A PERCEPÇÃO DA DUBIEDADE DE CARÁTER DAS PERSONAGENS DE BELÍSSIMA PELAS FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA DE GOIÂNIA

CÉSAR HENRIQUE GUAZZELLI E SOUSA, PAULO HENRIQUE DOS SANTOS

Resumo: o artigo trata da relação entre algumas perso- nagens da Belíssima e a memória coletiva fami- liar, especificamente entre as famílias de baixa renda do município de Goiânia. Explicitadas ao público de forma dúbia, as personagens parecem se distanciar do gênero melodramático enquanto antagonistas na narrativa. Com- preendendo a família como elemento chave de mediação no processo de recepção da telenovela, gênero latino-america- . 2009. no por excelência, busca-se mediação familiar uma relação entre as mudanças na compreensão e aceitação das perso- nagens e as transformações estruturais da realidade brasi- leira. 17-143, jan./fev Palavras-chave: belíssima, recepção, mediações, memó- ria familiar . 36, n. 1/2, p. 1 presente trabalho parte da proposta de Martín Barbero, estabelecendo a acepção dos processos de

, Goiânia, v O comunicação a partir das mediações, situadas na dialogia entre as práticas da comunicação e os movimentos e instituições sociais, produção e consumo, procurando des- estudos locar-se nas balizas da relação entre a recepção da telenovela Belíssima, (escrita por Sílvio de Abreu, Sérgio Marques e 117 Vinícius Vianna, dirigida por Denise Saraceni e exibida pela Rede Globo, no horário das 21 horas de 7 de novembro de 2005 a 8 de julho de 2006) e o papel da família enquanto elemento mediador da relação entre o consumo e a narrativa da telenovela. Especifi- camente, busca-se a compreensão do modo como a família estu- dada percebe a dubiedade de caráter de três personagens da novela em questão, André Santana (Marcelo Antony), Bia Falcão () e Alberto Sabatini (Alexandre Borges), que no decorrer da trama sofrem remodelamentos drásticos, ade- quando-se ao teor da novela, ancorada em reviravoltas da trama e ocultação de informações ao espectador, criando suspense e, con- seqüentemente, audiência, produto vendido pelas emissoras. Para que essa abstração seja possível, é necessário criar mecanismos que possibilitem o estabelecimento das relações entre o cotidiano e a forma como a telenovela é assimilada e reeditada na memória coletiva familiar. Assim, propõe-se aqui a análise de recepção da telenovela Belíssima por mediação familiar com foco em personagens que se colocam como antagonistas na trama, e que, entretanto, transitam entre maneiras de agir que se desvirtuam do maniqueísmo comum à telenovela latino-americana. O eixo epistemológico central do presente trabalho é formado, por um lado, pela compreensão ob- jetiva do cotidiano e da memória familiar como elementos radiciais no modo como a telenovela é consumida. Por outro, pela percep- . 2009. ção estrutural da telenovela a partir do gênero melodramático la- tino-americano e seus mecanismos enquanto gerador de empatia com o espectador e de diálogo com a matriz cultural em que a família estudada está imersa, ou seja, a estrutura narrativa 17-143, jan./fev internalizada e remodelada pela recepção.

RECEPÇÃO E MEDIAÇÃO . 36, n. 1/2, p. 1 Nos estudos de recepção, deve-se lembrar que esta é um pro- cesso complexo que tem seu sentido moldado a partir da relação

entre produtos midiáticos e receptores situados sócio-historicamente. , Goiânia, v No processo de recepção, em que elementos simbólicos são trans- feridos, assimilados e ressignificados, operam mediações, conceito

complexo e heterogêneo, que aqui será instrumentalizado em três estudos 118 acepções distintas, mas não excludentes. Primeiramente, como ins- tituição ou local geográfico, em que a prática relaciona sentidos. Nessa acepção, as mediações, enquanto lugar de vivência de senti- dos ambíguos ou sintetizadores, também podem ser observadas como locais de onde advém mecanismos delimitadores da materialidade social e expressividade cultural da TV. Em outra perspectiva, me- diações são percebidas como estruturas, formas e práticas vinculadoras de diferentes racionalidades, ou que sustentam dife- rentes lógicas e temporalidades num mesmo processo. Aqui, as práticas econômicas – de produção, circulação e consumo – possi- bilitam a concordância entre sentidos antinômicos, resultando em um formato discursivo específico, no caso, a telenovela moderna brasileira. Aqui, a mediação se torna um entroncamento, uma prá- tica cultural assimiladora de diferentes discursividades. Em tercei- ro lugar, pode-se perceber a mediação como dispositivo de legitimação da hegemonia ou resolução imaginária da luta de clas- ses no âmbito da cultura. Por essa perspectiva, a cultura esconde diferenças e reconcilia gostos, ocultando a contradição de classes através da produção de uma resolução no imaginário que assegura o consentimento dos dominados, transmutando a cultura popular em cultura de massa. (SIGNATES, 1998).

A FAMÍLIA COMO MEDIADORA

. 2009. A partir da acepção da família como elemento chave para a percepção de como se opera a construção das personagens na memória coletiva, é válido ressaltar a importância da citada insti- tuição social como elemento atrelado à cotidianidade, esta mode- 17-143, jan./fev lada nas relações estabelecidas no espaço doméstico (casa) e extra-doméstico (rua) (DA MATTA, 1998). Se o espaço da rua constrói-se sobre uma multiplicidade inumerável de relações e instituições, tornando impossível sua assimilação a determinada

. 36, n. 1/2, p. 1 instituição social, o espaço doméstico edifica-se sobre a institui- ção da família, tornando-se esta o local chave para a compreensão e captura da lógica de recepção televisiva aqui proposta. Dentro

, Goiânia, v do campo da comunicação, a proposição da cultura como lugar de articulação dos conflitos, bem como de construção de hegemonia, das práticas subjetivas como espaços de operação de apropriações, estudos e não apenas de reprodução social, resgatam o cotidiano como espaço de reflexão. 119 Assim, a assimilação das personagens recortadas da trama da telenovela Belíssima será colocada à partir do cotidiano atre- lado à perspectiva da família, unidade básica de consumo da TV. Tomando a família como um fato social, é válido lembrar que é necessário abandonar a perspectiva de que esta forma-se pela soma da análise unitarista de seus membros, uma vez que a ins- tituição familiar transcende as qualidades dos indivíduos que a compõem, gerando coercitividade social (imposição de modos de ser e agir), e sendo possuidora de objetividade. Entretanto, a família não é uma organização fechada e estática, mas um siste- ma aberto, em contínuo processo de mudança. Inserida num contexto maior, possibilitador de sua lógica existencial, a famí- lia recebe influências exógenas que configuram mudança, esta dada nos limites das possibilidades materiais e simbólicas do núcleo familiar em questão (GUADAMARRA, 1998). Desse modo, a recepção de telenovela não deve ser pensada unilateral- mente, observando somente a influência da cotidianidade fami- liar na maneira como os indivíduos percebem as personagens, mas, também, à partir da influência exercida pelos modos de ser e agir das personagens sobre a cotidianidade familiar. Como um recorte da sociedade estruturado, a família pos- sui uma hierarquia com distintos níveis de autoridade, bem como regras reitoras das relações interindividuais que se ope- ram dentro de seus limites, sua organização e funcionamento. . 2009. Se, nas relações familiares, os indivíduos se comportam e interagem conforme modelos pré-determinados, a estrutura organizativa familiar torna-se um ponto importante para que se possa compreender sua relação de consumo com a TV e, 17-143, jan./fev conseqüentemente, com a telenovela. As regras familiares são colocadas em funcionamento durante as práticas de recepção (LOPES, 2002).

