Artigo recebido em 20/03/2014 Um acontecimento em Aprovado em 11/04/2014 disputa: sentidos da TEREZINHA SILVA Universidade Federal de Minas Gerais 1 [email protected] exumação de Jango Professora colaboradora do Departamento de Comunicação Social Terezinha Silva e Paula Guimarães Simões da UFMG. Doutora em Comunicação (UFMG/U- Resumo Paris Nanterre). Jornalista e Mestre em Educação (UFSC). O objetivo deste texto é analisar a exumação dos restos mortais do ex-presidente Pesquisadora do GRIS (Grupo João Goulart, ocorrida em 2013, a partir da discussão teórico-metodológica sobre de Pesquisa em Imagem e Sociabilidade). acontecimento. Tomando como objeto de análise textos jornalísticos publicados no

PAULA GUIMARÃES jornal Zero Hora, buscamos identifi car como se realiza a descrição, a narração e a SIMÕES recepção pública dessa “segunda morte” de Jango. A análise revela que disputas de Universidade Federal de Minas Gerais sentido foram instauradas em torno desse acontecimento, visto tanto como uma paulaguimaraessimoes@yahoo. com.br possibilidade de retratação histórica quanto como um gasto público despropositado. Professora do Programa de Pós-Graduação em Essas disputas simbólicas expressam o modo como o acontecimento afeta de Comunicação Social da diferentes maneiras os públicos que convoca (e constitui) e apontam possibilidades UFMG. Doutora, Mestre e Graduada em Comunicação de ressignifi cação da narrativa acerca do golpe de 1964. pela mesma instituição. Pesquisadora do GRIS (Grupo de Pesquisa em Imagem e Palavras-chave Sociabilidade). Acontecimento, exumação de João Goulart, golpe de 1964.

Abstract Th is article aims at analyzing the exhumation of the remains of former President Joao Goulart, which happened in 2013, through the lenses of the notion event. Investigating newspaper stories published by Zero Hora, we sought to identify how Jango’s “second death” was described and narrated by the media, as well as the public reception of it. Th e analysis reveals that symbolic battles emerged around this event, which was seen as a historical redress and as an unreasonable public expenditure. Th ese symbolic battles express the way the event aff ects the publics in diff erent ways and point out to possibilities of re-signifying the 1964 coup d’état.

Key-words Event; João Goulart’s exhumation, 1964 coup d’état. Estudos em Jornalismo e Mídia Vol. 11 Nº 1 1-Agradecemos o apoio do CNPq, da FAPEMIG e da PRPq/UFMG ao desenvolvimento desta pesquisa. Janeiro a Junho de 2014 ISSNe 1984-6924

34 DOI: http://dx.doi.org/10.5007/1984-6924.2014v11n1p34 exumação dos restos na abordagem teórico-metodológica mortais do ex-presidente proposta pelo sociólogo francês Louis da República João Quéré (1997; 2005). Dela, retiramos Goulart, uma das figuras a grade a partir da qual analisamos a públicas brasileiras mais exumação como um acontecimento e seus diretamente afetadas pelo golpe civil- desdobramentos, focando na forma como Amilitar de 1964, é um acontecimento que se dá a descrição, a narração e a recepção marca o contexto dos 50 anos do golpe no pública dessa ocorrência. Na segunda Brasil. A exumação é uma das principais parte, apresentamos a análise dessas três ações determinadas pela Comissão dimensões do acontecimento, feita a partir Nacional da Verdade, instituída em 2012 de um corpus composto por material com o objetivo de investigar violações aos empírico retirado do jornal Zero Hora, direitos humanos ocorridas no Brasil, entre do Rio Grande do Sul, terra natal do ex- 18 de setembro de 1946 e cinco de outubro presidente João Goulart. de 1988 – período que compreende, portanto, a ditadura instituída no país Acontecimento e (re) entre 1964 e 1985. organização da experiência Deposto e levado ao exílio pelo golpe de O acontecimento tem ocupado, há muito 1964, João Goulart morreu na tempo, a atenção de pesquisadores das em dezembro de 1976 e foi enterrado Ciências Sociais, especialmente nos estudos em São Borja (Rio Grande do Sul), sua da Comunicação e do Jornalismo (VERÓN, cidade natal. As dúvidas, especialmente 1981; TUCHMAN, 1983; CHAMPAGNE, de familiares e aliados políticos, sobre 1991, 2000; MOUILLAUD, 2002; KATZ, as causas e circunstâncias de sua morte, 1999; MOLOTCH E LESTER, 1999; motivaram a família a pedir a exumação entre outros). Diferentes perspectivas são do corpo. Ocorrida às vésperas do golpe avançadas para a análise da constituição completar 50 anos, a exumação suscita do acontecimento, mas pode-se dizer uma série de posicionamentos e memórias que predomina uma abordagem na qual em torno daquele acontecimento histórico o acontecimento é tratado, em maior ou e da figura de João Goulart. Mostra, menor gradação, como uma “construção” assim, como aquele acontecimento ainda das mídias ou do Jornalismo. Em que pese reverbera na vida política do país. Como a contribuição de muitos desses trabalhos, a exumação do corpo do ex-presidente no sentido de iluminar diferentes aspectos morto no contexto da ditadura foi recebido da problemática da constituição de um publicamente quase 50 anos após o golpe? acontecimento, nós o entendemos a partir Que sentidos são atribuídos à exumação de outra concepção, proposta por Louis como acontecimento? Como o golpe e o Quéré (1997; 2005). Acreditamos que tal ex-presidente são lembrados? abordagem permite ver, na constituição São estas as questões que inspiraram o social e simbólica dos acontecimentos, presente artigo. O texto está dividido em um pouco além do trabalho discursivo das três partes. Na primeira, apresentamos mídias, sem, contudo, negligenciá-lo. a concepção de acontecimento que Quéré (1997, 2005) inscreve o