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Abel Ferrara: Questões De Estilo

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES

RAFAEL DORNELLAS FELTRIN

Abel Ferrara: questões de estilo

São Paulo 2020

RAFAEL DORNELLAS FELTRIN

Abel Ferrara: questões de estilo

Versão Corrigida (versão original disponível na Biblioteca da ECA/USP)

Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Meios e Processos Audiovisuais.

Área de Concentração: Meios e Processos Audiovisuais. Linha de pesquisa: História, teoria e crítica.

Orientador: Prof. Dr. Mateus Araújo Silva.

São Paulo 2020

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Dados inseridos pelo(a) autor(a)

Feltrin, Rafael Dornellas Abel Ferrara: questões de estilo / Rafael Dornellas Feltrin ; orientador, Mateus Araújo Silva. -- São Paulo, 2020. 143 p.: il.

Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais - Escola de Comunicações e Artes / Universidade de São Paulo. Bibliografia Versão corrigida

1. Abel Ferrara 2. cinema norte-americano contemporâneo 3. 4. The Blackout I. Araújo Silva, Mateus II. Título.

CDD 21.ed. - 791.43

Elaborado por Alessandra Vieira Canholi Maldonado - CRB-8/6194

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Rafael Dornellas Feltrin

Abel Ferrara: questões de estilo

Dissertação apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Meios e Processos Audiovisuais.

Banca Examinadora:

Prof. Dr.: ______

Instituição: ______

Assinatura: ______

Prof. Dr.: ______

Instituição: ______

Assinatura: ______

Prof. Dr.: ______

Instituição: ______

Assinatura: ______

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AGRADECIMENTOS

Ao Professor Dr. Mateus Araújo Silva, por apostar no projeto e orientá-lo de forma tranquila, séria e respeitosa.

Aos Professores Drs. Luiz Carlos Oliveira Júnior e Sérgio Eduardo Alpendre de Oliveira, por aceitarem participar da banca.

Aos Professores Drs. Luiz Carlos Oliveira Júnior e Lucas Bastos Guimarães Baptista, pelos comentários precisos no exame de qualificação, que ajudaram a melhorar a dissertação.

À Naná, pelo amor, pela companhia e por estar sempre ao meu lado me apoiando.

Aos meus pais, Jair e Ana Paula, e ao meu irmão Gabriel, pelo carinho, acolhimento, porto seguro e incentivo constante.

A Guilherme Savioli, Natalia Belasalma, João Pedro Bim e Emílio Gonzalez, pela amizade, pelas conversas e por, desde 2012, apontarem um norte em meus estudos.

Aos amigos e colegas, por tornarem essa caminhada mais fácil lendo textos, comentando, conversando e por estarem presentes durante esse período: Matheus Biscaro, Rafael Leite, Marcello Stella, Lucas Baptista, Bruno Andrade, Lorena Duarte, Luan Gonsales, Calac Nogueira, Lívia Lima, Diego Barbieri, Catarina Cavallari, Nikola Matevski e Alexandre Wahraftig.

Aos Professores Drs. Eduardo Morettin, Ismail Xavier e Rubens Machado, pelos diálogos proveitosos e constantes desde os tempos da graduação.

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RESUMO

FELTRIN, R. Abel Ferrara: questões de estilo. 2020, 143p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

A dissertação examina os longas metragens Vício frenético (Bad Lieutenant, 1992) e The Blackout (1997) do cineasta americano Abel Ferrara (Nova York, 1951 - ), tomados aqui como pontos altos daquela que costuma ser considerada a década mais rica de sua carreira (a de 1990). Nos dois primeiros capítulos, propõe uma análise imanente dos dois filmes, seguida de uma comparação entre eles e dois outros com os quais eles travaram um diálogo maciço: Mean Streets (, 1973) e Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958), respectivamente. No terceiro capítulo, a abordagem comparativa ganha o primado, e confronta The Blackout a um grupo de filmes de Michael Mann, David Lynch, David Cronenberg e John McTiernan que, cada um a seu modo, convergem ou rimam com suas questões e com seu universo estético. O horizonte destas análises imanentes e destas discussões comparativas é o de perceber o lugar central do projeto de Ferrara numa certa vertente (posterior à Nova Hollywood) do melhor cinema industrial americano contemporâneo.

Palavras-chave: Abel Ferrara; cinema norte-americano contemporâneo; Bad Lieutenant; The Blackout.

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ABSTRACT

FELTRIN, R. Abel Ferrara: questões de estilo. 2020, 143p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

This work explores the feature films Bad Lieutenant (1992) and The Blackout (1997) by American filmmaker Abel Ferrara (New York, 1951 -), taken here as highlights of whic is usually considered the richest decade of his career (1990’s). In the first two chapters, it proposes an immanent analysis of the two films, followed by a comparison between them and two others with which they engaged in a massive dialogue: Mean Streets (Martin Scorsese, 1973) and Vertigo (Alfred Hitchcock, 1958), respectively. In the third chapter, the comparative approach takes precedence, and confronts The Blackout with a group of films by Michael Mann, David Lynch, David Cronenberg and John McTiernan who, each in their own way, converge with their questions and with their aesthetics. The horizon of these immanent analyzes and these comparative discussions is to perceive the central place of Ferrara's project in a certain strand (after New Hollywood) of the best contemporary American industrial cinema.

Keywords: Abel Ferrara; contemporary American cinema; Bad Lieutenant; The Blackout.

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SUMÁRIO

Introdução ...... 1

Capítulo I. Bad Lieutenant, 1991 ...... 14

1.1 O filme: forma e transcendência...... 14 1.2 Religião e moral: busca pela redenção ...... 25 1.3 Jersey Girls e a economia de registro ...... 34 1.4 “Vampiros tem sorte. Se alimentam dos outros” ...... 40 1.5 Aceno à Nova Hollywood: iconografia e ressignificação ...... 43 1.6 Mean Streets e Bad Lieutenant: contraste formal ...... 48

Capítulo II. The Blackout, 1997 ...... 54

2.1 O filme ...... 54 2.2 “Você quer algo?” ...... 63 2.3 Imagens obscenas e pornografia ...... 66 2.4 Vertigo revisitado em The Blackout ...... 73 2.5 Atos finais...... 84

Capítulo III. O ato de ver: The Blackout em perspectiva comparatista ...... 88

3.1 The Blackout e a imagem contemporânea ...... 88 3.2 Ferrara, cinema de fluxo e a crise da mise em scène ...... 91 3.3 Ferrara e Mann: Miami Vice e a mudança de suporte ...... 95 3.4 Ferrara, Lynch e Cronenberg: horror e densidade ...... 106 3.5 Ferrara e McTiernan: ação e excesso ...... 118

Conclusão ...... 126

Referências bibliográficas ...... 130

Filmografia ...... 134

De Abel Ferrara ...... 134 Outros filmes citados ...... 135

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Introdução

Abel Ferrara faz em 1990 um filme que põe sua carreira em novo patamar. O rei de Nova York () o projeta para um público maior e conjuga o sucesso de público com o de crítica. O que se viu a seguir, de 1990 até 1998, foi talvez o seu apogeu formal e criativo, traduzido em alguns dos melhores filmes de sua carreira. Vício frenético (Bad Lieutenant, 1992), Os Invasores de Corpos: A Invasão Continua (Body Snatchers, 1993), Olhos de serpente (Snake Eyes / Dangerous Game, 1993), O vício (, 1995), Os chefões (The funeral, 1996), Blackout - sentiu minha falta? (The Blackout, 1997) e Enigma do poder (New Rose Hotel, 1998), cada um à sua maneira, reelaboraram aspectos caros ao seu trabalho na década anterior, tonificando temas e procedimentos que permeariam a obra de Ferrara como centro gravitacional. Ferrara “surgiu” para o mundo com o longa metragem O assassino da Furadeira (, 1979). Rodado em 16mm de maneira independente com baixíssimo orçamento, o filme explorava o gore e a violência do exploitation em uma toada que iria manter o cineasta trabalhando ao longo de toda década de 80. Como um contumaz operário nas franjas da indústria o então jovem cineasta passaria anos fazendo o possível para se manter filmando e produzindo a todo custo. Até mesmo durante seu apogeu, Ferrara jamais esteve em uma posição de total liberdade dentro de um grande estúdio com grandes orçamentos. Esse cenário ocorreu apenas uma vez em 1993 no filme Body Snatchers e não voltou a se repetir. Filmar, para Ferrara, parece sempre um exercício de obstinação, resignação e urgência. Nos anos 90, alguns produtores pareciam um pouco mais abertos a ouvir suas ideias e a financiá-lo, ainda que sempre de modo discreto. Em seus primeiros anos, Ferrara faz episódios para séries de TV como Miami Vice, filmes de encomenda, telefilmes, e longa metragens de baixo orçamento, num aprendizado de burilamento formal ao qual o jovem diretor se sujeitou. Ao mesmo tempo que uma enorme energia criativa, ainda desgovernada e excessiva, tais filmes traziam temas e abordagens retomados de maneira mais madura em seus filmes das décadas seguintes. Sendo Ferrara um cineasta radicalmente cinéfilo, cumpre notar um aspecto geracional na sua obra. Com O assassino da furadeira (1979), seu primeiro filme, ele surge no apagar das luzes da chamada Nova Hollywood. Alguns fracassos de bilheteria de William Friedkin, Hal Ashby, Dennis Hopper e Michael Cimino em contraste com o sucesso retumbante de Tubarão

(Jaws, 1975, de Steven Spielberg) e Guerra nas estrelas (Star Wars, 1977, de George Lucas), por exemplo, davam a toada daquilo que viria nos próximos anos. Veríamos então um limbo geracional para uma série de cineastas sucessores diretos dos estudantes universitários que tiveram a chance de trabalhar numa indústria brevemente acolhedora. John Carpenter, David Cronenberg, David Lynch, James Cameron, John McTiernan, John Landis, Michael Mann e até mesmo um expatriado Paul Verhoeven, junto de Ferrara, teriam de encontrar um caminho possível. Apesar de a historiografia não ter juntado esses nomes numa geração monolítica, tais cineastas possuem convergências em sua filmografia. Veremos isto mais à frente quando adentrarmos na obra de Ferrara e compararmos seus filmes a outros que lidavam com temas semelhantes à época. Ferrara se manteve, porém, à diferença de cineastas influenciados pela Nova Hollywood, situado numa espécie de underground maldito. Sua lição apreendida do cinema de Scorsese, De Palma, Eastwood, Milius e Peckinpah, trazia para seus filmes referências da história cinematográfica e profundas explorações dos gêneros cinematográficos, que conviviam com aspectos herdados do cinema experimental de Andy Warhol, Shirley Clarke, Kenneth Anger, Robert Frank, entre outros. Esse crossover entre, de um lado, o cinéfilo tradicional influenciado por John Ford, Howard Hawks, westerns, policiais de Don Siegel e suspenses de Alfred Hitchcock, e, de outro, o jovem artista beatnik imerso na cultura subversiva do submundo urbano novaiorquino, cuja compreensão cultural ia muito além dos filmes experimentais e incluía literatura e sobretudo música, fez muito bem à sua obra e o singularizou como cineasta. Era como se o artista classicista presente em John Milius e Michael Cimino, trazendo consigo lições muito bem aprendidas em Griffith, John Ford e Allan Dwan, encontrasse o universo Warholiano, os escritos de Burroughs e a vivência punk de um Johnny Thunders ou um Joey Ramone. Pode se ver tudo isso em seus filmes. A vivência underground e experimental é inteiramente traduzida em seus primeiros curtas e longas metragens (The hold up, Could this be love, The Driller Killer). Outra constante, os gêneros cinematográficos, serão trabalhados à exaustão e ressignificados em sua obra. Ferrara explora os gêneros em quase todos os seus filmes até o díptico Blackout / New Rose Hotel, ponto de inflexão em sua carreira. Conjugando o recurso ao cinema de gênero e uma reflexão sobre as próprias estruturas da imagem e da metalinguagem cinematográficas, Ferrara buscou uma “revitalização crítica dos códigos do cinema de gênero” (BRENEZ, 2006, p.3), lidando com quase todos os gêneros populares: Policial/gangster: Cidade do medo (, 1984), Inimigos Pelo Destino (China Girl, 1987), O rei de Nova York (King of New York, 1990), Os chefões (The funeral, 1996),

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Gangues do gueto (‘R Xmas, 2001). Ficção científica: Os Invasores de Corpos: A Invasão Continua (Body Snatchers, 1993), Enigma do poder (New Rose Hotel, 1998). Documentários: (2008), Napoli, Napoli, Napoli (2009), Mulberry St. (2010). Horror: O vício (The Addiction, 1995). Vingança/exploitation: O Assassino da Furadeira (The Driller Killer, 1979), Sedução e vingança (Ms .45, 1981). Pornografia: 9 Lives of a wet pussy (1976). Filmes metalinguísticos, filmes dentro de filmes, em que a filmagem é protagonista: Olhos de serpente (Dangerous Game ou Snake Eyes, 1993), Blackout (The Blackout, 1997), Maria (Mary, 2005). Há ainda revisões, releituras históricas: Bem-Vindo a Nova York (Welcome to New York, 2014), Pasolini (2014), (2007). O que torna sua filmografia ainda mais singular talvez venha desse esgotamento analítico do gênero cinematográfico a cada filme realizado. Ferrara está muito mais próximo de um grupo de cineastas como Alain Resnais – que esgotam seu dispositivo formal num filme e o abandonam no próximo trabalho. Ao contrário do que ocorre com um cineasta muito apreciado por ele como Hitchcock, cujo dispositivo estilístico e formal é repetido e muito facilmente identificado a cada filme, abordar aspectos formais e estilísticos da obra de Ferrara como um método claro e pragmático não é tarefa simples. Notamos nela a preferência por planos mais longos, decupagem econômica, crueza de registro, trabalho visceral com o elenco, invasão constante da ficção pelo documental, busca do imponderável nos planos usados no corte final. Mas ao olharmos para o conjunto da obra, tais exemplos parecem redutores. Se tudo isso vale para filmes como Vício Frenético (Bad Lieutenant, 1992) e O rei de Nova York, o exame de Blackout, New Rose Hotel ou Maria (Mary, 2005) revela contra-exemplos em suas imagens sobrepostas e fusões incessantes. Um documento interessante para nossa abordagem é a sua lista de filmes preferidos1 com seu comentário complementar, publicados na Sight and Sound:

1. Armadilha do Destino (Cul-de-sac, 1966), Roman Polanski 2. Os Demônios (The Devils, 1971), Ken Russell 3. Gaviões e Passarinhos (Uccellacci e uccellini, 1966), Pier Paolo Pasolini 4. Prisão (Fängelse, 1949), Ingmar Bergman 5. Lolita (1962), Stanley Kubrick 6. Os Esquecidos (Los olvidados, 1950), Luis Buñuel 7. Ran (1985), Akira Kurosawa 8. A Marca da Maldade (Touch of Evil, 1958), Orson Welles 9. Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, 1974), John Cassavetes 10. Zero de Conduta (Zéro de conduite: Jeunes diables au collège, 1933), Jean Vigo

“Você não pode fazer filmes como os filmes que o fizeram querer fazer filmes” disse Godard lá atrás quando a maioria desses filmes eram feitos e me inspiravam a tentar – mas porque

1 Disponível em: https://www.bfi.org.uk/films-tv-people/sightandsoundpoll2012/voter/848 3

parar em 10? Acrescente TODOS os outros filmes dos cineastas da lista, mais TODOS os filmes de Godard, Hawks, Hitchcock, Bertolucci, Scorsese, Michael Snow, Rossellini, os outros filmes dos cineastas citados mais Nicholas Ray, Milós Forman, Joseph Losey, Buster Keaton, Sam Fuller, Stan Brakhage, Woody Allen, Robert Bresson, Sam Peckinpah, David Lynch e, e, e... (FERRARA, 2012)

Algumas conclusões podem ser tiradas ao cotejarmos sua filmografia com esta lista de filmes preferidos e seu comentário. Ferrara é um cinéfilo radical de gosto diversificado, estimando o cinema clássico de Hitchcock e Hawks com a mesma empolgação com que trata o cinema experimental de Brakhage e Michael Snow. Ele não é nada ponderado. Seus estudos não podem ser muito conectados a um tipo de cinefilia construída sob a crítica francesa dos Cahiers dos anos 50 em diante, por exemplo. Seu leque amplo e desgovernado é um traço de personalidade, e isso podemos ver no resultado de seus filmes também. Sua cinefilia fez com que citasse ostensivamente (e aludisse de modo indireto a) seus filmes e cineastas favoritos em muitos de seus longas metragens: já se assinalou a releitura do cinema do jovem Scorsese em Vício Frenético, por exemplo, ou a constante referência ao Godard de O desprezo (Le Mépris, 1963) em Olhos de serpente, ou a releitura de Um corpo que cai (Vertigo, 1958, de Hitchcock)2 em The blackout – sem contar as diversas citações a filmes de máfia e gangsters principalmente em O rei de Nova York e Os chefões, a ficção científica em Invasores de corpos e Enigma do Poder, o horror em O vício, entre muitos outros. Poderíamos ver em Martin Scorsese a grande inspiração para Ferrara, sem reduzir a ela porém a diversidade dos seus filmes. Ao cotejá-los com outros, poderíamos dizer também, e talvez com mais proveito, que existe um tipo de cinema muito ligado a Ferrara e muito praticado por diversos cineastas, que é o cinema de grupo, realizado sempre pelas mesmas pessoas, um grupo de amigos, colegas colaboradores, muito próximos e muito fechados em seus trabalhos partilhados. Entre outros, lembremos R. W. Fassbinder e J. Cassavetes. O mais importante para este trabalho é estabelecermos critérios para abordar o estilo de Ferrara. O primeiro deles, e talvez o principal, é o recorte de filmes. Julgamos, nós também, que o conjunto mais representativo de sua obra (no estilo e nos temas) é o dos anos 1990, sobretudo entre O rei de Nova York (1990) e O enigma do poder (1998). O filme de 1990 representa uma inserção definitiva de Ferrara no cinema autoral. Até então, apesar de realizar alguns trabalhos autorais como O assassino da furadeira e Sedução e

2 Cotejaremos The Blackout e Vertigo mais à frente. Na notável tese de doutorado de Luiz Carlos de Oliveira Jr sobre o filme de Hitchcock (Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno, ECA USP, 2015), referência fundamental para nós, ele tece comparações entre Vertigo e muitos dos filmes que analisaremos aqui, entre eles The Blackout. 4

vingança, ele se mantinha filmando mais por encomenda e fazendo trabalhos menores para a televisão. Nos anos 90 ele se dedicará ao cinema. E justamente após o filme de 1998, sua carreira dá uma nova virada e, perdendo público e financiamento, se volta para a realização de videoclipes e trabalhos sob encomenda. Sua produção cinematográfica vai escasseando e dependendo cada vez mais de dinheiro europeu (como Gangues do Gueto, de 2001, e Maria, de 2005), até ele emigrar dos Estados Unidos (também por conta do impacto do 11 de Setembro de 2001) para a Itália e realizar com maior produção majoritariamente europeia. Unindo excelência criativa e produção constante, a década de 90 marca seu apogeu estético. É ela que privilegiaremos neste trabalho. Ainda assim, seria impraticável examinar aqui seus 8 filmes desta década, o que nos obrigou a escolher dois deles, Vício Frenético e The Blackout, que nos parecem os mais fortes e representativos do período, ainda que nossa discussão esteja informada pelos outros, e os convoque pontualmente em vários momentos. Ferrara se inscreve como um herdeiro de uma vertente mais ligada a uma revisão modernizante3 do cinema clássico, a um cinema da violência4, da cidade como polo de crimes e desordem, dos filmes de Scorsese, Sam Peckinpah, William Friedkin, Monte Hellman, que por sua vez são ligados aos filmes policiais de Don Siegel, a Howard Hawks, Robert Aldrich, John Flynn, Samuel Fuller e Nicholas Ray. Poderíamos realizar uma revisão e um resgate da Nova Hollywood enquanto momento na história do cinema norte-americano. Poderíamos também, e talvez de maneira mais diversificada e ampla, falar no cinema norte-americano dos anos 70. A verdade é que Ferrara é muito influenciado por esse cinema. Muito do cinema americano dos anos 70 é realizado por diretores cujo imaginário retrabalha a história pregressa do cinema. Nele, o cinema clássico aflora a cada plano, atravessado pelo cinema moderno europeu, pela Nouvelle Vague, pelos cinemas novos do mundo também. O resultado é um conjunto de filmes marcado por uma constante revisita a códigos e procedimentos. Enquanto Michael Cimino, John Milius e Clint Eastwood dialogam sobretudo com Ford e Griffith, lidando com mitos fundadores na linhagem do cinema clássico, Brian De Palma voltará a Hitchcock, Peckinpah e Hellman ao Western, por exemplo. Robin Wood discorre em seu livro5 a respeito da narrativa cinematográfica dos anos 70, sobre o que chama de “texto incoerente” (WOOD, 2003, pp. 41-62). Ele deseja retratar a incoerência em filmes que a princípio não se desejaram incoerentes (fragmentários, por exemplo), como Taxi driver (1976, de Martin Scorsese), Parceiros da noite (Cruising, 1980,

3 Ver THORET, Jean-Baptiste. Le Cinéma américain des années 70. Cahiers du Cinéma, 2009. 4 Ver SLOCUM, J. David. Violence and american cinema. NY: Routlege, 2001. 5 WOOD, Robin. Hollywood from Vietnam to Reagan... and beyond. New York: Columbia University Press, 2003. 5

de William Friedkin) e À procura de Mr. Goodbar (Looking for Mr Goodbar, 1977, de Richard Brooks), filmes que segundo ele tiveram a busca pela experiência, de alguma forma, derrotada. A incoerência, aqui, tem a ver não somente com a subjetividade de um autor mas também com o contexto sociopolítico em que vive:

Leitores raramente precisam que se recapitule para eles a história do que aconteceu na Hollywood nos 50s e 60s – o processo que ia bem quando os filmes surgiram para celebrar o cinema já estava desaparecendo: a televisão surgiu, o código Hays acabou, e o sistema de studio/estrela/gênero estava parcialmente desintegrado. O quadro geral do classicismo hollywoodiano havia majoritariamente deixado de existir. Os filmes feitos por John Ford após O homem que matou o facínora, por Howard Hawks após Hatari!, e por Alfred Hitchcock após Marnie, têm interesse (poucos, como 7 Mulheres e Red Line 7000, um interesse muito especial), mas eles têm em comum uma perda de autoridade e confiança, uma incerteza quanto ao tom que desejam adotar. Em meados dos 60s, as circunstâncias haviam tornado possível (em Liberty Valance, em Rio Bravo, em Psicose) a transmutação do conflito ideológico, como necessariamente existe em qualquer filme de Hollywood, em uma significativa realização temática que não existia mais. (Ibid., 2003. pp. 43-44)

Existe, portanto, naqueles filmes, uma sensação de fratura, derrota, fracasso: sua linha narrativa é abruptamente rompida e estilhaçada. Wood busca também no contexto da época algumas razões para que entendamos os filmes, sobretudo em se tratando daquilo que o autor chama de “golpes de morte” sofridos pela indústria da Hollywood clássica. Indústria esta que “talvez teria levado muito mais tempo para morrer se não fosse pelas principais agitações na cultura americana de meados dos anos 60 até os anos 70: principalmente, é claro, o Vietnã, mas logo em seguida Watergate”, agora fruto direto dos movimentos sociais e erupção política; “parte causa, parte consequência, a crescente força dos protestos radicais e movimentos de liberação – militância negra, feminismo, liberação gay.” (Ibid., p. 44) A esses “golpes de morte” somam-se agitações sociais, a Guerra Fria, a Guerra do Vietnã, a revolução sexual, o rock como movimento cultural surgindo com a força da invasão britânica (The Beatles, Rolling Stones, The Who), a ascensão de movimentos sociais, o sonho hippie no festival de Woodstock, a tragédia do festival de Altamont6, os assassinatos de Malcolm X, Martin Luther King, John F. Kennedy e Robert Kennedy:

6 O Festival de Altamont foi um festival de música, que continha dezenas de bandas de rock n roll de sucesso como os Rolling Stones, Grateful Dead e Jefferson Airplane, realizado na costa oeste norte-americana em 06 de Dezembro de 1969, na pista de corridas Altamont (Califórnia). O festival era realizado dentro da lógica da contracultura da época e tinha como objetivo ser um novo Woodstock (o festival de Woodstock havia sido um sucesso e um dos pontos máximos de celebração hippie). Porém o evento foi marcado por diversos acidentes trágicos envolvendo mortes de pessoas na plateia e de violências entre o público e a gangue Hells Angels contratada para cuidar da segurança do evento. O jovem negro Meredith Hunter foi esfaqueado e morto por um dos Hell Angels durante o show dos Rolling Stones após se envolver em uma briga. Sua morte foi filmada, assim como os outros incidentes do festival. 6

Os cineastas são os mesmos, os atores também, mas entre Voar é com os Pássaros [1970] e Nashville [1975] (Robert Altman), entre Meu ódio Será Sua Herança [1969] e Elite de Assassinos [1975] (Sam Peckinpah), entre O pequeno Grande Homem [1970] e Um lance no Escuro [1975] (Arthur Penn), entre Ensina-me a Viver [1971] e Shampoo [1975] (Hal Ashby), algo se quebrou. Os filmes ainda são muito belos, talvez ainda mais belos, mas o olhar em relação ao mundo mudou. Após a explosão, o arrefecimento. O sufocamento dos movimentos de contestação e da contracultura, o fim da Guerra do Vietnã e do alistamento, os escândalos políticos e a recessão econômica mergulharam a América em um período de dúvida e recuo. (THORET, 2009, p. 33)

A inocência se perdera definitivamente, e o impacto maior veio das imagens televisivas de soldados morrendo no Vietnã, do jovem negro Meredith Hunter sendo morto a facadas pelos Hells Angels no show dos Rolling Stones em Altamont, do presidente Kennedy alvejado por uma bala de fuzil em sua passagem por Dallas em 1963 e de seu irmão Robert Kennedy também sendo morto a tiros em 1968. O registro fílmico dessas imagens foi fator determinante para instalar de vez nas casas dos cidadãos aquilo que o crítico e pesquisador Sérgio Alpendre, partindo do “momento de desencanto” (Ibid., 2009, p. 33) de Jean-Baptiste Thoret, chamou de “mal-estar na sociedade americana”7. O assassinato de Robert Kennedy e a eleição de Nixon à presidência (ambos em 1968) produziram um curto circuito final, uma última catálise à derrocada quase definitiva de uma maneira de se ver o mundo, no início de uma década em que o desconforto e a melancolia dariam o tom e trariam, das entranhas e das cicatrizes mais profundas deixadas por esse sonho interrompido, a violência e o gosto por personagens marginais, desajustados, por narrativas não lineares, por abordagens mais diretas, por uma abstração e uma opacidade no trato com a imagem, pela noite e pela moral ambígua, pela cidade como ambiente caótico e repulsivo. O mundo visível, por fim, parecia cada vez mais opaco nos filmes. Suas zonas cinzentas se faziam sentir em uma representação em que as aparências enganavam, a moral dava lugar ao caráter pervertido do homem, as grandes corporações eram corruptas e o problema não estava mais presente só em indivíduos: não era mais possível apontar onde exatamente estava o mal, que se espalhava por todos os lugares:

Para mais informações ver: CARROLL, Noël. “The Future of Allusion: Hollywood in the Seventies (And beyond).” In. October. Vol. 20, 1982. p. 51-81. SCHOWALTER, “Daniel F. Remembering the dangers of rock and roll: Toward a historical narrative of the rock festival”. In. Critical Studies in Media Communication, Volume 17, 2009. INGLIS, Ian Performance and Popular Music: History, Place and Time. Routlege: London, 2006. 7 Ver ALPENDRE, Sérgio. O mal-estar na sociedade americana e sua representação no cinema. Dissertação de mestrado. ECA/USP. São Paulo, 2013. 7

A sociedade parecia estar em um estado de desintegração avançada, mas não havia séria possibilidade do surgimento de uma alternativa coerente e abrangente. Esse dilema - habitualmente apresentado, é claro, em termos de drama pessoal e interação individual, e não necessariamente registrado conscientemente - pode ser sentido como a base dos filmes americanos mais importantes do final dos anos 60 e 70. (ALPENDRE, 2013, p. 44)

Lidamos aqui, portanto, com um cinema diretamente ligado aos acontecimentos recentes de seu tempo, marcado pela memória recente da Guerra do Vietnã, influenciado pela modernidade das novas ondas mundo afora, principalmente a Nouvelle Vague. Com um cinema jovem, de perfil cinéfilo, que presta homenagem, revisita e reinterpreta imagens muito bem cimentadas em um panteão reconhecido de um classicismo cinematográfico. A Nova Hollywood, ou o cinema narrativo dos anos 70, muito mais do que um movimento estético fechado em torno de uma cartilha, surge como um momento na história do cinema norte-americano em que buscou-se olhar com lupa certos preceitos, certas estruturas narrativas e sobretudo os gêneros cinematográficos. De horror como O exorcista (Willian Friedkin, 1973), O bebê de Rosemary (Roman Polanski, 1968) e It’s Aive! (Larry Cohen, 1974) e Halloween (John Carpenter, 1978), passando por ficção científica como Guerra nas estrelas (George Lucas, 1977), western como O portal do paraíso (Michael Cimino, 1980), Um estranho sem nome (Clint Eastwood, 1973) e Pat Garrett e Billy the Kid (Sam Peckinpah, 1973), policial como Dirty Harry (Don Siegel, 1971) e The New Centurions (Richard Fleischer, 1972 ) e melodrama como O preço da solidão (Paul Newman, 1972). O fato é que, apesar de não aprofundarmos aqui o exame do cinema narrativo americano (notadamente o da Nova Hollywood), Ferrara possui uma ligação forte com essa geração. Assim como Michael Mann, McTiernan, David Lynch e Cronenberg, realizará seus trabalhos direta ou indiretamente influenciado por aquilo que apreendeu de sua construção como cinéfilo radical nas décadas interiores. É certo também que Ferrara seria muito influenciado por outros cinemas e cineastas, de países e épocas diversos, como veremos mais à frente. Do cinema de gênero retiramos muito daquilo que serve de matéria-prima a Ferrara, da exploração obsessiva do cineasta ao cinema que lhe interessa mais, ou seja, todo o cinema, que sai do estudo do próprio gênero em questão – o policial em Vício Frenético; o horror em O vício; o próprio cinema, ou a metalinguagem em The Blackout. Veremos, também, que The Blackout marca um ponto de ruptura nesse estudo de gênero mais convencional. Mas para além dos gêneros cinematográficos, a própria imagem é um assunto que atravessa toda sua obra. Nela, a imagem se encontra em crise, num ponto de ruptura e de erupção, para além de gêneros, estruturas dramatúrgicas e convenções estilísticas clássicos.

