A PERCEPÇÃO DA DUBIEDADE DE CARÁTER DAS PERSONAGENS DE BELÍSSIMA PELAS FAMÍLIAS DE BAIXA RENDA DE GOIÂNIA CÉSAR HENRIQUE GUAZZELLI E SOUSA, PAULO HENRIQUE DOS SANTOS Resumo: o artigo trata da relação entre algumas perso- nagens da telenovela Belíssima e a memória coletiva fami- liar, especificamente entre as famílias de baixa renda do município de Goiânia. Explicitadas ao público de forma dúbia, as personagens parecem se distanciar do gênero melodramático enquanto antagonistas na narrativa. Com- preendendo a família como elemento chave de mediação no processo de recepção da telenovela, gênero latino-america- . 2009. no por excelência, busca-se mediação familiar uma relação entre as mudanças na compreensão e aceitação das perso- nagens e as transformações estruturais da realidade brasi- leira. 17-143, jan./fev Palavras-chave: belíssima, recepção, mediações, memó- ria familiar . 36, n. 1/2, p. 1 presente trabalho parte da proposta de Martín Barbero, estabelecendo a acepção dos processos de , Goiânia, v O comunicação a partir das mediações, situadas na dialogia entre as práticas da comunicação e os movimentos e instituições sociais, produção e consumo, procurando des- estudos locar-se nas balizas da relação entre a recepção da telenovela Belíssima, (escrita por Sílvio de Abreu, Sérgio Marques e 117 Vinícius Vianna, dirigida por Denise Saraceni e exibida pela Rede Globo, no horário das 21 horas de 7 de novembro de 2005 a 8 de julho de 2006) e o papel da família enquanto elemento mediador da relação entre o consumo e a narrativa da telenovela. Especifi- camente, busca-se a compreensão do modo como a família estu- dada percebe a dubiedade de caráter de três personagens da novela em questão, André Santana (Marcelo Antony), Bia Falcão (Fernanda Montenegro) e Alberto Sabatini (Alexandre Borges), que no decorrer da trama sofrem remodelamentos drásticos, ade- quando-se ao teor da novela, ancorada em reviravoltas da trama e ocultação de informações ao espectador, criando suspense e, con- seqüentemente, audiência, produto vendido pelas emissoras. Para que essa abstração seja possível, é necessário criar mecanismos que possibilitem o estabelecimento das relações entre o cotidiano e a forma como a telenovela é assimilada e reeditada na memória coletiva familiar. Assim, propõe-se aqui a análise de recepção da telenovela Belíssima por mediação familiar com foco em personagens que se colocam como antagonistas na trama, e que, entretanto, transitam entre maneiras de agir que se desvirtuam do maniqueísmo comum à telenovela latino-americana. O eixo epistemológico central do presente trabalho é formado, por um lado, pela compreensão ob- jetiva do cotidiano e da memória familiar como elementos radiciais no modo como a telenovela é consumida. Por outro, pela percep- . 2009. ção estrutural da telenovela a partir do gênero melodramático la- tino-americano e seus mecanismos enquanto gerador de empatia com o espectador e de diálogo com a matriz cultural em que a família estudada está imersa, ou seja, a estrutura narrativa 17-143, jan./fev internalizada e remodelada pela recepção. RECEPÇÃO E MEDIAÇÃO . 36, n. 1/2, p. 1 Nos estudos de recepção, deve-se lembrar que esta é um pro- cesso complexo que tem seu sentido moldado a partir da relação entre produtos midiáticos e receptores situados sócio-historicamente. , Goiânia, v No processo de recepção, em que elementos simbólicos são trans- feridos, assimilados e ressignificados, operam mediações, conceito complexo e heterogêneo, que aqui será instrumentalizado em três estudos 118 acepções distintas, mas não excludentes. Primeiramente, como ins- tituição ou local geográfico, em que a prática relaciona sentidos. Nessa acepção, as mediações, enquanto lugar de vivência de senti- dos ambíguos ou sintetizadores, também podem ser observadas como locais de onde advém mecanismos delimitadores da materialidade social e expressividade cultural da TV. Em outra perspectiva, me- diações são percebidas como estruturas, formas e práticas vinculadoras de diferentes racionalidades, ou que sustentam dife- rentes lógicas e temporalidades num mesmo processo. Aqui, as práticas econômicas – de produção, circulação e consumo – possi- bilitam a concordância entre sentidos antinômicos, resultando em um formato discursivo específico, no caso, a telenovela moderna brasileira. Aqui, a mediação se torna um entroncamento, uma prá- tica cultural assimiladora de diferentes discursividades. Em tercei- ro lugar, pode-se perceber a mediação como dispositivo de legitimação da hegemonia ou resolução imaginária da luta de clas- ses no âmbito da cultura. Por essa perspectiva, a cultura esconde diferenças e reconcilia gostos, ocultando a contradição de classes através da produção de uma resolução no imaginário que assegura o consentimento dos dominados, transmutando a cultura popular em cultura de massa. (SIGNATES, 1998). A FAMÍLIA COMO MEDIADORA . 