As famílias também organizam rotinas, que dão forma à . 36, n. 1/2, p. 1 vida cotidiana. Dentro desse ordenamento de rotinas familia- res, conforma-se o consumo da telenovela. Os membros de uma

família compartilham dos mesmos mecanismos simbólicos de , Goiânia, v compreensão do mundo, embora possa haver conflito entre eles. São eles detentores de uma matriz de identidade e reconheci-

mento, construindo-se na dialética da relação de grupo – a fa- estudos 120 mília – e suas distensões no contexto macro-social. Muitas das rotinas cotidianas dos membros da família desen- volvem-se fora do ambiente familiar. Aqui, percebe-se os limites familiares, que, por sua vez, se estendem além da casa e do grupo. As trocas e práticas realizadas exogenamente encontram reverbe- rações no cotidiano familiar, o que se difunde para as práticas de recepção ocorridas dentro desse contexto espacial e institucional. Outro dado é que as relações extrafamiliares também são alvo da recepção, influindo diretamente na percepção que o indivíduo faz das relações ficcionais a ele expostas na trama.

TELENOVELA, CAPITALISMO E CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA.

O ambiente da produção de telenovela na América Latina põe- se em congruência com os grandes fluxos do capital, se manten- do, por isso mesmo, nas mãos das grandes elites econômicas nacionais. Isso equivale a dizer que as classes hegemônicas são detentoras de um poderoso meio de produção simbólica e discur- so sobre si mesmas e sobre . O casamento entre represen- tação e acumulação – produção simultânea de hegemonia e de capital – demonstra o enorme poderio da narrativa teledramaturgica latino-americana. Esse poderoso aparato audiovisual, de enorme reverberação . 2009. no cotidiano dos indivíduos a ele atrelados pelo consumo de tele- novela, é locado em um mundo onde a primazia da visualidade atrelada à técnica se tornou crônica, reconfigurando o espaço da oralidade. A imagem enquanto simulacro e representação atrelou- 17-143, jan./fev se profundamente à indústria cultural através do cinema que, para adequar-se à lógica de homogeneização e consumo, criou eficien- tes mecanismos de exposição da ficção ao espectador, permitindo fácil codificação espaço-temporal das imagens narradas e empatia

. 36, n. 1/2, p. 1 com as personagens e situações vivenciadas no espaço ficcional. Esse elemento – profundamente ligado à cultura ocidental – é o melodrama.

, Goiânia, v As bases do melodrama, calcadas na superficialidade das personagens e situações (facilmente decodificáveis), linearidade narrativa, verossimilhança, tensão atrelada a um problema estudos vivenciado pelos protagonistas, ressentimento, redentorismo e catarse, entre outros fatores complementares, permitiram o 121 surgimento do cinema de Hollywood. Sua astronômica expansão econômica e territorial, perceptível no alcance da produção do cinema industrial norte-americano, se deveu, paralelamente, à aplicação do taylorismo na produção audiovisual e as progressi- vas e incessantes inovações técnicas que se realizaram nessa área. A extrema centralidade da produção audiovisual atrelada à indús- tria cultural permaneceu incólume até meados de 1970 na Améri- ca Latina, onde seriados norte-americanos dominaram de forma esmagadora a programação de ficção nos canais latino-america- nos de televisão, ocupando os chamados horários nobres. Nos fins da década de 70, a situação começou a mudar, e durante os anos 80 a produção nacional cresce e começa a disputar o horário no- bre com os seriados estrangeiros. Num processo extremamente rápido, a telenovela nacional em vários países, como o México, Brasil, Venezuela, Colômbia e Argentina, deslocam completamente a produção norte-americana. A partir desse momento, a telenove- la ocupa um lugar determinante na consolidação da indústria televisiva, modernização de seus processos e infra-estruturas e especialização de seus recursos (autores, diretores, especialistas técnicos, editores, fotógrafos). A produção da telenovela represen- tou a apropriação do gênero melodramático em cada país, sua nacionalização (MARTÍN-BARBERO, 2001). A década de 1990 mostra uma telenovela que se consolidou industrialmente, com certas cotas de racionalização exigentes. Um . 2009. manejo gerencial bastante sistematizado da produção e uma ex- ploração constante das reações dos públicos. Em quase todas as televisões do continente, a telenovela é a realização de maiores investimentos econômicos e a preferida dos horários de maior 17-143, jan./fev audiência (MARTÍN-BARBERO, 2001). Outra importante mu- dança da telenovela dos anos 1990 é a passagem de uma telenove- la de ‘’criação’’ para a de ‘’produção’’. Isso quer dizer que a

telenovela mais recente está determinada por variáveis comerci- . 36, n. 1/2, p. 1 ais bastante precisas, condições de distribuição que influem na elaboração do relato, nas oportunidades de articulação com ou-

tras estratégias de mercado, mais do que pela autonomia criativa , Goiânia, v dos roteiristas e diretores. Com efeito, os departamentos comerci- ais têm mais a dizer hoje do que anos atrás e os grupos de pesquisa

fazem um acompanhamento rigoroso das reações das audiências. estudos 122 (MARTÍN-BARBERO, 2001). A EVOLUÇÃO DA TELENOVELA BRASILEIRA COMO GÊ- NERO FICCIONAL

Ao buscarmos analisar como a população de baixa renda assi- mila a dubiedade de caráter de alguns personagens em Belíssima, é interessante fazer um breve retrospecto da telenovela brasileira (principalmente as produzidas pela TV Globo). Dessa forma, pode- remos verificar como a linguagem narrativa e o modo construção de personagens chegaram ao modelo vigente atualmente. A primeira telenovela brasileira, Sua vida me pertence foi produzida pela TV Tupi e estreou em dezembro de 1951. Escrita e dirigida por Walter Forster, ele teve 20 capítulos e era exibida as terças e quintas-feiras. Por isso, não pode ser considerada a pri- meira telenovela brasileira diária. Esse título pertence à novela 2- 5499 Ocupado, estreada em julho de 1963, escrita por Dulce Santucci e produzida pela TV Excelsior. A primeira novela diária de Rede Globo foi Ilusões Perdidas, exibida em 1965 e de autoria da escritora Ênia Petri. Com o tempo, essas três emissoras citadas viram referências na produção de , com destaque para a TV Globo, que apesar de ser a caçula das três emissoras, conse- gue desmistificar o pioneirismo da TV Excelsior e da TV Tupi. Aos poucos, ela foi assumindo a dianteira da produção teledramaturgica nacional. . 2009. A TV Globo soube construir uma grade em que as telenove- las fossem as grandes estrelas da programação. Em determinado momento de sua história, ela estava exibindo simultaneamente quatro novelas inéditas (às 18:00, 19:00, 20:30 e 22:00 horas). 17-143, jan./fev Certamente, entre outros motivos políticos que não cabe discutir aqui, o profissionalismo com que a TV Globo encara o enorme potencial das telenovelas foi fundamental para sua sobrevivência, já que anos mais tarde a TV Excelsior (1970) e depois a TV Tupi

. 36, n. 1/2, p. 1 (1980) acabaram falindo, restando durante alguns anos somente ela na produção de teledramaturgia. Na TV Globo, durante a década de 60, a diretora de núcleo de