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Representante de uma geração para a qual a imagem cinematográfica já era objeto de suspeita e questionamento, filho de Godard, Hitchcock e Hellman, Ferrara confere protagonismo à própria imagem: o que é o fim de seu segundo longa senão um olhar vagaroso e analítico para a construção de uma Thana vingadora, vestida de freira e matando todos os homens da festa? O que são filmes como Maria e Bem-vindo à Nova York senão estudos sobre, respectivamente, a imagem sacra e a imagem da própria figura do star system e do ator (Gérard Depardieu no papel de um Strauss-Kahn deformado, velho e obeso)? Poderíamos ampliar nosso escopo tanto para trás (os anos 80) quanto para frente (os anos 2000 e 2010) e sempre iríamos nos deparar com a imagem em crise. Ferrara quase sempre está forçando as barreiras do aceitável, colocando-se em uma fronteira daquilo que pode ou não ser permitido ou ser considerado “de bom gosto”, o que nos levará às discussões sobre a imagem pornográfica, da violência extrema e do exploitation. Típico cineasta nova iorquino, italiano e católico, Ferrara se utiliza da sacralidade herética de um Scorsese ou um Pasolini, engloba-os em rupturas de um Godard e renova a discussão da imagem sacra, levando-a para frente, recuperando-a de onde parou o cineasta da Nova Hollywood em A última tentação de Cristo. A esse respeito, o elenco de Vício Frenético não nos parece inocente, trazendo o Judas, , ao papel do protagonista policial viciado em drogas; muito menos a constante escolha de (Jesus Cristo no filme de Scorsese) para os papeis principais de muitos de seus filmes. *** Discutiremos todas essas questões a partir dos filmes, a cuja luz levantaremos questões e apontaremos respostas. Apostaremos num close reading do par de filmes que elegemos, numa análise formal e estilística que nos abra o leque de conteúdos discutidos por Ferrara em sua filmografia. De uma análise formal, por exemplo, próxima daquilo que fez em suas linhas de trabalho e área de atuação o crítico literário e professor canadense Northrop Frye. Em seu importante livro A anatomia da crítica8, Frye procura, em sua “Introdução polemica”, estabelecer um parâmetro de enfrentamento e análise de obras que parta das próprias obras, defendendo que assim como o físico retira do próprio mundo a matéria para seu ofício de cientista o crítico deve retirar das obras sua reflexão e síntese. Frye se distancia de uma abordagem sociológica da arte (da literatura em seu caso) em proveito de uma abordagem formal. Para não cairmos numa simplificação pouco frutífera do enfoque de Frye, notemos que ele defende sobretudo a independência da crítica como produção de conhecimento, ainda que

8 FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: É realizações, 2014. 9

numa relação saudável com outras áreas do conhecimento. “Portanto, é impossível ‘aprender’ literatura: aprende-se algo sobre a literatura de determinado modo” (FRYE, 2014. p. 121), afirma o crítico. Continuando seu raciocínio ele diz que “a literatura não é uma área de estudo, mas um objeto de estudo: o fato de que ela consiste de palavras, como temos visto, faz que a confundamos com as disciplinas verbais de fala” (Ibid., 2014, p. 121). Trazer as posições de Frye é reafirmar uma abordagem com a qual estamos trabalhando no campo do cinema. Algo um pouco semelhante ao que realizaram David Bordwell no livro Sobre a história do estilo cinematográfico9 e Kristin Thompson em Breaking the Glass Armor - Neoformalist film analysis10. Se a abordagem de Frye privilegia e defende a crítica como espinha dorsal para que se apreenda a substância da obra de arte, ela também defende a superioridade de uma abordagem imanente da arte:

O crítico pode querer saber algo das ciências sociais, mas não pode haver algo como uma abordagem “sociológica” da literatura. Não há razão por que um sociólogo não deva trabalhar exclusivamente com material literário, mas, se o fizer, o sociólogo não deve prestar atenção aos valores literários [...] O crítico, de forma semelhante, não tem nenhuma obrigação quanto aos valores sociológicos, uma vez que as condições sociais favoráveis à produção de grande arte não são necessariamente aquelas que as ciências sociais têm em vista. (Ibid., p. 131)

Em um outro livro, A imaginação educada11, Frye tece suas considerações refletindo sobre o papel do artista e sua obra no mundo. Sobre como enfrentar as obras e se portar diante de suas idiossincrasias. Para Frye, “tudo o que se aprimora com o tempo, inclusive a ciência, abandona o artista literário à própria sorte. Os escritores não parecem beneficiar-se dos avanços científicos, conquanto nutram superstições de todo tipo” (FRYE, 2017, p. 21). Não se trata de repelir as obras por si, muito menos pela concepção de mundo do artista. A literatura, como as outras artes, pertence ao mundo construído pelo homem concreto, com suas características e complexidades: “não espanta que os escritores costumem ser gente bastante simples, e não aquilo que imaginamos como intelectuais, e decerto nem um pouco mais livres da tolice e da perversão que qualquer outra pessoa” (Ibid., 2017, p. 23):

Decerto não nos voltaríamos para os poetas contemporâneos em busca de orientação ou liderança no mundo do século XX. Dificilmente recorreríamos a Ezra Pound, com seu fascismo, suas ideias de crédito social, seu confucionismo e seu antissemitismo; ou a Yeats, com seu espiritualismo, suas falas e sua astrologia; ou a D. H. Lawrence, que nos recomendaria açoitar nossos servos a fim de restaurar a preciosa corrente de

9 BORDWELL, David. Sobre a história do estilo cinematográfico. Campinas, SP: Papirus, 2013. 10 THOMPSON, Kristin. Breaking the Glass Armor - Neoformalist film analysis. Princeton University Press. Oxford, 1988. 11 FRYE, Northrop. A imaginação educada. Campinas, SP: Vide Editorial, 2017. 10

reciprocidade sanguínea entre servo e senhor [...] Os romancistas parecem estar mais próximos do mundo em que vivemos, mas não muito [...] O que nos concerne é o que produzem, não quem são.” (Ibid., 2017, pp. 21-23)

Não rechaçamos a história. Pelo contrário, julgamos que a abordagem de Ferrara não deve esquecer que sua obra é produto de uma geração posterior aos anos 70, diálogo com a história pregressa do cinema e também com o cinema do seu tempo (anos 80 aos 2000). Esse papel da história na obra de Ferrara importa para nós, e o retomaremos sempre que necessário em nossa análise, mobilizando a bibliografia requerida. Em nosso radar, porém, estão os filmes, e a partir de uma análise estilística estabeleceremos parâmetros, chegaremos a conclusões, e identificaremos a história quando necessário. No prefácio ao livro de Noël Carroll (Theorizing the Moving Image)12, David Bordwell discute abordagens semelhantes no campo do cinema. Defendendo as posições do colega, Bordwell afirma que Carroll sempre parte de argumentos racionais para pensar qualquer ponto de vista ou teoria cinematográfica. Através do close reading, “Carroll demonstra que muitas das teorias contemporâneas embarcam em hiper generalizações equivocadas, analogias fora de tom e absoluto apelo à autoridade” (BORDWELL, 1996, p. 9). Para Bordwell, muitas das teorias contemporâneas em literatura, arte e cinema “consistem em um agrupamento de doutrinas de vasta generalidade, realocando-as para encaixar no interesse do analista, sujeitando-as a outras doutrinas (frequentemente incomensuráveis) e, então, aplicando o resultado a uma tarefa descartável (tipicamente, interpretando um trabalho artístico particular)” (Ibid., 1996, p. 10). Para Bordwell, Carroll analisa uma obra de arte, um filme no caso, tomando o cuidado de não trazer a priori para sua reflexão uma grande teoria que corresse o risco de subjugar e rotular o filme estudado, e preferindo centrar seus esforços em questões de nível médio que partam dos filmes e ajudem a identificar outros problemas, outras questões e outras teorias mais ou menos totalizantes. Noël Carroll dá continuidade ao texto de Bordwell e comenta inicialmente seu método na introdução do livro:

Não se trata de produzir uma grande teoria que responda a todas as perguntas em nossa área de estudo por referência a um conjunto básico de leis ou princípios [...] Para mim, teorizar sobre filmes envolve fazer perguntas gerais – como, por exemplo, do que se trata o ponto de vista do trabalho da montagem? – e, em seguida, tentar respondê-las [...] Minha própria suspeita é que um filme não pode ser reduzido a uma única essência ou função, e, correspondentemente, não presumo que nossas teorias resultem em uma embalagem ordenada. (CARROLL, 1996, p. 14)

12 BORDWELL, David. “Foreword”. In.: CARROLL, Noël. Theorizing the Moving Image. Cambridge University Press. Cambridge, 1996. 11

Sobre as polêmicas envolvendo a análise formalista, Carroll, assim como Frye e Bordwell, diz não negar a política na análise das obras de arte. Ele, inclusive, critica a forma como sua obra era atacada com a pecha do formalismo, escrevendo que suas teorias “concentram-se nas operações comunicativas de certos dispositivos – como enquadramentos variáveis – sem comentar seu significado político ou ideológico” (Ibid., 1996, p. 15). Mais do que defender ou negar o formalismo, Carroll procura desconstruir os estigmas do termo, afastando-se primeiramente, para poder seguir mais livre em suas análises:

Eu não acho que todas as questões sobre cinema são políticas. Não acho também que todas as questões são reduzíveis ao gênero. Concordo, porém, que algumas questões são sobre isso, e tenho tentado começar a responder algumas. Isto posto, não sou um formalista; eu não acho que questões políticas ou identitárias são irrelevantes para os estudos de cinema. Acho, também, que certas questões sobre o trabalho com imagens em movimento não implicam questões políticas. Isso, porém, não pode ser mal interpretado como formalismo, uma vez que eu também acredito que operações ideológicas no cinema levantam questões teóricas. (Ibid., 1996, p. 15)

Martin Jay, por sua vez, em seu texto Scopic regimes of modernity13, segue outro trajeto ao analisar o percurso do ponto de vista e do olhar em crise nas obras de arte ao longo da história. Seu texto, porém, ajuda a pensar o tratamento do ponto de vista e do ato de ver em quase todos os filmes de Ferrara, no que concerne sobretudo à desconstrução da imagem sacra (emprestada de Scorsese e radicalizada), mas também à própria imagem cinematográfica:

Em oposição à forma do Renascimento, cerrada, lúcida, linear, sólida, fixa e planimétrica, que Wölfflin chamou, posteriormente, de estilo clássico, o barroco era pictórico, múltiplo e aberto, voltado aos recessos, dotado de um foco difuso. Derivado, pelo menos segundo a etimologia mais usual, do termo usado na língua portuguesa para se referir a uma pérola irregular e de formato inusitado, o barroco evocava o que era bizarro e peculiar, traços geralmente desprezados pelos defensores da clareza e da transparência da forma.” (JAY, 1999. p. 13)

Longe de mergulharmos na história das artes plásticas (em Wölfflin, Argan, Gombrich, Greenberg, Panofsky, entre outros), guardemos das considerações de Martin Jay um olhar que decalca da obra seu estilo e o atravessa numa reflexão atenta às mudanças de ponto de vista em obras de arte, à desconstrução do olhar, às imagens em crise de pintores, escultores e cineastas. Um olhar que também o aproxima de outros tantos críticos e teóricos do cinema e das artes visuais que não citamos diretamente, mas que informam nosso horizonte de pesquisa, por privilegiarem a construção das obras e dela retirarem sua reflexão e sua teoria.

13 JAY, Martin. “Scopic regimes of modernity”. In. Hal Foster (ed.). Vision and Visuality. Bay Press, 1999. 12

Robin Wood, outro crítico de cinema muito caro a este trabalho, está sempre lidando com a história, a sociologia e as questões identitárias nos filmes. Porém, suas operações críticas nascem de um exame cuidadoso e de uma análise atenta da construção dos filmes, não o contrário. O mesmo pode ser dito das análises políticas de Jean-Baptiste Thoret sobre a obra de Mann, que são menos políticas e mais estilísticas, pois o estilo deflagra a política em Mann. Buscamos, sobretudo, um encontro com os próprios filmes, que serão soberanos e indicarão nossos caminhos de apreensão de sua complexidade e de sua construção formal. *** Pensamos, por fim, que os filmes por nós escolhidos podem trazer importantes aspectos da filmografia de Ferrara também em diálogos com outros filmes, outros momentos da história do cinema e outros cineastas. Os casos de Vício Frenético (e Caminhos Perigosos) e The Blackout (e Vertigo) são os mais salientes, mas não os únicos. Consagraremos a cada um destes filmes, e a seus comparantes principais, os dois primeiros capítulos desta dissertaçnao. No terceiro, abriremos nosso leque e, adotando uma abordagem francamente comparatista, discutiremos aspectos da filmografia de Ferrara como sua reflexão sobre o ato de ver e a imagem cinematográfica à luz de sua relação com outros filmes. Vamos trazer à baila a discussão sobre a pornografia, o filme snuff, os excessos de representação, a violência e outras questões presentes em seus filmes, de The Blackout em diante, mas sempre tendo em vista o conjunto dos filmes que ele realizou na década de 1990. Ao longo da pesquisa, o que percebemos na obra de Ferrara foi um movimento, não contínuo mas bastante claro, de caráter cumulativo. Se nos seus inícios ele pagou tributo aos gêneros cinematográficos que o marcaram, seu trabalho foi se tornando mais complexo com o passar dos anos, com filmes mais desafiadores, menos calcados em gêneros. Neles, percebemos um diálogo mais diverso tanto com o cinema clássico de um Hitchcock, por exemplo, quanto com o cinema independente realizado na época, ou ainda com um cinema de maior experimentação em relação à construção da imagem. Este trabalho leva a sério essa dimensão cumulativa da obra de Ferrara. Se reconhecemos em Vício Frenético um diálogo mais direto com filmes policiais e de crime dos anos 70 (capítulo 1), atentamos também para a expansão da reflexão sobre a imagem em The Blackout (capítulo 2), que nos franqueou uma discussão comparativa mais ampla sobre algumas questões presentes neste último (capítulo 3). Carregamos, claro, todas as comparações e reflexões tiradas do filme de 1992, mas o cotejo do filme de 1997 com Vertigo vai além e nos leva a outros cineastas contemporâneos, ampliando nosso horizonte e adensando a discussão.

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Capítulo I. Bad Lieutenant, 1992

1.1 O filme: forma e transcendência

Vício Frenético (Bad Lieutenant, 1992) é um dos filmes mais diretos feitos em sua época. A começar pelo título. Não que a tradução para o Brasil seja ruim, “Vício Frenético” é um boa e chamativa maneira de simbolizar a espiral descendente na qual se encontra o personagem interpretado por Harvey Keitel. Porém, refletindo a respeito do título original, “Bad Lieutenant” não poderia ser mais certeiro. O filme se ocupa, em sua quase totalidade, desse homem sem nome14, que é um tenente policial “mau”. Realizado a cores em 35mm, no formato 1.85:1, em Nova York, o longa foi filmado em apenas dezoito dias, com um orçamento aproximado de 2 milhões de dólares, e lançado em 1992. Ele acompanha o protagonista interpretado por Harvey Keitel, o tenente mau do título – policial corrupto viciado em jogos, alcoólatra, dependente químico, que adquire uma dívida milionária por apostar nos jogos das finais da liga de baseball daquele ano enquanto auxilia na investigação de um caso em que uma freira católica foi vandalizada e estuprada em pleno altar da igreja por dois jovens delinquentes do Bronx. No filme, o “roteiro é reduzido ao osso, os setups tem um clima Vérité, enquanto a montagem mimetiza o tempo real em longas, quase inassitíveis sequências” (JOHNSTONE, 1999, p. 124), e o protagonista praticamente não sai de cena.15 Seu tempo em tela quase coincide com o do filme, salvo por algumas cenas especificas em que Ferrara se descola do protagonista para expandir um pouco seu horizonte. É com o tenente que somos apresentados àquele universo filmado e é através dele que nos deparamos com o que está em jogo. A questão do ponto de vista cênico é muito importante ao filme e a discutiremos mais à frente. O tempo em que o filme se passa também é claramente definido: os dias em que ocorrem os quatro jogos finais (de uma série de sete) dos playoffs da liga principal de baseball entre os

14 Os personagens de Vício frenético não tem nome nos créditos. Em diversas publicações o protagonista é referido como “Lt” (abreviação de “Lieutenant” em inglês). 15 Outros bons exemplos desses tipos de filmes: Um Condenado à Morte Escapou (Un condamné à mort s'est échappé ou Le vent souffle où il veut, 1956, de Robert Bresson), Taxi Driver (1976, de Martin Scorsese), Rambo (First Blood, 1982, de Ted Kotcheff) e mais recentemente O abutre (Nightcrawler, 2014, de Dan Gilroy). 14

Mets (New York Mets) e os Dodgers (Los Angeles Dodgers). Antes do plano inicial do filme, ainda nos créditos iniciais, um locutor de rádio fala sobre os jogos das finais do campeonato e de como os Mets precisam reverter uma série de três vitórias seguidas do time adversário para ganharem o campeonato. Essa fala ágil e intensa do locutor a respeito do baseball é uma espécie de diapasão sonoro que pontua todo o filme. Primeiro plano: ruas de um bairro residencial médio de Nova York, espécie de subúrbio de classe média-baixa (provavelmente o Bronx). Harvey Keitel anda em direção ao carro parado em frente à sua casa, seguido por duas crianças que lhe correm atrás. Já dentro do carro, o pai ralha com elas pelo atraso e exige obediência. Durante a conversa é perceptível o tom desproporcional usado pelo tenente, utilizando palavras de baixo calão e sendo grosseiro com os filhos. Após deixá-los na escola, ainda em frente ao local, ele cheira um pouco de cocaína em seu carro. Logo na primeira cena do filme, portanto, Ferrara faz questão de expor ao espectador aquilo em que mergulharemos pouco a pouco no curso do filme. Estamos diante de um mau tenente, um homem que fala com os filhos da mesma maneira que fala com seus colegas policiais ou seus contatos no submundo do crime e das drogas, alguém que ainda na frente da escola infantil, em horário de entrada das crianças, não pensa duas vezes ao cheirar cocaína para começar um dia de trabalho. Ferrara e Keitel desnudam-se diante do espectador, quase que sem intermédio algum. Muitas vezes temos a sensação de assistir a um documentário, tamanha a crueza do registro e a efemeridade da linha narrativa. Tal linha parece não importar muito, no que diz respeito aos fatos encadeados (se pensarmos em uma curva dramática início-meio-fim, incidente incitante, crise, clímax, entre outros termos técnicos de manual de roteiro que não vêm ao caso para essa análise). Poderíamos resumir a narrativa do filme dizendo tratar-se dos últimos dias na vida de um tenente, detetive de polícia em Nova York que, endividado com apostas, viciado em drogas e corrupto, ao assumir a investigação de um caso de estupro e agressão a uma freira em pleno altar da igreja católica, entra em crise existencial, questiona sua fé, busca a redenção e se sacrifica. Em todo caso, ao resumirmos a curva narrativa do filme, inevitavelmente tocamos em pontos importantes e indissociáveis na sua abordagem, como a fé religiosa, a culpa, a redenção, a morte; e, principalmente, a forma com que o diretor encena tais pontos. Voltando à linha narrativa e às finais de baseball, em Vício Frenético, partimos do jogo número quatro. Os Mets perderam todos até então. O filme acompanha os quatro jogos finais, vencidos pelos Mets (que revertem a situação para um 4x3), para prejuízo do tenente, que aposta

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sempre nos Dodgers, dobrando sua aposta a cada jogo, indo de 15 mil dólares à 120 mil dólares de dívida, o que acarretará em sua morte. Não sabemos seu nome, seus antecedentes, sua vida pregressa. As informações sobre sua vida, seus vícios, seus parceiros na polícia e no crime são dadas no momento presente. Descobrimos seus propósitos e anseios conforme vamos observando suas ações em tela. O tenente fala pouco, o que torna ainda mais crua a experiência de acompanhá-lo. Ele é uma espécie de trem descarrilhado, desgovernado, rumo a um sôfrego abismo existencial. O primordial para que se apreenda o que está em jogo aqui é que Ferrara pouco se importa com a investigação em si. Ele trata seu filme sobretudo como um documento, o mais brutal possível, daquele homem. O estupro da freira só aparece aos 18' de filme. O grupo policial do qual Keitel faz parte só comenta o caso aos 23'. Até esse momento já vimos o tenente coletar apostas para o jogo de baseball com seus comparsas policiais numa cena de crime, fumar crack na escadaria de um prédio com um traficante (e aparentemente um contato das ruas) e depois no apartamento de uma mulher (interpretada por Zöe Lund, roteirista do filme), vimo- lo dançar com mulheres nuas cercado de drogas e álcool, atender um chamado numa loja de conveniência em que abusa de sua autoridade diante de assaltantes (roubando-lhes o dinheiro além de mercadorias locais), tentar roubar um pacote de cocaína noutra cena de crime, e assim por diante. Além da investigação em curso, sua dívida e seu vício em jogo vão aumentando em progressão geométrica, assim como seu vício em drogas. É como se tudo em sua vida escoasse com máxima vazão, de forma crescente, incontrolável e perigosa. Se, no início, ele cheira uma pequena colher de cocaína frente à escola dos filhos e se apresenta na primeira cena de crime (em que vemos mortos em um carro) à luz do dia e relativamente bem apessoado; no final, quando sua dívida está na casa das centenas de milhares de dólares e seu desespero está em grau máximo, ele injeta heroína no apartamento de Lund, anda pelas ruas à noite com a arma em punho em puro estado de paranoia e agoniza de braços abertos na igreja. A princípio, a notícia do estupro da freira afeta menos o tenente do que seus colegas de polícia. Ele faz piadas com o ocorrido e compara a igreja a uma máfia. Perto do fim do diálogo, porém, ele se diz católico quando confrontado pelos colegas. Esse detalhe do catolicismo é importante, pois é só ao tomar conhecimento das figuras envolvidas – ao ver a freira, ao ir até a igreja profanada pelos bandidos, ao ouvir as confissões da vítima e seus interrogatórios pela polícia – que tudo aquilo começa a impactá-lo e o faz esmorecer. Antes de ver Jesus diante do altar da igreja, o tenente vai até lá e dorme num de seus bancos, volta ao local do crime e examina com pesar as imagens religiosas profanadas, volta à igreja na primeira comunhão de

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seu filho, declara ter o “corpo fechado” (na tradução) ou “abençoado” (“I’m blessed”, no original) quando confrontado por seu coletor de apostas, que lhe diz que sua dívida acabará lhe custando a explosão de sua casa com toda sua família dentro. Ao final, tudo culmina no momento em que tenente e freira conversam ajoelhados em frente ao altar da igreja. Ele diz que irá contra as normas por ela e pede para que ela diga quem são os culpados pelo estupro. Ela diz já ter perdoado os garotos: “Fale com Deus, reze”, completa a freira para o tenente. Em seguida ele agonizando tem a visão de Jesus – o interpela, o xinga, pede ajuda, pede perdão, pede para que diga algo. Mas Jesus permanece imóvel olhando para o tenente que se ajoelha e beija as chagas de seus pés.16 Já entregue ao auto sacrifício, o tenente dá um dinheiro que tinha coletado do mesmo traficante com quem havia fumado crack no início do filme aos estupradores e os manda embora de Nova York. “It all hapens here” diz a placa sobre o carro do protagonista estacionado perto da rodoviária. E é lá que ele é sacrificado por algum dos credores da sua dívida, que estaciona ao seu lado e atira. O tenente morre e o filme acaba. Ao descrevermos a linha narrativa do filme percebemos o quão fugidia ela é, mas precisamos olhar de perto algumas questões centrais para analisá-lo. Iremos fazê-lo por partes, dividindo nossa análise em alguns pontos incontornáveis para a compreensão de Vício Frenético. É claro que seus elementos (forma, conteúdo, atuação, elenco, contexto da época, recepção crítica etc) fazem parte de um todo e é muito difícil separá-los de maneira drástica. Tentaremos porém isolar alguns aspectos, privilegiando um de cada vez, na esperança de apreender melhor o conjunto.

De fato, poucos filmes recentes, americanos ou não, mostraram tanta inteligência e rigor quanto ao trabalho por trás, de câmera. O filme desliza para frente como uma procissão silenciosa feita de esquetes em que o policial de Keitel entra e sai dos holofotes. Mais do que o melodrama batido de um jogador viciado mergulhado em dívidas, existe a realidade material de Keitel se autodestruindo contra a paisagem das ruas de Nova York. (JONES, 1994. p, 10)

Muito se fala a respeito de O rei de Nova York (King of New York, 1990) como um ponto de virada importante na carreira de Ferrara. Sendo o filme em que o cineasta surgiu de maneira mais veemente para um público amplo, foi também o início da escalada de seu prestígio crítico e inserção na indústria. Até então Ferrara ainda não havia se firmado definitivamente como diretor de cinema. Fazia muitos trabalhos para a TV e alguns filmes por encomenda. O que se nota nos seus filmes mais autorais dos anos 80 é uma inserção completa naquele momento

16 Também iremos nos ater com mais cuidado a esse momento mais à frente. 17

chamado de maneirista, com filmes muito estilizados, caminhando na mesma via de realizadores como Larry Cohen, Brian De Palma, ou Dario Argento. O rei de Nova York marca uma maior contenção no estilo de Ferrara. Os longos travellings em câmera lenta de Sedução e vingança (Ms .45, 1983) deram lugar a uma abordagem mais contida, ao campo e contracampo, e ao privilégio do ator como ponto central na construção cênica. A possibilidade de trabalhar com elenco mais bem preparado e mais bem arregimentado ( e Laurence Fishburne, por exemplo) em 1990 talvez também tenha feito com que Ferrara se despisse cada vez mais da estilização. Isto posto, podemos afirmar que Vício Frenético foi além, deu um passo a mais do que o filme anterior, terminou o que havia sido iniciado em O Rei de Nova York e, daí pra frente, Ferrara, em um caminho sem volta, encontrou à sua maneira, uma voz própria e particular em sua filmografia. Da marca do estilo, afirma-se que “Vício Frenético, que é o filme de Ferrara mais ancorado em sua época até agora, pode ser a resposta brutal a O rei de Nova York” (JONES, 1994. p, 10) e, tomando algumas cenas como exemplo dessa progressão formal nota- se que “paradoxalmente, onde O rei de Nova York parece menos resolvido, Vício Frenético termina com um ato de perdão doloroso e desconcertante” (Ibid, p. 9-10). Apesar de mais calcado nas interpretações de seu elenco e mais contido do que os filmes anteriores de Ferrara, O Rei de Nova York ainda traz alguma estilização. Em momentos de tensão, pontuando todo o filme, há a clara opção por Ferrara em desenvolver o tom da cena através de travellings laterais, de aproximação ou afastamento. O primeiro plano do filme, por exemplo, é um travelling lateral frente às grades da prisão [Fig. 1 e 2]. Somos apresentados a um Frank White (Christopher Walken) que emerge das sombras, da mesma forma cerimoniosa que Ferrara se despede dele nos minutos finais do filme.

1. 2.

Há também dois travellings marcados, por exemplo, quando White e sua gangue invadem uma mesa clandestina de pôquer e matam o chefe de um grupo rival. No início da cena

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nos aproximamos com a câmera da mesa de pôquer [Fig. 3 e 4], quase compartilhando o ponto de vista de White. No final da cena, um travelling intenso nos aproxima de White [Fig. 5 e 6], que para, se vira e atira no velho italiano que acabara de o insultar.

3. 4.

5. 6.

Algumas cenas de tiroteio e de assassinatos são filmadas em uma câmera lenta que ainda carrega um resquício do massacre muito estilizado da cena final de Sedução e vingança [Fig. 7 e 8], com sua luz estroboscópica e seus movimentos de câmera lenta extrema.

7. 8.

Assim como a violência das guerras de gangues são em muitos momentos tensionadas, a frieza do protagonista com sua igualmente cruel violência – através de sombras, de contra luz azul sempre presente – é sintetizada na perseguição de carros na emboscada final [Fig. 9 e 10] Ali, uma forte luz azul lava a rua chuvosa contra o vermelho que vem dos postes.

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9. 10.

Ferrara diz em entrevista para a Sight and Sound que “a base de qualquer grande improvisação é uma grande matéria-prima, um grande roteiro, pra começar. E a partir daí é muito difícil dizer quando começa e quando termina” (FERRARA, 1993, p. 21). Isto faz muito sentido não somente para seu filme de 1990 mas para a maior parte de sua obra. Vício Frenético a posiciona como uma espécie de dogma talhado em pedra. Todo o resquício de engendramento técnico e toda a estilização do aparato presentes em O Rei em Nova York desaparecem por completo em Vício Frenético, e uma boa maneira de iniciarmos a investigação formal deste filme é colocando-o lado a lado com o anterior. A morte de Frank White é filmada com um refinamento que confere ao desfecho do filme um caráter grandioso [Fig. 11 a 13]. Ele se despede de seu protagonista em uma espécie de ritual litúrgico anunciado desde sua saída da prisão e de falas dispersas em todo o filme (“Só há uma maneira de parar Frank”, diz um dos policiais sobre montarem uma emboscada para matá-lo; “Perdi muito tempo”, diz Frank White na sacada de um prédio enquanto contempla Nova York no horizonte). Gruas, panorâmicas e planos próximos de White observando a cidade de dentro do táxi enquanto nota ter sido baleado unem-se à trilha incidental, e realizam uma espécie de dança da morte, em que Frank White se mescla a Nova York enquanto sua vida se esvai frente ao espectador. A arma que ele tomba em plano próximo encerra o filme como um último ato violento de Ferrara.

11. 12.

20

13.

Vício Frenético, por sua vez, é um filme quase todo blocado. Ferrara limita-se a posicionar registros do cotidiano do policial, dia após dia, na ordem em que os acontecimentos vão ocorrendo. Não há muito espaço para que se realize trucagens de montagem, ou movimentos rebuscados de câmera. Isso não quer dizer que o filme não possua rigor ou construção. Pelo contrário, seu efeito deseja ser retirado, ou efetivado, justamente da crueza do real filmado. Poderíamos posicionar Vício Frenético em uma genealogia de um cinema da ontologia do real, na esteira de um dos preceitos bazinianos mais basilares17, do real filmado, da compreensão do real registrado pela câmera no mundo em que se posiciona. O crítico francês dizia, ao construir uma evolução na linguagem, que “pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação nada se interpõe, a não ser outro objeto. Pela primeira vez, uma imagem do mundo exterior se forma automaticamente, sem a intervenção criadora do homem, segundo um rigoroso determinismo” (BAZIN, 2014, p. 31). Indo um pouco além, em um texto18 sobre o filme Alemanha, ano zero (Germania anno zero, 1948, de Roberto Rossellini), Bazin afirmava que o realismo de Rossellini nada tinha em comum com o que cinema havia produzido até então de realista, uma vez que aquilo que chamava de realismo em Rossellini era “não um realismo de tema, mas de estilo”. Nos emocionaríamos, portanto, através de uma somatória, um sentido extraído dos acontecimentos, das interpretações e da mise-en- scène construída, cujo “sentido moral ou dramático nunca está aparente na superfície da realidade; todavia, é impossível não sabermos que sentido é esse se tivermos uma consciência”. Bazin indaga, de forma retórica, concluindo seu texto: “não é esta uma sólida definição de realismo em arte: obrigar o espírito a tomar partido sem trapacear com os seres e as coisas?.” (Ibid., pp. 221-222)

17 Ver BAZIN, André. O Que é o Cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014. 18 Alemanha, ano zero. Originalmente publicado em “Espirit”, ano 27, maio 1949, pp. 685-89. In. BAZIN, André. O Que é o Cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014, pp. 219-223. 21

Podemos listar, como contraste, os poucos procedimentos de montagem que Ferrara realiza para atingir um efeito que foge da captação seca da realidade. Há duas sequências que saltam aos olhos. Enquanto estamos pela primeira vez no apartamento da mulher interpretada por Zöe Lund usando heroína [Fig. 14], e dando a droga para o tenente, há um corte seco do rosto da junkie para uma imagem da virgem Maria (com uma forte presença de um órgão litúrgico na trilha musical) [Fig. 15] que dá início à sequência do estupro da freira [Fig. 16].

14. 15.

No final da sequência, um novo corte seco nos mostra o rosto de uma criança na sala da casa do tenente observando-o enquanto ele dorme de ressaca no sofá [Fig. 17].

16. 17.

Há outros poucos momentos em que o corte de uma cena à outra dita um choque no espectador, uma violência de montagem, como por exemplo, a transição [Fig. 18 e 19] que nos tira do tenente gritando em seu carro após atirar no próprio rádio por conta de mais uma derrota dos Dodgers e nos leva diretamente a um plano de uma imagem de cristo na cruz durante a primeira comunhão de seu filho.

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18. 19.

Ou quando, mais para o fim do filme, enquanto vemos um tenente já desesperado falando com seu apostador ao telefone e gritando para que ele ponha 120 mil dólares no último jogo [Fig. 20], Ferrara corta a cena para um plano próximo do braço de Lund com uma agulha de heroína sendo injetada [Fig. 21].

20. 21.

E o que poderia significar esses movimentos gerados por Ferrara através da montagem? Além da contraparte com a toada geral do filme, há uma afirmação de uma profusão dos pontos de vista, algo de que falaremos mais à frente principalmente na cena da batida policial com as garotas de New Jersey, e uma reiteração da violência mostrada em tela. No geral, paira sobre o filme um “clima vérité” (JOHNSTONE, 1999, p. 124), o imponderável, o cotidiano, o imediato. O fato conhecido de que Ferrara o realizou como se fosse um documentário, e sem autorização alguma para quase nenhuma cena ser filmada, somente confirma alguns sentimentos que surgem ao assistirmos ao filme. No mais, vemos Vício Frenético através daquilo que de mais necessário precisa ser mostrado. Qualquer psicologização só poderá ser obtida e interpretada a partir do presente que testemunhamos ocorrer em frente da câmera, reduzindo seu roteiro “ao osso” (Ibid., p. 124). Não vemos o tenente na delegacia, não sabemos ao certo quantos filhos ele tem. Não vemos uma esposa ou uma mãe daquelas crianças. Não sabemos nada sobre seu passado. Ferrara eleva,

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em Vício Frenético, o caráter sintético do cinema a um paroxismo. Eleva também a máxima de que cinema de ficção e documentário estão sempre se misturando. Eleva ainda a crueza do momento presente, do testemunho e da realidade do mundo filmado. Destes paroxismos, Ferrara, através do movimento de seu protagonista, de sua morte, atinge um estado de graça e de transcendência. Esse passo além no esvaziamento das estilizações do qual falávamos, assim como a transcendência de seu protagonista, é concretizado e pode ser exemplificado na cena final, principalmente se a comparamos à cena final, já comentada, de O rei de Nova York. No encerramento do filme de 1990, com a morte do protagonista, Ferrara lança mão de uma decupagem cuidadosa e meticulosa, nos aproximando de seu rosto dentro do táxi, observando a cidade de Nova York e seu trânsito noturno, enquanto filma as ruas sendo fechadas pela polícia que busca por Frank White e se aproxima de seu táxi em planos abertos e movimento de gruas. Vício Frenético termina com um plano sequência, câmera fixa filmando de longe os arredores da rodoviária e o carro do tenente estacionando no local movimentado. Em off a música “Pledging My Love” (na versão de Johnny Ace), como um dos motivos recorrentes no filme, volta a tocar19. Um outro carro estaciona ao lado e ouvimos “Hey, cop!”, seguido de um som de tiro. É possível ver de longe uma mancha vermelha no vidro do carro. O tenente está caído no banco da frente. Pessoas começam a se reunir em volta de seu carro e os créditos finais começar a subir [Fig. 22]:

Tragado pelo nada, pelo seu nada, Harvey Keitel (no estágio em que ele se encontra, perguntamo-nos se o termo "ator" ainda cabe) examina a cidade - Nova York - monótono, sem amarras, até o último (e único) sobressalto antes da morte programada. Porque se a sua vida não tem sentido, o mau tenente, de qualquer forma, encontra um sentido para dar à sua morte: talvez este seja o fundo do desespero que o cinema de Abel Ferrara toca pela sua vontade extrema. (NEVERS, 1993)

É também conhecido o fato de que na época da filmagem, Ferrara se utilizando do modus operandi Vérité, gravou a cena toda sem autorização e sem que as pessoas soubessem não somente o que estava acontecendo mas também que se filmava uma cena de ficção. Ele e sua equipe se posicionaram dentro de uma van, esconderam a câmera e definiram o plano final do filme. Durante a cena, como recorda o próprio diretor em entrevista para a revista Sight and Sound20, Ferrara saiu da van e foi à calçada próxima do local falar às pessoas que um homem

19 Ferrara a utiliza no filme na cena em que o tenente se embriaga com duas mulheres, ainda no início do filme. 20 Ver SMITH, Gavin. “The Gambler”. Sight and Sound, 02/1993, p. 20-23. 24

havia sido baleado ali mesmo em um carro: “nós simplesmente encenamos o evento. Escondemos a câmera dentro de uma van, fizemos tudo acontecer na hora do rush, e esperamos para ver o que aconteceria” (FERRARA, 1993. p, 22).

22.

Se a transcendência de White em O rei de Nova York era adiada ao máximo pela personagem, que luta contra a morte até o último momento, e também pelo cineasta que ergue um imbricado aparato para dar conta de tal ato, em Vício Frenético ela se dá em sua forma de forma bruta, dura, mas de maneira que represente seu protagonista, já entregue à morte do corpo e buscando desesperadamente a redenção de sua alma.

