UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

ADONHIRAN BERNARD DE ALMEIDA REIS

A PRÁTICA DE QUARTETO DE CORDAS E SEUS ASPECTOS TÉCNICO-INTERPRETATIVOS E HISTÓRICOS: APLICAÇÃO EM TRÊS OBRAS DE PERÍODOS DISTINTOS

CAMPINAS 2017

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ARTES

A PRÁTICA DE QUARTETO DE CORDAS E SEUS ASPECTOS TÉCNICO-INTERPRETATIVOS E HISTÓRICOS: APLICAÇÃO EM TRÊS OBRAS DE PERÍODOS DISTINTOS

Tese apresentada ao Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção de título de Doutor em Música na Área de Concentração Música: Teoria, Criação e Prática. Orientador: Prof. Dr. Emerson Luiz De Biaggi

Este exemplar corresponde à versão final de Tese defendida pelo aluno Adonhiran Bernard de Almeida Reis e orientada pelo Prof. Dr. Emerson Luiz De Biaggi

CAMPINAS 2017

Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): Não se aplica. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9551-2441

Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Artes Silvia Regina Shiroma - CRB 8/8180

Reis, Adonhiran, 1982- R277p ReiA prática de quarteto de cordas e seus aspectos técnico-interpretativos e históricos : aplicação em três obras de períodos distintos / Adonhiran Bernard de Almeida Reis. – Campinas, SP : [s.n.], 2017.

ReiOrientador: Emerson Luiz de Biaggi. ReiTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes.

Rei1. Quarteto de cordas. 2. Performance (Arte). 3. Música de câmara. I. Biaggi, Emerson Luiz de,1961-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Artes. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The practice of and its technical-interpretative and historical aspects : application in three works of different periods Palavras-chave em inglês: String quartets Performance art Chamber music Área de concentração: Música: Teoria, Criação e Prática Titulação: Doutor em Música Banca examinadora: Emerson Luiz de Biaggi [Orientador] Paulo Gustavo Bosisio Robert John Suetholz Lars Andreas Hoefs Esdras Rodrigues Silva Data de defesa: 17-08-2017 Programa de Pós-Graduação: Música

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BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE DOUTORADO

ADONHIRAN BERNARD DE ALMEIDA REIS

ORIENTADOR - PROF. DR. EMERSON LUIZ DE BIAGGI

MEMBROS:

1. PROF. DR. EMERSON LUIZ DE BIAGGI

2. PROF. DR. ESDRAS RODRIGUES SILVA

3. PROF. DR. LARS ANDREAS HOEFS

4. PROF. DR. PAULO GUSTAVO BOSISIO

5. PROF. DR. ROBERT JOHN SUETHOLZ

Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas.

A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.

DATA: 17.08.2017

À Paula, Gustavo e Júlia

AGRADECIMENTOS

À minha esposa Paula por todo o incentivo, carinho e paciência de sempre durante todo este período. Nada disso seria possível sem você.

Aos meus pais pelo exemplo constante que são, músicos completos e pessoas maravilhosas, nos quais sempre encontro apoio quando necessito.

Ao meu orientador Prof. Dr. Emerson Luiz De Biaggi, que mesmo com uma agenda atribulada consegue sempre encontrar tempo para sanar dúvidas, discutir ideias e propor rumos à pesquisa. Muito obrigado pela atenção, pela amizade e por toda a motivação empregada à pesquisa.

Ao Quarteto Carlos Gomes, do qual tenho imenso orgulho de fazer parte, pela disponibilidade, por toda a ajuda nesta pesquisa, e por fazer de mim um músico melhor, aprendendo a cada ensaio. Muito obrigado Cláudio Cruz, Gabriel Marin e Alceu Reis.

Aos membros das bancas de defesa e qualificação, que muito me ajudaram com suas pertinentes observações: Professores Doutores Paulo Bosísio, Lars Hoefs, Robert Suetholz, Esdras Rodrigues e José Alexandre Carvalho.

Ao Prof. Dr. Antonio José Augusto, que assim como no mestrado, me ajudou a definir um tema, assunto este que me deu tanta alegria e prazer durante toda a pesquisa.

À Universidade Federal do Rio de Janeiro por todo o apoio, e à minha querida Orquestra Sinfônica da UFRJ, em especial na pessoa do Prof. Dr. André Cardoso, sem o qual o doutorado seria inviável. Trabalhar em um ambiente que incentiva a pesquisa e o aprimoramento pessoal é fundamental e muito especial.

RESUMO

O presente estudo tem como objetivo apresentar subsídios para a prática de quartetos de cordas, a partir de eixos históricos, técnicos e interpretativos, utilizando como base e exemplificação três obras de diferentes períodos e estilos. O primeiro capítulo apresenta de forma sucinta o desenvolvimento histórico do quarteto de cordas desde suas origens até o século XXI, tendo como principal finalidade uma mais ampla compreensão do quarteto, do que ele representa e do seu papel na sociedade e dentro da história da música. No segundo capítulo são propostos subsídios para a prática, separados por tópicos, como por exemplo a afinação, sincronismo, ritmo, interpretação e tradição dentre outros, procurando apresentar não somente as dificuldades que tendem a surgir quando da prática, como também soluções apontadas por conjuntos destacados e pedagogos com larga experiência O terceiro capítulo tem como proposta sintetizar os precedentes, exemplificando o que foi debatido anteriormente. Com base em três obras distintas em estilos e épocas, a saber o quarteto A Caça de Mozart, o Quarteto Americano de Dvořák e o último quarteto de Villa-Lobos, são sugeridos alguns subsídios para a interpretação assim como exercícios e abordagens visando um aprimoramento técnico destas peças. Além da literatura disponível, auxiliam neste capítulo depoimentos sobre essas obras pelos integrantes do Quarteto Carlos Gomes.

Palavras-chave: música de câmara; quarteto de cordas; performance musical

ABSTRACT

The present study aims to present subsidies for the practice of string quartets, based on historical, technical and interpretative axes, using as basis and exemplification three works of different periods and styles. The first chapter briefly summarizes the historical development of the string quartet from its origins to the twenty-first century, with the main purpose being a broader understanding of the quartet, what it represents and its role in society and within the history of music. In the second chapter, practical subsidies are proposed, separated by topics such as intonation, ensemble, rhythm, interpretation and tradition among others, seeking to present not only the difficulties that tend to arise when in practice, but also solutions pointed out by ensembles and pedagogues with wide experience. The third chapter works as a synthesis of the precedents, exemplifying what was discussed previously. Based on three works of different styles and periods, namely Mozart’s Hunt quartet, Dvořák’s American quartet and Villa-Lobos last quartet. Suggestions for interpretation are proposed as well as exercises and approaches aiming at a technical improvement of these pieces. In addition to the available literature, testimonials on these works are provided by members of the Carlos Gomes String Quartet.

Key words: chamber music; string quartet, musical performance

INDÍCE DE FIGURAS

Figura 1: Tabela dos quartetos considerados autênticos de ...... 31 Figura 2: Desenho retratando um quarteto com Vieuxtemps e Piatti ...... 69 Figura 3: Aprendizado da clave de dó na 3a linha ...... 98 Figura 4: Representação dos cinco pontos de contato de Simon Fischer ...... 125 Figura 5: Representação dos dedos da mão esquerda no espelho do violoncelo ...... 128 Figura 6: Portamento sobre a nota de saída ...... 132 Figura 7: Portamento sobre a nota de chegada ...... 133 Figura 8: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 1 – 4. Violinos ...... 153 Figura 9: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 1-8 ...... 155 Figura 10: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 269 e 270 ...... 157 Figura 11: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compasso 5. Violinos 1 e 2 ...... 157 Figura 12: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compasso 91. Violino 1 ...... 158 Figura 13: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 54 a 60 ...... 158 Figura 14: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 9 e 10 ...... 159 Figura 15: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 42 a 46 ...... 159 Figura 16: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compassos 1 a 5 ...... 162 Figura 17: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compassos 1 a 8 ...... 162 Figura 18: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compassos 29 a 36 ...... 164 Figura 19: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compasso 45 ...... 164 Figura 20: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compasso 1 ...... 165 Figura 21: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compasso 53 ...... 166 Figura 22: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 1 a 3 ...... 167 Figura 23: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 6 e 7 ...... 168 Figura 24: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 8 e 9 ...... 169 Figura 25: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 10 e 11 ...... 169 Figura 26: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 7 a 12 ...... 171 Figura 27: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 45 e 46 ...... 171 Figura 28: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 1 e 2. Violino 1 ...... 172 Figura 29: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 9 a 16. Violinos ...... 174 Figura 30: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 214 a 227 ...... 175 Figura 31: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 48 a 54...... 176 Figura 32: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 48 a 54...... 177 Figura 33: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 1 e 2...... 179 Figura 34: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 11 a 14...... 180 Figura 35: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 3 a 6. Viola ...... 180 Figura 36: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 5. Viola ...... 181 Figura 37: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 5. Apoios indevidos a serem evitados. Viola ...... 181 Figura 38: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 44-51...... 183 Figura 39: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 9. Violino 1 ...... 184 Figura 40: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 19. Violino 1 ...... 184 Figura 41: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 44 a 46. Violino 1 ...... 184 Figura 42: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 1 a 4...... 185

Figura 43: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 6 e 7...... 186 Figura 44: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 55 a 58...... 187 Figura 45: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 1 a 8...... 188 Figura 46: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 82 a 87...... 189 Figura 47: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 1 a 8 ...... 190 Figura 48: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 1 a 8. Transformação rítmica através de apoios indevidos a ser evitada ...... 190 Figura 49: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 5 a 8 ...... 192 Figura 50: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 5 a 8 ...... 192 Figura 51: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 57 a 60 ...... 193 Figura 52: Dvořák, quarteto op. 96, 4o movimento, compassos 1 a 4 ...... 194 Figura 53: Dvořák, quarteto op. 96, 4o movimento, compassos 81 a 100 ...... 197 Figura 54: Dvořák, quarteto op. 96, 4o movimento, compassos 179 a 195 ...... 198 Figura 55: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 7 a 12 ...... 202 Figura 56: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 36 a 40 ...... 203 Figura 57: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 33 a 36 ...... 204 Figura 58: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 48 a 53 ...... 205 Figura 59: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 1 a 4 ...... 206 Figura 60: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 11 a 16 ...... 207 Figura 61: Subdivisão da tercina de semínimas ...... 208 Figura 62: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 62 e 63 ...... 209 Figura 63: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 64 a 67 ...... 210 Figura 64: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 1 a 9 ...... 212 Figura 65: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 29 a 32 ...... 213 Figura 66: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 157 a 160 ...... 214 Figura 67: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 186 a 201 ...... 215 Figura 68: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 1 a 6 ...... 217 Figura 69: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 33 a 41 ...... 218 Figura 70: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 86 a 90 ...... 219 Figura 71: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 65 a 68 ...... 220 Figura 72: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 93 a 96 ...... 220

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 13

CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA DO QUARTETO DE CORDAS ...... 18

1. As origens ...... 18 1.1 A escrita a quatro vozes ...... 18 1.2 Ascenção e declínio do cravo e do baixo contínuo ...... 20

2 Haydn, Mozart e seus contemporâneos: o estabelecimento do quarteto clássico ...... 24 2.1 A forma sonata e sociedade ...... 24 2.2 Joseph Haydn ...... 27 2.2.1 Primeiros Quartetos ...... 31 2.2.2 Os Quartetos op. 33 ...... 38 2.2.3 Últimas obras ...... 39 2.3 ...... 41 2.3.1 Primeiros quartetos ...... 41 2.3.2 Os seis quartetos dedicados a Haydn ...... 43 2.3.3 Hoffmeister e quartetos Prussianos: os derradeiros quartetos ...... 48

3 Beethoven e a transcendência do gênero ...... 51 3.1 A primeira fase: os seis quartetos op. 18 ...... 53 3.2 A segunda fase: os quartetos Razumovsky, das Harpas e Serioso ...... 55 3.3 Schuppanzigh e os quartetos finais. Op. 127, 130, 131, 132, 135 e a Grande Fuga ...... 57

4. Os quartetos de temas variados e concertante ...... 61

5 O quarteto no romantismo ...... 63 5.1 Das residências para as salas de concerto ...... 63 5.2 A escola de violino francesa e o quarteto brilhante ...... 65 5.3 A profissionalização do quarteto de cordas e grupos atuantes ...... 67 5.4 O repertório romântico ...... 73 5.4.1 As correntes nacionais ...... 76

6 O quarteto do século XX em diante ...... 79 6.1 A gravação, a radiodifusão e novas tecnologias ...... 79 6.2 A democratização do quarteto de cordas ...... 81 6.3 O repertório ...... 83

CAPÍTULO 2 – SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA ...... 89

1 Quatro músicos, uma voz ...... 89 1.1 Unidade sonora ...... 89 1.2 Equilíbrio ...... 92 1.2.1 O primeiro violino ...... 93 1.2.2 O segundo violino ...... 95 1.2.3 A viola ...... 97 1.2.4 O violoncelo ...... 99 1.3 Disposição espacial ...... 100 1.4 Algumas considerações sobre o conjunto na prática de quarteto de cordas ...... 102 1.4.1 Ensaios ...... 102 1.4.2 Sincronismo ...... 105

1.4.3 Comunicação visual ...... 106

2 A afinação no quarteto de cordas: diferentes sistemas e possibilidades ...... 108 2.1 Contextualização e breve histórico ...... 108 2.2 O temperamento igual e a afinação expressiva ...... 113 2.3 Afinação nos quartetos de cordas ...... 116

3 A mão direita ...... 122 3.1 Articulação ...... 123 3.2 Ponto de contato e timbre ...... 125 3.3 Pizzicatos ...... 126

4. A mão esquerda ...... 127 4.1 Articulação ...... 127 4.2 Dedilhados e mudanças de posição ...... 129 4.2.1 O glissando ...... 131 4.3 O vibrato ...... 133

5 Interpretação e tradição ...... 137 5.1 O ritmo ...... 137 5.1.1 O rubato ...... 141 5.2 Fraseado ...... 143 5.3 Dinâmicas ...... 146 5.4 A notação musical e suas limitações ...... 147 5.5 Tradição ...... 149

CAPÍTULO 3 – APLICAÇÕES PRÁTICAS ...... 152

1. Mozart, quarteto KV. 458, “A Caça” ...... 152 1.1. Primeiro movimento ...... 154 1.2. Segundo movimento ...... 160 1.3. Terceiro movimento ...... 165 1.4. Quarto movimento ...... 172

2. Dvořák, quarteto Americano no 12, op. 96 ...... 177 2.1. Primeiro movimento ...... 179 2.2. Segundo movimento ...... 184 2.3. Terceiro movimento ...... 189 2.4. Quarto movimento ...... 194

Villa-Lobos, quarteto no 17 ...... 199 3.1. Primeiro movimento ...... 200 3.2. Segundo movimento ...... 206 3.3. Terceiro movimento ...... 210 3.4. Quarto movimento ...... 216

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 222

BIBLIOGRAFIA ...... 225

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INTRODUÇÃO

Em momento algum na sua história o quarteto de cordas deixou de ser considerado pela maior parte dos compositores, incluindo aqueles que não o abordaram (Liszt) ou ainda os que pouco o fizeram, como o gênero no qual se encontra o ápice do “métier” do compositor. Sua economia de recursos e concentração não dão margem ao mais ou menos, ao fácil e tampouco aos efeitos. [...] com o quarteto de cordas, o compositor-rei está nu (FOURNIER, 2000, p. 14).1

Desde o seu estabelecimento definitivo como conjunto autônomo com repertório específico à sua formação, o quarteto de cordas foi alçado a uma posição de destaque no universo da música de câmara. Tido como um gênero propício à experimentação e inovação de diferentes linguagens, por propiciar um diálogo instrumental equilibrado, uma unidade de timbres ou uma sutileza de nuances, o quarteto foi por muito tempo a variedade de música de câmara mais explorada,2 ocupando uma importante parcela da obra de muitos compositores.3 Radice (2012, p. 54) afirma que era nesse tipo de formação que os compositores conseguiam expressar suas ideias mais densas e experimentar novos caminhos de composição, sendo, por isso, a mais importante manifestação da música de câmara desde o período clássico.

Para Fournier (2000, p. 13-14), a economia de recursos do quarteto, quando comparado à sinfonia, estimulava a criatividade do autor, ao mesmo tempo em que era um meio privilegiado de inovação. O historiador coloca a Fantasia do Op. 76 de Haydn, assim como a Grande Fuga de Beethoven, por sua audácia harmônica, como obras pertencentes ao século XX. No plano da forma, Fournier também explica que as experiências realizadas por Haydn e Beethoven nos quartetos demostram uma complexidade maior até do que era apresentada nas grandes sinfonias de ambos. Formato de difícil domínio, Fauré confessava à sua esposa sentir medo quando começou a abordar seu quarteto de cordas, sua derradeira obra, assim como Saint- Saëns, então compositor experiente, que afirmava em uma carta a um amigo: “Tem que proceder

1 À aucun moment de son histoire le quatuor à cordes n’a cessé d’être considéré par la plupart des compositeurs, même parfois ceux qui ne l’ont pas abordé (Liszt) ou ne l’ont qu’effleuré, comme le genre où s’exprime l’achèvement suprême du “métier” de compositeur. Son économie, sa concentration ne laissent place ni à l’à-peu- près, ni à la facilité, ni aux effets. [...] avec le quatuor à cordes, le compositeur-roi est nu (todas as traduções são nossas). 2 FOURNIER, 2000, p. 13 3 A título de ilustração, Haydn compôs 68 quartetos, Boccherini 91, Beethoven 16, Schubert 15, Brahms 3, Dvořák 14, Schoenberg 5, Bartók 6, Darius Milhaud 18.

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como se fosse uma gravura em uma pedra dura, repensar vinte vezes cada compasso antes de o escrever” (FOURNIER, 2000, p. 15).4

É menos óbvio que o quarteto traz o problema [de coesão] de maneira mais complexa do que a escrita do trio de cordas. Uma rápida olhada no opus 9 [trios de cordas de Beethoven], ou mesmo no trio em Mi bemol K. 563 de Mozart, mostra se tratar do inverso: os recursos do trio são mais estreitos, o que pode ser mais um estímulo para quem não é familiar com a linguagem, do que um caminho mais fácil. O expediente habitual é de carregar um instrumento (obviamente a viola) para preencher os intervalos nos acordes importantes, o que reduz a escrita à manipulação de duas vozes, um simples duo. Com quatro instrumentos de cordas, a textura se torna suficientemente complexa para que esses acordes tragam uma certa liberdade ao invés de uma restrição. Com quatro vozes independentes, o trabalho do contrapontista se encontra em um patamar mais elevado. É por este motivo que o sistema harmônico do século XVIII elegeu com mais naturalidade o quarteto ao invés do trio ou do quinteto como norma de música de câmara (KERMAN, 1974, p. 22-23).5

O termo quarteto de cordas se refere tradicionalmente tanto a um grupo formado por dois violinos, uma viola e um violoncelo, como às obras compostas para essa formação. Sendo o quarteto de cordas um meio, assim como um gênero, suas origens não estão perfeitamente definidas. Fazendo uma analogia entre a origem dos homens e a origem do quarteto, Griffiths (1985, p. 9) expõe a teoria de que, assim como um gênero não pode ser definido por uma única obra, uma espécie não pode ser reduzida a um simples antepassado comum. O mesmo seria também válido para a sinfonia.

Já Bernard Fournier (2014, p. 45) coloca o quarteto de cordas como fruto de três aspectos principais: a escrita polifônica a quatro vozes, que surgiu a partir do século XI, o desenvolvimento do violino e seus familiares a partir de 1600, instrumentos esses que mantinham qualidades de homogeneidade de som, e o estabelecimento no século XVIII da Forma Sonata, que possibilitava um desenvolvimento autônomo do discurso musical, por meio de uma organização temática e suas transformações, com seu diálogo instrumental. Nas palavras de

4 Il faut faire cela comme de la gravure sur pierre dure, discuter vingt fois chaque mesure avant de l’écrire. Carta a Charles Lecocq de 04 de abril de 1899. 5 Il est moins patent que le quatuor pose le problème en termes beaucoup plus ardus que l’écriture pour trio à cordes. Un coup d’oeil sur l’opus 9, ou même sur le Trio em Mi bémol K. 563 de Mozart, montre que c’est plutôt l’inverse: les ressources du trio sont encore plus étroites, ce qui peut constituer un stimulant, pour qui ne doute de rien, plutôt qu’une tentation de facilité. L’expédient usuel est de charger un instrument (logiquement, l’alto) de remplir les intervalles dans les grands accords, ce qui ramène donc le problème d’écriture à la manipulation des deux voix d’un simple duo. Avec quatre instruments à cordes, la texture devient cependant suffisament complexe pour que ces accords offrent quelque liberté plutôt qu’une contrainte. Pour quatre voix indépendantes, la tâche du contrapuntiste se situe ainsi à un niveau bien supérieur. C’est pourquoi le système harmonique du XVIIIe siècle choisit plus naturellement le quatuor que le trio ou le quintette, comme norme de la musique de chambre.

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Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), o quarteto nada mais era do que “quatro pessoas inteligentes conversando entre si” (apud GRAVE, 2001, p. 76).

O presente estudo tem como objetivo apresentar subsídios para a prática de quartetos de cordas, a partir de eixos histórico, técnicos e interpretativos, utilizando como base e exemplificação três obras de diferentes períodos e estilos. Este trabalho se desenvolve ao longo de três capítulos.

O primeiro capítulo procura traçar uma história do quarteto de cordas, desde suas raízes no Renascimento até os dias atuais, para estabelecer uma melhor compreensão do gênero, sua evolução através dos séculos, assim como seu papel social e transformador. Como recorte temporal foi definido o período a partir do Renascimento, com as suas primeiras manifestações de conjuntos a quatro vozes, até os dias de hoje. Também optamos por dar um maior enfoque no final do século XVIII e início do século XIX, em especial com Haydn, Mozart e Beethoven, por terem sido os compositores que foram fundamentais para o gênero, sendo considerados por muitos até hoje como os “pais” do quarteto de cordas moderno. É imprescindível ressaltar que este estudo não tem como objetivo apresentar uma história do quarteto de cordas exaustiva, completa e definitiva, na qual todos os fatos e variantes sejam apresentados, mas dar uma noção da formação do conjunto, com a ideia, importante para nós, de que, para se ter uma interpretação mais precisa, um maior conhecimento acerca do quarteto, suas origens e evolução se fazem necessários.

O segundo capítulo busca prover subsídios para a prática de quarteto de cordas. Nele serão abordados aspectos abrangentes do fazer musical do gênero, desde a disposição espacial no palco, unidade sonora, sincronismo, afinação, ritmo, a itens mais específicos, como golpes de arco, mudanças de posição, vibrato e fraseado, entre outros. Para tanto, estas questões são trabalhadas através de uma ampla revisão de literatura, procurando apontar problemas frequentes que possam ocorrer na prática de quarteto de cordas, assim como soluções sugeridas por diversos conjuntos e teóricos, com base na experiência dos mesmos nesta área. Ao adentrar em tópicos referentes aos desafios técnicos do quarteto, não podemos deixar de abordar questões relativas ao funcionamento específico dos instrumentos do quarteto. Embora este não seja o objetivo do presente trabalho, fizemos uso da extensa literatura de referência sobre a questão, com autores como Carl Flesch, Ivan Calamina e Gerhard Mantel, entre outros, para apoiar a prática de

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quarteto. Afinal torna-se difícil obter um resultado satisfatório dentro de um conjunto se a mecânica individual de todos que o compõem não estiver funcionando de maneira harmoniosa.

A partir do que é apresentado no primeiro e segundo capítulos, o terceiro capítulo tem como proposta uma aplicação direta do conteúdo introduzido anteriormente. Por meio do estudo de três obras de períodos e estilos distintos, a saber o quarteto nº 17 “A caça”, de Wolfgang Amadeus Mozart, o quarteto “Americano”, de Antón Dvořák, e o quarteto nº 17, de Heitor Villa- Lobos, são sugeridos subsídios para a performance dos mesmos, exemplificando não somente aspectos técnicos e interpretativos vistos e trabalhados no segundo capítulo, como questões estilísticas embasadas também em um conhecimento histórico no qual se desenharam tais obras. Procuramos não listar simplesmente todas as dificuldades inerentes de todas as obras, mas sim destacar a especificidade que cada peça ou movimento apresenta, distinguindo-a das demais. Essa terceira parte da tese conta não somente com a literatura disponível sobre o assunto, como também com a nossa experiência pessoal como integrante de um quarteto de cordas, o Quarteto Carlos Gomes. Nesse conjunto tenho atuado como segundo violinista desde 2013, realizando concertos em diversos estados do Brasil, docência em festivais e música de câmara com artistas como Antonio Meneses6 e Bruno Giuranna,7 entre outros. Para tal, ensaios das referidas obras foram realizados pelo Quarteto Carlos Gomes e os apontamentos fornecidos nesses estudos coletivos também servem para ilustrar o terceiro capítulo.

Este estudo sobre a prática do quarteto de cordas não se propõe a ser um método completo sobre o assunto. O universo do quarteto de cordas é infinito, sendo um meio que se reinventa constantemente, e a prática em específico é uma questão subjetiva, na qual o que serve para alguns pode não servir para outros. Este trabalho destina-se principalmente a uma aproximação inicial, uma introdução sobre o tema, tendo como foco principal alunos e pessoas que estejam abordando o quarteto de cordas pela primeira vez. Devemos destacar, porém, que acreditamos que nenhum trabalho escrito sobre a música possa plenamente substituir a prática, a aula e a transmissão oral dentro da relação aluno-professor, na qual a experiência e a tradição são

6 Antonio Meneses (1957 -), importante violoncelista brasileiro, foi vencedor de prestigiados concursos internacionais, como a ARD de Munique (1977) e Tchaikovsky de Moscou (1982). Dentre sua extensa discografia, podemos destacar dois discos como solista frente à Filarmônica de Berlim, sob a regência de Herbert von Karajan (1908-1989). Por muitos anos foi também violoncelista do Beaux-Arts Trio. 7 Bruno Giuranna (1933 -), violista italiano, se apresentou por diversas vezes junto às mais importantes orquestras do mundo, como a Filarmônica de Berlim, a Concertgebouw de Amsterdã entre outras. Possui vasta discografia, com importantes solistas como Msislav Rostropovich (1927-2007), Henrik Szering (1918-1988).

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alicerces fundamentais do fazer musical. É dentro dessa ideia que gostaríamos de situar a presente pesquisa, como um subsídio complementar na formação de novos grupos, e em especial de alunos.

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CAPÍTULO 1 – HISTÓRIA DO QUARTETO DE CORDAS

1. As origens

O princípio de que Haydn é o pai do quarteto de cordas está firmemente implantado. O nome da mãe nunca é mencionado (ULRICH, 1948, p. 79).8

Há um certo consenso entre alguns historiadores em atribuir a paternidade do quarteto de cordas a Haydn. Grave (2008, p. 10) enaltece que o domínio da técnica de composição, da estrutura e das possibilidades desse conjunto fez com que Haydn estabelecesse um novo padrão para o gênero. Se decerto ele aprimorou a forma e foi o primeiro a apresentá-la com uma maturidade comparável às sinfonias clássicas, entretanto a escrita para essa formação não era uma novidade quando da aparição dos primeiros quartetos Haydianos (PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 77). Visto quase exclusivamente como um fruto do século XVIII e do estilo clássico, o quarteto de cordas possui raízes bem mais antigas, além de diversas manifestações de um gênero que não surgiu de uma só vez, mas foi se desenvolvendo ao longo dos séculos.

1.1 A escrita a quatro vozes

A escrita a quatro vozes já existia pelo menos desde Pérotin (c. 1160-c. 1236), no final do século XII, e era muito comum no final do século XV (GRIFFITHS, 1985, p. 7). Durante o período Renascentista (do final do século XIV ao final do século XVI), a prática comum permitia substituições de instrumentos, sendo frequente a não especificação por parte do compositor de que instrumento tocaria determinada parte. Assim sendo, a mesma peça poderia ser interpretada pelas mais diversas formações, de acordo com a ocasião, material e mão de obra disponível. “Os compositores não estavam preocupados com uma cor instrumental definida, a música era concebida no abstrato, separada de qualquer preocupação com o timbre” (PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 78).9

8 The generality that Haydn is the father of the string quartet is firmly implanted. The mother’s name is never mentioned. 9 were not concerned with definitive instrumental color, music being conceived, as it were, in the abstract, apart from any preoccupation with timbre.

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A partir do século XVI o conceito de “família” ganha importância, no qual quatro membros, cada um em uma diferente tessitura, seguiam as quatro linhas do quarteto vocal. Hans Gerle, em 1532, compõe Musica Teusch, uma fuga para quatro violinos, em um estilo muito semelhante a um quarteto de cordas. Essas partes poderiam ser tocadas por outros instrumentos. Martin Agricola (1486-1556) separa em seu tratado10 especialmente as violas da gamba em quartetos, chamando as partes de Discantus, Altus, Tenor e Bassus, mesma classificação adotada por Philibert Jambe-de-Fer11 (1515-1566) para a família de violinos (PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 78-79). Pierre Trichet (c. 1586-c. 1644) registra em seu tratado:12 “Se alguém desejar obter um bonito e harmonioso concerto de violas da gamba, pelo menos quatro se fazem necessárias, e de diferentes tamanhos e proporções, de acordo com o registro no qual elas atuam” (apud PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 79).13 Tais grupos executavam as quatro vozes em conjunto, em que mantinham a mesma linha e importância, e não como um canto com acompanhamento.

Para Pincherle e Norton (1929, p. 80), esse tipo de linguagem, de equidade de vozes, somente foi reaparecer a partir de alguns dos quartetos de Beethoven. Mesmo com o uso cada vez mais frequente do cravo (ou harpa, órgão, alaúde ou outros instrumentos harmônicos com a mesma função) na música de câmara, tais quartetos nunca cessaram de existir, em especial na Inglaterra, modernizando a linguagem:

As Fantasias em 3 e 4 partes [...], de Henry Purcell, que foram tocadas recentemente pela Chamber Music Society, contêm belezas de primeira ordem, e o Sr. André Mangeot foi capaz, sem exagerar os fatos, de comparar certos processos na escrita desses com o quarteto de Fauré Op. 121. As quatro vozes se movem com igual maleabilidade, trocam entre si cantos expressivos, ou ornamentações puras, perseguem umas às outras em um contraponto agradável e caprichado, ou são harmonicamente superpostas. Talvez haja um excesso de simetria na escrita para os quatro instrumentos: a perfeição nos clássicos é de dar igual interesse a cada uma das quatro partes concertantes, ao mesmo tempo tratando cada uma de acordo com o caráter individual do instrumento ao qual foi confiada (PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 81-82).14

10 Musica Instrumentalis Deusch, publicado em Wittemberg em 1528. 11 Épitome Musical, publicado em Lyon em 1556. 12 Traité des Instruments de Musique, publicado na França em ca. 1640. 13 If ones desires to make a right full and harmonious concert of viols, four will be needed at least, of different sizes and proportions according to the register they carry. 14 The Fantazias in 3 and 4 parts, [...], of Henry Purcell, which have been performed in our day by the Chamber Music Society, contain beauties of the first order, and M. André Mangeot has been able, without gain-saying the facts, to compare certain processes in the writing of them with those in Gabriel Fauré’s Op. 121. The four voices move with equal suppleness, interchange expressive song or purely ornamental embroideries, pursue each other at the whim of a pleasing counterpoint, or are harmonically superposed. There is perhaps an excess of symmetry in the

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1.2 Ascenção e declínio do cravo e do baixo contínuo

Posteriormente, durante o período barroco, o cravo assumiu um papel central na música e inevitavelmente, no âmbito camerístico. Para Lucas (2005, p. 115), os teóricos do século XVIII não viam o quarteto de cordas como uma forma musical independente, mas como uma variação da sonata,15 sendo que o numeral que a acompanhava (duo, trio, sinfonia e outros) somente indicava o número de executantes, ou mesmo um solista, no caso do concerto. Para estes, a sonata ocupava um lugar de destaque na música instrumental.

Nesse sentido, para Türk16 e para muitos autores do século XVIII, a sonata, sendo alta,17 se diferenciava de outros gêneros instrumentais, como a suíte de danças, o divertimento e a serenata, que “não parecem ter outra finalidade que a de divertir (para passar o tempo)”, representando afetos despretensiosos. [...] Notamos que as sonatas de câmera, entre elas o quarteto de cordas, relacionam-se às ocasiões familiares ou às reuniões íntimas, e que elas têm “função moral”. Elas se diferenciam das sonatas da chiesa, que se relacionam à contemplação religiosa, e também das sinfonias (sonatas teatrais) que dizem respeito aos “negócios e casos mundanos”. Türk faz ainda outra recomendação interessante, para definir o decoro da circunstância: a sinfonia deve ser executada “no final da tarde, e nunca à noite”, dado o caráter mais sério da ocasião noturna (LUCAS, 2005, p. 116).

A forma mais usual de música de câmara era o chamado trio sonata, com duas vozes agudas (frequentemente dois violinos) e um baixo contínuo, geralmente um cravo com uma linha de baixo cifrado, acompanhado de um instrumento como o violoncelo. Sendo a linha do violoncelo uma dobra da linha do baixo, os quatro instrumentos tocavam três vozes, explicando a alcunha de trio sonata. Porém, o trio sonata podia ou não ser tocado com um instrumento de teclado, de acordo com as circunstâncias. Exemplificando isso, Giuseppe Sammartini (1695- 1750) explica na parte de violoncelo das suas doze sonatas trios Op. 3 (1743): “É da vontade do compositor, que quando o cravo for usado, o mesmo deverá permanecer em silêncio durante os

writing for the four instruments: the perfection of the classics is to consist in giving an equal interest to each of the four concertante parts while yet treating each according to the individual character of the instrument to wich it is confided. 15 Não confundir com a forma sonata, que surgirá posteriormente no final do século XVIII, sendo extremamente popular entre os compositores até o início do século XX. 16 Johann Georg Türk, Clavierschule oder Anweisung zum Clavierspielen für Lehrer und Lernende (1789). 17 Lucas explica que, para os teóricos desse período, a sonata ocupava uma posição mais elevada na música instrumental. Esse gênero possuía um destacado grau de entusiasmo, grande capacidade de invenção e um impulso [Schwung] alto, diria quase que musical-poético, dos pensamentos e da expressão (TÜRK apud LUCAS, 2005, p. 115).

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solos, que estão reservados para o violoncelo” (PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 82).18 Na mesma perspectiva, Hugo Riemann afirma que em muitas obras da Escola de Mannheim19 os baixos cifrados são não somente dispensáveis, mas também incorretos, lançando a hipótese de que essas linhas de baixo foram acrescentadas posteriormente por editores (PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 83).

Na Itália, já perto de 1670, encontramos quartetos perfeitamente homogêneos, sem indicação de baixo contínuo. Wasielewski, no seu tratado Instrumentalsätze vom Ende des XVI Jahrhundert, reproduziu alguns – de Florentio Maschera (1593), Adriano Banchieri (1603), Giovanni Gabrieli (1615), Gregorio Allegri 20 (antes de 1650), Massimiliano Neri (1644), e Giovanni Battista Vitali (1669). Nestas obras um cravo poderia obviamente ser acrescentado junto às quatro vozes, mas elas são plenamente autossuficientes, de maneira totalmente satisfatória, com raras exceções (PINCHERLE, NORTON, 1929, p. 82).21

Em 1715, Alessandro Scarlatti (1660-1725) publica quatro Sonate a quattro per due violini, violetta e violoncello senza cembalo, trazendo como novidade o descarte total do cravo. Este instrumento estava impregnado de tal maneira na cultura musical da época, que qualquer obra que não fizesse uso dele deveria mencionar explicitamente na partitura.22 Na Europa, o século XVIII foi um momento de transição musical intensa e confusa, com o desenvolvimento de diferentes maneiras de composição e de performance. A chegada do estilo clássico com Haydn e Mozart deu uma unidade a diversos estilos nacionais vigentes:

A situação da música na Europa no terceiro quarto do século XVIII, com suas numerosas tradições nacionais conflitantes, nos passa hoje uma impressão de desordem. A Itália não possuía nenhum estilo nacional próprio, mas uma multitude de estilos locais, cada qual com suas próprias pretensões. A maior unidade do fim do século não é uma ilusão de

18 The intends that, when the harpsicord is used, it should be silente during the soli, which are reserved for the violoncelo. 19 Com a chegada da corte do Príncipe Eleitor Carlos III Felipe de Neoburgo a em 1720, foi criada uma orquestra de grandes proporções para a época, empregando muitos virtuoses e compositores que introduziram mudanças técnicas orquestrais ao fazer musical da época. Entre os compositores da Escola de Mannheim, destacam- se , , , Franz Ignaz Beck, Ignaz Franzl e . Posteriormente essa escola influenciou diretamente Haydn e Mozart. 20 A sinfonia de Gregorio Allegri (1582-1652) é considerada por alguns pesquisadores como a obra que teria originado o quarteto de cordas, mas Griffiths discorda por ser um uso isolado do gênero (1985, p. 8). 21 In Italy we find up to about 1670 perfectly homogeneous quartets with no indication of a figured bass. Wasielewski, in his Instrumentalsätze vom Ende des XVI Jahrhundert, has reproduced some – of Florentio Maschera (1593), Adriano Banchieri (1603), Giovanni Gabrieli (1615), Gregorio Allegri (before 1650), Massimiliano Neri (1644), Giovanni Battista Vitali (1669). In these a harpsichord could, of course, have been added to the four voices, but they are suficiente unto themselves and their effects, with rare exceptions, is entirely full and satisfying. 22 Stowell (2003, p. 178) contesta a exclusão total do cravo nessa obra de Scarlatti como sendo uma novidade, porque evidências demonstram que obras semelhantes eram frequentemente tocadas sem um cravo, portanto Scarlatti estaria simplesmente explicitando uma prática comum.

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ótica, nem um esquema histórico imposto pela nossa maneira de ver as coisas. Certos estilos nacionais independentes como a grande ópera à francesa certamente continuaram a existir e evoluíram em uma direção na qual o classicismo vienense não influenciou muito; mesmo a supremacia do estilo vienense, ou melhor, do estilo de Haydn e Mozart não é um julgamento dos tempos modernos, mas um fato histórico, reconhecido em um nível internacional a partir de 1790 (ROSEN, 2000, p. 139).23

O cravo, instrumento soberano até então, começa a perder sua preponderância, em especial na música de câmara, o que representava uma revolução drástica. Griffiths (1985, p. 8) insiste na ideia de que o declínio do cravo na música não foi uma causa, mas um sintoma das grandes transformações que ocorreram no século XVIII. Novas formas aparecem, como a ópera buffa, a sinfonia e o quarteto de cordas, sendo todas elas conectadas entre si. A sinfonia surgiu a partir da abertura da ópera e parece improvável que uma verdadeira distinção entre música de câmara e música orquestral efetivamente existisse na metade do século XVIII. Como a orquestração-base de grande parte das composições era de dois violinos, viola e basso, era bem possível que uma mesma obra fosse publicada como uma sinfonia por um editor e como um quarteto por um outro.

Produzir quartetos de facto a partir de obras que eram normalmente tocadas por múltiplos instrumentistas era habitual na rica tradição italiana de composições de concertos desde Arcangelo Corelli (1653-1713) e Giuseppe Torelli (1658-1709) até Antonio Vivaldi (1678-1741) e Giovanni Sammartini (1700/01-1775). Este repertório é frequentemente dividido em dois tipos, concerto grosso e concerto solo, mas um terceiro gênero, concertos orquestrais (ou concertos ripieno) – obras de três ou quatro vozes sem solistas – foi importante no processo que tornou a criação de verdadeiros quartetos de cordas inevitável. Somente Vivaldi compôs mais de trinta obras deste tipo. Esta notável transmissão se mesclou imperceptivelmente com a tradição das primeiras sinfonias e concertos de Sammartini, que dos anos 1730 a 1760, formadas por orquestras de cordas de quatro partes, poderiam facilmente se transformar em quartetos nas performances. Quando Griesinger sugeriu a Haydn que Sammartini seria o verdadeiro instigador do quarteto de cordas, Haydn foi desdenhoso, chamando o italiano de “escrevinhador”;24 quase certamente o real motivo do comentário de Haydn era o fato de ele reconhecer que a tradição da performance era mais importante do que um simples compositor, especialmente um que ele não admirava (STOWELL, 2003, p. 179).25

23 La situation de la musique en Europe dans le troisième quart du XVIIIe siècle, avec ses nombreuses traditions nationales en conflit, donne aujourd’ hui une impression de désordre. L’Italie n’avait pour ainsi dire pas même de style national, mais plutôt une multitude de styles locaux, chacun avec ses prétentions propres. La plus grande unité de la fin du siècle n’est ni une illusion d’optique, ni un schéma historique imposé par notre manière à nous de voir les choses. Certains styles nationaux indépendants comme le grand opéra à la française ont bien continué d’exister et ont évolué dans une direction sur laquelle le classicisme viennois n’eut en dernière analyse que peu de prise; la suprématie du style viennois, ou plutôt du style de Haydn et de Mozart, n’est pas pour autant un jugement des temps modernes mais un fait historique, reconnu sur le plan international dès 1790. 24 Escritor de má qualidade, que escreve obras insignificantes e sem valor. 25 Producing de facto quartets from works that were normally performed with multiple performers was a natural part also of the rich Italian tradition of concerto writing form Arcangelo Corelli (1653-1713) and Giuseppe Torelli (1658-

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Para Fournier (2000, p. 38), o cravo nunca exerceu realmente uma função de instrumento de entretenimento público, já os grupos de câmara com ou sem piano estavam mais ao gosto da nova burguesia que ascendeu no século XVIII, classe essa que tinha ambições de influir nos novos caminhos da música. Griffiths (1985, p. 8) arrisca uma outra hipótese para a progressiva diminuição do uso do cravo na música de câmara, além dos previamente citados; ao analisar os títulos das formas que foram surgindo nos anos 1750 (divertimentos, serenades, notturnos, entre outros), o autor sugere que essas obras eram compostas para serem executadas ao ar livre, o que dificultaria o uso do cravo, sendo o mesmo progressivamente substituído pela viola, o Trio Sonata caindo em desuso. Já Ulrich (1948, p. 79) coloca o crescente número de diletantes no século XVIII como o motivo pelo qual as partes graves começaram a ser escritas por extenso, sem baixo cifrado, tornando o baixo contínuo obsoleto e levando à consequente exclusão do cravo. Sendo assim, o trio sonata “foi forçado a acrescentar um outro instrumento. A viola foi escolhida e o moderno quarteto de cordas nasceu”.26 Com o declínio do cravo, o baixo contínuo também perde importância, assim como o virtuosismo e a proeminência do intérprete.27 O quarteto suplantou o trio sonata como principal conjunto instrumental nas residências, de maneira consideravelmente rápida, o que não é muito complicado de se imaginar, visto que na época havia um forte apreço pelo novo e contemporâneo (STOWELL, 2003, p. 4).

Se o movimento que irá eliminar o baixo contínuo definitivamente dos grupos de música de câmara está começando, ele ainda será longo, e quando os primeiros quartetos de cordas de Haydn serão publicados em 1764, o editor parisiense que os lançou, Louis-

1709) to Antonio Vivaldi (1678-1741) and Giovanni Sammartini (1700/01-1775). This repertoire is often divided into two types, concerto grosso and solo concerto, but a third type, orchestral concertos (or ripieno concertos) – that is works for three – or – four – part strings with no soloists – is important in the process that made the composition of true quartets inevitable. Vivaldi alone composed over thirty such works. This notable tradition merged imperceptibly with that of the early symphony, and works, whether concertos or symphonies, by Sammartini from the 1730s through to the 1760s that were scored for four-part string could easily become quartets in performance. When Griesinger suggested to Haydn that Sammartini was the true instigator of the quartet, Haydn was very dismissive, calling the Italian a “Schmierer” (“a scribbler”); almost certanly the real reason for Haydn’s comment was that he recognised that performance tradition was more importante than one single composer, particularly one he did not admire. 26 The trio sonata “was forced to add another instrument. The viola was chosen, and the contemporary string quartet was born.” 27 A maior circulação da música impressa, com o texto na íntegra e não somente o baixo cifrado, contribuíram a tirar o foco do virtuose não dando muito espaço para a improvisação, e reforçando a maior ênfase no equilíbrio dentre todas as vozes.

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Balthasar de La Chevardière, ainda chamará o violoncelo de baixo obligato (FOURNIER, 2000, p. 52).28

Outra grande mudança trazida pelo século XVIII é a separação da música do texto, que por muito tempo foram indissociáveis. Mesmo no período barroco, no qual a música instrumental profana era comum, a Teoria dos Afetos atribuía uma caracterização sentimental à música, ou seja, ela somente encontrava sentido ao imitar os sentimentos. A forma sonata vai destacar a música instrumental da música vocal, tirando a obrigatoriedade da música de ilustrar um texto ou de simplesmente imitar sentimentos (FOURNIER, 2000, p. 54).29

2 Haydn, Mozart e seus contemporâneos: o estabelecimento do quarteto clássico

2.1 A forma sonata e sociedade

De um ponto de vista musical, as condições necessárias para o surgimento do quarteto pediam não somente a criação de um grupo instrumental estável e específico, como também a existência de uma forma musical nova que assegurasse a possibilidade de um diálogo instrumental equilibrado entre as quatro vozes. Simplificando amplamente, podemos afirmar que o quarteto de cordas é o produto de duas genealogias distintas, uma decorrente de uma formação homogênea de música de câmara associando quatro instrumentos da mesma família, e uma outra consequência de uma arquitetura, a forma sonata, que permitiu um modo de desenvolvimento autônomo do discurso musical (FOURNIER, 2000, p. 37).30

A forma sonata foi o instrumento que permitiu grande parte dessas modificações. Ela surgiu concomitantemente ao concerto público. Antes do século XVIII, a música acessível ao público era, com raras exceções, música vocal ligada à importância da palavra, seja música sacra

28 Si le mouvement qui va éliminer définitivement la basse continue des ensembles de musique de chambre est en route, il sera long et lorsque les premiers quatuor de Haydn seront publiés en 1764, leur éditeur parisien Louis- Balthasar de La Chevardière, désignera encore le violoncelle sous le terme basse obligée. 29 Para Fournier (2014, p. 46), o estilo clássico representa para a música uma isenção de todos os objetivos funcionais, o início de uma música livre de sua dependência a um texto ou pretexto, ponto de vista também compartilhado por Rosen (1988, p. 11) ao reproduzir o pensamento de Friedrich Schlegel (1772-1829) de que a música instrumental pura produzia seu próprio texto e que a expressão de sentimentos era somente um aspecto superficial da música. 30 Du point de vue musical, les conditions nécessaires à la naissance du quatuor supposaient, non seulement l’existence d’un groupe instrumental stable et déterminé, mais aussi de l’existence d’une forme musicale nouvelle assurant la possibilité d’un dialogue instrumental équilibré entre les quatre voix. En simplifiant beaucoup les choses on peut dire que le quatuor à cordes est le produit de deux généalogies distinctes, celle d’une formation instrumentale homogène de musique de chambre associant quatre instruments de la même famille et celle d’une architecture, la forme sonate, qui rendît possible un mode de développement autonome du discours musical.

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ou operística. Concertos de música puramente instrumental também ocorriam, mas eram arranjos de música vocal, ou música introdutória à palavra cantada (prelúdios ou aberturas de música religiosa ou de óperas), interlúdios entre atos de ópera ou oratórios, ou música para dança, a qual não desfrutava de prestígio, avaliação reservada à opera ou música sacra (ROSEN, 1988, p. 8). Se no século XVII na ópera a música seguia a poesia, já no início do século XVIII tanto o texto quanto a música eram coadjuvantes ao intérprete. A aria da capo dava muito espaço ao virtuosismo, assim como ao ornamento improvisado (ROSEN, 1988, p. 9).

Para o público que procurava uma música puramente instrumental, especialmente sinfônica (e, após 1780, com os quartetos de cordas), a forma sonata foi o veículo que possibilitou a propagação dessa nova estética musical. A forma concerto, como era utilizada no início do século, carregava em si a ideia de mostrar virtuosismo, tradição que vinha da aria. Por ter propósitos extramusicais – demonstração de virtuosidade técnica – em que o solista era mais importante do que o texto musical, o concerto era considerado uma forma inferior às outras formas de música mais pura (quarteto, sinfonia e sonata). Por esse motivo acaba sendo modificado pelas transformações do estilo da forma sonata antes de 1780.

A forma sonata já continha em si a ação dramática, com um clímax identificável, “um ponto de tensão máxima para o qual a primeira parte da obra conduz e que é simetricamente resolvido” (ROSEN, 1988, p. 10).31 Sendo uma forma fechada, ela é semelhante ao drama literário do século XVIII, no qual o enredo é sempre resolvido. Para Fournier (2014, p. 47), a própria arquitetura dos movimentos da forma sonata segue a construção do drama do século XVIII. Para ele, a ação teatral e o estabelecimento do drama se fazem no primeiro movimento (allegro de sonata), um momento íntimo, dedicado à meditação (movimento lento), seguido de um interlúdio lúdico, um resquício da dança (minueto) e finalmente uma apoteose festiva, encerrando a trama (finale).

A forma sonata era essencialmente uma concepção de um objeto musical independente, o que tornou possível a exploração comercial da música instrumental. “O estilo da sonata, por um breve período, deu aos compositores a oportunidade de vender, não uma performance ou uma cópia, mas a obra de música pura diretamente ao público” (ROSEN, 1988,

31 A point of maximum tension to which the first part of the work leads and which is simmetrically resolved.

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p. 10).32 Griffiths (1985, p. 12) acrescenta que a forma sonata surgiu como uma necessidade porque o barroco não foi capaz de produzir movimentos rápidos em formas diferentes do que ritmos de danças.

No âmbito social, com a ascensão da burguesia na Europa durante o século XVIII, as formações camerísticas foram tomando importância como um dos passatempos preferidos dos músicos amadores. No século XVIII, a função principal da prática musical doméstica em conjunto era a de ser um entretenimento em residências espacialmente limitadas, nas quais poucas e seletas pessoas poderiam apreciar e/ou tocar com seus colegas obras adaptadas para essa formação.33 Essa nova classe social ascendente, a burguesia urbana, forjada junto com os progressistas ideais iluministas,34 estabelecia diferentes maneiras de pensar e de agir. Se a aristocracia dispunha de orquestras em seus palácios para as quais encomendavam sinfonias, a música de câmara se tornou “a forma de expressão por excelência desta nova classe, pois era perfeitamente adaptada às suas necessidades de música doméstica” (FOURNIER, 2000, p. 38). O quarteto poderia ser considerado “uma metáfora da aplicação dos ideais iluministas contemporâneos, como explicitado por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) no seu Contrato Social (1762), balanceando liberdade individual com responsabilidade social e prestação de contas” (IRVING, 1998, p. 2).35

Mas era necessário que o quarteto respondesse a uma necessidade da aristocracia e da burguesia urbanas, forjadas na Filosofia Iluminista, que reivindicava uma nova maneira de pensar, de sentir e de se comportar. O quarteto metamorfosearia musicalmente esta

32 Sonata style, for a brief period, delivered to composers a chance of selling, not a performance or a copy, but the work of pure music itself directly to the public. 33 O termo música de câmara é utilizado pela primeira vez no século XVII com o teórico italiano Marco Scacchi (1600-1662). Para ele, a música poderia ser dividida em três tipos: música ecclesiastica (da Igreja), theatralis (do teatro) e cubicularis (câmara). No entendimento de Scacchi, esta última era destinada a um ambiente doméstico, fora das igrejas e teatros. (RADICE, 2012, p. 1). 34 Em seu livro Histoire du Quatuor à cordes, de Haydn à Brahms (2000), Bernard Fournier fomenta a hipótese de que os novos ideais iluministas, como a rejeição aos argumentos autoritários, a crítica às crenças tradicionais em todas as esferas do pensamento, além de uma busca pela experimentação e análise, influíram diretamente na criação da forma sonata e do quarteto de cordas. O Iluminismo, com sua procura por um ideal de razão, progresso, simplicidade, arquitetura e clareza não condizia com o estilo barroco, que primava pela virtuosidade, efeitos, ornamentação, dando mais ênfase ao detalhe do que à linha geral. Para Fournier os compositores não foram insensíveis às mudanças que ocorriam na sociedade em que viviam. Mesmo que nos anos 1750 os ideais iluministas ainda não estivessem amplamente difundidos ao público em geral, os compositores mantinham círculos de amizades privilegiados, dentre príncipes, mecenas, salões, artistas de todas as matizes, e especialmente no caso de Haydn, Mozart e possivelmente Beethoven, lojas maçônicas. Para maiores informações consultar os capítulos Le siècle des Lumières, une mutation idéologique et sociale assim como Naissance de l’ Esthétique deste mesmo livro, pp. 38-50. 35 A metaphor of contemporary enlightnment ideals, as expressed in Rousseau’s social contract (1762), balancing individual freedom with social responsibility and accountability.

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prática da conversa, da discussão intelectual imbuída de cortesia com a qual homens e mulheres alegremente se entregavam quando se encontravam neste local que estava na moda, os salões. Por este motivo o quarteto de cordas rapidamente tornou-se o gênero dominante de música de câmara desde os anos 1760-1770, em uma Europa na qual ele acompanhava as mutações ideológicas e sociais (FOURNIER, 2014, p. 45).36

2.2 Joseph Haydn

A lacuna de uma documentação precisa e confiável não nos permite atribuir de fato a paternidade do quarteto de cordas como gênero autônomo a Joseph Haydn (1732-1809) ou a outros compositores. Carl Ditters Von Dittersdorf (1739-1799) menciona em sua autobiografia que, no inverno de 1756, “fomos trabalhar os seis novos quartetos de Richter; Schweitzer tocou violoncelo, eu e meu irmão mais velho os primeiro e segundo violinos, e meu irmão mais novo na viola”.37 Se a datação colocada por Dittersdorf estiver correta, Franz Xaver Richter (1709-1789) poderia ser considerado como o autor do primeiro conjunto de obras especificamente composta para o quarteto de cordas (GRIFFITHS, 1985, p. 9). Uma famosa anedota sobre a composição do primeiro quarteto de Haydn é reportada por seu biógrafo Georg August Griesinger (1769-1845) em 1810:

A seguinte circunstância, fruto do mais puro acaso, o levou a tentar a sorte na composição de quartetos. Um barão de nome Fürnberg possuía uma residência em Weinzierl, nos arredores de Viena (cerca de 50 milhas), e costumava convidar com certa frequência seu pastor, seu encarregado, Haydn e Albrechtsberger (um irmão do célebre contrapontista, que tocava violoncelo) para tocar música. Fürnberg pediu a Haydn que escrevesse algo que pudesse ser tocado pelos quatro músicos amadores. Haydn, então com dezoito anos, aceitou o desafio e compôs o seu primeiro quarteto [...] recebendo tão elogiosas críticas, se sentiu motivado a continuar explorando esta forma (STOWELL, 2003, p. 177).38

36 Mais il fallait aussi que le quatuor répondit à une attente, celle d’une aristocratie et d’une bourgeoisie urbaine, imprégnées de la philosophie des Lumières et révendiquant une nouvelle façon de penser, de sentir et de se comporter. Le quatuor allait métaphoriser musicalement cette pratique de la conversation, de la discussion intellectuelle empreinte de courtoisie à laquelle s’adonnaient avec la plus grande joie les hommes et les femmes lorsqu’ils se retrouvaient dans ce lieu à la mode qu’était alors le salon. C’est pourquoi il devint rapidement, dès les années 1760-1770, le genre de musique de chambre dominant dans une Europe dont il accompagnait la mutation idéologique et sociale. 37 We went to work on six new quartets by Richter; Schweitzer played the cello, I and my older brother the first and second violins, and my younger brother the viola. 38 “The following purely chance circumstance had led him to try his luck at the composition of quartets. A Baron Fürnberg had a place in Weinzierl, several stages from Vienna (about fifty miles), and he invited from time to time his pastor, his manager, Haydn, and Albretchsberger (a brother of the celebrated contrapuntist, who played the violoncello) in order to have a little music. Fürnberg requested Haydn to compose something that could be performed by the four amateurs. Haydn, then eighteen years old, took up this proposal, and so originated his first

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Se essa anedota for verdadeira, Haydn, que nasceu em 1732, teria composto então seu quarteto no 1 Op. 1 em 1750. Griesinger também estaria de certa forma sugerindo que em 1750 o quarteto de cordas não fosse um gênero plenamente estabelecido (LUCAS, 2005, p. 117). Alguns problemas são apontados por Griffiths (1985, p. 11): apesar de Haydn aos dezoito anos ser um bom compositor, os seus primeiros quartetos seriam de uma qualidade superior à que ele apresentava na época. E seu relacionamento com o Barão de Fürnberg dataria de um momento posterior, no final da década de 1750. A data mais provável da composição de seus primeiros quartetos ficaria em algum momento entre 1757 e 1762. Ambas as descrições, tanto dos quartetos de Haydn como os de Richter, foram escritas cerca de meio século após o ocorrido, não sendo, portanto, fontes fiáveis em relação à datação (HICKMAN, 1981, p. 209). Na Itália, (1743-1805) compôs em 1761 sua primeira coletânea de quartetos, publicados em 1767 em (Op. 1 G. 159-164). Em sua vida ele viria a escrever mais de 90 quartetos. Seus primeiros quartetos foram amplamente distribuídos na Europa e Stowell (2003, p. 180) afirma não haver neles nenhum indício que possa demonstrar que Boccherini estava familiarizado com os primeiros quartetos de Haydn.39 Ignaz Holzbauer (1711-1783) também escreveu uma Partita a 4, possivelmente em 1751. “Se as reivindicações de direitos paternos de Haydn [sobre os quartetos] são dúbias em um sentido literal, suas obras, no entanto, se sobressaem pela virtuosidade do tratamento técnico, controle estrutural e domínio das possibilidades do gênero” (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 10).40

Com a morte de Haydn em 1809, Griesinger revelou uma biografia do compositor em oito partes no jornal Allgemeine Musikalische Zeitung, que posteriormente foi reagrupada em um volume, publicado em 1810. Com base em uma convivência e amizade com o compositor por cerca de uma década, esse retrato teve um papel determinante na imagem póstuma do músico. Haydn tinha atingido fama internacional quando de sua morte e os quartetos de cordas tinham um

quartet [...] which, immediately it appeared, received such general approval that Haydn took courage to work further in this form. 39 Grave e Grave (2008, p. 11) discordam, ao afirmar que Boccherini morou em Viena em 1760 e 1761, e possivelmente se deparou com cópias dos primeiros quartetos de Haydn, sendo que seus quartetos Op. 2 (publicados em 1767 erroneamente como Op. 1) mantêm uma semelhança com os primeiros de Haydn pelo tratamento do conjunto, apesar de a abordagem de outros instrumentos, como o violoncelo, ser consideravelmente diferente. 40 If claims of paternal rights on Haydn’s behalf are dubious in a literal sense, his works nonetheless stand out by virtue of their technical polish, structural control, and sure grasp of the medium’s possibilities.

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papel central dentro de sua obra. Para Stowell (2003, p. 177), Haydn e Griesinger deliberadamente optaram por enfatizar a descoberta do quarteto ao acaso, à “tradição emergente da busca do gênio criativo a um novo meio”:

Até a alusão à idade de Haydn na época, “então com dezoito anos”, de maneira conveniente, mesmo que seja inocente, exagera a originalidade do jovem compositor; os quartetos não estavam dentre suas primeiras obras após ser despedido do coral da Catedral de St. Stephen, mas foram compostos alguns anos mais tarde quando o compositor estava mais próximo dos trinta anos, entre 1757 e 1762. Claramente, exatidão histórica não era uma das principais preocupações de Griesinger e Haydn, ambos tiveram participação na crescente mitologia que envolvia o compositor e sua música (STOWELL, 2003, p. 178).41

Em 1801, (1757-1831), antigo discípulo de Haydn, publicou uma integral dos quartetos de seu velho mestre. Com a afirmação “Atestado pelo compositor” no catálogo temático, a Collection Complette des Quatuors d’Haydn publicou 80 quartetos na sua primeira edição, dedicada a Napoleão, acrescida de três quartetos na segunda edição de 1806. Porém, em uma carta de 1801, Hoffmeister (1754-1812) relata uma conversa com Haydn na qual este reconhecia não ter escrito 80 quartetos. A contagem de Pleyel de 83 quartetos perdurou por muito tempo, inclusive no século XX.42 No seu artigo intitulado Haydn’s Chamber Music de 1932, por exemplo, a musicologista inglesa Marion Scott (1877-1953) menciona 84 quartetos disponíveis naquele momento:

Até pouco tempo atrás acreditava-se que o número total de quartetos de Haydn era de oitenta e três. Reconheço minha culpa por ter aumentado este número para oitenta e quatro redescobrindo o autêntico, porém longamente esquecido, no 1. Se evidências circunstanciais puderem ser aceitas, este surgiu isolado em Paris no máximo até 1761, e algum tempo antes dos Op. 1, geralmente creditadas como sendo as primeiras publicações de Haydn. Além dos autênticos oitenta e quatro quartetos, seis (provavelmente grandiosos) se perderam ou foram roubados, e um dos primeiros quartetos em Fá maior desapareceu; existem também algumas obras para cordas dúbias, algumas com flauta e sinfonias arranjadas como quartetos (SCOTT, 1932, p. 13).43

41 Even the aside about Haydn’s age at the time, “then eighteen years old”, conveniently, if innocently, exaggerates the composer’s youthful originality; the quartets were not amongst his first works after being dismissed from the choir school of St Stephen’s Cathedral but were composed several years later when the composer was in his late twenties, between c. 1757-1762. Clearly, historical accuracy was not a prime concern of Griesinger and Haydn, as both willingly played their part in the evolving mythology of the composer and his music. 42 A conceituada edição Eulenburg, supervisionada por Wilhelm Altmann, seguia a numeração de Pleyel no início do século XX. 43 Up to a short time ago it was commonly supposed that the tally of Haydn's quartets was eighty-three. I plead guilty to having increased it to eighty-four by re-discovering the real, but long-forgotten nº 1. If the circunstantial evidence can be trusted, this appeared singly at Paris not later than 1761, and some time ahead of the Op. 1 set usually supposed to be Haydn's first publication. Besides the eighty-four certain quartets, six (probably great ones) were lost or stolen, and an early quartet in F major has disappeared; there are also some doubtful string works, some works

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Pesquisas mais recentes descartaram uma sinfonia, sextetos, assim como obras de autoria duvidosa, chegando atualmente a um número de 68 quartetos autênticos.

with flute, and symphonies arranged as quartets.

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Figura 1: Tabela dos quartetos considerados autênticos de Joseph Haydn

Opus Data Número - 1 2 3 4 5 6

0 ca 1755 - 60 Mi♭ M 1

1 Si♭ M Mi♭ M Ré M Sol M Dó M 5

2 Lá M Mi M Fá M Si♭M 4

9 ca 1768 - 70 Dó M Mi♭ M Sol M Ré m Si♭ M Lá M 6

17 1771 Mi M Fá M Mi♭ M Dó m Sol M Ré M 6

20 1772 Mi♭ M Dó M Sol m Ré M Fá m Lá M 6

33 1781 Si m Mi♭ M Dó M Si♭ M Sol M Ré M 6

42 [?1784] - 1785 Ré m 1

50 1787 Si♭ M Dó M Mi♭ M Fá♯ m Fá M Ré M 6

54/55 1788 Sol M Dó M Mi M Lá M Fá m Si♭ M 6

64 1790 Dó M Si m Si♭ M Sol M Ré M Mi♭ M 6

71/74 [? 1792] - 1793 Si♭ M Ré M Mi♭ M Dó M Fá M Sol m 6

76 [? 1796] - 1797 Sol M Ré m Dó M Si♭ M Ré M Mi♭ M 6

77 1799 Sol M Fá M 2

103 [? 1802] - 1803 Ré m 1

Total: 68

Fonte: GRAVE, GRAVE, 2008, p. 19.