fundamenta nossa análise e que se inspira acontecimento na organização da 35 experiência, portanto na recepção pública novas possibilidades de futuro (SILVA, e na ação, destacando duas dimensões de 2011). sua operatividade. A primeira é cognitiva, O acontecimento não tem uma na medida em que o acontecimento individualidade intrínseca, mas se constitui permite uma compreensão do mundo através do que Quéré (2000, p. 11) chama e de suas mudanças, lança novas luzes de processo de individualização. Trata-se sobre o passado, o presente e o futuro. A da maneira pela qual um acontecimento segunda é prática, visto que a publicização adquire sentido e identidade enquanto do acontecimento – ou seja, a encenação acontecimento único, singular. A (mise en scène), a atribuição de sentido individualização é um processo e, como (mise en sens) e a formatação (mise en tal, pode ser decomposta em etapas, forme) – possibilita organizar a ação, estreitamente ligadas umas às outras: a especialmente a ação coletiva, a partir de descrição (nomeação, enquadramento); situações, problemas e possibilidades que a narração (as temporalidades e ações ele revela ou modifica (QUÉRÉ, 1997, p. que constroem a intriga); a recepção 429-430). pública (a constituição de públicos cujas práticas e discursos contribuem para Interessa-nos constituir e nomear o acontecimento); a dimensão pragmática (ações e reações destacar a descrição, próprias daquele tipo de acontecimento); a narração e a a configuração de problemas públicos (potencial de certos acontecimentos para recepção pública do criar, revelar ou modificar problemas coletivos); e a normalização (a redução acontecimento da indeterminação do acontecimento, o tratamento da ruptura provocada, Central para Quéré é o poder a recomposição do fluxo normal da hermenêutico do acontecimento, ou seja, experiência). seu caráter explicativo e revelador, pois Para os objetivos do presente artigo, 2- Além dos textos de mostra o cenário que o torna possível e interessa-nos destacar e analisar, no caso Quéré (1997, 2000, o novo que ele pode iluminar (FRANÇA, da exumação do corpo do ex-presidente 2005) aqui citados, a sistematização dessas 2009), altera as possibilidades de leitura João Goulart, apenas três dessas etapas do processo de e compreensão do passado (daquilo que dimensões, que serão nossas categorias individualização de um acontecimento o causou) e do futuro (novos possíveis de análise: a descrição, a narração e a baseia-se em que ele pode inaugurar) (MENDONÇA, recepção pública do acontecimento2. É trabalhos realizados por Barthélémy 2007). Nesta concepção, portanto, o através delas que poderemos identificar o (1992), Babo- acontecimento é algo que provoca uma enquadramento mobilizado para explicar Lança (2008), França (2009), ruptura na experiência de indivíduos o acontecimento; passados e futuros que Silva (2011), Simões ou coletividades; que interpela os atores ele convoca; públicos que se configuram a (2011, 2012), que operacionalizaram a agir para recompor o fluxo normal partir do acontecimento e que sobre ele se o conceito de da experiência; que revela situações manifestam. Explicamos. acontecimento conforme a problemáticas da vida coletiva; que tem A descrição de um acontecimento, abordagem aqui potencial para esclarecer o passado e abrir como dito antes, refere-se à forma como delineada. 36 ele é nomeado, categorizado, identificado. outras possibilidades de futuro àqueles que A descrição é orientada por “quadros da são por ele afetados e aos problemas que experiência” (GOFFMAN, 1991, p.19): ele revela. São as possíveis consequências. “princípios de organização ou elementos Das experiências passadas que a exumação de base que estruturam os acontecimentos, dos restos mortais traz à tona, interessa- ao menos os sociais, e que servem para nos, sobretudo, verificar como é feito o definir a situação e a nossa implicação trabalho de reconstrução da memória do neles”. Enquadrar um acontecimento é golpe de 1964 e da própria biografia de acionar esses quadros de sentido, essas João Goulart. Que elementos se destacam matrizes interpretativas que permitem aos nessa trajetória – pública e privada – e de atores definir o que está acontecendo e se que maneira ela se relaciona com a própria posicionar naquela situação. Através do história do país? Além disso, interessa-nos conceito de quadros ou enquadramentos identificar possíveis futuros abertos pela podemos identificar, então, como uma emergência desse acontecimento. Para determinada situação ou acontecimento onde eles apontam? é definida pelos diferentes atores e que Por fim, a recepção pública consiste no disputas simbólicas são travadas no seu processo pelo qual um acontecimento transcurso. Interessa-nos, pois, verificar constitui públicos cujas práticas e discursos como é enquadrada e identificada a contribuem para conformar e nomear a exumação dos restos mortais do ex- ocorrência. São públicos afetados e/ou presidente João Goulart. interessados pelo acontecimento ou pelas A narração, por sua vez, diz respeito à situações e problemas por ele revelados, configuração dos tempos do acontecimento, o que inclui diversos atores, individuais e ao modo como este convoca e instaura um coletivos, entre os quais as próprias mídias. passado para si e, ao mesmo tempo, abre A recepção pública do que aconteceu passa um novo campo de possíveis (ARENDT, pelo processo de investigação ou enquête 1993). A estruturação da temporalidade (inquiry), no sentido proposto por Dewey do acontecimento normalmente é feita em (1980): a identificação e exploração de função de seu final, quando já se tem um problemas