1.2 Religião e moral: busca pela redenção

O estilo direto e cru de Vício Frenético se choca em importantes e pontuais momentos em que religião profanada e fé questionada unem-se a um visual estridente e estilizado. É curioso notarmos, como ponto de partida para o atual tópico, a opção deliberada de Ferrara em chocar dois procedimentos formais distintos, até mesmo opostos, em duas cenas do filme: a cena do estupro da freira dentro da igreja e a cena em que inserções de imagens de Cristo berrando na cruz encerram a viagem de heroína do protagonista. Curioso também a opção de Ferrara em filmar o estupro. Fica clara, porém, a opção do cineasta em estilizar, e dessa forma, se distanciar criticamente da violência mostrada na tela. A cena é breve, mas requer atenção. Keitel e Lund estão usando heroína (fumando-a em um papel alumínio) no apartamento dela. A cena toda é muito direta, os personagens falam pouco e Ferrara limita-se a filmar a situação em três planos (um plano conjunto de ambos, um plano próximo de Keitel e um plano próximo ao rosto de Lund). O corte, porém, é brusco. Do rosto

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de Lund vamos a um plano próximo de uma imagem da Virgem Maria. Um som de órgão invade o filme. A luz da cena varia entre um azul e um vermelho quase surreal. A imagem da santa cai no chão do altar da igreja. A cena a partir desse instante é preenchida, junto do som do órgão, com os gritos da freira. Ferrara decupa muito a cena, ao contrário do resto do filme. Utiliza também a ferramenta de zoom e da câmera lenta. Vemos, através do zoom, a calcinha da freira sendo arrancada pelos dois jovens, vemos o rosto dela gritando desesperadamente. Cortes bruscos intercalam o estupro que ocorre frente à câmera com uma imagem de cristo na cruz presente no altar da igreja. A cena atinge seu ápice quando é inserida uma encenação de cristo pregado na cruz, aos berros. Os berros de cristo se misturam com os berros da freira e com o instrumento musical litúrgico. A cena dura menos de um minuto, mas sua potência e seu contraste com o registro geral do filme salta aos olhos, acompanha o espectador durante todo o filme, e é chave para o entendimento de alguns aos quais Ferrara recorre. Salta aos olhos também o paralelo direto entre a freira e a imagem da santa que cai do altar. A partir de então, a freira terá um caráter santificado, exprimido e potencializado pela encenação de Ferrara. Sua aura austera, grandiosa e mítica se impõe sobre o tenente desde o primeiro contato entre ambos. Brad Stevens aponta, em seu livro21, para o caráter analítico que Ferrara assume ao filmar cenas de violência física ou moral em Vício Frenético. Segundo Stevens, o cineasta lança mão de inúmeros pontos de vistas de modo a nos distanciar enquanto testemunhas daquela violência e, também, a se distanciar enquanto realizador. Ferrara esgarça as simbologias, pesa a mão propositalmente, faz o espectador desviar sua atenção e sair do lugar em que estava adentrando aos poucos durante os primeiros vinte minutos de projeção. Ainda na importante análise de Brad Stevens, no capítulo dedicado ao filme de 1992, ele dedica um longo espaço também para discutir o ponto de vista em uma das cenas mais fortes e impactantes do filme, que analisaremos mais à frente: a cena em que o tenente se masturba, utilizando de sua autoridade forçando duas garotas (as Jersey Girls) a assistirem seu ato:

A seu propósito, o estupro e o abuso das Jersey Girls pelo tenente são estruturados de forma idêntica [...] enquanto o estupro está ocorrendo nós somos forçadamente lembrados do sofrimento da freira, os close-ups de seu rosto agônico e a constante presença de gritos na trilha sonora certificam-nos de jamais estarmos alheios ao seu horror. Como na cena das Jersey Girls, nos é apresentado um distanciamento, uma perspectiva analítica, mas a radicalidade da cena do estupro significa que o efeito de distanciamento deve ser correspondido de maneira radical, o que explica, em

21 STEVENS, Brad. Abel Ferrara: The Moral Vision. London: FAB press, 2004. 26

determinado ponto, Ferrara cortar para um plano de Cristo agonizado na cruz. (STEVENS, 2004, p. 161)

Há uma preocupação de Ferrara em compartilhar tudo o que de mais necessário deva ser compartilhado com seu espectador. Se preciso sair da alçada do cotidiano do tenente que seja para testemunhar o horror do estupro à freira. Porém só há uma maneira de fazê-lo, que é a de uma hiper-estilização cênica, compartilhando não somente do sofrimento da freira, mas também da agonia de Jesus cristo ao ser crucificado. Comum na obra de Ferrara, o papel da fé católica aqui seja talvez mais questionado e colocado em cheque do que nunca. Papel este que, segundo o próprio Ferrara22, fez com que Nick St. John se afastasse do projeto e declinasse a escrever o roteiro, uma vez que “Vício Frenético é o trabalho de uma pessoa em conflito. Então, Zöe, eu mesmo e Harvey talvez, mas Nicky não possui esses questionamentos. Ele acredita na palavra de Cristo, ele não questiona a palavra de Cristo” (FERRARA, 2003). De presença imagética e cênica em sua filmografia, a religião e a fé católica em Vício Frenético se impõe de forma avassaladora como uma sombra crescente ao redor do tenente a cada cena. Lembremos que o primeiro diálogo dos policiais acerca do estupro da freira é tratado com chacota pelo tenente, o que deixa inclusive alguns colegas de profissão incrédulos. Ele está mais interessado nas apostas no jogo de baseball do que no trabalho em si. Nós, espectadores, porém, já vimos o estupro ocorrer, da mesma forma que vimos momentos antes um já desesperado tenente bêbado, nu, com os braços abertos em uma personificação de cristo na cruz, agonizando em frente à câmera em uma cena marcante. Sua atitude irá, aos poucos, mudando em relação à freira, principalmente depois de entrar no local profanado e de ouvir as confissões da vítima. Por volta de 10 minutos de filme, logo depois de vermos o tenente fumando crack com um traficante, vem a cena de um agônico Keitel se esbaldando com álcool e duas mulheres nuas, e gritando em nu frontal de braços abertos somente com um crucifixo pendurado no pescoço. O caminho do tenente não é de cima para baixo, portanto. É do fundo do poço para ainda mais fundo. As dívidas que vão se alastrando e tornando-se incalculáveis são só um prognóstico de um fim lógico daquele personagem. É como ele se debaterá contra esse fim, porém, que ganha ares trágicos e contornos religiosos. Sua redenção é, portanto, interna, ao entregar-se para a morte ao final, na busca da transcendência da alma.

22 Ver GREGORITS, Gene. “Abel Ferrara: the sex & guts interview”. The Sex e Guts Magazine, 2003. 27

Pregado na cruz, Cristo voltará mais uma vez ao filme, já perto de sua conclusão, em uma cena que une a viagem de heroína do tenente, o discurso sobre vampiros de Zöe Lund, o órgão da igreja na trilha musical e a locução da partida final entre os Mets e os Dodgers no rádio. Toda essa vertigem final culmina na igreja, no confronto final entre tenente e freira. Ajoelhados em frente do altar o tenente implora para a freira: “Você consegue carregar o fardo irmã?”; “Eu irei contra o sistema por você. Farei justiça, justiça verdadeira.”, sugerindo que ela revele a identidade dos estupradores para que ele possa caçá-los e matá-los. “Eu já os perdoei”, ela responde, “Fale com Deus, reze”, termina a freira, deixando-o sozinho na igreja e entregando seu terço a ele. O tenente agoniza novamente e, ajoelhado, vê Jesus. Ele o interpela, o xinga, pede perdão, beija seus pés. Jesus permanece calado. No final da cena a visão revela que uma mulher é que levará o tenente aos estupradores. É interessante a fusão que realiza Ferrara neste momento entre os registros, até então paralelos. Jesus gritando na cruz, a freira sendo estuprada, a religião estilizada e analiticamente observada unem-se ao tenente no mundo real, dentro da igreja, concretizando muitos dos questionamentos que corroíam o protagonista por dentro ao longo da projeção. *** Na jornada descendente do tenente no campo da religião, da fé e dos questionamentos morais, dois momentos são fundamentais. Neles, a freira violentada e o tenente são colocados frente a frente, e Ferrara filma o ato do protagonista de olhar para aquele corpo angelical e puro. O primeiro contraste, e mais gritante, entre a pureza quase santificada da freira e a presença obtusa e repulsiva do tenente personificada por Harvey Keitel, é evidente. O que nos interessa mais são as nuances e a conjunção entre os momentos em que o ato do tenente de olhar para a freira são colocados no filme, os pequenos gestos entre os atores e agentes da ação e a mise en scène de Ferrara no que diz respeito tanto ao posicionamento dos corpos em cena quanto ao tempo em tela e a proporção dos cortes. São cenas chave pois em um primeiro momento observamos um tenente descrente, voyeur, violador de um espaço íntimo, que ainda não digeriu por completo a presença da freira e da fé em seu entorno, que ainda não se deparou com a igreja profanada pelos estupradores, para então vermos um homem mais amargurado, buscando a redenção. Seja retomando o plano espelho de Vertigo [Fig. 23] e o desmembrando em dois quando o tenente olha para a freira pela fresta da porta [Fig. 24 e 25], seja mostrando a freira devolver o olhar para o tenente, Ferrara flagra um mundo em que a imagem encontra-se em crise, colocando-a em xeque. Como uma obsessão, essa investigação vai atravessar quase toda a sua obra, em momentos mais ou menos intensos, porém sempre mobilizando toda uma imagética

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para questioná-la, desconstruí-la, explorá-la em todas as suas nuances, técnicas e escopos. Aqui estamos diante de um primeiro vislumbre dessa investigação.

23. Vertigo (1958)

24. Vício Frenético (1992) 25. Vício Frenético (1992)

Martin Jay escreveu23 sobre os “regimes escópicos da modernidade”, sobre a “deserotização da ordem visual” na história das artes, e como “esse processo também estimulou aquilo que pode ser chamado de desnarrativização ou destextualização, isto é, à medida que o espaço abstrato, concebido quantitativamente, tornava-se mais interessante ao artista do que os objetos qualitativamente diferenciados que eram nele retratados, a representação da cena tornava-se um fim em si mesma” (JAY, 1999, p. 7). As reflexões de Jay podem ser aproximadas dos procedimentos de Ferrara em Vício Frenético e em outros filmes. Veremos como essa escopofilia desromantizada desembocará na imagem pornográfica e nos filmes snuff. Sua obsessão pela visão, pelo ato de ver, pelo desnudamento escopofílico do plano, dessacraliza a imagem. Ele não nega nem rechaça a imagem cinematográfica. Pelo contrário, necessita dela, explorando-a e esgarçando-a de todas as maneiras possíveis:

Foi somente muito depois na história da arte, com os nus descaradamente chocantes de Manet em Le Déjeneur sur l’herbe e Olympia, que finalmente deu-se o cruzamento entre o olhar do observador e do objeto retratado. A essa altura, no entanto, a ordem

23 JAY, Martin. “Scopic regimes of modernity”. In. Hal Foster (ed.). Vision and Visuality. Bay Press, 1999. 29

visual racionalizada do perspectivismo cartesiano já se via sob ataque também de outras maneiras.” (Ibid., p. 07)

Voltando ao filme, o primeiro encontro entre tenente e freira marca uma primeira mudança na personagem. Não é à toa que as cenas seguintes são, respectivamente, o abuso das Jersey Girls e a queda simbólica do tenente diante do altar da igreja. O protagonista vai ao hospital após receber a notícia do estupro junto de seus companheiros policiais. Acompanhamo- lo com uma câmera na mão que o filma pelas costas enquanto ele anda no corredor do hospital. Ele se aproxima da porta do quarto da freira recém violentada. A cena se constrói num campo/contracampo em que vemos o olho do tenente em um plano próximo através de uma fresta na porta olhando para dentro do quarto e um plano da freira deitada, nua, na cadeira médica [Fig. 24 e 25]. É praticamente impossível não valorarmos negativamente o modo como ele olha para o corpo nu da freira. Nessa altura do filme já conhecemos o seu comportamento vicioso. Como um animal enjaulado, o tenente a come com os olhos, e Ferrara faz questão de cortar para eles no exato momento em que a enfermeira retira o roupão que cobria seu corpo nu. O mais importante aqui é notarmos que ao invadir um momento de fragilidade e intimidade da freira é a devolução do olhar dado pela própria mulher que cai como um raio e pega de surpresa o policial [Fig. 26 e 27]. O gesto é mínimo, mas Ferrara faz questão de cortar para o plano próximo da reação dada nas nervuras que se movem dos olhos do tenente e surpreendem-se com a mulher enferma. É dado mais um passo rumo ao abismo.

26. 27.

Nota-se a sequência de fatos. Após esse primeiro encontro o tenente abusa das duas garotas de New Jersey, vai até a igreja e se deita, entregue e pesaroso, ao lado da imagem da santa caída no pé do altar; ao acordar, se aproxima lentamente da antessala da igreja onde a freira é interrogada por policiais: esse é o segundo encontro entre ambos [Fig. 28 e 29]. Aqui,

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o ato de olhar limita-se ao protagonista que a observa durante o interrogatório. Sua expressão já é outra: misto de gravidade e assombro diante não só de toda a situação em que se encontra, mas principalmente da superioridade moral, física e espiritual da mulher.

28. 29.

Ainda há um terceiro e um quarto momento de contato entre as duas personagens. Mas o ato de olhar não está mais em jogo. No terceiro, o tenente espreita e ouve uma confissão da freira, escondido, de forma escusa [Fig. 30 e 31]. Novamente um campo/contracampo. O plano próximo da freira revelando conhecer seus agressores contrasta com um plano próximo do tenente, do lado de fora, ouvindo a confissão.

30. 31.

Mais tarde, já perto do fim do filme, o tenente se ajoelha ao lado da mulher em frente ao altar da igreja e, desesperado, pede a ela para ajudá-lo a fazer justiça, entregando o nome dos infratores para que ele possa vingá-la [Fig. 32]. Aqui a encenação define a posição e o embate entre as duas personagens: em um plano conjunto vemos a mulher, ereta e altiva, encarando fixamente o altar, versus um tenente ajoelhado, curvado, completamente perdido psicologicamente e exaurido fisicamente [Fig. 33]. É nesse momento que a ouvimos se dirigindo a ele, confrontando-o: “você acredita em Deus, não?”, “converse com ele” afirma a freira, dando-lhe seu terço e indo embora.

31

32. 33.

Com isso, um movimento que vai de um observador que invade um espaço íntimo e sagrado, de longe, e progressivamente se vê em um abismo existencial e questiona sua fé, entregando-se ao sacrifício em busca de redenção, realizar-se também em cena – de uma troca de olhares inicial a um plano conjunto em que a vítima confronta o vingador e diz que “já perdoou” seus agressores. A esse movimento soma-se uma síntese final em que o tenente vê Jesus na igreja e o confronta primeiro para pedir por ajuda e perdão em seguida, beijando seus pés e chorando [Fig. 34].

34.

Em uma das primeiras sequências do filme (já citada rapidamente neste capítulo), o protagonista entorna uma garrafa de algo (que parece ser vodca), no gargalo, em um quarto de um local (parece ser um hotel barato, uma espécie de “inferninho”). Junto dele vemos duas garotas seminuas se amordaçarem na cama. Logo depois, o tenente dança com uma delas. No final da cena, já bêbado, um Harvey Keitel nu agoniza, meio chorando e meio gritando, de braços abertos. Um crucifixo pende em seu pescoço, junto a seu corpo nu. Das muitas rimas visuais, ou simbologias religiosas, essa talvez seja a mais veemente de todo o filme – essa personificação de um Cristo tombado na figura do tenente. Há também contrastes evidente nos cortes entre o rosto de Zöe Lund e a imagem da virgem Maria, assim

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como há uma aproximação clara entre a virgem Maria e a freira violentada. A sequência do estupro deixa claro posicionando lado a lado o plano da imagem da santa caindo na escada do altar com o rosto da freira caindo no mesmo local [Fig. 37 e 38]. Para além de uma simplificação redutora de simbologias bíblicas e rimas de imagens de caráter religioso, o que podemos retirar de mais proveitoso desse contexto e dessas imagens reforçadas a todo instante por Ferrara é o peso que a fé cristã e a religião católica exercem em seus personagens [Fig. 35 e 36]. Isso é uma constante na obra de Ferrara. Nos deparamos na maioria de seus filmes com imagens religiosas, rituais filmados, crucifixos, orações, enterros, velórios, festividades católicas, e não é diferente em Vício Frenético.

35. O tenente como um cristo torto 36. O tenente e a imagem santa tombados

37. Queda da imagem santa do altar 38. A freira sendo violentada

O que diferencia o filme de 1992 da festividade de San Gennaro filmada em China Girl (1987), do velório em The funeral (1996) ou do enterro em O rei de Nova York (1990), por exemplo, é a centralidade que a questão obtém não somente para a dramaturgia do filme mas também para todas as suas personagens. O percurso do tenente em Vício Frenético é modulado e potencializado pelo peso da religião. De um profissional mau caráter que abusa de sua autoridade e que faz uso contumaz de substâncias ilícitas, passamos a observar um homem que traduz fisicamente a busca pela fé em um mundo sem Deus – daí, talvez, o choque entre registro do real e aparições espirituais ser tão evidente em sua forma.

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A narrativa do filme nos apresenta alguém que desce ao inferno para aceitar que a salvação de sua alma resultará do abandono de seu corpo. Os gemidos e grunhidos de Keitel ao longo de todo o filme, entre outros gestos corporais precisos do trabalho do ator, são apenas uma das manifestações dessa desilusão angustiada e da percepção de que o mundo no qual vivemos talvez reflita apenas sua brutal realidade. Mais uma vez, Ferrara lida aqui com a sacralidade presente em todos os ícones e santos e simbologias. Do cinema moderno o cineasta carrega o desmonte da imagem, sua hipertrofia e desconstrução, deflagrando uma crise no olhar e uma queda profanadora do sagrado já operada por Godard em Eu Vos Saúdo Maria (Je vous salue, Marie, 1985), Pasolini em Teorema (1968) e Salò (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975), e Scorsese em A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988). Do cinema clássico, Ferrara herda a crença na narrativa e na linearidade mítica de suas personagens.

1.3 Jersey Girls e a economia de registro

A já citada cena da masturbação, chamada por Brad Stevens de “Jersey Girls scene”, é o exemplo perfeito do estado de desordem completa no qual se encontra o tenente, de como ele catalisa e externa suas emoções, e também da maneira com que Ferrara posiciona-se frente aos atos de seu protagonista, de como e porque o diretor opta por filmar desta maneira tal cena. Em primeiro lugar devemos localizar a cena no filme. Sua posição é essencial para entendermos não somente a trajetória dramatúrgica e narrativa de Vício Frenético mas também para se notar a razão de ela estar localizada antes e depois deste ou daquele momento. A cena ocorre aos trinta minutos de filme. Já vimos, portanto, a freira sendo violentada, e já nos situamos no cotidiano do protagonista. Ela surge imediatamente após a visita que o tenente faz ao hospital em que a freira está. Em um instante voyeurístico (já analisado neste capítulo), o tenente olha por uma fresta o corpo nu e puro da freira sendo examinado dentro do quarto por médicos, enquanto ouvimos as descrições das lacerações e ferimentos resultantes da violência. Vemos a pureza da freira pela porta, junto do tenente. Ferrara joga com o contraste do ato de ver entre os dois momentos pois imediatamente a seguir, de dentro do carro, o tenente vê as garotas passando por ele em outro veículo. A resposta ao mal causado à freira, à profanação de sua pureza, se dá através desse homem desgovernado, agindo sobre aquilo de que supostamente ele teria alguma jurisdição (garotas dirigindo sem carteira de motorista). O fato de seu ato se concretizar em algo antiético e imoral não está ao alcance de seu próprio julgamento. Para ele, trata-se de canalizar e

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concretizar algo, agir sobre algo que ele considera impuro (as Jersey Girls) em detrimento de externar a indignação com um crime e uma violação à santidade e pureza (a freira). Ferrara, porém, sabe que esse ato é passível de julgamento moral e filma a cena toda de maneira com que espectador se distancie e apenas testemunhe o ocorrido. Após avistar as duas garotas passando por ele e segui-las, o tenente as manda parar em uma esquina pouco movimentada. A cena tem início, então, ao vermos o protagonista saindo de seu veículo e caminhando na noite chuvosa de Nova York em direção ao carro das garotas. Ele mostra o distintivo e alerta as garotas que o farol traseiro está apagado. Elas agradecem, e ele pede a habilitação. Toda a conversa começa a girar em torno do fato das garotas não possuírem carteira de habilitação e estarem com o carro do pai sem autorização. O tenente começa a pressioná-las, pergunta de onde são (de New Jersey), onde estavam (em uma boate chamada “Kit Cat Club”), se usaram drogas e álcool, ao que elas sempre respondem de forma meio constrangida, porém ainda despreocupada, como se estivessem bêbadas. O tenente então começa a forçar a barra, ameaçando levá-las à delegacia e contactar seus pais. Elas começam a demonstrar maior preocupação e pedem que ele as deixe somente com uma notificação. Nós, espectadores, já imaginamos aonde a personagem e Keitel vão levar a situação. Até então, durante o filme, já o vimos fumar crack com um traficante, se embebedar com mulheres nuas em um quarto de hotel barato, fumar heroína no papel alumínio com uma possível traficante ou usuária (Zöe Lund), apostar jogo após jogo nas finais da liga de baseball, tentar roubar um pacote de cocaína numa cena de crime, profanar a igreja desdenhando do estupro da freira. Neste momento, portanto, sabemos que ele é capaz de qualquer coisa ao parar as garotas (menores de idade) de New Jersey, e tememos pelo pior. Há, também, o embate moral interno que começa a acometer o protagonista. Como dissemos acima, ele acabara de ver através de uma fresta de porta o corpo imaculado e violado da freira e ouvir todos os males e ferimentos sofridos por ele. Tanto Ferrara quanto Keitel tem a mais clara noção da importância da cena e dessa situação descrita aqui, e desde o início dela fazem com que o espectador se sinta em um veículo desgovernado, desconfortável, pressionando a cena a uma fronteira limiar da aflição e da imoralidade. “Façam algo por mim que eu faço por vocês em troca”, o tenente diz, aumentando a tensão da cena. Há um caráter de improviso, como há em todo o filme, levando a uma sensação de desamparo ainda maior. Pouco a pouco, como que adentrando cada vez mais um terreno proibido, como uma caçador espreitando sua presa, o tenente avança a fronteira do aceitável. No momento em que ele, após uma pausa, diz: “vocês já chuparam o pau de um homem?”, as garotas de Jersey têm a mais plena certeza de que estão rendidas a uma situação insuportável. A cena muda de tom. As

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garotas mudam a expressão. Daí em diante o tenente ordena uma delas a exibir seu traseiro na janela e a outra a simular sexo oral enquanto ele se masturba em plena rua, até atingir o orgasmo e deixar o local em silêncio. Ferrara quase não decupa a cena, resolvendo tudo em apenas três planos, praticamente em campo/contracampo. No primeiro plano, a câmera mostra o tenente saindo do carro e se dirigindo para a janela do carro das garotas [Fig. 39 e 40], filmando de perto o rosto delas [Fig. 41]. No outro, a câmera filma o tenente, também em plano próximo, enquanto ele conversa com elas na primeira metade da cena [Fig. 42].

39. 40.

41. 42.

Porém, é o terceiro plano que nos interessa mais. É ele que nos permite perceber que o tenente se masturba enquanto as garotas são forçadas por ele a se exibir. Por muito tempo durante o diálogo entre os três ficamos apenas com as reações constrangidas das garotas. Quando a emboscada do tenente já prepara seu abuso, há um corte para um plano conjunto mostrando metade da janela do carro e o tenente de frente, de modo que vemos ele se masturbando de forma mais distante da ação [Fig. 43]. Esse é o plano que encerra a cena. Vale notar que Ferrara não acompanha o tenente ao final. Um reenquadramento sutil nos mantém no carro com a reação das garotas àquilo que se passou [Fig. 44].

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43. 44.

Esse movimento de “abandonar” o tenente, ou melhor, de não acompanhá-lo em determinada ação se repete no final do filme. Na rodoviária Ferrara lança mão do mesmo procedimento. Através de um campo/contracampo de planos próximos entre o tenente e os dois criminosos vemos ele liberá-los, aos prantos, para no final, já ao som de Pledging my love, vê- lo caminhando para longe da câmera, antes de sua morte. Com a capacidade de síntese junto de um direcionamento analítico e distanciado da cena, da moralidade da personagem, Ferrara lança mão de suas ferramentas para dar concretude ao testemunho de uma personagem no limite, como seu tenente, em plena erupção moral, religiosa e de contradição. Ainda com Stevens e sua análise:

[...] é plenamente possível compartilhar o ponto de vista do tenente durante os planos que favorecem as garotas, e o ponto de vista das garotas durante os planos que favorecem o tenente. Mais frequentemente, no entanto, nossa identificação flutua por entre cada um dos (cada vez mais lentos) planos, e pode mudar não somente de espectador para espectador, mas de revisão à revisão [...] esses três pontos de vista – violador, vítima e observador distanciado – são também trazidos à baila durante o estupro da freira. (STEVENS, 2004, p. 161)

A cena do abuso das garotas de New Jersey poderia ser deslocada e analisada à parte como um exemplo do aporte formal e temático de Ferrara em Vício Frenético, uma espécie de metonímia formal no filme. Poderíamos ainda destacar a interpretação dos atores durante a cena como exemplo de improviso e de tensão dramática utilizada por Ferrara e seu elenco durante todo o filme, mas isso deixaremos para o próximo tópico. Cabe salientar também que na cena imediatamente posterior acompanhamos o tenente entrando na igreja pela primeira vez e vendo a profanação realizada em local sagrado. Ele caminha pelo local, observa as pichações e imagens de santos caídos e quebrados, se deita ao lado da imagem da Virgem Maria no pé do altar e dorme no local. Estamos, também, no campo das simbologias e a imagem de Keitel se deitando ao lado da santa marca a percepção da personagem acerca dessa violência à igreja, à santa e a sua religião. Aos poucos o tenente

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absorve todo esse mal-estar e essa violência, canalizando-os para os questionamentos, a dúvida angustiada e a busca por cristo e pela fé. *** O improviso sempre foi algo caro a Ferrara, mesmo em seus trabalhos mais “controlados” e estilizados. Não devemos, porém, confundir improviso com falta de rigor. Assim como para uma de suas maiores influências, John Cassavetes, o rigor da encenação é primordial ao nos debruçarmos sobre seu trabalho. A atenção especial e particular ao momento da filmagem é evidente, tendo ele realizado mais de um filme sobre isso – pensamos em Maria (2005), Blackout (1996) e sobretudo em Olhos de serpente (1993). Ferrara é um daqueles cineastas que confere à filmagem de um plano precisão e cuidado extremos, como Cassavetes, Jacques Rivette e outros que ele admira. Como lembrou Nicole Brenez, “Ferrara frequentemente expressou sua admiração pelo trabalho minucioso de John Cassavetes, Rainer Werner Fassbinder e Pier Paolo Pasolini. Diversos princípios unem as respectivas obras desses quatro cineastas.” (BRENEZ, 2006, pp. 11) Para Ferrara, o conceito de improvisação é algo que o liga diretamente com sua base, “uma grande matéria-prima, um grande roteiro, pra começar. E a partir daí é muito difícil dizer quando começa e quando termina [...] cada cena é, em algum sentido, uma improvisação.” (FERRARA, 1993) O rei de Nova York tem uma cena que simboliza muito bem a situação de Ferrara a respeito do rigor na improvisação. Frank White acabara de sair da prisão e vai se reencontrar com sua gangue após anos encarcerado. O espectador não possui muitas informações e o engessamento das falas e a seriedade com a qual ambos os lados se colocam faz parecer que há alguma tensão ou relação mal resolvida entre as personagens. O parceiro de White interpretado por Laurence Fishburne toma a frente do grupo, e White, parado, encara a todos. Fishburne amassa o copo em que bebia cerveja. Repentinamente White começa a rir e então percebemos que tudo não passava de uma brincadeira do grupo, coreografia em que todos terminam dançando e cantando. Todos se abraçam, mas a cena não termina. White se distancia e começa a dançar freneticamente, enquanto seu grupo observa rindo e o acompanhando. Não sabemos quanto da cena é puro improviso de Christopher Walken, Fishburne, Esposito, e o resto do elenco, e quanto da cena estava prevista no roteiro ou tinha sido pré acordada antes entre Ferrara e os atores. E não importa o quanto saibamos a esse respeito. O que fica impresso na tela, porém, é a plena noção de um cineasta encontrando sua voz. Alguém que vagarosamente se desprende das amarras cênicas e engessamentos maneiristas aprendidos

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em suas influências mais vigorosas, e vai dando lugar ao incerto, ao improviso, à entonação inesperada que possa surgir por algum ator em algum momento da cena, uma precipitação que pode levá-la para uma outra direção – o importante é atentarmos para o fato do cineasta embarcar nessa estrada da incerteza e do improviso. O rigor com o qual Ferrara encena atesta um improviso que não deve ser confundido com falta de consistência. O rei de Nova York talvez seja um primeiro aceno do cineasta em sua carreira para esse tipo de movimento. Claro que a imediata identificação, a simbiose entre o ator Christopher Walken e o diretor Abel Ferrara provavelmente ajudaram muito para que caminhassem na mesma direção. Confiança e comprometimento mútuo entre direção e elenco é primordial para o tipo de cinema que deseja Ferrara. Isto vale para sua relação com Harvey Keitel, Mathew Modine, Willem Dafoe e outros colaboradores frequentes. Vício Frenético radicaliza e coroa essa maneira de filmar iniciada por Ferrara de forma mais aguda no filme anterior, e aqui cabe voltarmos à afirmação acerca do realismo e do documentário feita neste trabalho em tópicos anteriores. Nos momentos mais crus e duros do filme não sabemos se estamos vendo uma ficção sobre aquele tenente do título ou um documento de uma descida ao inferno de um ator em Nova York. Há uma sensação de precipitação, de ebulição, como se de repente a realidade pudesse irromper como uma avalanche levando a tudo frente à câmera. E é isso mesmo o que ocorre. Além de sabermos que quase todas as cenas foram rodadas sem autorização legal para que se filmassem no local – o que leva o filme a uma direção mais crua, direta e documental –, está impresso nas cenas o caráter de improviso. Diversos planos filmados em locação pública possuem transeuntes olhando para a câmera, por exemplo:

Ferrara distancia deliberadamente seus últimos filmes das confortáveis convenções do mainstream. O uso extenso de câmera na mão e numerosas sequencias editadas esparsamente criam uma qualidade documental reminiscente do banido debut do diretor (The driller killer). (KERMODE, 1993)

Em entrevistas para os extras de edições especiais de lançamento do DVD do filme, Ferrara e seus produtores afirmaram, entre muitas coisas que o roteiro de Lund era muito curto e deixava espaço para improvisações. Segundo a supervisora de roteiro Karen Kelsall, Ferrara usava o roteiro prévio como um meio para conseguir dinheiro para realizar o filme, então mudava-o constantemente durante as filmagens. Há também um fato decisivo para o produto final que vemos em tela: Christopher Walken devia ser o protagonista, mas Harvey Keitel o substituiu às vésperas da produção, o que levou o filme de uma comédia nonsense ao que

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conhecemos hoje: “Walken é elegante demais para o papel. Harvey não é elegante” (REDMAN, 2017). O resultado de todos esses fatores aliados à propensão de Ferrara ao desafio de se realizar cada cena como se não houvesse roteiro prévio ou alguma indicação muito precisa e engessada, é o que vemos em tela em cenas como as do uso de heroína por Keitel e Lund, os gritos desesperados do tenente no carro ouvindo o jogo ou na igreja frente à Jesus Cristo, a masturbação diante das garotas de New Jersey na blitz armada pelo tenente, em pequenos movimentos do ator Harvey Keitel em sua construção desse homem perdido e agônico: a maneira com que Keitel penteia o cabelo enquanto espera ansiosamente Lund preparar a seringa com a droga, o movimento curvado com que ele se esconde nas sombras da escada do prédio de um traficante ao perceber uma criança correndo no local meio à paranoia, o diálogo no carro entre o tenente e os dois estupradores, o diálogo entre o tenente e a imagem de Jesus Cristo que vemos na igreja ou até mesmo a cena em que o tenente conversa ao telefone diretamente com seu apostador e aposta 120 mil no último jogo ao mesmo tempo em que marca sua morte no ponto de encontro definido do outro lado da linha. Há, sobretudo, a consonância de objetivos entre diretor e ator. Keitel carrega sobre os ombros o peso que carrega o tenente, e faz de seu corpo algo ainda mais grotesco e mal arranjado, faz de sua figura ainda mais repulsiva, destacando todos os seus traços mais grosseiros, faz de sua presença em cena a própria personificação do desmembramento espiritual de que sofre sua personagem – perguntamo-nos onde se separa ficção da realidade e a notícia de que Lund morreu de insuficiência cardíaca devido ao constante uso de drogas encurta ainda mais essa fronteira entre o que é filmado e o que é o real. Ferrara se utiliza disso e tira proveito não movendo sua câmera, não cortando muito as cenas, trazendo para a própria imagem o decalque mais puro possível daquela realidade crua.

1.4 “Vampiros tem sorte. Se alimentam dos outros”

A cena dura em torno de cinco minutos, mas o plano que permanece por mais tempo em tela beira o insuportável. Ferrara a abre com um plano próximo de uma agulha enfiada no braço de Zöe Lund. Corta para o rosto do tenente que a observa tenso e inquieto. Voltamos a Lund, a seu braço e à agulha cheia de heroína misturada em sangue, e um corte nos leva a um plano próximo de seu rosto. Vemos sua reação ao efeito da droga. Um corte denuncia uma breve elipse. Lund e Keitel trocam olhares. Estamos de volta àquele apartamento do início do filme, em que vimos ambos fumarem a droga no papel alumínio.

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O tenente já revela, na simples maneira de se assentar, o seu estado de derrota, perante o vício, as apostas perdidas, o estupro da freira e a sua fé. A cena ocorre exatamente após o tenso embate telefônico entre o tenente e seu agente de apostas, e precede a visão de Cristo na igreja. O protagonista está, finalmente, no fundo do poço. Após as trocas de olhar entre Lund e Keitel, enquanto a vemos preparar a seringa, voltamos ao plano dele sentado, curvado, esperando a injeção de heroína [Fig. 45]. Este plano vai até o fim da cena. Sem cortes, veremos a injeção e a reação do tenente ao efeito da droga em seu corpo, ao som do monólogo de Lund.

45.

“Vampiros tem sorte, se alimentam dos outros. Nós temos que nos consumir. Consumir as pernas para ter energia e andar. Temos que vir, para poder ir. Temos que sugar-nos até o fundo. Temos que consumir nossas almas até que nada reste senão o próprio apetite. E dar, dar, dar... Loucura, já que nada faz sentido mesmo. Jesus disse tantas vezes. Ninguém nunca entenderá o porquê, porque o fazemos. Amanhã já o terão esquecido.” Para além da óbvia imagem do vampiro, ou da simbologia do vampirismo24, muito presente na obra inteira de Ferrara, algumas coisas muito importantes devem ser apontadas sobre esta cena:

Nicodemo Oliverio se lembra que The Addiction “começou como um conceito, o qual vampirismo é uma metáfora para o mal que se espreita em todos nós e somente deve ser despertado [...] vampirismo é somente um símbolo. Por baixo, esse filme está falando sobre o mal incorporado em cada indivíduo. Deve ter uma razão pela qual nós fazemos coisas assim. Nós podemos falar sobre a Segunda Guerra Mundial. Podemos falar sobre a Turquia e o massacre dos armênios. Podemos falar sobre o Vietnam. Podemos falar sobre a Iugoslávia hoje e o que está acontecendo lá. Deve ter algo no âmago das pessoas para elas fazerem aquilo tudo. A imagem do vampiro parece perfeita, pois tem algo que não parece querer ir embora.” (STEVENS, 2004, pp. 207- 208)

24 Ver MCDONAGH, Maitland, “The Addiction of evil”, Fangoria 147, Outubro, 1995, pp. 15-16. Citado em: STEVENS, Brad. Abel Ferrara: The Moral Vision. London: FAB press, 2004. 41

Durante quase todo o solilóquio de Lund, Ferrara enquadra o tenente caído, já entorpecido pelo efeito da heroína, fora de si [Fig. 46]. Quando, ao final, ela cita Jesus, Ferrara corta para a imagem de Cristo na cruz, e o órgão litúrgico invade de novo a banda sonora [Fig. 47]. Pregado na cruz, Cristo não grita nem agoniza mais. Em contraponto com o tenente caído, ele dá seu último suspiro antes da morte. Um novo corte nos leva a mosaicos que parecem pertencer à igreja onde a freira foi estuprada. Outro corte nos leva à mão da própria freira junto ao chão segurando um crucifixo. Vemos então, em plano mais geral, seu corpo todo no chão da igreja, como que realizando uma prece. Um novo corte nos mostra em plano próximo Cristo na cruz, agora na imagem esculpida do altar da igreja. Um último corte, e uma longa elipse, encerram a cena e nos levam ao carro do tenente.

46. 47.

Nota-se que o discurso de Lund em off se encerra junto do final do plano da imagem de Cristo, e é substituído pelo radialista que entra em cena junto do tenente em seu carro ouvindo o último jogo de baseball: ouvimos, junto do tenente, o jogo se encaminhando para um resultado desfavorável à sua aposta final. O órgão litúrgico continua até a cena seguinte do embate tenente/freira/imagem de Cristo na igreja. Lund, aqui, se torna uma espécie de comensal da morte, um anjo negro, figura fantasmática e surreal que orbita os entornos do protagonista e do filme como uma moldura premonitória [Fig. 48]. Durante seu monólogo não estamos mais no campo das concretudes ontológicas do real apenas, mas é um momento no filme em que há uma síntese final entre a realidade crua e registro documental do qual lança mão Ferrara para representar os últimos dias desse tenente perdido espiritualmente, e a estilizada representação espiritual dada à presença da religião e da profanação da fé católica – não à toa a sequência imediatamente posterior à heroína no infernal apartamento de Lund ser o encontro final entre o tenente e a freira, dentro da igreja, ajoelhados frente ao altar e seguida da visão de cristo através do policial. O efeito desesperador

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da agonia do tenente de joelhos perante um Cristo ressuscitado e impassível é decorrência direta do fundo do poço frente à aura negra de Lund.

48. Zöe Lund em Vício Frenético

A tradução dessa questão profunda, espiritual e metafísica, vivida pelo protagonista, além do monólogo quimérico de Lund e das imagens quase surreais de Cristo na cruz, é traduzida também por Ferrara da maneira mais brutal e documental possível: um plano sequência em que vemos toda a operação de injeção de heroína nas veias do tenente, de sua expressão ansiosa e tensa enquanto vê Lund preparando a droga, passando pelo cordão que se amarra no braço, pela agulha que é inserida puxando sangue e injetando a droga, à reação mórbida e solitária àquela substancia.

