PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais

OBJETOS MEHINAKO

Entre o rito, a retribuição e o mercado

Roberta Garcia Anffe Braida

São Paulo 2012

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais

OBJETOS MEHINAKO

Entre o rito, a retribuição e o mercado

Tese apresentada à banca examinadora como exigência parcial para obtenção do título de doutor em ciências socais pela Pontifícia Universidade de São Paulo, sob orientação da Profa. Dra. Dorothea Voegeli Passetti

São Paulo 2012

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Ficha Catalográfica

Braida , Roberta Garcia Anffe. OBJETOS MEHINAKO - Entre o rito, a retribuição e o mercado. São Paulo: 2012 pp.210.

Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade de São Paulo, 2012 Área de Concentração : Ciências socais Orientador : Professora Doutora Dorothea Voegeli Passetti

Palavras chave : trocas, cultura material, dádiva, Mehinako, reciprocidade e consumo.

Autorizo, exclusivamente, para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese por processos fotocopiadores ou eletrônicos.

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Tese defendida e aprovada em _____/_____/_____

Banca Examinadora

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Para meus pais, Sandra Garcia e Roberto Tovar

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AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar aos Mehinako, que me receberam em suas casas, dividiram comigo suas vidas, suas alegrias, mitos, festas e objetos com inigualável generosidade. A Yatsima, Penuã, Makaulaka, Anapuatã, Kurimatá, Kulykurda, Mapanu, Waxuni, Yuma, Ontxa, Kayiru, Ariana, Aruhu, Paipualu, Itxuna, Atapana e Maitsá, agradeço pelo bom humor, pelas conversas agradáveis e os banhos de rio. Kulykurda, por me ensinar seus mitos muitas e muitas vezes com paciência. Agradeço aos chefes Tukuyuri e Yahati, que me ofereceram sua hospitalidade e me cederam muito de seu tempo, contando a história e os costumes dos Mehinako. A todos que porventura deixei de mencionar, agradeço por me fazerem sentir à vontade na aldeia Utawana. Kulykurda merece agradecimento especial, pois sem ele esta pesquisa teria sido impossível – desde os percalços das viagens, as visitas a minha casa até as complexas interpretações da cultura Mehinako, tudo o que fez para me ajudar é imensurável. Makaulaka, o cientista político, pedagogo e líder do Xingu, foi outro suporte para este trabalho. Espero não frustrar suas expectativas, e poder um dia retribuir à altura. Agradeço aos meus pais, de quem nunca me faltou apoio, confiança e carinho, e que aprenderam a se interessar minimamente pela antropologia. Edson Luis Gomes, meu amigo, arqueólogo e proprietário da loja Ameríndia, me fez gostar de antropologia e me apresentou os Mehinako. Se não fosse por ele, este trabalho sequer teria começado. Dorothea Passetti, motivo pelo qual escolhi esta Universidade em São Paulo, não saberia por onde começar e agradecer. Esta tese teria sido impossível sem suas leituras atentas, sua preocupação com as minúcias do texto e sua maneira de apontar tudo que parecia para mim evidente. Mas agradeço, sobretudo, à sua confiança apesar de todas as minhas dificuldades, eu sei que não foi fácil. Agradeço por ter aceitado me receber como sua orientanda, antes mesmo de nos conhecermos. Ao Rafael, meu marido, minha eterna gratidão, por fazer todas as horas de estudo mais calmas e felizes. Sua paciência e compreensão diante da minha ansiedade, meu mau humor foram inestimáveis. A Marília,agradeço imensamente sua ajuda na revisão, seus comentários e seu esforço por deixar este texto coerente, tornando esta tese possível.

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“Embora os homens pareçam ser os agentes na definição do valor das conchas, na verdade, sem as conchcapitulo 2as, eles não podem definir seu próprio valor, quanto a isso, homens e conchas são agentes recíprocos na definição do valor de um e de outro”

Nancy Munn, Gawan Kula 1983:283.

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RESUMO

Esta tese é um estudo etnográfico sobre os Mehinako, grupo Aruak da Terra Indígena do Xingu, analisando uso e circulação de seus bens materiais. Esses objetos circulam em diversas trocas, em algumas situações como dádivas, em outras como mercadorias. A partir da descrição etnográfica, este trabalho procura entender como se manifestam essas transações, realizando uma análise em que as noções de dádiva e agência são contrapostas, e identificando suas aproximações e distinções.

Palavras-chave: trocas, cultura material, dádiva, Mehinako, reciprocidade e consumo.

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ABSTRACT

This thesis is an ethnographic study about the Mehinako, Aruak group of Xingu’s Indigenous Land, analysing the use and circulation of their material goods. These objects run through a diversity of exchanges, sometimes as offerings, other times as merchandise. From the ethnographic description, this research intends to understand how these transactions are manifested, making a comparative analysis with the classical notion of offerings and agency and identifying their proximity and distinctions.