, Goiânia, v teledramaturgia era a cubana Glória Magadan. Ela chegou ao Brasil em 1964 exilada pela revolução comunista em seu país e logo assumiu a função de diretora na Globo. Além de chefiar esse de- estudos partamento, ela era autora da maioria das novelas produzidas pela TV Globo até então. 123 As telenovelas de Glória Magadan eram extremamente folhetinescas e melodramáticas. Seus textos eram baseados no que era sucesso na América latina nesse período: histórias extrema- mente românticas, fantasiosas, ambientadas nos mais longínquos países, com cenografia luxuosa e extravagante. Seus vilões eram maus ao extremo; suas mocinhas, sofredoras e indefesas; e seus heróis, corajosos e perfeitos em caráter. Suas novelas não tinham compromisso algum com a realida- de nem com a sociedade brasileira, já que retratavam a vida dos nobres príncipes, reis, princesas, xeques, samurais, cavaleiros, etc. Tudo isso tendo como cenários países como Japão, Índia, Méxi- co, Arábia, Peru, Estados Unidos, Alemanha, etc. Com o passar dos anos, tudo isso, adicionado ao extremamente irreal maniqueísmo de suas novelas, causou má aceitação do público, que já demonstrava maior interesse nas novelas um pouco mais realistas (mas ainda sim bastante melodramática e fantasiosa) de Janete Clair, que estreava na TV Globo em 1967. O golpe que acabou de vez com esse modelo nada realista de telenovelas foi dado pela TV Tupi, em 1968, com a novela (de Bráulio Pedroso, com direção de e Walter Avancini, argumento de Cassiano Gabus Mendes e protagonizada por Luís Gustavo). Pela primeira vez na televisão, abandonava-se a estrutura latina de se fazer novela no Brasil. A partir daí, o maniqueísmo existente entre os personagens passa a . 2009. ser parte do comportamento do próprio protagonista: surge a figu- ra do anti-herói na dramaturgia nacional. Ele a partir de agora passa a ocupar o lugar do tradicional mocinho, que até então era dono de caráter firme, honestidade inabalável e capaz de tudo para salvar 17-143, jan./fev a mocinha dos perigos. Não só ocorre uma revolução na construção dos persona- gens (item mais pertinente a esse artigo), mas sim uma série de

outras mudanças nas características básicas da telenovela brasi- . 36, n. 1/2, p. 1 leira. O modelo de interpretação muda drasticamente, passando a ser mais real e menos dramático; O cenário deixa de ser terras

distantes e passa a ser o Brasil; Os diálogos passam a ser mais , Goiânia, v coloquiais, utilizando as gírias e as linguagens da época; Muda até mesmo a trilha sonora, deixando de lado os temas sinfônicos

tocados por orquestras e optando por sucessos tocados por ban- estudos 124 das contemporâneas. Percebendo o sucesso da emissora rival, a TV Globo demite Glória Magadan e passa a investir em tramas passadas no Brasil e que retratavam a realidade cotidiana do brasileiro. Em 1969 estreava Véu de Noiva, de Janete Clair. Ambientada no , foi um tremendo sucesso que, na opinião do diretor na novela, Daniel Filho “manteve o melodrama que o povo gosta com uma imagem mais brasileira e atual”. Pode-se perceber então que houve mudanças na telenovela, mas que ela ainda manteve as bases fincadas no melodrama, ainda que mais realista que os dramalhões anteriores. Foi primeiramente nessa novela que o comportamento de um dos principais personagens passa a dividir opiniões do público. Tratava-se do papel representado por Myrian Pérsia, chamado Flor. Seu conflito era ter abandonado um filho por não ter condições de sustentá-lo, já que havia se tornado mãe solteira. Com o passar dos anos, ela briga na justiça a guarda do filho com a mãe adotiva (interpretada do ). Longe de ser uma vilã, seu papel dividiu a opinião feminina da época, já que ser mãe solteira até então era considerado uma desonra. Para uma época que o públi- co era acostumado a ver mocinha com comportamento virginal, era um tremendo escândalo. Naturalmente, o estilo que consagrou Janete Clair foi segui- do por vários outros autores da televisão nacional, principalmente . 2009. por Sílvio de Abreu (também influenciado por Cassiano Gabus Mendes), Glória Perez e . Esses autores aprimora- ram o estilo que consagrou Janete, pois, mesmo sendo a respon- sável pela modernização dos folhetins globais, seus últimos 17-143, jan./fev trabalhos continuavam com um nível melodramático e fantasioso não compatível mais com os novos tempos (década de 80). A crí- tica dizia que o enredo de seus trabalhos dependia demais das açucaradas histórias de amor cada dia menos realistas. Dessa for-

. 36, n. 1/2, p. 1 ma, Glória Perez e Gilberto Braga atualizaram um modelo já con- solidado para a nova realidade brasileira. Gilberto Braga acrescentou um ingrediente que não era mui-

, Goiânia, v to utilizado nas telenovelas de Janete: a crítica política e social, mas mantendo o melodrama intrínseco às novelas de qualquer época. Após 1985, com o fim da censura do governo, essa carac- estudos terística se evidencia ainda mais com a produção das novelas Vale Tudo (1988), (1991) e Pátria Minha (1994), 125 além das minisséries Anos Dourados (1986) e Anos Rebeldes (1992). Para nosso artigo, é conveniente ficarmos restrito apenas às duas primeiras novelas citadas acima. Em Vale Tudo, a pergunta básica que sintetizava toda a nove- la era se “valia a pena ser honesto no Brasil de hoje?”. Foi nessa novela que foi criada a vilã mais memorável da teledramaturgia nacional: a mítica Odete Roitman, interpretada por . Além dela, existia a personagem Maria de Fátima (vivida por Glória Pires) que era filha da protagonista Raquel (Regina Duarte) e responsável pelo maior dilema ético da novela, já que ela tem certeza que honestidade não vale nada e para chegar onde se quer é válido utilizar qualquer recurso (em determinado momento da novela, ela chega a vender a casa que a mãe mora). Nessa novela, os personagens de Beatriz e Glória conseguiram repercussão muito maior junto ao público que a honesta personagem de Regina Duarte. Portanto, observa-se nas obras de Gilberto Braga a forte pre- sença dos vilões, ao contrário das novelas de Janete Clair em que os mocinhos são os personagens mais importantes. Pode-se dizer até que Gilberto Braga é um especialista em vilões, já que em suas novelas eles são os tipos mais carismáticos. Entretanto, se os vi- lões eram queridos pelo público, isso não quer dizer que suas funções não eram bem definidas. Nas maiorias das novelas de Gilberto Braga, os vilões são facilmente identificáveis como vi- lões e os mocinhos são claramente aceitos pelo público como tal. . 2009. O que ocorre até então é que há uma aceitação maior dos espectadores em relação ao carisma dos vilões, mas suas atitu- des são atitudes de “pessoas más” e por isso eles são classifica- dos como vilões inquestionavelmente. Ao contrário da novela 17-143, jan./fev Belíssima, nosso objeto de estudo, em que certos personagens possuem uma fluidez de caráter nunca vista em tal proporção na televisão brasileira. Já que alguns deles realizam atitudes consi-

deradas “más” pela sociedade, porém podem ou não ser consi- . 36, n. 1/2, p. 1 derados vilões, algo inconcebível até pouco tempo. E é como a população de baixa renda está encarando essa nova característi-

ca o objetivo do nosso trabalho. , Goiânia, v O próprio Gilberto Braga tem uma experiência no seu currí- culo em que o personagem principal possuía uma fluidez de cará-

