A INTOLERÂNCIA ENTRE IRMÃOS EM MACHADO DE ASSIS E MILTON HATOUM

Adriana Paes Vieira 1 Júlio César da Silveira 2 Mírian Lúcia Brandão Mendes 3

RESUMO O confronto entre grupos humanos é um fato presente ao longo dos tempos, derivado, quase sempre, do medo de comprometimento das suas capacidades de sobrevivência. Ao lado desse fenômeno, as relações conflituosas entre indivíduos de um mesmo grupo familiar são acontecimentos recorrentes. A natureza e a causa da intolerância entre irmãos, em todos os tempos e em todas as culturas, continuam chamando a atenção de estudiosos do comportamento humano. Este trabalho procura similaridade entre as motivações que desencadearam os dramas narrados em Esaú e Jacó (ASSIS, 1994) e Dois Irmãos (HATOUM, 2013). Para refletir essa questão, trabalhou-se com o dialogismo e a intertextualidade de Bakhtin (2006) e as relações de texto e contexto apresentadas por Cândido (1995).

Palavras–chave : Dois Irmãos. Esaú e Jacó. Intolerância. Dialogismo.

ABSTRACT

The conflict between human groups is present in our history, sometimes due the fear of compromising their survival skills. Alongside this phenomenon, the conflicting relationships between individuals of the same family group are recurring events. The nature and cause of intolerance among siblings, in all times and in all cultures, continue drawing the attention of scholars of human behavior. This work seeks similarity between the motivations that led the dramas narrated in Esaú e Jacó (ASSIS, 1994) and Dois Irmãos. (HATOUM, 2013). To think this issue, we worked with intertextuality and dialogism of Bakhtin (2006) and the relationship of text and context presented by Cândido (1995). Keywords : Dois Irmãos. Esaú e Jacó. Intolerance. Dialogism.

Introdução

Grande parcela do noticiário veiculado pelos nossos meios de comunicação é dedicada às desavenças inconciliáveis entre pessoas, grupos étnicos, seitas religiosas e nações. Relatos de conflitos humanos atravessam o tempo e chegam até nós, espelhando o ambiente que nos rodeia, em casa, no trânsito, nos escritórios, nas escolas.

1 Graduada em Letras pelo Centro Universitário Newton Paiva. 92 2 Graduado em Letras pelo Centro Universitário Newton Paiva. 3

Doutoranda em Estudos Linguísticos – UFMG - Professora no Centro Universitário Newton Paiva. Página

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A produção literária não tem ficado alheia a esses acontecimentos e ganha força ao narrar confrontos que comprometem a coexistência entre irmãos. De fato, não são poucos os autores que se debruçaram sobre esses conflitos, exercitando o dialogismo e a polifonia caracterizados por Bakhtin (2006). A recorrência do tema interessa à ciência social e, em especial, ao profissional da área de Letras e, como profissionais desta área, julgamos procedente a busca do entendimento das causas que levam irmãos a se odiarem desde tenra idade, mal saídos do berço. Há pouco mais de cem anos, Machado de Assis, em Esaú e Jacó, usou a rivalidade entre os irmãos Pedro e Paulo para nos apresentar e esboçar os primeiros passos do Conselheiro Aires. Recentemente, Milton Hatoum também visitou esse mesmo tema com Dois Irmãos , enfocando as desavenças entre os gêmeos Yaqub e Omar. Diante dessa similitude temática, pode-se dizer que a narrativa contemporânea de Hatoum se entrecruza num diálogo intertextual com o romance de Machado de Assis, observação que encontra respaldo na concepção bakhtiniana, “Tudo se reduz ao diálogo, à contraposição dialógica enquanto centro. Tudo é meio, o diálogo é o fim. Uma só voz nada termina, nada resolve. Duas vozes são o mínimo de vida”. (BAKHTIN, 2006, p. 257). Mas como o autor sempre precede a sua obra, faz-se necessário tecer algumas considerações importantes sobre os dois romancistas antes de falar sobre o dialogismo.

O autor e seu meio

Cento e treze anos, quatro mil quilômetros, incontáveis invenções tecnológicas e eventos políticos que mudaram hábitos e costumes, separam as existências de Machado de Assis (Rio de Janeiro, 1839 - 1908) e Milton Hatoum (, 1952-). Machado de Assis nasceu em área suburbana do Rio de Janeiro, onde teria passado a sua infância. Afortunadamente, a sua boa índole concorre para que, desde tenra idade, encontre pessoas que a ele se afeiçoam e o ajudam a superar as dificuldades naturais impostas por uma sociedade segregacionista, apegada às distinções de classe: 93 Página

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Se analisarmos a sua carreira intelectual, verificaremos que foi admirado e apoiado desde cedo, e que aos cinquenta anos era considerado o maior escritor do país, objeto de uma reverência e admiração gerais, que nenhum outro romancista ou poeta brasileiro conheceu em vida, antes e depois dele. (CANDIDO, 1995, p.1).