Key-words: exchange, material culture, offerings, Mehinako, reciprocity and consume.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...... 14

CAPÍTULO 1 - O ALTO XINGU ...... 22 Os Mehinako ...... 25 A casa xinguana ...... 28 Parentesco ...... 32 Sistema de nominação ...... 34 Chefes ...... 35 Competições ...... 37 Aspectos gerais da aldeia Utawana ...... 38 Os caminhos ...... 40 Alimentos ...... 41 Os macacos ...... 45 O peixe e o sangue ...... 47 O cotidiano ...... 50 CAPÍTULO 2 - OS APAPAYÊI E OS OBJETOS ...... 52 O yerupuhu e o apapayêi ...... 54 A doença ...... 59 Doenças e a feitiçaria ...... 62 Alma ...... 67 Os patrocinadores (kawukamunã) ...... 68 A cura ...... 71 CAPÍTULO 3 - ANTROPOLOGIA DA ARTE ...... 75 O empirismo de Alfred Gell ...... 75 Os objetos vivos ...... 77 A tecnologia de Gell ...... 82 Os demiurgos e os objetos ...... 85 Os caminhos e os objetos ...... 87 Os sonhos e os objetos ...... 89 Iconografia ...... 94 CAPÍTULO 4 - OS CIRCUITOS DOS OBJETOS E DOS SERVIÇOS ...... 95 O mutirão para a construção da casa dos homens ...... 95 Circulação dos objetos ...... 99 Retribuição para o pajé ...... 100 Retribuições para amigos, irmãos e amantes ...... 101 Retribuição dos visitantes caraíba ...... 102 Huluki interno ...... 103 A partilha dos alimentos ...... 108 CAPÍTULO 5 - O COMÉRCIO DE OBJETOS ...... 110 As cerâmicas ...... 112 Tuapi – as esteiras coloridas ...... 114 Xepi – os bancos que transportam os pajés ...... 119 Zunidores...... 126 As redes de Kurimatá ...... 129 Os caraíba: parceiros de trocas comerciais...... 131 Circulação de objetos indígenas ...... 139 Valoração econômica ...... 143

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Consumidores ...... 145 CAPÍTULO 6 - OBJETOS RITUAIS : ATIVAR OU DESATIVAR OS PODERES DO APAPAYÊI .. 148 Desativando apapayêi ...... 149 O resguardo e os objetos ...... 153 Flautas Kawoká ...... 158 As mulheres e a flauta Kawoká ...... 163 O ritual das máscaras ...... 164 A festa do pequi ...... 169 A produção de objetos na festa do pequi (Mapulawache) ...... 171 Objetos da festa do pequi ...... 182 O pilão no ritual de yamurikumã ...... 183 O ritual de kukuho: o dono da mandioca ...... 187 Objetos que prolongam os apapayêi ...... 190 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...... 195 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...... 199 Referências filmográficas ...... 209

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LISTA DE FIGURAS

FIG . 1- MAPA DA TERRA INDÍGENA DO XINGU (TIX) ...... 13 FIG . 2- TRANSPORTE DE BARCO DA ALDEIA PARA A CIDADE ...... 25 FIG . 3 – A ALDEIA UTAWANA ...... 28 FIG . 4, 5 E 6 – ESTRUTURA INTERNA DA CASA ...... 30 FIG . 7 E 8 - A DISPOSIÇÃO DAS REDES DENTRO DA CASA ...... 31 FIG . 9 – FAMÍLIA DO CHEFE YAHATI E EU ...... 34 FIG . 10 - TORNEIO DE FUTEBOL ...... 37 FIG 11 - PESSOAS CHEGANDO EM UTAWANA ...... 39 FIG 12 E 13 - TRILHAS ...... 40 FIG . 14 E 15 - O BEIJU E A PEREREBA ...... 41 FIG . 16 - MENINA PREPARANDO O BEIJU ...... 42 FIG . 17 E 18 – TRACAJÁ E OS MACACOS ...... 45 FIG . 19 E 20 – PEIXE COZIDO E MOQUEADO ...... 48 FIG . 21- APAPAYÊI MORCEGO E O URUBU REI ...... 52 FIG . 22 - ALIMENTOS PARA O APAPAYÊI ...... 69 FIG . 23 - O COLABORADOR DE UMA FESTA PARA UM APAPAYÊI ...... 70 FIG . 24 - O PAJÉ TUKUYARI ...... 71 FIG . 25, 26 E 27 - CASA DOS HOMENS EM FASE DE CONSTRUÇÃO ...... 97 FIG . 28 - MUTIRÃO ...... 98 FIG . 29 E 30- CERÂMICAS ...... 114 FIG . 27- O MITO DA ANTA ...... 115 FIG . 32 - ESTEIRA COLORIDA PARA A VENDA ...... 116 FIG . 33 - YATSIMA PREPARANDO AS TALAS DE BROTO DE BURITI ...... 117 FIG . 34 - PENUÃN PRODUZINDO A TUAPI PARA A COMERCIALIZAÇÃO ...... 118 FIG . 35 E 36 - HOMEM FAZENDO UM BANCO PEQUENO ...... 120 FIG . 37 - O BANCO DE URUBU BICÉFALO ...... 121 FIG . 38, 39, 40 E 41 – GRAFISMOS UTILIZADOS NOS BANCOS ...... 122 FIG . 42 - O BANCO DO PAJÉ ...... 124 FIG . 43 - BANCO UTILIZADO NA ALDEIA UTAWANA ...... 125 FIG . 44 E 45 – MATAPU PEIXE CACHORRA (WAPI ) E MATAPU TUCUNARÉ (SIAITISAPA ) ...... 127 FIG . 46 E 47 - MATAPU PACU (IWUSI ) E MATAPU MATRINCHÃ (PUIXA ) ...... 127 FIG . 30 - REMOS ADQUIRIDOS PELO COLECIONADOR ...... 146 FIG . 50 – MENINA RECLUSA ...... 154 FIG . 51 - FLAUTAS KAWOKÁ ...... 158 FIG . 52- ATUXUÁ ...... 164 FIG . 53 – KUAHÃHALU ...... 165 FIG . 54 - O CASAL XAPUKUYAWÁ ...... 166 FIG . 55 - EWEXU ...... 167 FIG . 56- KAPULUKUMÃ ...... 168 FIG . 57 - O ESPÍRITO DO PEQUI ...... 170 FIG . 58 - OBJETO AHIRA COLOCADO ENTRE AS ÁRVORES ...... 173 FIG . 59 - ALUA , O MORCEGO ...... 177 FIG . 60 - MATAPU , O PEIXE ZUNIDOR ...... 179 FIG . 61 - AHIRA , O BEIJA -FLOR ...... 181 FIG . 62 - ANA , O PILÃO ...... 186 FIG . 63 E 64 - DESENTERRADOR DE MANDIOCA (TUNUYAI ) E PÁ DE BEIJU (KUTÉ ) ...... 189