ter muito acentuada, o que não permitia defini-lo como vilão ou estudos 126 mocinho facilmente. Trata-se do personagem Felipe Barreto (An- tônio Fagundes) na novela O Dono do Mundo. Esse personagem faz uma aposta que irá tirar a virgindade da noiva de seu funcio- nário antes do casamento dos dois, o que de fato ocorre. Após o ato, o noivo de Márcia () morre e ela decide se vingar de Felipe Barreto. Não nos convém entrar em maiores detalhes da trama, mas futuramente os dois personagens citados acima iniciam um tur- bulento envolvimento amoroso, o que qualificaria Felipe Barreto como o mocinho da história. Entretanto, ele continuou fazendo suas “maldades”, inclusive com Márcia. Esse é um dos fatores que possivelmente explica a causa do fracasso de O Dono do Mundo, já que a novela chegou a perder algumas vezes em au- diência para a novela mexicana Carrossel (exibida pelo SBT), uma trama infantil, água-com-açúcar e extremamente melodra- mática. Pesquisas de opinião diziam que o público não suporta- va as maldades do protagonista-vilão e nem a postura passiva da heroína. Apesar de terem sido feitas mudanças, a novela amar- gou um fracasso estrondoso. Entender um fenômeno nacional tão duradouro e importante como a telenovela não é simples. Nosso artigo procura clarear um pouco como é a receptividade das famílias de baixa renda quanto à dubiedade de caráter dos personagens da novela Belíssima. Já que, como foi demonstrado anteriormente, em 1991, na novela O . 2009. Dono do Mundo foi feita uma experiência semelhante ao que está sendo feito atualmente em Belíssima que resultou num fracasso retumbante. Ao contrário da novela de Sílvio de Abreu, a segunda maior audiência de novelas das oito da década, perdendo apenas 17-143, jan./fev para (2004). Sem contar que isso fere a estru- tura clássica da telenovela brasileira, que, apesar de ter passado por muitas mudanças e estar num nível de sofisticação cada vez mais alto com o passar dos anos, nunca deixou de ser melodramá-

. 36, n. 1/2, p. 1 tica e tradicionalista. (COELHO, 2003).

HISTÓRICO DAS PERSONAGENS , Goiânia, v É nesse contexto que se insere a telenovela em questão, Belíssima. Aqui, faz-se necessária a exposição das três persona- estudos gens visadas no artigo, Bia Falcão, André Santana e Alberto Sabatini. 127 Bia Falcão

Antes mesmo de a novela estrear, o autor Sílvio de Abreu dizia que a vilã da história seria a personagem Bia Falcão, papel escrito especialmente para a atriz Fernanda Montenegro. E de fato quan- do a novela estreou foi isso que se pôde perceber. Quando a per- sonagem entrava em cena, a câmera dava um close na sua feição séria, além da música incidental ficar tensa em cada aparição da vilã. Tudo isso, somado à dicção fria e pausada da atriz, a tornava uma vilã mesmo antes de cometer qualquer atitude má. Enquanto os recursos narrativos faziam sua parte na cons- trução da personagem de Fernanda Montenegro, suas atitudes coincidiram com a proposta do autor de torná-la a grande vilã da novela. Desde o início, Bia Falcão culpava a neta Júlia Assun- ção (Glória Pires) pela morte da filha, a repreendia por não ter a mesma beleza e poder de atração de sua mãe e humilhava os subalternos trabalhadores da fábrica de lingeries Belíssima. Com o desenvolvimento da história, suas atitudes conside- radas más foram aumentando de proporção, chegando ao ponto mais alto quando tenta impedir o casamento das protagonistas da história: Júlia Assunção e Vitória Rocha (Cláudia Abreu). A primeira estava se casando com o operário pobretão André Santana e a segunda estava se casando com seu neto Pedro As- sunção (Henri Castelli). Nesse ponto da novela, Bia Falcão era . 2009. indubitavelmente considerada a principal vilã entre todos os personagens. A partir daí começa a primeira grande virada da novela. Bia não tem sucesso na sua tentativa e as duplas (Júlia e André; Vi- 17-143, jan./fev tória e Pedro) se casam. Pouco tempo depois seu neto morre na Grécia e Vitória herda a fortuna do marido. Ao mesmo tempo, André passa de operário para membro da diretoria da empresa.

Quando o primeiro terço da novela se encerra, Bia Falcão sai de . 36, n. 1/2, p. 1 cena numa morte misteriosa. Pouco tempo depois da “morte” sua profecia se cumpre: André Santana aplica um golpe do baú em

sua neta e assume a presidência da empresa. , Goiânia, v Passados cem capítulos de seu “falecimento”, Bia Falcão retorna misteriosamente como se nada tivesse acontecido, afir-

mando que sua morte fora apenas um mal entendido. Sua pri- estudos 128 meira reação ao ver que Júlia Assunção havia perdido tudo para o marido foi a mais inesperada, já que ela ajuda a neta reassumir a presidência da empresa. De agora em diante, o foco das atitudes de Bia passa a ser a viúva Vitória (ela quer a guarda da bisneta Sabina) e a família do pai de seu filho, Murat. Esse filho é um dos maiores mistérios da novela, uma vez que Bia o teve após os 40 anos sem que ninguém soubesse e o abandonou após o nascimento. Não se sabe o sexo nem o paradeiro dessa pessoa, mas sabe-se que ela é chave dos mistérios que envolvem a história.

André Santana

O personagem de Marcelo Antony entrou na novela de ma- neira estranha. Ele foi atropelado pelo operário da fábrica Cemil (Leopoldo Pacheco) e logo virou amigo desse personagem, sendo inclusive abrigado em sua casa – pois era recém chegado em São Paulo - e empregado na Belíssima. A partir daí, começa seu envolvimento com a dona da empresa, Júlia. O relacionamento dos dois ocorre de forma intensa e, paralelamente, acontecem fatos estranhos, como a “morte” da ex-namorada de André, Valdete (Leona Cavalli), e os estranhos telefonemas recebidos por esse personagem. O personagem de André é construído inversamente ao que . 2009. ocorreu com Bia Falcão. Bonito, André é primeiramente o clássi- co galã de novela. Injustiçado pela vilã da história, que não acre- dita no seu amor por Júlia, ele é sempre apresentado como uma pessoa sofrida, envergonhado de sua condição financeira e inca- 17-143, jan./fev paz de demonstrar seu amor pela protagonista. Além disso, o en- contro dos dois sempre ocorre embalado por músicas românticas e emoldurado por uma bela direção de fotografia. Após o casamento, suas verdadeiras intenções são reveladas.

. 36, n. 1/2, p. 1 Os telefonemas passam a ser mais freqüentes e um possível envolvimento amoroso entre André e a filha de Júlia, Érica (Letícia Birkheuer), é revelado. A partir de agora André passa a usar rou-

, Goiânia, v pas sóbrias e suas aparições ocorrem sob uma música tensa. Mes- mo sem ainda nada ter feito ao patrimônio de Júlia e nem ter consumado o envolvimento com Érica, a novela tenta dar a im- estudos pressão que está acontecendo algo e começa a levantar dúvidas sobre o caráter de André. Além disso, o antagonista dele, o grego 129 Nikos () começa a ganhar força como possível par romântico de Júlia. A virada do personagem de Marcelo Antony ocorre após a pseudo-morte de Bia Falcão. Júlia, traumatizada por presenciar a “morte” trágica da avó, é internada por André numa clínica de repouso. Nesse tempo, passa todos os bens da esposa para o seu nome e engata um romance com Érica. Quando Júlia sai da clíni- ca, encontra André na cama com sua filha e pede o divórcio. Nes- se momento ela é comunicada por André que todos os seus bens agora não pertencem mais a ela, graças a uma procuração assina- da anteriormente que dava total controle a André sobre o patrimônio de Júlia. A partir desse momento, André passa a ser construído pelo autor como o verdadeiro vilão da novela, uma vez que a persona- gem que possuía essa função havia “morrido”. Entretanto, uma pessoa misteriosa com quem André mantém contato pelo telefone torna esse fato um pouco obscuro, visto que, aparentemente, ele é manipulado por essa pessoa que os espectadores não sabem quem é. Isso faz com que a personalidade de André se torne confusa, já que todos acham que ele só fez o que fez por ter sido obrigado. Para confundir ainda mais, André declara frequentemente para Júlia que ainda a ama. Fica a dúvida se esse sentimento é real ou não, já que o histórico do personagem não permite confiar em seus atos. De agora em diante, as aparições de André passam a ser revezadas . 2009. por músicas tensas e românticas, dependendo da ocasião.