2.2.1 Primeiros Quartetos

Os quartetos Op. 1 de Haydn não poderiam ser definidos como obras exclusivas do gênero quarteto de cordas, ou como peças orquestrais também. Viena não possuía editores de música na época e, apesar da circulação quase que imediata de cópias manuscritas, os primeiros quartetos somente foram impressos por Louis-Balthasar de La Chevardière em Paris em 1764

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(primeira edição de uma obra de Haydn), com o título: “Seis sinfonias ou quartetos dialogados para dois violinos, viola e baixo obligato, compostos por M. Haydn” (GRIFFITHS, 1985, p. 11).44 A documentação existente demonstra que esses quartetos foram muito populares, com publicações em Paris, Amsterdam e Londres (nas quais o compositor aparentemente não participou), fato que certamente ajudou a propagar a proeminência dessas obras como modelos do gênero (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 10).

Um pequeno parêntese sobre essa edição em especial e os editores da época se faz necessário. Mesmo sem editores em Viena nesse período, um considerável número de cópias manuscritas dos seus primeiros quartetos circulou por toda a Europa, chegando inclusive na Itália (FOURNIER, 2000, p. 63). Os seis primeiros quartetos impressos na França eram na verdade quatro obras de Haydn e dois quartetos de Carl Joseph Toeschi (1731-1788). Na segunda edição de 1768, La Chevardière substituiu as peças de Toeschi por um quarteto e uma sinfonia reorquestrada de Haydn. Nos Op. 2 foram publicados quatro quartetos e dois sextetos com trompa, sob o título de “seis quartetos” de Haydn. Os seis quartetos Op. 3, de 1765, seriam na verdade obras de Romanus Hoffstetter (1742-1812), grande admirador de Haydn, que dele disse: “Tudo que é fruto do tinteiro de Haydn me parece tão belo, marcando tão profundamente minha alma que não consigo não imitá-lo da melhor maneira possível”.45 Nas palavras de Fournier (2000, p. 64), “a imitação era tão próxima do original, que, ironia do destino, o movimento lento do Opus 3 nº 5 (Serenade) se transformou em uma das páginas mais célebres atribuídas a Haydn”.46 Pleyel em 1801 sob a revisão do próprio compositor manterá todas essas obras, incluindo as que não eram de Haydn, como quartetos originais no catálogo temático dos quartetos de cordas. Somente em 1957, com o trabalho de Hoboken e Landon, essa classificação começou a mudar.

Tovey, assim como Geiringer, afirmava que os primeiros quartetos de Haydn (Op. 0, Op. 1 e Op. 2) não podiam ser separados da música orquestral e poderiam ser executados por uma

44 Six simphonies ou quatuors dialogués pour deux violons, alto viola & basse obligés, composés par Mr. Hayden. 45 Tout ce qui coule de la plume de Haydn me semble si beau et s’imprime si profondément dans ma mémoire que je ne peux m’empêcher de l’imiter aussi bien que possible. 46 L’imitation était dailleurs tellement proche du modèle que, ironie du sort, le mouvement lent de l’Opus 3 nº 5 (Sérénade) est devenu une des pages les plus célèbres atribuées à Haydn.

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pequena orquestra (apud HICKMAN, 1981, p. 194).47 Em seu artigo The Nascent Viennese Quartet, Hickman (1981) coloca como grande conquista do final do século XVIII o nascimento de uma música de câmara escrita para um só instrumentista por parte, sem o suporte de um instrumento de teclado, livre do baixo contínuo, criando um estilo impossível de ser obtido por grupos maiores. Pelo menos em Viena, as diferenças entre a nova e a antiga música de câmara não seriam consequências de uma evolução gradual, mas de uma quebra no final da década de 1760, opinião também compartilhada por Charles Rosen (2000, p. 139). A música de câmara antes do final da década de 1760 apresentaria características orquestrais, alternando momentos tutti e solo, por meio de uma análise dos processos composicionais (HICKMAN, 1981, pp. 198- 207). Com essa classificação, Hickman coloca os quartetos de Haydn Op. 1 e 2 mais próximos a divertimentos, do que como quartetos de cordas, alternando momentos orquestrais e solísticos. Os primeiros Opus de Haydn mantêm uma vicinalidade com o divertimento também em relação à distribuição dos movimentos, geralmente cinco, alternando mais comumente um movimento rápido (sonata), minueto, lento, minueto e rápido (sonata). Os Op. 1 e 2 diferem consideravelmente dos quartetos Op. 9 de 1769, para Hickman inteiramente concebidos para quatro instrumentos solistas. A mesma quebra verifica ao se analisarem obras de compositores dessa época, antes e depois da ruptura entre música de câmara orquestral e solista, como Johann Baptist Vanhal (1739-1813) ou Florian Leopold Gassmann (1729-1774).

Lucas (2005, p. 116) explica que, na década de 1770, compositores vienenses como Vanhal, Dittersdorf e Haydn “escreviam obras mistas, justapondo movimentos próprios de peças altas48 (inicial e lento) a movimentos de dança (minueto, rondó), característicos de peças baixas, como a suíte, a serenata, e a cassatione”. Essas peças teriam um caráter mais concertante. Tal combinação de gêneros foi reprovada por alguns críticos da época, por acharem esse tipo de mistura indecoroso e cômico.

47 Cópias desses quartetos foram encontradas com mudanças na instrumentação (HICHMAN, 1981, p. 210); quinteto de cordas com fagote dobrando o baixo (Op. 1 no 1), quinteto de cordas com flauta (Op. 1 no 3), sexteto com duas trompas (Op. 2 nos 3 e 5), uma sinfonia com dois oboés e duas trompas (Op. 1 no 5), quinteto com contrabaixo (Op. 1 no 2, e Op. 2 no 3), e dois violinos e baixo (Op. 2 no 6). 48 Para teóricos como Johann Georg Türk, autor do Clavierschule oder Anweisung zum Clavierspielen für Lehrer und Lernende (1789), haveria uma distinção nítida entre peças altas, como a sonata, obras de maior qualidade, e peças baixas, como, por exemplo, a dança. As obras altas possuiriam “um destacado grau de entusiasmo, grande capacidade de invenção e um impulso [Schwung] alto, diria quase que musical-poético, dos pensamentos e da expressão” (TÜRK apud LUCAS, 2005, p. 115).

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A instrumentação exata dos primeiros quartetos de Joseph Haydn nunca foi estabelecida. Mesmo a nova edição crítica hesita: “[Os primeiros quartetos] podem ser tocados com um pequeno contrabaixo... Mas talvez Haydn estivesse pensando mesmo em um violoncelo”; “[Nos op. 9 e 17] a instrumentação provavelmente seria o [moderno] quarteto de cordas...”; “Que o violoncelo era intencional [no op. 20 e op. 33] é provavelmente além de qualquer questionamento.” Esta hesitação reflete precisamente as incertezas na literatura acadêmica. A controvérsia gira em torno de duas perguntas. Primeiro, os primeiros quartetos de Haydn foram escritos obrigatoriamente para solistas (ao oposto de performance orquestral ad libitum)? E segundo, assumindo que seja uma performance solista para o conjunto como um todo, qual era a instrumentação para a voz grave – violoncelo solo, contrabaixo solo, violoncelo e contrabaixo juntos (assim como na Eine kleine Nachtmusik), ou mesmo um baixo contínuo com cravo? (WEBSTER, 1977, p. 390).49

Para Webster (1977, p. 400) as diferenças na voz grave dos quartetos op. 1 e 2 para o op. 9 são substanciais, os primeiros podendo ser tocados por um contrabaixo, o que não é totalmente realizável no 9, que demandaria um “registro tenor”, dificilmente executável no instrumento.

Ao se considerar que houve uma ruptura do estilo no final da década de 1760, e automaticamente excluir a noção de evolução do divertimento para o quarteto clássico, Hickman considera que os primeiros divertimentos/quartetos de Haydn e seus contemporâneos não deveriam receber a alcunha de “imaturos” representantes de um gênero que estava por se desenvolver, mas devem ser considerados como gêneros à parte, opinião compartilhada pelo musicólogo Paul Henry Lang: “O divertimento não deveria ser visto como um trampolim para o quarteto ou para a sinfonia” (apud HICKMAN, 1981, p. 211).

Ao entrar para o serviço da família Esterházy como vice-kapellmeister em 1761, Haydn assinou um contrato rigoroso, com cláusulas o obrigando a usar o uniforme dos domésticos, seguir a família nos seus deslocamentos, cuidar dos instrumentos, cuidar do arquivo de partituras, dar aulas, realizar performances e compor a pedido das necessidades do seu empregador. A posição do músico na época era semelhante à de um criado em uma residência,

49 The precise scoring of Joseph Haydn’s early string quartets has never been established. Even the new critical edition hesitates: “[The fist string quartets] may reckon with a small double bass... But perhaps Haydn was thinking of the cello after all”; “[In op. 9 and op. 17] the actual scoring was probably already the [modern] string quartet...”; “That the cello was intended [in op. 20 and op. 33] is presumably [wohl] beyond question.” This hesitation accurately reflects the uncertainties in the schorlarly literature. The controversy revolves around two distincts but related issues. First, were Haydn’s early quartets written for obligatory performance by soloists (as opposed to ad libitum orchestral performance)? Secondly, assuming soloistic performance for the ensemble as a whole, what was the instrumentation of the bass part – solo violoncello, solo double bass, cello and double bass together (as in Eine kleine Nachtmusik), or even a basso continuo with keyboard?

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com o mesmo status social. Um anúncio publicado no Wiener Zeitung de 1798 exemplifica as atribuições de um músico doméstico:

Procura-se um criado de quarto músico. Procura-se um músico que toque piano bem e possa cantar também, além de poder lecionar nas duas áreas. Este músico deve também exercer as atribuições de um criado de quarto. Quem quiser aceitar este trabalho deve procurar o primeiro andar da pequena casa Colloredo no 982 na Wehburggasse (SKAERVED, 2010).50

O contrato de Haydn também deixava aberta a possibilidade de no futuro se acrescentarem novas obrigações e, principalmente, previa que toda composição de Haydn não poderia ser copiada ou distribuída sem o consentimento do príncipe, que detinha os direitos exclusivos sobre a obra. Isso perduraria até 1779, quando o compositor reformularia seu contrato, suprimindo o item sobre a sua propriedade intelectual no novo acordo (LUCAS, 2005, p. 120).

O trabalho de escrever conforme a demanda de seus empregadores irá influir diretamente nos rumos que tomará a sua obra. Entre 1761 e 1770, serão compostas mais de trinta sinfonias, concertos de instrumentos solos, música vocal, missas, cantatas, três óperas (La canterina, 1766; Lo speziale, 1768; e Le pescatrici, 1769) e um número considerável de música composta para o baryton,51 instrumento de predileção do príncipe Nikolaus I Esterházy (ele encomendou ao longo de sua vida 126 trios com baryton a Haydn). É provável que quartetos de cordas não estivessem entre as prioridades da família Esterházy, sendo que o desenvolvimento do gênero durante essa década se deu principalmente por intermédio outros compositores vienenses (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 11). Compositores como Boccherini, Franz Aspelmayr (1728-1786), Frantisek Xavier Dusek (1731-1799), Wenzel Pichle (1741-1805), Carlos Ordonez (1734-1786), (1739-1813) e Dittersdorf compuseram abundantemente para o gênero, mesmo que com características mais próximas de peças orquestrais do que solo. Jean Mongrédien (1986, p. 286) calcula que milhares de quartetos de cerca de duzentos compositores diferentes foram editados em Paris entre 1770 e 1800, tanto franceses quanto estrangeiros. Essa literatura abundante demonstra um imenso consumo de música de câmara em residências privadas, com

50 Musical valet-de-chambre wanted. A musician is wanted, who plays the piano well and can sing too, and is able to give lessons in both. This musician must also perform the duties of a valet-de-chambre. Whoever decides to accept the post is to ask in the first floor of the small Colloredo house N. 982 in the Weihburggasse. 51 Instrumento de arco combinado com cordas vibrando por simpatia, também podendo ser tocadas em pizzicato acompanhando a melodia. O baryton descende da viola da gamba.

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uma prática intensiva de música de conjunto, e para Mongrédien possivelmente em meios modestos também, em simples reuniões familiares e amigáveis (1986, p. 286).

Um vasto e obscuro repertório terá de ser examinado antes que a história definitiva do quarteto de cordas possa ser escrita. As páginas da Einzeldrücke vor 1800 da RISM52 listam centenas de quartetos da metade do século XVIII que não foram nem citados na literatura acadêmica especializada nem revisitados por edições modernas. Até que possamos ter uma visão mais compreensiva sobre a literatura dos primórdios do quarteto, temos que aceitar a visão tradicional de que Franz Joseph Haydn e seus colegas de Viena e arredores foram os compositores que estabeleceram o quarteto de cordas clássico (RADICE, 2012, p. 35-36).53

O que originou um retorno de Haydn ao quarteto de cordas não está bem definido, além de algumas suposições. Entre 1769 e 1773 não foram escritas novas obras e nesse período houve uma redução na produção para o baryton. É possível que, estando em uma época mais calma nas suas obrigações de compor sob demanda, Haydn se voltasse para o quarteto. Uma hipótese também formulada por GRAVE, GRAVE explica que o príncipe Esterházy, junto com o spalla de sua orquestra, Luigi Tomasini (1741-1808), encontrava-se em Paris no outono de 1767. Nessa época, Boccherini estava expondo seus quartetos op. 2 e é possível que o próprio príncipe, em contato com as obras de Boccherini, tenha incentivado Haydn a se voltar para o gênero (2008, p. 12). Surge então em 1770 uma nova série, os quartetos op. 9, logo seguida em 1771 pelos op. 17. Trata-se de obras tecnicamente difíceis, em especial para o primeiro violino, trazendo uma linguagem mais moderna ao quarteto, alternando momentos de seriedade e humor. Para Fournier, Haydn, já próximo de seus quarenta anos, põe em prática nos quartetos os processos novos que tinha experimentado nas sinfonias. Os seis quartetos op. 9, contrariamente aos precedentes, “são apresentados como um todo. Cada um comporta quatro movimentos, em seis tonalidades diferentes, sendo uma menor, o que será seguido por Haydn para o resto de sua vida, assim como a maioria dos outros compositores de segunda metade do século XVIII” (FOURNIER, 2014, p.

52 RISM – Répertoire International des Sources Musicales. Organização internacional sem fins lucrativos que desde 1952 repertoria fontes musicais, sejam manuscritos ou edições, libretos e tratados musicais. 53 Much obscure repertoire will have to be examined before the definitive history of the string quartet can be written. The pages of the Einzeldrücke vor 1800 of RISM list hundreds of midcentury quartets that have neither been accounted for in scholarly literature to date nor been issued in modern editions. Until we have a more comprehensive view of the earliest quartet literature, we must accept the traditional view that Franz Joseph Haydn and his colleagues in and around Vienna were the composers who established the Classical string quartet.

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50).54 Com o mesmo caráter experimental do op. 9, os quartetos op. 17 também são qualificados como divertimenti a quadro, assim como seus precedentes. Muito influenciadas por Carl Phillip Emanuel Bach, essas obras ainda estariam muito próximas das grandes formas barrocas, inspiradas pelo trio sonata, assim como pelo concerto e a ópera (FOURNIER, 2014, p. 52).

O editor de Berlin optou por um sol para a capa dessa nova série de quartetos. Por esse motivo chamados de “Quartetos do Sol”, os op. 20 (1772) trazem como inovação dois quartetos em modo menor, o que não se repetiu em toda a produção de Haydn, Mozart e Beethoven (FOURNIER, 2014, p. 53). Obras mais severas, nelas o violoncelo se distancia da figura de baixo, tendo um destaque mais melódico.

Na próxima década Haydn não comporia mais para o gênero. É provável que o desempenho das funções do seu cargo não deixasse espaço para novas experimentações. A partir de 1776, o compositor foi encarregado de gerenciar a temporada musical do seu chefe. Somente no ano de 1778, por exemplo, Haydn produziu 50 óperas, número que cresceu nos anos seguintes – serão cerca de 100 produções em 1783 e 125 em 1786 (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 13). Além de produzir, também compôs cinco óperas até 1780 (FOURNIER, 2014, p. 55). Durante essa década a popularidade do quarteto cresceu consideravelmente e muitas obras foram publicadas em Paris, em grande parte voltadas ao público amador. Destacam-se entre esses compositores Jean-Baptiste Davaux (1742-1822), Giuseppe Maria Cambini (1746? -1825) e seus 149 quartetos e Jean-Baptiste Bréval (1753-1823).55

Em 1779 Haydn já era um compositor famoso, o que influiu de maneira notável na renegociação de seu contrato com a família Esterházy. Além de melhores condições financeiras, seu novo contrato abolia o item que entregava os direitos autorais de sua produção ao príncipe. Ele adquiria assim um maior controle sobre sua obra (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 12). Os quartetos op. 33 serão as primeiras obras do gênero publicadas diretamente sob a supervisão do autor, em 1782 (LUCAS, 2005, p. 119). Se nos quartetos op. 20 Haydn colocaria no manuscrito autógrafo a alcunha de Divertimento a quattro, nas cartas em que fala do op. 33 já se refere a eles como Quartetten assim como à quadro, sendo finalmente publicados como Quatuor pela editora

54 Se présentent comme un tout. Ils comportent chacun quatre mouvements et sont écrits dans six tonalités différentes dont une mineure, disposition quis sera suivie sans entorse par Haydn jusqu’à la fin de sa vie, ainsi que par la plupart des autres compositeurs de la deuxième moitié du XVIIIe siècle. 55 GRAVE, GRAVE, 2008, p. 12.

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Artaria (LUCAS, 2005, p. 121). Em 1781,56 com a estreia dos quartetos Op. 33, Joseph Haydn introduziu uma revolução no estilo musical, aprimorando a linguagem não somente do quarteto de cordas, mas também das outras formas musicais. Haydn faz uso de uma linguagem mais próxima do humor (o segundo quarteto da série é apelidado de “A piada”), decorrente possivelmente de sua produção recente. Entre 1772 (op. 20) e 1781, o compositor escreveria para a corte do príncipe Esterházy sobretudo óperas-buffa, e mesmo suas sinfonias da época seriam em grande parte arranjos dessas óperas (ROSEN, 2000, p. 149).57

2.2.2 Os Quartetos op. 33

Os op. 33 apresentam novos recursos, como o contraponto clássico, ou mesmo linhas de acompanhamento se transformando de maneira imperceptível em melodias, assim como o descarte de motivos ou frases de transições (ROSEN, 2000, p. 146-149). Nesses novos opus há também uma substituição dos minuetos por scherzi (justificando o apelido de Gli Scherzi) e o uso do rondó no último movimento, em vez da fuga. Alguns meses antes da publicação das peças, Haydn mandou cartas a possíveis compradores, oferecendo cópias manuscritas, visando a um lucro adicional. Com a principal argumentação do ineditismo das obras, Haydn dizia que “eles [os quartetos] foram escritos em uma maneira totalmente nova, pois há 10 anos não escrevo nenhum” (apud LUCAS, 2005, p. 120). Para Rosen, Finscher e outros estudiosos, Haydn fazia jus à sua descrição, pois essas obras mostravam uma verdadeira ruptura estilística em relação às obras prévias, sendo as primeiras do compositor compostas em um estilo legitimamente clássico. Outros teóricos como Larsen colocam a frase de Haydn como simples propaganda. Porém uma nova visão do gênero poderia estar evidenciada mais uma vez pelo baixo, no op. 20 denominado de basso, ao contrário do op. 33, em que é chamado de violoncelo concertante. Começa com os op. 33 a fase madura do compositor e a forma moderna do quarteto de cordas (LUCAS, 2005, p. 120-121).

56 Os quartetos estrearam em dezembro de 1781 e foram publicados em março de 1782. Foram escritos para a visita a Viena do Grão-Duque da Rússia (futuro Czar Paul) e sua esposa, a Princesa de Württemberg. Na edição de 1801 de Pleyel, os quartetos são dedicados ao Grão-Duque e Grã-Duquesa da Rússia, o que tornou as obras conhecidas como os quartetos “russos” (LUCAS, 2005, p. 119-121). 57 Para maiores informações acerca do papel do humor na obra de Haydn, consultar a tese de doutorado de Mônica Lucas (Unicamp), Humor e agudeza nos quartetos de corda Op. 33 de Joseph Haydn (2005), em especial o sub- capítulo Elementos humorísticos na música de Haydn (pp. 95-101), assim como o terceiro capítulo Os quartetos de cordas op. 33 (pp. 113- 209), no qual ela analisa a aplicação dos elementos de humor nos quartetos op. 33.

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É provável que os célebres quartetos de Mozart dedicados a Haydn tenham sido influenciados diretamente pela publicação dos op. 33. Mozart começou a escrever seus quartetos em 1782, poucos meses depois da publicação dos op. 33 de Haydn, e os tornou públicos em 1785 (LUCAS, 2005, p. 118). Após o surgimento dos quartetos a ele dedicados, Haydn permanece alguns anos sem compor novos quartetos, possivelmente ainda sob o impacto das obras de Mozart:

Tecnicamente ambiciosos, soberbamente originais, e mesmo assim calçados no idioma de Haydn, eles devem ter feitos uma profunda impressão no compositor mais velho, que provavelmente se sentiu desafiado a reconsiderar, refletir e absorver. Teria ele sentido as frases legato de Mozart, seu domínio do cromatismo, ou a dinâmica do ritmo dos seus Allegros como um indício de um novo estilo de quarteto enriquecido com o qual ele deveria se equiparar? E se for o caso, teria ele necessitado um certo tempo para assimilar antes de responder? (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 14).58

2.2.3 Últimas obras

Em 1786 Haydn escreve um quarteto isolado, o op. 42, que parece ter sido encomendado como parte de uma série de quartetos de vários compositores, mas não há registros claros. Em 1787 compõe os op. 50, mais voltado para um público menos leigo. Os quartetos já ocupam uma parte central na obra do compositor, que um ano depois publica os op. 54/55 (era prática comum naquela época dividir uma série de seis quartetos em duas publicações). O sucesso alcançado em 1788 por Dittersdorf ao lançar quartetos de menor dificuldade técnica, visando não somente a profissionais como amadores, inspira Haydn a publicar em 1790 quartetos mais acessíveis ao grande público, os op. 64 (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 15).

A questão editorial irá influenciar diretamente nas composições, com o crescente público amador se tornando um ávido consumidor de música de câmara. A música doméstica era muito popular nas residências, em grande parte devido aos avanços tecnológicos. A importante demanda de música impressa levou ao desenvolvimento de novas técnicas editoriais, em especial com a invenção da litografia em 1796, permitindo aos editores produzir mais música, de melhor qualidade e em menor tempo. “Muitos compositores – [...] como Haydn e Beethoven –

58 Ambitious technically, superbly original, yet nevertheless steeped in Haydn’s idiom, they must have made a deep impression on the older composer, who is likely to have felt challenged to reconsider, reflect, and absorb. Might he have heard Mozart’s legato phrases, his mastery of chromaticism, or the streamlined pace of his common-time Allegros as signs of a newly enriched quartet style with which he must come to terms? And if so, might a certain amount of time have been required for him to assimilate before responding?

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modificaram deliberadamente seus estilos musicais com o propósito de aumentar o mercado de suas obras” (RADICE, 2012, p. 27).59 A correspondência entre Boccherini, um dos mais bem- sucedidos compositores residentes em Paris, e Pleyel, famoso editor, ilustram esse fenômeno. Pleyel, então o editor da obra de câmara de Boccherini, pediu a este que as compusesse mais curtas e fáceis. O compositor responde em 1799:

Deveríamos então dizer adeus às modulações, ao trabalho dos temas, e etc. Com limitadas palavras somente podemos dizer poucas coisas e menos ainda meditar. Por outro lado, entendo e reconheço que os pobres diletanti somente raramente conseguem ter sucesso nas peças trabalhadas por conta da dificuldade dos movimentos e por outros motivos; sendo por este motivo que prometo vos satisfazer também neste ponto já que a exploração comercial assim o faz necessário. [...] Não querendo perder minha reputação e este nome que tanto custei a construir, estejamos de acordo neste ponto: nas obras de quarteto e em todas as outras que irei escrever, duas serão do meu gosto, e quatro da maneira que me pede, mas lembre-se que não existe coisa pior do que querer atar as mãos a um pobre compositor, ou seja, limitar sua inspiração, sua fantasia, e o dobrar a convenções (MONGRÉDIEN, 1986, p. 287).60

Essa carta ilustra de maneira clara a importante relação estabelecida no final do século XVIII entre o artista e seu público.

Em poucos anos seguem-se os quartetos op. 71/74 (1793), op. 76 (1797), op. 77 (1799) e o inacabado op. 103 (1803), encerrando a obra quartetística de Haydn. Com exceção de alguns arranjos de canções folclóricas (que podem ter sido trabalhos de alunos em grande parte ou mesmo na totalidade), o op. 103 possivelmente seria a última obra de Haydn (GRAVE, GRAVE, 2008, p. 17).

59 Many composers – [...], like Haydn and Beethoven – deliberately modified their musical styles for the purpose of increasing the market for their works. 60 Il faudrait dire adieu alors aux modulations et au travail des thèmes donnés, etc. Em peu de mots on ne peut dire que peu de choses et encore moins méditer. D’autre part, je me fais une raison et me rends compte que les pauvres dilettanti ne peuvent que rarement réussir dans les morceaux travaillés par la suíte de la difficulté des mouvements et par d’autres motifs; c’est pourquoi je vous promets de vous satisfaire aussi sur ce point puisque la spéculation commerciale l’éxige. [...] Ne voulant pas perdre la réputation qui est la mienne et ce renom qui m’a coûté tant de peine à acquérir dans le monde, restons d’accord sur ce point: dans l’oeuvre de quatuors et dans toutes les autres que j’écrirai, deux serons selon mon désir, et quatre selon votre désir, mais souvenez-vous qu’il n’y a rien de pire que de vouloir lier les mains à um pauvre auteur, c’est-à-dire de mettre des limites à son inspiration, à as fantaisie et de l’assujettir à des conventions.

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2.3 Wolfgang Amadeus Mozart

2.3.1 Primeiros quartetos

Apesar de ser dono de uma obra consideravelmente menor do que Haydn no campo do quarteto de cordas,61 certamente devido ao fato de ter vivido somente 35 anos enquanto Haydn viveu 77, mesmo assim Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) marcou fortemente a história do gênero.

Até a década de 1770, não há evidências de que existiram composições para quarteto de cordas em Salzburg, cidade natal do compositor. Mesmo a música de câmara com instrumentos solo não estava plenamente estabelecida. As formações mais comuns eram de trios para dois violinos e basso, além de divertimentos para quartetos de cordas e duas trompas, forma bastante explorada por Mozart antes de começar a sair de Salzburg (EISEN, 2010, p. 108). Os primeiros contatos e composições de Mozart acerca da formação se deram por meio de suas numerosas viagens, desde a mais tenra infância. Com 14 anos compôs seu primeiro quarteto, K. 80, em Lodi, na Itália.

Os seis quartetos K. 156-60 foram escritos em viagem pela Itália, em um estilo semelhante ao de Giovanni Battista Sammartini (c. 1700-1775), que Mozart conhecera em suas viagens. Chamados de Quartetos Milaneses, por terem sido escritos em Milão, onde Mozart se encontrava escrevendo sua ópera Lucio Silla, seus primeiros quartetos mostram uma presença forte de contraponto, porém ainda sem o domínio que viria em suas obras tardias. Também seguem a ideia de divertimentos, todos eles formados de três movimentos (apesar de o primeiro quarteto K. 80 já contar com quatro movimentos).

Os seis quartetos que seguem, K. 168-73, conhecidos como Quartetos Vienenses, foram terminados em 1773 em Viena, menos de um ano após os Quartetos Milaneses. Plath acredita que foram obras feitas sob a vontade do pai, (1719-1787), que queria para o filho um emprego de músico de câmara na corte – e quartetos demonstrando um claro

61 Mozart compôs 23 quartetos, contra 68 prováveis de Haydn.

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domínio do contraponto seriam sem dúvida úteis (apud IRVING, 1998, p. 9). Esses quartetos, já inspirados por Haydn (cópias dos op. 9, 17 e 20 circulavam amplamente pela Europa), já foram escritos em quatro movimentos, com minuetos e trios, e outros elementos do compositor dos Esterhàzi.

Se Leopold Mozart (1719-1787) nunca duvidou do gênio do seu filho, tanto como compositor como intérprete, em diversas ocasiões manifestou descontentamento com as habilidades de Wolfgang para o tino comercial. Essa relação de dependência entre pai e filho, que em alguns momentos chegava a escrever ao pai a cada dois dias (HARNONCOURT, 1985, p. 308), foi amplamente criticada por diversos pesquisadores, porém algumas raras exceções, como Nikolaus Harnoncourt, discordaram:

Ao contrário de grande parte dos psicólogos modernos, não vejo nada de negativo neste vínculo. O pai de Mozart se dedicava à educação de seu filho genial, e que não podia ser ensinado, com a maior delicadeza e uma grande consciência de sua responsabilidade. Evidentemente, chegaria o momento no qual este filho adquiriria sua independência; musicalmente, já era o caso há muito tempo. É verdade que o pai fazia sugestões; Mozart aceitava as ideias paternas quando elas estavam de acordo com suas próprias concepções, e as rejeitava com liberdade e segurança quando do contrário. Era para as questões do dia a dia que ele permanecia dependente, e seu pai tinha receio, não sem razão, que sozinho sem orientações teria dificuldades com as exigências do cotidiano (HARNONCOURT, 1985, p. 307).62

Leopold Mozart insistia frequentemente para que seu filho escrevesse obras acessíveis a um público mais amplo, com peças mais fáceis e simples, e acreditava que o quarteto de cordas seria um veículo perfeito para isso:

Se você não tem alunos no momento, então componha mais, mesmo que venda sua obra por um preço menor; pelo amor de Deus, você precisa se fazer conhecer. Mas escreva algo curto, fácil, popular. Pergunte a um editor o que ele gostaria – talvez quartetos fáceis para dois violinos, viola e basso. Você acha que estaria se rebaixando fazendo coisas do gênero? De jeito nenhum! Será que Bach em Londres [i. e. J. C. Bach] nunca publicou obras insignificantes [Kleinigkeiten]? O pequeno é grandioso se for natural – se soar belo e simples. É mais difícil fazer isto do que escrever todas aquelas progressões harmônicas artificiais que são incompreensíveis para a maioria das pessoas, e melodias

62 A la différence de bon nombre de psychologues modernes, je ne vois rien de négatif à ce lien. Le père de Mozart se consacrait à l’éducation de ce fils genial et inéducable avec la plus grande délicatesse et une haute conscience de ses responsabilités. Evidemment, le moment devait arriver où ce fils acquerrait son indépendance; musicalement, c’était depuis longtemps le cas. Il est vrai que son père lui faisait des suggestions; Mozart acceptait les idées paternelles lorsqu’elles étaient en accord avec ses propres conceptions, il les rejetait avec liberté et assurance dans le cas contraire. C’est pour ce qui touchait à la vie de tous les jours qu’il restait dépendant, et son père craignait, non sans raison, que, livré à lui-même, il n’éprouve des difficultés avec les exigences du quotidien.

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difíceis de se tocar. Será que Bach se rebaixou ao fazer isso? De jeito nenhum! (L. MOZART, 1778 apud BONDS, 2007, p. 203).63

Todavia, é importante ressaltar que Leopold Mozart deixa bem claro que a simplicidade não é um fator incompatível com a qualidade.

Em Viena, a música de câmara ocupava um lugar de destaque, certamente influenciando a importante produção camerística do jovem compositor:

Em Viena, onde fixou residência permanente na primavera de 1781, Mozart se deparou com uma cultura diferente em relação à música de câmara: tanto suas circunstâncias profissionais assim como a maneira na qual a música de câmara era cultivada localmente proporcionaram novas e diferentes oportunidades ao compositor. Mozart não estava associado à Corte, onde a música de câmara era frequentemente executada, e ele nem aparecia em concertos públicos. Mas ela era frequente nas casas de membros da nobreza (entre eles o Barão van Swieten, que pediu a Mozart que fizesse arranjos de diversas fugas de J. S. Bach para quarteto de cordas, para os quais Mozart também compôs novos prelúdios) e pelo público em geral: a grande maioria da música impressa e vendida em Viena na década de 1780 era de piano solo e música de câmara (EISEN, 2010, p. 109- 110).64

2.3.2 Os seis quartetos dedicados a Haydn

Os seis quartetos de Mozart dedicados a Haydn, publicados com a numeração de op. 10 em 1785 (K. 387, K. 421, K. 428, K. 458, K. 464, K. 465), são considerados uma importante referência na literatura de quarteto.65 Tendo neles algumas das mais famosas obras de Mozart,

63 If you have no pupils at the moment, then composse something more, even if you have to let your work go for a smaller sum; fod God’s sake you have to make yourself known. But let it be something short, easy, popular. Talk with an engraver about what he would most like to have – perhaps easy quartets for two violins, viola and basso. Do you believe perhaps that you lower yourself by such things? In no way! Did Bach in London [i. e. J. C. Bach] ever published anything other than such trifling works [Kleinigkeiten]? The small is great if it is natural – if it is flowing and easy and soundly composed. It is harder to do this than to write all those artificial harmonic progressions that are incomprehensible to most people, and melodies that are difficult to perform. Did Bach lower himself by doing this? In no way! 64 In Vienna, where he took up permanent residence in the spring of 1781, Mozart discovered a diferent chamber music culture: both his professional circumstances and the ways in which chamber music was cultivated locally gave rise to new and different opportunities for the composer. Mozart was not associated with the court, where chamber music was frequently performed, nor did it figure in public concerts. But it was widely pursued at the homes of the nobility (among them Baron van Swieten, who had Mozart arrange for string quartet several of J. S. Bach’s fugues, for which Mozart also composed new preludes) and by the public at large: the bulk of music printed and sold in Vienna during the 1780s was solo keyboard and chamber music. 65 A obra de Mozart é muito ampla, com peças publicadas que receberam número de opus, e outras que nunca foram editadas. Em 1862 o musicólogo Ludwig von Köchel estabeleceu um catálogo cronológico completo de suas obras, que hoje são numeradas pelo índice Köchel, ou seja, um número precedido da letra K ou KV (do alemão Köchelverzeichnis, que significa catálogo Köchel). Como outras peças foram descobertas posteriormente, esse catálogo foi revisto em duas outras ocasiões no século XX e algumas obras possuem diferentes números Köchel, como é o caso do concerto para trompa no 1: K. (412+514)/386b.

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como os quartetos A Caça (K. 458) e o Dissonâncias (K. 465), foi nesse conjunto de obras, nas palavras de Alfred Einstein, que Mozart “se encontrou totalmente... música feita de música” (apud IRVING, 1998, p. 1).66

Conjuntos de obras como os op. 33 de Haydn, ou os seis quartetos dedicados a Haydn, de Mozart, mesmo que não-intencionalmente se tornaram o protótipo contra o qual o repertório de quarteto foi comparado e serviu de modelo por muito tempo, separando o gênero da maior parte dos outros tipos de música de câmara contemporânea (STOWELL, 2003, p. 4).67

Admirador e amigo próximo de Haydn (seu melhor amigo, nas palavras do jovem compositor), Mozart compara seus quartetos a filhos que estaria entregando à proteção de Haydn, como deixa claro na dedicatória da obra:

Ao meu caro amigo Haydn um pai, tendo resolvido mandar seus filhos para o grande mundo, julgou dever entregá- los à proteção e conduta de um homem célebre então, que por boa sorte, era, além disto, seu melhor amigo. – Eis, portanto, igualmente, homem célebre e meu amigo caríssimo, os meus seis filhos. – [...] Que tu os acolhas benignamente, e sejas pai, guia e amigo deles! A partir deste momento, cedo-te meus direitos sobre eles; suplico-te, porém, olhar com indulgência os defeitos para os quais o olho tendencioso de pai pode ter se fechado, e manter [para comigo], malgrado eles, a tua generosa amizade, pela qual tenho tanto apreço e pela qual sou [grato] de todo o coração. Amigo caríssimo, teu muito sincero amigo W. A Mozart (apud LUCAS, 2005, p. 117-118).

As “novas técnicas” de Haydn aplicadas nos quartetos op. 33 certamente influenciaram profundamente os quartetos que Mozart a ele dedicou em 1785 (IRVING, 1998, p. 2), até pela proximidade de datas: esse conjunto de obras foi composto de 1782 a 1785, logo após a publicação em 1782 dos op. 33 de Haydn pela casa Artaria. Neles “Mozart [...] deixa evidente seu débito a este compositor” (LUCAS, 2005, p. 119). Algumas citações são claras, como, por exemplo, no finale com variações do K. 421, muito semelhante na forma e no tema do finale com variações do op. 33 no 5, assim como a introdução do K. 456 se desenvolve em um certo paralelismo com o op. 33, no 3 (BONDS, 2007, p. 202). Nos dois últimos da série (K. 464 e K. 465), Mozart também teria se inspirado nos quartetos op. 1 de Pleyel. Em carta endereçada ao seu pai em 1784, Mozart comenta sobre a obra de Pleyel:

66 Mozart completely found himself... music made of music. 67 Sets of works such as Haydn’s op. 33 or Mozart’s six quartets dedicated to Haydn produced, albeit unintentionally, the prototype against which the quartet repertoire was for a long time thereafter to be measured and even modelled, setting the genre apart from most other types of contemporary chamber music.

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Uns quartetos de um certo Pleyel apareceram recentemente; ele é um aluno de Joseph Haydn. Se você não os conhece, então deveria tentar obter uma cópia; valerá o esforço. Eles são muito bem escritos e muito agradáveis. Você reconhecerá neles o mestre. Seria uma felicidade para a música se Pleyel for capaz de substituir Haydn para nós! (BONDS, 2007, p. 201).68

Em seu artigo intitulado Replacing Haydn: Mozart’s ‘Pleyel’ Quartets, Mark Evan Bonds expõe a ideia de que os quartetos de Pleyel op. 1, apesar de obras mais simples em comparação às de Haydn (que por sua vez inspirou as de Pleyel), forneceram considerável material para os quartetos op. 10.

Os manuscritos dos quartetos dedicados a Haydn explicitam a vasta quantidade de correções e revisões feitas pelo compositor, o que não era tão comum no seu modo de escrever.69 “Estes quartetos realmente custaram a ele muito tempo e dificuldades” (IRVING, 1998, p. 14).70 Provavelmente por esse motivo Mozart não queria vendê-los pelo mesmo preço que costumava vender outras obras. Em carta ao editor Sieber, que tinha editado as seis sonatas para violino e piano K. 301 - 06 pagando a soma de 30 Louis de ouro, Mozart oferece três concertos para piano e orquestra pelo mesmo valor,71 mas diz que não pode vender seus novos quartetos por uma soma inferior a 50 Louis de ouro. Sieber recusa e os quartetos serão editados por Artaria posteriormente (BONDS, 2007, p. 204-205).

Em discussões acerca dos procedimentos composicionais de Mozart, se tornou uma espécie de clichê afirmar que Mozart trabalhava com facilidade e velocidade: que cada composição era concebida como um todo na sua cabeça, e que após trabalhar assim, somente era necessário o tempo de escrever as ideias no papel. Mas isto nunca pareceu correto no caso dos quartetos de cordas, existem evidências de que foram escritos de forma laboriosa e com muito esforço, e que a caligrafia era não somente lenta, mas também incerta. O próprio Mozart o reconheceu, ao descrever os seis quartetos dedicados à Haydn como “frutto di una lunga, e laboriosa fatica”, o fruto de um trabalho

68 Some quartets by a certain Pleyel have recently appeared; he is a student of Joseph Haydn. If you do not yet know these, then you should try to get hold of them; it will be worth the effort. They are very well written and very pleasing. You will at once recognize in them his master. Fine – and it will be fortunate for music if Pleyel in his time is capable of replacing Haydn for us! 69 Il frutto di una lungha e laboriosa fatica. 70 These quartets really did cost him a lot of time and trouble. 71 Concertos K. 413-15.

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longo e laborioso, e ele contou a Puchberg72 que os quartetos “Prussianos” eram “diese mühesame Arbeit”, ou seja, um trabalho exaustivo (TYSON, 1975, p. 130).73

Com esses quartetos dedicados a Haydn, o primeiro violino não é mais a voz que domina o conjunto, mas há um equilíbrio melhor definido entre os instrumentos em alguns momentos, como no desenvolvimento do primeiro movimento do K. 421. Quarteto de caráter dramático, obra que começa e termina em ré menor, Mozart optou em não seguir a tendência comum de terminar com um movimento em tonalidade maior (FOURNIER, 2014, p. 89). A esposa do compositor, Constanze, contou em 1829 ao casal Novello74 que Mozart estaria escrevendo o quarteto em Ré menor K. 421 enquanto sua esposa estava em trabalho de parto do primeiro filho do casal, Raimund Leopold Mozart, em 1783 (IRVING, 2008, p. 13).

Possivelmente seu quarteto mais famoso, o último da série (K. 465) ganhou a alcunha de Dissonâncias por conta de sua introdução repleta de cromatismo, sem acordes bem definidos inicialmente e ausência de tonalidades claramente delimitadas, o que gerou um certo grau de controvérsia ao longo do século XIX. Alguns autores, como Fournier (2014, p. 96) e DeFotis (1982, p. 38), mostram que o famoso acorde de “Tristão”, derivado dos primeiros compassos do prelúdio de Tristão e Isolda, de Wagner (1858), assim como os cromatismos que tornaram o prelúdio célebre, já se encontravam no Adágio inicial dessa composição, sendo uma possível fonte de inspiração. DeFotis (1982, p. 37) também relaciona os primeiros compassos do Adágio a outras importantes composições do século XIX que podem ter se inspirado em Mozart, como o

72 Johann Michael Puchberg (1741-1822), comerciante têxtil, foi um amigo maçom de Mozart que emprestou consideráveis somas ao compositor no final de sua vida, quando o mesmo se encontrava em sérias dificuldades financeiras. A volumosa correspondência trocada entre os dois, para tratar basicamente de finanças, mas também de música, fornece valorosos subsídios acerca das criações de Mozart na sua última fase, incluindo seus derradeiros quartetos, os “Prussianos”. 73 In discussions of Mozart’s compositional procedures it has become something of a cliché to assert that Mozart habitually worked with ease and speed: that each composition was conceived as a whole in his head and after it had been worked out in this way required little else but the time to write it down on paper. But this has never seemed credible in the case of the string quartets, and the evidence is that they were composed laboriously and with much effort, and that the writing was not only slow but uncertain. Mozart himself said so: he described the six ‘Haydn’quartets as íl frutto di una lunga, e laboriosa fatica’, the fruit of long and laborious toil, and he told Puchberg that the ‘Prussian’quartets were ‘diese mühesame Arbeit’, that exhausting labour. 74 O compositor inglês Vincent Novello (1781-1861) e sua esposa Mary viajaram à Áustria em 1829 com o objetivo de presentear a irmã de Mozart, ainda viva então, com uma soma coletada por admiradores ingleses de Mozart. Também se encontraram com a viúva e a cunhada do compositor nessa mesma ocasião, além de antigos amigos de Mozart em Viena. Toda a peregrinação foi documentada com a intenção de posteriormente escrever uma biografia do compositor, o que não ocorreu, mas os cadernos da viagem foram publicados por descendentes do casal em 1955, com o título Mozart Pilgrimage: The travel diaries of Vincent & Mary Novello in the year 1829.

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início da sétima sinfonia de Gustav Mahler (1905) e Verklärte Nacht, de Arnold Schoenberg (1899). Diversas tentativas para “corrigir” o Adágio inicial foram sugeridas por teóricos de renome, como François-Joseph Fétis (1784-1871), Raphael-Georg Kieseweter (1773-1850) ou Gottfried Weber (1779-1839). Para muitos, a introdução continha notas erradas e múltiplas revisões foram sugeridas, por vezes provocando brigas acaloradas em jornais.75 Em pleno século XX, Ernest Newman sustentaria em um artigo sobre o Adágio inicial:

Estou convencido de que se nos afirmassem sem qualquer margem de erro que isso é mesmo de Mozart, seríamos bastante severos a respeito. Atrevo-me a dizer que esta introdução não é um Mozart de qualidade, há uma incerteza sobre ela – não tanto harmónica quanto estética – que não encontramos frequentemente na obra dele; os seus próprios contemporâneos estavam conscientes de que não se tratava de um Mozart de qualidade, e tinham todo o direito de pensar assim (NEWMAN, 1925 apud DeFOTIS, 1982, p. 32).76

Para DeFotis, essas revisões do Adágio do quarteto derivavam da premissa de que essa música poderia ser analisada somente por critérios normativos, tais como regras harmônicas, bom gosto, ou a uma imagem preconcebida de um estilo de Mozart. Tais critérios não podem ser dispensados, mas são discutíveis quando exclusivos. Para DeFotis, se os críticos tivessem olhado para o Adágio como uma introdução para algo, e não uma peça isolada, talvez não o tivessem revisado (1985, p. 33).

Mesmo reconhecendo sua capacidade como compositor, a crítica de seu tempo por vezes lamentava sua grande criatividade, preferindo músicas mais simples. Dois anos após a publicação dos quartetos, Carl Cramer comenta no Magazin der Musik que

ele [Mozart] é o mais habilidoso e o melhor estudioso do piano que já ouvi; é somente uma pena que ele mire alto demais nas suas inteligentes e realmente belas composições, para se tornar em um novo criador; devemos ressaltar que os sentimentos e o coração não fazem tanta diferença em sua obra. Seus novos quartetos para 2 violinos, viola e baixo, que ele dedicou a Haydn, podem ser definidos como temperados em demasia – e que paladar pode aturar isso por tempo demasiado? Perdoem-me por esta analogia a um livro de receitas culinárias (apud DeFOTIS, 1982, p. 31).77

75 O artigo Mozart, Quartet in C., K. 465, de William DeFOTIS (1982), reproduz algumas dessas discussões e exemplos musicais de diferentes alterações sugeridas ao longo dos anos. 76 I am convinced that if it were put before us without any hint that it was by Mozart we would be pretty severe with it. I venture to say that this introduction is not good Mozart, that it has an uncertainty about it – not so much harmonic as aesthetic – that we do not often find in him; that the men of his own day were conscious that it was not good Mozart; and that they were quite justified in saying so. 77 He [Mozart] is the most skillful and best keyboard scholar I haver ver heard; the pity is only that he aims too high in his artful and truly beautiful compositions, in order to become a new creator, whereby it must be said that feeling

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Os três primeiros quartetos da série foram apresentados em uma performance privada para Haydn em janeiro de 1785, com comentários elogiosos do homenageado. Os quartetos restantes foram tocados para Haydn no mês seguinte, por Mozart, seu pai Leopold e amigos, ocasião na qual Haydn, impressionado, confidenciou a Leopold em uma carta:

Tendo Deus como minha testemunha, e pela minha honestidade, lhe digo que o seu filho é o maior compositor que conheço, seja pessoalmente ou de fama. Ele tem bom gosto, e principalmente, um conhecimento profundo da arte de compor (IRVING, 1998, p. 13).78

Os quartetos op. 10 trouxeram importantes mudanças na estrutura do quarteto de cordas e influenciaram gerações de compositores que seguiram. Em primeiro lugar, Mozart estabilizou o quarteto em volta da forma sonata, utilizando a mesma não somente nos allegros iniciais, mas também nos andantes e finales, as vezes até nos minuetos, colocando o quarteto em um ponto de equilíbrio, enquanto Haydn empregou a forma sonata de uma maneira mais experimental, não fazendo dela um padrão, mesmo nos op. 76. Segundo, a justaposição contínua entre o contraponto e a harmonia na forma sonata, aprimorando uma linguagem familiar a Haydn, foi plenamente utilizada em diante por outros compositores (FOURNIER, 2000, p. 226). Para Kerman (1974, p. 18), os quartetos dedicados a Haydn estabelecem na obra de Mozart uma linha de demarcação, que junto com As bodas de Fígaro marcarão a passagem para a maturidade definitiva do compositor.

2.3.3 Hoffmeister e quartetos Prussianos: os derradeiros quartetos

Cerca de um ano após os quartetos dedicados a Haydn, Mozart publica um quarteto K. 499. Chamado de Quarteto Hoffmeister devido ao fato de ter sido publicado pelo compositor e editor Franz Anton Hoffmeister (1754-1812),79 é uma obra mais experimental, não sendo o produto de nenhuma necessidade externa, ao contrário dos op. 10, mas “a expressão de um desejo espontâneo após a produção de várias obras-primas no campo da música de câmara, o quarteto K.

and heart profit little; his new quartets for 2 violins, viola and Basset, which he has dedicated to Haydn, may well be called too highly seasoned – and whose palate can endure this for long? Forgive this simile from the cookery book. 78 Before God, and as an honest man I tell you that your son is the greatest composer known to me either in person or by name. He has taste, and, what is more, the most profound knowledge of composition. 79 O próprio Hoffmeister compôs 57 quartetos.

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499 é um dos mais perfeitos do compositor” (FOURNIER, 2014, p. 97).80 A partir do quarteto Hoffmeister em diante, Mozart se distancia um pouco da herança de Haydn, entrando mais profundamente em um estilo próprio, uma nova estética (GRIFFITHS, 1985, p. 56). Ao contrário dos tradicionais Allegros que marcam o início de uma obra, o K. 499 se inicia com um andamento moderato, um Allegretto, e com experiências no plano da tonalidade, frequentemente alternando entre modos maiores e menores, rupturas da tonalidade sem verdadeiras modulações, e um total domínio do contraponto.

O Hoffmeister aperfeiçoou uma tendência já adiantada nos op. 10, que foi a emancipação da viola, instrumento até então relegado a um segundo plano. Nesse quarteto, a viola, por exemplo, dialoga com o primeiro violino no primeiro movimento, tomando a liderança em diversos momentos. Mozart frequentemente tocava viola em quartetos, assim como Beethoven. Logo em seguida após esse quarteto, esse pendor pela viola será levado mais adiante ainda com a composição de três obras inovadoras pelo papel central da viola, os monumentais quintetos com duas violas K. 515 e 516, em 1787, além do trio de cordas Puchberg (Divertimento em mi♭ maior) K. 563 em 1788 (FOURNIER, 2000, p. 237).

Uma viagem a convite do príncipe Lichnowsky (1761-1814) pelas cidades de Praga, Postdam, Dresden e Berlim em 1789 proporcionou a Mozart a oportunidade de tocar para o imperador da Prússia, Frederico Guilherme II (1744-1797), resultando numa encomenda de um novo conjunto de seis quartetos para o monarca. Essa incumbência chegou em boa hora, pois a partir de 1786 se instaurou um período difícil na vida do compositor, de uma pobreza e necessidade extremas. As diversas cartas a Puchberg pedindo renovados empréstimos para poder sobreviver moldam um fiel retrato dessa época (TYSON, 1975, p. 126). Tendo escrito tão somente três quartetos, eles ficaram conhecidos como quartetos Prussianos (K. 575, 589 e 590). Foram as suas únicas composições para quarteto feitas sob encomenda.

O soberano da Prússia era um violoncelista amador de nível avançado. Imperador muito ligado às artes, foi aluno de Jean-Pierre Duport (1741-1818), renomado violoncelista e compositor francês que, a partir de 1773, também exercia as funções de primeiro violoncelista da Ópera Real, músico de câmara na Capela Real, além de professor do Frederico Guilherme. O

80 L’expression d’un désir spontané après une moisson de chefs-d’oeuvre de musique de chambre, le quatuor K.499 se révèle um des plus parfaits du compositeur.

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monarca também possuía um admirável instrumento, um violoncelo feito por Antonio Stradivari em 1732, o Stuart (BLUM, 1987, p. 107).

Por esse motivo, Mozart deu um papel proeminente ao violoncelo nesses últimos quartetos, tocando frequentemente na região aguda do instrumento, com a viola exercendo a função de baixo. São obras que demandam um extenso conhecimento técnico do instrumento, podendo-se imaginar que o monarca tivesse um domínio significativo do violoncelo (BLUM, 1987, p. 107). Esse desequilíbrio das vozes fez com que essas obras fossem amplamente criticadas e até recentemente consideradas um repertório menor, ao ser comparadas com os quartetos dedicados a Haydn:

Não é desnecessário afirmar que a forma na qual os quartetos Prussianos são vistos é devido estes serem estudados em uma espécie de vácuo em que só a excelência do conjunto dedicado a Haydn foi autorizado a entrar, naturalmente dando vantagem aos trabalhos anteriores. [...] Isto é baseado na crítica depreciativa de que os três quartetos, descrito como uma “sequência patética”, mostram “um infeliz declínio na inventividade, bem como certas tendências retrógradas”. Este enfraquecimento é imputado às preocupações materiais de Mozart, e também para a necessidade que ele tinha de dar proeminência para o violoncelo do real patrão, que perturbou o equilíbrio habitual e natural do quarteto (KING, 1940, p. 328).81

King refuta a ideia de que a pobreza, assim como a saúde debilitada e uma certa depressão ou crise moral de Mozart (evidenciada em sua correspondência), que estava preocupado com sua sobrevivência, tenham influído na qualidade dos quartetos. Mesmo sendo obrigado a compor danças e música vocal simples para subsistir, o autor é categórico ao afirmar que “o gênio supremo não é subitamente reduzido à mediocridade pelo desespero da adversidade, seja ela material, física ou espiritual” (KING, 1940, p. 330).82 De fato, desse mesmo período datam o quinteto com clarineta, Così fan tutti e outras obras-primas, como a Flauta Mágica. Em seu artigo Mozart’s “Prussian” Quartets in Relation to his Late Style (1940), King defende a ideia de que esses quartetos não são obras de menor qualidade, mas escritas em um estilo tardio

81 It is not too much to say that the usual views of the Prussian quartets are due to their being studied in a kind of vacuum into which only the manifold excellence of the Haydn set has been allowed to intrude, naturally to the advantage of the earlier works. [...] This is based on the depreciative criticism that the three quartets, described as a “pathetic sequence”, exhibit “an unfortunate decline in inventiveness, as well as certain retrograde tendencies”. This is imputed to Mozart's material worries, and to the necessity of giving proeminence to the royal patron's cello, which disturbed the usual balance of the quartet style. 82 But supreme genius is not suddenly reduced to mediocrity even by desperate adversity, whether material, physical or spiritual.

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de Mozart, já mais distanciado de Haydn. Eles estariam mais próximos das últimas óperas e do Requiem do que dos quartetos op. 10.

Para Eisen, esses quartetos foram criticados ao longo dos séculos XIX e XX, simplesmente por não corresponderem ao ideal de um estilo Clássico que foi promovido por volta de 1850 e que teve por base os quartetos op. 10, assim como os quintetos K. 515 e 516, de 1787. Sendo assim, essas obras foram rejeitadas em cima de expectativas não realizadas (2010, p. 115). Mas esse tipo de perspectiva não existia ainda na época e os quartetos foram bem recebidos pelo público.

Sobre a qualidade da produção quartetística de Mozart, não há possivelmente melhor testemunho do que os de Joseph Haydn, afirmando que, “se Mozart não tivesse escrito nada além de seus quartetos de cordas e o Requiem, essas obras já seriam suficientes para torná-lo imortal”, e que nunca ouviu alguma composição de Mozart sem aprender algo (TOWNSEND, 2013, p. 78).83

3 Beethoven e a transcendência do gênero

Considerado por muitos como a pedra angular na história do gênero, os dezesseis quartetos de (1770-1827) certamente ocupam um lugar de destaque na construção do quarteto de cordas. Chegando em Viena em 1792 (um ano após a morte de Mozart), e com Haydn então compositor reconhecido e em sua maturidade, Beethoven teve o desafio de encontrar o quarteto de cordas em um nível muito alto e, para Fournier, Beethoven, como nenhum outro compositor, teve o mérito de levar o estilo clássico para novos horizontes “sem se aventurar pelas vias do academicismo” (2000, p. 275).84

Na sua mudança para Viena, o seu primeiro mecenas, o conde Waldstein, escreveu no caderno no qual Beethoven colhia mensagens de seus amigos:

Caro Beethoven, você está indo a Viena, realizando um desejo por muito tempo reprimido. O Gênio de Mozart ainda está de luto e chora a morte de seu discípulo. Ele encontrou refúgio no inesgotável Haydn, mas não uma verdadeira ocupação: ele ainda

83 If Mozart had written nothing but his violin quartets and the Requiem, they alone would be suficient to make him immortal. 84 Sans emprunter les voies de l’académisme.

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espera encontrar alguém a quem se unir. Possa o trabalho assíduo fazê-lo receber o espírito de Mozart das próprias mãos de Haydn (KERMAN, 1974, p. 11).85

Beethoven de fato procura Haydn para ter aulas, mas acha os ensinamentos do velho mestre superficiais, 86 estudando em seguida com Georg Albrechtsberger (1735-1809), desenvolvendo a fuga, e (1750-1825), com vistas a trabalhar o bel canto e a declamação na tradição italiana. Salieri era então músico importante, mestre de capela da corte. Kerman aponta que, ao contrário de Mozart, Beethoven soube desde cedo estabelecer relações importantes, como Haydn e Salieri, e também com a aristocracia, lidando bem com as intrigas da corte e a promoção financeira. Sua associação com a nobreza de Viena garantirá sua subsistência até o fim de sua vida (1974, p. 12-13).87

“A arte exige, dizia ele [Beethoven], que não fiquemos no mesmo lugar”.88 Foi o que sempre fez o compositor em relação a sua carreira artística: a cada nova obra, e em especial a cada quarteto, implicou em um questionamento dos “reflexos estilísticos”. [...] Cada um de seus quartetos demonstra de fato um questionamento permanente das formas e uma renovação da matéria e da linguagem. [...] Verdadeiro Himalaia do gênero, este ciclo nos demonstra não somente a mais alta possibilidade da realização artística, como constitui um observatório privilegiado de onde podemos observar a história do quarteto antes e depois dele (FOURNIER, 2014, p. 103-104).89

85 Cher Beethoven, vous allez à Vienne, réalisant un désir longtemps réprimé. Le Génie de Mozart est encore em deuil et pleure la mort de son disciple. Il a trouvé refuge chez l’inépuisable Haydn, mais non à qui s’unir. Puisse un travail assidu vous faire recevoir l’esprit de Mozart des mains même de Haydn. 86 A relação entre Haydn e Beethoven foi bastante conturbada até o final da vida do professor. “Papai Haydn”, como se referiria a ele Beethoven posteriormente, era um senhor de cerca de 60 anos, idade considerável para a época, e que viajava frequentemente. No entendimento de seu aluno, era um professor relapso com o qual Beethoven afirmava não ter aprendido nada. Jean e Brigitte Massin (1967, p. 44), ao analisar 245 exercícios de composição de Beethoven passados por Haydn, atestam que somente cerca de 40 estão corrigidos pelo professor, e, mesmo assim, repletos de erros. Haydn, por sua vez, achava Beethoven talentoso, mas inconstante, como “um homem de diversas cabeças” (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 45). Haydn certamente se ressentia do fato de querer que Beethoven assinasse suas composições como “aluno de Haydn”, o que Beethoven sempre se recusou, afirmando que Haydn nunca o ensinou nada (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 44). Amigos comuns de ambos acreditavam existir uma certa inveja da parte de Haydn por seu ex-aluno, e um ressentimento de Beethoven pelos seus anos de estudo com o velho mestre, sendo comum a troca de farpas entre ambos (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 57-59). 87 Em uma carta de 29 de junho de 1801 (ano de publicação dos quartetos Op. 18) para seu amigo de infância Franz Gerhard Wegeler (1765-1848), Beethoven descreve sua situação financeira, dizendo que, além de uma bolsa de 600 florins garantida pelo príncipe Karl Alois Lichnowsky (1761-1814), o compositor ganhava um dinheiro considerável com suas criações. “Minhas composições me dão um grande lucro, e posso dizer que tenho mais encomendas do que posso dar conta. Para cada obra, se eu me der um mínimo de trabalho, tenho seis, sete editores, e talvez mais; ninguém discute mais comigo, eu estabeleço um preço, e as pessoas pagam.” Nessa mesma carta, também descreve ao amigo o sofrimento pelo qual passa, confidenciando que está surdo (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 101-102). 88 Resposta de Beethoven a Holz (2o violino do Quarteto Schuppanzigh), ao questioná-lo sobre o porquê da diversidade dos seus últimos quartetos. 89 “L’art exige, disait-il ainsi, que l’on ne reste pas à la même place.” C’est ce que n’a cessé d’accomplir le compositeur en conduisant sa carrière artistique: chaque nouvelle grande oeuvre, et plus spécialement encore chaque quatuor, implique une remise em question “des rélfexes stylistiques.” [...] Chacun de ses quatuors témoigne em effet

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As composições para quarteto de Beethoven podem ser separadas em três fases distintas e representativas de sua obra: os seis quartetos op. 18 e o ideal do classicismo, a etapa central voltada para “a subjetividade romântica”, com os três quartetos Razumovsky (op. 59), assim como os op. 74 e 95, e por fim o último ciclo, que, “levado por uma força visionária, antecipa as explorações da primeira metade do século XX”,90 com os quartetos op. 127, 130, 131, 132, 133 e 135 (FOURNIER, 2014, p. 104).

3.1 A primeira fase: os seis quartetos op. 18

Compositor já de certa maturidade (contava com 28 anos quando começou a compor seus primeiros quartetos), Beethoven já flertava com o quarteto de cordas havia um certo tempo. Em 1795 o conde Anton Georg Apponyi (1782-1852), que tinha recentemente encomendado os op. 71 e 74 a Haydn, pediu a Beethoven para que escrevesse alguns quartetos. Beethoven, porém, não o faz, produzindo, no entanto, um trio (op. 3) e um quinteto (op. 4), ambos para instrumentos de cordas. Nos anos anteriores também tinha elaborado diversas peças para quarteto, como prelúdios e fugas, como forma de exercício, além de transcrições. Em 1801-1802 também transcreveu sua sonata para piano op. 14 no 1 (1798) para quarteto de cordas, única transcrição das suas sonatas para quarteto feitas pelo próprio autor. Gustav Nottebohm afirma que essa sonata teria sido produzida inicialmente sob forma de quarteto de cordas, e não o inverso, sendo de fato o primeiro quarteto escrito por Beethoven (apud FOURNIER, 2000, p. 305).91 O compositor também recopiou de próprio punho os quartetos op. 20 no 1 de Haydn, além dos K. 387 e K. 464 de Mozart, algo que não sucedeu em nenhum outro tipo de obra (FOURNIER,

d’une remise em question permanente des formes et d’un renouvellement du matériau et du langage. [...] Véritable Himalaya du genre, ce cycle propose non seulement la plus haute image de l’achèvement artistique, mais constitue un observatoire privilégié d’où l’on peut scruter l’histoire du quatuor avant et après lui. 90 Porté par une force visionnaire, antecipe les explorations de la première moitié du XXe siècle. 91 Opinião contestada por Kerman, que afirma que na década de 1790 as obras camerísticas de Beethoven eram longas, em oposição à sonata. “Podemos afirmar que nos anos 1790 Beethoven não concebia que uma obra de música de câmara possa ser breve. A opinião habitualmente difundida mostrava que quatro músicos reunidos deveriam tocar algo de importante para justificar o seu deslocamento. [...] Podemos pensar que Beethoven já pensava em uma sonata para piano, pois evitar um desenvolvimento aprofundado no primeiro movimento não seria imaginável no universo do quarteto” (KERMAN, 1974, p. 24-25). Broyles também contesta a opinião de Nottebohm, citando uma carta de Beethoven ao seu editor afirmando que: “arranjei somente uma das minhas sonatas para quarteto de cordas, porque me imploraram para fazê-lo” (BROYLES, 1970, p. 405). Outros relatos da época trazidos por Broyles (1970, p. 418) também fazem menção ao fato de a sonata ser anterior à versão para cordas.