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Fig. 1- Mapa da Terra Indígena do Xingu (TIX) (Fonte: Instituto Socioambiental/ISA, 2002)

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Introdução

A presente pesquisa sobre os objetos indígenas Mehinako tem origem em um interesse pelas máscaras xinguanas durante o mestrado em geografia, cuja pesquisa de campo foi na aldeia turística Puiwa Poho, no Médio Xingu e na reserva indígena urbana, em Dourados - MS. Iniciados em 2004, os primeiros anos de estudo foram entre os grupos Trumai, Wauja, Terena, Kaiowá e Guarani, dedicados à realização de uma análise comparativa entre aldeias construídas para atender o turismo. Alguns objetos indígenas utilizados como “souvenirs” para turistas foram recolhidos para registro e análise, e o manuseio destes objetos ampliou enormemente a minha curiosidade a respeito da produção, consumo e o seu destino, quando saem das aldeias. Concluí o mestrado com a sensação de que deveria estudar estes objetos com minúcia. A experiência em campo com esses grupos despertou, então, o interesse pela antropologia, em grande parte por causa das pesquisas de campo com os Wauja e Trumai, no Xingu. Quando ainda era mestranda do curso de geografia da Universidade Federal de do Sul, trabalhei em uma loja que comercializa objetos indígenas em Campinas. Executei o trabalho de catalogar as coleções indígenas formadas nos últimos vinte anos pelo arqueólogo Edson Luis Gomes, entre os indígenas de todas as partes do Brasil. Depois de ter fotografado e registrado cerca de 100 peças, notei que a maioria delas era de origem Mehinako, percebendo a diversidade de objetos feitos por essa etnia, foi desta forma que comecei a me envolver com os Mehinako, que moravam na aldeia Utawana e vendiam objetos na loja. Não muito tempo depois disso, ainda em 2008, um dos chefes da aldeia Utawana esteve na loja Ameríndia, onde eu trabalhava naquela ocasião, e começou a reclamar de febre e fortes dores de cabeça. Ele não conseguia mais realizar as curas dentro da aldeia ou até mesmo na região do Alto Xingu, pois sentia fortes dores na barriga e vomitava sempre antes de tentar entrar em transe, não conseguindo mais ouvir o espírito do pássaro pequeno que o auxiliava. O xamã havia ido à loja para avisar o proprietário que ele iria patrocinar uma festa para o apapayêi, em breve, e, então, ele poderia adquirir algumas máscaras confeccionadas durante a cerimônia. A partir daí, fui diretamente contagiada pela magia de tais objetos criados para curar um pajé com prestígio. Após a

14 aproximação com esse homem, comecei a perceber que seria impossível compreender os objetos sem vinculá-los aos espíritos apapayêi. Minha entrada na aldeia Utawana foi relativamente fácil e rápida, pois, tendo trabalhado na loja de objetos indígenas em Campinas, meu nome já era conhecido por alguns na aldeia, e muitos já haviam vendido objetos na referida loja em que trabalhava. Eu tinha expectativa de que, em troca de minha permanência como pesquisadora, ajudaria em questões referentes à Associação Indígena Ahira, criada recentemente. Havia também o problema da reciprocidade. Eu deveria oferecer algo à comunidade em troca de minhas estadias, e, então, fui avisada de que os pesquisadores e visitantes deveriam levar presentes dispendiosos para os chefes, como barcos, carros, rádio ou televisão, para conseguirem realizar as pesquisas de campo, ou poderiam simplesmente ser surpreendidos com cobranças exorbitantes na entrada da aldeia. Como a aldeia Mehinako estava iniciando o projeto da Associação Indígena Ahira, propus para o grupo a realização de um site de venda dos objetos produzidos por eles. O aumento nas vendas através desse canal de contato poderia cooperar com a renda da população e, além disso, contribuir com as informações que eu precisava para a realização da pesquisa. Eu tive que explicar diversas vezes sobre a importância do site para os mais velhos no centro da aldeia, pois muitos não conseguiram entender. Obviamente, o envolvimento neste projeto era maior com os jovens. Pela história do Alto Xingu com a sociedade nacional, os indígenas frequentemente recebem estrangeiros, pessoas importantes, canais de televisão e, na maior parte das vezes, pessoas ricas. Acabaram se adaptando com pagamentos que, para uma pesquisadora, são exorbitantes. Eles citaram diversos exemplos de estrangeiros, até mesmo pesquisadores, que ajudam bastante e trazem presentes muito especiais e caros. Felizmente, na primeira pesquisa de campo fui com um pesquisador americano e piloto, Dave Falter, com quem especularam a possibilidade de ganhar um rádio transmissor. Até hoje essa lógica de retribuições adequadas, é difícil de ser compreendida. Na maioria das vezes fiz pagamentos com alimentos considerados irrisórios, às vezes retribui com presentes muito pequenos que eles não gostaram muito, chegando ao ponto de aborrecer certas pessoas; em outras, ainda, demorei