Alberto Sabatini 17-143, jan./fev Alberto Sabatini é, sem dúvida, o personagem mais impor- tante e mais interessante para a análise desse artigo. Sua persona- lidade é tão confusa e sua construção é tão incomum na história da

telenovela brasileira que por si só já mereceria uma análise pró- . 36, n. 1/2, p. 1 pria. Ele é um personagem cujas atitudes más não vão de acordo com a construção realizada pelo autor, que em nenhum momento

o definiu como vilão. , Goiânia, v Interpretado por Alexandre Borges, Alberto começa a novela divorciado de Safira (Cláudia Raia), com quem possui uma filha

adolescente, Giovana (Paola Oliveira). Além disso, possui um filho estudos 130 de cinco anos fruto de um relacionamento passageiro com Valdete que ele se nega assumir. Essa criança é desprezada tanto pela mãe quanto pelo pai, encontrando refúgio apenas na babá Mônica (Camila Pitanga), irmã de André. Somente após uma batalha judi- cial ele assume a paternidade do filho, e é nesse momento que ele entra em contato com Mônica, por quem começa a sentir atração obsessiva ao descobrir que a moça ainda é virgem. Paralelamente, Mônica inicia um relacionamento com Cemil. Alberto é um dos diretores da Belíssima e chefe imediato do mesmo. Quando ele descobre que Mônica está namorando Cemil, Alberto começa a tomar uma série de atitudes para acabar com esse relacionamento. Ele chantegeia Mônica, ameaçando impedi- la de ver o filho (já que agora ele tinha a paternidade da criança, após a “morte” de Valdete) e começa uma perseguição ao funci- onário dentro da empresa. Após uma série de tentativas frustradas de acabar com o romance, ele finalmente consegue seu objetivo num plano realizado com a ajuda da secretária Yvete (Angelita Feijó), em que Cemil é abandonado por Mônica no altar. Decep- cionada com a “traição” do noivo, Mônica casa-se pouco tempo depois com Alberto que, obviamente tira sua virgindade. Pode-se fazer aí um curioso paralelo entre a novela O Dono do Mundo, de Gilberto Braga, já citada anteriormente, com a novela Belíssima. Nas duas novelas, um personagem central que ocupa um cargo de chefia (Felipe Barreto e Alberto, respectivamente), . 2009. após uma série de artimanhas, tira a virgindade da noiva do fun- cionário, atrapalhando o relacionamento do casal. Entretanto, se em 1991 tal atitude foi reprovada, causando o fracasso da novela, em 2006 isso foi aceito pelo público (Belíssima 17-143, jan./fev é uma das novelas recordista de audiência dos últimos tempos). Além disso, se Felipe Barreto era claramente, se não um vilão, no mínimo um anti-herói, Alberto, não é definido pelo autor nem como um vilão, nem como um anti-herói. Ele é apenas um personagem

. 36, n. 1/2, p. 1 engraçado. Isso ocorre porque Alberto foi construído pelo autor como um descendente de italiano típico: falastrão e desajeitado. Suas apa-

, Goiânia, v rições são feitas em cima músicas cômicas e realçadas pela atua- ção bem humorada do ator, que abusa de caras-e-bocas e gestos. Do outro lado, Cemil foi construído como uma pessoa insossa, estudos chata, honestíssima e com um histórico de perdas imenso, o que o torna ressentido. Essa disputa travada entre o boa praça rico, mas 131 mal-caráter, e o insosso pobretão, mas honesto, acaba com uma vantagem momentânea para Alberto. Após o casamento com Mônica, Alberto continuou com suas atitudes discutíveis. Manteve um relacionamento extraconjugal com a empresária Rebeca (Carolina Ferraz, que sabia do casamento de Alberto), impediu de todas as formas os relacionamentos amo- rosos e a carreira de modelo da filha adolescente e aliou-se a André na fábrica. Tudo isso regado a uma interpretação estabanada, en- graçada e bem aceita pela sociedade. O que não pode caracterizá- lo como o vilão clássico da telenovela brasileira.

A NOVELA BELÍSSIMA E AS FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA

A pesquisa, de natureza qualitativa, foi realizada no municí- pio de Goiânia, Goiás, com uma família de baixa renda residente no setor Parque Industrial João Braz. A família estudada é com- posta por 8 membros – Laura Silva (52 anos), Eurípedes da Silva (50), suas filhas Kamila Vaz (24) e Taís Borges (26) o os respec- tivos maridos Wesley Vaz (26) e Juarez Borges (27), além de José do Carmo (51) e sua esposa Maria do Carmo (47), irmã de Eurípedes, não residentes na mesma casa, mas no mesmo lote. Durante o acompanhamento da novela com a família, estiveram presentes apenas as quatro mulheres, enquanto os homens ou não estavam em casa ou não quiseram participar da pesquisa. . 2009. Os encontros foram realizados nos dias 14, 16 e 17 de junho de 2006. Nessas datas, os componentes do grupo assistiram ao capítulo exibido e foram entrevistados após o término da novela. Foram feitas indagações sobre o capítulo apresentado, ressaltan- 17-143, jan./fev do-se os fatos lembrados pelas entrevistadas no decorrer da trama naquele dia. No dia 17, outra entrevista, esta de caráter histórico, ocupou-se da vida pessoal de cada entrevistada e da família como

um todo. Paralelamente, foi feita a observação etnográfica do grupo . 36, n. 1/2, p. 1 familiar em questão, esta colocada em sincronia com as respostas obtidas nas entrevistas.

Pôde-se perceber que a seqüência dos fatos descritos foi a , Goiânia, v praticamente a inversa da apresentada cronologicamente no capí- tulo, ou seja, as últimas ações são as primeiras lembradas. Contra-

riando expectativas, não foi seguida uma ordem de importância. estudos 132 Ao fim de cada capítulo analisado, perguntou-se para cada um dos membros da família quem eram as personagens Bia Falcão, André Santana e Alberto Sabatini. Para Bia Falcão, a resposta freqüentemente ouvida era de que ela é uma personagem “má” e “ruim”. A resposta de Laura, “por enquanto ela é a vilã”, particularmente, chamou a atenção. Essa última opinião confirma a hipótese levantada sobre a dubiedade de alguns personagens. Nessa novela, o espectador está tão cale- jado com “mortes” que na verdade não são verdadeiras, persona- gens maus que em determinado momento passam a ter atitudes boas, ou então personagens bons, que repentinamente tornam-se vilões, que é compreensível uma pessoa duvidar constantemente do comportamento dos personagens. Provavelmente se a novela mantivesse o maniqueísmo da trama à claras, seria mais simples a pessoa definir simplesmente Bia Falcão como vilã, e não afir- mar isso como condição supostamente verdadeira e momentânea. A mesma pergunta, agora direcionada ao personagem André Santana, revelou resultados diferentes. Kamila diz que “o André não é mau”, Laura afirma que ele “está sendo vítima”. Aqui, per- cebe-se que a construção do personagem André no imaginário coletivo familiar não permite que o mesmo seja considerado um vilão, mesmo tomando todo o dinheiro da esposa e tendo um re- lacionamento amoroso com a filha dela. Quando confrontamos o envolvimento de André com Érica, ouviu-se de Laura que “foi ela . 2009. quem deu em cima dele” e “que a culpa é da mulher”. Perguntou-se também se as mulheres identificaram alguma mudança de caráter no André no começo da novela para o final, Kamila diz que “no começo ele era bom, né” e Laura afirma que 17-143, jan./fev “Ele se passou de bonzinho para conseguir o que ele queria”, enquanto Maria diz: “Ele passou de bom, pra vilão e agora está voltando a ser bom, a sofrer”. Torna-se aqui claro que o público percebeu a mudança das personagens com o desenvolvimento da