1.5 Aceno à Nova Hollywood: iconografia e ressignificação

Sabemos que Ferrara é um cinéfilo radical. Em seu panteão pessoal orbitam cinema clássico, moderno e experimental, cineastas como Polanski, Pasolini, Godard, Cassavetes, Scorsese, Stan Brakhage e Michael Snow. Sabemos também que ele surge com um herdeiro da tradição do cinema americano, sobretudo o da década de 60 e 70, e daquele que se convencionou chamar de Nova Hollywood. Praticamente todo o cinema americano dos anos 70, porém (e isso parece unir todos os seus cineastas), é realizado por diretores cujo imaginário carrega a memória da história do cinema. Um cinema clássico pesa sobre seus ombros a cada plano, atravessado pelo cinema moderno europeu, pela Nouvelle Vague e pelos cinemas novos também. O resultado é um conjunto de filmes que patenteiam uma constante revisita a códigos e procedimentos. Enquanto Michael Cimino, John Milius e Clint Eastwood estarão mais próximos de John Ford e D. W.

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Griffith, lidando com os mitos fundadores da nação na linhagem do cinema clássico, Brian De Palma voltará a Hitchcock, Peckinpah e Hellman ao western, por exemplo. Ferrara chega ainda depois dessa geração (seu primeiro longa-metragem é de 1979), dialogando com quase todo o cinema de seu universo de cinefilia. Em Vício Frenético percebe- se uma clara filiação ao cinema do jovem Scorsese, a Paul Schrader e a Friedkin. A referência é cristalina e Ferrara quer dialogar com certo imaginário, fazendo uso deliberado de uma gama de imagens e motivos que pertencem a uma iconografia de cinema hollywoodiano dos anos 70. Exploremos, portanto, tal diálogo, cotejando o filme aqui analisado com Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1973), dirigido por Scorsese. Não cabe aqui detalhar o cinema da Nova Hollywood. A este respeito, o livro importante do crítico canadense Robin Wood25 nos servirá de baliza, assim como os trabalhos do crítico francês Jean-Baptiste Thoret. Cabe, porém, exemplificarmos e lidarmos com imaginários muito marcados na história recente do cinema mundial, e muito presentes no entorno de Ferrara. Quais imaginários? O da cidade de Nova York, ou do submundo urbano, é um deles: não só no citado filme de 1973, mas também em Taxi Driver (1976, de Scorsese), Operação França (French Connection, 1971, de William Friedkin), Hardcore - no submundo do sexo (Hardcore, 1979, de Paul Schrader), Parceiros da noite (Cruising, 1980, de William Friedkin). Existe, portanto, naqueles filmes, uma sensação de derrota, de jornada fraturada, de fracasso retumbante: a narrativa é abruptamente corrompida. Caminhos perigosos se inscreve diretamente nesta narrativa quebradiça e atravessada pelo contexto da época. Filme de juventude de Scorsese, ele irrompe como uma espécie de exorcismo dos demônios interiores daquele jovem ítalo americano perturbado de Nova York, ao mesmo tempo em que propõe um verdadeiro painel acerca da vida no Little Italy (bairro nova iorquino típico de imigrantes italianos) sob os olhos de jovens rapazes (Harvey Keitel e Robert De Niro principalmente) envolvidos com mercadorias ilegais, apostas e gangsterismo. Ferrara se inspirava em Scorsese26. Para antecipar um olhar mais crítico e comparativo entre os filmes há inúmeras citações diretas de Vício Frenético a Caminhos Perigosos e a um imaginário, uma iconografia de certo cinema norte-americano dos anos 70, presente em Taxi Driver, Hardcore, e outros filmes já citados, que não são nada casuais ou involuntárias. Ferrara sabe muito bem com o que está lidando ao filmar Harvey Keitel em Nova York daquela

25 WOOD, Robin. Hollywood from Vietnam to Reagan... and beyond. New York: Columbia Univ. Press, 2003. 26 Ver Cahiers du Cinéma nº500, 1996: “Marty [Scorsese] é minha inspiração. Mas, de fato, como escolher? Jean Vigo e não Joseph Losey? Ingmar Bergman e não Michael Snow? O cinema é como o ar, ele está lá e pronto!” (FERRARA, 1996) 44

maneira. Interessante notar, também, como ele subverte o próprio imaginário do qual retira sua matriz temática para o filme de 1992. Dentre as semelhanças mais evidentes entre os dois filmes, lembremos a presença de vários elementos comuns, como atores (Harvey Keitel é protagonista27 e atua em ambos28), músicas (Pledging my love toca em ambos), imagens católicas (utilizadas à exaustão em ambos), narrativa tortuosa envolvendo alguém com dívida de apostas (Johnny Boy, personagem de De Niro, deve à Mike em Caminhos Perigosos), desfechos com morte violenta dos protagonistas endividados. Há ainda vários outros filmes que inspiraram Ferrara ou que ele cita em Vício Frenético. Nick Johnstone discute em seu livro essa ampla gama de influências e referências, tomando o filme de 1992 como “um dos cinco filmes que questionam a existência de Deus tensionando a linha entre o sagrado e o profano” (JOHNSTONE, 1999, p. 124-125). Os outros quatro são Teorema e Saló, de Pier Paolo Pasolini, Je vous salue Marie, de Jean-Luc Godard, e O diabo, provavelmente, de Robert Bresson. Após essa lista dos cinco filmes, Johnstone afirma que “além das óbvias influências de Pasolini e Godard, Vício Frenético também desenvolve diversas citações a Caminhos Perigosos, de Martin Scorsese.” (Ibid., p. 127). Nosso objetivo, aqui, é compreender como ocorre o deslocamento de certa iconografia cinefílica em Ferrara. Como ele, conscientemente, recorre a aparentes citações literais de filmes conhecidos para reinterpretá-los, como se não contente por ter chegado ainda mais tarde do que aqueles cinéfilos da Nova Hollywood, ele voltasse aos filmes e mergulhasse de novo na interpretação da imagem cinematográfica – como haviam feito De Palma, Scorsese, Cimino e Friedkin naqueles anos. No mais, o que poderiam significar essas reinserções e refilmagens de ícones da cultura cinematográfica recente, para além da mera citação? Certamente a consciência formal de um diretor com uma década de bagagem, chegado a uma primeira maturidade (a segunda se dará em Blackout, como veremos no capítulo seguinte). Suas estilizações formais de até então darão lugar à secura e à contenção, e o símbolo máximo disso é o uso que ele faz dos filmes de Scorsese e outros cineastas presentes em sua órbita referencial. A intensidade é a mesma, mas parece que em 1992 Ferrara, já seguro e decidido ao realizar Vício Frenético, se permite lançar mão das referências para decalcar seu statement. Havia ali, notavelmente, um ponto de inflexão, uma evolução de estilo, não somente

27 Ele também está presente em Taxi Driver, em um papel secundário do cafetão Sport. Em Caminhos perigosos interpreta Charlie. 28 Interpretando um chefe mafioso em 1973 e um dos parceiros policiais em 1992. 45

de uma figura mas de um cinema, que adentraria os anos 90 personificado no envelhecimento e no embrutecimento do rosto de seu protagonista Harvey Keitel. Se em Scorsese a música “Pledging my Love” é usada ironicamente em uma cena de crítica à guerra do Vietnã onde um ex combatente de guerra surta no meio de um encontro amigável no bar [Fig. 49], em Vício Frenético ela vem de encontro a um tenente vazio espiritualmente, como se aquele Charlie de 1973 vivido por Keitel, cheio de vitalidade e fé, definhasse rumo a um ambiente varrido de qualquer chama de vida. Se, segundo Robin Wood, a dança macabra entre Sport e Iris em Taxi Driver [Fig. 50] ressignificava a captura de Debbie por Scar em Rastros de ódio e refilmava uma cena “excluída” do filme de John Ford em 1976 já num contexto de desilusão e de mal estar na sociedade americana, a dança entre o tenente e as mulheres seminuas regada de álcool e drogas em 1992 é a própria terra arrasada [Fig. 51]. Não há desilusão social a ser filmada pois não há resquícios mais de nada; a badtrip do tenente é espiritual, em âmbito particular, e sua forma no filme expõe mais um esvaziamento do que um tributo.

49. Harvey Keitel em Mean Streets (1973) 50. Harvey Keitel em Taxi Driver (1976)

51. Harvey Keitel em Bad Lieutenant (1992)

Há de se notar que estamos cotejando um filme de juventude com um filme de maturidade. Caminhos perigosos é o terceiro longa-metragem oficial de Scorsese. Vício Frenético, apesar de ser apenas o sétimo longa oficial realizado para o cinema por Ferrara, é

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um filme que ele fez após 13 anos trabalhando no ramo e realizando curtas, telefilmes e longas. Por esse prisma, talvez fosse mais justo comparar Vício Frenético com um filme como Os bons companheiros (Goodfellas, 1990, de Scorsese), ou tomar Caminhos perigosos como comparante de O assassino da furadeira ou Sedução e vingança. A dívida, porém, assim como as inúmeras citações diretas do filme de 1992 ao de 1973, são tão fortes que neutralizam aquela ressalva ao nosso exercício comparativo. Quando pretendemos retomar imagens iconográficas ou ressignificar certos planos muito marcados no imaginário cinéfilo norte-americano, de quais imagens e filmes estamos falando especificamente? Dos já citados acima, das ruas de Nova York vista de baixo, de seus bueiros soltando fumaça em Taxi Driver, da procissão de San Gennaro no Little Italy em Caminhos Perigosos, dos cafetões e prostitutas nos bairros menos abastados da metrópole [Fig. 52 e 53], da truculência policial de Popeye Doyle em Operação França, de Robert De Niro e Harvey Keitel nos primeiros filmes de Scorsese. É com esse imaginário que estamos lidando ao tratar de Vício Frenético [Fig. 54].

52. Caminhos Perigosos (1973) 53. Taxi Driver (1976)

54. Vício Frenético (1992)

Se alguns traços deste imaginário despontam nos primeiros filmes de Ferrara, se percebemos uma erupção criativa e cinéfila da juventude do cineasta em filmes como O assassino da furadeira, Sedução e vingança ou ainda nos curtas Could this be love (1973) e

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The hold Up (1972), em uma mistura de Andy Warhol e Kenneth Anger com Cassavetes e William Friedkin, retratando ora o mundo underground artístico da grande metrópole (no filmes de 1979 ou de 1973), ora experimentando com a imagem (no filmes de 1972), é porém em Vício Frenético que seu referencial fica mais evidente. É através da forma fílmica que nos guiaremos em nossa comparação, pois é através dela que se evidenciará as semelhanças, diferenças, reinterpretações e citações.

1.6 Mean Streets e Bad Lieutenant: contraste formal

Algo que salta aos olhos, em uma primeira revisão, ao se colocar os filmes lado a lado, é o contraste formal entre o Ferrara de 1992 e o Scorsese de vinte anos antes. Enquanto falávamos em uma crueza de registro, prevalecendo o documentário nas cenas guiadas pela figura do tenente em Vício Frenético, ao tratarmos de Caminhos Perigosos precisaremos comentar a extrema estilização. Há cenas em que Scorsese está mais interessado em atingir uma atmosfera protovideoclíptica, em que a combinação entre estilo (movimento de câmera, textura da imagem, enquadramentos) e música ganha primeiro plano. Letreiros surgem em tela no início do filme para apresentar o grupo protagonista. Em geral, há uma leveza jovem no filme de Scorsese, um verniz pop sobre um assunto pesado – algo que se forçarmos um pouco a barra poderíamos em última análise chegar aos filmes de Tarantino do início dos anos 90, a Wes Anderson, a Guy Ritchie – e que em Taxi Driver, por exemplo, já não existe mais. A religião, questão central para o filme de Scorsese, também é apresentada em seu filme sob esse aporte intricado de estilo. A apresentação de Charlie (protagonista interpretado por Harvey Keitel) no filme, após um breve prólogo e os créditos iniciais, é inteiramente construída frente um aparato complexo montado dentro de uma igreja. Um longo travelling acompanha Keitel que anda na direção do altar. Tudo na cena é imponente, a igreja é grandiosa, a magnitude da religião se impondo sobre o jovem Keitel também, assim como a decupagem de Scorsese. A cena possui dois momentos. No primeiro, o protagonista chega no pé do altar e se ajoelha [Fig. 55]. Scorsese usa um campo/contracampo: um contra-plongée em que vemos o altar grandioso ao fundo, e um plongée em que vemos Charlie ajoelhado de frente [Fig. 56]. Ainda há o corte do jovem olhando para o púlpito para um plano próximo da própria imagem de Jesus Cristo na igreja.

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55. 56.

Em um segundo momento, Charlie está ajoelhado diante de uma escultura da Virgem Maria com Jesus morto em seu colo (remetendo à Pietá de Michelangelo) [Fig. 57 e 58]. A decupagem aqui é complexa. De um zoom-out da escultura a câmera realiza um complicado movimento, um travelling com correção panorâmica em que vamos do rosto de Keitel em plano próximo para um plano conjunto de seu corpo ajoelhado na frente da estátua. Durante toda a cena na igreja ouvimos em off um diálogo em que Keitel fala sobre pecados, danação e a dor espiritual da eternidade no inferno.

57. 58.

Corte para o bar em que eles se reúnem: nova música ao fundo, nova sequência protovideoclíptica. Até engatar a ação central, que envolve o grupo no bar, outra sequência mostra a chegada de Johnny Boy (De Niro), em câmera lenta, ao som de Rolling Stones. Scorsese estica as cenas, menos em busca de um propósito narrativo e mais como um efeito, um arrebatamento de cultura pop hipertrofiado. Há um primeiro bloco, na igreja, com duas cenas longas de apresentação de Charlie e sua relação com a religião, e um segundo bloco já no bar em um ambiente mais descolado, de festa e confraternização. Scorsese passeia com sua câmera colada nos ombros de Charlie enquanto ele dança pelo bar e cumprimenta a todos. Parece haver uma preparação que se estende por quase um terço do filme, uma preparação do

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estabelecimento das personagens e de suas relações, e isso talvez esteja ligado com o retrato do bairro Little Italy desejado por Scorsese, o painel do qual falávamos antes. Voltemos a Vício Frenético e lembremos da apresentação do tenente, de sua relação com a religião e do entorno do personagem. Não há preparação alguma para nada. Do rosto de Lund vamos à imagem da santa em meio ao estupro da freira. Em poucos segundos de filme estamos dentro do carro do protagonista, deixando seus filhos pequenos na escola e inadvertidamente cheirando cocaína no mesmo local. A apreensão daquele trem descarrilhado que é Keitel em Vício Frenético é realizada a fórceps pelo espectador, que cena a cena é jogado contra a parede e aos poucos vai digerindo as situações que parecem não se amainar jamais. Há pouquíssimos movimentos de câmera no filme (travellings, panorâmicas, zoom), mesmo quando a câmera vai ao ombro ela limita-se a filmar os personagens que andam por determinado local. Há cortes que denotam muito mais um choque do que uma continuidade estetizante ou uma decupagem cirurgicamente estabelecida (lembremos das trocas de olhares entre tenente e freira, ou da cena com as garotas de New Jersey). Há um evidente contraste também entre o ator Harvey Keitel nos dois filmes. No primeiro, um jovem cheio de vitalidade, de expressão quase inocente no rosto; no outro, um homem de meia idade amargo, cujo corpo curvado e cheio de rugas marca a personagem da qual Ferrara retira sua força motriz [Fig. 59 e 60]. A empatia no filme de Scorsese se concentra na figura de Keitel – espécie de voz da razão do grupo, protagonista mais centrado, cujo caminho, fora das gangues menores, rumo à máfia, se pavimenta. Um dos ruídos do filme de Ferrara é a pouca empatia suscitada em nós pelo tenente, aflitivo em sua figura de homem rendido e destruído.

59. Caminhos Perigosos (1973) 60. Vício Frenético (1992)

Já discorremos sobre a cena final do filme de Ferrara, mas não há melhor exemplo para nosso cotejo formal do que os finais de ambos os filmes. Vale nos debruçarmos novamente

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sobre a cena, agora colocando-a lado a lado com o também violento encerramento de Caminhos Perigosos. Muito além do que simplesmente atestarmos o óbvio – o acerto de contas sobre dívidas em ambos os casos – precisamos pensar em como as cenas se encaixam no resto do filme e qual efeito de existirem da forma que existem, o porquê dos cineastas optarem por encerrar seu filme dessa forma. Vício Frenético parece ir além e, novamente, revela um cineasta em plena forma, seguro de suas ideias, de suas ferramentas e de seus objetivos. Mais do que uma descida ao inferno, o tenente busca salvação da danação da qual passara pelos 100 minutos de projeção. A cena final se limita a um plano, e é um acerto de contas espiritual de Ferrara filmado da maneira mais direta e sintética possível. Distanciada também, pois já descemos ao inferno junto dele, já passamos pelas chamas que o queimavam e ardiam enquanto ainda havia dúvidas sobre sua fé; agora, uma vez entregue à redenção e à morte do corpo, não temos o que ver senão um corpo que não possui mais função terrena, de longe, prestes à elevação metafísica, ao passo que “quando o filme termina nós também nos questionamos sobre como ele pôde perdoar os estupradores e se sacrificar para salvá-los. O filme é um ensaio sobre as complexidades da fé cristã.” (JOHNSTONE, p. 144) O final de Caminhos Perigosos vai numa direção oposta ao final de Vício Frenético, pois ruma à catarse. Extremamente decupado e com montagem veloz, dá vazão à estética pop e videoclíptica da qual falávamos antes e encerra o painel de Little Italy (imagens de Nova York com uma música ao fundo, janelas do bairro se fechando) à maneira Scorsese de forma violenta, matando a personagem de Robert De Niro. Momentos antes, após inúmeras cobranças, Johnny Boy aponta uma arma para seu credor Mike e ambos têm um pequeno embate no bar. Charlie decide levar o garoto embora por um tempo até que as coisas se acalmem. Toda a sequência se dá no carro em que se encontram Charlie, sua prima (e amante) Teresa e Johnny Boy. Um carro encosta ao lado, Mike está dirigindo. Do banco de trás um homem (interpretado pelo próprio Scorsese) aponta uma arma e atira algumas vezes. Johnny Boy é atingido no pescoço. A cena segue em um plano próximo de seu rosto para fora da janela do carro, gritando e jorrando sangue. O carro bate, Teresa é levada ferida em uma ambulância, Charlie se ajoelha atordoado na sarjeta ao lado do carro acidentado, Johnny Boy sai cambaleando e cai morto. Se em Vício Frenético a contenção formal contrastava com o desespero latente de seu protagonista e com algumas cenas muito estilizadas (o estupro da freira, Cristo na cruz), criando um ruído, uma fratura que unia espirito, fé e definhamento físico, em Caminhos Perigosos a estilização une-se ao exagero da atuação e das personagens, (como na cena de De Niro gritando

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com a cabeça ensanguentada pendurada no vidro do carro), dando lugar à catarse: o exagero é deliberado, o sangue jorra pelo rosto do ator deixando-o vermelho e a música torna tudo ainda mais delirante [Fig. 61 e 62].

61. 62.

Seria possível ainda analisar Vício Frenético partindo da tradição do filme policial (desde o noir até suas reinterpretações durante e após a Nova Hollywood), por exemplo, e seu diálogo com filmes de Don Siegel a Arthur Penn. Utilizamos aqui apenas um recorte, o que não encerra a análise e a interpretação de um filme como Vício Frenético. Está mais do que claro, porém, que Ferrara possuía um ponto de vista, uma visão de cinema, que teve como um primeiro ápice formal e criativo o filme aqui analisado. Além do filme de Scorsese, que se concentra nas gangues no Little Italy, poderíamos trazer uma miríade de bons exemplos de filmes policiais, de Don Siegel a William Friedkin, passando por Clint Eastwood. Através deles também seria possível entender o escoamento do gênero em um esvaziamento sintético que desemboca no filme de Ferrara, inserindo-o em um lugar de incerteza, de indeterminação de códigos. Tudo está muito claro. O policial, o gangsterismo, o crime, o universo do submundo, a escatologia e a violência. Porém, tudo isso que dá forma ao gênero e que delineia uma herança e uma continuidade é relegado a uma camada profunda e quase silenciosa dentro de Vício Frenético. Sua casca é aquilo que Ferrara nos expõe passivamente, com um raro contraste entre a crueza e a euforia. Poderíamos trazer à baila um filme pouco comentado como Os Novos Centuriões (The New Centurions, 1972, de Richard Fleischer). Filme policial duríssimo, que alterna muito bem registros líricos e míticos de um George C. Scott psicologicamente acabado, prestes a cometer suicídio após ver um pôr do sol na sua varanda [Fig. 63], com imagens documentais como a abertura: espécie de montagem frenética de cinema experimental estrutural, ditada pelo ritmo do treinamento dos policiais na academia. Apenas a mais flagrante

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imagem do moedor de carne em que eles estão destinados a adentrar sem alguma salvação ou redenção. A dupla de protagonistas do filme de Fleischer é apenas a representação fílmica de um fatalismo trágico no mundo em que estão inseridos. Fadados a viver sozinhos, sem companhia, sem família, dedicando seus dias à vida na polícia, o que resta para ambos não é muito diferente daquilo que restaria para a personagem de Harvey Keitel vinte anos mais tarde. Se o personagem de George C. Scott se suicida, e o de Stacy Keach encerra o filme em um fiapo de vida que resta após ser baleado pela segunda vez no estômago [Fig. 64]29, o tenente de Keitel sintetiza a dupla de Os Novos Centuriões e em um só movimento se entrega para a morte via assassinato em uma cartada consciente e suicida. Entrega-se, portanto, ao mesmo moedor de carne implacável e fatalista do universo filmado por Fleischer. Agora, porém, não há fiapo de vida filmado pela câmera, nem colegas para ampará-lo. O tenente de Keitel está completamente só. Vemo-lo morrer de longe, em meio aos novaiorquinos e ao cotidiano rotineiro da metrópole [Fig. 65].

63. 64.

65.

29 A primeira vez que ele é baleado vemos, em uma rápida panorâmica enquanto agoniza na rua, partes de seu estomago e entranhas sendo segurados por ele mesmo, querendo sair de seu corpo aberto pela espingarda 53

Capítulo II. The Blackout, 1997

2.1 O filme

The Blackout30 (1997), ao mesmo tempo em que marca um redirecionamento estético na filmografia de Ferrara é também uma espécie de retomada de temas e motivos constantemente trabalhados por ele ao longo de quase duas décadas. Se olhamos para o filme com o devido distanciamento temporal e conseguimos enxergar nele o anúncio de New Rose Hotel, de Gangues do Gueto, de Maria, conseguimos também enxergar nele uma derrocada semelhante de seu protagonista com o policial de Vício Frenético, a discussão metalinguística de Olhos de serpente e a reflexão constante sobre a própria imagem cinematográfica em crise. A grande mudança aqui é a ausência de uma referência histórica muito concreta. Não estamos diante da exploração de um gênero cinematográfico bem cimentado. Não há um diapasão que nos assegure, um imaginário, alguma citação formal mais explícita, como havia antes. Há um óbvio diálogo com Um corpo que cai (Vertigo, 1958, de Hitchcock)31, como veremos, assim como alusões a seus próprios filmes. A forma como Ferrara realiza esse filme, porém, assim como seu acabamento estilístico final, é completamente nova em sua carreira. A partir de The Blackout, Ferrara parece a cada filme se direcionar a um território da abstração, da fluidez do plano, da desconstrução da imagem, cuja fragilidade se evidencia. Vício frenético poderia ser citado aqui, tematicamente em alguns aspectos, como um filme irmão de Blackout. Ambos tratam de protagonistas viciados em entorpecentes – no filme de 1992 um policial mau caráter viciado em drogas (crack, cocaína, heroína, etc.), no filme de 1997 um famoso ator alcoólatra de Hollywood. Ambos se direcionam ao longo do filme para o fundo do poço em uma espiral infernal e agônica. Ambos, à sua maneira, se entregam à morte no final, numa espécie de auto sacrifício. Existem muitas diferenças também. Talvez a maior delas seja a maneira como Ferrara opta por nos mostrar o definhamento moral e físico de seus protagonistas. Se em Vício frenético

30 The Blackout também é conhecido aqui no Brasil por seu título original, ainda que em algumas publicações tenham acrescentado o tosco subtítulo “sentiu minha falta?”, prática muito comum nas traduções de títulos estrangeiros. Trataremos dele neste trabalho por seu título original. 31 Trataremos também deste filme por seu título original: Vertigo. 54

ele nos apresentava os fatos da maneira mais documental possível, evidenciando um realismo naturalista seco e brutal com uma decupagem econômica, em Blackout a espiral descendente e delirante do personagem vivido por Matthew Modine parece ser transferida para a forma do filme. Como se os momentos de violência extrema no longa de 1992, filmados com a exceção de uma câmera delirante, fossem hipertrofiados em Blackout. Conforme a situação do protagonista piora o filme vai se tornando mais intenso, sua câmera mais instável e sua montagem mais frenética. The Blackout é uma “badtrip terrível”32, assim como a maioria dos filmes de Ferrara dos anos 90. Mas ao contrário da secura de Vício Frenético ou a contenção de The Funeral, The Blackout mergulha estilisticamente no negrume oceânico como se adentrasse no subconsciente de Modine, assumindo para sua própria construção a instabilidade de suas faculdades mentais. O plano fílmico torna-se, portanto, sua própria medida: “ele contém seu próprio abismo, um fundo no qual pode desaparecer, uma extensão plana para apagar, uma água para se afogar, um poço para afundar ou um buraco negro para ser tratado” (BURDEAU, 1999, pp. 49-51). O filme vai intensificando esse abismo e vai fundo na metáfora do mergulho, do afogamento, “asfixiando Matthew Modine sob as espessuras múltiplas de superexposições e de fusões” (Ibid., pp. 49-51). Os planos inicial e final do filme, como uma moldura, são frutos da mesma situação, do mesmo momento. O filme nos servirá de flashback retratando como Matty (Modine) chegou até ali. Essa primeira cena do filme já diz muito sobre o que veremos. Ferrara nos atira sem preparação ao instante mais agudo de sofrimento do protagonista. Iniciamos o filme em zonas cinzentas: vemos uma silhueta de Matty contra o reflexo da lua no mar à noite, desesperado, perdido, prestes a entrar no oceano [Fig. 66]. A câmera de Ferrara aqui continua quase sempre no tripé, fixa. Sua decupagem continua econômica, resolvendo as cenas em poucos planos com correções leves e sutis. O que muda drasticamente é a organização dos planos e das cenas dentro do filme. A convulsão mental de Matty é construída na montagem. Podemos dizer que Blackout é um filme de excessos, e tais excessos não estão necessariamente em movimentos de câmera em cenas específicas. O excesso está na construção do todo. Se a análise da imagem era, antes, motivo de espera e observação detida de uma foto, uma cena, uma filmagem, um rosto (as imagens hediondas em O vício, os planos fixos

32 Ver GALLAGHER, Tag. “Geometry of Force: Abel Ferrara and Simone Weil”, in Screening the Past, n° 10, 2000. http://www.screeningthepast.com/2014/12/geometry-of-force-abel-ferrara-and-simone-weil/ 55

intermináveis de Vício Frenético), aqui ela é motivo de excesso. Ferrara intercala película com o vídeo, passado e presente, se utiliza exaustivamente de sobreposições, de cenas que retornam deslizando no quadro, de corpos cuja identidade não conseguimos detectar, entre outros elementos. Na cena inicial a grande questão é a impossibilidade de se detectar quem está caminhando pela areia, o que ele está fazendo, a impossibilidade de se detectar através da imagem aquilo que ela nos mostra. Ferrara irá, após esse breve prólogo, retornar à segurança de estabelecer seus personagens e seus acontecimentos. Rapidamente, porém, assim que Matty começar a se afundar o filme se afundará com ele. Logo perderemos o chão novamente. Após a cartela do título surgir na tela a instabilidade da imagem retorna no plano do avião particular de Matty pousando no céu avermelhado de Miami: um zoom brusco na câmera chicoteia no plano e procura enquadrar o pequeno avião [Fig. 67]. Logo após acompanhamos o protagonista em sua limusine cheirando cocaína antes de se encontrar com amigos e com sua companheira Annie 1 (Béatrice Dalle)33 em um terraço de hotel.

66. 67.

Essa instabilidade da imagem vai acompanhar toda a construção estética de Ferrara em The Blackout. Ela atravessa o grão da película, o vídeo, o zoom, a sobreposição de imagens, a fluidez, o esgarçamento e a alteração dos planos. Ferrara nunca fugiu de enfrentar a imagem cinematográfica de frente, em todo seu peso histórico e toda sua simbologia. Alguns filmes seus são, de fato, sobre isso. Porém, a partir de 1997 a imagem ganha peso quase concreto: como se, além de questioná-la a partir de uma observação mais fixa da cena filmada (já excessiva em sua encenação, seus atores e suas personagens), fosse preciso ainda agir de forma mais intensa sobre ela.

33 Os dois pares de Matty chamam-se Annie. Seus nomes possuem importância vital à trama. Trataremos delas aqui como ficaram creditadas: Annie 1 (Béatrice Dalle) e Annie 2 (Sarah Lassez). 56

Há uma ligação direta da apresentação de Matty com a do policial de Harvey Keitel em Vício frenético. A primeira aparição de ambos é praticamente idêntica nos respectivos filmes: Keitel e Modine cheirando cocaína no carro, como algo banal e cotidiano [Fig. 68 e 69]. A diferença aqui é justamente a pulsão da imagem: estática em 1992, oscilante em 1997.

68. Vício Frenético 69. The Blackout

Os próprios protagonistas dos filmes são, de certa forma, intrinsecamente conectados com o estilo de sua câmera. Enquanto a figura física de Keitel toma ares grotescos de uma massa compactada e estática, Modine dá vida a um Matty magro, desgovernado e mais vulnerável. É constante a imagem de Matty já entregue ao vício e ao sofrimento em posição fetal no chão ou na cama, até mesmo no colo de sua esposa Susan (Claudia Schiffer). Já Keitel como o policial de Vício Frenético sofre de pé, fincado no chão com os braços abertos em formato de crucifixo: paralelo exato entre as maiores diferenças de estilo entre a câmera estática e pesada de Vício Frenético e a pulsação vulcânica de The Blackout como um estudo visual, isto é, “um encontro frontal, um face a face entre uma imagem já feita e um projeto figurativo que se consagra a observá-la: um estudo da imagem pelos meios da própria imagem” (BRENEZ, 1996, p. 347). Para não cairmos em simplificações no cotejo entre filmes cabe apontar que The Blackout também possui momentos observacionais, em que a câmera se fixa e, com leves correções, dá espaço à interação dos personagens, sem grandes movimentos ou gestos de montagem, como a cena da briga entre Matty e Annie 1 no quarto de hotel ainda na primeira parte do filme. Acima de tudo essa é uma característica inerente a Ferrara. Praticamente todos os seus filmes possuem em alguma escala tal abordagem. O que muda aqui, como já dissemos, em relação a seus filmes anteriores, é a construção do todo. Mas podemos também dizer que toda essa mudança nada mais é do que um olhar atento às mudanças de como o mundo consumiria a imagem nos anos de virada do séc. XX ao séc. XXI:

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Os filmes de Ferrara, sobretudo os que ele realizou de Blackout em diante, colocam- se quase sempre num estado limítrofe, numa experiência do delírio, da loucura, da histeria, do êxtase (religioso, dionisíaco, estético-barroco, apocalíptico). Em tal circunstância, o homem se mantém ligado à realidade por não mais que um fiapo de consciência. E a imagem de cinema, para Ferrara, ocupa justamente esse interstício, essa fenda entre a realidade e o fantasma. Daí uma construção visual central em sua obra, e abundante em Blackout: a sobreimpressão, a fusão entre duas ou mais imagens, a visão fronteiriça que embaralha percepção objetiva e construção subjetiva, visão sensível e visão mental, lucidez e loucura. (OLIVEIRA JR, 2015, p. 317)

É como se Ferrara filmasse um mundo que não existe mais, e desse conta de todas as mudanças referentes à constante presença da imagem em nosso cotidiano. Diante da proliferação de imagens no mundo, ele filma todas as suas possibilidades e em alguns casos faz da própria imagem a espinha dorsal de seus filmes. Assim, “a grande ‘novidade’ que Ferrara incorpora em suas ficções a partir de Blackout é precisamente essa constatação da onipresença da imagem e, por conseguinte, da infinidade de texturas, reflexos, impressões visuais, afetos psíquicos, enfim, o caos sensorial e psicológico que aí se instala.” (Ibid., p. 317). A proliferação de imagens para Ferrara se traduz numa materialização mental dessas imagens, em Blackout “imagens fílmicas, imagens de vídeo, imagens subjetivas, flashbacks mentais de Matty: tudo isso é processado e centrifugado numa montagem que acompanha o estado mental do protagonista” (Ibid., p. 317). Se o questionamento e o protagonismo da imagem cinematográfica e sua crise no cinema já esteve em discussão na filmografia de Ferrara, seria então a mudança de captação, suporte e exibição que tomaria o protagonismo de seus filmes. Vertigo, de Hitchcock, já tratara de maneira muito profunda a imagem em crise e suas camadas, não à toa que Ferrara retomaria de maneira mais aguda justamente este filme de Hitchcock como inspiração central, retomando- o sobretudo em um mundo tomado por câmeras de vídeo e telas. Da proliferação das imagens no mundo e de sua revisão do filme de Hitchcock, Ferrara colocaria em xeque o próprio ato de ver e o olhar dado às imagens. *** A trama de The Blackout é simples e direta. Tudo gira em torno de Matty, um ator em pleno auge e ascensão na indústria hollywoodiana, e sua obsessão por Annie 1. Ela e Matty começariam a colaborar com o novo projeto do cineasta Mickey (Dennis Hopper). A refilmagem de Naná (versão de 1955 do livro de Émile Zola dirigida por Christian-Jacque) em vídeo promovida por Mickey é um festival de excessos. O set de filmagem é um salão de festas dionisíaco, repleto de homens e mulheres seminuas, dançarinos, luzes, cachoeiras e, sobretudo, câmeras e telas. Tudo o que é filmado é projetado ao mesmo tempo e assistido por todos dentro

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do set de filmagem. Tudo acontece ao mesmo tempo em um espécie de versão anabolizada e maldita de One from the heart (1982, de Francis Ford Coppola)34. Quando visitam o set de filmagens Annie 1 é recebida como estrela principal. Mickey aponta sua câmera na direção dela. Mickey tem obsessão pela filmagem, sempre possui uma câmera de vídeo em mãos e sempre procura filmar momentos do cotidiano. Mickey joga constantemente com o casal: Annie 1, sua protagonista, figura central; Matty, por outro lado, escanteado nos cantos escuros de seu set de filmagem. A intensidade com que Ferrara estabelece a relação entre Matty, Annie 1 e Mickey em suas apresentações é crucial para que sigamos no apagar psicológico do protagonista ao final do filme. A passagem ao segundo momento se dá quando Annie abandona Matty ao revelar, no meio de uma briga ressacada de álcool e drogas, que abortou um filho dele. Começa ali um movimento inteiro do filme em que Matty se afunda em excessos e busca por Annie 1, guiado agora por Mickey. Ele se afunda em drogas e bebidas com Mickey, vai a orgias com Mickey, é filmado por Mickey, até que tudo se altera novamente quando encontra Annie 2, garçonete ingênua de um café local. Matty, ainda alucinado, relaciona as duas Annies, projetando Annie 1 em Annie 2. O filme mergulha no transe de seu protagonista, sofre um blecaute junto dele e nos joga no ambiente sóbrio de Nova York tempos depois em um breve interlúdio da insanidade de Miami. Casado com Susan (Claudia Schiffer) e sóbrio (indo a reuniões dos alcoólicos anônimos), Matty parece porém incomodado por uma sensação constante de não pertencimento. Ele realiza sessões de terapia que acompanhamos através dos vídeos gravados pelo terapeuta e parece manter-se no controle de sua mente e seu corpo. Nas sessões ele revela que desejaria encontrar Annie 1 mais uma vez para que “rompa o cordão”: Matty ainda não esqueceu a ex- companheira. É assombrado em sonhos por seu passado em Miami ao lado dela. Basta uma viagem de Susan para que ele coloque tudo a perder e retorne à Miami. Em sua volta tudo degringola. Matty procura Mickey e pede para que ele encontre Annie 1. Matty volta a beber em seu quarto de hotel e se afunda. Annie 1 volta e o vê derrotado, mal conseguindo se erguer do chão. Mickey finalmente revela em vídeo o que ocorreu antes de sua ida a Nova York. O cineasta teve a ideia de vestir Annie 2 como Annie 1 e apresentá-la a Matty, filmando sua reação. Este, alcoolizado e fora de si enforca a garota e a mata. O ato todo filmado por Mickey era justamente o shot missing de sua refilmagem do filme de Christian-Jacque (uma

34 Ver LEWIS, Jon. “One from the Heart” In. Whom God Wishes To Destroy… Francis Ford Coppola and The New Hollywood. Durham e Londres: Duke University Press, 1995. p. 41-72. 59

das lacunas que faltavam em seu projeto). Matty não aguenta o que vê, entra no mar durante a noite depois de repelir uma Susan desesperada que vinha ao seu encontro e sai nadando rumo a imensidão escura das águas do mar. O plano final divide a tela entre um reencontro da imagem fabricada de Annie 2 com o mar vazio. *** Mesmo em uma experimentação estilística, Ferrara continua a encenar e representar de maneira muito direta. Em alguns casos ele resolve a questão da maneira mais rápida e simples possível, como se a todo momento quisesse caminhar rumo ao que interessa, ao cerne dos personagens e do filme. Suas apresentações de personagens e situações são breves. Um exemplo claro disso é a apresentação de Matty e o modo como o filme reúne as informações essenciais da personagem em um ou dois planos. Retomemos a sequência em questão: um avião particular pousando; Matty conduzido em um carrinho (como os de um campo de golfe) pelo aeroporto; Matty sentado em uma limusine acenando para alguém na rua antes de cheirar um pouco de cocaína; plano fixo de uma foto com Matthew Modine, Bruce Willis, Geena Davis e Demi Moore (grandes celebridades da época) – ouvimos no fundo em off: “o homem de 6 milhões” e depois há uma fusão para o rosto de Annie 1. Em quatro planos curtos, já sabemos tudo o que precisamos saber até ali sobre aquele personagem. Poderíamos conectá-lo, por exemplo, ao plano fixo no carro de Keitel em Vício Frenético nos apresentando ao policial; ou a Frank White (Walken em O rei de Nova York, 1990) em toda a sequência olhando para o horizonte de Nova York, saindo da prisão e dançando no reencontro de sua gangue. Já em uma outra chave, Ferrara se detém no primeiro encontro entre Matty e Annie 1 no hotel. A câmera já não é mais fixa. Ela estuda o ambiente, se movimenta com fluidez e busca o foco da ação, serpenteando através dos corpos rumo ao que importa: a relação entre Annie 1 e Matty [Fig. 70]. Nova fusão, e os dois aparecem no quarto do hotel, bêbados e esgotados [Fig. 71]. Percebemos que há problemas entre eles. Ferrara nos joga em um relacionamento no meio de turbulências, desconfianças e obsessões. A imagem do casal na cama é flagrante: Matty pergunta em francês se ela quer ser sua esposa. Ela responde “porque não me perguntou isso antes?”, com os olhos vermelhos.