15 tanto para retribuir que o presente não foi levado em consideração. A minha situação de integração com o grupo começou a melhorar na segunda pesquisa de campo em 2010. Após a construção do site , os Mehinako começaram a demonstrar mais confiança, contribuindo para a pesquisa, à medida que acreditaram na ideia da venda pela internet. Houve maior facilidade de comunicação com informantes masculinos e jovens, devido à dificuldade de linguagem e a prudência das mulheres em relação aos estranhos. A maioria dos informantes que dominavam a língua portuguesa respondia com concisão às minhas indagações, e, quando se sentiam inseguros para responder sobre assuntos mais complexos, mitos ou acontecimentos do passado, investigavam com as mulheres ou homens mais velhos. Sendo assim, a primeira fase da pesquisa de campo ocorreu nos meses de dezembro e janeiro de 2008. No seguinte ano eu os revi em alguns eventos na cidade de São Paulo e Brasília; em outra ocasião, alguns Mehinako ficaram hospedados em minha casa durante um mês. Em algumas circunstâncias, continuei a interrogar e solicitar alguns desenhos e mitos. Mas, em 2009, a minha segunda pesquisa de campo teve que ser adiada porque o acesso a terras indígenas estava interrompido, por causa de uma possível pandemia da gripe H1N1. Retornei em julho de 2010, lá permanecendo até a última semana de setembro. Nos intervalos entre as viagens, retornei a Campinas para organizar os meus dados, e, sobretudo a transcrever o material registrado em papéis e gravadores, totalizando muitas horas de fita gravada e muitas anotações em blocos. Infelizmente, não consegui fazer este trabalho de transcrição na aldeia, pois os Mehinako não possuem fonte de energia elétrica constante para que pudéssemos escutar as gravações todos juntos. Hospedei-me na casa do chefe Yahati, durante quase toda a duração das pesquisas de campo. É muito comum no Alto Xingu, assim como entre outros povos indígenas, que todos os caraíbas tenham um anfitrião, alguém responsável por hospedá-lo, acompanhar em todos os momentos da pesquisa, observar a sua relação com todas as pessoas da aldeia, e algumas vezes a disputa entre anfitriões de facções distintas pode gerar conflitos. A princípio, fui recebida pelo chefe mediador das relações dos brancos com os Mehinako, aquele que sempre está fora da aldeia vendendo objetos e buscando contatos

16 de parcerias, e nome Anapuatã. Mas após algumas horas, fui encaminhada para a casa do grande chefe, conhecedor das tradições e dos costumes dos Mehinako, Yahati. Relações com os caraíbas podem ser fontes de cobiça, pois eles fornecem objetos eletrônicos, dinheiro e serviços para a comunidade. Obter alianças de sucesso com os brancos pode ser motivo de prestígio para uma família Mehinako. Percebi que diversas pessoas tentaram me atrair em seus núcleos familiares, oferecendo alguns presentes, alimentos ou ajudando com a pesquisa, e que o ideal é aliar-se a algum desses grupos. Envolvi-me com a família do chefe Yahati, e assim consegui obter confiança dos moradores para transitar pelas casas, e, muitas vezes, fazer perguntas, observar e fotografar a produção dos objetos indígenas . E, como de costume, no primeiro dia em aldeia indígena, o chefe e o pajé distribuíram os produtos industrializados que levei para agradecer a hospitalidade. Pretendo, neste trabalho, compreender as polarizações entre os objetos confeccionados para os rituais e os objetos produzidos para o mercado. Uma das questões mais habituais nos estudos sobre objetos indígenas é a relação entre as peças que entram no circuito de dádiva e outras consideradas meras mercadorias. Estudos recentes sobre trocas e distribuição de objetos indígenas estão sendo direcionados para esse enfoque. Os povos indígenas criam mecanismos eficientes de articulação da dádiva tradicional com inclusão de trocas comerciais firmadas na economia de mercado. A variedade de trocas corresponde a diferentes articulações sociais. Observei que alguns objetos indígenas dos Mehinako não podem circular sem antes passar por um ritual específico, outros são produzidos para ser vendidos rapidamente. Para compreender melhor o sistema de dádiva, é importante deter-se naqueles objetos que são de fundamental importância para a concretização dos rituais, pois possuem significados sociais peculiares, e não podem ser vendidos com facilidade. No caso dos objetos rituais, os Mehinako passam por negociações prévias com os espíritos apapayêi, e o fazem com o intuito de conseguir proteção, controle ou desaparecimento de dores, e cura de doenças. Essa negociação cosmológica ocorre quando a alma é encontrada em estado vulnerável. Segundo os Mehinako, os espíritos apapayêi colocam armadilhas embaixo das árvores, nas roças, para que a alma possa ser capturada. As pessoas devem tomar as devidas precauções quando estão de resguardo,