revelados pelo acontecimento término, mesmo que provisório. Trata- e de ações consideradas apropriadas para se, portanto, de identificar a constituição resolvê-los. de um passado, que remete ao “campo A recepção pública é, portanto, da experiência”, e de um futuro para o um componente intrínseco da acontecimento, o que remete ao “horizonte individualização de um acontecimento, de expectativas” (KOSELLECK, 2006) ou uma extensão de seu contexto de sentido de possibilidades por ele abertas. realizada por aqueles que recebem, se Um acontecimento, conforme a apropriam e respondem ao acontecimento. abordagem adotada aqui, faz revelar Tais públicos podem ser identificados por experiências passadas, sobre as quais os análises empíricas destinadas a apreender atores se apoiam para buscar as causas das a fala de leitores de produtos midiáticos e, ocorrências presentes ou para compreender, assim, a verificar como eles se posicionam interpretar, comparar e atuar na situação em relação ao acontecimento. Mas eles presente. O acontecimento também abre podem ser identificados também por suas 37 manifestações inseridas nos discursos A exumação de João das mídias (SIMÕES, 2011) – e é o que Goulart: enquadramentos, procuraremos identificar aqui. Como se posicionam em relação à exumação? temporalidades e Acreditamos que essas categorias de posicionamentos análise do acontecimento permitem A exumação dos restos mortais do ex- apreender o processo de individualização presidente João Goulart aconteceu no dia da exumação dos restos mortais de Jango. 13 de novembro de 2013, cinco meses antes Esta pode ser pensada como uma “segunda de completar 50 anos o golpe militar de morte”, que, na medida em que retoma o 1964 que o depôs do cargo de presidente encerramento de uma trajetória de vida, da República (31/03/1964). É constituído impulsionou discursos que reconstroem a por outros “micro-acontecimentos”, isto trajetória dessa figura pública bem como é, outras ocorrências importantes a ele sua inserção na história do Brasil. interligadas e que analisamos aqui como Se “a morte realiza uma montagem desdobramentos daquele acontecimento. fulminante da nossa vida”, como sugere Assim, o acontecimento a ser analisado Pasolini, a exumação de Jango é ocasião é a operação de exumação propriamente para realizar essa montagem de sua dita, realizada no cemitério Jardim da história, elegendo os seus “momentos Paz, em São Borja, no Rio Grande do Sul, verdadeiramente significativos” (1967,sua terra natal, onde peritos nacionais e p. 196, grifos do autor). Além disso, internacionais recolherem os restos mortais podemos afirmar que uma montagem já na madrugada de 14/11/13. Ligados a da própria história recente do país é esse acontecimento inicial, destacamos os conduzida pelos discursos que tematizam seguintes desdobramentos: a) o transporte esse acontecimento. dos restos mortais para o Distrito Federal Ao recuperar esses momentos, os no mesmo dia (14/11/2013), onde foi discursos midiáticos constroem um puzzle recebido com honras de Chefe de Estado biodiagramático (PIGNATARI, 1996), pela presidenta da República, Dilma composto por elementos que constituem Rousseff, ex-presidentes (Lula, Fernando 3 o percurso de vida de João Goulart, Collor, José Sarney) , outras autoridades contribuindo, assim, para edificar a sua e familiares; b) a sessão do Congresso biografia. Esta não é entendida como Nacional, em 20/11/2013, que anulou uma narrativa que se escreve de maneira ata de sessão de 1964 que declarara vago definitiva, mas é constituída como um o cargo de presidente da República; e, diagrama, a partir de fragmentos de finalmente, c) o retorno dos restos mortais discursos instaurados por diferentes para o segundo funeral do ex-presidente dispositivos. em São Borja, em 06/12/2013 – também com honras de Chefe de Estado. Dessa maneira, a biografia de Jango é 3- O ex-presidente retomada e atualizada a partir da exumação O acontecimento, que teve relativa Fernando Henrique repercussão público-midiática4, é Cardoso não teria de seus restos mortais – e traços agregados comparecido à à sua imagem são ressignificados à luz analisado aqui à luz da grade analítica cerimônia, conforme antes exposta, buscando identificar noticiado pela desse acontecimento, que será analisado a imprensa, por seguir. como ele foi descrito, narrado e recebido problemas de saúde. 38 publicamente. Nos limites deste artigo, nos indica o que está acontecendo ali: a optamos por trabalhar com o material exumação ou desenterro de um corpo, com veiculado pelo jornal Zero Hora5, por ser os vários atores implicados (familiares, o maior jornal, em termos de circulação, peritos, autoridades, observadores). do Estado de nascimento de Jango (Rio Mas o que ganha destaque no relato Grande do Sul) e que dedicou extensa é, certamente, as características que cobertura ao acontecimento aqui em singularizam este acontecimento em análise. A coleta de dados foi realizada no site6 do ZH, construindo um corpus A descrição da composto de 25 textos (incluindo um exumação do Especial e dois pequenos vídeos sobre o assunto) publicados nos dias 13, 14, 21 presidente em de novembro de 2013 (sobre a exumação e a sessão no Congresso Nacional); 27 e ZH destaca tanto 29 de novembro, além de cinco e seis de aspectos típicos, dezembro de 2013 (referentes ao segundo enterro). Além disso, o corpus também é quanto singulares formado por 19 comentários postados por leitores no site do jornal – todos relativos a relação a outras exumações. Trata-se do