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70. 71.

Antes da cena chave que encerra o primeiro ato do filme, entre Matty e Annie 1, assistimos ao bizarro freak show de Mickey, que aparece em seu set de filmagem como uma figura das sombras [Fig. 72 e 73]. O som é um hip hop alto, o ambiente é escuro e carnavalesco, seu mundo dionisíaco se apresenta frente a uma inundação de vídeo, de telas, de imagens de exploitation, de cenas gravadas ali mesmo no calor da hora (algumas muito granuladas) em câmeras caseiras. E no centro de tudo, Mickey, o titereiro desse universo e posteriormente da vida e do destino de Matty:

Um cinema do estilo de Ferrara exige que percebamos de uma forma extraordinariamente vívida a "presença" de um personagem: o modo como as "vibrações" de um personagem tomam posse dos espaços vazios do quadro – como em Tabu, em que o ar e a luz tornam-se emanações dos personagens, como nas pinturas de Vermeer, como no quarto de Tyen, porque aqui ela se sente como não estando lá. (GALLAGHER, 2000)

Béatrice Dalle sempre será o centro dos planos na encenação de Mickey. Como se houvesse um campo magnético e a câmera se deixasse atrair por ela. A tensão constante entre Matty e Annie 1 é representada pelo deslocamento no quadro do personagem de Modine em contraparte à fixidez centralizante de Dalle. Matty sempre estará de canto ou de longe, observando-a temeroso – com medo de perdê-la? Com ciúmes de sua presença? Já vislumbrando a impossibilidade de seu relacionamento? Mickey também influencia a arquitetura do plano. Sempre que está em cena, Hopper é representado como um figura centralizadora e perigosa. Ao contrário de Dalle que chama os olhares por sua presença hipnotizante, Mickey magnetiza as tensões do quadro por sua presença demoníaca, centraliza também as ações, mas muito mais como um desejo proibido a que somos convidados, uma sedução maléfica que “insufla no set uma tensão permanente, uma atmosfera inundada por sua exaltação dionisíaca, sua pulsão criativa furiosa, intensa, desmesurada.” (OLIVEIRA JR, op. cit., p. 316).

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72. 73.

A presença de figuras excêntricas dançando, se despindo ou festejando, em seu set de filmagem, unidas às constantes imagens “feias” de vídeo, granuladas, colocadas lado a lado com as cenas do filme de Christian-Jacque como se já tivesse início ali quadro a quadro a sua adaptação maldita da refilmagem de Nana, só aumentam o desconforto e a imponência da figura de Mickey, que “filma com várias câmeras ao mesmo tempo, cobrindo – no sentido televisivo, ou até mesmo da vídeo-vigilância” (Ibid., p. 317). Somado a esse desconforto está o fato de Mickey, desde o primeiro contato entre ele e o casal Matty e Annie 1, claramente priorizá-la e de certa forma enjeitá-lo: para Mickey, Annie é a estrela de seu projeto e Mickey, um coadjuvante de luxo que acaba entrando em cena muito mais por proximidade. Matty e Annie não possuem um momento pacífico, de entendimento mútuo. A todo instante Matty parece estar desconfortável, nervoso, como se a cada cena ou a cada momento juntos ele se distanciasse um pouco mais da companheira. Ela, por sua vez, apesar de triste e abalada com o relacionamento deles, é mais auto suficiente. Ela consegue externalizar menos os problemas conjugais e “atuar” para Mickey como se não houvesse um Matty no fundo do quadro observando-a aflito, com peso no olhar [Fig. 74 e 75].

74. 75.

Ferrara flagra, portanto, um mundo coberto por imagens e telas, se inserindo num contexto onde “já não é questão de estetização do cotidiano, de reificação do mundo social por

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seu superpovoamento com formas visuais e espaciais: a questão agora é de convivência, coabitação, troca de energia afetiva com as imagens que estão por toda parte” (Ibid., p. 317). As telas flagradas por Ferrara se colocam no filme de modo ativo e intenso, reiterando o abismo entre o casal protagonista e sugerindo o delírio da perda de Matty. A cena do casal conversando na limusine após uma festa (Annie 1 rejeitando Matty, bêbado e carente em seu colo) confirma sua distância, assim como a fratura gerada por escolhas no passado que virão à tona e servirão de motivo para a separação e para a saída de cena de Annie 1.

2.2 “Você quer algo?”

“Você quer algo?” é a fala de Matty que abre uma das cenas centrais do filme. Também é a cena que encerra seu primeiro ato. The Blackout pode ser dividido em quatro partes. O fim da primeira parte se dá por volta de 20 minutos de filme. A cena em questão poderia também ser comparada com a cena das “Jersey Girls” analisada anteriormente em Vício frenético – tanto pelo marco crucial na narrativa do filme quanto pelo impacto que gera no espectador, mas também pela economia técnica na decupagem e na direção de Ferrara. Estamos em um quarto de hotel na provável manhã seguinte à festa. As maiores variações de planos e de cortes ocorrem somente no final da cena. No geral, Ferrara resolve tudo com basicamente duas posições de câmera que se intercalam. Uma delas é um plano mais geral que ao mesmo tempo enquadra Annie na frente da janela [Fig. 76], em panorâmicas varre o quarto e vai à Matty mais longe, no banheiro [Fig. 77]. A outra é a mesma posição, porém aproximando-se dos atores [Fig. 78 e 79]. Em polos opostos do quarto (ela para em frente à janela e ele no banheiro cheirando cocaína) eles iniciam o diálogo. Matty é filmado deslocado no quadro, no canto, emoldurado pelos batentes da porta do banheiro. Annie é enquadrada à esquerda, de costas para ele e com a janela de fundo.

76. 77.

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78. 79.

Matty procura jogar conversa fora, pergunta se ela quer algo, enquanto vai ao banheiro cheirar cocaína. Ele começa a contar uma história banal envolvendo Mickey e uma prostituta. Enquanto isso Annie permanece parada com uma postura grave, séria, até que interrompe Matty e eles começam a conversar de fato sobre sua situação. Ela pergunta se ele a pediu em casamento somente pelo fato de ela ter estado grávida. O verbo no passado faz com que ele ande na direção dela e pergunte se ela abortou. “Eu não queria que meu filho tivesse um pai viciado”, responde Annie. Ele explode, ameaça bater nela, mas não faz nada. Ela bate nele diversas vezes, o insulta em francês, diz que ele mesmo mandou-a tirar o bebê. Matty se desespera e diz que jamais falaria algo do tipo. Matty bate a porta do banheiro gritando. Annie joga um gravador na cama, dá play e sai do quarto dizendo a ele para nunca mais vê-la. Ouvimos a voz de Matty no gravador, seus insultos à companheira: “se fosse uma mulher decente você pegaria uma faca e cortaria esse bebê do seu estômago, eu mesmo faria isso”. A cena termina com Matty, derrotado, patético, balbuciando desculpas sozinho no quarto, enquanto pega as alianças que Annie jogou no chão em meio aos cacos de vidro de garrafas quebradas da briga e ouve seus insultos bêbados na caixinha de som do gravador. Também como a cena das “Jersey Girls” de Vício Frenético, ou a do encontro de Frank White com sua gangue no início de O rei de Nova York, essa cena em The Blackout tem um caráter físico, de improviso dos atores, que não pode ser ignorado. Ferrara parece, até em um filme pouco ortodoxo estilisticamente como The Blackout, em uma cena como essa, decupar pouco de uma forma que privilegie a interação entre seus atores: dois planos mais ou menos gerais cuja importância é flagrar uma erupção, um arroubo, uma explosão. Talvez uma das possíveis assinaturas autorais da obra de Ferrara: “inserido na tradição de John Cassavetes e Maurice Pialat: ele busca a verdade do momento, o âmago da contradição, o nó da tensão. Em entrevistas ou documentários é basicamente sobre isso que ele fala: ‘getting the shot’, capturar algo na imagem, uma performance, uma alteração, um riff.” (MARTIN, 2008)

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Além da “marca autoral” do cineasta, a simbologia dos planos no fim da briga do casal também é significativa para a construção global do filme. A trilha sonora, uma música incidental, eletrônica, grave, quase litúrgica, sobe justamente quando Annie sai do quarto. Ouvimos ao mesmo tempo a música em um crescendo, os insultos de Matty no gravador e seus gritos alterados no banheiro de que jamais diria aquilo para ela. Uma sequência de cortes e planos mais curtos nos mostra o gravador de perto na cama, Annie saindo do quarto com a janela e o mar ao fundo [Fig. 80], e Matty encostado na parede e sentado no chão ouvindo a si mesmo e caindo na real [Fig. 81]. Então ficamos com Matty, tentando se explicar e recolhendo as alianças. A cena termina com ele parado, fitando o nada com os olhos perdidos.

80. 81.

Mais do que uma quebra, ou um incidente que estimule a narrativa e nos coloque dentro do filme, a percepção do próprio protagonista de quem ele havia se tornado é talvez o grande triunfo da sequência – e aqui a interpretação de Modine, eloquente, superlativa, expondo a fragilidade quase tosca do personagem, é muito importante. Matty começa a perceber sua queda iminente quando Annie o obriga a se encarar no espelho. Essa briga constante de Matty consigo mesmo é um dos grandes motes do filme. A cada vacilada, Matty cai um pouco mais e o resultado será o mesmo de Keitel em Vício Frenético, de Frank White em O rei de Nova York, de Johnny, Chez e Ray em Os Chefões (The funeral, 1996), de Kathleen Conklin em O vício (The Addiction, 1995). O primeiro ato do filme termina assim, com Matty se afundando na depressão, no alcoolismo e nas drogas. Annie sai de cena e se transforma numa espécie de figura fantasmagórica, presença constante como imagem erigida por Matty, cuja falta física em sua vida traz uma impossibilidade de superação e agrava suas condições mentais e físicas. Nessa segunda parte, a representação fílmica do desgoverno de Matty entrará em cheque e veremos como Ferrara radicaliza sua forma e coloca em prática o debate sobre o próprio suporte cinematográfico e sobre a imagem cinematográfica em si.

65

A partir dessa cena da briga o filme ainda terá mais 3 partes, assim resumíveis. A segunda trará a derrocada de Matty. Ele se afunda nas drogas, no álcool e em sua obsessão pela perda de Annie 1, até encontrar Annie 2 por acaso e matá-la. Mickey será o grande influenciador de Matty nesta segunda parte, inclusive como artífice da morte de Annie 2, filmando tudo. A terceira parte, mais curta, se dá em Nova York. Matty tenta se reerguer e larga as drogas e o álcool. Casado com Susan, ele passa os dias entre reuniões dos Alcoólicos Anônimos e sessões de terapia, tentando esquecer Annie 1 e se livrar de pesadelos passados. A quarta e última parte nos mostra Matty voltando a Miami para tentar reencontrar Annie 1 e resolver seu passado. Ele volta a beber e usar drogas. Mickey mostra o vídeo que gravou dele matando Annie 2 em um delírio alucinógeno. Matty se desespera e mergulha no oceano. Matty não suporta o que vê. Também não suporta viver com essas imagens que o circundavam. A verdade é que Matty vinha rastejando e se dilacerando ao longo do filme. Para Tag Gallagher35, a geometria e a composição na obra de Ferrara, assim como sua textura e cor, “são tão intensas que parece um milagre que alguém possa suportar uma tal existência por dez minutos; ainda assim, os personagens de Ferrara transcendem seu ambiente até quando sucumbem a ele [...] Eles podem ser escravos de sua paixão, mas eles escolhem sua paixão. Eles não simplesmente sucumbem, eles decidem sucumbir.” (GALLAGHER, 2000) Mais do que analisarmos cena a cena as três últimas partes do filme (como fizemos de certa forma com a primeira), importa olharmos para The Blackout como um todo e analisá-lo a partir de comparações e reflexões retiradas do próprio corpus fílmico ferrariano, expandindo-o em sua relação com outros filmes de outros cineastas. Conforme o filme avança, suas relações intertextuais e estéticas vão ficando cada vez mais evidentes, como veremos. Entre outros possíveis, privilegiaremos aqui o diálogo claro estabelecido por Ferrara com o cinema pregresso, principalmente com Hitchcock, além de uma intersecção com a pornografia, com os excessos e limites da representação imagética e, também, com o cinema narrativo que lhe era contemporâneo.

2.3 Imagens obscenas e pornografia

A obra de Ferrara introduz desordem no mundo cínico; os mal-entendidos começam aqui, já que alguns críticos atribuem essa desordem aos próprios filmes. Seus filmes são cada vez mais acusados de serem confusos, malfeitos e organizados de forma obscura – em particular “The Blackout” e “New Rose Hotel”. (BRENEZ, 2006. p. 3).

35 Ver GALLAGHER, Tag. “Geometry of Force: Abel Ferrara and Simone Weil”, In.: Screening the Past, n° 10, 2000. 66

Sobre essa “desordem no mundo cínico” de que fala Brenez a respeito de alguns filmes de Ferrara, podemos invocar o comportamento dos cineastas Mickey em The Blackout (que age sem concessões e se mistura ao próprio filme) e Keitel em Snake Eyes. Se em New Rose Hotel, sua ambientação de William Gibson é transpassada ao cinema perfeitamente de acordo com a desordem do mundo retratado proposta pelo autor do conto que deu origem ao filme (e dessa desordem, a atmosfera niilista, pulp, underground, sci-fy, e “malfeita” como diriam críticos da época), em The Blackout o mundo filmado por Ferrara é mais caótico, menos coeso e amarrado do que em New Rose Hotel, e é muito fruto daquilo que depreendemos da personagem de Hopper e sua refilmagem de Nana. Somando tudo o que Mickey filma e vai para a tela em The Blackout (se misturando com o próprio filme), até a materialização fílmica da mente desgovernada e perdida de Matty, Ferrara concretiza essa desordem no mundo em seu filme, o que acaba esbarrando nessa acusação de mau gosto, de trabalho rudimentar e mal acabado. Em quase toda sua carreira, Ferrara procurou empurrar a imagem para suas bordas, para seus extremos e, com isso, extrair dela algo novo. Isso ocorreu de diversas formas, às vezes sob um olhar mais contido, explorando nuances de gêneros convencionais, às vezes mais livre, dando vazão a sua torrente criativa e caótica. Não é estranho, portanto, que apesar de não creditado como “Abel Ferrara”, mas sob o pseudônimo “Jimmy Boy L”, ele tenha de fato “estreado” no território dos longas metragens, dirigindo e atuando, com o filme de pornografia explícita 9 Lives of a Wet Pussycat (realizado em 1976, traduzido como Nove Vidas de Uma Gata Molhada). Ferrara, sob nossa ótica, pode representar, ainda que indiretamente, uma espécie de última fronteira para a representação da imagem cinematográfica. À sua maneira, ele mapeou, de filme a filme, suas possibilidades de representação, desconstrução, revitalização, revisão e, por que não, destruição. A pornografia, que é também uma espécie de fronteira final da imagem, também o seguiu de certo modo para além de seu filme de 1976, na medida em que a discussão sobre a representação da imagem pornográfica tangencia a discussão estética sobre o olhar: sobre o que deve ou não ser mostrado, sobre olhares que incidem sobre os corpos humanos, sobre aquilo que pode ou não ser considerado de “bom” ou de “mau” gosto. Como bem observou Adrian Martin36, dada a inserção de Ferrara nesse debate sobre os limites da imagem, “não é incomum encontrar The Blackout inserido na sessão de filmes eróticos, ou até pornográficos, nas prateleiras de lojas de DVD. Esse rótulo aleatório indica bem

36 Ver http://www.16-9.dk/2008-09/side11_inenglish.htm 67

a natureza incategorizável do filme mais rico de Ferrara, assim como um assombro e um lugar marginal no mundo tem o acompanhado. Ferrara retorna novamente, após Dangerous Game e antes de Mary, à filmagem como assunto” (MARTIN, 2008). Ferrara coloca, portanto, sua obra em uma posição particular, uma intersecção entre a experimentação no cinema narrativo e um universo urbano, contemporâneo, sujo e degradado muito visto na literatura pulp, policial e beatnik. Jean-François Rauger37 analisa a encenação do ato sexual na ascensão da pornografia hardcore nos anos 80 como um contraste completo àquilo que antes era completamente codificado às zonas cinzentas do plano e da imaginação – o softcore de atos sexuais simulados e codificados. A representação do sexo antes da pornografia hardcore era utilizado através de uma “máquina retórica complexa” (RAUGER, p. 266), que lançava mão da elipse e de metáforas em detalhes cuja representação da parte pelo todo significavam uma ação, ato sexual, escondida e misteriosa. Bazin fala da espetacularização da imagem, da banalização do assassinato e compara a filmagem de um assassinato à obscenidade de uma fita pornográfica, “uma pornografia ontológica. A morte é aqui o equivalente negativo do gozo sexual, que não é por menos qualificado pequena morte (petite mort)” (BAZIN, 2014, p. 229). Yann Lardeau fala, em seu artigo38, da imagem da representação do sexo como um desejo de tudo saber, da necessidade inescapável da saturação do real, da vigilância e do controle extremos do olhar. E do sexo filmado como um modo de “esgotar e saturar o real” (LARDEAU, 1978. p. 49) até seus poros. Uma exploração microscópica do trabalho da câmera e da filmagem permite a Lardeau identificar no close-up um dos principais traços do cinema pornográfico. Segundo a sua caraterização, a proximidade do aparato ao corpo humano, “longe de despertar prazer no espectador, resulta em um distanciamento deste, sua exclusão de fato, eliminando nele qualquer fantasma” (Ibid., p. 50). Já havia, portanto, no âmbito da discussão sobre pornografia, uma reflexão sobre os limites e as fronteiras da imagem, sobre o ato de filmar um corpo humano. Indo além, adentrando camadas da imagem e desbravando o ato de olhar em todas as suas possibilidades, a pornografia dissolvia seu mistério por tudo mostrar e desvelar no sexo explícito. Os anos 80 viram a polêmica em torno de cinema e pornografia crescer, muito por conta de filmes que cada vez mais dialogavam com a pornografia em sua reflexão sobre os excessos

37 Ver RAUGER, Jean-François. “La mise en scène de l’acte sexuel: focalisation/fuckalization”. In: AUMONT, Jacques (org.). La mise en scène. Bruxelas: De Boeck Université, 2000. 38 LARDEAU, Yann. "Le sexe froid (du porno au dela).” In. Cahiers du cinema, n. 289. Junho, 1978. 68

da imagem, mas principalmente por conta da proliferação da própria pornografia institucionalizada, para além de cineclubes obscuros e sessões clandestinas, em fitas de vídeo. O consumo de imagens de sexo explícito constitui um olhar totalizante, super excitado, que procura tudo ver, olhar que Linda Williams analisa em seu livro39 a partir da ideia de Comolli de “frenesi do visível”, que “embora possa soar extremo, não é uma aberração nem um excesso, mas antes a consequência lógica de uma variedade de discursos da sexualidade que convergem na produção de certas tecnologias do visível.” (WILLIAMS, 1989. p. 36). Ou seja, algo muito ligado à tecnologia de uma época e às descobertas e possibilidades de um olhar a partir dessas tecnologias e das ideias dessa época. A pornografia hard core emerge conforme as possibilidades desenvolvidas nas artes visuais de se olhar para um corpo em movimento mostram-se extremadas e desromantizadas, dando a ver partes do corpo até então escondidas, envoltas em aura de mistério e sedução. O que há é um desadorno completo do corpo humano, a partir de aparelhos óticos que intensificam a nossa visão e invadem os corpos:

Nas invenções ópticas do final do século XIX – câmeras, lanternas mágicas, Zootropo, cinematógrafos, Cinetoscópio, e os precursores do cinema como conhecemos hoje – conseguimos ver uma manifestação poderosa tanto dos mecanismos de vigilância descritos por Foucault quanto essa scientia sexualis. Discursos sobre sexualidade elaborados na era moderna atingem um tipo de abordagem que o historiador cinematográfico Jean-Louis Comolli chamou de “frenesi do visível” (Ibid., p. 35)

Unem-se tecnicismo, cientificismo, violência e espetáculo em proveito da profusão de imagens que, sem mistério algum e sem nada a esconder, tudo mostram nos movimentos mecânicos dos corpos, nas genitálias iluminadas de forma que possamos vê-las em seu interior, nos moneyshots, na ejaculação em primeiro plano. Haviam nos planos uma construção no limite das possibilidades de se observar um corpo, encostando nele, entrando nele, excedendo o ato sexual em close up que, de certa forma, manifestam um fim (ou um “limite”) na exploração desbravadora da representação desses corpos: o sexo se consuma e se apresenta muito mais como espetáculo do que como imaginário. Um dos muitos problemas e discussões sobre a imagem pornográfica é a de que ela se limita a mostrar o sexo em todos os seus graus e aspectos, se completando em si mesma como espetacularização. A imagem pornográfica40 seria, portanto, uma imagem sem aura, sem mistério algum, sem camadas ou interpretações possíveis, sem sedução, tediosa e monocórdica.

39 WILLIAMS, Linda. Hard core: power, pleasure, and the frenzy of the visible. Los Angeles: University of California Press, 1989. 40 Ver BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 69

Além de gerar um grande debate em torno da violência que tais imagens representariam em relação às mulheres, levando as feministas radicais americanas a condenar a pornografia por ela ser, em essência, um ato de violência contra as mulheres:

A fantasia masculina do cinema hardcore pode ser descrita como a tentativa (impossível) de capturar visualmente esse frenesi do visível no corpo feminino, cujo prazer sexual [o orgasmo] nunca pode ser medido objetivamente. Não é surpreendente, então, que muitas fantasias hardcore girem em torno de situações nas quais o prazer sexual da mulher é provocado involuntariamente, frequentemente contra sua vontade, em cenários de estupro ou violência. (Ibid., p. 50)

O fato é, que em sua violência implícita e explícita, em seu escancaramento visual e em sua anulação hermenêutica, a pornografia se coloca na história das formas visuais como uma fronteira delicada na representação do ato de ver e a interpretação e representação das próprias imagens para além do sexo realizado frente à câmera. A imagem pornográfica também se coloca numa posição em que a discussão acerca do bom ou mau gosto se faz presente. O ato de ver e de se representar, durante os tempos, adensou o impulso escopofílico e o delírio interpretativo de tal maneira que uma de suas últimas fronteiras foi quebrada no hard core e rapidamente foi inserida em filmes que tinham, entre outros, a representação visual como assunto central. Ao fazermos um exercício rápido podemos elencar uma série de filmes e cineastas, principalmente a partir dos anos 70 e 80, que tinham como finalidade a revisão de códigos, a reinserção de um olhar sobre a própria imagem e o adensamento dessa crise representacional de tal forma que acabavam por tangenciar as reflexões e representações da imagem pornográfica em seus planos. Paul Schrader, por exemplo, realizou o filme Hardcore: No Submundo do Sexo (Hardcore, 1979) em uma clara revisão de Rastros de ódio (The searchers, 1956, de John Ford) atravessada pelo submundo da pornografia hardcore. Além das inúmeras citações e relações entre filmes de Brian De Palma e a imagem pornográfica, dos trabalhos de Paul Verhoeven (Showgirls e Tropas Estelares) e muitos dos filmes, como The Blackout, que mantém uma relação estreita com os excessos na representação da imagem cinematográfica, suas interpretações e seus limites. Ferrara levou às últimas consequências a experimentação dentro do cinema narrativo incorporando os limites e excessos da imagem. Ele está sempre trabalhando com a representação no limite do aceitável para o público de cinema mainstream, seja ela a violência gráfica, psicológica, a intensidade de atuação de suas personagens, o tema sobre o qual realiza seus filmes ou a própria construção e organização dos planos e sequências.

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O lugar de criação para Ferrara é um lugar que foge da harmonia, um lugar de êxtase, de eflúvio, de pletoras e excessos barrocos. Ele retoma essas questões em praticamente todos os seus filmes, sobre a perda da imagem e a tentativa de reencontrá-la (como Vertigo, de Hitchcock). Nos anos 90, Ferrara parece estar fazendo essa passagem para a imagem virtual, que estabelece outra relação do sujeito com o mundo, construindo uma série de ficções que giram em torno desse assunto. Ferrara flerta com as imagens obscenas. Pornografia. Violência. Grafismos violentos. Isso o assombra sempre, rondando como um fantasma, um demônio. Conflito entre a inocência e a perversão da imagem (Mary; 4:44 pode ser visto como um apocalipse audiovisual em que se o mundo acabar as TV’s ficarão ligadas até o último esgar de corrente elétrica enviando imagens para ninguém). A imagem não é mais mediadora, interface, ela é algo que se relaciona diretamente com as pessoas; ela existe, se projeta no mundo, como simulacro: não só representação, mas simulação, tomada como real e substituindo as coisas. Obscenidade liberada da imagem que pode também aludir a horrores de guerras, como as que transtornam Kathleen no início de The Addiction, em uma de suas aulas da pós graduação em filosofia [Fig. 82], quando surge como espectadora dessas imagens [Fig. 83].

82. 83.

O início de The Addiction nos coloca no lugar da protagonista e nos inflige imagens limite de guerra, fome e morte, que voltam amiúde ao longo do filme. Conforme Kathleen se transforma em vampira, sua transmutação e seu vício por sangue passam a ter relação direta com aquelas imagens – como na sequência em que ela passeia por uma exposição de fotografias de campos de concentração da Alemanha nazista [Fig. 84 e 85]. E logo depois colhe o sangue de um mendigo com uma seringa para bebê-lo e suprir sua necessidade.

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84. 85.

Ou no instante em que ela, de novo sedenta, assiste impassível na TV a alguma reportagem com corpos mutilados no chão de um local que parece a ala de um hospital de campanha, logo após morder e tirar sangue de uma estudante de antropologia inocente assediada na biblioteca da universidade [Fig. 86 e 87].

86. 87.

Em The Blackout, a imagem do vídeo parece operar uma transição, como uma imagem feia que perturba a limpidez pura da criação. Ela incorpora esse lugar de transição e esse lugar precário de criação, manipulada por Dennis Hopper, o que torna The Blackout, em sua própria estética, a incorporação dos exageros excessivos do cinema de Mickey. E aqui parece haver uma proliferação dos símbolos pornográficos e excessivos na totalidade do filme: violência, nudez, uso de drogas, suicídio. Tudo perpassado pela “sujeira” do digital. A opção por refilmar justamente a mais maldita e underground das adaptações de Nana (o filme de Cristian Jacques) não é nada inocente. Mickey, assim como Ferrara, está negociando o tempo todo com a obscenidade da representação. Suas cenas em vídeo, exibidas durante a própria gravação nos sets são colocadas em TV’s espalhadas pelo local, lado a lado com as cenas “originais”. Sua refilmagem beira a pornografia e a obscenidade, numa relação análoga àquela que Ferrara estabelece constantemente em seus filmes com aqueles que o influenciam

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(Vertigo em The Blackout; Mean Streets em Vício Frenético; Le Mépris em Olhos de serpente; The Godfather em The Funeral). O contraste entre o Nana de Christian-Jacque e a refilmagem de Mickey fica ainda mais flagrante quando Ferrara põe lado a lado, em telas, os planos originais e os recém filmados por Mickey. Este parece retirar da imagem tudo aquilo que a torna reconhecível ao espectador, seus meandros e sua profundidade, ora reduzindo sua refilmagem ao fundo negro e opaco onde quase não reconhecemos os gestos de seu elenco, ora inserindo imediatamente o que capta com sua handycam na loucura dionisíaca de seu set de filmagem [Fig. 88 e 89].

88. 89.

Ferrara deixa claras as lacunas que o filme ainda comporta, e que Mickey precisa preencher a qualquer custo para completar sua refilmagem. Além desse cotejo direto, há diversos planos em que imagens pouco discerníveis nos são mostradas como parte daquele universo bizarro em que estão mergulhados Mickey e Matty, todas agravadas por sua baixa resolução de captação e de suporte, que as transformam mais em experimentos audiovisuais do que em elementos narrativos. O próprio Ferrara duplica o movimento de seu personagem cineasta ao colocar as imagens que filmou como diretor junto com as imagens em vídeo captadas por Mickey, numa espécie de espiral metalinguística.

2.4 Vertigo revisitado em The Blackout

Há um movimento realizado por Ferrara em The Blackout de transpor na figura de Mickey sua própria figura de cineasta, que encontra seu ápice na maneira como ele revisita, reinterpreta e, porque não, refilma Vertigo (1958), de Hitchcock. Carregando a máxima de que “uma imagem sempre esconde outra” (THORET, 2008. p. 25), Ferrara penetra e se embrenha no âmago da imagem. De modo parecido com o de Mickey, porém muito mais consciente de

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sua operação enquanto realizador, ele atinge um estado de esvaziamento e opacidade quase total de sua captação. Uma imagem não mais imaculada e misteriosa, mas suja, nua, violada. A aura misteriosa e enigmática do filme de Hitchcock é substituida aqui pelo aspecto desnudado da imagem, se encaminhando para aquilo que ela carrega de rústico, rudimentar, obsceno, optando pelo excesso de tudo mostrar em detrimento das zonas cinzentas da imagem em Hitchcock. Vertigo trazia, de fato, uma imagem já marcada por fraturas, brechas fantasmáticas produzidas num intrincado e engenhoso quebra cabeças de filme dentro do filme, de Kim Novac em suas camadas (Carlotta/Madeleine/Judy), e do titereiro e arranjador da trama Gavin Elster (Tom Helmore), em uma atmosfera enevoada, que, assim como os filmes mais à frente analisados de Lynch e Cronenberg, possui uma densidade quase tátil. Ferrara se aproxima do olhar hiperexcitado da pornografia em sua transposição barroca de Vertigo para uma Miami de pesadelos, cheia de câmeras de vigilância e telas, acentuando um aspecto “malfeito” do vídeo e de sua captação, privilegiando o excesso ao invés do mistério e da profundidade semântica do filme de Hitchcock. Ferrara não faz propriamente um filme ruim, mas parece rebaixar a construção cinematográfica ao desnudar sua imagem e nos inserir em um mundo raso. Ele flagra suas personagens vivendo em um mundo pornográfico, cujas relações são construídas a partir de um olhar viciado, superexcitado, alerta, que deseja tudo enxergar: em um “vortex de imagens, sons e ficções para sempre ‘em construção’, Matty encontrará para depois perder seu anjo negro Annie (Béatrice Dalle) – e então encontrar e perdê- la novamente em Annie 2 (Sarah Lassez), misteriosamente repetindo, em nossa confusa era, o plot de Vertigo” (MARTIN, 2008). O filme de Hitchcock, marco na reflexão acerca do ato de olhar na história das artes visuais e aprofundado estudo sobre a própria representação da imagem, suas nuances, graus e mistérios, serve como uma baliza perfeita para que Ferrara construa o seu Vertigo em The Blackout, muitas vezes citando planos diretamente decalcados do filme de 1958. Assim como Scottie – que, obcecado por Madeleine, entrava em estado patológico delirante até construir uma Judy que se assemelhasse a todo custo à imagem da mulher amada julgada morta –, Matty em The Blackout, obcecado por Annie 1, entra num estado delirante movido a drogas e álcool e vê em Annie 2 o duplo possível da imagem perdida. Em um movimento semelhante ao realizado por Scottie, Annie 2 é transfigurada em Annie 1 e entregue a Matty em estado quase terminal de lucidez. A diferença é que o timoneiro do complô nos é mostrado o tempo todo por Ferrara. Seu Gavin Elster, Mickey, é quem age diretamente na transformação de Annie 2 em Annie 1 filmando-a enquanto a veste com uma peruca.