Em 1856, aos 17 anos, é aceito como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, início do seu contato efetivo com o mundo das letras. Assis vive a época dourada dos folhetins, quando os autores são apresentados ao grande público em capítulos, através das páginas dos jornais - um meio barato para se testar a reação do leitor, a aceitação ou a rejeição do autor. É, sem dúvida, um período de grande brilho da literatura universal. A Europa Ocidental, que já assimilara Stendhal ( O Vermelho e o Negro , 1830) e Balzac ( A Mulher de 30 Anos , 1831), se escandaliza com Flaubert (Madame Bovary, 1857) e aplaude Victor Hugo ( Os Miseráveis , 1862). Dostoievski ( Crime e Castigo , 1866) e Tolstoi (Anna Karenina, 1873) ajudam a consolidar o prestígio da literatura russa. Em Portugal, Eça de Queiróz, com O Crime do Padre Amaro (1876) e O Primo Basílio (1878), abraça o realismo modelado por Balzac. A genialidade de Rodin, Monet, Renoir, Matisse revoluciona as artes plásticas. Gauguin foge de Paris e corre o mundo, pintando paisagens exuberantes e mulheres exóticas, atiçando o imaginário europeu. Van Gogh mergulha em sua loucura de onde retira cores e formas intrigantes. No Brasil, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Fagundes Varela marcam a poesia romântica, enquanto Castro Alves empresta a sua pena das asas de um condor beligerante que investe contra as injustiças sociais. A prosa, fiel ao estilo romântico, é enriquecida por Joaquim Manoel de Macedo ( A Moreninha , 1844), Manuel Antônio de Almeida ( Memórias de um sargento de milícias, 1854), Bernardo Guimarães ( Escrava Isaura , 1875) e José de Alencar que, ao publicar Senhora (1875), coloca um pé na escrita realista. O jovem Assis passeia pelas veredas da linha romântica ( Ressurreição, 1872; A mão e a luva, 1874; Helena, 1876; Iaiá Garcia, 1878) até 1881, quando inaugura o realismo brasileiro com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas . 94 Página

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Naquele mesmo ano, 1881, Aluísio Azevedo escreve O Mulato , marco do movimento naturalista, consolidado nove anos mais tarde com a publicação de O Cortiço . Olavo Bilac, Coelho Neto, Graça Aranha, José Veríssimo e Euclides da Cunha são nomes que, também, convivem com Machado de Assis, lustram sua época. Notável, entretanto, que a produção artística brasileira daquele período, notadamente as artes plásticas, não se desgarra do rigor acadêmico, talvez, por seus compromissos com a ordem estabelecida. Milton Hatoum é precedido pela abertura de novos caminhos por onde transitaram modernistas e regionalistas de todos os cantos do país: os poetas Manoel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade; os romancistas Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Raquel de Queiróz, Guimarães Rosa, Jorge Amado; artistas plásticos bem representados por Di Cavalcanti, Portinari, Tarsila do Amaral e Carybé. O cenário internacional conheceu Proust, Faulkner e Steinbeck; acompanhou as andanças de T. S. Eliot, James Joyce, Scott Fitzgerald, John dos Passos, Ernest Hemingway – a Geração Perdida, embalada pelo jazz e mergulhada no absinto; viu nascer e morrer o gênio de Camus. Criadores de tipos e de obras que continuam influenciando bons autores. Paris, então, se colocava no centro do universo, ponto de convergência de artistas de todos os cantos, todos os ofícios, todos os quilates. Pablo Picasso, Salvador Dali, Pablo Casals, expoentes da arte espanhola, ali buscaram refúgio. Esse é o terreno de relevos variados que o amazonense Hatoum, arquiteto e professor universitário, tem sabido aproveitar para erguer o seu edifício literário, fazendo boa companhia a nomes já consagrados como Autran Dourado, , , , João Ubaldo Ribeiro. Os romances de ambos os autores, apesar da diferença de época em que foram escritos, dialogam entre si no que diz respeito à temática central que envolve a trama.

O dialogismo

Segundo Bakhtin (2006), o discurso é dialógico pelo fato de que ele se constrói 95

entre, pelo menos, dois interlocutores que, por sua vez, são seres sociais e estabelecem Página

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relações com outros discursos que configuram uma sociedade, uma comunidade, uma cultura. Segundo ele, o ser humano é inconcebível fora das relações que o ligam ao “outro”:

Não tomo consciência de mim mesmo senão através dos outros, é deles que eu recebo as palavras, as formas, a tonalidade que formam a primeira imagem de mim mesmo. Só me torno consciente de mim mesmo, revelando-me para o outro através do outro e com a ajuda do outro. (TODOROV, 1981, p. 148)

O “outro”, mencionado por Todorov (1981), pode também envolver o destinatário, para quem o sujeito ajusta a sua fala. Isso porque a fala é produzida a partir das representações de um tempo histórico e de um espaço social. Por essa razão, o sujeito, ao produzir enunciados, situa o seu discurso em relação ao discurso do “outro”. Mas também há outra dimensão do sentido do dialogismo que não o reduz às relações entre os sujeitos nos processos discursivos, mas que se refere ao permanente diálogo entre os diversos discursos que configuram uma sociedade, estabelecendo, então, uma relação intertextual que pode ser percebida no interdiscurso. Essa é a dimensão do dialogismo que evidencia a natureza interdiscursiva e a similitude temática entre as obras Esaú e Jacó, de Machado de Assis, e Dois Irmãos de Milton Hatoum e que pretendemos analisar neste trabalho.