17 como as mulheres quando menstruadas, ou quando sentem desejos sexuais ou alimentares, para assim evitar a atração dos apapayêi. Desse modo, a negociação pressupõe a técnica de manipulação do universo cosmológico, a prática de obter a colaboração dos espíritos de maneira espontânea ou de conquistar a ajuda espiritual. Como? Atraindo os espíritos que raptaram a alma através da realização de festas, incorporando os apapayêi quando as máscaras são vestidas, cuidando e guardando em sua própria casa as roupas, instrumentos e objetos produzidos para a cerimônia e, por fim, alimentando os espíritos. Apesar de produzir objetos para agradar os apapayêi e evitar as doenças, não podemos deixar de ressaltar que os Mehinako estão em constante relacionamento com os caraíbas através das trocas comerciais. Verifica-se que a produção desses objetos indígenas ocorre para satisfazer os desejos dos Mehinako de obter mercadoria e dinheiro. Como esses objetos circulam? Por que alguns não podem ser distribuídos ou vendidos e outros sim? Algum objeto fica excluído do sistema de troca? O que essas formas de distribuição ou de proibição da circulação revelam sobre as relações sociais dos Mehinako de Utawana? De acordo com a concepção dos Mehinako, os objetos, os espíritos, os astros, as árvores e os animais possuem potências e intenções, e por isso podem exercer influência sobre o meio e a vida dos humanos. As máscaras são cópias das entidades sobrenaturais, transformam os indivíduos que as vestem. Se ocorrer o caso de óbito do dono das máscaras, estas devem ser queimadas, nunca vendidas ou trocadas. Alfred Gell (1998) apresenta uma nova abordagem antropológica, quando estuda a produção material dos melanésios. Procura aproximar a intervenção dos espíritos na produção dos objetos. A contemplação estética que rege o processo de percepção artística ocidental não tem a mesma importância na produção dos objetos indígenas. Neste caso, a satisfação visual é ultrapassada, e os objetos passam a estar vinculados à eficácia. “A proa superdecorada não se quer bonita, mas poderosa, visa à uma eficácia, a uma agência, a uma produção de resultados práticos em vez de contemplação ” (Lagrou, 2007:43), ou seja, quando é criado um objeto, um banco, uma

18 máscara, uma arma, a sua aparência visual é alvo de um cuidado muito especial para aumentar a sua eficácia. Trata-se, portanto, de um belo que fortalece e traz efeitos de força, coragem, beleza ou cura aos seres humanos. É importante levar em conta a necessidade de potencialização de estados, através do uso adequado dos objetos em determinados contextos. Gell (1998) contrasta com a abordagem de Geertz (2001), que trata os fenômenos culturais como sistemas significativos e, portanto, passíveis de interpretação. Gell rejeita o fato de tratar a arte como linguagem ou análises institucionais, não analisando o objeto da arte isoladamente.

Recuso totalmente a ideia de que qualquer coisa, exceto a própria língua, tem sentido no sentido proposto... No lugar da comunicação simbólica, ponho a ênfase em agência, intenção, causação, resultado e transformação. Vejo a arte como um sistema de ação, com a intenção de mudar o mundo em vez de codificar proposições simbólicas a respeito dele (Gell apud Lagrou, 2007: 48). Podemos afirmar que a teoria proposta por Gell visa investigar as relações entre objetos que se interrelacionam com sujeitos. Por isso, é possível considerar os objetos como pessoas, estabelecidos em torno das interações entre os sujeitos. Ou seja, importa compreender o que estes objetos e seus diversos usos nos ensinam sobre as interações humanas e a projeção da sua realidade sobre o mundo dos apapayêi; é no vínculo com seres e corpos humanos que máscaras, flautas, zunidores, pilões têm de ser entendidos. Latour (2002) e Gell (1998) problematizam questões como a intencionalidade das coisas materiais, a função dos objetos inseridos no contexto que os cerca, e as dicotomias entre pessoas e coisas, matéria e espírito, objeto e sujeito – que aparentemente não fazem parte do pensamento das populações indígenas. A compreensão dos aspectos cosmológicos e dos mitos, interrelacionados aos seres humanos e às dimensões que frequentam, propicia um entendimento mais claro da produção material Mehinako.

* * * Apresento um breve resumo dos capítulos desta tese com intuito de facilitar a localização dos principais assuntos tratados em cada um.

