caribe no Brasil, por todas as condições que forneceu à minha pesquisa sobre Cuba. Sobretudo, por ter me propiciado o acesso, real e imaginário, à Ilha perdida. Ao professor Dr. Alexandre Martins de Araújo, pelo incentivo e pelos debates importantes. Agradeço à Lúcia Saddi Teixeira e à Juliana Saddi Teixeira, pelo amor incondicional e pela revisão ortográfica. À professora, Mestre e madrinha, Magali Saddi Duarte, pelo abstract e pelos abstratos debates. E à Maria Emília Bueno Machado, por ter suportado uma alma despedaçada e por ser o motivo maior que mais faz seguir.

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SUMÁRIO

RESUMO ...... 06

ABSTRAT ...... 07

INTRODUÇÃO ...... 08

PARTE I - A GERAÇÃO DO CENTENÁRIO E AS SUAS INFLUÊNCIAS IDEOLÓGICAS ...... 19

CAPÍTULO 01 - A Geração do Centenário no mundo das contradições ...... 21

CAPÍTULO 02 - As Influências Ideológicas ...... 45

PARTE II - O ASCETISMO REVOLUCIONÁRIO DO MOVIMENTO 26 DE JULHO: o sacrifício e o corpo durante a luta insurrecional cubana (1952- 1958) ...... 93

CAPÍTULO 03 - O Sacrifício Revolucionário ...... 99

3.1. O sacrifício do emprego ...... 99

3.2. O Sacrifício da Comunidade Familiar e do Amor Pessoal ...... 110

3.3. O sacrifício da vida ...... 121

3.4. O sacrifício dos prazeres do corpo ...... 129

Capítulo 04 - O CORPO REVOLUCIONÁRIO ...... 143

4.1. O Corpo Dócil ...... 143

4.2. O Corpo Viril ...... 158

4.3. O Corpo Hierárquico ...... 170

CONSIDERAÇÕES FINAIS ……………………………………………….191

REFERÊNCIAS ...... 201 6

RESUMO

O objetivo de nossa tese é compreender o sentido imaginado e subjetivo da ação do revolucionário cubano do Movimento 26 de Julho durante o período de luta insurrecional (1952 a 1958). Nossa hipótese é que esta ação social esteve marcada pelo ascetismo político revolucionário , isto é, por um tipo de ação em que o agente se sente um instrumento dos valores puros e nobres da causa revolucionária. O revolucionário asceta se distancia do revolucionário pragmático na medida em que sua ação não é encarada como um meio racional para se alcançar o fim sistematicamente almejado. Pelo contrário, sua ação é, sobretudo, um cumprimento do dever. Analisamos, a partir disto, o sacrifício revolucionário como uma forma de trazer os valores puros e nobres de volta ao mundo corrompido e percebemos o modo como o ideal de corpo esteve presente nos discursos dos rebeldes cubanos.

Palavras-chave: asceticismo, Revolução Cubana, ação social, ética revolucionária, Movimento 26 de Julho

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ABSTRACT

The goal of this thesis is to understand the imagined and subjective meaning of the action of the cuban revolutionary of the 26 th July movement during insurrection rebellion (fight ou dispute)(1952 to 1958). Our hypothesis is that this social action was marked by political revolutionary asceticism, that is, by one kind of action in that the agent feels as an instrument of pure and noble values of the revolutionary cause. The ascetic revolutionary is quite different from the pragmatic revolutionary since its action is not faced as a rational way to reach the aim systematically desired. On the contrary, its action is, mainly, a task to be accomplished. We analyzed, from this point, the revolutionary sacrifice as a way of bringing back to the corrupted world the pure and noble values and we noticed how the ideal of the body was presented in the discourses of the Cuban rebellions.

Key-words: asceticism, , social action, revolutionary ethic, 26 July movement

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INTRODUÇÃO

O nosso interesse por compreender o processo revolucionário cubano se iniciou com nossa dissertação de Mestrado. Nela analisamos o processo de constituição e consolidação do carisma de durante o período de 1952 a 1960. Foi pesquisando sobre o carisma que nos deparamos com um tipo de conduta revolucionária que nos parecia peculiar. Chamava-nos a atenção a distância que parecia haver entre os revolucionários dos partidos comunistas tradicionais e os revolucionários cubanos. A diferença entre os dois tipos de revolucionários não era somente na concepção teórico-estratégica, como a historiografia por várias vezes buscou afirmar ao tratar das oposições entre foquismo e ação de massas, partido político e guerrilha, idealismo e materialismo. Havia, sobretudo, uma diferença que se expressava no corpo do revolucionário. Que revolucionário bolchevique, por exemplo, poderia compreender um personagem como o mitológico , com seus cabelos e barbas enormes, seu chapéu yarey dos camponeses da ilha, seu jeito de dançarino de rumba e sua alegria e humor desmesurados para um homem que combatia nas condições árduas da vida guerrilheira? Em nossa banca de defesa da dissertação do Mestrado, a professora doutora Mireya Suárez aconselhou-nos a nos debruçar, em uma futura tese de doutorado, sobre esta postura revolucionária distinta. Mas este conselho ficou adormecido em nós por algum tempo. Quando iniciamos nossa tese de doutorado, mudamos várias vezes de objeto. Passamos, por um momento, pelo desejo de estudar as tensões entre a esfera política e a esfera artística e iniciamos, assim, uma pesquisa sobre a literatura cubana. Em outro momento, nos apaixonamos pelo bolero e pelo filin e achamos, enganosamente, que nos debruçaríamos mais profundamente sobre isto. Mas, não. Quase sem querer voltávamos a uma busca pela compreensão do tipo de conduta do revolucionário cubano. Pouco a pouco, a leitura dos diários, memórias, cartas e discursos revolucionários foram apontando pistas interessantes que nos levavam a um anseio 9

cada vez maior por compreender a peculiaridade dos valores que guiavam a ação do revolucionário em Cuba. Foi assim que fomos definindo como nosso objeto de estudo a ação social do revolucionário do Movimento 26 de Julho durante o período de 1952 e 1958. O ano de 1952 foi o ano em que se estabeleceu a ditadura de Fulgêncio Batista aos 10 de março. Embora o Movimento 26 de Julho tenha surgido oficialmente somente em 1955, ele foi fruto das iniciativas organizativas iniciadas logo após o golpe militar. O ano de 1958 marcou a derrubada da ditadura e a vitória das forças insurrecionais, colocando fim ao que chamamos de período de luta insurrecional. Por ação social entendemos aquilo que Weber (2001, p.400) definiu como “uma ação na qual o sentido sugerido pelo sujeito ou sujeitos refere-se ao comportamento de outros”. O objetivo de nossa tese é, portanto, compreender o sentido imaginado e subjetivo da ação do revolucionário cubano do Movimento 26 de Julho durante este período de luta insurrecional. O que significava para o rebelde cubano tomar as armas nas mãos para enfrentar o regime de Batista? Mais ainda, o que significava abandonar a vida cotidiana e constituir um modo de vida peculiar distinto dos modos de vida rotineiros? Que tipo de valores guiava as escolhas do revolucionário cubano na constituição deste modo de vida extraordinário? No interior da historiografia da Revolução Cubana, a figura do revolucionário foi constantemente tratada de duas formas. Algumas vezes como um revolucionário racional com um programa revolucionário sistemático e um conjunto de estratégias e táticas racionais voltadas para a realização do programa. Dentro desta postura, o revolucionário aparece como o político calculista, frio e dissimulado traçado por Cabrera Infante ao analisar a liderança de Fidel Castro 2; ou como o revolucionário consciente, dotado de capacidade de previsão, com um programa e estratégias

2 Encontramos esta imagem de Fidel mais especificamente no prefácio que Guillermo Cabrera Infante escreveu para o livro Retrato de Família com Fidel do revolucionário cubano exilado (1980). Nele, Cabrera Infante afirma que Fidel vê “a história como um manipulador que a utiliza como um instrumento para controlar os homens, e a política como um meio de disfarçar a verdade e alcançar o poder” (idem, ibidem).

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sistematicamente estabelecidos como a imagem traçada por Marta Harnecker (2000) 3 e também por Okunieva (1988) 4, que viam no processo revolucionário cubano uma aplicação do leninismo na ilha. Outras vezes, o revolucionário cubano foi tratado como um santo humanista, dotado de profundos sentimentos de amor à humanidade e à vida. Talvez ninguém melhor do que encarnou em diferentes discursos estes dois personagens opostos. Hora aparece como um Jesus Cristo do século XX, hora como uma máquina fria de matar. Estas imagens opostas sobre os revolucionários que atuaram na luta insurrecional cubana estão impulsionadas por posições políticas claramente determinadas, sejam de oposição ou adoração ao regime cubano, e criaram fórmulas unilaterais que ignoraram a complexidade da ação revolucionária. Ao buscar compreender o tipo de ação social do revolucionário do Movimento 26 de Julho; fomos, no desenvolvimento da pesquisa, sistematizando os valores e elementos subjetivos que apareciam com contornos mais fortes no material empírico analisado e recorrendo a comparações entre os discursos revolucionários dos lutadores cubanos e outros discursos de revolucionários de diferentes épocas e países. Este processo nos levou a construir dois tipos opostos de ética revolucionária: o ascetismo e o pragmatismo. Estes tipos opostos são tipos ideais que, conforme a orientação metodológica da sociologia compreensiva; não existem na realidade, mas como utopias que se procedem a partir da reunião de determinados traços que se manifestam difusos entre os revolucionários de diferentes países e épocas e que puderam ser reunidos a partir de alguns elementos que consideramos mais essenciais para o objetivo de nossa pesquisa. O tipo ideal deve ser entendido como um meio e nunca como um fim. Trata-se de um recurso heurístico pelo qual podemos medir, através da aproximação ou do distanciamento, uma realidade empírica. Como afirmou Weber (2001, p. 140), o tipo ideal tem o significado de um “conceito-limite, puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos importantes.”.

3 HARNECKER, Marta. Fidel. A Estratégia da Vitória . São Paulo: Expressão Popular, 2000. 4 OKUNIEVA, OKUNIEVA, M. La Classe Obrera en la Revolución Cubana. Ciudad de La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1988. 11

A relação entre os tipos ideais formulados e o material empírico foi marcada por tensões constantes. Ao analisar as memórias, os diários, as cartas e os discursos dos revolucionários cubanos; fomos percebendo elementos que separavam estes revolucionários de outros revolucionários que conhecíamos melhor. Ao recorrer a outros discursos revolucionários de outros tempos e países, fomos formulando melhor que diferenças eram estas. Assim, voltávamos ao material empírico e à formulação dos tipos ideais, em um constante revezamento entre teoria e empiria. Desta forma, não podemos pensar o revolucionário cubano como um exemplo de um tipo de ética revolucionária. A realidade histórica e os tipos são de ordens distintas. O próprio termo revolucionário cubano não inclui todos aqueles que lutaram na Revolução Cubana. A ética revolucionária não pode ser compreendida como a ética de todos eles. Explicar todas as normas de conduta, todos os traços de valores que guiavam cada um dos homens que lutaram no processo insurrecional cubano é uma tarefa impossível. Impossível primeiro pela limitação documental característica da disciplina histórica. Não podemos compreender o passado a não ser mediados pelos documentos que nos foram deixados. Mas, impossível também pelo fato de que os valores e ações de um homem são contraditórios, complexos e dificilmente apresentam a coerência que um tipo ideal pode apresentar. Assim, não vemos a possibilidade de produzir uma compreensão da ação do revolucionário cubano sem recorrermos ao uso de tipos ideais. Como afirmou Weber (2001, p. 139), o historiador ao tentar ir além da mera comprovação de relações concretas para determinar a significação cultural de um evento individual, “tem de trabalhar com conceitos que, via de regra, apenas podem ser determinados de modo preciso e unívoco sob a forma de tipos ideais”. Podemos dizer que é possível encontrar na ação dos revolucionários cubanos traços tanto da conduta tipicamente asceta quanto traços da conduta pragmática. Entretanto, podemos dizer, e esta é a hipótese que buscamos defender em nossa tese, que existe uma predominância do tipo de conduta do ascetismo político revolucionário. O termo ascetismo encontra um paralelo na sociologia das religiões de Max Weber que precisa ser esclarecido. Segundo o autor alemão, o ascetismo ativo religioso é “uma ação, desejada por Deus, do devoto que é instrumento de Deus”. 12

(idem, 1982, p. 373). O asceta age “dentro do mundo”, visando “domesticar o que é da criatura e maligno através do trabalho numa vocação ‘mundana’”. (idem, p. 374). O ascetismo se diferencia do misticismo porque este último visa não a ação, mas uma “possessão contemplativa do sagrado”. (idem, ibidem). O místico é não um instrumento, mas um “recipiente do divino”. (idem, ibidem). Desta forma, “a ação no mundo é vista (...) como um perigo para o estado irracional e outros estados religiosos voltados para o outro mundo.” (idem, ibidem). O ascetismo busca atuar no mundo e o misticismo busca uma fuga do mundo. O último “se coloca à prova contra o mundo, contra a sua ação no mundo”, enquanto o primeiro “prova-se através da ação”. (idem, ibidem). Uma ética política se distancia de uma ética religiosa, entre outras coisas, pela sua necessidade de utilização da violência como meio. Para Weber (1982, p. 98), um dos meios específicos peculiares a qualquer associação política é “o uso da força física”. Inclusive, “é o meio específico de legitimar a violência como tal, na mão das associações humanas, que determina a peculiaridade de todos os problemas éticos políticos.” (idem, p. 148). Na esfera política, entre aqueles que utilizam a violência para o desenvolvimento de uma revolução, é possível perceber a existência de um tipo ético de rejeição do mundo. O asceta político revolucionário é aquele que se sente um instrumento dos ideais nobres e puros da causa revolucionária. O mundo e os seus prazeres estão marcados pela presença maligna, seja ela a corrupção, a vaidade, a exploração ou outros tipos de impurezas. O asceta tem o dever de agir para trazer os valores nobres e puros ideais para o mundo. Ele se levanta em armas para cumprir com um dever com estes valores revolucionários. Mas, o ascetismo político revolucionário não pode ser definido simplesmente por uma ação em que o agente se sente um instrumento dos valores puros e nobres da causa revolucionária e entende a ação política como uma forma de trazer os seus deuses para a terra. Mas, também por sua distinção em relação à ética racionalista do militante revolucionário profissional ou o que chamamos também de pragmatismo político. O revolucionário profissional encontrou a sua forma quase pura na conduta do militante leninista, que está firmada na imagem de um revolucionário militante que possui uma teoria revolucionária (o materialismo histórico); um objetivo revolucionário sistemático (o comunismo); e um conjunto de estratégias e táticas 13

racionais escolhidas a partir de uma análise de conjuntura. Este militante profissional atua dentro de uma empresa burocrática (o partido político) e obedece ao seu programa e estatuto racional. Em um sentido ideal, e somente em sua pureza ideal, o militante revolucionário pragmático se torna um membro do partido não por uma alusão aos valores de honra e dever, mas por uma concordância com o programa e a teoria da empresa burocrática. As escolhas e táticas do militante profissional organizado no partido não são também fornecidas por um conjunto de valores irracionais e abstratos, mas por uma busca dos caminhos mais eficazes e mais curtos para se alcançar o objetivo programático do partido. Por fim, a prática do militante e sua obediência aos chefes partidários não é dada pelos valores mágicos que possam os últimos carregar, mas por uma obediência ao estatuto racional do partido e à sua estrutura burocrático-legal. De uma forma esquemática, podemos dizer que ao pragmatismo político corresponde uma centralidade dos fins sobre os meios, o que quer dizer que os fins revolucionários justificam os meios escolhidos, independente de quão justos sejam. A ação é tomada como um bom senso político. Não há assim meios puros ou impuros, mas meios eficazes e não eficazes. O revolucionário é um calculista frio que busca os meios mais curtos para alcançar a Revolução. Pelo contrário, o ascetismo político revolucionário corresponderia a uma atitude em que os meios são escolhidos, sobretudo, de acordo com a sua pureza moral. A ação é tomada como dever. O asceta político longe de seguir um programa sistematicamente estabelecido se preocupa com a coerência entre os valores ideais que carrega e a ação que executa. Analisando os diários, memórias e cartas dos revolucionários cubanos, fomos percebendo que a ação revolucionária não se resumia a uma ação política pragmática. O revolucionário pegava em armas não para simplesmente alcançar a derrubada de Fulgêncio Batista e estabelecer um programa revolucionário. A atitude de pegar em armas era para o revolucionário cubano algo mais do que um simples resultado de avaliações políticas e racionais, algo mais do que um mero “bom senso” político, algo mais do que a busca do caminho mais rápido para alcançar o fim almejado. O domínio da inescrupulosidade e da frieza calculista para alcançar a vitória da revolução podia ser característica comum de diferentes partidos revolucionários 14

em distintos momentos da história humana, mas não dos grupos insurrecionais cubanos dos anos 50. O tipo de conduta do revolucionário do Movimento 26 de Julho, fortemente influenciado pela tradição nacionalista cubana, estava firmado em determinados valores que seriam para um revolucionário profissional mero idealismo e romantismo pequeno burguês. A ação revolucionária implicava profundos sentimentos de dever e honra, de sacrifício e coerência. O empunhar das armas contra a tirania era tomada por grande parte dos rebeldes como uma obrigação moral com a pátria, um dever cujo esquecimento era tido como traição. A ação revolucionária, desta forma, antes de buscar os caminhos mais fáceis e rápidos, deveria encarnar os nobres ideais de um homem nacionalista, visando não a simples eficácia, mas a coerência. Os documentos prioritários que utilizamos foram os documentos que chamamos aqui de documentos revolucionários, formados por cartas, memórias, diários, relatos, artigos e discursos produzidos pelos revolucionários e referentes ao período de luta insurrecional cubano que vai do período de 1952-1958. Dentre os principais documentos podemos citar aqueles produzidos durante a própria luta revolucionária, como as cartas trocadas entre os rebeldes durante todo o período da luta insurrecional, que encontramos no volumoso livro de documentos Diary of the Cuban Revolution , organizado por Calos Franki (1980). Neste livro, encontramos mais de 500 cartas dos principais dirigentes do Movimento 26 de Julho, como Fidel, Raúl, Che, Camilo, Frank País, Carlos Frank, Armando Hart, Celia Sanchez, Faustino Pérez e René Ramos Latour. Analisamos também cartas dos revolucionários para seus familiares, amigos e companheiros de luta, como algumas cartas de Che, publicadas no livro Cartas ; algumas cartas de René Ramos Latour, publicadas no livro de Vecino Alegret (2003). Outro tipo de documento relevante produzidos durante o período estudado foram os diários de guerrilha, em que se destacaram aqui os diários de Che Guevara e Raúl Castro (1997), publicados no pelo nome de Rumo à . Os diários inéditos da guerrilha cubana e o diário de guerrilha de um guerrilheiro pouco conhecido e que não ocupou nenhum papel de direção durante a luta rebelde, o combatente Fernando Vecino Alegret (2003), publicado com o nome de Testemunho de um combatente . Outro documento do período foram os discursos e artigos revolucionários, como os discursos de Fidel presentes no já citado Diary of the Cuban Revolution , e os artigos dos jornais clandestinos Alerta, Son los Mismos e El Acusador publicados no livro El Grito del 15

Moncada do historiador cubano Mario Mencía (1986). Também analisamos documentos oficiais dos grupos rebeldes tais como a Carta de Princípios do MNR – Movimento Nacional Revolucionario, publicado no já citado livro de Mario Mencía; documentos da organização insurrecional TRIPLE-A, publicados no livro de Aureliano Sanchez Arango (1962), Trincheras de Ideas...y de Pedras ; circulares e documentos internos do Movimento 26 de Julho, publicados no Diary... e no livro Aldabonazo. En la clandestinidad cubana. 1952-1958 do dirigente revolucionário Armando Hart Dávalos (2007); bem como o famoso manifesto A História me Absolverá , defesa de Fidel Castro (2001) durante o julgamento do ataque ao quartel Moncada e que se tornou um documento programático oficial do Movimento 26 de Julho e a coletânea de documentos da luta urbana, Semillas de Fuego (1990) . Nos documentos produzidos depois do período estudado, encontramos um número significante de memórias, relatos e entrevistas com os rebeldes que participaram ativamente da luta insurrecional. Dentre eles, se destacam as memórias de guerrilha de Che Guevara (2005), organizada sobre o nome de Pasajes de La Guerra Revolucionaria ; as memórias do combatente do Llano e dirigente do Movimento 26 de Julho , Vida Clandestina. My life in the Cuban Revolution (2002) e Un Revolucionario Cubano Pescando Recuerdos (2007) ; as obras de memórias do comandante guerrilheiro intituladas Prisão (1989) , Exílio (1989a) , La Sierra Maestra y más allá (1995) ; as memórias do combatente Berlamino Castilla Más (1997), que ficou conhecido por “Comandante Aníbal”, de nome Recuerdos Imborrables ; os relatos do combatente William Gálvez (1998), 1958. invasión rebelde ; as memórias do dirigente Armando Hart Dávalos presentes no seu livro já aqui citado; as memórias de diferentes lutadores selecionadas no livro Memorias de la Revolución Cubana (2009) ; as memórias auto- biográficas do literato, que ao menos por um pequeno período, também chegou a ser guerrilheiro, Reinaldo Arenas (1994), Antes que Anoiteça ; a seleção de relatos revolucionários da luta insurrecional organizados por Carlos Franqui (s/d) intitulada Relatos. Revolución Cubana , que incluem relatos de Celia Sanchez, Universo Sanchez, Haydée Santamaría, Guillermo García, Manuel Fajardo, Faure Chomón, Efigenio Amejeiras, Camilo Cienfuegos, Ernesto Guevara e Vilma Spín; as memórias do guerrilheiro estadunidense Neil Macaulay (1970), A Rebel in Cuba. An american’s memoir ; as memórias do combatente (1978) contidas no seu livro The unsuspected Revolution ; as memórias de José Luis Llovio-Menéndez (1988), Insider ; 16

as memórias da combatente urbana e, depois, esposa de Che, Aleida March (2009), publicadas recentemente sob o nome de Evocação. Minha vida ao lado do Che ; as memórias do atacante do Moncada Mario Lazo Pérez (1987), Recuerdos del Moncada ; a coletânea de entrevistas, discursos e documentos da guerrilheira cubana Vilma Spín (1990) chamada La Gesta Revolucionaria: acciones y heroes , a coletânea Vidas Rebeldes formada de entrevistas e relatos da combatente cubana Haydée Santamaría (2008) ; o livro de Che (1980) A Guerra de Guerrilhas ; a biografia de Julio Antonio Echevarría, escrita por um de seus companheiros de luta, Julio A. García Oliveras (2001), e que não deixa de ser um relato de memória chamado Julio Antonio Echevarría. La lucha estudantil contra Batista . Analisamos também alguns documentos produzidos não pelos próprios revolucionários em armas, mas por pessoas que de alguma forma ou de outra participaram como agentes políticos no período estudado, como as valiosas memórias e análises do que viria a ser o primeiro presidente do governo revolucionário em 1959, Manuel Urrutía (1975), Democracia Falsa y Falso Socialismo. Pre-castrismo y Castrismo ; as memórias e análises do presidente cubano , presentes nas obras Paradojismo (s/d) e Cuba Betrayed (1962) ; as memórias do poeta cubano Herberto Padilla, Mala Memória (1989) . Outros livros historiográficos, biografias de revolucionários, obras literárias, que estão citadas na bibliografia deste trabalho também foram documentações utilizadas para situarmos o ambiente do período de luta insurrecional. Uma das contribuições desta tese está em possibilitar a reconstrução do modo de vida revolucionário a partir de documentos inéditos no Brasil. Inéditos, porque alguns deles não foram ainda publicados, mas também porque a maior parte das pesquisas brasileiras sobre a revolução cubana foi centrada em documentos dos revolucionários comunistas mais conhecidos, tais como Che Guevara e Fidel Castro, como podemos verificar nos trabalhos de Florestan Fernandez (1979), Tânia Quintanero (1988) e Emir Sader (1991). Recentemente, surgiu, no Brasil, um conjunto de trabalhos valorosos, que se distanciam dos trabalhos acima citados. Falamos dos livros de Sílvia Cezar Miskulin (2003 e 2009), da tese de doutorado de Mariana Martins Villaça (2006) e das pesquisas de mestrado e doutorado incentivadas pelo CECAB - Centro de Estudos do Caribe no Brasil, tais como a tese de doutorado de Rickley Leandro Marques (2009) e a dissertação de mestrado de Maria Martha Rabelo (2006). Estes trabalhos 17

recentes apresentam uma preocupação maior com os processos culturais na Revolução Cubana, buscando compreender os discursos do exílio ou/e o discurso dos intelectuais como discursos marcados pelas tensões do processo revolucionário. Nossa tese se inclui neste processo de reorientação dos enfoques fornecidos à temática da Revolução Cubana. Buscando fugir de uma metodologia centrada exclusivamente no tema político e econômico, comuns nas historiografias das revoluções, pudemos fazer surgir uma série de elementos aparentemente irrelevantes , mas que possuíam um significado subjetivo profundo na constituição do modo de vida revolucionário cubano e na constituição da ordem política e econômica em Cuba. O enfoque fornecido e o tipo de fonte utilizado nos possibilitaram aproximar do particular, do individual, do singular. A memória e o diário retomam a experiência vivida e cotidiana de cada revolucionário, apresentando os pequenos incidentes que rodeavam o cotidiano do revolucionário, sua relação com a família, com a morte, com os prazeres do corpo, com o emprego. Em uma frase, pudemos nos aproximar do rico universo sentimental do rebelde cubano. Visando alcançar os objetivos de nossa tese, a organizamos em duas partes. A Primeira Parte; A Geração do Centenário e as suas Influências Ideológicas , dividida em dois capítulos; busca situar a geração revolucionária dos anos 50 e as influências ideológicas que permeavam os revolucionários desta geração. O primeiro capítulo A Geração do Centenário no mundo das contradições visou compreender o mundo em que se formou a geração do centenário. Percebemos que a Cuba dos anos 50 era um mundo de contradições marcado pela convivência e estranhamento entre elementos modernos e tradicionais. O segundo capítulo trata das Influências Ideológicas dos revolucionários cubanos. Por influências ideológicas e ideologia não estamos tratando aqui do termo marxista, que remete a uma noção de falsa realidade. Pelo contrário, tratamos ideologia no sentido de um conjunto de idéias mais ou menos sistemáticas que apontam uma finalidade última para a ação política, como o socialismo, o anarquismo, o nacionalismo, o republicanismo, etc. Por influências ideológicas falamos da influência que um grupo político ou um homem político está exposto a receber de uma ou mais ideologias. Assim, tentamos reconstruir, neste segundo capítulo, a partir de uma pesquisa dos documentos revolucionários, as influências que no contexto cubano a 18

geração do centenário sofreu do idealismo martiniano, do marxismo-leninista e dos ideais nacionalistas dos partidos populares de Cuba. Percebemos nesta parte, que os revolucionários se voltaram mais para os valores éticos professados pelo nacionalismo cubano do que para a constituição de um programa revolucionário sistemático claramente ancorado em uma ou outra ideologia. A Segunda Parte, O Ascetismo Revolucionário do Movimento 26 de Julho: o Sacrifício e o Corpo durante a luta insurrecional cubana (1952 a 1958) ; dividida, também, em dois capítulos; trata da constituição do modo de vida revolucionário e do surgimento do corpo revolucionário formado neste novo modo de vida. Nesta segunda parte é que desenvolvemos a nossa hipótese, buscando compreender o modo como o revolucionário é marcado pelo ascetismo político revolucionário. No terceiro capítulo, O Sacrifício Revolucionário ; analisamos as conseqüências desta ética asceta como uma ética de negação do mundo. O mundo cotidiano e rotineiro é tomado pelos rebeldes cubanos como um mundo profano entregue aos valores corruptos. O sacrifício era a única forma de trazer ao mundo profano os valores nobres e ideais do homem de dever. Vimos assim, o modo como ocorria o sacrifício do emprego, da comunidade familiar, da própria vida e dos prazeres do corpo. O corpo aparece como uma metáfora constante nos discursos revolucionários e como um local privilegiado para percebermos o tipo de homem revolucionário que surge impulsionado pela ética revolucionária. Assim, no quarto capítulo, O Corpo Revolucionário , vimos o surgimento, como resultado do modo de vida revolucionário, de um corpo dócil, viril e hierárquico. O corpo dócil, ao mesmo tempo resistente e forte, é o corpo que supera o corpo do mundo profano, indisciplinado e jogado aos prazeres da carne. O corpo viril é o corpo marcado por um olhar masculinizado que associa a força e a resistência à negação do feminino. O corpo hierárquico é o resultado de uma disciplina piramidal que se firmava na partilha entre dirigentes e dirigidos, chefes e séqüitos. Este corpo dócil, viril e hierarquizado construía o homem revolucionário exclusivamente entregue ao sacrifício e ao dever pela causa revolucionária.

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PARTE I

A GERAÇÃO DO CENTENÁRIO E AS SUAS INFLUÊNCIAS IDEOLÓGICAS

Nesta primeira parte de nossa tese, pretendemos nos aproximar do universo ideológico dos revolucionários cubanos. Qual era a concepção ideológica do Movimento 26 de Julho? Percebemos em nossa análise que o Movimento 26 de Julho, assim como os demais grupos insurrecionais cubanos, ao contrário dos partidos revolucionários profissionais, não possuía uma concepção ideológica sistematicamente definida. Pelo contrário, os objetivos e as definições ideológicas aparecem nos discursos revolucionários de forma vaga e ampla. Se pudermos ir mais longe, podemos dizer que a questão ideológica era constantemente desprezada pelos rebeldes, que professavam continuamente uma supremacia da ação sobre a teoria. Este caráter vago e amplo dos objetivos, esta falta de definição e este desprezo ao debate teórico não podiam ser elementos insignificantes. Ao contrário, estavam profundamente vinculados a um tipo de conduta que tinha na ação o seu principal imperativo ético. A relação do revolucionário cubano com sua ideologia estava, portanto, profundamente ligada ao tipo de ética que guiava a atitude rebelde. Mas, tanto para compreendermos esta amplitude ideológica cubana, bem como o desenvolvimento da ação social do revolucionário do Movimento 26 de Julho era necessário nos aproximar do ambiente histórico em que os revolucionários cubanos forjaram seu modo de vida. Desta forma, o primeiro capítulo de nossa tese se preocupa em buscar entender o ambiente em que se forma uma geração revolucionária. “Geração” é tomada, para nós, não como a mera separação de idades, ou mesmo a simples união dos homens pela demarcação de datas. Mas, a demarcação de uma época 20

em que os homens estão unidos por uma experiência histórica comum. Assim, pudemos falar da geração de 30 como os homens que partilharam de determinadas experiências que lhes colocavam em prática revolucionária. E a geração de 50, ou geração do Centenário, como os homens que estavam unidos por uma experiência histórica comum que lhes possibilitaram partilhar um conjunto de valores e crenças. Elevar o conceito de “geração” como um conceito importante nos parecia fundamental para romper com aquela parte da historiografia da Revolução Cubana que vê a revolução como fruto exclusivo da luta de classes. A noção de geração, pelo contrário, possibilita a nossa tarefa de encontrar no processo histórico cubano de longo prazo, aquelas mudanças e continuidades que possibilitaram um momento histórico único e deixaram um conjunto de homens de uma mesma época mais propício para determinadas formas de conduta. Neste quadro podemos perceber a existência de uma mudança profunda na sociedade cubana. Os anos 40 e 50, em que cresceram os jovens que pegariam as armas na luta contra Batista, aparecem como anos de profunda mudança. Surgia em Cuba um mundo moderno, industrializado, tomado pelos meios de comunicação de massa e pela indústria do entrenimento. Ao mesmo tempo, este mundo moderno convivia com a cuba tradicional, rural, camponesa, arraigada aos valores tradicionais. O mundo em que crescia a geração do centenário era assim um mundo de contradições em que elementos tradicionais e modernos se encontravam e se estranhavam. É neste mundo de contradições que os rebeldes vão estabelecer as suas primeiras definições ideológicas. No segundo capítulo, buscamos compreender as múltiplas influências ideológicas dos revolucionários, tais como a influência do nacionalismo de José Martí, António Guiteras, Eduardo Chibás, assim como a influência do marxismo. Percebemos que estas influências deixavam para a geração dos anos cinqüenta muito mais elementos éticos do que propriamente um programa sistemático a ser seguido. Elas forneciam mais um tipo de conduta pautado no heroísmo, no dever, no sacrifício, no martírio, do que propriamente uma concepção teórica-ideológica sistemática e homogênea.

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CAPÍTULO 01

A Geração do Centenário no mundo das contradições

Para Hobsbawm (2003), o impacto internacional de Fidel Castro se devia, em parte, pelo fato de que aos 32 anos um líder revolucionário havia assumido o poder de um Estado, quando no mundo todo reinava no universo político o domínio dos velhos. O movimento revolucionário que surge a partir de 1952 em Cuba era formado basicamente por jovens nascidos nas décadas de 20 e 30 e que, em sua maioria, não tinham ainda alcançado os 30 anos de idade. Quando Frank País coordenou o levante em em novembro de 1956, ele tinha apenas 22 anos e já se configurava como grande líder revolucionário. Fidel ao atacar o quartel de Moncada em 1953 tinha 27 anos. Quando Batista deu o golpe militar em 1952, Juan Almeida e Abel Santamaría tinham 25, Raúl Castro, 21, Armando Hart, 22, Antonio Echevaria tinha apenas 20 anos. (FRANQUI, 1980, passim). Os principais líderes revolucionários cubanos dos anos 50, aqueles que impulsionaram o processo de luta revolucionária contra Fulgencio Batista, formavam o que ficou conhecido em Cuba como geração do centenário do nascimento de José Martí. A primeira questão que nos chama atenção é que esta geração era formada por netos dos revolucionários da independência cubana do final do século XIX. Guillermo García, por exemplo, era neto de Bautista Frías Figueredo, veterano das duas guerras de independência. (GONZÁLEZ, 2008). O avô de Carlos Franqui era capitão do Exército mambí e morreu lutando na Guerra de Independência. (FRANQUI, 1980). A juventude revolucionária cresceu com avôs e avós, professores e pais, que narravam as façanhas da luta guerrilheira contra o império espanhol. Cresceram desde cedo sob os encantos de um conjunto de heróis e mártires que a independência havia criado tais como José Martí, Máximo Gómes e Antonio Maceo. Como afirmou Franqui (1980, p. 30): 22

My father encouraged me. At Christmas time, when I went to my grandfather’s house, he would tell me stories about the Wars of Independence. My aunt Laureana, a teacher in Guayabo, would lend me Martí’s book, which whetted my curiosity.

A história da independência cubana era enfocada em seu sentido heróico e épico, como a história de um povo que com seus líderes à frente lutaram com armas nas mãos por uma Cuba Libre . Era a lição de uma guerra em que a vitória popular e nacional já estava dada, mas fora frustrada por duas vezes pela intervenção dos Estados Unidos. Não era difícil que esta juventude encontrasse na escola professores que incentivassem esta versão histórica da independência cubana. Carlos Franqui (idem, ibidem), que vivia no campo e estudava em uma pequena escola da região, lembra da professora Melania: “In La Duda public school I met an exceptional teacher: Melania Cobos. She explained the to me; she helped me to know its martyrs, its poets, its struggles”. Enrique Oltuski (2007, p. 77), de família judia, em suas memórias afirma que conheceu José Martí na Escola.

Yo conocí a Martí desde que empecé a ir a la escuela, pero no conocía bien su historia y lo que el representaba para Cuba, pero me atraían sus versos, el mensaje que llevaban. “Yo quiero cuando me muera, Sin patria pero sin amo, Tener en mi tumba un ramo De flores y una bandera”. O aquel otro: “Con los pobres de la tierra Quiero yo mi suerte echar, El arroyo de la sierra Me complace más que el mar”.

Ele nunca se esqueceu da professora Inés, quem não só incentivou os alunos ao estudo da história de Cuba, como o fez criando as primeiras imagens que teriam dos heróis nacionais

La negra Inés, como de decían los padres, era una martiana estudiosa de la historia de Cuba. Fue ella la que nos enseñó a entender las diferentes etapas de nuestra historia: los indios, Colón, la colonización, la esclavitud, las guerras de independencia. Fue ella la que convirtió a Martí, Maceo y Máximo Gómez en mis héroes, la justicia en el sentido de la vida y a Cuba en mi patria. (idem, ibidem).

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Figuras populares, distantes de posições de poder e de dinheiro, também eram influências para alguns dos jovens de bairros mais pobres. Juan Almeida Bosque (1989a, p. 18) nos conta do chamado “EL ALCADE”, um homem que apanhava lavagem para os porcos em uma carrocinha de mão puxada por ele mesmo:

De estatura mediana, usava óculos de metal, barbicha e cabelos compridos como o Cavaleiro de Paris, camisa e calça surradas, suados, ele e a roupa. Usava alpargatas, não por não ter sapatos, mas por se sentir mais à vontade, ao puxar a carrocinha em que sempre trazia, além de lavagem, um carrinho de bebê quebrado ou outro cacareco, umas tábuas, um caixote e um saco com pão velho, mais um embrulho com pão e biscoitos frescos.

Na rua em que morava Juan Almeida, “El Alcade” fazia todos os dias uma conferência às crianças e jovens, dignificando os heróis da independência.

Era conhecedor de tudo o que se lhe perguntasse, porque havia lido muito, dizia que todo cubano devia conhecer as Obras completas, de Martí, o Manifesto de Monecristi e O diário de campanha , do major- general Máximo Gómez. Contava histórias sobre Gómez e seu adjunto, general Antonio Maceo, sobre o 10 de outubro de 1868 em La Demajagua, os escritos de Carlos Manuel de Céspedes e seu assassinato em San Lorenzo, na serra Maestra, quando, refugiado ali, dava aulas às crianças que não sabiam ler. Falava da grandeza do major Ignácio Agramonte em Camaguey, da vida de Calixto García, Flor Crombet, Quintín Banderas e José Maceo, o “León de Oriente”, assim como de Albizu Campos e sua luta pela independência de Porto Rico. Também contava anedotas sobre os diferentes governos que o país tivera desde 1902 e, ainda que fosse ateu, falava da Bíblia , do Judeu errante e de todas as obras de Vargas Vila. (...) “El Alcade” nos fazia uma conferência de uma hora ou de uma hora e meia. Assim, dia após dia, enquanto tivesse ouvintes, aquilo se constituía numa tribuna livre, onde nós, os jovens do bairro, expressávamos nossas preocupações nas discussões políticas e a indignação diante de tanta tortura física e moral (...). (idem, p. 19).

Se como afirmou Hobsbawm (2003), nos anos 60, a juventude surgiu em todo o mundo, influenciada pela experiência européia, como um segmento social distinto do adulto; se os jovens que viveram em um mundo pós-guerra em ascensão não podiam se identificar com ninguém com mais de 30 anos; se a juventude não se identificava mais com o pai e criava um modo de vida especificamente jovem (assumindo o jeans , o rock’n roll e idéias revolucionárias ); na década de 50, a geração do centenário em Cuba parecia apresentavar o perfil oposto. Não há um 24

abismo entre a concepção do jovem revolucionário e a de seu pai. Em diferentes classes sociais e em diferentes regiões de Cuba, o sentimento nacionalista e republicano, a concepção heróica sobre a liberdade de Cuba, o ideal de uma Cuba Libre parecia ser partilhado por três gerações de forma ininterrupta. A fala da mãe do revolucionário ao seu pai demonstra o sentimento de dever e honra que também ela partilhava com o filho rebelde:

(...)tengo três hijos hombres. Si la vida de los três se va em esta lucha que comienza hoy, no me voy a sentir uma madre infeliz. Ni tú ni yo pudimos hacer nada durante las gueras de la independencia, pues éramos niños. A hora posiblemente tampoco podremos hacer mucho porque estamos pasados de años. Dejemos que cumplan sus deberes los quieren y pueden.” (MATOS, 2002, p. 38).

Guillermo García também falou que sua mãe “(…) Fue capaz de mandar a sus cuatro hijos para la montaña, y dijo preferir que le trajeran la noticiade la muerte de un hijo en la guerra a que se lo mataran bajo la falda”. (GONZÁLEZ, 2008). O revolucionário carregava, assim, a certeza de que sua família levava, no mais íntimo de sua alma, o mais profundo orgulho e respeito pela decisão tomada por ele de dedicar a sua vida a uma causa justa. Levava consigo a certeza de poder a qualquer hora dizer como disse o revolucionário Renato Guitart ao pai: “yo conspiro por Cuba, como conspirabas tu”. (IBARRA GUITART, 1998, p. 105). Em suas memórias, o revolucionário Juan Almeida Bosque (1989a, p. 71) podia dizer com orgulho sobre o pai ao mirá-lo do navio que partia para o exílio no México em 1956:

Ali deixo este homem com quem aprendi a admirar e respeitar os heróis de nossas lutas de independência; este homem martiano, antiimperialista, opositor da tirania aniquilada em 12 de agosto de 33 e desta que nos oprime (...).

A influência da revolução de 30 também foi bastante profunda, visto que entre os jovens que se levantariam em armas na década de 50, alguns haviam nascido pouco antes da revolução e a maior parte nasceu entre os anos de 1933 e 1940. Todos, de uma forma ou de outra, cresceram sobre o processo de evolução do processo revolucionário. Se a geração centenária era neta dos mambises da independência, podemos dizer que era filha dos rebeldes da Revolução de 33. Devemos levar em consideração que muitos dos pais dos rebeldes estiveram nas lutas revolucionárias dos anos 20 e 30 e ali formaram sua percepção de valores 25

e deveres revolucionários. Este era o caso, por exemplo, do pai de Renato Guitart, jovem que morreria durante o ataque ao Quartel de Moncada. Segundo seu biógrafo, Jorge R. Ibarra Guitart (1998), Renato teve as suas primeiras influências revolucionárias em casa, pelo seu pai René Guitart que havia participado da revolução de 30. Sobre a relação entre pai e filho, Magdalena Guitart, irmã de Renato, afirmou:

(...) René e Renato eran una misma cosa. Dos personalidades muy unidas, muy parecidas; tenían mucha unión, mucha confianza, mucho amor (…) Rena bebió en la fuente de mi papá, en la fuente de su verbo, de su acción, de su forma de ser. Bebió muchas cosas. Bebió, por ejemplo, el amor a la patria, a Cuba, la sensibilidad por los humildes. Se bebía las palabras de mi papá cuando le contaba los acontecimientos de la Revolución de 30. Estos relatos lo apasionaban de una forma tan grande que en los ojos se le veía que estaba extasiado oyendo aquello (…) Mi padre le planteaba la tristeza de que todo el trabajo revolucionario se hubiera perdido, la defraudación de esa generación (…). (idem, p. 42).

Renato Guitart havia assim adquirido do seu pai o sentimento nacionalista, a noção de dever pela pátria, vibrando emocionalmente com os feitos heróicos dos rebeldes da luta revolucionária dos anos 20 e 30. A infância daqueles que nasceram antes da Revolução de 33 foi acompanhada por noites de bombas pelas ruas das cidades. O próprio Fidel Castro, que não tinha ainda seis anos, relembra a luta dos anos 30.

I used to sleep on a small sofa near the back door, and at night the bombs exploding close by would wake me up. I was awakened several times when the bombs went off in the neighborhood, near the high school. (FRANQUI, 1980, p. 2).

Carlos Franqui, que em 33 tinha somente 11 anos, já iniciava ali o seu apego à idéia revolucionária.

I was an apprentice freewheeling revolutionary: I distributed whatever clandestine propaganda fell into my hands; I searched for contacts; I went to demonstrations and protests. (idem, 1981, p. 31).

Entretanto, por mais que houvesse uma identidade de idéias entre as gerações dos 50 e dos 30, o período que vai de 1933 a 1944 marcou profundas mudanças na sociedade cubana. A Cuba dos anos 50, era uma outra Cuba e o jovem que nela lutava não poderia ser o mesmo jovem que lutava nos anos 30. 26

Provavelmente, a melhor imagem desta mudança que ocorria em Cuba a partir de meados da década de quarenta foi fornecida por Guillermo Cabrera Infante (1986) no seu livro Três Tristes Tigres. Neste romance, o conflito entre duas Cubas, a Cuba tradicional e a nova Cuba, a Cuba moderna, nos parece ser expresso nos personagens Delia Doce e Glória Pérez . Glória Pérez é a garota que foge de sua casa no interior e vai para a casa de uma amiga de sua mãe, Delia Doce, em . A garota, mentindo para sua anfitriã, afirma que havia sido enviada pela mãe para estudar na capital. (CABRERA INFANTE, 1986, p. 30). Em uma carta que Delia Doce escreve para a mãe de Glória, Estelvina, em 22 de abril de 1953, este conflito de gerações aparece claramente. Na carta, dois mundos são claramente colocados em oposição: o interior , como expressão do mundo antigo e tradicional, e Havana, como o mundo da nova Cuba. O interior ; representado pela cidade onde mora a mãe de Glória, Estelvina; é posto como o lugar afastado da grande mídia, o lugar donde o diabo perdeu as botas , o espaço aonde talvez nem chegue a revista Bohemia. Celia Gómez afirma na carta para Estelvina:

Não sei si lá adonde vocês vivem agora que é donde o diabo perdeu as botas como diz Gilberto chega a revista Boemia, se não chegar quando Basílio for ao centro que te consiga o número e vais saber logo em que meio anda tua filha. (idem, p. 28).

Delia Gómez, apesar de viver em Havana, também veio do interior de Cuba. Ela e Aldevina eram amigas de infância e, provavelmente, cresceram em uma fazenda que produzia cana de açúcar, posto que afirma na carta que se lembra quando ela e Aldevina brincavam no Batey , “Nas Antilhas, o terreno ocupado pelas casas, caldeiras, barracões e armazéns nos engenhos de açúcar e demais fazendas.” (idem, p. 29). Delia representa a mulher tradicional de Cuba, presa às tarefas domésticas, e que se ocupa do homem enquanto ele está em casa. Em um trecho da carta, aparece esta imagem de uma mulher que só tem o sossego quando o marido vai pro trabalho: “Já acabei de lavar a loussa do almoço e Gilberto já foi outra vez pro trabalho e posso continuar a carta desta manhã com mais calma.” (idem, p. 30). Havana, pelo contrário, é o mundo da modernidade, é o mundo da nova Cuba. Aparece na carta como a cidade pernissiosa , a cidade dos edifícios grandes , 27

do mundo do rádio e da televisão , o mundo onde Glória Pérez, a garota do interior, começa a trabalhar e se transforma em Cuba Venegas. Delia afirma na carta:

Como eu ia te dizendo esta tua filha virou uma boa bisca aqui em Havana que é uma cidade pernissiosa pra gente jovem e sem espiriença. Por meio do Harsênio Quê que está trabalhando aqui a gente ficou sabendo que ela estava andando muito lá pelo Radiocentro que é esse edifício grande adonde está a estação de radio CMQ e que tem um tiatro e cafés e restorantes e muitícimas coisas mais. (idem, ibidem).

A transformação de Glória Pérez em Cuba Venegas se inicia com este contato da jovem com o mundo da grande mídia, que representa a modernidade. Mas, não pára por aí. Glória rompe com a figura feminina tradicional ao beber cerveja. A indignação de Delia com esta atitude e a sua noção de que isto é coisa de homens aparece claramente neste trecho abaixo:

Glória levou muito mas muito tempo sem vir aqui e um dia veio aqui em casa e nem bem chegou e sentou foi pedindo uma cerveja, é isso mesmo que tu ouves. Menina eu disse a ela. Tu pensas que estás nalgum bar aqui nem temos cerveja nem jeladera nem Gilberto pode beber por casa do figo e tu sabes que me disse. Pos é melhor que Gilberto compre uma cerveja pra vocês verem como eu subi. (idem, ibidem).

Mas, o vínculo de Glória com a cerveja não estava simplesmente no ato de bebê-la, mas na sua ligação com a nova indústria urbana que se desenvolvia em Cuba e o novo tipo de propaganda que associava a mulher, como objeto sexual, à cerveja. Glória havia posado de modelo em uma propaganda da cerveja Polar. Delia afirma que ela e Gilberto, seu marido se assustaram a ver a propaganda no jornal:

Pois era tua filha anunciando a Polar. Ela está ali quasi pelada, com uma tanguinha dessas que o pessoal chama biquíni e acho que não conhesses coisa alguma paressida, só com duas tirinhas uma em cima e outra em bacho parecendo mais uma máscara e um lencinho de mulher e só, só que está parada junto de um urso branco e põe a mão em cima dele. O anúnssio diz A bela e o urso são sinônimos de Polar e depois tem um letreiro que paresse uma coisa indecente e não é e é sim se a gente olhar bem e no meio de tudo isso como se o letreiro foce uma mão de letras os dedos assim feito de letras manoseiam toda tua filha Glória Pérez que já não se chama nem Glória nem Pérez nem nada paressido. (idem, ibidem).

A mudança de nome, Glória Pérez para Cuba Venegas , representa a mudança da garota do interior para a nova mulher, a nova Cuba, expressa nas 28

grandes indústrias, na grande mídia, nos anúncios comerciais, na mulher sensual, em uma palavra, na Cuba moderna. Cuba Venegas também é a Cuba das roupas modernas e do automóvel. Na passagem que se segue, a antiga Cuba e a nova se enfrentam mais uma vez quando é confrontada a postura de Delia, que como interiorana teme atravessar a rua, e a de Cuba Venegas , que, ao contrário, transita sobre a rua de automóvel.

Pois bem tua filha Cuba Venegas também anuncia a Materva e há um anúnssio que em vez de dizer como sempre diz bem claro Tome o que Toma Cuba, e com todas essas coizas ela parece ser muito famoza e ganhar muito dinheiro porque veio aqui num carrão desses sem coberta nem nada em cima e nos chamou la da rua pra que a gente foce ver seu convertível como diz ela. Eu não fui, porque a calçada, a rua da frente, é de muito trânsito e eu estava vestida com os trapos que uso em casa todo dia, mas Gilberto que é igual a um rapaz e que sempre foi fanático por automóvel foi coitado e me disse que o carro era uma maravilha. (idem, p. 31).

A nova Cuba que nascia aparece com roupas modernas, novos cigarros e novas expressões. Pela primeira vez, o jovem cubano parecia não se identificar mais com a geração anterior e nem a outra geração com ele. A última vez que Delia viu Cuba Venegas foi assim:

Veio aqui uma tarde e era tarde com uma amiga loura e as duas de calça comprida, as calças mais apertadas que já vi em toda minha vida e vinham fumando cigarros, uns cigarros que cheiravam bem e gostoso. Fiz café pra elas e tal e elas estiveram um pouco aqui e se sentaram e tal e quasi fiquei contente porque estava tão linda. É verdade que se besunta de muita pintura e pó e muito baton mas estava bonita mesmo. Ela e a amiga cochichavam e até acendiam os cigarros um da outra tu sabes, com os dois cigarros na boca de uma delas e não gostei nada disso, e depois diziam coizas que eu não entendia quasi e se riam despois e também se riam por gosto como si tivessem contado uma coiza muito engraçada ao sair e acompanhei elas até a portaria e me deram adeus com a mão do carro e foram embora com muito barulho e mortas mas mortas de riso. Essa foi a última vez que tua filha, a que se chamava Glória Pérez e que agora se chama Cuba Venegas andou por aqui. (idem, p. 32).

Como a carta é de 1953 e Cuba Venegas ainda não tinha 16 anos, como afirma Delia, provavelmente nasceu no ano de 1938 e cresceu no período pós- revolução de 30, um período de intensa transformação. A época que se seguiu à Segunda Guerra correspondeu a uma época de desenvolvimento econômico profundo em todo o mundo. Embora esta Era de Ouro, 29

como chamou Hobsbawm (2003, p. 255), “(...) pertencesse essencialmente aos países capitalistas desenvolvidos.”, o surto econômico da década de 50 foi um “fenômeno mundial”. A URSS (União Soviética), nesta década, apresentou uma taxa de crescimento maior do que a dos países ocidentais. No Terceiro Mundo,

(...) por toda parte diminuiu acentuadamente o número de países que dependentes da agricultura, pelo menos para financiar suas importações do resto do mundo. (idem, p. 256).

Em Cuba, a Grande Depressão de 1929 havia interrompido o processo de diversificação da produção nacional. O período de 1933 a 1940 consolidou uma política econômica voltada para o açúcar como produto central e paralisou a indústria nacional. Mesmo durante a Segunda Guerra,

(...) los demás sectores no pudieron atraer nuevas inversiones a um ritmo comparable al del azúcar en décadas anteriores. La Segunda Guerra Mundial no propició la diversificación económica.” (PÉREZ- STABLE, 1998, p. 49).

A década de 50, entretanto, potencializou o processo de desenvolvimento da indústria não açucareira. Em 1956, “la importación de bienes de consumo disminuyó al 36% del total mientras que la de bienes capital e intermédios aumentaron hasta alcanzar el 64%. Las inversiones de capital en el sector no azucarero iban en aumento.” (idem, p. 53). Em 1950, o Banco Nacional aumentava os créditos ao setor não açucareiro e os diminuía ao setor açucareiro. (idem, p. 53). Cuba se tornou assim durante os anos 40 e mais intensamente nos 50, um país de grandes contradições. De alguma forma, o moderno e o tradicional se imbricavam mutuamente no constante jogo do interior e da grande capital. É bem provável que grande parte das cidades do interior de Cuba nos anos 50 significasse para os jovens uma cidade tediosa. Reinaldo Arenas (1994, p. 57) assim descreveu a cidade Holguín:

Holguín representava para mim – então adolescente – o tédio absoluto. Cidade chata, comercial, quadrada, absolutamente carente de mistério e personalidade; quente e sem nenhum recanto onde se pudesse encontrar uma sombra ou um lugar onde se pudesse dar asas à imaginação.

Aleida March (2009, p. 27), quando se mudou para a capital da província de Santa Clara, afirmou sobre a vida que levava: 30

Minha vida nesse período, e eu diria que até 1956, centrou-se nos estudos, em praticar esportes e, como únicos entretenimentos, ler romances, sobretudo os de estilo romântico, e ir ao cinema quando se podia ou ao parque, que constituíam algo assim como uma espécie de “passarela” nas cidades de interior (...). Essa era a vida da maioria dos jovens da província – em particular, as da minha classe social: muitos romances, sonhos a serem conquistados e muitos príncipes encantados na imaginação.