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Ferrara opera uma inversão em sua revisão de Hitchcock. Matty, seu Scottie, não tem condições de agir em seu desespero obsessivo, e é Mickey quem modifica sua Judy, Annie 2, e a transforma em Madeleine, Annie 1. Matty a mata enforcada. Em Vertigo, Scottie tem um papel um pouco mais passivo até o último ato do filme. Quem mata, primeiramente, é Elster. Scottie só age no final, quando através do colar de Carlotta descobre tudo e leva Judy até a igreja na missão espanhola, vencendo sua vertigem e atingindo o alto da torre. Judy porém morre caindo do alto ao ser assombrada (“você acredita em assombrações tomando conta de pessoas, Scottie?”, diz Gavin Elster para o amigo no início do filme) por uma freira que subia no local como um fantasma (“que Deus tenha piedade”, diz a freira e toca o sino, enquanto Scottie permanece no alto da torre incrédulo). Matty mata Annie 2 em um estado catatônico ao confudi-la com Annie 1, ecoando a cena de Vertigo em que Scottie crê ter visto Madeleine caindo da torre. Matty apaga e, junto do especatdor, não se lembra do ocorrido. Após o incidente, o filme entra em suspensão com Matty vivendo em Nova York, assombrado pelo passado, tentando se reerguer com uma esposa e uma vida ordinárias. Scottie também tentava se reerguer, mas era constantemente assombrado, e permanecia em um estado de degradação mental constante, até encontrar Judy e dar um sentido para o retorno de sua obsessão por Madeleine. Ambos, Scottie e Matty, são assombrados pela imagem perdida de Madeleine / Annie 1 no passado. Matty revela ao psiquiatra que seu assombro ainda é presente apesar da tentativa de viver com a atual esposa em harmonia. Scottie delirava na cama e vagava pela cidade recriando os passos de Madeleine dos tempos em que a seguia como detetive, sempre confortado pela presença harmônica da amiga Midge (Barbara Bel Geddes). Novamente, as representações revisadas por Ferrara em The Blackout tem origem nas imagens de Vertigo. A diferença é que Ferrara parece revirar essas imagens do avesso e a partir de suas entranhas desenvolver sua revisão. Como, por exemplo, na maneira de filmar Dalle (Annie 1), muito mais sexual, lasciva e ameaçadora do que Madeleine. Outra grande diferença é que em Vertigo Carlotta-Madeleine-Judy estão circunscritas na figura enigmática de Kim Novac. Em The Blackout Annie 1, Béatrice Dalle, parece muito segura de si, catalisando o medo, a obsessão e a queda de Matty, enquanto Annie 2 (Sarah Lassez) parece mais inocente, próxima do modo como Judy se apresenta a Scottie. A própria apresentação de Annie 1 por Ferrara se assemelha ao modo com que Hitchcock constrói a encenação de Madeleine/Elster para que Scottie se deslumbre com a moça e comece a persegui-la. Em Hitchcock, Novac de perfil é carregada de uma aura onírica, de um misticismo brumoso; ela se deixa tomar pelo olhar de Scottie e do espectador [Fig. 90]. Em Ferrara, Dalle de perfil é filmada centralizada de um

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modo que aparente sua presença dominadora em relação a Matty [Fig. 91]. Em Vertigo, a iluminação do rosto de Novac ao som da música que toca na trilha e o gritante papel de parede vermelho do restaurante parecem suspender qualquer verosimilhança para que possamos, quase que apartados do todo da narrativa, olhar para aquele rosto. Em Blackout não há suspensão. A câmera circunda Dalle no saguão de um hotel de Miami da maneira mais trivial possível, com coqueiros ao fundo, piscina, luz do sol estourando na chão do terraço. Uma delas, indiretamente, deixando-se iluminar e ser vista; outra, impondo seu olhar direto ao seu par e dominando-o de maneira consciente. O tratamento de ambos sobre as “substitutas” Judy e Annie 2 é igualmente desromantizado [Fig. 92 e 93], evidenciando um ar de ingenuidade e simplicidade que contrasta com a dupla Madeleine/Annie 1.

90. 91.

92. Vertigo: Madeleine / Judy 93. The Blackout: Annie 1 / Annie 2

Ferrara bagunça um pouco a ordem dos fatos de Vertigo. Matty e Annie 1 nos são apresentados como um casal em crise, que logo será desfeito, e restará a imagem fantasmática de Annie 1 na mente de Matty. Madeleine e Scottie se tornam um casal no meio de uma crise (não percebida por ele) que culminará na morte dela e no nascimento de Judy. O beijo e o coroamento da união amorosa do casal em Vertigo se dá num penhasco [Fig. 94], num outro momento de intensidade, com o mar revolto ao fundo e suas ondas batendo nas pedras conforme o casal se beija em primeiro plano, enquanto o volume da música pontua o exato momento em que a onda quebra nas pedras. A representação da magnitude dessa união é traduzida

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simbolicamente na imagem. O casal Matty e Annie 1, em um de seus únicos momentos harmônicos em todo o filme, se beija ainda no início quando ele vem vê-la no saguão do hotel [Fig. 95]. Novamente ao fundo apenas o sol estourando de luz as folhas dos coqueiros de Miami.

94. Vertigo 95. The Blackout

O interlúdio de Vertigo (Scottie acamado pós trauma), em The Blackout se dá na sobriedade de Matty e em sua procura por paz de espírito longe de Miami. O que chama atenção nesse trecho, em ambos os filmes, é o caráter enganoso da suposta calmaria dos protagonistas. Por detrás de seus rostos cândidos esconde-se o assombro de Madeleine e Annie 1, como se eles já soubessem da impossibilidade de livrar-se dele – tanto nos olhos parados e morosos de Scottie quanto nas falas perdidas de Matty nas sessões de terapia gravadas em vídeo [Fig. 96 e 97].

96. Vertigo 97. The Blackout

Há um plano [Fig. 98], quando Scottie está delirando, de James Stewart caminhando em um fundo preto enquanto olha a cova de Carlotta Valdes aberta e vazia, como se em meio a um pesadelo fosse revelada a trama construída para enganá-lo. Ao invés da sequência de animações oníricas de Vertigo, Ferrara isola suas personagens no plano esvaziado [Fig. 99], completamente escuro, como que num estúdio vazio.

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98. Vertigo: Scottie vê o túmulo vazio 99. The Blackout: Matty vê o vídeo em que mata Annie 2

Hitchcock isola o rosto de Scottie no centro do quadro enquanto em volta dele piscam luzes em recortes e feixes na perspectiva de sua cabeça com expressão apavorada, em um meio de representar o ápice de seu delírio [Fig. 100]. Hitchcock constrói esta sequência como um pesadelo do protagonista [Fig. 102]. Em The Blackout, como já vimos, Ferrara incorpora no próprio corpo narrativo e estético o caráter delirante de Matty quando este se afunda de vez e usa crack, isolando não somente o rosto de seu protagonista mas afundando o próprio filme, o próprio plano, na mais profunda escuridão de seu subconsciente [Fig. 101 e 103].

100. 101.

102. 103.

A revelação do complô contra Scottie nos é dada num flashback: a reconstrução dos fatos a partir da mente de Judy nos leva de volta à igreja na missão espanhola e nos revela Elster

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atirando do alto da torre sua atual esposa, já morta, vestida como Madeleine [Fig. 106]. É também remontada na mente de Matty, em The Blackout, uma visão confusa, turvada, inconsistente de Mickey se livrando do corpo de Annie 2 morta, enquanto ele espera no carro, semiconsciente [Fig. 105 e 107]. Assim como a presença imponente da igreja retorna ao longo de Vertigo, sempre em contraplongés que destacam sua magnitude [Fig. 104], a imagem confusa de Mickey jogando o corpo de Annie 2 pela janela é recorrente em The Blackout, de um modo mais ruidoso: nas primeiras vezes a cena parece um borrão abstrato vindo de uma mente delirante; só depois de alguns retornos, e de Mickey revelar a Matty o ocorrido, é que o espectador consegue remontar e dar um significado concreto àquelas imagens.

104. 105.

106. Vertigo 107. The Blackout

Nessa comparação entre Vertigo e The Blackout, porém, nada chega perto da revisão ferrariana da famosa cena em que, surgindo fantasmática, enevoada em uma bruma verde na porta do banheiro, e caminhando até Scottie, Judy completa sua transformação e se apresenta a ele, para que eles se abracem e beijem, a câmera girando num travelling circular em volta do casal. Praticamente a mesma coisa ocorre em The Blackout. Annie 2 é vestida por Mickey em uma sala separada e caminha na direção de Matty, completamente drogado, vestida com uma peruca que o faz recordar Annie 1. Mickey está presente durante toda a cena, filmando o casal com sua handycam.

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Uma das grandes diferenças entre as duas cenas é o registro. Ambas são cenas assombradas, que tangenciam um sentimento de horror unido a um deslumbramento do protagonista, ambas são filmadas de modo a ressaltar um caráter fantasmagórico que beira o surreal, intensificando esse retorno à vida da imagem perdida. Em The Blackout há dois registros. Um deles é de cinema, do próprio Ferrara refilmando a sequência de Vertigo, em que vemos Matty recebendo Annie 2 em seus braços pensando estar na presença de Annie 1. O outro registro é de vídeo, realizado por Mickey, filmando tudo com sua handycam na esperança de preencher as lacunas de sua refilmagem de Nana. A cena de The Blackout pode funcionar também como um negativo estético de Vertigo. Hitchcock banha o quarto de Judy em um verde neon inconcebível, reforçando o tom fantasioso da cena. Ferrara, por sua vez, isola suas personagens em um fundo preto, sem vida, sem profundidade, como Mickey em sua refilmagem. Os planos de Judy e Annie 2 [Figuras 108 e 109], momentos antes da transformação, exemplificam bem a diferença.

108. Vertigo 109. The Blackout

Se Madeleine é uma ficção criada a partir da esposa de Gavin Elster para enfeitiçar Scottie, Annie 2 é uma pessoa real e carrega consigo algumas das marcas que forçam o contraste entre sua figura ideal e sua real personalidade. Como Judy, Annie 2 vem da working class, garçonete que reconhece em Matty uma estrela de Hollywood e se deslumbra com a possibilidade de entrar naquele mundo. Como Madeleine, Annie 1 é uma figura da alta sociedade, deslumbrante. A distância imagética, de vestimenta, atitude e semblante, entre Judy e Madeleine / Annie 2 e Annie 1 é também uma distância social. A transformação final é feita em The Blackout através de Mickey. Depois de completa, quando Annie 2 surge como Annie 1 para Matty, Ferrara filma toda a sequência alternando entre a sua imagem cinematográfica e a imagem de vídeo, incorporando Mickey na cena. Esse também é o momento que marca o apagão (blecaute) de Matty, antes de ir para Nova York.

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Antes de apagar Ferrara ainda incorpora à sequência outra imagens pregressas do filme, imagens de Annie 1 e flashbacks: como uma torrente mental, descarga elétrica de imagens antes de desligar e desmaiar. Mais adiante, veremos de novo, na íntegra, a sequência toda filmada por Mickey. Ele retira a peruca de Annie 2 quando percebe o estado agressivo e desesperado de Matty. Mas isso não é o bastante. Matty a enforca até a morte [Fig. 110]. Há mais uma lacuna preenchida em sua refilmagem. Justamente aquela em que víamos ao lado do monitor um letreiro escrito “shot missing” [Fig. 111].

110. 111.

A cena do enforcamento de Annie 1 por Matty volta com certa frequência ao filme, como um pesadelo [Figura 112]. A mente dele deseja matar Annie 1 da mesma forma que ele revela ao psiquiatra que deseja vê-la uma última vez. A questão se torna ainda mais desesperadora para Matty quando percebe que a morte de Annie 1 é apenas simbólica, mas ela ainda permanece viva e o abandona uma segunda vez, enquanto a morte física de Annie 2, garota humilde e inocente, o persegue até o final.

112.

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Durante o travelling circular em Vertigo, Hitchcock insere uma imagem mental da missão espanhola, como se o casal fosse transportado para lá naquele instante, substituindo momentaneamente o verde brilhoso do fundo do quarto. O delírio de Scottie é representado nessa imagem da missão espanhola, “lugar em que Scottie havia dado o último beijo em Madeleine antes de ela correr para a torre da igreja e de lá despencar. A vertigem amorosa o faz voltar no tempo e se imaginar novamente nos braços de Madeleine, como se ela não tivesse morrido, ou como se o destino tivesse sido revertido.” (OLIVEIRA JR, 2015, p. 319). A sofisticação do efeito giratório em Vertigo dá lugar em The Blackout à alternância de registros, vídeo e película (Ferrara e Mickey), e o fundo mental de Scottie se materializando no fundo do plano em Vertigo dá lugar em The Blackout à figura onipresente de Mickey com sua câmera, ao fundo do quadro, filmando tudo: seu shot missing é registrado [Fig. 113 a 124].

113. 114.

115. 116.

117. 118.

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119. 120.

121. 122.

123. Vertigo 124. The Blackout

“Nem todos conseguem viver com essas imagens” (Ibid., 2015, p. 321). Depois de certa insistência, ao voltar a Miami para tentar reencontrar Annie 1, Mickey mostra seu shot missing a Matty. Antes leva Annie 1 a Matty, entregue de novo ao álcool e às drogas, completamente derrotado. Repete-se então o jogo visual da última cena do casal junto, no mesmo quarto de hotel em Miami: Annie 1 muito mais segura e altiva observa de cima, com pena [Fig. 125], um Matty derrotado, no chão, fora de si [Fig. 126].

125. 126.

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Antes do nos mostrar o vídeo do assassinato e a reação de Matty, Ferrara insere uma cena que destoa do resto do filme. Um momento de paz entre Matty e Annie 2, em preto e branco bucólico [Fig. 127], passeando na praia como um casal de namorados, o que contrasta ainda mais com o abismo de escuridão em que ele mergulhará ao entrar em contato com as imagens reais filmadas por Mickey [Fig. 128].

127. 128.

Matty não consegue lidar com as imagens de Mickey e o filme mergulha, junto com ele, na escuridão total. Mickey, o criador obsessivo permanece em pé e discursa expurgando Matty como um inseto amedrontado para fora de sua vida, em um último movimento mefistofélico de eliminar o ator após utilizá-lo para suas realizações. Matty sai desnorteado pelas praias noturnas de Miami e entra no mar nadando sem rumo “para o meio do oceano, para o vazio, para a escuridão. Até se afogar e se diluir nas trevas. Que Deus tenha piedade.” (Ibid., p. 321) Em Vertigo, Scottie enfrenta seu medo e sobe as escadas da igreja confrontando Judy antes de vê-la despencar. Hitchcock, então, nos abandona com o plano de Scottie no alto da torre observando aterrorizado aquela tragédia. Ferrara vai um pouco além em The Blackout e nos mostra a transfiguração das imagens físicas e deterioradas de Matty em imagens mentais, numa ascese às avessas, rumo à mais profunda escuridão no oceano já não mais necessariamente terreno e concreto.

2.5 Atos finais

O final de The Blackout aposta no enigma e na abstração como ponto de fuga, como representação artística da busca de Matty e como imagem subconsciente. Ferrara então transforma uma cena corriqueira de suicídio no mar noturno em uma repetição exaustiva de Matty cruzando a nado o plano do mar. Perdemos, ao longo da sequência final, qualquer

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referência física e espacial daquela locação. O mar se transforma numa espécie de plasma junguiano pós-morte em que, atenuado o sentido narrativo, emerge a força da projeção simbólica e metafísica. Ferrara mais uma vez termina seu filme fugindo das “imagens-clichê (NOGUEIRA, 2012), como sempre fez em filmes que “parecem sempre nos trazer imagens já conhecidas (dos gêneros, do cinema em geral), porém mostradas sob um outro ângulo, que retira delas a função arquetípica para revelar, nelas próprias, uma força oculta.” (Ibid., 2012):

Há algum cineasta mais obcecado pela morte que Abel Ferrara? E não a morte natural, mas o assassinato: Ms .45 (1981), China Girl (1987), King of New York (1990), Bad Lieutenant (1992), Dangerous Games (conhecido como Snake Eyes, 1993) e The Funeral (1996), todos terminam brutalmente com atos finais de matança – frequentemente pelas mãos, ou do próprio, protagonista. The Addiction (1995), assim como MS .45 e Body Snatchers (1993), atinge o clímax em cenas apocalípticas de chacina. The Funeral começa com uma morte misteriosa e prossegue com sua investigação. Desaparecimentos violentos interferem estrutura esburacada de The Blackout (1997) e New Rose Hotel (1998). Serial killers solitários e degenerados conduziam seus primeiros trabalhos, de The Driller Killer (1979) à Fear City (1984), até que os organizados assassinos corporativos tomaram conta em King of New York, New Rose Hotel e ‘R Xmas (2001). Em The Blackout vamos além, em uma inquietante fagulha de vida após a morte. (MARTIN, op. cit., 2008)

Assim como Hitchcock, porém à sua maneira, Ferrara encena “a mais cruel e agoniante morte do modelo (destino inexorável da pulsão criadora tal como estabelecida em Vertigo)” (Op. cit., 2015, p. 321). E assim como em seus melhores trabalhos, principalmente os da década de 1990, fecha o filme em um agonizante grito de sacrifício. Como num plano sequência documental de Vício Frenético em que vemos de longe o tenente ser baleado em seu carro no meio da multidão. Ou nos sets de filmagem de Snake Eyes [Fig. 129 e 130], em que filme e vida se confundem a todo o momento, a ponto de não sabermos se vemos um filme de Ferrara ou de Keitel.

129. Snake Eyes (1993) 130.

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Ou em The Addiction [Fig. 131], num gesto lírico após a orgia vampiresca onde vemos Catherine olhando para a própria sepultura no cemitério antes da câmera nos mostrar a cruz apontando para o céu.

131. The Addiction (1995)

Ou em The Funeral [Fig. 132 e 133], quando vemos os três irmãos dançando e cantando em um flashback que se torna ainda mais doloroso após a chacina realizada pelo personagem de Chris Penn no funeral do irmão.

132. The Funeral (1996) 133.

Em The Blackout [Fig. 134 e 135], a criação artística ganha peso na morte dos personagens, “como um gesto extremista, que só se consuma ao custo de sacrifícios totais, de perdas irreparáveis. Criar uma obra de arte, neste contexto, é colocar-se no limite, é dispor-se a visitar o inferno para depois transformar em imagens o que lá se testemunhou” (Ibid., p. 321).

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134. 135.

Curioso notar que a imagem mental de Matty que fica ao final, depois de montado o quebra cabeças abstrato em sua mente, é a de Annie 2, a garçonete inocente morta de forma bárbara durante a filmagem de uma cena maldita em um filme maldito [Fig. 136]. Não há mais nada a ser resolvido dentro de Matty. Só resta mergulhar naquelas imagens e unir-se a elas não mais no plano físico, mas no metafísico, transcendendo a matéria na tentativa igualmente desesperada de encontrar alguma paz de espírito:

Por que nos dar ainda esta última imagem? O que fazem ali aqueles fotogramas perdidos logo antes dos créditos? A imagem reconcilia o personagem com seu fantasma. Ali, na imensidão do mar, provavelmente morto, Matty reencontra não apenas sua paz, mas a imagem perdida em sua memória. (NOGUEIRA, op. cit., 2012)

Como nos primeiros planos do filme vemos, agora no presente, a praia, a lua, o céu escuro e o mar em toda sua imensidão turva e opaca. As ações daqueles corpos que se movem faz algum sentido agora na moldura fílmica. O ciclo se fecha.

136. The Blackout: plano final

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Capítulo III. O ato de ver: The Blackout em perspectiva comparatista

3.1 The Blackout e a imagem contemporânea

Tudo em Ferrara parece desaguar na representação. O ato de ver em seus filmes supera o plano narrativo e se transforma em assunto central. Como em Vício Frenético, quando a troca de olhares constantes entre Keitel e a freira violentada desemboca numa reflexão sobre a forma fílmica, sobre o próprio ato de filmar41, que reaparecerá em The Blackout, em Maria (Mary, 2005), em Bem-vindo à Nova York (Welcome to New York, 2014) ou em Enigma do poder (New Rose Hotel, 1997) que fazem da imagem protagonista e objeto de reflexão: lembremos os 20 minutos finais de New Rose Hotel, mostrando Willem Dafoe e as imagens mentais do passado de , que reconstroem imagens já filmadas por Ferrara. Em The Blackout, da segunda parte em diante (após o rompimento do casal), Ferrara parece aprofundar sua investigação sobre a imagem. É esse o bloco em que os grãos da película ficam mais visíveis, em que o esgarçamento e a distorção da imagem também se fazem presente, em que a materialização fílmica da bad trip de Matty é representada pelas fusões constantes, pelos planos próximos, pela lente grande angular, pela fluidez da edição e da reordenação dos planos. É nesse trecho do filme que ficam também evidentes alguns pontos já discutidos aqui: o diálogo com Vertigo, a pornografia e o excesso como representação imagética, o suporte de captação e os aspectos rudimentares da captação. É neste bloco ainda que fica mais clara a consciência de Ferrara da crise da imagem cinematográfica. Em artigo42 sobre a obra do cineasta, seus excessos são apontados e expandidos:

Por um lado, há a superstição do filme B de sexo, nudez, drogas, bebida, violência e sangue. Acrescente a isso um estilo primitivo impressionante (planos longos, imagens borradas, ausência de planos gerais, câmera na mão, etc.) e trechos ruidosos com lacunas e transições acentuadas. Por outro lado, há intensa iconografia católica em referências intertextuais (Scorsese, Godard, Pasolini, Bresson, Warhol, Burroughs, Sartre...), elementos metafísicos, ambivalência religiosa, masculinidade

41 Atingindo um paroxismo muito peculiar em Olhos de serpente (Snake eyes / Dangerous games, 1993) quando o próprio assunto do filme se materializa em um filme dentro do filme. 42 Ver SCHMIDT-JØRGENSEN, Dorte. “Bastante capaz”. 16: 9, Fevereiro/2005. http://www.16-9.dk/2005- 02/side04_feature1.htm 88

problematizada, moralidade como tema, identidade e existência. (JORGENSEN, 2005)

Após ser deixado por Annie com a notícia do aborto, Matty procura justamente Mickey e, quase no modo automático, sem grande consciência ou racionalidade, parte em uma busca cega pela companheira ao lado do cineasta. Voltamos então ao set de filmagem caótico de Mickey. Vemos o diretor agitado, com sua câmera de vídeo na mão, pessoas seminuas, uma espécie de festa da carne em que se filma uma peça audiovisual. No outro canto escuro do set, Matty entra encolhido, perdido, senta-se no bar e começa sua viagem à escuridão. Após um diálogo com Mickey que o provoca sem ajudá-lo a localizar Annie, Matty sai com ele em seu carro conversível por Miami. A figura de Mickey aqui torna-se ainda maior e perversa. Sua sombra não paira mais especulativa sobre a figura do protagonista. Ele toma as rédeas de Matty definitivamente, e este controle será quebrado apenas com a sua ida para Nova York. O que mais nos interessa aqui é o modo como Ferrara representa essa desagregação mental de Matty, como isso se repete no fim quando ele volta a beber e usar drogas, e como, de uma forma caótica e dispersa, Ferrara une a narrativa e a psicologia do protagonista, a adesão do vídeo ao filme, a crise da imagem que filma e, por fim, a organização na montagem dessas imagens e sua manipulação. Matty entrega as chaves de seu carro a Mickey e deixa que o cineasta tome conta de seu destino. A imagem dos dois no carro nas estradas de Miami é muito importante. Os planos contêm um peso ainda maior do que os já vistos no filme [Fig. 137]. Poucas são as cenas externas em The Blackout. Quando surgem, Ferrara nos apresenta em seus exteriores uma Miami de pesadelos, distante dos cartões postais – assim como fazia na Nova York de Vício Frenético. Estamos em uma Miami filtrada pelas alucinações de Matty e atravessada pelo temperamento babélico de Ferrara. No carro de Matty, Ferrara os filma de perto [Fig. 138 e 139], de dentro do carro, com lente grande angular, descolando seus rostos do lusco fusco da paisagem, trazendo um peso para seu plano, evidenciando grãos da película, seus desfoques e outras perturbações na imagem, inserindo a própria imagem de vídeo que Mickey produz com sua câmera enquanto dirige: vemos o rosto de Matty ainda mais distorcido em um plano contendo uma imagem ainda mais prejudicada, criando um óbvio contraste com a película mas também acentuando o caráter impuro e único daquelas imagens.

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137.

138. 139.

Coisa parecida vai ocorrer após Mickey levar Matty ao encontro de prostitutas, se drogar e festejar com elas – sempre com sua câmera ligada, filmando tudo. Matty vai até a varanda do quarto fumar um cigarro e é acompanhado por uma das garotas. Outra cena externa em que, agora já sem sol, vemos o mar ao fundo e Matty, pesaroso e entregue ao próprio vício, em primeiro plano, sozinho de início e em seguida junto da garota que tenta alegrá-lo antes dele afastá-la e voltar à sua solidão [Fig. 140 e 141]. Ferrara nos mostra Matty em planos que se confundem com os da câmera de vídeo de Mickey, permitindo que a imagem aflore em todas as suas imperfeições, expondo sua crueza.

140. 141.

A imagem para Ferrara, aqui, encontra-se numa espécie de encruzilhada, beco sem saída, em que a única opção possível é sua radicalização profunda, sua manipulação drástica, seu caráter reflexivo. Por isso os filmes The Blackout e New Rose Hotel parecem tão essenciais

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em sua filmografia: Ferrara trata narrativamente da imagem personificada em Béatrice Dalle em 1997 e Asia Argento em 1998, enquanto a manipula, expõe, revira e reorganiza, colocando em xeque sua representação. Ferrara está lidando com uma iconografia muito conhecida, oriunda da memória cinematográfica, partindo de uma cinefilia caótica e totalizante, como já vimos. É possível, portanto, ao observarmos com cuidado, construir pontes entre as imagens de seus filmes e as de outros, de outros cineastas, influências conscientes e inconscientes do diretor. Apesar de muitos críticos aproximarem a estética de Ferrara após The Blackout daquilo que se convencionou chamar de cinema de fluxo no início dos anos 2000, esta não será a ênfase de nossa análise. Falaremos brevemente da intersecção possível entre Ferrara e o cinema de fluxo, mas principalmente da relação de Ferrara com Mann e com um cinema narrativo americano que lhe é contemporâneo. Além de Mann, que olharemos com mais cuidado e atenção, nossa análise abordará cineastas que, como Ferrara, surgiram ou ganharam maior fôlego nos anos 80, lidaram de alguma forma com a estética predominante no período e esbarraram, cada um à sua maneira, nos questionamentos sobre a imagem cinematográfica, sua significação e sua crise da década de 90 ao início dos anos 2000: John McTiernan, Lynch, John Carpenter, David Cronenberg, entre outros. Mas antes de entrarmos no diálogo do cinema norte-americano com Ferrara, faremos uma breve digressão sobre sua relação com o cinema de fluxo.

3.2 Ferrara, cinema de fluxo e a crise da mise em scène

Curiosamente, Ferrara seria relacionado ao cinema de fluxo anos depois deste tomar forma, ser teorizado, estudado e ganhar seu panteão de obras e autores. A presente digressão sobre tal cinema propõe um olhar panorâmico sobre seu surgimento mas não visa legitimar a inserção do cineasta neste movimento. Devemos notar, também, que na última década uma parte da crítica levantou certos filmes e cineastas chamando-os de “cinema vulgar”, ou de “autorismo vulgar”43. Não aprofundaremos este debate, por julgarmos que a ideia de vulgaridade associada a um certo tipo de “cinemão” de ação, e que comparações um tanto forçadas entre filmes de W.S Anderson e Orson Welles não fornecem parâmetros válidos para as análises. Porém, houve uma aproximação entre alguns filmes considerados “vulgares”, o cinema de fluxo e Abel Ferrara. Dito isso, voltemos ao fluxo.

43 Ver: http://multiplotcinema.com.br/2016/12/vulgar-auteurism-uma-introducao/ 91

*** Por volta do final dos anos 90 e início dos anos 2000 o cinema mundial entrava em um impasse. Diversos filmes espalhados pelos festivais de cinema mundo afora (de cineastas muito variados) surgiam para a crítica e para o público como uma novidade. A própria ideia de mise en scène parecia ser colocada à prova nos filmes. Parecia haver outros interesses nas construções espaço-temporais dos planos e em seus encadeamentos: o que antes, no imaginário do passado cinematográfico, era uma encenação que buscava uma centralidade, que guiava nossos olhares ao cerne da ação (como o cinema clássico de Hollywod), e que já havia passado por uma modernidade que buscava a desconstrução da cena e o abalo de suas estruturas, mas ainda com a ideia de encenação guiando os planos dos cineastas (pensamos em Godard, na Nouvelle Vague francesa, mas também nos cinemas novos do mundo todo), agora na virada para os anos 2000 parecia abolir a própria ideia de cena, de plano. Esse conjunto de filmes foi notado por críticos franceses no calor dos festivais de cinema. Curioso notar que os textos fundadores do cinema de fluxo44 falavam de filmes que, quando o estudo dessa estética ficou mais delimitado e distanciado, perderam centralidade45. Os críticos eram Stéphane Bouquet, Olivier Joyard e Jean-Marc Lalanne. Entre 2002 e 2003, eles publicaram uma série de artigos que tentavam dar conta desse supostamente novo tipo de cinema que surgia. Stéphane Bouquet comparava por exemplo os “cineastas do plano com cineastas do fluxo” (BOUQUET, 2002), e o termo já era cunhado por eles – como podemos ver o artigo de Bouquet: “Plano contrafluxo (Plan contre flux)”. O plano parecia ser um tópico essencial na abordagem dos cineastas. Joyard e Lalanne escreveriam dois artigos que dialogavam entre si debatendo os filmes e sua estética intrigante: “Que plano é esse?” (C’est quoi ce plan?, Jean- Marc Lalanne, junho de 2002) e “Que plano é esse? (a continuação)” (C’est quoi ce plan? (La suite), Olivier Joyard, junho de 2003). E quais eram os filmes? A lista é enorme, mas podemos citar alguns mais decisivos e relevantes, tanto para o período quanto para os estudos de cinema: os da fase formalista de Gus Van Sant como Gerry (2002), Elefante (Elephant, 2003)46, Últimos Dias (Last Days, 2005) e Paranoid Park (2007); o primeiro longa-metragem de Philippe Grandrieux, Sombre (1998); o filme Shara (Naomi Kawase) de 2003; Amor à Flor da Pele (2000), de Wong Kar-Wai; filmes

44 Para informações mais aprofundadas sobre o cinema de fluxo ver: OLIVEIRA JR, Luiz Carlos. A mise en scène no cinema: do clássico ao cinema de fluxo. Campinas, SP. Papirus, 2013. 45 Spider (David Cronenberg, 2002), Arca Russa (Aleksandr Sokurov, 2002), Irreversível (Gaspar Noé, 2002), por exemplo. 46 Há de se citar também como importante referência para Gus Van Sant o filme experimental britânico de mesmo nome, Elephant, dirigido por Alan Clarke em 1989. 92

de Claire Denis como Bom Trabalho (Beau travail, 1999) e O Intruso (L'intrus, 2004); filmes de Hou Hsiao-Hsien como Adeus, ao Sul (1996), Flores de Xangai (1998) e Millennium Mambo (2001); Brown Bunny (2003) de Vincent Gallo, entre outros. Lalanne, em seu artigo reativo ao festival de Cannes de 2002, escreveu sobre um suposto horizonte estético do cinema contemporâneo, dando continuidade à tentativa de Bouquet de caracterizar aqueles filmes no calor do momento:

Stéphane Bouquet anunciava há alguns meses atrás (Cahiers nº566): o horizonte estético do cinema contemporâneo tomaria a forma de um fluxo. Um fluxo esticado, contínuo, um escorrer de imagens na qual se abismam todos os instrumentos clássicos mantidos pela própria definição da mise-en-scène: o quadro como composição pictural, o raccord como agente de significação, a montagem como sistema retórico, a elipse como condição da narrativa [...] Em certas proposições radicais, o plano não é mais a parte de um todo, mas ao contrário, em Sokurov, em Gaspar Noé, tudo agora faz parte do plano. (LALANNE, 2002)

No ano seguinte em Cannes, em um texto cujo subtítulo “a continuação” explicitava seus objetivos, Joyard continuou o questionamento acerca da construção do plano, do papel da mise en scène e de aspectos formais dos filmes:

[...] os longos travellings de Gus Van Sant e Naomi Kawase têm em comum o fato de serem ao mesmo tempo universos fechados e verdadeiramente infinitos, principalmente porque eles contêm suas próprias elipses. O princípio da repetição de uma mesma cena sob um ângulo diferente, que funda a narração de Elefante, se acompanha de uma liberação imediata do espaço circunscrito por nosso olhar: o plano não é mais um mergulho subjetivo no mundo de um personagem. (JOYARD, 2003)

O que esses filmes têm em comum além de estarem circunscritos em um mesmo período? Serge Daney, muito antes, indagava se após a modernidade (e tangenciando a sua discussão com a história das artes visuais) nos depararíamos com o barroco no cinema, de maneira muito similar a descrições do que viria a ser o cinema de fluxo dos anos 2000:

Nem a profundidade simulada da imagem rasa, nem a distância real da imagem em relação ao espectador, mas a possibilidade oferecida a este de deslizar lentamente ao longo das imagens que deslizam elas mesmas umas sobre as outras (DANEY, 2007, p. 233)

Luiz Carlos Oliveira Jr. retoma esta discussão de Daney sobre os desdobramentos da modernidade no cinema e avança até o cinema de fluxo dos anos 2000:

Daney termina o texto interrogando: “então, o barroco?”. Em outras palavras: será o maneirismo cinematográfico, como foi o pictórico, uma ponte entre a superação do clássico e o advento do barroco? [...] Desdobremos a pergunta: se o cinema de fluxo

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é a tendência estética mais presente e marcante no cinema de autor desde o esgotamento do maneirismo (isto é, desde há aproximadamente 15 anos), não deveríamos, pela lógica de “evolução” das formas artísticas, entendê-lo como um cinema barroco? (OLIVEIRA JR., op. cit., p. 170)

Em suma, podemos notar que as aproximações entre esses filmes tentam definir um cinema cuja materialidade do plano, da cena e do olhar se concretiza em uma via que não passa pelo direcionamento retilíneo da ação, não se estrutura a partir dela, não busca a sua quebra ou sua desconstrução, e nem sequer uma hipertrofia, uma super estilização do espaço imbricado num aparato virtuoso de encenação como o cinema dos anos 80. Tal cinema chamado "de fluxo" se interessaria por uma dissolução da cena, por uma câmera que flutua e se detém ora nos poros aproximados dos atores, ora numa movimentação que vaga por locações e ações como um fluxo organizado montado como grandes blocos de sensações, tratando de “filmar primitivamente a pulsão primitiva, filmar as pulsões em estado bruto [...] para provocar no espectador a sensação de consciência obnubilada, ou mesmo de inconsciência, e situá-lo assim num espaço indeterminável.” (Ibid., p. 158-159) Estamos falando de filmes narrativos, de dramas trágicos, mas que apostam na imersão completa do espectador na experiência emotiva, no caráter inconsciente dessa imersão, dessa sensação, sem grandes preocupações com enredo, ação e reação da trama:

O narrador está cegamente imerso na experiência, não tem a distância necessária para “contar histórias” e, valendo-se delas, estimular emoções da plateia. A diluição do drama é acompanhada de uma fascinação com a “flutuação generalizada”, com a sensação de mobilidade. O lugar da cena não se apresenta com clareza, a narrativa tampouco. Nenhuma cena é decupada segundo uma necessidade pragmática do enredo ou segundo uma preocupação com a fluência dramática do conjunto. Esses critérios ou valores são substituídos por um olhar vagante, uma atenção dispersa, uma planificação da narrativa que se prova sensível à aleatoriedade e à memória lábil das coisas. (Ibid., p. 164)

É claro que qualquer tentativa de caracterizar um movimento ou um conjunto estético coeso a partir de filmes muito diversos esbarra em becos sem saída ao enfrentar as muitas diferenças entre os objetos estudados. Podemos identificar todas essas características nos filmes selecionados, mas também podemos notar que os filmes de Claire Denis têm pouco a ver com os de Hou Hsiao-Hsien, ou ainda que Phillipe Grandrieux [Fig. 143]47 está muito mais ligado à tradição do cinema experimental de Stan Brakhage [Fig. 142]48, por exemplo, do que à genealogia dos filmes narrativos e dos filmes que fazem parte do fluxo.