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2000, p. 306). A influência de Mozart sempre esteve presente em sua vida, sendo inclusive comparado a ele na sua juventude, como jovem prodígio (YUDKIN, 1992, p. 31).

Dedicados ao príncipe Joseph Franz von Lobkowitz (1772-1816), os seis quartetos op. 18 foram publicados em 1801. Segundo (1791-1857), aluno do mestre vienense, seria por uma sugestão do violinista Ignaz Schuppanzigh (1776-1830) que Beethoven teria invertido a ordem dos quartetos, começando com o quarteto em Fá maior, quando na verdade, o primeiro a ter sido composto foi o quarteto em ré maior, no 3. O quarteto em fá é o mais longo e mais expressivo dos seis (KERMAN, 1974, p. 43).

Sobre os quartetos Op. 18, Beethoven confidenciaria ao flautista Louis Drouet (1792- 1873) em 1822:

Eles não foram publicados como os escrevi inicialmente; quando revi meus primeiros manuscritos, alguns anos depois, me perguntei se não estava louco por colocar em uma única peça material para escrever vinte; queimei estes manuscritos, para que ninguém jamais os veja, e teria cometido no começo da minha carreira muitas loucuras, não fossem os bons conselhos de papai Haydn e Albrechtsberger (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 613).92

Mesmo sem romper com o classicismo, esses quartetos op. 18 mostram um novo caminho que será estabelecido com os quartetos Razumovsky. São consideradas obras de transição, com referências a Mozart e Haydn, como as diversas semelhanças entre o K. 464 mozartiano e o Op. 18 no 5 e citações a Haydn no Op. 18 no 2 (FOURNIER, 2014, p. 110-111). Após uma década em Viena, Beethoven, então com 30 anos, “decidiu confrontar os mestres do estilo clássico no seu próprio terreno. Havia dois deles para confrontar, Haydn e Mozart” (YUDKIN, 1992, p. 35).93 Haydn usará esse argumento como crítica aos quartetos Op. 18, dizendo a Giuseppe Carpani (1751-1825) que, mesmo gostando das obras, tratava-se de peças sem originalidade, somente uma fusão entre seu próprio estilo e o de Mozart (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 613).

92 Ils n’ont pas été imprimés comme je les ai écrits d’abord; quando j’ai revu mes premiers manuscrits, quelques années après, je me suis demandé si je n’étais pas fou, pour avoir mis en un seul morceau ce qui suffisait pour en composer vingt ; j’ai brûlé ces manuscrits, afin qu’on ne les voie jamais ; et j’aurais commis, pour mes débuts, bien des folies, sans les bons conseils de papa Haydn et d’Albrechtsberger. 93 [Beethoven] decided to confront the masters of the high Classic style on their own ground. There were two of them to confront: Haydn and Mozart.

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3.2 A segunda fase: os quartetos Razumovsky, das Harpas e Serioso

É frequente a afirmação de que o compositor domina o princípio da sinfonia durante sua segunda fase assim como dominava a sonata para piano na primeira, e que somente na terceira será a vez do quarteto de cordas. Entretanto, entre a terceira e quarta sinfonias, os quartetos assumem o papel principal. Quartetos de clima sinfônico, se preferirmos, mas de uma envergadura muito além dos meios e da compreensão dos contemporâneos de Beethoven. Mesmo os membros do quarteto Schuppanzigh riram (talvez de nervosismo) em certas passagens do quarteto em Fá maior [Razumovsky no 1], e o líder desta formação fez comentários a respeito desta obra que, assim acreditamos, mereceram esta resposta ácida de Beethoven: “Você acha que eu me importo com o seu violino limitado quando os espíritos falam por intermédio de mim?” Compositores tradicionalistas como Gyrowetz ou o abade Stadler parecem ter considerado esta música como uma ofensa pessoal, e Thayer comentou: “Nenhuma obra de Beethoven talvez teve um acolhimento mais desencorajador da parte dos músicos do que estas obras agora célebres”. Elas foram as primeiras de suas grandes criações que não encontraram seu público específico, triste preço pago por sua temeridade assim como seu caráter sem precedentes (KERMAN, 1974, p. 148).94

Os três quartetos op. 59 (nos 7, 8 e 9), publicados em 1808, foram escritos para o conde russo e diplomata André Razumovsky (1752-1836), que, ao fazer a encomenda, pediu para que Beethoven incluísse temas russos nas peças, tornando-as conhecidas como os Quartetos Russos. A recepção foi terrível, os críticos da época afirmaram que eram “uma piada ruim feita por um louco... uma música de maluco”.95 O periódico Allgemeine Musikalische Zeitung os qualificou de incompreensíveis e o violinista Felice Radicati (1775-1820) disse a Beethoven que eles não eram música – ao que o compositor respondeu: “Eles não são para você, são para o futuro” (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 651).96

O quarteto no 10 op. 74, conhecido como o quarteto das harpas por conta do uso dos pizzicatos no primeiro movimento inovando em novas sonoridades, foi publicado em 1810

94 On dit couramment que le compositeur domine le principe de la symphonie au cours de sa seconde période comme il avait maîtrisé la sonate pour piano dans la première et qu’il le fera du quatuor à cordes seulement tard, dans la troisième. Cependant, entre la troisième et la quatrième symphonies les quatuors prennent le rôle principal. Quatuors de climat symphonique, si l’on veut, mais d’une envergure très au-delà des moyens et de la compréhension des contemporains de Beethoven. Même les membres du quatuor Schuppanzigh rirent (nerveusement, peut-être) à certains passages du Fa majeur, et le leader de cette formation fit à propos de cette œuvre des remarques qui, pense-t- on, lui valurent cette réplique cinglante de Beethoven: “Croyez-vous que je pense à vos pauvres cordes quand l’esprit me parle ?” Des compositeurs traditionalistes tels que Gyrowetz ou l’abbé Stadler semblent avoir consideré cette musique comme une offense personelle, et Thayer de commenter: “Aucune œuvre de Beethoven, peut-être, n’eut un acceuil plus décourageant de la part des musiciens que ces quatuors maintenant célèbres.” Elles furent la première de ses grandes créations qui ait manqué son audience spécifique, triste tribut payé par leur témérité aussi bien que par leur caractère personnel sans précédent. 95 Une mauvaise farce d’un toqué... une musique de cinglé. 96 Ce n’est pas pour vous, c’est pour les temps à venir.

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(FOURNIER, 2014, p. 125). Dedicado mais uma vez ao príncipe Lobkowitz, foi composto durante a batalha napoleônica de Wagram (1809), na qual o imperador francês invadiu a Áustria e ocupou Viena. A temática da guerra e da derrota austríaca permeia o quarteto, entre o alívio de Beethoven de poder novamente sair de casa e a dor do fracasso de seu país face ao tirano que Beethoven tanto admirou no passado (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 665).

O crítico do Allgemeine Musikalische Zeitung apreciando o quarteto em 1811 dirá: “Não é desejável que a música instrumental se perca desta maneira. O quarteto não tem como objetivo celebrar a morte, de descrever sentimentos de desespero, mas de alegrar a alma por um doce jogo da imaginação. [...] É uma arte tão profunda e pesante que o sombrio espírito do conjunto engoliu totalmente o que poderia ter de leve e amável no detalhe (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 665).97

Apelidado por Beethoven como Quarteto serioso, o 11o quarteto op. 95 foi editado em 1816, apesar de ter sido terminado em 1810. A obra permaneceu por muitos anos em suas gavetas antes que Beethoven a confiasse a Schuppanzigh para uma estreia em 1814 (FOURNIER, 2000, p. 605). Isso pode ser explicado pela própria afirmação de Beethoven de que o op. 95 “foi escrito para um pequeno círculo de amadores esclarecidos, e não deve ser nunca tocado em público” (ADELSON, 1998, p. 222).98 Dedicado ao seu amigo Zmeskall von Domanovecs, trata- se de uma obra dramática e uma das mais sombrias de Beethoven (FOURNIER, 2014, p. 127). Após a guerra, a situação financeira do compositor era difícil, tanto pela recessão que atingia o país, como pelo fato de que a renda concedida por seu mecenas, o príncipe Lobkowitz, era irregular já que o mesmo se encontrava à beira da falência (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 210). Os dois últimos quartetos dessa série (op. 74 e 95) podem ser considerados uma homenagem a Haydn, que tinha recentemente falecido, tanto pelo uso das tonalidades escolhidas (mi♭, por exemplo, no op. 74, a favorita de Haydn em seus quartetos), como pelo tratamento instrumental e tamanho, bem menores do que os Razumovskys (GRIFFITHS, 1985, p. 94). O finale do op. 95 tem muitas similitudes com a abertura Egmont, que Beethoven tinha composto um mês antes do quarteto (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 671).

97 Le critique de L’Allgemeine Musikalische Zeitung appréciant le quatuor en 1811 dira: “Il n’est pas désirable que la musique instrumentale s’égare dans cette manière. Le quatuor n’a pas pour objet de célébrer la mort, de peindre les sentiments du désespoir, mais d’égayer l’âme par un jeux doux et bienfaisant de l’imagination. [...] C’est un art si profond et si pesant que le sombre esprit de l’ensemble a complètement englouti ce qu’il pouvait y avoir de léger et d’aimable dans le détail.” 98 [The Op. 95] is written for a small circle of connoisseurs and is never to be performed in public.

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3.3 Schuppanzigh e os quartetos finais. Op. 127, 130, 131, 132, 135 e a Grande Fuga

A figura do violinista Ignaz Schuppanzigh é intimamente ligada aos quartetos de Beethoven. Fundador de um quarteto de cordas a serviço do príncipe Lichnowsky e em seguida do Conde Razumovsky, Schuppanzigh estreou todos os quartetos de Beethoven,99 além de apresentar ao jovem compositor obras de Haydn, Mozart e outros. Quando em 1808 o Conde Razumovsky pediu a Schuppanzigh para que formasse um quarteto que seria mantido financeiramente por ele, o quarteto ficou à disposição de Beethoven, tornando-se seu quarteto pessoal, chamado por ele de Leibquartett (apelido que seria posteriormente dado ao quarteto Op. 130 no 13). O quarteto Schuppanzigh se prestava a não somente rever passagens nas quais o compositor estaria em dúvida, mas como também a tocar suas criações. Em toda sua obra, Beethoven nunca teria tentado escrever algum quarteto sem a colaboração de Schuppanzigh (GINGERICH, 2010, p. 450). O violinista também estreou muitas das sonatas de violino e piano do compositor, sendo um árduo defensor da obra beethoveniana. O Quarteto Schuppanzigh chegou a ser conhecido na época como Quarteto Beethoven. Homem corpulento, bem humorado, Schuppanzigh era um dos alvos prediletos do humor do compositor, que somente o chamava de Mylord Falstaff,100 conforme atesta esta dedicatória na última página do manuscrito da sonata op. 28 para piano, em 1801:

Canon de circunstância sobre Schuppanzigh – Louvor do obeso. (Solo): Que o diabo te carregue! – Schuppanzigh é um canalha, – quem não o conhece? (A quatro vozes): Todos o dizemos, de maneira unânime: – tu és o maior de todos os burros, hi, hi, hi! (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 53).101

99 Apesar de Stowell (2003, p. 44) ser enfático em afirmar que Schuppanzigh nunca tocou o op. 131 após análise dos programas da época, Gingerich (2010, p. 486-487) demonstra que o violinista esteve em negociações com o compositor desde o início para estrear esta obra, e lança a hipótese de que um erro de impressão em um de seus concertos, em que anuncia um novo quarteto em Lá menor de Beethoven, seria na verdade o seu quarteto em Dó ♯ menor Op. 131. A obra teria estreado em março de 1828, um ano após a morte do compositor. Gingerich também cita uma descrição de Ignaz Ritter von Seyfried (1776-1841), compositor que dizia ter assistido a esse quarteto em setembro de 1828 (não seria a estreia, mas uma repetição), tocado pelo quarteto Schuppanzigh, e que a “performance estava extremamente medíocre” (GINGERICH, 2010, p. 488). 100 Personagem fictício de William Shakespeare (1564-1616), Sir John Falstaff é um cavaleiro gordo, pretensioso e covarde que passa a maior parte de seu tempo bebendo no bar com pequenos criminosos, vivendo de dinheiro roubado ou emprestado. 101 Canon de circonstance sur Schuppanzigh – Éloge de l’obèse. (Solo): Le diable t’emporte! – Schuppanzigh est une canaille, - qui ne le connaît pas? (A quatre voix): Nous disons tous unanimes: - tu es le plus grand des ânes, hi, hi, hi!

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Schuppanzigh também foi o primeiro a criar uma série de concertos de quarteto de cordas por meio de assinaturas, sendo assim a primeira atividade profissional conhecida do quarteto de cordas, de maneira independente da aristocracia, como atividade pública, de 1823 até sua morte em 1830 (GINGERICH, 2010, p. 450-451).

Em uma época na qual a música de câmara era restrita às residências, Schuppanzigh as trouxe ao palco, criando um público de amadores esclarecidos em relação ao quarteto (GRINGERICH, 2010, p. 451). Concertos envolvendo música de câmara existiam anteriormente, mas com programas mistos, alternando música e texto, concertos virtuosísticos, poesia, pots- pourris de óperas, ventríloquos ou instrumentos inovadores (como o sirenion, a physharmonica ou mesmo o arpeggione, para o qual Schubert escreverá sua famosa sonata). E mesmo as obras camerísticas raramente eram apresentadas na íntegra. A série de Schuppanzigh seria o único espaço que traria um concerto exclusivamente voltado ao quarteto, peças completas e, com obras novas, experimentais (GRINGERICH, 2010, p. 455). A crítica reagiu positivamente a esses concertos, chamando-os de clássicos, dizendo que essa música clássica era uma música de qualidade superior, fazendo uma conexão que perdurou por muito tempo, entre o quarteto de cordas e um público específico e esclarecido.102 Essa combinação, entre um espaço voltado para a experimentação e um público erudito que aceitava obras mais inovadoras, foi essencial e influiu diretamente no desenvolvimento dos últimos quartetos de Beethoven, que tinha ali um ambiente propício, especialmente após o fracasso que foi a recepção de seus quartetos da fase central (GRINGERICH, 2010, p. 452-454).

Em meio a uma decaída e crise em sua carreira (seis grandes obras em 1809, três em 1810, três em 1811, duas em 1812, reduzindo ainda mais, chegando em 1817 a uns vinte minutos de música original no total), Beethoven chega a ser criticado anonimamente em 1821 no Allgemeine Musikalische Zeitung: “Beethoven se ocupa atualmente, como fez outrora Papai Haydn, com arranjos de cantos folclóricos escoceses; ele aparentemente é incapaz de maiores feitos” (ADELSON, 1998, p. 222).103 Na década de 1810, o compositor vê seus amigos partirem

102 O acesso aos concertos era restritivo, não sendo possível adquirir ingressos avulsos, somente uma assinatura mínima de seis concertos, e por um preço relativamente alto para os padrões da época. Sendo assim, só frequentariam a série de Schuppanzigh pessoas que realmente mantivessem um estreito laço e apreço pelo quarteto de cordas (GINGERICH, 2010, p. 454). 103 Beethoven now occupies himself, as once did Papa Haydn, with the arranging of Scottish folksongs; he is apparentely quite incapable of greater accomplishments.

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de Viena (Schuppanzigh começa uma turnê pela Rússia por longos anos, Ries104 em Londres entre outros), seus protetores não o ajudam mais (Lichnowsky e Razumovsky vão à falência), a surdez é agora total e o compositor se torna tutor de seu sobrinho Karl, um relacionamento extremamente conturbado. Além disso, em 1812, o rompimento com sua Amada Imortal, provavelmente Antonia Brentano (1780-1869), assim como a morte de seu irmão Kaspar Anton Carl van Beethoven (1774-1815) podem ter afetado sua obra (FOURNIER, 2000, p. 607).

O retorno à composição de quartetos de cordas marca a sua Ressureição, como qualifica Fournier (2000, p. 606), projeto que ele já vinha desenhando havia alguns anos. Encomendados pelo príncipe russo Galitzine (pelo menos os três primeiros), são obras inovadoras, muito além do seu tempo. A editora Peters estava pedindo ao compositor novos quartetos com piano, quando o príncipe o contatou, pedindo “2 ou 3 novos quartetos” e oferecendo pagar a soma que Beethoven pediria.

A recepção do Op. 127 foi mista. A crítica ressaltou que era uma obra compreendida por poucos e que, devido à falta de tempo de preparação e ensaios, Schuppanzigh tocou mal, o que certamente enfureceu Beethoven (ADELSON, 1998, p. 219). O violinista tentou organizar outro concerto com a obra, mas o compositor recusou, entregando a partitura a Joseph Böhm (1795-1876), que tinha substituído Schuppanzigh no quarteto durante os anos nos quais este último esteve na Rússia. A reestreia foi um sucesso:

Quando Beethoven soube [do fracasso do seu quarteto] – ele não estava presente na performance] – ficou furioso e criticou furiosamente tanto os intérpretes quanto o público. Beethoven não teria paz enquanto a vergonha não fosse lavada. Ele me procurou na manhã seguinte – na sua forma sucinta e habitual me disse – “Você deve tocar meu quarteto” – e a questão estava resolvida. Nenhuma objeção ou dúvida poderia prevalecer; o que Beethoven desejava deveria acontecer, então encarei a difícil tarefa. – Estudei muito e ensaiei frequentemente sob o olhar vigilante de Beethoven: eu falei do olhar vigilante de Beethoven de maneira intencional, pois o pobre coitado estava tão surdo que não poderia escutar o som celestial de suas próprias composições. E mesmo assim, ensaiar em sua presença não era fácil. Com uma atenção fora do comum seus olhos acompanhavam os arcos, e assim podia julgar as mínimas flutuações no tempo ou ritmo, e as corrigir imediatamente. No final do último movimento do quarteto tinha um meno vivace, que eu sentia que enfraquecia o efeito geral. No ensaio, pedi aos meus colegas que o tempo fosse mantido, o que foi feito, melhorando a passagem. Beethoven, agachado em um canto, não ouviu nada, mas observou com a máxima atenção. Após a

104 Ferdinand Ries (1784-1838), compositor, discípulo e secretário de Beethoven. Também compôs 26 quartetos de cordas.

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última arcada, disse laconicamente, “Vamos deixar assim”, foi até nossas estantes, e riscou o meno vivace nas quatro partes (BÖHM apud ADELSON, 1998, p. 227).105

O quarteto Op. 130 possui um dos mais belos movimentos de Beethoven, a Cavatina. O movimento é todo escrito em registro médio ou grave e todas as partes instrumentais poderiam ser cantadas por uma voz humana (FOURNIER, 2000, p. 788). É um dos movimentos que mais demandaram rascunhos do compositor e ele afirmaria mais tarde tê-lo escrito chorando e que “nunca sua própria música tinha feito sobre ele tal impressão; mesmo quando ele revia esta peça, as lágrimas escorriam” (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 718).106 Nesse mesmo quarteto se incluía a Grande Fuga, que era o finale original do quarteto. Após uma primeira audição com Schuppanzigh e uma reação mista do público, seu editor Artaria pediu que a Grande Fuga fosse desmembrada do quarteto, o que muito a contragosto foi acatado pelo compositor, que escreveu um novo finale para o quarteto. A Grande Fuga foi publicada à parte, inicialmente para piano a quatro mãos (transcrita por Beethoven) e em seguida para quarteto (MASSIN, MASSIN, 1967, p. 718).

Assim associados a uma afirmação de subjetividade, as inovações técnicas de Beethoven e sua inventividade sempre foram subordinadas a um objetivo de expressividade: é nisto inclusive que seus quartetos influenciaram a geração romântica. Porém os cinco últimos e a Grande Fuga, mais complexos, em perspectiva somente foram realmente compreendidos a partir do final do século XIX. Eles em seguida influenciaram diretamente nos compositores que renovaram as formas e a linguagem nos anos 1910, e continuaram a exercer influência em todo o século XX, continuando a ser, para além dos anos 1950, uma referência inigualável para muitos compositores de quartetos. [...] De maneira mais ampla, o que Beethoven transmitiu a todos seus sucessores foram as

105 When Beethoven learned of this [the failure of the quartet] – for he was not present at the performance – he became furious and let both performers and the public in for some harsh words. Beethoven could have no peace until the disgrace was wiped off. He sent for me first thing in the morning - In his usual curt way he said to me, “You must play my quartet” – and the thing was settled. -Neither objections nor doubts could prevail; what Beethoven wanted had to take place, so I undertook the difficult task. – It was studied industriously and rehearsed frequently under Beethoven's own eyes: I said Beethoven's eyes intentionally, for the unhappy man was so deaf that he could no longer hear the heavenly sound of his compositions. And yet rehearsing in his presence was not easy. With close attention his eyes followed the bows and therefore he was able to judge the smallest fluctuations in tempo or rhythm and correct them immediately. At the close of the last movement of this quartet there occurred a meno vivace, which seemed to me to weaken the general effect. At the rehearsal, therefore, I advised that the original tempo be maintained, which was done, to the betterment of the effect. Beethoven, crouched in a corner, heard nothing, but watched with strained attention. After the last stroke of the bows he said, laconically, “Let it remain so”, went to the desks and crossed out the meno vivace in the four parts. 106 Jamais sa propre musique n’avait fait sur lui une telle impression; même quando il revivait ce morceau, celá lui coûtait toujours des larmes.

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chaves da subversão do discurso e sobretudo uma nova maneira de pensar a música (FOURNIER, 2014, p. 109).107

Somente cerca de 45 anos se passaram entre a composição dos Op. 33 de Haydn e o Op. 135 de Beethoven, porém nesse curto período o quarteto se desenvolveu amplamente e se tornou parte indispensável no universo da música de câmara. Na opinião de Griffiths, esse breve lapso de tempo viu surgir provavelmente pelo menos metade das grandes obras existentes do gênero atualmente, incluindo todos os quartetos de Beethoven e Schubert, a maioria dos de Haydn e as 10 obras-primas de Mozart (1985, p. 112).

4. Os quartetos de temas variados e concertante

Em outros centros musicais da Europa, e especialmente em Paris, o quarteto clássico vienense levou algumas décadas para se estabelecer de fato, e por muito tempo outras manifestações do gênero vigoraram. Em 1777, ou seja, alguns anos depois da aparição dos quartetos Op. 20, de Haydn (1772), e dos Vienenses, de Mozart (1773), o teórico musical Fréderic de Castillon publica na famosa enciclopédia de Diderot que um verdadeiro quarteto de cordas, com quatro partes solísticas e linhas diferentes, “seria tão confuso que o ouvido mais treinado teria muita dificuldade de distinguir cada voz. A melhor maneira de compor para um quarteto seria sob forma de fuga ou de cânon” (apud NORTON, 1966, p. 12),108 opinião também compartilhada por Jean-Jacques Rousseau na Enciclopédia:

Não existem verdadeiros quartetos, ou se existem não valem nada. [...] Em um bom quarteto as vozes devem ser quase sempre alternadas, porque em todo acorde não existem mais de duas partes que toquem o canto e que o ouvido possa distinguir de cada

107 Ainsi associes à une affirmation de la subjetivité, les innovations techniques de Beethoven et son inventivité ont toujours été subordonnées à um objectif d’expressivité: c’est en cela notamment que ses quatuors ont influencé la génération romantique. Cependant les cinq derniers et la Grande Fugue, plus complexes, plus prospectifs ne furent vraiment compris qu’à partir de la fin du XIXe siècle. Ils ont ensuite directement influencé sur les compositeurs qui ont renouvelé les formes et le langage dans les annés 1910 et ils ont continue à rayonner sur tout le XXe siècle, constituant, même au-delà des annés 1950, une référence inégalée pour maints compositeurs de quatuors. [...] Mais de manière générale, ce que Beethoven a transmis à tous ses successeurs, ce sont des clefs de subversion du discours et surtout uns nouvelle façon de penser la musique. 108 It would be so confused that the most practiced ear would have much difficulty to distinguish each voice. The best way to make a real quartet is to put it in the form of a fugue or canon.

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vez; as duas outras não passam de um enchimento, e não se deve colocar enchimento em um quarteto (apud MONGRÉDIEN, 1986, p. 285).109

O iluminismo do século XVIII marcou fortemente todas as esferas do pensamento na França. A música não foi uma exceção e seguiu a ideia de que, assim como a literatura e a pintura, ela deveria imitar a natureza, conceito que remonta a Aristóteles (384 a.C. - 322 a.C.) na Grécia Antiga. Com sua vontade de determinar simetrias entre a literatura e as artes, os compositores seguiam a máxima de Diderot de que “toda música que não pinta ou não fala é ruim”.110 Prevalecia o oposto do pregado pela forma sonata e pelo classicismo, da música pura. D’Alembert (1717-1783) acrescentou que “toda esta música puramente instrumental, sem objetivo e vontade não fala nem ao espírito nem à alma, e merece que façamos a pergunta de Fontenelle: Sonata, que me queres?” (MONGRÉDIEN, 1986, p. 254-255).111

A música de câmara não escapa desse pensamento e, no final do século XVIII, com o sucesso obtido pela ópera, estavam na moda entre os amadores quartetos d’airs variés, que poderiam ser traduzidos como quartetos de temas variados. Além de temas de ópera, são muito comuns arranjos para quarteto de sinfonias e oratórios (STOWELL, 2003, p. 6).

Nada poderia dar uma melhor ideia da sede de música instrumental112 que sentiam os diletantes parisienses, perto do ano de 1770, do que a moda dos quartetos de temas conhecidos, variados ou dialogados que estava em voga então: não haveria uma maior tentação para os amadores de música de câmara do que colocar nas estantes deles os temas que tinham aplaudido na véspera, na Ópera ou na Comédia Italiana. [...] Além disso, esta moda se perpetuou por um longo tempo – e se degenerando – o quarteto de temas dialogados deu espaço ao pot-pourri e posteriormente à fantasia sobre árias de ópera (SAINT-FOIX, 1920, p. 59).113

109 Il n’y a pas de vrais quatuors, ou ils ne valent rien. [...] Il faut que, dans un bon quatuor, les parties soient presque toujours alternatives, parce que dans tout accord il n’y a que deux parties tout au plus qui fassent chant et que l’oreille puisse distinguer à la fois; les deux autres ne sont qu’un pur remplissage et l’on ne doit point mettre de remplissage dans un quatuor. 110 Toute musique qui ne peint ni ne parle est mauvaise. 111 Toute cette musique puramente instrumentale, sans dessein et sans objet ne parle ni à l’esprit ni à l’âme et mérite qu’on lui demande avec Fontenelle: Sonate, que me veux-tu? 112 Música instrumental aqui como oposição à música vocal, e não seguindo o conceito de música pura do classicismo vienense. 113 Rien ne pourra mieux donner une idée de la soif de musique instrumentale qu’éprouvaient les dilettantes parisiens, vers l’an de grâce 1770, que la mode des quatuors “d’airs connus, variés ou dialogués” qui régnaient alors: on ne pouvait tenter d’avantage les amateurs d’honnête musique de chambre qu’en mettant sur leur pupitres les air qu’ils avaient applaudis la veille, à l’Opéra ou à la Comédie italienne. [...] Cette vogue, d’ailleurs, s’est perpetuée longtemps et, – tout en se dégénérant, – le quatuor d’airs dialogués a pris la forme du pot-pourri et plus tard celle de la fantaisie sur les airs d’opéras.

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A maior parte dos quartetos publicados no final do século XVIII em Paris aparece sob a alcunha de quartetos concertantes. Muitas obras que levavam essa denominação quando publicadas em Paris já não eram chamadas assim quando reeditadas em outros importantes centros, como Londres ou Viena, abrindo a possibilidade para que esse termo fosse mais um objeto publicitário da parte dos editores do que um gênero optado pelos compositores. A definição dada pela Enciclopédia Metódica de 1791 define uma obra concertante como uma composição na qual haja uma ausência de uma voz principal, mas quatro vozes dialogando em pé de igualdade, como na visão de Rousseau, que não aceitava vozes de enchimento. Na época, a sinfonia concertante estava em voga em Paris e sem dúvida o acréscimo do termo concertante iria valorizar o quarteto, “para que nenhum instrumentista se sinta relegado ao segundo plano, ao contrário, os quatro terão a sensação de serem virtuoses”.114 É comum encontrar o uso da palavra solo em passagens de segundo violino, viola ou violoncelo nos quartetos (MONGRÉDIEN, 1986, p. 286).

Mongrédien, porém, afirma que nem todos os quartetos publicados como concertantes atendiam de fato ao requisito de diálogo e não raro eram peças para primeiro violino acompanhado de três outros instrumentos. Apesar de os quartetos de Haydn e de Mozart já serem conhecidos do público francês antes de 1800, eles pouco influenciaram os compositores franceses, pois tinham a reputação de serem de difícil execução (1986, p. 286-287). Com a chegada do romantismo, assim como a sinfonia concertante, o quarteto concertante foi perdendo força e espaço.

5 O quarteto no romantismo

5.1 Das residências para as salas de concerto

Tendo surgido inicialmente como uma ocupação residencial, a música de câmara alcançou lentamente espaços públicos. Ainda no século XVIII numerosas sociedades e clubes particulares começaram a organizar concertos abertos ao público, entidades que comumente mantinham em seu seio uma orquestra formada por “amadores esclarecidos”, antes mesmo do

114 Aucun des exécutants n’aura ainsi le sentiment d’être relégué au second plan; tous les quatre, au contraire, pourront se considérer comme des “virtuoses” à part entière.

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movimento iniciado por Schuppanzigh em Viena. Assim como faziam já de longa data os comediantes ambulantes, importantes virtuoses das capitais iniciarão turnês pelas províncias e outros países da Europa, apresentando-se frequentemente nessas sociedades (MONGRÉDIEN, 1986, p. 199). Após certo tempo, músicos profissionais foram substituindo os amadores. Esse tipo de atividade musical possibilitou “o surgimento de virtuoses viajantes, que passaram a viver da dependência do público pagante, e que, na luta pela preferência desta classe, passaram a se preocupar em agradá-la por meio de um repertório que refletisse suas preferências musicais” (AVVAD, 2009, p. 26).

Na primeira metade do século XIX o concerto público pago se tornou uma importante parte da vida musical nos grandes centros europeus. A música de câmara e em especial o quarteto de cordas se tornaram um dos instrumentos principais nas salas de concerto. A música de conjunto ocupava o mesmo espaço das sinfonias,115 sendo que as salas dedicadas somente à música de câmara apenas começariam a surgir no final do século XIX.116 O quarteto de cordas nas grandes salas somente se tornou uma possibilidade com a modernização dos instrumentos, da antiga configuração barroca ao que se usa até os dias de hoje. A disseminação do concerto público e a exposição da música a um maior número de pessoas pediam um maior volume e projeção, além de maior brilho sonoro (STOWELL, 2003, p. 19). Para isso, os instrumentos foram modificados, com uma angulação do braço dos violinos, violas e violoncelos diferente, criando uma maior tensão no tampo do instrumento. Também foram modificados os cavaletes, barras harmônicas, queixeira (para violinos e violas) e a subida do diapasão para uma afinação mais alta, trazendo maior brilho. Os arcos também sofreram diversas transformações, em especial na sua curvatura, além do comprimento, até se estabelecer no modelo criado por François Tourte (1747-1835).117

O sucesso da música de câmara nas salas de concerto é em parte devido ao seu baixo custo e a facilidades de logística (em comparação com a orquestra). O século XIX vê então surgir

115 BLUM, 1987, p. 19 116 Alguns promotores de concertos tentaram adaptações nas salas de concerto para melhor contemplar o formato reduzido da música de câmara, como por exemplo colocar os intérpretes no centro do público. Salas especialmente dedicadas e projetadas para a música de câmara somente surgiram no final do século, como a Bösendorfer-Saal em Viena, em 1872 (STOWELL, 2003, p. 9). 117 Para maiores detalhes acerca dessas modificações, consultar STOWELL (2003) no capítulo Developments in instruments, bows and accessories (p. 19-37).

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um novo tipo de público, devotado à música de câmara e, frequentemente, ao quarteto de cordas (STOWELL, 2003, p. 9).

5.2 A escola de violino francesa e o quarteto brilhante

Ao mesmo tempo em que os compositores associados com Viena (Mozart, Haydn, Beethoven, Schubert e outros) foram traçando um caminho no firmamento musical do mundo ocidental (final do século XVIII e início do século XIX), um grupo de compositores franceses estava compondo um volume impressionante de música para o violino. Os compositores de Viena, mesmo que às vezes virtuoses, eram primordialmente conhecidos como compositores. O grupo dos franceses, baseado em Paris, era principalmente conhecido como de intérpretes, apesar de ter publicado centenas de obras. [...] Beethoven certamente tinha conhecimento da Escola Francesa e seguramente fez uso de técnicas e ideias oriundas da mesma (SCHUENEMAN, 2007, p. 1).118

A escola francesa tinha suas raízes em uma junção da antiga tradição francesa de violino, desde Jean-Baptiste Lully (1632-1687), Pierre Gaviniés (1728-1800) e Jean-Féry Rebel (1666-1747), com a escola italiana de Archangelo Corelli (1653-1713) e Giuseppe Tartini (1692- 1770). O ponto de encontro entre essas duas escolas se deu com Giovanni Battista Viotti (1755- 1824), violinista italiano que se estabeleceu em Paris em 1782, causando verdadeiro furor no público francês.

Parte desse sucesso e dessa forte impressão que causou entre o público e os músicos deve-se a uma novidade que Viotti praticamente introduzia no meio parisiense: o uso de um novo tipo de arco, recém-desenvolvido pelo archetier francês François Tourte (1747- 1835). Antes dele, Giuseppe Tartini (1692-1770) já́ havia introduzido uma mudança estrutural importante, idealizando o parafuso do talão, com o qual se podia ajustar a intensidade da crina. Porém, a mudança fundamental se deu quando Tourte, entre outras modificações menores, curvou a vara no sentido contrário do que era feito até então, dando ao arco maior tensão e flexibilidade e permitindo uma verdadeira revolução nas possibilidades técnicas dos instrumentos, como por exemplo toda uma gama de golpes de arco (FRÉSCA, 2014, p. 73).

A maior parte desses compositores franceses era composta de violinistas. Nos conturbados anos pós Revolução Francesa, foi criado o Conservatório de Paris (1795), tendo em

118 At roughly the same time that the composers associated with Vienna (Mozart, Haydn, Beethoven, Schubert et al) were blazing a trail in the musical firmament of the Western world (late 18th and early 19th centuries), a cognate group of French composers were composing an impressive body of music for the violin. The Vienna composers, while sometimes virtuosos, were primarily known as composers. The French group, based in Paris, was primarily known as performers, though their published works run into the hundreds. [...] Beethoven was very much aware of the French School and almost certainly used techniques and ideas derived from the French School.

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seu corpo docente Rodolphe Kreutzer (1766-1831), Pierre Rode (1774-1830) e Pierre Baillot (1771-1842), todos influenciados por Viotti (FRÉSCA, 2014, p. 74). A ópera, amplamente presente no cenário musical francês, era uma importante influência para os compositores franceses (Kreutzer escreveu diversas óperas e era um empresário de gênero; já Rode era solista da orquestra da ópera e o seu début foi com uma peça de Viotti durante o intervalo de uma ópera), e o estilo da Escola Francesa era calcado no canto (SCHUENEMAN, 2007, p. 5). Schueneman, porém, adverte que, ao contrário de compositores como Beethoven, que escreviam para a posteridade, os compositores franceses criavam obras para performances públicas pessoais, recheadas de virtuosismo (2007, p. 3).

Esses compositores-violinistas escreveram abundantemente para o quarteto de cordas, naturalmente favorecendo o primeiro violino, parte na qual eram exploradas todas as possibilidades técnicas do instrumento, frequentemente reduzindo o quarteto a um solo acompanhado (MONGRÉDIEN, 1986, p. 289). Conhecido como quarteto brilhante, focava na capacidade expressiva do instrumento, virtuose e líder:

No quarteto, ele [o violino] sacrifica todas as riquezas do instrumento pelo efeito geral, ele se transforma no espírito deste outro tipo de composição no qual o diálogo encantador lembra uma conversa entre amigos que se comunicam suas sensações, sentimentos e afetos mútuos: seus pontos de vista por vezes diferentes iniciam uma discussão acalorada na qual cada um contribui e segue com vontade o impulso dado pelo primeiro dentre eles, cuja ascendência os guia, ascendência essa que se estabelece pela força das ideias que ele põe em evidência, e que ele deve menos ao brilhantismo das suas habilidades do que à persuasão suave de sua expressão (BAILLOT, 1834, p. 266-267).119

O quarteto brilhante se difundiu através da Europa e alguns violinistas de renome viajavam por pequenas e grandes cidades, para tocar quartetos com três músicos locais, prática utilizada, por exemplo, por Henri de Vieuxtemps (1820-1881) e Pablo de Sarasate (1844-1908). Essa práxis costumava lotar as salas de espetáculo, mas por vezes rendia críticas negativas acerca do conjunto (STOWELL, 2003, p. 10). O compositor e virtuose do violino alemão (1784-1859) distingue claramente um quarteto verdadeiro (possivelmente se referindo à escola de Haydn, Mozart e Beethoven) do quarteto brilhante:

119 Dans le quatuor, il [le violon] sacrifie toutes les richesses de l’instrument à l’effet général, il prend l’esprit de cet autre genre de composition dont le dialogue charmant semble être une conversation d’amis qui se communiquent leurs sensations, leurs sentimens, leurs affections mutuelles: leurs avis quelquefois différents font naître une discussion animée à laquelle chacun donne ses développemens et se plait bientôt à suivre l’impulsion donnée par le premier d’entr’eux dont l’ascendant les entraîne, ascendant qu’il ne fait sentir que par la force des pensées qu’il met en évidence, et qu’il doit moins au brillant de son jeu qu’à la douceur persuasive de son expression.

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Existe hoje uma espécie de quarteto no qual o primeiro violino executa o solo e os três outros instrumentos se limitam a acompanhar; eles são conhecidos como quartetos brilhantes e têm por finalidade propiciar ao solista mostrar seu talento nos pequenos círculos musicais ou salões. [...] Quando tocamos o verdadeiro quarteto, no qual todos os quatro instrumentos são absolutamente necessários para realmente fazer jus à vontade do compositor, o primeiro violino não deve procurar brilhar por meio de uma execução mais forte do que seus colegas: ao contrário, deve procurar se mesclar aos outros, e até se subordinar quando não detém a parte principal (SPOHR, 1840, p. 195).120

5.3 A profissionalização do quarteto de cordas e grupos atuantes

No início do século XIX, o quarteto estava firmemente implantado no meio artístico da Europa. Em 1810, Johann Conrad Wilhelm Petiscus descreveu no jornal Allgemeine

Musikalische Zeitung a importância social do quarteto de cordas:

Não somente em grandes cidades, mas também nas pequenas, até mesmo em vilarejos, se existem amantes da música que toquem instrumentos de cordas, então eles se juntarão para tocar quartetos. A mágica da música torna todos iguais, e de maneira amigável une o que a posição social poderia dividir para sempre. Ao tocar, seja pelo prazer proporcionado pelo poder calmante da música e ou dos elevados sentimentos que dela decorrem, podemos esquecer ou deixar de se preocupar com os encargos e sofrimentos, ou mesmo as deficiências da vida, e se fortalecer para novas atividades e cuidados. Beber junto construía novas amizades – agora tocar em quartetos irá em breve substituir o bar (apud HUNTER, 2012, p. 56).121

Assim como Schuppanzigh fez em Viena, outros músicos, em especial violinistas de renome, manterão quartetos de cordas estáveis, apresentando séries de música de câmara. Após um longo concerto no qual o Quarteto Baillot apresentou nada menos do que um quinteto de Boccherini, um quinteto de Onslow, o quarteto de Haydn op. 20 nº 5, um tema de Pierre Rode e o op. 130, de Beethoven, a La Revue Musicale, de François-Joseph Fétis (1784-1871), publicou que

[essas obras] deram ao nosso grande violinista a oportunidade de desenvolver seu talento em um número colossal de tão variadas e delicadas nuances por quase duas horas e meia,

120 Il y a aujourd’hui une espèce de quatuor où le premier violon exécute le solo et les trois autres instruments ne font qu’accompagner: on les appelle quatuors brillants; ils ont pour but de donner l’occasion au jouer du solo de montrer son talent dans les petits cercles ou salons. [...] Lorsque l’on exécute le véritable quatuor, dans lequel les quatre instruments sont absolument nécessaires pour bien rendre l’idée du compositeur, le premier violon ne doit pas chercher à briller par une exécution plus forte que les autres: il doit au contraire se lier avec eux et s’y subordonner quand il n’est pas principale partie. 121 Not only in big cities but also in small ones, even in villages, if there are friends of music who play string instruments, then they will find themselves playing quartets together. The magic of the music makes everyone equal, and in a friendly way bonds together what rank and station would otherwise have divided forever. One plays, and in the pleasure provided by the power of the music’s calm and elevated feelings one forgets or ceases to care about the burdens or sorrows or deficiencies of life and is fortified for new activities and cares. Drinking with one another used to make friends: [now] the quartet-stand will soon supersede the bar.

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que a admiração e o arrebatamento nunca cessaram de ecoar de todos os cantos da sala, e na saída, só se ouviam as palavras “perfeito”, “admirável”... Acreditamos que, se Haydn, Mozart e Beethoven tivessem escutado suas obras na releitura de Mr. Baillot e seus capazes acompanhantes, eles jurariam que o efeito produzido era [ainda] maior do que eles tinham a intenção de produzir originalmente (FÉTIS, 1827 apud HUNTER, 2012, p. 60).122

Mary Hunter, em seu artigo “The most interesting genre of music”: Performance, sociability and meaning in the classical string quartet, 1800-1830 (2012), arrisca algumas hipóteses sobre os motivos que inicialmente elevaram o violino à liderança do quarteto de cordas no século XIX e o colocaram como foco principal das resenhas jornalísticas. Em primeiro lugar, os primeiros quartetos profissionais mudavam frequentemente seus membros, com exceção do primeiro violinista, que em geral dava nome ao quarteto (por exemplo, Quarteto Baillot, Quarteto Möser, Quarteto Schuppanzigh, Quarteto Böhm e, posteriormente, Quarteto Joachim), trazendo uma atenção inevitável ao primeiro violinista (2012, p. 60). Hunter também descreve a ideia de genius da performance, pensamento vigente no romantismo, ou seja, uma conexão espiritual entre o compositor e seu intérprete, daquele que seria o depositário da alma do autor.

Ao se assumir um conjunto de associações pessoais e conexões psicológicas entre compositor e intérprete, implica-se que um só indivíduo possui e exerce o genius da performance; e de fato, a retórica do início do romantismo sobre o que hoje chamaríamos de interpretação musical está sempre calcada em termos de um só indivíduo. Claro que há um elemento linguístico muito conveniente, mas as resenhas de performances de quarteto que se concentram no primeiro violino, muito frequentemente, usam uma linguagem proporcionada com o modelo do genius da performance. As críticas e resenhas deste tipo, se mencionam os outros intérpretes [...], o fazem para sugerir que eles receberam o espírito do compositor por intermédio de seu líder (HUNTER, 2012, p. 62-63).123

Baillot demonstrava esse conceito inclusive visualmente, nos concertos de música de câmara que organizava, ao tocar de pé enquanto o resto do quarteto tocava sentado

122 [These works] gave to our great violinist the occasion to develop his talent with such a colossal number of such varied and delicate nuances that for nearly two and a half hours, the admiration and rapture never ceased to echo from all quarters of the hall, and, on leaving, one heard nothing but the words ‘perfect’, ‘admirable’ y. we believe that if Haydn, Mozart and Beethoven had heard their works in the rendering of Mr. Baillot and his able accompanists, they would swear that their effect was [even] greater than they had intended to produce. 123 To presume a set of personal associations and psychological connections between composer and performer implies that it is a single individual who possesses and exercises the genius of performance; and, indeed, the early romantic rhetoric about what we would now call musical interpretation is always phrased in terms of a single individual. There is an element of linguistic convenience in this, of course, but accounts of quartet performances that concentrate on the first violin quite often use language commensurate with the genius of performance model. The reviews and reports of this sort, if they do mention the other players, seem, [...], to suggest that they receive the spirit of the composer from their leader.

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(MONGRÉDIEN, 1986, p. 290). Nos programas dos concertos do Quarteto Hellmesberger, batizado por seu primeiro violinista, Joseph Hellmesberger (1828-1893), os programas eram impressos com o seguinte cabeçalho: “Quarteto Hellmesberger, com a assistência dos Srs. Math Durst, Carl Heissler e Carl Schlesinger”. Na opinião de Franz Kneisel,124 tal cabeçalho levava a crer que Hellmesberger era o quarteto inteiro e seus colegas meros assistentes (KNEISEL, 1919 apud MARTENS, 2006, p. 71).

Figura 2: Desenho retratando um quarteto com Vieuxtemps e Piatti125

Fonte: STOWELL, 2003, p. 43.

Um outro fator apontado por Hunter como uma possível causa da primazia do primeiro violino no quarteto era a associação entre o quarteto e a orquestra, na qual o spalla era o diretor que conduzia a performance, assim como pela falta de ensaios de ambos os conjuntos, sendo necessário e conveniente para todos os envolvidos seguir a liderança de um só músico (HUNTER, 2012, p. 60).

Mesmo estando o quarteto de cordas plenamente estabelecido nesse momento na vida musical europeia, a prática de ensaios regulares estava apenas emergindo. Em abril de 1825, cerca de um mês após o fracasso da estreia do op. 127, de Beethoven, por Schuppanzigh, o violinista Joseph Mayseder (1789-1863), em conversa com Beethoven, o tranquiliza sobre o

124 O violinista e pedagogo americano de origem romena Franz Kneisel (1865-1926) foi o fundador e primeiro violinista do Quarteto Kneisel (1885-1917), um dos mais importantes conjuntos do final do século XIX e início do século XX nos Estados Unidos da América. Enescu dedicou a ele sua famosa sonata no 3 para violino e piano. 125 Nesse desenho podemos observar os célebres Henri de Vieuxtemps e o violoncelista Alfredo Piatti (1822-1901) tocando em quarteto, junto com Deloffre e Hill em 1846. Tanto Vieuxtemps quanto Piatti estão sentados em bancos elevados (e Piatti sobre um estrado), enquanto seus colegas estão em cadeiras normais.

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concerto que seu conjunto apresentará da mesma obra, afirmando: “Tudo se passará bem. Ensaiamos a peça duas vezes”. Mesmo sendo uma obra complexa, o sobrinho do compositor, Karl, afirmou ao seu tio que o concerto foi um sucesso (apud KLORMAN, 2015, p. 629).126

Havia uma cultura de leitura à primeira vista no início do século XIX, assim como no final do século XVIII, tanto na música de câmara, quanto nas orquestras.

Devemos destacar que as performances públicas da sinfonia e do concerto eram frequentemente “ensaiadas” somente uma vez, o que qualificaríamos hoje de uma passada, ao invés de um ensaio. Mesmo um ensaio preparatório único não podia ser sempre garantido; por exemplo, quando Haydn mandou as partes das suas sinfonias nº 95 e 96 de Londres a Viena para um concerto [1791], ele incluiu uma carta com os seguintes pedidos: “Por favor digam a Herr [Franz Bernhard Ritter von] Kees que eu peço a ele respeitosamente para que ensaie as duas sinfonias, por serem muito delicadas, especialmente o último movimento da que é em Ré maior [no 96], para o qual recomendo o mais doce piano assim como um tempo muito rápido.” [...] Leopold Mozart descreve a primeira performance do concerto de piano em Ré menor, K. 466, de Wolfgang, “no qual o copista ainda estava copiando quando chegamos, e seu irmão não teve tempo de tocar o rondeau porque tinha que supervisionar o copista” (Leopoldo Mozart a Maria Anna Mozart, Viena, 16 de fevereiro de 1785). O que mais nos chama a atenção no relato de Leopold é, pelo seu tom, que um atraso tão extremo do copista não era uma novidade. Aparentemente, até uma simples passada na música antes de uma performance pública às vezes era um luxo! (KLORMAN, 2015, p. 635).127

Mesmo em pleno século XIX, o Allgemeine Musikalische Zeitung destaca em um artigo de 1817 a vida musical de Veneza, na qual os instrumentistas “com somente dois ensaios executam as mais difíceis óperas, atraindo a admiração dos compositores, que dão preferência às orquestras venezianas acima de todas as outras na Itália”.128 Esses mesmos instrumentistas tocam com as mais precisas nuances e conjunto os quartetos de Haydn, Mozart, Beethoven e outros, “que são muito frequentemente tocados à primeira vista, com uma respeitável perfeição” (apud

126 It will go well. We have rehearsed it twice. 127 It should be noted, however, that public symphonic and concerto performances were commonly “rehearsed” just once, in what must have been what we would call a run-through rather than rehearsal. Even a single preparatory session could not always be taken for granted; for example, when Haydn sent scores of his Symphonies nos. 95 and 96 from London to Vienna to prepare for a performance [1791], he included a letter with the following request: “Please tell Herr [Franz Bernhard Ritter von] Keess that I ask him respectfully to have a rehearsal of both these Symphonies, because they are very delicate, especially the last movement of that in D major [no. 96], for which I recommend the softest piano and a very quick tempo” [...] Leopold Mozart describes the premiere performance of Wolfgang’s Piano Concerto in D Minor, K. 466, “which the copyist was still copying when we arrived, and your brother didn’t have time to play through the rondeau because he had to supervise the copyist” (Leopold Mozart to Maria Anna Mozart, Vienna, 16 February 1785). Most striking in Leopold’s report is his matter-of-fact tone, indicating that such an extreme copyist’s delay was not unheard of. Apparently even a single run-through before a public performance was sometimes a luxury to be dispensed with! 128 With just two rehearsals, they perform the most difficult operas to the admiration of composers, who give preference to the venetian orchestras over all others in Italy.

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KLORMAN, 2015, p. 632). 129 Resenhas jornalísticas desse tipo mostram que a cultura da leitura à primeira vista, incluindo em obras complexas, continuou ao mesmo tempo em que se iniciava a profissionalização do quarteto de cordas no início do século XIX.

Em 1804 é publicado um artigo no Allgemeine Musikalische Zeitung atribuído ao compositor Giuseppe Maria Cambini, intitulado Sobre a performance de quartetos instrumentais.130 Nele o compositor afirma que o quarteto é um gênero forte, que pode causar o mesmo impacto que a sinfonia, contanto que possa ser executado em um alto nível e escutado com atenção pelo público. Nesse texto o autor coloca a prática da leitura à primeira vista como o fator responsável para que bons instrumentistas tenham uma limitada expressão na execução da música de câmara. Cambini recomenda que todos os instrumentistas de cordas passem um período de seu aprendizado ensaiando quartetos e aprendendo o repertório juntos. Ele é o primeiro autor a não qualificar o quarteto de cordas como um diálogo entre quatro vozes, mas defendendo a ideia de que as quatro vozes se misturem por meio dos ensaios e formem uma só voz (KLORMAN, 2015, p. 638). Relembrando sua juventude, Cambini afirma ter tocado viola em um conjunto formado por Filippo Manfredi (1731-1777), Pietro Nardini (1722-1793) e Luigi Boccherini, conjunto esse que passou seis meses somente estudando obras de Haydn (op. 9, 17 e 20) e Boccherini. Esse artigo evidenciou o que por muito tempo se acreditou ser o primeiro quarteto profissional existente, possivelmente em 1766.

Porém Klorman aponta algumas inconsistências no discurso de Cambini. Na época que esses quatro músicos moravam na mesma região da Toscana, as obras de Haydn ainda não tinham sido escritas. A biografia conhecida de Cambini é baseada em fatos não verificados trazidos por ele, incluindo seus estudos com os maiores compositores de sua época, como o Padre Martini e Haydn, dos quais não há registros. Há ainda episódios teatrais de sua vida, como o que foi inicialmente contado por Cambini, e posteriormente repetido por Fétis e Grove, de que o compositor e sua noiva foram capturados por piratas e escravizados por vários meses após o fracasso da estreia de sua ópera em Nápoles, em 1766, mesmo ano do seu quarteto (KLORMAN, 2015, p. 640). Para Klorman, após uma carreira prolífica de compositor em Paris (150 quartetos, mais de 100 quintetos, 600 obras instrumentais e 80 sinfonias concertantes), passou em 1795 a

129 Which are often played at sight [prima vista] with estimable perfection. 130 On the performance of instrumental quartets.

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escrever sobre música, e ainda, segundo Klorman, embelezando alguns aspectos de sua vida. Por exemplo, o fato de ele criticar veementemente a cultura de música de salão e música ligeira, após ter escrito dezenas de pots-pourris e arranjos de ópera destinados à leitura à primeira vista nos salões parisienses (KLORMAN, 2015, p. 641). Apesar de o artigo de Cambini ser dúbio e não dar bases sólidas para afirmar que seu quarteto foi de fato o primeiro conjunto profissional atuante, é interessante constatar o pensamento vigente no momento da data de sua publicação, em 1804.

Em 1829 e 1831 surgem os primeiros quartetos itinerantes, o Quarteto Koella e o Quarteto Müeller. Ambos os grupos constituídos de quatro irmãos, os Koella se distinguiam por sua pouca idade, de acordo com Pochon (1917, p. iv), os irmãos tinham 11, 7, 9 e 12 anos na sua primeira viagem em 1829, tornando-se em 1832 protegidos do grande Niccòlo Paganini (1782- 1840). O Quarteto Müller alcançou uma grande fama, sendo descrito pela crítica como “uma arcada, um acento, uma respiração, uma alma” (apud STOWELL, 2003, p. 45).131 Fato curioso, a partir de 1855, os quatro filhos do primeiro violinista, Karl Müller, formaram um segundo quarteto, o Quarteto Müller Júnior, que obteve um certo sucesso, mas não comparável ao primeiro quarteto (POCHON, 1917, p. iv).

Um grande número de conjuntos se formou durante o século XIX, como os conjuntos liderados por David,132 Spohr ou mesmo Schradieck.133 Entre os grupos atuantes no século XIX podemos destacar o Quarteto Joachim. Descrito como “a personalidade dominante do século XIX”134 e “o maior violinista-músico de seu tempo”,135 Joseph Joachim era um grande apreciador da música de câmara, tocando frequentemente com Mendelssohn, Lizt e Brahms (com quem mantinha uma amizade e que a ele dedicou seu concerto para violino e orquestra Op. 77). Após muito tempo viajando e formando quartetos com músicos locais, de 1869 até sua morte criou o Quarteto Joachim, que exerceu uma enorme influência nos rumos do gênero. O grupo foi responsável por grande número de estreias, entre elas os três quartetos de Brahms e três de Dvořák (STOWELL, 2003, p. 49).

131 One bowing, one accent, one breath, one soul. 132 Ferdinand David (1810-1873), importante violinista e compositor. Spalla do Gewandhaus de Leipzig, trabalhou em estreita colaboração com Mendelssohn, que a ele dedicou seu famoso concerto em mi menor op. 64. 133 Henry Schradieck (1846-1918), violinista, compositor e pedagogo, compôs uma série de métodos de violino ainda utilizados atualmente. Como camerista, Schradieck tinha a reputação de poder tocar todos os quartetos de Beethoven de memória, sem o auxílio da partitura (STOWELL, 2003, p. 46). 134 The dominant figure in the nineteenth century (STOWELL, 2003, p. 47). 135 The greatest violinist-musician of his time (AUER, 1980, p. 8).

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5.4 O repertório romântico

“Vocês não fazem ideia da sensação que nós temos ao escutar sempre tal formidável gigante (Beethoven) marchando atrás de nós” (STOWELL, 2003, p. 228).136 Com tal afirmação, Johannes Brahms (1833-1897) demonstra a preocupação dos compositores que vieram após Beethoven tiveram ao longo do século XIX. Carl Dahlhaus (1928-1989) afirma que tanto os compositores, quanto o público e teóricos sofreram a influência do mito Beethoven (apud YUDKIN, 1992, p. 30). A criação do mito, do modelo a ser seguido, chamado por Burnham de “Beethoven Herói”,137 marcou o paradoxo cunhado por Dahlhaus que permeou o romantismo musical: “Você imita o mestre para se tornar original, mas assim fazendo você sacrifica a qualidade pela qual você o admira: originalidade” (apud YUDKIN, 1992, p. 31).138

Se o quarteto de cordas foi o instrumento por excelência dos anos 1770-1820, o piano será o instrumento do século XIX, seja como solista (sonatas e peças românticas irão recorrer a novas formas), ou seja, associado com outros instrumentos (trios, quartetos, quintetos com piano). O piano corresponde realmente melhor do que o quarteto de cordas deliberativo e dialógico à sensibilidade romântica do “Ich-Erzählung”, a “expressão do eu (FOURNIER, 2000, p. 970).139

Segundo Fournier, com exceção dos quartetos finais de Beethoven, que inovaram radicalmente na forma, o quarteto permanecerá formalmente tradicional ao longo do século XIX, sem uma verdadeira ruptura até o surgimento de Schoenberg no século XX. “Tudo o que se passa neste ponto na evolução musical do século XIX já está contido potencialmente na obra dos clássicos vienenses, que constituem a base do que chamamos de música romântica” (2000, p.

136 You have no idea what it feels like always to hear such a giant (Beethoven) marching behind one. 137 Para maiores informações acerca do mito de Beethoven Herói, consultar de Carl Dahlhaus o livro Nineteeth- Century Music (University of California Press, 1989), e de Scott Burnham Beethoven Hero (Princeton University Press, 2000). 138 You imitate the master in order to become original, but in so doing you sacrifice the quality for which you worship him: originality. 139 Si le quatuor à cordes fut l’instrument par excellence des années 1770-1820, c’est le piano quis sera l’instrument du XIXe siècle, soit en soliste (sonates et pièces romantiques recourant à des formes nouvelles), soit associé avec d’autres instruments (trios, quatuors, quintettes avec piano). Le piano correspond mieux en effet que le quatuor à cordes délibératif et dialogique à la sensibilité romantique de l “Ich-Erzählung”, l’“expression du moi.”

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973).140 Mesmo o quarteto de cordas não tendo ocupado tão destacado espaço quanto no século XVIII, uma importante obra para o gênero foi escrita.

Franz Schubert (1797-1828) foi sem dúvida um dos compositores que mais sofreram a influência de Beethoven. Com uma curta carreira, somente sobreviveu a Beethoven por 20 meses. Apesar de sua reputação de compositor de lieders, teve uma importante produção de quartetos. Suas obras para o gênero podem ser divididas em duas fases; seus primeiros quartetos (1810-1816), nos quais o compositor ainda não domina plenamente a forma, e os três quartetos finais (1824-1826). Entre essas duas fases escreveu em 1820 o Quartettsatz, movimento de uma obra inacabada (STOWELL, 2003, p. 228-229). Os onze primeiros quartetos de juventude eram essencialmente destinados a sessões familiares,141 e obras de aprendizado da escrita para quarteto. Os três últimos, obras-primas, carregam nelas o espírito do lied, as variações e um estilo característico do compositor (FOURNIER, 2000, p. 1015). São essas obras o quarteto em lá menor Rosamunde (D. 804, dedicado a Schuppanzigh), A morte e a Donzela (D. 810, inspirado em um lied com o mesmo nome de 1817), e o vasto quarteto em sol maior (D. 887).142 Na época doente, com sífilis, ele se definiu como “a mais infeliz e miserável criatura do mundo”,143 sofrimento que certamente transparece nas suas obras do período (STOWELL, 2003, p. 230).

Criança prodígio e dos mais eruditos músicos do século XIX,144 Felix Mendelssohn (1809-1847) revela em suas obras de juventude um domínio do quarteto surpreendente, como demonstra seu segundo opus para o gênero, o famoso op. 13. Escrito em seguida à morte de Beethoven em 1827, esse quarteto carrega em si diversas referências à obra beethoveniana, em especial dos quartetos op. 95 e 132. Beethoven também foi a inspiração do op. 12 composto em 1829. O finale do op. 12, trazendo como coda os 44 últimos compassos do primeiro movimento, inspirará posteriormente Bartók no seu quarteto no 4 (FOURNIER, 2000, p. 1078). Em 1837, mais precisamente durante sua lua de mel, Mendelssohn retorna ao quarteto com os três quartetos op. 44, fazendo um “retorno reacionário ao classicismo”145 (STOWELL, 2003, p. 237). De estilo brilhante, e seguindo a fórmula clássica em quatro movimentos (sendo o scherzo o segundo

140 Tout ce qui se passe de ce point dans l’évolution musicale du XIXe siècle est déjà contenu potentiellement das l’oeuvre des classiques viennois, qui constitue en fait le socle même de ce que l’on appelle la musique romantique. 141 Schubert tocava viola no quarteto familiar (STOWELL, 2003, p. 229). 142 Conhecido como Quarteto das Agitações, escrito em apenas 10 dias. 143 The most unhappy and wretched creature in the world. 144 STOWELL, 2003, p. 235 145 A reactionary retreat to classicism.

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deles), são obras das quais o compositor muito se orgulhava (FOURNIER, 2014, p. 152). Em 1847 escreve o op. 80, conhecido como Requiem para Fanny, sua irmã Fanny Hensel, que tinha recentemente falecido. Assim como o Op. 13, no qual há uma forte emoção ligada à morte, o op. 80 é denso e expressivo (FOURNIER, 2014, p. 153). Stowell aponta que nenhuma obra tão intensa e de tão fortes contrastes tinha sido escrita desde os quartetos tardios de Beethoven (2003, p. 239).

Robert Schumann (1810-1856) escreveu seus três quartetos op. 47 dedicados a Mendelssohn durante dois meses, em junho e julho de 1842, e nunca mais retornou ao gênero. Até então, não tinha escrito nenhuma obra de música de câmara e, após incentivos recebidos por Liszt e Mendelssohn, arrisca-se após longos meses estudando as obras de Bach, Haydn, Beethoven e Mendelssohn. Em 1839, Schumann tinha começado dois quartetos que não foram terminados: “Ouso dizer que são tão bons quanto os de Haydn”,146 mas não há registros dessas obras atualmente (FOURNIER, 2000, p. 1087-1089). Como estudo prévio, também lia frequentemente, com sua esposa Clara, a quatro mãos no piano, os quartetos de Haydn e Mozart, além do Cravo bem temperado, para aprofundar sua técnica de fuga e contraponto, antes de se iniciar na composição de seus quartetos (FOURNIER, 2014, p. 155). De acordo com Arnold Steinhardt,147 Schumann teria escrito passagens que conectariam os três quartetos, para que eles fossem tocados de uma vez, sem interrupções. Porém o compositor mais tarde teria desistido da ideia, destruindo esse material (BLUM, 1987, p. 160).