. 36, n. 1/2, p. 1 novela. Apesar disso elas sempre afirmam que não o consideram o vilão pois o vilão dá as ordens, não que executa. Apesar disso, Laura tem consciência que “na vida real as pessoas não mudam

, Goiânia, v assim não”. Ao serem questionadas sobre o personagem Alberto, as opi- niões são concordantes e o julgam “safado”, “sem vergonha” e estudos “cafajeste”. Perguntamos se elas o consideram um vilão, elas oscilaram um pouco e questionaram que o mesmo poderia ser o 133 vilão oculto que dá ordens a André, mas até agora, analisando seu comportamento “Ele não é vilão. Acho que ele é cafajeste mes- mo”. Fizemos um retrospecto das atitudes de Alberto ao longo da novela e mais uma vez a resposta foi favorável a Alberto. Segundo Laura, “Não... a gente não tá acostumado com esse tipo de vilão”. Além de perguntarmos “quem era o personagem” para a pes- soa, perguntamos qual seria a opinião dela caso o personagem existisse realmente e fosse conhecido dela. Em relação a Alberto, Laura se manifestou dizendo que ele é mau, pois “fez muita mal- dade com o Cemil... Pra conseguir o objetivo dele”. Kamila o consideraria uma pessoa “fria”. Aqui fica um paradoxo, já que na novela ele não é identificado como um vilão, mas caso o persona- gem existisse na realidade cotidiana da pessoa, ele poderia ser considerado como mau. No capítulo do dia 16/06, Alberto diz para a amante Rebeca que está com saudades da esposa (Mônica), pois ela faz as refeições, lava, passa, etc. Quando perguntamos para as mulheres com qual das duas Alberto mereceria ficar, a opinião unânime foi de que ele deveria ficar com Mônica, a esposa traída, pois o Cemil (ex-noivo abandonado no altar por Mônica) é muito “chato” e “pamonha”. Já em relação ao André, caso ele existisse realmente, as en- trevistadas mostraram-se incógnitas. Taís disse que “gostaria de conhece-lo”, seguido de gargalhadas das companheiras. Logo depois da descontração Kamila reitera que “o André está sendo . 2009. mau... aparentemente... mas eu acho que ele é vítima também”. Quando a Bia, a família foi um pouco mais cautelosa dizendo que se ela existisse ela seria uma pessoa muito “fria”, apenas isso. Fizemos um retrospecto das atitudes “boas” de Bia (como tentar 17-143, jan./fev evitar o golpe do baú aplicado por André e devolver a presidência da empresa para Júlia) e refizemos a pergunta. O que se ouviu foi “as atitudes dela são muito frias...” e “ela tinha que proteger (Júlia)

de outra forma”, de Laura e que “eu acho que ela (Bia) não quer . 36, n. 1/2, p. 1 o mal da Júlia não... assim como o André. Agora, eu não acredito que ele quer o mal da Júlia não”, de Maria, reiterando a opinião

favorável a André. , Goiânia, v Além de perguntas específicas dos personagens, foram feitas perguntas mais generalistas, focadas na narrativa como um todo.

Quando questionamos se a novela representava bem a vida real, estudos 134 unanimemente a resposta foi não, através de respostas como “No- vela é muito ficção” (Maria), “Fora da nossa realidade, pode até existir...” (Laura), “Eu acho que o autor brinca muito com a cara da gente. Eu acho. Eu não gosto” (Maria), “Eu acho que a novela deveria ser como na vida real” (Laura), “Às vezes acontece algu- ma coisa na novela, a gente fala ‘ vai na polícia’. Se fosse na vida real, a gente iria” (Maria). Essa última pergunta culminou natu- ralmente na constatação que na novela Belíssima quase não exis- tem pobres. Em relação a isso, Maria diz que “A Júlia ficou pobre, mas está em um apartamento...”. Ou seja, o padrão de pobreza exposto na novela difere bastante do da vida real. Ao final de cada entrevista, foi proposto às entrevistadas definir cada um dos personagens analisados em uma palavra. Bia Falcão foi definida unicamente por Kamila, que a considera “Fria”. Quanto ao André, mais uma vez tivemos alguns segundos de si- lêncio, e novamente a primeira a se manifestar foi a Kamila, di- zendo que o mesmo é “Lindo”, seguido por sonoras gargalhadas de todas as mulheres. Em seguida Laura o definiu como “Galã” e Maria, “Vítima”. Em relação a Alberto, a reação foi imediata e inquieta. Laura o disse como “Cafajeste”, e Kamila, “Safado”. Esse quadro de respostas nos fornece um ótimo instrumento para a compreensão de como as espectadoras entrevistadas assi- milam as personagens aqui propostas. As denominações dadas à personagem Bia Falcão, sempre focadas em sua vilania e frieza, . 2009. convergem com a estrutura da trama, onde ela é colocada como uma antagonista. Estrategicamente inserida no folhetim como tia da protagonista, a personagem adquiriu profundidade justamente ao oscilar entre seus laços com Júlia, a protagonista injustiçada e 17-143, jan./fev ressentida e seus atos utilitários, sempre premeditados e egocêntricos, guiados pelas impressões e desejos da personagem, influindo não somente sobre o que ela julga correto para si, mas também para seus afetos. A construção de Bia Falcão é calcada

. 36, n. 1/2, p. 1 sob uma aura de mistério e perversidade, impressa sempre pela expressão sisuda da personagem, seu olhar distante e desconfia- do, gestos firmes e decididos e maneira de projetar-se sobre as

, Goiânia, v outras personagens exalando superioridade. Os closes sempre evidenciam os olhos austeros de Bia Falcão e o fundo musical, sempre pesado, entra em congruência com essa imagem. As entre- estudos vistadas entram nesse jogo, assimilando os índices deixados pela estrutura da trama. Acostumadas com a estrutura da telenovela, 135 sabem muito bem processar esses dados, inserindo-os em suas impressões sobre as personagens. Entretanto, a resposta dada por Laura, ‘’por enquanto ela é vilã’’, demonstra a assimilação da potencialidade de Bia Falcão em deixar de ser vilã, em tornar-se algo que não uma antagonista na estrutura da narrativa de Belíssima. A despeito de todos os índices colocados, Bia ainda pôde ser percebida fora de sua frieza e vilania, embora no campo da potência, do vir-a-ser. Para que compreendamos a fala de Laura, contraditória so- mente em um primeiro momento – como veremos – é necessário reiterar o laço de parentesco entre Júlia e Bia Falcão. Elas são tia e sobrinha. Como já foi dito, Bia Falcão culpava Júlia Assunção pela morte da filha, repreendia a protagonista da novela por isso e sempre a colocou marginalmente como objeto de afeto, papel esse assumido por seu neto Pedro, assassinado. Entretanto, o laço de parentesco ainda prendia as duas personagens, as aproximava, forçava sua convivência seja no âmbito da presidência da empre- sa, seja no campo afetivo. Quando Bia chama a atenção de Júlia sobre as intenções de André Assunção antes do golpe, são esses dois elementos que entram em cena, os dois laços entre as perso- nagens, o afetivo, marcado pela relação entre Júlia e André em choque com a relação entre Júlia e Bia Falcão e o institucional/ empresarial, marcado pelo interesse econômico na empresa, de caráter racional com relação a fins. Posteriormente, quando Bia . 2009. Falcão volta à trama após o desaparecimento, seu empenho em ajudar Júlia a recuperar a empresa não é um novo ato, mas exten- são do anterior – chamar a atenção para as intenções ocultas de André - criando, desse modo, novo vínculo afetivo entre as duas 17-143, jan./fev personagens, sempre levado a cabo pelo interesse racional final primário de Bia Falcão. O que ocorre, portanto, é a criação de um laço afetivo entre