Mario Lazo Pérez (1987), que era de Artemisa, não deixou nenhum relato sobre a vida na província, mas em suas memórias, as únicas diversões que aparecem são os encontros de amigos no banco do parque Libertad, onde conversavam sobre diferentes assuntos, e a organização de grupos de amigos para viajarem para pescar. Parece-nos que, de um modo geral, a vida no interior cubano dos anos 50 se apresentava de forma bastante pacata e simples, dotada de um moralismo bastante profundo. “Em Holguín, respirava-se um ambiente machista que minha família compartilhava e no qual eu havia sido educado”, afirmou Reinaldo Arenas (1994, p. 59). Entretanto, fora do mundo comum da vida moralista, é possível que muitas das cidades interioranas tivessem o seu lado escondido . Reinaldo Arenas (idem, p. 59) mesmo cita o Roça-Roça , um enorme bordel com salão de baile, onde as mulheres “rebolavam de modo a roçar-se contra o sexo do homem”, e depois se encaminhavam para os quartos para transar. Entretanto, ainda que tivesse os seus espaços profanos , a vida pacata do interior era bem distinta da vida na capital de Cuba. Havana era uma cidade bem diferente das demais cidades cubanas. Quem chegava do interior pela primeira vez passava necessariamente por um processo de estranhamento e encantamento. Llovio Menéndez (1988, p. 55), rebelde da província de Camaguey, relembra o que pensou de Havana ao chegar por lá para estudar medicina na Universidade.

The capital was huge, with more than a million inhabitants, and I was overwhelmed by the contrast between this city and Cuba’s countryside. In contrast to the small, slow-paced city and Cuba’s countryside. In contrast to the small, slow-paced city of my boyhood, Havana was dazzling and enigmatic. Everything fascinated me; every detail seemed related to Cuban history or to what I had seen on television or in newspaper photographs.

Para o jovem de Camaguey, Havana tinha todos os produtos de última tecnologia lançados no mundo. 31

(…) the life in the capital appeared to be in no way inferior to that of the world’s other great cities. Havana was macrocephalic, to use the economic term – the great head on the tiny body of Cuba. Here, side by side, with its charm and beauty, I saw the latest in consumer technology. (idem, p. 59).

Llovio-Menéndez também se impressionou com toda uma vida de luxúria, abundância, conforto, drogas e prostituição na capital de Cuba. (ibidem). O espírito da vida noturna havanense dos anos 50, provavelmente não foi captado melhor por nenhuma obra além do romance Três Tristes Tigres . A cidade de Havana é, segundo Miguel Saludes (2009), “personaje omnipresente en la narrativa de Infante”. O autor reconstrói “la urbe cosmopolita; enemiga del dormir, la de infinitos night clubs, bares y vitrolas, la de las mujeres elegantes y las tiendas majestuosas”. (idem, ibidem). Algumas das imagens fundamentais construídas na narrativa de Cabrera Infante (1986) versam sobre os cabarés. A obra se inicia com a imagem de um apresentador do famoso cabaré Tropicana apresentando em espanhol e em inglês os espetáculos da noite. A sensualidade define em grande parte os shows que estarão por vir. Em uma parte da apresentação, o apresentador fala do Tropicana como o “ coliseu do prazer, da alegria e da felicidade! ”, como “o foro romano do canto, dança e amor à meia-luz” , como “o empório do amor e da vida risonha”! (idem, p. 17). O apresentador afirmava que “este frio dos ricos de nosso clima acondicionado, vai se derreter muito breve com o calor e a pimenta de nosso primeiro grande show da noite, ao abrir esta cortina de prata e ouro.”. (idem, ibidem). Por toda a obra se destacam músicos da noite, prostitutas, travestis, homossexuais, em inúmeros e diferentes cabarets que não deixavam Havana dormir. Nesta capital cubana se destacava a região de Colón como uma região onde as ruas estavam cheias de travestis e prostitutas. O revolucionário Carlos Franqui (1981, p. 140) descreveu esta região onde havia trabalhado como jornalista no final da década de 40.

Nas vizinhanças de Colón, certas ruas eram divididas por famílias e casas de prostituição. Eu conhecia bem o lugar porque trabalhei em jornais que eram impressos ali, e certamente não vou negar que visitei as casas de prostituição – não conheço homem que não o tenha feito. Era onde corrigíamos as provas do jornal Luz , em 1947; era um lugar onde se reuniam inconformistas e ativistas de toda espécie. Ao amanhecer, Eddy Chibás vinha ver o diretor da revista Brana com seus artigos inflamados. Quando o jornal fechava, às três 32

da manhã, todos nos reuníamos – a equipe inteira, desde os linotipistas aos vendedores de rua, para uma bebida. Em estilo verdadeiramente cubano, o café continha uma mistura de jornalistas, prostitutas, homossexuais, passantes – de tudo.

Quando Batista deu o golpe militar em 52, a República cubana tinha apenas 50 anos de existência. Se a juventude revolucionária só poderia imaginar o que era viver em um mundo colonial, seus avós sabiam de fato. Alguém que tivesse mais que 70 anos nos anos 50 já havia vivido o bastante para compreender o quanto Cuba havia mudado. O desenvolvimento de bens de consumo, como o rádio, o automóvel e a televisão nos anos 50, a vida noturna metropolitana, eram indícios muito claros de que uma nova Cuba havia nascido após a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, mais do que esta mudança no âmbito econômico e cultural, Cuba também apresentava uma nova realidade política depois da revolução de 30. Primeiro, a revolução de 30 forneceu os novos personagens políticos que assumiriam o palco principal da vida política cubana até o ano de 1959. Ramón Grau San Martín, Prío Socarrás e Eduardo Chibás iniciaram a sua prática política como militantes do Directorio Estudantil Universitário, que foi um dos grandes agentes da luta revolucionária dos anos 20 e 30. As duas principais forças políticas na Cuba das décadas de 40 e início da de 50, o Partido Auténtico e o , todos os dois eram dirigidos por militantes da revolução de 30. (URRUTIA, 1975). O próprio Fulgêncio Batista (1962, p. 192) surgiu na vida pública cubana como revolucionário . Batista chegou a participar do ABC, o mais forte dos grupos revolucionários dos anos 20 e 30. Sua aparição pública se deu quando liderou como sargento do exército o golpe militar do dia 04 de setembro de 1933 ao lado de Ramon Grau San Martín e o seu Diretório Estudantil Universitário. (idem, ibidem). O fato dos novos governos terem sido todos governados por figuras advindas da revolução explica a predominância de uma retórica revolucionária constante na vida política cubana. Segundo Llerena (1978, p. 35), “The Cuban people had been conditioned by thirty years of revolutionary retoric and ethical politial preaching”. Assim, podemos dizer que a Geração do Centenário cresceu sob uma retórica revolucionária não só em casa e na escola, mas nos discursos públicos oficiais. O discurso revolucionário norteava todo debate político republicano e esteve presente mesmo no golpe de 1952, em que Batista tentou legitimá-lo como uma revolução democrática e nacionalista. (MENCÍA, 1986). 33

Uma segunda mudança marcada pelo período de 30 a 44 foi em relação à transformação das condições da classe trabalhadora. Em 10 de setembro de 33, Ramón Grau San Martín assumiu a presidência de Cuba e se iniciou ali o que ficou conhecido como “governo dos 100 dias” ou como definiu o jornalista Sergio Carbó, a “revolución auténtica”. (LLERENA, 1978, p. 40). Uma das figuras que se destacaria neste governo foi a de Antonio Guiteras, que segundo a historiadora Francisca López Civeira (2009), foi responsável pelas principais reformas realizadas por este governo. Nos 100 dias de governo, foram ditadas diferentes medidas sociais, a maior parte delas voltadas para a melhoria das condições de vida dos trabalhadores. Entre os principais decretos do governo dos 100 dias estavam a:

• Creación de la Secretaría del Trabajo. • Implantación de la jornada laboral de 8 horas. • Establecimiento del jornal mínimo. • Depuración de los organismos estatales. • Reparto de tierras y proyectos de colonización. • Autonomía universitaria. • Convocatoria a la celebración de una Asamblea Constituyente. • Rebaja de los precios de los artículos de primera necesidad. • Reducción del precio de la energía eléctrica. • Intervención de la Compañía Cubana de Electricidad. (ROSALES GARCÍA, 2009).

O governo dos 100 dias deixava uma marca profunda na história de Cuba. Ele se centrou na busca de solução para “os graves problemas laborales y sociales que demandaban solución urgente y justa.”. (URRUTIA, 1975, p. 31). Foi, para Urrutia, uma revolução “social-econômica, pero sin despojos.”. (idem, ibidem). Essa revolução social e econômica trouxe um melhoramento notável do nível de vida cubano. (idem, p. 43). Alguns dos resultados da revolução foram:

El salario mínimo, los seguros sociales, la jornada máxima de trabajo, el pago de 48 horas por 44 de trabajo, los contratos colectivos de trabajo, la defensa de los obreros por los sindicatos conocidos y respetados; y otras medidas favorables a los trabajadores. (idem, p. 43).

Em um documento escrito pelo Diretório Nacional do Movimento 26 de Julho em 1957, os revolucionários lembravam aos trabalhadores como a Guerra de Independência em 1868 e a Revolução de 30 foram fundamentais para o avanço do progresso social em Cuba: 34

The middle class, which led our country in 1868, began by setting the slaves free and taking them into the mambí army, we have seen how social progress advanced in 1895 and 1930. (FRANQUI, 1980, p. 108)

Se pensarmos que a Constituição de 1901, como afirmou Jules R. Benjamin (2009), não continha nenhuma referência a direitos trabalhistas, podemos dizer que houve uma transformação de caráter social profunda. A geração de 30 viveu sob o fim da escravidão, junto aos primeiros filhos livres de escravos, que embora haviam conquistado a liberdade jurídica, não possuíam direitos como trabalhadores. A geração dos anos 50 nasceu e se desenvolveu junto a uma classe trabalhadora como sujeito jurídico, uma categoria com direitos trabalhistas. Em terceiro lugar, a revolução de 30, com todos os seus complexos processos, contribuiu fundamentalmente na formação das instituições republicanas e na constituição de uma vida democrática na ilha. Segundo Armando Hart, a Constituição de 1940 deve ser vista como “la culminación de la Revolución del 30.” (OLTUSKI et al., 2009). Manuel Urrutia (1975, p. 39) também afirma que ela é “el documiento que dio forma legal al sistema surgido de la revolución de los años 30”. Grande parte dos preceitos da Constituição foram chamados “musicales”, que quer dizer, “gratos a los oídos del pueblo, pero que sólo tenían el valor de meras declaracionaes, ajenas a la triste realidad del momento.” (idem, p. 39). Afinal, a Constituição foi elaborada sob o regime tirânico de Batista. Entretanto, a sua importância não está no fato de representar uma realidade, mas de expressar o sentimento de um modo de organização política e de direitos ideais que permeavam diferentes setores da sociedade cubana. Como lembrou Armando Hart, a Constituição de 1940 foi fruto do embate de várias forças políticas. (OLTUSKI et al., 2009). Os debates da Assembléia Constituinte de 1939 foram transmitidos por rádio, o que contribuiu para que a retórica voltada para os direitos sociais fossem aprovadas. Segundo Carlos Franqui, Eduardo Chibás e os seis comunistas do PSP que participaram da Assembléia Constituinte de 1939 ganharam grande respaldo durante estes debates.

In the Constituent Assembly of 1939, the six Communist delegates, distinguished by the brilliant oratory of the black leader Salvador García Aguero, played an important role in drafting the new Constitution. The sessions were broadcast over the radio and created 35

an enormous popular impact and sympathy toward the Party. Eddy Chibás and the most radical wing of the Auténticos, plus the propitious climate for new popular struggles, also played their part. (FRANQUI, 1980, p. 37).

Para Carlos Franqui (idem, ibidem), a Constituição de 1940 foi “(…) one of the most progressive constitutions in and the bourgeois world was approved.”. Para Urrutia (1978, p. 41), ela fez de Cuba “uno de los países de legislación social más humana y avanzada.”. A Constituição começou a ser posta em prática a partir de 1944, com a eleição de Ramón Grau San Martín. Estimulada pelo desenvolvimento dos meios de comunicação, a vida republicana e democrática cubana marcava um novo mundo político nunca antes visto na história da ilha. Se na primeira eleição da República em 1900, somente 7% da população havia votado; graças aos limites impostos aos eleitores, como a renda de 250 pesos, a maioridade de 21 anos e a exigência de ser alfabetizado; em 1950, Cuba contava com um ambiente democrático eufórico, com a existência de diferentes partidos políticos e um forte partido de massa que trazia grande parte da classe média e das classes trabalhadoras para a mobilização política. Desde as eleições de 44, Cuba

(…) le había ofrecido al mundo el alentador espectáculo, insólito en la América Latina, de unas elecciones presidenciales honradas donde el triunfo de la oposición había sido acatado por el gobierno. (AGUILAR LEÓN, 2008).

O rebelde da geração centenária, Mario Lazo Perez (1987, p. 10), relembra o descontentamento popular com a tirania de Batista e a euforia com que o povo cubano votou em San Martín:

Al llegar la fecha señalada, las escuelas se preparaban para servir de colégios electorales, y el descontento popular ante la tiranía del lugar a que se formaban largas colas de votantes frente a estos. Ese día había decidido ir de cacería con un amigo. Al pasar frente al colegio, mi padre, que se encontraba en la fila, se sorprendió, y temeroso de que surgiera cualquier incidente por ir con una escopeta de perdigones en un día como aquel, nos mandó regresar a la casa. El breve diálogo hizo reír a muchos de los presentes, y le pregunté: ____ ¿Vas a votar en Grau? ____ Sí – contestó. Los soldados apostados a la puerta del colegio dieron palmadas para restablecer el orden. (LAZO PÉREZ, 1987, p. 10).

Na década de 50, 36

(…) la prensa escrita, encabezada por la Revista Bohemia, se había multiplicado en número e importancia, (...) la televisión, principalmente la Cadena CMQ, había expandido su influencia a lo largo de la Isla” e juntamente com o rádio formavam um ambiente de debate político massivo. (AGUILAR LEÓN, 2008).

Entretanto, apesar do ambiente democrático eufórico, a corrupção havia sido uma marca profunda dos governos que se formaram depois da revolução. Se a geração centenária havia crescido ouvindo os feitos heróicos dos jovens dos anos 20 e 30, ela também cresceu vendo grande parte destes jovens ficarem velhos e corruptos. Segundo Urrutia (1978, p. 44)

La mayor parte de los revolucionarios que habían clamado por una renovación de la vida pública, se hicieron políticos que habían de vivir de la política. De este modo, muchos ‘revolucionarios’ se inclinaron a la corrupción desintegradota y explotadora, y la política degeneró aún más.

A corrupção existia nos governos anteriores à revolução de 30, sem dúvida alguma, mas para muitos autores, ela se tornara muito maior no período democrático. Segundo Cabrera Infante, o governo de Ramón Grau Martín foi o “governo mais corrupto do que os que o precederam – incluído o do próprio Batista, em seus diferentes avatares presidenciais.” (CABRERA INFANTE, 1996, p. 160). Segundo K.S. Karol (1972), muitos dos que esperavam do governo de Grau San Martín uma continuidade de seu governo revolucionário de 1933, caíram em decepção. Esta decepção produziu um enorme efeito desmoralizador e contribuiu para a degeneração dos costumes políticos. (ibidem). Para Mario Llerena (1978, p. 35), a administração de Grau permitiu e encorajou “duch evils as pseudorevolutionary gangsterism, political chicanery, favoritism, grafo, and, in a word, corruption on a scale unprecedent in Cuba”. No governo de Carlos Prío Socarrás, presidente autêntico, a corrupção ficaria ainda mais evidente devido ao crescimento dos meios de comunicação e ao fortalecimento do Partido Ortodoxo. Segundo Urrutía (1975), os anos 40 foram marcados por duas linhas políticas opostas, o autenticismo democrático e o militarismo.

De um lado, el autenticismo mayoritario, civilista, antimilitarista, contrario al golpismo, anticomunista y respeituoso de las libertades del pueblo; del otro, la tendencia minoritaria de Batista, mantenedora 37

del militarismo clasista, golpista, monopolista y aliada del comunismo. (idem, p. 44).

A Revolução de 30 foi quem também trouxe esta linha militarista para vida política cubana. Ela iniciou uma prática de intervenção das forças armadas nas lutas políticas do país. Em 04 de setembro de 1933, a Unión Militar de Columbia junto ao Diretório Revolucionário , liderado por Ramón Grau San Martín, levaram a cabo um golpe militar que retirou Carlos Manuel de Céspedes do poder e estabeleceu uma Junta Militar. Segundo Manuel Urrutía (1975, p. 31), a partir deste golpe se realizou uma espécie de conversão das “forças armadas en un partido político”

(...) el manifiesto de la “Junta Revolucionaria” del 4 de septiembre, la “Unión Militar” de los sargentos deslizó este párrafo militarista y profético: “Los sargentos y clases del ejército y la marina, encabezados por el Directorio Estudantil, asumen la responsabilidad de consagrar LA INTERVENCIÓN DE LAS FUERZAS ARMADAS en la DECISIÓN de las LUCHAS POLÍTICAS DE NUESTRO PAÍS”. Efectivamente así fue. Desde entonces, salvo en los gobiernos de Grau San Martín y Prío Socarrás, las fuerzas armadas “decidieron”, casi siempre, “las luchas políticas de nuestro país” bajo el mando del ex-sargento Fulgencio Batista. La “Unión Militar de Columbia” fue el germen, ya bien definido, del nuevo monopolio político-militar (…). (idem, p. 30).

Com a vitória do golpe, a “Unión Militar de Columbia” começou a destituir os chefes e oficiais das forças armadas cubanas e colocá-los em seu lugar os sargentos que encabeçaram o golpe militar. (URRUTIA, p. 31). Foi aí que Fulgencio Batista foi nomeado chefe do exército. É interessante pensar o processo de crescimento do exército em Cuba. Em 1908, o exército cubano tinha um efetivo de 10.000 homens. Em 1916, chegou a 15.000, em 1919, a 18.000, e, “bajo Batista, a 45.000.” (URRUTIA, p. 13). Este crescimento exagerado do exército marcou uma diferença significativa no mundo cubano. O último processo ligado ao novo mundo criado pela revolução 30 que queremos abordar aqui foi o fenômeno que ficou conhecido como gangsterismo . Uma conseqüência da Revolução de 1933 que se estendeu até os anos 50 foi esta forte presença de diferentes grupos de jovens armados que se enfrentavam publicamente nas ruas das cidades, realizavam assaltos e confrontavam a polícia com cocktails molotovs e pistolas. 38

Then the conflicts begin among the Havana student groups, armed bands of youths, who as a consequence of the abortive 1930 revolution, embraced the happy trigger as a profession. They created the pistol feud, criminal assault, Molotov cocktails, corruption threatening notes, and no-show jobs. They fought each other openly, imitating the Chicago gangsters, in shootouts in the street. The practice intensified later on, during de Auténtico Party governements of 1944-1952, and it was one of the motives for the military support that Batista received for his second barracks coup. (FRANQUI, 1980, p. 33).

Assim, paralelo ao avanço das lutas democráticas, há em Cuba uma vida subterrânea de grupos de ação armados. Segundo Luis Ortega (2009, p. 318):

(...) Por debajo de la vida política del país, a saltos, y especialmente en los momentos de crisis, ha estado fluyendo siempre una concepción radical y espeluznante de la vida social y política que, de un modo u otro, ha influido poderosamente en la política visible.

Ainda hoje é difícil compreender o significado profundo do que ficou conhecido como gansterismo em Cuba. Todo aquele que deseja compreender estes grupos de ação se depara com um problema grave de fontes. Faltam-se relatos e cronistas que tratem dos grupos de ação. E mesmo o caráter secreto dos grupos e suas atitudes avessas à propaganda dificultam o conhecimento do sentido de suas práticas. Como afirmou Luis Ortega (idem, p.320):

Siempre ha sido difícil definirlos correctamente porque carecieron de un cronista apto para la tarea. La misma naturaleza clandestina de sus actividades ha servido para que hayan quedado envueltos en el misterio. Sus martirios oscilan entre la leyenda y la realidad. (idem, p. 320).

Mesmo aqueles que se aventuraram em traçar um conhecimento sobre o gansterismo acabaram por mostrar discrepâncias profundas em suas análises. De toda forma, algumas pistas nos são dadas. Segundo K.S. Karol (1972), os grupos de ação surgiram a partir de 1934, depois da “gran traición” de Batista, no momento em que Grau San Martí encontrava-se com maior prestígio. Tratavam-se, portanto, de grupos revolucionários que com a frustração da Revolução de 1933 se mantiveram em armas para a luta revolucionária. As imagens de conflitos armados nas ruas de Havana, os jovens carregando revolveres na Universidade, enfrentamentos com a polícia, tudo isto gerava a 39

imagem das gangues de Chicago ou da Máfia Italiana. Entretanto, superar estas imagens é fundamental para compreender o espírito revolucionário que carregavam estes grupos. Para diversos autores, o termo gagnsterismo não reflete as posições destes grupos que estavam permeados por um espírito e por uma ideologia revolucionária e não simplesmente presos a conflitos armados sem sentido ideológico.

No es posible juzgar con ligereza las actividades de los grupos más austeros que se mantenían en una semiclandestinidad. El fenómeno excede en el de una simple actividad gangsteril. Es algo más complejo. Se puede dudar de la salud mental de los grupos más radicales de esta época, entregados por completo al mito revolucionario, pero no podemos poner en tela de juicio su honestidad o, al menos, lo que ellos entendían por honestidad. Ésta consistía en mantenerse como centinelas de una supuesta revolución en el poder y ejecutar a todos los que representaran un peligro para ella. (ORTEGA, 2009, p. 321).

O termo gansterismo só foi utilizado em 1946 em um momento em que “El descrédito más absoluto” havia caído sobre estes grupos. (idem, ibidem). Ele corresponde, portanto, “al momento final de los grupos de acción”, momento em que haviam perdido o seu sentido original. “Antes de caer en el gangsterismo estos grupos habían sido otra cosa.” (idem, ibidem). Antes de 1946, “la prensa, temerosa, se refirió a ellos tildándolos de elementos revolucionarios .” (idem, ibidem). E é incontestável o fato de que estes grupos contaram durante muito tempo com uma “fervorosa popularidad”. (idem, ibidem). Luis Ortega fala de certa “mística da violência” que envolveu estes grupos durante os anos 30 e 40.

Evidentemente, había una cierta mística de la violencia en aquellos que se mantenían firmes en su confusa posición. La política, por otro lado, avanzaba hacia la Constituyente de 1939, y se restablecía una cierta normalidad, pero el fanatismo revolucionario, refugiado en pequeños grupos, se mantenía vivo. El misterioso prestigio de que disfrutaban estos pupos de la violencia era visible en la opinión pública. (idem, p. 320).

Um dos líderes de maior destaque dos grupos de ação foi Emilio Tro. “No hay ningún documento en que se recojan las ideas que alimentaba el grupo de Tro.” (idem, ibidem). Mas, segundo Luis Ortega (idem, p. 321):

40

“Los planes del grupo de Tro —a los cuales solo se puede llegar hoy por referencias verbales— consistían en la toma del poder para imponer un régimen revolucionario que castigara a los culpables.”

É possível que os grupos de ação, através da imputação do medo, tenham alcançado um determinado controle sobre determinadas esferas da sociedade.

En los momentos de mayor auge lograron dominar una extensa red de pasivas complicaciones en la capital. Cualquier comentario de censura periodística, cualquier actividad judicial, cualquier informe que pudiera dañar la seguridad de las facciones revolucionarias era interpretado como un acto de traición a la revolución . (idem, 320).

Entretanto, entre os anos 40 e 44, “(…) estos grupos entran en un periodo de descomposición interna.” (idem, ibidem). Utilizando a tática do suborno, Batista coopta e se infiltra em diversos grupos de ação. Os que se safam da cooptação de Batista, não escapam à do governo de Grau San Martín.

En 1944, cuando triunfa Grau San Martín, los grupos de acción salen a la luz pública y tienen que enfrentarse a la realidad del triunfo electoral. Ésta es la etapa de mayor corrupción de los insurreccionalistas. Grau los introduce en las fuerzas policiales. Algunos comienzan a especular. Otros mantienen una firme postura en defensa de lo que llaman justicia revolucionaria . (idem, ibidem).

Para Karol (2009, p. 70), a desintegração dos grupos de ação em grupos de gangsteres se deu quando o governo de Grau San Martín começou a utilizá-los como “tropas de choque de una guerra anticomunista.” Isto gerou uma grande divisão, fragmentação e corrupção em seu interior.

Este papel no era muy cómodo para los radicales. Y se operó una especie de antiselección en el seno de los “grupos”, y mientras los mejores abandonaron ese dudoso combate los más violentos se aprovecharon de ello para apoderarse de los puestos del gobierno. (idem, ibidem).

Para cooptá-los, o governo de Grau San Martín oferecia dinheiro e emprego para os principais líderes dos grupos de ação.

Como se ve la administración Grau intentaba resolver de un modo totalmente democrático el problema. Y, claro está, lo hizo discretamente, para no enfrentarse con la oposición parlamentaria y, principalmente, para no arruinar las plataformas ideológicas de los ”grupos”. Era preciso permitirles proseguir con su reclutamiento para que los jóvenes idealistas no se vieran tentados a encontrar guías menos complacientes. (idem, ibidem). 41

Os dois principais grupos rivais que haviam em Cuba nos anos 40 eram o Movimiento Socialista Revolucionário (M.S.R.), liderado por Mario Salabarría, e a Unión Insurreccional Revolucionaria (UIR), liderada por Emilio Tro. Todos os dois foram recrutados para altos funcionários da polícia.

Aun cuando los nombres de estos dos movimientos sugieren un cierto parentesco ideológico ambos se combatían ferozmente; sus líderes se odiaban hasta el extremo que continuaron su lucha a muerte cuando ambos se convirtieron en altos funcionarios de la policía. (idem, ibidem).

Desta forma, os grupos de ação perderam o seu sentido ideológico e continuaram existindo como grupos armados, confrontando-se entre si, enfrentando os comunistas e a própria polícia. A partir de 1946, totalmente financiados pelo governo, os grupos de ação apareceriam como gangsteres aos olhos de todos. Prío Socarrás manterá o mesmo método de cooptação destes grupos. Fidel Castro, no tribunal de contas da República, antes do golpe de Batista, acusará este vínculo do governo de Prío com os gangsteres.

Prío no fue ajeno al trato con las pandillas. Lo escoltaron celosamente a través de toda su campaña política. Subió al poder saturado de compromisos (…) Sin dinero para los grupos no habrá mas atentados. Las pistolas con que se mata, las paga Prío. Las máquinas en que se mata las paga Prío. Los hombres que matan los sostiene Prío. Yo lo acuso ante este tribunal y lo hago responsable de nuestra tragedia ante la Historia de Cuba, aunque tenga que rubricar con mi sangre el deber imperativo de mi conciencia… (CASTRO RUZ, 2006).

Segundo Fidel, o Palácio presidencial entregava aos diferentes grupos de ação 18.000 dólares por mês em forma de 600 remunerações particulares. Em uma longa rede de corrupção, Prío Socarrás distribuía 600 postos de trabalho para o Grupo Policarpio, 550 para o Grupo Masferres, 110 para a URI, e ainda mais para outros grupos. No total, os Ministerios de Saúde, Trabalho, Interior e Obras Públicas distribuíam mais de 2.120 salários mensais gratuitamente. (KAROL, 1972). Os chefes dos grupos acumulavam diversos salários. O secretário do Ministério de Obras Públicas, conhecido como senhor Caseiro, distribuía, por exemplo, 30 salários para Manuel Vilma, 28 para Guillermo el Flaco, 26 para Pepe el 42

Primo. O gangster chamado Manuel Vilma ficava com trinta, Guillermo el Flaco. (ibidem). Na década de 40, a universidade e o movimento estudantil estavam tomados pelo gangsterismo. Carlos Alberto Montaner (1999, p. 17) descreve este ambiente em que o líder estudantil andava com uma pistola no cinto.

Allí había corrupción, violencia, jefecillos armados, e imperaba el reino del matonismo revolucionario. Era la universidad de los gángsters, los líderes estudiantiles andaban con una pistola al cinto, y para ascender hacia la cúpula resultaba casi imprescindible cobijarse en alguna de las facciones más poderosas y temidas.

Além dos gângsteres cubanos, que refletiam a revolução de 33, havia aqueles que eram ex-combatentes da Guerra Civil Espanhola e ex-combatentes da Segunda Guerra Mundial.

Para complicar aún más las cosas, en aquella revuelta universidad de los años cuarenta – surgida de la insurrección contra Machado de los treinta– confluían otras dos fuentes de violencia: los ex combatientes de la Guerra Civil española, a la que más de mil cubanos fueron a pelear, casi todos en las filas comunistas de las Brigadas Internacionales, y los excombatientes de la Segunda Guerra mundial. Había, pues, héroes y villanos para todos los gustos, y todos ellos tenían sus grupos afines dentro de la universidad. (idem, ibidem).

Foi este ambiente de gangsterismo que grande parte dos que viriam a ser líderes revolucionários nos anos 50 encontrou ao ingressarem na universidade. Fidel Castro, ao sair do bacharelado entrou na universidade de Havana em 1946. Existe na historiografia um grande conflito entre aqueles que afirmam que ele se tornou um gangster e aqueles que afirmam que isto nunca ocorreu. Carlos Alberto Montaner (1999), baseando-se nos relatos de estudantes que conviveram com Fidel naquele período, afirma que intentando alcançar os postos de presidência estudantil da faculdade de direito, Fidel havia se tornado gângster. Para ganhar o apoio do grupo gângster Movimiento Socialista Revolucionário (MSR), dirigido naquela universidade por Manolo Castro e Rolando Masferrer, Fidel Castro tentou assassinar Leonel Gómez, um líder estudantil que se dizia inimigo de Manolo Castro. Entretanto, não conseguindo matar Leonel Gómez, Manolo Castro “(...) le manda un mensaje despectivo con José de Jesús Ginjaume: ‘Dile a ese tipo que no voy a apoyar a un mierda para presidente de Derecho.’”. (idem, p.18). 43

Incapaz de ingressar no Movimiento Socialista Revolucionário, Fidel teria ingressado no UIR (União Insurrecional Revolucionária) de Emilio Tro. Castro, enfim, se torna, na imagem de Montaner, um clássico gângster:

Castro, pistola al cinto, adquiere fama de gatillo alegre y de hombre violento. Pero todavía no tiene una historia política coherente. Es sólo un tira-tiros sin leyenda personal apreciable. Un guapo de bofetadas y qué me estás mirando . (idem, ibidem).

Segundo ainda Montaner (1999), Fidel teria assassinado Manolo Castro. Para K.S. Karol (1972), entretanto, Fidel tinha desenvolvido um perfil adequado para a luta dos grupos de ação, mas, nunca chegou a formar parte de um grupo gângster.

A primera vista Fidel Castro es un candidato totalmente adecuado para la batalla de los “grupos de acción”. Tiene agallas, sabe manejar el revólver, y su impulso político, unido a su falta de preparación doctrinal, debería arrojarle en brazos de los que hablan mucho de insurrección mientras distribuyen puestos de responsabilidad en la Federación de estudiantes. Sin embargo, Fidel no formará parte nunca de un grupo armado. Fidel pone de manifiesto, desde el principio, una singular capacidad para vivir las experiencias de su generación sin por ello ser prisionero de la misma.(idem, p. 76).

Para ele, Fidel, na complicada batalha da universidade atuou como aliado da URI, porém, sem ingressar no grupo. Ele se conservava como um “francotirador, aliado al grupo sin por ello estar sometido a su disciplina.” Fidel era “demasiado sagaz para comprometerse en sus locuras.” (idem, ibidem). Se Fidel fez parte ou não de um grupo gângster, o que importa é que ele esteve ligado ao gangsterismo. Em 1947, o periódico do partido comunista, Hoy , trata fidel como um “gângster”. (idem, ibidem). Armando Hart, também estudante da mesma universidade, relembrou a primeira vez que viu Fidel no final dos anos 40.

Falo de 1947 ou 48. Ele chegou com um grupo de gente variada, depois alguns se transformaram... Outros estavam influenciados pelo gangsterismo. Me recordo do que meu pai disse quando Fidel discursou: ‘esse muchacho parece muito bom, tenho medo que ele se perca em meio aos gângsteres. (KALILI, 2007).

O que nos interessa é demonstrar que a geração centenária viveu em um ambiente marcado pelo gangsterismo, um ambiente tomado por grupos armados na universidade e nas ruas da capital, um tempo marcado pela cultura de armas. Fidel mesmo é lembrado carregando uma colt 45 nos tempos de faculdade. Segundo o poeta Herberto Padilla, que conheceu Fidel durante os tempos de Universidade, 44

Fidel era conhecido como el Gallego, “capaz de enfrentarse a tiros a sus rivales más audaces . (PADILLA, 1989, p. 14). De certa forma, esta cultura política da violência convivia desde os anos 30 com uma cultura democrática em formação. Da mesma forma que a Constituição de 1940 tinha um grande capital simbólico entre a população, os grupos de ação, envolvidos em certo mistério, também gozaram por um longo período de credibilidade. Embora o descrédito tenha recaído sobre o gangsterismo no final dos anos 40 e início dos 50, assim como recaiu sobre a linha politiqueira do Partido Auténtico, uma cultura de ação esteve fortemente presente na juventude; seja por inspiração dos seus mártires, como José Martí, Antonio Maceo, Guitéras, e outros mais, seja por que a cultura de violência política havia sido parte da experiência vivenciada por esta juventude, ou, o que é mais provável, devido a estes dois fatores juntos. Assim, a Cuba em que cresceram os jovens revolucionários dos anos 50 era uma Cuba complexa e em mutação. Uma Cuba marcada por um constante professar dos heróis e lutas da independência e do período revolucionário dos anos 20 e 30, mas também pela corrupção dos ídolos e heróis. Uma Cuba marcada por profundos valores tradicionais, mas também pelo surgimento de uma ética do consumo que se desenvolvia. O mundo de uma vida democrática que avançava de forma otimista, mas também com uma vida subterrânea de gangsteres que tendiam a resolver os problemas políticos pela força. Cuba era nos anos 40 e, mais ainda, nos anos 50, o mundo das contradições.

45

CAPÍTULO 02

As Influências Ideológicas

Qual era o caráter ideológico da luta revolucionária em Cuba? Onde queriam chegar os rebeldes cubanos quando derrubassem o governo de Batista? Os diferentes grupos insurrecionais que enfrentaram a ditadura nos anos 50 professavam que tipo de concepção ideológica? Estas questões foram feitas repetidamente e respondidas diferentemente pelos diversos analistas da revolução cubana. Para Okunieva (1988), por exemplo, a vanguarda revolucionária era comunista. Para Mathews (1961), a vanguarda revolucionária era nacionalista democrática e anti-comunista. A diversidade de respostas talvez esteja ligada à própria diversidade ideológica que marcava a geração revolucionária cubana. Em diferentes processos revolucionários, os grupos que os impulsionaram já carregavam uma ideologia evidente. Na Rússia, o partido bolchevique era social-democrata. Na Espanha, a FAI – Federação Anarquista Ibérica era anarquista. Mas, em Cuba, qual era a ideologia do Movimento 26 de Julho? Que referências teóricas e ideológicas professavam os seus membros? A questão ideológica em Cuba não encontrou uma posição claramente estabelecida. Não havia uma concepção amarrada, sistemática, homogênea, delimitada, nem entre os diferentes grupos, nem entre os rebeldes de um mesmo grupo insurrecional. Uma circular interna do Movimento 26 de Julho lançada no final de 1957 nos parece esclarecedora desta questão. Uma pergunta era colocada ao militante do Movimento:

Todo militante del 26 de Julio se ve hoy precisado a contestar la siguiente pregunta: ¿Qué persigue el movimiento? Hace dos años la cosa quedaba reducida a un grupo numeroso de cubanos; pero ya se ha hecho una cuestión nacional. Incluso internacionalmente se han hecho esta pregunta no pocos comentaristas de la situación cubana. (HART DÁVALOS, 2007, p. 207).

Se era claro que o movimento queria a derrubada de Batista, não era tão claro o que queria depois que isso fosse alcançado. Como questiona esta circular 46

interna. “Y ¿a que aspira esa organización revolucionaria que es el 26 de Julio tras la caída del tirano?” (idem, p.208). Buscando dar uma resposta, o documento apresenta apenas questões amplas e vagas.

A poner al pueblo cubano en acción tras un programa de saneamiento político, reivindicaciones económicas y justicia social que hagan posible la democracia. A crear del pueblo cubano una fuerza organizada y disciplinada, capaz de asegurarse él mismo sus derechos y su democracia. En fin, a consolidar el instrumento revolucionario de la nación cubana, que es y aspira seguir siendo el movimiento. (idem, ibidem).

Há aqui claramente uma incerteza ideológica, uma falta de clareza de onde concretamente se quer chegar, que tipo de sociedade se quer construir. Longe de um projeto ideológico sistemático, se apresenta apenas objetivos vagos e amplos como a justiça social e o saneamento político . Longe de definir quais são os objetivos do movimento, acaba-se por retornar aos meios, ao afirmar que um dos objetivos é consolidar el instrumento revolucionario de la nación cubana . De forma vaga, o objetivo do movimento se torna consolidar o próprio movimento. A figura do revolucionário ressurge em Cuba em função do golpe militar de Fulgêncio Batista. Longe, portanto do revolucionário profissional, que entra na vida revolucionária por uma concordância com o programa de um partido revolucionário, o jovem cubano se torna revolucionário como resposta a um acontecimento político. Os grupos insurrecionais surgem como uma forma de reação armada contra a tirania estabelecida aos 10 de março de 1952. São grupos de ação, voltados para a insurreição e não grupos políticos voltados para o desenvolvimento de uma plataforma ideológica. Essa essência militar impôs um modo de recrutamento totalmente alheio a critérios ideológicos, voltados para a concordância e o desejo de pegar em armas para a luta contra a tirania. Na carta do Movimento 26 de Julho em 1955 estava clara esta amplitude do que se estava gestando:

O Movimento 26 de Julho é o convite caloroso para cerrar fileiras, feito de braços abertos, a todos os revolucionários de Cuba, sem mesquinhas diferenças partidárias e quaisquer que tenham sido as diferenças anteriores. (HARNECKER, 2000, p. 38).

Assim, o que se forma não é um partido político, que tradicionalmente, apresenta um programa ideológico coeso, sistemático e único. O que se forma são 47

grupos insurrecionais que aglutinam jovens das mais variadas matizes e concepções ideológicas. No Movimento 26 de Julho, por exemplo, existiam marxistas claramente identificados com o bloco soviético, como Raúl e como Che (que só se decepcionaria com a URSS alguns anos depois da tomada do poder). Che em uma carta de 14 de dezembro de 1957, afirmava a René Ramos Latour: Pertenço, devido à minha formação ideológica, àquele grupo que acredita que a solução para os problemas do mundo reside atrás da Cortina de Ferro. (FRANQUI, 1981, p. 233).

Havia também nacionalistas democráticos como Huber Matos, e Mario Llerena, que acreditavam no restabelecimento da Constituição de 1940 e na continuidade da vida democrática capitalista de Cuba. Por outro lado, havia também radicais anti-imperialistas que negavam tanto o domínio estadunidense quanto o domínio russo, como Carlos Franqui, Frank País, René Ramos Latour. Entre estes, permeavam posições que apontavam uma crítica tão feroz ao comunismo soviético quanto ao capitalismo, forjando, ainda que de forma vaga e ampla, uma noção de “socialismo democrático anti-soviético”. (ibidem). Um documento importante sobre uma perspectiva anti-capitalista entre estes dirigentes urbanos do Movimento 26 de Julho foi um manifesto escrito em Julho de 1956 por Carlos Franqui, Armando Hart, Enrique Oltuski e Frank País, todos eles membros da direção nacional do Movimento. Este documento não se tornou público, nem mesmo se tornou um documento oficial do movimento, porque Fidel discordou de sua publicação. Carlos Franqui (1980), em seu volumoso livro de documentos da luta insurrecional intitulado Diario de la Revolución Cubana , o publicou. Em suas conclusões afirmava:

1. We believe work is the only source of wealth. 2. We are against the division of society into classes, because it is one-sided and unjust; forcing the majority to work for the few is the source of all social conflict. 3. We want the Cuban society of the future to provide everyone with a job and the income his ability and effort deserve. A society in wich no individual or group can steal the product of another’s efforts and this is possible only in a society without classes or privilegies. 4. The Revolution can exist only if it protects the immense majority from the few who would exploit it. 5. Everyone who takes the revolutionary road must follow progressive aims. 48

The middle class, which led our country in 1868, began by setting the slaves free and taking them into the mambí army, We have seen how social progress advanced in 1895 and 1930. (idem, p. 108)

Em uma carta de Janeiro de 1957 a Frank País, chefe da direção nacional do Movimento 26 de Julho, Carlos Franqui (idem, p. 135) afirmava que neste documento a influência dos decretos de Lênin era evidente, porém, “we had adapted them to the Cuban situation.”. Essa adaptação à situação cubana tem um significado bastante profundo. Grande parte dos rebeldes cubanos, como os membros da Direção Nacional do Movimento, tinham noções anti-capitalistas e foram de uma forma ou de outra influenciados pela leitura marxista. Entretanto, a maior parte deles era profundamente contra a via russa do socialismo. Em uma carta de René Ramos Latour a Che Guevara em 18 de dezembro de 1957, o combatente das cidades afirmava em nome de todo a direção nacional do Movimento 26 de Julho:

(...) as pessoas com o seu tipo de formação ideológica acham que a resposta para os nossos problemas é nos libertarmos da maligna dominação ianqui por meio de uma não menos maligna dominação soviética. (idem, p. 236).

Uma outra carta, de Carlos Franqui a Frank País, o rebelde remete à noção vaga de um “novo socialismo”, que fosse “realmente livre e humano”. (idem, p. 135). No MNR – Movimento Nacional Revolucionário, dirigido por Rafael García Bárcena, havia alguns rebeldes com colorações fascistas e outros com posições democráticas. Mario Llerena, quando ingressou no comitê nacional do movimento ficou decepcionado com esta diversidade. “I was a little discouraged by the discovery that the MNR national committee was not exactly homogeneous in its ideological composition.” (LLERENA, 1978, p. 47). Segundo Llerena, Dr. Rumbaut e Amalio Fiallo, dois devotos cristãos, eram democratas no sentido mais profundo da palavra, enquanto Manolo Fernandez e Alberto Guigou eram admiradores de José Antonio Primo de Rivera, fundador do movimento fascista espanhol Falange. (idem, ibidem). Essa pluralidade interna dos grupos insurrecionais dificultou o consenso em torno de critérios ideológicos. Muitas divergências que durante a luta foram se tornando claras foram deixadas de lado. A carta de Carlos Franqui a Frank País deixa claro que suas noções de “novo socialismo” não era função de um Movimento 49

como o 26 de Julho que era amplo e diversificado o bastante para se fechar critérios ideológicos.

I know that wiping out capitalism and establishing a new socialism that is really free and humane is not really the job of a group like the . It is a large and diversified and has almost become a national movement. (FRANQUI, 1980, p. 135).

A diversidade ideológica, entretanto, embora tenha aparecido em algumas trocas de cartas mais acirradas, nunca foi essencial durante a luta insurrecional. O que prevalecia era um desprezo às questões teóricas e ideológicas e uma supervalorização da ação. Um relato de Che Guevara sobre uma discussão que teve com um membro do movimento de Fidel no México em 1955 expressa bem esta postura:

Recuerdo que en una discusión íntima, en una casa en México, exponía la necesidad de ofrecer al pueblo de Cuba un programa revolucionario; y uno de los asaltantes del Moncada -que afortunadamente se separó del 26 de Julio- me contestó con unas frases que siempre recuerdo, diciéndome: «La cosa es muy sencilla. Nosotros lo que tenemos que hacer es dar un golpe. Batista dio un golpe y tomó el poder en un día, hay que dar otro para sacarlo de él. (GUEVARA, 2002).

Os grupos insurrecionais sofriam de falta de intelectuais e produtores teóricos no seu interior. A maioria dos revolucionários cubanos eram estudantes, recém- formados, trabalhadores ou pequenos comerciantes que, por sua própria juventude ou por sua própria condição, foram incapazes de desenvolver uma concepção revolucionária mais profunda. Juan Almeida era peão de obra, José Ponce era dono de uma pequena gráfica, Universo Sánchez era camponês, Vilma Spin era engenheira recém-formada, Fidel Castro era advogado, Efigênio Amejeiras era chofer. (FRANQUI, s/d). Com poucas exceções, como a do filósofo Rafael García Bárcena, não haviam intelectuais envolvidos na direção da luta revolucionária. (LLERENA, 1978). A falta de experiência da maior parte dos revolucionários também pesava na incapacidade de produção teórica. Poucos foram os rebeldes que possuíam experiência política em partidos revolucionários profissionais. Grande parte deles era dotado de grande interesse por leituras diversas, mas, eram apenas iniciantes na leitura teórica e no mundo político. Juan Almeida, em uma entrevista após a tomada do poder, ao ser questionado quando ingressou nas linhas da Revolução, 50

respondeu: “¿Qué cómo yo empiezo en las líneas de la Revolución…? No, de la insurrección, yo de revolución no conocía un bledo.” (FRANQUI, s/d, p. 09). Mas, mal havia ouvido falar do golpe de Batista, já estava na Universidade esperando as armas chegarem. A maior parte dos rebeldes se iniciara na luta insurrecional como Renato Guitart, aberto a diferentes influências progressistas e com uma concepção ideológica ainda por se fazer.

(Renato) estuvo abierto al universo de ideas progresistas y revolucionarias contenidas tanto en una obra política como en una simple novela. La lectura fue una extensión de la vida, pero también de la ficción a la realidad el límite debió ser apenas perceptible; bastáble ajustar los patrones culturales asumidos de la lectura a la intensa actividad desplegada en todos los órdenes. (IBARRA GUITART, 1998, p. 45).

Havia assim, sem dúvida alguma,uma falta de preparo político da maior parte dos jovens rebeldes. Em uma carta a Ernesto Sábado em 1961, Che assumiu o despreparo político dos militantes revolucionários:

Nós que acompanhávamos Fidel, éramos um grupo de homens com pouco preparo político, contando somente com a boa vontade e nossa honestidade inata. (GUEVARA, 1980, p. 61).

A própria condição de repressão imposta pela ditadura de Batista dificultava o trabalho de elaboração teórica e ideológica. Enrique Oltuski, por exemplo, afirmava que nas cidades o próprio estilo de luta, marcado pela dispersão e pelo perigo, travava o desenvolvimento ideológico dos combatentes urbanos.

There was also a style of struggle in wich distrust, dispersion, and constant danger hampered the discussion and development of progressive ideas. (OLTUSKI, 2002, p. XX).

A incapacidade de produzir um programa ideológico coeso e a pluralidade de influências ideológicas dos rebeldes cubanos tornou a experiência revolucionária dos anos 50 muito mais complexa do que parte da historiografia cubana pensou ser. Quando Fidel declarou o caráter socialista da revolução em abril de 1961, houve um processo de reformulações das percepções que se poderia ter sobre toda a história de luta que se travou em Cuba. O socialismo precisava se legitimar como algo não arbitrário, nem imposto de cima para baixo por Fidel e um grupo de comunistas. 51

Neste sentido, pouco a pouco foi se produzindo uma memória oficial que, segundo o historiador Rafael Rojas (2009), pretendeu mostrar o socialismo como um desejo que permeou toda a nação cubana desde o século XIX. Toda a cultura cubana anterior a 1961 se tornou um antecedente espiritual do socialismo. Em 1973, Fidel afirmou no Primeiro Congresso do Partido Comunista em Cuba:

Cuando más tarde la Revolución pujante y victoriosa no vaciló en seguir adelante, algunos dijeron que había sido traicionada, sin tomar en cuenta que la verdadera traición consistía en que la Revolución se hubiese detenido en la mitad del camino. Derramar la sangre de miles de hijos del pueblo humilde para mantener el dominio burgués e imperialista y la explotación del hombre por el hombre, habría sido la más indignante traición a los muertos y a todos los que lucharon desde el 68 por el porvenir, la justicia y el progreso de la patria. (MENCÍA, 1975, p. 271).

Podemos ver neste discurso que o socialismo é tido como o objetivo máximo, ainda que inconsciente, de todos os rebeldes que lutaram pela pátria. Ele é a conseqüência mais avançada de todo o pensamento nacionalista firmado nas noções de justiça e progresso que proclamaram os lutadores cubanos desde a luta pela independência. Para alcançar essa tarefa de legitimação do socialismo foi necessário eliminar do passado todas as marcas de pluralidade ideológica e política e todas as tensões entre as diferentes correntes que permearam a história cubana. Como afirmou Rojas (2009)

(…) la pluralidad ideológica y política del pasado insular, y su permanente tensión entre ideas liberales, conservadoras, republicanas, católicas y marxistas, son obstáculos formidables contra esa fábula homogeneizadora y providencialista.

A história da luta insurrecional de 1952 a 1958 passou pelos mesmos processos. Ela foi tomada como uma luta pelo socialismo, ainda que ele não fosse explicitamente proclamado. Uma atitude comum foi tomar Fidel Castro como um revolucionário marxista- leninista ainda quando os seus discursos durante toda a luta insurrecional proclamavam um nacionalismo democrático reformista e, por vezes, anti-comunista. A partir do momento em que Fidel proclamou o caráter socialista do regime revolucionário em 1961, houve uma tendência por parte de muitos cubanos de 52

afirmarem que sempre foram comunistas. Em um discurso de 01 de dezembro de 1961, Fidel Castro (s/d, p. 11) afirmava que

En los primeros tiempos había gente que decía: yo estuve en la Sierra. Y ya tenían loco a la gente con “yo estuve en la Sierra”. Y había gente, además, que no había estado nada en la Sierra. También hay gente ahora que dice: “yo soy comunista hace quinze años”, y de comunista no han tenido nada nunca en su vida.

O próprio Fidel, um dia depois deste discurso, declarou diante das câmaras de TV que “era marxista-leninista desde que estaba en la universidad, pero que si hubiera dicho en la Sierra Maestra, NO HUBIERA PODIDO BAJAR AL LLANO”. (URRUTÍA LLÉO, 1975, p. 100). A partir daí, se consolidou a noção de que a luta insurrecional foi uma estratégia dos dirigentes comunistas, em especial de Fidel, rumo a uma revolução socialista. Em 24 de março de 1952, Fidel Castro entrou com um processo contra Fulgêncio Batista no Tribunal de Urgência. Como o ditador declarava que o golpe que havia realizado era uma revolução, Fidel buscou neste processo refutar o caráter revolucionário do golpe de Batista. Afirmou:

No basta que los alzados digan ahora tan campantes que la revolución es fuente de derecho, si en vez de revolución lo que hay es “restauración”, si en vez de progreso, “retroceso”, en vez de justicia y orden, “barbarie y fuerza bruta”, si no hubo programa revolucionario, ni teoria revolucionaria, ni prédica revolucionaria que precedieran al golpe: politiqueros sin pueblo, en todo caso convertidos en asaltantes de poder. Sin una concepción nueva del Estado, de la sociedad y del ordenamiento jurídico, basados en hondos principios históricos y filosóficos, no habrá revolución generadora de derecho. (MENCÍA, 1986, p. 608).

Ao afirmar que a revolução gera direitos quando está baseada em uma nova concepção de Estado, de sociedade e do ordenamento jurídico, Fidel expressa o que era comum entre muitos revolucionários dos anos 50, o desejo de uma nova Pátria, de uma sociedade mais justa e grandiosa. Mas, para o pesquisador Lionel Martín, esta teoria da legitimação da mudança revolucionária representava na verdade o socialismo, embora Fidel não pudesse usar o termo revolución socialista .

Lo que Castro debía haber tenido en mente era una revolución socialista o algo que le abrira el camino. Para Fidel, revolución socialista era una expresión prohibida. Sin embargo, su teoría de la legitimación revolucionaria constituye un buen ejemplo de que, para 53

él, no existían objetivos prohibidos en el campo del pensamiento. (MARTÍN apud MENCÍA, 1986, p. 152).

Desta forma, sempre que o discurso revolucionário do período insurrecional apontava a palavra de mudança nas diferentes ordens da vida, ainda que não apontasse que mudança era essa, era tomado como provas do desejo socialista. Grandes líderes, com pensamentos e posições complexas em relação a Fidel Castro e ao comunismo russo, como Frank País e José Antonio Echevarría, foram transformados em socialistas seguidores de Fidel. Em março de 1956, o Directorio Revolucionario, liderado por José Antonio Echevarría, lançou um manifesto intitulado MANIFESTO AL PUEBLO DE CUBA, onde afirmava que

La Revolución Cubana va hacia la superación de las lacras coloniales y de los males de la independencia, hacia la liberación integral de las potencias materiales y espirituales del país y hacia el cumplimiento de su destino histórico. La Revolución es el cambio integral del sistema político, económico, social y jurídico del país y la aparición de una nueva actitud psicológica colectiva que consolide y estimule la obra revolucionaria. (GARCÍA OLIVERAS, 2001, p. 06).

Echevarría, assim, proclamava a Revolução como uma mudança radical em todas as estruturas econômicas, sociais, jurídicas e psicológicas e não como mera luta armada para a derrubada de um tirano. Esta mudança radical, entretanto, permanecia em aberto, sem uma forma clara, sem um caráter concreto. Mas, para García Oliveras, este parágrafo demonstrava como os revolucionários cubanos e, em específico, Echevarría e o Directorio Revolucionário, estavam comprometidos com a luta pelo socialismo. Assim afirmou sobre o parágrafo citado.

Aquí aparece, como principio en que se asentará la Revolución la lucha por el socialismo, fundamento de la justicia social por la que han combatido los cubanos durante más de 100 años. Al suscribirse la meta socialista no se hacía por ninguna afinidad política, ni impuesta por fuerzas extrañas, sino de forma absolutamente consecuente con el más legítimo pensamiento revolucionario cubano frente al fracaso absoluto del modelo de capitalismo dependiente, implantado en Cuba por más de 50 años. (idem, ibidem).

A crítica ao regime de Batista durante a luta insurrecional também foi transformada em uma crítica ao modelo de poder estabelecido. Nesta perspectiva, a revolução aparecia estimulada não por um repúdio ao golpe militar que colocava fim 54

à democracia cubana e à Constituição de 1940, mas, por um repúdio às condições intrínsecas da democracia representativa e do modo de produção capitalista. Armando Hart, por exemplo, ao tratar da Constituição de 1940, reforça o fato de que havia nos anos 40 e 50 uma crise do sistema de democracia representativa e do pluripartidarismo, e que esta crise já era antevisto por Fidel Castro em seu discurso.