4- Uma crítica ao matérias sobre o novo funeral. desenterro do corpo de um ex-presidente silêncio da chamada da República do Brasil, morto em seis de “grande imprensa” O enquadramento em em relação à Zero Hora: “a História em dezembro de 1976, na Argentina, onde exumação do corpo vivia exilado após ser deposto pelo golpe de João Goulart, revisão” particularmente nas militar (1964-1985) e sobre cuja morte A descrição do processo de exumação edições impressas pairam suspeitas de assassinato. Busca-se, dos diários Folha de do corpo de João Goulart feita por Zero S. Paulo e O Globo, então, conforme os relatos jornalísticos e Hora destaca tanto suas características pode ser vista em de seus entrevistados, esclarecer as causas PIGNOTTI, (2013). de acontecimento típico (a exumação de 5- Com uma de sua morte e, assim, elucidar também um corpo) quanto de um acontecimento circulação média aspectos da história política do próprio diária de 184.674 singular (a exumação do corpo de um ex- mil exemplares em país: se morte natural em função de um presidente da República). Essa exumação, 2012, Zero Hora infarto, conforme a versão oficial, ou figura também como outras, teve ações que lhes são como o 6º jornal em envenenamento causado por agentes das próprias: solicitação da exumação e sua circulação nacional, ditaduras militares dos países do Cone Sul, conforme dados do determinação judicial, contratação e Instituto Verificador conforme suspeita de alguns familiares, deslocamento de peritos para realizar a de Circulação (IVC) pessoas próximas ou aliados políticos. relativos a 2012. operação, abertura de jazigo e recolhimento Fonte: Associação A exumação é, pois, definida no relato dos restos mortais, encaminhamento Nacional dos Jornais como “Uma operação para iluminar a (ANJ), disponível a instituições especializadas nesse tipo em: http://www.anj. História”, conforme o título do Especial de exames periciais e segundo enterr. O org.br/a-industria- veiculado por Zero Hora. O jornal trata de jornalistica/jornais- relato jornalístico aponta estes aspectos, no-brasil/maiores- destacar, então, “a movimentação em São inscrevendo o acontecimento em um jornais-do-brasil . Borja no dia histórico”; “a alta organização Acesso: 08/03/2014. “quadro da experiência” (GOFFMAN, 6- http://zerohora. e segurança do procedimento”; o trabalho 1991) que é partilhado por nós e que clicrbs.com.br/rs. de peritos nacionais e internacionais e a 39 “quebra de protocolo” por parte deles já dia em que completou 37 anos de sua que “posam para foto antes da exumação” morte. (ZERO HORA, 2013a , s/n); a presença de Outro aspecto destacável na descrição ministros de Estado, de “jornalistas, que do acontecimento é a chegada dos restos puderam entrar e registrar imagens do mortais a Brasília. Em uma matéria cuja momento histórico”, e de “manifestantes”, “cartola” denomina-se “De volta ao DF”, que “posicionam cartazes em frente ao o jornal destaca esse retorno simbólico cemitério” com os dizeres “ditadura nunca do ex-presidente ao Distrito Federal, para mais”, “ditadores não passarão”, “Levante onde nunca mais tinha voltado desde que pela Verdade” e “Pelo fim da impunidade” foi deposto pelo golpe de 1964: (ZERO HORA, 2013b, s/n). Destaca ainda a “tensão em São Borja” porque a exumação A urna com os restos mortais do ex-presidente João Goulart, o Jango, demorou quase 19 horas (11 a mais do que chegou à base aérea de Brasília por o previsto) em função da dificuldade de volta das 11h48min desta quinta- localizar o caixão de Jango no mausoléu feira [14/11/2013]. Com honras de chefe de Estado, o esquife de Jango da família Goulart; e a presença também foi recepcionado pela presidente do “público que se encontrava do lado Dilma Rousseff. A viúva Maria Thereza Goulart, os ex-presidentes de fora do cemitério” e “também ouviu Lula, José Sarney e Fernando barulho de equipamentos durante a noite” Collor, o presidente do Senado (ROLLSING, 2013a, s/n). Renan Calheiros, ministros de Estado, outras lideranças políticas e Operação com aparato de comandantes das Forças Armadas segurança, avião presidencial, também participaram da recepção peritos de quatro países e ao corpo de Jango. A cerimônia, laboratórios estrangeiros, a maior curta, teve marcha fúnebre, execução exumação realizada pelo Estado do Hino Nacional, hasteamento brasileiro pode terminar sem da bandeira e salvas de 21 tiros de conclusões. Mais do que esclarecer canhão (MAZUI, 2013b). se João Goulart foi vítima de ataque cardíaco ou envenenado por agentes da repressão, em dezembro de Em seu relato sobre a chegada do corpo 1976, está em curso uma tentativa em Brasília, ZH incorpora a manifestação de reescrever a história do Brasil (MAZUI, 2013a, s/n – grifo nosso). feita pela presidenta Dilma Rousseff em sua conta no Twitter, após a recepção aos É o que esse acontecimento pode restos mortais de João Goulart, em que representar em termos de esclarecimento, aparece também esse enquadramento do iluminação e modificação da História potencial esclarecedor do acontecimento a oficial do país que é enfatizado na descrição respeito da história do país. A presidenta feita por ZH. A exumação e ocorrências lembra que ele foi o único presidente a ela relacionadas são inseridas em um brasileiro a morrer no exílio, “em quadro de “História em revisão”, conforme circunstâncias ainda a serem esclarecidas as “cartolas” que o jornal utiliza tanto por exames periciais”. Dilma define a em seu relato do desenterro do corpo situação (cerimônia em memória a ele) (ROLLSING, 2013a, s/n), quanto dos como sendo “um encontro do Brasil com preparativos para o segundo sepultamento sua história” e “uma afirmação da nossa (ROLLSING, 2013b), em seis de dezembro, democracia’” (ZERO HORA, 2013c, s/n).