47 Fig. 143: Sombre (Philippe Grandrieux, 1998). 48 Fig. 142: Anticipation of the Night (Stan Brakhage, 1958). 94

142. 143.

Revisões são sempre importantes, mas não se trata aqui de propor uma nova revisão do cinema de fluxo, e muito menos de inserir Ferrara nessa seara. A referência a este debate se fez necessária porque os filmes de Ferrara do fim dos anos 90 ao início dos 2000 têm, de fato, algumas características marcantes que poderiam vinculá-lo a esse grupo de realizadores ou convidar a uma aproximação de Ferrara com o cinema dos festivais49 do período. Filmes como The Blackout, New Rose Hotel, R’Xmas, 4:44 e Mary carregam em alguns de seus procedimentos semelhanças com um suposto barroco cinematográfico em que Daney apontou “imagens que deslizam.” (Op. cit., 2007, p. 233) Vale lembrar que em todas as teorias e as análises do cinema de fluxo o ponto de partida é quase sempre o mesmo: o ato de ver e a maneira com que a imagem passava a ser representada nos filmes a partir desse olhar. Curiosamente, um dos mais importantes textos50 (do crítico e pesquisador francês Jean-Baptiste Thoret) sobre o filme Miami Vice (de Michael Mann, 2006) tem a palavra fluxo em seu título.

3.3 Ferrara e Mann: Miami Vice e a mudança de suporte

Stanley Kubrick. Eisenstein. Dziga Vertov. E ‘Kino Eye’. Eu acredito que seja uma limitação minha. Então minha abordagem do cinema tende a ser estrutural, formal, abstrata e humanista (MANN, 1980)

49 Quando começou a ser progressivamente escanteado nos EUA e se refugiou na Europa após o 11 de Setembro, Ferrara começou a participar dos mesmos festivais em um nicho similar ao dos cineastas do fluxo. 50 THORET, Jean-Baptiste. “Gravity of the Flux: Michael Mann’s Miami Vice”. Senses of cinema, 2007. http://sensesofcinema.com/2007/feature-articles/miami-vice/ 95

É pouco usual um cineasta como Michael Mann, com sua sólida posição de narrador bem sucedido no cenário norte-americano dos anos 90 provocar um curto circuito na própria carreira a partir de 2004, com filmes cada vez mais radicais e auto-reflexivos. O ápice ocorreu em 2006 com Miami Vice, filme de pulsões experimentais que, segundo Thoret, “desenvolve uma nova experiência sensorial e, de um ponto de vista formal, uma inspirada síntese de impressionismo e hiper-realismo”, em que “a noite incandescente da câmera implacável que Michael Mann emprega faz emergir a sensação de um filme alucinógeno onde homem e natureza se dissolvem um no outro, palpitando com o mesmo ar trágico.” (THORET, 2007) Mas deve-se lembrar que os grandes orçamentos e o grande público atingido pelos filmes narrativos bem sucedidos de Mann não os impediram de tratar de temas profundos e de assumir uma ótica formal reflexiva, complexa, nada inocente. O que fez Mann, a partir dos anos 2000, foi adaptar-se ao mundo do HD digital e ao fim da película que se anunciava já no fim dos anos 90. Adaptou-se não só na captação de seus filmes, mas também na introjeção do novo suporte como assunto, como um verdadeiro problema formal: eis, talvez, o maior ponto de encontro entre Mann e Ferrara. *** Natural de Chicago, Mann não esteve ativamente filmando nos EUA como parte da Nova Hollywood. Enquanto Scorsese, Spielberg, Cimino, Eastwood, Milius, Hellman e cia realizavam seus primeiros filmes mais relevantes nos anos 60 e 70, Mann estava em Londres envolvido com documentários políticos, como os curtas cobrindo, por exemplo, o maio de 68, entre outras manifestações importantes. Nascido em 1943, Mann tem a mesma idade dos diretores mais importantes da Nova Hollywood (Scorsese, por exemplo, nasceu em 1942). Ainda universitário, ele foi para a Europa, onde realizou os primeiros trabalhos audiovisuais. Ao voltar para os Estados Unidos e realizar seu primeiro longa, Profissão: ladrão (Thief, 1981), a Nova Hollywood já era um mero espectro. Ele estreava ali praticamente junto de Ferrara (que lançara seu primeiro filme de forma independente em 1979). Sua trajetória também é curiosa. Diferentemente de Ferrara, Mann logo se adequou à indústria. Estilisticamente, nasceu pronto com Thief. Maduro e complexo, o filme chamou a atenção, fazendo com que Mann fosse requisitado para um trabalho mais ambicioso. A produção tumultuada e o retumbante fracasso, comercial e de crítica, da ficção científica Fortaleza Infernal (The Keep, 1983) o afastou quase por completo das produções de filmes. Reerguendo-se, Mann rapidamente se tornou um produtor importante na TV. Ao longo dos anos 1980, encontrou na TV um verdadeiro laboratório para suas pesquisas estéticas, criando e produzindo seriados – o maior deles, Miami Vice. Realizou esporadicamente alguns

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filmes sem repetir os erros do anterior: Caçador de assassinos (Manhunt, 1986) é um desenvolvimento de seu estilo confirmando alguns temas já presentes em Thief, que acabariam permeando todas as suas obras futuras: a cidade, o trabalho e a violência. Mas é nos anos 90 que, após o sucesso e o prestígio de Miami Vice na TV, Mann se firma na indústria cinematográfica. Seja narrando a constituição fraturada da sociedade americana por um viés histórico – como no sucesso de bilheteria, O Último dos Moicanos (The last Mohicans, 1992) –, seja retratando a violência que toma conta dos espaços urbanos a partir dos conflitos entre os que escolhem viver de acordo com as instituições e os que se posicionam contra elas – como no monumento Fogo Contra Fogo (Heat, 1995) –, Mann atravessa os anos 1990 esquematizando um verdadeiro raio-x dos EUA. Podemos dizer que Ferrara e Mann são cineastas irmãos, que atuam em duas vias bem diferentes sob o ponto de vista da indústria. Embora tenha dirigido episódios de Miami Vice nos anos 80, Ferrara nunca conseguiu se adequar à indústria como Mann (fazemos a constatação sem juízo de valor positivo ou negativo), tendo realizado apenas um filme de grande orçamento, em 1993, para a Warner (o fracasso comercial Body Snatchers). Apesar de ambos estarem atualmente escanteados pela grande indústria51, esse declínio se deu de modo bem diverso para ambos: enquanto Ferrara ganhou prestígio crítico e realizou apenas um filme mainstream para então voltar à margem e ver o que restava de seu prestígio crítico e financeiro minguar entre o fim dos anos 90 e o início dos 2000, Mann continuou relevante e ativo na indústria mainstream durante quase duas décadas (metade dos anos 80, toda a década de 90 e início dos anos 2000). Podemos notar também que as diferenças de temperamento de Mann e Ferrara se traduzem nos resultados de seus filmes. Enquanto Mann realiza projetos formalistas muito bem engendrados, matematicamente planejados e construídos – mesmo em seus trabalhos mais experimentais, como Miami Vice –, Ferrara personifica e materializa o caos em seus filmes – retratos espelhados da figura amalucada, intensa e inconstante –, sempre desafiadores para a análise. Parece muito mais fácil perceber uma assinatura estilística, um olhar autoral e um direcionamento formal coeso em Mann do que em Ferrara. Principalmente no ápice ferrariano dos anos 90, em que “a diversidade comandava: poderia ser o mesmo diretor quem comandou, tão habilmente, o estilo hyper-Michael Mann do azul noturno e cool em King of New York, o minimalismo ‘via crucis’ em Bad Lieutenant, o preto e branco rígido do horror exploitation em

51 Ferrara, como já mencionado aqui, se isolou na Itália realizando filmes e documentários com produção em países da Europa. Mann, desde o fracasso do filme Hacker (Blackhat, 2015), que foi lançado junto do fenômeno daquele ano Sniper Americano (American Sniper, até hoje a maior bilheteria de um filme de Clint Eastwood) – e somado a ele os não bem sucedidos financeiramente Miami Vice e Inimigos Públicos – permanece com diversos projetos na manga mas sem produzir nada de fato. 97

The Addiction, a mise en scène sombria e majestosa em The Funeral e as multicamadas de colagem alucinante em The Blackout?” (MARTIN, 2008). O fato é que a chegada do digital HD52, se trouxe frescor e uma nova camada de complexidade para os filmes de Ferrara e Mann, levou-os também a perder público e prestígio. É essa interseção entre o protagonismo da imagem, o ato de ver, a reflexão sobre a história do cinema e o uso do suporte digital que convém examinarmos:

No fim dos anos 90, a proliferação de diferentes formatos de imagem ou texturas continuaram e aprofundaram essa exploração: TV, vídeo, câmeras de vigilância, split- screens, imagem digitalizada... levando a um aglomerado ambíguo de imagens em colisão com a montagem. Assistindo a The Blackout e a New Rose Hotel, não podemos mais identificar onde vemos flashbacks, construções mentais, narrativa objetiva, ou palavras especulativas, alternativas, desviando da história. (Ibid., 2008)

A relação possível entre os dois cineastas não se resume à mera presença de Miami em The Blackout e depois em Miami Vice de Mann53, muito mais imponente e vistosa do que a de Ferrara. Sob uma ótica de horror e pesadelo, a Miami de Ferrara tem um peso, evidencia uma concretude na imagem que faz com que os corpos de Matthew Modine, Beatrice Dalle e Mickey Rourke pareçam se descolar do fundo. A busca em The Blackout de uma pulsão primitiva da imagem cinematográfica será aprofundada e retrabalhada por Mann. O fluxo para Thoret é mundano, fluxo das relações entre homens e capital, no filme “sem começo ou final, apenas 135 minutos sem fôlego deduzidos de um fluxo ininterrupto de imagens e eventos” (THROET, op. cit., 2007). Miami Vice retrata um mundo desumano, que gira em torno do capital e do modo como essa relação entre pessoas, corporações, tráfico e dinheiro suga a todos numa espiral magmática sem cara, sem alma, sem tempo nem respiro. Não é à toa que as cenas entre Sonny Crockett (Colin Farrell) e Isabella (Gong Li) em Havana parecem um corpo estranho no filme, idílio amoroso impossível, oásis de humanidade e paixão no meio do fluxo mundano das relações entre polícia, tráfico, crime organizado e dinheiro. Sem respiro, Miami Vice não “começa” nem “termina”, surge na tela no meio de uma ação policial em uma boate em Miami e se fecha com Sonny voltando para o seu mundo, entrando no hospital filmado de longe, em cena interrompida pelos créditos finais.

52 Importante não confundir com o vídeo, ou VHS, já presente desde os anos 80. Aqui o grande celeuma é sobre como o digital HD começava a substituir a película no cinema. 53 Existem duas versões de Miami Vice. Uma delas, a que foi lançada nos cinemas, é que vamos usar em nossa análise. A outra, “versão do diretor”, possui um início mais tradicional, uma apresentação das personagens em uma corrida de lanchas e outras alterações menores ao longo do filme como o uso de músicas e algumas cenas cortadas. O que mais difere mesmo são os inícios das versões. A versão dos cinemas o filme começa diretamente na boate. 98

Não somos devidamente apresentados a nenhum personagem. Mann nos joga no meio de uma história em andamento, os policiais estão no meio de um procedimento, é tudo confuso e rápido. Algo dá errado e um informante se joga na frente de um caminhão que o arrasta morto pela estrada, após descobrir que toda sua família foi morta pelo tráfico. É nesse cenário caótico que vamos conhecendo, pouco a pouco, a dupla dos protagonistas Sonny e Ricardo (Jamie Fox). Quando percebemos, já estamos no meio do tiroteio final, atordoados, como se fôssemos pegos de surpresa pelo braço e jogados ali. No mundo representado em Miami Vice, não há tempo nem espaço para que as pessoas se conheçam melhor, para que saibamos mais sobre o passado das personagens. Os corpos são plastificados, falsos, assim como as relações construídas desse fluxo: daí também vem a força da imagem de Sonny olhando para o horizonte, inconscientemente almejando uma fuga simbólica daquele aprisionamento (uma cena, aliás, constante nos filmes de Mann e chamada pelo mesmo Thoret, em um outro texto mais panorâmico sobre a filmografia de Mann, de “Síndrome do aquário”54). Esse mundo sem tempo, sem respiro, impositivo sobre os seres, se assemelha de muitas maneiras àquele representado por Ferrara. Enquanto em The Blackout o mundo está coberto e cercado por câmeras de vigilância que mapeiam de todas as maneiras possíveis um espaço e interferem diretamente nos caminhos particulares de Matty, Miami Vice constrói um olhar macro, distanciado, tentando trazer para a imagem a própria representação mais programática desse fluxo ininterrupto do capital sobre os homens. Mann parece dar um passo além nesse estudo formal, nessa experimentação da imagem. De qualquer forma, o peso dos corpos e o esgarçamento da imagem, a tentativa de forçar seus limites, está na Miami de Ferrara, assim como na de Mann, e as imagens que deslizam, o impulso barroco de ambos os cineastas, potencializam a ação. Em Miami Vice, “a imagem não é deduzida da realidade, mas a realidade é deduzida da imagem” (THORET, 2007). Residual em The Blackout, a verossimilhança naturalista da imagem perante o mundo representado desaparece em Miami Vice. O digital que permeia todo o processo de criação de Mickey anuncia a desestabilização da forma de The Blackout, e antecipa sua generalização em Miami Vice, mais consciente e pragmático sobre seu uso, como afirma Thoret:

O uso do HD digital permite a Mann forjar uma imagem densa, frequentemente opaca e viscosa, que aprofunda o backgrounds e engole o primeiro plano. Assim, os

54 Ver: THORET, Jean-Baptiste. “The Aquarium Syndrome: On the Films of Michael Mann”. Screening the Past. Out, 2013. http://www.screeningthepast.com/2013/10/the-aquarium-syndrome-on-the-films-of-michael- mann/ 99

personagens ganham em definição aquilo que perdem em contorno, logo, em identidade – visualmente, eles se libertam com dificuldade do fundo do plano parecem incessantemente ameaçados à dissolução. Essa perda provoca um aumento do peso dos corpos (vejam como caem no tiroteio final), um balanço constante o espaço e, para o espectador, a sensação de um arremesso de tomadas. (Ibid., 2007)

O mais importante aqui, portanto, é a maneira como Mann representa todo esse complexo conjunto de ações, relações e personagens, esse fluxo, amparado no uso total do digital, para além do que ocorria em Ferrara. Esse suporte fora implementado por Mann em seus filmes de maneira progressiva desde 2000, quando filmou a cinebiografia de Muhammad Ali (Ali, 2001) e inseriu em algumas cenas o digital. A implementação se intensificou no filme Colateral (Collateral, 2004) e se definiu em Miami Vice. A noite implacável de Los Angeles em Colateral serve como um estudo muito interessante na implementação do digital [Fig. 144 e 145]. Há ecos em movimentos de câmera, em planos extremamente próximos dos rostos de Fox dentro do carro, no peso que ganham suas figuras e seu descolamento do fundo do plano.

144. Collateral (2004) 145. Miami Vice (2006)

Miami Vice se apresenta em uma atmosfera de suspensão constante, desde seu início na boate. No primeiro plano vemos apenas uma silhueta dançando em cima de um palco na boate, atravessada por feixes coloridos de luzes em uma escuridão. Numa das primeiras imagens de Sonny e Ricardo juntos, em um leve respiro na confusão da sequência inicial, Mann desloca o enquadramento: vemos em um cinemascope estilizado e imponente Sonny e Ricardo diminuídos no quadro, em pé em um rooftop tentando se comunicar no celular com seu informante [Fig. 146]. A princípio nada demais, porém o que salta aos olhos imediatamente é a cor do céu: lavado em um roxo claro, quase magenta, irreal. A imagem ganha um peso material em que as nuvens parecem engolir a dupla de atores:

O digital não é feito para melhorar a qualidade da imagem, mas para realizar uma fusão de uma massa de imagens que devem ser transportadas juntas, como deportados em um vagão. Em seguida você tem que descompactá-las, reanimá-las... De qualquer forma, em breve não haverá televisão, haverá um forno de micro-ondas com Internet,

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seu banqueiro que liga para você ao mesmo tempo e uma galinha assando ao fundo, pobre mãe de família! (GODARD, 1998, pp. 20-28)

Não há possibilidade natural de haver um céu daquela cor, e aqui reside o olhar de Mann sobre a imagem – repetindo esse procedimento de deslocamento da imagem clássica e desconstrução estilística pragmática e programática, em um movimento paradoxal de precipitação neoformalista com uma câmera na mão inquieta, porém lânguida – em uma recusa do realismo naturalista e um mergulho nos limites do plano cinematográfico.

146.

Notemos abaixo, à luz de alguns frames de Miami Vice, como Mann aprofunda os deslocamentos já operados por Ferrara nas imagens de The Blackout, descortinando assim uma verdadeira pesquisa estética, um estudo formal encoberto de narrativa policial. Ainda no primeiro plano do filme [Fig. 147], de supetão, como um choque formal da imagem em seu caleidoscópio de cores e formas, para nos jogar sem preparativo algum no meio de uma ação policial em que os protagonistas Sonny e Ricardo se misturam com seus parceiros policiais e seus alvos no meio das pessoas festejando na boate [Fig. 148]. Nesse momento, não sabemos ainda quem são os protagonistas e qual narrativa acompanharemos.

147. 148.

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Ainda no início do filme, enquanto nos situamos em sua narrativa, Mann filma o encontro da dupla Sonny/Ricardo com seu informante em fuga. Em um plano subjetivo [Fig. 149 e 150], o homem desesperado, já completamente imerso no fluxo mundano descrito por Thoret, vislumbra uma saída daquele ambiente, representado pelo movimento de câmera, deslocando o olhar dos policiais para o horizonte.

149. 150.

Para logo em seguida, com a notícia da morte da família, tomar a decisão – única possível – de se libertar. Ele se joga então na frente de um caminhão, que o arrasta deixando somente um rastro de sangue na estrada [Fig. 151 e 152]. Quem não dá conta de sobreviver às relações no mundo regido pelo capital e pelo trabalho imparável, vira um rastro, uma mancha na estrada, que se dissolve.

151. 152.

Outro procedimento usado por Ferrara em The Blackout e radicalizado por Mann é a integração ao filme de todas as possibilidades de suporte da imagem [Fig. 153 e 154]. Em The Blackout Ferrara intercalava o vídeo de Mickey com a película, recorrendo ao zoom, ao plano próximo, à sobreposição de planos, explorando a montagem das imagens, repetindo planos já filmados como imagens mentais. Em Miami Vice, além de deslocar o equilíbrio interno dos plano e utilizar o digital como vantagem nessa exploração, Mann insere todo tipo de imagens alternativas ao filme [Fig. 155 e 156]: câmeras de segurança, vídeos de celular, infravermelho, computadores, imagens aéreas. Comparemos essas imagens de The Blackout e o seu uso radicalizado por Mann em Miami Vice.

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153. 154.

155. The Blackout 156. Miami Vice

Vemos, portanto, a radicalização do uso das imagens em dispositivos diversos, sejam eles celulares, câmeras de vigilância, infravermelhos etc. Outros procedimentos utilizados por Ferrara e Mann são o deslocamento do equilíbrio do plano, sua desconstrução, a manipulação ostensiva da imagem, o peso dos corpos dos protagonistas oriundos da definição do digital. Como eles ocorrem concretamente nas imagens? The Blackout desestabiliza um imaginário, uma iconografia daquele ambiente, ao ostentar um aspecto grosseiro e sujo tanto da película quanto do digital. Ferrara constrói boa parte de sua narrativa alternando e contrastando aquilo que filma enquanto cineasta e aquilo que seu personagem Mickey, também cineasta, filma enquanto agente do caos.

Pensamos nas metáforas bazinianas, véu, molde, múmia da mudança, ainda que seja necessário fazer a nuança entre a sã elegância, a delicada peneira dos 35 mm, e a impura friabilidade, o grão vilão do vídeo. Mas não há entre eles diferenças de natureza. Elas existem ambas como impressões, numa mesma relação estreita com a degradação. Se o cinema torna o trabalho da morte visível, o vídeo também, apenas de forma mais manifesta. (BURDEAU, 1999, pp. 49-51)

A fragmentação da narrativa resulta do estado mental de Matty. Não por acaso, quando ele se livra do álcool e das drogas e vai para Nova York, o filme se “aquieta”. Quase tudo o que não víramos devido ao estado de Matty nos será mostrado em vídeo mais tarde no filme: a repetição é uma das ferramentas frequentemente utilizadas por Ferrara. Talvez a grande diferença de representação entre The Blackout e Miami Vice esteja no fato de Ferrara associar a imagerie caótica e perturbada do filme à materialização psicológica do protagonista, ao passo que Mann mantém suas personagens em uma camada

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confortavelmente superficial para que sua composição de planos se apresente como uma tela cujas imagens remetem à arte moderna, formalista, beirando a abstração. Os planos de Ferrara estão colados ao estado do protagonista, centro da ação e da desagregação da imagem. Em contraste, podemos vê-lo sóbrio, em imagens de Nova York com sua esposa Susan e, de modo distanciado, em seu retorno a Miami, antes dele se afundar novamente e ter seu passado revelado. Matty em Nova York se apresenta limpo, com um bom aspecto físico, indo a reuniões de alcoólicos anônimos, porém melancólico, distante do show business (o que Ferrara não julga moralmente, apenas mostra num registro estilístico distinto). Há pequenos momentos de suspensão em The Blackout, como se o filme levitasse junto de Matty esperando seu retorno ao álcool. Ou quando em um raro momento de lirismo ele forja uma lembrança agradável de Matty e Annie 2 caminhando na praia como dois namorados apaixonados em um instante bucólico (impensável no cenário catastrófico do filme). Em Miami Vice, também ocorrem raros momentos de suspensão em seu frenesi, como em planos distanciados do céu e do mar [Fig. 157 e 158], mas eles não parecem ligados à psicologia de nenhum personagem. São momentos puramente estéticos, com vislumbres fugazes de uma fuga possível daquele mundo implacável, que não demora porém a retomar sua dinâmica e a nos arrastar novamente para seu fluxo infernal.

157. 158.

O mar possui uma presença forte tanto no filme de Ferrara quanto no de Mann. Como horizonte, ele aparece pouco em The Blackout: antes de beber todo o frigobar de seu quarto de hotel já perto do fim, Matty olha pela janela, vê o mar ao fundo antes de dar-lhe as costas e entornar o álcool. Na última sequência, porém, o mar vira fim, produto da total abstração buscada por Ferrara, e também do suicídio de Matty, que mergulha na infinita água escura, como se já estivesse noutra esfera (das imagens mentais pós morte), para reencontrar Annie 2: o fundo negro se mistura à água, que assim como o chiado do vídeo invadindo a tela, permanece em quadro e não sai mais até os créditos finais.

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Em Mann, o mar é matéria bruta e horizonte almejado, é parte daquele universo e ao mesmo tempo fronteira inquebrantável. O que torna as imagens do filme ainda mais tortuosas e fluidas: “substância primária de Miami Vice, uma força magmática que avança de encontro à velocidade da narrativa e contra a qual os indivíduos batalham e, finalmente, falhando nessa luta, perdem-se” (THORET, 2007). Em contraponto com a confusão das relações humanas, Mann inunda seu filme com “efeitos de superfícies (baías, vilas na borda do mar) e desliza (para o alto mar, em aviões, em carros de esportivos)”, imagens implacáveis “de um mundo onde a sobrevivência depende da capacidade de permanecer na superfície (e permanecendo superficial) permitindo consequentemente duas posições: afogamento (Sonny, o mais infiltrado dos dois) ou leveza (Ricardo); tanto a tentação da margem ou a manutenção ao centro” (Ibid., 2007). Como Matty em The Blackout [Fig. 159], Sonny olha para o horizonte azul em Miami Vice [Fig. 160], em um instante igualmente breve de suspensão, vislumbre de um fuga impossível daquele cenário que o engole.

159. 160.

Mann aprofunda sua investigação, indo além dos momentos de suspensão como os vistos acima. Radicaliza a profundidade de campo e a composição de seus planos caminhando rumo à abstração, como na explosão do trailer que deixa Trudy em coma [Fig. 161].

161.

105

Não precisamos necessariamente traçar uma genealogia que comece em Ferrara e culmine em Mann. A ponte construída aqui passa por reflexões formais e caminhos estéticos que eles partilhavam com outros colegas em torno da imagem cinematográfica, tomada como um problema estético que estava no ar. Na verdade, muitos cineastas norte-americanos de uma mesma geração, que começava a produzir seus trabalhos mais relevantes e conviver na indústria nos anos 80, também trouxeram, cada um a seu modo, reflexões sobre a imagem cinematográfica, partindo de sua estilização e evidenciando sua crise, como veremos a seguir.

3.4 Ferrara, Lynch e Cronenberg: horror e densidade

No mundo anglo-saxão, apenas Kubrick e Cronenberg foram capazes de criar esses cristais de tempo fascinantes. 2001 e O Iluminado produziram na época o mesmo efeito de espanto e desorientação. Videodrome e Crash também [...] O trabalho de Lynch também está mais próximo de Hitchcock do que de artistas contemporâneos como Bill Viola ou Gary Hill. Ou, mais precisamente, talvez seja uma reinterpretação de Hitchcock no momento das instalações especulativas. (JOUSSE, 1997) 55

David Lynch produz de maneira independente seu primeiro longa Eraserhead (1977), mas surge para o mundo com O homem-elefante (The elephant Man, 1980). A partir do fracasso de Duna (Dune, 1984), ele passa a escolher seus projetos a dedo e segue realizando, com êxito variável, obras cuja experimentação visual é buscada num universo onírico, unindo o surreal, o sonho, o pesadelo e a imaginação. Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), Estrada Perdida (Lost Highway, 1997) e Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001), além da série de TV Twin Peaks (1990-91), permanecem como grande revisões e estudos sobre os limites da imagem dentro do cinema narrativo e comercial. Veludo azul e Estrada perdida são filmes que retomam Vertigo como ponto central de um pensamento sobre a imagem. Estrada perdida trabalha com a questão do duplo: “Tudo é o dobro em Estrada Perdida – personagens, situações, objetos – e cada elemento só pode ser percebido de acordo com uma rede de correspondências específicas para o filme” (Ibid., 1997). Sua narrativa também é duplicada, assim como seu protagonista e sua companheira. Paira sobre o filme um ar denso, pesado, que parece em certos momentos ganhar forma material e concretude, trazendo uma sensação de claustrofobia e horror. Essa desordem narrativa como mistério atinge o paroxismo em Cidade dos sonhos, filme também duplicado, em que Lynch leva aos extremos a fragmentação dos fatos. Nele, não há uma história a ser acompanhada linearmente, mas um enigma de difícil resolução. Tanto Veludo azul quanto Estrada perdida retomam Vertigo e,

55 Cf. JOUSSE, Thierry. “Lost Highway, l’isolation sensorielle selon Lynch”. Cahiers du cinéma, n. 511, mars 1997. 106

como Ferrara em The Blackout, Lynch refilma a cena da transformação de Judy em Madeleine e seu efeito como parte de um todo. Eles retomam também as reflexões sobre a imagem cinematográfica já presentes no filme de Hitchcock. Veludo Azul, por exemplo, é um filme todo voltado para a representação. O ato de ver desempenhado por Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan), e iniciado dentro do armário, como algo proibido no submundo bizarro da cidadezinha, fornece ao filme sua matriz principal. O apartamento de Dorothy Vallens (Isabella Rossellini) se transforma em “uma instalação de filme que nos assiste tanto quanto a assistimos, que nos rodeia tanto quanto a encaramos” (Ibid., 1997), em um palco, como no clube em que ela canta a música tema, e se abre para nós espectadores de modo até esquemático. Dennis Hopper seria retomado por Ferrara em The Blackout num papel similar ao de seu personagem em Veludo Azul – como um titereiro sombrio, maléfico, excessivo. Diversas são as cenas comandadas por ele e assistidas por nós (e Jeffrey), filmadas ao modo do primeiro cinema [Fig. 162 e 163], como um palco de teatro, como uma abertura às excentricidades daquele ventre subterrâneo do interior americano, espécie de campânula originária dos anseios estéticos lynchianos e de seu estranho universo.

162. 163.

Lynch se debruça sobre a imagem em Veludo Azul, revisando Vertigo, primeiramente apartando sua Madeleine e sua Judy em duas, Sandy (Laura Dern) e Dorothy. Sandy é apresentada a nós (e a Jeffrey) primeiro como imagem fixa [Fig. 164], espectro morto, congelado na forma de retrato expondo sua beleza angelical, pura e atemporal na mesa do pai.

164.

107

Só depois ela surge da penumbra, das sombras, de forma análoga à Judy travestida de Madeleine surgindo fantasmática para Scottie em Vertigo56 [Fig. 165 a 168].

165. 166.

167. Vertigo (1958) 168. Blue Velvet (1986)

Então, Lynch dá vazão à sua singularidade e esgarça as bordas da imagem representada, nos mostrando de perto o horror e a morte [Fig. 169 e 170]. Jeffrey aparece como o elemento passivo, espectador que quis ver demais e acabou adentrando demais nos meandros e vincos de uma imagem imaculada, como a do cartão postal da abertura, american way of life na superfície, mas habitada por insetos e seres grotescos em seu interior obscuro.

169. 170.

A imagem do horror, a pornografia em vídeo como receptáculo de imagens abjetas, violentas, grotescas, suas distorções e impurezas ganham o primado em Estrada Perdida, que

56 Aqui, Lynch realiza somente uma das dezenas de revisões que Vertigo teve ao longo das décadas. Para uma reflexão mais profunda sobre essas revisões, ver: OLIVEIRA JR, Luiz Carlos. Vertigo, a teoria artística de Alfred Hitchcock e seus desdobramentos no cinema moderno. Tese de doutorado. ECA/USP. São Paulo, 2015. 108

se aparenta a um snuff movie57. Seu protagonista também se duplica e suas alterações físicas ecoam nas da própria imagem. O plano inicial [Fig. 171] nos mostra o rosto de Fred (Bill Pullman) na penumbra, granulado, pouco visível, prenunciando aquele universo tortuoso.

171. Estrada Perdida (1997): primeiro plano

O conflito principal do filme se dá a partir da imagem, de um vídeo entregue de forma anônima ao casal Fred e Renée Madison (Patricia Arquette), apavorando-o. Alguém entrou em sua casa sem que percebessem e os filmou. A imagem é suja, feia, pouco nítida (aumentando sua tensão). O assassinato da própria Renée por Fred nos é revelado numa sequência que intercala vídeo e filme [Fig. 172 e 173], pulsando no plano pedaços do corpo dilacerado. A narrativa do filme também se duplica, partindo da distorção de sua própria imagem filmada e materializada no rosto de Pullman que se contorce e distorce [Fig. 174], transformando-se em seu duplo Pete Dayton (Balthazar Getty) [Fig. 175].

172. 173.

174. 175.

57 Snuff Movie é um filme que mostra mortes ou assassinatos reais sem a ajuda de efeitos especiais, para entretenimento ou exploração financeira. Ver: KEREKES, David. SLATER, David. Killing for Culture: Death Film from Mondo to Snuff (Creation Cinema Collection). Londres: Creation Books, 1996. 109

Na última cena do filme seu rosto novamente se distorce [Fig. 176] e é deformado junto da imagem. A câmera se aproxima dessa massa disforme em saltos de edição e cortes secos até tornar-se completamente abstrata [Fig. 177]: “Lynch integrou todas essas imagens em um fundo indiferenciado que torna coexistência de múltiplas espessuras, para melhor mostrar suas próprias figuras” (Ibid., 1997).

176. 177.

Lynch joga de forma constante em Estrada perdida com o fascínio e o desejo de tudo ver, integrando ao mesmo tempo sua discussão à materialidade do filme, da película e do vídeo. A pornografia também se insere como conflito narrativo, como fronteira, uma vez que o protagonista duplicado entra em contato com snuff movies de sua companheira [Fig. 178 e 179]. Fred mata Renée como Matty mata Annie 2. Aquelas imagens excessivas são incorporadas ao filme, como em Ferrara, gerando um mal-estar semelhante, sempre na direção do ponto mais sujo e ruidoso da imagem, rumo à sua abstração.

178. 179.

O estado de alerta, vigilância e abundância de imagens atravessa Estrada perdida em todas as suas nuances. O filme é repleto de variações e experimentações sobre a imagem: luz estroboscópica, inserção do vídeo, imagens de câmeras de vigilância, projeção de pornografia hardcore, distorções fílmicas, etc. Num contato “hipersensorial com o espectador, Lynch trabalha para colocá-lo em estado de receptividade, fazendo-o perder espaço e encontrar um novo relacionamento com fluxos de percepção excessivamente sutis” (JOUSSE, 1997).

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O homem misterioso (Robert Blake), assim como o Mickey de The Blackout (Hopper), opera através de linhas telefônicas, câmeras, dispositivos. No final, ele volta aliando aquilo que vê em sua câmera caseira [Fig. 180], tendo suas imagens incorporadas à narrativa [Fig. 181] da mesma forma que as imagens do assassinato de Renée, da filmagens da casa de Fred, da pornografia masoquista de Alice e da transmutação física do duplo protagonista.

180. 181.

Seu Vertigo aqui é ainda mais complexo e enigmático. Lynch refilma a cena da reaparição de Madeleine duas vezes [Fig. 182 a 187]. A primeira tem o próprio Fred Madison como centro, saindo das sombras e caminhando para fora de quadro, ainda no início do filme, quando nem as personagens nem o espectador entenderam o esquema todo por detrás daquelas imagens. A segunda mostra Patricia Arquette, loira, assim como Judy em Vertigo e Annie 2 em The Blackout, caminhando na direção de Pete.

182. 183.

184. 185.

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186. Estrada Perdida: primeira sequência 187. Estrada Perdida: segunda sequência

A imagem, em Lynch, foi sempre objeto de fascínio e matéria sujeita a modificações e distorções. O caminho geralmente procurado pelo diretor é o do sonho (para além das distorções e ruídos que exploram os limites do plano), em que geralmente estamos passivos e receptivos aos mais incongruentes e fascinantes acontecimentos: daí podemos traçar outra ponte e ver The Blackout como o mais lynchiano dos filmes de Ferrara. A densidade atmosférica enigmática de The Blackout, Enigma do Poder e 4:44 faz pensar nos melhores filmes de Lynch. A Estrada Perdida, nesse caminhar para a abstração e o enigma, “pode finalmente flutuar em éter, aberto a todas as virtualidades, uma máquina de pensamento que marca o surgimento surpreendente de um grande cinema figurativo-abstrato” (Ibid., 1997). Há uma densidade muito particular presente na atmosfera dos filmes de um outro cineasta, o canadense David Cronenberg, que começou a filmar no fim da década de 70 e realizou seus primeiro trabalhos mais relevantes nos anos 80. Muitas das nuances aplicadas por Ferrara, e Lynch, sobre a imagem também estavam presentes nos melhores trabalhos do canadense. Em Cronenberg, porém, a reflexão sobre a imagem ganha peso gore [Fig. 188], num claro interesse do cineasta em olhar diretamente para as entranhas do ser humano [Fig. 189], um olhar analítico ao mesmo tempo que fascinado por fibras, músculos, membranas, nervos, carne viva do corpo e sua transformação em máquina, num mundo cada vez mais dominado pela tecnologia.