A relação dialógica entre Isaú e Jacó e Dois Irmãos

A narrativa bíblica do conflito que envolveu os gêmeos Esaú e Jacó chamou a atenção de Assis e Hatoum que recriaram a trama, cada um deles sob a ótica e a regência do seu tempo. A inspiração no discurso bíblico é a primeira evidência intertextual entre as obras. Curiosamente, ambos os autores também passam ao largo de grandes acontecimentos que mudaram os rumos da nossa sociedade, ainda que, cada um em seu tempo, os tenha vivenciado ou, pelo menos, observado. Transpostos para suas narrativas

(ASSIS, Esaú e Jacó, 1994; HATOUM, Dois Irmãos, 2013), tais acontecimentos são objetos de referências aqui e acolá, como se cada evento não passasse de um simples marco à 96 beira do caminho evidenciando, assim, a relação dialógica entre as obras. Página

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Hatoum, em Dois Irmãos , faz referência à II Guerra Mundial para marcar o retorno ao Brasil do gêmeo Yaqub:

Quando Yaqub chegou do Líbano, o pai foi buscá-lo no Rio de Janeiro. O cais da praça Mauá estava apinhado de parentes de pracinhas e oficiais que regressavam da Itália. Bandeiras brasileiras enfeitavam o balcão e as janelas [...] Ele avistou o filho no partaló do navio que acabara de chegar de Marselha. Não era mais o menino, mas o rapaz que passara cinco dos seus dezoito anos no sul do Líbano. (HATOUM, 2013, p.13).

Da mesma forma, a tomada do poder pelos militares, em 1964, recebe o mesmo tratamento modesto, ficando restrita à morte trágica de Laval, professor, poeta e ativista político: O professor de francês não voltou mais ao liceu, até que numa manhã de abril nós presenciamos sua prisão. Ele acabara de sair do Café Mocambo, [...] Foi humilhado no centro da praça das Acácias, esbofeteado como se fosse um cão vadio à mercê da sanha de uma gangue feroz. Seu paletó branco explodiu de vermelho e ele rodopiou no centro do coreto, as mãos cegas procurando um apoio, o rosto inchado voltado para o sol, o corpo girando sem rumo, cambaleando, tropeçando nos degraus da escada até tombar na beira do lago da praça. Os pássaros, os jaburus e as seriemas fugiram. A vaia e os protestos de estudantes e professores do liceu não intimidaram os policiais. Laval foi arrastado para um veículo do Exército, e logo depois as portas do Café Mocambo foram fechadas. Muitas portas foram fechadas quando dois dias depois soubemos que Antenor Laval estava morto. Tudo isso em abril, nos primeiros dias de abril. (HATOUM, 2013, p.189).

Não se sabe se foi por mera coincidência que a cena da prisão do professor Laval remete o leitor ao assassinato do poeta Garcia Lorca pelas forças franquistas durante a Guerra Civil Espanhola, em 1936. Também, não deixa de ser notável que o clima de otimismo vivido durante o Governo Kubitschek, a construção de Brasília, as mudanças cíclicas havidas na economia amazonense, as transformações sociais testemunhadas pela cidade de Manaus que empresta sua paisagem para o desenvolvimento da narrativa e toda a inquietação política que antecedeu o Golpe de 64 são apresentados em pinceladas difusas. Hatoum, então, se concentra na narrativa dos dramas que cercam o cotidiano da família de imigrantes libaneses, uma família nascida do desejo carnal, marcada pela individualidade, que nunca se fez una, que se esvai como farinha de tapioca por entre as mãos impotentes do patriarca Halim. Dono de uma linguagem enxuta, pouco dado aos 97 Página

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floreios, Hatoum se destaca pela narrativa tortuosa, descompromissada com a cronologia. Assis (1994), ao narrar a existência morna de Pedro e Paulo, se ocupa da descrição precisa dos hábitos e costumes da sociedade da época, não dispensando referências irônicas aos maneirismos e à futilidade que ditavam o comportamento e os objetivos da alta classe média que vivia à sombra do sistema, à cata dos restos dispensados pelos detentores do poder:

Sob o rapaz alegre e mais tarde burguês comedido que procurava ajustar-se às manifestações exteriores, que passou convencionalmente pela vida, respeitando para ser respeitado, funcionava um escritor poderoso e atormentado, que recobria os seus livros com a cutícula do respeito humano e das boas maneiras para poder, debaixo dela, desmascarar, investigar, experimentar, descobrir o mundo da alma, rir da sociedade, expor algumas das componentes mais esquisitas da personalidade. (CANDIDO, 1995, p.3).