40 A tônica da modificação na história indicando que, com a exumação e seus do país representada pelo acontecimento desdobramentos, “estamos, como nunca se aparece também no relato de ZH sobre fez, reescrevendo uma parte da história do a aprovação, no Congresso Nacional, do país que estava mal contada” (ROLLSING, projeto que anulou a sessão legitimadora 2013c, s/n). Ou, ainda, que o acontecimento do golpe, em dois de abril de 1964, quando atual é um necessário trabalho de resgate foi declarada a vacância do cargo de da memória e da história, além de uma Presidente da República – embora João forma de corrigir injustiças com a imagem Goulart continuasse no país “e ainda do ex-presidente (ROLLSING, 2103c, estudava como resistir à deposição” (ZERO 2013e; MAZUI, 2013a). HORA, 2013d, s/n). Sob uma “cartola” Esse enquadramento e os sentidos da denominada Mudança na história, o jornal exumação, porém, não são consensuais ou destaca ainda que o projeto foi votado em aceitos unanimemente. Os discursos de meio a discursos relembrando os “fatos Zero Hora, ou daqueles que se manifestam dramáticos relacionados à queda de Jango”; através deles, explicitam tais discordâncias que “vários parlamentares discursaram e resistências. Elas aparecem, por exemplo, para apoiar a matéria”; e que “somente Jair via posição do comandante do Regimento Bolsonaro (PP-RJ) se manifestou contra a Sul do Exército (região de São Borja/RS) – restituição da verdade histórica relacionada responsável por recepcionar o retorno dos à queda de Jango” (ZERO HORA, 2013d, restos do ex-presidente à sua cidade natal s/n – grifo nosso). e por oferecer as honras devidas. Da mesma forma, o novo funeral de Para o general-comandante, o novo João Goulart é inserido em um quadro funeral não é uma “retratação histórica” de sentido da “História em revisão” (ROLLSING, 2013f, s/n). As discordâncias (ROLLSING, 2013b, s/n). O “Enterro aparecem ainda em posicionamentos de para a História”, como é definido por ZH, leitores do jornal, que se expressam via ganha o sentido de reparação e reescrita comentários às matérias publicadas no do que aconteceu no passado, pois, após site, como veremos na análise da recepção a exumação, o ex-presidente tem um pública do acontecimento. sepultamento com “as honras e solenidades que não foram permitidas no passado” Revendo a morte e a figura pelo regime militar (ROLLSING, 2013c, de Jango: uma narração s/n). A recepção dos restos mortais por parte do Regimento do Exército baseado A narração da exumação dos restos em São Borja é, assim, identificada como mortais do ex-presidente deve ser pensada uma “Reconciliação com a história” a partir de dois eixos: 1) o passado que é (ROLLSING, 2013d, s/n). convocado e (re)construído a partir desse É importante perceber que o acontecimento (tanto no que diz respeito enquadramento do acontecimento como à biografia do próprio João Goulart como uma “revisão” ou “tentativa de reescrita em relação à história do país e da ditatura da história” aparece em outros discursos militar aqui instaurada); 2) o futuro aberto acionados pela narrativa de ZH. Eles pela exumação (os campos de possíveis endossam o mesmo quadro interpretativo, inaugurados por esse acontecimento). 41 Ao construir o passado da exumação, a renúncia de Jânio, em 1961, “ministros os discursos de Zero Hora lembram as militares impediram a posse de Goulart circunstâncias da morte dessa figura por suas relações com a esquerda”. Mas pública: ele assume, “em clima tumultuado” e após a “resistência vitoriosa” do “movimento Deposto e exilado pelo golpe de 1964, Jango morreu na Argentina, da Legalidade”, que defendia sua posse em dezembro de 1976. A versão e era liderado pelo “ícone do PDT”, seu oficial indica que ele foi fulminado cunhado e então governador do Rio por um ataque cardíaco, porém, existe a suspeita de que o gaúcho Grande do Sul, . Em 1º de tenha sido envenenado por agentes abril de 1964, Brizola “tentou convencer ligados à Operação Condor, esquema Jango a resistir ao golpe militar” que o de cooperação entre as ditaduras do Cone Sul (MAZUI, 2013b, s/n). destituiu do poder. “O presidente, porém, temendo uma guerra civil não atendeu aos É a dúvida em relação às causas da apelos do cunhado, deixando o país rumo morte de Jango que impulsiona o pedido ao Uruguai”, onde exilou-se, com a família, de exumação do ex-presidente, feita seguindo depois para a Argentina, onde pela família em 2007 e determinada faleceu em 1976 (MAZUI, 2013a, s/n). pela Comissão Nacional da Verdade em Nessa trajetória pública de Jango, 2013. A exumação pode ser pensada destacam-se as Reformas de Base que como uma “segunda morte” e, tal como o seu governo planejava instaurar, entre as encerramento dessa trajetória de vida no quais a reforma agrária e temas bancários, dia seis dezembro de 1976, impulsionou fiscais, eleitorais, universitários, com o o resgate do puzzle biodiagramático objetivo de diminuir as desigualdades