Yo tengo preparado un trabajo aquí que se los voy en parte a leer para que Torres-Cuevas después me lo rectifique, que se llama .La crisis del sistema de democracia representativa y del pluripartidismo .. Ese sistema fue el que falló en Cuba en los años 40 y 50. Porque con la Constitución del 40 podía y tenía que haberse hecho legalmente la reforma agraria. Fidel se refiere a esto en La historia me absolverá. No estoy hablando de cosas sencillamente expuestas aquí, sino que Fidel se refiere a esto en La historia me absolverá, y parte del análisis que hay que hacer de la Constitución del 40 es compararla con los pronunciamientos que hace Fidel en La historia me absolverá. (OLTUSKI et al., 2009)

A crítica que os rebeldes faziam à corrupção nos governos de Carlos Prío e de Batista seria vista como uma crítica que, junto às idéias de liberdade econômica, justiça política, independência social, conduziram Cuba ao socialismo.

(…) esos cuatro elementos .libertad económica, justicia política, independencia social y lucha contra la corrupción. e parece que son la experiencia histórica de esos años. A nosotros nos condujo al socialismo. Y yo creo que eso conduce al socialismo. (idem, ibidem. Grifo do autor).

O socialismo, assim, dentro desta perspectiva oficial, não era só um simples desejo de um grupo dirigente, mas uma necessidade de cumprir as demandas reais de liberdade, justiça e constituição de um regime livre de corrupção. Não menos comum foi a transformação da dimensão dada aos participantes da luta e aos eventos revolucionários. Por um lado, os poucos revolucionários socialistas que participaram da luta insurrecional tiveram sua participação aumentada e enaltecida, enquanto muitos revolucionários e grupos assumidamente anti-comunistas desapareceram do relato histórico ou tiveram sua importância diminuídas. Desde a tomada do poder em 1959 se consolidou os três principais eventos míticos da luta revolucionária: o ataque ao quartel de Moncada em 1953, o 55

desembarque do em 1956, e a luta na Sierra Maestra de 1956 a 1958. Como afirmou o historiador Rafael Rojas (2009),

La historia oficial, sin embargo, aplica sobre esa época una operación simbólica, similar al zoom de los camarógrafos, que ignora los alrededores y va directo a la iluminación de sucesos míticos: el Moncada, el Granma y la Sierra.

A redução desta memória oficial aos três eventos míticos produziu um processo de negação de toda a luta insurrecional levada a cabo durante o período. Diferentes grupos insurrecionais como o MNR – Movimento Nacional Revolucionário, a TRIPLE-A, o Directorio Revolucionário, a Organización Auténtica, a Acción Libertadora, foram desmerecidos, assim como as diferentes ações que realizaram. O zoom do ataque ao Quartel de Moncada é evidente na memória histórica oficial, principalmente quando descobrimos que ele não foi o primeiro nem o único ataque a quartéis durante o período aqui estudado. Antes mesmo do ataque ao quartel de Moncada, o MNR – Movimento Nacional Revolucionário, liderado por Rafael García Bárcena, havia preparado um ataque ao quartel de Colúmbia. Mais de um ano de preparação foi perdido quando poucas horas antes do ataque, a polícia descobriu o plano e invadiu a casa do líder máximo do movimento, prendendo ali os dirigentes do ataque. (MENCÍA, 1986, p. 337). Depois do Moncada ocorreram outros ataques a quartéis como o ataque ao quartel de Goycuria. Em abril de 1956, “50 revolucionarios de la Organización Auténtica y la Triple A, encabezados por Reynold García, trataron de ocupar el cuartel "Domingo Goicuría" de Matanzas.” (ROJAS, 2009). Dentro da memória oficialista, o ataque ao Quartel Moncada não só aparece como o principal e quase único ataque que merece ser relembrado, como é tido como marco fundador da ação revolucionária. Fidel em um discurso em Santiago de Cuba em 26 de Julho de 1962, afirmou:

Un día como hoy, hace nueve años, se escucharon en esta ciudad los primeros disparos de la lucha contra el régimen militar y reaccionario de Fulgencio Batista. (CASTRO, 2002)

Assim, antes do Moncada não havia luta revolucionária. O processo comum era o de reduzir a história da luta insurrecional à história de Fidel Castro. Desde 1959, Fidel e Revolução se tornaram uma só coisa. Onde esteve Fidel, ali esteve a luta insurrecional. A trajetória da revolução se tornou a trajetória do Movimento 26 de 56

Julho e a trajetória do Movimento 26 de Julho se tornou a trajetória de Fidel. (FRANQUI, 1981). Foi assim também que a vitória da luta insurrecional se tornou a vitória da Sierra Maestra. A produção deste mito de que foi a Sierra quem fez a revolução se consolidou rapidamente desde o ano de 59. Segundo Julia E. Sweig (2002, p. 01), Che foi fundamental no fortalecimento deste mito de que a revolução cubana foi levada à cabo por um grupo de rebeldes barbudos firmados em uma base camponesa. Fidel, Raúl e Che se tornaram as figuras principais do relato oficial. O culto aos grandes feitos destes personagens comunistas se tornou o elemento fundamental da memória oficialista. Como afirmou Rafael Rojas (2009):

El relato oficial es un reflejo bastante nítido del culto a la personalidad de Fidel, el Che y Raúl y una construcción del pasado desde el punto de vista de quienes vencieron en la guerra civil y acapararon el poder por medio siglo. Desde entonces la historia de la revolución ha sido, en Cuba, un asunto de estado o, más específicamente, un asunto del Consejo de Estado. La idea de que el relato debía ser contado de acuerdo con la perspectiva de los sectores más radicales del 26 de Julio y, fundamentalmente, de aquellos tres caudillos de la Sierra, quedó establecida, desde el principio, en el encargo que recibiera Celia Sánchez de organizar el archivo de la revolución.

Assim se consolidou uma perspectiva de que a luta insurrecional foi desde o seu princípio uma luta travada rumo ao estabelecimento do socialismo. O revolucionário se tornava o homem com um objetivo ideológico bem traçado e capaz dos maiores feitos para a realização de seu ideal. Entretanto, essa versão precisa ser superada se queremos compreender o modo como o revolucionário cubano se relacionava com os seus objetivos maiores. Para tanto, uma percepção do significado do termo “revolução” em Cuba, nos parece fundamental para avançarmos. O significado da palavra “revolução” tem sido após a guerra fria monopolizado pelo pensamento leninista e inscrito como sinônimo de uma ruptura radical com a estrutura do sistema capitalista e constituição de uma sociedade sob novas bases. O socialismo foi associado ao pensamento marxista de eliminação da propriedade privada e constituição de um Estado proletário. Talvez seja por isso que Richard Gott afirmou que os revolucionários que atacaram o Quartel Moncada eram mais radicais do que revolucionários. (GOTT, 2007, p. 223). 57

Esta versão de ‘revolução’ e ‘socialismo’ está longe do sentido hegemônico destes termos na Cuba dos anos 50. O termo “revolução” em Cuba não significava uma mudança radical das estruturas, nem mesmo a constituição de uma nova sociedade organizada a partir de outras bases econômicas. Mesmo quando se utilizava a palavra “mudar a estrutura social”, ela era apenas um lugar comum, no sentido de uma busca de algo novo.

For all the popularity of the term (if appeared even in folk songs), the concept remained cloudy. True, revolutionary phrases permeated the manifestos, press reports, and many intellectual and artistic works. Such expressions as “change of the social structure” became commonplace in campaign speeches and press statements. The may have proved effective in identifying the speaker with popular causes and in stirring the emotions of the crowd, but their full meaning never really reached the hearts and minds of the people who applauded the so warmly. To the great majority, a change in the social structure meant simply a chance for a good education and a good job, and fair treatment by the government. (LLERENA, 1978, p. 40).

Como afirmou Cabrera Infante (1996), o termo revolução não carregava um caráter inusitado ou perigoso. Pelo contrário, ele estava vinculado a uma profunda tradição cubana de motins, rebeliões e revoltas sem um objetivo radical estabelecido. O termo revolucionário era utilizado para definir tanto o partido independentista de José Martí do século XIX quanto os grupos de gângsteres dos quarenta e cinqüenta.

Em Cuba sempre se falou de revolução, e com freqüência de Revolução: durante a colônia, nas guerras de independência e, supostamente, na República, de 1902 a 1958. O partido independentista, fundado em seu exílio americano por José Martí, chamou-se Partido Revolucionário Cubano. Isso não pareceu nem inusitado nem perigoso na época. Depois disso, cada rebelião, revolta ou motim local, mais ou menos democrático, era uma revolução. O líder máximo antimachadista foi o professor e médico Ramón Grau San Martín, personagem de fato sui generis na política cubana. O dr. Grau chamou o partido que fundou de Revolucionário Cubano (Auténtico) (...) Durante o mandato do dr. Grau e de seu sucessor Carlos Prío (1944-1952), os bandos de gângsteres zanzavam pelas ruas escuras e pelos ministérios bolorentos de Havana Velha, para matar-se entre si por ideologias mais obscuras do que as ruas e por pobres cargos públicos nos ministérios vetustos. Seus nomes oficiais (ninguém era clandestino na época) eram Movimento Social Revolucionário ou União Insurrecional Revolucionária. (idem, p. 160).

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Segundo Mario Llerena (1978, p. 38), o termo “revolução” tinha em Cuba uma áurea de prestígio desde as lutas pela independência da ilha no final do século XIX.

(…) the term “revolution” had entered the Cuban vocabulary with an aura of prestige during the long struggle for independence from Spain in the second half of the nineteenth century. (idem, ibidem).

Sua definição esteve desde o partido de José Martí associada na opinião pública a uma “heroic rebellion against illegitimate or excessively authoritarian power, and nothing more.” (idem, ibidem). Os diferentes grupos insurrecionais dos anos 50 se auto-proclamavam revolucionários a partir desta concepção heróica, não a partir de seus objetivos finalistas. Assim, podemos dizer que ser revolucionário na Cuba dos anos 50 não significava propor uma ruptura com o sistema. Isto fica claro quando vemos as diferentes influências teóricas e ideológicas dos revolucionários cubanos e quando analisamos os programas revolucionários dos grupos insurrecionais. Dificilmente algum dos revolucionários não se sentia seguidor das idéias de José Martí. O nacionalismo e o americanismo do apóstolo da independência cubana influenciavam profundamente a geração dos anos 50. René Ramos Latour, em carta a Che de 19 de Dezembro de 1958, afirmou:

I believe there is no representative of the “right” on our National Directorate, but only a group of men who aspire to advance the liberation of Cuba. The Revolution based on the political thought of José Martí (who wandered trough the countries of the Americas) found itself frustrated by the intervention of the U.S. government. (FRANQUI, 1980, p. 273).

A luta revolucionária dos anos 50 era, desta forma, vista como parte da guerra de libertação de Cuba, iniciada durante a luta da independência, mas interrompida pela intervenção estadunidense. O Americanismo de Martí aparece também no manifesto escrito por Faustino Pérez em 12 de março de 1958. Unir as nações americanas era uma tarefa que permeava constantemente os dirigentes do Movimento 26 de Julho.

Our Movement and Fidel Castro have produced an enormous impact on hemispheric opinion, especially in South and Central America. We must study seriously and calmly the possibilities of making the 26 th of July Movement into a continent-wide organization. The need proclaimed long ago by Bolívar and Martí for all the nations of America to become united might well find an adequate instrument in 59

us. Our responsibility in now much greater. No longer does in extend only to Cuba; it now reaches all the Americas. Our comrades should be assured that the entire continent has its eyes on Cuba. (idem, p. 294).

Armando Hart Dávalos (2007), afirma que a geração rebelde havia aprendido a amar aquilo que José Martí chamou de Nuestra America .

Aprendimos de José Martí a amar nuestra gran patria America Latina. Para nuestro estudiantado la lucha por los principios democráticos no terminaba en Cuba, constituía un deber de los revolucionarios en cualquier parte del mundo. (idem, p. 84).

Antonio Maceo também deixou marcas do sentimento nacionalista e anti- imperialista da juventude revolucionária. Juan Almeida (1989a) ao caminhar por Havana, após a sua saída da prisão de Isla de Piños em 1955, respirava toda a história da ilha. Ao passar pelo Hotel Inglaterra, afirmou:

Nele se hospedou Antonio Maceo em 1890, durante sua estada aqui na capital. Nós, cubanos, temos muita admiração por Maceo devido ao seu valor, sua integridade e seus princípios, além de ser um homem muito inteligente e preparado, como o demonstram seus escritos políticos e militares e suas cartas pessoais conhecidas. Num jantar oferecido a ele em 1890, em Santiago de Cuba, um dos participantes disse-lhe que Cuba chegaria a ser uma estrela na constelação dos Estados Unidos da América, a que Maceo respondeu que esse seria o único momento em que talvez ele estaria ao lado dos espanhóis. Foram, assim, firmes, os princípios de independência desse grande homem. (p. 41).

Se analisamos bem o fragmento acima, vemos que, o que chama a atenção de Almeida no anti-imperialismo de Maceo, é a firmeza de princípios. Assim, mais do que deixar elementos concretos para um programa ideológico, os heróis da independência forneceram uma ética de conduta, um exemplo de ação, uma marca devoção pela pátria. Durante toda a luta insurrecional, os heróis da independência povoaram a mente dos rebeldes que acreditavam seguir seus exemplos de martírio e sacrifício pela pátria. Martí mesmo é resgatado a partir de sua noção de dever, de gosto pela ação, de sacrifício e de paixão pela causa revolucionária. Quando Fidel esteve preso na Ilha de Piños e leu as obras completas de Martí, as partes que sublinhou dos dois volumes desta obra, demarcam bem que tipo de interesse tinha no herói. Destacamos aqui alguns dos sublinhados de Fidel para mostrarmos como seu interesse passa mais pela ética de conduta de um nacionalista do que propriamente 60

por um programa com objetivos e meios racionalmente determinados. Um exemplo disto são as passagens que enfocam a noção de dever com a pátria

Eu só sirvo o dever, e com ele, serei sempre bastante poderoso. A pátria é sagrada, e os que a amam, sem interesse nem cansaço, devem-lhe toda a verdade. (MENCÍA, 1982, p. 240).

Outras passagens são aquelas que apresentam a necessidade de se colocar urgentemente em ação quando a pátria exige.

Esperar é uma maneira de vencer. Mas quando o país chama, é necessário responder. (idem, p. 239).

Em uma carta de 07 de Julho de 1955, Fidel afirmou:

All doors to a peacefull political struggle have been closed to me. Like Martí, I think the time has come to seize our rights instead of asking for them, to grab instead of beg for them. Cuban patience has its limits. (FRANQUI, 1980, p. 90).

O sacrifício pela causa expresso no pensamento de Martí também era objeto de profundo interesse por Fidel. Ser revolucionário era se dispor a sacrificar-se para não sacrificar o povo.

(...) fazer o que convém ao nosso povo, com o sacrifício das nossas pessoas, e não fazer o que convém às nossas pessoas com o sacrifício do nosso povo (...) A pátria necessita sacrifícios. É ara e não pedestal. Servimos à pátria, mas não a tomamos para sevir-nos dela. (MENCÍA, 1982, p. 241).

Uma passagem do diário do guerrilheiro Vecino Alegret nos parece significativa, por mostrar como os rebeldes sentiam ou ao menos queriam sentir-se como os mambises em luta contra o poder opressor.

Depois leio um pouco de história da América – e até chego a imaginar que estou lutando junto com os nossos libertadores. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 63).

As idéias de Martí era para os rebeldes dos 50 uma filosofia de vida, uma conduta ética a que se devia seguir e não necessariamente um programa ideológico. Haydée Santamaría ao falar de Abel Santamaría, afirmou:

We began to read Martí in depth. Abel was a devoted disciple of Martí. He found in Martí an answer to everything. All that was two or three years before Moncada. (FRANQUI, 1980, p. 27).

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Outra influência profunda dos jovens foi a experiência da Revolução de 30. Podemos dizer que vários foram os personagens desta geração que foram fontes de admiração entre os rebeldes dos 50. Mas, talvez nenhuma figura foi mais admirada do que Antonio Guiteras. Tony Guitéras , como também era chamado, nasceu no dia 22 de novembro de 1906 no estado da Pensilvânia nos Estados Unidos. Sua mãe era inglesa e seu pai, Calixto Guitéras, era cubano. Sua aproximação com os ideais nacionalistas e revolucionários cubanos começou na infância através do seu pai.

El padre, Calixto Guiteras, cubano culto y de espíritu liberal, supo trasmitirle al pequeño el amor por su patria y por José Martí, del cual fue ferviente admirador y partidario de su causa revolucionaria. Aquel niño crecería escuchando con fervor las historias de las gestas patrióticas de su tío, José Ramón Guiteras —quien muriera por la libertad de Cuba en la primera guerra de independencia.— y las proezas de su tío abuelo irlandés John Walsh, uno de los más importantes líderes de la independencia de Irlanda. Desde pequeño Guiteras se preguntaba si “algún día él podría ser como ellos”. (Rosales García, 2009).

Guitéras, quando estudava no Instituto de Pinar del Rio, “participó en las actividades que se realizaron para apoyar acciones revolucionarias del estudiantado durante los años 1923 y 1924.” (idem, ibidem). Em 1927, formou parte do Directorio Estudantil Universitário (DEU), assumindo a partir daí a primeira fila na luta contra a ditadura de Gerardo Machado. Durantes os anos 1929-1932, a atuação de Guitéras esteve voltada para “la obtención de armas para la insurrección que derrocaría a la tiranía de Gerardo Machado”. (idem, ibidem). Com a caída de Machado, Guitéras foi nomeado governador de Oriente, pelo governo emergido a partir do movimento militar de 04 de setembro de 1933. (idem, ibidem). Depois, foi nomeado ministro de Governo do “G overno dos 100 dias” que era presidido por Grau San Martín. Segundo Francisca López Civeira (2008), Guiteras foi responsável por “construir una nueva organización política del Estado y propiciar mejoras sociales en medio de la crisis económica que se sufría desde 1929”.

Segundo Carlos Franqui (1980), em apenas 4 meses, “Guiteras’s anti imperialism decrees, the nationalistic measures, the eight-hour work laws, the minimum wage, and other conquests had permeated and shaken the country’s conscience.” (FRANQUI, 1980, p. 31). 62

Entretanto, no dia 15 de Janeiro de 1934, Batista organizou um golpe militar e destituiu o governo revolucionário. Grau San Martín fundou o Partido Revolucionário Cubano (Auténtico) e se exilou em . Guitéras fundou o grupo revolucionário Jovem Cuba e foi assassinado quando tentava reorganizar a luta insurrecional em 08 de maio de 1935 em Morrillo. (idem, ibidem). O anti-imperialismo de Guiteras talvez tenha sido uma das maiores influências que deixou para a juventude do centenário. Uma carta do combatente Carlos Franqui ao líder do Movimento 26 de Julho em Janeiro de 1957 remonta ao caráter anti-imperialista que a juventude do movimento apresentava em acordo com as idéias de Guiteras.

(...) its young people and its militants are genuinaly anti-imperialist and, under present conditions, as Guiteras said: “There can be no revolution in Cuba unless it strikes at Yankee imperialism.”. (FRANQUI, 1980, p. 135).

Mas, assim como os heróis da independência, o seu estilo lutador e sua morte nas mãos de Batista seria para a juventude um exemplo de heroísmo e apego aos princípios e deveres com a nação. O golpe de Batista em 1952 trouxe a velha imagem do assassino de um herói. Como disse Haydée Santamaría.

Batista was Guitéras assassin. Guiteras had been our leader. We felt we were guiterists, althought afterward Guiterism was converted into something very different from Guiteras. (idem, p. 28).

Franqui se lembra que em uma das primeiras manifestações públicas contra o golpe de Batista, em um programa de rádio na CMQ, o jovem Martínez perguntou ao debatedor convidado, Raúl Roa: “Doctor Roa, isn’t this man who carried out the coup the same Batista who assassinated Guiteras in 1935?” (idem, p. 44). Em uma carta a Celia Sanchez datada de 31 de Julho de 1957, Fidel, ao tratar do assassinato de Frank País, retomava esta noção de Guiteras como mártir assassinado por Batista e elevava os rebeldes assassinados na nova luta insurrecional como novos guiteras.

There are many Guiterases, Abel Santamarías, Frank Países murdered. All Batista’s collaborators, big and small, are guilty of treachery, high treason to humanity; they are accomplices to what is happening, they are stained with the past and present blood that this evil, gutless creature has cost our fatherland. (idem, p. 215). 63

Armando Hart, em agosto de 1957, escreveu um artigo publicado no jornal clandestino Revolución .

!Es necesario que Cuba entera sepa lo que ha perdido! El 30 de julio de 1957 fue asesinado en Santiago de Cuba un cubano de la estirpe de Mella, Martínez Villena o Antonio Guiteras. No era más pequeño, pero como ellos, no pudo ser mayor. (HART DÁVALOS, 2007, p. 202).

As ações dos rebeldes eram constantemente associadas a ações históricas de Antonio Guiteras. A Coluna n.o. 09, comandada por Huber Matos, foi nomeada de Coluna Antonio Guiteras. (FRANQUI, 1980, p. 402). Em uma nota no Zero hora , a ação de Frank País aparece associada à ação insurrecional do líder revolucionário dos anos 20 e 30.

(...) in Santiago, Frank País, with a group of young people, attacked some small barracks, as Guiteras had done in the fight against Machado.” (idem, p. 508).

Os partidos políticos que nasceram após a revolução de 30 também marcaram a juventude centenária. A maior parte dos grupos insurrecionais dos 50 tinha a sua base social inicial ou no Partido Popular Cubano (Ortodoxo) ou no Partido Revolucionário Cubano (Auténtico). Muitos dos membros do Movimento 26 de Julho e do MNR – Movimento Nacional Revolucionário faziam parte da juventude ortodoxa. Armando Hart Dávalos (2007, p. 96), que militou nos dois grupos, falou sobre esta vinculação dos revolucionários com o partido ortodoxo:

La dirección del movimiento, constituida en 1955, y los cuadros más importantes agrupados a su alrededor en el trabajo clandestino, provenían esencialmente de dos vertientes de la ortodoxia: los que habían participado en el Moncada, bajo el liderazgo de Fidel o que habían estado bajo su influencia política en el seno del Partido del Pueblo Cubano, y los que procedíamos del MNR, que por entonces estaba prácticamente disuelto y cuya bandera principal había sido Rafael García Bárcena. Estas corrientes políticas tenían sus orígen en el amplio movimiento de masas que había generado en el país Eduardo Chibás. Todos los compañeros de la dirección constituida entonces en Cuba permanecieron fieles a la revolución.

Até 1955, o Movimento 26 de Julho se considerava uma corrente do partido ortodoxo, participando de suas instâncias. Armando Hart (idem, p. 104) se lembra que, em uma assembléia geral do partido, ele, Faustino Pérez, Pedro Miret e Ñico 64

López haviam recebido de Fidel a função de “plantear que la ortodoxia aprobara formalmente la línea insurreccional.”. A tese insurrecional apresentada pelo Movimento 26 de Julho foi aprovada na assembléia, mesmo contra a vontade dos políticos tradicionais. Segundo Armando Hart (idem, ibidem):

Los politicastros moralmente eran muy flojos y resultaban los únicos enemigos reales allí. Obraban con demagogia y fueron sorprendidos en una posición que no prevenían, ya que decían apoyar la línea insurrecional, y cómo ésta fue planteada de manera oficial, no les quedó otra posibilidad que aceptarla formalmente.

Até este ano, o movimento 26 de Julho era considerado “el instrumento revolucionario de la ortodoxia.” Longe de contrapor às idéias da ortodoxia, o Movimento era responsável por “transformar y desarrollar las ideas más puras de la ortodoxia.” (idem, p. 105). Entretanto, neste mesmo ano, o movimento rompeu com o Partido Ortodoxo, sem abandonar a ideologia do partido. Como disse Hart (idem, ibidem), “nunca abandonamos sus ideales.”. O rompimento se dava devido à falta de apoio dos dirigentes ortodoxos à linha insurrecional e não a uma diferença de concepção ideológica. O MNR também foi formado a partir de lideranças do Partido Ortodoxo, como Rafael García Bárcena que era membro do Conselho Executivo do partido. (LLERENA, 1978, p. 48). O seu programa não supera os princípios e concepções da ortodoxia. Pelo contrário, o MNR se afasta dos partidos tradicionais pela posição insurrecional, o que era encarado como uma postura de sinceridade em relação à causa nacional. É por isso que no Manifesto do MNR, se afirma no artigo 18, que o movimento se diferencia das outras organizações políticas por “su sincera proyección nacionalista.” (MENCÍA, 1086, p. 614). Não é possível compreender o Partido Ortodoxo, sem pensar na figura de Eduardo Chibás, fundador e líder do partido de 1947 até a sua trágica morte em 1951. Chibás foi um grande líder carismático e se tornou imbatível durante o governo de Prío Socarrás. A influência popular de Chibás pode ser vista profundamente nas memórias de Reinaldo Arenas (1994). Ao lembrar da paixão que seu avô, um simples camponês que morava em um rancho de uma província afastada, possuía pelo grande líder ortodoxo, afirma: 65

Meu avô tinha aspirações políticas (pelo menos pretendia participar da política), embora os políticos não lhe dessem muita atenção. Ele pertencia ao Partido Ortodoxo, o qual, naquela época, era dirigido por Eduardo Chibás. Certa vez, por volta do Natal, alguém quis tirar uma fotografia de toda a família; meu avô pegou um enorme cartaz com a figura de Chibás; aquele cartaz era tão grande que foi a única coisa que saiu na foto. (idem, p. 52).

Chibás era membro do Partido Autêntico e rompeu com ele por achar que o governo de Grau San Martín havia traído os princípios revolucionários dos anos 20 e 30. Sua ênfase tanto contra Grau quanto contra Prío era a crítica à corrupção. O avô de Reinaldo Arenas partilhava profundamente da mesma concepção de Chibás.

Para meu avô, todos os governantes anteriores a Batista eram safados; por esse motivo, sentia um grande respeito por Chibás, que denunciava a corrupção e tinha como lema: “Vergonha Contra o Dinheiro”. (idem, p. 53).

Uma passagem da memória de Reinaldo Arenas que nos parece significativa versa sobre a morte de Chibás e como ela se colocava para sua família como mais forte que a morte de sua própria bisavó, que morrera no mesmo dia do grande líder carismático.

No mesmo dia em que morreu Chibás, morreu minha bisavó subitamente. Atingida por um raio. Naquela região onde morávamos, os raios eram muito freqüentes. Diziam que era porque a terra continha uma enorme quantidade de níquel. No velório todo mundo chorava a cântaros. Aproximei-me de minha mãe, que chorava agachada na cozinha perto do fogão, e ela me disse: “Não estou chorando por causa da morte da minha avó, e sim por causa da morte de Chibás.” Acho que o resto da família chorava pela mesma razão. (idem, ibidem).

O que morria não era um simples político, mas um irmão próximo e honesto que havia penetrado em todas as casas de Cuba pelo rádio e traçado uma verdadeira cruzada contra os corruptos e aproveitadores do mal. Ao partido ortodoxo correspondia uma posição democrática, nacionalista e anti-imperialista. Posição esta que, ao que nos parece, os rebeldes dos 50 partilharam profundamente. Mas, sem dúvida alguma, o que fazia do Partido Ortodoxo um partido popular era o seu profundo sentimentalismo firmado em uma posição ética da política. Armando Hart definiu bem o significado deste partido na história cubana.

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Más allá del análisis histórico que pueda hacerse del Partido del Pueblo Cubano (ortodoxos), se su heterogénea composición y muy especialmente de la valoración que hagamos de su juventud, lo cierto es que el programa de Chibás estaba orientado hacia el nervio central de la historia espiritual de Cuba: la cuestión ética. (HART DÁVALOS, 2007, p. 50).

A ortodoxia era assim “un movimiento político de repercusión social a partir de un programa ético.” (HART DÁVALOS, p. 50). A juventude revolucionária dos 50 parece ter se inspirado bastante nesta concepção ética de mundo. Juan Almeida Bosque afirmou em suas andanças por Havana após a anistia em 1955:

Detrás desta fonte, na Rua Monte, ficava a emissora de rádio CMQ, onde lançou seu programa radiofônico dos domingos o líder do Partido Ortodoxo, Eduardo R. Chibás, um incasável lutador pela honradez administrativa, contra a pilhagem e o roubo do tesouro público, pela justiça em relação ao camponês e ao operário explorado, o precursor de uma campanha pela moralização nacional, com sua palavra de ordem “Vegonha contra dinheiro.” (BOSQUE, 1989a, p. 47).

É impressionante como a verborragéia de Chibás possuía não só a mesma marca ética dos discursos dos revolucionários dos anos 50, mas, sobretudo o mesmo estilo. Em uma carta para Prío Socarrás publicada na revista Bohemia em 8 de mayo de 1949, por exemplo, Chibás faz um verdadeiro discurso ético revolucionário separando de um lado a vida fácil ligada à corrupção dos valores e do outro o sacrifício revolucionário. Acusava Prío de ter caminhado para o enriquecimento fácil, servindo aos interesses do dólar, enquanto ele mesmo permanecia fiel ao sacrifício revolucionário da fortuna pessoal em prol da pátria.

Mientras tú marchas por el camino del enriquecimiento inmediato y fácil, cambiando verguenza por dinero, sirviendo a la “política del dollar”, sacrificando los intereses de Cuba a los intereses de Wall Street y de tu camarilla, yo me mantengo leal a mis convicciones revolucionarias de toda la vida y sacrifico mi fortuna personal en aras de mis principios y de mi patria. (CHIBÁS, 2009).

Chibás se sentia herdeiro de Martí e herdeiro da tradição revolucionária de 30. Em seu discurso encontramos todo um sentimento comum entre os idealistas cubanos dos 50 firmados em uma afirmação dos valores revolucionários contra a podridão do mundo traído. Em um artigo de primeiro de abril de 1951, afirmou:

Amenazada de volver a la muerte civil que padeciera bajo la Colonia, bajo Machado y bajo Batista, y de la cual ha resucitado una y otra vez, la República, hija del ideal de Martí, necesita una nueva prédica, 67

una nueva reafirmación del ideal martiano, un nuevo movimiento de recuperación nacional, de resurrección cívica y moral que la libre del peculado, del latrocinio organizado desde las esferas palatinas, del escarnio de todo lo que prometió e hizo bueno la Revolución. Ese movimiento es la Ortodoxia, única esperanza que tienen al presente los cubanos. (idem, 2009a).

Ser revolucionário para Chibás era, assim, resgatar o ideal da revolução frente o peculado , o latrocíneo organizado . Aparece aqui a chama da contradição entre os valores nobres da pátria professados desde Martí e a corrupção reinante, o gangsterismo apadrinhado pelo Estado, a vida luxuosa às custas do trabalhador. Chibás utiliza também de comparações com a bíblia para dar sentido ao seu pensamento revolucionário. Levar a cabo a revolução é fazer a ressurreição moral, eliminando os fariseus, os judas , que traem Cuba e a república.

La República de Cuba, parteada por la Revolución independentista después de afrontar y vencer grandes dificultades, padece la más grande de todas las crisis. Los mercaderes del templo nacional, los fariseos y los judas niegan hoy a Cuba desde las alturas del Poder, como sus colegas hace veinte siglos negaron a Cristo en las alturas del Calvario. Y serán capaces de matar la República, como aquellos ejecutaron al Redentor, si el pueblo no despierta a tiempo, en una nueva resurrección del civismo nacional, para barrerlos del Gobierno en la próxima oportunidad electoral. (ibidem).

A revolução em Chibás é vista assim como uma verdadeira cruzada contra os corruptos e traidores da pátria e da República. Mais do que um programa político ideológico ela vem para renovar moralmente o mundo cubano e a grande América. Todo este sentimento religioso reaparece na ética revolucionária dos grupos insurrecionais. Sem dúvida alguma, além desta tradição nacionalista cubana, o marxismo- leninista também deixou marcas em alguns dos rebeldes. Sua influência precisa, entretanto, ser bem demarcada, pois ela apresenta limites precisos. Analisando as cartas, memórias e diários dos revolucionários, fica muito claro que não foram poucos os rebeldes que tiveram leituras de caráter marxista. Franqui (1981, p. 154) relembra, por exemplo, que no julgamento do grupo de Moncada, um dos livros de Lênin apareceu entre as evidências. Durante a prisão da Ilha de Pinos, entre os anos de 1953 a 1955, Fidel deixou muitas cartas a Nati Revueltas em que comentava os livros que estava lendo. Em uma carta de 27 de Janeiro de 1954, Fidel se mostra fascinado pela análise materialista histórica: 68

Você me pergunta se Rolando teria sido igualmente grande se tivesse nascido no século XVII. O pensamento humano é indubitavelmente condicionado pelas circunstâncias de uma época. Pensando em um gênio político agora, eu ousaria afirmar que ele depende exclusivamente da sua época. Lênin na época de Catarina a Grande, quando a aristocracia era a classe dominante, teria sido um corajoso defensor da burguesia, que era a classe revolucionária da época, ou teria sido sufocado pela história; Martí, se tivesse vivido quando os ingleses tomaram Havana, teria lutado ao lado de seu pai em defesa da bandeira espanhola; Napoleão, Mirabeau, Danton e Robespierre – o que temos sido no tempo de Carlos Magno senão humildes servos ou desconhecidos moradores de algum castelo feudal? Júlio César nunca teria atravessado o Rubicão nos primeiros anos da República, antes que a luta de classes que sacudiu Roma tivesse se intensificado e o grande partido plebeu tivesse se desenvolvido e tornado necessária e possível a ascensão de César ao poder. Júlio César foi um verdadeiro revolucionário, assim como Catulo, enquanto Cícero, tão grandemente reverenciado pela história, encarnava a genuína aristocracia romana. Isso não evitou que os revolucionários franceses anatematizassem César e idolatrassem Bruto, o homem que enfiou o punhal da aristocracia no peito de César. Isto mostra apenas que a república em Roma era o equivalente da monarquia na França. (...) Até mesmo as maiores idéias estão condicionadas pelo momento histórico em que surgem. A filosofia de Aristóteles é o auge da obra dos filósofos que o precederam (Parmênides, Sócrates, Platão) e ela teria sido impossível sem esses precursores. Da mesma forma, as doutrinas de Marx são o auge, na área social, dos esforços dos socialistas utópicos e sintetizam, na filosofia, o idealismo e o materialismo alemães. Marx, naturalmente, era mais do que um filósofo: era um gênio político, e seu papel como tal dependeu inteiramente da época, do cenário no qual ele viveu... (idem, p. 230).

Em outra carta, de março de 1954, Fidel compara dois livros que leu na prisão: Os Miseráveis de Victor Hugo e O 18 de Brumário de Luís Bonaparte de Karl Marx. Fidel vê em Marx o conceito científico e realista da história . Afirma:

Se comparar os dois livros, pode realmente ver a grande diferença entre um conceito científico e realista da história e uma interpretação puramente romântica. Onde Hugo não vê nada senão um aventureiro sortudo, Marx vê os resultados inevitáveis das contradições sociais e do conflito de interesses que prevaleciam na época. Para o primeiro, história é acaso, enquanto que para o segundo é um processo controlado por leis. (idem, p. 231).

Na prisão Fidel leu O Estado e a Revolução de Lênin, O 18 brumário de Luís Bonaparte e As guerras civis na França de Karl Marx, como afirma em carta de 04 de abril de 1954.

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Os três livros têm muita coisa em comum e são de um valor inestimável (...). Ele (Marx), como Lênin, tinha um fantástico apetite para a polêmica, e realmente me divirto e rio enquanto os leio. Eles eram implacáveis e terríveis para com seus inimigos. Dois verdadeiros protótipos revolucionários. (idem, ibidem).

Entretanto, além do marxismo várias outras leituras são feitas por Fidel. Obras variadas, que vão de poemas, romances a obras políticas de diferentes tendências. Nas obras literárias Fidel teve contato na prisão com obras de Balzac, Oscar Wilde, Tolstoi, Shakespeare, Homero, Curzio Malaparte, Victor Hugo, Hemingway . O tema histórico esteve presente fortemente em suas leituras de prisão como Miguel Servet e o seu tempo , Morelos , Como se perdeu América , Vida da unidada , A campanha autonomista , História da nação cubana de Ramiro Guerra. (MENCÍA, 1982, passim). Dos temas teóricos, sabe-se que Fidel além de Marx, leu Kant e Freud na prisão. (idem, ibidem). E dos temas políticas a variedade se fazia ainda mais presente. Além dos marxistas, Fidel leu as Obras Completas de Martí, diferentes livros sobre Simon Bolívar, como Banaparte e Bolívar , Bolívar e as Antilhas de língua espanhola , e Bolívar, cavaleiro da glória . (idem, ibidem, p. 27). Fidel também interessava-se por compreender o programa e a realização do New Deal de Roosevelt. Como afirmou em uma carta de 15 de abril de 1954:

Roosevelt. Eu quero fundamentalmente documentar-me sobre ele: a sua política sobre a elevação de preços dos produtos da Terra, o fomento e o mantimento da fertilidade do solo, facilidades de crédito, remissão de dívidas, ampliação de mercados internos e externos no campo agrícola; aumento das fontes de trabalho, redução da jornada, subida dos ordenados, a ajuda social dos desempregados, às pessoas idosas, e aos inválidos, no campo social; reorganização da indústria, novos sistemas de impostos, regulamentação dos “trusts”, a reforma bancária e monetária no campo da economia em geral. (MENCÍA, 1982, p. 26).

Mas, Fidel também estudou o fascismo. Em uma carta de 05 de abril de 1954 afirmou: “Tenho material abundante para o estudo dos grandes movimentos políticos contemporâneos: socialismo, fascismo.” (MENCÍA, 1982, p. 25). Segundo Heberto Padilla, que conheceu Fidel antes mesmo do golpe de Batista, Hitler e Mussolini se encontravam entre os autores favoritos de Castro.

Fidel contaba entre sus libros más preciados los doce tomos de Discursos y escritos de Mussolini (…) y sabe que el Mein Kampf de 70

Hitler también se encontraba entre sus lecturas predilectas de entonces. (PADILLA, 1989, p. 15).

Mas, uma das revelações mais interesantes de Padilla se encontra em sua afirmação de que a famosa frase Condename..., La Historia me absolverá, utilizada por Fidel em sua defesa no juízo do ataque ao quartel de Moncada, havia sido utilizada primeiro por Hitler em um tribunal de Munich. (idem, 1989, p. 15). Como podemos ver, a leitura de Fidel, assim como a de diversos outros revolucionários, apresentavam matizes variadas que passavam também pelo marxismo, mas não se resumiam a ele. Segundo Carlos Franqui (1981), durante todo o período insurrecional, os discursos de Fidel apresentam uma certa coerência e homogeneidade, firmada em uma posição nacionalista e democrática que não revelavam nem de longe algum comunismo clandestino . Assim, ainda que imaginemos que Fidel fosse comunista já durante este período, era um comunista bastante distinto dos comunistas profissionais. Podemos ver isto na identificação que viu na prisão entre o romantismo e idealismo de Victor Hugo e os seus próprios discursos. “O estilo de Hugo lembra nossos próprios discursos político; (ele é) repleto de fé poética na liberdade, justa indignação contra as ofensas que sofre e confiante esperança em seu retorno miraculoso.” (idem, p. 231).

Enrique Oltuski também havia entrado em contato com a teoria marxista durante a luta revolucionária através de um best-seller chamado The History of Philosophy . Neste livro, o autor, cujo nome Oltuski não cita, selecionou 12 pensamentos filosóficos, dentre os quais Karl Marx. O revolucionário afirma como se identificou com o pensamento do alemão.

I read the book. Marx was one of the philosophers. Ricardo, my friend from primary school, now a militant Communist, sometimes spoke about Marx, but I found him incomprehensible. Now I understood the essence of Marxism, which impressed me with its logic, although I wouldn’t have counted on its success. I bought a condensed version of Das Kapital . I made my way trough it on my own, as through a stormy sea, never finding a clear course. I will have to apply myself, I thought. Then Mary Ann guided me to the next book: Three Who Made a Revolution , by Bertram D. Wolfe. It was the history of the Russian revolution through the biographies of Lenin, Trotski, and Stalin – the best thing I had read in long time! It recounted the most incredible 71

history from a human viewpoint so that the epic adventure seemed normal and natural. I was no longer the same person; I had been transformed. I had previously appreciated Marxist ideas, but they seemed utopian, not a practical approach, as they seemed to require a fundamental change in the nature of man. But when I read this book about how it had actually been done, when I began to appreciate the human stories of Trotsky (with whom I particularly sympathized from the very beginning) and Lenin, I felt that these were recongnizable people, that this had really happened, and that, yes, revolution was possible, it was realistic, and we could do it in Cuba. (OLTUSKI, 2002, p. 34).

É possível saber que as memórias de Enrique Oltuski, escritas já depois de se tornar um grande personagem do Estado comunista cubano, visem simplesmente legitimar o marxismo durante a luta insurrecional não apresentado veracidade. Entretanto, ainda que confiemos em seu depoimento podemos ver claramente a fragilidade da formação marxista que possuía durante o período da luta. Suas primeiras leituras sobre marxismo foram feitas durante o processo de luta, tendo pouco tempo para serem amadurecidas. A partir do momento que passou a ter uma vida dupla não mais teve tempo para as leituras. (idem). Além do mais, os livros que cita como os que o levaram ao marxismo, com exceção do Capital, são livros de comentaristas e possivelmente não possibilitavam um acesso profundo à teoria marxista. Durante toda a luta revolucionária, junto às influências marxistas, o pensamento nacionalista e liberal de Bolívar e Martí continuavam povoando a sua concepção de mundo. Alguns meses antes de ler Marx, Oltuski havia fundado nos EUA, onde cursava a faculdade de Engenharia, uma fraternidade que unificava os estudantes latino-americanos em torno do pensamento bolivariano.

Our hero was the great South American revolutionary Simón Bolívar, and our objective was to unite all the Latin peoples of the continent into a great nation or federation of states. The organization had certain conspiratorial aspects. Some members came from the highest ranks of the Latin American bourgeoise. Others, lik me, came from background that had been originally quite humble but had gradually achieved the wealth, status, and education that led us to cross the line in social standing and qualify for a North American university. (idem, 2002, p. 9).

Mesmo depois de suas leituras marxistas, ao fazer uma viagem pela América Latina como membro clandestino do MNR- Movimento Nacional Revolucionário, Oltuski afirmou: “We revolutionary young people always had in mind that we were part of a larger nation, as Bolívar and Martí had said.” (idem, p. 37). 72

Este tipo de postura era bastante comum entre os rebeldes cubanos dos anos 50. Por mais que alguns deles, e somente alguns deles, tenham se interessado por escritos marxistas, poucos foram os que se tornaram marxistas declarados. A maior parte, como Oltuski e Fidel, apresentavam um conjunto imenso de influências ideológicas variadas e contraditórias que incorporavam sem realmente romper com o idealismo revolucionário tipicamente liberal e nacionalista herdados da tradição revolucionária cubana. Mesmo os assumidamente marxistas, não o assumiram da mesma forma que um militante comunista profissional de partido. As influências marxistas se mesclavam com toda a corrente liberal e nacionalista cubana e latino-americana que influenciava profundamente a juventude revolucionária cubana naquele período. Fortalecia-se assim uma concepção idealista de marxismo que pode ser visto, por exemplo, em Che Guevara e em Carlos Franqui. Somente este idealismo romântico poderia colocar marxistas na luta dos grupos insurrecionais marcados por uma prática política que seria, para os comunistas profissionais, romântica e aventureira. (KAROL, 1972). Dentre os poucos marxistas declarados dentro dos grupos insurrecionais cubanos se destacavam Raúl Castro e Che Guevara. Entretanto, nenhum dos dois possuía uma formação marxista clássica. Raúl, embora tivesse participado da juventude comunista do PSP, demonstrou estar mais disposto a seguir o seu irmão na luta insurrecional do que a própria política do partido. Ernesto Guevara, quando cursava a faculdade de medicina, teve contato com alguns militantes da Federación Juvenil Comunista da Argentina. Segundo o biógrafo Jon Lee Anderson, Ricardo Campos, militante da juventude comunista “chegara a convencer Ernesto a comparecer a uma reunião da Fede , porém, chocando os demais participantes, Ernesto retirou-se de forma ostensiva enquanto a reunião ainda estava em andamento.” (ANDERSON, 1997, p. 69). A diferença entre Ernesto Guevara e os comunistas argentinos versavam, sobretudo, na questão do ponto de vista ético. Ricardo Campos em entrevista a Jon Lee Anderson (idem, p. 97) afirmou sobre o Ernesto universitário: “Ele tinha idéias muito claras sobre certas coisas. Sobretudo de uma perspectiva ética. Mais do que um ser político, eu o via naquela época como alguém com uma postura ética”.

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Outro militante comunista, Carlos Infante, afirmou que Ernesto era um liberal progressista que se interessavam fundamentalmente pela medicina e pela literatura . “Discutiam as obras do escritor marxista Aníbal Ponce, porém, quando chegavam ao Partido Comunista Argentino , Ernesto criticava muito seu sectarismo e se mostrava cético quanto ao seu papel na política argentina.”. (idem, p. 69). As leituras de Guevara na universidade eram bastante amplas e diversificadas. Lia sobre sexualidade e comportamento social em obras de Freud e Bertrand Russel e fiolosofia social em textos que iam “desde os antigos gregos até Aldous Huxley”. (idem, p. 67). Os textos políticos de Guevara passavam pelos escritos de Mussolini, Stálin, Lênin. Para Anderson, o peronismo vivido por Guevara na Argentina contribuiu fundamentalmente para a definição de sua formação política.

Observando Perón, ele podia ver um mestre da política em ação (...). A lição era clara: o que era preciso para avançar politicamente num país como a Argentina era uma liderança forte e uma disposição de usar a força para atingir os objetivos buscados. (idem, p. 70).

Ao mesmo tempo, Guevara foi profundamente influenciado pelo livro de Nehru A Descoberta da Índia , livro que leu com grande interesse, “sublinhando e rabiscando comentários” e falando com seus amigos sobre a obra com profunda admiração. (idem, ibidem). Para Anderson, a influência de figuras tão distintas como Nehru e Perón ajudou Guevara a “compor seus futuros chamamentos para que o ‘Terceiro Mundo’ se libertasse do ‘imperialismo capitalista’, empreendesse uma rápida industrialização e tivesse líderes fortes e carismáticos que supervisionassem o processo revolucionário de mudanças.” (idem, p. 71). Ernesto Guevara na Universidade estava bastante longe dos comunistas profissionais argentinos. Suas posições agressivas eram atribuídas por seus amigos “à sua formação ‘boêmia’ e à sua personalidade iconoclasta, que combinavam com sua maneira de vestir e sua tendência cigana de viajar.” (idem, p. 70). Era, provavelmente, um tipo de jovem excêntrico no gosto pela leitura e no modo de se vestir. Uma conhecida de Guevara recordou o desleixo do jovem para se vestir e o modo como isto chocava a juventude que o conhecia.

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É preciso conhecer a mentalidade da oligarquia provinciana para entender o efeito notável que produzia a aparência de Ernesto. No começo dos anos 50, todos os rapazes que conhecíamos, tremendamente preocupados com roupas, dedicavam muito esforço e dinheiro para obter peças da última moda: botas de caubói, blue jeans , camisas italianas, suéteres ingleses e assim por diante. A peça de roupa predileta de Ernesto naquela época era uma camisa de náilon, que tinha sido branca mas que estava cinza de tanto uso, que vestia o tempo todo e chamava de La Semanera , afirmando que a lavava apenas uma vez por semana. Suas calças eram largas e balofas e me lembro de que, uma vez, estavam presas na cintura com uma cordinha de pendurar roupa. Com essa aparência, quando Ernesto chegava numa festa, todas as conversas se interrompiam, embora todos procurassem dar a impressão de não estar ligando para isso. Ernesto, se divertindo enormemente e sabendo perfeitamente a sensação que estava causando, ficava inteiramente dono da situação. (idem, p. 75).

Guevara se aproximou mais do marxismo durante as suas viagens pela América Latina. Quando esteve no Perú conheceu um leprólogo chamado Dr. Hugo Pesce. O médico hospedou Ernesto e seu companheiro de viagem, Alberto Granado, no Hospital Guia e os convidava frequentemente para jantar. “Depois do jantar conversavam durante horas a fio sobre tudo, desde lepra e fisiologia até política e filosofia.” (idem, p. 107). Uma profunda afinidade especial se desenvolveu entre Ernesto e o Dr. Pesce. (idem, ibidem). O médico peruano era um comunista seguidor do filósofo marxista peruano José Carlos Mariátegui. Alguns anos depois, Che enviou um exemplar do seu livro La Guerra de Guerrillas ao médico peruano com a seguinte dedicatória:

Ao Doutor Hugo Pesce, que, talvez sem o saber, provocou uma profunda mudança na minha atitude em relação à vida e à sociedade, com o mesmo espírito aventureiro de sempre, porém canalizado na direção de objetivos mais condizentes com as necessidades da América. (GUEVARA, 1980, p. 108).

É possível que o pensamento de Carlos Mariátegui, cujo marxismo era bastante distinto do marxismo ortodoxo, tenha indiretamente influenciado o pensamento de Ernesto Guevara. Para Mariátegui, como percebeu Flávio Vieira Peixoto ( 2008, p. 151):

(...) o marxismo não era uma ‘teoria’, muito menos um jogo de conceitos, mas uma atitude, um estilo de vida, uma maneira de encarar o mundo; o marxismo representava a revolução, e o homem passa a se doar a esta causa, tornando a revolução um sentimento, uma paixão. “La revolución más que una idea, es un sentimiento. Mas que un concepto es una pasión…”. 75

Esta percepção do marxismo como estilo de vida e esta noção de revolução como um sentimento se apresenta bastante próximo do idealismo radical dos rebeldes cubanos. Segundo Michael Lowy (2009), Mariátegui supera a visão evolucionista, historicista, racionalista do marxismo ortodoxo por uma visão romântico-revolucionária firmado no retorno a um espírito de aventuro e ao donquixotismo heróico.

A visão de mundo romântico-revolucionária de Mariátegui, tal qual a formula em seu célebre ensaio Dos concepciones de la vida , de 1925, opõe ao que ele denomina "a filosofia evolucionista, historicista, racionalista", com seu "culto supersticioso do progresso", a aspiração a um retorno ao espírito de aventura, aos mitos heróicos, ao romantismo e ao donquixotismo (termo que ele recupera de Miguel de Unamuno). (LOWY, 2009).

Encontra-se no pensamento de Mariátegui também uma profunda relação entre as motivações revolucionárias e as motivações religosas. Segundo Lowy (2009), para Mariátegui,

A força dos revolucionários não reside em sua ciência e sim em sua fé, sua paixão, sua vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção revolucionária (...) é uma emoção religiosa. As motivações religiosas se deslocaram do céu para a terra. Elas não são divinas, mas humanas e sociais. (LOWY, 2009).

É possível perceber neste idealismo de Mariátegui muito da noção fervorosa e puritana de Che em relação à luta revolucionária. Um dos principais biógrafos de Che, Jorge Castañeda (2003, p. 107), afirmou que

Em 1955, o Che era um leitor esporádico dos textos marxistas, um homem interessado pelos acontecimentos mundiais que trazia consigo a bagagem cultural humanista já descrita. Veio de uma família de leitores, tinha recebido uma excelente educação pré- universitária e um curso superior adequado, e era imensamente curioso por tudo o que o rodeava. Porém, ele mesmo confessou um ano depois: “Antes eu me dedicava precariamente à medicina e passava o tempo livre estudando São Karl (Marx) de uma maneira informal. Esta nova etapa de minha vida exige uma mudança nas prioridades: agora São Karl vem em primeiro lugar, é o eixo.”.

Para Castañeda (idem), Che estava bastante longe de ser um teórico do marxismo. Era um apaixonado pelas idéias marxistas, mas ainda longe de compreendê-las profundamente.

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Em última instância, Ernesto Guevara era um brilhante e bem intencionado “companheiro de viagem” do movimento comunista internacional, como o foram milhões de jovens do mundo todo naqueles anos heróicos do Chamamento de Estocolmo, do Movimento pela Paz, de Louis Aragon e Joliot-Curie, de Pablo Neruda e Jorge Amado, Palmiro Togliatti e Maurice Thorez, Mao e Ho Chi Minh, e da vitória de Dien Bien Phu. O XX Congresso do PCUS e a denúncia do stalinismo ainda não haviam se consumado; tampouco a invasão da Hungria de 1956. Nada mais natural para um jovem altamente politizado e sensível, do que acreditar na infinita maldade do imperialismo, nas incontáveis virtudes da pátria do socialismo (A cortisona, como o Che a designou, em homenagem à cortina de ferro) e ver nos militantes comunistas os arautos da revolução mundial. O Che levaria mais cinco anos para alcançar essa distinção autodidata. (idem, p. 109).

Analisemos a avaliação que Castañeda (idem, p. 122) faz de Che ao decidir- se participar da expedição cubana organizada no México por Fidel.

O caráter revolucionário da iniciativa residiria, portanto, nos meios empregados ou na esperança (suscitada pela personalidade de Castro e pela confiança que Che depositava nele) de que, depois de conquistar o poder, o movimento se orientaria por uma vertente mais radical. Tudo sugere que Guevara estava lutando por um ideal próprio e para estar com Fidel, e não tanto pelo programa do Movimento, ou pela possível transformação da sociedade cubana. Não seria a primeira vez que Ernesto Guevara enfatizaria a primazia do método da luta sobre seu conteúdo. No México, sua decisão tinha pouco a ver com qualquer conceituação abstrata; tratava-se mais de uma avaliação política e um certo estado emocional. Se o Che tivesse embarafustado por discussões infindáveis com os cubanos sobre a plataforma, provavelmente nem teria chegado a um acordo com eles, nem convencido a si mesmo da viabilidade do projeto e de sua grandeza inerente.

Esta afirmação de Castañeda nos parece firmar claramente que o programa dos revolucionários cubanos não era o que motivava Che, mas certo estado emocional . Podemos dizer que Che, assim como os rebeldes cubanos, tinha uma certa noção romântica heróica de entregar a vida por uma causa nobre. Como afirmou mais tarde sobre os vínculos que o ligavam a um outro estrangeiro vinculado ao grupo de Fidel, o comandante espanhol Alberto Bayo:

Mi impresión casi instantánea, al escuchar las primeras clases, fue la posibilidad de triunfo que veía muy dudosa al enrolarme con el comandante rebelde, al cual me ligaba, desde el principio, un lazo de romántica simpatía aventurera y la consideración de que valía la pena morir en una playa extranjera por un ideal tan puro. (idem, ibidem).