2009. A partir da acepção da família como elemento chave para a percepção de como se opera a construção das personagens na memória coletiva, é válido ressaltar a importância da citada insti- tuição social como elemento atrelado à cotidianidade, esta mode- 17-143, jan./fev lada nas relações estabelecidas no espaço doméstico (casa) e extra-doméstico (rua) (DA MATTA, 1998). Se o espaço da rua constrói-se sobre uma multiplicidade inumerável de relações e instituições, tornando impossível sua assimilação a determinada . 36, n. 1/2, p. 1 instituição social, o espaço doméstico edifica-se sobre a institui- ção da família, tornando-se esta o local chave para a compreensão e captura da lógica de recepção televisiva aqui proposta. Dentro , Goiânia, v do campo da comunicação, a proposição da cultura como lugar de articulação dos conflitos, bem como de construção de hegemonia, das práticas subjetivas como espaços de operação de apropriações, estudos e não apenas de reprodução social, resgatam o cotidiano como espaço de reflexão. 119 Assim, a assimilação das personagens recortadas da trama da telenovela Belíssima será colocada à partir do cotidiano atre- lado à perspectiva da família, unidade básica de consumo da TV. Tomando a família como um fato social, é válido lembrar que é necessário abandonar a perspectiva de que esta forma-se pela soma da análise unitarista de seus membros, uma vez que a ins- tituição familiar transcende as qualidades dos indivíduos que a compõem, gerando coercitividade social (imposição de modos de ser e agir), e sendo possuidora de objetividade. Entretanto, a família não é uma organização fechada e estática, mas um siste- ma aberto, em contínuo processo de mudança. Inserida num contexto maior, possibilitador de sua lógica existencial, a famí- lia recebe influências exógenas que configuram mudança, esta dada nos limites das possibilidades materiais e simbólicas do núcleo familiar em questão (GUADAMARRA, 1998). Desse modo, a recepção de telenovela não deve ser pensada unilateral- mente, observando somente a influência da cotidianidade fami- liar na maneira como os indivíduos percebem as personagens, mas, também, à partir da influência exercida pelos modos de ser e agir das personagens sobre a cotidianidade familiar. Como um recorte da sociedade estruturado, a família pos- sui uma hierarquia com distintos níveis de autoridade, bem como regras reitoras das relações interindividuais que se ope- ram dentro de seus limites, sua organização e funcionamento. 2009. Se, nas relações familiares, os indivíduos se comportam e interagem conforme modelos pré-determinados, a estrutura organizativa familiar torna-se um ponto importante para que se possa compreender sua relação de consumo com a TV e, 17-143, jan./fev conseqüentemente, com a telenovela. As regras familiares são colocadas em funcionamento durante as práticas de recepção (LOPES, 2002). As famílias também organizam rotinas, que dão forma à . 36, n. 1/2, p. 1 vida cotidiana. Dentro desse ordenamento de rotinas familia- res, conforma-se o consumo da telenovela. Os membros de uma família compartilham dos mesmos mecanismos simbólicos de , Goiânia, v compreensão do mundo, embora possa haver conflito entre eles. São eles detentores de uma matriz de identidade e reconheci- mento, construindo-se na dialética da relação de grupo – a fa- estudos 120 mília – e suas distensões no contexto macro-social. Muitas das rotinas cotidianas dos membros da família desen- volvem-se fora do ambiente familiar. Aqui, percebe-se os limites familiares, que, por sua vez, se estendem além da casa e do grupo. As trocas e práticas realizadas exogenamente encontram reverbe- rações no cotidiano familiar, o que se difunde para as práticas de recepção ocorridas dentro desse contexto espacial e institucional. Outro dado é que as relações extrafamiliares também são alvo da recepção, influindo diretamente na percepção que o indivíduo faz das relações ficcionais a ele expostas na trama. TELENOVELA, CAPITALISMO E CONSTRUÇÃO DE HEGEMONIA. O ambiente da produção de telenovela na América Latina põe- se em congruência com os grandes fluxos do capital, se manten- do, por isso mesmo, nas mãos das grandes elites econômicas nacionais. Isso equivale a dizer que as classes hegemônicas são detentoras de um poderoso meio de produção simbólica e discur- so sobre si mesmas e sobre o outro. O casamento entre represen- tação e acumulação – produção simultânea de hegemonia e de capital – demonstra o enorme poderio da narrativa teledramaturgica latino-americana. Esse poderoso aparato audiovisual, de enorme reverberação . 2009. no cotidiano dos indivíduos a ele atrelados pelo consumo de tele- novela,
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