no (PIGNATARI, 1996) que constrói a país. Em um comício realizado na Central história de João Goulart – narrada nas do Brasil, em 13 de março de 1964, Jango matérias do Zero Hora. “anunciou a desapropriação de terras e a João Belchior Marques Goulart (1919- encampação de refinarias”, acirrando as 1964) nasceu em São Borja (Rio Grande disputas entre os grupos políticos do país do Sul), tendo ingressado na vida política e impulsionando o descontentamento dos nos anos 1940, filiado ao PTB (Partido setores conservadores, materializados em Trabalhista Brasileiro), de Getúlio Vargas. movimentos como a “Marcha da Família Formado em Direito, foi eleito vice- com Deus” (MAZUI, 2013a, s/n). – o que presidente de , em culminará com o golpe de Estado no dia 31 1955. Também foi “dirigente partidário, daquele mesmo mês. É interessante notar deputado estadual, deputado federal e como os textos de Zero Hora apontam para ministro do Trabalho do governo Vargas, uma transformação na imagem pública entre 1953 e 1954”, além de “herdeiro do presidente deposto, seja via voz de político” de Getúlio “após o suicídio do líder historiadores entrevistados ou da própria 7- Naquele momento, o gaúcho” (MAZUI, 2013a, s/n). Em 1960, reportagem: eleitor votava foi eleito vice-presidente da República separadamente para presidente e vice- Desde o golpe, adjetivos como pelo PTB, compondo o governo ao lado presidente e não em “fraco” e “comunista” e uma suposta do presidente eleito Jânio Quadros, do uma chapa única vontade de instaurar uma ditadura para os dois cargos, PDC (Partido Democrata Cristão)7. Com sindicalista no país pontuam a como é atualmente. 42 biografia do líder. Na última década, A exumação do corpo de João Goulart pesquisas, livros e documentários, faz convocar ainda outras experiências como O Dia que Durou 21 Anos, tentam reconstruir sua imagem, passadas, relacionadas a acontecimentos processo aditivado pela exumação. similares de “exumações notórias” de De ameaça vermelha, Jango passa a distintas figuras públicas: os ex-presidentes figurar como mártir da democracia (MAZUI, 2013a, s/n – grifos nossos). do Chile, Eduardo Frei Montalva (2004) e Salvador Allende (2011); o poeta Além de destacar essas características chileno Pablo Neruda (2013); “o herói que marcam a face pública de João Goulart, revolucionário” Simon Bolívar (2010); retomada em sua relação com a própria “o monarca” Dom Pedro I e suas duas história do Brasil, os discursos também mulheres, imperatrizes Dona Leopoldina e evidenciam aspectos da vida privada do Dona Amélia (2012); e o “líder palestino” ex-presidente – dando destaque para seu Yasser Arafat (2012) (MAZUI, 2013a, casamento com Maria Thereza Fontella s/n). A convocação desses passados situa Goulart. Em longa entrevista com a viúva, o acontecimento atual numa estrutura Zero Hora retoma a relação entre “Tetê” e temporal e espacial mais complexa, ao Goulart, destacando a fama de namorador mesmo tempo em que o vincula a uma de Jango e as suspeitas de infidelidade que trama política semelhante: as suspeitas, pairavam sobre ele. Mas Maria Thereza confirmadas ou não, de morte de figuras públicas relacionadas a lutas político- Nessa trajetória ideológicas. Além de retomar traços que constituem pública de Jango, a biografia de Jango e a história do Brasil, os discursos analisados relatam o futuro destacam-se as aberto pela exumação: um segundo Reformas de Base que enterro de Jango, com honras de Chefe de Estado, ocorrido em seis de dezembro de pretendia instaurar 2013, exatos 37 anos após a morte do ex- presidente. O cortejo, a missa e o enterro destaca que Jango era um bom marido, dos restos mortais de Jango no Cemitério apesar de não ficar muito em casa – ou Jardim da Paz foram acompanhados talvez por isso mesmo (BUBLITZ, 2013). por familiares, amigos, políticos e pela Em outra entrevista, ela destaca alguns população de São Borja. O segundo dos valores agregados à imagem de João sepultamento é definido como um Goulart, evidenciando a importância momento de “reencontro e homenagens”, da exumação no contexto brasileiro: “É depois de toda “espera e angústia” que importante o resgate da memória de marcaram a exumação (ROSSLING, um presidente que foi injustiçado e que 2013c, s/n). Ao mesmo tempo, o “novo fez tantas coisas bonitas pelo Brasil. Ele funeral” convoca e atualiza o passado e o foi bom, foi honesto, foi correto e bem contexto em que havia sido sepultado o intencionado. Foi realmente um resgate “líder trabalhista” em “um enterro quase muito importante” (ROSSLING, 2013e, clandestino”. Trata-se, agora, então, do s/n) “enterro que não teve quando seu corpo, 43 já sem vida, voltou ao Brasil em 1976” como “muito triste”, um momento de (MILMAN, 2013, s/n), lembrado assim “dor”, por “revolver muito o passado, os na narrativa de ZH: “Há 37 anos, o ex- acontecimentos” (BUBLITZ, 2013), mas presidente foi sepultado às pressas, sob que defende “a busca pelo esclarecimento