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Outro traço marcante dos revolucionários cubanos é que poucos tiveram uma experiência militante comunista profissional. Talvez um dos únicos rebeldes que teve esta experiência foi Carlos Franqui, que foi militante do PSP (Partido Socialista Popular) na juventude. Como todo cubano revolucionário, Franqui teve as suas primeiras orientações revolucionárias nos mártires, poetas e lutas da história da independência cubana, sob a influência da professora Melania e do seu próprio pai, que lhe contava histórias da independência. (FRANQUI, 1980, p. 30). Ainda jovem conheceu um marxista espanhol exilado que vivia em Cifuentes, que tinha uma enorme biblioteca. Ali, ele teve as suas primeiras leituras sobre marxismo, anarquismo e outras leituras de caráter social.

In Cifuentes, there lived a Spaniard exile, a Marxist, and a libertarian, who da a good library; there I read, for the first time, books about social problems, Marxism, anti-imperialism, and anarchism. (idem, ibidem).

Durante a ditadura de Batista, Franqui era, como ele mesmo se definiu, um revolucionário freewheling que distribuía panfletos clandestinos e já estava bastante disposto a qualquer luta revolucionária.

I was an apprentic freewhelling revolutionary: I distributed whatever clandestine propaganda fell into my hands; I searched for contacts; I went to demonstrations and protests. (idem, p. 31).

Com apenas 11 anos, Franqui foi preso pela primeira vez por carregar um pacote da revista Mediodía, revista de caráter marxista.

One day, I think it was in 1936, I was leaving the village and carrying a package of the Marxist magazine Mediodía (Midday) under my arm. On the main street, the only one leading to the higway, I passed the rural guard’s barracks and the post’s chief, Corporal Felipe – well known for the brutal way he used his machete – saw me going by with my package. He had heard my salvos over the loudspeaker, and he arrested me. It was my first imprisonment, and it turned out pretty well because I was a minor and because an old guard named Zacarías, who knew my father, interceded in my favor. They let me out, but my name was on file. (idem, ibidem).

Ao terminar o ginásio, Franqui leu diferentes autores marxistas.

I read everything I could get my hands on – poetry, novels, economics, history. An essay by the French socialist Paul Lafargue, 78

Marx’s son-in law, and above all The ABC of Communism, by Bukharin, opened my eyes. (idem, ibidem).

Franqui não conta em suas memórias exatamente quando entrou no PSP, mas fala do momento definitivo em que se torna um revolucionário dedicado integralmente ao projeto do partido comunista. Ele estava pronto para começar a universidade em 1942, quando foi convocado para ir até o Comitê Central do Partido, onde o esperavam Blas Roca, Ordoqui e Grovart, dirigentes nacionais do PSP, que afirmaram ao jovem comunista: “A militant like you should dedicate his life to the Party. Then you will lead a more revolutionary life than if you go to the university and get a degree.” (idem, p. 35). As reflexões de Franqui demonstram como este pedido da direção do partido era extremamente duro para um camponês que estudou e trabalhou muito para chegar até a universidade. “After all the effort I had made to go to the university and fulfill my deam, now that I had a foot in the door I was being asked to forget it.”. (idem, ibidem). Mas, Frank preso ao seu romantismo libertário não hesitou em aceitar a proposta. “But, there is nothing more beautiful than a chance to change the humanity (…). I did’nt hesitate for a moment. It was a dream come true.” (idem, ibidem). Frank foi enviado à região de Fomento, em Las Villas, que, segundo ele, era uma das mais rebeldes de Cuba. Lá encontrou diferentes militantes de base e um forte trabalho de mobilização e luta de trabalhadores.

In Fomento, I met excellent militants: Merelo, Martínez, Lemus… Strikes, organizing unions, worker’s elections, fund-raising campaigns, incessant coming and going from sugar mill to sugar mill, from cane field to cane field, conflicts, struggles against facism, against Azqueta, the sugar-mill king. And almost all these battles were wons. (idem, p. 36).

Depois, Franqui foi para Trinidad. Ali, também conheceu vários camponeses dispostos à luta. “In those unforgettable places violent conflicts took place. My feet became accustomed to the mainly profession, climbing mountains, as Martí said.” (idem, ibidem). Ao voltar para Havana dois anos depois, Franqui tinha já uma enorme experiência de luta social, e um forte sentimento classista e revolucionário. Sobre a sua experiência, afirmou:

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When I returned to Havana, I was twenty-two and had a wealth of experience as a struggling revolutionary. I had shared years with that marvelous family of the people: workers, peasants, militants. I had lived with their difficulties, rebellions, humanity, and hope. That was my world. Its spirit of justice and generosity had confirmed my conviction in an egalitarian and free Comunism. (idem, ibidem).

Em Havana, entretanto, Franqui conheceu o espírito militante profissional do partido comunista. Aqui está uma das principais passagens de sua memória no que diz respeito ao tema da ética revolucionária.

For the next two years I would not live with the militants. I was going to be with cadres and leaders. Their behaviors and tactics – their bourgeois ways – had erased their revolutionary past, prison days, sacrifies. They had discovered the easy life and their private and public actions had nothing to do with the anonymous militants of the interior, with revolutionary morale, and with the Marxist doctrine they preached. The pact with the Batista, subservience to the Soviets, participation in the government, had obliterated the Party’s revolutionary spirit. Founded in 1925 the best of the factories and the university, heil to the mambí and anti-imperialist tradition, an exponent of universal and humanic socialism, that Comunist Party had stood for the most radical aspirations of the Cuban people. (idem, ibidem).

Franqui neste trecho diferencia os militantes, aqueles comunistas que estão organizados nas bases junto aos trabalhadores partilhando do sofrimento e do sacrifício revolucionário; dos quadros e líderes, que estão vinculados ao modo de vida fácil e a comportamentos e táticas aburguesados. Podemos ver aqui que a diferença traçada por Franqui é, sobretudo, uma diferença de ética revolucionária. De um lado, a ética do sacrifício e do outro a ética da boa vida. Apesar da decepção, Franqui permaneceu por um tempo no partido. Em Havana fundou a revista Mella, revista da Juventude Comunista e em 1945 decidiu trabalhar em uma fábrica em Luyano, onde sofreu um acidente e perdeu o emprego. (idem, p. 38). Depois disto teve uma de suas principais experiências no interior da máquina burocrática do PSP quando foi trabalhar como um proofreader no jornal Hoy, dirigido por Aníbal Escalante.

There I discovered a repressive, bureaucratic laboratory germinating into de Communist-Soviet type, and it froze my blood. It was a cemetery for the revolution and revolutionaries. Escalante was a despot. He imposed his political or personal caprices in an inexorable manner. (idem, ibidem).

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Segundo Franqui (1981), Escalante havia armado um esquema de corrupção com os políticos.

Escalante, who paid the editors starvation wages, allowed the reporters to take bribes from the ministers – as long as they gave 50 percent of their loot to the paper. Obviously, a minister who paid would not be denounced. (idem, ibidem).

Além deste esquema de corrupção, Franqui se chocou com a diferença entre os ganhos altos da família do diretor jornal e os salários de fome dos empregados do Partido.

Escalante’s family – father, brothers, wife, etc. – received more than a thousand pesos a month from the Party, while the family of an editor or Party employee would have to live on sixty pesos (…) One had only to praise Escalante lavishly to obtain money, loans, a promotion, or whatever one asked; but let anyone who criticized him be ware, because would bi fired. It was the atmosphere of a police state with Jesuit morals. The executives made love to secretary, lived well, and drank cognac or whiskey. They were implacable with the militants. If someone drank some rum or beer in the corner bar, he was denounced in the collective meetings. It was so absurd that, in order to drink a beer on Sundays, a secret society called “antifascist drunks” was formed, wich met in back rooms of bars. (idem, ibidem).

Franqui abandona o partido por não concordar com isto que chamou de postura pequeno-burguesa e burocrática dos dirigentes. A questão de posição ética é colocada claramente por Franqui:

I think that those who talk like Communists but act and live like the bourgeoisie are bourgeois disguised as Communists, or bourgeois comuninsts. (idem, p. 39).

E depois complementa:

The world will not change if one does not live, think, and behave as a Communist every moment of one’s life. Only a continuous Communist present will arrive at a revolutionary future. (idem, p. 40).

Assim, a saída de Franqui do partido comunista não significou um rompimento com a idéia de comunismo, mas uma profunda distinção em relação ao modo como se encarna a prática revolucionária. Para Franqui, o comunismo e o pensamento revolucionário devem ser mais do que um objetivo finalista, um estilo de vida. O revolucionário deve agir em coerência com suas idéias. 81

Franqui ao abandonar o partido ficou sem emprego e sem lugar para dormir, morando nos parques de Havana e passando fome. Por um tempo foi abrigado pelos pais de Guillermo Cabrera Infante, com quem compartilhou diferentes projetos e idéias. (ibidem). O rebelde comunista só iria encontrar novamente a força de um compromisso revolucionário quando após o golpe de Batista encontrou os revolucionários desta nova geração dos anos 50. Rebeldes que pouco tinham de comunistas, mas que partilhavam de uma paixão revolucionária profunda e uma disposição de encarnar na ação presente a honra e o dever revolucionários. Podemos dizer assim que os marxistas que atuaram ativamente no Movimento 26 de Julho estavam distantes do tipo de revolucionário profissional dos partidos comunistas tradicionais. A adesão ao tipo de estratégia revolucionária levada a cabo pelos grupos insurrecionais cubanos era dada por um tipo de conduta revolucionária ética firmada na noção de dever e de ação como valores supremos, expressando o que para um revolucionário profissional não poderia passar de romantismo . O partido comunista cubano, PSP – Partido Socialista Popular, já não tinha nos anos 50 um grande capital simbólico entre a juventude cubana. O declínio do PSP era claro. Em 1942, contava com 87.000 membros, em 1952, às vésperas do golpe de Batista, 20.000, e no final de 1958, este número havia se reducido para 7.000 membros. (KAROL, 1972). Esta decadência do partido comunista estava bastante vinculada ao tipo de atitude oportunista que o partido havia levado à cabo desde os anos 40. Nestes anos, o PSP havia se aliado à Batista.

Batista legalizó el Partido Comunista. Le entregó la Confederación de Trabajadores de Cuba (CTC); le facilitó la conquista de posiciones en el Congreso y en los municipios; designó ministros comunistas en su gabinete y ayudó a los rojos a hacer INTENSA PROPAGANDA RADIAL Y ESCRITA. (URRUTÍA, 1975, p. 38).

Carlos Franqui (1981, p. 232), quando esteve preso na prisão de Príncipe, por exemplo, em uma carta de abril de 1957 destinada a Frank País, afirmou:

Os comunistas não acreditam na insurreição. Eles criticam tanto a sabotagem como os ataques de guerrilha. Dizem que nós estamos jogando o jogo dos terroristas do regime. Dizem que o Movimento 26 de Julho é “Putschista”, aventureiro e de classe média. Eles se 82

apegam à sua hipotética “mobilização de massas” e seu clássico “união, união”, as mesmas teses que vemos em Carta Semanal . Das discussões aqui participam Ursinio Rojas, do Comitê Central, Villa longa e Armas, ambos líderes operários comunistas. Do nosso lado temos Armando (Hart), Enrique (Oltuski), Faustino (Pérez) e eu. Os comunistas não compreendem a possibilidade da revolução, da qual acreditam ser os únicos representantes. Os comunistas evidentemente acreditam que Batista retornará à legalidade e às eleições, como aconteceu em 1939. São os mesmos comunistas que Batista estava matando em 1935 e que a ele se aliaram e nele votaram em 1940. Eles são um partido burocratizado, reformista e politiqueiro, que não consegue superar suas próprias limitações.

Assim, o comunismo não só não influenciou a maior parte dos lutadores cubanos como era comumente rechaçado por eles. Quando Che e Raúl assumiram papéis importantes na luta guerrilheira, corria entre os rebeldes, reforçado pelas autoridades cubanas, a notícia de que ambos eram comunistas, o que foi motivo de preocupação por parte de muitos rebeldes. Em suas memórias, Aleida March (1972, p. 60), que se tornaria esposa de Che, afirma que quando passou uma noite na Sierra “... acordou de madrugada e viu Che conversando com o guerrilheiro Sidroc Ramos, que lhe pareceu um ‘russo branco’.” Para ela, naquele momento, a imagem de Sidroc corroborava “o que se dizia da filiação comunista de Che.”. Havia assim por parte de Aleida e da maior parte dos rebeldes, um preconceito com o comunismo. Como afirmou:

É justo afirmar que, nessa época, nós, os que careciam de uma correta formação política, éramos a maioria e os preconceitos contra o comunismo estavam presente em quase todos, e, claro, eu não era exceção. (idem, ibidem).

Desta forma, por mais variadas que fossem as influências ideológicas dos revolucionários cubanos, podemos afirmar que a tradição revolucionária nacionalista e anti-imperialista professadas nas figuras de José Martí, António Guiteras e Chibás forneceu alguns dos principais elementos ideológicos para os programas políticos dos grupos insurrecionais. Se analisamos os documentos programáticos do Movimento 26 de Julho e do MNR – Movimento Nacionalista Revolucionário veremos como estes documentos acabam por se colocar dentro das idéias do nacionalismo reformista cubano. Quatro dias depois do golpe de 10 de março de 1952, a FEU – Federação Estudantil Revolucionária lançou uma Declaração de Princípios que apontava um 83

programa pelo qual se devia lutar. Essa declaração foi assinada por muitos dos estudantes que se tornariam grandes líderes na luta insurrecional. Para nós, um dos elementos fundamentais deste documento é que através dele podemos compreender o modo como o regime cubano democrático, desenvolvido entre os anos 42 a 52, longe do mito de sua decadência, era exaltado. Na declaração da FEU, os assinantes afirmam que Cuba era um exemplo de estabilidade institucional, progresso social, econômico e cultural para toda a América Latina.

Cuba había sido hasta ahora orgullo e bandera de los pueblos de nuestra lengua y espíritu por la estabilidad de sus instituciones democráticas y su progreso social, económico y cultural. Sin el soberano funcionamiento de los poderes públicos y la plena vigencia de las libertades políticas y civiles, la República es una farsa. (HART DÁVALOS, 2007, p. 67).

Durante toda a trajetória insurrecional, foi comum por parte de grupos que surgiram do Partido Ortodoxo, como o MNR e o Movimento 26 de Julho, a crítica aos governos autênticos como governos corruptos e covardes. Também foi comum a crítica à situação de miséria dos trabalhadores cubanos do campo e cidade. Entretanto, em nenhum momento existe uma crítica ao sistema eleitoral, ao regime de democracia representativa cubano. Pelo contrário, os revolucionários o exaltam como um regime que avançava profundamente para a correção da corrupção e dos problemas sociais. Batista é culpado justamente por interromper este progresso. No julgamento de Moncada, Fidel conta a história de Cuba da seguinte forma.

Vou relatar-vos uma história. Era uma vez uma República. Tinha uma Constituição, suas leis, suas liberdades; possuía presidente, congresso, tribunais; todo mundo podia reunir-se, associar-se, falar e escrever com inteira liberdade. O governo não satisfazia o povo, mas o povo podia substituí-lo e só faltavam alguns dias para fazê-lo. Existia uma opinião pública, respeitada e acatada, e todos os problemas de interesse coletivo eram discutidos livremente. Havia partidos políticos, horas de doutrinação pelo rádio, programas polêmicos de televisão, atos públicos, e o povo palpitava de entusiasmo. Esse povo sofrera bastante e, se não era feliz, desejava sê-lo, tinha esse direito. Muitas vezes o enganaram e olhava o passado com verdadeiro terror. Acreditava cegamente que o passado não poderia voltar. Orgulhava-se de seu amor à liberdade e vivia envaidecido de que ela seria respeitada como coisa sagrada. Sentia imensa confiança, certeza de que ninguém se atreveria a cometer o crime de atentar contra suas instituições democráticas. Desejava uma mudança, uma melhora, um avanço. E os via 84

próximos. Toda sua esperança estava no futuro. (CASTRO RUZ, 2000, p. 71).

Durante a luta insurrecional, Fidel contestou a corrupção dos governos autênticos e as injustiças sociais cometidas, mas nunca o regime democrático. Pelo contrário, seus discursos apontavam que as eleições que estavam prestes a ocorrer, antes que Batista as interrompesse com o golpe, solucionariam todos estes problemas trazendo os ortodoxos para a direção do país. No primeiro artigo que Fidel publicou depois do golpe de Batista, ele afirma que:

No había orden, pero el pueblo a quien le correspondia decidir democráticamente, civilizadamente y escoger sus gobernantes por voluntad y no por fuerza. Correría el dinero a favor del candidato impuesto, nadie lo niega, pero ello no alteraría el resultado como no lo alteró el derroche del Tesoro Público a favor del candidato impuesto por Batista en 1944. (MENCÍA, p. 130). Se sufria el degobierno, pero se sufría desde hace años esperando la oportunidad constitucional de conjurar el mal, y usted, Batista, que huyó cobardemente cuatro años y politiqueó inútilmente otros tres, se aparece ahora con su tardío, perturbador y venenoso remedio, haciendo trizas la Constitución cuando no solo faltaban dos meses para llegar a la meta por la via adecuada. (…) Nos estábamos acostumbrando a vivir dentro de la Constitución, doce años llevábamos sin grandes tropiezos a pesar de los errores y desvarios. Los estados superiores de convivência cívica no se alcanzon sino a través de largos esfuerzos. Usted, Batista, acaba de echar por tierra en unas horas esa noble ilusión del pueblo de Cuba. (MENCÍA, 1986, p. 130).

No segundo artigo que Fidel escreveu depois do golpe de Batista ele faz a seguinte pergunta: “Qué diferença hay entre un Prío que se largó con 40 millones y un Batista que se largó con 50?” (idem, p. 154). E afirma como resposta que: “aquellos (Prío e seus comparsas) iban a ser barridos en las elecciones, estos (Batista e os seus) las han suprimido indefinidademente.” (idem, p. 155). A Constituição de 1940 tinha um peso simbólico forte na Cuba dos anos 50. Ela era entendida como a “esencia y razón de ser de la República.”. (HART DÁVALOS, 2007, p. 67). A Constituição era fruto da luta revolucionária e heróica do povo cubano. Significava, como afirmou a Declaração da FEU, “Veinte años de sacrifícios, desvelos y esfuerzos”. (MENCÍA, 1986, p. 51). O retorno à democracia e à vigência da Constituição de 1940 foi sempre o primeiro objetivo dos grupos de oposição à Batista, fossem eles insurrecionais ou 85

não. No penúltimo artigo, o artigo 10º, da Declaração da FEU é apresentado o seguinte objetivo para a esta etapa que se iniciava a partir do golpe de 10 de março:

Los convocamos a todos para discutir la situación y organizar un plan de lucha que conduzca al restablecimiento de la estructura democrática de la república y a la soberana vigencia de la constitución de 1940. (HART DÁVALOS, 2007, p. 68).

No Manifesto de Moncada , escrito em 23 de Julho de 1953, o grupo insurrecional liderado por Fidel Castro e por Abel Santamaría aponta também este retorno à Constituição como objetivo máximo: “La Revolución declara su respeto absoluto y reverente por la Constitución que se dio el pueblo en 1940.” (MENCÍA, 1986, p. 632). Em A História me Absolverá , Fidel, apresentando as leis que o governo revolucionário decretaria assim que tomassem o poder, afirmou:

A primeira lei revolucionária restituía a soberania ao povo e proclamava a Constituição de 1940 como a verdadeira lei suprema do Estado, até que o povo decidisse modificá-la ou substituí-la. (CASTRO, 2001, p. 36).

A restauração da democracia e da Constituição de 1940 era o primeiro objetivo dos grupos insurrecionais cubanos. Entretanto, não podemos dizer que queriam simplesmente restabelecer o que já existia antes do golpe. O MNR, por exemplo, falava de uma democracia que alcançasse um nível mais amplo.

El Movimiento Nacional Revolucionario patrocina uma democracia integral y nacionalista, es decir, una democracia efectivamente extensiva a todos los estratos de nuestra sociedad, inspirada en los modernos principios sociales y que contemple al mismo tiempo la conservación de las sagradas esencias de la nacionalidad cubana. (MENCÍA, 1986, p. 613).

Nesta vaga concepção de democracia baseada nos modernos princípios sociais se encontra um desejo de romper com a concepção liberal de Estado e de buscar um Estado firmado fortemente na noção de justiça social. Como firmou claramente Fidel Castro(2000, p. 43) em 1953:

E não é com estadistas do tipo de Carlos Saladrigas, cuja política consiste em deixar tudo como está e passar a vida dizendo bobagens sobre a “absoluta liberdade de empresa”, as “garantias ao capital de inversão”, e a “lei da oferta e da procura”, e que serão resolvidos tais problemas. Num palacete da Quinta Avenida, esses ministros podem conversar alegremente até que já não reste nem o pó dos ossos dos que hoje reclamam soluções urgentes. E no mundo atual nenhum problema social é resolvido por geração espontânea. 86

O MNR proclamava em seu programa a necessidade de se outorgar mais força ao Estado, de forma que ele pudesse interferir diretamente em todas as atividades humanas regularizando-as.

El Movimiento Nacional Revolucionario entiende que el notable desarrollo alcanzado últimamente por las fuerzas sociales obliga a la sociedad a otorgar mayor suma de poder al Estado, confiriéndole la facultad de reglamentar todas aquellas actividades cuyo incontrolado funcionamento pudiera conducirnos al caos. El Estado que el Movimiento Nacional Revolucionario propugna representará la más terminante negación del totalitarismo absorbente y destruidor de la individualidad humana y lejos de ser un instrumento de una clase en perjuicio de las otras constituirá, como lo quisiera el apóstol José Martí, la expresión del equilibrio de los diversos factores integrantes de la nacionalidad. (MENCÍA, 1986, p. 612).

Assim, o Estado deveria intervir na economia e nas relações sociais buscando a defesa do mais fraco, garantido os direitos sociais e constituindo a justiça social. Inclusive, nesta questão da justiça social, na busca de uma sociedade justa e igualitária, foi que muitos buscaram anacronicamente ver as bases de um desejo socialista. No documento do MNR - Movimento Nacional Revolucionario aparece, por exemplo, uma definição da Constituição de 1940 como sendo baseada em princípios socialistas. Na introdução do documento, afirma-se que o propósito imediato do MNR é

(…) el restablecimiento de los principios y el espíritu que informaron la Constitución nacionalista, democrática y socialista de 1940 y la instauración de un gobierno representativo de todos los intereses nacionales, que posea las condiciones requeridas para echar adelante la gran Revolución Nacional y abrir definitivamente a nuestra patria el camino de su histórico destino. (idem, p. 610).

O documento utiliza a palavra ‘socialista’ para definir um dos princípios que guiam a Constituição de 1940. Mas, o que vem a ser o socialismo? A ruptura com a estrutura econômica capitalista? Longe disto. O revolucionário Enrique Oltuski que inicialmente participou do MNR – Movimento Nacional Revolucionário, para mais tarde ingressar no Movimento 26 de Julho, em seu livro de memórias fala sobre a concepção revolucionária do líder deste movimento Rafael García Barcena:

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We will purify the army, remaking it into a revolutionary force, and then establish a government that will sweep away all the crimes of the past and set up a regime of social justice. It will be a society not of proletarians but of proprietors. (OLTUSKI, 2002, p. 23).

Segundo Enrique Oltuski, Garcia Barcena “was not a Marxist; far from it: his motto was ‘instead of all proletarians, we should all be owners. Everyone should own, rather than no one should own.’”. (idem, p. 24). Alguns artigos do documento de princípios do MNR deixam claro esta distância. No artigo 9º afirma:

La propriedad privada y la libre iniciativa individual dentro de la órbita de las conveniencias colectivas, tendrá la garantía permanente del Estado. (MENCÍA, 1986, p. 612).

No artigo 5º se voltando contra a teoria da luta de classes e da superação da classe dominante pela classe trabalhadora, afirma:

El Movimiento Nacional Revolucionario rechaza la doctrina de la inevitabilidad de las guerras de clases y propugna el establecimiento de una cabal armonía entre obreros, técnicos y empresarios. (idem, p. 611).

Neste sentido, podemos ver como o MNR não propunha uma revolução das estruturas econômicas, mas um retorno à democracia vigente e uma implementação da Constituição de 1940 com profundas reformas no intuito de criação de uma justiça social sob o regime da propriedade privada. Socialismo significa na carta de princípios do MNR a conquista de melhores condições sociais e não a superação de um sistema baseado na propriedade privada. Como afirma o artigo 4º:

El Movimiento Nacional Revolucionario luchará por que todo habitante del País pueda disfrutar de un mínimun vital que comprenda: alimentación, habitación, vestido, asistencia médica, educación, recreación y seguro contra invalidez y ancianidad. (idem, p. 611).

O MNR propunha, portanto, não a ruptura, mas esta minoração da exploração dos trabalhadores pelos patrões.

El Movimiento Nacional Revolucionario entiende que el trabajador, sea manual o intelectual, aporta a la empresa una forma de riqueza, que no siempre es debidamente apreciada, y que reside en sus músculos, su intelecto y su carácter. Por tanto, el trabajador debe ser considerado como un socio de la empresa con derecho a participar en las utilidades de la misma. (idem, p. 612).

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Socialismo significa ações voltadas para diminuir a desigualdade social e não para destruí-la. Como afirma no artigo 3º:

El Movimiento Nacional Revolucionario propugna el establecimiento de un régimen social enteramente justo en que las cargas públicas sean repartidas en razón directa de la potencia económica de cada cual. Tal régimen implica una equitativa redistribución de los bienes sociales, al par que una regulación consciente de los diversos factores de la producción, requisitos indispensables de la paz interna. (idem, p. 611).

É este o mesmo sentido apresentado no Manifesto de Moncada, escrito em 23 de Julho de 1953, quando Fidel afirmava o seu objetivo de repartir trabalho honrado e dinheiro igualitário.

La Revolución declara su afán y decisión de renovar, íntegra y totalmente, el medio económico nacional, con la implantación de las medidas más urgentes para resolver la crisis y repartir trabajo honrado y dinero equitativo a todos los hogares cubanos, decisión ésta que es una e indivisible en el corazón de los hombres que la defienden. (idem, p. 632).

No mesmo documento, afirma a necessidade de uma total e definitiva justiça social baseada no desenvolvimento industrial e econômico.

La Revolución declara su respecto por los obreros y los estudiantes como masa acreditada en la defensa de los derechos inalienables y legítimos del pueblo cubano a través de toda la historia, y les augura a ellos y a todo el pueblo, la plasmación de una total y definitiva justicia social basada en el adelanto económico e industrial bajo un plano sincronizado y perfecto, fruto de razonable y meticuloso estudio. (idem, ibidem).

Na defesa que Fidel faz ante o julgamento de Moncada, documento que ficou conhecido posteriormente como “A História me Absolverá”, e que foi tido durante quase toda a luta revolucionária como a plataforma política do Movimento 26 de Julho, ele afirma que:

A terceira lei revolucionária outorgava aos operários e empregados o direito à participação de trinta por cento dos lucros de todas as grandes empresas industriais, mercantis e mineiras, inclusive as centrais açucareiras. Excetuavam-se as empresas exclusivamente agrícolas, em face de outras leis de caráter agrário que seriam implantadas. (CASTRO, 2000, p. 37).

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Os revolucionários do 26 de Julhos buscavam a participação dos colonos em 50% do rendimento da cana, como forma de solucionar os problemas dos trabalhadores do campo.

A quarta lei revolucionária concedia a todos os colonos o direito de participar de cinqüenta e cinco por cento do rendimento da cana e a cota mínima de quarenta mil arrobas a todos os pequenos colonos que fossem estabelecidos há três ou mais anos. (idem, p. 37).

Ao mesmo tempo, previam a conceção da propriedade da terra aos colonos, arrendatários, parceiros e posseiros.

A segunda lei revolucionária concedia a propriedade da terra, desimpedida e intransferível, a todos os colonos, subcolonos, arrendatários, parceiros e posseiros que ocupassem parcelas de cinco ou menos caballerías de terra, indenizando o Estado a seus antigos proprietários à base da média das referidas parcelas no curso de dez anos. (idem, ibidem).

Deste modo, vê-se que em nenhum momento os grupos revolucionários apontaram a bandeira da expropriação dos patrões ou do controle dos meios de produção pelos trabalhadores. O que propõem é a manutenção da propriedade privada, porém, com maior participação dos trabalhadores nos lucros e com uma série de direitos sociais até então não efetivados. É neste sentido que Che, por exemplo, via o movimento revolucionário como um movimento da burguesia nacional para se libertar dos grilhões do imperialismo. Nesta carta a Daniel durante a luta insurrecional, Che afirma que Fidel era um autêntico líder burguês de esquerda.

(...) entendo este movimento como um dos muitos provocados pelo desejo da burguesia de se libertar dos grilhões econômicos do imperialismo. Sempre pensarei Fidel como um auténtico líder burguês de esquerda, embora sua figura seja glorificada pelas qualidades pessoais de brilhantismo extraordinário que o colocam bem distante de sua classe. Iniciei a luta naquele espírito: honradamente sem esperança de ir além da libertação da nação, com a intenção de ir quando a situação pós-revolta voltasse para a direita (em direção ao que você e seus associados representam). (FRANQUI, 1981 , p. 233).

Existia no programa revolucionário uma profunda resolução ética que visava confiscar todos os bens malversados pelos governos anteriores.

A quinta lei revolucionária ordenava a confiscação total dos bens de todos os dilapidadores dos bens públicos de todos os governos e dos 90

seus coniventes e herdeiros, tanto dos bens percebidos por testamento ou sem testamento de maneira fraudulenta. Este confisco se daria através de tribunais especiais com pleno direito de acesso a todas as fontes de investigação, de intervenção nas sociedades anônimas registradas no país, sociedades nas quais possam ocultar- se bens do malversador, e de solicitação aos governos estrangeiros da extradição de pessoas e embargos de bens. A metade dos bens recuperados iria para as caixas dos pensionistas operários e a outra metade para os hospitais, asilos e casas beneficentes. (CASTRO, 2000, p. 36).

Os problemas sociais seriam resolvidos a partir tanto da reforma agrária como da nacionalização do truste da Eletricidade e do Telefone.

Tais leis seriam logo proclamadas. A seguir, uma vez terminada a luta e com o estudo prévio e minucioso de seu conteúdo e alcance, viria outra série de leis e medidas igualmente fundamentais: a Reforma Agrária, a Reforma Integral do Ensino e a Nacionalização do Truste de Eletricidade e do Truste Telefônico, a devolução ao povo do excesso ilegal na cobrança de suas tarifas e o pagamento de todas as quantias sonegadas à Fazenda Pública. Todas essas e outras medidas estariam inspiradas no cumprimento estrito de dois artigos essenciais da nossa Constituição. O que determina a proscrição do latifúndio, sendo necessário para efeito de sua liquidação que a Lei assinale o máximo de extensão de terra que cada pessoa ou entidade possa ter para cada tipo de exploração agrícola, adotando-se medidas que tendam a reverter a terra ao cubano; e o que determina categoricamente ao Estado o emprego de todos os meios que estejam a seu alcance para proporcionar ocupação a todos que dela careçam e assegurar a cada trabalhador manual ou intelectual uma vida decente. Portanto, nenhuma das medidas poderá ser qualificada de inconstitucional. O primeiro governo oriundo de eleição popular deveria respeitá-las, não só porque teria um compromisso moral com a nação, como porque os povos quando alcançam as conquistas ansiadas durante várias gerações, nenhuma força do mundo será capaz de arrebatá-las. (idem, p. 38).

Os problemas de moradia seriam resolvidos a partir da redução do aluguel e outras medidas voltadas para que toda família possuísse a sua parcela de espaço urbano para residir.

Um governo revolucionário resolveria o problema da moradia, reduzindo drasticamente os aluguéis em cinquenta por cento, eximindo de toda contribuição as casas próprias, triplicando os impostos sobre as casas alugadas, demolindo os cortiços para erguer, em seu lugar, modernos edifícios de apartamentos e financiando a construção de moradias em toda a Ilha em escala inédita, seguindo o critério de que, assim como o ideal no campo é que cada família possua sua própria parcela, o ideal na cidade é que cada família resida em sua casa própria ou apartamento. (idem, ibidem). 91

Se buscaria eliminar o desemprego e as péssimas condições de saúde.

Com estas três iniciativas e reformas, desapareceria automaticamente o problema do desemprego, e a profilaxia e a luta contra as enfermidades seria tarefa muito mais fácil. (idem, p. 45).

E o ensino, que era uma grande preocupação da visão humanista dos revolucionários cubanos, passaria por um processo de reforma integral.

Finalmente, um governo revolucionário realizaria a reforma integral do ensino, colocando-o em harmonia com as iniciativas anteriores, para preparar devidamente as gerações que estão chamadas a viver numa pátria mais feliz. Não esqueçam as palavras do Apóstolo: “Comete-se na América Latina um erro gravíssimo: povos que vivem quase por completo dos produtos do campo têm uma educação exclusivamente voltada para a vida urbana e não são preparados para a vida camponesa”. “O povo mais feliz é o que tiver seus filhos bem educados, na instrução do pensamento e na direção dos sentimentos.” “Um povo culto sempre será forte e livre.”. (idem, ibidem).

Os professores teriam os seus salários aumentados e se valorizaria a educação como prioridade de um governo livre.

Mas a alma do ensino é o professor primário. E os educadores em Cuba são pagos miseravelmente. Não obstante, não há indivíduo mais enamorado de sua vocação que o mestre-escola cubano. Quem não aprendeu suas primeiras letras numa escolinha pública? Basta de pagar esmolas aos homens e mulheres que têm em suas mãos a missão mais sagrada do mundo de hoje e de amanhã, a de ensinar. Nenhum professor primário deve ganhar menos de duzentos pesos, como nenhum professor secundário deve perceber menos de trezentos e cinqüenta, se quisermos que se dediquem inteiramente à sua elevada missão, sem ter que viver atormentados por toda sorte de mesquinhas privações. Ademais, deve conceder-se aos mestres que desempenham seu mister no campo o uso gratuito dos meios de transporte; e a todos, a cada cinco anos, pelo menos, férias de seis meses com vencimentos, para que possam assistir a cursos especiais no país ou no estrangeiro, se ponham em dia com os últimos conhecimentos pedagógicos e melhorem constantemente seus programas e sistemas. De onde tirar o dinheiro necessário? Quando deixarem de roubar, quando não houver funcionários venais que se deixem subornar pelas grandes empresas em detrimento do fisco, quando os imensos recursos nacionais forem mobilizados e não se comprarem mais tanques, bombardeiros e canhões neste país sem fronteiras (só para guerrear contra o povo) e quando se quiser educar em vez de matar. Então, sim, haverá dinheiro de sobra. (idem, p. 47).

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Assim, nos programas revolucionários vemos como existe todo um ideal amplo, firmado em idéias vagas de justiça social , ética política , educação e liberdade . Não há um programa revolucionário sistemático que traça profundamente a constituição de uma nova sociedade construída sobre a ruptura com o capitalismo. Essa concepção revolucionária ampla e vaga bastante inspirada na tradição revolucionária nacionalista cubana, tinha na ação, mais do que nos objetivos, o seu principal eixo.

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PARTE II

O ASCETISMO REVOLUCIONÁRIO DO MOVIMENTO 26 DE JULHO: o sacrifício e o corpo durante a luta insurrecional cubana (1952-1958)

Em uma noite de 1952, dois jovens cubanos, de 21 anos, se encontraram no Parque Libertad de Artemisa. Amigos de infância, Mario Lazo Pérez e Rigoberto Corcho sentaram-se no mesmo banco em que se sentavam desde pequenos para conversar sobre distintos temas. Mas, naquela noite, conversaram sobre o golpe militar levado a cabo pelo general Fulgêncio Batista no último dia 10 de março. Três dias depois deste encontro, o jovem desempregado, Mario Lazo Pérez, saía com uma convicção clara:

Desde este momento, determinante en mi vida, me comprometí con la patria, con mi amigo y conmigo mismo para hacer algo que acabara con la situación desesperada que reinaba en el país desde el 10 de marzo. Estaba convencido de esa verdad, el propósito solo era posible conseguirlo con las armas en la mano, y muchos jóvenes que conocían de lo que era capaz Batista, estaban dispuestos a empuñarlas. (LAZO PÉREZ, 1987, p. 16).

Quando Mario Lazo Pérez assume este seu propósito firme de empunhar as armas contra a tirania de Batista, nos encontramos frente a frente com a imagem de um revolucionário cubano. O que significa essa atitude de tomar as armas nas mãos para enfrentar um regime político? Que significado subjetivo tem essa ação para os homens que a assumiram? Dentre os diversos argumentos trocados entre os dois amigos artemisenhos naquela noite do banco da praça do Parque Libertad, Mario Lazo Pérez, em suas memórias, destaca duas passagens do periódico que Rigoberto Corcho lhe entregou. A primeira passagem é esta que se segue: “Somos jóvenes y si no hacemos lo que la República espera de nosotros, seremos traidores”. (idem, p. 14).

Tratava-se de uma passagem do período El Acusador , publicado no dia 16 de agosto de 1952, organizado por outros jovens de Havana, dentre eles, um jovem advogado chamado Fidel Castro Ruz. Nela, nos encontramos com dois elementos que nos faz questionar se não estamos em frente de um tipo peculiar de conduta humana. Primeiro, a referência a uma espécie de chamado que a República faz aos 94

jovens cubanos. Segundo, uma noção de que o não cumprimento deste chamado implica uma traição . Neste pequeno trecho de discurso, nos deparamos com a sensação de que há no discurso revolucionário da luta insurrecional algo mais do que avaliações políticas racionais, programas, estratégias e táticas. Pegar em armas poderia estar vinculado não a uma forma mais racional de se resolver uma querela política, mas a uma resposta a valores mais íntimos e sentimentais presentes em uma geração de jovens como Mario Lazo Pérez e Rigoberto Corcho. Pelo trecho de discurso de Fidel, a atitude revolucionária estaria respondendo a um sentimento de obrigação moral com a República, um sentimento cuja infração não é tomada como mera tolice, mas como esquecimento do dever , ou o que é ainda mais forte, como traição . A segunda parte do periódico citada por Mario Lazo Pérez naquele dia em que resolveu dedicar a sua vida à luta insurrecional dizia o seguinte:

El momento es revolucionario e no político. La política es la consagración del oportunismo de los que tienen medios y recursos. La Revolución abre paso al mérito verdadero, a los que tienen valor e ideales sinceros, a los que exponen el pecho descubierto y toman en sus manos el estandarte. A un Partido revolucionario debe corresponder una dirigencia revolucionaria joven y de origen popular que salve a Cuba. (idem, ibidem).

Neste trecho de discurso, Fidel evoca a existência de dois tipos que são colocados em oposição: o revolucionário e o político. Ao primeiro, condiz o mérito, o valor, os ideais sinceros, o sacrifício, a atitude heróica. Ao segundo, o oportunismo. A atitude de pegar em armas e se tornar um revolucionário não é, desta forma, apresentada exclusivamente como o resultado de uma busca dos caminhos mais eficazes para a derrota da tirania, mas pela busca dos caminhos mais corretos , ou se quisermos, dos meios mais coerentes com os valores professados. Se nos é permitido ir mais longe, encontramos neste discurso uma peculiaridade das relações entre meios e fins. A atitude revolucionária, por si só, independente de alcançar ou não a vitória, é a consagração do “mérito verdadeiro” e dos “ideais sinceros”. A este tipo de conduta revolucionária, chamamos aqui de ascetismo político revolucionário . Quando construímos este conceito estamos tratando de uma forma peculiar de ação social revolucionária que encontra alguns contornos no tipo de 95

conduta dos rebeldes cubanos dos anos 50 e que se caracteriza por uma forma de ação social onde o próprio agir revolucionário ocupa o centro do imperativo moral. Em outras palavras, a conduta ascética é aquela em que os meios são escolhidos não exclusivamente pela possibilidade de alcançar de forma mais eficaz os fins políticos almejados, mas pelos valores que neles se encerram. Os discursos revolucionários são constantemente marcados por um desprezo pelos objetivos e uma valorização extrema da ação. Abel Santamaría, um dos jovens fundadores do grupo que, em 26 de Julho de 1953, atacaria o Quartel de Moncada, afirmou em 17 de março de 1952, sete dias depois do golpe de Batista, em uma carta a José Pardo Llada, líder do Partido Ortodoxo:

¿Para qué, en este momento, dogmas ni doctrinas, si lo que necesitamos se llama acción, acción? (…). Su casa es la cárcel o la calle, y hubiera sido también las de Chibás. No quiero que nos maten a todos, todo lo contrario; no quiero que nos prendan a todos, todo lo contrario. Pero si esto de aquí afuera es tranquilidad, no olvide que Rosseay dijo: ‘también en los calabozos hay tranquilidad, honra más la de adentro que la de afuera. (MENCÍA, 1986, p. 136).

Para Abel, o momento exigia não doutrinas, não ideologias, mas a ação. Só ela, independente das conseqüências, a morte ou a prisão , encarnaria o dever e a honra. Somente quatro dias após o golpe de Batista, a FEU – Federação Estudantil Universitária lançou uma declaração de princípios, assinada por diferentes líderes estudantis, dentre os quais se encontravam alguns daqueles que se destacariam na luta insurrecional 5. Na declaração, afirmava-se:

Las dramáticas circunstancias que atraviesa la patria nos impone duros y riesgosos deberes. No nos hemos puesto a medir la magnitud de las consecuencias. Estamos prestos a cumplirlos serena, responsable y firmemente. (HART DÁVALOS, p. 66, 2007).

Desta forma, para o revolucionário não importava as conseqüências de seus atos, se o sacrifício dos prazeres ou da própria vida. Importava sim a necessidade de cumprir com o dever em relação à Pátria.

5 Esta carta de princípios da FEU foi assinada pelos seguintes estudantes: Álvaro Barba, Quino Peláez, Julio Castañeda, Orestes Robledo, Agustín Valero, Segismundo Parés, Andrés Rodríguez Fraga, Antonio Cisneros, Antonio Torres Vila, Eduardo Sabatés, Edelberto Cué, Ismael Hernández, Vilma Garrido, José Hidalgo Peraza, Aurora Cueva, Juan Mena Ortiz, Pedro García Mellado, Ramiro Baeza, Eduardo Hart, Armando Prieto, Mario Chaple, José A. Echeverría. 96

Mais adiante a Declaração apontava o modo como, no imaginário rebelde, só existiam duas posições inconciliáveis: combater era cumprir o dever, não o fazê-lo era se envergonhar diante da traição.

Pero estamos seguros nos incitarán valerosamente a combatir por la libertad de Cuba a fin de que podamos vivir sin sonrojo mañana. Saben, como sabemos nosotros, que es preferible morir de pie a vivir de rodillas. (idem, p. 68).

Neste mesmo sentido se movia a carta Revolución Sin Juventud de Raúl Gómez García, escrita logo após o golpe de 10 de março, em que o jovem de 23 anos afirmava:

Lastima de aquel que se falte a su propria moral, cruzando en cruz sus convicciones firmes, ha de sentir el peso de los años pasar raudo sobre su cabeza y amontonar en ella un no sé qué de amargas e infelices acomodaciones. (MENCÍA, 1986, p. 593).

Não ocupar o seu papel na luta insurrecional era descumprir com sua obrigação moral. Assumir a luta revolucionária era um dever, era assumir a responsabilidade no tempo histórico que pertencia à nova geração. Como afirmou no mesmo documento Raúl Gómez García: “Nosotros, jóvenes, nos sentimos dentro de la consigna y dentro del presente y arrostraremos las consecuencias y asumiremos las responsabilidades del tiempo que nos pertenece”. (idem, ibidem). Assumir o dever de combater exigia mais do que simplesmente pegar em armas. Exigia, sobretudo, o sacrifício de diferentes modos de vida para a constituição de um modo de vida voltado integralmente ao dever pela pátria. Esse modo de vida revolucionário passava, por um lado, por uma postura de negação do mundo profano fortemente ligado ao pensamento ético de José Martí. Em seu livro El Presidio Político , Martí fala da vida por nosotros creada , a vida tal como ela se apresentra, e a outra vida, a vida do eterno bem , a vida dos nobres ideais. Esta “vida por nosotros creada” é um mundo profano, torpe; só o sacrifício pode trazer a este mundo profano, a “vida verdadeira”, o “eterno bem”, os valores ideais e nobres. “Sufrir es morir para la torpe vida por nosotros creada y nacer para la vida de lo bueno, única vida verdadera.” (MARTÍ, 2009a). Abandonando emprego, família, amores e os prazeres pessoais, e se dedicando exclusivamente ao dever, o revolucionário era capaz de trazer o mundo nobre e verdadeiro para a existência. O assumir a vida revolucionária era visto por 97

muitos dos rebeldes como uma verdadeira ressurreição. A metáfora cristã significava ali nascer de novo, renascer para a vida real. Aleida March (2009, p. 33) falava sobre o seu ingresso na vida clandestina como o seu verdadeiro nascimento :

Um outro mundo surgia dentro de mim – sempre destaco isso como o meu verdadeiro nascimento – e, eu me entreguei a ele com total dedicação e sacrifício, consequentemente com o meu ser, com os meus princípios e anseios.

Neste processo de negação da vida, o corpo surge como um elemento fundamental. Ele é, nos discursos revolucionários, a expressão do mundo profano e está ligado aos valores de uma vida de luxúria e gozo espontâneo. O corpo aparece como o oposto às idéias nobres sendo insignificante e passageiro. Já os ideais de um homem são grandiosos e eternos. Mas, esta negação do corpo não representa a sua insignificância no modo de vida revolucionário. Pelo contrário, o corpo surge como um dos elementos mais importantes no investimento de estratégias e táticas de poder. Superar o corpo do mundo; gordo, preguiçoso, dado ao gozo momentâneo; e criar o corpo revolucionário; treinado, disciplinado, capaz de enfrentar o sacrifício do mundo profano de uma forma habitual; foi um dos elementos mais importantes para a constituição do modo de vida revolucionário. É assim que vamos analisar no terceiro capítulo este processo de negação do mundo profano e a disposição de dedicação ao mundo do dever pela Pátria. Esta negação ocorre com o abandono do emprego, da vida de luxo e voltada para o dinheiro; a negação da comunidade familiar e do amor pessoal; a negação dos prazeres momentâneos; e a negação da própria vida. Neste capítulo queremos esclarecer as tensões entre a ética do dever e as outras éticas do mundo cotidiano. No quarto capítulo, vamos analisar o modo como esta constituição do modo de vida revolucionário significava a constituição de um novo homem, o homem revolucionário; rígido, disciplinado e viril. Para tanto, analisamos, o processo de disciplinarização do corpo e das atitudes, que contribuíam no processo de criação de um corpo revolucionário dócil pronto para o combate. O modo como esse homem disciplinado que assumia o sacrifício como algo habitual era também um homem viril, masculino, oposição e negação do feminino. Por último, analisamos também como corpo revolucionário era marcado por um processo de partilha entre 98

dominante e dominado, chefes e séqüitos, dirigentes e dirigidos, criando um homem revolucionário obediente.

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CAPÍTULO 03

O Sacrifício Revolucionário

3.1. O sacrifício do emprego

Os rebeldes que compuseram a geração revolucionária advinham de diferentes segmentos sociais. Alguns advinham de extratos econômicos mais baixos da população. Mario Lazo Pérez (1986), nascido em 1931, era de uma família pobre de Artemisa. Suas lembranças da infância se centram nas diferentes frustrações que teve quando pedia aos Reis Magos um presente que não vinha (p. 08) e na suas aproximações com a Igreja para conseguir ganhar um sapato branco que teve que devolver (p. 9). O rebelde de Artemisa também se lembra da sua longa jornada de trabalho de 12 horas que desde os 12 anos de idade já desenvolvia em uma loja de doces em troca de “um mísero peso semanal.” (p. 09).

Diariamente, él (o patrão) y sus hijos comían en nuestra presencia sin el menor asomo de preocupación y nos estaba prohibido tomar algo de la dulcería. Los trabajadores nos turnábamos para comer algunos dulces a escondidas y no quedarnos en blanco. (LAZO PÉREZ, p. 09-10).

Juan Almeida não tinha um emprego fixo. Foi aprendiz de pedreiro, carpinteiro, entalhador e serralheiro. Arranjava estes trabalhos em casas de vizinhos ou em regiões mais nobres da capital quando era indicado por amigos. (BOSQUE, 1989a, p. 09). Aquele que iria se tornar o símbolo do negro na revolução cubana morava em uma pequena casa no bairro Poey, bairro pobre de Havana. A descrição que faz de sua casa nos dá a dimensão da situação econômica de sua família:

O nosso (terreno) tem 10 X 40 metros e o compramos com a casa de madeira já construída. Estava um pouco estragada, com o teto forrado de papel impermeável que tinha infiltrações, o portão caindo, sala e quarto amplo, sem cozinha, e um poço de água salobra para os afazeres da casa e para dar aos vizinhos. Para podermos nos acomodar, arrumamos um pouco a casa com um carpinteiro e um 100

pedreiro contratados. Depois, com a ajuda de amigos carpinteiros e pedreiros arrumamos mais a casa e a ampliamos. Se pagarmos pontualmente as mensalidades, em dez ou quinze anos a casa e o terreno serão nossos. Do contrário, levará um pouco mais de tempo. (idem, p. 28).

Nesta casa, Juan Almeida morava com mais treze pessoas. Com razão se questionava como era possível viver quatorze pessoas em dois quartos e uma sala de jantar.

Os quatro homens dormem na sala de jantar, três numa cama grande – um sofá-cama com quatro pés que se abrem e fecham – e eu num catre. As mulheres num quarto, meus pais e os menores no outro. (idem, ibidem).

Como em muitos bairros pobres de Havana, durante muito tempo não havia água na quadra em que Juan Almeida morava com sua família. Almeida relata a epopéia que era para se colocar água em casa:

Quanta luta custou para que ligassem a água, para não termos que ir a outra quadra, Santa Amália, até a torneira onde se enchiam os barris sobre caminhão ou carroça puxada por animais, que às vezes demoravam quinze ou vinte dias para distribuir a água na quadra. Então, a maioria dos rapazes vinha buscá-la à tarde ou à noite, com carrinho de rolimã. Púnhamos sobre eles um tanque com cinqüenta e cinco galões, ou tambores, latas ou baldes, e a vendíamos aos que vinham buscá-la, apregoando: “Pura e cristalina.” (idem, p. 24).

O jovem rebelde negro nos conta que esta casa em que moravam estava sendo comprada a prestações por sua família. Antes de chegarem ali, tinham mudado várias vezes por não conseguirem pagar o aluguel:

Para os pobres, o problema mais angustiante é a habitação. O fato de não vivermos preocupados por ser cobrados todos os meses já é muito; para as pessoas que não têm trabalho fixo, é um alívio ter o teto assegurado. E, aqui, se alguém não puder pagar não será despejado. É infinita a quantidade de casas em que já moramos antes de chegar a esta. Saímos da maioria delas despejados por não poder pagar o aluguel mensal. (idem, ibidem).

René Ramos Latour era um operário que trabalhava nas minas de Charco Redondo no Oriente de Cuba (FRANQUI, 1981, p.530). Vecino Alegret escreveu em seu diário da Sierra sobre o trabalho do comandante René, conhecido como comandante Daniel:

Ele (Daniel) trabalhou vários anos na mina de Nicaro, onde mãos alheias arrancam os tesouros do nosso solo deixando-o estéril e sem 101

nenhum benefício para este povo que julgam inferior. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 62).

Em uma carta a Che, René Ramos Latour afirmou sobre a sua posição de operário.

No que me diz respeito, posso dizer-lhe o que penso de mim mesmo como operário; trabalhei como tal até desistir da minha vida para juntar-me às forças revolucionárias da Sierra. (FRANQUI, 1980, p. 236).

Entretanto, grande parte desta geração rebelde advinha de uma condição de vida mais abastada. Fidel nasceu em uma família de fazendeiros que gozava de uma confortável situação financeira. “We were considered rich and treated as such.” (FRANQUI, 1981, p. 01). Huber Matos era também de uma família bem estruturada da região de Manzanillo, no Oriente de Cuba. Embora fosse professor por opção tinha com sua família uma empresa agrícola chamada Matos e Hijos . (MATOS, 2002, p. 56). Enrique Oltuski era filho de um empresário judeu dono de uma rede de fábricas de sapatos.

My father, Bernardo Oltuski, was an enterprising man; in Cubam beginning as a simple shoemaker, the rose to become the owner of several shoe factories, retail stores, warehouses, and tanneries. His brand of footwear was distributed all over the country, and he had as many as two hundred employess. (OLTUSKI, 2007, p. 10).

Celia Sanchez era filha de médico e gozava também de uma situação confortável de classe média. (FRANQUI, 1981). Faustino Pérez era médico. Armando Hart, advogado. (HART DÁVALOS, 2007). Assim, vários dos rebeldes formavam parte desta categoria de profissionais liberais que possuíam um futuro pela frente. Tanto para os pobres quanto para os mais abastados, a questão do abandono do emprego significava um sacrifício profundo. Juan Almeida, por exemplo, acostumado ao desemprego, tomava os empregos que conseguia como valiosos. Antes do ataque ao quartel de Moncada, Juan Almeida e Armando Mestre, outro combatente revolucionário, trabalhavam juntos como pedreiros de uma construção no bairro Vedado em Havana. (BOSQUE, 1989, p. 67). Em Julho de 1953, Almeida não sabia que estava se dirigindo para o ataque ao quartel de Moncada, quando Armando Mestre o chamou para ir até Santiago de Cuba. Seu companheiro havia informado apenas que iam ao Oriente para um 102

treinamento de tiros. (idem, ibidem). No caminho para Santiago, Almeida se preocupava com o emprego na construção.

Quantos dias ficaremos por aqui? Não haviam dito quantos, mas aquilo não podia prolongar-se por muito tempo, pois eu poderia ficar sem trabalho e o serviço que tinha na época me daria algum dinheiro. (idem, p. 45).

Da mesma forma, é assim que podemos entender o trecho em que René Ramos Latour critica os comunistas que são incapazes de abandonar o seu emprego pela revolução. Abandonar o emprego exige uma postura de dever e sacrifício.

I am a worker, but not like those in the Communist Party who concern themselves deeply over the problems in Hungary or Egipt, which they cannot solve, and are unwilling to give up their jobs to join the revolutionary process whose immediate goal is the overthrow of an opprious dictatorship. (FRANQUI, 1980, p. 274).

Para os membros mais abastados do movimento, abandonar o emprego era abandonar o futuro promissor. Mario Llerena, por exemplo, depois de terminar o seu doutorado em Havana se mudou com esposa e filho para Durham, em Carolina do Norte nos EUA onde ingressou como professor de espanhol da Duke University em 1948. Como afirmou em suas memórias, tinha uma carreira promissora.