Os três quartetos de cordas de Johannes Brahms ocupam um lugar central na sua obra, sendo em parte inspirados pelos quartetos prussianos de Mozart (KRUMMACHER, 1994, p. 25). Antes de publicar seus dois quartetos op. 51 (1873), chegou a escrever cerca de 20 quartetos que não o satisfizeram e a própria escrita dos op. 51 levou oito anos (GRIFFITHS, 1985, p. 127). Nos anos 1870 o compositor já tinha uma reputação bem estabelecida, mas enfrentava a hostilidade de músicos e críticos que defendiam a música do futuro, de Lizt e Wagner. Brahms tinha se pronunciado publicamente junto com Joachim contra essa nova estética. Ao contrário de outros compositores românticos, Brahms não procura associar a música a um poema ou à filosofia. “Brahms é um dos raros compositores de seu tempo que, em uma

146 J’ose te le dire, aussi bons que ceux de Haydn. Carta a Clara Schumann. 147 Primeiro violinista do Quarteto Guarneri, importante conjunto americano, atuante entre 1964 e 2009. Nascido em 1937, venceu a primeira colocação no concurso internacional Leventritt (1958).

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produção instrumental significativa e totalmente liberada de todo objetivo extramusical, continua a ter como objetivo a música pura”, assim como o classicismo tinha feito em relação ao barroco (FOURNIER, 2014, p. 159).148 Não sendo um homem em harmonia com a estética de seu tempo, Brahms se expressou mais naturalmente nos moldes do classicismo, que seus contemporâneos consideravam ultrapassado. Para Charles Rosen, Brahms “abertamente expressava seu lamento por ter nascido tarde demais” (apud GRIFFITHS, 1985, p. 127).149 Seus quartetos op. 51 e o op. 67 seguem esse retorno ao classicismo.

5.4.1 As correntes nacionais

Um artigo de Richard Wagner150 (1813-1883) em 1870 sobre os últimos quartetos de Beethoven, até então pouco conhecidos e apreciados pelos compositores (Brahms era um dos que não apreciava essas obras), trouxe o foco sobre essas composições, que o influenciaram nos rumos de sua música (FOURNIER, 2014, p. 167).

Ao mesmo tempo surgem correntes nacionais, que, transpondo no meio musical posições políticas, tentam se emancipar da influência vienense, enquanto certos compositores influenciados pela “música do futuro” tentam aplicar no quarteto os princípios de Lizst (poema sinfônico) ou de Wagner (melodia contínua, cromatismo). O resultado é a aparição de obras que irão dar continuidade ao classicismo, ou seguirão um caminho menos ortodoxo, mas sem jamais romper de maneira decisiva com o modelo vienense. Ao contrário, elas frequentemente exaltam os seus princípios, ao cultivar a grande forma e procurar a unidade por meio de conexões estruturais. Quanto ao fermento da inspiração popular e ao recurso subsequente da escrita modal, eles essencialmente permitem uma reinterpretação do modelo vienense, em uma estética menos dramatizante, com uma maior abertura às cores e aos timbres que podem as vezes tomar uma importância predominante, e a evolução da harmonia permitindo inclusive se relacionar de um novo jeito com as dissonâncias, não mais necessariamente obrigatórias de serem resolvidas (FOURNIER, 2014, p. 167-168).151

148 Brahms est-il un des rares compositeurs de son temps qui, dans une production instrumentale significative et absolument libérée de tout objectif extra-musical, continue à miser pleinement sur la musique pure. 149 His openly expressed regret that he was born too late. 150 De acordo com Fournier (2014, p. 167), Wagner escreveu um quarteto em ré menor em 1829, mas a partitura se perdeu. 151 En même temps se dessinent des courants nationaux qui, transposant dans le domaine musical des positions politiques, tentent de s’émanciper de l’influence viennoise, tandis que certains compositeurs, influencés par la “musique de l’avenir,” éssaient d’appliquer au quatuor les principes de Liszt (poème symphonique) ou de Wagner (mélodie continue, chromatisme). Il en résulte une floraison d’œuvres qui, soit vont continuer de s’inscrire dans la continuité du classicisme, soit vont suivre une voie moins orthodoxe, mais sans jamais rompre de manière décisive avec le modèle viennois. Au contraire, elles en exaltent souvent les principes, en cultivant la grande forme et en recherchant l’unité par des liens structuraux. Quant au ferment de l’inspiration populaire et au recours qui s’ensuit à l’écriture modale, ils permettent essentiellement une réinterpretation du modèle viennois, dans une esthétique moins

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“Considerada já no século XVIII como o ‘conservatório da Europa’, a Tchecoslováquia teve papel fundamental na evolução musical no final do século XIX e na primeira parte do século XX” (FOURNIER, 2014, p. 171).152 Com um forte viés nacionalista e folclórico, a música dos compositores tchecos produziu importantes quartetos, em especial de Anton Dvořák (1841-1904), com quatorze quartetos,153 e Bedřich Smetana154 (1824-1884), com dois. Seu primeiro quarteto, intitulado Da minha vida, é uma autobiografia musical, centrado em quatro partes, com a temática do amor (amor da pátria, amor da música, amor da dança e amor da noiva), retratando também a surdez que o acometeu e a resignação em face ao inevitável destino, a morte (STEINHARDT, 2000, p. 244).

Na Rússia, o quarteto se desenvolveu em duas principais cidades, Moscou e São Petersburgo. Mikhail Glinka (1804-1857), apesar de ter pouco escrito para o gênero, é considerado o fundador do estilo russo. Sociedades de música se desenvolveram na Rússia no século XIX, atraindo artistas como Berlioz, Schumann, Liszt ou instrumentistas como Schuppanzigh (STOWELL, 2003, p. 267). Os compositores russos tiveram importante produção de quartetos. Rimsky-Korsakov compôs oito quartetos pouco conhecidos, Serguei Taneiev (1856- 1915), doze e Alexandre Glazunov (1856-1936), sete, com uso intenso do folclore russo. Os expoentes da produção russa são Alexandre Borodin (1833-1888), que se auto intitulava compositor de domingo,155 mas deixou duas obras-primas, e Piotr Ilyitch Tchaïkovsky (1840- 1893), com três quartetos (FOURNIER, 2014, p. 184-187).

Após o domínio da virtuosidade e do quarteto brilhante na França, os últimos quartetos de Beethoven, assim como Wagner, influenciam as obras para o gênero de Édouard Lalo (1823-1892), e em especial César Frank (1822-1890), que, com o seu quarteto em Ré maior

dramatisante, avec une plus grande ouverture aux couleurs et aux timbres qui peuvent prendre parfois une importance prééminente, l’évolution de l’harmonie permettant d’ailleurs de jouer de manière nouvelle avec des dissonances qu’il ne sera plus toujours nécessaire de résoudre. 152 Considérée au XVIIIe siècle déjà comme le “conservatoire de l’Europe,” la Tchécoslovaquie a joué un rôle très important dans l’évolution musicale de la fin du XIXe siècle et de la première partie du XXe siècle. 153 Os quartetos de Dvořák serão abordados mais detalhadamente no terceiro capítulo desta tese. 154 Smetana tocava violino e substituiu seu pai em um quarteto de Haydn aos quatro anos de idade. Apesar do contato precoce com o quarteto, o compositor somente iria compôr para o gênero no final de sua vida (FOURNIER, 2014, p. 171). 155 Musicien de dimanche (FOURNIER, 2014, p. 184). Além de músico e violoncelista, Borodin era médico e químico.

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(1890), com texturas quase orquestrais, marca o início da idade de ouro do quarteto francês (STOWELL, 2003, p. 253). A obra de Frank influenciou toda uma geração de compositores de quartetos, como Vincent D’Indy (1851-1931), Ernest Chausson (1855-1899) e Claude Debussy (1862-1919). Maurice Ravel (1875-1937) dedicou seu quarteto (1903) ao seu professor, Gabriel Fauré (1845-1924), e pediu que ele também compusesse uma obra do gênero. Fauré recusou, dizendo que era demasiadamente difícil. No final de sua vida, reconsiderou e escreveu um quarteto em mi menor, op. 121 (1924). Na contramão dessa estética, desdenhando Debussy assim como Franck, Camille Saint-Saëns (1835-1921) compôs duas obras essencialmente românticas, para Fournier, mais próximas de Brahms do que de Franck (2012, p. 193).

O quarteto no final do século XIX estava consideravelmente difundido, tanto em países escandinavos, com compositores como Grieg (1843-1907), nos Estados Unidos da América e na Inglaterra, com, por exemplo, Edward Elgar (1857-1934), e até mesmo no Brasil.156 Após a década de 1870, o quarteto volta a ocupar uma importante parte na obra dos compositores.157

156 Maria Alice Volpe (1994, p. 137) aponta que circulavam cópias manuscritas de quartetos assim como de quintetos de cordas de Haydn e Boccherini no Brasil desde 1792. Já no final do século XIX diversos clubes de música são criados, especialmente no Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, mantendo quartetos e outros conjuntos de câmara (REIS, 2012, p. 30). Apesar de os primeiros grupos estáveis no Brasil só terem surgido após 1900 (VOLPE, 1994, p. 138), os compositores brasileiros da época, que em sua quase totalidade estudaram na Europa, produziram no final do século XIX e início do século XX certo número de quartetos de cordas, sendo 4 de Henrique Oswald, 4 de João Gomes Júnior, 4 de Meneleu Campos, 4 de Alberto Nepomuceno, 3 de Santana Gomes, 2 de Paulo Florence e 1 de Glauco Velasquez, Alexandre Levy, João Gomes Araújo, Jerônimo Emiliano Sousa Queirós, Henrique Eulálio Gurjão. Volpe ainda acrescenta a essa lista quatro quartetos sem indicação de formação, mas que a autora supõe ser para quarteto de cordas: padre Joaquim Pereira da Veiga, Paulino Chaves, Damião Barbosa Araújo, e Ezequiel Paula Ramos Júnior (VOLPE, 1994, p. 145). Essa lista, porém, não pode ser considerada definitiva, pois com o movimento modernista e em especial a Semana de Arte Moderna de 1922, houve um repúdio da produção romântica brasileira, considerada “europeia” por demasia (REIS, 2012, p. 1). Sendo assim, muitas obras foram perdidas, porém o romantismo musical brasileiro está ganhando cada vez mais espaço nas pesquisas acadêmicas recentes e é possível que muitas obras do período sejam redescobertas em um futuro próximo. 157 Para um painel mais abrangente e detalhado sobre os compositores que atuaram nesse período e suas obras para quarteto de cordas, consultar os capítulos Tradicional and Progressive nineteeth-century trends: France, Italy, Great Britain and America (STOWELL, 2003, p. 250-265), Nineteeth-century national traditions and the string quartet (STOWELL, 2003, p. 266-287) e Les signes avant-coureurs du renouveau du quatuor (FOURNIER, 2014, p. 167- 197), assim como o livro de Bernard Fournier, Histoire du Quatuor à cordes, tome 2: De 1870 à l’entre-deux- guerres (Paris: Librairie Arthème Fayard, 2004).

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6 O quarteto do século XX em diante

6.1 A gravação, a radiodifusão e novas tecnologias

O advento da gravação e da radiodifusão transformou o consumo da música de câmara, trazendo a mesma dos palcos para a intimidade do lar no século XX. Mas não foi somente a recepção do quarteto que mudou, além de sua percepção pelo público, mas também a própria execução sofreu um forte impacto com a gravação, já que, afinal,

o ato de gravar requer uma disciplina e um temperamento diferentes daqueles associados ao ritual dos concertos públicos. [...] Numa gravação, contudo, qualquer imprecisão seria registrada para sempre, tornando-se mais grave e desagradável a cada nova audição. Não havia onde se esconder num disco, nenhum disfarce possível para deficiências técnicas ou fraquezas de interpretação. O artista ficava então sujeito a um julgamento sem tréguas, não podendo se permitir ilusórios desvios de atenção (LEBRETCH, 2008, p. 19).

Sendo um processo iniciado em 1877 quando o seu inventor Thomas Alva Edison (1847-1931) registrou sua voz cantando Mary had a little lamb158 em um fonógrafo, a gravação como produto de massa foi desencadeada a partir de 1902, com árias de ópera cantadas por Enrico Caruso (1873-1921). Porém a gravação como objeto musical, separado e distinto da execução ao vivo, começou na década de 1920. O potencial da gravação era grande:

O que ela prometia, uma vez que o artista tivesse superado o medo de errar, era a chance de se conseguir uma execução perfeita. Pela primeira vez na história da cultura, precisão e velocidade transcendiam a inspiração como objeto da execução, e não faltaram jovens ambiciosos [...], ávidos em usar o novo meio (LEBRETCH, 2008, p. 20).

Houve inicialmente uma forte resistência de muitos artistas, que argumentaram que a gravação ia “contra a própria natureza da execução musical”, ao eliminar a relação público- instrumentista, além de ser um ato não-representativo da obra, pois cada performance seria um evento único no tempo; “uma obra, uma vez executada, jamais soaria outra vez exatamente da mesma maneira” (LEBRETCH, 2008, p. 20). Porém a novidade foi tomando importância e, como objeto competitivo que é, tornou-se um bem de consumo, pois estimulava os ouvintes a adquirir

158 Mary tinha um carneirinho.

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diversas gravações da mesma obra, a fim de comparar performance dos diversos intérpretes.159 Lançamentos de grandes coletâneas, como, por exemplo, dos quartetos de Beethoven ou a integral de suas sonatas para piano, “podiam ser vendidos para o público da classe média emergente como um item obrigatório na sala de estar, como a Enciclopédia Britânica” (LEBRETCH, 2008, p. 22).

Mesmo se na década de 1930 o público do gramofone dispusesse de uma grande variedade de gêneros, o quarteto de cordas era um dos que melhor se adaptava à tecnologia disponível, sendo um dos meios mais semelhantes ao original, pois a sonoridade obtida tanto da ópera quanto das peças orquestrais era consideravelmente deformada (STOWELL, 2003, p. 12). Mesmo sendo uma tecnologia longe da perfeição, ou mesmo dos recursos atuais,160 a gravação proporcionou aos ouvintes a possibilidade de ouvir nuances por vezes despercebidas em uma sala de concerto. Stowell (2003, p. 12-13) aponta que, mesmo nos seus primórdios, até 1927, a indústria fonográfica gravou cerca de 60 obras para quarteto, de Haydn a Debussy, por diferentes conjuntos. Os quartetos de cordas eram um investimento interessante para as gravadoras, pelo pouco custo que envolvia um conjunto pequeno e que já entrava no estúdio pré-ensaiado. Com a radiodifusão e a transmissão de concertos ao vivo, o público do quarteto se ampliou substancialmente. Após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), rádios públicas, como a BBC em Londres, criaram uma vasta programação de música clássica, com grande espaço destinado ao quarteto. Em 1972, uma única estação da rede BBC, por exemplo, a Radio Three, apresentava semanalmente mais de 100 horas de música clássica, com boa parte de produção própria, além de uma média de três óperas completas. Estações como a BBC alavancaram a fama de alguns conjuntos, como o Quarteto Amadeus161 (SNOWMAN, 1981, p. 76-77). O impacto da gravação

159 “Logo não seria mais suficiente possuir uma gravação da Sonata Ao Luar na estante da sala; duas ou três versões demonstrariam fôlego intelectual e tolerância civilizada. Tal como os imperadores em Viena, que promoviam competições ao teclado entre Mozart e Clementi, pacatos cidadãos em Peckham ou em Pittsburg agora colocavam Rachmaninov e Vladimir Horowitz em confronto direto. Algo do mundo da competição esportiva passou a fazer parte do jogo musical” (LEBRETCH, 2008, p. 20). 160 Além dos ruídos decorrentes da captação, quanto do chiado provocado pela agulha, os discos de 78 rotações precisavam ser virados ou trocados frequentemente, muitas vezes no meio de um movimento. Com a chegada do Long Play na década de 1940, disco com maior duração de música de cada lado, esse problema foi sanado, reduzindo drasticamente os custos de produção. 161 Formado em 1947 por quatro judeus (sendo que três deles se conheceram em campos de refugiados judeus na Inglaterra durante a segunda guerra mundial), o Quarteto Amadeus esteve em atividade até 1987 quando a morte de seu violista encerrou as atividades do grupo. O Quarteto Amadeus pode ser considerado o primeiro quarteto da era moderna, gravando extensivamente e viajando ao redor do mundo. O quarteto obteve fama desde seu primeiro concerto, o que Snowman explica por não haver na época quartetos profissionais em atividade em Londres, devido à

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no quarteto de cordas foi grande: ela disseminou o trabalho de conjuntos famosos para milhões de pessoas que nunca os tinham escutado em concerto. Também se tornou uma valiosa ferramenta para o estudo da performance (STOWELL, 2003, p. 61).

6.2 A democratização do quarteto de cordas

No final do século XIX, ainda era possível a um violinista virtuose como Joachim de ir de cidade em cidade tocando a cada vez com três outros instrumentistas contratados localmente. Cada grupo era conhecido como “Quarteto Joachim”162 e dizem que o grande homem tocava de pé enquanto os outros estavam sentados. No século XX, a tradição de dar nome a um quarteto em função de seu chefe, quase sempre o primeiro violino, se perpetuou, se bem que nesta época a predominância de uma figura como Adolf Busch163 tenha somente sido a justa afirmação de uma personalidade na qual o gênio musical dava ao conjunto que ele incorporava o seu caráter distinto. Porém, com o tempo, tudo meio que se democratizou, e se tornou de bom tom para os quartetos de não usar o nome de ninguém, [...] de ter um funcionamento o mais democrático possível. Em outros termos, os quatro membros do quarteto164 sempre exprimiram suas opiniões sobre todas as questões, musicais ou outras, e cada se submete deliberadamente à análise e críticas dos outros três (SNOWMAN, 1981, p. 96-97).165 guerra que acabara recentemente. Os músicos de destaque da época estavam mortos, ou “enferrujados” devido aos combates, tornando a acolhida de um conjunto em 1947 muito bem-vinda pelo público de Londres, em pleno boom musical e cultural que seguiu após a guerra (SNOWMAN, 1981, p. 60-71). Lebretch sugere que o fato de ser um “quarteto formado por três refugiados austríacos-alemães e um judeu britânico” de alguma maneira influenciou o contrato obtido pelo grupo com a gravadora Deutsche Grammophon, empresa com fortes laços com os nazistas, que, controlada pela Siemens e Halske, empregou cerca de 60.000 pessoas em situação de trabalho escravo durante a Segunda Guerra Mundial. O diretor da gravadora, Ernst von Siemens (1903-1990), primo de Adolf Hitler (1889- 1945), contratou uma diretora judia, que escapara do campo de concentração Theresienstadt, Elsa Schiller (1897- 1974), para restaurar a credibilidade da gravadora no mercado internacional, que por sua vez contratou o Quarteto Amadeus (LEBRETCH, 2008, p. 47-51). 162 Esse tipo de iniciativa seria impensável no século XX por conta da gravação, que elevou o nível técnico das apresentações, especialmente com os concertos gravados ao vivo. 163 Adolf Busch (1891-1952), violinista, regente e compositor suíço-alemão, foi primeiro violinista do quarteto que levava seu nome, fundado em 1919. O quarteto alcançou grande renome, no período entre as duas guerras, chegando a produzir importante discografia. Adolf Busch foi professor de Yehudi Menuhin (1916-1999). Apesar de não ser judeu e de ter um reconhecido nome na Alemanha, Adolf Busch, ferrenho opositor ao nazismo, se auto-exilou na Suíça e ao receber emissários de Hitler para que “o maior violinista alemão retornasse ao seu país”, teria dito que “retornaria feliz, no dia em que Hitler, Goebbels e Göring fossem publicamente enforcados”. Adolf Busch. (27 de Mar. 2016). In: Wikipedia, The Free Encyclopedia. Disponível em: . Acesso em: 13 de mai. 2016. 164 O autor aqui se refere ao Quarteto Amadeus, mas podemos afirmar se tratar de uma tendência na maior parte dos conjuntos surgidos após as primeiras décadas do século XX. 165 Vers la fin du XIXe siècle, il était encore possible à un violiniste virtuose tel que Joachim d’aller de ville en ville en jouant à chaque fois avec trois autres membres recrutés sur place. Chaque groupe était connu sous le nom de “Quatuor Joachim”, et l’on rapporte même que le grand homme restait debout alors que les autres étaient assis. Au XXe siècle, la tradition de nommer um quatuor d’après son chef, presque toujours le premier violon, s’est perpétuée, encore qu’à cette époque la prédominance d’une figure comme celle d’Adolf Busch n’ait été que la juste affirmation d’une personnalité dont le génie musical conférait à l’ensemble qu’il animait son caractère distinctif. Avec le temps, cepandant, tout s’est de plus en plus démocratisé et il est devenu de bon ton pour les quatuors de ne pas se donner un

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O quarteto de cordas foi um gênero muito popular ao longo do século XX, mesmo apesar de duas guerras que interromperam o fluxo da produção cultural durante alguns anos. Mesmo em uma época (antes da Primeira Guerra Mundial 1914-1918) na qual os homens dominavam as orquestras em uma maioria esmagadora, a presença de mulheres em quartetos de cordas profissionais era bem aceita, especialmente na Inglaterra. Desse período destacamos grupos inteiramente formados por mulheres, como o Quarteto Norah Clench, grupo no qual Rebecca Clarke (1886-1979) era violista,166 e o Quarteto Langley-Mukle. Além disso, grupos mistos eram comuns nessa época (HORNBY, MAW, 2010, p. 251-252). Também se populariza o mecenato privado subsidiando grupos estáveis, como o Quarteto Flonzaley (STOWELL, 2003, p. 15).167

Nos últimos anos do século XIX, o protótipo do quarteto de cordas moderno surgiu: democrático, virtuosístico, bem ensaiado e não mais preso a uma localidade, mas disposto a viajar em busca de trabalho. Fazia-se necessário abraçar a ética de trabalho porque os cachês dos concertos tinham que ser divididos em quatro partes iguais: um violinista de primeira linha como Adolf Busch receberia o mesmo valor tocando uma obra solo do que todo o seu quarteto receberia tocando o equivalente a três obras em uma noite (STOWELL, 2003, p. 60).168

nom de personne, [...] d’avoir um fonctionnement aussi démocratique que possible. En d’autre termes, les quatre membres du quatuor ont toujours exprimé leur opinion à l’égard de toutes les questions, musicales ou autres, et chacun d’eux se soumet délibérément à l’examen et aux critiques des trois autres. 166 BRISCOE, 2004, p. 295 167 A história do Quarteto Flonzaley é bastante peculiar. A esposa do banqueiro suíço-americano Edward Coppet (1855-1916) era uma pianista amadora que apreciava tocar em conjuntos de câmara. Seu marido mantinha um quarteto de cordas para esse fim. Quando o primeiro violinista faleceu em 1902, Coppet, de férias em Lausanne, Suíça, pediu a um vizinho violinista, Alfred Pochon (1878-1959), que fosse a Nova Iorque substituir esse violinista. Após o estabelecimento de Pochon na America, Coppet o indaga sobre que medidas tomar para melhorar o conjunto. Pochon então sugere ao banqueiro que financie um grupo permanente de músicos selecionados por ele (com um contrato de exclusividade voltado ao quarteto), entre os melhores disponíveis na Europa. Assim nasce o Quarteto Flonzaley, nome que vem da propriedade que Coppet mantinha em Lausanne. Além de concertos privados, o grupo também mantinha numerosos concertos públicos (cerca de 2.500 concertos nos Estados Unidos e 500 na Europa, em 27 anos de existência), além de turnês, sendo um dos grupos pioneiros na gravação, tendo uma grande gama de obras gravadas. O conjunto também fez a estreia americana de importantes obras, como peças de Stravinsky, Milhaud e Schoenberg (SAMUELS, 1988, p. 25-26). A lista completa das gravações feitas pelo quarteto está discrimidada por Samuels (1988, p. 33-62) e alguns desses registros são facilmente encontrados na internet, em canais como o YouTube.com. 168 In the last years of the nineteetn century, the prototype of the modern string quartet ensembles emerged: democratic, virtuosic, well rehearsed and no longer tied too one locality but willing to travel in search of work. It was necessary to embrace the work ethic because concert fees had to be split four ways: a front-rank violinista such as Adolf Busch would receive as much for playing one concerto as his entire quartet would earn for playing the equivalent of three concertos in an evening.

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Outro fator que exerceu forte influência na propagação do quarteto de cordas foi o uso, a partir da década de 1960, do avião a jato, que substituiu o trem e o navio nas longas viagens, encurtando distâncias e permitindo, junto com a gravação, o acesso e a inclusão de novos mercados consumidores, em países como o Japão. Graças ao avião, a área de atuação de famosos conjuntos foi global: “Quando perguntamos aos seus membros [do Quarteto Amadeus] para enumerar os países onde tocaram, eles respondem tentando listar ao invés os países onde não tocaram” (SNOWMAN, 1981, p. 70).169

6.3 O repertório

Mesmo seguindo a forma e a linguagem estabelecidas pelo modelo vienense, o quarteto de cordas no século XX irá coexistir com outras novas formas e disposições. “Não há como até então um caminho único, mas numerosos caminhos diferentes que às vezes se cruzam” (FOURNIER, 2014, p. 199). 170 Já no final do século XIX, Wagner e Liszt haviam significativamente expandindo o campo da harmonia, era difícil acomodar este cromatismo proposto por eles em formas tradicionais, dependentes da harmonia. Novas formas surgem, para compensar essa ampliação harmônica (GRIFFITHS, 1987, p. 13).

Mesmo não tendo escrito uma obra muito extensa para o conjunto, o quarteto teve um papel importante nos novos rumos propostos por Arnold Schoenberg na passagem para a atonalidade. O quarteto no 1 em Ré maior, de 1905, apesar de se incluir em uma estética mais voltada para um romantismo tardio, na linha de Wagner e Richard Strauss (1864-1949), na opinião de Payne sofreu de um certo preconceito gerado por suas obras atonais, “invalidando a realização expressiva dos anos anteriores” (PAYNE, 1972, p. 166).171 Mesmo assim, a estreia pelo quarteto Rosé172 foi um fracasso.173 O segundo quarteto, Op. 10 (1908), marca um momento

169 Lorsqu’on demande à ses membres d’énumérer les pays où ils ont joué, ils répondent en essayant plutôt de recenser ceux où ils ne se sont pas produits. 170 Il n’y a pas, comme jusqu’alors, une voie unique mais de nombreux chemins différents qui parfois se croisent. 171 [has seemed to] invalidate the expressive achievement of the previous years. 172 Quarteto de cordas formado em 1882 pelo violinista Arnold Rosé (1863-1946), em atividade até 1938. Grupo baseado em Viena, teve importante participação na vida cultural da cidade. Arnold Rosé foi spalla da Filarmônica de Viena por cerca de meio século e trabalhou diretamente com compositores como Brahms e Schoenberg. 173 Ao terminar a composição de seu primeiro quarteto, Schoenberg o mostrou a Gustav Mahler (1860-1911), que disse ao compositor: “Eu já regi as mais difíceis grades de Wagner, também escrevi música complicada em partituras de até trinta pautas e mais; e mesmo assim esta música não tem mais de quatro pautas, mas sou incapaz de as ler”.

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importante na sua obra: “O segundo quarteto [...] marca a transição para a minha segunda fase. Neste período renunciei a um centro tonal – um processo chamado erroneamente de atonalidade” (SCHOENBERG apud SIMMS, 2003, p. 259).174 Para Simms, esse quarteto reflete uma crise pessoal ocorrida durante a composição da obra, podendo ser dividida em duas partes, sendo os dois primeiros movimentos em um estilo razoavelmente acessível e próximo às normas clássicas. Os dois últimos movimentos, com a adição de uma voz soprano cantando um poema de Stefan George (1868 – 1933), fazem referência a seu drama pessoal175 e como artista, que então não faz mais questão de agradar mais ao público, “abandonando, pelo menos temporariamente, suas aspirações por uma popularidade convencional como compositor” (SIMMS, 2003, p. 267-270).176 O abandono da harmonia tradicional era visto por Schoenberg como uma inevitável consequência do que vinha antes, mas trazia um sofrimento, pois abandonar a harmonia tradicional era renunciar à tradição austro-germânica, música de que mais gostava, de Bach a Brahms (GRIFFITHS, 1987, p. 25). O terceiro e o quarto quartetos (1927 e 1936) foram escritos de maneira totalmente atonal. Schoenberg também escreveu um Concerto para quarteto de cordas e orquestra em Si♭ maior (1933), que é uma transcrição de uma obra de Georg Friedrich Haendel (1685-1759).

Se Schoenberg nunca ficou muito distante da forma sonata, o mesmo não se deu com Anton Webern (1883-1945), que, assim como Igor Stravinsky (1882-1971) e suas três peças para quarteto de cordas, já desde seus Cinco movimentos op. 5 (1909) questiona a forma tradicional. Inspirado pela atonalidade do segundo quarteto de Schoenberg, mas adepto da forma pequena, Webern escreveu também as 6 Bagatelas Op. 9 (1913) e sua obra final, o quarteto op. 28 (1938), obra neoclássica (FOURNIER, 2014, p. 211-214). Seu colega Alban Berg (1885-1935) também escreveu dois quartetos de cordas em uma época mais avançada de sua vida, o 1o quarteto op. 3 (1910) e a Suíte Lírica (1926), considerado o primeiro quarteto de cordas verdadeiramente serial.

Após o fracasso da estreia, Mahler, que estava presente, disse à sua esposa Alma (1879-1964): “Eu não entendo sua música, mas ele é jovem e talvez ele esteja com a razão. Eu estou velho e ouso dizer que meu ouvido não é sensível o suficiente” (apud SIMMS, 2003, p. 262-263). 174 The second string quartet... marks the transition to my second period. In this period I renounced a tonal centre – a procedure incorrectly called atonality. 175 Simms, por meio das cartas entre o compositor e sua esposa Mathilde (1877-1923), irmã do compositor Alexander von Zemlinsky (1871-1942), explica que, durante a composição do quarteto nº 2, Mathilde abandonou marido e filhos para ter um caso com um amigo do casal, o pintor Richard Gerstl (1883-1908). Pouco depois Mathilde volta para casa e seu casamento, culminando com o suicídio de Gerstl (SIMMS, 2003, p. 260). 176 Abandoning at least temporarily his aspirations for a conventional popularity as a composer.

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Os seis quartetos de cordas do húngaro Béla Bartók (1881-1945) são considerados algumas das obras mais significativas do século XX. Compositor nacionalista, era muito ligado ao folclore, mas ao mesmo tempo sempre receptivo a outras influências de outras culturas: “Meu verdadeiro objetivo, escreveu, é a fraternidade das nações. [...] Procuro colocar minha música a serviço desta ideia, [...] e é por isso que não me fecho a nenhuma influência, seja de origem eslovaca, romena, árabe ou qualquer outra” (BARTÓK apud GRIFFITHS, 1987, p. 53). Durante quinze anos viajou pela Hungria e países vizinhos junto com seu amigo Zoltán Kodály (1882- 1967), recolhendo elementos folclóricos, como faria Villa-Lobos (1887-1959) pelo Brasil alguns anos mais tarde. Todo o folclore foi registrado com um gravador e utilizado em seus quartetos de cordas, para Lebretch, “as primeiras obras-primas que devem sua existência ao ato de gravar” (2008, p. 26). Bartók não somente fez uso do folclore, tanto húngaro como também dos países vizinhos, mas o manipulou para se afastar da harmonia tradicional, recuperando os antigos modos e ritmos primitivos presentes nas antigas canções tradicionais, mas sem caminhar para o atonalismo177 (GRIFFITHS, 1987, p. 55). Desenvolvendo uma linguagem própria, incluindo novas notações e efeitos, como o Pizzicato Bartók,178 seus quartetos continuam sendo obras populares e frequentemente tocadas.

O realismo soviético foi uma imposição dos dirigentes do Partido Comunista na primeira metade do século XX, um movimento visando à eliminação das influências ocidentais na vida intelectual da sociedade soviética. No âmbito da música, as diretrizes políticas coibiam o uso do formalismo, atonalismo, dissonâncias e, na busca por uma “pureza na Arte”, estimulavam a música baseada em um texto, seguindo os princípios composicionais e harmônicos da música russa folclórica tradicional, uma música que servia aos propósitos políticos do partido (SLUSSER, 1956, p. 116). A música de câmara ia contra a estética oficial, por ser uma música que atraía um público mais seleto, considerada por demais “refinada” e “sutil” para as massas com pouca ou nenhuma educação formal. Sendo assim, a música de câmara sofreu uma considerável queda na sua produção no período (CLARK, 2013, p. 575). A sinfonia foi eleita como o gênero que melhor definia a música realista (posteriormente a ópera também foi um

177 Para Pierre Citron, era importante para Bartók que sua música não fosse separada da massa em momento algum, e portanto, “uma música popular atonal é inconcebível” (CITRON apud FOURNIER, 2014, p. 226). 178 Pizzicato no qual a corda é pinçada em um movimento vertical, de cima para baixo, produzindo um efeito percussivo ao mesmo tempo que melódico.

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gênero muito estimulado pelo partido, pela possibilidade de poder trabalhar temas históricos), e foi nesse contexto que Dmitri Schostakovich (1906-1975) escreveu seu primeiro quarteto em 1938, justificando sua composição nessa área simplesmente como um exercício para aprimorar suas futuras sinfonias. Obra sem grandes complicações na forma ou nas texturas, que nas palavras do autor era uma obra simples, com “um caráter alegre, leve e lírico. Eu diria um caráter de primavera” (SCHOSTAKOVICH apud CLARK, 2013, p. 576).179 De fato, a primavera se tornou na década de 1930 um tema recorrente na arte oficial, aprovada pelo governo.

Segundo Clark, a partir de 1937 jovens artistas soviéticos como David Oistrakh (1908-1974)180 começaram a ganhar prestigiados concursos internacionais na Europa, o que foi motivo de orgulho para a nação soviética, mas alguns dirigentes começaram a reclamar da falta de espaço para essa nova juventude, com a quase onipresença da sinfonia. Foi nesse âmbito que houve um retorno do quarteto de cordas na sociedade soviética, com compositores como Serguei Prokofiev (1891-1953), que compôs duas importantes obras (1931 e 1941), e Schostakovich, que escreveu seus quinze quartetos (CLARK, 2013, p. 580). A obra de Schostakovich pode ser dividida em duas fases: os seis primeiros quartetos oscilam entre o classicismo e o pós- romantismo mahleriano, entre intimidade e sinfonismo, inspirados em Beethoven, Brahms e Bartók. A segunda fase se distancia desse modelo, usando mais frequentemente motivos de notas repetidas, como no caso de sua obra mais célebre, o oitavo quarteto, de 1960 (FOURNIER, 2014, p. 284-285).

Façanha admirável, o oitavo quarteto, o mais famoso do ciclo, foi escrito em três dias quando Schostakovich participava de uma viagem na Alemanha Oriental organizada para a filmagem de uma propaganda antifascista na qual ele deveria escrever a música. Atrás de uma dedicatória álibi às “vítimas do fascismo e da guerra”, é secretamente a ele-mesmo, vítima do stalinismo, a quem ele dedica este quarteto (FOURNIER, 2014, p. 286).181

Mesmo reutilizando temas de obras anteriores, o oitavo quarteto é monotemático, seus cinco movimentos constituindo variações desse tema, fazendo uso contínuo das notas DSCH

179 In its mood it is joyful, cheerful, lyrical. I would call it spring-like. 180 Importante violinista russo-ucraniano, um dos expoentes do instrumento no século XX. Possui uma extensa discografia. 181 Prouesse stupéfiante, le 8e Quatuor, le plus célèbre du cycle, fut écrit en trois jours alors que Chostakovitch participait à un voyange en Allemagne de l’Est organisé autor du tournage d’un film de propagande antifasciste dont il devait composer la musique. Derrière une dedicace alibi aux “victimes du fascisme et de la guerre,” c’est secrètement a lui-même, victime du stalinisme, qu’il dédie ce quatuor.

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(Ré Mi ♭ Dó Si), um monograma musical em cima do nome do autor, assim como Johann Sebastian Bach (1685-1750) fez anteriormente (KELDYSH, 1961, p. 226). Esse motivo é recorrente em sua obra, presente também no quinto e sétimo quartetos e na décima sinfonia (O’LOUGHLIN, 1974, p. 745). Para Keldysh, o uso de material temático reaproveitado de obras anteriores mostraria que essa luta contra as forças negativas da existência (o quarteto é dedicado às vítimas do fascismo) faria parte da existência do compositor ao longo de toda sua obra, uma constante em sua trajetória (1961, p. 226).

Compositores como Zemlinsky, Leoš Janáček (1854-1928), Ernő Dohnányi (1877- 1960), Kodály, Benjamin Britten (1913-1976), Charles Ives (1874-1954), Michael Tippett (1905- 1998), Luciano Berio (1925-2003), produziram uma importante obra para quarteto de cordas.182

A partir da década de 50, novas experimentações no campo do quarteto trazem diferentes caminhos, seja por um rompimento total com a tradição, seja por compositores querendo seguir a tradição de Viena, ou mesmo outros querendo mesclar uma estética moderna com valores estilísticos mais antigos.

Colocando uma primazia no lado racional da música acima do emocional, ou mesmo do belo, se destacam os seis quartetos do americano Milton Babbitt (1916 – 2011), o livro para quarteto de Pierre Boulez (1925 – 2016), as duas obras do italiano Bruno Maderna (1920 – 1973), e a obra de peças curtas no estilo de Webern, do húngaro György Kurtág (1926). Nesta busca por uma nova estética também se sobressaem os quatro quartetos do americano John Cage (1912 – 1992) e o italiano Giacinto Scelsi (1905 – 1988), que em seus cinco quartetos introduz novos recursos como a scordatura nos quatro instrumentos, permitindo a realização de acordes que não seriam viáveis da maneira tradicional.

Luigi Nono (1924 – 1990) em sua única obra para o gênero (Fragmente-Stille, An Diotima) tenta um ponto de equilíbrio entre uma nova linguagem com referências ao passado,

182 Para uma análise aprofundada sobre a produção de quartetos de cordas nos séculos XX e XXI, consultar os capítulos The string quartet in the twentieth century (STOWELL, 2003, p. 228-309), Le renouveau du quatuor (FOURNIER, 2014, p. 199-242), La période 1900-1940, à l’ombre des grands phares du renouveau (FOURNIER, 2014, p. 243-265), La période contemporaine (FOURNIER, 2014, p. 267-309), Part Four (GRIFFITHS, 1985, p. 169-227) e os livros de Bernard Fournier Histoire du Quatuor à cordes, tome 2: De 1870 à l’entre-deux-guerres (2004) e Histoire du Quatuor à cordes, tome 3: De l’entre-deux-guerres au XXIe siècle (Paris: Librairie Arthème Fayard, 2010).

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com citações do op. 132 de Beethoven. Outras importantes obras são os cinco quartetos de Elliott Carter (1908 – 2012), e o quarteto Ainsi la nuit de Henri Dutilleux (1916 – 2013).

A tecnologia também foi utilizada por alguns autores no processo composicional do quarteto, em especial através de sons pré-gravados. Iannis Xenakis (1922 – 2001) a utilizou em seus quartetos, assim como Karlheinz Stockhausen (1928 – 2007) em seu Helikopter- streichquartett de 1993, que além do quarteto de cordas necessita para sua execução de quatro helicópteros e seus pilotos.

Dentre os compositores que permaneceram na tradição clássica do quarteto, mesmo podendo ser dodecafônicos ou com linguagens modernas, destacam-se Ernest Bloch (1880 – 1959), Paul Hindemith (1895 – 1963), Darias Milhal (1892 – 1974), Benjamim Britten (1913 – 1976), Hans Werner Henze (1926 – 2012), Peter Maxwell Davies (1934), Édith Canat de Chizy (1950) e Heitor Villa-Lobos, 183 entre outros.

Outro movimento que teve origem nos Estados Unidos da América foi o minimalismo, com “um discurso sem finalidade, sem a necessidade teológica de um resultado discursivo, e um acompanhamento sem temas” (FOURNIER, 2014, p. 305).184 Uma obra representativa deste movimento é o famoso quarteto Different Trains de Steve Reich (1936). Nesta peça, para quarteto de cordas e banda magnética, Reich contrapõe a sua experiência de filho de pais divorciados, e que moravam em pontos opostos do país, obrigando o compositor a transitar frequentemente entre os dois pontos entre 1939 e 1942, em uma viagem de três dias de trem, e a memória dos deportados judeus que eram levados aos campos de concentração na mesma época, na Europa. Reich insinua que se ele morasse nesta época na Europa, seriam “diferentes trens” que ele teria pego.

Compositores como Zemlinsky, Leoš Janáček (1854-1928), Ernő Dohnányi (1877- 1960), Zoltán Kodály (1882 – 1967), Charles Ives (1874-1954), Michael Tippett (1905-1998), e Luciano Berio (1925-2003) entre outros, produziram uma importante obra para quarteto de cordas.185

183 A obra de Villa-Lobos será abordada no terceiro capítulo desta tese. 184 Un discours sans finalité, sans nécéssité téologique d’un aboutissement discursif et un acompagnement sans thèmes. 185 Para uma análise aprofundada sobre a produção de quartetos de cordas nos séculos XX e XXI, consultar os capítulos The string quartet in the twentieth century (STOWELL, 2003, p. 228-309), Le renouveau du quatuor

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CAPÍTULO 2 – SUBSÍDIOS PARA A PRÁTICA

1 Quatro músicos, uma voz

Os princípios gerais que norteiam a prática de tocar junto, no caso em questão o quarteto, parecem ser bastante óbvios: estilo, homogeneidade, e a bem-sucedida mistura das qualidades dos instrumentistas. [...] No entanto, soar como um quarteto não é algo facilmente realizável, e a homogeneidade que parece ser tão simples é consequência de muitos detalhes que não podem ser alcançados ou mesmo apreciados sem antes ter passado por um vasto pensamento crítico (NORTON, 1966, p. 21-22).186

Quatro pessoas, com suas distintas personalidades e maneiras de tocar, devem passar ao público a impressão de que se transformam em uma “unidade orgânica de personalidade, uma espécie de individualidade coletiva que caracteriza um conjunto, diferenciando-o de outro”. (RAABEN, 2003, p. 18). Quatro indivíduos tocando juntos não formam necessariamente um quarteto de cordas se não houver uma unidade de pensamento e expressão. Para tanto, alguns aspectos podem ser observados, com base em experiências realizadas por destacados grupos de música de câmara e teóricos, visando a prover subsídios para o aprimoramento do conjunto na prática de quartetos.

1.1 Unidade sonora

Para a obtenção de unidade sonora, diversos grupos procuram tocar de maneira similar, buscando inclusive instrumentos com características acústicas semelhantes, em termos de cores e projeções. O violista Lionel TERTIS (1950, p. 148) defende essa ideia, porém

(FOURNIER, 2014, p. 199-242), La période 1900-1940, à l’ombre des grands phares du renouveau (FOURNIER, 2014, p. 243-265), La période contemporaine (FOURNIER, 2014, p. 267-309), Part Four (GRIFFITHS, 1985, p. 169-227) e os livros de Bernard Fournier Histoire du Quatuor à cordes, tome 2: De 1870 à l’entre-deux-guerres (2004) e Histoire du Quatuor à cordes, tome 3: De l’entre-deux-guerres au XXIe siècle (Paris: Librairie Arthème Fayard, 2010). 186 The general principles of playing together, as epitomized in the string quartet, would seem fairly obvious: style, homogeneity, and the happy blending of the individual player’s qualities. [...] Only that quartet style is not easily achieved, and the homogeneity that sounds so simple depends on many details which cannot be worked over or appraised without much critical thought.

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reconhecendo que é muito difícil obter quatro instrumentos com as mesmas características sonoras, com raras exceções.187 Peter Oundjian,188 vai além nessa concepção, defendendo o uso de quatro instrumentos que não sejam demasiado brilhantes ou com muita personalidade, para que nenhum se sobressaia facilmente (EISLER, 2000, p. 46). Essa opinião também é compartilhada por Paolo Borciani 189 (1973, p. 17), defendendo a ideia de que quatro instrumentos, por maior que seja sua qualidade individual, se tiverem timbres muito diferentes, marcarão com sua inerente personalidade todo o repertório abordado pelo conjunto. Borciani define a concepção do quarteto como um único instrumento de dezesseis cordas, com alcance entre o dó grave do violoncelo até os agudos dos violinos, passando pela viola. O Quarteto da Juilliard também imagina a unidade sonora como decorrência do mesmo tipo de som, de vibrato, de pressão do arco e todos os recursos disponíveis para a coloração sonora (RHODES apud EISLER, 2000, p. 33). Porém nem todos os grupos seguem esse raciocínio, como é o caso do Quarteto Guarneri, argumentando que timbres e articulações semelhantes não significam automaticamente uma unidade sonora e que as personalidades individuais são essenciais na música:

Existe uma crença de que tocar em quarteto demanda uma constante unidade de estilo e de abordagem. Temos de lembrar sempre que um quarteto é baseado em quatro vozes individuais. O fato de que devemos coordenar e encontrar um equilíbrio não significa que devemos anular nossas personalidades. [...] Alguns quartetos dão uma grande prioridade em sacrificar as diferenças individuais; eles trabalham muito para obter uma fusão para que os quatro instrumentistas soem o mais parecido possível. [...] Porém, nossa abordagem é bastante diferente. [...] Não consigo imaginar quatro instrumentistas mais diferentes em certos aspectos do que nós somos (BLUM, 1987, p. 3).190

187 Alguns luthiers construíram quartetos de instrumentos a partir de madeiras da mesma árvore, com o intuito de que esses instrumentos fossem utilizados em quartetos de cordas, tendo timbres similares. O mais famoso deles foi o conjunto construído por Jean-Baptiste Vuillaume em 1863 e apelidado de “Os Evangelistas”, tendo cada instrumento do quarteto recebido o nome de um evangelista (Matheus, Lucas, Marcos e João). 188 Peter Oundjian (1955), é um violinista e regente canadense. Vencedor de concursos internacionais, foi por quatorze anos primeiro violinista do Quarteto de Tokyo. Após o surgimento de problemas musculares, se voltou para a regência. 189 Paolo Borciani (1922-1985) foi primeiro violino e fundador do Quarteto Italiano, importante conjunto em atividade entre 1945 e 1980. Atualmente há um concurso internacional para quartetos de cordas que leva o nome de Borciani. 190 There’s a widespread belief that string-quartet playing demands a constant unanimity of style and approach. Yet it should be remembered that a quartet is based on four individual voices. The fact that we have to coordinate and find a proper balance doesn’t mean that any of us should become faceless. [...] Some quartets do give high priority to sacrificing individual differences; they work hard to blend together so that the four players sound as alike as possible. [...] However, our approach is quite different. [...] I cant’t imagine four musicians more different from one another in certains ways than we are.

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Para esses instrumentistas, a unidade sonora não é determinada por uma filosofia pré- concebida sobre como deve se tocar ou soar em quarteto, mas como uma consequência da concepção musical acerca da obra a ser trabalhada no momento. Page (1964, p. 7-8) resume esse pensamento ao explicar que em certos conjuntos com instrumentos do mesmo autor e uma interpretação semelhante não é possível definir quem está tocando, porém o importante não seria ter o mesmo som, mas conseguir uma fusão satisfatória dos quatro instrumentos. Cada obra requer uma sonoridade e articulações diferentes, não existe uma regra definida. “Uma passagem em semicolcheias pode soar bem quando tocada pelos violinos, mas não ter tanta clareza quando repetida pelos violoncelos. Os violoncelos devem então articular diferentemente dos violinos.”191 O mesmo se dá quando uma frase passa do violino para a viola: “não sentimos necessariamente que deve ser tocado exatamente da mesma maneira. É um outro registro, outro timbre; esta diferença é algo que procuramos, ao invés de tentar evitar” (BLUM, 1987, p. 4).192 O Quarteto Guarneri também optava frequentemente por arcadas diferentes em linhas semelhantes entre os instrumentos, de maneira a garantir o conforto de cada instrumentista, porém respeitando o mesmo fraseado. O grupo não mantinha uma preocupação de similaridade visual, mas auditiva (BLUM, 1987, p. 54). Para Michael Tree,193 “é meu trabalho fazer minha frase soar semelhante à do meu colega, mesmo se estamos com arcadas diferentes” (TREE apud BLUM, 1987, p. 6).194 Sobre a simetria das arcadas, Norton (1966, p. 74) acredita que é necessário fazer uso do termo “sempre que possível”,195 por diversos motivos. Entre eles, as características de cada instrumento e sua emissão sonora devem sempre ser levadas em conta. Mais importante do que executar as mesmas arcadas, cada instrumentista deve ter o cuidado de não interromper as frases nas mudanças de arco, optando por mudanças quase imperceptíveis que não alterem o sentido musical do momento (NORTON, 1966, p. 43).

191 A certain sixteenth-note figure may sound fine when played by the violins but be less clearly heard when repeated by the cellos. The cellos are then obliged to articulate differently from the violins. 192 We don’t necessarily feel that it must be played in the exactly the same way. It’s another register, another timbre; that difference is something which we look for rather than try to avoid. 193 Michael Tree (1934), violista do Quarteto Guarneri. 194 It’s my job to make my phrasing sound similar to his, even if we aren’t actually bowing in the same manner. 195 Wherever possible.

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1.2 Equilíbrio

Um conjunto satisfatório é dificilmente atingido sem um equilíbrio entre os instrumentistas. Paolo Borciani explica que, apesar de quatro bons instrumentistas não formarem necessariamente um bom quarteto, o oposto não se aplica, visto que para conceber um conjunto de qualidade fazem-se necessários quatro instrumentistas de nível elevado. Afinal, não existem linhas sem importância, somente vozes subordinadas a outras em constante alternância (EISLER, 2000, p. 49).

O desequilíbrio de vozes é uma herança de uma longa tradição com raízes nos conjuntos do século XIX, que, além de levarem o nome do primeiro violino, tinham nos três outros instrumentistas frequentemente um papel coadjuvante.196 Porém essa é uma tendência que está aos poucos se transformando. A própria escrita para o quarteto de cordas a partir do século XX em diante continuadamente acrescentou dificuldades em todas as partes, distribuindo a complexidade dentro das quatro vozes, assim como as melodias, e não somente um primeiro violino acompanhado por três pessoas. Quartetos como os de Bartók, por exemplo, exigem quatro instrumentistas de níveis igualmente avançados e um segundo violino ou viola mais fracos tornariam a execução aquém do desejável. Nos dias de hoje ainda perdura uma concepção errônea de que músicos de câmara seriam músicos de segunda classe, que não teriam conseguido uma carreira de solista. Na verdade, o repertório para quarteto frequentemente apresenta dificuldades semelhantes aos mais difíceis concertos solos, e muitos cameristas desistiram de carreiras de solista para abraçar o quarteto, como Arnold Steinhardt e Mikhail Kopelman, vencedores de importantes concursos internacionais.197 A propensão dos conjuntos atuais é de ter quatro instrumentistas equitativamente fortes e é cada vez mais comum encontrar grupos nos

196 Sobre esses conjuntos, consultar no primeiro capítulo deste presente trabalho as subpartes 5.2: A escola de violino francesa e o quarteto brilhante, e 5.3: A profissionalização do quarteto de cordas e grupos atuantes. 197 Arnold Steinhardt obteve a primeira colocação no Concurso Leventritt em 1958 e a medalha de bronze no Concurso Rainha Elizabeth de 1962. Mikhail Kopelman, antigo primeiro violinista do Quarteto Borodin e do Quarteto de Tokyo e atualmente primeiro violino do conjunto que leva o seu nome, obteve a medalha de prata do Concurso Long-Thibaud de 1973.

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quais os primeiro e segundo violinos alternem de função a cada obra, como o Quarteto Emerson, o Quarteto Orion ou o Quarteto Casals.198

Mesmo almejando como objetivo final uma unidade sonora, cada instrumentista exerce uma função diferente no grupo. “Cada instrumento detém uma posição única e essencial dentro do conjunto, com uma função específica a ser desempenhada em toda a literatura de quarteto, das obras mais antigas às mais modernas (FINK, MERRIELL, 1985, p. 15).199 Ou seja, não há instrumento menos importante do que os outros.

1.2.1 O primeiro violino

Pela escrita dos primeiros quartetos, o primeiro violino mantinha um certo destaque dentro do grupo e é muito frequente que, mesmo em obras dos séculos XIX e XX, a voz desse instrumento, por ser a mais aguda, seja favorecida em termos de solos versus acompanhamento. Por esse motivo, o primeiro violinista deve assumir a liderança musical em diversos momentos, o que não significa atribuir-se a ele um papel de predominância durante todo o tempo: “ele deve estar pronto para se tornar quase insignificante, se juntando às cores e texturas, assim como os outros o fazem constantemente” (NORTON, 1966, p. 25).200 Mesmo em uma época na qual o primeiro violinista era considerado efetivamente o líder do conjunto, Alfredo Betti, primeiro violinista do Quarteto Flonzaley, afirmava:

Alguém escreveu em algum lugar que o primeiro violino é um regente sem batuta. Não é bem por aí, acredito eu. O primeiro violino não pode e não deve ter uma rigidez inflexível, o despotismo de um regente, para o qual uma quase irrestrita liberdade de expressão pode ser permitida. O regente é um virtuose tocando em um instrumento maravilhoso, a orquestra. O líder de um quarteto é uma parte – às vezes uma parte proeminente e dominante – mas mesmo assim uma parte de um todo. Consequentemente ele deve se ajustar aos outros, ser mais elástico e menos rígido do que um regente. [...]

198 O Quarteto Emerson, conjunto americano formado em 1976, continua sendo um dos conjuntos mais conhecidos e atuantes da atualidade, mesmo após uma recente troca de violoncelistas. Também americano, o Quarteto Orion surgiu em 1987, sendo constituído por dois irmãos violinistas. Sendo o mais novo dos três, o Quarteto Casals foi criado em 1997 em Madri, Espanha. 199 Each instrument holds a unique and essential position within the ensemble and has it own special function to perform in all quartet music, from early through modern. 200 It must be ready to drop down into insignificance, feeling itself a part of the general color and texture, just as constantly as the others do.

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Ele deve estar sempre presente, mas às vezes deve deixar as pessoas esquecerem de que ele está lá (BETTI, 1923, p. 1-2).201

Mesmo no final do século XIX, quando Joachim mantinha um grupo estável, sem tantas trocas de elementos, ele constantemente se referia ao seu quarteto como “nossa pequena república de quatro vozes”,202 renegando uma postura ditatorial do primeiro violino (NORTON, 1966, p. 27).203 Steinhardt, ao explicar que o segundo violino, a viola e o violoncelo formam um bloco coeso, acredita que o primeiro violino seja o instrumentista mais fácil de se substituir em um quarteto (apud BLUM, 1987, p. 146). Norton (1966, p. 32) vai além nessa linha de pensamento, ao afirmar que um primeiro violino que seja incapaz de desempenhar satisfatoriamente as funções de segundo violino certamente não é um bom músico de câmara.

Primeiramente, não acredito que haja um só papel (do primeiro violino) a ser desempenhado. Como atores, músicos retratam muitos personagens em momentos diversos. É perigoso se ver como o primeiro violino. Em certo momento você é um solista, no próximo, acompanhamento. Há inclusive várias ocasiões quando a voz dominante passará do primeiro violino no registro agudo para outro instrumento no registro grave, enquanto o primeiro violino continua na coda Mi com um uma voz menos importante. Eu percebo frequentemente em grupos inexperientes que o primeiro

201 Someone has written that the first violin is a conductor without a baton. Not quite so, I believe. The first violinist cannot, must not, have the inflexible rigidity, the despotism of a conductor, to whom an almost unrestricted liberty of expression may be allowed. The conductor is a virtuoso playing on a marvelous instrument, the . The leader of a quartet is a part – sometimes a prominent, dominating part – but still a part of the whole. Hence he must adjust himself to the others, be more elastic, less rigid than the conductor. [...] He must always be there and yet at times let people forget that he is there. 202 Our little four-voiced republic. 203 A questão da liderança no conjunto e os conflitos que dela decorrem, mesmo não fazendo parte do foco do presente trabalho por estar mais voltada para a psicologia comportamental de grupos do que para a performance musical, é um importante assunto dentro da prática de quarteto. Em Some psychological processes in string quartets (1979), Young e Colman explicam que um grupo musical, pela sensibilidade necessária em lidar com detalhes muito subjetivos, torna-se um grupo social cujo modo de interação envolve um grau de intimidade e sutilidade não igualável por nenhum outro tipo de grupo. Estudos apontam que conjuntos de quatro pessoas têm maiores possibilidades de chegar a um impasse. Grupos de número impar resolvem suas questões pela maioria. Em um duo, ocorre um fenômeno chamado de processos de comparação social, baseado na necessidade do ser humano de ter seu julgamento subjetivo validado por outra pessoa, em vez de ficar só com a sua ideia. Com grupos pares maiores, não necessariamente o impasse envolve metade contra metade. Já no quarteto isso é possível. Os autores concluem que os quartetos são os coletivos mais sujeitos a conflitos do que outros grupos. Os autores mostram por meio de experimentos realizados que pessoas tendem a convergir suas opiniões sobre assuntos subjetivos quando em grupo, agindo inclusive diferentemente do que fariam se estivessem sós. Isso faria boa parte dos conflitos potenciais do quarteto se resolverem automaticamente, já que a maior parte dos problemas é subjetiva. Tradicionalmente, o primeiro violinista é o líder do conjunto. Mas mesmo exercendo essa função isso não é garantia de que ele tomará a maior parte das decisões relativas ao conjunto. Os autores explicam que, mesmo com o estabelecimento de um líder natural no grupo, isso por si só não garante o ambiente favorável ao crescimento do grupo. Young e Coleman citam um estudo conduzido em grupos testando três diferentes tipos de liderança, no qual os coletivos seguem uma liderança relapsa, uma liderança autoritária e centralizadora e uma liderança democrática. A liderança democrática é a única que obtém resultados satisfatórios junto ao desempenho dos conjuntos. Para maiores informações sobre o assunto, consultar YOUNG e COLMAN (1979, pp. 12-18).

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violinista toca somente um pouco menos forte nestes instantes, mas não atenua o suficiente para que tenhamos a impressão que o primeiro violino não possui mais a voz dominante. Um esforço consideravelmente maior é necessário da parte de todos para se chegar então a um equilíbrio. Em música de câmara existem dois conjuntos de dinâmicas: um para passagens solo, e outro para o acompanhamento. Mesmo quando você está tocando piano como solista, no instante no qual a sua parte subitamente vira acompanhamento, aquele piano deve diminuir drasticamente (STEINHARDT apud BLUM, 1987, p. 145).204

1.2.2 O segundo violino

São numerosos os quartetos nos quais, com exceção de um primeiro violino e um violoncelo de primeira categoria, figuram uma viola e mais frequentemente um segundo violino medíocres. Assim como a viola, o papel do segundo violino é de extrema importância e é um erro grave escolher um instrumentista que não tenha a qualidade necessária para desempenhar com dignidade tal atribuição, embora sem dúvida a literatura quartetística exija menos dele do que do primeiro violino. Qualidades de som e de temperamento, bem como outras características musicais, devem ser necessárias a um autêntico segundo violino, e não um primeiro violino de segunda classe (BORCIANI, 1973, p. 13).205

Carregando repetidas vezes o estigma de que “o instrumentista está nesta posição porque não tem a capacidade de tocar a parte de primeiro violino”206 (BLUM, 1987, p. 129), na realidade o segundo violino desempenha uma função primordial no quarteto, trazendo o segundo tão somente no nome. John Dalley207 inclusive recomenda ao segundo violino uma abordagem mais agressiva, e não um simples acompanhamento passivo, já que é necessário ao segundo violinista liderar o conjunto em muitos momentos. Fink e Merriell (1985, p. 45) advertem que um

204 Above all, I’d say that there’s not just one role. Like actors, musicians have to play many roles at different times. It’s dangerous to think of yourself as the first violin. One moment you may be a soloist; the next, an accompanist. There are, for example, many occasions when the leading voice will pass from the first violin in upper register to another instrument in a lower register, the first violin meanwhile continuing on the E string with a secondary voice. I often notice that in inexperienced groups the first violinist will play only a little softer at that moment, but not softly enough to dispel the impression that the first violin still has the dominant voice. A much greater effort is needed to rebalance. In chamber music you have to apply two sets of dynamics: one for solo passages, one for accompaniment passages. Even if you’re playing in piano as a soloist, the moment your part suddenly becomes an accompaniment, that piano should drop down dramatically. 205 Sono numerosi i quartetti nei quali, accanto a un primo violino e a un violoncelo di prim’ordine, figurando uma viola e anche più spesso un secondo violino mediocri. Come quello di viola, il ruolo di secondo violino è di estrema importanza ed è grave errore non scegliere uno strumentista che abbia le qualità necessarie per ricoprirlo dignamente, anche se esso è indubbiamente di menor impegno strumentale, in gran parte dela letteratura quartettistica, di quello sostenuto dal primo violino. Qualità di suono e di temperamento, oltre che doti musicali del tutto particolari, devono rivelare un autentico secondo violino, non un primo violino di second’ordine. 206 The player taking this position does so because he or she is not quite up to playing first violin. 207 John Dalley (1935), segundo violino do Quarteto Guarneri.

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acompanhamento por parte do segundo violinista sem uma condução firme, ou mesmo sem energia ou vitalidade, pode afetar negativamente a performance de um grupo. O famoso violista William Primrose (1904-1982) dizia do segundo violino de quarteto que o certo “não é sentar na cadeira e ser modesto” (DALLEY apud BLUM, 1987, p. 129).208

Michael Tree refuta a concepção de que o segundo violino e a viola seriam vozes de acompanhamento, sendo na verdade agentes fundamentais na concepção sonora e musical do conjunto (TREE apud BLUM, 1987, p. 113). Nas palavras de John Dalley,

o papel do segundo violinista dentro de um quarteto deve ser de dar suporte ao primeiro violinista, a fim de que este último seja liberado de tantas das tarefas que eram desempenhadas por primeiros violinos antigamente. Mas isto funciona em duas vias, há de se ter um primeiro violinista que renuncie de bom grado a algumas destas responsabilidades. Nos quartetos de antigamente, o primeiro violinista conduzia tudo em todos os compassos. Ele era, na realidade, um spalla, um líder, um regente. Quando ele faz isso constantemente, perde-se algo da espontaneidade, na minha opinião, da sua própria parte. Então o segundo violino pode ser, em um certo sentido, como um mini regente que pode controlar as três vozes mais graves, ou por pares, de acordo de como foi escrita a música em determinado momento. Nos quartetos de Haydn, ele pode certamente liberar o primeiro violinista de ter que se preocupar constantemente com o que as outras vozes estão tocando. Porque o primeiro violinista deve ficar livre e à vontade (especialmente em Haydn) para tocar o que quiser, e o segundo violinista deve de certa maneira estar apto a ler sua mente e transmitir seu pensamento aos outros. Nós nos demos conta de que em muitos momentos não funciona que a condução esteja a cargo do violoncelo, é difícil para o violoncelista liderar. Eu acho que isso tem a ver com o fato do violoncelo estar preso ao chão. Então a escolha óbvia é o segundo violino. E como ele tem menos notas a lidar do que o primeiro violino, ele pode se tornar um regente. Mas é algo sutil (apud FINK, MERRIELL, 1985, p. 51-53).209

208 The procedure is not to sit down on the chair and be modest. 209 The role of the second violinist in a quartet should be one of liberating the first violinist so the first can dispense with so many of the duties that the old-time first violinists had. But you know, that works two ways. He has to play with a first violinist who will willingly relinquish some of these duties. In the older quartets, the first violinist conducted everything from bar to bar. He was, in effect, a concertmaster, a leader, a conductor. When he’s doing this constantly, it takes away from some of the spontaneity, I think, of his own part. So the second violin can, in a sense, be like a mini-conductor who can control the lower three voices, or it can be done in pairs according to how the music is written at that time. He can, certainly in Haydn quartets, liberate the first violinist from having constantly to occupy himself with what the other voices are playing. Because the first violinist should be free (especially in Haydn) to play as he wants to, the second violinist has to be kind of a mind-reader and transmit that to the others. We have found that often it does not work for the cello to do a great deal of leading, because it’s difficult for the cello to lead. I think there are some basic problems because he’s rooted to the floor. So the obvious choice is the second violin. And since he has quite a bit less to do than the first violin in terms of notes on the page, he can become a conductor. But, it’s a subtle thing.