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O primeiro capítulo começa com uma apresentação do Alto Xingu e dos xinguanos, e tem como tema principal a contextualização dos Mehinako em suas relações contrastivas com os povos não xinguanos. Os xinguanos compõem o ethos alto-xinguano e se articulam entre si por meio de diversos mecanismos de relações interétnicas, como rituais, casamentos, negociações políticas e trocas de objetos. Após isto, apresento a socialidade Mehinako, a organização espacial da aldeia Utawana, o modelo de conduta, regime alimentar, subsistência, parentesco, unidade doméstica, a importância da uxorilocalidade nos casamentos, atividades sazonais e divisão social do trabalho. No segundo capítulo, detenho-me na caracterização da cosmologia, do xamanismo e dos rituais xinguanos. Nota-se que há uma estreita articulação entre os espíritos apapayêi e os objetos Mehinako, mitos, performances, músicas e ritos. Todos esses elementos funcionam como uma espécie de ponte para acessar o universo dos apapayêi. Procuro interpretar as categorias de apapayêi, doença e alma, a partir da perspectiva Mehinako. No terceiro capítulo, levaremos em consideração importantes autores que revelaram teorias que transitam da teoria à etnografia, demonstrando as possibilidades de aplicações dos conceitos apresentados. Dentre os autores que discutiremos, destacamos Alfred Gell (1998), Lúcia Hussak van Velthem (2003), Elsje Maria Lagrou (1998) e Aristóteles Barcelos Neto (2008). No quarto capítulo, analiso modalidades de dons em algumas situações: os serviços de mutirões, huluki e retribuições aos pajés, amigos e pesquisadores. Estas trocas, através de circuitos de doações e retribuições, continuam pautadas em negociações com apapayêi, reciprocidade, prestígio e generosidade. Primeiramente, trato da construção da casa dos homens, que ocasiona a troca de serviços prestados entre os Mehinako. Em seguida, veremos que o caso das trocas no huluki; o fluxo de retribuições entre Mehinako e os grupos convidados, cada grupo é especialista em um tipo de objeto. No quinto capítulo, será analisada a circulação dos objetos entre Mehinako, lojistas, consumidores e colecionadores em trocas do tipo mercantil. No sexto capítulo, procuro compreender os espíritos apapayêi que podem se manifestar nos objetos rituais, e como essas coisas possuem

20 mecanismos apropriados para serem ativados e desativados quando necessário. Sem as regras de alimentação e cuidados adequados aos apapayêi, os objetos rituais perdem os poderes de cura. Apresento, então, aqueles objetos que são produzidos para a festa do pequi, na festa das mulheres e no ritual das máscaras. Prossigo com a descrição geral das flautas kawoká, comentando as relações entre o espírito Jakuí, as mulheres e o patrocinador da festa. Por fim, nas considerações finais, são retomadas as principais ideias da tese e comentários finais sobre os objetos Mehinako.

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CAPÍTULO 1 - O Alto Xingu

A Terra Indígena do Xingu, localizada no nordeste do Mato Grosso, na Amazônia meridional, possui uma área de 2642.0004 hectares, quatorze etnias, contabilizando 5.020 habitantes indígenas que vivem em torno de doze Postos Indígenas, três postos de atendimento e seis Unidades Básicas de Saúde, dez associações indígenas e um sistema de abastecimento de água, segundo dados do Instituto Socioambiental de 2010. O Alto Xingu é um complexo sociocultural multiétnico e multilíngue - atualmente com cerca de 2.800 pessoas. São eles os Wauja, Mehinako, (falantes de língua aruak); Kamayurá, (falantes de tupi), , , , Nahukua (karib) e Trumai (língua isolada). No Médio e Baixo Xingu estão os povos não xinguanos, como os Yudjá, também conhecidos como Juruna, Kayabi (ambos falantes de língua tupi), (língua Jê) e os , conhecidos como Txikão (língua karib). Esses últimos grupos são considerados pelos xinguanos como estrangeiros, pois a prática de casamento, ritual e comércio é recorrente. Os não xinguanos foram trazidos à região pela política indigenista dos irmãos Villas Boas. Excetuando os Yudja, os demais foram transferidos, pela citada política indigenista, de regiões externas ao território demarcado. Neste sentido, Menget (2001) pesquisou a entrada dos Ikpeng na Terra Indígena do Xingu, demonstrando que os povos do sistema sóciocultural favoreceram a inclusão destes povos não xinguanos, que são acusados pelos Mehinako de induzir conflitos na região. De fato, os Mehinako chamam os povos não xinguanos de muteitsi (Gregor, 1982), ou seja, índios bravos. violentos e invasores. Contudo, no sistema alto xinguano há uma dinâmica de distinção interna marcante, cuja lógica passa pelas especializações de objetos, produzidos em cada grupo, e a língua, articulando-se em um sistema intertribal de intercâmbios e rituais. Cada grupo fala quase que exclusivamente sua própria língua, além de se comunicar com os caraíbas com uma língua comum, a portuguesa. Aprender português passou a ser uma questão de prestígio e necessidade, considerando que os xinguanos, sobretudo os Mehinako, realizam cada vez com maior frequência viagens para comercializar seus objetos nos grandes centros urbanos. Segundo Franchetto (2001), entre os