Entretanto, finge ignorar as questões raciais e restringe o drama das relações entre brancos e negros ao dia a dia na residência dos Santos, ou aos breves comentários distanciados: Não esqueça dizer que, em 1888, uma questão grave e gravíssima os fez concordar também, ainda que por diversa razão. A data explica o fato: foi a emancipação dos escravos. Estavam então longe um do outro, mas a opinião uniu-os. A diferença única entre eles dizia respeito à significação da reforma, que para Pedro era um ato de justiça, e para Paulo era o início da revolução. Ele mesmo o disse, concluindo um discurso em São Paulo, no dia 20 de maio: "A abolição é a aurora da liberdade; esperemos o sol; emancipado o preto, resta emancipar o branco". (ASSIS, 1994, p.42).

O mesmo foco se verifica quando fala da Proclamação da República como se fosse coisa do cotidiano. O nosso maior autor grafa esses e outros acontecimentos como meros instrumentos de referência temporal, sem se abalar com críticas, a exemplo do narrador, no qual parece projetar a sua personalidade, quando responde a uma leitora mais açodada: “Francamente eu não gosto de gente que venha adivinhando e compondo um livro que está sendo escrito com método.” (ASSIS, 1994, p.33). Indiferente a qualquer censura, Assis se mantém fiel à sua linha de trabalho, dialogando com o leitor, de quem exige um rico conhecimento do mundo, pedindo sua opinião, ouvindo suas respostas. Assis imprime uma narrativa dinâmica em que as 98 Página

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frequentes interferências do narrador, ironicamente, parecem desenhar o formato das radionovelas que mexeriam com a cabeça das mulheres brasileiras meio século depois. Nada em Assis foi circunstancial ou casual. Ao relegar às entrelinhas os acontecimentos, mesmo aqueles de alcance nacional, é provável que ele estivesse apontando a efemeridade das coisas e reservando-se o direito de optar pelo foco das causas e motivações que movem as paixões humanas, observá-las, estudá-las e dar-lhes vida em narrativas imortais.

Pedro e Paulo

Sobre o pano de fundo formado pelo disse-que-disse do Rio de Janeiro imperial, Machado de Assis esboça a existência insípida dos irmãos Santos e, ao lado disso, se deixa mostrar na figura enigmática do Conselheiro Aires:

[...] era o mesmo ou quase. Encalveceu mais, é certo, terá menos carnes, algumas rugas; ao cabo, uma velhice rija de sessenta anos. Os bigodes continuam a trazer as pontas finas e agudas. O passo é firme, o gesto grave, com aquele toque de galanteria, que nunca perdeu. Na botoeira, a mesma flor eterna. (ASSIS, 1994, p.37).

Elegante, enigmático, maduro, Aires é um conhecedor dos homens e das suas motivações. Um personagem que bem poderia ter ganhado vida nas páginas dos romances de época londrinos. Um dândi, com suas casacas bem talhadas e seus gestos comedidos e intervenções estudadas. A exemplo do seu criador, que então vivia o seu outono, Aires é um sessentão devotado a um eterno amor platônico, incapaz de um voo mais alto por medo, talvez, da queda insuportável. A ele, um homem que nunca experimentara os compromissos da paternidade (tal qual Assis), foi dada a tarefa de acompanhar a trajetória dos gêmeos, uma trajetória feita de atração e repulsa: não se toleram, mas não se afastam, posto que cada um deles se volta para a observação dos passos do outro, atritando-se por mesquinharias, como lhe confidencia Natividade, a

mãe sempre zelosa: — Sabe que os meus dois gêmeos não combinam em nada, ou só em pouco, por mais esforços que eu tenha feito para os trazer a certa harmonia. Agostinho 99 não me ajuda; tem outros cuidados. Eu mesma já não me sinto com forças, e Página

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então pensei que um amigo, um homem moderado, um homem de sociedade, hábil, fino, cauteloso, inteligente, instruído [...] (ASSIS, 1994, p.45).

A aceitação dos pedidos que lhe faz Natividade aprofunda o envolvimento de Aires com os Santos, uma família que tem por titular o Senhor Agostinho, indivíduo transparente, mais afeito aos abraços do sucesso financeiro que aos braços da mulher. Um observador privilegiado - assim poderia ser resumida a posição de Aires em meio àquela gente. De fato, ele contenta-se com orbitar em torno de Natividade e de tudo o que a ela respeita. Um fiel seguidor de uma seita chamada desejo contido. Nem um passo além. Não ata nem desata. Mais tarde, em Memorial de Aires , publicado por Machado de Assis em 1908, o Conselheiro deixa escapar a possível motivação do seu comportamento contido quando, diante da promessa de um novo amor, cita distraído um verso de Shelley: I can give not what men call love. Assim disse comigo em inglês, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho da minha composição: "Eu não posso dar o que os homens chamam amor... e é pena!” (ASSIS, 1994, p.9).