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1.2.3 A viola

Historicamente, a viola é um instrumento diferenciado dos demais. Por muito tempo foi tocada por violinistas até a chegada do século XX com instrumentistas que se dedicaram exclusivamente a ela. Como reflexo, o repertório dedicado exclusivamente ao instrumento como solista, salvo poucas exceções como concertos de Hoffmeister e outros, somente foi abordado pelos compositores de maneira contínua a partir do século XX. Mesmo em termos de lutheria, a viola foi um instrumento inconstante, variando seu tamanho consideravelmente segundo a localidade ou ao gosto dos intérpretes. Quando do seu surgimento, o instrumento era disponível em duas categorias, a viola tenor e a viola alto. A viola tenor era quase intocável segurando pelo braço por seu grande tamanho.210 Muitos dos instrumentos de grande tamanho foram cortados e reduzidos no seu tamanho posteriormente. Uma certa padronização somente foi ocorrer na década de 1930 por um modelo desenvolvido pelo violista Lionel Tertis em conjunto com o luthier Arthur Richardson (1882-1965), com um tamanho de 42,5 cm (STOWELL, 2003, p. 23).

Por motivos como esse, é possível encontrar, por exemplo, no livro A progressive method of string quartet playing (1924), do violinista do Quarteto Flonzaley Alfred Pochon, os seguintes dizeres:

Todos sabem hoje que o quarteto de cordas compreende dois violinos, uma viola e um violoncelo. Em muitas localidades não faltam violinos, os violoncelistas são fáceis de encontrar, mas os violistas são raros. É muito difícil de remediar a este fato; então aconselhamos aos violinistas aprender a clave de dó na 3a linha, na qual é escrita a parte de viola, e se acostumar a tocar este instrumento, o que para ser sincero, não é muito difícil (POCHON, 1917, p. vi).211

Apesar de tal declaração causar uma certa surpresa vinda de um integrante de um conjunto que interpretou e gravou obras complicadas do repertório para quarteto de cordas,

210 Por exemplo, a viola Medici (1690) feita por Antonio Stradivari (1644-1737) tem um tamanho de 48,3 cm. 211 Chacun aujourd’hui sait que le quatuor à cordes comprend deux violons, un alto et un violoncelle. Dans beaucoup de localités les violonistes ne manquent pas, les violoncellistes sont assez faciles à trouver, mais les altistes sont rares. Il est bien difficile de remédier à cet état de choses; aussi nous conseillerons aux violonistes d’apprendre la clé d’ut 3ième ligne, dans laquelle est écrite la partie d’alto, et de s’habituer à jouer de cet instrument, ce qui en somme n’est pas très difficile.

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porém, na época, a viola era um instrumento tocado por violinistas.212 Em seguida, Pochon sugere exercícios e escalas213 para desenvolver rapidamente a leitura da clave de dó na terceira linha, assim como as relações de alturas entre a viola e o violino:

Figura 3: Aprendizado da clave de dó na 3a linha

Fonte: POCHON, 1917, p. vii.

No quarteto, apesar de desempenhar uma função semelhante à do segundo violino como voz intermediária, o timbre diferenciado da viola foi conquistando a atenção dos compositores como um importante instrumento solista (NORTON, 1966, p. 28).

[A viola] ocupa uma posição única dentro do quarteto em termos sonoros. Em certos momentos traz a sonoridade da soprano nas cordas agudas. Em seguida forma um dueto com o violoncelo. E às vezes, quando o violoncelo está tocando uma melodia, a viola então desempenha a função de baixo do quarteto, e devemos aprender com o violoncelo a como agir como baixo, e prover a base ou o chão do quarteto. À viola são incumbidos todos esses papéis, e é interessante notar que, quando Mozart, Schubert e Beethoven tocavam quarteto de cordas em residências particulares, eles em geral optavam pela viola, talvez porque ao sentar no meio do conjunto eles obtinham uma melhor percepção, quase que uma apreciação “em estéreo” do que acontecia ao seu redor (TREE apud FINK, MERRIELL, 1985, p. 34).214

212 Em alguns dos importantes conjuntos do século XX, como o Quarteto Amadeus, o Quarteto Guarneri, e o Quarteto da Juilliard na sua primeira formação, os grupos foram formados por três violinistas e um violoncelista, sendo que um dos violinistas acabou optando por tocar viola. 213 O método escrito por Pochon em 1917 possui exercícios interessantes para aprimorar o conjunto. Um outro importante tratado semelhante sobre o quarteto de cordas é o The technique of string quartet playing (1935) escrito pelo primeiro violinista do quarteto Léner, o húngaro Jëno Léner. 214 [The viola] does occupy a rather pivotal position tonally in the quartet. At moments, it lends itself more to the soprano quality of the upper strings. Then it also is used in almost a duet sense with the cello. And sometimes, when the cello plays a melody, the viola then becomes the bass of the quartet, and we have to learn from the cello, then, how to play kind of a figured bass figure, or provide a floor or bottom to the quartet. So, it (the viola) does all these things, and it’s interesting to note that when Mozart and Schubert and Beethoven played string quartets at home, they usually chose to play the viola, perhaps because sitting in the middle of the group they got a better insight and a better overall, almost “stereo” appreciation of what was going on around them.

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Sobre as características do instrumento, Michael Tree chama a atenção para um vibrato mais amplo e lento do que o violino em geral, porém com exceções.215 O arco também é mais próximo ao do violoncelo, com um uso de uma maior pressão vertical e menor velocidade de arco, para se obter um som mais focado, devido às cordas mais grossas, mais difíceis de começar a vibrar. Assim como os violoncelistas, a viola toca mais usualmente perto do talão em grande parte do tempo. Tree, porém, adverte que, pelo fato de o arco da viola ser mais pesado do que o do violino, o violista tem que cuidar para não esmagar o som. “A articulação é um fator crucial na viola, e frequentemente passamos por consideráveis esforços para produzi-la satisfatoriamente – muito mais do que é normalmente necessário no violino” (TREE apud BLUM, 1987, p. 119).216

1.2.4 O violoncelo

Acima de tudo, o violoncelo deve desempenhar um papel duplo de base e de baixo. Como base o violoncelista tem que manter a fundação do conjunto. Há de se ter uma presença suficiente e substância no som para prover um ponto de estabilidade. Na sua atribuição de base, o violoncelista deve dar vida à estrutura harmônica (SOYER apud BLUM, 1987, p. 106).217

O violoncelo frequentemente é o elo responsável pela coesão do grupo, assim como pela afinação. Como base do acorde, a sua influência das escolhas na afinação do grupo será grande. Em termos de ritmo o violoncelo também ajuda a estabelecer e manter o pulso, a articulação, assim como a direção rítmica. Raaben (2003, p. 23) chega a atribuir ao violoncelo “o papel organizador da parte rítmica” na maior parte da literatura para quarteto.

O violoncelo deve ser capaz de alcançar uma vasta gama de timbres e cores, uma flexibilidade que influi no quarteto. Por ter um som mais grave, formado por vibrações lentas, o violoncelista deve articular mais do que os outros, para garantir a clareza de sua dicção musical. Por vezes, é também necessário começar a tocar uma fração de segundo antes dos outros, para

215 As peculiaridades envolvendo o vibrato da viola, assim como dos outros instrumentos serão abordadas na subparte 4.3. O vibrato. 216 Articulation is a crucial factor on the viola, and one must often go to considerable lengths to obtain it – far beyond what is ordinarily necessary on the violin. 217 Above all that the cello should fulfill the dual roles of base and bass. In the role of base the cellist has to assure the foundation of the ensemble. There must be sufficient sense of presence and substance of sound to provide a point of stability. In the role of bass the cellist must give life to the harmonic structure.

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pôr a corda em movimento. Assim fazendo, o som chegará à percepção do público ao mesmo tempo que as frequências agudas dos outros instrumentos (NORTON, 1966, p. 31).

Para resumir a importância do violoncelo no quarteto de cordas, Soyer coloca que:

Você diria que o violoncelo e o primeiro violino criam uma espécie de estrutura para o quarteto? Mozart, por exemplo, primeiro desenhava a melodia e a linha do baixo, preenchendo as vozes intermediárias posteriormente. Seria este tipo de pensamento relevante para a prática de quartetos de cordas? Sim, certamente (SOYER apud BLUM, 1987, p. 106).218

1.3 Disposição espacial

Diferentes configurações espaciais no palco são possíveis, e, embora a maior parte dos conjuntos opte frequentemente por um certo padrão, não existe unanimidade. No século XIX, era comum o primeiro violinista tocar de pé, com os seus colegas sentados. Mesmo não sendo tão frequente, ainda é possível nos depararmos com conjuntos atuais, como o Quarteto Emerson, nos quais os violinos e viola tocam de pé enquanto o violoncelo se posiciona em um estrado elevado.

Com os quatro instrumentistas sentados, as configurações mais comuns são, da esquerda para a direita: primeiro violino, segundo violino, viola e violoncelo, assim como primeiro violino, segundo violino, violoncelo e viola. As diferenças na heterogeneidade dos possíveis posicionamentos são de ordem do equilíbrio sonoro, entre manter a voz grave no centro do grupo ou não. Destacados conjuntos utilizam essas duas posições com sucesso e a escolha por um ou outro tipo se faz por gosto pessoal dos intérpretes (EISLER, 2000, p. 105). Porém Michael Tree adverte que, ao se colocar o violoncelo no centro do conjunto, e consequentemente a viola no canto, alguns ajustes sonoros se fazem necessários:

Pelo menos em momentos cruciais ou estratégicos, faz-se necessário tocar um pouco mais forte do que a dinâmica impressa. E também há algo chamado de interpretação defensiva. Eu aprendi isso durante uma de nossas primeiras temporadas, quando Boris Kroyt, violista do Quarteto de Budapest, veio tocar conosco como segunda viola em um quinteto de Brahms, o que significava que o seu som estava, até mais do que o meu, direcionado para o fundo do palco. Durante o concerto eu quase caí da minha cadeira, porque no momento em que ele tinha um solo se virou e quase bateu com a voluta do seu instrumento no meu rosto para ter certeza que o seu som se projetasse corretamente. É impressionante a diferença que um pequeno reposicionamento corporal pode provocar.

218 Would you say that the cello and the first violin create a kind of structure for the quartet? Mozart, for instance, would first sketch the melody and the bass line, filling in the inner voices at a later stage. Is that kind of thinking relevant to quartet playing? Yes, indeed.

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Arnold e eu estávamos certa vez ensaiando a Sinfonia Concertante de Mozart, e Isaac Stern, que estava no público, me disse “Posicione-se de frente ao público”. Eu girei o meu corpo um pouco, para que as aberturas em F apontassem diretamente para o público; Issac me contou que a mudança foi considerável (BLUM, 1987, p. 17).219

Muitos grupos do final do século XIX e início do século XX, como o Quarteto Joachim, também utilizavam a disposição primeiro violino, viola, violoncelo e segundo violino. Ao colocar os dois violinos no mesmo plano, mais próximos ao público, a intenção era de criar um efeito estéreo. Porém, pelo fato de os violinos tocarem frequentemente uma linha melódica semelhante, motivos em uníssonos ou terças, a distância pode dificultar a perfeita coesão entre os instrumentistas.

Norton (1966, p. 34-35) destaca alguns pontos importantes a serem observados quando da disposição espacial do quarteto, respeitando os seguintes princípios:

a) O primeiro violino e o violoncelo devem estar sempre em contato visual, porque as vibrações mais lentas do violoncelo exigem uma antecipação constante dos movimentos. b) O segundo violino e a viola, por desempenharem frequentemente uma função semelhante de preenchimento harmônico e acompanhamento, devem procurar uma colocação que facilite a unidade. c) Todos os músicos hão de poder ver e ouvir seus colegas com facilidade. As estantes não podem estar altas a ponto de interferir no campo de visão dos colegas e nem baixas na iminência de mudar a postura dos violinos e viola, forçando os instrumentos para baixo. d) A formação será próxima à de um semicírculo, e não à de um retângulo. Os intérpretes mais ao fundo evitarão sentar atrás de seus colegas da frente, mas de maneira a que estejam de frente para o público.

219 At least in crucial or strategic places, one has to play a shade above the written dynamic level. And there’s such a thing as defensive playing. I learned that during one of ours first seasons, when Boris Kroyt, violist of the Budapest Quartet, joined us as a second viola in a Brahms quintet, which meant that his sound was, even more than mine, directed towards the back of the stage. In the concert I nearly fell off of my chair, because the moment he had a solo, he wheeled around and almost stuck his scroll in my face to be sure his sound would project. It’s amazing how much difference a slight turn can make. Arnold and I were once rehearsing Mozart’s Sinfonia Concertante, and Isaac Stern, who was in the hall, told me, “Face more towards the audience.” I turned the distance of a foot, so that the F-holes were pointed more directly towards the hall, and Isaac said the difference was striking.

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1.4 Algumas considerações sobre o conjunto na prática de quarteto de cordas

“Conjunto significa literalmente tocar junto” (STRATTON, FRANK, 1935, p. 7).220

Entre as muitas dificuldades envolvendo a prática de quarteto de cordas, certamente o conjunto é um aspecto que demanda uma especial atenção. Em um grupo que possui em sua essência timbres similares e transparentes, cada pequeno desencontro ou articulação diferente se destaca com relativa facilidade. Sendo a música de câmara, nas palavras de Joel Smirnoff, a “arte de produzir algo belo enquanto você escuta com atenção o que se passa à sua volta, e se adaptando a isto e fazendo modificações no calor do momento”,221 o conjunto representa certamente uma das maiores partes das dificuldades envolvidas na prática do quarteto de cordas, junto com a afinação.

1.4.1 Ensaios

Os ensaios são parte fundamental da construção não somente de uma obra, mas da sonoridade do grupo. Nos dias conturbados de hoje, existe uma tendência de se realizar concertos com poucos ensaios, porém a experiência de consagrados grupos demonstra que um grande número de ensaios é saudável para a construção de uma obra. Adolfo Betti, primeiro violino do Quarteto Flonzaley, um dos grupos mais atuantes no início do século XX, afirma que “oito ou dez ensaios são geralmente considerados um bom número para obras orquestrais, enquanto que de trinta a trinta e cinco são um número razoável para dominar uma importante obra moderna para quarteto.”222 Betti acrescenta que em obras complexas esse número pode aumentar, dando o exemplo do Quarteto Flonzaley, que precisou de 55 ensaios para apresentar o quarteto de Schöenberg Op. 7 pela primeira vez (BETTI, 1923, p. 2). Adolfo BETTI também adverte que nenhum julgamento definitivo sobre uma obra pode ser dado até que uma performance da mesma tenha ocorrido (1923, p. 3).

220 Ensemble means literally “playing together”. 221 the art of being able to produce something beautiful while you are listening very carefully to what’s going on around you, and adapting to it and making changes on the spur of the moment. 222 Eight or ten rehearsals are generally considered a good number for a orchestral work, whilst thirty or thirty-five are the usual number required to master an important modern quartet.

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Não existe uma fórmula correta para ensaiar, isso depende de cada grupo e situação, como explica Egon Kornstein, violinista do antigo Quarteto Húngaro:

Como ensaiar um quarteto? Eu acredito que cada quarteto – na verdade, cada artista – ensaia de uma maneira diferente. Cada artista altera sua maneira de ensaiar quando chega a um certo estágio de seu desenvolvimento. Ele ensaia Debussy diferentemente de Beethoven; ensaia de uma maneira durante uma turnê, de uma outra em casa; de uma forma quando dispõe de tempo, de outra quando o trabalho deve ser feito até determinada data (KORNSTEIN, 1922, p. 329).223

Mesmo assim, é possível destacar alguns pontos importantes acerca dos ensaios. Antes de começar de fato os ensaios, um conhecimento prévio da obra pelos integrantes do conjunto é importante (RAABEN, 2003, p. 35). O estudo da partitura economiza tempo de ensaio, ao se ter uma imagem sonora antecipada do que o grupo deve almejar nos ensaios.

O estudo lento de passagens difíceis pode ser relativamente útil, assim como costuma ser no estudo individual. Em obras de difícil compreensão, ensaiar com andamento reduzido e dinâmica pianíssimo diversas vezes pode ajudar a acostumar o ouvido (STRATTON e FRANK, 1935, p. 13). Tertis (1950, p. 149) sugere variações de arco e dinâmicas, como longos arcos com velocidade lenta e pianíssimo, em seguida a mesma passagem com arco lento fortíssimo sem forçar o som, começando pianíssimo e fortíssimo em diferentes partes do arco, com o arco na corda e fora da corda nos inícios etc. Como exercício, ele também sugere ao primeiro violino do quarteto alterar subitamente os andamentos e dinâmicas ensaiados previamente, para testar a reação imediata de seus colegas, desenvolvendo reflexos. Steinhardt, porém, adverte que o estudo lento deve obrigatoriamente refletir o que será tocado no andamento rápido, ou seja, tocar lentamente como se estivesse tocando rapidamente, incluindo a parte musical no processo de aprendizagem (apud BLUM, 1987, p. 50). Robert Mann, ex-primeiro violinista do Quarteto da Juilliard, aconselha experimentar andamentos diferentes, mesmo que exagerados, para melhor entender o caráter da peça e sentir seu tempo ideal (apud EISLER, 2000, p. 37). John Dalley propõe como exercício separar as partes difíceis da obra em pequenos segmentos curtos, a serem tocados rapidamente, e em seguida parando, para se acostumar aos andamentos mais rápidos. Dalley também relembra que Galamian disponibilizou em seus métodos de escalas variações de

223 How does a quartet practice? I believe every quartet – in fact, every artist – practices in a different way. Each artist alters his manner of practicing when he arrives at a new stage in his development. He practices Debussy differently from Beethoven; practices in one way while touring, in another when at home; in one way when he has plenty of time, in another when the work must be completed by a certain date.

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ritmos a serem aplicados em passagens mais difíceis, que podem ser úteis para liberar a mão esquerda das reações habituais (apud BLUM, 1987, p. 50). A única diferença observada por Steinhardt entre um estudo lento e tocar no andamento rápido é que em um andamento vagaroso “você habitualmente articula firmemente. Mas, ao tocar rapidamente, você não deve apertar os seus dedos (da mão esquerda) tão vigorosamente; é como ler em braile, somente encostando levemente nas cordas” (apud BLUM, 1987, p. 50).224

Porém, para atingir o ponto essencial de todo ensaio, um paralelo com o estudo individual do instrumento se faz necessário, sendo um ensaio nada menos do que um estudo coletivo. O grande violoncelista e pedagogo Gerhard Mantel (1995, p. xiii) destaca dois processos diferentes no aprendizado de um instrumento. O primeiro seria estudar determinada passagem até que o instrumentista a domine, por meio de incontáveis repetições. A segunda metodologia leva em conta a observação dos acertos e erros, e tentar entender o que ocorre quando se tem êxito, ou seja, um estudo mais consciente do processo.

Essas sugestões se baseiam na experiência de que estudar sem uma ideia meticulosa do que precisa ser estudado é uma perda de tempo. Esta ideia parece óbvia, mas ela parece mais significante quando nos perguntamos: Que aspecto da técnica estamos estudando agora? Ritmo? Afinação? Memória? Qualidade sonora? Tempo? Precisão conceitual? Fraseado? Coordenação entre mãos esquerda e direita? Observação do relaxamento corporal? Elegância dos movimentos? Energia e perseverança? Temos uma grande escolha entre os diversos aspectos. Naturalmente, é impossível se concentrar em todos de uma só vez. Em uma boa sessão de estudo, somente poucos deles são abordados de cada vez. Se uma diretriz não se faz presente em seu estudo, o instrumentista não progredirá, e pode até piorar alguns aspectos, pois tudo que o impede de atingir um resultado satisfatório por meio de frequentes repetições se automatiza. Ao final, a passagem estará completamente automatizada – porém de maneira errada (MANTEL, 1995, p. xiv).225

224 In a slow tempo you usually articulate firmly. But when playing quickly you don’t press your fingers down so hard; it’s more like reading braile: just touching the string. 225 These suggestions are based on the experience that practicing without an accurate idea of what needs to be practiced is a waste of time. This idea seems obvious, but it becomes more significant when we ask the question: Which aspect of playing technique are we practicing right now? Rhytm? Intonation? Memory? Sound quality? Tempo? Conceptual precision? Phrasing? Coordination of left and right? Examination of body tensions? Elegance of movements? Energy and perseverance? We have a choice of many aspects. Naturally it is impossible to concentrate on all of them at once. In a good practicing session only a few are considered at a time. If a central idea is lacking in his practicing the player will make no progress and may actually do damage, for everything that prevents the successful playing of a passage will through frequent repetition become automatic. Finally the passage will be completely automatic – but wrong.

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1.4.2 Sincronismo

Em seu texto Musical Ensemble Synchronization, Peter Keller explica que para se obter uma coesão no sincronismo de um conjunto, os músicos precisam estabelecer objetivos prévios sobre a performance, tanto no estudo individual preparatório quanto nos ensaios do conjunto. Essas metas ficam na memória como uma representação mental do som ideal para a obra. Porém, somente esses propósitos não garantem por si só a coesão do conjunto, há de se levar em conta as demandas da interação musical em tempo real. Para isso, o autor estabelece três habilidades necessárias a todo conjunto: uma antecipação da imagem auditiva, uma atenção integrativa priorizada e uma adaptação no sincronismo (KELLER, 2007, p. 80).

A antecipação da imagem auditiva consiste em, em vez de se concentrar em técnica motora, pensar numa imagem sonora pré-estabelecida, obtendo assim melhores resultados na qualidade do som. Como exemplo, Keller afirma que um cantor deve simplesmente pensar num som perfeito para produzi-lo. Claro que, para isso ser automatizado, muito estudo prévio faz-se necessário. A imagem sonora também pode ajudar a estabelecer o andamento da obra, questões de ritmo e outros aspectos.

Já na atenção integrativa priorizada, os intérpretes são responsáveis não somente por tocar sua parte individual, mas têm de estar alertas também à relação da sua parte com a dos outros colegas. Trata-se da divisão do foco entre as suas próprias ações (alta prioridade), as dos colegas (baixa prioridade) e o monitoramento do som do conjunto, de todas as partes. O intérprete tem que comparar o tempo todo a imagem mental do som ideal (a imagem auditiva prévia) com a informação obtida em tempo real sobre o som sendo tocado.

A adaptação no sincronismo entre os movimentos do intérprete e de seus colegas é o pré-requisito fundamental para a música de conjunto. “Para realizar isto, os músicos devem constantemente ajustar o ‘timing’ de seus movimentos de maneira a manter o sincronismo em mudanças de andamento e outros eventos imprevisíveis” (KELLER, 2007, p. 81).226 O cérebro humano é capaz de estabelecer marcadores de tempo que podem controlar os aspectos temporais da percepção e ação. O sincronismo se dá por um processo de correção de erros. O autor

226 To satisfy this requirement, musicians must constantly adjust the timing of their movements in order to maintain synchrony in the face of tempo changes and other, often unpredictable, events.

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estabelece dois tipos de marcadores de tempo: a correção da fase e a correção do período. A correção da fase diz respeito ao sincronismo constante e o do período a mudanças bruscas que possam ocorrer no tempo, como ritardandos e accelerandos, sejam eles marcados pelo compositor ou mesmo fruto de uma concepção artística da obra. A correção da fase é usada o tempo todo, pois a dessincronizarão é inevitável. A correção da fase é automática, já a do período requer uma atenção consciente.

Considerações adicionais, como conhecimento da música, tendências estilísticas da obra e dos colegas, afetam a coesão do conjunto agindo nesses três processos descritos acima.

1.4.3 Comunicação visual

Olhar diretamente para os outros instrumentistas quando o conjunto está tocando em geral não é uma metodologia eficiente de trabalho. Além da distração da partitura e da música, movimentos menores, como a visão periférica, podem ajudar consideravelmente a resolver alguns problemas de sincronismo. Pequenos sinais e gestos podem servir para iniciar uma obra, assim como para liderar passagens que requerem uma maior precisão. Porém David Soyer227 adverte que os gestos não podem ser grandes demais para não distrair tanto instrumentistas quanto o público da música (BLUM, 1987, p. 10). “O gesto deve sempre estar no espírito da música, independente de qual seja” (TREE apud BLUM, 1987, p. 13).228

Os gestos podem ser dados de diversas maneiras:

Pelo arco e pelo violino – exceto quando já estou tocando. [...] Em tais casos, você talvez precise acenar com a cabeça ou fungar com o nariz: você pode até usar o joelho se precisar. O mais importante não é o meio técnico utilizado, mas conhecer a função de um pulso preparatório. As chaves para um bom gesto são clareza e concisão; eu tento encontrar a mais natural unidade de tempo e dou o gesto com autoridade. Instrumentistas inexperientes às vezes dão um gesto meio apático porque na verdade estão hesitantes sobre o tempo (STEINHARDT apud BLUM, 1987, p. 12).229

227 David Soyer (1923-2010), violoncelista do Quarteto Guarneri. 228 The gesture should always be at one with the spirit of the music, whatever it may be. 229 With the bow or the violin – except when I’m already playing. [...] In such cases you may need to nod your head or sniff; you could even use your knee if you had to. The most important thing is not the technical means; it’s knowing the function of a good preparatory beat. The keys to a good lead are clarity and concision; I try to find the most natural unit of beat and give it with authority. Inexperienced players often give a rather sluggish lead because they’re hesitant about the tempo.

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Tais gestos não são, todavia, responsabilidade unicamente do primeiro violino, mas diluídos pelo quarteto, a liderança sendo exercida por todos, de acordo com as exigências musicais do momento. Com o tempo, Dalley adverte que é possível interpretar facilmente a linguagem corporal, assim como os trejeitos de seus colegas, tornando mais fácil o entendimento das deixas e gestos (BLUM, 1987, p. 14).

A observação da mão esquerda em vez do arco de quem estiver conduzindo a frase traz uma maior precisão ao conjunto:

Muitos que não têm grande experiência em música de câmara acreditam que observar o arco do colega é o certo a se fazer. Mas os movimentos do arco podem ser enganadores. Às vezes, você move seu arco antes que ele faça um contato efetivo com a corda, ou ocasionalmente a corda não emite som de imediato. O dedo da mão esquerda, porém, ataca a corda no momento que você toca. Claro, há vezes [...] que não é realmente uma questão de observar o arco ou os dedos; é mais uma questão de sentir o pulso (SOYER apud BLUM, 1987, p. 14).230

A antecipação é um fator crucial na sincronia dentro da música de câmara, e em especial no quarteto de cordas. Imaginar o que os outros instrumentistas poderão fazer pode ser a chave para um conjunto satisfatório. “A nossa maneira de tocar em conjunto não é de alguém que lidera e todos somente seguem. [...] Não seguimos uns aos outros; nós tocamos juntos” (SOYER apud BLUM, 1987, p. 15).231 Michael Tree faz uma distinção entre simplesmente seguir alguém que tem um solo e reagir ao que o colega está tocando, o que é fundamentalmente diferente do papel de um simples acompanhador (TREE apud BLUM, 1987, p. 6).

Porém acreditamos que isso seja simplesmente o início da caminhada do fazer musical. Tocar junto é tão-somente o primeiro requisito para uma experiência satisfatória na música de câmara. Não basta estar correto, há que ser também belo. Arnold Steinhardt, primeiro violinista do Quarteto Guarneri, considera que “para muitos jovens instrumentistas, a perfeição do conjunto se torna uma espécie de fim em si. Eles trabalham e trabalham, e saem do ensaio

230 Many people who aren’t greatly experienced in chamber music think that watching the bow is the thing to do. But bow movements can be deceptive. Sometimes you move your bow before it makes actual contact with the string, or sometimes the string doesn’t speak immediately. The finger, however, normally strikes the string just when you play. Of course, there are times [...] when it’s not really a question of watching the bow or the fingers; it’s more a matter of feeling the pulse. 231 Our way of ensemble playing is not that someone leads and everybody else just follows. [...] We don’t follow each other; we play together.

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felizes porque tocaram extremamente juntos. Mas isso é realmente somente o primeiro passo” (STEINHARDT apud BLUM, 1987, p. 9).232

2 A afinação no quarteto de cordas: diferentes sistemas e possibilidades

“A afinação é uma questão de consciência. Você percebe que uma nota não está certa com a mesma sensação que tem quando faz algo errado em sua vida. Não devemos continuar a errar em nossas vidas. ”233 Com essa afirmação, o famoso violoncelista Pablo Casals (1876-1973) demonstrava que um dos aspectos mais problemáticos e delicados quando instrumentos de cordas estão envolvidos é a afinação. Para Timm (1943, p. 20), concertos são mais frequentemente prejudicados por problemas de afinação do que por quaisquer outras deficiências técnicas. “Uma afinação incorreta, desajustada, perturba a qualidade da interpretação musical” (RAABEN, 2003, p. 62).

Em um meio tão transparente quanto o quarteto de cordas, com instrumentos não necessariamente temperados, e contando com a possibilidade de poder optar entre diferentes padrões de afinação, este é um tema que necessita uma reflexão aprofundada. Porém a afinação não é uma exatamente uma ciência exata, e, mesmo sendo comumente ligada à matemática, é um tópico de caráter subjetivo. Raaben (2003, p. 63) é categórico quando afirma que, “em música, não existe normalmente uma altura absoluta, inalterável, matematicamente certa; se não existem intervalos musicais estáticos, não existe logicamente afinação absoluta”.

2.1 Contextualização e breve histórico

O conceito de afinação mudou bastante ao longo dos séculos e diversos tipos de afinação foram e continuam a ser utilizados. Quando do surgimento do quarteto de cordas, vários padrões de afinação estavam em uso simultâneo. O sistema de afinação justa sempre exerceu

232 For many young players, perfection of ensemble becomes a kind of end-all. They work and work, and leave the rehearsal happy because they have played accurately together. That’s really only the first step. 233 “Intonation is a question of conscience. You hear when a note is false the same way you feel when you do something wrong in life. We must not continue to do the wrong thing” (BLUM, 1977, p. 102).

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fascínio nos músicos de diversas épocas pela pureza das escalas da tônica, subdominante e dominante e por usar em suas escalas as notas naturais da série harmônica, notas puras:

A teoria de que instrumentistas de cordas deveriam tocar com afinação justa parece ter sua origem no final do século XIX, e principalmente por causa do amigo de Brahms, Joachim, o que levou Bernard Shaw a dizer brutalmente que Joachim não tocava com afinação justa, mas simplesmente tocava desafinado. Tais são os perigos da teoria aplicada à performance (ROSEN, 2000, p. 31).234

Porém, apesar da afirmação de Charles Rosen, os métodos instrumentais dos séculos XVII e XVIII235 já estabeleciam que os instrumentos de afinação não fixa como o violino deveriam ter como arquétipo a afinação justa.

Um intervalo é considerado puro ou perfeito quando não há batimentos:

Dois ou mais sons simultâneos são ditos consonantes quando soam agradáveis e desprovidos de tensão. [...] Quando dois sons de frequência próxima interferem entre si surge uma modulação regular da intensidade conhecida por batimentos. Esse efeito torna-se gradualmente menor na medida em que as frequências se aproximam e desaparece por completo quando se igualam. Por outro lado, na medida em que as frequências se distanciam o número de batimentos aumenta de tal forma que o som resultante torna-se ser rude e desagradável (GOLDEMBERG, 2007, p. 66).

Além da ausência de batimentos, a busca pelos sons puros representava algo maior:

A música dos séculos XVII e XVIII foi construída, no que diz respeito à afinação, também sobre a chamada teoria das proporções, na qual os índices de frequência, quer dizer, a série harmônica, serviam de princípio básico. O ponto de referência era a nota fundamental, o número um da série de sons e números, correspondendo mais ou menos ao ponto de fuga da perspectiva; ele simbolizava a Unitas, a unidade, Deus. Quanto mais simples a relação numérica, melhor, mais nobre (inclusive no sentido moral); quanto mais complicada a relação numérica, ou quanto mais distanciada do um, pior, mais caótica (HARNONCOURT, 1998, p. 78).

Apesar disso, Haynes (1991, p. 357-359) afirma que é fisicamente impossível, seja na teoria ou na prática, combinar terças e quintas puras no mesmo sistema de afinação. A afinação pura não permite o uso de modulações e seria um “Santo Graal, impossível de ser aplicada de

234 La théorie qui veut que les instrumentistes à cordes jouent en intonation juste semble dater de la fin du XIXe siècle: elle remonte surtout à Joachim l’ami de Brahms, ce qui amena Bernard Shaw à prétendre brutalement que Joachim jouait non pas en intonation juste, mais tout simplement faux. Tels sont les dangers de la théorie appliquée à l’exécution. 235 Para informações mais detalhadas sobre o uso da afinação justa nos séculos XVII e XVIII, consultar o artigo Prelleur, Geminiani and Just Intonation, de David Boyden, 1951.

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maneira contínua”. 236 O mais provável era que o sistema utilizado na época fosse uma combinação da afinação justa com o sistema mesotônico, favorecendo as terças justas e quintas temperadas. Notas enarmônicas eram diferenciadas, a nota bemol era tocada mais alta do que sua equivalência em sustenido, ao contrário da tendência atual.237

Barbieri (1991, p. 71) chama a atenção para o fato de que não havia um sistema único de afinação justa e cada violinista adaptava o seu sistema próprio, diminuindo algumas quintas em vez de outras. Não é possível afirmar que violinistas barrocos tocavam tão-somente com afinação justa ou mesotônica, porém é certo que as terças eram puras e os sustenidos mais baixos do que os bemóis (BARBIERI, 1991, p. 74). Em 1723 Pier Francesco Tosi diferenciava semitons maiores e menores. Um tom é dividido em nove intervalos praticamente imperceptíveis, chamados de comas, cinco deles constituem os semitons maiores e quatro, os semitons menores (HAYNES, 1991, p. 357). Por essa razão, mi bemol seria um coma mais alto do que ré sustenido. Prelleur indicava o uso de dedilhados diferentes para notas enarmônicas, dependendo se fosse sustenido ou bemol.238

O temperamento surgiu como uma maneira de tentar corrigir algumas dessas deficiências e principalmente para viabilizar o uso de instrumentos de afinação fixa, como o cravo, o órgão e outros (HAYNES, 1991, p. 357). O temperamento significava “um compromisso de afinação”, alterando algumas consonâncias em benefício de outras, visando a um equilíbrio, ou seja, desafinar alguns intervalos em benefício de outros (ZUMPANO, GOLDEMBERG, 2009, p. 4).239 Esses mesmos autores fazem uma distinção entre afinação e temperamento:

Em termos matemáticos, a distinção entre os termos “afinação” e “temperamento” pode ser dada pelo seguinte: a afinação refere-se aos sistemas em que todos os intervalos podem ser descritos por frações de números inteiros; com isso, somente os sistemas pitagórico e natural poderiam ser chamados de afinações. Todos os demais sistemas, nos

236 But just intonation is a kind of holy grail that is impossible to apply continuously. 237 Prelleur indicava em seu método de violino que um sol♯ não era a mesma nota que um lá♭ e que essas notas deveriam ser tocadas com dedilhados diferentes (BOYDEN, 1951, p. 205). 238 HAYNES, 1991, p. 368. 239 O primeiro sistema de afinação natural foi o proposto por Pitágoras, sendo o mesmo utilizado desde a Grécia antiga até o final da Idade Média. A escala pitagórica era obtida por um ciclo de quintas em cima de uma fundamental natural, porém, após 12 ciclos, quando a nota obtida deveria ser a mesma que a nota de partida, elas eram diferentes. É a chamada “quinta do lobo”, em que se acumula o erro. A diferença entre a nota obtida e a nota de partida é chamada de coma pitagórica. Os temperamentos foram diversas soluções apresentadas para distribuir a coma pitagórica nas notas da escala, de maneira a manter a oitava pura. Os sistemas nos quais o ciclo de 12 quintas não se fecha, ou seja, a nota obtida não é a mesma, são chamados de sistemas abertos e são sistemas que tornam as modulações impossíveis (ZUMPANO, GOLDEMBERG, 2009, p. 3-5).

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quais as frações são descritas por números não-inteiros ou por inteiros e não-inteiros, são chamados de temperamentos. Dessa forma, pode-se dizer que o temperamento seria uma modificação da afinação (ZUMPANO, GOLDEMBERG, 2009, p. 5).

Haynes (1991, p. 358) adverte que o temperamento não seria possível de ser utilizado em instrumentos outros que da família do teclado. Sendo que a afinação dos mesmos não segue um padrão pré-estabelecido, ela é influenciada por diferentes fatores técnicos e por percepções subjetivas e até mesmo por diferenças de dinâmicas ou temperatura. Por tais motivos, Haynes acredita que tais instrumentistas não conseguiriam manter o nível de consistência exigido por um temperamento.

Diversos tipos de temperamentos estiveram em uso desde o século XVI, e não apenas o temperamento regular, tal qual amplamente utilizado atualmente. Os temperamentos desiguais tinham na sua essência a necessidade de se distinguirem claramente as tonalidades, pois cada uma tinha sua função, decorrente da Teoria dos Afetos na música, com base no pensamento da antiguidade grega que atribuía diversos efeitos sobre o pathos240 em decorrência do modo (Dórico, Jônico, etc.) que estava sendo tocado. Na Teoria dos Afetos, cada tonalidade tinha sua função no estado emocional do ser humano:

O fato de cada tonalidade ter algo especial em si e se diferenciar de outra por provocar efeitos muito diferentes é do conhecimento de todos – se considerarmos a época, as circunstâncias e as pessoas. Há muitas contradições, entretanto, quanto aos Affecten que cada tonalidade desencadeia, quais e como são eles (MATTHESON, 1713, apud CARPENA, 2012, p. 230).

O uso simultâneo de padrões de afinação tão diversos no século XVIII trazia complicações quando da prática de conjunto entre instrumentos temperados e não-temperados. Johann Joachim Quantz (1697-1773),241 em vez de recomendar ao não-tecladista se ajustar ao instrumento de teclado, sugere que o tecladista evite as notas que possam gerar conflito de afinação, ou as esconda nas vozes do meio ou mais graves (CHESNUT, 1977, p. 260). Alguns teóricos, como Rousseau por exemplo, compartilhavam desse ponto de vista, fazendo uma

240 O pathos significa os estados do espírito humano, emoção da alma. Para os gregos, os efeitos da música (ethos) poderiam influir no comportamento humano, induzindo o homem a ações, fraqueza moral, força e estado de inconsciência. Cada modo agia de determinada maneira, assim como os ritmos, que também tinham sua função (NASSER, 1997, p. 243). 241 Importante flautista e compositor, Quantz escreveu um dos mais importantes tratados musicais do século XVIII, o Versuch einer Anweisung die Flöte traversiere zu spielen (1752). Nele, Quantz aborda não somente a técnica da flauta, mas também a interpretação e diversos outros aspectos da prática musical.

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ressalva aos uníssonos e acordes finais. Outra corrente, representada por Rameau,242 definia que instrumentos melódicos sem teclado deveriam seguir a afinação dos tecladistas. Em orquestras, Quantz e Béthizey recomendavam que os cantores e os outros instrumentistas seguissem os violinos e os oboés em vez do cravo (HAYNES, 1991, p. 362).

Algumas construções de cravos e órgãos com teclas separadas para enarmonias foram feitas, diferenciando ré sustenido e mi bemol, além de sol sustenido e lá bemol. Esses instrumentos poderiam se aventurar em tonalidades com até quatro sustenidos ou quatro bemóis e manter as terças relativamente puras. Também era prática comum no cravo que não possuía as teclas separadas reafinar algumas notas entre as peças de um programa quando se tinha uma mudança de tonalidade. Uma outra alternativa era a utilização de dois cravos, um afinado com bemóis, e o outro com sustenidos (BARBOUR, 1951, p. 191).

Sendo esse um assunto complexo, relatos do século XVIII afirmavam que somente violinistas de muita qualidade conseguiam distinguir diferentes tonalidades quando tocavam, ou mesmo seguir algum padrão de afinação. Leopold Mozart, Quantz, Tosi e o próprio W. A. Mozart reclamavam nos seus escritos sobre a desafinação de seus pares, e, o no caso do violino, do que parece ter sido um hábito de tocar alto nos registros agudos243:

Alguns instrumentistas de cordas deviam ser bastante ignorantes, porque Quantz sente a necessidade de escrever, aparentemente sério: “Muitos tocariam com uma afinação mais precisa nos registros agudos se soubessem que as notas na corda, da sua parte mais grave à mais aguda, não mantém a mesma distância entre si, mas reduzem os intervalos, ficando a cada vez mais próximas umas das outras”. W. A. Mozart também parece fazer graça de tal ignorância na sua “Uma piada musical” K. 522 (terminada em 14 de junho de 1787), na famosa cadência de violino do final do terceiro movimento. A cadência acaba com escalas em dó maior. Mas, conforme o violinista vai subindo a cada vez mais (até o registro acima do dó agudo), a escala de dó maior se transforma em dó # maior, e até mesmo em ré maior (CHESNUT, 1977, p. 257).244

242 Rameau (1683-1764) foi um dos primeiros defensores do temperamento igual, no seu tratado Génération harmonique, de 1737 (ZUMPANO, GOLDEMBERG, 2009, p. 8). 243 John Dalley, do Quarteto Guarneri, adverte que, mesmo nos tempos atuais, instrumentos de registro agudo, como o violino, demonstram uma tendência a tocar com afinação alta, independentemente do padrão utilizado (apud BLUM, 1987, p. 28). 244 Some string players of the period must have been incredibly ignorant, for Quantz finds it necessary to write, apparently in all seriousness, “Many would also play more truly in the high register if they knew that the notes on a string, from its lower to its upper part, are not all the same distance from one another, but lie at reduced intervals, namely closer and closer to one another.” W. A. Mozart himself seems to mock such ignorance in his “Musical Joke”, K. 522 (finished June 14, 1787), in the famous violin cadenza at the end of the third movement. The cadenza concludes with scales in C major. But as the violinist works his way higher and higher (into the register above “high c”), the scale of C major becomes transformed into C# major and even D major.

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No seu artigo intitulado Princípios de técnica e história do temperamento musical, Zumpano e Goldemberg (p. 8) lançam a hipótese de que a coleção de prelúdios e fugas de Johann Sebastian Bach, intitulada “O Cravo bem Temperado”, faria menção a um temperamento desigual, e não regular. Contrariando o pensamento de alguns de que o temperamento regular seria o padrão de afinação na época de Bach, os autores explicam que o termo do título original em alemão (Das wohltemperierte clavier) não significa “igual”, mas seria “agradavelmente” temperado. A implantação do temperamento regular como padrão somente se daria na segunda metade do século XIX.

2.2 O temperamento igual e a afinação expressiva

O estabelecimento definitivo da tonalidade a partir da segunda metade do século XVIII, centrado no ciclo das quintas, teve um peso fundamental para a adoção do temperamento igual, enfatizando que o centro tonal de uma obra não é mais uma nota, mas uma tríade, o acorde (ROSEN, 2000, p. 27). Com o uso de harmonias mais ousadas, explorando modulações para tonalidades cada vez mais distantes, a partir do século XIX os temperamentos se tornaram menos desiguais, culminando em uma padronização que possibilitava a “modulação para todos os tons, sendo que todos possuem a mesma distribuição intervalar” (PORRES, MANZOLLI, 2005, p. 3). A distância entre todos os tons é a mesma e a oitava é dividida em seis tons e doze semitons iguais, resultando, na percepção de Raaben (2003, p. 65), em um desajuste da afinação, com exceção feita à oitava. Os primeiros registros sobre temperamento igual datam do século XVI,245 mas este era visto pelos músicos como uma afinação fácil, para iniciantes, e que não tinha a capacidade de adicionar à peça tocada o caráter inerente a cada tonalidade.246 Em muitos casos, os instrumentos de teclado continuavam a ser afinados com uma mistura de temperamento igual e afinação justa ou natural, até o século XIX (ROSEN, 2000, p. 27). Em 1826, o padre Lichtenthal escreveria em seu Dizionario: “Contudo, um temperamento igual não pode subsistir, ou então não

245 ZUMPANO, GOLDEMBERG, 2009, p. 8 246 BARBIERI, 1991, p. 71

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teríamos mais caráteres individuais nas tonalidades, e alguém poderia simplesmente compor um noturno em lá menor, e uma marcha militar em lá ♭ maior” (apud CHESNUT, 1977, p. 255).247

No final do século XIX, alguns instrumentistas que tocam instrumentos de afinação não-fixa começaram a diferenciar intervalos diatônicos e cromáticos em semitons, de acordo com a harmonia, dando ênfase a uma dinâmica de tensão e relaxamento. Essa concepção, conhecida como “afinação funcional”, foi amplamente difundida por Pablo Casals, que lhe deu a alcunha de “Justesse expressive” (afinação expressiva). Com base na harmonia, ela acrescenta um fator emocional à afinação e retoma a ideia de caráter atribuído a determinadas tonalidades, diferenciando os modos maior e menor, além de bemóis e sustenidos (BARBIERI, 191, p. 87).

Para Rosen (2000, p. 27), a percepção da diferenciação entre maior e menor seria uma herança dos antigos sistemas naturais. O temperamento igual acabou com a diferenciação entre tonalidades naturais e artificiais. Porém em um acorde perfeito a terça inferior é maior e a terça superior menor, mais próxima dos harmônicos naturais. Por esse motivo um acorde maior seria mais estável do que um acorde menor.

A afinação expressiva seria um resquício da Teoria dos Afetos, que esteve bastante presente nos séculos XIX e XX, e ainda é muito utilizada nos dias atuais. Em uma série de experimentos que realizaram, Alexandre e Prevost relatam em 1862:

Pedimos a um músico conhecido pela sensibilidade de sua afinação para tocar um tema em dó maior; depois solicitamos que tocasse este mesmo tema tendo por tônica a nota que se encontra no piano entre o fá e o sol naturais. Assim que terminou, perguntamos em que tom ele tinha tocado. – Em fá♯, respondeu sem hesitar. Retrucamos que ele tinha tocado em sol b. Não, respondeu, é muito brilhante, é fá♯, não é sol♭. Vejam, isso é sol♭. Então ele tocou o mesmo tema, sem mudar o tom, mas acrescentando algumas modificações que de cara deram ao tema um caráter doce, algo que para mim lembrava um tom menor (apud BARBIERI, 1991, p. 84).248

247 “An equal temperament, however, cannot subsist, or else we would no longer have an [individual] character in the keys, and one could just as well compose a nocturne in A minor, and a military blare in A♭ [major].” 248 Nous avons une fois demandé à un musicien dont la délicatesse de l’oreille est bien connue, de jouer un air en ut majeur ; puis nous l’avons prié de jouer le même air en prenant pout tonique la note qui se trouve sur le piano entre le fa et le sol naturels. L’air exécuté, nous lui demandâmes dans quel ton il venait de jouer – En fa♯, répondit-il sans hésiter. – Nous lui dîmes qu’il avait joué en sol♭. Non, reprit-il, c ‘est trop éclatant, c’est du fa♯, et non du sol♭. Tenez, continua-t-il, voici du sol♭ majeur, et il joua le même air, sans sortir du ton, mais en introduisant quelques modifications qui donnèrent de suite à l’air une certaine douceur, quelque chose qui, à mon oreille, semblait se rapprocher d’un ton mineur.

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Para Rosen, essas características estariam ligadas a funções tonais e sua relação com dó maior:

A Donald Francis Tovey se atribuiu a ideia de que tonalidades têm características em função de sua relação a dó maior, tratada inconscientemente como a tonalidade-base por ser a primeira que todo músico aprende quando criança. Sendo assim, fá maior é “naturalmente” uma tonalidade com característica de subdominante ou um relaxamento de tensão em relação a dó maior, e a maioria das pastorais é de fato em fá maior. O uso tradicional de alguns instrumentos em determinadas tonalidades, como as trompas em mi bemol, é influenciado pela conotação dessas tonalidades. O caráter dominante de dó sustenido e o caráter subdominante de ré bemol com certeza influenciaram a sensibilidade de alguns compositores (2000, p. 31-32).249

Para Casals, a afinação de temperamento igual atribui a todas as notas um mesmo peso dentro de uma melodia ou harmonia, tirando destas o sentido orgânico necessário na música. A altura das notas não deveria ser obtida por meio de um ato mecânico, mas reagir às implicações melódicas e às progressões harmônicas que aproximam e afastam algumas notas (CHERNIAVSKY, 1952, p. 398). A afinação expressiva traz a distinção entre semitons cromáticos e diatônicos.250 Os intervalos diatônicos devem ser modificados em função do que Casals chamava de uma “atração gravitacional”. Ele considerava a tônica, a subdominante e a dominante de uma tonalidade como sendo os pontos de repouso para os quais todas as outras notas devem caminhar (BLUM, 1977, p. 103). Sendo assim, o segundo, terceiro, sexto e, sobretudo, o sétimo graus de uma escala maior devem ser tocados mais altos, criando uma tensão a ser resolvida nas notas fundamentais, “alto o suficiente para que possamos sentir a inevitabilidade da sua resolução na tônica”251 (BLUM, 1977, p. 103). Paul Tortelier, descrevendo a relatividade e atratividade dos sons, divide o semitom em três categorias de intervalos distintos, a saber: “1) O semitom diatônico, entre a sensível e a tônica, que será descrito como VS (muito

249 Donald Francis Tovey pensait que les caracteres des diverses tonalités dépendaient de leur position par rapport à celle d’ut majeur, traitée inconsciemment comme tonalité de référence par les musiciens parce que c’est elle que dans leur enfance on leur a enseigné la première. Fa majeur aurait donc, par nature, un caractère de sous-dominante, et serait plus détendu qu’ut majeur; et en effet, les pastorales sont presque toutes en fa. L’utilisation traditionelle de certains instruments dans certaines tonalités (cor em mi bémol par exemple) a également été un élément de connotation des tonalités. Le caractère de dominante d’ut dièse et de sous-dominante de ré bémol n’ont pu qu’agir sur la sensibilité des compositeurs. 250 Quando há uma mudança da altura de uma nota na pauta (por exemplo de dó♯ para ré♮), trata-se de um semitom diatônico. Quando se há somente uma alteração na própria nota (por exemplo de ré♭ para ré♮), o intervalo é cromático. 251 High enough for us to feel the inevitability of its resolution to the tonic.

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pequeno), 2) o outro semitom diatônico, que será descrito como S (pequeno), 3) o semitom cromático que será descrito como L (grande)” (apud PRESGRAVE, 2008, p. 26).

Com esse sistema, a afinação passa a ter uma importante parte na construção musical de uma obra, enfatizando determinadas harmonias além de dissonâncias e consonâncias. A afinação é colocada como uma ferramenta disponível para os intérpretes no estabelecimento de um significado artístico. Cherniavsky (1952, p. 399) compara a importância desse tipo de afinação para a interpretação de uma obra ao papel semelhante que teria o rubato em relação ao ritmo.

A afinação deve ser um testemunho da sensibilidade de um instrumentista. O tocar que a negligencia é inadmissível e rebaixa o intérprete, independentemente de ser um bom músico. É curioso que a preocupação sobre a afinação e sua aplicação somente tenha aparecido nos instrumentistas de maneira relativamente recente. Quando eu era jovem, imagine a minha surpresa ao escutar artistas como Sarasate e Thompson tocarem desafinados como se isso fosse totalmente normal! (CASALS apud CORREDOR, 1955, p. 264).252

2.3 Afinação nos quartetos de cordas

O trabalho de afinação no caso específico do quarteto de cordas levanta muitos questionamentos e, dependendo da metodologia utilizada, os resultados podem ser os mais variados. Alguns caminhos podem ser apontados com base na experiência de grupos e pessoas que se destacaram por sua excelência e experiência.

Por não ter na sua formação instrumentos de teclado, o quarteto de cordas possui certa liberdade para poder optar por diferentes abordagens em relação à afinação, e não somente se restringir a um tipo de padrão. Algumas formações tocavam exclusivamente com afinação temperada,253 porém é frequente o uso combinado de afinações temperada e expressiva, em função da harmonia. O pedagogo Ivan Galamian (1903-1981) era da opinião de que nenhum sistema de afinação poderia ser totalmente autossuficiente e que o intérprete consciente deveria

252 La justesse doit être un des témoignages de la sensibilité d’un instrumentiste. Um jeu qui la néglige est inadmissible, et déclasse un exécutant, si bon musicien soit-il d’autre part. Il est curieux que la préocupation de la justesse et de son application ait apparu, chez les instrumentistes, à une époque relativement recente. Au temps de ma jeunesse, quel fut mon étonnement en entendant des artistes comme Sarasate et Thompson jouer faux de la façon la plus naturelle du monde! 253 O antigo Quarteto Húngaro (1935-1972), por exemplo, somente tocava com afinação temperada, procurando reproduzir o mesmo padrão do piano, e ensinava esse sistema aos seus alunos (EISLER, 2000, p. 32).

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adequar sua afinação ao seu entorno. “Uma afinação adaptável às necessidades do momento é a solução certa para o grande problema que é tocar afinado” (GALAMIAN, 1993, p. 35).254

Descobri que os grandes instrumentistas de cordas, seja de maneira consciente ou não, usam um tipo de afinação com uma percepção muito expressiva de como as notas se relacionam entre si. [...] Tocaremos nesta passagem com afinação expressiva ou tentaremos tocar de maneira temperada? Depende do contexto harmônico (KROSNICK,255 apud EISLER, 2000, p. 33).256

O Quarteto Guarneri fazia uso da afinação expressiva, porém com algumas ressalvas (BLUM, 1987, p. 31). Arnold Steinhardt, primeiro violinista deste conjunto, concentra uma grande parte da dificuldade na afinação do quarteto no grau de liberdade a se ter em relação a esses dois sistemas e distingue dois fatores importantes a serem observados: um linear e o outro vertical. Por “linear”, Steinhardt considera a melodia, ou a direção harmônica dentro da linha individual. Nesse caso, os semitons podem ser aproximados conforme a necessidade ou função harmônica, sendo uma importante ferramenta na construção da interpretação. Joel Smirnoff,257 violinista do Quarteto da Juilliard,258 também inclui nessa categoria os uníssonos, realizando mudanças na intonação em favor da função tonal da nota (apud EISLER, 2000, p. 32). O fator vertical é “a necessidade de se tocar afinado com os seus colegas, de ouvir sua nota individual em relação ao acorde sendo tocado no momento”. Ele coloca como necessidade do instrumentista do quarteto um ouvido atento e uma adaptabilidade rápida para fazer rapidamente as correções. Steinhardt ainda lista pontos-chaves no tratamento “vertical”, que seriam os intervalos de quartas, quintas, e oitavas, que devem ser perfeitos. Intervalos mais flexíveis se adaptam melhor à afinação expressiva conforme a necessidade, como segundas, terças, sextas, sétimas em tonalidades maiores ou menores, assim como quartas e quintas aumentadas ou diminutas (BLUM, 1987, p. 28). Porém é importante ressaltar que as diferenças entre essas afinações são muito sutis, em diversos casos quase imperceptíveis para os ouvidos menos atentos, e que essas

254 Une justesse adaptable aux besoins du moment est la solution sûre au grand problème de jouer juste. 255 Joel Krosnick (1941), violoncelista americano, membro do Quarteto da Juilliard desde 1974. 256 I’ve discovered that the great string players, whether consciously or not, really have the kind of intonation that has something to do with a very expressive perception of what the pitches mean to them. [...] Are we doing leading tones in this passage or are we trying to play tempered? It depends on the harmonic attitude. 257 Violinista americano, atuou como segundo violino (1986-1997) e posteriormente primeiro violino (1997-2009) do Quarteto da Juilliard. 258 Conjunto formado para ser quarteto residente da instituição que leva seu nome, está em atividade desde 1946, com frequentes trocas de membros.

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flutuações entre padrões de afinação podem ocorrer distintas vezes dentro de um mesmo movimento dependendo do contexto musical (BLUM, 1987, p. 31).

Cordas soltas também podem vir a ser um problema em alguns casos na afinação expressiva, em função da tonalidade, como ilustra John Dalley:

Muitos instrumentistas acham que as cordas soltas devem ser constantes e que todo o resto deve se adaptar a elas. Mas na prática isto não funciona. Se você mantém firmemente aquela corda solta (no caso a corda lá) no que supostamente deveria ser uma terça maior de um acorde de fá maior, você está sem sorte (apud BLUM, 1987, p. 34).259

Em certas situações como esta, Dalley dá como possibilidade colocar o dedo sobre a pestana para subir ligeiramente a afinação, ou simplesmente evitar cordas soltas quando tais conflitos ocorrerem.260

Para o destacado pedagogo Carl Flesch, um sistema de temperamento igual no violino não é algo realizável, dando como exemplo o seguinte intervalo na corda lá do violino:

Flesch explica que

a diferença entre estas duas notas é de aproximadamente 60 vibrações. Porém a distância espacial entre o lá e o si♭ é de somente 2 milímetros; sendo assim 60 vibrações ocupam uma distância de 2 milímetros, e uma vibração é igual a 1/30 mm. Considerando que a colocação do meu dedo é tal que o meu lá está afinado, para obter o si bemol matematicamente afinado, eu teria que achar um ponto com a precisão de 1/30 mm. A possibilidade de acertar pode ser contemplada somente se imaginarmos que eu use um objeto com 1/30 mm de amplitude para pressionar a corda, e não um dedo, cuja ponta mede cerca de 10 mm. Mesmo que possamos supor por um instante que eu consiga colocar meu dedo com a precisão de 1/30 mm, em uma sucessão de notas, como uma escala por exemplo, isso se torna impossível. Devemos então, mesmo a contragosto, tirar

259 Many players think that open strings should be constant and everything else should adapt accordingly. But in a practical sense that´s untrue. If you´re sitting there with that open string which is supposed to be a major third in F major, you´re out of luck. 260 Borciani (1973, p. 39) recomenda evitar (quando possível) o uso de cordas soltas no quarteto, pela impossibilidade de adaptação da afinação da mesma. Borciani, porém, cita casos em que o efeito sonoro da corda solta e seus harmônicos são bem-vindos em um contexto musical específico, as vezes até mesmo a pedido do compositor, como em diversos momentos nos quartetos de Ravel e Debussy.

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sua aura de santidade ao termo “tocar afinado”. Tocar afinado, em termos físicos, é uma impossibilidade (FLESCH, 2000, p. 8).261

Flesch faz aqui uma distinção entre tocar afinado e transmitir ao ouvinte uma sensação de se estar tocando afinado. Para ele, o violinista deve corrigir a nota desafinada, seja mudando o dedo de lugar, ou então vibrando em direção à intonação correta, corrigindo o erro inicial. Esse processo deve ocorrer tão rapidamente que o ouvinte tem que ter a percepção de que a nota estava afinada desde o seu início. “Tocar afinado é então nada mais do que uma rápida e bem executada correção de uma nota inicialmente imprecisa”262 (FLESCH, 2000, p. 8).

O vibrato é um recurso importante para a afinação. Sendo um dos mais efetivos meios interpretativos, suas possibilidades são extensas. Para Flesch, ele deve seguir a voz humana e suas emoções: “mesmo quando falamos, podemos perceber que a emoção, como alegria, dor, ódio ou amor resultam em uma combinação de instabilidade e vibrações na voz” (FLESCH, 2000, p. 20),263 sendo um movimento que, partindo de um ponto central, levando a mão acima e abaixo dele, produz uma oscilação sonora da nota musical, por uma extensão superior e inferior ao núcleo central. Porém é frequente, por uma facilidade mecânica, vibrar somente do centro para cima, o que influi fortemente em uma execução musical. Walter Levin, primeiro violinista do Quarteto LaSalle,264 adverte sobre esse fenômeno:

Lembro-me de que ele [Gideon Strauss, amigo do violinista] ouviu o Quarteto LaSalle em São Francisco, e foi me ver depois, e me disse que minha afinação poderia melhorar, que eu toquei um pouco alto, e me perguntou se eu sabia o porquê. O motivo era que eu utilizava o tipo de vibrato que vai pelo lado superior das notas. Se fizer isso, elas soam altas, porque o ouvido se orienta pelas frequências mais altas. Eu sabia disso, mas fiz

261 The difference between these two notes is approximately 60 vibrations. The spatial distance between A and B♭ is however only 2 millimeters; therefore 60 vibrations are contained in the space of 2 millimeters, thus one vibration equals 1/30 mm. Assuming that my finger placement is such that the A is in tune, in order to play the B♭ mathematically in tune, I would have to place my finger in a location that is accurate to the 1/30 mm. The possibility of doing this could be contemplated in one’s imagination – if I used an object of a width of 1/30 mm to press down on the string, but certainly not with a finger which, at its tip, measures approximately 10 mm. Even if I assume that by lucky coincidence I suceed to place my fingers with an accuracy of 1/30 – in a succession of notes, such as in a scale, this become an impossibility. We therefore have to, as regrettable as this may be, deprive the term “playing in tune” of it’s sanctity. To play in tune, in terms of physics, is an impossibility. 262 “Playing in tune” is therefore nothing but an extremely rapidly and cleverly executed correction of the initially imprecise pitch. 263 Even in speaking, we can observe that emotion, joy, pain, hatred or love results in a mixture of instability and vibration. 264 Quarteto ativo de 1946 a 1987, com especial ênfase em obras da segunda escola de Viena (Schoenberg, Berg e Webern), e responsável por um importante resgate à obra de Zemlinsky, compositor quase desconhecido quando o conjunto gravou os seus quatro quartetos, disco que conquistou destacados prêmios.