22 adolescentes xinguanos é cada vez maior o interesse pela língua dos caraíbas. Na aldeia Utawana, alguns homens mais velhos, crianças e a maioria das mulheres falam somente a língua aruak. No entanto, entre os adolescentes e homens adultos, em geral, não falar a língua potuguesa entre eles parece ser uma questão de dignidade. Ainda assim, verifica-se um sistema multilinguistico, decorrente da circulação de pessoas através dos casamentos intertribais. O núcleo familiar xinguano fala uma única língua, a língua paterna. Normalmente, aprendem a língua materna quando ainda são adolescentes. Durante as cerimônias intertribais, apesar de um grupo não saber falar a língua do outro, a maioria das músicas são cantadas na língua em que o ritual teve origem. Desta forma, é evidente que sabem cantar diversas músicas de grupos distintos, apesar de não falarem fluentemente a língua. As trocas de objetos, casamentos intertribais e os rituais compõem este complexo regional, mas o sistema cerimonial pode ser visto como o principal distintivo de xinguanidade, uma espécie de língua franca (Menezes Bastos, 1978:31). Eduardo Galvão (1979), almejando uma classificação geral das áreas culturais indígenas do Brasil, nomeou este sistema de “área do Uluri” – em referência ao adereço pubiano feminino de uso exclusivo das populações que habitam essa região. Reconhece que os grupos do sistema alto xinguano partilham uma série de práticas e características comuns como a alimentação, que não aceita a carne de animais de pelo; a reclusão pubertária, performances, cultura material, mitologia, interdependência ritual, sedentarismo, realização das práticas xamânicas baseadas no uso do chocalho e das curas com o tabaco; cortes de cabelo redondo para os homens e longos com franjas para as mulheres; estrutura das terminologias de parentesco, alianças políticas, valorização dos mesmos laços de cooperação e respeito; intercâmbios econômicos; construção de casas em aldeia de forma circular e os espaços comunitários. Nas palavras de Menget (2001:43), trata-se de “um conjunto de tribos coligadas”. No caso Mehinako, o termo que utilizam para se referir a esta homegeneidade é putakanau, que significa gente que empresta (Gregor, 1982). Pesquisas arqueológicas de Heckenberger (2001), empreendidas na região, têm demonstrado que grupos Aruak do subtronco Maipure foram os

23 primeiros a ocupar o rio Xingu por volta do ano 800 d.C. A chegada dos povos de origem Karib é indicada num período no século XV, e somente no século XVIII foi seguida pela dos grupos Tupi. Em se tratando das cerimônias ocorridas nos sistema xinguano atual, tais dados arqueológicos demonstram a ideia de uma formação prototípica aruak. Para Heckenberger, este modelo, que estabelece certa lógica padrão, consiste num conjunto de relações sociopolíticas, padrões culturais e simbolismos (2001:58). Cabe aqui mostrar a proeminência das afirmações de Francheto (2001) sobre a origem aruak de alguns rituais; comuns a todos os grupos xinguanos. De acordo esta autora, “entre os Kuikuro, muitas festas ligadas aos espíritos, nduhe e itseke em kuikuro, são mencionadas pelos próprios índios como de proveniência aruak” (2001:147).

*** A maioria dos povos indígenas no interior do Brasil se defrontou com diversos garimpeiros e missionários antes mesmo de todas as expedições. Mas, os primeiros contatos registrados de que se tem notícia entre os xinguanos e os não-índios datam do final do século XIX, quando ocorreram duas expedições lideradas pelo médico e etnólogo alemão Karl von den Steinen. Somente nos anos 40 a região voltou a ser local apropriado para exploração. A partir daí construíram-se estradas e campo de pouso, iniciativa do Governo Federal para o desbravamento do Brasil Central, denominada “Expedição Roncador Xingu ”. Tal expedição federal propiciou as condições de contato permanente com os grupos indígenas da região (Emmerich, 2008). A partir da relação pacífica e bem-sucedida com as populações indígenas locais, os irmãos Cláudio, Leonardo e Orlando Villas Boas, líderes da expedição, dedicam-se à criação do que se chamou de Parque Indígena do Xingu, intensificando o contato com a sociedade nacional, e as trocas comerciais se tornaram um importante elemento de relação entre grupos indígenas locais e não-índios. Os irmãos Villas Boas rapidamente observaram como as relações pacíficas entre os alto-xinguanos estavam vinculadas às trocas de objetos, e, assim, incentivaram a criação de um local imparcial chamado de Posto Indígena Leonardo Villas Boas, para a realização de cerimônias intertribais e

24 intercâmbio de objetos. Com a criação do Parque Indígena do Xingu, nos anos 60, as trocas e os rituais aumentaram, convidando-se todos os grupos para a realização da festa em homenagem a célebres falecidos, o Quarup.

Os Mehinako Atualmente, os Mehinako dividem-se em duas aldeias indígenas diferentes que distam apenas 100 km uma da outra, ambas situadas na margem esquerda do rio Kurisevo. Os últimos dados disponíveis oficialmente são dos agentes de saúde que trabalham nas comunidades Mehinako e eles apontam que a população atingiu o número de 259 habitantes, em 2009.

Fig. 2- Transporte de barco da aldeia para a cidade

A aldeia mais antiga, denominada Uwaipiwuru, com 106 pessoas, localiza-se a aproximadamente 250 km de Xavantina, e a mais recente é uma aldeia de médio porte, chamada Utawana, que significa curva do rio na língua aruak, com 153 pessoas, que se localiza a aproximadamente 70 km do município de Gaúcha do Norte, ambos junto ao Posto Indígena Leonardo Villas Bôas e ao Posto Indígena de Vigilância Kurisevo (PIV), na margem esquerda do rio Kuluene, afluente do rio Xingu. Existem algumas famílias dissipadas, separadas das grandes aldeias devido aos casamentos intertribais.