intimidação de militares e sem autópsia. das circunstâncias da morte de Jango [...] Diferentemente da primeira vez [...] por ser um direito da família e do povo Jango terá, agora, as honras e solenidades brasileiro” (ROSSLING, 2013h, s/n). que não foram permitidas no passado” Os “amigos” do ex-presidente, que se (ROLLSING, 2013c, s/n). lembram dele “com carinho” (ROSSLING, Como destaca o relato de Zero Hora, 2013i, s/n) ou consideram que o “resgate não se sabe ainda qual será o desfecho da da memória de João Goulart é ato de exumação. De qualquer forma, o resultado amor à pátria” (ROSSLING, 2013c, s/n). dos exames esclarecendo as causas da Os “peritos” e “especialistas” encarregados morte de João Goulart integrará o futuro dos procedimentos da exumação. Os aberto por esse acontecimento. Ademais, “manifestantes” que reivindicaram o “fim podemos destacar, no campo de possíveis da impunidade” (Zero Hora, 2013a). A inaugurado por ele, essa possibilidade de “comunidade”, o “povo”, o “público”, a revisão de um momento fundamental “população” de São Borja ou os “são- da própria história do Brasil. As ideias borjenses”, “populares” ou “conterrâneos” de “restituição da verdade histórica” e de João Goulart que foram ao cemitério de “afirmação da nossa democracia” testemunhar a exumação, lotaram a igreja evidenciadas anteriormente na descrição e acompanharam o cortejo do segundo também podem ser situadas aqui como funeral (ROSSLING, 2013a; 2013c; 2013e; desdobramentos importantes deste 2013j; 2013l). As “lideranças políticas e acontecimento. Entretanto, tais ideias comandantes das Forças Armadas” que não foram compartilhadas por todos os recepcionaram os restos mortais do ex- públicos que se posicionaram em relação à presidente em Brasília e o seu retorno a São exumação – como será discutido a seguir. Borja (MAZUI, 2013b; ROSSLING 2013b). Os “parlamentares” que, no Congresso Públicos que se Nacional, fizeram “discursos relembrando os fatos dramáticos relacionados à queda posicionam: a repercussão de Jango” e apoiaram a anulação da sessão do acontecimento que o depôs (ZERO HORA, 2013d, s/n). O Em torno da exumação e seus “Exército” ou “os militares do regimento” desdobramentos, e da narrativa feita situado na cidade de São Borja, a quem por Zero Hora, constituem-se diferentes coube receber, com honras de Chefe públicos, que, de alguma forma e por de Estado, o corpo do ex-presidente de diferentes motivos, são afetados ou estão volta a São Borja, mas cujo comandante interessados pelo acontecimento. Entre na região nega que se trate de uma aqueles passíveis de identificação via “retratação histórica” (ROSSLING, 2013f, narrativa de ZH, destacam-se: “a família”, s/n). Os “políticos” presentes ao funeral, que desde 2007 solicitava a exumação ao que “reagem com ironia às declarações Ministério Público Federal e a classifica do general” e sustentam que é, sim, “a 44 correção de um grave erro histórico” ou de abertura desencadeadas pelo ainda “um grande acontecimento, cívico acontecimento (sobre o que passou, o e emotivo” (ROSSLING, 2013g, s/n). Os presente e o que ele pode apontar), assim “comerciantes” e “empresários” de São sintetizada por Zero Hora: “o cerne da Borja, que resistiram à decisão do poder polêmica fica na queda de braço entre público local de decretar feriado no dia direita e esquerda para reescrever a do sepultamento (ROSSLING, 2013c). história” (MAZUI, 2013a, s/n). E tais Os “jornalistas”, que acompanharam e disputas não estão presentes apenas nos “puderam registrar o momento histórico” discursos de representantes das diferentes (ZERO HORA, 2013b, s/n). E os leitores de instituições (incluindo as mídias), que Zero Hora, que também se posicionaram são afetadas pelo acontecimento e a ele em relação ao acontecimento e à narrativa respondem, de diferentes formas, com feita pelo jornal, através de comentários ações e discursos que contribuem para postados em seu site. constituí-lo e significá-lo. Elas aparecem O jornal e sua narrativa vão, assim, também nas manifestações de leitores, projetando públicos e mostrando como eles com seus diferentes posicionamentos. se posicionam em relação à exumação. O Entre eles, há quem ironize a “revisão da “Ministério Público, Comissão Nacional da história” propondo a “anulação do golpe de Verdade e Secretaria de Direitos Humanos 15 de Novembro de 1889” (ZERO HORA, da Presidência [da República]”, que, 2013d, s/n); os que criticam os gastos com “apesar da falta de provas documentais”, a exumação e o funeral, o atual governo, “consideram consistentes os relatos de os políticos de esquerda ou a “terrorista no envenenamento” do ex-presidente. Os poder” – “ridículo”, “palhaçada”, tentativa “historiadores”, que “divergem, mas de criar “fato político”, “tudo lorota apoiam a exumação”, para “tirar qualquer para tirar o foco dos erros econômicos, dúvida que ainda existe com respeito à políticos” – e reivindicam que os recursos causa