188. Videodrome (1981) 189. Crash (1996)

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Videodrome: a síndrome do vídeo (Videodrome, 1983) mergulha o espectador em uma organização clandestina que planeja dominar o outro a partir de hipnose proveniente da imagem do vídeo. A personagem de Max Renn (James Woods), um produtor de TV sensacionalista (que para ganhar audiência e lucrar aposta cada vez mais em programas de exploitation) se envolve com o Videodrome, se hipnotiza, enlouquece e vira uma espécie de cavaleiro de um apocalipse midiático. Essa organização atua em um submundo imaterial de redes clandestinas difusoras de cenas de torturas, mortes, documentadas da forma mais bruta em vídeo [Fig. 190]. Novamente, estamos no terrenos do snuff, da imagem pornográfica e de imagens que chocam por crueza e excesso. Max vira, ele próprio, receptáculo do vídeo [Fig. 191], que pulsa, ganha vida e interage com os personagens. Os comandantes da seita inserem o VHS no corpo de Renn, que se transforma num ser híbrido, meio humano e meio maquínico. Ele delira e mergulha na TV, faz sexo com a imagem e se afunda nela, numa das cenas mais icônicas [Fig. 192], antes de se fundir a ela no fim do filme [Fig. 193], vendo, numa TV com a imagem suja e ruidosa, sua própria imagem cometendo suicídio em seu corpo já modificado.

190. 191.

192. 193.

Não surpreende que talvez seu melhor trabalho fosse proveniente de um romance de James G. Ballard. Crash: Estranhos Prazeres (Crash, 1996) integra a linguagem particular e desafiadora do romance aos anseios estéticos de seu diretor, unindo no mesmo filme a

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densidade atmosférica, o sexo, o gore, o horror e a exploração visual das transformações físicas após intervenções médicas – aqui, provenientes de um vício em experiências quase mortais de acidentes de carros provocados propositalmente por um grupo de pessoas, uma espécie de seita comandada por Vaughan (Elias Koteas). Mais do que nunca, Cronenberg lança mão de sua câmera “fria e distante, hiper-realista. Uma câmera que ao mesmo tempo desliza e acaricia as superfícies, as feridas, tatuagens, ferros contorcidos ou capôs brilhantes. Uma sensualidade metálica que marca as imagens” (BENTES, 2011, p. 50)58. Crash também possui uma imagem desromantizada, que tende à representação típica de filmes B, de filmes eróticos softporn de “baixa qualidade”. Ele aposta nessa representação para ambientar a distopia presente no livro. O mundo de Crash é doentio, patológico, cheio de personagens viciados, corporalmente modificados, de pessoas que se redescobrem em um outro mundo, um submundo de sexo e experiências quase mortais. O ser humano, no universo de Crash, deseja unir-se à lataria e à ferragem dos automóveis, incorporar um caráter metálico a sua existência e a seu comportamento. Na abertura do filme [Fig. 194 e 195], Catherine (Deborah Unger) coloca seu seio contra a lataria de um avião durante um ato sexual com seu olhar já anestesiado, como se inconscientemente já sentisse uma urgência da união de seu corpo ao veículo inanimado:

194. 195.

Após o despertar do casal Catherine e James (James Spader) para essa nova existência, as imagens limite tornam-se algo a se almejar, uma cobiça catalisadora de prazer sexual. Unem- se pornografia, masoquismo, gozo pelas cicatrizes e deformidades físicas e excitação na morte. Independente de casamento ou gênero, todos transam com todos e compartilham esse avançado estado de catatonia sexual maquínica, como se atingissem um novo estágio na evolução

58 Ver BENTES, Ivana. “David Cronenberg e o cinema biotecnológico”. In.: CAPISTRANO, Tadeu (org.). O cinema em carne viva: David Cronenberg. Catálogo de mostra. CCBB, 2011. pp. 49-53. 114

humana. Vaughan busca acidentes fatais em estradas e se embrenha neles para fotografar os corpos recém mortos nas ferragens [Fig. 196]. Esse estímulo proibido e sedutor gerado por essas imagens abjetas os excita sexualmente. Todos transam após entrarem em contato com tais imagens. Vaughan em determinado momento é violento e machuca Catherine, excitando-os ainda mais. O sexo em Crash é doloroso, mecânico, serve como instrumento de vazão para um gozo implacável gerado por ferragens e distorções físicas dos acidentes, como um modo de união mais completa com os veículos metalizados [Fig. 197]. Não há conforto ou enaltecimento naqueles atos, mas um mal-estar, uma sensação de perigo constante.

196. 197.

Cronenberg retoma a temática do sexo como expurgo de dor, sofrimento, como matéria prima para imagens pornográficas, excessivas, de mau gosto, como em Videodrome. Porém, se em Videodrome o masoquismo se encerrava nas imagens exibidas e consumidas em vídeo através das antenas e sinais clandestinos, em Crash todo o mundo ao redor daquelas personagens parece se modificar aos seus olhos, como diz o próprio protagonista quando percebe “as ruas mais cheias de carro”. O mesmo plano do ato sexual em Videodrome [Fig. 198], com uma TV onipresente observando tudo, é refilmado em Crash [Fig. 199], porém com a cidade e suas ferragens, carros e edifícios ao fundo, em uma deflagração urbana nova aos olhos de James e Catherine:

198. Videodrome (1981) 199. Crash (1996)

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Tanto Lynch quanto Cronenberg e Ferrara são cineastas criadores de uma atmosfera muito particular em seus melhores trabalhos. São cineastas de filmes que pesam, que possuem uma densidade. Lynch pende para o pesadelo, para as sombras, para a esquisitice em um mundo que geralmente não obedece às leis naturais. Cronenberg é mais frio, metálico, brumoso; seus universos parecem caminhar em uma outra rotação, mais lenta e entorpecida do que o usual. Ambos os cinemas possuem um ar quase material, uma sensação de tato, assim como uma proximidade com a imagem pornográfica:

Cronenberg apresenta esse fascínio pela aventura transgressiva, o conteúdo pressuposto do erotismo é a ultrapassagem dos limites: êxtase, vertigem, excesso, tudo muito bem regrado e “dirigido”. Apagamento dos limites entre a natureza e a cultura, o humano e o inumano, o consciente e o inconsciente. Se a imaginação fetichista trabalharia para preencher um vazio, uma ausência, uma falta, Cronenberg trabalha para construir uma nova sexualidade, cambiante e ambígua. Crash é uma dessas mise- en-scène do desejo [...] O filme também vai na contracorrente de qualquer erotismo fácil ou “grotesco” e diz que, por mais domesticada que possa ser, há algo na sexualidade que surge como uma força desestabilizadora... (Ibid., pp. 50-51)

Assim como Lynch e Cronenberg (e Mann mais à frente), Ferrara sempre esteve atento às formas de representação, trabalhando com sua iconografia histórica e incorporando em seus filmes suas mudanças e evoluções. Alguns deles possuem também essa densidade sentida nos trabalhos mais citados de Lynch e Cronenberg. Em The Blackout, como já vimos, ele constrói uma Miami de pesadelos, incorporando a atmosfera da abstinência e dos delírios alcoólicos de Matty. Filmes como The Addiction, Snake Eyes e New Rose Hotel, cada um à sua maneira, também trabalham sob uma névoa densa de horror e escuridão. Ao contrário porém de Lynch e Cronenberg, Ferrara direciona a representação de seus atores para um registro de euforia delirante, em que o gestual superlativo impera em gritos e gestos graves – muito diferente do entorpecimento dos protagonistas de Cronenberg, e do fascínio quase paralisado e passivo dos atores de Lynch. Em todo caso, os três cineastas privilegiam protagonistas com tipos físicos muito definidos. Podemos até mesmo estabelecer uma conexão entre o tipo de seus atores e os seus respectivos tipos físicos. É só pensarmos nas figuras de Jack Nance em Eraserhead, de Kyle MacLachlan em Veludo Azul e Twin Peaks, de Bill Pullman em Estrada perdida [Fig. 200-202]. Lynch pende claramente por um tipo de protagonista – o cabelo em pé e a semelhança física mais geral de Jack Nance com o próprio Lynch nos primeiros trabalhos vão dando lugar a um tipo de ator com rosto fleumático, olhar parado e expressões morosas, evidenciando seu caráter passivo.

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200. Jack Nance em Eraserhead (1977)

201. Kyle MacLachlan em Veludo Azul (1986) 202. Bill Pullman em Estrada perdida (1997)

O mesmo pode ser dito de Cronenberg: James Woods em Videodrome, Jeremy Irons em Dead Ringers, James Spader em Crash, entre outros (até mesmo Ralph Fiennes em Spider, 2002, e Robert Pattinson em Cosmópolis, 2012) [Fig. 203 a 205].

203. Jeremy Irons em Dead Ringers (1988)

204. James Spader em Crash (1996) 205. Ralph Fiennes em Spider (2002)

Além de ter atuado em seus dois primeiros longas, Ferrara talvez seja aquele em que o tipo físico do ator seja mais perceptível filme a filme, assim como sua semelhança com o cineasta: Harvey Keitel em Bad Lieutenant e Snake Eyes, Willem Dafoe em diversos filmes,

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Matthew Modine em The Blackout e Mary, Christopher Walken também em diversos filmes, Vincent Gallo em Os chefões [Fig. 206 a 208]. O tipo alto, magro, de expressões fortes no rosto e prognatismo elevado. Se Keitel não é esguio como Dafoe e Gallo, traz porém alguns aspectos mais desagradáveis em sua forma física e nas suas expressões faciais.

206. Harvey Keitel em Bad Lieutenant (1992)

207. Willem Dafoe em New Rose Hotel (1998) 208. Vincent Gallo em The Funeral (1996)

3.5 Ferrara e McTiernan: ação e excesso

O cinema de ação da época também refletiu a seu modo sobre a situação da imagem cinematográfica. John McTiernan, cineasta nova iorquino, se inseriu de vez na indústria com os grandes êxitos O predador (Predator, 1987) e principalmente Duro de matar (Die hard, 1988). Este último redefiniu todo um imaginário de filme de ação blockbuster e redesenhou o gênero em uma espécie de novo marco inicial. O que mais nos interessa em McTiernan é que, apesar de muito amparado por uma camada externa palatável e inserido na lógica do filme narrativo de ação de fácil acesso, o cineasta possui uma consciência muito clara a respeito do passado e da iconografia do cinema, fazendo de seus filmes verdadeiros estudos imagéticos, refletindo a cada plano sobre a construção da imagem. Espécie de Brian de Palma de sua geração, McTiernan teve sua obra revista e estudada já em meados dos anos 2000 (em textos,

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no Brasil, da extinta revista Contracampo59; e na Europa em uma retrospectiva integral60 de sucesso realizada na Cinemateca francesa em setembro de 2014). Além de seus dois filmes já citados, são seus filmes O Último Grande Herói (Last Action Hero, 1993), Thomas Crown, a Arte do Crime (The Thomas Crown Affair, 1999) e Rollerball (2002) os que mais evidenciam seu impulso analítico e reflexivo. No filme de 1993, McTiernan nos apresenta um verdadeiro atestado de crise de um cinema estilizado e autoconsciente que se produziu na década de 80 (comandado por Brian De Palma, Larry Cohen e John Carpenter, entre outros). Naquele momento, a geração formada na Nova Hollywood se estilhaçara, e cada um foi para um lado sobreviver da maneira possível. Michael Cimino, por exemplo, estava praticamente “morto” para a indústria, tendo realizado, até falecer em 2016, pouquíssimos filmes (4 de 1980 até 2016), nenhum dos quais com a liberdade estética da qual desfrutou em O portal do paraíso (Heaven’s Gate, 1980). Coppola, entre falências e renascimentos, realizava filmes de escalas cada vez menores e mais pessoais como a trinca O Fundo do Coração (One from the Heart, 1981), Vidas sem Rumo (The Outsiders, 1983) e O Selvagem da Motocicleta (Rumble Fish, 1983). Sam Peckinpah estava praticamente aposentado. Hal Ashby e Monte Hellman estavam esquecidos e, proscritos, sobrevivendo como realizadores bissextos – principalmente Hellman, pois Ashby faleceu em 1988. Brian De Palma e John Carpenter são casos interessantes, pois continuaram a realizar frequentemente (De Palma mantendo na maioria das vezes o sucesso de público), e fizeram na década de 80 alguns de seus melhores e mais importantes trabalhos. De Palma ainda teria um bom respiro econômico nos anos 90 com O pagamento final (Carlitos Way, 1990) e Missão: impossível (Mission: Impossible, 1996). Carpenter realizaria grandes filmes nos anos 90, mas sem o mesmo prestígio na indústria. Ambos foram paulatinamente relegados à margem (Carpenter, hoje, está aposentado, e De Palma realiza quando possível). Voltando a McTiernan, O último grande herói já começa jogando simbolicamente a tela de cinema na cara do espectador. Estamos diante de um filme dentro do filme. Em pleno universo do cinema de ação, tendo como protagonista o astro Jack Slater (Arnold Schwarzenegger), tudo é representado de modo antinaturalista, com cores vibrantes, explosões dantescas e atuações caricatas. No “mundo real” o tom beira o sépia, a atmosfera é triste e chuvosa, as protagonistas são pobres. O que impera em ambos os mundos, porém, é a profissão de fé no ilusionismo mágico do cinema, uma remissão nostálgica da trama a algo que estava

59 Ver http://www.contracampo.com.br/88/dvdvhs.htm 60 Ver https://www.cinematheque.fr/cycle/john-mctiernan-38.html 119

perdido no tempo, um último suspiro de um tipo de cinema e também de espectador61. Não confundamos, porém, essa profissão de fé com um idealismo anacrônico. McTiernan segue em frente, ainda que constatando algo que parecia chegar a um final. Além do caráter de homenagem e da tentativa do olhar inocente de O último grande herói, Thomas Crown revela um McTiernan operando um jogo intrincado de olhar, revisão e regozijo da imagem, dialogando com De Palma e nos lançando num jogo de gato e rato entre Thomas Crown e a investigadora Catherine Banning (Rene Russo). Aqui, mais importante do que resolver o quebra cabeças proposto é nos deixar levar pela aventura e pelo mais puro prazer de se filmar aqueles quadros no museu, bem como a alteração e a falsificação de suas pinturas. Um ponto alto é aquele em que Crown “devolve” o quadro que roubara, acionando o alarme de incêndio e molhando a pintura, dissolvendo-a e revelando sua face verdadeira. A personagem de Pierce Brosnan é um milionário que não precisa roubar para viver e, se o faz, é pelo puro prazer da aventura. A aventura que era colocada em xeque no filme de 1993 e inserida sem concessões na narrativa e no estilo do filme de 1999. McTiernan inicia Thomas Crown assumindo seu dispositivo e ampliando a reprodução do famoso plano de Hitchcock em Interlúdio (Notorious, 1946) [Fig. 209 a 218], que leva a câmera (e o olhar do espectador) do alto da sala da mansão até a mão de Ingrid Bergman, revelando a chave tomada às escondidas. Aqui, McTiernan vai literalmente do céu ao assento do carro de Pierce Brosnam em um close up de seu relógio.

209. 210.

61 Operação muito semelhante àquela presente em True Lies (James Cameron, 1994), também com Schwarzenegger no papel principal. 120

211. 212.

213. 214.

215. 216.

217. Thomas Crown (1999) 218. Notorious (1946)

Então, aludindo agora a Vertigo [Fig. 220], nos apresenta o palco da ação, onde vemos Pierce Brosnam olhando fixamente para um quadro [Fig. 219], desviando a atenção de seu verdadeiro objetivo62.

62 No plano, Pierce Brosnam encara um quadro na parede à direita. Podemos observar, porém, um quadro menor, mais bem iluminado à esquerda do plano: seu verdadeiro objetivo. 121

219. Thomas Crown (1999) 220. Vertigo (1958)

O que fica de Thomas Crown é novamente a consciência de que a imagem guarda camadas atrás daquilo que nos mostra, como víramos em Prelúdio para matar (Profondo Rosso, 1975, de Dario Argento), quando o personagem de David Hemmings raspava a pintura gasta da parede, descobrindo todo um universo por detrás daquela camada aparentemente neutra [Fig. 221], ecoando o gesto de outro personagem interpretado pelo mesmo David Hemmings em Blow Up (1968, de Michelangelo Antonioni), que ampliava suas fotografias e mergulhava em suas imagens para elucidar um assassinato flagrado no parque [Fig. 222]. Tais cenas exemplificam bem um período em que muitos filmes questionavam a transparência da imagem pura do cinema clássico. Identificava-se uma crise não só na imagem, mas também naquilo que Thoret63 chamou de “ideologia do visível, que supõe a adequação perfeita entre a percepção dos fenômenos e sua compreensão” (THORET, 2003. p. 39).

221. Profondo Rosso (1975) 222. Blow Up (1966)

Assim como o próprio Scottie (James Stewart), em Vertigo, descobrindo todas as camadas sob a trama montada a seu redor e ao redor de Madeleine / Judy / Carlotta, Thomas Crown usa a ilusão gerada pela falsificação perfeita da pintura do museu que se derrete e revela a verdadeira pintura do quadro roubado e forjado para aquela fuga [Fig. 223 e 224].

63 THORET, Jean-Baptiste. 26 secondes: L’Amérique éclaboussée. Pertuis: Rouge Profond, 2003. 122

223. 224.

Em Rollerball (2002), McTiernan aprofunda sua problemática e se aproxima dos resultados de Ferrara e Mann, já analisados. Segunda refilmagem por McTiernan de uma obra de Norman Jewison64 (como Thomas Crown), Rollerball foi um grande fracasso de crítica e público à época (assim como seu filme seguinte). Rollerball aposta todas suas fichas em tipos físicos, aos atores principais, o mais plastificados e superficiais possível, assim como as atuações caricatas, “de mau gosto”. Tudo em Rollerball é da ordem da superfície, do mau gosto, da representação mais caricata possível. O que está em jogo é o modo como, através da imagem – e, de novo, sua proliferação em vídeos, telas, telefones, câmeras de vigilância –, McTiernan esgarça a relação perniciosa entre corporações, mídia, capital e seres humanos, reduzindo tudo a índices de audiência e lucro. A simbologia clara dessa relação vem do próprio jogo que dá nome ao filme, de violência extrema, tendo como palco desertos do Oriente Médio, distantes dos grandes centros cosmopolitas, “livres” para quase escravizar os “atletas” e vê-los se digladiar em quadra, como gladiadores nas arenas romanas. Os jogadores são mantidos em um cativeiro velado, num complexo esportivo rodeado de deserto e vilas pobres. Carros esportivos e festas luxuosos são oferecidos para os jogadores pelos acionistas e diretores do espetáculo como retribuição por seu desempenho nas equipes. Porém, eles vivem em uma espécie de Big Brother da vida real. As câmeras de vigilância estão sempre presentes e todos os seus movimentos são observados. Não podem se relacionar entre si nem sair do complexo, precisam manter o foco nas competições violentas em um dia-a-dia regado por uma falsa sensação de poder, luxo e liberdade. Jonathan (Chris Klein) e Aurora (Rebecca Romijn), casal protagonista formado nas arenas do Rollerball, precisam se esconder e, numa sequência muito simbólica [Fig. 225 e 226], fazem amor nas sombras depois de ela destruir uma das câmeras de vigilância para terem mais privacidade.

64 Crown, o Magnífico (The Thomas Crown Affair, 1968, Norman Jewison) e Rollerball: Os Gladiadores do Futuro (Rollerball, 1975, Norman Jewison). 123

225. 226.

Em Rolerball, ainda mais do que Ferrara e Mann, McTiernan assume o exploitation como matéria prima e o introjeta sem grandes concessões. Por vezes, a violência do jogo que dá título ao filme toma um tal protagonismo que parecemos estar diante de programas de wrestling ou game shows bizarros disponíveis nas madrugadas das TV’s. A desumanização de seus personagens é programada pelos donos das emissoras que detém os direitos de imagem do Rollerball. Para os manda-chuvas aqueles jogadores são peças em um tabuleiro, nada mais. Quando eles começam a se dar conta de que são prisioneiros parece tarde demais. Em meio a essa desumanização progressiva no universo de Rollerball, o status da imagem é alterado, atingido, “torna-se ambíguo de um modo a retornarmos às questões de poder e política, de ‘influências escondidas’ por detrás de circuitos e sistemas de imagens, a influência mabusiana de figuras como o diretor-manipulador interpretado por Dennis Hopper em The Blackout...” (MARTIN, 2008) A imagem do filme é de um incômodo constante, acentuado por acompanharmos a todo momento esses personagens superficiais. Sugados pelo sistema movido pelo capital que financia o jogo e sua transmissão, eles despertam aos poucos e tentam fugir dali – um pouco como o que ocorre com as personagens de Miami Vice, sugadas num fluxo que os desumaniza e apaga frente ao sistema. A diferença é que o filme de Mann termina com Sonny voltando ao fluxo em um plano final em que o vemos de costas andando e passando pela porta do hospital onde sua parceira de equipe acabara de acordar do coma [Fig. 227]. McTiernan termina seu filme num tom mais revoltoso, de sublevação, na esperança de libertação das suas personagens. Há luz no fim do túnel, literalmente. Ao contrário do plano final de Miami Vice (com um distanciado Sonny se afastando da câmera para voltar ao trabalho e à sua desumanização), o de Rollerball mostra de perto o protagonista olhando esperançoso para sua parceira [Fig. 228], após terem se insurgido contra os mandachuvas locais e fugido do complexo em que eram mantidos confinados para a prática do jogo mortal.

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227. 228.

O ápice das imagens incômodas de Rollerball é a sequência alucinante em que os jogadores preparam uma fuga no meio da madrugada em pleno deserto [Fig. 229]. Tudo é filmado em uma câmera cujo filtro reproduz a “visão noturna” das câmeras de vídeo. A imagem é toda lavada em verde para que se possa enxergar melhor os detalhes daquilo que é filmado no escuro. O efeito, porém, é completamente inverso: tal mecanismo se aplica a câmeras que não possuíam a definição necessária para imprimir a imagem com pouca luz natural incidente –caso não das câmeras de cinema, mas das primeiras câmeras de vídeo. Tudo se confunde e a fuga das personagens se resume a borrões e vultos no deserto. Além de imprimir um tom ainda mais sufocante e desesperador para aqueles jogadores em fuga, McTiernan confere à sua sequência um novo grau imagético, explorando seus limites para além do usual e se distanciando, pelo estranhamento, de seu espectador. O deserto “verde” se diferencia a partir de listras pretas que reconhecemos ser a estrada e de pontos luminosos dos faróis dos carros em perseguição. A fuga fracassa. Quando os jogadores fugitivos são trazidos de volta ao complexo esportivo, a imagem do avião pousando com eles no amanhecer é tão escura que beira a abstração [Fig. 230].

229. 230.

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Conclusão

Abel Ferrara nunca se portou como um grande intelectual. Nunca, também, olhou um interlocutor de cima para baixo. Carrega consigo uma postura muito semelhante àquelas de famosos cineastas da Hollywood clássica, um pouco rabugento como John Ford quando questionado sobre seu próprio trabalho. Caótico, agitado e intenso nas entrevistas e nos documentários a seu respeito, Ferrara “se inscreve tranquilamente na linha daqueles grandes excêntricos que mantêm a frágil continuidade entre a indústria e a vanguarda: Josef von Sternberg, Erich von Stroheim, King Vidor, Orson Welles (cuja foto decora seu quarto) e Nicholas Ray.” (BRENEZ, 2006, p. 4) Ferrara é um tipo de diretor que precisa realizar, aconteça o que acontecer. Seja engambelando produtores americanos durante uma década (anos 90) para realizar suas melhores fitas, seja produzindo documentários quase caseiros (como Mulberry St., em 2010), seja dirigindo vídeo clipes, ou se refugiando na Europa. Como uma locomotiva desgovernada, sem freios, ele precisa continuar movimentando-se. Desde que iniciamos nossa pesquisa, por exemplo, ele lançou um documentário (The Projectionist, em 2019, exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo), dois longas de ficção (Tommaso, 2019, e Siberia, 2020, ambos com Willem Dafoe e ainda inéditos no Brasil), realizou curtas metragens e anunciou projetos. Ferrara parece detestar quando abordam sua obra teoricamente e não demonstra muito apreço aos livros, teses e dissertações dedicadas à sua filmografia, com a exceção do livro de Brad Stevens65 – justamente um dos mais pragmáticos ao abordar seus filmes e sua figura. Um dos nossos maiores desafios era trazer a análise para o chão, sem porém descaracterizá-la. Era tentar abordar, de maneira pragmática e racional, algo difícil de ser abordado. Tentar entender estilisticamente um conjunto de filmes que parece ter pouco em comum a não ser as hipérboles, o caos, e a intensidade típicos do cineasta, mas já muito discutidos em sua fortuna crítica. Na verdade, Ferrara possui um trabalho muito cuidadoso e coerente dentro de seu leque de referências e influências, explorando facetas diversas de seu temperamento, de sua cinefilia e dos materiais (assim como dos meios) disponíveis em cada projeto. Seu método, se ele existe, é sua obstinação em buscar o momento de arroubo durante

65 Ferrara enviou uma carta muito elogiosa ao pesquisador, que a usou como prólogo do livro. 126

a filmagem de um plano, seja ele na Via Veneto, em Roma, seja no Little Italy, em Nova York, seja na Warner, em Hollywood. Daí nossa decisão de privilegiar uma análise estilística atenta aos filmes. Longe de encaixar os filmes de Ferrara em alguma teoria ou algum caminho autoral que o fechasse e o enquadrasse em um rótulo, tentamos tirar o máximo dos filmes partindo daquilo que eles nos ofereciam. Dessa análise formal de Bad Lieutenant e The Blackout chegamos, portanto, nas reflexões aqui colocadas. Chegamos em comparações com outros filmes de outros cineastas. Chegamos, também, em algumas características que indicam, por que não, traços autorais na sua obra. Em nenhuma de nossas conclusões, porém, poderíamos taxá-lo, enquadrá-lo, rotulá- lo ou reduzi-lo a algum viés formal, algum movimento estético ou algum programa narrativo, político ou estilístico. De todas as lições aprendidas por Ferrara dos melhores cineastas da Hollywood clássica, a mais importante talvez seja a de encadear filmes como um operário obstinado e inclassificável. *** Seja abordando as citações e os filmes com que Ferrara dialoga em sua obra, seja refletindo sobre o modo como a crise da imagem cinematográfica aparece em seus trabalhos, seja analisando formalmente sua decupagem e seus procedimentos recorrentes de filme a filme, existem várias maneiras de enfrentar a obra de Ferrara, e a que nos pareceu mais justa e honesta consistiu em encará-la a cada revisão com a mesma liberdade e o mesmo frescor. A imagem, para Ferrara, é motivo de angústia e inquietação. O que são Bem-vindo a Nova York (2014) e Pasolini (2015), dois de seus melhores filmes recentes, senão uma reflexão detida sobre a imagem cinematográfica, sua desconstrução e sua análise? Em um deles um Gérard Depardieu obeso, deformado, nu e grotesco interpretando Strauss-Kahn, no outro um Dafoe lânguido interpretando os últimos dias da vida de Pasolini, após o escândalo do lançamento de Salò. A história do cinema entra no filme de 2014 com o imaginário e a simbologia carregados pela figura de Depardieu, sua reflexão nascendo justamente da deformidade e da abjeção de tal figura. No de 2015, a história entra na revisita cotidiana e prosaica da figura mítica de Pier Paolo Pasolini, de seu último filme e de seus últimos dias. Nossa investigação não termina aqui, e as alternativas são muitas além das que apresentamos nessa dissertação. Pode-se aprofundar as reflexões sobre a imagem sacra e os impulsos heréticos em filmes que retrabalham o imaginário católico – de Scorsese em A última tentação de Cristo, passando por Godard em Je vous salue, Marie, por Pasolini em Teorema, e por Ferrara em Bad Lieutenant, The Funeral, The Addiction, Maria, etc. Pode-se aprofundar a investigação sobre a crise da imagem cinematográfica atentando para outras vias de acesso,

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outras formas de representação, outros filmes. Pode-se examinar seu diálogo com filmes de Michael Snow, Stan Brakhage, Kenneth Anger, Andy Warhol. Pode-se repensá-lo à luz dos debates em curso sobre a imagem pornográfica, a violência no cinema, os filmes snuff. Há, por exemplo, um filme como Morte ao Vivo (Tesis, 1996, do espanhol Alejandro Amenábar), que recorre a uma indumentária com ares de Brian De Palma e Dario Argento e constrói um thriller cuja espinha dorsal e cujo assunto central é o próprio filme snuff e sua produção clandestina (violenta e mortífera) numa faculdade de comunicação. Em nossa investigação, a análise de The Blackout convidou a um cotejo com um conjunto de filmes americanos que lhe foram contemporâneos. Se cineastas como Mann possuem muitas semelhanças com Ferrara, suscitando um olhar mais detido em nosso trabalho, outros como Cronenberg e Lynch também fizeram filmes cujas convergências com os de Ferrara possibilitaram desenvolvimentos proveitosos para nossa discussão. Estamos ainda no início de uma investigação sobre uma obra muito diversa. As possibilidades e os filmes não cessam. Ferrara é um cineasta em constante movimento e, felizmente para nós, seus filmes ainda se sucedem a cada ano. Os mais antigos ainda estão sendo revisitados e redescobertos. No Brasil, os estudos ferrarianos ainda tem muito a avançar66, assim como aqueles voltados para o melhor cinema norte-americano dos anos 80 para cá. Quanto às comparações, consagramos um pequeno capítulo a algumas delas, mas estamos conscientes de que haveria uma multidão de outros filmes e cineastas convocáveis para um tal exercício. Da vibrante e estilizada primeira fase da obra de Ferrara, poderíamos comparar filmes como The Driller Killer e Ms .45 a trabalhos realizados por outros cineastas na mesma década. Seus documentários, por sua vez, são fonte inesgotável de discussões particulares e mergulhos possíveis nos universos filmados. Há ainda as suas constantes revisitas a filmes do passado, como The Killing of a Chinese Bookie (1976, de John Cassavetes) em Go Go Tales (2007) e os dois Invasion of Body Snatchers (Don Siegel, 1956, e depois Philip Kaufman, 1978) em seu próprio Body Snatchers (1993), refilmagem de uma refilmagem, como aquela empreendida pelo personagem Mickey em The Blackout, refilmando a Nana de Christian-Jacque (que refilmava a de Renoir). Seguimos aqui o consenso de que sua melhor fase e seus melhores trabalhos se concentram nos anos 90, de O rei de Nova York (1990) até Enigma do poder (1998), razão pela

66 Fora do Brasil, além de artigos, críticas e entrevistas muito variados, existem os livros de Brad Stevens, Nick Johnstone e Nicole Brenez aqui utilizados. Além deles há uma considerável literatura sobre Ferrara em italiano: Pietro Baj, Giona Nazzaro e Alberto Pezzotta são alguns dos autores mais conhecidos. 128

qual privilegiamos o par de filmes Bad Lieutenant e The Blackout, mas isto não anula nosso interesse por outros trabalhos menos celebrados do cineasta, como Bem-Vindo a Nova York, Go Go Tales, R ‘Xmas e Mary. Não devemos confundir, porém, o temperamento amalucado de Ferrara com alguma falta de critério ou aleatoriedade em seu trabalho de cineasta. Ele continua muito incisivo naquilo que o faz continuar a filmar da maneira que pode. Que sua consciência e obstinação continuem a produzir com mais espaços e oportunidades que nos últimos anos, e que este trabalho ajude a adensar sua fortuna crítica, que tem uma longa vida pela frente.

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Filmografia

De Abel Ferrara

1971 | Nicky's film. EUA, 16mm, PB, 06 min. 1972 | The hold up. EUA, 16mm, PB, 14 min. 1973 | Could this te love. EUA, 16mm, cor, 26 min. 1976 | 9 Lives of a wet pussy. EUA, 16mm, cor, 63 min. * pseudônimo: Jimmy Boy L. 1977 | Not Guilty: for Keith Richards. EUA, 16mm, 05 min. *filme perdido 1979 | O Assassino da Furadeira (The Driller Killer). EUA, 16mm, cor, 96 min. 1981 | Sedução e vingança (Ms .45). EUA, 35mm, cor, 81 min. 1984 | Cidade do medo (Fear City). EUA, 35mm, cor, 96 min. 1986 | The Gladiator. EUA, 35mm, cor, 98 min. *telefilme 1987 | Inimigos Pelo Destino (China Girl). EUA, 35mm, cor 90 min. 1988 | The loner. EUA, 35mm, cor, 49 min. *telefilme 1989 | Sedução (). EUA, 35mm, cor, 90 min. 1990 | O rei de Nova York (King of New York). EUA, 35mm, cor, 103 min. 1992 | Vício frenético (Bad Lieutenant). EUA, 35mm, cor, 96 min. 1993 | Os Invasores de Corpos: A Invasão Continua (Body Snatchers). EUA, 35mm, cor, 87 min. * cinemascope 1993 | Olhos de serpente (Dangerous Game ou Snake Eyes). EUA, 35mm, cor, 109 min. 1995 | O vício (The addiction). EUA, 35mm, PB, 82 min. 1996 | Os chefões (The funeral). EUA, 35mm, cor, 99 min. 1997 | Blackout - Sentiu a Minha Falta? (The Blackout). EUA, 35mm, cor, 98 min. 1998 | Enigma do poder (New Rose Hotel). EUA, 35mm, cor, 92 min. 2001 | Gangues do gueto (‘R Xmas). EUA, França. 35mm, cor, 85 min. 2005 | Maria (Mary). EUA, Itália, França. 35mm, cor, 83 min. 2007 | Go Go Tales. EUA, Itália. 35mm, cor, 96 min. 2008 | Chelsea on the Rocks. EUA, 35mm, cor, 89 min. 2009 | Napoli, Napoli, Napoli. Itália, digital, cor, 102 min. 2010 | Mulberry St. EUA, digital, cor, 87 min. 2011 | 4:44 - O Fim do Mundo (4:44 Last Day on Earth). EUA, Suíça, França. Digital, 82 min. 2014 | Bem-Vindo a Nova York (Welcome to New York). EUA, França. Digital, cor, 125 min. 2014 | Pasolini. França, Itália, Bélgica. 35mm, cor, 84 min. 2019 | The projectionist. EUA, Grécia. Digital, cor, 81min.

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2019 | Tommaso. EUA, Itália, Grécia, Reino Unido. Digital, cor, 115min. *no momento inédito no circuito comercial brasileiro. 2020 | Siberia. Itália, Alemanha, Grécia, México. Digital, cor, 92min. *no momento inédito no circuito comercial brasileiro.

Outros filmes citados

Interlúdio (Notorious, 1946, de Alfred Hitchcock)

Um corpo que cai (Vertigo, 1958, de Alfred Hitchcock)

Anticipation of the Night (1958, de Stan Brakhage)

Os Novos Centuriões (The New Centurions, 1972, de Richard Fleischer)

Caminhos perigosos (Mean Streets, 1973, de Martin Scorsese)

Videodrome: A Síndrome do Vídeo (Videodrome, 1983, de David Cronenberg)

Veludo Azul (Blue Velvet, 1986, de David Lynch)

A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988, de Martin Scorsese)

O Último Grande Herói (Last Action Hero, 1993, de John McTiernan)

Crash - Estranhos Prazeres (Crash, 1996, de David Cronenberg)

Morte ao Vivo (Tesis, 1996, de Alejandro Amenábar)

Estrada perdida (Lost Highway, 1997, de David Lynch)

Sombre (1998, de Philippe Grandrieux)

Thomas Crown - A Arte do Crime (The Thomas Crown Affair, 1999, de John McTiernan)

Rollerball (2002, de John McTiernan)

Colateral (Collateral, 2004, de Michael Mann)

Miami Vice (2006, de Michael Mann)

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