I belonged to the faculty o fone of the finest fine people and distinguished colleagues. The future seemed full of promise for professional advancement and personal reward. (LLERENA, 1978, p. 33).

Enrique Oltuski estudava engenharia nos EUA quando Batista deu o golpe militar. Constantemente, ele se viu no conflito entre seguir a carreira e lutar pela revolução. Ao falar de revolução com um amigo chamado Roberto, este lhe perguntou: “Would you give up this fine life you lead?” (OLTUSKI, 2002, p. 13). Esta era a grande questão para um rebelde. O pai de seu amigo Pepe Contreras uma vez lhe falou: “Why bust his balls with that crap? Sure, it’s OK if you’re dying of hunger, but studying enginneering, with a career ahead, why start playing with fire?” (idem, p. 48). O futuro promissor de Oltuski aparece constantemente lembrado por aqueles que viviam com ele. Ele relembra as palavras de seu amigo David:

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You don’t need it (revolution): you’re going to be a professional with a degree from the United States. There ore here, you’ll find a job immediately. (idem, p. 52).

As memórias de José Luis Llovio-Menéndez, que quando cursava medicina na Universidade de Havana participou de atividades revolucionárias, deixa-nos passagens importantes sobre o conflito existente em todo aquele que tivesse uma noção de dever com a nação. Por um lado ele demonstra como se dedicar ao curso de medicina era uma obrigação que tinha com a família.

Resisting Batista was my first, but not my only, concern at that moment. Bored as I was by the minutiae of histology or the complexities of anatomy, I applied myself to them with rigor for the sake of my family. I was the oldest and the favored grandchild, the first to go to the university. Not only was I expected to set an example e for my brother and cousins but I was, in a very real sense, the embodiment of the family’s hopes for the next generation. My success in my studies was a serious responsibility. (LLOVIO- MENÉNDEZ, 1988, p. 57).

Embora tivesse o estudo como um dever em relação a sua família, Llovio- Menéndez declara a impossibilidade de não se sentir envolvido pela luta revolucionária que se desencadeava ao seu redor.

Family duty notwithstanding, there was no way a rebellious and idealistic person such as I could ignore the highly charged political atmosphere all around me. Although active opposition to Batista was confined at that time to no more than 400 or so of the university’s 10.000 students, no one on campus was unaffected by the polarizing atmosphere. (idem, p. 58).

Segundo ele, com a morte de Jose Antonio Echevarría e de Frank País, e sua desconfiança de Fidel Castro, resolveu se exilar em Paris e se dedicar à sua profissão e não ao modo de vida revolucionário. Em uma passagem de suas memórias afirmou:

Loking back on the extraordinary five years from the March morning in 1952 of Batista’s golpe to my present crisis of doubt and sadness, I knew I couldn’t turn my back on the struggle. But instinct told me this was no longer the revolution I’d joined. I decided to leave Cuba too. I knew that Sorbonne Paris would accept my credits for course work completed at the , as I had Cuban friends studying there, and so I decided to continue my studies in France. (idem, p. 73).

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E assim em março de 1958, Llovio Menendez escolhia um dos modos de vida inconciliáveis que se apresentavam a ele no conturbado contexto cubano dos anos 50. Não é possível saber até que ponto sua decisão foi levada apenas em conta a partir de sua desconfiança em relação a Fidel ou se simplesmente não queria abandonar sua promissora carreira já que não era possível saber quanto tempo a luta duraria. O certo é que a noção de dever nacional exigia para muitos cubanos em distintas situações uma escolha entre dois modos de vida inconciliáveis. Abandonar o emprego não era simplesmente abandonar o futuro promissor. Era, sobretudo, abandonar um modo de vida voltado para o deus dinheiro e para o sucesso pessoal. Durante o período de luta insurrecional, entre os chamados revolucionários cubanos havia distintos níveis de engajamento. Havia aqueles que viviam uma “vida dupla”, levando abertamente uma vida normal, com emprego, família e lazer, e clandestinamente, uma vida revolucionária, com reuniões clandestinas e diferentes atividades voltadas para o avanço da luta revolucionária. Um dos exemplos deste tipo de revolucionário de vida dupla foi Enrique Oltuski, que era diretor da Shell e ao mesmo tempo atuava nas funções de propaganda e organização do Movimento de Resistência Cívica. Huber Matos, antes de assumir a vida de guerrilheiro, também teve vida dupla, dando aulas de dia e atuando nas demais horas em diferentes tarefas clandestinas. Mario Llerena e Carlos Franqui trabalhavam no Comitê para Livre Cultura enquanto participavam clandestinamente do movimento, o segundo depois foi para a guerrilha na Sierra onde ajudou na constituição da Rádio Rebelde. Felipe Pazos trabalhava na empresa produtora de rum Bacardí e contribuía na constituição de redes de apoio ao movimento. Mario Llerena (1978, p. 92) descreveu a sua rotina clandestina da seguinte maneira:

(…) secret meetings with students and other anti-Batista elements, contacts with people considered important and sympathetic to the revolution. I spent a good portion of my time working on the manifiesto-programa .

Huber Matos (2002, p.40), antes de se tornar guerrilheiro, descrevia a sua vida normal como um disfarce para a sua atuação clandestina:

Disfrazo la actividad conspirativa con los movimientos rutinarios de mi vida. Por la mañana doy clases en la Escuela Primaria Superior y 105

por la tarde en la escuela Normal. Soy dirigente magisterial en mi distrito y a nivel nacional. Administro las fincas arroceras de la familia y tengo otras ocupaciones profesionales, fraternales y de diversa índole. Día tras día me levanto de madrugada y termino la jornada luego de regresar a mi casa por la noche. Cuando puedo me voy, con dos o tres amigos, a las ciénagas del río Buey, a cazar patos y Yaguazas, unas aves palmípedas de Cuba que viven en las ciénagas. O me voy al mar acompañado por María Luisa y los tres pequeños, Huber, Rogelio y Lucy, en nuestro bote Yara, a disfrutar del entretenimento de la pesca, del aire puro y del paisaje verdeazul del golfo de Guacanayabo. ¿Quién me va imaginar un conspirador ? En mi familia advierten algo y aunque no hablo con ellos sé que tanto mis padres como mi esposa apoyan la resistencia contra el gobierno.

Aqueles que viviam uma vida dupla atuavam geralmente em tarefas auxiliares à luta armada. Uma destas tarefas era a propaganda, em que figuras como Carlos Franqui e Enrique Oltuski ocuparam um papel importante em Havana com a edição a partir de 1956 do jornal clandestino Revolución. (OLTUSKI, 2002, p. 92). Ao mesmo tempo havia alguns militantes que estavam voltados para a organização do Movimento de Resistência Cívica (MRC), que aglutinava diferentes organizações da sociedade civil. Mario Llerena e Raul Chibás foram os responsáveis pela criação desta organização na capital. (idem, p. 109). Outros estavam voltados para a arrecadação financeira, atuando em grande parte no Exílio, mas também no interior da Resistência Cívica angariando ali grande parte dos fundos do movimento. Alguns como Luis de la Cuesta não participava do Movimento 26 de Julho e tinha até um certo receio em relação a Fidel. Entretanto, contribuía com diferentes grupos insurrecionais. Segundo Llerena (1978, p. 96) sua especialidade era “finding refuge for revolutionaries wanted by the police.” Assim, vários dos que foram chamados “revolucionários” em Cuba não abandonaram o seu emprego e não estavam diretamente envolvidos com a ação armada. Alguns deles nunca pegaram em armas para realizar nenhuma ação de sabotagem, como Mario Llerena e Felipe Pazos. Entretanto, realizaram atividades importantes para o desenvolvimento do Movimento 26 de Julho.(idem, ibidem). Mas, sem dúvida alguma, o abandono do emprego para se dedicar exclusivamente ao modo de vida revolucionário e em especial à ação diretamente armada era vista no interior do movimento como uma atitude superior. Até 1956, Carlos Franqui, Enrique Oltuski, Mario Llerena e outros membros da direção do Movimento 26 de Julho em Havana, por levarem uma vida dupla e executarem 106

tarefas não vinculadas à ação armada eram vistos pelos revolucionários que estavam diretamente ligado aos grupos de ação, como “intelectuais”. Enrique Oltuski se lembrou em suas memórias do desconforto com esta denominação que os líderes de Havana sentiram:

(...) Franqui said, “Since Faustino left, som of the action groups are on their own.” “It seems unavoidable,” I argued. “The activists can’t really know the civilian leaders.” “But they feel used. They feel that they are the ones running the risks. They refer to us, for example, as the intellectuals.” “Really? But that is unfair!” “Fair or not, that is what they say.” My voice sounded weak: “We should do something…” And Franqui: “I know where to get some bombs.” (OLTUSKI, 2002, p. 97).

Resolveram iniciar assim ações de sabotagem como uma forma de recuperar a dignidade de revolucionários. Desta forma, como afirmou Mario Llerena (1978), a revolução ia levando os seus combatentes cada vez mais para o centro das atividades. Ela exigia uma dedicação cada vez maior ao modo de vida revolucionário.

(...) a revolution is like a powerful whirlpool: once you let yourself be drawn into its swirl-ing waters, you are inevitably pulled ever more powerfully toward the center until you find yourself completely immersed and caught in its force. (idem, p. 78).

Para grande parte dos rebeldes, a luta revolucionária começava com uma pequena contribuição em áreas importantes, mas não centrais. Com o tempo, a revolução deixava de ser apenas uma parte de suas vidas, para se tornar a única dedicação que possuíam. Falamos aqui do momento em que os rebeldes deixavam de ser revolucionários voluntários e se tornavam revolucionários por dedicação exclusiva, abandonando empregos, lares, família, e assumindo a vida revolucionária como um modo de vida específico. Não se trata assim de uma simples dedicação exclusiva ao que já se fazia. Pelo contrário, tratava-se, sobretudo, de participar de um modo de vida peculiar, um modo de vida pautado profundamente na noção de sacrifício . Quem tinha a alma revolucionária se encontrava cedo ou tarde como Mario Llerena, que após obter sucesso e dinheiro, sentia a sensação angustiante de que o sucesso pessoal não bastava: “The temping possibilities of professional success and 107

material comfort did not completely satisfay me”. (idem, p.33). A luta revolucionária era posta, sob o ponto de vista ético, da mesma forma que a conversão no ponto de vista religioso. “Abandone o emprego e me siga.” O abandono do emprego significava uma dedicação plena ao modo de vida revolucionário e aos deuses e valores distintos do sucesso pessoal. Significava, inclusive, não ter outro sustento que não aquele provido da própria luta insurrecional, o que modificava profundamente a relação do rebelde com o dinheiro. A organização da nova relação do revolucionário com o dinheiro implicava um processo disciplinar profundo. Abandonando o emprego e superando o modo de vida voltado para o sucesso pessoal, o revolucionário deixava de ter o dinheiro como mediador de sua relação com o mundo. Os revolucionários não recebiam o dinheiro para dispor individualmente, pelo contrário era o movimento que os sustentava através do fornecimento direto dos materiais necessários. Na prisão de Ilha de Pinos foi onde os moncadistas tiveram a sua primeira experiência em relação a esta perda do dinheiro como mediador do indivíduo com o mundo. Ali, os presos políticos organizaram uma cooperativa e todo o dinheiro, comida e presentes que um preso recebesse de seus familiares e amigos eram entregues à cooperativa que administrava a distribuição. (MENCÍA, 1982, p. 09)

Regularizadas as visitas, organizamos uma cooperativa com os presentes trazidos pelos familiares. Alcade é nomeado administrador e todos contribuímos com cigarros, charutos, doces em conserva, leite enlatado, tudo o que nossas famílias trazem, embora lhes digamos que não se preocupem por nós. Mas não se pode evitar. (BOSQUE, 1989 , p.69).

No exílio no México, ocorria o mesmo processo. Os rebeldes moravam em casas alugadas pelo movimento e nelas existia um chefe que administrava todo o dinheiro recebido para o sustento do grupo que ali residia. Quando Juan Almeida chegou ao apartamento em que ficaria no México, Fidel lhe explicou como funcionava o regime de casa:

Comida pesada, uma vez por dia; à tarde, café com leite, biscoito ou pão, igual ao desjejum. Aqui não é bom comer de noite, devido à altitude; além disso, é preciso economizar. Quando se vive como nós, exilados, o dinheiro que chega provém de nossa família e de doações e coletas para armas, munição e nossa sobrevivência. Então é preciso economizar em tudo, até nas balas das práticas de tiro. (BOSQUE, 1989a, p. 85). 108

Quando caíram presos no México ali na Prisão de Miguel Schultz, os rebeldes receberam várias doações em dinheiro e em alimentos. Ali também organizaram uma cooperativa. Juan Almeida fala sobre este processo.

No domingo temos visita. A esposa de Vanegas foi uma das primeiras que nos visitou: traz tortas, cigarros e outras coisas. Depois continuaria a fazê-lo com freqüência. Pela lista de presos publicada no jornal, muitas pessoas do povo mexicano solicitam permissão para nos visitar, mostrando assim solidariedade à nossa causa. Levam-nos coisas, principalmente alimentos. Fidel orienta que dividamos tudo com os outros detidos ali, criando assim uma amizade e irmandade, suavizada com cantos e hinos nacionais de ambos os países. À tarde os visitantes começam a se retirar. Com o que recebemos, organizamos uma cooperativa e a partir de então o cardápio melhora. (idem, ibidem).

Na Sierra a sobrevivência material dos guerrilheiros não era diferente. O movimento nas cidades arrecadava dinheiro e levava aos comandantes das colunas rebeldes que administravam os gastos com compras de comida, botas e outros tipos de materiais necessários para a sobrevivência dos rebeldes. Esta nova relação com o dinheiro tem um sentido subjetivo profundo. Primeiramente, ela cria um mundo artificial distinto e alheio ao mundo real, onde a vida econômica desigual entre os rebeldes é tornada igual. Neste sentido não importa se um rebelde ou outro não tivesse parentes que lhe mandasse dinheiro ou comida. Ele teria acesso aos recursos de forma igual aqueles que tivessem recebido muitas provisões. Neste sentido, a organização cooperativa gerava solidariedade e união entre os rebeldes e também entre estes e os presos comuns. Em segundo lugar, este tipo de organização do dinheiro fortalecia o poder do movimento e dos seus chefes frente os seus membros. Na prisão, nas casas e nos apartamentos ou na Sierra, a sobrevivência do revolucionário dependia estritamente de seus superiores. Junto a esta última consideração, havia um enfraquecimento do poder das divisões econômicas dos rebeldes nas relações do movimento. A possibilidade de um guerrilheiro com maiores provisões utilizar disto para alcançar força no movimento era bem menor, visto que suas provisões iam direto para os chefes. Por último, o indivíduo se encolhe frente o coletivo. O que há de peculiar nesta relação com o dinheiro é que o indivíduo se torna parte de algo maior, nenhum dinheiro é seu, nada se pode comprar, tudo pertence ao coletivo. 109

Assim, o que torna relevante este tipo de conduta para nós, é que o revolucionário não apenas sacrifica o emprego, mas sacrifica a sua condição de homem preso a uma determinada condição social. A partir do momento que passava a dedicar a sua vida à revolução, o rebelde deixava de ser rico ou pobre, miserável ou milionário, para ser simplesmente um revolucionário. Ao mesmo tempo, ele sacrificava a sua condição de indivíduo consumidor, livrando-se das possibilidades de luxo e conforto individuais.

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3.2. O Sacrifício da Comunidade Familiar e do Amor Pessoal

O abandono do emprego e a dedicação máxima ao modo de vida revolucionário significavam também o abandono da comunidade familiar. Abandonar pai, mãe, filhos e esposa para se dedicar à causa da pátria era uma atitude necessária para quem tivesse uma alma revolucionária. A comunidade familiar exigia estabilidade, constância, dedicação ao seu próprio sustento. Funcionava como uma prisão para os ideais maiores de um homem. Exigia dele o tempo que não possuía. A ética revolucionária era, por excelência, destruidora da comunidade familiar. Aparece em Cuba um mesmo sentido de dedicação exclusiva à causa maior que aparece na ética cristã. O guerrilheiro era como aquele discípulo de Jesus, que quando quis enterrar o seu pai que morrera o seu mestre lhe disse: “segue-me, deixe que os mortos enterrem os seus mortos” e ele abandonou o dever para com a cerimônia para seguí-lo. Quem segue a ética da causa maior abandona os mortos, mas não deixa de abandonar também os vivos. Foi assim que os discípulos de Jesus abandonaram uma família para seguir uma causa maior: “Quem ama pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim. Quem ama filho ou filha mais do que a mim, não é digno de mim. Quem não toma sua cruz e não me segue, não é digno de mim. Quem quiser conservar a sua vida, a perderá; e quem, por amor de mim, perder a vida, a reencontrará.” E os discípulos abandonaram pai, mãe e profissão para seguir o mestre, constituindo um verdadeiro modo de vida orientado pela ética da causa maior. Assim o é o revolucionário, que para seguir o amor impessoal pela pátria abandonou sua vida e, por isso, a reencontrou. Embora, como vimos, existisse em grande parte da geração centenária uma identidade de idéias com os seus pais, e, por isso, muitos rebeldes tiveram suas atitudes apoiadas em casa, a dor da separação se fazia sempre presente. O abandono da comunidade familiar era, sobretudo, uma atitude de profundo sacrifício. Vecino Alegret (2003, p. 47), sentado na Siera Maestra, no dia do seu aniversário, o primeiro que não passava com sua família, escreveu em seu diário enquanto setia-se feliz por cumprir com o dever: “(minha família), hoje – bem o sei – 111

irá sofrer em dose dupla”. Fidel Castro, na prisão de ilha de Pinos após o ataque de Moncada, sentia também a dor da separação inevitável.

(...) so many things heavily on mind: the house in oriente where I was born and lived has recently burned down; I heaven’t heard a word about my son in months; my family life has gone to pieces , and soon nothing will be left of it; my feelings have recently been severely tested; with me behind bars, my enemies have been more vicious and more treacherous than ever. (FRANQUI, 1980, p. 84 ).

A dor entrava em conflito com a genuína sensação compartilhada na família de um dever a ser cumprido. Hora a família tendia para o dever, hora para a dor. Quando tendia para a última, o conflito se estabelecia. Somente quem tinha a firmeza de coração podia se dedicar à política revolucionária como vocação e, como Renato Guitart, que na sua dedicação intensa à preparação do ataque ao Moncada não abandonou por completo as obrigações familiares, ouvir à voz do pai: “pero ya no era el mismo de antes.” (IBARRA GUITART, 1998, p. 105). Mas, o revolucionário enfrentava a dor que impunha a si mesmo e àqueles infelizes que tiveram o triste destino de manter laços de parentesco com ele. E, ainda que com a trágica ironia de Ulises, consolava a mãe com a imagem futura de um retorno glorioso do filho como herói.

(...) as dores que agora lhe causo serão recompensadas quando eu regressar para junto de ti e te senires orgulhosa do filho que nasceu de ti e se criou em teu amoroso regaço, inclinado a toda causa justa, nobre e generosa e disposto a empreender os maiores esforços para obter como prêmio o fruto de uma obra benfeitora, de sempre ter sido bom. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 27).

E consolava o filho com o argumento lógico de que não o abandonou, pois a causa maior pela qual lutava era a causa de todo o povo cubano, inclusive a causa dos seus próprios familiares. O comandante do Exército Rebelde, René Ramos Latour, codinome Daniel, em carta para a sua filha disse:

E o que faz teu pai tão longe? Pôr sua vida a serviço de uma causa justa. De quem é esta causa? É tua e de todos os seus irmãos que sofrem. Sim, minha filhinha, por ti, pela terra maravilhosa e pelo povo generoso que te viram nascer, hoje me encontro bem longe de teu berço. (idem, 2003, p. 84).

Daniel jamais retornou glorioso para o regaço de sua mãe, morreu em combate na Sierra Maestra no dia 30 de setembro de 1958. Fidel Castro abandonou seu filho Fidelito, Che abandonou a esposa e filhos duas vezes para se dedicar à 112

guerrilha, Gildo Freitas López se casou com a noiva antes de partir para Moncada de onde não voltaria jamais. O revolucionário, por sua condição de figura extraordinária, por sua vida fora da vida rotineira, estava sempre com os sentimentos potencializados. Na prisão, no exílio, na clandestinidade, na Sierra Maestra, ele vivia situações de afastamento da vida rotineira, o que gerava uma situação de intensificação dos sentimentos. Juan Almeida, nas memórias de Prisão fala da necessidade que o prisioneiro tinha de receber cartas e visitas.

Chegaram cartas. Me aproximo do que as recebeu e as distribui, mas não há nada para mim. Outros companheiros receberam duas ou três, da noiva, da mulher, da irmã, de amigos, dos pais e dos filhos. Estão felizes! Pergunto a mim mesmo como algumas palavras podem causar tanta alegria a uma pessoa. Desfrutam uma carta como se na verdade estivessem junto a quem a escreve. E imagino que, como eu, até escutam sua voz. Na prisão, no exílio ou no hospital, as cartas trazem a mesma alegria, ou uma visita na prisão ou no hospital! No exílio, onde são difícil as visitas, receber umas linhas é uma das coisas mais apreciadas. Aqui há companheiros que, quando não recebem carta, seu mundo cai. Jogam-se na cama, e quem sabe quantas coisas passam por sua mente. Outros se põem a caminhar corredor acima e corredor abaixo, de tal modo que, se o fizessem sobre a terra, abririam um sulco até os joelhos. Na prisão, dizemos uma frase generalizada: ____ Este está psíquico. (BOSQUE, 1989, p. 72).

As cartas se tornavam um dos feitos de maior alegria para o prisioneiro e a ausência delas gerava uma crise absoluta. A visita ocupava um papel ainda mais importante. Sobre a primeira visita que recebeu da família na Prisão de Ilha de Pinos, Juan Almeida fala:

Vou vestido com o uniforme azul e o número 3833 no peito. A alegria é indescritível. Em minha mãe brotam lágrimas, solitárias, sem que ela fizesse um gesto de dor. Meu pai empalidece. Eu não sei como eles me vêem nem o que faço, só sei que sinto muita alegria ao vê- los. Depois chega a vez de cada um dos meus irmãos, pois todos vieram solidarizar-se comigo e com minha causa, que a partir desse momento é também a deles, e lutarão ao meu lado, enfrentando todos os sacrifícios juntos, impondo-se a cota que correspondia a cada um, especialmente a meu pai, inspetor de abastecimento de leite dos governos anteriores e que, seguramente, neste será colocado à disposição. Como ficará a partir de agora a situação da família? Mas, enfim, o importante é que estão aqui para que eu me sinta amparado como filho e irmão. É emocionante esta visita, depois de três meses de prisão, dos acontecimentos vividos e diante de como havia sido a despedida do lar. (idem, p. 66). 113

Neste testemunho, Juan Almeida deixa claro que o sacrifício que um revolucionário assume sacrifica também toda a sua família. Mas, nada demonstra mais o sacrifício da ética da causa maior do que os conflitos entre o amor impessoal à pátria e o amor pessoal à mulher amada. As cartas e poemas de Raúl Gómez García, poeta revolucionário, que ficou conhecido como “o poeta da revolução” demonstram claramente este conflito. Raúl Gómez García, durantes os anos 1951 e 1952, teve uma relação amorosa com Lilliam Llerena, atriz de um grupo de teatro da Universidade de Havana. Lilliam Llerena guardou as cartas que Raúl Gómez García havia lhe escrito durante o tempo que este se dedicava à vida conspirativa revolucionária. Nas cartas que enviou a Lilliam Llerena é clara a paixão que Raúl Gómez sente pela mulher. É possível ver em alguns trechos como Gómez García sente a paixão por Lilliam e a paixão revolucionária como parte de um mesmo processo que o constitui como o homem de paixões fortes, o homem de princípios e de idéias. Tanto o revolucionário como o homem apaixonado não são homens frios e calculistas, mas homens de sentimentos intensos.

(...) Cuando la agitación externa e interna me ahoga el pecho y el corazón salta de júbilo o se duele de contrariedad, hay siempre la esperanza de volver a ver, en paisaje de sueños nuevos, tus ojos azules, tus manos lánguidas, tu rostro sutil. Se va aletargándose en mí el hombre de principios y de ideas y va naciendo el hombre de pasiones fuertes, de remansos dulces y de caricias perennes (...). (GÓMEZ CHACÓN, 2009).

Em uma das cartas, Raúl Gómez García expressava essa sensação de desterro que a vida revolucionária impunha. O conflito aparece claramente nesta alma revolucionária que vivia entre duas paixões, a paixão pela causa revolucionária e a paixão pela mulher.

(...) La nostalgia de este destierro del deber y del gusto y el regocijo de un buen cubano solo representa la separación forzosa que me aleja de ti y de lo que representas en mi vida interna. Sin ello no puedo vivir... pero no sabría vivir tampoco sin servir a mi patria y ser útil en la tarea de engrandecerla y dignificarla (...). (idem, ibidem).

Assim, o poeta ama Liliam, mas não poderia viver sem cumprir o seu dever maior de se dedicar à libertação da pátria. O revolucionário, desta forma, não 114

poderia viver sem “servir à pátria e ser útil na tarefa de engrandecê-la”, este é o sentido de sua vida e, para tal, abandona os amores pessoais. Juan Almeida, antes de participar do ataque do quartel Moncada, era noivo. Em suas memórias não fala o nome de sua noiva, mas relata os conflitos em que estão envolvidos por conta de sua condição revolucionária.

(...) há aqueles afortunados que não podem reclamar, pois recebem cartas de amigos, parentes e aderentes. Sou um deles, embora não receba cartas da noiva, que continua enfurecida. Porque a vida de um revolucionário é dura, nunca diz aonde vai, com quem está ou por onde anda, e isto são poucas as mulheres que podem suportar, somente aquelas que são companheiras de luta, e então os riscos são maiores para os dois. Uma noiva que sinta e pense assim é o ideal. (BOSQUE, 1989, p. 72).

Aqui Almeida expõe dois modos de vida inconciliáveis. Em algum momento, o modo de vida revolucionário entra em conflito com a relação amorosa e as únicas possibilidades do casal continuar juntos são: ou ele deixa de ser revolucionário ou a mulher se torna uma revolucionária. Tempos depois, quando Juan Almeida recebe na prisão a visita de três amigos do seu bairro, eles lhe trazem uma péssima notícia: sua noiva havia se casado com outro.

(...) Agora, uma surpresa: um deles me diz que minha ex-noiva se havia casado. Não perguntei com quem. Outro explicou que não era do bairro. Só disse: ____ Bem, casou-se com seu futuro! Encontrou-o e o realizou! Trazem-me uma carta dela, mas não a aceito. ____ Digam-lhe que não quis nem abri-la. E então não falei mais no assunto. Continuamos falando de outras coisas, mas eu já não ouvia nada da conversa, só um ruído grande em toda a sala, até que soam as palmas que põem fim à visita. (idem, p. 83).

Mas, talvez a história que mais represente este conflito entre o amor pessoal da mulher amada e o amor impessoal da causa revolucionária seja a história da mexicana Guadalupe. Juan Almeida, em suas memórias do exílio no México deixa um longo relato sobre esta garota mexicana com quem se envolveu amorosamente. Guadalupe era uma garota de 23 anos, de uma família de classe média. Seu pai era farmacêutico, sua irmã fazia medicina e ela estava terminando o curso de Direito. Segundo Juan 115

Almeida, Lupe, como a chamava, “fala muito de seus pais, nota-se que as mimam muito.” (idem, 1989a, p. 105). Segundo as descrições de Almeida, Lupe era “magra, de estatura mediana, embora com saltos pareça mais alta do que é na verdade. Olhos de mel, marotos, feições de anjo. Tem cabelo comprido, castanho-escuro.” (idem, p. 93). O jovem rebelde negro conheceu Lupe na avenida do bosque de Chapultepec, na cidade do México. “Fitaram-me uns olhos castanhos de uma maneira tal que me atraem com um não sei quê de encanto.” (idem, ibidem). O conflito entre a condição de rebelde e a condição de homem conquistador aparece desde o princípio. Após se despedir da mexicana, Juan Almeida, ainda que enamorado pela moça, se põe a refletir se deve ou não voltar a encontrá-la.

Pelo caminho vou mais que emocionado, não sei quantas coisas passam pela minha mente enquanto vamos para casa. Depois me vem a dúvida sobre se a vejo ou não. Penso em minha situação econômica aqui, minha vida de exilado. (idem, p. 94).

Mas, Juan Almeida e Lupe voltam a se encontrar no outro dia. Os passeios vão se tornando mais freqüentes e o revolucionário cubano vai se envolvendo. O exílio revolucionário tem o poder de tornar as relações sentimentais mais poderosas. Longe da família e do país de origem, o revolucionário estava colocado em uma posição de carência que potencializavam o sentimento pela namorada. Juan Almeida percebeu isto perfeitamente.

Assim, vai entrando no coração e nos sentidos quase sem que eu me dê conta, pois tudo ocorria de forma muito natural. Encontro nela um certo refúgio e os outros afetos que me faltam da pátria, da família ao qual ela corresponde com gentilezas, carinhos e atenções. (idem, p. 95).

Durante todo o relacionamento com a garota, Juan Almeida expressa o modo como o relacionamento sentimental devia ser sacrificado pela condição revolucionária. Ele só podia encontrar-se com Lupe com permissão dos dirigentes do movimento e somente nos momentos de folga dos treinamentos. O rebelde escondia da namorada até mesmo a sua condição de revolucionário no exílio. Apresenta-se sempre, de acordo com as ordens da direção do movimento, como estudante/bolsista. Sua verdadeira personalidade só é descoberta pela moça quando os rebeldes caem presos e suas identidades são reveladas na imprensa. Como contou em suas memórias: 116

Hoje, tarde da noite, depois de tantas semanas, encontro Lupe. Diz que pelo jornal ficou a par de tudo, esperando que eu a avisasse, pois não pôde ver nenhum dos rapazes que às vezes nos acompanham em nossas saídas. Todos estavam desaparecidos e ela, sem notícias. Havia uma agitação tão grande, que só se falava disso em todo o México. (idem, p. 140).

A vida sentimental era penetrada pelo puritanismo revolucionário. Como contou Almeida, deveriam viver um romance de caminhadas, parques e museus, nada de cabarés e bailes, para que a causa fosse protegida e a moral dos revolucionários fosse sempre alta:

Nunca fomos a uma corrida de touros, a um cabaré, uma feira ou um baile. Muitas vezes ela me convidou, mas não, não fui. Não devia ir a lugares que não podia freqüentar por minha situação de exilado e pelas circunstâncias em que vivemos, nem comprometer com os outros. Nunca fomos nem nós nem os que nos dirigem; isso fala muito de nosso Movimento aos cidadãos deste país e a suas autoridades, que nos observam. Não, não devia me enganar nem enganar alguém que me perguntasse, respondendo algo que não era certo. Havia decidido dedicar minha vida à luta pela Revolução que iniciamos em 26 de julho de 1953, a isso me propus quando ingressei na célula do meu bairro. Este era e tinha que ser um romance de caminhadas, parques e museus. Assim nos sentíamos bem, porque quando alguém está enamorado, como diz o dito popular, “Com você vivo a pão e água” ou “Com você moro até debaixo da ponte.” (idem, p. 145).

Na medida em que o embarque para Cuba se aproximava, os cuidados com segurança se intensificavam e tornava-se cada vez mais difícil o contato com Lupe. “Recebemos ordens de não andar sozinhos sob nenhuma circunstância, sair o mínimo possível, agora com mais razão sempre em dupla, e não falar por telefone.” (idem, p. 144). Juan Almeida agora tem que se encontrar com a namorada acompanhado com um outro rebelde, ou o que chamava ironicamente de “rabo”. O constrangimento se fazia claramente presente e era comum que a mulher não compreendesse.

Esse negócio de andar com “rabo”, de nos encontrarmos sempre acompanhados e algumas vezes com alguém estranho, não é entendido facilmente pelas mulheres, e menos ainda pelo “rabo” (...). Seleciono o acompanhante segundo a preferência pelo passeio que faremos, e informo a ela, para que depois não me diga: “Mudaram seu ‘rabo’”? (idem, p. 145).

117

Mas, o que demonstra o sacrifício revolucionário pela causa maior é o momento de partida. O momento em que a escolha se torna clara: deve abandonar a mulher adorada pela pátria amada. No último encontro de Juan Almeida e Lupe, em frente à estátua da virgem de Guadalupe na Ermita, transcorreu o diálogo expressivo que cito abaixo:

Diante da virgem ela me pergunta. ___ O que você pediu? ___ Nada. E você? ___ Eu pedi por você, para que tudo sempre saia bem para você. ___ Pois isso já é o bastante – respondo. Sem me olhar, ela diz: ___ Juan, você vai embora? Depois de um silêncio prolongado, digo: ___ Sim, estamos nos preparando. ___ Quando? ___ Não sei, logo. Dissemos que voltaríamos este ano, e ele já está terminando, estamos em novembro. ___ Você vai me escrever? ___ Sim, assim que puder – digo, enquanto a olho nos olhos. ___ Isto me consola, saberei de você e, como já pedi à Virgem, tudo correrá bem. Compreendo-o e entendo o caminho que escolheu, gostaria de acompanhá-lo. Admiro você, te quero bem, sei que esta é sua vida. Quando saímos da Ermitã para pegar o bonde, já é tarde e está chuviscando. Digo-lhe que se proteja bem, com o sobretudo comprido que usa, e que feche no peito, pois a temperatura baixou, está frio. ___ E você, o que veste? – pergunta, enquanto me enrola seu cachecol no pescoço. Nos abraçamos e, de braços dados, vamos procurar o bonde. As estrelas já brilham no céu. (idem, p. 146).

A despedida acima, descrita de forma apaixonada por Juan Almeida, demonstra o carinho, o respeito e o amor que envolvia os dois namorados. O rebelde percebeu que o puritanismo revolucionário imposto ao relacionamento sentimental amoroso tornava os desejos e os sentimentos ainda mais fortes.

Os sentimentos amorosos têm um pico. Assim está o nosso, que sublimamos muito e que quero deixar indelével, agarrá-lo, gravá-lo, escrevê-lo, para que não escape como o vento ou a água. (idem, ibidem).

Mas, a despedida expressa a alma de um revolucionário, que por maior que seja o amor pessoal a uma mulher, não será maior que o amor impessoal e abstrato que tem pela causa revolucionária. O sacrifício é sempre necessário, pois há algo maior a se dedicar: 118

Quero dizer-lhe “já vou embora de sua terra, mexicana bonita” e continuar expressando sentimentos, dizer tudo o que sinto pelo México, mas há algo mais forte que me chama aos gritos: o dever pela pátria.. (idem, ibidem).

Ao voltar para casa depois da despedida, com “essas idéias assim revoltas na mente”, Juan Almeida escreve uma canção: “La Lupe”, cuja letra demonstra o conflito entre o amor pessoal e o amor impessoal da causa revolucionária, demonstrando a dureza que deve ter a alma de um revolucionário. A letra da canção, escrita em um simples papel, se molhou e se perdeu na travessia do Granma (barco que levara os cubanos até Cuba). Na Sierra Maestra, Juan Almeida reescreveu a canção que será depois de 1959 um grande sucesso popular em Cuba. A letra reconstituída é assim:

LA LUPE Ya me voy de tu tierra , Mexicana bonita, Bondadosa y gentil. Y lo hago emocionado Como si en ella quedara Un pedazo de mí. Ya me voy linda Lupe, Y me llevo contigo Un rayito de luz Que me dieron tus ojos, Virgen guadalupana, La tarde en que te vi. Golondrina sin nido Eso era yo en el camino Cuando te conocí. Tú me abriste tu pecho Con amor bien sentido, Yo me anidé en ti. Y ahora que me alejo Para el deber cumplir Que mi tierra me llama, A vencer o a morir, No me olvides, Lupita, Acuérdate de mi. (VALENZUELA, 2009).

A letra expressa claramente o conflito que quisemos aquí explicitar e demontra que a escolha do rebelde é a escolha pelo amor à Pátria. Em Junho de 1960, Juan Almeida integrou uma delegação cubana que visitou o México. Voltou a 119

procurá-la, mas nunca mais a encontrou. Desta última viagem, escreveu a canção: “Pregunté por la Lupe”. Esta história de amor, talvez possa ter sido inventada por Juan Almeida, pois Guadalupe nunca mais aparece e seu sobrenome nunca é citado pelo revolucionário. Não encontramos nenhum outro relato que falasse de Guadalupe. Almeida poderia ter um motivo para inventar esta história, posto que sua música fez muito sucesso e era atribuída pelos cubanos à virgem de Guadalupe. Almeida poderia querer esconder esta imagem de homem religioso , depois de se converter ao comunismo e depois das exigências anti-religiosas do regime de Castro. Tendo sido invenção ou não, esta história, assim como a música de Almeida, expressa o sentimento claro da alma revolucionária em relação ao sacrifício e abnegação por uma causa maior abstrata. Expressa o amor maior que está acima de qualquer outro sentimento, o amor pela pátria. Desta forma, o revolucionário como homem romântico é dotado de paixão e admira a paixão pessoal e o sacrifício que os homens são capazes de fazer. Um exemplo disto é o olhar que Juan Almeida tem da mulher do adventista do bairro em que vivia.

Este foi um casamento muito comentado, pois ele é mulato e ela é branca, ruiva, de olhos azuis, alta, bonita. Filha de espanhóis, preparada para um bom casamento, tocava piano, cosia, bordava, cantava, era criança mimada. Quando ele foi pedi-la em casamento aos pais, por pouco não acabam com ele todos os espanhóis da família. Como não o aceitaram, no dia seguinte à noite levou-a para a casa de seus pais e irmãos. Aquele casamento foi um acontecimento no bairro. Falou-se tanto dele que por algum tempo o tomaram como exemplo, salientando o sacrifício tão grande que a moça fizera, ao largar tudo pelo sapateiro mulato. Isso é que é querer e estar enamorada! Os sentimentos amorosos foram mais fortes que as barreiras da discriminação tão grande que há no país. Ambos são dignos de admiração e de respeito, porém mais, muito mais ela, admirada por todos. Trocou seu bem-estar pelo quartinho apertado por onde foi trazida para dividir casa e sapataria, lar e trabalho, pois também já o ajudava nos consertos de sapatos. Agora acrescentava um ofício a seus conhecimentos. Para muitos do bairro, essa jovem era uma lutadora que enfrentara todos os preconceitos, entre eles os mais profundamente arraigados em nosso povo: o racismo e a religião. Vê-se bem no seu rosto a altivez para enfrentar tudo com orgulho. Parece que diz: “Minha vontade é meu escudo, minha espada é minha honradez, meu amor é este homem que representa minha fé, minha esperança, meus sentimentos, a humanidade, a justiça, a igualdade”. E por ele arriscou tudo. 120

Ao vê-la na rua, todos a olhavam, uns com admiração e respeito, outros com ódio e desdém. Ela sorria para alguns com doçura, para outros tinha esse olhar que transforma o miserável em anão, esse olhar que têm os que se dispõem ao combate com a certeza da vitória, e ela se via triunfante. Devia chamar-se liberdade. No bairro, ela foi um ideal, um princípio de igualdade proclamado aos quatro ventos, porque já havia conseguido libertar-se das amarras da família, da religião e do racismo (...) Como na natureza, o dia quis abraçar a noite, fundir-se nela; os pólos se sentiram atraídos e se corresponderam. Por isso, essa jovem, com suas idéias como espada em riste, proclamou o combate e venceu; venceram a abnegação, a força de vontade e a perseverança, a firmeza, a tenacidade, o sacrifício. Venceu o amor. (BOSQUE,1989a, p. 15).

O que nos chama a atenção na descrição dos valores da mulher do sapateiro adventista é que são idênticos aos valores que Juan Almeida e qualquer outro revolucionário cubano exaltam no revolucionário: sacrifício por um amor maior do que as ordens do mundo do dinheiro e do preconceito. Abnegação, sacrifício, força de vontade, perseverança, firmeza. O revolucionário é como a mulher apaixonada que abre mão da vida boa pelo amor. O amor revolucionário à sua causa maior é esse amor abstrato a algo ideal, a algo superior e indefinido que é a liberdade e a Pátria livre. O revolucionário é um romântico, um romântico do amor impessoal. No imaginário rebelde, Cuba aparece como a mulher amada. como um padre se casa com Maria, o revolucionário se casa com Cuba. E como homem de princípios, abandona os outros amores para se dedicar a essa pátria-mulher amada. Um trecho do diário de guerrilha de Raúl Castro aponta isto claramente. No dia dos namorados, sob a lua da Sierra Maestra escreveu:

Hoy es el día de los enamorados y con todos estos sacrificios le estamos haciendo todos los días el mejor regalo a nuestra amada Cuba" (GUEVARA & CASTRO, 1997, p. 276).

121

3.3. O sacrifício da vida

Cabrera Infante percebeu que havia em Martí um “um desejo de imolação, que era, na realidade uma vontade de martírio.” Esta vontade da morte não era nem algo novo, nem único.

Ao contrário, já tinha sido expressa por muitos poetas através dos séculos e vários poetas românticos escolheram a morte, como Martí, enquanto lutavam pela vida, ou seja, pela liberdade de um pedaço de terra, próprio ou alheio.” (CABRERA INFANTE, 1996, p. 132).

A peculiaridade da vontade da morte política de José Martí em relação à morte de vários outros poetas românticos por tuberculose, láudano, sífilis ou absinto era o desejo de uma morte pública e não privada. Em um de seus Versos Sencillos o poeta cubano havia afirmado:

No me pongan en lo oscuro A morir como un traidor; Yo soy bueno, y como bueno Moriré de cara al Sol! (MARTÍ, 2009).

Existe assim um desejo da morte como uma demonstração de princípios e, portanto, como uma consagração de martírio. Martí alcançaria este desejo de morte ao ser assassinado em seu primeiro dia no campo de batalha. Segundo Cabrera Infante (1996), sua morte pode ser entendida como um suicídio. A narrativa que faz da morte do Apóstolo nos parece significativa para demonstrar sua tese:

O general Gómez deu ordem de cessar-fogo e recomendou a Martí (ou melhor, ordenou, conforme o dominante caráter dominicano de Gómez) que ficasse atrás dele, como que para protegê-lo com seu corpo magro, enquanto designava um guarda-costas para Martí (estranhamente denominado Anjo da Guarda) para que não perdesse de vista o Presidente. Martí, no entanto, convidou seu guarda-costas a seguir adiante – ou seja, a avançar em direção ao inimigo. Nesse momento o cavalo de Martí arrancou rumo à coluna espanhola. Anjo da Guarda não pôde fazer outra coisa senão segui- lo a galope – para ver Martí receber um tiro no pescoço, perder o equilíbrio e cair do cavalo. Já no chão, ferido, Martí ainda queria se aproximar mais do inimigo, visível a apenas uns cem metros. E então, com Anjo da Guarda também ferido e tombado, ocorre um incidente realmente fantástico. Um prático explorador dos espanhóis, que era um mulato cubano, aproximou-se o suficiente para ver os tombados, e ao reconhecer Martí exclamou: “Você por aqui, dom 122

Martí?”. Como se estivesse num passeio habanero e visse um velho amigo! Em seguida levantou seu rifle Remington e acabou com Martí, cujo cadáver caiu em mãos inimigas e foi revistado, espoliado e afinal escamoteado até o cemitério de Santiago de Cuba pelos espanhóis. (idem, p. 132).

Para Cabrera, Martí “buscava a morte romântica no campo de batalha e apressou-se a encontrá-la na primeira escaramuça”. (idem, p. 133). Independente de considerarmos se a morte de Martí possa ser ou não compreendida como uma forma de suicídio, o que nos importa é que a República cubana nasceu “carregando um grande defunto no colo”. (idem, p. 169). A imagem do corpo de Martí destroçado pelos espanhóis foi reconstruída por Lezama Lima em seu ensaio La posibilidad del espacio gnóstico americano , escrito em 1959.

Vemos cómo (el cuerpo de Martí) ha sido arrastrado después de muerto bajo la lluvia, cómo al desplomarse el alazán algunos que lo vieron dicen que aún gemía, cómo ha sido enterrado y desenterrado, (...), cómo su cabeza separada del tronco, (...) ha sido mostrada a la entrada de la ciudad. (BEJEL, 2009, p. 78).

Para Emilio Bejel, na mitologia imaginária nacional de Lezama Lima, a imagem do corpo de Martí surge como “acto simbólico de todo el constructo de la cubanía, es decir, como metáfora del cuerpo nacional.” (idem, p. 77). O corpo destroçado e disperso de Martí aparece como um corpo que perdeu seu sentido de unidade “al perder la cabeza que queda separada del tronco”. (idem, ibidem). Assim,

(…) el cuerpo nacional ha perdido su tino y su memória y, por lo tanto, hay que recoger esos fragmentos dispersos y de alguna manera alcanzar la unidad y coherencia de ese cuerpo destrozado. (idem, p. 78).

Este corpo destroçado e destruído pelos inimigos da liberdade é tomado por trágico. Cabrera Infante relembra “Uma velha clave (cantos entoados por coros cubanos negros) surgida em Havana no início do século” que dizia assim:

Martí no debió de morir, Ay, de morir. Si Martí no hubiera muerto Otro gallo cantaría, La patria se salvaría Y Cuba sería feliz. (CABRERA INFANTE, 1996, p. 168).

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A morte de Martí haveria de ser chorada pelos cubanos pelos anos que se seguiram. Mas, apesar de ser repugnada como a destruição da salvação da pátria, era ao mesmo tempo louvada como o exemplo de entrega plena aos ideais maiores de Cuba. Martí não “debió de morir”, mas é morrendo que completa a sua magnitude e o seu sacrifício pleno. A geração revolucionária dos 50 irá carregar este sentimento martiano de desejo da morte. Em 18 de agosto de 1959, Fidel afirmou em um discurso transmitido pela :

O povo sabe que o sangue derramado torna ainda maior a coragem e a indignação, que cada companheiro caído nas ruas das cidades e nos campos de batalha desperta em seus irmãos de ideal um desejo irresistível de também dar a vida, desperta nos indolentes o desejo de combater, desperta nos mais negligentes o sentimento da Pátria cuja dignidade se esvai, desperta em todos os povos da América sua simpatia e sua adesão à nossa causa. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 143).

Neste trecho, está claramente expresso este desejo irresistível de dar a vida . A morte aparece nos discursos rebeldes como a última prova do sacrifício voluntário pela causa maior. Nas palavras de despedida do capitão do Exército Rebelde Geonel Rodríguez, Camilo Cienfuegos afirmou: “(...) desprendido de todas as coisas para entregar tudo. Deu tudo por esta causa, agora acaba de dar sua vida”. (idem, p. 80). A morte entra, constantemente, no discurso revolucionário como uma entrega e não como algo que foi retirado à força . O revolucionário entrega a sua vida como atitude voluntária e como prova do seu sacrifício pleno pela causa. A dicotomia entre corpo e idéias aparece claramente no discurso revolucionário. O corpo material é tomado como algo a ser desprezado. É ele quem carrega as marcas do mundo profano, dotado de finitude. Ao contrário, os sentimentos e ideais são nobres e dignos, dotados de eternidade. Como disse Fidel Castro em uma carta na prisão:

What difference does ti makes if our bodies live or die? Sometimes, we give birth to ideas and feelings we cannot imagine will die with us, even if they follow us to grave. Only someone who has sacrified the best things in life to let a great idea live on can understand this. (FRANQUI, 1980, p. 66).

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Desta forma, de nada importa se o corpo vive ou morre. O que importa é que os ideais e sentimentos nobres se eternizem. Vecino Alegret ao descrever o corpo do comandante rebelde René Ramos Latour, morrendo após ser atingido em combate, apresenta esta contradição entre o corpo cadavérico e mortal e a moral gigante e eterna .

Os companheiros já estão vindo pelo caminho, trazendo dentro de uma rede o comandante René Ramos Latour – Daniel para a história. Seu rosto está lívido, sua aparência é cadavérica. Nem parece realidade ver daquele jeito o homem que é para mim um gigante da moral. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 135).

Mas, mais do que desprezo pela morte do corpo, a morte é tomada como uma forma de consagração. Morrer pela Pátria é a forma maior de cumprimento do dever revolucionário. É assim que podemos entender a constante referência dos revolucionários à frase de José Martí: “(...) os túmulos dos mártires são o mais belo altar da honra”. (CASTRO RUZ, 2000, p. 69). Existe assim uma espécie de valor profundamente nobre na morte. Ela está profundamente ligada à noção de dever e honra. O homem que morre lutando preferiu perder a própria vida a abrir mão de seus princípios. Durante o julgamento do ataque ao quartel de Moncada, Fidel afirmou que no dia 25 de setembro de 1953, véspera da terceira sessão, dois médicos se apresentaram em sua cela e afirmara que o Coronel Chaviano havia lhes ordenado assinar um atestado onde constasse que Fidel estava enfermo e não poderia comparecer ao julgamento. Segundo Fidel, os médicos se dispuseram a reuninciar seus cargos e se expor a perseguições, deixando para que o líder aprisionado decidisse se eles deveriam assinar ou não. Mas, ele apenas respondeu: “Vocês saberão qual seu dever; eu sei bem qual o meu.”. (idem, p. 10). Os médicos assinaram o atestando afirmando que Fidel estava doente, mas segundo o líder cubano “o fizeram porque acreditavam de boa fé que era o único modo de salvar-me a vida, que viam correr o maior perigo.”. (idem, p. 10). E Fidel afirmava no tribunal:

Se para salvar minha vida devia permitir semelhante artimanha, preferia perdê-la mil vezes. Para dar a entender que estava resolvido a lutar sozinho contra tanta baixeza, aduzi ao que escrevera aquele pensamento do Mestre: “Um princípio justo do fundo de uma cova é mais poderoso que um exército.” (idem, ibidem).

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A morte é, desta forma, um destino natural do homem que não trai os seus princípios. Como disse Fidel “É compreensível que os homens honrados estejam mortos ou presos, numa República em que o presidente é criminoso e ladrão”. (idem, p. 92). Ao falar dos atacantes do quartel de Moncada torturados e assassinados, Fidel afirma:

No meio das torturas lhes ofereciam a vida se, traindo sua posição ideológica, se prestassem a declarar falsamente que Prío lhes havia dado o dinheiro. E, como rechaçavam indignados a proposta, continuavam a torturá-los horrivelmente. (idem, p. 58).

A honra que merecia o revolucionário morto em combate era expressa pelos seus companheiros mesmo em situações de risco. O guerrilheiro morto na Sierra Maestra tinha o seu funeral onde se prestava as honras que ele merecia. Vecino Alegret (2003, p. 135) descreveu este ritual na morte do comandante René Ramos Latour (Daniel) no dia 30 de Julho de 1958:

Apesar de estarmos em terra de ninguém, decidimos render-lhe as honras que ele merecia. Estabelecemos um sistema de guardas de honra, de dois em dois, enquanto o seu cadáver esteve à vista. Os lavradores se oferecem para fazer o caixão de madeira e uma camisa e uma calça de dois rebeldes, lhe enfiamos as meias de lã que ele calçava quando foi atingido pela rajada e colocamos no peito um bracelete preto e vermelho (...). Várias tropas que passam pelo local, como a de Eddy Suñol, rendem guardas de honra ao cadáver do comandante Daniel. Tenho a triste tarefa de fazer o discurso de despedida; sinto que as palavras nascem de minhas próprias entranhas. Prometemos honrar a memória do querido chefe e companheiro com nossas ações em favor da revolução à qual ele ofereceu sua jovem e generosa vida. Primeiro chegam as velas; quando elas já estão se derretendo, trazem o rústico caixão feito pelas mãos calejadas do lavrador. Colocamos o corpo de Daniel no ataúde, carregamos o caixão nos ombros e partimos em direção ao coração da mata. Nossos companheiros e os homens mais antigos da região disputam a honra de carregar aquela urna. Quando chegamos, a cova já está aberta. A terra, porém, em um gesto de rebeldia, parece negar-se a recebê-lo: a sepultura é pequena e precisamos aumentá-la. Por fim o enterramos com nossas próprias mãos, enquanto, a título de despedida, se dispara uma descarga em seco. Depois nos afastamos, conscientes de que em El Hormiguero está enterrado um pedaço do nosso próprio coração.

O ritual é o tradicional ritual cristão adicionado pela simbologia das bandeiras do Movimento 26 de Julho e as descargas em seco comuns nos funerais militares. Talvez o que há de extraordinário nesta passagem é; primeiro, o fato de fazerem o 126

enterro do comandante rebelde em região onde o conflito ainda era eminente segundo, a simplicidade do enterro, dado as condições da guerra, terceiro, a disputa dos homens pela honra de carregar a urna, e, por último, a sensação de que honrar aquela morte implica aprofundar o compromentimento com a ação revolucionária. Desta forma, mais do que consagração, a morte, como negação da vida profana, é o nascimento para a vida real. Provavelmente a frase mais citada do hino nacional cubano pelos rebeldes era a frase: “Morrer Pela Pátria é Viver.” Fidel, em A História me Absolverá , cita uma frase de José Martí que diz assim:

(...) quando se morre nos braços da mãe pátria agradecida, a morte acaba, o cárcere se rompe: E, com o morrer, começa enfim a vida! (CASTRO, 2000, p. 69).

Se a vida profana é um cárcere, a morte em luta é a vida. Quem morre lutando, transporta-se para a vida nobre e passa a viver nas idéias e sentimentos dos combatentes. Assim, as palavras morte, pátria e vida são estranhas combinações que parecem funcionar de todas as formas. Quem morre pela pátria, vive, e, quem vive pela pátria, é capaz de morrer por ela. A morte pela causa aparece no mesmo sentido da morte de Cristo, que entrega a sua vida para salvar a humanidade. Da mesma forma, o revolucionário dá a sua vida para que se faça a revolução. O relato de Robertico Hernández Zayas sobre a morte do capitão Geonel Rodríguez apresenta esta noção:

Quando saímos um pouco da tristeza que nos invadia, a emoção daqueles primeiros momentos, já apareciam no horizonte os primeiros raios do sol. Amanhecia, como um outro dia qualquer. Ali, porém, na Serra Maestra, um capitão rebelde tinha morrido, para dar a Cuba sua revolução. Era um amanhecer distinto. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 78).