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assim mesmo. Tive que aprender a não mais fazê-lo (SPRUYTENBURG, 2014, p. 36).265

O mais indicado é vibrar da nota para baixo, pois assim a percepção auditiva é da frequência mais alta, o que no caso corresponde à nota na sua altura inicial, em seu ponto central. O mesmo é relatado por Peter Oundjian, ex-primeiro violino do Quarteto de Tokyo, 266 defendendo o uso do vibrato como importante ferramenta na correção da afinação:

Eu costumava vibrar acima da nota, porque achava que ia me tornar um grande solista, e que isso era o procedimento correto a ser seguido. Na realidade, eu estava errado, e muitos dos grandes pedagogos ensinaram seus alunos a vibrar para baixo. Isomura [Kashido Isomura, violista do Quarteto de Tokyo] me disse: Olha, você poderia tentar treinar levar seu vibrato para trás. Não é que você esteja colocando seus dedos muito alto, mas quando você vibra, soa alto (EISLER, 2000, p. 47).267

Outros fatores também podem influir na percepção da afinação de um conjunto, como o tipo de timbre. Nos instrumentos de cordas, o tipo de timbre é em grande parte dependente da localização do ponto de contato do arco na corda, assim como da velocidade do arco. Um estudo conduzido com alunos do curso de música da Universidade McGill no Canadá observou alterações na percepção que os mesmos tinham sobre afinação a partir de mudanças no timbre (WAPNICK, FREEMAN, 1980, p. 182).268

Nos instrumentos de cordas, a paleta de cores que pode ser produzida é considerável. Principal meio utilizado para a mudança na coloração do som, o ponto de contato entre o arco e a corda exerce forte influência na sonoridade, variando muito os resultados. Para Flesch, no violino, podemos dar a uma nota a coloração semelhante ao de “uma flauta ao tocar na região do

265 I remember that he heard the LaSalle Quartet in San Francisco and came up to me afterwards and told me that my intonation could be better, that I’d played a bit sharp, and asked me if I knew why. It was because I used the kind of vibrato that goes to the high side of the notes. If you do that, they sound sharp, because the ear orients itself towards the higher frequencies. I knew this, but I did it anyway. I had to learn not to do that. 266 Conjunto formado em 1969 por alunos japoneses na Juilliard School, esteve em atividade até 2013, com dois de seus membros originais (segundo violino e viola), fazendo extensas turnês pelo mundo e vasta discografia. 267 I used to vibrate above the pitch, because I thought that to become a great soloist, that was the thing to do. In fact, I was wrong, and many of the great teachers have thaught students to vibrate below the pitch. Isomura said to me: You know, you could try to practice pulling your vibrato back. It’s not that you’re putting your fingers down too high, but when you vibrate, it sounds high. 268 Nesse experimento, uma sequência de sons pré-gravados na clarineta eram tocados por grupos de duas notas repetidas. Na segunda nota os pesquisadores acrescentavam ou retiravam brilho, ou então não alteravam a nota original, de maneira aleatória. A pesquisa observou que na maior parte dos casos um acréscimo de brilho levava os alunos a acreditar que havia uma mudança na afinação na clarineta para o agudo, assim como o contrário para sons mais escuros, quando na verdade não havia nenhuma alteração na altura da nota. Como conclusão o teste indica que variações no timbre influem na percepção que temos da afinação.

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espelho. Tocando mais perto do cavalete, o som terá o caráter calorosamente incisivo do oboé, enquanto que ao usar a parte central da corda, um timbre semelhante à clarineta será produzido” (FLESCH, 2000, p. 76).269

As oitavas, assim como os uníssonos, são pontos sensíveis para a afinação de qualquer conjunto. John Dalley recomenda nesses casos que a voz inferior toque de maneira um pouco mais presente, tornando mais leve a voz superior, mesclando melhor a afinação entre as diferentes vozes. O mesmo também se aplica a um instrumento solo tocando passagens em oitavas (BLUM, 1987, p. 35).

O trinado também requer um cuidado especial na sua execução:

Quando um dedo encosta no espelho rapidamente, há uma tendência para que ele não vá até o final do seu percurso; não há tempo para que você coloque toda a extensão da ponta do dedo na corda. Como consequência, se você fizer um trinado com a afinação de sempre, a nota superior soará baixa. Para compensar, você deve tocar a nota superior do trinado um pouco alta; então o resultado soará afinado (SOYER apud BLUM, 1987, p. 35).270 Esse fenômeno também é descrito por Pablo Casals não somente nos trinados, como também em passagens rápidas com semitons, em que é necessário exagerar ainda mais a proximidade dos semitons271 (BLUM, 1977, p. 106-107).

O estudo lento é sempre indicado para resolver divergências na afinação, seguindo dinâmicas não muito fortes e sem vibrato, recurso que pode facilmente encobrir falhas (RAABEN, 2003, p. 74). Separar o conjunto em diferentes combinações pode igualmente ser útil, por exemplo, violoncelo e viola, enquanto os outros escutam e opinam, e ir progressivamente incluindo outros instrumentos (BLUM, 1987, p. 34). Para Timm (1943, p. 20), faz-se necessário criar um hábito de insistir na afinação, sem nunca deixar passar nada, sendo este o único meio de aprimorar a consonância do conjunto.

269 The coloration of the flute by playing it in área of the fingerboard. Played close to the bridge, the tone will have the warmly incisive character of the oboé, while using the central portion of the string, a timbre akin to the clarinet can be produced. 270 When a finger touches the fingerboard quickly, it tends not to go all the way down; nor do you have time to place the whole pad of the fingertip on the string. Consequently, if you trill with customary intonation, the upper note will sound flat. To compensate, you should play the upper note of the trill a little sharp; then it sounds on the pitch. 271 Com a afinação expressiva, Casals não hesitava em fazer compromissos em função da harmonia, quando, por exemplo, uma nota em corda solta tinha uma importante função harmônica ou expressiva, o violoncelista usava seu primeiro dedo acima da pestana do instrumento a fim de atingir a altura desejada (BLUM, 1977, p. 106).

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Porém o mais importante em uma performance, para o Quarteto Guarneri, quanto a este tópico, é sempre estar atento ao que os outros instrumentistas estão tocando, especialmente os que tocaram antes. Se alguém terminar uma passagem um pouco mais alto, por exemplo, o instrumento que entra em seguida deve começar sua frase partindo da mesma afinação, para não destoar. “Você deve se ajustar ao que escuta no momento, você tem que ir com os seus colegas, para o melhor, tanto quanto para o pior” (BLUM, 1987, p. 34).272 Norton (2003, p. 176) explica que, ao contrário do instrumentista solo, que tempera sua própria escala, o quartetista não tem que pensar suas notas em uma relação diatônica, e nem mesmo em uma relação com outro instrumentista. Porém ele deve levar em conta um constante processo de modulação, de uma harmonia distribuída entre os quatro instrumentos. Ou seja, a sua pureza é determinada por suas relações modulatórias. A afinação seria então um trabalho de grupo, uma série de escolhas feitas coletivamente.

Em outras palavras, “é inadmissível a defesa absoluta da própria afinação, se esta não corresponder nem se harmonizar com a dos outros” (RAABEN, 2003, p. 73).

3 A mão direita

Dois violinistas, num bar, discutiam o que era mais difícil de ser adquirido: o perfeito manejo da mão esquerda ou da mão direita (o arco). Quando mais acalorada estava a discussão, entrou no bar Paganini, então a figura mais conhecida da época. Sentou-se algumas mesas à frente. Um dos rapazes, aproveitando a ocasião, perguntou: – Grande Mestre, qual é a mão mais difícil de se adquirir uma técnica perfeita? Não é a esquerda? Ao que Paganini respondeu: – A mão esquerda perfeita precisa de uma vida. – E a direita, Mestre? – perguntou o outro rapaz. – Ah, esta precisa de uma eternidade! (SALLES, 2004, p. 19).

Essa pequena anedota, frequentemente contada pelo pedagogo Marco Salles,273 ilustra de maneira sucinta as dificuldades que envolvem um domínio da técnica de arco. Salles comparava o arco ao pulmão do violino “Como poderíamos tocar bem com um pulmão

272 You still have to adjust to what you hear at the moment, you have to go with your colleague for better or worse. 273 Marcos Salles (1885-1965), violinista e pedagogo atuante no Rio de Janeiro na primeira metade do século XX, foi professor do Conservatório Brasileiro de Música. Sua importante pesquisa sobre a técnica do violino, em especial sobre os diferentes golpes de arco, vem sendo resgatada por sua neta Mariana Salles, também violinista e pedagoga, atualmente professora de violino da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

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defeituoso e fraco? [...] Não emitiria mais do que um som fraco e sem vida” (apud SALLES, 2004, p. 19).

3.1 Articulação

“A articulação pode ser definida como a conexão (legato), ou separação das notas individuais; isso determina o caráter e contorno dos temas e motivos. Articulação é frequentemente confundida com fraseado” (FLESCH, 2008, p. 35).274 O quarteto é capaz de incontáveis sutilezas e variações no som, e a articulação é um assunto que merece um destaque nesse processo. É necessária a unificação dos tipos de ataque, assim como ampliar a gama de articulações disponíveis para o conjunto.

As notas com ponto acima não significam automaticamente que são notas curtas.

Há um entendimento errado consideravelmente difundido de que um ponto em cima de uma nota significa que a nota deverá ser necessariamente curta. Porém, na época de Mozart e Beethoven, um ponto simplesmente significava uma simples separação: simplesmente uma maneira de indicar que a nota não deveria ser sustentada até o final. A nota pode ser curta, semi-curta, ou longa, de acordo com o seu contexto (SOYER apud BLUM, 1987, p. 66).275

O ponto, na sua ideia de separação com a próxima nota, simplesmente significa que o final da nota é encurtado em algum nível, “uma necessidade de pausa entre as notas”,276 mas não o seu início. Porém o caráter da obra musical ditará a duração da nota (FLESCH, 2008, p. 35). É frequente observar instrumentistas separarem a nota com ponto antes de tocá-la, quando na verdade a separação deve ocorrer após a nota.

A acentuação musical também se dá em um processo semelhante. A gama de possibilidades é vasta, assim como as indicações disponíveis pelos compositores em suas marcações. Uma multiplicidade de termos encontra-se à disposição dos criadores, como marcações de >, assim como sf, fz, fp, mfp, ou mesmo pedidos especiais encontrados em obras

274 Articulation can be defined as the tying-together or slurring together (legato), or the separation, of individual notes; this determines the character and shape of themes and motives. Articulation is often confused with phrasing. 275 There’s a widespread misunderstanding that a dot over a note means that the note should necessarily be short. However, in the time of Mozart and Beethoven a dot meant simply a separation; it was just a way of indicating that a note wasn’t to be sustained all the way through. The note can be short, medium short, or medium long, according to its context. 276 The necessity of a pause between the notes.

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contemporâneas, como efeitos que fogem do habitual. Porém, nos casos tradicionais, é importante ter em mente que uma acentuação não é uma dinâmica absoluta, mas relativa a um contexto musical, assim como ao estilo do compositor e da obra em particular. Um acento pode ser percussivo, pesado, ou leve e somente um apoio, e certamente não será o mesmo em Mozart, Brahms, Bartók ou Boulez.

Certamente, o contexto no qual o acento se inclui é de fundamental importância. Por exemplo, Brown explica que a ausência de marcações de articulação em obras do século XVIII não significava de maneira alguma que as mesmas estivessem ausentes da performance, mas o seu uso estava a cargo do intérprete. A partir do final do século XVIII, e principalmente durante o século XIX, diversos escritos sobre a performance surgiram, demonstrando uma vontade dos compositores de estabelecer de maneira clara regras de acentuação, assim como de interpretação, para que nem todas as escolhas interpretativas ficassem exclusivamente a cargo do intérprete. Porém, mesmo com estes tratados musicais, “o sentido das instruções escritas variaram através do tempo, de lugar e de compositor a compositor, trazendo confusão quanto ao seu significado até os dias de hoje” (BROWN, 2002, p. 7-8).277

O acento traz, entre suas possibilidades, ser um simples reforço do pulso rítmico, assim como um apoio artificial proposital (NORTON, 1966, p. 107). Em alguns casos, a acentuação pode ser feita simplesmente pela mão esquerda, na qual um vibrato pode trazer o necessário relevo à nota desejada (RAABEN, 2003, p. 117).

Em passagens legato, é importante conseguir efetuar a troca de arco na maneira mais suave possível, na qual a mudança não seja perceptível, e que não altere de alguma forma o fraseado (NORTON, 1966, p. 43). De um ponto de vista técnico, Galamian explica que isso é possível por meio de uma redução da velocidade, assim como da pressão exercida no arco logo antes da troca (GALAMIAN, 1993, p. 122). É sem dúvida um dos efeitos sonoros mais difíceis de se obter nos instrumentos de cordas, porém Borciani explica que “é essencial que o quartetista possa dividir as ligaduras sem que quase se possa perceber: assim será possível dar mais fôlego

277 The meaning of signs and written instructions varied from time to time, place to place and composer to composer, leading to confusion about their significance that has persisted to the present day.

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às frases musicais, que de outra forma seriam muito sacrificadas por arcadas longas demais” (BORCIANI, 1973, p. 6).278

3.2 Ponto de contato e timbre

Alguns pedagogos, como Simon Fischer, acreditam que no violino existam cinco diferentes pontos de contato, localizados entre o espelho e o cavalete do instrumento, cada um responsável por uma diferente coloração sonora (FISCHER, 2013, p. 1). Se decerto essa teoria parece ser uma sistematização exagerada da produção sonora, pelo fato de somente cinco regiões ser um número limitado de possibilidades, a teoria tem facilitado a introdução do conceito nos alunos de violino. Flesch (2000, p. 62) define corretamente ao afirmar que “o lugar no qual a crina do arco encosta na corda está sujeito a constantes mudanças” (grifo nosso).279 Mudanças essas que dependem de variáveis, como a duração da nota, a pressão exercida no arco e a altura da colocação da mão esquerda na corda (ou seja, o tamanho da corda que irá vibrar livremente). Se o instrumentista ignorar essas variáveis, e tão-somente se concentrar em manter o arco em um dos cinco pontos de contato, sem mudá-lo, independentemente da pressão, velocidade e outros, o tipo de sonoridade obtida não será constante, tendo como resultado imediato uma dificuldade de conduzir com satisfatoriedade uma linha melódica.

Figura 4: Representação dos cinco pontos de contato de Simon Fischer

Fonte: FISCHER, 2013, p. 1.

278 È essenziale che il quartettista sia in grado di rompere legature senza quasi farlo avvertire: sarà in tal modo possibile dare più respiro musicale a frasi che diversamente verrebbero sacrificate da arcade troppo lunghe. 279 The place in the string where the bow hair touches it is subject to constant change.

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Há um entendimento, entre muitos instrumentistas de cordas, especialmente alunos, de que o posicionamento do ponto de contato do arco com a corda está relacionado com a dinâmica a ser tocada. Ao tocar forte, o ponto de contato seria localizado perto do cavalete, e piano perto do espelho. Porém é importante considerar uma outra variável nessa equação, que é a velocidade de arco a ser utilizada. Quanto mais lenta a arcada, mais propenso estará o ponto de contato a se situar perto do cavalete, assim como o seu oposto tenderá a se posicionar nas proximidades do espelho do instrumento (FLESCH, 2000, p. 63). Afinal, a qualidade do som está diretamente relacionada à velocidade de arco, ponto de contato e pressão exercida. A combinação desses três fatores requer um equilíbrio permanente e constantemente adaptável do intérprete.

A pressão exercida no arco pelo instrumentista requer um delicado cuidado para que não haja exagero, provocando um som achatado e esmagado.

Muitos instrumentistas e pedagogos evitam utilizar o termo pressão por receio de que ele possa levar ao aluno pressionar o arco e esmagar o som, e utilizam a palavra peso no lugar, para incentivar uma sensação de distribuir o peso do arco na corda. Um outro argumento é que pressão indica foco em um ponto, enquanto peso nos remete a algo melhor repartido, sem um foco específico. [...] Se os dedos estão corretamente distribuídos no arco, se você está sensível às mudanças de velocidade, pressão e ponto de contato, se você deixa o arco conduzir a mão, se você tem uma ideia clara da necessidade de a corda vibrar livremente, assim como da pureza e beleza do som que você quer obter – e se está escutando atentamente – há poucas chances de tocar com um som esmagado, qualquer que seja a palavra que você utilize (FISCHER, 2013, p. 3).280

3.3 Pizzicatos

Frequentemente presente na literatura de quarteto de cordas, o pizzicato, ou o ato de pinçar a corda produzindo um som sem o intermédio do arco, requer alguns poucos cuidados quando de sua realização. John Dalley institui como primeira necessidade uma maior firmeza na mão esquerda na hora de produzir o pizzicato, como se o dedo da mão esquerda “produzisse uma nova pestana” no instrumento, trazendo uma ressonância às notas similar à de uma corda solta (BLUM, 1987, p. 52).

280 Many players and teachers avoid using the word ‘pressure’ through fear that it may lead to pressing the bow and squashing the sound, and use the word ‘weight’ instead, to encourage a feeling of ‘sinking the weight of the bow into the string’. Another view is that ‘pressure’ indicates focus on one point, and ‘weight’ expresses more of a spread-out, unfocused feeling of general heaviness. [...] If the fingers on the bow are well distributed; if you are sensitive to the balances of speed, pressure and soundpoint; if you let the bow lead the hand; if you have a clear concept of the freely vibrating string, and of the purity and beauty of tone that you require – and then if you listen – there is little chance of playing with a pressed tone whatever words you use.

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O lugar na corda no qual a mão direita pinça a corda afeta o tipo de sonoridade que se obtém. Para um pizzicato com maior volume e harmônicos, em cima do espelho a corda é mais flexível e responde melhor a esse tipo de som. Para um efeito mais seco e ríspido, o intérprete deve se aproximar mais do cavalete. A execução de um pizzicato é muito difícil. O menor relaxamento durante a execução leva à produção de um som opaco, sem pureza e sem nitidez. Por essa razão, é preciso zelar pela parte técnica da execução, cuidando ferir a corda com a polpa do dedo, evitando-se a parte áspera do dedo ou unha (RAABEN, 2003, p. 133).

Michael Tree adverte também que a nota do pizzicato morre rapidamente após sua execução. Para que elas possam ser bem compreendidas pelo público, o violista recomenda que elas sejam tocadas quase sempre uma dinâmica acima do que esteja indicado na partitura (BLUM, 1987, p. 53). Como meio de tentar manter por mais tempo o som do pizzicato, Raaben indica o uso do vibrato (2003, p. 134). Também é importante manter a pressão dos dedos da mão esquerda na corda para que a nota possa continuar soando por mais tempo. Na opinião do Quarteto Guarneri, o quarteto de cordas nunca deve perder de vista, em especial em momentos que mesclam melodias com arco e acompanhamento de pizzicato, que este último possui um tempo de resposta quase imediato, enquanto o arco necessita de uma fração de segundo para pôr a corda em movimento (BLUM, 1987, p. 52). Se o grupo não coordenar essas diferenças de tempo, problemas de conjunto podem surgir.

4. A mão esquerda

4.1 Articulação

A articulação da mão esquerda é um fator determinante na clareza da execução musical. Alexander Schneider281 destacava a articulação da mão esquerda, ao pedir que, mesmo quando a dinâmica tocada fosse de piano, a digitação da mão esquerda deveria obedecer aos mesmos princípios da execução do mesmo trecho em fortíssimo. “Mesmo quando você toca piano com a mão direita, toque fortíssimo com a mão esquerda” (apud BLUM, 1987, p. 37).282

281 Schneider foi segundo violino do famoso Quarteto de Budapeste, além de destacado pedagogo após sua emigração para os Estados Unidos da América. 282 Even if you’re playing piano with the right hand, play fortissimo with the left hand.

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Mantel define que uma certa energia mínima é necessária ao se pressionar uma corda que está em movimento. Casals chamava esse movimento de percussão, tendo como princípio que, para se obter uma certa expressividade, o início de cada nota deve ser claro e preciso. A percussão de Casals nada mais era do que uma forte articulação do dedo da mão esquerda. Como ressalva, Mantel adverte que a mão esquerda não pode ficar tensionada. Essa percussão depende de certos fatores, como a força dos dedos, velocidade do espelho, assim como a distância dos dedos. O segundo dedo, mais forte, necessitará de uma menor distância para articular, ao contrário do quarto dedo, naturalmente mais fraco (MANTEL, 1995, p. 86-88). Nos instrumentos de cordas, e em especial no violoncelo, a posição da mão no espelho do instrumento ajuda consideravelmente nesse fenômeno, uma vez que aumenta a distância da mão ao espelho em ordem decrescente de força dos dedos:

Figura 5: Representação dos dedos da mão esquerda no espelho do violoncelo

Fonte: MANTEL, 1995, p. 88.

O Quarteto Guarneri propõe fazer uma divisão da articulação entre ambas mãos, dependendo do contexto. Por exemplo, em passagens de spiccato, por se tratar de notas curtas, o arco acaba fazendo a maior parte do processo articulatório, portanto a mão esquerda deveria ter uma digitação leve. Em momentos mais legatos, faz-se necessária uma maior ênfase na mão esquerda para se obter clareza (BLUM, 1987, p. 49).

Em seções ascendentes, a própria percussão dos dedos nas cordas forma uma articulação natural. Porém, em passagens descendentes, o mesmo não ocorre. Para compensar, Casals preconizava o uso do pizzicato da mão esquerda, ou seja, cada dedo, ao ser levantado, pinça ligeiramente a corda, dando uma maior clareza na execução. O dedo, em vez de deixar a corda em um sentido vertical, se desloca em uma direção lateral, para equilibrar a articulação entre excertos ascendentes e descendentes (apud BLUM, 1987, p. 138-139). É importante relaxar

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a mão esquerda após cada ataque da articulação. Assim que o dedo impacta a corda, o instrumentista deve procurar esvaziar a mão de todos os tipos de tensão, a fim de evitar lesões, além de uma perda significante de agilidade e qualidade do vibrato (BLUM, 1987, p. 102).

Em relação ao trinado, Mantel (1995, p. 91) destaca quatro possíveis maneiras de se efetuar o efeito:

a) usando simplesmente o dedo b) utilizando o punho c) por meio de uma rotação do antebraço d) em conjunção com o vibrato de braço Essas quatro categorias podem ser combinadas entre si, de acordo com o que há de ser tocado e o tipo de articulação necessária. O trilo com vibrato é uma ferramenta de grande utilidade, por exemplo, em regiões agudas do violino, nas quais não há muito espaço para colocar os dedos, e para relaxamento dos dedos menos fortes, como o quarto.

4.2 Dedilhados e mudanças de posição

A escolha do dedilhado influi consideravelmente na interpretação, assim como na clareza técnica durante a performance do conjunto. As combinações possíveis são numerosas, cabendo ao intérprete optar por determinados padrões de digitação. Ivan Galamian, em seu livro sobre o ensino e a técnica do violino, destaca a existência de dois tipos de dedilhados nos instrumentos de corda: um musical e o outro técnico. “Musicalmente, o dedilhado deve garantir à frase o melhor som e mais bela expressão. Tecnicamente, ele deve facilitar a passagem para o maior conforto possível. Nem sempre os dois são compatíveis”.283 Porém, ele adverte em seguida, nesses casos de incompatibilidade, nunca devemos sacrificar a musicalidade em prol de um conforto técnico. “Primeiro expressão, conforto em seguida” (GALAMIAN, 1993, pp. 49- 50).284

Galamian (1993, p. 57) destaca alguns princípios que contribuíram para o desenvolvimento da técnica da mão esquerda por meio do aprimoramento do dedilhado.

283 Musicalement, le doigté doit assurer à la phrase le son le meilleur et l’expression la plus belle. Techniquement, il doit rendre le passage aussi facile et confortable que possible. Ce n’est pas toujours compatible. 284 Expression d’abord, confort ensuite.

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Galamian aqui se refere ao violino especificamente, porém os princípios podem ser aplicados aos outros instrumentos de cordas.

a) usar mais frequentemente as posições pares. As escolas antigas preferiam o uso frequente da primeira, terceira, quinta e sétima posições, mais cômodas do que as pares, tendência que foi sumindo aos poucos, porém ainda encontrando certa resistência dentre os alunos. b) A mudança de posição por meio de semitons. Uma mudança de tom inteiro é mais perceptível, favorecendo o aparecimento de glissandos indesejados. Uma mudança de posição em semitons costuma ser mais discreta. c) utilizar uma corda solta na hora da mudança de posição, para eliminar resquícios sonoros de glissandos. d) A utilização de um dedilhado sequencial em cromatismos, e sem repetições de dedos. e) O uso de extensões para evitar mudanças de posição por vezes desnecessárias.

Carl Flesch questiona a divisão e organização de padrões de dedilhados em posições:

Certamente, para o iniciante, a designação de posições é razoável de maneira a assisti-lo a adquirir uma familiaridade com as relações de distância no espelho. Contudo, o violinista avançado deve se libertar deste conceito o mais rapidamente possível – tão distante da prática moderna – de uma posição da mão numericamente designada. A localização da mão é frequentemente contrária à chamada “posição”. Substituições enharmônicas, uso simultâneo de diferentes posições, extensões e, acima de tudo, as distâncias que vão diminuindo ao subir no espelho – resumindo, as diferenças entre a teoria e a prática –, tudo isso significa que as tradicionais designações de posição somente podem ser consideradas como uma guia na instrução no nível elementar, e nunca utilizadas como um critério para a localização da mão em situações com certa complexidade (FLESCH, 2000, p. 95).285

Esse questionamento sobre uma flexibilização das posições tradicionais pode vir a ser particularmente proveitoso no uso de extensões, assim como ao se tocar mais de uma posição ao

285 Assuredly, for the beginner, the designation of positions is reasonnable as far as assisting him in acquiring familiarity with the distance relationships on the fingerboard is concerned. The advanced violinist, however, must as rapidly as possible seek to free himself from the concept – so foreign to modern violin playing – of a numerically designated hand position. The actual location of the hand is often quite contrary to the designation of the “position”. Enharmonic substituitions, simultaneous use of different positions, stretches, and above all, the steadily diminishing distances going up the fingerboard – in brief the differences between the actual and the assumed relationships – all this means that traditional position designations can only be considered as help in elementary-level instruction; they can never be used as criteria for the hand location in situations of some complexity.

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mesmo tempo. Com isso, evitam-se mudanças de posição desnecessárias, com os tradicionais problemas que as mesmas podem acarretar, como glissandos, desafinação e uma possível interrupção momentânea de uma linha melódica (BLUM, 1987, p. 115).

O Quarteto Guarneri aponta que o uso de dedilhados simples e em posições baixas sempre que possível dá uma maior precisão sonora, além de facilitar no processo de afinação do conjunto (BLUM, 1987, p. 43). John Dalley se lembra de uma aula que teve em sua juventude tocando Bach para o seu professor de então, Zimbalist,286 que disse: “Por que não utilizar um dedilhado simples? Bach nunca usaria um dedilhado desses; ele provavelmente nunca teria pensado nisso. Não faz o menor sentido” (apud BLUM, 1987, p. 45).287 Norton acrescenta que restringir o uso de mudanças de posição também é um fator a ser observado, lembrando que, quando a mudança de posição for inevitável, deve-se tentar fazê-la da maneira mais imperceptível possível. “O tipo de dedilhado necessário na prática de quarteto é aquele com o qual se obtém o maior resultado, por meio do menor esforço” (1966, p. 81).288

Considerado por muitos como um tópico a ser evitado, a utilização das cordas soltas no quarteto de cordas pode ser de significativa utilidade para uma maior clareza, assim como pela facilidade de afinação em passagens rápidas e complicadas e também para dar uma ênfase especial ou destaque em uma nota (BLUM, 1987, p. 44).

4.2.1 O glissando

O glissando, ou portamento, é um recurso artístico utilizado dentro de um contexto musical, como forma de ressaltar determinada nota ou harmonia. Porém é necessário reforçar a ideia de que o seu uso deve ser restrito unicamente a uma escolha interpretativa, e não como uma deficiência técnica do instrumentista, ou mesmo um gosto musical duvidoso. Trata-se de um efeito, e não de um recurso recorrente, como adverte Norton:

286 Efrem Zimbalist (1889-1985), destacado violinista e pedagogo russo, foi professor no Curtis Music Institute na Filadélfia, tendo entre seus alunos John Dalley e Michael Tree, ambos membros do Quarteto Guarneri. Também foi professor de Oscar Shumsky (1917 – 2000), um dos maiores virtuoses americanos do violino, e que foi primeiro violinista do Quarteto Primrose, ao lado de Joseph Gingold, William Primrose e Harvey Shapiro. 287 Why not use a simpler fingering? Bach wouldn’t have used a fingering like that; he probably never would have thought of it. It doesn’t make any sense. 288 The type of fingering required in quartet playing is that which will do the most with the least effort.

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O uso do glissando torna-se perigoso no quarteto de cordas. O efeito deve ser considerado por diversos ângulos: o estilo da música, se um glissando é realmente necessário, se deve ser pesado, aparente e destacado com muita expressão, ou um leve e rápido, pouco audível porém dando uma sensação de acaloramento na frase. Porém o primeiro aspecto a ser considerado é que qualquer frase importante tocada, digamos, pelo primeiro violino, com muita expressão será provavelmente repetida posteriormente em um outro instrumento, e que um glissando muito distinto, apropriado para uma voz solista, pode tornar-se cansativo quando repetido por diversas vezes. [...] O glissando a ser evitado (um frequentemente presente em alguns violinistas, infelizmente) é aquele realizado por ignorância em lugares que não necessitam, e não deveriam ter a ênfase adicional na linha da frase. Este glissando rouba a efetividade do glissando legítimo e estraga a real expressividade da música. Parece ter se tornado um hábito em alguns instrumentistas: ouve-se um glissando em todo o intervalo no qual há uma mudança de posição. Eles não parecem se dar conta de que isso ocorre por uma lacuna técnica ou desleixo, uma mudança de posição defeituosa. É um vício que se adquire com facilidade, e, como a maioria dos hábitos, funciona sem que se pense sobre. Isso demonstra uma falta de escuta crítica do instrumentista, assim como uma falta de refinamento artístico, já que o instrumentista não faz a distinção entre um efeito musical e um ato mecânico (1966, p. 82-83).289

Flesch (2000, p. 16) faz uma clara distinção entre o glissando sendo um procedimento puramente técnico, e o portamento como um meio de expressão artística. Flesch distingue dois tipos usuais de portamentos, o primeiro no qual o dedo que faz o portamento é o da nota de saída, e o segundo, a nota de chegada:

Figura 6: Portamento sobre a nota de saída

289 The use of slide becomes dangerous in quartet music. The effect should be considered from several angles: the style of the music, whether a slide is really needed, whether it should be heavy, passionate kind of slide or a light, quick one, scarcely audible yet giving warmth to the phrase. But first of all the fact should be envisaged that any principal phrase launched, say, by the first violin with great expression, is likely to recur at one time or another and in one form or another in every voice, and that a distinct slide, suitable for a solo voice, can become appealing when repeated over and over again. [...] The slide to beware of (one much heard, alas, in a certain types of violin playing) is the sort done out of ignorance in places which do not need, and so should not have, the additional emphasis in the phrase-line. This sort of slide robs the legitimate slide of his effectiveness and spoils the real expressiveness of the music. It seems to become a habit with some players; they let it be heard with every interval that goes out of one position. They do not seem to be aware that it is for the most part a technical carelessness or sluggishness, a defective shifting. It is an easy habit to fall into and, like most habits, functions without thought. It shows a lack of critical listening by the player, and a lack of artistic refinement, since he does not distinguish between a musical effect and a mechanical act.

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Figura 7: Portamento sobre a nota de chegada

Fonte: FLESCH, 2000, p. 15.

Ao discorrer sobre esses tipos de portamentos, Flesch explica que, nos tradicionais métodos de música, somente o primeiro tipo era aceito, sendo o segundo considerado “a invenção do mau gosto pelo Diabo, e merecedor de excomunhão”290 (FLESCH, 2000, p. 15). Porém Flesch adverte que preferências musicais e estilísticas sempre retratam a época na qual elas se inserem, sendo a música, assim como todas as artes, influenciada pelo espírito do tempo,291 e, portanto, convicções sobre bom/mau gosto podem não ser definitivas. Além disso, Flesch menciona a existência de uma diferença significativa entre teoria e prática e que todos os violinistas modernos se utilizam desse recurso em algum momento.

Faz-se necessário salientar que o portamento, por si só, não é uma garantia de uma maior expressão artística. Para tanto, ele deve estar inserido dentro de um contexto que permita a utilização do recurso. Ele também deve poder dialogar de maneira coerente com os outros meios de expressão, como o fraseado, os acentos e o vibrato, por exemplo (BORCIANI, 1973, p. 98).

4.3 O vibrato

“A aspiração de imitar a voz humana, tão característica pela riqueza de suas vibrações no momento da elevação emocional, foi um dos fatores responsáveis pela aplicação do vibrato nas execuções” (RAABEN, 2003, p. 137). O vibrato é uma das mais valiosas ferramentas do intérprete como meio de expressar emoções e de diferenciar timbres e cores.

A ideia de um vibrato contínuo é um conceito moderno, que foi surgindo somente a partir do final do século XIX, especialmente influenciado pela escola franco-belga de violino, e

290 The devil’s invention of bad taste, and deserving of excommunication. 291 O Zeitgeist, termo alemão que significa “espírito do tempo”, foi uma corrente de pensamento muito presente nos séculos XIX e XX, introduzida pelo filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), na qual se acreditava que a arte reflete a cultura de sua época. Cultura e arte seriam conceitos inseparáveis, pois que todo artista seria nada mais que um produto de sua época, e permeando toda sua obra com a cultura de seu tempo.

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se tornando comum nas primeiras décadas do século XX. Durante o período compreendido entre 1750 e 1900, o vibrato era classificado como um ornamento, “que, assim como outros recursos ornamentais, somente deveria ocorrer para dar um colorido pontual ou embelezar algumas notas em particular” (BROWN, 2002, p. 521).292

Flesch afirma inclusive que a personalidade inerente ao som de um instrumentista decorre do seu vibrato, tornando a sonoridade do mesmo facilmente reconhecível, mesmo através de um biombo (2000, p. 20). A emoção seria associada ao vibrato, pela semelhança com a voz:

Não há dúvidas de que a voz humana seja o modelo nunca superado para todos os músicos, e isto, levando em conta as características sonoras de cada instrumento, leva a que a imitação da voz seja o ideal a ser atingido por todos os músicos. Mesmo durante a fala, podemos observar que a emoção, alegria, dor, ódio ou amor resultam em uma mistura de instabilidade e vibração. Isso decorre de que, sob a influência de fortes emoções, perdemos o controle das partes do nosso corpo responsáveis pela fala (FLESCH, 2000, p. 20).293

Mantel discorda da justificativa da existência do vibrato e de seu uso como uma necessidade estética por conta de sua associação com o vibrato natural da voz humana. O violoncelista explica que vozes que não utilizam vibrato atingem um belo resultado, como, por exemplo, um coro infantil, e que, portanto, tal recurso não deva ser considerado como natural. Para Mantel, o vibrato tem sua função no fato de que a mudança é mais perceptível do que algo estático. O som contínuo de uma geladeira ou de uma máquina somente se destaca quando para. Para evitar que uma nota seja mais destacada somente em seu ataque, e que ela continue chamando a atenção do ouvinte por toda sua duração, o músico efetua mudanças cíclicas na nota (o chamado vibrato) durante toda sua duração (1995, p. 97-98).

Flesch define o vibrato como um desvio regular e periódico da altura definida da nota real, tanto para baixo quanto para cima (2000, p. 21). Para Mantel, esta seria a maior diferenciação entre o vibrato dos sopros e das cordas: nos instrumentos a ar, o vibrato é produzido por mudanças no volume das notas. Porém ele adverte que tal fenômeno também

292 Vibrato, along with other ornamental techniques, should occur as an incidental colouring or embellishment on particular notes. 293 There is no doubt that the human voice is the unrivaled model for all musical instruments, and that, taking into account the tonal individualities of each type of instrument, its imitation is the ideal of all musicians. Even in speaking, we can observe that emotion, joy, pain, hatred or love results in a mixture of instability and vibration or vibrancy.This come from the fact that under the influence of strong emotions we lose some control over the parts of our body which produce speech.

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ocorre ligeiramente nas cordas, pois os movimentos causados para a produção do vibrato provocam pequenos deslocamentos nos instrumentos, o que influi na pressão exercida pelo arco (MANTEL, 1995, p. 108). Por se tratar de uma alteração da altura da nota, certos tipos de vibrato terão uma consequência na percepção da afinação. É importante ressaltar que diversos tipos de vibrato são possíveis, com diferentes velocidades e amplitudes, e cabe ao instrumentista dominar tecnicamente as mais diversas formas do recurso:

A cada corda, a cada registro do instrumento, corresponde um vibrato apropriado: nas cordas graves (e nos seus registros graves), ele é mais amplo e menos rápido; nas agudas (e nos registros agudos), mais rápido e menos amplo. Quanto mais agudo é o registro, mais intenso é o vibrato.294 [...] A cada imagem musical deve corresponder um tipo de vibrato; uma melodia calma e cantante exige geralmente um vibrato amplo e calmo. Na melodia tensa, aumenta-se a intensidade. O vibrato deve ser sensível a todas as mudanças emocionais e expressões musicais (RAABEN, 2003, p. 138).

Gerhard Mantel explica essa diferença de vibratos de acordo com o registro da nota pelo comprimento variável da corda, entre o dedo que vibra e o cavalete:

A amplitude do vibrato depende não somente de considerações estéticas, mas também do comprimento da corda. Um dado intervalo sempre implica a mesma proporção no comprimento da corda que produz as duas notas. [...] Um vibrato com uma amplitude de 5 milímetros muda o comprimento de uma corda de 50 centímetros em uma relação de 1/100. Se a corda só tem 25 centímetros, este mesmo vibrato de 5 milímetros muda o comprimento da corda em uma relação de 1/50. Isso significa que, em notas com intervalo de uma oitava, o vibrato da nota mais aguda deveria usar somente metade da abrangência da nota grave a fim de se obterem as mesmas variações de afinação e qualidades acústicas. O vibrato desta mesma nota duas oitavas acima deveria ter um quarto da amplitude (1995, p. 109).295

Para Paolo Borciani, uma das maiores qualidades que podem ser apreciadas em um instrumentista de elevado nível é um vibrato que varia de acordo com as exigências expressivas do momento, sendo este um recurso a ser utilizado “com propriedade e moderação” (1973, p. 44).296

294 Como em todo tema subjetivo, não é possível generalizar este tópico. Há momentos nos quais um vibrato rápido e pouco amplo em registros graves é desejável, assim como o contrário em registros agudos. 295 The amplitude of the vibrato depends not only on aesthetic considerations but also on the lengh of the string. A particular interval always implies the same ratio between the lengths of the string that produces the two pitches. [...] A vibrato with a range of 5 millimeters (1/5 inch) change the length of a string of 50 centimeters (20 inches) by 1/100. If the string is only 25 centimeters (10 inches) long the same range of 5 millimeters changes the length by 1/50. This means that for pitches an octave apart the vibrato for the high tone should use only half the amplitude of that of the lower tone to produce the same acoustic variation of pitch. The vibrato on a pitch two octaves higher should have only a fourth of the amplitude. 296 Con proprietà e moderazione.

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No quarteto de cordas, figuram como habituais problemas a inconstância na regularidade do vibrato, assim como a falta de variedade do mesmo. Entre os vícios frequentemente observados está a tendência de se vibrarem somente algumas notas, por deficiências técnicas e não escolhas musicais, sendo mais cômodo vibrar em um ou outro dedo e não em todos da mesma maneira: “O quarto dedo, por exemplo é frequentemente negligenciado, e, por mais estranho que pareça, o primeiro dedo também, especialmente quando ele age como um ponto de apoio antes de uma mudança de posição” (BLUM, 1987, p. 36).297

O instrumentista deve procurar realizar o vibrato de maneira consciente, e não como um mecanismo automatizado, sobre o qual não há qualquer tipo de controle. O vibrato é um recurso técnico utilizado na construção de um pensamento artístico, portanto sua realização deve seguir o contexto musical no qual ele se insere. O uso indiscriminado do vibrato não é aconselhável, sobretudo sem uma necessária diversificação do mesmo, sendo na opinião de Michael Tree comparável ao ato de acrescentar o mesmo molho a todo o tipo de comida (BLUM, 1987, p. 38).

Aqueles que estão convencidos de que um vibrato eterno é o segredo para se tocar com a alma ou apimentar uma performance estão lamentavelmente errados em suas crenças. Sem dúvidas, em alguns casos eles estão agindo contra os seus próprios instintos, carregando inconscientemente as instruções de professores antimusicais. [...] Não, o vibrato é um efeito, um embelezamento; ele pode acrescentar um toque de pathos divino no clímax de uma frase, ou em uma passagem, mas somente se o intérprete possui um senso delicado de proporção no uso do mesmo (AUER, 1980, p. 22-23).298

A escolha deliberada de não utilizar vibrato é um recurso artístico válido e muito importante. O non-vibrato, presente em muitos momentos da literatura do quarteto de cordas, permite aos interpretes a faculdade de criar um clima especial, com um timbre diferenciado, criando um contraste instantâneo em relação ao uso do vibrato.

297 The fourth finger, for instance, is often neglected, and, strangely enough, the first finger as well, especially when it acts as the pivotal point before a shift. 298 Those who are convinced that an eternal vibrato is the secret of souful playing, of piquancy in performance – are pitifully misguided in their belief. In some cases, no doubt, they are, perhaps against their own better instincts, conscientiously carrying out the instructions of unmusical teachers. [...] No, the vibrato is an effect, an embellishment; it can lend a touch of divine pathos to the climax of a frase or the course of a passage, but only if the player has a delicate sense of proportion in the use of it.

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5 Interpretação e tradição

A arte de interpretar com eficiência os símbolos musicais que representam as notas, marcações de expressividade, estruturas de frase e indicações de tempo demanda uma coesão das faculdades cerebrais e emotivas. Entretanto, a história nos mostra que o equilíbrio entre emoção e intelecto flutua, em geral refletindo os gostos dominantes de determinado período. Consequentemente, é dever dos músicos se equipar com uma compreensão dos estilos musicais e conceitos que são indicativos do repertório a ser interpretado. À medida que as formas musicais evoluem, também o fazem os parâmetros de sua performance, e a não ser que os termos musicais que regem a execução sejam corretamente interpretados, a precisa realização das intenções do compositor se torna virtualmente impossível (HOUSTON, 1988, p. 22).299

5.1 O ritmo

“Na minha opinião, o tempo é o mais importante fator em uma performance musical” (MOZART apud BETTI, 1923, p. 3).300 Com essa afirmação, Wolfgang Amadeus Mozart destaca o cerne principal no conjunto e um dos mais significativos aspectos da interpretação de qualquer obra musical: o ritmo. Assim como Beethoven, ao afirmar que “o tempo está para a música como a alma está para o corpo humano” (apud BETTI, 1923, p. 3).301 Flesch (2008, p. 9) aponta que o corpo humano obedece às leis do ritmo, fenômeno presente na respiração e no pulsar do coração (conhecido como ritmo cardíaco). Tais leis rítmicas, para Flesch, ditam inclusive o andar do ser humano, pois, para ele, uma pessoa que anda fora de ritmo ou está doente, ou bêbada.

Apesar de ser construído sobre fórmulas matemáticas exatas e importantes de serem observadas, o ritmo é um fenômeno orgânico e, assim como toda interpretação, sujeito a uma certa maleabilidade, uma liberdade dentro de uma estrutura.

A maior parte das composições pede uma flexibilidade até certo ponto, a menos que estejamos tocando algo como o Concertino de Stravinsky. [...] Cada movimento possui um pulso geral, mas sentimos que dentro do tempo básico há espaço para alguma elasticidade. É como a questão das dinâmicas. Assim como o “piano” dispõe de uma

299 The art of effectively interpreting the musical symbols that represent notes, expression marks, phrase structures and tempo indications demands a cohesion of the cerebral and emotive faculties. History has shown us, however, that the balance of emotion over intellect fluctuates, generally reflecting the pervading trends of a particular period. Consequently, it is incumbent upon performers to equip themselves with an understanding of musical styles and concepts that are indicative of the repertory being performed. As musical forms evolve, so do the parameters for their performance; and unless the musical terms that govern performance are interpreted correctly, true realization of the composer’s intentions becomes virtually impossible. 300 In my opinion the tempo is the most important factor in a musical performance. 301 Tempo is to the music what the soul is to the human body.

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vasta gama de possibilidades, o tempo básico pode variar dentro de um movimento. Mesmo tentando não ir a extremos, não temos medo desta flexibilidade. [...] Obviamente, cada movimento tem seu caráter próprio; alguns são mais suscetíveis do que outros a flutuações do tempo. Por vezes, especialmente em scherzos e finales, um impulso rítmico consistente é uma característica predominante. Em alguns casos as modificações são tão sutis que elas nem são pensadas como alterações (BLUM, 1987, p. 90).302

O tempo e o fraseado determinam se uma melodia ganha vida ou não (KORNSTEIN, 1922, p. 330). Em muitos casos, como, por exemplo, segundos temas mais líricos, é oportuno ter mais tempo para se obter a ambientação necessária à frase e seu timbre relativo. Mesmo com uma mudança no andamento, é importante manter uma integridade estrutural, o que o regente Bruno Walter (1876-1962) qualificava como “a aparente continuidade do tempo” (BLUM, 1987, p. 91).303

Sobre a escolha do andamento de uma peça e as marcações metronômicas do compositor, estas últimas somente deveriam servir como uma referência, e não ser uma lei inflexível. “O andamento é um dos fatores mais variáveis e sujeito a desavenças. A maioria dos músicos considera como um direito alienável o seu de poder escolher o próprio andamento” (BROWN, 2002, p. 282).304 Adolfo Betti, primeiro violinista do Quarteto Flonzaley, explica que:

Theodor Billroth, 305 em uma de suas deliciosas cartas a Eduard Hanslick, 306 fala eloquentemente sobre a relação entre o tempo musical e a circulação sanguínea. Todo músico sabe que de manhã se está apto a sentir os movimentos mais lentamente do que de noite; que um artista está instintivamente inclinado a moderar seus andamentos rápidos ao tocar em uma sala grande; que uma melodia longa é naturalmente tocada mais rápida em um piano do que em um instrumento de cordas; que um quartetista tocando sua parte sozinho o fará em um tempo diferente do que quando estará tocando com os seus três confrades. Agora, dependendo das condições, como determinar com precisão matemática o tempo exato de uma peça musical? Isso poderia ser feito? Em outras palavras, pode a metronomização de uma peça ser absolutamente exata? Eu não o creio.

302 Most music requires some flexibility up to a point, unless we’re playing something like the Stravinsky Concertino. [...] Every movement has an overall pulse, but we feel that within the basic tempo there’s room for a certain elasticity. It’s somewhat like the question of dynamics. Just as “piano” has a broad range, the basic tempo can have a range of movement. While we try not to go to extremes, we’re not afraid of that flexibility. [...] Obviously, every movement has its own character; some are more susceptible than others to fluctuations of tempo. Sometimes, particularly in scherzos and finales, a consistent rhythmic impulse is a predominant feature. In certain cases the modifications are so subtle as to be barely thought of as modifications at all. 303 The apparent continuity of tempo. 304 Tempo is among the most variable and contentious issues in musical performance. The majority of musicians regard it as their inalienable right to select their own tempo. 305 Christian Albert Theodor Billroth (1829-1894), médico alemão e violinista virtuose, foi amigo pessoal de Brahms. 306 Eduard Hanslick (1825-1904), escritor austríaco, considerado o mais influente crítico musical do século XIX.

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Não acredito que um autor possa atribuir um andamento exato à sua obra (BETTI, 1923, p. 3).307

A partir do advento do metrônomo a partir da segunda década do século XIX, muitos compositores o utilizaram como recurso para apontar andamentos mais fiéis às suas ideias. Se antes um andamento era frequentemente estabelecido pela métrica da música, e fatores como caráter da peça e sua relação a uma dança específica (cada dança tendo seu andamento pré- determinado), assim como a quantidade de notas rápidas e movimentos harmônicos da obra, no século XIX esse pensamento perde vigor308 e tem no metrônomo um aliado para acelerar esse processo. Giuseppe Verdi (1813-1901), por exemplo, em carta de 1871 adverte que todos os andamentos de sua ópera Aida devem seguir estritamente as marcações metronômicas (BROWN, 2002, p. 284). Porém Brown adverte que tais marcações não deveriam ser levadas ao pé da letra, pois as mesmas podem estar sujeitas a erros por parte de editores, copistas ou até mesmo do próprio compositor.309 Brown (2002, p. 288) ainda avança como hipótese, “baseada em aspectos psicológicos e com base em experimentos”,310 que as percepções sobre tempo quando imaginadas pelo compositor possam ser mais rápidas do que exigidas pela performance. Repetidas vezes compositores como Berlioz ou Elgar não seguiam suas próprias marcações metronômicas ao reger suas obras (BROWN, 2002, p. 287).

É sem dúvida mais importante para a integridade de uma composição que o intérprete procure entender o pensamento subjacente aos métodos utilizados pelo compositor para

307 Theodor Billroth, in one of his delightful letters to Edouard Hanslick, speaks eloquently of the relation between the feeling for musical tempo and the circulation of the blood. Every musician knows that in the morning one is apt to feel the movements slower than in the evening; that an artist is instinctively inclined to moderate his fast tempi when playing in a large hall; that a sustained melody is naturally played quicker on a piano than on a stringed instrument; that a quartettist playing his part by himself will play it at a different tempo from that which he takes when performing it with his three confrères. Now, under these conditions, how are we to determine with mathematical precision the exact tempo of a musical piece? Can this be done? In other words, can the metronomisation of a piece be absolutely exact? I don’t believe it can. I don’t believe an author can assign an absolutely exact pace to his work. 308 Para Brown (2002, p. 303-304), a Revolução Francesa assim como as guerras napoleônicas que seguiram trouxeram uma desintegração da ordem social com a qual a cultura musical mantinha laços simbióticos. As mudanças sociais e culturais trazidas pela ascensão de novas classes sociais trouxeram uma redução significativa das danças de corte, nessa época parâmetros para a escolha de andamentos. A partir de então, marcações metronômicas e/ou indicações mais precisas de tempo foram se tornando norma. 309 Para maiores informações, Brown (2002, p. 286-289) discorre sobre o caso de Beethoven, que fez grande uso de indicações metronômicas em suas obras, e das quais muitas são contestadas atualmente quanto à sua exatidão. 310 Based on psychological and experiential grounds.

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indicar andamentos, do que tentar seguir cegamente tempos específicos (mesmo que sejam autênticos) em certos casos (BROWN, 2002, p. 282).311

Sendo assim, a metronomização significaria então uma intenção aproximada do compositor, e não uma medida irrevogável. “Sempre pensamos que as indicações metronômicas somente deveriam ser tratadas como sugestões, e que as obedecer com rigidez seria o equivalente a matar a composição” (KORNSTEIN, 1922, p. 330).312

Adolfo Betti afirma que nem sempre a marcação do próprio compositor é a que melhor valoriza a obra em certos momentos, cabendo ao intérprete fazer uso de bom senso: “Quantas vezes, por exemplo, após ter tentado todas as maneiras possíveis, somos obrigados a fazer o oposto das indicações de tempo ou de dinâmicas para obter o efeito que o compositor realmente deseja!” (BETTI, 1923, p. 2).313

Porém, se o metrônomo deve servir apenas como uma referência na escolha de um andamento, devemos salientar que o dispositivo como ferramenta na construção de uma obra é um utensílio valioso. No âmbito do ensaio do conjunto, o aparelho ajuda a normatizar o ritmo de cada intérprete. Norton acredita que a utilização do equipamento nesse contexto de ensaio é um hábito saudável, não somente para o músico em seu estudo individual, mas também no quarteto. Para Norton (1966, p. 52), frequentemente o metrônomo aponta a conclusões inesperadas pelos membros do quarteto, como desencontros até então despercebidos, afretamentos no ritmo e outros.

O ritmo necessita uma certa dicção, pois “a sua movimentação está direcionada sempre aos pontos de apoio – notas de apoio. [...] Cada grupo de sons é atraído pela sua nota de apoio” (RAABEN, 2003, p. 81). Ou seja, é importante marcar ritmicamente cada início de célula, como a primeira de cada nota de cada tercina, a fim de poder diferenciar esse grupo de outra figura – porém sempre observando o contexto musical no qual essas notas se inserem e se o

311 It is arguably more fundamental to the integrity of a composition that the performer should appreciate the thinking that lays behind the composer’s methods of indicating tempo than that he should attempt to achieve specific chronometric tempos (however authentic) in particular cases. 312 We have always found that the metronome indications can only be treated as hints, and to stick to them rigidly is tantamount to killing the composition. 313 How often, to give an example, after having tried every possible other way, one is obliged to do exactly the reverse of the literal indications of tempo or dynamics in order to get the effect the author actually wants!

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compositor não pediu intencionalmente que fosse feito de outra maneira, por exemplo, colocando acentos na segunda ou terceira nota dessa tercina.

5.1.1 O rubato

O termo tempo rubato (tempo roubado, em italiano) faz menção a uma modificação da métrica temporal, seja acelerando ou retardando, porém com a característica de que o tempo “roubado” deve ser reposto no final da frase ou do compasso, a depender da música. Ou seja, “uma parte da frase é acelerada e uma outra ralentada na mesma proporção, para que a continuidade do ritmo permaneça e a duração de toda a frase seja a mesma do que teria sido se tudo fosse tocado estritamente em tempo” (MARTIN, 2002, p. 98).314

É interessante constatar que, desde sua primeira aparição no livro Opinioni de’ cantori antiche e moderni de 1723, de Pier Francesco Tosi, a palavra rubato esteve intimamente ligada ao canto, ao definir que uma linha melódica poderia se tornar mais expressiva ao se acelerar ou retardar o tempo em certos momentos (HOUSTON, 1988, p. 22). Também se desconstrói a ideia de que o uso do rubato fosse restrito ao romantismo em diante, afinal Tosi somente estaria somente se referindo a uma prática comum em sua época. Manfred Bukofzer lançou a hipótese de que, como a música por volta de 1600 era de tal modo ornamentada, tornava-se impossível manter um ritmo estrito. Sendo assim, fazia-se necessária uma maior flexibilização do tempo (apud HOUSTON, 1988, p. 23).

Durante os períodos Clássico e Romântico havia um reconhecimento por todos (assim como tinha sido o caso no período Barroco) de que, dentro de certos limites estéticos, segurar algumas notas e acelerar em outras era não somente permitido como também um fator indispensável em uma performance sensível. Tal qual C.P.E. Bach315 comentou: “quem não faz uso destes mecanismos, ou o faz de maneira incorreta, possui um estilo de interpretação fraco” (BROWN, 2002, p. 375).316

314 [...] in which one part of a phrase is quickened and another slackened in proportion, so that the general march of the rhythm is undisturbed, and the duration of the whole phrase remains the same as it would have been if played in strict time throughout. 315 Carl Philipp Emanuel Bach (1714-1788), segundo filho de Johann Sebastian Bach (1685-1750), foi um importante compositor e cravista alemão. 316 Troughout the Classical and Romantic periods there was a general recognition (as there had also been in the Baroque) that, as long as certain aesthetic borderlines were not crossed, holding back some notes and hurrying others was not merely permissible but was an indispensable adjunct of sensitive performance. As C.P.E. Bach commented: “whoever either does not use these things at all, or uses them at the wrong time, has a bad performance style.”

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Durante o século XVIII e o início do século XIX, a estética dominante preconizava uma utilização restrita do rubato, sem alterar consideravelmente a métrica do tempo, com exceção dos lugares marcados como tais pelo compositor. Posteriormente, ao longo do século XIX, em grande parte sob influência dos escritos sobre interpretação de Wagner, as modificações de tempo de maior envergadura foram se tornando mais usuais (BROWN, 2002, p. 376).

O rubato pode ocorrer dentro de uma estrutura de compasso, ou mais ampla, como de uma frase. Brown (2002, p. 377) também destaca dois tipos de rubato:317 no primeiro, há uma intencional ruptura da métrica dos tempos e, no outro, mantém-se a pulsação, porém com uma flexibilidade, uma forma de “improvisação e embelezamento”.318

Podemos destacar duas principais maneiras de utilizar o recurso no caso de um quarteto de cordas. O primeiro modo é manter o acompanhamento em tempo estrito, se contrapondo à melodia, mais livre. Esse tipo de método se tornou rapidamente associado a Frédéric Chopin (1810-1849) e seus alunos. Conforme relata George Mathias (1826-1910), aluno do mestre polonês:

Chopin, como bem explica Mme. Camille Dubois, frequentemente requeria de maneira simultânea que a mão esquerda, que tocava o acompanhamento, deveria manter o tempo de maneira estrita, enquanto a linha melódica deveria experimentar uma grande liberdade de expressão, como flutuações no andamento. Isso é bastante concebível; você pode adiantar, atrasar, as duas mãos não estão sincronizadas, e então você faz uma compensação que restabelece o conjunto. Na música de Weber, por exemplo, Chopin recomendava esse tipo de interpretação. Ele reiteradas vezes me recomendava fazê-lo, ainda consigo ouvi-lo dizendo isso (MARTIN, 2002, p. 99).319

A utilização do rubato desse modo requer um considerável controle da parte do conjunto, pois facilmente pode-se perder o domínio. Também se faz necessário um certo limite no tamanho do rubato, já que uma dessincronização demasiadamente importante passará ao público uma sensação de desencontro e desconforto, mesmo que o efeito obtido seja o esperado.

Uma outra forma de rubato, possivelmente a mais utilizada, é aplicar o processo de afretamento ou ralentando de maneira uniforme em todas as linhas, ou seja, o acompanhamento

317 Nos casos em que o compositor não especificou algum tipo de modificação rítmica. 318 Improvisation and embellishment. 319 Chopin, as Mme Camille Dubois explains so well, often required simultaneously that the left hand, playing the accompaniment, should maintain strict time, while the melodie line should enjoy freedom of expression with fluctuations of speed. This is quite feasible: you can be early, you can be late, the two hands are not in phase, then you make a compensation which re-establishes the ensemble. In Weber's music, for example, Chopin recommended this way of playing. He often told me to use it, it's as though I still hear him.

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segue as mudanças realizadas pela melodia na mesma proporção. Para tal, as vozes do acompanhamento devem procurar adivinhar o direcionamento rítmico para o qual conduz a melodia, a fim de empreender o rubato na mesma proporção.

Porém, para que tal ferramenta possa ser concretizada positivamente, certa experiência e hábito de tocar junto são essenciais ao grupo. Como exercício, a voz que conduz a melodia pode explorar diversos tamanhos e amplitude de rubatos, mesmo que exagerados, a fim de melhorar a reação de seus colegas no acompanhamento.

5.2 Fraseado

Assim como a linguagem é organizada por frases, com início, meio e fim, cada qual transmitindo uma ideia, na música frequentemente o compositor separa suas ideias em frases musicais. A associação entre retórica e música sempre existiu, afinal a retórica nada mais seria do que “a arte de utilizar a linguagem de maneira a produzir uma impressão desejada no ouvinte ou em que lê”.320 Mattheson321 chegava a afirmar que uma boa composição deveria trazer consigo os mesmos elementos de um bom discurso (LENNEBERG, 1958, p. 48).

Já na música, um verdadeiro fraseado seria “a transformação de um pensamento musical em som. Um fraseado que segue um raciocínio possui o potencial de atingir mais profundamente a psique do ouvinte do que uma performance baseada somente em instinto” (MCGILL, 2007, p. 1).322 Após tal afirmação, David McGill ainda acrescenta: “Não importa o quão bom seja este instinto”.323

Em seu livro Sound in Motion (2007), David McGill expõe a ideia principal de que todo o pensamento musical deve ser fundamentado. McGill reproduz aqui a linha de raciocínio

320 The art of using language in such a way as to produce a desired impression upon the hearer or reader. 321 O mesmo Johann Mattheson (1681-1764) que separava a música por afetos, cada qual trazendo um sentimento na música. Para maiores informações, consultar Johann Mattheson on Affect and Rhetoric (LENNEBERG, 1958). 322 Truly musical phrasing is musical thought in sound. Rationalized phrasing has the potential to reach far deeper into the psyche of the listener than performance based solely on instinct. 323 However good that instinct may be.

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do oboísta francês Marcel Tabuteau,324 que influiu consideravelmente na escola de instrumentos de sopro norte-americana. Para McGill, um músico que somente sente a música enquanto toca não está qualificado para interpretá-la de maneira satisfatória. Os sentimentos podem ser prejudiciais, pelo fato de o intérprete às vezes não estar se sentindo bem, com problemas de saúde, nervoso, ou por simplesmente não gostar da música que está tocando. Tabuteau ensinava: “Eu acredito em tocar como eu penso, e não tocar como eu sinto, porque, senão, o que ocorre no dia em que não me sinto bem?” (apud MCGILL, 2007, p. 17).325

Para McGill, um fator que dificulta o entendimento de uma interpretação intelectualmente fundamentada é a difusão de uma concepção distorcida do talento. O talento é frequentemente visto como um atributo restrito a uns poucos escolhidos, que são capazes de expressar emoções, ao passo que a grande maioria não. Haveria uma noção de que seria possível ensinar a parte técnica do fazer musical aos alunos, mas não a ser expressivo, sendo comum ouvir nos estabelecimentos de ensino que “ou você nasce com isso, ou não” (MCGILL, 2007, p. 18).326

Todo intérprete gostaria secretamente de acreditar que ele ou ela é um outro Mozart. Infelizmente, Mozart é frequentemente retratado como um gênio que simplesmente escrevia o que estava na sua cabeça sem pensar. Porém era precisamente porque ele estava pensando – sempre pensando – que ele tinha todas aquelas maravilhosas e inteligentes coisas para compor. O gênio é o oposto da falta de reflexão. A palavra inteligência traz uma conotação de raciocínio. A palavra talento, por outro lado, traz uma ideia de falta de reflexão. No fundo, inteligência permanece como sendo o elemento necessário para estabelecer a comunicação de qualquer ideia que valha a pena – seja ela escrita, falada, cantada ou tocada. Talento é uma palavra útil para circular em um chá da tarde ao falar de seus filhos, porém uma verdadeira expressão musical durante uma performance não é um acidente da natureza (MCGILL, 2007, p. 20).327

324 Tabuteau (1887-1966) foi um oboísta francês radicado nos Estados Unidos da América desde 1907. Primeiro oboé na Orquestra Filarmônica de Filadélfia de 1915 a 1954, foi professor do Custis Institute of Music de 1924 a 1953, influenciando toda uma geração não somente de oboístas, como também de outros instrumentos de sopro. 325 I believe to play as you think more than to play as you feel because how about the day you are not feeling so well? 326 You’ve either got it or you don’t. 327 Every performer would secretly like to believe he or she is another Mozart. Exasperatingly, Mozart is often portrayed as a genius who simply dictated what was in his head without thinking. However, it was precisely because he was thinking – always thinking – that he had those wonderfully intelligent things in his head to dictate at all. Genius is the opposite of thoughtlessness. The word “intelligence” connotes thoughtlessness. The word “talent”, on the other hand, connotes a lack of thought. At the bottom line, intelligence remains the necessary element that makes communication of any idea worthwhile – whether written, spoken, sung, or played. Talent is a handy word to be bandied about among those discussing their children at afternoon tea, but meaningful expression in musical performance is no accident of nature.