do seu falecimento” e para “que lhe sejam destinados a “valorizar o povo da sejam devolvidas honras devidas a um cidade” de São Borja (MILMAN, 2013, chefe de Estado”. “Todos”, conforme ZH, s/n); os que apoiam o posicionamento “comungam de uma opinião: o país tem o do general porque “não falou o que estes dever de, ao menos, tentar elucidar o caso”. políticos queriam ouvir” e ainda os que O “governo”, cuja decisão de encaminhar a defendem a volta do Exército para “ botar exumação do corpo e de conceder “enterro esses políticos pra correr de novo”. com honras de chefe de Estado a Goulart, Mas há também quem critique o recebe algumas críticas, em especial de posicionamento do general – um “arrogante setores conservadores”, que alegam “viés alienado”, apenas “fugiu da pergunta”, ou eleitoral”: seria do interesse da ministra não quis assumir a responsabilidade de de Direitos Humanos, Maria do Rosário, admitir “que é sim uma retratação e os “e dos herdeiros de Jango” por supostas militares hoje tem que prestar continência “indenizações internacionais” (MAZUI, e se curvar aos presidentes civis eleitos 2013a, s/n). de forma democrática”. Crítica dirigida No centro da controvérsia está a disputa também ao próprio golpe de 1964, à em torno dos sentidos e possibilidades deposição do presidente, os exílios, 45 prisões, torturas e mortes de brasileiros: governo que conduziram a exumação. “Agora, a história é outra, na democracia, Além disso, podemos perceber como militar tem que respeitar a constituição esse acontecimento procura reconstruir e obedecer a Chefe de Estado, portanto, o passado e a própria imagem pública entrem em forma, marchem, prestem do ex-presidente. Os textos analisados continência” (ROLLSING, 2013f; 2013g apontam para um resgate do golpe de , s/n). Há ainda quem se posicione 1964 e uma tentativa de reconstrução criticamente em relação à figura de João e compartilhamento de uma memória Goulart – “não merece honras militares, coletiva em torno dele. Nesse sentido, porque era um político fraco […], frouxo o golpe de 1964 é uma ocorrência que e estava sendo arrastado pelos comunas” continua acontecendo e instaurando novos (ROLLSING, 2013g, s/n) – e quem defenda acontecimentos que podem ressignificá-lo “as homenagens e o respeito” a ele: “o povo 50 anos depois. que o elegeu de certa forma também está Vale destacar os limites da análise aqui homenageado” e “a cidade de São Borja empreendida em torno dos materiais está de alma lavada!” (ROLLSING, 2013j, veiculados por um jornal específico –Zero s/n). Hora. Por ser um jornal gaúcho, acaba por A breve análise da recepção pública aqui construir uma cobertura sensível e afetuosa realizada aponta para as controvérsias em em torno de Jango e sua “segunda morte”. torno da exumação e da imagem de João Uma comparação entre a abordagem Goulart. Diferentes sentidos são projetados de ZH e outros jornais (ou revistas) da sobre a biografia de Jango, o golpe de 1964 chamada “grande imprensa” nacional e a própria história do país – o que exibe pode revelar aspectos interessantes dessas a maneira como os diferentes públicos são disputas simbólicas em torno da figura afetados por esse acontecimento. de João Goulart, do golpe de 1964 e da história do país – o que poderá ser feito Considerações finais em outros trabalhos. O objetivo deste artigo foi analisar a De qualquer forma, gostaríamos de exumação dos restos mortais de João concluir salientando a importância Goulart a partir da noção de acontecimento. de olhar para acontecimentos como A proposta foi apreender de que maneira esse que podem ser pensados como essa “segunda morte” de Jango foi descrita, desdobramentos do golpe de 1964 e que narrada e recebida publicamente em um podem, de alguma forma, ressignificá- contexto que marca os 50 anos do golpe lo. Particularmente, nesse contexto que civil-militar que instaurou uma ditadura lembra os 50 anos daquela ocorrência no Brasil. A análise revelou que a narrativa e que continua marcado por inúmeras hegemônica de Zero Hora procurou disputas simbólicas: enquanto hoje identificar o acontecimento como uma muitos lamentam e sofrem fortemente tentativa de revisar e reescrever a história ao lembrar a ditadura no Brasil e todas as do país. Entretanto, mostrou que houve suas consequências, outros se manifestam disputas de sentido em torno dessa a favor de uma outra intervenção militar definição da situação, na medida em que no país, realizando uma nova Marcha pela várias críticas questionaram as ações do família com Deus pela liberdade, em uma 46 reedição das manifestações conservadoras evidenciam possíveis ameaças a ela. Tais realizadas nos anos 1960 e que acabaram disputas exibem traços constituidores da por legitimar o golpe. É preciso apontar e sociedade brasileira – de sua história e de refletir sobre essas disputas que marcam seus valores. a construção da democracia no país e

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