Como bússola atenta, Aires se orienta para o atendimento dos anseios confessáveis da Senhora Santos, sempre preocupada com a convivência conflituosa dos filhos. Um conflito inexplicável para todos os circundantes. Os desentendimentos tiveram início ainda no berço, ou melhor, ainda no ventre, palco de grandes solavancos durante todo o período de gestação, uma gestação indesejada pela mãe surpresa com a gravidez após dez anos de casamento - um momento da vida em que há muito já se afeiçoara com a sua boa posição nas rodas elegantes da capital do Império. Ao contrário do marido, exultante com o grande feito, Natividade mal e mal continha o seu desconforto com a maternidade, enquanto o seu ventre tomava novas formas para, então, a todos surpreender com a parição de gêmeos. A vinda de gêmeos trazia uma explicação razoável para os incontáveis pontapés em sua barriga. Mas, Natividade não estava convencida desta explicação simplista e, um ano após o nascimento dos filhos, esgueirou-se por becos e vielas e foi visitar uma

vidente em um morro da periferia. A cabocla, afamada entre o populacho, falou que os 100 gêmeos estavam destinados à rivalidade permanente. Nada se podia fazer. Entretanto, Página

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havia uma compensação: ambos seriam homens de muito sucesso. Mas, o que podia saber a cabocla do futuro? Sabia muito, como a Tia Perpétua chegou a confidenciar à Flora, menina moça que, mais tarde, polarizaria as atenções dos gêmeos: ”— Sabia, e a prova é que adivinhou outras coisas, que não posso contar e eram verdadeiras. Você não imagina como o diacho da cabocla via longe. E tinha uns olhos de espetar o coração.” (ASSIS, 1994, p.100). Preocupada com a permanente rivalidade entre os filhos e determinada a fazer valer a predição de um futuro glorioso para ambos, Natividade a eles se apegou, controlando comportamentos e desenhando caminhos. Por seu lado, o amor filial é feito de entregas agradecidas e de recusas motivadas pelo desejo de autoafirmação. O conflito tecido por Machado de Assis mostra ambos os gêmeos inteiramente devotados à mãe, ao tempo em que as suas recusas, cada um as dirige para o outro. Recusas que se tornam conflituosas na medida em que vão crescendo e descobrindo objetivos que querem somente para si. E, pior, o objeto de desejo de um é sempre ambicionado pelo outro. Nas portas da fase adulta, os rapazes são apresentados a Flora, moça casadoira, filha única de um casal de servidores menores do Império. Flora cai de amores pelos gêmeos, por ambos, incapaz de decidir por um ou por outro, posto que, ao lado de um sente a falta do outro. Para ela, Pedro e Paulo são como metades de um todo: embora idênticos nas fisionomias, cada um deles carrega as particularidades que faltam ao outro, o que, aos olhos da donzela apaixonada, os torna incompletos quando sós. Por suas vezes, os irmãos encontram outro motivo para exercitar as suas rivalidades. Ambos sonham e lutam pelo amor de Flora. É o que parece, à primeira leitura, mas que pode não ser a expressão da verdade. De fato, a mensagem passível de ser apreendida pelo leitor é a de que Paulo não ama Flora; ama, sim, a mulher que julga ser amada por Pedro. O mesmo pode ser dito com relação a Pedro. Retomando a presença da intertextualidade bíblica já mencionada neste trabalho, os irmãos Esaú e Jacó encontram motivações para a discórdia: o pai apegado às tradições tribais; a mãe que se deixa levar pelas preferências por um dos filhos; a natural ambição por um legado político e econômico. O mesmo não se observa no que respeita a 101

Pedro e Paulo que, desde tenra idade, recebem tratamento igualitário da parte de todos Página

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às suas voltas: a mãe desdobra-se em desvelos, mostra-se onipresente no dia a dia de ambos; o pai, embora ocupado com seus projetos pessoais, nunca se faz de rogado quando se trata da compra de mimos; a tia, Perpétua, um anjo da guarda, sempre atenta à vontade dos pirralhos. Uma adulação que se projeta para fora do ambiente familiar, como no comentário dos transeuntes que com os gêmeos cruzavam nas ricas passarelas do Rio: “As que os viam passar a cavalo, praia fora ou rua acima, ficavam namoradas daquela ordem perfeita de aspecto e de movimento.” (ASSIS, 1904, p.34). Poderia, aí, ser encontrada a explicação da animosidade crescente entre os irmãos. Embora Assis não se detenha na busca das causas do conflito entre Pedro e Paulo, deles fazendo mera parada nas andanças do Comendador Aires, no capítulo XVIII o narrador apresenta uma passagem que, aparentemente, pode ser indicativa das motivações para a perenidade da intolerância entre os irmãos:

Natividade acudiu prestemente, não tanto que impedisse a troca dos primeiros murros. Segurou-lhe os braços a tempo de evitar outros, e, em vez de os castigar ou ameaçar, beijou-os com tamanha ternura que eles não acharam melhor ocasião de lhe pedir doce. Tiveram doce; tiveram também um passeio, à tarde, no carrinho do pai. Na volta estavam amigos ou reconciliados. [...] De noite, na alcova, cada um deles concluiu para si que devia os obséquios daquela tarde, o doce, os beijos e o carro, à briga que tiveram, e que outra briga podia render tanto ou mais. (ASSIS, 1994, p.24).

O trecho acima deixa à mostra que o medo da perda das atenções maternas vem se juntar a certeza de ganhos decorrentes das suas disputas. Uma conclusão infantil, focada na figura materna, que é transposta para todos os objetivos orientadores das suas existências. É muito pouco para uma explicação cabal. Como é possível depreender da avaliação de Antônio Cândido (1995), pode ser que o autor use os gêmeos e suas idiossincrasias como pretexto para expor suas próprias dúvidas sobre o homem e as coisas que o cercam e fundamentam sua existência:

Serei eu alguma coisa mais do que o ato que me exprime? Será a vida mais do

que uma cadeia de opções? Num dos seus melhores romances, Esaú e Jacó, ele retoma, já no fim da carreira, este problema que pontilha a sua obra inteira. Retoma-o sob a forma simbólica da rivalidade permanente de dois irmãos

gêmeos, Pedro e Paulo, que representam invariavelmente a alternativa de 102 qualquer ato. Um só faz o contrário do outro, e evidentemente as duas Página

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possibilidades são legítimas. O grande problema suscitado é o da validade do ato e de sua relação com o intuito que o sustém. (CÂNDIDO, 1995, p.8).

É clara a capacidade de interação do autor com os seus personagens, mantendo em todo o texto a chama do diálogo.

Yaqub e Omar

Em linguagem contida, sem floreios desnecessários, Milton Hatoum desenha com pinceladas despretensiosas a paisagem da Manaus em que o chão firme disputa espaço com os incontáveis igarapés e com o poder inigualável do grande rio. Fala de uma terra aberta aos forasteiros e fechada aos nativos, estes, representados na via-crúcis de Domingas, a índia criada e amestrada por freiras e que, chegada a puberdade, é vendida para Zana, a matriarca libanesa, de quem passa a ser cozinheira, lavadeira, confidente involuntária, bode expiatório:

“Trouxe uma cunhantã para vocês”, disse a irmã [...] Zana tirou um envelope do pequeno altar e o entregou à religiosa. As duas foram até a porta e Domingas ficou sozinha, contente, livre daquela carrancuda. Se tivesse ficado no orfanato, ia passar a vida limpando privada...(HATOUM, 2013, p.77).

Domingas mal se acostuma à vida naquela casa de imigrantes, saudosa da sua aldeia natal, mas feliz por se livrar das garras das irmãs que comandavam o orfanato. Experimenta a dor do estupro praticado por um filho da casa que se sentiu no direito de invadir o quartinho dos fundos com o mesmo destemor que o guiava pelos becos e prostíbulos de Manaus. Nael, filho de Domingas e de um dos filhos da casa, é o narrador que desenrola a linha do tempo em zig zags desconcertantes. Os fatos, alguns deles escabrosos, vão sendo revelados a conta-gotas, sem compromisso com a cronologia. Assim, ficamos sabendo que Halim, ao longo de toda a sua patética existência,

jamais tivera alguém ou algo que amasse mais que a sua idolatrada Zana, mulher de temperamento dominador, espírito indomável e de um corpo feito de brasas adocicadas

- mais doces que os sonhos do velho imigrante: 103

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Esperou: paciente, insistente na paciência. Então ela sugeriu que abrissem um pequeno comércio na rua dos Barés, entre o porto e a igreja [...] Halim concordou. Concordava com tudo, desde que todos os assentimentos terminassem na rede ou na cama ou mesmo no tapete da sala. (HATOUM, 2013, p.64).

Uma união tumultuada pela chegada dos gêmeos Yaqub e Omar, o Caçula - consideração decorrente do fato de haver deixado o útero materno alguns minutos após Yaqub. Alguns anos depois, veio Rânia. O nascimento dos gêmeos não traz a alegria paterna a Halim que, de um momento para o outro, perde as atenções carnais da sua Zana que, então, troca as travessuras da cama, da rede e do tapete pela devoção aos rebentos, com especial predileção por Omar, o Caçula. Dá as costas ao marido chorão e dosa os momentos de prazer cuja falta atazana as entranhas de Halim. É outra mulher, como nos conta Nael:

Então, era isso assim: ela, Zana, mandava e desmandava na casa, na empregada, nos filhos. Ele, paciência só, um Jó apaixonado e ardente, aceitava, engolia cobras e lagartos, sempre fazendo as vontades dela, e, mesmo na velhice, mimando-a, “tocando alaúde para ela”, como costumava dizer. (HATOUM, 2013, p.54).