O sangue dos que morreram renasce na disposição dos que ainda estão combatendo. A morte deve ser vista como um reforço da atitude moral e rígida do combatente, como se os rebeldes bebessem o sangue do companheiro morto para fortalecerem suas disposições. Quando Frank País foi assassinado, René Ramos Latour escreveu pela Direção Nacional do Movimento 26 de Julho:

Frank País entregou-se por completo à sua pátria e morreu por ela, mas hoje vive não apenas na lembrança dos que o conhecemos e 127

trabalhamos ao seu lado, mas também na memória de toda a Cuba. “O sangue dos bons não se derrama em vão”. Seu exemplo magnífico deve ser norma de conduta para todos os nossos militantes. Hoje, mais do que nunca, devemos cerrar fileiras e fazer valer com nossas atividades diárias o lema que nos serve de divisa: Liberdade ou Morte. Sua morte deixou um enorme vazio que estamos no sagrado dever de preencher, e haveremos de lográ-lo (...). (idem, p. 30).

E Fidel também afirmou sobre a morte de País em um discurso na Radio Rebelde:

Estamos plenamente convencidos que a queda de nosso líder serviu para despertar a consciência daqueles que permaneciam indiferentes, assim como fortalecer a determinação de todos aqueles que sabem que é necessário lutar até vencer ou morrer. (idem, p. 31).

Camilo Cienfuegos pronunciou as seguintes palavras de despedida ao capitão do Exército Rebelde Geonel Rodriguez:

(...) tu não conseguiste, como tantos outros, presenciar o triunfo da revolução, mas nós continuaremos o caminho e, seguindo teu exemplo, morreremos ou seremos livres. (idem, p. 81).

Quando morreu o capitão do Exército Rebelde Angelito Verdecia, seu irmão Pungo foi consolado por Vecino Alegret.

Pungo chora amargamente a morte do seu irmão. Ao cair da tarde, eu o chamo e lhe mostro a parte interna do meu gorro de campanha, onde está escrito o nosso lema: Liberdade ou Morte. Digo-lhe então que o seu irmão, como todos aqui, veio exatamente para isso: libertar a pátria oprimida ou morrer tentando fazê-lo; comento ainda que não é preciso que eu lhe dê meus pêsames, porque também perdi um irmão de idéias; o que deve ser feito é dedicar todo o nosso empenho para que a obra revolucionária seja levada a cabo, de modo que o sangue de seu irmão e o de tantos outros não seja derramado em vão. (idem, p. 82).

A morte é, assim, sem dúvida alguma, a consagração, não só a prova do dever, mas a certeza de que serão agora lembrados como verdadeiros mártires da pátria. Com a morte, se ocupa um lugar no panteão revolucionário junto a Martí, Guitéras e tantos outros heróis nacionais. A atitude do revolucionário cubano está vinculada também ao tipo de pensamento lógico dualista da ética rebelde. Para ele, só há duas alternativas: triunfar ou morrer. Ao sair da prisão de Ilha de Pinos, Fidel fez uma declaração que 128

se tornaria famosa, afirmando que, no ano de 1956, seriam “livres” ou “mártires”. Na radio rebelde, o líder fez o “(...) juramento de que a pátria será livre ou então haverá de morrer até o último combatente”. (idem, p. 22). Neste trecho, aparece claramente esta ética das firmes convicções. A disposição a uma espécie de suicídio coletivo, posto que não vale a pena viver se não for para alcançar a liberdade. A divisa que inscrita na tradição nacional cubana e que seria sempre levantada pelos rebeldes era esta Liberdade ou Morte , que era apenas uma adaptação da frase com que Martí terminou o seu Manifesto de Montecristi : La Victoria o el Sepulcro. Não haveria mais do que estas duas alternativas.

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3.4. O sacrifício dos prazeres do corpo

Na prisão de Ilha de Piños, Fidel Castro sublinhou algumas passagens das Obras Completas de José Martí. Uma das passagens que sublinhou era a que se segue: “Não tenho mais remuneração para oferecer que o prazer do sacrifício”. (MENCÍA, 1982, p.239). Esta estranha ligação entre prazer e sacrifício aparece como algo comum no discurso revolucionário cubano. Martí em seu livro El Presidio Político , escrito na prisão quando tinha apenas 18 anos, apresenta o que talvez fossem suas primeiras noções de vínculo entre a noção de sofrimento e eterno bem ; gozar e sofrer . “Presidio, Dios: ideas para mí tan cercanas como el inmenso sufrimiento y el eterno bien. Sufrir es quizá gozar.” (MARTÍ, 2009a). Este vínculo entre prazer e sacrifício , entre sofrimento e nobreza aparece constantemente presente na ética revolucionária dos anos 50. Em carta para sua amante, Raul Gómez García escreveu:

Estoy viviendo estos días como de fiesta en mi interior, como un regocijo sano de ver como se empieza a cumplir la meta de mi vida. Esta alegría debe ser tuya también... es la alegría sincera del que ama el sacrificio por un ideal justo y por «la dignidad plena del hombre». (GÓMEZ CHACÓN, 2009).

Esta alegria de quem ama o sacrifício por uma noção abstrata de ideal justo ou dignidade plena do homem aparece nos diários e memórias. O guerrilheiro Fernando Vecino Alegret escreveu (2003, p. 47) em seu diário de guerrilha no dia do seu aniversário de 20 anos:

Hoje estou fazendo vinte anos e este foi pra mim o aniversário mais feliz de minha vida. Os sacrifícios me fazem crescer; meus bons companheiros daqui me servem de companhia, já que pela primeira vez não posso contar com a minha família, que hoje bem o sei – irá sofrer em dose dupla.

Quando fracassou a greve de abril de 1958 houve um duro processo de assassinatos, torturas e perseguições. Aleida March afirmou que em meio a tanta dureza passava por momentos de extraordinária felicidade. Isto devido à sensação de estar fazendo parte de algo grandioso.

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Não obstante essas contradições, eu sentia cada vez mais que a minha vida passa por um momento de extraordinária felicidade e, pela primeira vez, graças à minha progressiva participação, experimentava a sensação de que fazia parte de acontecimentos cruciais. (MARCH, 2009, p. 46).

Nos momentos duros da luta da Sierra do Escambray também se sentia profundamente feliz.

Momentos difíceis, indeléveis e outros, muitos, dolorosos, mas sempre acompanhados de otimismo e confiança no futuro. Apesar de tudo isso, como me sentia feliz nesses momentos. Não importava o que tinha de enfrentar; estava, simplesmente, realizada. (idem, p. 64).

Desta forma, para os revolucionários o prazer está na vida abnegada, na vida puritana, na vida de abandono dos prazeres momentâneos pelo prazer do sacrifício pessoal por uma causa impessoal, no mundo de abandono dos antigos deuses e demônios para a entrega absoluta ao dever. O ascestismo revolucionário tomado às suas últimas conseqüências significa a formação de um verdadeiro modo de vida, que abandona família, dinheiro e prazeres momentâneos para se dedicar ao dever de combater pela pátria. O epitáfio do lendário rei assírio Sardanapalos era: “Come, bebe e diverte-se, pois tudo mais não é digno de um estalo de dedos”. Longe desta noção desinteressada do mundo, poderíamos dizer que o epitáfio dos mártires cubanos seria marcado pela frase oposta: “não beba, não se divirta, pois existe algo que é muito mais digno do que tudo isto”. Ao assumir a vida revolucionária, o rebelde firmava não só o prazer do sacrifício, mas o sacrifício do prazer. Ele firmava o prazer em cumprir o seu dever e negava a vida desinteressada imersa no mundo dos prazeres momentâneos. É neste sentido que o revolucionário impunha a si mesmo toda uma disciplina capaz de guiar a sua vida. Desde o início do grupo insurrecional que se tornaria mais tarde o Movimento 26 de Julho, se exigia dos seus membros assumirem uma vida de absoluta austeridade e moralidade. O homem que bebesse, por exemplo, por mais ideais que tivesse, não poderia ser militante. Como afirmou Jesus Montané:

Em nosso movimento era absolutamente proibida a ingestão de bebidas alcoólicas, e aqueles que tinham o hábito de beber não podiam ser militantes. As vidas daqueles revolucionários eram guiadas pela mais absoluta austeridade e moralidade. (SZULC, 1986, p. 259). 131

Assim como a bebida, os rebeldes tinham constantemente que sacrificar as festas, o sexo e os jogos. Che afirmou que o revolucionário deve ser um perfeito asceta. Se um indivíduo reiteradamente burla as ordens de seus superiores e trava contatos com mulheres, contrai amizades não permitidas, etc., deve ser separado imediatamente do movimento. (GUEVARA, 1980). Qual era o sentido deste sacrifício? Sem dúvida alguma em todas as guerras uma determinada disciplina estrita era necessária se quisesse criar uma máquina de combate eficaz. Como afirmou Weber, o conteúdo da disciplina é de duas ordens. Primeiro, a execução da ordem de uma forma precisa e exata sem nenhum questionamento e crítica à ordem dada. Em segundo lugar, a uniformização da obediência, de forma que todos os súditos obedeçam de forma massificada. A disciplina

(...) nada mais é do que a execução conseqüentemente racionalizada, isto é, metodicamente ensinada, precisa e que incondicionalmente reprime qualquer crítica pessoal, de uma ordem recebida e a contínua disposição íntima dirigida exclusivamente a este fim. A esta característica acrescenta-se, ainda, a uniformidade das ações ordenadas (…). O decisivo é a uniformização racional da obediência de uma multiplicidade de pessoas. (WEBER, 1980, p. 357).

Entretanto, a aceitação de uma disciplina que exigia o sacrifício dos prazeres momentâneos só poderia ser eficaz em um corpo revolucionário formado por voluntários na medida em que a noção de dever fosse assumida internamente. O revolucionário enfrentava assim a angústia dos desejos que eram abandonados voluntariamente. Ele era como o rebelde Mario Lazo Pérez que, ao encontrar pela primeira vez Santiago de Cuba, na preparação final para o ataque ao Moncada, sentiu tanto o desejo de conhecer os carnavais santiagueros como a necessidade de sacrificá-lo pelo bem da causa.

Yo queria saber como era Santiago de Cuba, tierra heróica que visitaba por primera vez. Mucho nos habían hablado de los carnavales santiagueros y coincidir su celebración con esa fecha, acrecentaba nuestros deseos. No obstante, disciplinadamente cumplimos la orientación de no salir (…) (LAZO PÉREZ, 1987, p. 37).

Ser revolucionário era, portanto, ser tentado quarenta noites e quarenta dias pelo demônio e não cair em tentação. Era permanecer dentro de casa em rígida 132

preparação disciplinar, enquanto a música que tocava lá fora penetrava pela janela. Era escolher o dever e sacrificar os gozos espontâneos.

Nosostros, jóvenes que promediábamos veinticuatro años de edad, sentíamos que los pies se nos iban en las carrozas; pero por encima de aquellas sensaciones juveniles teníamos contraído un deber con la patria que considerábamos ineludible, y todos permaneceríamos en la casa. (idem, p. 38).

Nesta passagem acima, Lazo Pérez deixa claro esta existência conflituosa entre o as sensaciones juveniles e o dever con la patria . O revolucionário verdadeiro escolhe o dever. Che expressou bem o sentido subjetivo do puritanismo rebelde. Não beber não era fruto de uma imposição, mas prova do dever revolucionário firme na disposição de entregar a vida pela causa.

El soldado rebelde no bebia, no porque su superior lo fuera a castigar, sino porque no debía beber, porque su moral le imponía el no beber y su disciplina interior reafirmaba la imposición de la moral de ese ejército, que iba sencillamente a luchar porque entendía que era su deber entregar la vida por una causa . (GUEVARA, 2002c).

Mas, além da bebida, do jogo, da dança, do sexo, os revolucionários tinham que abrir mão da luxúria. A vida material do revolucionário era bastante precária. Há, no espírito que conduzia os rebeldes, uma profunda valorização do sacrifício da vida de luxo e conforto. Nos diários, memórias e cartas, a vida miserável, o sofrimento em relação à comida e ao lugar onde se dorme, a falta de água ocupam um papel fundamental na narrativa do sacrifício heróico. Na prisão Modelo na Ilha de Piños, Juan Almeida reforça o fato de que a pior comida do presídio ia para os presos políticos.

Olhamos para a porta gradeada, pois ouvimos passos. Já vem o guarda com o preso que traz o caldeirão com o desjejum. Ele abandona o exercício, pois é preciso repartir o café com leite. Vejamos quem vai querer hoje, pois o caldeirão sempre volta do mesmo jeito. O mesmo acontece com o almoço e o jantar, pois o pior dão a nós, e ficam ricos com a dieta dos presos. A única coisa que se pode comer é a sopa, porque o arroz tem carunchos e bichos, o feijão é duro e com pedras, e a carne, quando há, é mais pelanca do que carne. (BOSQUE, 1989, p.71).

Na prisão de Miguel Shultz no México, Juan Almeida também reforça a péssima comida que comiam.

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Na hora do almoço nos dão uma sopa de cebola, feita por um cozinheiro norueguês ou de outra nacionalidade que agora não lembro. No jantar, outra vez sopa e pão. Se isso continuar com sopa e bolinhos, morreremos aqui. (BOSQUE, 1989a, p. 129).

Entretanto, foi na Sierra que os rebeldes encontraram um modo de vida realmente voltada para a falta de comida e experimentaram, muitos pela primeira vez, a condição de miséria. Não havia como viver na Sierra se não quisesse sofrer carência de comida, balas, munições, uniformes, botas, água e todos os materiais necessários para a existência do revolucionário. O sustento do rebelde pelo movimento, que não possuía uma grande estrutura para fornecê-lo, trazia condições de subsistência precárias. Os primeiros dias após o desembarque do Granma foram, com certeza, os momentos de maiores dificuldades do guerrilheiro. Foram, assim, narrados nos diários e memórias como verdadeiras epopéias onde o combatente enfrentava a fome e o perigo. No dia 02 de dezembro de 1956, no dia em que os guerrilheiros desembarcaram em terra firme, Raúl Castro escreveu em seu diário:

Avançamos por um pântano no meio de muito mato, mas de poucas árvores. A toda hora tínhamos que nos atirar ao chão. Nesse dia não tínhamos comido comida nenhuma. Estivemos dando várias voltas, completamente perdidos, até que, valendo-nos das orientações do primeiro camponês, pudemos nos orientar um pouco. Essa noite dormimos todos extenuados e sem comer. Faina imensa a desse 2 de dezembro. (GUEVARA & CASTRO, 1997, p. 72).

Segundo o diário de Raúl Castro, a última comida dos guerrilheiros foi no dia 25 de novembro, dia em que saíram do México. Voltaram a comer somente no dia 03 quando encontraram uma cabana de camponês que lhes deram o que comer.

Ao final de um caminho de uma região madereira e de carvão, encontramos a cabana onde viviam um jovem camponês [José Rafael Pérez Veja], sua mulher e dois filhos, de 9 e 12 anos. Distribuímos os extenuados esquadrões em um plano de luta, todo mundo completamente extenuado, seria por volta das 11 da manhã. Mataram galinhas e um pedacinho de carne de galinha e yuca em abundância e mel de sobremesa foram nossa primeira refeição quando desde o dia 25 de novembro de madrugada, quando saímos do México. (idem, ibidem).

Nestes dias, os guerrilheiros comiam a cana que encontravam. (idem, p. 75). Nos chama a atenção que as poucas provisões que encontravam ou 134

compravam deveriam que repartir. No diário de Raúl no dia 04 de dezembro ele informa:

(...) cada um de nós recebeu meia lingüiça e uma bolacha. Na esquadra do pelotão onde eu estava também comemos uma salsicha em lata e um golinho de leite condensado por cabeça. (idem, p. 76).

Dois dias depois, quando estava perdido apenas com mais cinco companheiros, informa que teriam que dividir uma batata entre todos.

René, o Magro [René Rodriguez], do seu esconderijo, me pede uma guimba de cigarro; a única coisa que nos resta é uma batata crua que hoje será a refeição dos seis. Já não nos resta nem água. (idem, p. 83).

Entretanto, esta condição precária não se resumiu aos dias iniciais da chegada do guerrilheiro. Era, pelo contrário, uma condição comum da luta cubana. A incerteza da comida era a certeza do guerrilheiro. Che dizia que “O guerrillero come quando pode e tudo o que pode.” (GUEVARA, 1980, p.45). Traduzindo a visão resistente do guerrilheiro, o comandante argentino dizia: “As vezes fabulosas rações desaparecen digeridas pelo combatente, e outras passa dois ou três dias de jejum, sem diminuir sua capacidade de trabalho”. (idem, ibidem). Não é a toa que os diários dos rebeldes estão costumeiramente acompanhados de uma frase: “Nada de importante. Estou com uma fome danada.” (VECINO ALEGRET, 2003, p.42) Muitas vezes, o esforço de buscar comida ainda era frustrado pela inexistência da mesma nas vendas da Sierra .

Eu saio com Maracaibo e Eugenio González para ver se compro um porco e consigo alguns legumes. Descemos até a charqueada e depois subimos até a tendinha da Maestra, sem arrumar absolutamente nada após caminhar seis ou sete quilômetros. (idem, p.65)

Muito raramente, o guerrilheiro conseguia um verdadeiro banquete. Estes dias de abundância eram recebidos com grande satisfação. Eram dias raros, pois, na Sierra, um revolucionário nunca sabia quando poderia comer novamente.

Estes são dias de abundância já que o acampamento está localizado na casa do Mulato Casas e de sua esposa Panchita, os quais nos servem esplêndidos pratos, em que não faltam bifes,carne assada, tostones, congrí, e outras iguarias (...) (idem, p.38).

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A falta de comida gerava diversas conseqüências para o rebelde. As diarréias atormentavam as suas noites. “Parece que, pelo fato de que já não estamos habituados a comer com regularidade, temos umas diarréias tão brabas que nem conseguimos dormir.” (idem, p. 44). Os problemas de estômago se generalizavam no interior das tropas rebeldes.

Em nossa tropa todos estamos com problema de estômago. Também há diversos casos de impaludismo. Pela noite vomito muito e me sinto doente. Mesmo assim, fico de sentinela de onze às doze. (idem, p.64).

A magreza e a sensação de fraqueza seguiam aquele que precisava lutar com coragem e força. O guerrilheiro dizia: “Já estou magro e me sinto fraco. Tenho de fazer mais um furo no cinto.” (idem, ibidem). E o corpo do guerrilheiro se moldava a partir das suas condições de existência. Na Sierra, com a alimentação precária, e a caminhada intensa, os guerrilheiros precisavam de cuidados com a saúde. Os problemas de saúde enfrentados vinham desde calos insuportáveis no pé até ferimentos mortais feitos por bombas e armas. No início da guerra na Sierra Maestra , o médico era a figura que acompanhava o exército em suas andanças. Com os recursos médicos ineficazes, quase não havia muito a ser feito. O guerrilheiro precisava ter uma saúde de ferro. Viver na selva exigia sofrimento, tanto “privaciones de alimento, de água, de vestido y techo a que se vê sometido em todo momento”. (GUEVARA, 2001, p. 76) quanto também enfermidades e feridas, que

(…) muchas veces deben curarse sin mayor intervención del cirujano, con la sola acción de la naturaleza; y debe serlo así, porque la mayoría de la veces el individuo que abandona la guerrillera, para ir a curarse algún mal o alguna herida, es asesinado por el enemigo. (idem, ibidem).

Com o desenvolver da luta, foram improvisados hospitais fixos e a guerrilha contava com adesão de vários médicos que se dedicavam ao atendimento dos camponeses e dos rebeldes. Esses hospitais eram geralmente improvisados e não possuíam nem uma estrutura física adequada e nem assepsia necessária. No relato feito pelo guerrilheiro Robertico sobre a cirurgia realizada no rebelde Geonel Rodríguez, a falta 136

de assepsia do lugar e a falta de recursos médicos ficam claras. Os insetos entravam no corpo do paciente, uma transfusão de sangue necessária se tornava impossível. Geonel Rodríguez se tornava um herói da revolução.

Os médicos colocaram Geonel na mesa. O doutor Ordaz lhe aplicou a anestesia e o doutor Trillo lhe abriu a barriga. Essa não era uma operação comum: estava sendo realizada no meio do mato, quase ao ar livre, ainda por cima de noite e com a luz bruxuleante de duas lanaternas. Como a luz era muito pouca, foi preciso aproximar as lanternas do local de operação e isso atraiu uma porção de insetos. Parecíamos estar rodeados de centenas ou milhares de bichos. Tratávamos de afasta-los, mas era inútil. Muitos deles se precipitavam em direção ao buraco aberto pela cirurgia, onde palpitavam as próprias vísceras do ferido. De fato, todo aquele tempo que passamos lutando para salvar a vida de um companheiro pareceu interminável par nós; somente vivendo uma experiência desse tipo alguém pode se dar conta de quão imensurável o tempo parece ser em momentos iguais a esse. De repente o cirurgião disse que era necessário fazer uma transfusão urgente. Todos se entreolharam: ali não havia sangue, nem plasma disponível. Sofríamos por causa daquele imprevisto, até que eu me lembrei que eu sou doador universal e me ofereci para uma transfusão direta. Mas nem para isso havia recursos. Faustino Pérez arrumou uma seringa e tratou de me tirar sangue dos braços, mas depois de vários furos não conseguimos doar nem ao menos uma gota ao ferido. Subitamente, o doutor Trillo interrompeu o serviço. Geonel está morto. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 78).

Além da comida e da saúde, o rebelde necessitava de água. A água era toda conseguida nos rios e cipós da Sierra. Entretanto, as longas marchas e os caminhos que nem sempre a encontravam rapidamente exigiam que os guerrilheiros poupassem as suas moringas. O guerrilheiro Fernando Vecino Alegret (2003, p. 40), escreveu em seu diário logo nos seus primeiros dias em que chegou na Sierra :

O coroamento do dia é a descida de La Botella durante quase quatro horas, com uma sede que nos abrasa a garganta. Recebemos assim outra inolvidável lição em nosso aprendizado de guerrilheiro: não ouvimos com atenção as orientações de nosso chefe e não soubemos economizar a água.

O banho não podia ser tão freqüente, pois os rios se tornavam lugares perigosos e visados para uma emboscada. Os soldados assim, em determinadas situações, tomavam banho com a arma nas mãos. O uniforme do guerrilheiro era uma peça rara. Cada guerrilheiro tinha apenas um uniforme, quando tinha. Esse uniforme poderia ser curto ou largo demais para o guerrilheiro que o usava, porque 137

não era feito sob medida e porque o rebelde se apropriava, muitas vezes, do uniforme de outrem.

A partir deste dia ganho uniforme, pois Jesús Padilla, que desce até Santiago numa missão para Daniel, resolve me dar o seu; embora um pouco curto, acabava servindo. (idem, p. 49).

Essa carência de uniforme fazia com que o guerrilheiro precisasse, ao lavar o uniforme, secá-lo no próprio corpo.

De manhã bem cedinho vamos lavar nosso uniforme no riacho. Como só temos uma muda de roupa, é preciso tirar todas as peças, lava-las, e estende-las sobre uma pedra – com o fuzil sempre à mão -, sem nenhuma roupa ou em trajes menores, esperando que sequem em cima da gente ou por sobre as pedras. No final, porém, sempre vestimos a roupa ainda úmida e ela só termina de secar com o calor do corpo. (idem, p. 67).

A roupa molhada junto ao frio de algumas noites da Sierra aterrorizava muitas vezes o guerrilheiro. “(...) voltamos ao acampamento de Alzugaray, onde faz um frio terrível. Além disso, tenho a roupa toatalmente molhada.” (idem, ibidem). A bota do guerrilheiro era um dos elementos necessários para a sua existência, uma vez que a vida normal do guerrilheiro não era o combate, mas caminhada. “Su vida normal es la caminata,” dizia Che. (GUEVARA, 2001, p. 79). E é justamente por esse motivo, de fazer da caminhada o seu cotidiano, que sua bota se desgastava rapidamente. Os caminhos da Sierra não contribuíam para um maior aproveitamento do calçado. Eram costumeiramente escorregadios com a chuva.

Eu levo a comida para Faustino e o resto dos companheiros por um caminho bastante difícil, pois a ladeira está muito escorregadia e a toda hora eu caio. Tenho de fazer malabarismos para não perder a comida, o que teria causado enorme desgosto aos companheiros, os quais se encontram em uma cabana afastada que nós chamamos de ‘a casa das pulgas’ – estas eram, em grande número – seus antigos moradores. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 66).

Muitas vezes também os caminhos eram cheios de lama e tornavam a marcha difícil. “Saímos em campo e chegamos ao nosso destino por um caminho onde a lama bate nos tornozelos, por isso a marcha é lenta e incômoda.” (idem, p. 65). As botas iam se destruindo com o caminho podre da Sierra. “O caminho está ‘podre’, como dizem os camponeses. Acho que brevemente eu não terei mais botas, 138

pois elas estão todas arrebentadas.” (idem, p. 66). Com pouco recurso, o rebelde precisava caminhar com botas rasgadas, ou, muitas vezes, ficavam descalços.

Faz três dias que estou quase descalço e crei que neste momento é impossível conseguir outras botas para mim. As do soldado morto foram entregues a um guerrilheiro que está descalço (idem, ibidem).

A arma e sua munição eram os instrumentos de luta necessários, porém, também escassos. O número de combatentes foi maior, durante praticamente todo o período de luta, do que o número de armas. Por isso, Fidel dizia em carta a Frank País, dirigente nacional do Movimento 26 de julho, que a Sierra precisava mais de armas do que de homens.

Make a point of telling them that they need not think about sending a huge of men; twenty, if they’re good, are more than enough. There are plenty of men here; what we need are weapons. (FRANQUI, 1980, p. 194).

Essa escassez de arma contribuía para a existência de um culto à posse da arma. A arma se tornava a honra de um guerrilheiro. Obter sua própria arma era se tornar verdadeiramente um rebelde.

De tarde Daniel me entrega a pistola 45 de um companheiro que regressa pa Santiago. Esta é minha primeira arma, já que agora eu só possuira uma faca.Sinto a emoção de ter o primeiro ferro nas mãos: já sou um rebelde! (VECINO ALEGRET, 2003, p.44).

As armas, além de escassas, se encontravam muitas vezes em condições precárias de uso.

Estou diparando oitenta e cinco tiros, mas passo um trabalho danado com a minha metralhadora Sten, que só possui um pente ou carregador; a peça é tão dura que ao recarregá-lo eu machuco os dedos. (idem, p. 67).

A escassez da munição gerava a necessidade de economizá-la. “Estamos lutando a umas duas horas, economizando ao máximo a munição, embora se escute o tempo todo um barulho infernal (...)”. (idem, ibidem). O guerrilheiro precisava também de um lugar para dormir. Desde o ataque ao Moncada, o movimento conhecia bem a importância e se escolher um lugar adequado para descansar. Após subir a Sierra, quando fracassado o ataque ao quartel, Fidel e outros rebeldes resolveram pernoitar em uma cabana. Foi nela que os militares de Batista o prenderam. 139

Respaldados por esta experiência, os guerrilheiros passaram quase dois anos dormindo em redes amarradas em árvores ou ainda dormindo no chão. Ainda que chovesse, a opção pela segurança e continuidade da guerrilha fazia do soldado rebelde um ser superior ao tempo. (SZULC, 1986, p. 316). Quando os rebeldes passaram a controlar determinados territórios, voltaram a dormir em casinholas. No interior delas, alguns rebeldes dormiam em redes ou mesmo no chão. Outros dormiam do lado de fora. Vecino Alegret (2003, p. 38) descreveu uma destas casinholas.

Passamos a manhã inteira preparando o acampamento em uma pequena casa que Fidel reserva para nosso grupo. A habitação possui dois cômodos: um de 3x 4 m e outro de 2x 4 m, aproximadamente; o teto é de zinco, as paredes de madeira rústica cortada em tábuas e o piso de terra. Está bem na trilha que sobe até o quartel - general, a uns vinte e cinco metros no interior da mata. A maioria dos homens dorme do lado de fora em redes; outros lá dentro, em redes ou no chão.

No interior destas casinholas, a umidade, o frio e os ratos costumavam incomodar. “Deitado no chão, onde os ratos que passam por cima de mim, assim como o frio e a umidade, não me deixam dormir.” (idem, ibidem). A falta de colchas para cobrir fazia o frio eliminar o sono. “Nessa noite, o frio quase não nos deixa dormir, porque não temos com que nos cobrir.” (idem, ibidem). Vecino Alegret conta que se cobriu com um cobertor cheio de marcas de sangue de um soldado morto em batalha.

Me deito no chão a poucos passos da trincheira, aquecido por um cobertor recolhido na zona de combate, cheio de marcas de sangue. Durmo muito mal. Sem dúvida foi um dia bastante agitado. (idem, p. 57).

Muitas destas casinholas eram tomadas pelas pulgas. “(...) aqui as pulgas representam um novo inimigo que não pára de nos atacar.” (idem, ibidem). Mas, ainda que as casinholas representassem um teto para o guerrilheiro, em determinadas situações de prontidão, eles dormiam ao ar livre.

Voltamos a dormir perto do posto. Já é de noite, e a panela de comida que carrego para os companheiros me dá um enorme trabalho. Depois de amarrar nossas redes nas árvores, finalmente deitamos com os pés cheios de lama, já que o caminho é um atoleiro só. (idem, ibidem).

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Nestas situações, muitas vezes o guerrilheiro dormia vestido com as armas nas mãos para que, se necessário, rapidamente estivesse em posição de combate “Como dormimos completamente vestidos e com armas à mão, bastam dois movimentos e já estamos em posição de defesa.” (idem, ibidem). Outras vezes, o guerrilheiro precisava dormir dentro da trincheira. “De oito à meia – noite ficamos de guarda, o tempo todo de pé e cheios de expectativa (...). Até as quatro da madrugada tiro um cochilo reclinado em um canto da trincheira.” (idem, p.76). O cotidiano do rebelde era assim marcado por condições de vida opostos ao luxo e à boa vida da classe média e alta dos centros urbanos. Para a alma revolucionária cubana, a vida miserável da Sierra marcava o caráter de abnegação e heroísmo dos rebeldes. De alguma forma havia um vínculo mágico entre o sofrimento e o desinteresse pessoal, o sacrifício e um estado nobre de homem desinteressado por dinheiro e poder. O sacrifício era a prova de sua honestidade moral, de sua pureza revolucionária e do tamanho de sua vontade revolucionária. Nas cidades, o elogio ao sacrifício também era bastante marcado. Mas, ali não era marcado pelo abandono do luxo e da boa vida. Mas, pelo risco, pelo perigo, pelo enfrentamento direto contra as forças repressivas do regime. Um relato de Enrique Oltski, líder do movimento nas cidades, sobre uma conversa que teve com Che, comandante guerrilheiro da Sierra, demonstra bem este debate entre guerrilheiros da Sierra e combatentes clandestinos da cidade. Foi em 1958, quando Oltuski subiu à Sierra para encontrar com Che e ali passaria a noite. O comandante guerrilheiro, ironizando com a condição dos combatentes da cidade e se vangloriando das condições precárias da Sierra, afirmou:

I’m sorry, but tonight you will not be able to sleep in your bed with whie sheets. Here you will have to sleep in a hammock, under the rain and the mosquitoes. (OLTUSKI, 2002, p. XIX).

Oltuski (2002) respondeu também ironizando a condição de poucos combates e pouco perigo na Sierra .

Yes, that is true, (…) but at least I will sleep here, because in my bed at home with its white sheets, the danger that follows us every minute is so great that I can never sleep well. Here at least I feel safe.

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De fato, por mais que se produziu uma visão mítica da guerra desenvolvida desde a Sierra Maestra, nos parece claro que, com exceção de alguns momentos específicos, como os dias após o desembarque do Granma, e aqueles dias de combate, o guerrilheiro da Sierra se encontrava protegido pela geografia da montanha e pelo tipo de guerra que ali travava. Mesmo os combates que foram travados nos dois anos de luta na Sierra foram muito poucos. Com exceção do Alegría del Pío, que Che firmava como sendo a única derrota do Exército Rebelde, geralmente, os confrontos eram iniciados por ataques surpresa que os guerrilheiros aplicavam em acampamentos do Exército oficial, que poucas vezes podia responder à altura. Na maior parte do tempo, reinava sobre a Sierra uma calma profunda. Carlos Franqui (1981), que lutou tanto nas cidades quanto na Sierra, afirmava que os combatentes da cidade tomavam a Sierra como “férias revolucionárias.”

Em Santiago, milhares de jovens haviam sido torturados e assassinados. Os rebeldes clandestinos combateram Batista quase sem armas, arriscando suas vidas todos os dias. Eles haviam perdido muito mais combatentes do que nós, na Sierra. Lá possuíamos armas e também tínhamos a proteção da natureza. Aqueles anos de clandestinidade na cidade constituíram um mundo de crime e de horror, uma luta anônima que arrebatou os cubanos à resistência contra Batista. A Sierra nos dava uma sensação de liberdade e vitória que ninguém poderia sentir lá embaixo, na cidade. Lá em cima era como férias revolucionárias. (FRANQUI, 1981, p. 24).

Reinaldo Arenas (1994), que tinha apenas 15 anos quando ingressou no Exército Rebelde na Sierra de Gibara, afirma que os combates guerrilheiros foram mais “míticos do que reais”:

Nunca participei de nenhum combate; nem de longe pude ver um combate durante todo o tempo em que permaneci com os rebeldes; esses combates foram mais míticos do que reais. Foi uma guerra de palavras. A imprensa e quase todo o povo diziam que o campo estava repleto de milhares de rebeldes armados até os dentes. Era mentira; as poucas armas que tinham eram as que haviam sido roubadas dos casquitos – os soldados de Batista – ou então velhas espingardas, amarradas com arame, fabricadas no século passado e utilizadas pelos mambises , os soldados cubanos da guerra de independência. (idem, p. 68).

De toda forma, a narrativa revolucionária, do campo ou da cidade, é a narrativa do homem valente que enfrenta os perigos e os riscos de uma guerra contra um Exército bem superior militarmente. Onde estivesse, o revolucionário era 142

aquele que era capaz de abandonar o lar, o luxo, e os prazeres do corpo pela honra de continuar a luta iniciada por José Martí.

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Capítulo 04

O CORPO REVOLUCIONÁRIO

4.1. O Corpo Dócil

Nas memórias de exílio, Juan Almeida fala de um advogado de 36 anos, de corpo gordo, que se excedia nos gastos e na alimentação. “Alimentar esse corpo não é fácil e ele faz pouco ou nenhum exercício.” (BOSQUE, 1989a, p. 104). O corpo gordo e indisciplinado está vinculado nos discursos revolucionários a uma postura de excessos, luxo e prazeres. Era um corpo vinculado aos valores do mundo profano. O sacrifício do emprego, da comunidade familiar, dos prazeres do corpo e a constituição de um modo de vida revolucionário exigiam, sobretudo, a superação do antigo corpo e a constituição de um novo. Juan Almeida se refere ao revolucionário Bedia, que na prisão em Ilha de Pinos praticava constantemente exercícios de ioga. Vemos como descreve sua impressão deste companheiro.

Parece estar parado em contemplação, e é tamanha sua concentração que não move nenhum músculo. ___ O que conseguirá com essa concentração? – me pergunto e também a ele. ___ É para meditação – responde ___ Interessante, muito interessante (...) O que é admirável é que é preciso ter muita, mas muita força de vontade para os exercícios e a concentração. Este é um companheiro admirável, disciplinado e correto. (idem, 1989, p. 71).

Surge neste trecho um ideal de corpo, o corpo treinado, obediente, dócil. O homem revolucionário disciplinado e correto é aquele capaz de ter um controle minucioso sobre todos os músculos do corpo. Este corpo dócil ideal é construído a partir de um conjunto de estratégias disciplinares que envolvem uma prática física extenuante e uma organização rígida e disciplinar do espaço e do tempo do revolucionário. 144

Segundo Che, era necessário um treinamento físico minucioso que levasse o corpo aos limites do esgotamento.

(...) em qualquer situação que se encontrem, a base do exército guerrilheiro é a marcha e não poderá haver nem lerdos nem cansados; a preparação eficiente se entende, pois, como marchas extenuantes de dia e noite, um e outro dia, aumentando-as paulatinamente e levando-as sempre aos limites do esgotamento, criando também a emulação para a velocidade e a resistência (...). (GUEVARA, 1980, p. 100).

Existia, assim, uma tecnologia do corpo que visava eliminar a lentidão e o cansaço fácil, criando um corpo veloz e resistente. Inicialmente, o treinamento no México exigia moldar o corpo para se acomodar à altitude elevada. Caminhar, remar, correr, subir alturas era a forma de alargar os pulmões e tornar a respiração fácil.

Em seguida começamos as caminhadas pelo bosque de Chapultepec; uma hora depois alugamos um bote por meia hora ou pela hora completa e remamos no lago. A adaptação aqui não foi fácil, mas pouco a pouco nos acostumamos à altitude de mais de dois mil metros acima do nível do mar em que se encontra esta cidade. Nos primeiros momentos era difícil respirar, os lábios ficavam ressecados por falta de umidade e muitos sangravam pelo nariz. Depois, quando começamos as longas caminhadas, as corridas, as subidas a alturas, fomos nos sentindo melhor. Agora respiramos com mais facilidade, temos mais ar, já nos adaptamos. (BOSQUE, 1989a, p. 88).

Além das caminhadas diárias, os rebeldes treinavam a defesa pessoal fornecida pelo rebelde Vanegas em um ginásio, na Rua Bucarelli nº 118. (idem, p. 90), e três vezes por semana faziam treinamento de tiros no campo Los Gamitos . (idem, p. 112).

Essas saídas do apartamento para o campo são às seis da manhã, ainda às escuras. De noite, regularmente duas ou três vezes por semana, recebemos a visita do ex-coronel espanhol Bayo, para fazer-nos a conferência sobre a guerra de guerrilhas e outras matérias. (idem, p. 116).

O treinamento mais pesado se dava no rancho Santa Rosa . Ali os rebeldes faziam “caminhadas de cinco a seis quilômetros, com carga pesada, mais fuzil, 250 cartuchos e o cantil.”. Depois, as caminhadas aumentavam para “oito ou nove quilômetros”, durando o dia inteiro e a noite inteira, “até as seis da manhã”. Marchar, 145

correr, se arrastar, fazer travessias de rochas, cair com fuzil, tudo isto fazia parte de um treinamento de resistência.

Marchas de horas, em silêncio, sem fumar, em condições difíceis, travessias de rochas com cordas, saltos, arrasto, caídas ao chão com fuzil depois de vir correndo, noites ao relento, caminhadas em noite sem lua, quando vamos agarrados um ao outro por uma corda. (idem, p. 120).

Desta forma, os jovens iam perdendo peso, ganhando resistência, velocidade, e se elevando enquanto uma máquina capaz de suportar os sacrifícios. Na Sierra, a vida militar exigia de forma ainda mais profunda a constituição de um corpo infatigável , posto que a vida normal do guerrilheiro era a caminhada . (GUEVARA, 1980, p. 44). Vecino Alegret (2003, p. 39), nas primeiras páginas do seu diário de guerrilha, relata o modo como o corpo adaptado à vida urbana passava pelos primeiros choques fornecidos pelas caminhadas extenuantes da Sierra:

(...) logo começavam a manifestar-se os sintomas do choque com o novo meio, coisa comum no homem habituado à vida urbana – primeira prova de fogo do candidato a guerrilheiro -, pois cada vez se torna mais difícil levantar as pernas, o que acontece com um bom número de integrantes do grupo.

Che também fala da falta de disciplina e da acomodação às dificuldades maiores do grupo de jovens da cidade que o Exército Rebelde recebeu como reforço em 1957.

Unos cincuenta hombres era el refuerzo, de los cuales solamente una treintena estaba armada; venían dos fusiles ametralladora, un Madzen y un Johnson. En los pocos meses vividos en la Sierra, nos habíamos convertido en veteranos y veíamos en la nueva tropa todos los defectos que tenía la original del Granma: falta de disciplina, falta de acomodo a las dificultades mayores, falta de decisión, incapacidad de adaptarse todavía a esta vida. (GUEVARA, 2002a).

As marchas se somavam à alimentação restrita e às enfermidades constantes na constituição do corpo resistente. Assim, o corpo deveria ser levado ao limite do seu sofrimento para ser capaz de suportar o modo de vida revolucionário.

(O soldado guerrilheiro) deve ser sofrido até um grau extremo, não só para revelar as privações de alimentos, de água, de vestimentas e abrigo a que se vê submetido a todo momento senão também suportar as enfermidades e as feridas que muitas vezes devem ser 146

curadas sem intervenção de um médico, somente com a ação da natureza (...). (idem, 1980, p. 43).

O camponês da Sierra aparece como um protótipo deste corpo ideal resistente. Segundo Almeida, a vida dura do guajiro da Sierra cria também um homem duro:

El hombre aquí en la Sierra es duro como ella, propio para este medio. Trabaja de sol a sol, protegiendo la cabeça con un sombrero de guano. Su piel tiene el color por la faena diaria a la intemperie. En la tarde, en su taburete recostado a la pared de yagua o de tabla de palma del bohío, reposa la espalda por la jornada del día, de chapear, desmontar, limpiar, guatear, pastorear. Mira a lo lejos por arriba de las lomas y el monte. Rasga las cuerdas del laúd o la guitarra para sacar el punto guajiro o las tonadas campesinas, mientras la mujer teje con guaniquique una cesta, o prepara con saco de yute un morral donde mañana echará el grano dorado o rojo del café maduro. (BOSQUE, 1995, p. 83).

É o corpo resistente do guajiro, junto ao seu conhecimento da Sierra, que o torna um grande revolucionário.

Con los guajiros que engrosan nuestras filas, nos multiplicamos; ellos son fuertes, resistentes, combativos, aguerridos, conocedores del terreno, hábiles, audaces, por eso algunos ascienden pronto a grados superiores en el mando del Ejército Rebelde. (idem, p. 85).

Che também afirmava que era o conhecimento do local e o corpo treinado para as vicissitudes da região que faziam do habitante da Sierra um guerrilheiro preferencial. (GUEVARA, 1980, p. 41). Entretanto, para além da marcha e dos treinamentos extenuantes, havia uma tecnologia disciplinar voltada para a organização do tempo e do espaço. A organização do movimento revolucionário exigia uma distribuição espacial dos revolucionários. A marcha, por exemplo, ocorria em fila organizada da vanguarda à retaguarda, determinando a distância entre os revolucionários e a sincronia que deveriam ter.

(...) a vanguarda irá uns cem ou duzentos metros ou mais, adiante, segundo as características do terreno. Em lugares que possam prestar-se a confusões quanto à rota, deixar-se-á um homem em cada desvio esperando a coluna de trás, e assim sucessivamente, até que chegue o último da retaguarda. A retaguarda também irá um pouco separada do resto da coluna, vigiando os caminhos posteriores, e tratando de apagar o mais possível os vestígios do passo da coluna, vigiando os caminhos posteriores, e tratando de apagar o mais possível os vestígios do passo da coluna, 147

constantemente tem que haver um grupo que vigia o citado caminho, até que passe o último homem. É mais prático que estes grupos se utilizem de um só pelotão especial, ainda que possam ser de cada pelotão, com a obrigação de entregar o posto aos membros do seguinte e reintegrar-se em seu lugar, assim sucessivamente até que passe toda a tropa. A marcha deve ser não somente uniforme e em ordem estabelecida, que deve ser mantida sempre, de modo que se saiba que o pelotão nº 1 é a vanguarda, o pelotão nº 2 o que o segue, no meio o pelotão nº 3 que pode ser o Comando; depois o nº 4 e na retaguarda o pelotão nº 5, ou o número que constitua a coluna, mas sempre conservando a ordem. (idem, p. 54).

Sujeito à classificação do espaço, o corpo revolucionário devia saber se colocar, compreender qual é o seu lugar e agir de forma orquestrada com os seus companheiros. Esta disciplinarização espacial dos rebeldes passava pela divisão dos revolucionários em pequenos grupos para agir em diferentes terrenos. Segundo Che, em diversas condições, o grupo guerrilheiro “não deve ser superior a dez ou quinze” soldados.

É de enorme importância considerar sempre as limitações de número quanto a integração de um só corpo de combate; dez, doze, quinze homens podem se esconder em qualquer lugar e ao mesmo tempo opor ao inimigo uma resistência poderosa e apoiar-se mutuamente; quatro ou cinco talvez seja um número muito pequeno, mas quando o número passa de dez as possibilidades de que o inimigo os localize em seu acampamento de origem ou em uma marcha, são muito maiores. (idem, 1980, p. 32).

Nas cidades, as ações de sabotagem exigiam um número menor ainda. Grande parte das ações era levada a cabo por apenas dois ou três combatentes.

É importante a limitação do número, porque a guerrilha suburbana deve ser considerada como situada em terrenos excepcionalmente desfavoráveis, onde a vigilância do inimigo será muito maior e as possibilidades de represálias aumentam enormemente assim como as de uma delação. (idem, p. 36).

Mas, além desta classificação do espaço, o tipo de vida na Sierra exigia um rebelde reservado, capaz de se manter constantemente em silêncio.

Durante a marcha deve existir o mais absoluto silêncio na coluna. As ordens devem ser passadas por gestos ou sussurros, e vai correndo de boca em boca até chegar ao último. (idem, p. 53).

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O fechar a boca, manter uma postura de reserva, ocorria não só no silêncio das marchas, mas, sobretudo na capacidade de não comentar com o outro sobre as informações que recebeu.

Tudo o que diga ou se faça diante dele deve permanecer reservado estritamente para seu próprio conhecimento, nunca permitir-se uma só palavra a mais, ainda que com os próprios camaradas de luta. (idem, p. 42).

Nas cidades provavelmente esta atitude de discrição era ainda mais necessária. Ali o inimigo se encontrava por toda parte. Como afirmou Aleida March, “o enfrentamento na cidade se desenvolvia em condições muito difíceis, pois não se sabia com certeza quem podia ser delator”. (MARCH, 2009, p. 50). Nos chama a atenção que a atitude de discrição era, para Che, o ponto fraco do camponês.

Nunca deve confiar-se demasiado na discreção camponesa, porque há uma lógica tendência de falar e a comentar os fatos com outros pessoas de confiança e da família (...). (GUEVARA, 1980, p. 60).

O cuidado com a arma ocupava um papel central no modo de vida guerrilheiro. Frank País é constantemente lembrado por uma atitude, aparentemente sem relevância, que realizou quando esteve na Sierra Maestra. Haydée Santamaría é uma das que conta esta história:

Recuerdo que cuando nos encontramos con Fidel en la Sierra, mientras todos estábamos hablando, conversando – toda la noche fue poça para contarnos todas las cosas -, Frank empezó a revisar las armas de los compañeros, las pocas armas que habían quedado del Granma . Las vio sucias y empezó a limipiarlas una a una. Y mientras nosotros conversábamos, él oía. Estaba ahí a nuestro lado, pero limpia que limpia, limpia que limpia… Creo que limpió hasta la del Che. (SANTAMARÍA, 2008, p. 36).

Che também relembrou este fato em seu Pasajes de la Guerra Revolucionaria , se referindo à atitude de Frank como uma callada lección .

(Frank) Nos dio una callada lección de orden y disciplina, limpiando nuestros fusiles sucios, contando las balas y ordenándolas para que no se perdieran. Desde ese día, me hice el propósito de cuidar más mi arma (y lo cumplí, aunque no puedo decir que fuera un modelo de meticulosidad tampoco). (GUEVARA, 2002a, s/p).

A atitude de País é, assim, uma atitude de profunda disciplina. A pequena atitude de cuidado com a arma expressava o exemplo de homem treinado e 149

disciplinado que a luta revolucionária criava e exigia. Che afirmava que o guerrilheiro deveria manter o fuzil

(...) em constante estado de limpeza, bem lubrificado, com o cano reluzente, sendo conveniente que o chefe de cada grupo aplique algum castigo aos que não tenham nestas condições seus armamentos. (idem, 1980, p. 44).

A falta de munição também ocupava um papel fundamental na constituição da disciplina guerrilheira. O guerrilheiro era treinado para não gastar munições em um combate. “O tiro é o aprendizado fundamental. O guerrilheiro deve ser um homem de muito preparo neste ponto, tratando de gastar a menor quantidade possível de munição.” (idem, p. 92). Este treinamento era tão exigente que era possível prever quando os tiros saíam do inimigo e quando saíam do lado revolucionário.

(...) de um lado um tiroteio violento, nutrido, do soldado de linha – com munição abundante e acostumado a isto – e do outro, o metódico, esporádico, do guerrilheiro que conhece o valor de cada bala e se dispõe a gastá-la com um profundo sentido de economia, não disparando nunca um tiro mais do que o necessário. (idem, p. 61).

Os rebeldes eram tão treinados para pouparem munição, que Che se lembra de um combate onde um guerrilheiro morto deixou a arma disparando, o que confundiu os revolucionários. (idem, 2002a). A atitude de poupar munição, incluía uma profunda atitude de disciplinarização da relação dos guerrilheiros com suas balas. “(...) não molhá-las, verificá-las sempre, contá-las, uma a uma para que não se percam, é a ordem.” (idem, 1980, p. 44). O treinamento de tiros incluía uma racionalização da técnica.

Começa fazendo o que se chama tiro a seco. Que consiste de uma armação de madeira, onde o rifle se assenta firmemente. Os recrutas apontam, sem mover o fuzil, para um alvo situado em uma zona determinada, que se vai movendo de um para outro lado, sobre um fundo que permanece firme. Se os três tiros são dados em um só ponto é excelente. Quando existe um pouco mais de possibilidades, pode-se começar as práticas de tiro com pequenos rifles calibre 22, de muita utilidade nestes casos. Em circunstâncias especiais, em que sobre munição ou haja muita necessidade de preparar alguns soldados, se lhes dará a oportunidade de fazer alguns disparos com balas. (idem, 1980, p. 92).

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A alimentação passava, também, por um processo de racionalização. A comida era distribuída equitativamente entre os soldados pelos chefes guerrilheiros. A distribuição das roupas seguia um padrão que priorizava os rebeldes mais necessitados, os que tinham mais tempo de luta e os que tinham mais méritos, isto é, os que demonstravam maior engajamento, sacrifício e abnegação. (idem, p. 51). Além da disciplinarização do espaço, havia uma disciplinarização do tempo. A vida do revolucionário era organizada a partir de uma estrutura rígida de horários. Na prisão de Ilha de Pinos, talvez o maior exemplo de disciplina revolucionária seja a organização dos estudos entre os rebeldes. Existiam disciplinas e horários para as aulas. Em uma carta, de 22 de dezembro de 1953, Fidel explicava a rotina diária revolucionária voltada quase que exclusivamente para o estudo:

(...) às 5h 30 o pequeno almoço, às 8h 00 aulas até às 10 h 30; às 10 h 45 almoço; às 14 h 00 aulas de novo até as 15 h 00; recreio até às 16 h 00, `as 16 h 45 jantar; das 19 h 00 às 20 h 15 aulas de economia política e leituras em comum; às 21 h 30 silêncio. Todas as manhãs de 9 h 30 às 10 h 00 explico num dia filosofia, noutro dia, história universal; história de Cuba, gramática, aritmética, geografia e inglês, são explicadas por outros companheiros. Pela noite corresponde-me a economia política e duas vezes a semana da oratória, quer dizer, uma coisa parecida. Método: em vez de aulas de economia política, leio-lhes durante meia hora ou a descrição duma batalha, como a do assalto a Hugomont pela infantaria de Napoleão Bonaparte, ou um tema ideológico, a alegação de Martí à República espanhola, ou coisas assim desse gênero; imediatamente, diferentes camaradas escolhidos ao acaso ou voluntários têm que fazer uma dissertação durante três minutos sobre o tema, em forma de concurso, com prêmios, segundo as opiniões dos juízes escolhidos. Todas as datas patrióticas: as veladas, conferências sobre o tema. Todos os dias 26, festas. Todos os dias 27, dias de luto, actos de comemoração com reflexões e dissertações sobre o tema. No dia de luto como é natural, não há recreio nem nenhuma diversão. Os dias acadêmicos vão desde segunda-feira até à metade do sábado. (MENCÍA, 1982, p. 16).

No exílio no México, havia uma distribuição rígida do tempo e uma padronização do tipo de comida.

Comida pesada, uma vez por dia; à tarde, café com leite, biscoito ou pão, igual ao desjejum. Aqui não é bom comer de noite, devido à altitude; além disso, é preciso economizar. (BOSQUE, 1989a, p. 85).

Na Sierra Maestra, mesmo em tempos tranqüilos, era obrigatória a atitude dos guerrilheiros deitarem e acordarem em horas fixas e determinadas pelo comando do 151

grupo. (GUEVARA, 1980, p. 53). Essa disciplinarização do horário objetivava-se no corpo do revolucionário, que se tornava treinado para acordar e dormir de acordo com as exigências da guerra e dos chefes rebeldes. Todas estas estratégias disciplinares moldavam fisicamente o corpo guerrilheiro, que se tornava magro, cabeludo, barbudo. O guerrilheiro se transformava, como afirmou Che, em um animal acoçado , capaz de enfrentar as adversidades, sem adoecer ou ao menos curá-las somente com a ação da natureza . (idem, p. 43). O animal acoçado deveria não só enfrentar as adversidades sem adoecer, mas, sobretudo, se fortalecer com elas, tornando-se, assim, a máquina guiada pelo prazer do sacrifício pela causa.

(...) necessita de uma saúde de ferro, que o faça resistir a todas estas adversidades sem adoecer e converta sua vida de animal acoçado em um fator a mais de fortalecimento, para fazer-se, ajudado pela adaptabilidade natural, algo assim como uma parte da terra onde combate. (idem, ibidem).

A disciplinarização do corpo se tornava, portanto, o processo fundamental para tornar a vida de sacrifícios uma vida natural, habitual, cotidiana. Ela afastava os antigos modos de vida da mente revolucionária e tornava a nova vida um processo intrínseco da existência. O novo modo de vida deixava de ser novidade e passava a ser parte cotidiana e enraizada, impressa no corpo do revolucionário. Este processo disciplinar que se investia sobre o corpo do revolucionário tinha, sem dúvida alguma, uma função racional de criar um corpo rebelde eficaz para o enfrentamento e para a vitória contra o Exército oficial. Mas, este processo ia muito além dos elementos racionais e apresentava a missão de manter vivo os nobres ideais da causa sobre o mundo profano. De alguma forma, a disciplina buscava moralizar a tropa revolucionária, criando o homem revolucionário abnegado, desligado dos valores do mundo corrupto e entregues inteiramente a vida de sacrifícios. Ao disciplinar o corpo individual ia se criando, ao mesmo tempo, o corpo revolucionário combatente. Juan Almeida nos conta em suas memórias que, durante o exílio no México, as caminhadas e subidas de morros deveriam assumir um sentimento de sacrifício heróico.

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Formaremos grupos de três para as caminhadas e as subidas aos morros. No lugar indicado nos reunimos todos e, para voltar para casa, nos separamos novamente. Diz que este tem que ser o esforço dos homens para conseguir os objetivos, e é preciso fazê-lo com luta e sangue de heróis. (BOSQUE, 1989a, p. 87).