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McGill conclui que “uma expressividade profunda não é talento. O verdadeiro talento que leva à expressão musical é a inteligência. O desenvolvimento da expressão é o desenvolvimento do intelecto” (MCGILL, 2007, p. 21).328

Para tanto, uma análise prévia do texto musical e a sua total compreensão são necessárias. O quarteto deve considerar a estrutura da peça, harmonia, dissonâncias e consonâncias e todos os fatores que a compõem. McGill coloca como responsabilidade do intérprete entender a função de cada nota, como apoggiatura, nota de passagem, fundamental de acorde etc. Após essa etapa, deve-se identificar o esqueleto da obra, vendo através da ornamentação, que pode levar a uma certa confusão. Uma vez feito esse trabalho, McGill aponta que as frases e a articulação se tornam claras e compreensíveis (2007, p. 26). Flesch também destaca que, se toda a parte fraseológica não estiver corretamente organizada (implicando nesta ideia uma falta do trabalho preparatório explicado por McGill), o prazer estético da audição da obra musical é fortemente afetado. Seguindo esse raciocínio, Flesch salienta por meio de exemplos musicais a importância de o músico saber compreender a agógica musical, ou seja, quais notas são importantes dentro de uma linha melódica, assim como corretamente iniciar e terminar a frase (2008, p. 60-61).329 Para marcar o final de uma frase e o início de outra, Norton sugere uma curta espera quase imperceptível, para permitir o término completo do que veio anteriormente e para que ouvido do espectador se prepare para abordar um assunto novo, assim como alguém inspira ar depois de falar uma longa sentença e antes de continuar seu discurso. Esta curta espera é habitualmente referida por seu termo em alemão, Luftpause (1966, p. 65).

No caso do quarteto de cordas, o fraseado deve ser pensado em conjunto, uma vez que, pela própria escrita do gênero, frequentemente o mesmo é distribuído em todas as vozes (NORTON, 1966, p. 64). Ou seja, o tema apresentado quando repetido deve seguir a mesma agógica, transmitindo a sensação de ser um mesmo instrumento tocando nos mais diversos registros.

328 Depth of expression is not a talent. The real talent that leads to musical expression is intelligence. The development of expression is the development of the intellect. 329 Para maiores informações, consultar a seção Phrasing, assim como a subsequente, intitulada Feeling for Style (p. 60-65) do segundo volume da obra The Art of violin Playing de Carl Flesch (2008). Nelas, o autor esmiúça diferentes possibilidades de fraseados, sempre apoiado em exemplos musicais de fácil compreensão. Todo o segundo volume é voltado à interpretação, abordando os mais variados pontos, como ritmo, personalidade, ornamentação, dinâmicas, acústica, além de temas voltados exclusivamente para o violino, com o estudo de algumas peças selecionadas para o instrumento.

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5.3 Dinâmicas

A extensão da paleta sonora do quarteto de cordas, em se tratando de dinâmicas, é vasta. Dinâmica aqui não deve se restringir tão-somente a uma questão de volume, mas também de timbre. Afinal, a marcação ƒ não representa somente um som forte, mas igualmente a personalidade a que remete essa dinâmica. O Quarteto Guarneri se refere a uma ideia de que, mais do que uma dinâmica, faz-se necessário criar uma “atmosfera”, também levando em conta a harmonia, em especial com a marcação pp em certos repertórios, como nas obras de Beethoven (BLUM, 1987, p. 79).

Para além disso, “a real dificuldade é que as dinâmicas são puramente relativas: relativas não somente entre si, como também para toda a música na qual elas são um dos elementos” (NORTON, 1966, p. 86).330 Ou seja, uma dinâmica por si só não representa um valor sonoro pré-estabelecido, uma gradação absoluta, mas há que se analisar o contexto no qual ela se insere. “Como Casals costumava dizer, piano é uma extensão de sons, podemos encontrar uma variedade de possibilidades” (SOYER apud BLUM, 1987, p. 78).331

Tanto Betti (1923, p. 4) quanto Norton (1966, p. 86) explicam essa relatividade pela própria limitação das marcações tradicionais (ppp, pp, p, mp, mf, f, ff, fff) em sua essência como meio de traduzir o pensamento do compositor. Betti chega a comparar esse apartamento entre objeto e a sua representação ao distanciamento que existe entre o modelo vivo e a sua correspondência retratada em uma pintura.

A prática de quarteto de cordas requer que as dinâmicas sejam exploradas em seu máximo. Isso não é obtido por meio de um maior contraste entre os extremos, cujo resultado seria grotesco, mas com um olhar cuidadoso para a relação entre a música em acordo com o caráter e estilo. [...] Um forte em Brahms pode ser diferentemente interpretado em Mozart. Ou mesmo em uma única obra podemos encontrar meia dúzia de variações de forte, de piano, de pianíssimo, em consonância com o significado da passagem em questão, em relação com o seu contexto, e da estrutura do movimento como um todo (NORTON, 1966, p. 86).332

330 The real difficulty is that dynamics are purely relative: relative not only to each other but to the whole music of which they are an element. 331 As Casals used to say, piano is a range of sound; it can have a wide variation. 332 Quartet style demands that dynamics be made the most of. This is to be done not in mere extremes of contrast, which may be no more than grotesque, but with due regard to the intrinsic interest of the music and in accord with its character and his style. [...] A forte in Brahms, moreover, may be differently read from one in Mozart. Or in a single

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As pausas são importantes ferramentas na definição e clareza de contrastes dinâmicos súbitos. Quando o compositor encerra abruptamente uma sessão em f, emendando-a em uma nova parte em p, uma ligeira pausa, ou respiração, permite ao público compreender o final da frase anterior e o início da nova.

[Mudanças bruscas de dinâmicas] não devem se alternar mais rapidamente do que os sentidos possam compreender. As ondas sonoras levam um tempo para viajar até o ouvido do espectador, e, por mais microscópico que este período possa ser em uma sala de concerto, e infinitamente menor em um quarto, mesmo assim é certo que uma impressão sonora (como um compasso forte) continua presente no cérebro do ouvinte por um instante maior do que o intérprete possa supor. A sua ressonância cobre o início e dificulta o registro de uma impressão subsequente, em particular de uma vibração mais doce e menos intensa, como um piano que aparece após um forte. [...] O ouvido humano é um mecanismo delicado que fixa o som com muitas variações e interpretações individuais que não estão marcadas na partitura que o instrumentista executa. Quando ele [o intérprete] quer produzir determinado efeito que tem em mente, deve para isso articular de tal maneira que não haja dúvidas sobre a sua intenção. Para tanto ele talvez deva exagerar mais do que ele poderia considerar necessário, em função da distância, uma pausa entre o final de um forte e o início de um piano (NORTON, 1966, p. 100).333

O critério a ser utilizado para se obter um balanço harmonioso no quarteto de cordas é a escuta atenta e constante, por meio de um conhecimento prévio da música e de um estudo da partitura. Os intérpretes poderão fazer escolhas musicais, decidindo quais as vozes que devem ser destacadas em determinado momento, e equilibrar o conjunto de forma a obter tal efeito.

5.4 A notação musical e suas limitações

Na hora de interpretar uma música, seja ela qual for, um quarteto de cordas deve ter em mente que a notação musical, ou seja, a representação gráfica do som, é um recurso que

work there may be a half a dozen varieties of forte, of piano, of pianissimo, according to the significance of the passage in question in relation to its surroundings and to the structure of the movement as a whole. 333 [Sudden dynamic changes] should not succeed one another faster than the senses can apprehend them. It takes time for sound-waves to travel to the listener’s ear, and, immeasurably microscopic as the time may be even in a concert hall, infinitesimal as it is in a room, it is nevertheless true that a sound-impression (as a forte measure) remains dominant in the listener’s brain for a longer instant than the player supposes. Its resonance covers the beginning and prevents the registration of any subsequently sent impression, particularly of a softer and less intense vibration, as of a piano following a forte. [...] The human ear, moreover, is a very delicate mechanism which apprehends sound with many variations and subtleties and individual interpretations that are not written in the score from which the player broadcasts. When he has a particular effect in mind, therefore, he must articulate it so that there can be no doubt of his intention. To this and he may have to exaggerate to his own ear, to make, for the sake of distance, more of a pause between the end of a forte and the entrance of a piano than he would think necessary.

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possui limitações e deficiências. “A notação musical representa uma tentativa de substituir fatos auditivos por sinais visuais. É uma convenção recente, não universal e bastante imprecisa” (SÈVE, 2016, p. 1301). O conjunto deve sempre procurar ir além do que está escrito, entender a intenção primária do compositor, e, ainda por cima, conseguir expressar um ponto de vista único da obra, já que o intérprete também é parte no processo de criação. O maestro Leopold Stokowki334 afirmou:

O melhor que o compositor pode fazer quando escuta em sua alma uma bela melodia é reproduzi-la no papel. Mas este papel – que chamamos de música, mas não o é – é somente papel. São marcações pretas no papel. De certa forma é um privilégio nosso assim como uma necessidade de tentar retratar o que se passava na alma do compositor e tentar trazer isso à vida novamente. Isto é muito difícil. Devemos nos dar conta de que o nosso sistema de notação é extremamente limitado... Alguns acreditam que deveríamos somente reproduzir o que está anotado no papel, mas eu não acredito nisso. Devemos defender o compositor contra as concepções mecânicas da vida, que estão se tornando cada vez mais comuns nos dias atuais... Nosso dever é de transmitir ao ouvinte aquela inspiração que o compositor teve (apud MCGILL, 2007, p. 23).335

Nikolaus Harnoncourt não considera o grafismo musical como um sistema intemporal e internacional, pois foi modificando seu significado constantemente ao longo da história, em função das mudanças de estilo e gosto musical. O músico atual toca exatamente o que está escrito na partitura, sem saber que a notação matemática e precisa só se tornou corrente no século XIX. Uma outra fonte de problemas é a enorme questão da improvisação, que, até mais ou menos o fim do século XVIII, não pode ser separada da prática musical (HARNONCOURT apud SÈVE, 2016, p. 1.302).

Para Harnoncourt e Sève, o intérprete deve levar em conta o contexto no qual se insere a obra, para além do simples texto musical. Harnoncourt cita como exemplo as valsas oriundas de Viena, nas quais o compositor colocou no papel as indicações voltadas a uma orquestra que tinha um conhecimento prévio sobre como interpretar esse tipo de música. “Entregue a uma orquestra que não possua este conhecimento, que não conheça estas danças, e

334 Leopold Stokowki (1882-1977), destacado regente inglês, foi por muitos anos diretor da Orquestra da Filadélfia, assim como a Filarmônica Nova Iorque entre outras. Também ficou muito famoso por ser o regente que aparece no filme Fantasia (1940) da Disney. 335 The best the composer can do when within him he hears in his soul a great melody – we’ll say – is to put it on paper. But that paper – we call it music, but that’s not music – that’s only paper. It’s black marks on paper. Somehow it is our privilege and our necessity to try to realize what was in the soul of the composer in his inner hearing and to make that alive again. This is very difficult. One must realize that our system of notation is extremely limited... Some believe that one should merely mechanically reproduce the marks on the paper but I don’t believe in that. We must defend the composer against the mechanical conception of life, which is becoming more and more strong today... Our duty is to give to the listener that inspiration that the composer had.

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cujos músicos toquem exatamente o que está na partitura, a música que disto tudo resulta é outra, totalmente diferente” (apud SÈVE, 2016, p. 1303). Harnoncourt em seguida conclui que em muitos casos os compositores “não escreviam o que era por todos sabido, o óbvio” (apud SÈVE, 2016, p. 1.304).

Esse fenômeno era particularmente intenso no período barroco, pois era usual um músico tocar diversos instrumentos e também ser compositor, sendo assim:

A dicotomia que surgiria mais tarde entre compositor/intérprete não existia no Período Barroco. Por isso mesmo não havia, por parte do compositor, a preocupação de notar inequivocamente suas intenções. Mesmo nos casos em que não era o intérprete visado, o compositor compartilhava com este a linguagem de sua época. E os intérpretes dominavam a ornamentação como parte dessa linguagem, a qual era executada na hora, de improviso. Daí não ser descabida a comparação, aliás bastante frequente, entre dois estilos tão diferentes como o Barroco e o Jazz. Assim como no Jazz, a partitura barroca é frequentemente apenas um ponto de partida (RÓNAI apud SÈVE, 2016, p. 1.303).

Maurice Kufferath aponta a partitura como somente um ponto de partida, a ser em seguida completado por um conhecimento aprofundado do estilo do compositor e o contexto no qual a obra foi escrita.336

5.5 Tradição

A tradição sempre foi colocada como uma importante ferramenta interpretativa. O estilo não seria mais do que uma derivação de um conjunto de normas e códigos estabelecidos e que são transmitidos através das gerações, regendo a interpretação de determinada obra, ou seja, seguindo uma tradição sobre um período específico.

Para além do estilo, diversos fatores podem entrar na tradição, como caráter, flutuações rítmicas, andamentos e outros quesitos.337 É frequente encontrar uma certa tendência de utilização de recursos interpretativos não escritos pelo compositor, com base em uma tradição,

336 Dando como exemplo a peça Kreisleriana para piano solo, de Robert Schumann, Kufferath faz um retrospecto sobre Kreisler, o personagem extraído dos contos de Hoffmann, um professor de música sarcástico. Ao fazer menção a Kreisler, Schumann estaria fazendo críticas ao movimento musical dominante na época em que a obra se inseria, estando o próprio compositor envolvido em discussões e polêmicas sobre esse assunto, sendo portanto necessário ao intérprete conseguir ressaltar uma certa ironia e deboche em sua interpretação. Se o músico se limitar a traduzir o que está simplesmente escrito na partitura, não terá de fato compreendido a obra (KUFFERATH, 1909, p. 236-237). 337 Especialmente quando as marcações do autor são mais subjetivas, como allegro, meno mosso, ad libitum e muitos outras, sem uma definição absoluta, como uma marcação metronômica exata por exemplo.

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especialmente quando há algum relato de algum intérprete que teve contato com o compositor, estabelecendo um padrão a ser seguido na obra em questão.

Norton destaca dois tipos de fontes da tradição. Uma que ela chama de teorética, fundamentada em um conhecimento da obra do compositor, suas ideias, sua obra, a época na qual ele se insere, o desenvolvimento técnico dos instrumentos na sua época, fornecendo um embasamento para o aluno interessado em interpretar sua obra. A outra Norton chama de aural, alicerçada em interpretações de descendentes dos instrumentistas que tocaram junto ao compositor ou com a sua aprovação (1966, p. 16).

A autoridade conferida pelo contato direto com o compositor não garante que tal tradição seja uma garantia inabalável do pensamento do compositor; toda tradição pode ser questionada, para que a mesma não se transforme em um dogma interpretativo.

A tradição! É uma dessas palavras que, de acordo com o significado que lhe damos, expressa a mais indispensável das verdades, ou cobre os erros mais nefastos; que na arte é a garantia das tendências mais puras e mais elevadas, ou que se torna no ponto de partida das piores aberrações. A tradição é como as religiões – dito aqui sem querer ofender nenhuma crença – se dizem todas igualmente iluminadas e baseadas na única e indiscutível verdade absoluta; e no entanto, quantas contradições entre elas! [...] A tradição é uma coisa cambaleante e incerta (KUFFERATH, 1909, p. 232).338

Kufferath traz um relato que ilustra essa questão. Tendo como base o poema sinfônico de Richard Wagner conhecido como Siegfried Idyll, Kufferath relata ter assistido a performances dessa obra sob a direção de três conhecidos maestros. O primeiro, Hans Richter,339 preparou a primeira execução da obra e tocou trompa na estreia sob a regência do próprio compositor. O segundo, amigo de Wagner, o maestro Hermann Lévy, 340 acompanhou o compositor por longos anos. E o terceiro, Félix Mottl,341 que entre 1876 e 1882 foi o braço direito

338 La tradition! C’est un de ces mots qui, selon ce qu’on y enferme, exprime la plus indispensable des vérités ou recouvre les plus néfastes erreurs; qui, dans l’art, est la sauvegarde des tendances les plus pures et les plus élevées ou devient le point de départ des plus fâcheuses aberrations. Il en est de la tradition comme des religions qui – ceci soit dit sans vouloir froisser aucune conviction – se prétendent toutes pareillement révélées et fondées sur l’unique et indiscutable vérité absolue; et qui cependant que de contradictions entre elles! [...] La tradition est une chose chancelante et incertaine. 339 Hans Richter (1843-1916) foi um famoso regente austro-húngaro. Por muito tempo associado a Wagner, regeu a estréia em Bayreuth do Anel de Nibelungo em 1876. 340 Hermann Lévy (1839-1900) foi um regente e compositor alemão. Amigo pessoal de Wagner, o acompanhou por muitos anos. Regeu a estréia da ópera Parsifal em 1882. 341 Félix Mottl (1856-1911) foi um regente e compositor austríaco. Foi reconhecido como um dos mais importantes regentes de sua época. Foi assistente de Hans Richter na preparação do ciclo do Anel de Nibelungo em Bayreuth.

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de Wagner em Bayreuth. Para Kufferath, esses três excelentes músicos, em contato direto com o compositor, “deveriam ser considerados como os mais fiéis herdeiros do pensamento e das tradições de Wagner”,342 porém cada um deles interpretava o poema sinfônico diferentemente, com fortes contradições em relação a dinâmicas e andamentos (KUFFERATH, 1909, p. 232- 234). Sendo assim, para Kufferath, a percepção que se constrói sobre uma tradição é de uma noção sempre subjetiva, que não pode servir como norma, ou verdade absoluta. Uma interpretação não é um objeto que possa ser sujeito a uma observação empírica a ser reproduzido fielmente a posteriori. O contato com o compositor também não garante que um intérprete seja totalmente fiel ao seu pensamento.

Betti acrescenta que um mesmo artista tocando uma obra em diferentes momentos de sua vida irá alterar sua interpretação da mesma (1923, p. 4). “A tradição é uma guia para ele, não uma lei” (NORTON, 1966, p. 17).343 Betti leva seu raciocínio em um debate até hoje atual: em nome de uma tradição, deveríamos tocar os quartetos de Haydn ou Mozart exatamente como eram na época de sua criação? Apesar de logo explicitar a sua própria opinião, ao afirmar que as peças de Shakespeare não são mais montadas como na época em que foram concebidas, portanto o mesmo pensamento seria válido para o quarteto de cordas, Betti traz um questionamento pertinente, sobre até que ponto uma tradição poderia engessar uma interpretação, ao colocar a forma acima do conteúdo? (BETTI, 1923, p. 5).

Devemos então descartar totalmente a tradição? Deveríamos ignorar o que outros artistas fizeram antes de nós? Acredito que não. Acredito que tudo que seja dogmático seja fatal em se tratando de arte; que a música seja por demais etérea para ser reduzida a fórmulas; que na música, mais do que nas outras artes, conta mais o espírito do que o escrito; que todo artista deva ser antes de tudo criador, e não imitador (BETTI, 1923, p. 5).344

Posteriormente ficou conhecido como um destacado intérprete da música de Wagner. Sua morte se deu em decorrência de uma crise cardíaca ocorrida durante sua centésima performance da ópera Tristão e Isolda em Munique. 342 [...] doivent être considérés comme les dépositaires les plus autorisés de la pensée et des traditions de Wagner. 343 Tradition is a guide for him, not a law. 344 Are we, then, to discard tradition entirely? Are we to ignore what other artists have done before us? I believe not. I believe that everything dogmatic is fatal in art: that music is something too ethereal to be imprisoned by formulas; that in music more, may be, than in other art the spirit not the letter counts; that each artist must be, first of all, a creator, not an imitator.

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CAPÍTULO 3 – APLICAÇÕES PRÁTICAS

1. Mozart, quarteto KV. 458, “A Caça”

Mozart [...] é o compositor mais difícil de se tocar. Nada, sejam as notas, dinâmicas, equilíbrio, ou a estrutura e a interpretação do conjunto, nada pode ser incorreto. Em Mozart, as emoções são tão intensas quanto em Beethoven, porém tão estilizadas quanto em Haydn. Tocar Mozart, na opinião do Quarteto Amadeus, é semelhante a andar na corda bamba; há de se fazer absolutamente tudo o que está escrito, senão corre-se o risco de cair, de um lado ou do outro. “Diferentemente de Beethoven, diz um membro do quarteto, sentimos dificuldade de acreditar que Mozart era uma pessoa como nós, que lutava contra os limites da condição humana.” Com Mozart (e talvez com Schubert), estamos em uma outra esfera. “Se uma obra de Mozart funciona corretamente, diz um outro membro, alcançamos quase a sensação de estar em estado de graça” (SNOWMAN, 1981, pp. 89-90).345

Não foi Mozart que relacionou o seu quarteto KV. 458 ao universo da caça, nem tampouco o seu editor Artária, quando de seu surgimento em 1785. Para Irving (1998, pp. 68-69), o motivo dos primeiros compassos que iniciam a obra remetem o ouvinte à tópica da caça.

A teoria das tópicas pressupõe a visão da música como discurso, no qual se manifestam figuras da retórica musical. […] Um conceito fundamental na retórica aristotélica é a noção de tópica, os topoï, elementos entendidos como lugares-comuns (em latim loci- communes) que são produzidos acerca de silogismos retóricos e dialéticos. […] As unidades musicais do discurso (motivos, frases, temas, padrões rítmicos, progressões harmônicas, etc.), para além de seu papel funcional nos segmentos formais, muitas vezes apresentam qualidades semióticas a elas atribuídas, ethoï, o que ocorre na maioria das vezes por meio de convenção cultural (diga-se, histórica e tácita). Este tipo de significação implícita se encontraria na progressão de posições de elementos na cadeia sintagmática de um discurso musical, configurando aquilo que Agawu chamou de plot, ou seja, um “roteiro”, uma narrativa verbal coerente que assenta em analogia ou como metáfora da obra (Agawu 1991). Ou seja, na análise do processo motívico-temático, imagina-se possível recompor uma espécie de esquema narrativo que se encontra em um nível mais abstrato do que aquele dos próprios motivos (PIEDADE, 2013, pp. 7-8).

345 Mozart [...] est le compositeur le plus difficile à bien jouer. Rien, qu’il s’agisse des notes, de la dynamique, de l’équilibre, ou de la structure et de l’interprétation d’ensemble, ne doit être incorrect. Chez Mozart, les émotions sont aussi intenses que chez Beethoven et cependant aussi stylisées que chez Haydn. Jouer du Mozart, dit l’Amadeus, est comme marcher sur une corde raide; il faut absolument exécuter ce qui est écrit, sans quoi on risque de tomber d’un côté ou de l’autre. “A la différence de Beethoven, remarque l’un des membres, on a du mal à sentir que Mozart était un être comme nous, qu’il luttait contre les limites de la condition humaine.” Avec Mozart (et peut-être avec Schubert), on est dans une autre sphère. “Si un morceau de Mozart marche bien, dit un autre, on a presque l’impression de se trouver en état de grâce.”

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Para Irving (1998, p. 69) tal motivo na época de Mozart era claramente associado à caça por seus contemporâneos:

Figura 8: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 1 – 4. Violinos346

O tipo de linguagem fornecido por Mozart torna a sua obra difícil de interpretar. Michael Tree, violista do Quarteto Guarneri, considera que Mozart seria sem dúvidas, dentro do universo do quarteto de cordas, o autor mais árduo de se conseguir obter um resultado satisfatório no aspecto da performance. A sua música requer um grande nível de transparência, fraseados delicados, e o interprete deve sempre ter em mente procurar não poluir a sua execução com idiossincrasias pessoais e maneirismos. Por se tratar de quartetos a meio caminho entre música vocal e instrumental, com frases inspiradas do universo da ópera, a dificuldade está em encontrar o equilíbrio exato em sua execução. “Com Mozart por vezes tenho a sensação de que o público repararia até se eu não me sentasse direito no palco” (BLUM, 1987, p. 155).347

346 Utilizamos como referencia a primeira edição da obra, feita pela Artaria. Nesta publicação por exemplo não há uma apojatura no terceiro compasso na parte de primeiro violino, mas a mesma está presente no sétimo compasso. Edições mais modernas incluem uma apojatura no terceiro compasso, o que já se tornou uma tradição. Em obras de compositores como Mozart, que não escreviam todas as articulações e dinâmicas, é comum um maior grau de intervencionismo da parte de editores e revisores, dificultando muitas vezes conseguir distinguir o que é de fato do autor, e o que foi acrescido pelos revisores/editores/interpretes. Infelizmente não tínhamos à disposição o fac-simile da obra, e optamos aqui para fins de ilustração seguir as marcações da primeira edição. Afinal, mesmo que ela possa conter erros, esta edição foi publicada na época do autor, o que sugere um menor nível de interferências trazidas pela tradição e por interpretes. A edição Artaria encontra-se disponível no tradicional site de partituras imslp.org. 347 With Mozart I sometimes have the feeling that even if you sit down in the wrong way the audience will notice it.

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1.1. Primeiro movimento

“As escolhas do interprete acerca de cada detalhe devem se relacionar à sua concepção do significado ou o caráter da obra como um todo” (STOWELL, 2003, p. 98).348 Todas as opções envolvendo articulações, andamentos, dinâmicas e outros devem pertencer à ideia prévia que o conjunto tem do movimento, sem que nada destoe da concepção que o quarteto traz, sem uma razão musical de ser. No caso deste primeiro movimento, um Allegro vivace assai, a ideia da caça, algo movimentado, alegre, deve ser a diretriz do grupo.

A primeira dificuldade que surge neste início é o ataque preciso dos violinos, logo seguidos dos violoncelo e viola. O sinal da entrada do primeiro violino deve ser firme, para não somente proporcionar uma entrada perfeitamente sincronizada com os seus colegas, mas já no gestual conseguir estabelecer um pulso, antes mesmo de tocar a primeira nota. Assim como o regente de orquestra levanta a mão antes de atacar um primeiro tempo, e a levanta já no andamento, o gesto de entrada da peça deve ser no pulso do que segue. Sendo esta uma peça em 6/8 com pulso binário, e cada pulso tendo a duração de uma semínima pontuada, o primeiro violinista pode optar por marcar corporalmente dois pulsos, ou somente um, entrando neste caso antes do final do pulso. A entrada neste caso pode ser dada pelo primeiro violinista, mas isto não é uma regra imutável. Dependendo do caso, a entrada deve ser dada pelo instrumentista que detém a linha que se destaca, ou que estabelecerá mais simplesmente o tempo (NIRENBERG, 1950, p. 22). Mas é importante que todos os membros do conjunto contem junto internamente com o responsável pela entrada, pois como deixa claro o primeiro violinista do Quarteto Juilliard, Joel Smirnoff, é muito importante poder “sentir o pulso em conjunto, sentir o tempo em conjunto, ter a habilidade de comunicar o pulso entre si até mesmo sem estar tocando” (SMIRNOFF, apud

348 The interpreter’s choice of every detail must relate to his conception of the meaning or characeter of the whole work.

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EISLER, 2000, p. 32). Estabelecer e manter um pulso não deve ser a tarefa de um só músico, mas uma responsabilidade coletiva.

Como exercício para se obter um pulso em comum e estável, Alceu Reis sugere que todos os membros do conjunto contem em voz alta os tempos, ao mesmo tempo que tocam:

Quando um aluno de violoncelo tem um ritmo instável, peço a ele que conte em voz alta ao mesmo tempo que toca, dizendo o nome dos tempos, seja um, dois, três, etc. É importante saber distinguir sempre em que lugar estamos dentro de um compasso, em qual tempo. É um exercício difícil, requer um grande controle sobre o instrumento, mas obriga o instrumentista a pensar ritmicamente o que faz, e aos poucos automatiza a contagem interna. A partir do momento que o meu arco encosta na corda, começo a contar. Sempre, sem exceções. Tenho obtido resultados satisfatórios ao longo dos anos com grupos de alunos, fazendo com que todos contem em voz alta, e de maneira clara para que todos se ouçam distintivamente. O conjunto começa a desenvolver rapidamente um pulso em comum (REIS, 2017).

“Apesar de termos aqui um pulso binário, um erro comum que observamos frequentemente em jovens grupos é de colocar apoios em cada pulso, quando na verdade neste início temos um apoio no princípio do segundo e do quarto compassos” (CRUZ, 2017). Neste caso, o quarteto deve procurar direcionar suas frases para estes pontos de apoio.

Figura 9: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 1-8

O violinista Cláudio Cruz chama a atenção para as dinâmicas em obras de Mozart em geral. Um forte em Mozart ou Haydn não será o mesmo aplicado em Tchaikovsky ou Rachmaninoff. Tais obras foram pensadas para serem tocadas em salas de residências privadas,

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com instrumentos antigos, cordas de tripa e arco clássico, portanto com um som mais arredondado, e com um volume um pouco menor. Os interpretes devem procurar sempre produzir um som limpo, sem impurezas, e nunca seco ou sem ressonâncias (REIS, 2017).

Frequentemente, quando algum aluno meu não consegue interpretar Mozart com leveza, clareza e elegância, e sem brutalidades, peço para que ele reproduza o mesmo trecho em um violino barroco que tenho montado em cordas de tripas junto com um arco clássico, da época de Mozart. Instantaneamente o aluno se surpreende, pois tudo que eu vinha pedindo até então, e com o qual ele tinha dificuldades, sai naturalmente, sem esforço. Na hora de interpretar autores desta época, devemos ter em mente este tipo de sonoridade, de cores, e procurar reproduzir essa ideia nos nossos instrumentos modernos, instrumentos esses que foram modificados para tocar em grandes salas e competir com pianos Steinway de cauda. (CRUZ, 2017).

Ao abordar um repertório romântico ou moderno, o tipo de som do conjunto tende a ser mais focal e constante, com um certo cuidado dos instrumentistas em relação ao ponto de contato. Para o violista Gabriel Marin no repertório clássico o som, apesar de nunca estar desfocado, deve ter um pouco menos de contato para que as cordas possam vibrar mais, produzindo assim uma sonoridade mais doce e ao mesmo tempo livre, com mais harmônicos. Marin enfatiza, porém, que o conjunto não deve confundir este tipo de timbre com falta de foco sonoro, o foco sempre está presente, mas em menor grau (MARIN, 2017). Um possível exercício para balancear um justo equilíbrio sonoro e tipo de timbre é sempre um dos membros do quarteto se afastar enquanto os outros tocam, e ouvir de uma certa distância, tentando sentir a perspectiva do público. Em geral, o som que se ouve do palco é diferente do som que chega ao público. Ao ouvir com algum distanciamento, os músicos poderão testar diferentes timbres, e ter uma noção mais acurada do que pode ou não funcionar. Mesmo nos momentos em que Mozart requer um volume maior, o conjunto deve procurar uma maior ressonância, compensando com uma maior energia:

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Figura 10: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 269 e 270

Assim como muitos de seus contemporâneos, Mozart não anotava todas as articulações, pois noções de estilo desse tipo de música eram de conhecimento amplamente difundido, e as escolhas ficariam a cargo do interprete. A ausência de marcações de articulação não significava que as mesmas não existiam. Simplesmente havia uma noção de que sendo senso comum, não se deveria escrever o óbvio. (BROWN, 2002, p. 7). Exemplos são frequentes nesta obra:

Figura 11: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compasso 5. Violinos 1 e 2

A colcheia que antecede o quinto compasso não tem ponto ou outro tipo de articulação sobre ela, mas um certo encurtamento faz-se necessário. Isto ocorre também em momentos cantábiles, onde há um encurtamento, mesmo que menor, como no levare para o compasso 91:

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Figura 12: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compasso 91. Violino 1

Ao contrário dos primeiros quartetos de Haydn, Mozart nesta obra começa a dar um maior peso e importância a outros instrumentos além do primeiro violino. Em alguns momentos a linha melódica fica a cargo do segundo violino:

Figura 13: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 54 a 60

A maior dificuldade para o segundo violino neste momento é de conseguir projetar esta melodia, localizada numa região mediana, de pouco brilho, e ao mesmo tempo respeitar a dinâmica piano. Para isso, a viola e o violoncelo deveriam tocar uma dinâmica abaixo, para poder sobressair o piano do segundo violino. A marcação fp neste momento tem uma função de apoio musical, e não acento ou marcação forte demais. Para muitos compositores do século XVIII, é possível que a marcação fp significasse uma redução de volume rápida após o início da nota, porém sem uma acentuação brusca (BROWN, 2002, p. 73).

Mozart também distribui a melodia entre o segundo violino e a viola, com igual importância entre os dois instrumentos:

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Figura 14: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 9 e 10

A linha melódica também é repartida entre os quatro instrumentos:

Figura 15: Mozart, quarteto K.458, 1o movimento, compassos 42 a 46

A dificuldade neste tipo de escrita, comum em quartetos de cordas, na qual a melodia passa de um instrumento a outro em imitação, é de conseguir conectar todas as intervenções, sem que haja uma quebra na ideia musical. O público tem que ter a sensação de que um só instrumento, com uma grande extensão sonora, está tocando toda a passagem. O quarteto tem que estar atento a que todos tenham a mesma sonoridade, timbre, dinâmica, volume, tipo de articulação, e que o início de cada intervenção não tenha um acento fora de proporção, quebrando a linha. Também é importante que cada instrumentista consiga sincronizar o final de seu trecho com o início do excerto do colega. “O segredo em passagens segmentadas é de tocar todas as

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partes mentalmente enquanto na realidade somente se toca uma delas” (TREE, apud BLUM, 1987, p. 85).349

Manter um pulso constante pode ser um desafio para um quarteto de cordas. “Venho observando ao longo dos anos com jovens conjuntos, que o andamento com que se termina a primeira parte, antes da barra de repetição, quase sempre é consideravelmente mais lento do que o início. Manter o andamento é importante” (CRUZ, 2017).

1.2. Segundo movimento

O minueto foi a última dança a dois (danse à deux) a emergir da corte francesa de Louis XIV. Apesar de sua coreografia mais simples do que outras danças da corte, o minueto era muito difícil de se dominar, e era considerado o teste máximo para se pôr à prova um verdadeiro comportamento aristocrático. Como observou Wendy Hilton, “a maior dificuldade em executar o minueto está em sua aparente simplicidade”, na qual “o objetivo maior era de parecer extremamente natural”. Enquanto outras danças de corte francesas caíram no desuso no salão de baile do século XVIII, o minueto continuou a ser dançado até o início do século XIX (MCKEE, 2005, p. 384).350

Para McKee, “o gosto por tudo que era aristocrático”351 de Mozart seria uma possível explicação por uma certa predileção do minueto em relação a outras danças salão.352 De acordo com sua esposa Constanze, Mozart era um excelente dançarino de minuetos, gênero que compôs, dançou e interpretou ao longo de toda sua vida. (MCKEE, 2005, p. 387).

Teóricos da época destacavam a necessidade de leveza do minueto, assim como uma graciosidade indispensável, aliada à simplicidade. Para Gallini353 por exemplo, o objetivo do minueto é de ser o mais natural possível e simples, sem que transpareça na dança o estudo e a técnica: “nenhum cavalheiro poderá ser considerado um bom dançarino, se o mesmo dança como

349 The trick in segmented passages is to play all the parts mentally while actually playing only one of them. 350 The minuet was the last couple dance (danse à deux) to emerge from the French court of Louis XIV. Although simpler in choreography than other court dances, the minuet was fiendishly difficult to master and was considered the true test of aristocratic behaviour. As Wendy Hilton observes, 'the greatest difficulty in performing the minuet impressively lies in its apparent simplicity', in which 'the ultimate aim was to appear supremely natural'. While other French court dances fell from use in the eighteenth-century ballroom, the minuet continued to be danced until the beginning of the nineteenth century. 351 Mozart’s desire for all things aristocratic. 352 Na relação de suas peças escritas para salões de dança (quase sempre compostas próximas à época do carnaval), Mozart produziu 2 Quadrilles, 6 Ländlers, 27 Contredanses, 48 Deutsche, e 120 Minuetos (MCKEE, 2005, p. 388). 353 Giovanni Andrea Gallini (1728 – 1805) foi um destacado dançarino e empresário italiano.

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um dançarino profissional” (MCKEE, 2005, p. 389) 354 . Instrutores de dança também preconizavam um apoio no minueto a cada dois compassos, tendo um compasso fraco e outro forte. Em muitos minuetos, em especiais aqueles que ilustravam tratados de dança, era frequente o uso pela parte do compositor da unidade de compasso 6/4 ao invés de 3/4, instigando assim um apoio a cada dois compassos (MCKEE, 2005, p. 386).355

Neste minueto do quarteto K. 458, a ideia central permanece sendo a de leveza e graça. Apesar da dinâmica impressa de f no início, não se trata de um som forte em demasia, exagerado. O uso do vibrato também deve ser adaptado à ideia de simplicidade, sem excessos. Para o primeiro violinista do Quarteto Italiano, Paolo Borciani, há atualmente uma tendência, mais tolerável nos solistas, porém repreensível dentro de um quarteto de cordas, de fazer uso de um vibrato intenso e contínuo em quase tudo o que se toca. Borciani chama este vício de “vibrato-droga”, uma deformação do bom gosto musical, que traz a crença de que uma sonoridade não possuirá calor sem um vibrato exagerado. Borciani recomenda moderação no vibrato, em especial nos compositores clássicos (BORCIANI, 1973, p. 93).

Assim como acontece no movimento anterior, a marcação de sf nos compassos iniciais faz referência a um apoio musical, uma marcação da mão esquerda (um vibrato especial), e não um acento ou apoio forte. Isso é realçado pelo fato de que todos os instrumentos têm a mesma marcação dinâmica ao mesmo tempo, e um sf exagerado, amplificado pelos quatro instrumentos descaracterizaria a leveza da dança. “Mais uma vez é o estilo da música que decidirá qual o grau de acentuação que será necessário, em proporção com o que vem antes e depois” (NORTON, 1966, p. 107).356 Alceu Reis recomenda também uma ênfase não muito curta e vertical, mas um apoio mais generoso (REIS, 2017).

354 No gentleman can be said to dance well, who dances like a dancing-master. 355 Uma notória exceção a esta métrica de dois compassos é o minueto da 40a sinfonia de Mozart, onde o compositor inova ao escrever um minueto com frases de três compassos. 356 Here again the style of the music first decides what degree of accentuation is necessary in proportion to what goes before and after.

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Figura 16: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compassos 1 a 5

Mesmo em se tratando de uma dança, Mozart evita aqui a tentação de compor uma melodia acompanhada no minueto, e opta por uma escrita mais densa, no qual todos os instrumentos possuem motivos melódicos, todas as partes são muito importantes. O contrário ocorre no trio, no qual o primeiro violino se destaca naturalmente. Sendo assim, no minueto, o quarteto deve pensar em conduzir uma melodia a quatro vozes na maior parte do tempo, uma massa orgânica e homogênea (CRUZ, 2017).

Figura 17: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compassos 1 a 8

O caráter do trio destoa fortemente do minueto:

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Não foi até a segunda metade do século XVIII que o contraste marcado entre minuetos e segundos minuetos – hoje em dia habitualmente chamados de “trios” – se tornou prática comum. Os compositores vienenses eram os que eram adeptos desta forma. O tipo de contraste era bastante previsível: minuetos eram mais barulhentos, empregavam a orquestra completa [...], e trios eram suaves, utilizavam uma orquestra reduzida, e eram caracterizados por uma textura mais simples (MCKEE, 2005, p. 383).357

Mozart no início do trio reforça esta ideia ao escrever sempre p. O andamento também pode auxiliar a diferenciar o caráter das duas partes do movimento: “Muitas vezes toquei o trio no mesmo andamento do minueto, mas prefiro um trio ligeiramente mais lento. Isto ajuda a marcar o contraste com o minueto, e também a estabelecer um novo clima subitamente” (CRUZ, 2017). Uma pequena espera antes de começar o trio contribui a passar ao público a sensação de término de uma seção e início de outra.

A melodia é acompanhada suavemente pelo segundo violino e pela viola. O tipo de articulação dos dois instrumentos deve ser a mesma. Instrumentos de arco possuem uma vasta gama de possibilidades de spiccato, a nota com ponto pode ser executada de diversas maneiras (BORCIANI, 1973, p. 76). Por isso uma escuta atenta entre os instrumentistas para chegar a um consenso é de fundamental importância. O acompanhamento não deve ser visto aqui como uma porção menor, mas como fazendo parte do todo. O segundo violino e a viola devem se inspirar na melodia do primeiro violino, assim como tentar adivinhar o que ele fará, e tentar reproduzir todas essas inflexões no seu acompanhamento. A ideia central não é de acompanhar, mas de reagir ao primeiro violino (BLUM, 1987, p.6). “Acompanhar não implica em se esconder, já que o todo deve ter consistência, cada inflexão de tempo e de expressão se encaixando em seu lugar” (STRATTON & FRANK, 1935, p. 8).358

357 It was not until the second half of the eighteenth century that marked contrast between minuets and second minuets – by now commonly called “trios” – became standard practice. And it was Viennese composers who were most fond of this form of association. The type of contrast was confined within a rather narrow and predictable range: minuets were loud, employed the full orchestra [...], trios were soft, employed a reduced orchestra, and were characterised by a simpler texture. 358 Accompanying does not imply complete self-effacement, since the whole must have consistency, every inflexion of time and expression falling into place.

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Figura 18: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compassos 29 a 36

A afinação de oitavas no quarteto, por ser um meio de certa transparência, pode ser por vezes delicado. Nestes casos, tocar mais levemente a voz mais aguda, e com maior presença a voz grave beneficia a afinação do conjunto (BLUM, 1987, p. 35). É o caso por exemplo do compasso 45 do trio no qual o segundo violino deve tocar menos e dar maior destaque à viola;

Figura 19: Mozart, quarteto K.458, 2o movimento, compasso 45

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1.3. Terceiro movimento

No primeiro compasso do Adágio, a terceira nota do primeiro violino é articulada em conjunção com o segundo violino e o violoncelo. No entanto, após uma nota longa e uma pausa, uma articulação mais precisa de uma nota curta pode causar um certo desencontro no grupo.

Figura 20: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compasso 1

“Há uma certa tendência, ou tentação, de pararmos de contar internamente em notas longas, de flexibilizar o ritmo, provocando desencontros. O pulso deve ser mantido sempre, ele é o alicerce de todo o conjunto” (REIS, 2017). Para uma maior estabilidade e precisão, o quarteto deve sentir um apoio rítmico na pausa que antecede a nota curta. O primeiro violinista pode fazer um gesto corporal nesta pausa, confirmando para todos os demais o pulso em comum, trazendo uma sintonia rítmica. É importante em seguida o conjunto chegar a um consenso sobre a apojatura que segue. Ela pode ser tocada antes do pulso, ou na cabeça do tempo, em decorrência da escolha do conjunto em relação a qual nota deva receber a maior ênfase: a nota real ou a apojatura? É necessário apontar que a opção feita neste primeiro compasso deverá servir de guia e ser reproduzida em outros momentos do movimento, como por exemplo no último compasso:

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Figura 21: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compasso 53

Em relação ao sforzando do primeiro compasso, é importante lembrar o contexto no qual ele se insere, para não confundir sforzando e acento. Seria um recurso da mão esquerda, um vibrato mais intenso, do que um acento ou apoio mais efetivo do arco.

Uma anotação que é frequentemente mal interpretada é o sforzando. Devemos sempre ter em mente que a intensidade do sforzando é sempre relativa à dinâmica na qual ele se insere, assim como o contexto expressivo. [...] Contudo, alguns sforzandos deveriam ser tocados de maneira a não interromper a linha lírica. Eles seriam mais uma articulação expressiva da mão esquerda do que um acento com o arco (BLUM, 1987, pp. 82-83).359 Este movimento apresenta mudanças súbitas de dinâmicas, ou em pouco espaço de tempo. Isto exige do quarteto de cordas um domínio do arco e um grande controle da sonoridade. Por exemplo, no início:

359 A marking which is frequently misunderstood is the sforzando. One shouldn’t forget that a sforzando’s intensity is always relative to its dynamic and expressive context.[…] However, some sforzandos should be treated so as not to disrupt the lyrical line. They’re more an expressive left-hand articulation than an accent with the bow.

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Figura 22: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 1 a 3

O movimento se inicia em piano, seguido de um grande crescendo rápido para forte. Porém o andamento é lento, e o primeiro violinista deve conseguir transmitir ao público um grande acréscimo de dinâmica, todavia com arcadas longas, sem forçar o som. Para isso, é necessário tocar as primeiras notas com pouco arco, e nas duas últimas usar uma maior velocidade de arco. Nas últimas notas também é possível acrescentar um vibrato mais amplo e rápido, que passa ao público a impressão de um maior volume. Um recurso efetivo para melhor projetar o som é o uso do vibrato.

“Uma nota com pouco ou sem vibrato, mesmo tocada forte, não tem tanta presença quanto uma nota vibrada amplamente. As vezes só com o arco não há mais espaço para crescer. Com o vibrato, ela ganha vida” (REIS, 2017). Nas palavras de David Soyer do Quarteto Guarneri:

O ponto principal a ser lembrado é que todas as nuances devem ser pensadas não somente em termos de volume, mas também de intensidade. Você pode, por exemplo, querer acrescentar intensidade no som sem necessariamente fazer um crescendo, e isto pode somente ser realizado pela mão esquerda. [...] Por vezes nos deparamos com alguém fazendo um diminuendo para o pianíssimo no final de uma frase, com o arco a cada vez mais leve, porém a intensidade da mão esquerda permanece inalterada; não há uma sensação de tranquilidade. Nestes momentos, o meu professor Diran Alexanian

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diria “Sinto como se alguém estivesse tocando fortíssimo lá longe” (BLUM, 1987, p. 41).360 Em variados momentos, Mozart introduz mudanças súbitas de dinâmicas, recurso que seria posteriormente plenamente explorado por Beethoven em seus quartetos. Para mudanças bruscas, uma breve pausa quase imperceptível, a Luftpause, é necessária, para dar tempo que a ressonância do final de frase chegue ao ouvinte, assim como para marcar o início de uma nova seção (NORTON, 1966, p. 65). Raaben (2003, p. 116) refere-se a isso como a uma leve suspensão do arco.

Figura 23: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 6 e 7

360 The main point to remember is that all nuances have to be thought of not only in terms of volume but of intensity. You may, for instance, want to add intensity to the sound without making a crescendo, and that can be done by the left hand. […] One sometimes hears a player making a diminuendo to pianissimo on the final note of a phrase, with the bow becoming lighter and lighter, yet the left-hand intensity remains unchanged; there’s no feeling of tranquility. At such times my teacher Diran Alexanian would say, “That’s sounds like someone playing fortissimo at a great distance”.

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Figura 24: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 8 e 9

Figura 25: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 10 e 11

A partir do compasso 7, o compositor apresenta um tema lírico e cantábile, e o conjunto deve procurar mudar a coloração do som. Não se trata apenas de tocar com a dinâmica certa, mas também de encontrar a cor certa. Apesar da dinâmica piano, o tipo de frase requer uma utilização do arco com maior velocidade e ponto de contato distante do cavalete, com bastante ar no som.

Amadores ao ver a dinâmica piano frequentemente reagem tocando com pouco arco. Isso é um erro. Assim como um ator precisa estar seguro que o seu sussurro será ouvido

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lá no fundo do teatro, temos que pensar em nosso piano sendo escutado através de grandes distâncias (BLUM, 1987, p. 62).361

Contudo, cor não equivale a dinâmica tão somente. A cor está mais relacionada a timbre, ponto de contato, velocidade de arco, vibrato, sonoridade, para além de volume. Dinâmicas fazem parte da cor, mas não unicamente (NORTON, 1966, p. 89).

361 Nonprofessionals seeing “piano” will often automatically react by playing with very little bow. That’s a mistake. Just as an actor has to make sure that his whisper is heard at the very back of the theatre, we must imagine our piano being heard over a great distance

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Figura 26: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 7 a 12

Neste movimento Mozart também apresenta melodias fracionadas entre o primeiro violino e segundo junto com a viola. Porém, diferentemente do primeiro movimento, desta vez não é simplesmente a repetição do mesmo motivo, mas uma linha melódica que se divide enquanto caminha para um ápice harmônico:

Figura 27: Mozart, quarteto K.458, 3o movimento, compassos 45 e 46

O quarteto deve procurar não quebrar a linha melódica, trazendo uma ideia de continuidade. Para Norton (1966, p. 22), somente a escuta atenta pode proporcionar isso: “O primeiro requisito para um bom conjunto é que cada instrumentista tenha o senso do todo. Isso somente pode acontecer ao escutar os outros – constantemente, conhecendo a música ou lendo à primeira vista. [...] Ele nunca pode parar de escutar”.362

362 The first requisite for a good ensemble is that each player shall have the sense of the whole. This he can only fell by listening to the others – constantly, whether he knows the music or is reading at sight. […] he can never afford to stop listening.

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1.4. Quarto movimento

O quarto movimento é muito demandante tecnicamente para o primeiro violinista. Peça difícil, requer um certo brio e clareza do músico constantemente. O instrumentista tem que refletir em seu estudo pessoal prévio sobre a região de arco ideal para cada passagem, pois se o arco estiver ligeiramente fora do lugar certo, a articulação será sacrificada. Após decidir qual o melhor local para determinada passagem, o violinista tem que trabalhar as transições de arco, ou seja, como passar de uma certa passagem que pede por exemplo um arco mais perto da ponta, para o trecho seguinte, que terá uma melhor sonoridade perto do talão. Esta transição, frequentemente em um curtíssimo espaço de tempo, tem que ser trabalhada para que possa parecer o mais natural possível, se possível imperceptível (CRUZ, 2017).

Borciani (1973, p. 77) explica ser comum na grafia de Mozart uma ausência de pontos sobre as notas, o que não exclui que elas possam ser curtas ou muito articuladas. Porém as possibilidades de articulação são grandes. Em passagens rápidas com arcadas separadas, como por exemplo no primeiro tempo do compasso 2, um maior controle pode ser obtido ao não tirar o arco da corda, articulando somente as notas de maneira a equiparar a articulação do spiccato que segue, já no segundo tempo do compasso. Este spiccato, por sua vez, se for curto demais destoará do que antecedeu. E todo este processo deve ser conduzido na dinâmica p.

Figura 28: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 1 e 2. Violino 1

No exemplo acima, o violinista não deve utilizar arco em demasia no primeiro compasso, para que a transição para a região de arco do segundo tempo do segundo compasso fique mais simples de realizar. A tonalidade de si♭ maior não é das mais simples para os instrumentos de cordas, por não possuírem cordas afinadas em si♭ ou em fá. Para compensar, muitas mudanças de arco são necessárias afim de realizar as linhas melódicas. “A escolha de um bom dedilhado é de suma importância, afim de evitar mudanças de cordas desnecessárias, ou que interrompam a linha melódica em momentos inoportunos” (MARIN, 2017). Para John Dalley, do Quarteto Guarneri, dedilhados precários são uma das maiores causas de problemas de

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sincronismo entre as duas mãos em um interprete, junto com trocas de cordas difíceis e mudanças de posição defeituosas (BLUM, 1987, p. 49). Portanto, no trabalho preparatório individual dos membros do quarteto, questões como dedilhado e mudanças de cordas devem ter um enfoque especial. Nos casos das mudanças de cordas, preparar o braço antecipadamente, ou seja, deixar o braço na altura da nota a ser tocada, antes dela ser tocada, é a melhor maneira de se evitar interrupções na linha melódica (BLUM, 1987, p. 124).

A clareza na articulação depende em grande parte da mão esquerda, especialmente em momentos em que se tem pouco tempo para pronunciar cada nota. No segundo compasso por exemplo, se o primeiro violinista não exagerar a articulação da mão esquerda, o resultado será permeado por notas emboladas, sem uma clara distinção. Em escalas descendentes, como é o caso no segundo compasso, um pizzicato de mão esquerda é fundamental para atingir o objetivo almejado. No momento que os dedos saem da corda, ao invés de tirar os dedos verticalmente, mas horizontalmente, o instrumentista produz assim um pizzicato que delimita e evidencia nitidamente cada nota (BLUM, 1987, p. 109).

Na repetição do tema inicial em oitavas entre os dois violinos, não há mais uma hierarquia entre o primeiro violino e o segundo. Ambos os instrumentos devem fusionar em uma só voz, com uma maior presença da linha grave para facilitar a afinação. O segundo violino deve procurar reproduzir as mesmas inflexões que o primeiro apresentou anteriormente, assim como região de arco, tipo de vibrato, e etc. Esta habilidade de imitação e flexibilidade na interpretação são desenvolvidos nos ensaios e através da prática:

Quando o universo da música de câmara passa a fazer parte do dia a dia do músico, algumas habilidades necessitam ser desenvolvidas com maior ênfase. Fluência em leitura musical, escuta aural, comunicação visual, leitura corporal, precisão rítmica, conhecimento de estilos musicais variados e maleabilidade interpretativa são algumas das aptidões que cameristas precisam desenvolver a fim de obter êxito em suas performances. Durante os ensaios e performances públicas, tais habilidades – musicais e comunicativas – tendem a amadurecer e os integrantes adquirem maior intimidade musical passando, então, a fazer música com mais fluência e consciência (PINHEIRO, BIAGGI, 2016, p. 149).

Porém, além de uma questão técnica e interpretativa, é importante em momentos como este que o segundo violino possa assumir uma postura e presença de solista, sair de um modo reativo para um modo ativo. Sua atuação deve ser enérgica, assim como tomar para si uma

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maior responsabilidade dentro do conjunto: “um segundo violino fraco ou lento, rude ou insensível, pode ser uma grande lástima” (NORTON, 1966, p. 28).363

Figura 29: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 9 a 16. Violinos

Em seu trabalho sobre o duo de violões, ao falar sobre a escolha de sonoridade, Pinheiro e Biaggi conseguem distinguir duas concepções nos conjuntos atuantes na formação: grupos que optam por uma coesão sonora em termos de cores, gestos, digitações, articulações, vibratos e até instrumentos, e outros coletivos que não suprimem as suas individualidades, mas o resultado é a soma dos indivíduos. A unidade está no pensamento musical: “A interpretação musical é, antes de tudo, fruto do pensamento. Se o pensamento de um indivíduo é organizado, sua execução musical se refletirá em uma performance coerente” (PINHEIRO, BIAGGI, 2016, p. 151). No nosso entendimento, ambas poéticas interpretativas podem ser aplicadas ao quarteto de cordas. O quarteto é a soma de quatro indivíduos compartilhando um pensamento musical. Porém em muitos momentos, a imitação, a concepção sonora deve prevalecer. No exemplo abaixo, a frase tocada em alternância pelos quatro instrumentos tem que soar como um só, como se um indivíduo tocasse toda a frase, e não fragmentos reunidos:

363 A weak or slow second, a rough or insensitive second, can be a great misfortune.

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Figura 30: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 214 a 227

O segundo violino é desafiado em outros momentos a desempenhar um papel de maior destaque, como por exemplo quando apresenta um novo tema em uníssono com o violoncelo a partir do compasso 48. Porém, ele deve compensar em energia e com um timbre preciso a dinâmica p. Esta melodia deve se destacar com firmeza, mas sem apresentar um volume forte:

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Figura 31: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 48 a 54.

O acompanhamento em colcheias nunca deve ser estático neste tipo de música. Para que o primeiro violino possa ter um maior grau de liberdade, uma certa flexibilidade no acompanhamento é necessária. “O importante é de pegar a essência da música e não ficar preso literalmente à notação impressa” (BLUM, 1987, p. 89).364 Um ligeiro e discreto acento na primeira nota do grupo de notas do acompanhamento (no exemplo abaixo a cada dois compassos) pode ser útil para manter o ritmo claro, especialmente quando uma certa flexibilidade está em curso. “Um acento tão ligeiro, insisto, que em muitos casos ele é suficiente quando existe tão somente na mente do interprete” (NORTON, 1966, p. 39).365

364 The importante thing is to get to the essence of the music and not be bound literally to the printed notation 365 A very slight accent, be it noted, which in many instances comes through sufficiently if it is only in the mind of the player.

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Figura 32: Mozart, quarteto K.458, 4o movimento, compassos 48 a 54.

2. Dvořák, quarteto Americano no 12, op. 96

Fournier (2014, p. 175) traça um paralelo entre a obra para quarteto de cordas de Dvořák e Schubert. Seja pelo volume de composições (quatorze quartetos de Dvořák, e quinze de Schubert), seja por semelhanças estéticas,366 e pelo fato de em ambos os casos as três últimas criações são o ápice de sua contribuição ao gênero, o quarteto de cordas ocupa um lugar de destaque no conjunto da obra destes compositores. Assim como Schubert, o interesse pela música de câmara surgiu cedo, e esteve presente ao longo de toda a vida dos compositores. E também como Schubert e tantos outros importantes compositores de quartetos de cordas,367 Dvořák também tocava viola (WOLLENBERG, 1991, p. 434). O convívio com Leoš Janáček368 a partir de 1876 traz como importância para a sua obra a relevância do folclore tcheco.

366 O próprio Dvořák, admirador da obra de Schubert, reconhecia no compositor vienense elementos da música eslava. John Reed explica isto pelo fato de que “Schubert [...] fazia parte de uma primeira geração de vienenses; seus pais vieram de áreas que hoje fazem parte da Tchecolosváquia, e a poesia da música de Schubert [...] deve mais ao lar de seus ancestrais do que à Viena” (apud WOLLENBERG, 1991, p. 437). Em seu artigo Celebrating Dvořák: Affinities between Schubert and Dvořák, Susan Wollenberg analisa a inspiração de Schubert na obra de câmara de Dvořák, com diversos exemplos, demonstrando essa influência permear profundamente a obra do compositor tcheco. Schubert... was only a first generation Viennese; his parents came from áreas of what is now Czechoslovakia, and the poetry of Schubert’s music... owes more to the home of his forefathers than it does to Vienna. 367 Dentre eles Haydn, Mozart e Beethoven. 368 Leoš Janáček (1854 – 1928) foi um importante compositor, teórico musical, professor e estudioso do folclore tcheco.

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Em abril de 1891, então professor de composição, orquestração e teoria no Conservatório de Praga, Dvořák começa a receber convites para conhecer os Estados Unidos da América, vindos de uma milionária chamada Jeanette M. Thurber, 369 que tinha criado o Conservatório de Música de Nova Iorque. Thurber procurava um nome europeu conhecido para gerenciar o seu conservatório, e considerou por um tempo contratar Jean Sibelius, mas acabou optando por Dvořák (DAVIS, CARLEY, 1968, p. 129). Thurber esperava então que um nome de peso como o do compositor tcheco daria um maior brilho em seu recém-criado conservatório, que tinha como grande ambição por parte de sua criadora de ser uma alternativa aos renomados conservatórios europeus nos quais os talentosos estudantes de música americanos iam se aperfeiçoar (CLAPHAM, 1967, p. 40). Após rejeitar as ofertas iniciais, por não querer se ausentar por um período de pelo menos dois anos, Dvořák acaba cedendo pelo considerável salário de 15000 dólares anuais (mais de vinte vezes o que ele ganhava em Praga), junto com férias de quatro meses e tempo livre para a composição (DAVIS, CARLEY, 1968, pp. 129-130) .370

No verão de 1893, saudoso de seus filhos que tinham permanecido em Praga, Dvořák manda busca-los, e decide passar suas férias na pequena cidade de Spillville, que contava então com uma importante colônia tcheca. Ali, Dvořák teria a oportunidade de “conversar em sua língua natal com praticamente toda a população da cidade, de trezentas pessoas. Ele poderia relaxar em uma atmosfera rural, se entreter com jogos de cartas tchecos, e consumir sua cerveja da Bohemia predileta” (DAVIS, CARLEY, 1968, p. 132). 371 Dvořák adorou a cidade, e rapidamente se tornou uma figura popular, efetuando muitos passeios e procurando um maior contato com a natureza (DAVIS, CARLEY, 1968, p. 132). É neste período, que no espaço de doze dias Dvořák compõe o seu Quarteto no 12 op. 96, conhecido como Quarteto Americano, pelo uso de elementos do folclore dos Estados Unidos (FOURNIER, 2014, p. 177).

369 Jeanette Meyers Thurber (1850 – 1946), foi uma das principais mecenas americanas da música clássica. Ela fundou o Conservatório de Música de Nova Iorque, a Companhia Americana de Ópera e importantes festivais, como o primeiro Festival Wagner realizado em Nova Iorque. 370 Era um contrato de no mínimo dois anos, nos quais Dvořák através de seu advogado exigiu não somente tempo para compor, como também para organizar concertos de sua música, e também uma quantia considerável (7500 dólares) paga de antecedência, antes de embarcar para os Estados Unidos. Foi feito um contrato minucioso, no qual constava até o número de concertos com a música do compositor, a serem organizados no novo país (CLAPHAM, 1967, p. 42). 371 Dvořák would be able to converse in his native tongue with pratically all of Spillville’s three hundred people. He could relax in a rural atmosphere, play Czech card games, and quaff his favorite Bohemian beer.

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2.1. Primeiro movimento

Ao sair da inércia e colocar o arco em movimento, os violinos devem evitar uma acentuação na primeira semicolcheia de seu motivo. As duas primeiras semicolcheias são um levare para o tempo seguinte, e não tempo forte. Se a primeira nota for acentuada, pode transmitir a sensação de que a música se inicia em um tempo forte, mudando assim a escrita, e levando a uma possível desestabilização do conjunto (CRUZ, 2017). É importante também conseguir manter o ritmo das semicolcheias regular e inalterado, sem flutuações. Uma articulação firme da mão esquerda é essencial, pois os violinos e o violoncelo entram um após o outro, e devem ser precisos como um relógio:

Figura 33: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 1 e 2.

O mesmo ocorre a partir do compasso 11, no qual as semicolcheias estão distribuídas entre todos os instrumentos, e este motivo deve fluir ininterruptamente, como uma máquina, de maneira meticulosa, como se somente uma pessoa fosse responsável pela condução rítmica do conjunto:

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Figura 34: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 11 a 14.

Junto com o primeiro quarteto de Smetana, o quarteto op. 96 de Dvořák é uma das primeiras obras a dar um importante destaque à viola. O instrumento possui neste movimento um dos mais destacados solos de toda a literatura do quarteto de cordas. Ela apresenta o tema inicial, com bastante energia e lirismo. Mesmo com a dinâmica impressa mf, o som deve ser cheio, e se destacar facilmente, mesmo que o violista toque um pouco acima da dinâmica impressa.

Figura 35: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 3 a 6. Viola

Gabriel Marin aponta que um erro frequente em conjuntos com pouca experiência ao abordar esta obra é de acentuar notas menos importantes, criando um desequilíbrio rítmico, e mudando o sentido musical da frase. O exemplo mais comum é o de acentuar no quinto compasso as quartas e oitavas notas do compasso, o ré:

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Figura 36: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 5. Viola

Figura 37: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 5. Apoios indevidos a serem evitados. Viola

Porém Dvořák, talvez por conta dos seus conhecimentos como violista, definiu um acento no primeiro e terceiro tempos, deixando claro onde queria os tempos fortes. “Mesmo assim, por conveniência, para preparar o acento que segue no talão, muitas vezes o violista gasta muito arco, criando um apoio” (MARIN, 2017). Utilizando muito arco na primeira nota, o violista deve voltar ao talão antes do próximo acento, o que muitas vezes pode criar um apoio indevido na nota que antecede o acento. Marin também sugere não usar muito arco nos acentos, mantendo toda a figura na mesma região, o que pode ajudar a contornar o problema. “O som aqui também é outro, muito distante do Mozart. O vibrato é amplo, o som é mais focado, com uma maior aderência da crina na corda” (MARIN, 2017).