A preferência escancarada da mãe gera em Omar a certeza de que tudo pode; em Yaqub, repousa o sentimento de rejeição; em Halim as dores do fracasso diante de uma família que se arrasta aos trancos e barrancos, impotente diante do desmoronamento que vai se tornando evidente. Um lar em constante conflito, uma bomba prestes a detonar. Nem o nascimento de Rânia tem o poder de trazer a paz almejada por Halim. Uma família retalhada: Omar polariza as atenções da mãe que a ele se apega com zelo extremo; Yaqub é deixado aos cuidados de Domingas; Rânia cresce por si só, negligenciada, ensimesmada, o fantasma que habita uma casa onde todos se voltam para os gêmeos e suas estripulias. Rânia abraça a solidão, indiferente aos olhares que, mais tarde, desperta em pretendentes de todos os calibres. Entrega-se à contemplação dos irmãos: Yaqub que lhe dedica um amor

fraterno; Omar que extravasa o seu bem querer com a mescla de mimos e investidas incestuosas:

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[...] e Omar reaparecia, de carne e osso, sorrindo cinicamente para a irmã. Sorria, fazia-lhe cócegas nos quadris, nas nádegas, uma das mãos tateava-lhe o vão das pernas. Rania suava, se eriçava e se afastava do irmão, chispando para o quarto. (HATOUM, 2013, p.93).

A indisposição entre os gêmeos ganha corpo enquanto eles crescem, estimulada pelo tratamento diferenciado dispensado pela mãe. O ponto de não retorno ocorre com o aparecimento de Lívia, sobrinha de Estelita, a vizinha que se recusa a aceitar a decadência trazida pelos novos tempos:

Zana se deixava impressionar com o passado de Estelita. O avô dela, um dos magnatas do Amazonas, aparecera na capa de uma revista norte-americana que a neta mostrava para todo mundo [...] “O rei da Bélgica se hospedou em casa e passeou no iate do meu avô”. (HATOUM, 2013, p.83)

A garota polariza as atenções dos gêmeos e, vencido pelo beijo que Lívia deposita no rosto de Yaqub, Omar agarra o gargalo de uma garrafa quebrada e avança contra o irmão que tem o rosto marcado por uma cicatriz em meia lua. A separação é uma alternativa dolorosa, mas inevitável. Um deles deveria ser enviado para uma temporada nas terras dos seus antepassados. Zana vence a queda de braço com Halim e quem deixa a casa é Yaqub que, pré-adolescente, e sem mesmo entender porque, é enviado para as montanhas do Líbano, onde, deveria viver na companhia de parentes desconhecidos. Por alguns meses, somente, foi o planejado pelos pais desorientados. Assim, o colo da Zana, as curvas convidativas de Rânia e as lamacentas ruas de Manaus tornam-se propriedades exclusivas de Omar, o Caçula que tudo pode, ou acha que pode. Cresce sem freios outros que não o olhar reprovador do pai, um olhar que nunca deixou de se submeter às vontades da mulher. Um período conturbado, quando a Segunda Guerra Mundial despeja os seus martírios sobre populações de todos os cantos da terra. E Halim continua sonhando. Sonha com o dia em que Omar não mais seria um problema; sonha com a volta de Yaqub, o filho exilado; sonha com incursões no corpo de Zana, livre de amarras, nunca arredio

como agora, segundo confidenciava a Nael: 105

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Mas era um demônio na cama e na rede. Ele me contou cenas de amor com a maior naturalidade, a voz pastosa, pausada, a expressão libidinosa no rosto estriado, molhado de suor, molhado pala lembrança das noites, tardes e manhãs [...] (HATOUM, 2013, p.54).