Na prisão de Ilha de Pinos, por exemplo, os revolucionários tinham que seguir as regras e normas disciplinares do Presídio. Juan Almeida (1989, p. 62) falou sobre esta disciplina oficial da seguinte maneira:

(...) nos reúnem no pátio. Um guarda nos informa sobre o Regulamento Interno da Penitenciária, o que podemos e não podemos fazer, a forma como devemos manter o uniforme azul, o cuidado em usar a jaqueta abotoada desde o primeiro botão no pescoço até o último, a correta postura a observar, as respostas às perguntas e como dá-las, diante de quem devemos parar em atenção, começando pelos integrantes da Direção da Penitenciária, os de maior graduação. Manda que nos portemos bem, raspam-nos o cabelo como aos presidiários. Enfim, tratam-nos como presos comuns.

Assim, esta disciplina do Presídio impunha ao preso político uma condição de preso comum. O caráter nobre e honrável do rebelde, o fato de estar preso pelo cumprimento do dever, era apagado e o revolucionário se tornava simplesmente mais um fora da lei. Os revolucionários precisavam, assim, contrapor a disciplina do presídio à disciplina revolucionária. Segundo Juan Almeida, a disciplina que os revolucionários se impuseram na prisão era mais férrea do que a imposta pela Direção do presídio.

A partir de então, começam as discussões com a Direção da nossa Penitenciária, ao mesmo tempo que a organização de nosso pequeno e reduzido exército, para nos impor ali no presídio uma disciplina mais férrea do que a anunciada, acabando com o regulamento que nos haviam imposto naquela cerimônia no pátio. (idem, p. 63).

Para Almeida, a disciplina revolucionária na prisão era uma forma de dar sentido à vida e manter a correlação entre o pensamento revolucionário e a prática de dedicação. As idéias revolucionárias só poderiam sobreviver ao ambiente da prisão se a vida cotidiana do presídio as mantivesse viva.

Num presídio, a vida vazia, sem conteúdo, deteriora. É preciso preencher cada minuto, as horas, os dias e noites, com exercícios, esportes, leituras, atos culturais. É preciso buscar correlação entre pensamento e ação. (idem, ibidem).

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Ao dar sentido à vida e às idéias nobres de cada revolucionário, a disciplina interna reconstituía o corpo revolucionário como um pequeno e reduzido exército . A moral do combatente se reerguia e ele sentia que obedecia aos seus próprios chefes e não ao chefe do presídio. Sentia que era um revolucionário e não simplesmente um preso comum. Se criava, desta forma, um ambiente de que se estava ainda em guerra. O corpo rebelde disciplinado continuava em luta, ainda que dentro da prisão. Um dos eventos significativos que ocorreu na Ilha de Pinos foi a visita do presidente Fulgencio Batista, no dia 12 de fevereiro de 1954. Quando os rebeldes perceberam que o tirano estava na prisão, decidiram que precisavam agir.

(Fidel) chama imediatamente os demais. Com todos reunidos à sua volta, nos diz: ___ É preciso fazer algo. ___ Mas o que fazer em tão pouco tempo? ___ Você continua observando – me diz -, enquanto os outros olharão pelas janelas. Continua a interrogação: o que poderemos fazer entre grades? Depois de deliberar, decidimos cantar o Hino do 26 de Julho quando ele se aproximar e gritar-lhe: “Assassino!”. Isso é o que fazermos. Será nossa saudação, o hino e os gritos de “Assassino!”. Assim fica decidido. (idem, p. 89).

Quando Batista e o grupo de oficiais se aproximaram, os rebeldes começaram a cantar o hino do 26 de Julho, que em uma das estrofes fazia referência aos assassinados no ataque ao quartel de Moncada:

O sangue que em Oriente se derramou Nós não o devemos esquecer Por isso, unidos devemos estar Recordando aqueles que mortos estão. (MENCÍA, 1982, p. 63).

Os rebeldes claramente esperavam uma represália. (idem, p. 64). Mas, agiram assim mesmo, sabendo que a única coisa que alcançariam era o sentimento de que permaneciam, mesmo aprisionados, agindo de acordo com o dever. Mantinha-se com este tipo de ação, a sensação moral de fazer parte de um exército em guerra. Nas lembranças de Almeida este sentimento aparece claramente:

Agora escuta as vozes que reafirmam nossa existência, que proclamam nossa permanência militante naquela prisão, firmes e inquebrantáveis nos princípios, combativos, sem nos importarem as medidas que se pudessem tomar contra nós. É um gesto de desafio, de que não tememos o regime de opróbrio, torturas e assassinatos que ele representa e dirige. Dali, ainda que indefesos materialmente, o desafiamos. Não nos importa morrer em suas masmorras, nem os 154

mau-tratos, nem a lei de fuga. Desafiamos o tirano, arriscando o pouco de que dispomos: visitas, cartas, jogos, saídas ao pátio e até o sol que recebemos. Ainda assim o desafiamos com nossa arma mais forte: nossa moral! E nosso hino de combate. (BOSQUE, 1989, p. 90).

Dois dias depois veio a repressão. Agustín Díaz Cartaya, autor do hino do 26 de Julho, foi torturado. “Despiram-me dando-me socos, pontapés e chicotadas com o ‘bicho de boi’.”. (MENCÍA, 1982, p. 66). Ramiro Valdés, Oscar Alcalde, Ernesto Tizol e Israel Tápanes foram encarcerados por 15 dias no pavilhão 2, onde as celas individuais eram “verdadeiros nichos cúbicos de dois metros de comprimento, um de largura e um metro e meio de altura, onde só podiam permanecer curvados.” (idem, p. 64). Fidel foi isolado em uma cela solitária. (idem, p. 67). Assim, não havia praticamente tempo livre. Sem dúvida alguma, a disciplina ajudava a passar o tempo. “(...) entre leituras e estudos, exercícios e práticas esportivas, caem um mês após o outro as folhas do calendário.” (BOSQUE, 1989, p. 70). Para Almeida, “A leitura educa, prepara, conforta. Como ajuda! Para o homem preso, é como viver através dos livros.” (idem, p. 69). Mas, sobretudo, ajudava a manter o corpo revolucionário vivo e disposto à luta.

Com nossas leituras, nos preparamos para não perder um só minuto, e o que lemos são temas selecionados e dirigidos política, ideológica e culturalmente, pois assim, ao cumprir a sentença, estaremos mais capacitados para reiniciar a vida e a luta fora da prisão. (idem, ibidem).

Na Sierra Maestra, a disciplina parece ter este mesmo sentido moral. Che, por exemplo, afirmava sobre a rigidez do acampamento guerrilheiro.

No acampamento é muito importante manter a disciplina, disciplina que deve ter características educativas, fazendo com que os guerrilheiros se deitem a determinada hora, se levantem também em hora fixa, impedindo que se dediquem a jogos que não tenham uma função social e que tendam a dissolver a moral da tropa, proibindo a ingestão de bebidas alcoólicas, etc. (GUEVARA, 1980, p. 53).

Esta disciplina educativa aparece claramente na necessidade de se disciplinar o tempo do revolucionário para que não se dedique ao ócio e se torne um ser voltado exclusivamente para a luta heróica. A disciplina revolucionária, por mais elementos racionais que as movia, era uma atitude interior, só possível em sua integralidade devido aos sentimentos de dever que impulsionavam os revolucionários. Segundo Che, a disciplina do Exército 155

Rebelde era uma auto-disciplina, um auto-controle, que o rebelde se impunha contra as tentações do mundo.

(...) el ejército de liberación fue un ejército puro donde ni las más comunes tentaciones del hombre tuvieron cabida; y no había aparato represivo, no había servicio de inteligencia que controlara al individuo frente a la tentación. Era su autocontrol el que actuaba. Era su rígida conciencia del deber y de la disciplina.” (idem, 2002b).

A disciplinarização do corpo individual do rebelde era a criação, assim, do homem treinado e disciplinado para a dedicação exclusiva ao dever pela pátria. A formação do corpo disciplinar rebelde, entretanto, encontrava os seus limites nas dificuldades dos indivíduos em se acomodar à disciplina. Para Weber (1999, p. 357), a disciplina “(...) continua existindo como captu mortuum por toda parte onde falham as qualidades ‘éticas’: dever e consciência.”. O dever pela causa, que cria o revolucionário, nem sempre era capaz de moldar sua ação nos moldes da responsabilidade e obediência plena. Quando o dever da obediência aos chefes e/ou o dever da responsabilidade com as ações necessárias não eram capazes de motivar por inteiro e de uma forma interna o revolucionário, se fazia necessário um conjunto de estratégias que fosse capaz de investir o corpo rebelde para discipliná- lo. A estas ações, os revolucionários cubanos chamavam de punição ou castigo. Foram vários os casos de falta do dever, que demonstraram que, em alguns momentos, a disciplina só poderia ser garantida a custos altos. O camponês Aristídio, que havia participado do Exército Rebelde e o abandonado, após se ferir em batalha, dizia a todos que delataria os rebeldes para o exército de Batista.

He sold his revolver for a few pesos and began to make declarations around the district that he was no fool and wouldn’t be caugh at home, meekly waiting, and once the partisans left, he would make contact with the army. (FRANQUI, 1980, p. 233).

Aristídio, após uma rápida investigação, foi executado pelo Exército Rebelde em nome da disciplina. Chinese Chang era chefe de um bando que assassinava e torturava camponeses e estuprava garotas na área de Caracas na Sierra Maestra, utilizando o nome do Exército Rebelde em suas ações. (idem, ibidem). Ele foi julgado e executado junto com outro membro de seu bando. O restante do grupo teve a vida poupada, mas passaram por uma punição dolorosa: a execução simbólica.

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Then we carried out a symbolic execution of three of the boys who had been involved in Chang’s outrages, but whom Fidel thought should be given another chance. The three of them were blindfolded and subjected to mock execution. When the shots had been fired into the air, and the three of them realized they were still alive, one of them gave me the strangest spontaneous demonstration of joy – a noisy kiss, as if I were his father. (idem, p. 234).

A execução simbólica, como o próprio Che reconheceu, era uma punição bárbara, porém, bastante eficiente. Os três, segundo o comandante argentino, se tornaram disciplinados combatentes revolucionários do Exército Rebelde. O camponês Dionísio foi uma outra vítima da disciplina revolucionária. Ele, através da confiança que lhe foi dada pelos guerrilheiros, tinha acesso aos suprimentos chegados da cidade para os rebeldes. Ele os desviava e utilizava para consumo próprio. Dionísio foi executado junto com dois espiões do Exército que confessaram o crime.

At the trial, in the face of Fidel’s indignant accusations of the treachery he had committed against the Revolution, as well as of his immorality in keeping three women with money from the people, he maintained a peasant artlessness by saying that there were not three, but two, because he was married to one (and that happened to be the truth). (idem, ibidem).

Um caso estranho de indisciplina foi o de Echevarría. Ele pertencia a uma família de lutadores do Exército Rebelde, havia preparado uma tropa para a recepção do Granma, em 1956, e ajudado na luta na Sierra Maestra. Porém, apesar do histórico que possuía, iniciou ataques armados contra territórios camponeses. Echevarría implorou por sua vida e foi executado assim mesmo, após escrever, segundo Che, uma carta à sua mãe, pedindo para que ela fosse leal à Revolução.

Echevarría cases is pathetic because once he acknowledged his crimes, he did not want to die by execution; he begged to be allowed to die in the next battle and swore he would seek death that way, but he did not want to dishonor his family. (idem, p. 235).

Um outro exemplo de falta do dever revolucionário foi o rebelde conhecido por “Teacher”, que havia sido a única companhia de Che quando este estava doente em fevereiro de 1957. Teacher passeava pela Sierra Maestra examinando garotas da região se fazendo passar por Che Guevara. Usava, assim, a qualidade de médico de Che para aproveitar das camponesas. Che foi pessoalmente executá-lo. (idem, ibidem). 157

A disciplina no Movimento 26 de Julho servia não só para dar eficiência às ações do movimento e solidificar os poderes de mando, massificando a obediência, criando um movimento único e sólido sob uma única direção. Mas, também para moralizar a revolução, garantir que dela participassem somente aqueles que fossem honestos e sinceros para não traí-la nem agora, nem no futuro. Como disse Armando Hart (idem, p. 254) ao justificar a disciplina:

Many revolutions have triumphed, but all of them, or almost all of them, have been betrayed. And it is for this reason that we must keep even closer check on those withing the Revolutionary Movement than on its enemy.

Da mesma forma, Che disse que as execuções durante a luta serviam como um exemplo da pureza do movimento revolucionário.

It served as example, tragic, of course, but valuable in making certain that our Revolution was pure and uncontaminated by the banditry to wich we had become accustomed from Batista’s men. (idem, p. 235).

Assim, foi-se moldando o corpo revolucionário a partir do dever e, em sua falta, a partir da punição, criando na medida do possível o animal acoçado , cujo sacrifício deixava de ser dor para se tornar hábito. Este homem, resistente e disciplinado, era, sobretudo, um homem viril e obediente a uma hierarquia revolucionária.

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4.2. O Corpo Viril

A ação revolucionária e o sacrifício que ela exigia era entendida por grande parte dos rebeldes como uma atitude viril, uma ação de homens- machos capazes de enfrentar as durezas da guerra. A imagem do guerrilheiro como herói nacional revolucionário esteve bastante ligada à figura do herói nacional cubano. Para Emilio Bejel (2006), a construção do corpo nacional cubano está firmado na figura dos heróis como modelos de comportamento.

El cuerpo nacional cubano a menudo se representa en biografías de personajes ilustres o héroes valerosos y ejemplares que deben tomarse como modelos de comportamiento, para de esta manera darle unidad «imaginaria» al cuerpo nacional. Pero aquellos cuerpos que aparezcan en lo exterior de la noción de tal imagen heroica deberán ser rechazados del supuesto interior coherente del cuerpo del héroe. (idem, p. 77).

A construção do corpo nacional remonta ao final do século XIX quando surgiram biografias que “construían imágenes del heróe cubano ideal como viril, guerrero y sin temor al sacrifício por la patria.” (idem, p. 78). Analisando a coleção de biografias escritas por Manuel de la Cruz, em 1892, intitulada “Cromitos Cubanos”, Bejel (idem, ibidem) afirma que De la Cruz “propone una espécie de modelo normativo para la guerra, un modelo de conducta para el hombre guerrero que rechaza al hombre “poco viril”, representado, según De la Cruz, por el poeta modernista cubano Julián del Casal, ya que éste no dedica su vida a la acción ni su pluma a seducir a las mujeres.” Constituiu-se, desta forma, dois modelos distintos de homens: o herói nacional, dedicado ao espaço próprio do homem viril: a guerra, a política e a conquista de mulheres; e o homem afeminado, incapaz de se sacrificar pela nação, preso no mundo específico das mulheres, o mundo privado. (idem, ibidem). Tomás Fernandez Robaina (2005, p. 287) coincide com Bejel ao afirmar que, a constituição dos conceitos de nação e república, se associou a guerra ao homem viril. O afeminado teria uma fragilidade moral e seria incapaz de agüentar os sacrifícios de uma guerra e, portanto, incapaz de lutar pela Pátria.

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Recordemos, brevemente unas ideas apuntadas por José Agustín Caballero en 1791: ¿Si se ofreciera á la Patria, que tendríamos qué esperar de semejantes ciudadanos ó Narzisillos ? ¿Podría decirse que estos tienen aliento para tolerar las intemperies de la guerra? ¿Cómo han de ser varones fuertes y esforzados, decía Séneca, los que así ostentan de ánimo mugeril y apocado?

Assim, a idéia de luta pela pátria esteve, desde os primeiros discursos de construção da nação, associada a um espaço masculinizado, representante da força e da capacidade de sacrificar-se. Ao feminino, ligado à noção de fragilidade, competia o espaço privado e distante das lutas heróicas. O ascetismo revolucionário do combatente dos anos 50 construiu um tipo de conduta voltado para essa noção de virilidade do sacrifício revolucionário, que excluía a mulher da primeira linha da luta guerrilheira e dotava o homem afeminado de um desvio de caráter e de moral. Grande parte dos rebeldes tiveram uma educação machista bastante profunda. Aleida March, que se mudou de Los Azules, zona afastada da capital da província de Las Villas, para Santa Clara, afim de cursar o ginásio, descreveu bem o modo como funcionavam as escolas da época.

(...) as escolas eram ninhos de preconceitos e peias; separadas por sexo, com aparência militar e com um conceito autoritário da disciplina, chegavam ao cúmulo de fechar as janelas para evitar todo contato com os rapazes. Assim estava concebido o ginásio daqueles tempos. (MARCH, 2009, p. 24).

Berlamino Castilla Más (1997), em suas memórias, afirma que no Instituto de Segunda Enseñanza, em Santiago de Cuba, onde fez o bacharelado, somente as mulheres eram obrigadas a usar uniformes.

El uniforme de las muchachitas tenía, además, saya azul con listas blancas, según el año, si era de primer año una, si de segundo, dos, y así hasta el quinto, zapatos negros con medias blancas tobilleras. Los varones no llevábamos uniforme. (idem, p. 36).

Existe nos discursos revolucionários uma valorização profunda do macho herói, valente e viril. Algumas passagens das memórias de Berlamino Castilla Más, nos mostram bem como cresceu em um ambiente marcado por esta imagem do homem viril. Na infância, Castilla Más (1997) se lembra de uma briga entre Rigoberto, um amigo, e seu tio Cucho. A briga ocorria porque Cucho queria defender a honra de 160

sua irmã. A mulher, como pura, frágil e inocente, precisava de um homem lutador valente que lhe fornecesse proteção. A briga assumia, como seria comum em Cuba, um formato da luta de boxe.

Recuerdo un encuentro memorable entre Rigoberto, un mulato grande y fuerte, por causa de ciertas relaciones entre este último y una hermana de Cucho. Por ello la pelea se esperaba. Salvero, con un carburo de acetileno iluminaba el improvisado ring. Cuando los contendientes tuvieran puestos y amarrados los guantes tocaran la campana. Cucho, agresivo, le fue arriba a Rigoberto cruzándolo con tal cantidad de golpes que el grandullón, retrocediendo, fue a arrinconarse contra la soga. Cucho aprovechó para golpearle más alentado por la algarabía de los espectadores, hasta que Rigoberto fue corriendo hacia el árbitro gritando “!quítenme los guantes!”. Salvador reía a carcajadas tirado sobre el césped mientras decía: “!ajarda picharon non che vaijas!”. En su jerga decía: aguarda picarón, no te vayas”. A Cucho hubo que sujetarlo pues quería seguir golpeando al sospechoso. Todos reímos a más no poder. Rigoberto estuvo muchos días sin pasar por Tamarit. (idem, p. 21).

Em outra passagem, Castilla Más (1997) conta que seu irmão Roberto brigou com seu amigo Manolo porque este último “propasó” com sua namorada. Nos parece, assim, que era comum o homem usar de sua virilidade para defender a honra da fêmea. Assim se passa o relato:

Aquella tarde cuando bañábamos en la poceta, cerca de la carretera, Manolo se propasó com Ameriquita durante los juegos en el água. El hecho origino una nueva pelea entre Roberto y Manolo dentro del água en la que temimos que el último resultara ahogado, por lo cual los separamos. (idem, p. 22).

Esta imagem de homem valente se expressava, também, nos gostos das crianças. Segundo Castilla Más (1997, p. 23), “Los muchachos del campo gustan de tener un caballo, una monta y también un perro”. Em outra passagem fala de uma de suas brincadeiras prediletas enquanto crianças do sexo masculino: a briga de galos. A briga de galos parece ser uma diversão basicamente masculina em Cuba. Uma passagem da obra Três Tristes Tigres , de Cabrera Infante, nos remete a uma das imagens de violência comum na Havana dos anos 50 marcada pelo enfrentamento de gangsteres à luz do dia. Esta passagem era descrita no livro como uma memória de infância do personagem Silvestre:

De repente, confusão geral. Gente corre, alguém de empurra por um ombro, uma mulher grita e se esconde atrás de um automóvel e meu irmão me puxa me puxa como um sonho persistente pela mão, pelo braço, pela camisa e grita: “Silvestre, vão te matar!”, e me sinto 161

empurrado para um lugar que logo venho a saber que é um restaurante de chineses e caio debaixo de uma mesa, onde há um casal compartilhando o precário refúgio de uma cadeira de pau e palha e o vaso de um coqueirinho e ouço meu irmão perguntando com voz arrasada se estou ferido ou não e é aí que ouço os disparos muito longe/muito perto e me levanto (para fugir? para correr até dentro do restaurante para enfrentar o perigo? não, só para ver) e vou até a porta e a rua deserta e a meio quarteirão ou ao fundo ou apenas a uns passos (não recordo) vejo um homem gordo, velho e mulato (não sei como já sei que é mulato) atirado no chão, agarrando pelas pernas outro homem, que trata de sacudi-lo com os pés outra vez, outra vez, e como não pode não vê outro meio de se ver livre senão atirando nele duas vezes seguidas na cabeça e não ouço os tiros, só vejo uma chispa, um relâmpago branco e vermelho e laranja ou simplesmente verde que sai da mão do homem que está de pé e clareia a cara do mulato morto – porque não há dúvida que agora está morto e o homem solta uma de suas pernas, depois outra e corre, disparando a pistola no ar, não para meter medo, não para abrir caminho, mas como o anúncio de uma vitória, acho, como um galo que cantasse depois de matar outro galo do galinheiro, e a rua se enche outra vez de gente e começam a gritar e a pedir auxílio e as mulheres a chorar gritando e alguém diz muito perto “Mataram ele!”, como se tratasse de um morto famoso não de um corpo que está atirado no meio da rua que agora levantam que quatro homens levam quase sem poder com ele que desaparece numa esquina, num carro talvez, realmente na noite. (CABRERA INFANTE, 1986, p. 41).

Nesta passagem, nos chama a atenção o modo como Silvestre descreve a saída do assassino, “disparando a pistola no ar, não para meter medo, não para abrir caminho, mas como o anúncio de uma vitória, acho, como um galo que cantasse depois de matar outro galo do galinheiro”. (idem, ibidem) A imagem do galo está, assim, relacionada com a imagem do homem viril que luta, vence e se vangloria de sua força bruta. Esta imagem do homem viril aparece também em outra história contada por Castillo Más em uma reunião estudantil na Havana. Castillo não nos conta os motivos da rivalidade entre Quino Peláez e José Hidalgo Peraza, ambos com força entre os grupos estudantis. Nos relata porém uma briga entre os dois no meio de uma reunião. (idem, p. 53). Quando questionado sobre os motivos da briga, Quino sapenas responde: “Hidalgo fue quien me retó y ya era una cuestión de hombre .” (idem, ibidem, grifo nosso). Mas, provavelmente a melhor imagem do revolucionário viril, foi criada por Fidel na defesa do ataque ao quartel de Moncada. Ao se referir aos atacantes do quartel, que foram torturados até a morte, o líder cubano construiu a imagem dos 162

jovens que tiveram os testículos triturados e que ao perder os seus órgãos viris permaneciam ainda mais homens.

Tiveram os testículos triturados e os olhos arrancados, mas nenhum claudicou, não se ouviu um lamento nem uma súplica; ainda quando tenham sido privados de seus órgãos viris, continuavam sendo mil vezes mais homens que todos os seus verdugos juntos. (CASTRO, 2000, p. 58).

Resistir à tortura, se dispor ao combate e às mazelas da guerra, tudo isso era obra de homens viris. A educação machista e este orgulho de homem viril aparecem profundamente no modo como se dava a participação da mulher guerrilheira na luta revolucionária e o modo como se dava a relação da mulher guerrilheira com o homem guerrilheiro. A memória oficial da luta insurrecional tentou construir, desde o princípio, a noção de que as guerrilheiras femininas deram o exemplo de que a mulher ocupava o mesmo papel do homem. Para Gladys Marel García-Pérez (2009, p. 116):

Desde marzo de 1952, mujeres de la generación del `30 y del `50 se proyectan e inician en la línea insurreccional de la rebelión contra el régimen de Fulgencio Batista.

No Movimento 26 de Julho, quatro mulheres se destacaram como símbolo da participação feminina na guerra revolucionária: Haydée Santamaría e Melba Hernandez, que se tornaram símbolos do ataque ao quartel Moncada; Celia Sanchez e Vilma Espín, que foram símbolos tanto da luta nas cidades, quanto da luta nas montanhas. Entretanto, uma análise dos documentos nos mostra que o Exército Rebelde reproduziu o modelo patriarcal em sua estrutura de organização, negando à mulher a participação direta nos combates. A mulher encontrava na guerrilha um mundo marcado pelo olhar masculinizado que a transformava, por um lado, em ser frágil que deveria estar voltada ao auxílio do homem guerrilheiro em sua missão libertadora e, por outro, em objeto de desejo sexual dos barbudos em situação de guerra e de constante abstinência. A inserção da mulher na luta guerrilheira passava, assim, por relações de conflitos e de acomodações em relação à estrutura patriarcal do movimento revolucionário. Na luta armada cubana, o valor heróico central estava no ato de empunhar as armas e estar diretamente envolvido no combate. Como disse Che Guevara (1960), 163

os trabalhos de índole civil são depreciados, tomados como inferiores e de menor importância heróica. Quando todos desejavam assumir um papel nos confrontos e embates militares, a participação da mulher era motivo de um conflito profundo no interior do movimento revolucionário. As mulheres, por uma associação à fragilidade, eram protegidas do combate. Uma passagem importante que demonstra esta perspectiva foi relatada por Haydée Santamaría e Celia Sanchez. Segundo Haydée, Celia queria ir ao México para participar da expedição liderada por Fidel (que viria a se tornar a famosa expedição do Granma). Um dos motivos de Celia não se destinar ao México foi justamente pelo medo de que Fidel não a deixasse embarcar na expedição. “¿Si me voy a México y luego no me dejan venir?” (FRANQUI, s/d, p. 47). Haydée, que também havia partilhado do desejo de participar desta expedição heróica, afirma que Fidel confirmou posteriormente que não a teria deixado embarcar. “Después tuve la gran satisfacción de que Fidel dijo que si yo hubiera estado en México no me hubieran dejado.” (idem, ibidem). Mas, o que mais nos chama a atenção no relato é a fala de Celia Sanchez: “Además, hubiera sido una preocupación para los demás y para Fidel, porque habrían tenido que venir cuidando a una mujer.” (idem, ibidem). Celia se posiciona de forma compreensiva e concordante com a posição de que uma mulher, frágil e desprotegida, longe de somar como mais uma combatente, seria um peso a mais. Uma outra passagem apresenta este mesmo caráter de negação da participação da mulher no combate. Quando o Exército Rebelde iniciaria o combate de San Ramón, Fidel ordenou que Haydée e Celia não participassem do combate e ficassem a espera do retorno dos combatentes. “Y cuando el ataque a San Ramon, Fidel no nos quería llevar”, afirmou Haydée. Mas segundo Celia, com muita insistência fizeram o líder máximo liberar a participação das duas combatentes. “Nosotras dijimos que queríamos ir y que por qué nos iban a dejar. Así que fuimos (…)”. (idem, s/d. p. 57). Esta passagem demonstra, além da comum associação da mulher à fragilidade, que, para Celia Sanchez e Haydée Santamaría ocuparem um espaço na luta insurrecional, precisaram brigar por ele. O mesmo ocorreu com Aleida March, combatente das cidades que subiu ao Escambray para entregar um dinheiro ao Che e para pedir para ingressar como guerrilheira. Mas, Che afirmou que ela podia ficar como enfermeira. 164

De uma forma precisa, ele me propôs que podia ficar como enfermeira no acampamento – ele sempre buscava para os recém- chegados uma tarefa específica; não admitia gente vagando e muito menos mulher, que podia gerar vontades incontroláveis dentro da tropa. (MARCH, 2009, p. 61).

Aleida, assim como Celia, Haydée, Melba Hernandez e Vilma Espín, tiveram sempre que lutar com os chefes guerrilheiros para exigir o direito de ser uma guerrilheira, direito adquirido pelo esforço pessoal no processo revolucionário. Aleida se manteve firme em relação à proposta de Che:

Fui muito concisa na minha solicitação e lhe expliquei que os meus dois anos de atividade clandestina, segundo eu entendia, me davam direito a ser mais uma guerrilheira. (idem, ibidem).

Entretanto, ainda que lutassem internamente, nunca as mulheres guerrilheiras ocuparam o mesmo espaço e a mesma função que um homem guerrilheiro. Celia Sanchez ocupou, na maior parte do tempo, o papel de uma secretária de Fidel e não o papel de uma guerrilheira, o que significa acompanhar os combates, mas não participar diretamente deles. O mesmo ocorreu com Aleida March em relação ao Che. Em suas memórias, ela afirmou:

Ele me deu instruções para copiar as senhas que era preciso enviar ao capitão Sinecio Torres, que se encontrava em Manicaragua. Foi nesse momento que comeceu a exercer a minha primeira função ao seu lado: fui uma espécie de secretária pessoal, o que implicou que quase não tivesse que combater, embora o acompanhasse sempre. (idem, p. 69).

Vilma Espín, que também foi outra combatente importante na luta insurrecional, era a chofer de Frank País. (SANTAMARÍA, 2008). A mulher no interior do Exército Rebelde era não só frágil, mas um objeto de desejo sexual. Em diferentes passagens, Aleida March deixa claro que quando chegou à Sierra do Escambray, encontrou um ambiente hostil para uma mulher puritana como ela.

Começou o meu primeiro encontro com as tropas do admirado Exército Rebelde. Fomos atendidos por Oscar Fernández Mell – médico da Coluna, que seguia Che desde a Sierra Maestra -, Alberto Castellanos, Harry Villegas e outros, todos tratando de ver as novas caras, sobretudo a minha, uma das poucas mulheres, demasiadamente jovem, que tinha se acercado a eles; os mais ousados inclusive se atreviam a perguntar se eu era a namorada de algum dos recém-chegados. (MARCH, 2009, p. 56). 165

Em outra passagem, ela afirma sobre os olhos escrutadores que caíam sobre a jovem rebelde que subia a Sierra .

A primeira coisa que fiz ao me encontrar com Che foi informá-lo do porquê da minha presença no acampamento, e assim me libertar dos esparadrapos que atavam o dinheiro ao meu corpo. Ele deu logo a ordem de que me ajudassem, e senti como ao redor surgiam muitos voluntários com desejo de fazer isso. Coube a Oscar Fernández Mell a benévola tarefa, além de me medicar. No entanto, os meus sufocos não acabavam por aí, porque, ao montar a cavalo, a minha calça também tinha se rasgado e eu estava me cobrindo, a qualquer custo, de todos aqueles olhos escrutadores que tratavam de buscar algum resquício onde pousar os seus olhares. (idem, p. 59).

Che, em seu famoso livro A Guerra de Guerrilhas , afirmou que o papel da mulher no processo revolucionário é de extrema relevância. “É bom realçá-lo, pois em todos os nossos países, de mentalidade colonial, há certa subestimação para com ela.” (GUEVARA, 1980, p. 78). Entretanto, em sua tentativa de realçar o papel da mulher, Che acaba por demonstrar uma perspectiva machista profunda e expressar o tipo de olhar masculinizado que prevaleceu sobre a mulher guerrilheira durante a luta insurrecional. Che vê a mulher a partir daquilo que chama de “qualidades próprias do seu sexo”. (idem, p. 79). A mulher é dotada de algumas faculdades inerentes, como a fragilidade e a ternura, características opostas às características de força física e de combate próprias do guerrilheiro. Com estas características, o papel da mulher, para Che, é sempre o de auxiliar às forças militares combatentes e auxiliar ao próprio homem combatente em seus momentos de carência. Para Che, em um determinado momento, quando se consolida uma frente interna combatente, “procura-se eliminar o mais possível os combatentes que não apresentam as características físicas indispensáveis.” (idem, ibidem). Neste momento, a mulher “pode ser indicada para um considerável número de ocupações específicas”, mas não a de combate. (idem, ibidem). Pode ser possível que a mulher substitua o homem nas armas, “no caso de faltarem braços para empunhar armas”, mas isto é considerado por Che, “um acidente raríssimo na vida guerrilheira.”. (idem, p. 80). Dentre as várias tarefas auxiliares que a mulher pode exercer, uma das consideradas mais importantes, para Che, é a tarefa de “mensageira”. São dois os motivos de se utilizarem mulheres para tal tarefa. Primeiro, porque a mulher pode 166

passar pela repressão com mais facilidade. Como disse Che, “por mais brutal que seja a repressão, por mais exigentes que sejam nos exames, a mulher recebe um tratamento menos duro que o homem.” (idem, p. 79). Em segundo lugar, a mulher pode usar de mil e um artifícios para transportar objetos. Che lembra que “objetos de um certo tamanho, como balas são transportados debaixo das saias.” (idem, ibidem). Uma outra tarefa auxiliar que a mulher pode desempenhar é o ensino das primeiras letras, “e inclusive teoria revolucionária aos soldados camponeses, fundamentalmente, mas também pode fazê-lo para os soldados revolucionários.” (idem, p. 80). As mulheres, para Che, são fundamentais nas escolas civis porque podem “inculcar maior entusiasmo nas crianças” e, também, porque “gozam de mais simpatias da população escolar.” (idem, ibidem). A mulher também pode ocupar as funções que Che chamou de “trabalhadora social”, que tem o papel de investigar “os males econômicos e sociais da zona, com vista a modificá-los dentro do possível.” (idem, ibidem). Um outro trabalho auxiliar que nos chama a atenção é o trabalho nas indústrias guerrilheiras, em que Che destaca a importância da mulher na confecção de uniformes. “Com uma simples máquina de costura e alguns moldes podem fazer maravilhas”. (idem, ibidem). Dois outros trabalhos auxiliares que Che parece atribuir à índole própria da mulher são o de cozinheira e o de enfermeira. Em relação ao de cozinheira, que Che se refere como as tarefas habituais de paz da mulher, ele afirma:

(...) (as mulheres) podem desempenhar suas tarefas habituais de paz e é muito gratificante ao soldado submetido às duríssimas condições desta vida, poder contar com uma comida variada, com gosto de algo (um dos grandes suplícios da guerra era comer um grude pegajoso e frio, totalmente insosso). A cozinheira pode melhorar muito a alimentação, além disto, é mais fácil mantê-la em sua tarefa doméstica, pois um dos problemas que se defrontam as guerrilhas é que todos os trabalhos de índole civil são depreciados pelos que os realizam e tratam sempre de abandonar estas tarefas e ingressar nas forças ativamente combatentes. (idem, p. 79).

Podemos perceber nesta passagem que além de um trabalho auxiliar à guerrilha, o trabalho da mulher também é auxiliar ao próprio homem guerrilheiro. No centro está o herói macho, “submetido às duríssimas condições desta vida”, e, ao seu redor, a mulher frágil, que vem trazer uma comida saborosa e amenizar o 167

sacrifício do homem guerrilheiro. Da mesma forma, Che justifica o papel da mulher na saúde como enfermeira, “inclusive médica”. O guerrilheiro afirma que a mulher pode exercer esta função

(...) com ternura infinitamente superior ao do rude companheiro de armas, ternura que tanto se aprecia nos momentos em que o homem está indefeso perante si mesmo, sem nenhuma comodidade, talvez sofrendo dores fortes e expostos aos muitos perigos de toda espécie, próprios deste tipo de guerra. (idem, ibidem).

Mais uma vez a mulher aparece como aquela que vem acalmar o macho herói, que ocupa o primeiro plano, trazer a “ternura” perante o homem exposto aos perigos da guerra. Podemos ver aqui que o fundamento da relação patriarcal não se altera. Em tempos normais, o homem, imerso no mundo do trabalho como mundo central, volta para casa cansado de sua duríssima jornada e recebe da mulher que o espera comida e ternura. Da mesma forma, o guerrilheiro volta do combate cansado de sua duríssima batalha e recebe da mulher o mesmo tratamento. O homem afeminado; embora pouca apareça nas memórias e documentos rebeldes, ou talvez até por sua inexistência nestes documentos; provavelmente também foi excluído da luta revolucionária. Segundo o cientista político Ian Lumdsen (1996), em Cuba, um dos fatores fundamentais para a discriminação dos homossexuais foi a associação do afeminado à idéia de covardia, como já sugere a palavra maricón . Para o autor, a dura luta pela libertação nacional forjou a valorização do homem corajoso, bravo, valente; o afeminado só poderia ser o covarde e incapaz para a guerra.

The final factor contribuiting to the denigration of maricones was their association with cowardive – maricón means coward as well as homosexual – in a country that has had to fight hard and long for its national liberation. The exaltation of physical bravado, so evident in Cuban machismo, is striking in comparison to its relative absence in , a country that has been involved in far fewer military struggles. (idem, 1996, p. 53).

Ainda na década de 50, a relação entre homens de mesmo sexo era tida como uma ação pecaminosa em boa parte das famílias cubanas. O sentimento de culpa do garoto de 08 anos, Reinaldo Arenas (1994, p. 29), por exemplo, em sua primeira relação sexual com um primo, mostra como a relação homossexual era 168

tratada com preconceito. Pela idade do autor, este fato ocorreu provavelmente no ano de 1951.

Quando terminamos, eu me sentia profundamente culpado, mas não completamente satisfeito; experimentava um medo enorme e tinha a impressão de termos feito algo terrível, que, de certa forma, condenava-me para o resto da vida. Orlando se deitou na grama e em seguida estávamos novamente abraçados. “Agora mesmo é que não tenho escapatória”, pensei, ou imaginei ter pensado, enquanto Orlando, agachado, me agarrava por trás. Enquanto Orlando introduzia seu membro, eu pensava em minha mãe, em tudo aquilo que, durante anos, ela jamais fizera com um homem e eu estava fazendo ali mesmo, entre as árvores, ao alcance de sua voz que me chamava para ir comer. (idem, ibidem).

No outro dia, quando foi ao centro espírita com sua mãe, o seu medo e culpa em relação ao que lhe parecia um pecado se apresentou de forma ainda mais forte. Sobre este dia, Arenas relata:

(...) enquanto os médiuns comandados por Arcadio nos “despossuíam”, a mim e à minha mãe, girando em torno de nós, senti um medo terrível. Pensei que uma daquelas mulheres, dentre as quais se encontrava uma das minhas onze tias, fosse cair, possuída por um espírito que iria revelar, ali mesmo, diante de todos os presentes, o que Orlando e eu tínhamos feito no matagal. (idem, p. 31).

As memórias de Juan Almeida apresentam duas passagens sobre a figura do maricón . Em uma delas, ao descrever cada um dos seus vizinhos, fala do efeminado como aquele “(...) que renega a natureza e se dá a conhecer por seus modos excessivamente amaneirados”. (BOSQUE, 1989a, p. 14). Nesta passagem, vemos uma idéia de natureza onde o homem está vinculado à postura rígida, viril e a mulher, à docilidade e amaneiramento. O maricón é um desvio da natureza. A outra passagem se refere às suas memórias de prisão, onde esteve após o ataque ao Quartel de Moncada. Juan Almeida relembra que os moncadistas presos fizeram um ofício à Diretoria do presídio, apresentando uma série de exigências tais como não usar uniforme de presidiário, receber e enviar cartas, ter acesso a saídas ao pátio e banho de sol, acesso à rádio, livros e visitas e o direito a apagar a luz do pavilhão para dormir. (idem, 1989, p.63). De todas estas exigências, somente a primeira e a última não foram atendidas. A justificativa fornecida pela Diretoria em relação à não permissão para apagarem a luz do pavilhão, foi que esta proibição era 169

uma forma de evitar a sodomia. A indignação dos rebeldes em relação a esta justificativa, que é descrita por Juan Almeida, demonstra como a relação sexual entre homens do mesmo sexo era vista, não só como um desvio da natureza, mas um desvio moral, um desvio de princípios.

De todas estas exigências, não admitiram não usar o uniforme de presidiário no momento, e não apagar as luzes no pavilhão, dizendo que era para evitar a sodomia, o que causou grande indignação entre todos nós contra a Direção da Penitenciária, pois somos homens de princípios e idéias e isso constitui uma ofensa a nossa dignidade. (ALMEIDA BOSQUE, 1989, p. 63).

Parecia haver, assim, para o grupo de presos políticos, grupo que se tornou a base do Movimento 26 de Julho, uma mágica relação entre o indivíduo que pratica a sodomia e a falta de princípios. O revolucionário, como homem firmado em uma profunda conduta moral não poderia exercer este tipo de prática.

170

4.3. O Corpo Hierárquico

Ao disciplinar o corpo individual, ia se constituindo e fortalecendo o corpo coletivo revolucionário. Este corpo revolucionário coeso era, sobretudo, marcado por um processo de hierarquização de funções que delimitava um processo peculiar de obediência e mando. A disciplina revolucionária passava por um processo de esquadrinhamento e classificação do indivíduo a partir de uma vigilância constante dos revolucionários. Cada membro do corpo revolucionário era vigiado e submetido a uma pirâmide de olhares. No exílio no México, por exemplo, no treinamento físico e militar se organizava um registro contínuo sobre cada um dos revolucionários. Havia uma anotação do indivíduo buscando alcançar cada detalhe de seu desenvolvimento, visando identificar a sua disposição ao sacrifício e à disciplina revolucionária, bem como a sua resistência física e militar. O chefe do treinamento no México, o espanhol Alberto Bayo, fazia as classificações e depois as compartilhava com Fidel. Em suas memórias Bayo afirmou como o Che Guevara se destacava no treinamento militar.

Guevara foi classificado como o número 1 no grupo. Em tudo teve a nota máxima: 10. Quando Fidel viu minhas classificações, perguntou: ‘Por que Guevara é o número 1?’. ‘Porque sem dúvida alguma é o melhor.’ ‘Eu também tenho essa opinião’, disse-me. ‘Tenho dele o mesmo conceito’. (CASTAÑEDA, 2003, p. 118).

Esta pirâmide de olhares que recaía sobre o soldado, fazia com que o chefe máximo revolucionário soubesse como cada rebelde se portava, se estava preparado para continuar como membro do movimento e que função devia executar. Era possível, assim, uma individualização que permitia distribuir os indivíduos, julgá- los, medi-los, classificá-los e, ao mesmo tempo, utilizá-los ao máximo. Na Sierra, a disciplinarização do espaço forçava ainda mais este processo de individualização dos olhares. O Exército Rebelde era dividido em esquadras, pelotões e colunas. Cada esquadra possuía um tentente, cada pelotão um capitão, cada coluna um comandante. No cume da pirâmide se encontrava Fidel Castro 171

como comandante dos comandantes. Segundo Che, uma coluna guerrilheira deve ser organizada em torno de no máximo 150 homens.

Um comandante manda num total de forças de 100 a 150 homens, e haverá tantos capitães quantos grupos de 30 a 40 homens se possam formar. O capitão tem a função de dirigir e aglutinar seu pelotão, fazê-lo lutar quase sempre unido e encarregar-se da distribuição e da organização geral do mesmo. Na guerra de guerrilhas, a esquadra é a unidade funcional. Cada uma, aproximadamente com 8 a 12 homens, tem um tenente, o que cumpre umas funções análogas às do capitão, para seu grupo, mas tem que estar em constante subordinação a este. (GUEVARA, 1980, p. 50).

Num organismo de 150 membros era impossível ao comandante conhecer, julgar, medir e individualizar cada um dos seus membros, a não ser por este processo de disciplinarização do espaço e das funções. Assim, a célula do organismo militar era a esquadra, organismo de no máximo 12 pessoas, onde o tenente poderia exercer a função de individualização do corpo revolucionário. (idem, ibidem). Em Pasajes de la Guerra Revolucionaria , Che afirma que entre março e abril de 1957, o Exército Rebelde tinha apenas 80 membros, havendo dois pelotões com três esquadras cada um. A vanguarda, dirigida por Camilo Cienfuegos, tinha apenas quatro membros. A retaguarda, dirigida por Efijenio Amejeiras tinha três componentes. O Estado Maior, era integrado por Fidel, Comandante en Jefe; Ciro Redondo; Manuel Fajardo, Crespo, Universo Sánchez e Che Guevara. Isto significava que cada pelotão tinha uma média de 33 homens e cada esquadra 5 homens. (GUEVARA, 2005).

Los meses de marzo y abril de 1957 fueron de reestructuración y aprendizaje para las tropas rebeldes. Después de recibido el refuerzo al partir del lugar denominado La Derecha, nuestro ejército tenía unos 80 hombres y estaba formado así: La vanguardia, dirigida por Camilo, tenía cuatro hombres. El pelotón siguiente lo llevaba Raúl Castro y tenía tres tenientes con una escuadra cada uno; eran éstos, Julito Díaz, Ramiro Valdés y Nano Díaz. Estos dos compañeros, Díaz de apellido, que murieron heroicamente en El Uvero, no tenían ningún parentesco entre sí. Uno de ellos era natural de Santiago; la refinería Hermanos Díaz, en esa ciudad, se honra con ese nombre en recuerdo de Nano y otro hermano que cayera en Santiago de Cuba. El otro, un compañero de Artemisa, veterano del Granma y del Moncada, que cumplió su último deber en el ataque a Uvero. Con Jorge Sotús, capitán a la sazón, iban de tenientes Ciro Frías, muerto luego en el frente Frank País; Guillermo García, Jefe del Ejército de Occidente en la actualidad y 172

René Ramos Latour, muerto con el grado de comandante en la Sierra Maestra. Después venía el Estado Mayor o Comandancia, que estaba integrada por Fidel, Comandante en Jefe; Ciro Redondo; Manuel Fajardo, hoy comandante del Ejército; el guajiro Crespo, comandante; Universo Sánchez, hoy comandante y yo, como médico. El pelotón que habitualmente seguía, en la marcha lineal de la columna, era el de Almeida, capitán en esa época cuyos tenientes eran Hermo, Guillermo Domínguez, muerto en Pino del Agua, y Peña. , con el grado de teniente, con tres hombres, cerraban la marcha y hacían la retaguardia. (idem, 2005).

A esquadra, com apenas cinco homens, se tornava a célula onde se individualizava o julgamento e submetia cada revolucionário à pirâmide de olhares que ia do tenente ao comandante em chefe e deste até cada um dos soldados. Neste tipo de estrutura se tornava extremamente difícil a indisciplina e falta de obediência, colocando o revolucionário esquadrinhado, julgado, classificado, em um corpo passível de cada vez maior obediência e dedicação. Em 1958, o Exército Rebelde já não realiza uma guerra de guerrilhas, mas uma guerra de territórios. Em uma carta de Fidel aos guerrilheiros Lalo e Guillermo, datada de 30 de Julho de 1958, o Comandante em Chefe afirma que havia chegado à posição de combate com 250 homens. “Vou dividir os 250 homens que eu trouxe em dois grupos.” (VECINO ALEGRET, 2003, p. 125). Vecino Alegret era um dos 250 membros do grupo comandado por Fidel para o combate de Uvero. Ele conta que fizeram uma longa caminhada com todos estes membros organizados em fila. O que nos interessa perceber é como a disciplinarização do espaço, expressa na fila, implicava também um controle disciplinar profundo sobre cada indivíduo. Vecino Alegret (2003) conta que, sem querer, um dos rebeldes deixou disparar sua arma. Rapidamente Fidel já sabia quem era e punia o combatente com a retirada de sua arma.

De repente um tiro quebra a monotonia do leve ruído de nossas passadas. A coluna se detém; os companheiros da frente transmitem o comunicado de Fidel: “Que aconteceu?”. Logo em seguida, lá de trás vem a resposta: “Um tiro em falso.” Mais uma vez ouvimos a instrução de Fidel, ordenando que desarmem o companheiro e que este não tome parte no combate de amanhã. Além de merecido, esse é o pior castigo que um rebelde pode sofrer. (idem, p. 123).

O modo como a informação passava de combatente a combatente, organizado na fila, até chegar ao comandante, e depois o modo como a ordem era novamente repassada de combatente a combatente até chegar ao indivíduo 173

responsável, marcava uma técnica disciplinar profunda que garantia a submissão do rebelde às ordens e mandados dos seus chefes maiores. Como vimos, por este sistema, um deslize de um membro se tornava rapidamente conhecido, julgado e punido pelos superiores e muitas vezes pelo próprio Fidel Castro. Mas, o tipo de domínio dos chefes revolucionários se apresentava extremamente complexo. Da mesma forma que havia uma pirâmide de olhares que recaía sobre cada um dos séqüitos, os olhares dos séqüitos se voltavam para os seus chefes, julgando-os, medindo-os, classificando-os de acordo com a mesma moral disciplinar. O tipo de vida na prisão, no exílio, e na Sierra , mais ainda do que nas cidades, obrigava a um contato cotidiano entre o chefe e seus séqüitos e terminava por submeter também o chefe a uma contínua vigilância por parte de seus seguidores. Pesa a isso, o fato de que o chefe revolucionário só era chefe porque apresentava as características mágicas do dever profundo e do exemplo. Se ele não cumprisse com o seu papel de encantar os séqüitos, de demonstrar cotidianamente o seu valor mágico, de provar os seus milagres, duas atitudes poderia esperar: ou os séqüitos contestariam o seu poder, ou se debandavam para longe da organização chefiada por ele. Um exemplo deste olhar julgador que recaía sobre o chefe aparece, por exemplo, em uma passagem citada por Juan Almeida sobre o exílio no México. O chefe de um dos apartamentos dos exilados não partilhava da mesma disciplina de sacrifício imposta a todos os membros da casa. Não fornecia, portanto, o exemplo. Os revolucionários se reuniram para exigir o seu julgamento.

Hoje bem cedo está sendo realizado um julgamento disciplinar. Julga-se o responsável pelo pessoal do apartamento, por sua política de tudo para ele e nada para os outros. Chegava tarde, comia em restaurantes, se excedia nos gastos, dormia sozinho num quarto, o menor, é verdade, mas também saía sozinho dizendo estar encarregado de fazer algo. (BOSQUE, 1989a, p. 104).

Todas as atitudes do chefe do apartamento eram, assim, julgadas pelos demais. Vemos neste trecho das memórias de Juan Almeida um detalhar de ações analisadas que iam da alimentação do chefe ao seu descanso em um quarto sozinho. Os revolucionários do apartamento comunicaram a Direção do Movimento.

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Uma noite, depois da meia-noite, o esperamos os sete acordados e levantados, recriminamos sua conduta pouco exemplar, dizendo-lhe que nos opomos a suas indisciplinas e que por isso nos queixaremos à direção do Movimento. (idem, ibidem).

O julgamento disciplinar foi organizado logo no outro dia pela manhã.

De manhã, às onze, chegam dois companheiros da direção para realizar o julgamento disciplinar. Ele se justifica, faz autocrítica e espera que imponham um castigo severo. É destituído do cargo e punido com quinze dias sem sair, salvo para as necessidades que lhe competem como mais um da casa. (idem, ibidem).

Os chefes eram constantemente analisados por seus súditos. Deles se exigiam talvez uma carga ainda maior, por estarem em posição de dar o exemplo de sacrifício e abnegação. Juan Almeida, em suas memórias, analisava Universo Sanchez, que estava no comando do apartamento no lugar do chefe demitido.

Este é cumpridor e organizado, se relaciona mais com todos nós, faz os exercícios, as tarefas de casa, vai na frente nas atividades, é escrupuloso com as finanças e as ordens. (idem, ibidem).

O chefe de treinamento do México, Alberto Bayo, também era analisado por Almeida. Nos chama a atenção o fato do jovem cubano esquadrinhar o corpo do comandante e ver ali a sua história:

Bayo é um homem de uns sessenta a sessenta e cinco anos, alto, gordo, dedicado aos regimes que, entretanto, não o fazem diminuir de peso. Sua cara é redonda, com barbicha; o rosto, embora duro, é nobre; nariz afilado, testa brilhante bem entrada na cabeça, sobrancelhas espessas, com um olho penetrante, pois o outro ele perdeu na guerra contra os mouros de Melilla, onde foi ferido quatro vezes. Reflete em sua pupila a dor do que vivera e vira na Guerra Civil Espanhola, as pilhas de mortos que mais tarde se supôs passarem do milhão. (idem, p. 116).

Na Sierra, os chefes de esquadra, pelotão e coluna, aparecem nos diários dos soldados comuns a partir de uma perspectiva de observação classificatória da conduta. O comandante René Ramos Latour, Daniel , aparece o tempo todo no diário de Vecino Alegret. Neste caso, o comandante é constantemente elogiado, mas isto também significava julgá-lo. No dia 12 de Julho de 1958, Alegret escreveu em seu diário observando a preparação física e disposição do comandante.

No início nos deslocamos com bastante rapidez, puxados por Daniel, que segue bem atrás do guia, demonstrando que a luta na cidade 175

não lhe roubou as condições físicas para as montanhas, onde foi um bom andarilho. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 39).

O chefe, assim, era avaliado, julgado e medido pelo seu séqüito. Por isto, antes de mandar nos seus seguidores, deveria mandar em si mesmo. Uma passagem da fala de Vilma Espín (1960, p. 76) sobre Frank País é significativa: “(Frank) Era extraordinariamente previsor y analítco, exigente con cada uno de los compañeros pero, en primero lugar, consigo mismo”. Desta forma, a principal característica do chefe revolucionário era ser exigente não só com os seus séqüitos, mas consigo mesmo. Apresentar-se como corpo resistente, forte, disciplinado e dado ao sacrifício. Fidel, apesar das várias requisições dos seus séqüitos para que se protegesse e que não fosse ao combate, esteve sempre presente nos enfrentamentos militares de sua coluna. Che, descumprindo os conselhos de Fidel, também fez o mesmo. Em uma carta ao líder máximo, afirmou:

Sinto muito não ter escutado os teus conselhos, mas o moral do pessoal estava muito abalado pelo cansaço inútil a que foi submetido, e eu achei necessária a minha presença na primeira linha de fogo. No entanto, tomei muitos cuidados e o ferimento foi casual. (GUEVARA, 1980, p. 14).

Neste trecho, Che deixa clara a importância do exemplo do líder na constituição da moral dos soldados. Mas, podemos ver que o exemplo do chefe é, sobretudo, a garantia e a condição de seu mando. Garantia, porque um chefe que não dê o exemplo de sacrifício perderia o poder de ser obedecido por seus séqüitos. Condição, porque a promoção ao cargo estava submetida ao exemplo.

(...) os chefes devem constantemente oferecer o exemplo de uma vida cristalina e sacrificada. A promoção do soldado deve estar baseada na valentia, capacidade e espírito de sacrifício; quem não cumpra com estes requisitos cabalmente não deve ter cargos de responsabilidade (...). (idem, p. 56).