Júlia e Bia Falcão à partir dos interesses racionais e utilitários da . 36, n. 1/2, p. 1 segunda, o que acaba por reiterar os laços de parentesco entre ambas. À partir da mediação familiar, as entrevistadas percebem

a relação entre Júlia e Bia Falcão, criando empatia com Bia Fal- , Goiânia, v cão não diretamente, mas à partir de Júlia Assunção, sua sobrinha. A antagonista só é objeto de empatia e vista potencialmente como

uma não-vilã enquanto relaciona-se com Júlia Assunção, a prota- estudos 136 gonista – relacionamento este restrito ao laço consangüíneo entre ambas. É a ligação familiar, o elo colocado por essa instituição, que torna Bia Falcão objeto de empatia momentânea. Quanto a André, outras mediações são colocadas em prática na percepção de sua dubiedade. As entrevistadas o assimilam de forma ímpar, colocando-o como vítima e injustiçado, mesmo com seus diversos atos condenáveis moralmente. Diferentemente de Bia Falcão, André não foi apresentado desde o início de Belíssima como um antagonista, mas, ao contrário, como um pobre moço proletário que trabalhava em uma empresa de lingeries e se apai- xonou pela dona da empresa ao conhece-la em uma festa na qual entrou clandestinamente, sendo prontamente correspondido. Du- rante seu relacionamento com Júlia Assunção, André Santana sempre foi exposto como um companheiro exemplar, atencioso, compreensivo, trabalhador e esforçado. Essa imagem permanece até a reviravolta, quando toma os bens de sua cônjuge, mantém um relacionamento com a filha de Júlia e telefonemas anônimos por ele recebidos são expostos ao público. À partir desse ponto, toda a caracterização anterior de André cai por terra e uma nova caracterização é edificada, agora buscando identifica-lo com a imagem de vilão, cruel e frio. Sua projeção sobre as demais per- sonagens, sua colocação no esquema da narrativa e os elementos acessórios da história, como a música ambiente, passam a cons- truir uma imagem vilanesca de André. . 2009. Quando confrontadas com a mudança de André Santana ao longo da história, as entrevistadas percebem claramente essa ressemantização da personagem. A resposta de Maria, particular- mente, traz um dado interessante para a compreensão desse ele- 17-143, jan./fev mento. Ao dizer ‘’ele passou de bom a vilão e agora está voltando a ser bom, a sofrer’’, assimila sofrimento com bondade. Quando age para conseguir algo, quando é o elemento de onde emanam as ações decisórias de sua vida, André é colocado como vilão. Quan-

. 36, n. 1/2, p. 1 do passa a sofrer as conseqüências das ações de outrem – ser ví- tima – é novamente visto como bom. A vilania, portanto, é relacionada com ação e a bondade, com passividade. Exemplo claro

, Goiânia, v disso é Júlia, sempre posta à mercê das maquinações e conseqü- ências de atos alheios, colocada como a protagonista central da trama. estudos Embora, André tenha sido reformulado maniqueisticamente na história, isso não ocorreu na percepção das entrevistadas sobre 137 ele. Elas ainda têm gravada na memória a primeira versão de André, sofredor, portanto bom, e esta imagem prevalece sobre a anterior por ser primeiramente exposta e por estar diretamente ligada à imagem de Júlia Assunção através do laço afetivo e, posteriormen- te, familiar, pelo casamento. Kamila, ao dizer que ‘’o André não é mau’’, coloca explicitamente a não assimilação da reviravolta de André, bem como Laura, ao dizer que ‘’ele está sendo vítima’’. Parte dessa imagem de André colocada pelas entrevistadas deve ser creditada ao contexto em que a coleta de dados foi feita. No dia 14 de junho, André foi mostrado ligando para Júlia e sofrendo com sua ausência. Essa imagem remete diretamente à primeira versão de André, sofredor, e traz imediatamente à memória das entrevistadas o bom André. O estopim da separação entre Júlia e André, momento em que sua transformação de caráter estava se processando, foi o flagran- te de Júlia sobre sua filha Érica e André em sua cama. Quando esse dado foi confrontado com as pesquisadas, estas culparam Érica pelo incidente, pois esta havia se insinuado para André e “que a culpa é da mulher”. Logo, o adultério cometido por André pôde ser relevado. Dessa forma, podemos constatar que a memória fa- miliar não credita a André os dois crimes cometidos por ele: o golpe- do-baú e o adultério. Isso porque o primeiro crime é culpa de uma pessoa que a novela mantém oculta (o André é apenas um fanto- che) e o segundo é culpa de Érica (ele apenas sucumbiu aos pra- . 2009. zeres da carne, fato compreensível pelo personagem ser homem, de acordo com nossas entrevistadas). Portanto, essa insistência em acreditar que o personagem André não é vilão se deve ao fato que a família pesquisada não o culpa pelos seus erros. 17-143, jan./fev A passagem de André, sua transformação na estrutura da tra- ma, ocorre justamente em um contexto de desconstrução do nú- cleo familiar, esta ocorrida através da quebra das regras reitoras

da atividade familiar e da hierarquia inerente a essa instituição. . 36, n. 1/2, p. 1 Ao fazer sexo com Érica, cede aos prazeres e às paixões, estas em contradição com a rigidez das normas impostas pela convivência

familiar. O rito de passagem da personagem, por assim dizer, está , Goiânia, v umbilicalmente ligado ao núcleo da família e ao rompimento da harmonia das relações institucionais a ela inerentes. Quando Laura

afirma que a personagem se passou de bonzinho para conseguir o estudos 138 que queria, relembra essa faceta vil e produtora do ocaso familiar de André juntamente com Érica, embora o machismo como medi- ador credite culpa exclusivamente a Érica. Esse machismo também fica evidente na percepção das mu- lheres em relação ao personagem Alberto. Apesar de ter um histó- rico de atitudes questionáveis, elas afirmam que Mônica deve ficar com ele, já que seu rival, Cemil, é um sujeito apático. Alberto é construído como o típico boa-praça, falastrão, mulherengo e ma- landro graças ao texto do autor, que o coloca em situações cômi- cas e a interpretação do ator, exagerada nos gestos e expressões. A música de fundo sempre ressalta esse aspecto da personagem e suas relações se constroem de forma desastrada. No capítulo do dia 16 de junho, ao dizer que estava com sau- dades de Mônica, sua ex-mulher, conquistada após uma maquina- ção para afasta-la de seu noivo Cemil, Alberto ressalta as qualidades da ex-esposa, relacionando-as ao labor típico da vida doméstica, dizendo que ela lava, passa e cozinha. Essa afirmação foi seguida de risadas pelas mulheres que acompanhavam a novela e posteri- ormente perguntamos se Alberto mereceria ficar com Mônica. Elas responderam que sim. Vale ressaltar que, por um lado, Cemil se encaixa perfeitamente como bom na fala de Maria, ao sofrer as conseqüências das ações de Alberto. Por outro lado, Alberto age para conseguir o que quer, no caso, Mônica, tornando-se potenci- almente um vilão, já que suas ações (forjar um caso de Cemil com . 2009. Yvete) prejudicam Cemil diretamente, beneficiando ao próprio Alberto em contrapartida. Outro paralelo válido entre os dois é a situação financeira. Alberto é rico, enquanto Cemil é pobre. Em um de nossos encontros com a família, no dia 17 de ju- 17-143, jan./fev nho, uma das mulheres, Taís, demorou para se juntar ao grupo e acompanhar a novela pois estava fazendo jantar para o marido. Em todos os outros encontros havia uma tábua de passar roupas na sala com roupas por passar. As mulheres da casa, todas donas-