No distante Líbano, Yaqub enfrenta um mundo massacrante, perdido em um terreno diferente daquele que o viu nascer. Os olhos acostumados ao verde úmido da floresta agora são agredidos pelo amarelo seco das terras áridas. Cumpre uma pena que se prolonga além do esperado, por força da guerra que desaconselha a travessia do Atlântico. Uma guerra sem tempo marcado para acabar. E, por cinco anos, o jovem Yaqub experimenta a dor do abandono familiar. Finda a Segunda Guerra Mundial, os navios voltam a cruzar o Atlântico e um deles trouxe Yaqub, o filho dividido: meio amazonense e meio árabe; olhos perguntadores, boca selada. Um estrangeiro enigmático, o rosto sombrio, indelevelmente marcado por acontecimentos inexplicáveis. O reencontro reacende o enfrentamento entre os irmãos. O errático Omar não vê com bons olhos o retorno do irmão que redobra a sua dedicação aos livros. Não está disposto a partilhar o amor de Zana, um amor que força as fronteiras das relações filiais e patina em terreno pantanoso. Yaqub, por sua vez, não perdoa o irmão pela cicatriz que carrega na face e pelas outras que lhe cravaram na alma, quando nas terras distantes do Oriente Médio. Após mais uma das violentas reações do Caçula, Yaqub é aconselhado a deixar o Amazonas. O novo destino é São Paulo, onde irá estudar engenharia, incentivado por um professor que vê no jovem uma grande promessa no campo da matemática: “Vá embora de Manaus [...] Se ficares aqui, serás derrotado pela província e devorado pelo teu irmão”. (HATOUM, 2013, p.40). Em São Paulo, Yaqub apresenta bom desempenho nos estudos. Planeja em segredo o reencontro com Lívia, com quem se casa. A notícia do casamento abala Zana e mortifica o Caçula. A dedicação de Yakub é recompensada com o diploma de engenheiro,

num momento em que o país começa a abrir as portas para a industrialização. O futuro promete recompensar o homem que, a cada dia, mostra-se mais frio, mais calculista. Em

Manaus, Omar rasteja em seu curso tortuoso. 106 Página

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É tempo de mudanças. A cidade muda sua face. E a família de Zana segue amofinando-se sob a sombra maligna da discórdia. Morre Halim e, depois, Domingas. Rânia, talvez cansada de tudo e de todos, entrega-se a um Nael aparvalhado - uma noite, uma única entrega, sem explicações, sem vitórias. Zana mergulha em suas alucinações, incapaz de entender os erros que ajudaram o desenvolvimento da inimizade entre os filhos e, quando o destino vem à sua procura, ela mal consegue balbuciar: “Meus filhos já fizeram as pazes?” (HATOUM, 2013, p.12). E das sementes mal plantadas, resta Nael, talvez, o único com alguma chance de sobrevivência.

Considerações finais

São visíveis as diferenças de estilo entre um autor e outro, entre um texto e outro. Entretanto, a similitude temática entre Isaú e Jacó, de Machado de Assis, e Dois Irmãos Milton, de Hatoum, evidencia a relação dialógica entre essas duas obras. O primeiro, Esaú e Jacó , é linear, extrovertido, contado por um narrador muito à vontade com a exposição da sua erudição. Nele, verifica-se a distribuição equânime do amor materno entre os gêmeos Pedro e Paulo. Entretanto, é um amor possessivo, acompanhado de mimos materiais que premiam as constantes reconciliações, sinalizando que os confrontos podem trazer lucros continuados. Assis entende este comportamento infantil e o cultiva, deixando que Pedro e Paulo caminhem para a idade adulta sem se desfazer da bagagem pueril. Dois Irmãos , que também bebeu nas Sagradas Escrituras , é mais contido, tecido em linhas sinuosas, cheias de idas e vindas, como as ruelas da periferia do cais, ponto de referência da velha Manaus. Um texto enxuto, que se apresenta destituído de pretensões outras que a de purificar a alma de Nael, o narrador, o pobre diabo nascido no barracão dos fundos, vizinho dos ribeirinhos desassistidos pela sorte. Aqui, sem dúvida, a causa maior da intolerância está ancorada no tratamento diferenciado que Zana dispensa aos filhos: tudo para Omar que se vê acima do bem e do mal; nada, ou quase nada, para 107

Yaqub que se sente usurpado pelo Caçula. Página

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O livro de Machado de Assis, pela sua trama e, principalmente, pelo seu linguajar típico de uma época reconhecida pela estratificação inconfundível da sociedade, poderia ser transposto para os salões de elegantes endereços londrinos. Por sua vez, a história contada por Hatoum encontraria abrigo nas ruelas de Nápoles, ou no bas-fonds parisiense, mesclando o seu drama com os dos miseráveis que purgam suas dores nas sombras dos becos sem saída. São textos que confirmam que o germe da discórdia está presente em todo e qualquer agrupamento humano e se mantém indiferente às características culturais, religiosas, raciais, econômicas ou políticas deste ou daquele grupo. De fato, não é incomum vermos a troca de agressões entre irmãos, gêmeos ou não, desde os primeiros meses de vida, tão logo se deem conta das suas individualidades. Faz parte da essência do homem, é normal. Anormal é a continuidade e a intensificação da discórdia, sinalizando a existência de um vetor externo levando o combustível que tornará impossível o arrefecimento dos ânimos. Os textos de Hatoum e Assis mostram duas situações distintas que podem, naturalmente, lastrear a intolerância entre indivíduos próximos. Sem dúvida, são narrativas atemporais e de alcance universal.

REFERÊNCIAS

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Artigo aceito em jul./2014.

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