A dominação no interior do movimento revolucionário era assim claramente carismática. Os chefes eram obedecidos por darem provas de sua conduta revolucionária exemplar. São por excelência os melhores guerreiros. Como afirmou sobre Daniel, Vecino Alegret:

Quando eu o vejo distribuindo as ordens, me dou conta de que ele é o senhor absoluto da situação. (VECINO ALEGRET, 2003, p. 105).

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Ou em outra passagem: “A retirada é perfeita. Eu me sinto orgulhoso da capacidade demonstrada pelo comandante Daniel (...)”. (idem, ibidem). O séquito se sentia orgulhoso de servir a um líder que dominava a arte da guerra. O seu dever de obediência ao chefe revolucionário encontrava a sua potência nesta admiração à pessoa extraordinária. A falta de moral do chefe implicava a perda do poder de mando e da capacidade de sedução. Como disse Che, a obediência ao superior no interior do Exército Rebelde era uma obediência interior, nascida do convencimento profundo do indivíduo, e não imposta de cima para baixo.

La disciplina guerrillera es interior, nace del convencimiento profundo del individuo, de esa necesidad de obedecer al superior, no solamente para mantener la efectividad del organismo armado que está integrado, sino también para defender la propia vida. Cualquier pequeño descuido en un soldado de un ejército regular es controlado por el compañero más cercano. En la guerra de guerrillas, donde cada soldado es unidad y es un grupo, un error es fatal. Nadie puede descuidarse. Nadie puede cometer el más mínimo desliz, pues su vida y la de los compañeros le va en ello. (GUEVARA, 2002b).

A divisão disciplinar entre chefes e séquitos não implicava no movimento revolucionário nenhum sistema de privilégio. Ele deveria se alimentar junto com a tropa, não recebendo nenhuma ração de comida a mais, dormir junto com o grupo, nas mesmas condições que cada um dos combatentes, e participar, como vimos, diretamente dos combates. Havia, assim, um igualitarismo entre comandantes e soldados. Como afirmou Carlos Franqui (1980, p. 160), “Éramos uma família e trabalhávamos juntos por respeito, em vez de simples obediência.”. Entretanto, por mais que o chefe revolucionário não tivesse privilégios e estivesse submetido a um mesmo tipo de olhar disciplinar que o seu séqüito, a organização hierarquizada do movimento implicava o surgimento do chefe como figura distinta. No decorrer da guerra, os líderes se tornavam figuras fantásticas e legendárias. As façanhas de sua esquadra, pelotão ou coluna, iam constituindo o seu nome entre os revolucionários e algumas vezes por toda a ilha. Vecino Alegret, como um soldado comum, demonstra em seu diário essa exaltação que recaía sobre cada um dos chefes do movimento. Antes de ingressar na guerrilha da Sierra, afirma sobre o comandante Daniel:

177

O Movimento me esconde em diversos lugares, e em todas as partes ouço falar de Daniel, sempre com admiração, respeito e carinho. Como seria aquele jovem revolucionário que tanto reconhecimento sabia provocar em seus colaboradores? (VECINO ALEGRET, 2003, p. 24).

Guillermo García também já era um guerrilheiro legendário, famoso por suas façanhas suicidas.

(...) encontramos o capitão Guillermo García, chefe guerrilheiro muito destacado, de quem conhecemos várias histórias que retratam sua coragem e sua audácia. Com ele está sua fogosa tropa (...). (idem, p. 45).

Quando conheceu o comandante Juan Almeida, Alegret se impressionou:

Lá pelas quatro da tarde recebemos a agradável visita do comandante Juan Almeida, que saúda com muito carinho a Daniel e é apresentado a todos nós. Estamos diante de um personagem já legendário, que nos impressiona pelo trato simples e afável. (idem, p. 41).

Esse impressionar-se de Vecino Alegret com o trato simples e afável de Juan Almeida, demonstra esta partilha existente no interior do movimento revolucionário. As figuras legendárias são transformadas, ao menos no imaginário dos séqüitos, em figuras maiores e diferenciadas. Entretanto, nenhuma figura da Sierra Maestra teria características mais legendárias do que Fidel Castro. Alegret se relembra do momento em que o conheceu na Sierra.

Tenho medo de não poder descrever nossas sucessivas emoções: basta dizer que ficamos impressionados com sua jovialidade, o carinho com que nos recebe, a grandeza que possui apesar de sua juventude, sua força física e moral, sua comunicabilidade e otimismo e o dom que possui para transmitir aos demais esse otimismo que ele próprio mais tarde qualificaria de “otimismo realista”. Depois daquele contato, sinto-me ainda mais capaz de segui-lo até o fim do mundo. (idem, p. 47).

Esta grandiosidade dos chefes frente aos séqüitos se expressava nesta partilha entre dirigentes e dirigidos. O chefe tinha a função de disciplinar seus séqüitos. É significativo que ele apareça constantemente irritado com os seus dirigidos No diário de Vecino Alegret, Manzanillo se irrita com a demora dos soldados rebeldes em se levantar quando convocados às quatro e meia da manhã. 178

O companheiro Manzanillo chama todo mundo às quatro e meia da manhã, mas só eu e Tirado nos levantamos. Os demais provocam a ira do chefe, que resolve fazer cumprir a ordem dada com uma dose extra de violência nas palavras e também na ação. (idem, p. 89).

Chaveco, outro líder guerrilheiro, também se irrita com a incapacidade de alguns soldados em poupar munição.

Logo depois de chegar à pequena elevação, o Garand de Chaveco e as duas Berettas ecoam bem alto; ato contínuo, faz-se ouvir a nossa descarga, mas sem que se cumpra a ordem de economizar munição, o que faz com que Chaveco nos chame a atenção em voz alta. Em seguida, os soldados respondem com tiros de metralhadora calibre 30, e Chaveco me ordena abrir fogo com minha Sten . Eu me apresento e cumpro a ordem, disparando uma rajada de três tiros, secundada pelos demais companheiros, que mais uma vez atiram sem poupar munição. Chaveco se aborrece ainda mais por causa dessa nova desobediência às suas instruções. (idem, ibidem).

Em uma carta a Vilma Espín, o comandante Daniel também se irritou com os soldados do pelotão que se acomodaram durante um momento de chuva.

Acabo de chegar empapado de uma caminhada, depois de “armar um tremendo berreiro” por causa dos rapazes do pelotão, que por medo da chuva não cozinharam nem ao menos um legume. (VECINO ALEGRET, p. 65).

O chefe tinha também a função de definir as estratégias militares e políticas, enquanto o séqüito, na maior parte das vezes, sequer sabia aonde se dirigia. No ataque ao quartel de Moncada, por exemplo, poucos eram os revolucionários que sabiam que se dirigiam ao Oriente aquela noite para realizar tal feito. Na Sierra Maestra, a maior parte das ações militares também era levada a cabo sem que os soldados soubessem a que se destinavam. Assim, se exigia uma submissão e confiança absoluta na sinceridade e honestidade dos chefes rebeldes e da causa abstrata que ele representava. Esta prática cotidiana de submissão, nascida do dever, da confiança e do modo como estava organizado o movimento revolucionário, criava um tipo de homem obediente, despolitizado, sem conhecimento dos rumos exatos que seguía, firmes somente nos valores. A própria obediência aos chefes passava a ser tomada como um dever do revolucionário. Desobedecer aos superiores era faltar com o dever com a causa 179

maior. Assim, se formava um conjunto de táticas disciplinares para punir e castigar a desobediência.

(...) the moment itself demanded a strong reaction and exemplary punishment to deter any attempt at disregardind discipline and to eliminate elements of anarchy that seeped into these zones that lacked a stable government.” (FRANQUI, 1980, p. 235).

Aqueles que desobedecessem as ordens dos chefes eram tidos como indivualistas ou oportunistas . O individualismo era tomado como uma atitude pautada na recusa de alguns revolucionários em agir coletivamente, por um lado, e, por outro, na incapacidade de respeitar as decisões e o controle dos postos de mando. O líder revolucionário Armando Hart fala sobre o individualismo no Movimento 26 de Julho como algo característico do povo cubano.

The Cuban, as a worthy heir of the Spanish spirit, is extraordinarily individualistic, and it is difficult for him to understand the meaning of the word ‘organization’. I even go as far as saying that this has been the primary difficulty that we, the people south of the Río Grande – wich Martí called ‘Our America’ – have had to face in order to overcome the traditional enemies of our freedom and of our higher destiny in the world. I leave this philosophical concept aside in order to deal with something more concrete, which is my main concern today: the necessity of keeping all the cadres of the organization outside the Sierra functioning at their peak. (idem, p. 253).

Esse individualismo se expressava nas atitudes dos revolucionários que pretendiam agir por si mesmo, criando a sua própria conduta, independente das ordens e mandados dos seus chefes. São revolucionários como Lara, revolucionário clandestino da seção do Movimento 26 de Julho em Bayamo, cuja direção municipal reclamou que ele se recusou a trabalhar de acordo com as ordens e estratégias da direção e manteve a sua militância de acordo com a sua própria forma de pensar.

(...) he refuse to work according to norms established by the Movement, and (…) wanted to work on his own without bothering about the plans put into practice by the Moviment on a national level (…). (idem, pg. 238).

Essa atitude do revolucionário Lara só poderia ser compreendida pela direção do movimento, como um comportamento anarquista. “(...) he acted in such an anarchical fashion that it became infutiating.” (idem, ibidem). E a solução para este caso, em que o dever de obediência não se apresentava, era a imposição, a mão 180

forte, a atitude enérgica que compõe as estratégias da disciplina. A insubmissão não podia e não deveria ser admitida.

We then ordered the Executive at Bayamo to put an end to this attitude in an energetic fashion, or we would put a person in there who would resolve the problem in the name of the National Directorate. (idem, ibidem).

Da mesma forma que Lara, André Menés e Parmênio agiam de forma individualista na região, não respeitando as ordens dos líderes do município. Para a direção nacional do movimento, a ação apropriada para eles era:

to put these individuals under the direct orders of the leaders of the Movement in that particular area where they know better than anyone else the work pattern of the area where they have been carrying on their revolutionary activities for a long time. (idem, p. 237).

O oportunismo era, segundo os chefes revolucionários, a atitude dos rebeldes que desejavam ocupar poderes de mando e posições importantes dentro do movimento revolucionário e, como não haviam alcançado, burlavam as regras. Uma das formas de desrespeito às regras, efetivadas pelos revolucionários da cidade, era entrar em contato com os chefes supremos do movimento na Sierra , pessoas como Fidel Castro e Che Guevara, sem autorização ou mediação do diretório municipal ou nacional.

There are many opportunists or many merely lacking in revolutionary sense who try to make contact with you directly or even with us in Santiago, going over the heads of the provincial or municipal leadership and basic structure. (idem, pg. 253).

Revolucionários que, na visão dos chefes, não trabalhavam sério para a revolução e insatisfeitos por não ocuparem posição de destaque entravam em contato com os rebeldes de prestígio para conseguir posições que lhes foram negadas nas planícies.

Some who are unhappy with the organization, because they don’t have a prestigious job – due to inability or bad faith – prefer to deal with you, who don’t know them, and use your support to gain what they could not acquire trough revolutionary work. (idem, p. 238).

O Diretório Nacional já havia estipulado que as correspondências com a Sierra deveriam ser centralizadas em suas mãos e que nenhum revolucionário 181

poderia entrar em contato com os guerrilheiros das montanhas sem que lhe fosse autorizado pelos postos máximos de decisão das planícies.

(...) no one be admitted to the Sierra Maestra without first letting the National Directorate outside of the Sierra and even the provincial directorates in direct contact with you, who are not included among the organized units outside of the Sierra. (idem, pg. 254).

Assim, tanto os chefes do Llano quanto os chefes da Sierra , criavam os mecanismos disciplinares para garantir uma obediência plena por parte dos seus séqüitos. Esta partilha entre chefes e séqüitos foi fundamental para se formar, pouco a pouco, uma fé profunda em Fidel Castro. O que nos chama a atenção para a construção desta fé é que, antes de 1952, o grande líder não passava de um desconhecido para a grande massa da população de Cuba. Era um mero político, como os vários políticos cubanos vinculados a uma figura carismática do Partido Ortodoxo (Edward Chibás), sem expressão popular e com um passado obscuro ligado a um grupo de pistoleiros da Universidade de Havana. O período 1952-1959 foi fundamental para transformar uma figura inexpressiva em um dos mais importantes líderes carismáticos da história do século XX. Sem nos preocuparmos com os processos complexos de constituição do carisma de Fidel durante este período, a questão que nos importa aqui é saber até que ponto esta autoridade no interior do Movimento 26 de Julho foi de fato absoluta, homogênea e acima de questionamentos. Não havia questionamentos e oposições ao poder de Fidel no interior do Movimento 26 de Julho? Não havia diferentes concepções para a forma como deveria se organizar o movimento revolucionário? Fidel era de fato o líder máximo e único da organização que logrou em poucos anos tomar o poder? Grande parte da historiografia da Revolução Cubana tendeu a constituir a imagem do Movimento 26 de Julho como um movimento unido em torno da figura do líder máximo. Em um toque de mágica, grandes líderes carismáticos tiveram a sua importância diminuída e todos os lutadores do período de luta revolucionária se tornaram seguidores fiéis de Fidel. Figuras como Frank País e René Ramos Latour praticamente desapareceram da história oficial ou apareceram como mártires fidelistas. Suas idéias, suas diferenças em relação a Fidel, se tornaram esquecidas. 182

Revisitando as numerosas cartas e documentos do Movimento 26 de Julho durante o período da luta revolucionária, encontramos não um movimento unitário e homogêneo, mas uma luta constante de táticas, estratégias e domínio. Encontramos não a autoridade absoluta de Fidel, mas um confronto entre lideranças que possuíam grande carisma popular ou, ao menos, importantes funções no movimento. É possível, portanto, ler uma outra história da luta revolucionária, uma história da luta contra a autoridade absoluta de Fidel dentro do próprio Movimento 26 de Julho. Queremos superar a imagem de um movimento entendido como simples máquina a serviço do líder. O que levou a esta luta contra a autoridade de Fidel? Tratava-se de uma desconfiança em relação à sua personalidade ou uma diferença de concepção de autoridade e de estratégia revolucionária? Que relações esta luta tem com a constituição do corpo dócil e hierarquizado do combatente guerrilheiro? Como vimos, Fidel Casto possuía um passado controverso, tendo supostamente formado, na juventude, parte de um grupo de gangster. A lembrança desse passado, colocava em alguns revolucionários uma dúvida sobre o verdadeiro sentido de liderança de Fidel. Tratava-se ele de apenas mais um caudilho ambicioso? A aliança entre o MNR (Movimento Nacional Revolucionário) e o Movimento 26 de julho teve como principal empecilho a desconfiança contra Fidel. (LLERENA, 1978, p. 57). As relações do Movimento 26 de Julho com um grupo de oficiais do Exército conspiradores também estavam emperradas pelo suposto passado gângster de Fidel. (FRANQUI, 1980, p. 208). O grande líder do Movimento 26 de Julho aparecia, assim, para alguns, como um homem ambicioso que reuniu um grupo de séqüitos exclusivamente para alcançar o poder. Frank País, em carta para Fidel Castro, falou deste discurso que circulava em Cuba.

You must have heard the tendentious statements that attempt to portray you as an ambitious man, surrounded by immature boys who are trying to stir up trouble and take advantage of the existing situation. (FRANQUI, 1980, p. 197).

Essa imagem de Fidel Castro como um caudilho ambicioso e o poder de mando real que ele concentrava em suas mãos no Movimento 26 de julho geravam dúvidas no interior do próprio movimento. Entretanto, os conflitos contra a autoridade de Fidel Castro não se resumiram no caráter de desconfiança pessoal, mas 183

avançaram para um questionamento das relações de poder que se constituíam no interior do movimento e do sentido da estratégia revolucionária adequada para uma transformação real. Podemos encontrar nos discursos de enfrentamento da autoridade de Fidel Castro a formulação, ainda inicial, mas nem por isso menos importante, de uma teoria da revolução e uma teoria da autoridade. O conflito contra a autoridade de Fidel deve ser compreendido a partir de uma situação real que se criou no Movimento 26 de Julho: a divisão entre a Sierra (Serra Maestra) e o Llano (As cidades). Na Sierra, o movimento era organizado pelo Exército Rebelde, cujo comando máximo estava nas mãos do Comandante em Chefe Fidel Castro. Ali se travava uma guerra de guerrilhas. No Llano , o Movimento 26 de Julho estava formado por milícias que realizavam sabotagens, boicotes, levantes armados, roubo de armas, etc., e era organizado por uma direção coletiva chamada Diretório Nacional do Movimento 26 de Julho. Em poucos meses da formação da guerrilha na Sierra, as diferenças de concepções entre os guerrilheiros da Sierra e os milicianos do Llano começaram a tomar dimensões grandiosas. Estes conflitos assumiram distintas esferas: a esfera da concepção ideológica, da estratégia revolucionária e também a esfera da organização do movimento. Na esfera da concepção ideológica, apesar da diversidade do movimento, podemos perceber que na Sierra , comunistas como Che Guevara e Raúl Castro eram junto com Camilo Cienfuegos e Juan Almeida os principais comandantes abaixo de Fidel, enquanto no Llano , liberais e o que se convenciou chamar depois de socialistas humanistas partilhavam de um anti-comunismo profundo. Assim, por um lado, existia um grupo na Sierra que via os militantes do Llano como pequenos burgueses adeptos do capitalismo. Por outro, os milicianos do Llano temiam o poder que Fidel delegava à guerrilheiros de idéias que ultrapassavam as intenções iniciais da revolução. Estas divergências ideológicas, embora não ocupassem o centro dos conflitos da luta, tiveram a sua importância. Na esfera estratégica, em 1957 já estava clara a posição dos guerrilheiros de voltar todos os esforços do movimento para a luta na Sierra. Pelo contrário, os milicianos do Llano apostavam em uma atuação em várias frentes: na organização de trabalhadores, na Sierra, nas milícias, isto é, uma atuação em toda Cuba. (FRANQUI, 1980, passim). As diferenças ideológicas e estratégicas acabaram por repercutir profundamente nos conflitos em torno da autoridade de Fidel Castro. As lutas contra 184

o poder máximo de Fidel partiam da percepção de que um movimento firmado na autoridade máxima de um só homem tenderia à formação de uma outra ditadura se o movimento viesse a alcançar o poder. Se Fidel Castro começava a apresentar contornos de uma liderança máxima sobre o movimento em 1956, o que fazer para evitar que a vitória gerasse uma tirania revolucionária? Os principais confrontos contra a autoridade de Fidel se voltaram para a resposta a esta pergunta. O primeiro enfrentamento se deu no ano de 1956 quando Armando Hart, Faustino Pérez, Enrique Oltuski, Carlos Fanqui e Mario Llerena; membros da direção nacional do Movimento 26 de julho; decidiram que, para não deixar que os impulsos centralistas de Fidel Castro reinassem sobre o movimento, era necessário estabelecer um programa político-ideológico, programa que poderia limitar a liderança do comandante. “The program would be like a bridle with which Castro’s impulses could be controlled.” (LLERENA, 1978, p. 78). Mario Llerena acabou elaborando o programa ideológico praticamente sozinho, sendo ele finalizado e publicado como manifesto-ideológico do Movimento 26 de julho, em 1957, sob o título “Nuestra Razón”. O programa, entretanto, não apresentava uma forma de organização do movimento, nem uma estratégia para a luta revolucionária. Limitava a definir objetivos estratégicos após a tomada do poder. O programa firmava a república democrática através de “...a regime of individual rights and public liberties…” (idem, p. 295); liberdade de consciência, podendo cada cidadão “...to hold the belief of his choice, to have a religion or to have none…” (idem, p. 297); e eleições diretas. (idem, p. 296). “Nuestra Razón” não foi, entretanto, capaz de manter o líder máximo sob as suas rédeas, como foi possível perceber anos mais tarde com a tomada do poder pelo Movimento 26 de julho. (idem, p. 131). Sua limitação estava em acreditar que, sendo claro os objetivos do movimento, o poder do líder estaria limitado. Trazia a crença democrática do limite do soberano em relação a uma lei maior. Não se questionava a existência de um soberano, mas a limitação de seu poder. Embora não conteve o poder máximo de Fidel, foi uma das primeiras iniciativas de luta contra o poder do líder. Fora dos limites da visão republicana, havia uma percepção de um socialismo anti-soviético com características libertárias, que teve como um dos expoentes o revolucionário das planícies Carlos Franqui. Em 1957, ele publicou um artigo sobre a diferença entre o caudilho e o líder. 185

No artigo, Franqui (1980, 201) dizia que o caudilho é o todo poderoso, um tipo de Deus na terra. Todo o poder de um movimento ou sociedade se concentra nele. O líder pelo contrário, não comanda, mas obedece ao povo. O povo é o poder máximo e o líder o seu subordinado. Franqui apresenta, assim, os princípios de um novo poder, o poder popular, em que o povo deveria ser o protagonista da nova sociedade. Uma sociedade onde houvesse “new institutions, products of new ideas, in order that the people can participate and decido n their acts”. (idem, ibidem). Para chegar a este poder popular, organizado de baixo para cima, era necessário construir a mobilização popular durante a própria luta. Tratava-se de estimular a organização do povo em

(…) new unions, organisms of opinion – press, radio, TV (some of them are already burgeoning), organizing student, youth, and professional sectors-civil institutions, the pesantry, women, Negros. All this would be a future guarantee of a new revolutionary power, in a wich the people would be the protagonist in the victory against the tyranny, and also the protagonist of the future. (idem, ibidem).

Franqui achava, portanto, que para criar o poder popular era necessário que o povo fosse o protagonista de sua própria luta. De nada adiantava apenas o apoio popular ao movimento e ao seu líder máximo, se não houvesse organização popular para a luta. “From new on the people must be the protagonists of the struggle and not its passive supporters”. (idem, ibidem). Somente com o protagonismo popular poderia acabar-se com o caudilhismo e colocar em seu lugar a liderança. Se, ao contrário, o povo permanecesse como suporte passivo do movimento e de Fidel, o movimento prevaleceria sobre o povo, os revolucionários armados prevaleceriam sobre os civis e o caudilhismo superaria a liderança. (idem, ibidem). A crítica de Franqui assumia, assim, a estratégia de não combater diretamente Fidel Castro, mas de estimular a organização popular, para que Fidel se tornasse um líder sob os desejos do povo e não um caudilho. Tratava-se de tirar o poder concentrado em Fidel e centrar todo o poder no povo. “We hope that Fidel Castro, who is strongest personality, the most capable, and the best revolutionary warrior, will be a leader and not a caudillo”. (idem, ibidem) A visão de Carlos Franqui, explicitada em seu artigo, não teve êxito na luta revolucionária. Embora o Movimento 26 de julho se dispôs a estimular a organização 186

dos trabalhadores e a criação de um movimento de resistência cívica, e muitos militantes das planícies dedicaram grande parte de sua militância a esta tarefa, estes organismos não lograram crescer e estiveram, ao mesmo tempo, sob o domínio do movimento. Mario Llerena, que participou da criação do Movimento de Resistência Cívica (CRM) em Havana, nos conta sobre o caráter desta organização.

Although appearing to be totally independent entity, the CRM would in fact be prepararing a mass of disciplined activists whose main function was to influence and manage public opinion in a way favorable to the revolution and in particular to the 26 of july Movement. In addition, it would serve to channel contributions to the movement. The CRM, in other words, was to be a typical front organization. (LLERENA, 1978,p. 102).

O Movimento de Resistência Cívica (CRM) ficava, assim, sob a custódia do Movimento 26 de julho, que delineava todas as suas ações e o dirigia da forma como entendia. Essa falta de organização autônoma popular fez com que não houvesse o protagonismo do povo, tal como queria Carlos Franqui, mas, apenas o suporte popular ao movimento e ao seu líder máximo. Um outro enfrentamento ao poder de Fidel veio de uma outra figura carismática, Frank País. Em 1957, Frank era, junto com Fidel, uma figura de grande projeção popular O capital simbólico que acumulou em sua dedicação nas cidades e as divergências que começava a ter com Fidel, fazia dele um risco à autoridade absoluta do comandante da Sierra. É provável que Frank concordasse com as posições que Carlos Franqui havia expresso sobre a importância de organizar o povo a partir de suas próprias organizações autônomas, posto que suas ações no interior do movimento dos trabalhadores foram insistentes. Entretanto, uma de suas estratégias estava na reorganização da estrutura do Movimento 26 de Julho. Ele mandou uma carta a Fidel, em 1957, dizendo que, devido ao vasto caos e confusão reinante no Movimento, iria junto com Armando Hart reformá-lo. Uma das tarefas centrais dessa reforma seria a centralização da liderança nas mãos de um grupo que teria responsabilidades e tarefas bem definidas.

The leadership would be centralized for the first time in the hands of a few, the distinct responsabilities and tasks of the Movement would be clearly assigned, and we took on ourselves the job of making it more active and powerfull. (FRANQUI, 1980, p. 202).

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Para Frank País, o movimento precisava definir exatamente quem era a direção e cada um deles ter funções determinadas a partir de regras estabelecidas. Embora no interior do Movimento 26 de julho houvesse uma definição jurídica dos poderes de mando, esta definição não era tão clara e sistemática e, na realidade, os poderes de mando não funcionavam como tais. Obedecia-se mais à pessoa do que às regras. A proposta de País tentava retirar a predominância do poder pessoal de Fidel por uma política de respeito aos cargos de direção oficiais do movimento. Frank País e seus séqüitos poderiam ter alcançado êxito nesta luta se o líder não fosse assassinado pela polícia de Batista, em julho de 1957. A morte de País fortaleceu ainda mais o poder de Fidel Castro, que tornou-se líder carismático imbatível do Movimento 26 de julho. Entretanto, a luta dos seguidores de País não se encerrou ali. René Ramos Latour, codinome Daniel, uma figura que destacava suas qualidades carismáticas através de suas façanhas militares e políticas, foi eleito para a substituição de Frank País na Direção Nacional do movimento. Daniel conseguiu aglutinar diversos dos seguidores do grande líder das cidades e enfrentou o poder de Fidel Castro. Com a morte de Frank País, Fidel intensificou o discurso que propunha a prioridade máxima para a Sierra Maestra na luta revolucionária. Em carta Célia Sanchez , Fidel disse:

I insist, as I did in my prevous letter, that a directive must be given to the Movement right now concerning the war: ‘All weapons, all bullets, and all resources are for the sierra’. (FRANQUI, 1980, p. 223).

Daniel enfrentou, porém, a vontade de Fidel. Dando forma à luta das planícies, revigorou a força daqueles que acreditavam que a luta deveria se dar em todos os lados de Cuba, nas serras e nas cidades. Em carta a Fidel, de 15 de setembro de 1957, dizia em nome do Diretório Nacional: “we think the battle ought not be limited solely and exclusively to the mountains , we must fight the regime on all fronts.” (FRANQUI, 1980, p. 230). Este enfrentamento entre Daniel e Fidel, entretanto, não duraria muito. Dois momentos foram fundamentais para o fracasso da liderança de Daniel e o fim da oposição contra o poder máximo de Fidel. O primeiro momento correspondeu à crise interna no Movimento 26 de julho gerada pela assinatura do Pacto de Miami em setembro de 1957. Este pacto foi assinado pelo Diretório Revolucionário, Partido Revolucionário Cubano (Autêntico), 188

Organização Autêntica, Partido do Povo Cubano (Ortodoxo), Federação Estudantil Universitária (FEU), Diretório Operário Revolucionário, Partido Democrático e por Felipe Pazos e Lester Rodriguez em nome do Movimento 26 de julho. O problema interno criado corresponde ao fato de que, por um lado, Felipe Pazos e Léster Rodriguez não estavam autorizados para assinarem o manifesto em nome do Movimento 26 de Julho e, por outro lado, as cláusulas do Pacto eram insatisfatórias para os membros do movimento. Como disse Marta Harnecker (2000, p. 194), o pacto de Miami ignorava

(...) tanto a rejeição expressa a toda intervenção estrangeira, como a rejeição ao, advento de uma junta militar para governar provisoriamente a República – ‘princípios cardeais’ no modo de conceber a revolução cubna por parte do 26 de julho.

Insatisfeitos com o Pacto de Miami, os guerrilheiros na Sierra culparam o Diretório Nacional do Movimento 26 de julho de traição. Ora, se era o Diretório Nacional que estava responsável pelas relações exteriores do movimento, não estaria ele comprometido com Felipe Pazos e Léster Rodriguez? Por trás de tudo isto, Che, Raul e Fidel já articulavam a expulsão dos membros do Diretório Nacional para controlarem o movimento desde a Sierra. Che Guevara, em carta a Fidel, propôs que o líder escrevesse um manifesto contra o Pacto de Miami, criando as condições para a expulsão de todos os membros do Diretório Nacional.

I think a written document, with the invaluable help of the new mimeograph that’s on it’s way (or even with the broken-down one we now have), sent simultaneously to political leaders and published in the press, will produce the necessary effect, Later, if it becomes more complicated, with Celia’s help, we can fire the entire National Directorate. (FRANQUI, 1980, p. 271).

Tanto Che quanto Fidel não davam mais importância ao Diretório Nacional. Para eles, a luta na Sierra , sob o controle do comandante em chefe, era o motor da revolução. Che disse em carta a Daniel datada de 14 de Dezembro:

And if it hurts so much that you cut off relations with this part of the revolutionary forces, so much the worse. One way ot the other, we’ll go forward, since the people can’t be defeated. (FRANQUI, 1980, p. 270).

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Fidel Castro incomodava-se com a constante oposição que o Diretório Nacional fazia ao seu domínio autoritário sobre o movimento. Em carta a Célia Sanchez em 13 de janeiro de 1958, afirmou:

I am at the point of asking the Movement not to bother about us any more and to abandon us to our fate and leave us on our own once and for all. I’m tired of having my feelings misinterpreted. I’m not meanly ambitious. I do not believe Iam the boss, nor do I want to be, nor am I irreplaceable or infallible. (FRANQUI, 1980, p. 279).

De toda forma, com o Pacto de Miami, o Diretório Nacional do Movimento 26 de julho, liderado por Daniel, perdeu crédito. O segundo momento de descrédito da liderança de Daniel e da oposição ao domínio de Fidel Castro foi definitivo e se deu com o fracasso da Greve Geral de massas em abril de 1958. A greve geral foi planejada pelo movimento como uma ação que colocaria fim à ditadura batistiana. O movimento nas cidades ficou com a responsabilidade máxima sobre a organização e ação da greve. Entretanto, a greve fracassou. O fracasso da greve geral reafirmou na cabeça dos revolucionários que o grande líder máximo da revolução era Fidel Castro e que o seu exército na Sierra encarnava a posição central na libertação de Cuba. Com o fracasso geral da greve e a moral baixa de Daniel e dos dirigentes do Llano, Fidel enviou um comandante do Exército Rebelde, Delio Gómez Ochoa, para assumir a coordenação nacional das atividades do Llano . Ochoa ficava sob as ordens de Fidel e, desta forma, a autoridade máxima do líder se estendia sobre todo o Movimento 26 de Julho, impossibilitando qualquer tipo de oposição. (FRANQUI, 1981, p. 39). Consolidava-se a homogeneidade entre as forças da Sierra e do Llano . Como afirmou Fidel na ocasião:

Despite the fact that the Movement numbers many outstanding revolutionaries proved in action, the naming of a commander from our forces, wich is a sacrifice for us from the military point of view, is essential in order to utilize the experience of our military campaingns in developing a new strategy of struggle throughout the nation. We also are seeking to achieve total homogeneity between the comrades of the militia forces and operational forces of the 26 th of July Movement, coinciding with the establishment of a common hight command to plan and direct all action by our military forces. (FRANQUI, 1980, p. 323).

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Com a nomeação do comandante do Exército Rebelde para o comando das cidades, Fidel se consolidava como o líder máximo da revolução, tendo o poder supremo do movimento em suas mãos. Fechava ali o período de confrontos contra a sua autoridade máxima. Desta forma, não mais só a Sierra passava a ser organizada sobre o processo disciplinar do Exército Rebelde, mas também todo o Llano . O fim dos conflitos e da contestação ao poder de mando fortalecia os mecanismos de disciplinarização do corpo rebelde à obediência aos seus superiores e, em especial, ao comandante máximo do Exército. Desta forma, se foi moldando um tipo de revolucionário de corpo disciplinado e obediente aos seus superiores. Esta divisão hierárquica entre chefes e séquitos encontrava no tipo de vida coletiva da Sierra limites para o seu desenvolvimento. Entretanto, a tomada do poder pelo grupo revolucionário e a ruptura do modo de vida rebelde que ela proporcionava, tornava esta divisão disciplinar mais forte do que nunca. Talvez esteja aí um dos elementos fundamentais para entendermos o tipo de revolucionário obediente que surgiu em Cuba disposto a falar como Camilo Cienfuegos: “Cuando Fidel está hablando lo único que debe hacer un revolucionario es oírlo .” (SUÁREZ PÉREZ, 2009).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando os rebeldes desceram da Sierra , pareciam, como traduziu Virgilio Piñera (2008) , personagens saídos de outros tempos mais românticos, guerreiros de batalhas legendárias e santos de quadros de grandes pintores. As barbas crescidas, o corpo magro nos uniformes verde oliva, sujos e amassados, os cabelos cumpridos, as correntes e medalhões de santas e orixás. Tudo isto traduzia a imagem destes seres que desciam de um mundo desconhecido e fantástico para libertar a ilha aprisionada. Para o rebelde que saía da escuridão da Sierra , a luz da cidade revelava um mundo completamente estranho. Pese as grandes mudanças, era o mesmo mundo que havia abandonado há uns anos atrás. O asfalto, os carros, as luzes, os bares, as boates, e a multidão, eram as imagens que contrastavam profundamente com o mundo solitário, despovoado e simples das montanhas. Não voltavam, agora, como homens comuns, mas como heróis, salvadores e santos, adorados pela multidão eufórica que lhes esperavam e beijavam suas barbas crescidas e sujas e seus uniformes amassados. Voltavam com os holofotes em seus cabelos compridos, observados e vangloriados por um mundo que lhe virou as costas uma vez. Apesar da grande euforia da vitória, existia algo de melancólico e de assustador em vencer. Como afirmou Carlos Franqui (1981), talvez a paz fosse mais assustadora para um combatente do que a guerra. O revolucionário ganhou a batalha, mas perdia algo maior, o seu modo de vida, aquilo sem o qual a própria definição de sua identidade revolucionária estaria comprometida. O fuzil agora seria trocado por uma caneta, as casinholas cheias de ratos seriam trocadas pela casa, pelo apartamento ou pelo quarto de hotel, a mulher e os filhos abandonados seriam retomados, a vida não mediada por dinheiro ou por um salário seria agora reassumida; o mundo mágico da Sierra e da clandestinidade e a vida extraordinária de combatente se desmoronariam para o retorno ao cotidiano, à vida comum, à rotina perdida. A derrubada da tirania e a tomada do poder pelos revolucionários significariam o fim da situação extraordinária. Do séqüito carismático do herói guerreiro nasceria um Governo e um Exército permanente; dos heróis guerreiros sem casas e emprego, surgiriam pais de família e funcionários do Estado; da 192

dedicação exclusiva à Revolução, nasceriam novos deuses e senhores: dinheiro e família. Talvez um dos grandes conflitos culturais, ignorados pela historiografia da Revolução Cubana, se deu nas tensões entre o ascetismo do rebelde cubano e as apetências burocráticas do Estado, enfim, revolucionário. O revolucionário asceta era e desejava ser o oposto do burocrata. Era o que se dedicava exclusivamente à sua fé, sacrificando-se, para vangloriar a Revolução. A apetência burocrática traria o anseio pelos cargos, pelo poder, pelo dinheiro, a busca da “vida boa”. Em fevereiro de 1959, Fidel havia dito que se preocupava grandemente que a juventude mantivesse seu espírito de sacrifício e que a apetência burocrática não se despertasse entre os revolucionários. (CASTRO RUZ, 2005). Foram vários os rebeldes que se recusaram a assumir os ministérios. Carlos Franqui, por exemplo, recusou ser Ministro do Trabalho e preferiu ser jornalista à frente do Revolución , jornal do Movimento 26 de Julho. Célia Sanchez e Haydée Santamaría recusaram a proposta de assumir o Ministério da Educação. Raúl Chibás rejeitou o cargo de Ministro das Finanças. (FRANQUI, 1981). Como afirmou Fidel Castro, naqueles primeiros dias, era difícil encontrar alguém que queria ser ministro. (CASTRO RUZ, 2005). O revolucionário asceta no poder, desejoso de sua dedicação nobre, também resistiu profundamente ao salário . Os soldados do Exército Rebelde se recusaram a receber o soldo durante os dois primeiros meses de Governo Revolucionário, pois temiam abandonar a postura de guerreiros voluntários de uma causa para transformarem-se em empregados de um Governo. (idem, ibidem). Esta resistência ao salário assumiu, inclusive, a forma de um baixo salário. Segundo Carlos Franqui (1981), foram os próprios revolucionários que definiram quanto iriam ganhar. Um ministro ganhava 750 pesos, outros 100, e Che, com o salário mais austero de 250 pesos. (idem, ibidem). Quando entrou na presidência do Banco Nacional, Che Guevara tratou de lutar contra os elevados honorários dos funcionários do Banco. Dizia que o maior salário dos funcionários deveria ser o salário da secretária mais simples, 350 dólares. (ANDERSON, 1997). Quando Fidel assumiu o cargo de Primeiro Ministro, sua primeira ação foi a de propor a diminuição dos salários dos ministros. Justificava que deveriam ganhar 193

somente o estritamente necessário para as coisas mais elementares, pois afinal, como clandestinos, haviam vivido com qualquer coisa. (CASTRO RUZ, 2005). Em Julho de 1959, o Gabinete de Ministros aprovou um Projeto de Lei que reduzia em quase 50% os gastos destinados ao Palácio Presidencial. Os gastos passariam de 2.433.659.95 pesos a 1.233659.95 pesos. (BUCH, 2002). O presidente Dorticós, quando assumiu o governo no lugar de Urrutia, decidiu reduzir o seu salário de Presidente da República de 10.000.00 pesos a 2.500 pesos. (idem, ibidem). A convicção da maioria dos revolucionários era a de que o cargo fosse não uma fonte de riqueza e poder, mas de sofrimento. Como disse Fidel, era necessário que as pessoas vissem que o governante levava uma vida verdadeiramente de sacrifício e de trabalho. Era preciso que trabalhasse duro, ganhasse pouco, e se dedicasse, de forma abnegada e sem ganho pessoal, à causa da Revolução. (CASTRO RUZ, 2005). Os governantes não deveriam cumprir horário de trabalho, mas trabalhar todas as horas do dia pela Revolução. Che, por exemplo, era capaz de sair de seu escritório às 4:00 da manhã e chegar no mesmo dia às 07:00 para continuar o trabalho. (SAENZ, 2004). Os constantes atrasos de Fidel nos seus compromissos, ao invés de dar a impressão de um homem sem responsabilidades, reforçava a idéia de um homem tão atarefado, tão abnegado todas as horas do dia às tarefas da revolução, que era impossível chegar no horário em qualquer compromisso. (CASTRO RUZ, 2005a). Se fosse necessário que os ministros possuíssem carros, para agilizar as tarefas revolucionárias, que fossem então, como afirmou Fidel, carros pequenos e não carros luxuosos. (CASTRO RUZ, 2005). Mas, os automóveis dos dirigentes eram um problema menor do que suas casas. Quando os rebeldes chegaram a Havana, onde iriam viver? Acostumados à vida nas cabanas cheias de ratos da Sierra, agora retornariam aos apartamentos e antigas casas? Ou assumiriam as mansões dos batistianos que fugiram? Segundo Carlos Franqui (1981), alguns rebeldes chegaram a propor a tomada das casas dos ricos que fugiram. “Eis aí uma grande idéia”, disse Raúl Castro, “os barbudos vivendo nas mansões dos ricos.” Entretanto, o espírito revolucionário de sacrifício controlava os impulsos de riqueza. Carlos Franqui foi um dos revolucionários que argumentou que o homem 194

pensa do jeito que vive e a concordância da maioria dos revolucionários acabou por garantir que o confisco pessoal e não autorizado de casas pelos revolucionários fosse proibido por Faustino Pérez, Ministro da Recuperação da Propriedade. (idem, ibidem). A maioria dos rebeldes voltou a viver nos mesmos apartamentos de antes da revolução. (idem, ibidem). Quando Che, se tratando de sua asma, foi residir em uma mansão de um antigo aliado de Batista em Tarará, cidade vizinha de Havana, se justificou afirmando que estava bastante doente e que sua enfermidade não havia sido contraída nos cabarés, senão trabalhando pela Revolução mais do que o seu organismo podia resistir. Afirmava também só ter se instalado naquela região porque os médicos lhe recomendaram uma casa em que estivesse afastado de visitas diárias. Justificava que seu salário de 125 pesos como oficial do Exército Rebelde não lhe permitia o aluguel de uma casa ampla para acomodar toda a equipe que deveria lhe acompanhar. E, por fim, reconhecia que a casa era um insulto à sensibilidade do povo cubano e prometia abandoná-la tão logo estivesse reposto. (GUEVARA, 1980). Assim o fez. A informalidade assumia todos os níveis do governo. Jonh Lee Anderson destacou bem a vocação iconoclasta do guerrilheiro que Che representava como ninguém quando recebia seus visitantes sempre vestido de verde-oliva, às vezes com os pés sobre a mesa de trabalho. E também quando, obrigava os interlocutores com quem antipatizava a intermináveis esperas na ante-sala, ao mesmo tempo em que mantinha relações de igualdade e camaradagem com seus subalternos. (ANDERSON, p. 2001) Provavelmente nada soou mais informal do que a famosa assinatura que Che fornecia nas emissões de notas cubanas quando era presidente do Banco Nacional. Assinava simplesmente “Che” e quando teve tal atitude questionada por um correspondente cubano, respondeu que se sua forma de assinar não era de costume entre os presidentes de banco isto significava que o processo revolucionário estava incompleto, pois faltava ainda mudar a escala de valores. Buscava-se um novo homem, não aquele preso às formalidades e à burocracia, mas o homem que dava mais valor no sacrifício e na abnegação da vida humana do que nos papéis e no salário. O governante, no ideal revolucionário ascético, deixava de ser intocável e afastado do povo. Era comum encontrar Fidel pelas ruas da cidade, onde parava 195

para conversar com trabalhadores, pedindo a eles opiniões. Guevara Lynch (1988), pai de Che, estranhou profundamente quando viu Fidel baixar de um jeep e se aproximar de um círculo de trabalhadores para conversar.

Segundo Tad Szulc (1986), era comum Fidel aparecer, pela noite, no estádio esportivo de Cerro , para arremessar algumas bolas para os rebatedores do Sugar Kings ou mesmo se sentar no café Carmelo’s , em Vedado, só para tomar um sorvete e bater um papo com os donos. Os rebeldes queriam ser como um cubano do povo e, assim, jogavam beisebol no time dos barbudos e, não raro, passavam os fins de semana com a mão na massa junto aos trabalhadores manuais de diferentes tipos. O trabalho voluntário, por exemplo, não era só uma saída imaginada para os problemas de produção em Cuba, mas um exemplo de sacrifício e amor à Pátria e à Revolução. Como disse Che (2002c), era o exemplo dos homens que se subordinavam à causa maior os seus momentos de recreio e descanso, para cumprir de forma abnegada as tarefas da Revolução. O revolucionário asceta queria se afastar dos políticos tradicionais. Fidel afirmou claramente que os novos governantes não eram os ministros de Batista, mas uma mesma coisa com o povo. (CASTRO RUZ, 2005). No discurso de Fidel em Janeiro de 1959, na Venezuela, ele gritava que os revolucionários não iriam se aburguesar ou se burocratizar no poder. Que não acostumariam com a boa comida, ou a boa roupa ou as boas coisas. Pelo contrário, continuariam comendo mal, vestindo o mesmo uniforme e dedicando-se integralmente ao nobre ideal. (idem, 2005b). O discurso e a postura ascética dos revolucionários no poder contribuíam profundamente para a grande euforia popular com a Revolução. A sensação de que Cuba era agora dirigida não por homens interesseiros e corruptos, mas por homens que sacrificaram e que continuariam sacrificando a sua vida pessoal pelo bem de todos era, para todo um povo formado nos valores cristãos espanhóis, um motivo de esperança. Mas, a postura ascética, nos parece, não duraria muito. Pouco a pouco, os pequenos carros se transformaram em limusines, os pequenos apartamentos em grandes mansões, o corpo magro e sujo em corpo gordo e afeiçoado ao tipo de vida burocrática. Fidel deixou de freqüentar os cafés e de conversar com os trabalhadores na rua, e as pequenas rações que cada cubano tinha e ainda têm 196

para comer passou a contrastar com os enormes banquetes como aquele que aparecera nas imagens de uma fita de vídeo caseira trazida por uma nora de Fidel exilada. A época da euforia se foi de forma tão veloz quanto se estabeleceu. As grandes mobilizações de massa em torno do líder revolucionário, as campanhas populares para arrecadação de verbas para as reformas econômicas, as festas de rua para celebrar os milagres do governo revolucionário, as doações espontâneas e o trabalho verdadeiramente voluntário, perderam-se na lembrança de um tempo heróico e mágico. O cubano venceu a guerra, mas foi condenado a sentir falta de algo mais: o futuro pelo qual lutou. (FRANQUI, 1981). O mundo se tornava frio, burocratizado, distante das festas populares que arrebataram a Revolução. Como afirmou Franqui ao voltar para Cuba em 1965, as pessoas estavam sombrias, silenciosas, despidas de humor que um dia tiveram. (ibidem). Para o revolucionário que havia gozado de todo o sabor da euforia popular, tudo agora estava diferente. O mercado socialista estava vazio, burocrático e feio. (ibidem). As pessoas não respondiam mais com fervor ao grande líder e até nos encontros de multidões, permaneciam em silêncio. (ibidem). Mesmo Che já havia percebido isto em 1962, quando se lamentou junto aos demais revolucionários que era necessário reascender o entusiasmo, pois havia se deixado cair totalmente o brio. (CASTAÑEDA, p. 259). Defender esta tese sobre o processo revolucionário cubano, no mesmo ano em que a Revolução Cubana comemora os seus 50 anos no poder, deve ser algo maior do que uma simples coincidência.

Neste tempo, em que os velhos revolucionários no poder começaram a se afastar, como Fidel Castro, ou a morrer, como Juan Almeida, diferentes olhares se voltam para Cuba.

Estes olhares encontram-se inevitavelmente afundados no meio de uma tempestade intelectual marcada pela crítica às certezas da modernidade e pela inexistência de rumos teóricos seguros.

A decepção com as teorias modernas é também a decepção com os diferentes processos revolucionários. É, sobretudo, a desconfiança de toda e 197

qualquer convicção absoluta e teleológica, cuja fé do revolucionário na Revolução foi um dos grandes expoentes no século XX.

Hoje, os velhos saem de cena tardiamente, quando os valores que eles representam já deixaram o plano principal. Os cabelos brancos de Fidel, seus tombos e fraqueza, contrastam profundamente com o jovem revolucionário viril da luta insurrecional e dos primeiros tempos do poder revolucionário.

Neste momento em que a postura de sacrifício à Revolução se torna uma atitude cada vez mais rara e em que o revolucionário asceta aparece como um ser quase já extinto, nos parece ainda mais relevante a compreensão da conduta do revolucionário cubano na luta insurrecional.

Neste contexto, abre-se a possibilidade de se produzir uma história da Revolução Cubana que não seja mais uma das várias histórias do conflito entre capitalismo e socialismo, ditadura e revolução, classe explorada e classe dominante, imperialismo e nacionalismo. Uma história que não busque simplesmente as grandes estratégias políticas e as grandes mudanças na estrutura econômica.

Foi neste sentido que buscamos produzir uma história dos valores culturais que orientaram a ação social do revolucionário cubano. Nesta busca, foi possível discordar das perspectivas historiográficas que viam no processo revolucionário uma mera aplicação da estratégia leninista em Cuba.

Buscamos compreender o mundo cubano dos anos 50 e o modo como as condições históricas da ilha havia fornecido um conjunto de valores éticos que possibilitaram o ressurgimento da figura do revolucionário cubano após o golpe de Batista.

Este mundo cubano dos anos 50 estava marcado pelo conflito entre a Cuba Moderna e a Cuba Tradicional . A primeira, expressa no desenvolvimento e proliferação do rádio e da televisão, de uma vida noturna e metropolitana em Havana e de uma crescente industrialização; e a segunda, uma Cuba do interior, guajira , imersa em valores tradicionais.

Neste mundo em contradições surgia a geração revolucionária , marcada por valores éticos expressos por toda uma tradição nacional cubana iniciada nas Guerras de Independência e por um estranhamento do novo mundo habanense , corrupto , erotizado , entregue aos prazeres do mundo . 198

Vimos que, apesar do processo de autonomização das esferas que, segundo Weber, caracteriza a modernidade, era possível traçar um paralelo entre uma conduta ascética política e uma conduta ascética religiosa.

Tanto uma quanto a outra são próprias daqueles homens que se sentem um instrumento de uma causa maravilhosa e que tomam a sua ação neste mundo como um dever . Ambas são formas de rejeições do mundo e se expressam a partir de uma conduta de compromisso absoluto com os deveres que se acham portadores.

A esfera política se diferencia, entretanto, da esfera religiosa, entre outras coisas, pela sua necessidade do uso da força física . As éticas políticas se diferenciam entre si por suas diferentes formas de legitimarem a violência . O ascetismo político revolucionário encontra uma forma específica de justificar a ação revolucionária.

Em Cuba, o ascetismo político do revolucionário era a negação da postura pragmática na política, pois um revolucionário asceta não escolhe o caminho em que se chega mais rápido, mas o caminho em que se encontra o dever.

Porém, “o caminho do bem é estreito e espinhoso”, dizia um antigo ditado cristão. O caminho do dever não possui banquetes e festas, mas magos, gigantes, ciclopes e outras feras, além de todo um conjunto de posturas a serem abandonadas em prol do sacrifício como prova do valor nobre do homem. Percebemos em nossa tese, assim, um homem dotado de um conjunto de sentimentos profundos, tais como a superação do eu , o desejo de morte e o abandono do amor pessoal . O revolucionário cubano abandonava o emprego e a vida mediada pelo deus dinheiro e pelo sucesso pessoal para se dedicar a uma vida coletiva na Sierra , nas prisões e nos esconderijos do Llano . Ele abandonava a família e a mulher amada para se casar com Cuba, sua maior paixão, trocando o amor pessoal pelo amor impessoal à pátria. Ele sacrificava o conforto e se dispunha a dar a própria vida pela causa revolucionária, visto que nada importava se o corpo vivia ou se o corpo morria, desde que as idéias se tornassem eternas.

Este homem que cultuava o sacrifício como obra de homens de valor, também construía uma concepção de corpo firmada no auto-controle , na contenção dos prazeres , no poder da alma sobre cada músculo. Corpo dócil , pois adestrado por treinamentos físicos e discursos marcados por interditos. Corpo viril , pois 199

marcado pela força física e brutalidade do homem-masculino . Corpo Hierárquico , pois marcado por uma pirâmide de olhares que disciplina o espaço e coloca o corpo revolucionário em seu devido lugar.

Ao escrever estas considerações finais temos a sensação de que demos apenas um ponta-pé inicial para uma pesquisa futura sobre a ética revolucionária. Muitos elementos culturais da vida revolucionária ainda poderão ser aprofundados.

Nos intriga ainda pensar se haveria vínculos entre a ética revolucionária constituída no período insurrecional e o mundo criado pelos revolucionários após a tomada do poder em 1959. Será possível pensar que este ascetismo político revolucionário foi um dos traços importantes na constituição do tipo de regime revolucionário?

Em um texto inspirador, publicado em 1959, o escritor cubano Virgílio Piñera havia escrito que cada qual terá a sua opinião sobre o ponto alto da Revolução. Para alguns seria o momento da luta clandestina, quando os homens lutaram com o sacrifício elevado; para outros, seriam as conquistas sociais; mas, para ele, o ponto alto foi o momento em que o povo se lançou à rua, como um rio transbordado, para festejar, em plena virada do ano, a fuga de Batista. (PIÑERA, 2008). Para o poeta, o momento alto era o momento da alegria, o momento da multidão. Mas, para um asceta , a grandiosidade da Revolução estava no sofrimento, nos momentos de maiores sacrifícios e, portanto, de heroísmo. Eleger o ponto alto da Revolução era definir o modo como deveria ser a Revolução. Para um poeta que dizia, como Virgílio, que o homem era livre no exercício de sua vida sexual, pois nela nada poderia frustar seu ímpeto criador; revolução libertadora não entrava em conflito com os prazeres do corpo, mas os reforçava como elementos fundamentais de libertação. Entretanto, para um típico asceta , a Revolução era sinônimo de abnegação, contenção, dedicação plena, postura abnegada. Che Guevara (1960) elegeu o guerrilheiro na Sierra Maestra como o ponto alto da Revolução Cubana. Elegeu a sua disciplina e o seu sacrifício e não o rio popular transbordante, alegre e incontrolável, de Virgílio Piñera. Ainda nos intriga pensar se o corpo viril que aqui analisamos, por exemplo, não teria vínculos com toda a perseguição aos homossexuais que foram desde os expurgos nos centros de ensino e de trabalho até a constituição de campos de 200

concentração. Não teria também vínculos com a noção de homem digno da revolução, entregue ao uso da força física, tendo o trabalho e a defesa da revolução como elementos centrais? Não estaria ainda ligado ao desprezo à arte não militante e à filosofia não materialista? Os quadrinhos da Revista Mella , como aqueles que mostravam a vida de Florito Volandero , em 1965, como um homossexual enrustido, sensível e artista e, portanto, contra-revolucionário; nos parece exemplar. Porém mais ainda nos interessa. O ascetismo político firmado em uma profunda noção de sacrifício do revolucionário não seria um dos traços que impulsionou a criação de um mundo marcado pelo discurso: d entro da Revolução tudo, fora da Revolução, nada ? Sacrificar o conforto, no mundo de bens racionados, sacrificar a arte, em um mundo engajado, sacrificar os domingos, no mundo de voluntários, teria algo de postura ascética?

O ascetismo político é, sem dúvida alguma, uma ética dos deveres absolutos . Uma ética daqueles que, como disse Nieztsche, enchem a boca e estufam o peito para dizer cheio de certezas: É necessário... Deve-se... . Qual é o alcance desta postura no período em que, como disse Che, toda Cuba deveria ser uma Sierra Maestra e todo cubano deveria ser um guerrilheiro?

Tudo isto são questões que estamos longe de responder, mas que deixam um campo amplo de análises para que possamos continuar nesta longa e árdua tarefa de compreender o conturbado e polêmico processo revolucionário cubano.

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