. 36, n. 1/2, p. 1 de-casa, sendo uma delas doméstica, ex-profissão de Mônica, se enxergaram no dilema da personagem, percebendo as vantagens e desvantagens da opção por Cemil, honesto mas pobre ou Alberto,

, Goiânia, v desonesto mas rico, optando pelo segundo. O conforto que Alberto poderia proporcionar a Mônica supera as calhordices do persona- gem. Em contraposição, a honestidade de Cemil era relacionada estudos com as imagens de ‘’pamonha’’ e ‘’chato’’. A estabilidade só é dese- jável financeiramente, e não como sinônimo de rotina e mesmice, 139 relacionadas à figura de Cemil. Esta é uma possibilidade. Entre- tanto, analisemos outra hipótese. Para se aproximar de Mônica, por quem se tornou obsessivo, Alberto usa de seu filho Juninho como meio de chantageá-la, apro- veitando-se do amor verdadeiramente materno da personagem pelo garoto. Juninho chama Mônica de mãe. Entretanto, a relação entre Alberto e Mônica centralizada na figura do menino criou vínculos afetivos de Alberto com Juninho, o que não existia até então, pois ele rejeitava o garoto. Assim, Mônica, Alberto e Juninho tornaram- se uma verdadeira família através da figura da criança. Por um lado, havia a relação afetiva maternal de Mônica sem o laço sanguíneo. Por outro, a relação sanguínea de Alberto com Juninho sem o laço afetivo. É na dinâmica da relação a três que surge a figura de uma família. É pertinente lembrar que todas as mulheres entrevistadas já são mães, com exceção de Kamila, que está grávida. O sentimento que Mônica tem por Juninho é compartilhado pelas entrevistadas, percebendo, através da mediação familiar, a relação entre Mônica e Alberto. A real vantagem que Alberto assume sobre Cemil em sua aceitação pelas pesquisadas em relação a Mônica não é o dinheiro, tampouco a canastrice, mas sim seu filho. Quando Alberto se apro- xima de Juninho, ele também se aproxima de Mônica. Através da análise particularizada de cada uma das três per- sonagens de Belíssima, percebeu-se que Kamila, Laura, Maria e Taís lançaram mão da mediação e da cotidianidade familiar para . 2009. interpretar e significar Bia, André e Alberto. A identificação das entrevistadas com as personagens, de atitudes utilitárias e muitas vezes más, se dá pelo filtro da família, acepção das personagens dentro da instituição familiar e a cotidianidade. A dubiedade das 17-143, jan./fev personagens na percepção das famílias de baixa renda, entretan- to, é questionável. Quando proposta a idéia de qualificar Bia, André e Alberto apenas com um adjetivo, as opiniões foram unânimes,

exceto no caso de André. . 36, n. 1/2, p. 1 Bia é sempre colocada como má e fria, percebendo-se que, mesmo apesar de suas atitudes favoráveis a Júlia, estas principal-

mente levadas a cabo pelo laço de parentesco e afetividade deste , Goiânia, v decorrente, ainda é estereotipada, lançando-se mão do clichê. A maior complexidade das personagens ainda é limitada pelo

maniqueísmo e pela superficialidade inerentes ao melodrama. Em estudos 140 Alberto o fato é igualmente percebido. Ele tem uma função muito clara na narrativa, e que é unanimemente aceita, a de cafajeste, bonachão e safado. A despeito das relações e das histórias parale- las relacionadas a Alberto, ele sempre transita nos limites da canastrice. André, ao contrário dos outros dois personagens, foi definido em função de sua beleza, de seus atributos físicos, e não propriamente de suas atitudes. Fica clara a função estetizante do melodrama e da indústria da telenovela na América Latina, sem- pre em busca de atores e atrizes belos, criando na tela uma repre- sentação deturpada e idealizada da realidade, absorvendo e paralelamente ditando padrões estéticos.

CONCLUSÃO

A cotidianidade familiar, a muito se sabe, é colocada em ação como mediadora da recepção de telenovela. Aqui, propôs-se a percepção desses elementos mediadores especificamente na rea- lidade das famílias de baixa renda de Goiânia, tomando como objeto três personagens da telenovela Belíssima, Bia Falcão, André Santana e Alberto Sabatini. A relação de afetividade criada entre a família pesquisada e as personagens se dá sobretudo à partir da percepção da institui- ção familiar dentro da narrativa, dos atores e das relações ocorri- das endogenamente na história. A hierarquia familiar, as relações . 2009. de gênero, a afetividade com os filhos, a fidelidade, as relações mal resolvidas e os traumas familiares são todos colocados em ação na interpretação da telenovela. A telenovela não é vista pelos es- pectadores como uma cópia fidedigna da realidade, mas como 17-143, jan./fev símbolo, como uma estória que tem seu lugar enquanto ficção muito bem delimitado. Quando confrontadas com a existência hipotéti- ca das personagens na realidade, as mulheres da família pesquisada deixaram bastante claro esse elemento. Entretanto, elas se deixam

. 36, n. 1/2, p. 1 enlevar pelo jogo ficcional, são entorpecidas pela estrutura do folhetim e não negam a ficção como elemento de representação da realidade, mas a reiteram.

, Goiânia, v A dubiedade de caráter das três personagens visadas se cons- trói somente superficialmente, transitando dentro de limites bem definidos, marcados pelo estereótipo tão caro à narrativa melodra- estudos mática e pela necessidade de audiência e diálogo com todos os ní- veis da sociedade. Bia Falcão só se torna dúbia quando colocada 141 dentro de sua relação com Júlia Assunção, sendo esta o elemento canalizador da empatia do público para Bia. Alberto Sabatini, por sua vez, exerce a função clara de alívio cômico na novela, criando empatia imediata com o público através do riso, a despeito de suas ações pragmáticas e egocentricamente visadas. É aí onde repousa sua função. Qualquer ato de Alberto, seja este prejudicial a alguém, seja benéfico, tem como função primária criar elementos e situa- ções de onde se extrai o humor. André Santana, bonito e apaixona- do pela protagonista, cria empatia especialmente com o público feminino. Embora perverso na construção da trama, ele é sempre vítima, colocado à mercê de maquinações ocultas da história. O que essas três personagens têm em comum é a realidade familiar como Porto Seguro, como local onde repousa a salvação, a afetividade e a paz. À partir daí, se constrói a impressão de dubiedade das personagens. Elas se humanizam quando coloca- das em contato com seus laços familiares e as relações afetivas daí decorrentes, entrando em breve contradição com seus interes- ses ególatras, por vezes vilanescos. Esse vínculo é materializado na figura de Júlia Assunção como sobrinha (para Bia Falcão) ou esposa (para André) ou na de Juninho, filho de Alberto, pólo da relação entre este e Mônica, sua ex-esposa. . 2009. Referências

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Abstract: the article deals with the relationship between some characters in the soap opera Beautiful family and collective memory, particularly among low-income families in the city of Goiania. Explained to the public in a dubious way, the characters seem to distance himself from the melodramatic genre as

. 2009. antagonists in the narrative. Understanding the family as a key mediator in the process of receiving the telenovela, the Latin American genre par excellence, we seek to mediate a family relationship between changes in the understanding and acceptance

17-143, jan./fev of the characters and the structural change of the Brazilian reality.

Keywords: beautiful, reception, mediation, family memories . 36, n. 1/2, p. 1

CÉSAR HENRIQUE GUAZZELLI E SOUSA Mestrando em História Pela PUC Goiás. Graduado em História pela PUC Goiás. Graduando em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: , Goiânia, v [email protected].

PAULO HENRIQUE DOS SANTOS estudos Graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. Repórter do Jor- nal do Meio Dia. E-mail: [email protected]. 143