Para Alceu Reis, desafios deste tipo, como acentuações indevidas, são um dos maiores problemas encontrados não somente em jovens alunos, como em também em alguns profissionais:

Tocar é muito semelhante a falar. A melodia e o discurso lidam com frases com início, meio e fim, respirações, pontuações e especialmente ritmo. Por vezes colocado em segundo plano neste contexto, o ritmo é essencial a qualquer enunciado, fala ou expressão. Os ritmos possuem acentuações próprias. Na música cantada, onde temos paroxítonas, proparoxítonas e assim por diante, a prosódia e a métrica de uma canção cuidam do correto apoio de cada palavra. Se você trocar por exemplo a palavra Sábia por Sabiá todo o sentido da frase se perde. O mesmo ocorre na música instrumental. Se você mudar o apoio, seja ele rítmico ou do fraseado, o significado se torna outro (REIS, 2017).

“Em relação a Mozart, os fortes são mais fortes, o som é mais denso, e ao mesmo tempo leve quando necessário. Os contrastes são mais marcados, o que pode ser visualmente constatado, pelo uso de dinâmicas como ppp e fff (CRUZ, 2017).372

372 A dinâmica fff é utilizada no quarto movimento.

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Porém ainda no quesito sonoridade, Alceu Reis aponta que as dinâmicas podem ser trabalhadas nesta obra para além de uma simples questão de volume, como uma gradação automática. “Piano não é um volume sonoro absoluto, mas a percepção de um tipo de sonoridade. Seja pelo vibrato, ou um ponto de contato mais próximo do espelho, ou a conjunção de ambos, o instrumentista tem que passar a sensação ao ouvinte de estar tocando piano (REIS, 2017). Em muitos casos, a mudança de volume entre um p, e um pp pode não ser grande, porém o timbre tem que ser muito diferente. Como é o caso entre a frase que se inicia no compasso 44, quase idêntica à sua repetição a partir do compasso 48. A reincidência da mesma frase não pode ser feita de maneira idêntica ao que foi feito anteriormente, a escrita sugere uma insistência na recorrência do tema, pedindo um acréscimo de intensidade. Isso pode ser obtido por um vibrato um pouco mais rápido, e uma ligeira mudança no ponto de contato.

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Figura 38: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 44-51.

De qualquer maneira, o importante em relação às dinâmicas é sempre ter em mente a projeção sonora, ou seja, cuidar para que todas as notas, por mais piano que sejam as dinâmicas, sejam claramente percebidas pelo público. Galamian insistia muito sobre a projeção sonora. Ele queria que você quebrasse mentalmente os muros da sala de estudo, e aprendesse a enunciar a música de tal maneira que ela projetasse até a última fileira de uma grande sala de concertos. Ele instava frequentemente que os inícios das notas fossem definidos. A corda do violino ao repouso é relutante a se mover. No universo da física diríamos que um corpo tende a ficar inerte. Quando alguém quer uma articulação clara e instantânea, a corda deve ser agarrada quase como se o arco possuísse dentes ou garras (STEINHARDT, apud BLUM, 1987, p. 141).373

A articulação é um importante fator a ser definido pelo conjunto, porém deve ser pensada como uma construção coletiva. O golpe de arco conhecido como spiccato traz um problema na prática de quarteto de cordas. As notas rápidas que soam tão claras, picantes e brilhantes saídas do arco de um violinista solo nem sempre funcionam satisfatoriamente na junção de três ou quatro vozes, produzindo um efeito vertical, sem ressonância, incapaz de provocar uma fusão entre os instrumentos, e desagradável na escuta. [...] Na verdade, tocar em conjunto requer o domínio de uma grande variedade de spiccatos (NORTON, 1966, p. 138).374

Por exemplo, nestes três momentos abaixo, o primeiro violinista deve apresentar tipos de articulações diferentes, condizentes com a finalidade musical, porém que possam se mesclar de maneira satisfatória ao que os outros integrantes do conjunto estão tocando.

373 Galamian put much emphasis on the projection of sound. He wanted you mentally to break down the walls of the practice studio and learn how to enunciate the music in such a way that it would project to the last row of a large auditorium. He was insistent that the beginnings of notes be given real definition. The violin string, lying there passively, is reluctant to move. In physics one would say that a body at rest tends to stay at rest. When one wants instantaneous, clear articulation, the string has to be grabbed almost as if the bow had teeth or claws. 374 The spiccato bow presents a very particular problem in string quartet technic. The rapid springing notes that sound so clear, piquant and brilliant from the bow of a single violinist do not always carry so well where three or four voices join, but are liable to produce a chopping effect, lacking in resonance, insusceptible to blending, and unsatisfactory to the ear. […] In fact, ensemble playing calls for several varieties of spiccato.

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Figura 39: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 9. Violino 1

Figura 40: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compasso 19. Violino 1

Figura 41: Dvořák, quarteto op. 96, 1o movimento, compassos 44 a 46. Violino 1

A compreensão do todo, a constante adaptação da maneira individual de tocar ao conjunto, optando por escolhas que favoreçam a totalidade são requisitos indispensáveis ao quarteto de cordas, e indissociáveis da escuta constante (NORTON, 1966, p. 22).

2.2. Segundo movimento

Apesar da indicação de 6/8 neste movimento, o pulso dominante é da semínima pontuada, ou seja, duas marcações por compasso. O segundo violino e a viola devem procurar ter em mente uma divisão rítmica binária, mesmo que dentro dessa pulsação possa haver uma subdivisão por momentos. Apesar da dinâmica marcada ser o piano ao longo dos primeiros compassos, é comum neste tipo de introdução375 começar a tocar mais forte, e diminuir progressivamente antes da entrada do primeiro violino.

375 Introduções com figuras repetitivas antes da entrada do tema.

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Figura 42: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 1 a 4.

A despeito do acompanhamento cíclico, o primeiro violinista tem que ter uma certa liberdade para poder reproduzir a sua parte sem uma demasiada rigidez. Certos momentos demandam mais tempo para a sua realização, como por exemplo o levare ao compasso 7. O primeiro pulso do compasso 7 se encontra após a apojatura do primeiro violino, no lá agudo, e é junto com esta nota que os outros instrumentistas devem coincidir seus primeiros tempos. Um exercício possível é que o primeiro violinista toque nos ensaios esta passagem de diferentes maneiras, por vezes até opostas ou mesmo antimusical, para que os outros três possam tentar sentir e acompanhar a melodia com perfeição no sincronismo. Porém, para que a escuta atenta possa se desenvolver, durante este exercício o segundo violino, a viola e o violoncelo devem evitar olhar para o primeiro violinista, para não depender de um contato visual, mas que possam aprender a sempre escutar com cautela.

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Figura 43: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 6 e 7.

O segundo violino desempenha uma função relevante neste movimento, ao alternar entre o acompanhamento, e subitamente responder ao primeiro violino em um diálogo de igual importância. A maior dificuldade se encontra na velocidade na qual o segundo violino deve oscilar entre as duas funções. O solo exige uma sonoridade diferente, um ponto de contato específico e outra velocidade de arco afim de equilibrar com o primeiro violinista. Por estar também no palco atrás do primeiro violino, com o violino ligeiramente voltado para o lado, e frequentemente tocando cerca de uma oitava abaixo do primeiro violino, o segundo violino sofre uma ligeira desvantagem na hora de projetar o som, exigindo dele uma dinâmica um pouco acima do que está escrito para que o seu som possa se destacar.

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Figura 44: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 55 a 58.

No exemplo acima, o primeiro violino tem a dinâmica ff nos compassos 55 e 56. Mas no compasso 56 o primeiro violino está em um final de frase, e o segundo violino está respondendo à frase proposta no compasso 55. Apesar da dinâmica f, a linha do segundo violino deve se sobressair. O mesmo ocorre nos compassos 57 e 58. Dvořák neste movimento explora grandes crescendos e dinâmicas como ff em notas longas. Para Gabriel Marin, nestes casos os cuidados com a qualidade do som devem ser maiores, e sempre nortear o trabalho do conjunto: o importante é nunca apertar a corda com força, pois o som sairá inevitavelmente esmagado. Há várias maneiras de simular um crescendo para além do peso e pressão no arco. Aumento da velocidade de arco, mudança de ponto de contato, e principalmente um acréscimo na intensidade do vibrato. Mesmo nesses momentos muito intensos, a corda deve poder vibrar livremente. É impressionante a diferença que podemos obter em termos de sonoridade e projeção ao simplesmente mudarmos o vibrato. Não importa o que fizermos, neste tipo de música o som sempre deve ser bonito. A qualidade do som é a nossa carta de visitas, e define quem somos (MARIN, 2017).

O violista Lionel Tertis sugere variar os dedilhados em momentos de repetição da mesma figura melódica, a fim de mudar a coloração do som (TERTIS, 1950, p. 150). Este recurso pode ser aplicado em diversos momentos neste movimento. A repetição de maneira idêntica de motivos deve ser evitada, mesmo no acompanhamento, pois a música como discurso leva sempre a um ponto culminante, e não pode ser tocada de maneira estática. “O fator determinante na interpretação deve sempre ser o contexto musical ao invés de simplesmente a maneira na qual as notas foram grafadas" (STEINHARDT, apud BLUM, 1987, p. 70). David Soyer acrescenta que "apesar de tudo, o importante é sempre evitar a monotonia" (apud BLUM, 1987, p. 83).376

No exemplo abaixo, o segundo violino, a viola e o violoncelo devem procurar acompanhar as inflexões da melodia, nunca tocando a mesma figura da mesma maneira. "Até no pizzicato procuro sempre variar. Na intensidade, no vibrato, e intenção. Ele acompanha a melodia, as mudanças harmônicas, nunca é igual. Procuro também fazer com que ele ressoe, preenchendo os espaços, nunca seco" (REIS, 2017). É importante ressaltar que o pizzicato soa naturalmente melhor e mais amplo no violoncelo do que nos outros instrumentos, e que para que a linha do grave possa se mesclar com os outros, por diversas vezes faz-se necessário uma

376 But whatever one does, it’s important to avoid monotony.

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diminuição da dinâmica escrita, ou a opção pelo uso de cordas menos brilhantes377 (SOYER, apud BLUM, 1987, p. 52).

Figura 45: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 1 a 8.

Na seção final do movimento, o violoncelo conduz a melodia. Trata-se, porém, de uma evocação longínqua do que foi apresentado anteriormente. Para Alceu Reis o vibrato é mais contido, o timbre é mais piano, e "o acompanhamento lembra um coração batendo, aos poucos se

377 No caso em questão, cordas mais graves, que possuem uma sonoridade menos brilhante e clara, com uma maior reverberação.

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apagando. Os apoios estão nos primeiros e segundo tempos nas vozes que acompanham, e isso deve ser ressaltado, tocando a primeira nota de cada figura um pouco mais forte" (REIS, 2017).

Figura 46: Dvořák, quarteto op. 96, 2o movimento, compassos 82 a 87.

2.3. Terceiro movimento

A própria escrita de Dvořák traz um dos maiores desafios para o quarteto logo no início deste terceiro movimento. A acentuação impressa no segundo tempo, deslocando os tempos fortes, pode desfigurar a estrutura rítmica da obra se feita com exagero. Mesmo tendo um acento no segundo tempo, o primeiro tempo também é importante, devendo ser ligeiramente marcado, senão a percepção rítmica passada ao público pode ser de um texto completamente alterado.

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Figura 47: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 1 a 8

Figura 48: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 1 a 8. Transformação rítmica através de apoios indevidos a ser evitada

Mesmo deslocando o tempo forte, o acento cai em um segundo tempo, e o público deve entender de que trata-se efetivamente de um segundo tempo. Se não tivermos isso em mente, ouviremos no primeiro dó um levare para um primeiro tempo no fá. A graça neste tipo de mudança de apoios rítmicos está em justamente em deslocar a acentuação, mas não em transformar o que está escrito. Mudar uma acentuação não é a mesma coisa que reescrever uma música em função dos apoios. Um segundo tempo sempre será um segundo tempo, acentuado ou não” (REIS, 2017).

O cuidado com a articulação neste primeiro motivo deve ser criterioso. O tipo de arcada, e a região do arco devem favorecer um foco sonoro preciso em todas as notas. É

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importante que no estudo individual lento, cada instrumentista tenha em mente o tipo de articulação que será utilizada no andamento rápido, e aplicar isto mesmo quando devagar (BLUM, 1987, p. 50). Independentemente da tessitura, seja nos agudos ou graves, quando estudar devagar, o instrumentista deve exagerar na clareza do foco, na articulação da mão direita, para que no andamento rápido todas as notas possam ser compreendidas. Para Cláudio Cruz, na maior parte das vezes, "a articulação do arco deve ser realizada com extremo rigor. Se é um golpe de arco fora da corda, que seja fora da corda. Se for o contrário, como é o caso aqui, é necessário exagerar, não descolando o arco da corda sob nenhuma hipótese" (CRUZ, 2017).

O gesto para coordenar a entrada do movimento, feito pelo segundo violinista, deve ser enérgico, dando o caráter do que será tocado em seguida. Se for um gesto hesitante, além de não poder definir o tempo com precisão, provocando um relaxamento no pulso, influenciará em um tipo de interpretação que pode não ser condizente com a obra. "Eu sinto que é uma boa ideia fazer um gesto inicial forte e claro, para então seguir todos os outros" (STEINHARDT, apud BLUM, 1987, p. 11). O gestual tem de ser amplo o suficiente para que os outros instrumentistas não precisem olhar diretamente para quem está gesticulando, obviamente sem que haja exageros, mas que possa ser perceptível através da visão periférica (BLUM, 1987, p. 14).

O movimento é todo permeado de cordas soltas nos dós graves do violoncelo e da viola. Para não haver choques na intonação, a afinação temperada é recomendada, pelo uso obrigatório de cordas soltas e intervalos justos, como quartas:

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Figura 49: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 5 a 8

No exemplo acima, além do dó grave do violoncelo, o segundo violino e a viola estão sempre alternando intervalos de quintas e quartas justas com o primeiro violino. Este tipo de dificuldade está sempre presente neste movimento:

Figura 50: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 5 a 8

No exemplo acima, a viola mantém um pedal de fá, afinada em quarta justa com o violoncelo que toca um dó recorrente. A referência deve ser as cordas dó (dominante do tom da peça) do violoncelo e da viola. Como estudo, o violoncelo pode tocar e manter a corda dó solta do início até o compasso 48, enquanto os outros três instrumentistas procuram afinar, em andamento reduzido. Os intervalos devem ser precisos, e a afinação expressiva378 provocaria batimentos, sendo necessário a utilização da afinação temperada.

Mesmo ao se abordar uma obra tendo como diretriz a afinação temperada, desvios são possíveis e frequentes. Neste caso, deve-se tentar igualar o que alguém tocou anteriormente, e não se manter em uma postura imutável. “Cada intérprete deve o tempo todo ouvir os seus companheiros e ajustar-se à afinação geral do quarteto. [...] É inadmissível a defesa absoluta da própria afinação, se esta não corresponder nem se harmonizar com a dos outros” (RAABEN, 2003, pp. 72-73). Ainda que para isso deva-se adaptar a corda solta, seja colocando o dedo

378 A afinação expressiva foi um sistema de afinação cunhado pelo violoncelista Pablo Casals. Para maiores informações, consultar O temperamento igual e a afinação expressiva (2.2) do segundo capítulo do presente trabalho.

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levemente sobre a pestana, ou trocando o dedilhado para evitar a corda solta. Para Arnold Steinhardt, “as vezes temos situações nas quais um instrumento que o precedeu estabeleceu uma certa afinação – talvez em uma oitava inferior. [...] No entanto, você ainda deve se ajustar ao que ouve naquele instante, deve-se sempre ir com os colegas, para o melhor tanto quanto para o pior” (apud BLUM, 1987, p. 34).379

Na seção central do movimento, na qual Dvořák introduz a seguinte figura nos violinos:

Figura 51: Dvořák, quarteto op. 96, 3o movimento, compassos 57 a 60

“Devemos cuidar para não cair na tentação de tensionar o braço direito em cada mudança. Não temos pontos impressos, portanto a conexão entre as notas é importante. Só a primeira de cada figura é acentuada. De qualquer maneira, não devemos tensionar o braço direito nunca” (CRUZ, 2017). Apesar dos acentos marcados, e do motivo dos violinos chamar naturalmente a atenção por conta da movimentação, a linha importante está no violoncelo, e ele não deve tocar de maneira mais presente, ou mesmo forçar o som, para compensar um acompanhamento forte. “O sentido musical, a linha melódica, é sempre o que importa. O resto é ornamentação. Não deve nos distrair do que realmente importa” (REIS, 2017).

379 You sometimes find situations where an instrument may have preceded you in establishing a certain pitch – perhaps at a lower octave – […] you still have to adjust to what you hear at the moment, you have to go with your colleague for better or worse

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2.4. Quarto movimento

No Finale, com sua marcação impressa de Vivace ma non troppo o compositor requer um andamento rápido, porém não demasiado ou descontrolado. De fato, um dos maiores desafios do movimento é de manter o tempo justo e estável, sem precipitações, procurando frear o ímpeto de correr. Já no segundo compasso o segundo violino e a viola em uníssono possuem três colcheias com ponto, em contraste com o que veio antes, quando o arco está grudado na corda. Esta mudança súbita na mecânica do arco, alternando com celeridade entre arco na corda e arco fora da corda pode provocar um desequilíbrio rítmico, uma irregularidade no pulso. Para tentar minimizar este efeito é interessante manter o arco o mais próximo possível da corda nas notas pontuadas, a fim de evitar uma perda de tempo significativa que ocorreria com o spiccato amplo demais.

Figura 52: Dvořák, quarteto op. 96, 4o movimento, compassos 1 a 4

Apesar do movimento apresentar um pulso dominante de mínima, a cada compasso, em especial pela presteza do andamento, é relevante contar internamente com o menor pulso possível, afim de se obter uma maior precisão rítmica. No presente caso, a semínima. Para Norton, “é frequentemente interessante contar pela colcheia, ou qualquer que seja a menor fração

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de tempo que prevaleça na peça, com o propósito de estabilizar o tempo, ou de coordenar o sincronismo correto de notas curtas tocadas em conjunto (1966, p. 38).380

O tipo de spiccato utilizado deve ser discutido pelo conjunto, devido à uma multitude de possibilidades. “Uma nota com ponto é supostamente curta. Mas os problemas do instrumentista somente começam aqui. O quão curta? Que tipo de concisão: seco ou ressonante? Picado ou ligeiramente tenuto?” (NORTON, 1966, p. 127). 381 Com a entrada do primeiro violino, é necessário que o acompanhamento siga musicalmente a linha melódica, sempre mantendo e renovando a energia:

O acompanhamento, ao invés de prover um suporte, frequentemente influencia negativamente o tempo. A monotonia de figuras repetidas ou de uma série de notas repetidas podem hipnotizar o instrumentista até que ele não controle completamente os movimentos do seu arco e dedos, e tornando o seu trabalho irregular, atrasando a música que ele supostamente deveria ajudar, ou a apressando. Excertos deste tipo deveriam ser criteriosamente cuidados. Um bom acompanhamento é aquele que permanece sempre vivo em relação ao que ele acompanha (NORTON, 1966, p. 60).382

O consenso acerca do andamento do movimento deve ser trabalhado em conjunto. Robert Mann, ex-primeiro violinista do Quarteto da Juilliard, recomenda experimentar todo tipo de andamento até definir o que melhor se adapta ao conjunto: “Testem extremos, porque você nunca pode compreender plenamente o caráter de um andamento, se não souber qual o limite da rapidez e o tiver testado, ou saber o que é lento demais através de experiência própria” (apud EISLER, 2000, p. 37)383 O andamento máximo de uma obra deve ser definido pelo conforto em tocar as passagens mais difíceis tecnicamente, e não pelo início de um movimento. O instrumentista que define o tempo, antes de tocar deve procurar ter sempre em mente os momentos que demandam uma maior agilidade, para não incorrer no erro de estabelecer um andamento acima das capacidades técnicas do conjunto.

380 It is often well to count in eights, or whatever is the smallest time-value prevalent in a piece, for the purpose of steadying the tempo all round, or for fitting short note-values together correctly 381 A note with a dot above it is supposed to be short. But the player’s problems only begins here. How short? What kind of brevity: dry, or resonant? Chopped off, or slightly tenuto? 382 Accompaniments, instead of providing a background of support, often influence the tempo adversely. The monotony of a repeated figure or series of repeated notes can hypnotize the player until he does not fully control the motions of his bow and fingers and his work becomes irregular, falls behind the music it is supposed to be assisting or hurries ahead of it. Passages of this sort should be critically watched. A good accompaniment is one that remains always alive to what it accompanies. 383 Test extremes, because you can never understand, say, a tempo character, unless you really know what is too fast and have experienced it, or know is too slow and have experienced it.

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Porém, para Peter Oundjian, ex-primeiro violinista do Quarteto de Tokyo, velocidade não é um sinônimo automático de virtuosidade:

Muitas vezes, quanto mais rápido você toca, menos brilhante soa. Pessoas tendem a confundir tempo com o caráter do tempo, quando na verdade são duas coisas bem diferentes. Nós gastamos bastante tempo [dentro do nosso quarteto] trabalhando em como podemos mudar o caráter sem necessariamente mexer muito no tempo. Em outras palavras, um crescendo não precisa ir acelerando, na verdade deveria até ir mais devagar, ou pelo menos passar esta sensação. [...] Você pode até fazer exercícios para isso. [...] Para aumentar a intensidade em uma passagem, você pode treinar fazendo isso de maneira sutil, tente uma vez ir diminuindo o andamento conforme vai se aproximando do clímax, e criando intensidade através da expansão do tempo. Este tipo de exercício pode ser muito útil para o seu vocabulário musical. Você deve ser capaz de realizar todo tipo de coisas musicalmente, para que, se por exemplo você ficar preso um dia com um andamento errado em um concerto, você pode se virar (apud EISLER, 2000, pp. 50-51).384

Para Norton, em movimentos como este, com andamentos rápidos, a virtuosidade deve estar sempre a serviço da música. A virtuosidade como fim, e não meio, não tem espaço no quarteto de cordas. Norton é enfática ao afirmar que um grande violinista nem sempre é um músico que funciona em um quarteto de cordas. Se ele não tiver uma adaptabilidade aos outros, e uma compreensão acerca da importância de cada um, não dará certo (1966, p. 18).

Dvořák em alguns momentos deste quarteto faz uso de cordas duplas em linhas melódicas. As cordas duplas apresentam como maior desafio, além da dificuldade de afinação, não deixar buracos entre um acorde e outro, de maneira a que a condução da linha melódica seja ininterrupta, como se dois instrumentos estivessem tocando ao mesmo tempo. Para Flesch, dois fatores são responsáveis na maior parte do tempo pela descontinuidade nas cordas duplas: uma mudança de posição incorreta ou uma troca de cordas (2000, p. 28). 385 Além de uma melodia

384 Sometimes the faster you play, the less brilliant it sounds. People tend to confuse tempo with tempo character, when they are really two quite different things. We spend a lot of time working on how to get character changes without messing around with the tempo too much. In other words, a crescendo doesn’t have to get faster, it might in fact want to get slower, or at least feel like that. [...] You can even do exercises for this. […] To grow intensity in a passage, you can practice doing that in a very subtle way, let’s try once to get slower all the way through the passage to the climax and create intensity by expending the tempo. That kind of exercise can be very good for your musical vocabulary. You should be able to do all kinds of things, musically speaking, so if that you get stuck in the wrong tempo one day in a concert, you can do something about it. 385 No capítulo The basic forms of Left-Hand Technique (pp. 24 – 33), Flesch (2000) explica diversas maneiras de abordar as cordas duplas no violino, tendo como referencial o seu método de escalas anexo ao primeiro volume do The Art of Violin Playing, intitulado Scale System for the Violin (Ed. Fischer, 1929). Flesch propõe neste capítulo não somente exercícios, com vista em resoluções de problemas relacionados às cordas duplas em até três meses (p. 28), como também elucida como devem ser pensadas e abordadas todas as variações do seu famoso sistema de escalas.

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constante, é exigido do primeiro violinista no exemplo abaixo uma capacidade de distinção de qual voz deve se sobressair, ao se tocar duas vozes simultaneamente. No caso em questão, a melodia está localizada na voz superior, cabendo ao violinista colocar menos peso acima da corda lá, a fim de destacar a mi:

Figura 53: Dvořák, quarteto op. 96, 4o movimento, compassos 81 a 100

Para se obter uma ideia mais próxima ao resultado a ser atingido, o conjunto pode tocar algumas vezes este trecho solicitando ao primeiro violino que elimine a voz inferior, tocando tão somente a de cima. Assim sendo, com uma maior liberdade técnica, ele poderá se concentrar no fraseado, expandindo musicalmente as possibilidades interpretativas. Tendo uma ideia do resultado a ser atingido, o instrumentista poderá então acrescentar a voz grave, cuidando para que ela não modifique a condução da melodia.

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O meno mosso apresenta uma escrita de uma massa que se move ao mesmo tempo, como um coral, com as quatro vozes caminhando simultaneamente. Apesar de existir uma discreta melodia principal no primeiro violino, que em seguida será repetida pelo violoncelo a partir do compasso 199, o conjunto deve pensar em acordes verticais, como um piano em uma sucessão de harmonias. A despeito de uma visão vertical, as frases devem ser conectadas, sem interrupção ou portamento: “ O uso de portamento é extremamente desaconselhado em passagens que tenham um caráter, digamos assim, pianístico” (BORCIANI, 1973, p. 97).386

Figura 54: Dvořák, quarteto op. 96, 4o movimento, compassos 179 a 195

386 L’uso dei portamenti è del tutto sconsigliabile nei passaggi che abbiano, per così dire, carattere pianistico.

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Villa-Lobos, quarteto no 17

Heitor Villa-Lobos possui uma importante produção de quarteto de cordas, tendo composto dezessete obras para o gênero. O número impressiona, especialmente se comparado aos seus pares no Brasil, Villa-Lobos continuando a ser até os dias de hoje o compositor brasileiro que mais se dedicou ao quarteto de cordas. Para Macedo, a relevância do gênero em sua obra pode ser explicada por alguns fatores:

Em primeiro lugar, é inegável a relevância da música de câmara na produção do compositor. No conjunto de sua obra elas respondem por uma importante parcela do seu catálogo. [...] Um outro aspecto a ser levado em conta é o fato de que, embora a música orquestral ocupe um lugar de destaque na obra villalobiana, parece ter sido na produção camerística (e também na música para piano solo) o terreno no qual se inicia o desenvolvimento de seu estilo pessoal, tanto no que se refere a sua forma de tratar o material temático como (e principalmente) no que diz respeito à elaboração polifônica. [...] Uma outra explicação pode residir na própria natureza do quarteto: sendo um meio musicalmente abstrato, afastado de qualquer sugestão extramusical, tornava-se um terreno onde era possível uma espécie de compensação para um compositor que tinha a maior parte de seu trabalho realizado em torno das possibilidades descritivas e na exploração timbrística. [...] Por fim, há que se considerar a vivência de Villa-Lobos como violoncelista, o que o credenciava (e que igualmente o atraía e desafiava) à escrita da mais refinada formação instrumental para arcos (MACEDO, 2002, pp. 5-6).

Para o pesquisador Gérard Béhague, os quartetos de corda eram o campo no qual Villa-Lobos podia expressar com maior liberdade o seu pensamento artístico em sua totalidade. "E, embora os quartetos não tenham a priori qualquer associação programática, eles são de fato similares, em estilo e intenção estética, a todas as suas maiores obras simultâneas em outros gêneros" (apud MACEDO, 2002, p. 6). O foco voltado ao quarteto de cordas permeou toda as fases do compositor. Macedo destaca que os períodos nos quais Villa-Lobos escrevia quartetos com maior regularidade eram os momentos nos quais não estava envolvido com projetos de grande fôlego, como os extensos ciclos dos Choros na década de 20, das Bachianas Brasileiras entre 1930 e 1945 e no projeto didático que conduziu na era Vargas (MACEDO, 2002, p. 7).

Os quatro primeiros quartetos concentram-se num período de apenas três anos (1915 – 17), o que significa dizer que o gênero recebeu especial atenção na fase imediatamente anterior à realização dos ciclos dos Choros. Na década de 20, que corresponde às viagens à França, não se registra a realização de nenhum quarteto; na década seguinte, o seu engajamento ao ideário nacionalista, manifestado em termos musicais no ciclo das Bachianas e institucionalmente através do grandioso projeto de educação musical, tornou possível a produção de apenas três quartetos, e não por coincidência são estes os mais acentuadamente nacionalistas. A partir de 1942 até o final de sua vida, aumenta a

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frequência na produção de quartetos, que se traduziu na composição de, em média, um quarteto por ano (MACEDO, 2002, p. 7).

o O quarteto n 17 foi composto em 1957, e foi estreado pelo Quarteto de Budapest um mês antes da morte do compositor, que nunca teve a oportunidade de ouvir a obra em execução pública (MACEDO, 2002, p. 17). A obra pertence à fase chamada de universalista de Villa-Lobos, na qual o compositor apresenta uma síntese de linguagem387 dos seus processos composicionais (MACEDO, 2002, p. 58). Para o destacado pianista Arnaldo Estrella388, neste quarteto o compositor está mais voltado à música pura:

Muitas fórmulas – e Villa-Lobos, como qualquer grande compositor, tinha suas fórmulas, seus ingredientes prediletos – que se encontram em quartetos anteriores, desaparecem, quase inteiramente, neste. Aqui não incorre o Autor em pecados de puro virtuosismo, a não ser quando os processos de escritura virtuosística servem aos seus desígnios de brilho, de inquietação esfuziante, chispas e centelhas que comunicam a um "Scherzo" ou a um final de "Allegro" a sensação vivaz e lépida de uma fuga no tempo, de algo realmente fugido e inalcançável (apud MACEDO, 2002, pp. 17-18).

3.1. Primeiro movimento

Este quarteto requer um certo domínio do conjunto, por se tratar de obra de grande complexidade de execução. Para Egon Kornstein, violinista que Quarteto Húngaro, as primeiras abordagens em obras modernas diferem de peças clássicas e românticas, por uma maior dificuldade de compreensão da linguagem.

Eu vou dar um exemplo do nosso método para estudar uma obra moderna. [...] A peça será tocada inteira com a maior proximidade dos tempos marcados possível. Está subentendido aqui que os músicos são experts o suficiente para entender de primeira a estrutura geral dos movimentos. Se a estrutura da obra é complicada, ela deve ser tocada diversas vezes com a ajuda, naturalmente, de frequentes consultas à grade. As funções dos temas principais e secundários devem ser discutidos e decididos, para que a sua importância e significado possam ser postos claramente em evidência nos desenvolvimentos. Então cada instrumentista pega a sua partitura, e vai trabalhar do

387 Para Macedo (2002, p. 17), esta síntese consiste em uma "filtragem de todo o elemento acessório, ficando esta obra como um paradigma do que é essencial do pensamento musical de Villa-Lobos no período final de sua vida". Este processo teria sido iniciado a partir do décimo primeiro quarteto, culminando no último da série. 388 Arnaldo Estrella (1908 – 1980), foi um dos mais importantes pianistas brasileiros, e amigo próximo de Villa- Lobos, tendo sido professor no Conservatório Nacional de Canto Orfeônico e na Escola de Música da UFRJ.

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ponto de vista técnico, fazendo anotações com seus próprios dedilhados e arcadas. Após isso estamos prontos para ensaiar detalhadamente (KORNSTEIN, 1922, p. 329).389

Porém, para que isto ocorra, há um certo consenso dentre alguns autores, como por exemplo Betti (1923, p. 3), Norton (1966, p. 48), Tertis (1950, p. 149) ou Raaben (2003, p. 40), de que o trabalho preparatório somente será plenamente efetivo se pelo menos um dos membros do grupo tiver estudado a grade da obra com antecedência, e tiver uma imagem mental precisa da peça. O violinista do Quarteto Guarneri John Dalley também recomenda como indispensável a qualquer músico que queira tocar em quartetos de cordas uma sólida formação em harmonia (apud BLUM, 1987, p. 139). Mesmo em obras com harmonias mais modernas, apoios em modulações importantes, ênfases harmônicas para além do simples contorno melódico são importantes, e dependem de um maior conhecimento teórico (BLUM, 1987, p. 150).

A escrita de Villa-Lobos neste movimento faz uso frequente de agrupamentos de duas vozes na exposição e reexposição. Nos primeiros compassos o compositor apresenta um longo trecho em uníssono entre o primeiro violino e a viola. Este longo excerto, por uma disposição não-linear, mas com muitos saltos e intervalos complexos, necessita de uma especial atenção da parte dos instrumentistas para a sua realização. A afinação temperada torna-se indispensável, por apresentar muitos intervalos justos, como quartas e quintas.

389 I will take as an example our method of studying a modern work. [...] The work will be played through with the strictest possible adherence to the marked tempi. It is understood that the players are sufficiently expert musicians to take in at a glance the general construction of the movements. If the construction of the work be complicated it must be played through at sight several times with the help, naturally, of frequent consultations of the score. The functions of principal and secondary themes must then be discussed and decided on, so that their importance and meaning may be clearly brought out in the development sections. Then each player takes his part, works at it from the technical side, and marks it with his own individual fingerings and bowings. Then we are ready to begin the work in detail.

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Figura 55: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 7 a 12

Para Timm (1943, p. 20), o principal foco a ser perseguido pelo primeiro violino e a viola ao estudarem juntos trechos deste tipo é a ausência de batimentos, com a maior consonância possível. Timm insiste na importância de se imaginar a nota antes de produzi-la, lembrando que a afinação satisfatória dentro de um conjunto somente ocorre após que o mesmo crie o hábito de sempre insistir na afinação, e nunca se contentar de algo aproximado. É importante abordar sessões como esta bem devagar, nas quais somente o primeiro violino e a viola tocam, verificando nota por nota se possível: "em momentos difíceis, aborde um trecho devagar, mas com um pulso regular, compasso por compasso se necessário, como um

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instrumentista faria no seu estudo individual" (NORTON, 1966, p. 44).390 Para Alceu Reis, o estudo lento é a base de qualquer resultado satisfatório, seja no instrumento individualmente, ou em um conjunto: "É fundamental ter sempre em mente que o rápido nada mais é do que o lento mais rápido. A menos que no andamento lento a passagem esteja perfeita, tentar tocar rápido é inútil" (REIS, 2017).

A escrita com quintas e quartas paralelas distribuídas entre os instrumentos é comum no universo villalobiano, tornando transparente qualquer batimento na afinação. O papel do violoncelo é importante, e após ter certeza de que o violoncelista esteja com uma afinação satisfatória a todos, os seus colegas devem procurar se pautar nele como referência. O conjunto pode também trabalhar por acordes, prestando atenção a toda mudança de harmonia, em trechos que funcionam em blocos, como no exemplo abaixo:

Figura 56: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 36 a 40

Nem sempre o violoncelo pode exercer a função de referência na afinação. A partir do momento que um ou mais instrumentos se mantém imóveis, e a movimentação é feita pelo violoncelo, o instrumento que mantém a nota será a guia para o ouvido, mesmo que modulações

390 If in difficulties, go over a passage slowly, strictly in time, measure by measure if need be, as you would in any individual practicing.

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possam ocorrer. No exemplo abaixo, o primeiro violino se mantém estático, e os outros instrumentistas devem afinar os seus acordes em função do fá♯ dele, estabelecido no primeiro acorde em consonância com o violoncelo:

Figura 57: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 33 a 36

Uma das grandes dificuldades envolvendo obras complexas tecnicamente como o 17º quarteto de Villa-Lobos é de conseguir aparentar uma simplicidade de uma melodia singela através de recursos tecnicamente complicados. No exemplo abaixo, a viola apresenta uma linha melódica sutil, com longas frases e dinâmicas suaves. O acompanhamento de violoncelo e violinos é em cordas duplas, com ritmos que lembram uma dança lenta, porém com a dinâmica pp, para não se sobressair à viola. "O problema é que cordas duplas pedem uma ligeira articulação em seu início, para a clareza, posto que são duas cordas que saem da inércia. Porém, se marcarmos demais, tiramos o foco da viola. O ponto de equilíbrio é muito delicado" (CRUZ, 2017). Cláudio Cruz sugere que os instrumentistas escolham com cuidado a região de arco, e experimentem tirar parte da pressão do arco, para trabalhar mais com a velocidade do que peso (CRUZ, 2017).391 Uma mudança no ponto de contato, mais próximo ao espelho, pode ajudar a obter o efeito desejado.

391 Sem exageros, obviamente. O som não pode ficar desfocado ou muito forte.

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Figura 58: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 1o movimento, compassos 48 a 53

Com frequentes intervalos de quintas, quartas e oitavas distribuídos entre os instrumentos, o vibrato pode ser uma poderosa ferramenta de correção intervalar, desde que o ajuste seja realizado de maneira discreta:

Ninguém toca perfeitamente afinado, com uma precisão digna de uma máquina. Isso não existe. Na verdade, existem as pessoas que corrigem a afinação de maneira tão rápida e sutil, que temos a sensação de que nunca desafinaram. E fazem esta correção através do vibrato. Quando eu chego em uma nota um pouco alta, vibro para baixo, baixando as oscilações. Quando toco uma nota ligeiramente baixa, vibro para cima. Obviamente, isto só serve nos casos em que se desafina por muito pouco, me refiro a comas. Muito frequente em momentos que você precisa conjugar a sua nota com algum colega que mantém um acorde ou melodia com uma ligeira diferença ao seu padrão naquele momento, ou que está tocando uma corda solta, etc... Agora, se a diferença for muito substancial, se por exemplo você errou uma mudança de posição, não há vibrato que ajude (REIS, 2017).

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3.2. Segundo movimento

A ausência de uma movimentação rítmica rápida, ou muito caracterizada, dificulta a perfeita sincronização do conjunto no início deste movimento. O violoncelo e a viola apresentam mudanças simultâneas de notas, porém em notas longas, o que pode ocasionar uma contagem interna ligeiramente divergente entre os instrumentos. A única referência rítmica é a linha de primeiro violino que possui uma melodia com ritmos de tercinas e antecipações de colcheias, contribuindo para tornar o acompanhamento um pouco confuso.

Figura 59: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 1 a 4

Se o primeiro violino marcar fortemente cada tempo, este movimento corporal transparecerá na sua projeção sonora, além de enfatizar erroneamente os apoios de pulso ao invés de priorizar os apoios harmônicos e da melodia. Serão frases de dois tempos, ao invés de longos períodos de pelo menos dois compassos. Claúdio Cruz sugere como exercício distribuir esta marcação entre todos os integrantes.

Nos ensaios, é interessante que todos marquem corporalmente o tempo, até com um certo exagero, para sincronizar os pulsos, e fazer com que todos sejam responsáveis pela pulsação com uma interpretação proativa, e não reativa a um primeiro violino, pois assim, sempre estarão ligeiramente atrasados. Com o tempo, estes movimentos irão diminuir até se tornarem praticamente imperceptíveis para o público, mas não para os membros do quarteto. Isto traz resultados excepcionais em momentos em que todos trocam os acordes sem uma referência rítmica clara, de maneira vertical, como por exemplo em uma sucessão de semibreves em andamento lento. Depois de um certo

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período tocando junto, aprendemos a conhecer os trejeitos e hábitos corporais de cada integrante do grupo, e conseguimos fazer uma rápida leitura deles, por mais imperceptíveis que eles possam parecer (CRUZ, 2017).

Para o violoncelista do Quarteto Guarneri David Soyer, o hábito comum de ter como referência visual o arco do instrumentista com o qual se tem o desejo de estar sincronizado não é plenamente efetivo. A corda leva uma fração de tempo para se pôr em movimento, fazendo com que o gesto do arco e a emissão sonora não coincidam integralmente. A observação dos dedos da mão esquerda tende a ser mais eficiente, pois o dedo percute a corda no mesmo momento em que a nota é emitida. (apud BLUM, 1987, p. 14).

Villa-Lobos utiliza neste movimento tercinas de semínimas com uma certa frequência em momentos melódicos:

Figura 60: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 11 a 16

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Para Alceu Reis, esta é uma figura rítmica que nem sempre é bem compreendida na sua essência:

Tenho observado ao longo dos anos que a tercina de semínimas, seja nas orquestras ou em grupos camerísticos, é frequentemente mal interpretada. Há uma tendência aqui no Brasil de alongar as duas primeiras notas, e encurtar ligeiramente a última, como se fosse um ritmo de Baião, mais lento. A subdivisão neste tipo de figura é imprescindível. Além da irregularidade do ritmo, sinto falta da dicção do ritmo. Mesmo quando ela é tocada de maneira regular, as pessoas tocam as três notas de maneira igual. Um ligeiro apoio na primeira nota é importante: é ele que dá o balanço da tercina, e a distingue de uma quartina, por exemplo. Este tipo de diferenciação entre ritmos ternários e quaternários é por exemplo o que separa a valsa de uma polka. Dentro de uma mesma frase, isto também ocorre (REIS, 2017).

Um exercício eficaz para pensar as tercinas com regularidade é o de sempre subdividir a figura. Ao invés de pensar em tercinas de semínimas, o instrumentista pode imaginar tercinas de colcheias, e tocar cada nota com o valor de duas colcheias. Ao invés de três notas no total, seriam seis. Ao ligar de duas em duas notas, obtém-se o valor da tercina de semínimas. Desta maneira, cada nota terá sempre a mesma proporção:

Figura 61: Subdivisão da tercina de semínimas

Nos compassos 61 e 62 Villa-Lobos apresenta uma sucessão de acordes de quintas paralelas e sextas nos violinos. Intervalos de quintas são problemáticos nos instrumentos de cordas, pois um mesmo dedo deve pressionar ambas as cordas produzindo o intervalo, e qualquer inclinação ou uma ligeira pressão maior ou menor em uma das cordas desafina a quinta. A pressão deve estar igualmente distribuída nas duas cordas. Trata-se de um intervalo que requer uma constante e rápida adaptação, o que nem sempre é possível em um trecho com uma rápida sucessão de acordes.

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Figura 62: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 62 e 63

Para afinar estes acordes, o violoncelo e a viola tem que afinar a nota fá deles. Assim que houver um consenso, o segundo violino toca as suas primeiras cordas duplas em consonância com o violoncelo e a viola. Quando os três instrumentistas afinarem este primeiro acorde, o primeiro violino então acrescenta as suas notas. O segundo violino deve afinar antes porque o seu intervalo é de uma quinta justa, trata-se de um intervalo não-negociável, no qual não há possibilidade de modificar de alguma maneira a afinação, o que não é o caso das sextas no primeiro violino. Assim que este primeiro acorde estiver afinado, passa-se ao segundo acorde, e assim por diante.

Alguns conjuntos, quando em presença de acordes de quintas, optam por uma reescrita na distribuição das notas:392

Em um acorde que tenha em seu núcleo um intervalo de quinta há sempre a possibilidade de que ele apresente uma afinação defeituosa, pela necessidade de se usar um dedo pressionando duas cordas simultaneamente. Em casos como este, às vezes pode ser de grande valia reescrever o acorde, preservando as mesmas notas, porém as

392 Na minha experiência pessoal pude constatar este fenômeno neste trecho do quarteto de Villa-Lobos. O Quarteto Carlos Gomes sempre tocou em seus concertos da maneira que Villa-Lobos escreveu. Porém, fui chamado em certa ocasião para fazer uma substituição de emergência na função de segundo violino em um quarteto profissional atuante no Brasil, para tocar dentre outras obras o Quarteto no 17 de Villa-Lobos. A partitura editada pelo conjunto tinha optado por uma redistribuição dos intervalos de quintas, afim de facilitar no trabalho da afinação. De um ponto de vista pessoal, tendo tocado de ambas maneiras, na minha opinião a versão facilitada, apesar de ser consideravelmente mais cômoda para afinar os intervalos, perdia qualidade no timbre pensado pelo compositor. As quintas paralelas trazem um impacto sonoro, e dão uma cor marcante e característica no trecho.

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redistribuindo através das vozes do quarteto, para que o dedilhado não seja um fator tão problemático (Michael TREE, apud BLUM, 1987, p. 77).393

Quando o violoncelo reapresenta o tema no final do movimento, ele acrescenta à melodia apojaturas. Os outros instrumentistas devem dar espaço para que o violoncelista realize as apojaturas com calma, e coordenar as suas figuras de acompanhamento para coincidir com a nota real, após a apojatura. Para tanto, por vezes faz-se necessário atrasar um pouco o acompanhamento para que o violoncelista tenha a liberdade de tocar as apojaturas com o relaxamento condizente com a cor que o momento requer.

Figura 63: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 2o movimento, compassos 64 a 67

3.3. Terceiro movimento

Tecnicamente demandante, sem dúvidas o Scherzo é o movimento que mais exige habilidade do quarteto em termos de conjunto. O tipo de escrita, em spicatto constante, com grandes saltos, e em intervalos frequentemente justos,394 fazem com que a obra seja muito transparente, evidenciando quaisquer erros de sincronismo e de afinação. A primeira abordagem

393 In a chord containing the interval of a fifth there’s a risk of poor intonation because of the necessity to lay one finger across two strings. In such cases it’s sometimes helpful to rewrite the chord, preserving the same notes but redistributing them among the players so that the fingering is less problematic. 394 São comuns saltos de quartas e quintas, além de trechos em uníssono.

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do quarteto a este movimento deverá ser muito semelhante à abordagem desta mesma peça no estudo individual: um estudo em andamento lento, com o arco na corda, alongando o máximo possível as notas para colocar cada nota na sua altura correta.

O tipo de spicatto merece uma discussão aprofundada da parte do conjunto. Para Gabriel Marin (2017), pela velocidade da execução, um spicatto curto demais não irá projetar corretamente, cada nota precisa ter uma ressonância mínima. Esta ideia é reforçada por Alceu Reis:

É um erro em momentos como este fazer uma articulação com um movimento vertical, com pouco contato na corda. Acredito que quanto mais curta for a nota, maior deve ser o movimento, para que o spicatto tenha uma certa suavidade e clareza, afim de que o público possa entender o que está sendo dito. Me lembra um avião que aterrissa e levanta voo com suavidade, em um movimento obliquo, nunca vertical, sem se jogar na pista. A não ser que seja um efeito especial, desejado, e que tenha uma função expressa, ou seja, uma exceção. Aqui não dá tempo de afastar o arco em demasia da corda, ele na verdade quase não sai da corda. As pessoas que fazem um spicatto rápido desses com um movimento vertical, longe da corda, na minha opinião estão mais próximas da percussão do que do quarteto de cordas. Não gostaria de ter eles pilotando um avião no qual eu me encontrasse (REIS, 2017).

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Figura 64: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 1 a 9

Com a profusão da figura da tercina neste movimento, é importante marcar a primeira nota da tercina, não somente pelo apoio e sentido rítmico, mas também como uma referência clara para a sincronização. Cláudio Cruz (2017) recomenda tocar este movimento diversas vezes em andamento lento, marcando com um acento exagerado a primeira nota de cada tercina. Aos poucos, quando o andamento for sendo acelerado, o acento torna-se cada vez mais delicado e discreto, mas as referências para o conjunto lá se encontram.

A correta dicção do ritmo e a sua instantânea compreensão por todos os integrantes do conjunto, faz com que a sincronia das partes se realize com maior naturalidade. É importante

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que sem muito esforço todos sejam capazes de entender plenamente o que os outros estão tocando. A precisão é muito relevante também quando o compositor sobrepõe às tercinas ritmos contrastantes, como duinas. A utilização de um metrônomo com uma capacidade sonora suficiente para que todos ouçam com clareza nos ensaios é indispensável, para coordenar a sincronização.

Figura 65: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 29 a 32

O destacado violinista Arnold Steinhardt adverte que o estudo lento deverá ser pensado exatamente da mesma maneira que a passagem será tocada em um andamento acelerado: “É fundamental ao se estudar lento se aproximar do que se fará ao tocar rápido. Em um andamento lento, é comum se articular firmemente. Porém, ao se tocar rápido, não se aperta tanto os dedos; é mais como ler em braile; somente encostando nas cordas” (apud BLUM, 1987, p. 50).395

Além do estudo lento de trechos tecnicamente complexos seguido de um aumento progressivo do andamento, John Dalley também recomenda separar as passagens demandantes em segmentos curtos a serem tocados rapidamente, e parando no final de cada segmento. Para

395 It’s important when practicing slowly to approximate what you’re going to do when you play rapidly. In a slow tempo you usually articulate firmly. But when playing quickly you don’t press your fingers down so hard; it’s more like reading braille: just touching the string.

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Dalley, o estudo rápido é de suma importância para desenvolver reflexos e um raciocínio ágil. Ao separar os excertos em pequenos fragmentos, torna-se mais fácil de tocar de maneira rápida. Quando os trechos fracionados estão perfeitamente assimilados, basta unificar toda a passagem (apud BLUM, 1987, p. 50).

Em momentos de longos uníssonos entre os violinos, procurar reproduzir o mesmo timbre é indispensável. O timbre pode influir na percepção do público sobre a afinação,396 portanto a unificação da sonoridade é significativa em momentos como o exemplo abaixo. Somente um estudo voltado para a afinação, sem considerar a sonoridade não surtirá o efeito desejado.

Figura 66: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 157 a 160

Villa-Lobos, assim como Mozart e Dvořák, apresenta uma linha melódica dividida dentre os quatro instrumentos, porém neste movimento isto ocorre de maneira muito rápida, por curtos fragmentos. A concentração dos músicos deve ser redobrada, pois uma mínima hesitação pode trazer um atraso que inviabilize o efeito.

396 No segundo capítulo do presente trabalho, na subparte Afinação nos quartetos de cordas, foi tratada a relação entre timbre e a percepção da afinação por parte do ouvinte.

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Figura 67: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 3o movimento, compassos 186 a 201

No final do movimento (compassos 197 a 201), Gabriel Marin aponta para o fato de que durante os pizzicatos não se deve deixar de contar, mantendo a precisão rítmica. “Às vezes acreditamos que a subdivisão está limitada a quando tocamos com o arco, porém nos esquecemos de que o pizzicato, pelo fato de produzir um som seco e instantâneo, exige de nós um rigor maior ou igual” (MARIN, 2017).

O Quarteto Guarneri destaca que o gesto preparatório para executar o pizzicato é maior e mais lento no violoncelo do que nos outros instrumentos, por isso é mais fácil para o grupo que em ataques sincronizados, como por exemplo a última nota deste movimento, todos

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sigam o violoncelista, obtendo assim melhores resultados em termos de conjunto (BLUM, 1987, p. 11). David Soyer também salienta que o pizzicato de maneira geral tem uma melhor projeção no violoncelo do que nos outros instrumentos, e que para mesclar a sua sonoridade com a de seus colegas, é necessário tocar os pizzicatos em geral com uma dinâmica inferior à escrita, ou então optar por tocar em uma corda menos brilhante (apud BLUM, 1987, p. 52).

3.4. Quarto movimento

O início do Allegro vivace (con fuoco) é muito enérgico, necessitando uma sonoridade com muito foco e presença. A velocidade de arco não pode ser muito rápida, para que as notas possam soar em sua intensidade máxima, apesar da dinâmica ser de somente um f. O golpe de arco prescrito é o détaché. Para Carl Flesch, este golpe de arco, ao contrário do legato, é caracterizado “pelo fato de que as notas são separadas umas das outras por mudanças de direção do arco; no entanto, a separação deve ser feita apenas por uma pausa inevitável consequente da mudança de arco” (apud SALLES, 2004, p. 38). Ainda dentre os três tipos de détaché sugeridos pelo pedagogo,397 neste início do quarto movimento, o pequeno détaché é o tipo de arcada a ser utilizada. “O pequeno détaché (ou meramente détaché) representa o mais importante e o mais amplamente usado de todos os tipos de golpe de arco. Seu total controle é pré-requisito absoluto para uma boa técnica de arco” (apud SALLES, 2004, p. 39).

O golpe de arco é realizado com contato e foco rigorosos na corda. A única separação entre as notas reside na mudança de arco tão somente. Deve haver pouca mobilidade dos dedos e do pulso neste momento, para não perder o foco, e pelo fato desta arcada ser efetuada essencialmente pelo antebraço, com pouca utilização do braço, do pulso e dos dedos. Para Gabriel Marin, o pleno domínio do détaché é o requisito mínimo para um instrumentista, visto que esta arcada é a base da maioria dos outros golpes de arco, como o spiccato e outros. A mecânica corporal é semelhante, e para Marin, o instrumentista que não tiver o controle do détaché, não conseguirá realizar de maneira satisfatória toda a gama de golpes de arco exigidas pela literatura do quarteto de cordas (MARIN, 2017).

397 Flesch categoriza os détachés em três subtipos: o détaché como todo arco (the détaché with the whole bow), o grande détaché (The great, broad détaché), e o pequeno détaché (the small détaché). Para maiores informações sobre o assunto, e uma classificação detalhada dos demais tipos de arcadas, consultar o capítulo Golpes de arco do livro Arcadas e golpes de arco, de Mariana Salles (2004).

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Figura 68: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 1 a 6

Em excertos que contenham uma longa sucessão de cordas duplas, grande cuidado deve ser tomado para que ruídos como cordas soltas, notas falhadas, etc. não se tornem aparentes durante a execução. Em intervalos de quartas, sextas ou sétimas consecutivos, os dedos devem deslizar lateralmente para que não aconteçam “buracos” sonoros entre um acorde e outro. É preciso ter uma certa continuidade sonora apesar das cordas duplas, tendo como objetivo a ser

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alcançado a ideia de soar como dois instrumentos tocando simultaneamente, e não um só instrumentista executando cordas duplas.

Figura 69: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 33 a 41

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Figura 70: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 86 a 90

No meno mosso, Villa-Lobos introduz uma melodia cantabile, contrastando fortemente com todo o caráter inicial da obra, enérgico. A mudança deve ser súbita, e após um longo período de música vigorosa e rítmica, o grupo tem que no espaço de uma respiração, conseguir fazer esta transição, como se uma nova obra fosse se iniciar. Assim como no teatro um mesmo ator deve ser capaz de representar diversos personagens em uma mesma peça, o quarteto de cordas deve ser capaz de interpretar diversos afetos, e manter uma calma interior suficiente para não deixar transparecer em momentos como este a excitação do que veio anteriormente.

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Figura 71: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 65 a 68

Esta melodia é posteriormente repetida pelo segundo violino em duas ocasiões. Porém, quando isto ocorre, o primeiro violino toca notas mais agudas do que o segundo violino, dificultando a projeção da melodia. O equilíbrio sonoro a ser encontrado pelo segundo violinista não é simples, pois o mesmo tem que ter a sua melodia destacada, sem no entanto forçar o som, ou tocar demasiadamente forte, sob o risco de não conseguir reproduzir a mesma ideia do que foi apresentado anteriormente.

Toquei por muitos anos como segundo violinista em um quarteto profissional, e sei por experiência própria que é uma posição ingrata. Os solos geralmente estão em uma região mediana, que não projeta tão facilmente. A própria disposição no palco faz com que ele esteja em recuo em relação ao primeiro violino, e não totalmente voltado para o público, os fs do instrumento estão posicionados para as laterais das salas de concerto. Além disso, quando tem um solo, está competindo com um outro instrumento com o mesmo timbre, em uma região mais aguda, e bem posicionado. Se destacar é bem difícil. O primeiro violino tem que estar atento a isto também, e junto com os outros colegas procurar tocar mais piano nestes momentos, para dar um destaque à melodia (CRUZ, 2017).

Figura 72: Villa-Lobos, Quarteto no 17, 4o movimento, compassos 93 a 96

O segundo violino deve tocar um pouco acima da dinâmica marcada. Porém, para John Dalley um bom primeiro violino deve procurar nestes momentos mesclar a sua sonoridade à do segundo violino, e não esperar sempre que o segundo violino timbre a sua sonoridade com a

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do primeiro. Para isso, além de tocar mais piano, o primeiro violino pode optar por uma coloração no som menos brilhante, mudando o ponto de contato, escolhendo uma corda com menos destaque, ou reduzindo o vibrato. “Boa parte do sucesso do segundo violino depende do primeiro violino” (apud BLUM, 1987, p. 133).398

398 A lot of the success of the second violin depends on the first violin.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

O quarteto de cordas esteve presente e atuante durante boa parte da história da música ocidental. Gênero de especial apreço dos compositores, foi se desenvolvendo e acompanhando as transformações estéticas e sociais de diversas épocas, como por exemplo do Iluminismo até a explosão da tonalidade. Surgido como uma ocupação de amadores no seio das residências domésticas, uma música entre amigos, o quarteto foi galgando espaços, ocupando salas de concertos ao redor do mundo, estúdios e invadindo residências novamente como bem de consumo, através de um novo mercado, advindo da gravação.

Terreno fértil para experimentações tanto no campo da forma quanto da harmonia,399 o quarteto foi amplamente explorado por diversos compositores, como Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Brahms, Schumann, Mendelssohn, Fauré, Debussy, Ravel, Schoenberg, Schostakovitch, Bartók, Boulez entre centenas de outros compositores, produzindo algumas das páginas mais belas destes autores, além de em muitos casos, as suas composições mais ousadas.400

Procuramos traçar no primeiro capítulo deste trabalho um breve retrospecto desta rica história, com o intuito de compreender as raízes do quarteto de cordas, e a sua importância dentro do fazer musical, tendo em vista que para se abordar a prática é necessário compreender melhor o objeto de estudo, sua contextualização, e o que ele representa. De maneira rápida,401 foram abordados os compositores que mais influíram na construção da identidade do quarteto de cordas, assim como a transformação de algo que se iniciou como um passatempo para amadores, até a profissionalização de conjuntos consagrados.

No capítulo subsequente, buscamos prover subsídios para dificuldades e percalços que possam surgir no decorrer da prática. Tendo como principal foco grupos que estejam se iniciando no universo da música de câmara nesta formação, separamos alguns tópicos, como a

399 Não por acaso, a primeira obra claramente atonal de Schoenberg foi um quarteto de cordas, o op. 10. 400 Por exemplo, no caso de Beethoven, a Grande Fuga é possivelmente sua obra mais progressista, sendo até nos dias de hoje mal percebida e compreendida por grande parte do público. 401 A história do quarteto de cordas é abundante, e o número de composições escritas para o conjunto é gigantesco. Sendo assim, um trabalho detalhado da trajetória do quarteto representaria um empreendimento colossal. A título de ilustração, a excelente história escrita pelo francês Bernard Fournier está dividida em três volumes, totalizando mais de três mil páginas.

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afinação, sincronismo, ritmo, interpretação e tradição dentre outros, procurando apresentar não somente as dificuldades que tendem a surgir quando da prática, como também soluções apontadas por conjuntos destacados e pedagogos com larga experiência. Gostaríamos de ressaltar mais uma vez, como foi feito na introdução, que todo conhecimento teórico que possa ser apresentado somente pode servir como um embasamento para auxiliar no aprendizado prático. A teoria, pela especificidade de sua natureza, não pode substituir totalmente a experiência in loco, que é o tocar, e especialmente a transmissão do conhecimento através da relação professor/aluno.

O terceiro capítulo procurou de certa forma sintetizar os precedentes, exemplificando o que foi debatido anteriormente. Com base em três obras distintas em estilos e épocas, a saber A Caça de Mozart, o Quarteto Americano de Dvořák e o último quarteto de Villa-Lobos, foram sugeridos alguns subsídios para a interpretação assim como exercícios e abordagens visando um aprimoramento técnico destas obras. Além da literatura disponível, auxiliaram neste capítulo ensaios realizados sobre essas obras pelo conjunto do qual participo a alguns anos, o Quarteto Carlos Gomes. Os três membros do quarteto citados ao longo do estudo, Cláudio Cruz, Gabriel Marin e Alceu Reis, 402 possuem vasta experiência no campo do quarteto, com inúmeras gravações e prêmios acumulados ao longo dos anos. As referidas obras foram escolhidas não somente pela sua popularidade e fácil acesso, como também pela minha própria experiência pessoal e familiaridade com as composições, as tendo apresentadas em concertos por diversas vezes.

O quarteto de cordas é amplamente utilizado na maior parte das instituições de ensino como ferramenta de aprendizado, por trabalhar simultaneamente tantos aspectos importantes na formação do músico. Questões como afinação, ritmo, fraseado, timbres, no quarteto tomam uma dimensão mais extensa do que em um instrumento solista, formando músicos mais completos. A prática de quarteto de cordas é salutar no músico em construção, e deve ser estimulada em todos os níveis que os instrumentistas apresentem, do iniciante ao profissional. Algumas orquestras profissionais inclusive investem em conjuntos de câmara,403 em especial em quartetos de cordas,

402 No caso de Cláudio Cruz e Alceu Reis, ambos chegaram a ganhar um Grammy Awards em 2002 por um disco de quarteto de cordas dedicado ao compositor argentino Astor Piazzolla. 403Por exemplo, a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP) mantém o Quarteto Osesp. Uma rápida consulta no site da Orquestra Filarmônica de Berlim nos mostra, que dentre dezenas de grupos de câmara formados por membros, a orquestra tem e incentiva em seus quadros três quartetos de cordas, o Athenäum Quartet, o Philarmonia Quartet e o Varian Fry String Quartet.

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por entender que tal prática, além de levar o nome da orquestra em palcos e espaços que ela não ocuparia de outra forma, incentiva a melhoria de seus integrantes, elevando assim o nível do conjunto orquestral.

Todavia, há um aspecto importante do quarteto de cordas a ser considerado e que escolhemos não abordar neste trabalho, por fugir à nossa área de atuação. Trata-se das relações pessoais dentro do conjunto. Questões como liderança, confiança, temperamento, brigas, toda uma miríade de problemas que podem surgir de uma convivência intensa em um grupo que grande parte do tempo, discorre e discorda de questões subjetivas. Optamos por não discutir estes pontos por envolver questões mais próximas da área da psicologia do que da música, mas é um assunto interessante que faria jus a algum estudo aprofundado. Destacados conjuntos se desfizeram no auge de sua carreira devido a problemas pessoais decorridos ao longo dos anos, desgastados por décadas de convívio diário.404

É nosso desejo que este trabalho possa incentivar de alguma forma uma maior difusão do interesse em relação ao quarteto de cordas, seja nas escolas como também em outros âmbitos. O Brasil é rico em instrumentistas de grande qualidade, como também de compositores que escreveram belas obras para o gênero além de Villa-Lobos, como Alberto Nepomuceno, Henrique Oswald, Francisco Mignone à obras mais recentes, como Ricardo Tacuchian, Mozart Camargo Guarnieri e Edino Krieger, entre outros.405 É também de nossa aspiração que outros trabalhos acadêmicos possam surgir, trazendo para o centro do debate o quarteto de cordas, suas ramificações, suas tradições, e também uma inevitável e imprescindível discussão sobre o seu lugar atual, que espaço ocupar em uma sociedade voltada para o mundo digital, para a inovação e com uma atenção cada vez mais orientada ao entretenimento curto, fugaz e passageiro.

404 Lionel Tertis conta que uma vez foi chamado para substituir o violista do Quarteto da Bohêmia, que supostamente estava doente; na verdade descobriu-se posteriormente que ele tinha fugido com a esposa do primeiro violinista (TERTIS, 1950, p. 148). 405 Apesar do Brasil possuir uma importante produção no campo do quarteto de cordas, optamos por não abordar este repertório neste trabalho. Boa parte do acervo brasileiro ainda está desaparecido, ou de difícil acesso, com obras incompletas ou com péssimas edições, sendo este um projeto muito vasto, envolvendo não somente uma revisão de literatura, mas também uma imensa pesquisa de campo, que mereceria uma tese com somente este objetivo.

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