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Em 2003, exatamente quatro anos antes do meu primeiro trabalho de campo, cerca de 150 pessoas se deslocaram para o território da aldeia construída mais recentemente, composta de 12 casas, denominada Utawana. Isso ocorreu devido ao desentendimento que levou a divergências e disputas faccionais entre o grupo, quando o cacique acusou um pajé de feiticeiro. As pessoas aliadas ao chefe se organizaram e decidiram partir para fundar outra comunidade, onde estão localizados nos dias de hoje. Os que fundaram Utawana possuem autonomia política, apesar de partilharem uma origem comum com os de Uwaipiwuru, a mesma língua e proporcionarem interações e trocas de forma intensa com a aldeia Uwaipiwuru, a mais antiga. Em 1884, quando a expedição de Karl Von den Steinen chegou à região, encontrou pela primeira vez um índio Nahukwa, que estava acompanhado dos Bakairi, em uma de suas aldeias. Ele percebeu que as relações entre os dois grupos pareciam de proximidade, já que os Bakairi sabiam se comunicar com os Nahukwa (Von den Steinen, 1940:126). Von den Steinen partiu para a aldeia dos Nahukwa acompanhado de alguns Bakairi, de onde seguiram em direção aos Mehinako. A intenção de chegar à aldeia dos Mehinako era coletar objetos para o Museu de Berlim e registrar informações etnográficas sobre esse povo aruak. No entanto, descreve que sua visita aos Mehinako foi tumultuada. Um sujeito Bakairi que auxiliava na expedição chegou à aldeia Mehinako antes do grupo para avisar aos residentes sobre a chegada dos visitantes, o que alterou radicalmente as intenções de Von den Steinen. Quando ele e o grupo de expedicionários chegaram ao local, os Mehinako haviam escondido todos os seus objetos e inclusive todas as mulheres dentro mata, e o pesquisador indignado notou que não havia objetos e mulheres no interior das casas. Assim, além de não poderem adquirir as cerâmicas que desejavam para constituir o acervo do museu de Berlim, observaram que os Mehinako pareciam amedontrados e não estavam satisfeitos com a presença dos caraíbas na aldeia. A aldeia principal, denominada Yulutakitsi, que significa pé de tucum, sempre esteve na mesma região desde 1887, na confluência entre os rios Tuatuari e Kurisevo, mas não no mesmo local. Os Mehinako dizem que esta é a aldeia mais antiga de que se lembram, e todos os informantes que questionei afirmam dois motivos pelos quais mudaram o local da aldeia esporadicamente.

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Como habitual no Alto Xingu, os Mehinako não mantêm uma aldeia situada no mesmo local por muitos anos, afirmando que, com o aumento do número de pessoas para se alimentar, diminui a fertilidade do solo, causando problemas de subsistência para a comunidade. No entanto, há outra interpretação, que também é bastante recorrente: os Mehinako explicam as mudanças casuais, em função da concentração do número de mortos enterrados no centro da aldeia ao longo dos anos. Tal excesso de corpos enterrados na praça central provocou um surto de sarampo na década de 50, pois atraiu apapayêi perigosos e alterou a configuração social deste grupo, liquidando metade da aldeia. O xamã Yahati contou que era menino na época do surto de sarampo, e viu quase toda a família morrer. Como ficou órfão, foi criado pela família da tia materna. Ele relata que não havia espaço suficiente na aldeia para todos os corpos que morreram de sarampo, diminuindo a população Mehinako pela metade. Por esses dois motivos relatados pelos chefes atuais do grupo, surto de sarampo e superpopulação de pessoas e mortos numa mesma aldeia, houve uma alteração na configuração espacial, enquanto alguns continuaram na aldeia Yulutakitsi, na margem direita do Tuatuari, a maioria se dispersou para quatro subunidades: Enumana, Walupuhu, Munupuhu, Xamuxayutu, localizadas próximas à aldeia principal. Após 1961, ano da criação do Parque Indígena do Xingu, os Mehinako se viram em uma situação difícil de abandonar todas as aldeias-satélite e principais para se aglutinarem em uma única aldeia, próxima a um Posto de Vigilância Kurisevo e a aldeia dos Yawalapiti, a fim de tornar mais fáceis os atendimentos médicos. Não há um único homem e mulher idosos que, ao mencionar o dia do deslocamento para uma única aldeia, não comece a relembrar o surto de sarampo, as casas, as lembranças com os pais. De um modo geral, a mudança repentina para Uwaipiwuru, em 1963, teve efeitos emocionais devastadores para aquelas pessoas que ali viveram. Contudo, ao menos em relação à situação atual, não se pode considerar que a aldeia Utawana seja uma aldeia-satélite, enquanto a aldeia mais antiga, Uwaipiwuru, é considerada uma aldeia principal, pois, notou-se que este modelo de organização pode ser efêmero e inconstante. Conforme a população vai crescendo, a centralização em torno de uma única aldeia diminui consideravelmente.

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A casa xinguana Os padrões de assentamento e as casas no Alto Xingu são morfologicamente similares. A aldeia Utawana é a conjunção de doze casas, número este que varia em cada aldeia localizada na Terra Indígena do Xingu, apesar de todas estarem ordenadas de modo que circundem a praça central.

Fig. 3 – A aldeia Utawana (desenho de Ontxa)

Casa 1 Casa 2 Casa 3 Casa 4 Casa 5 Casa 6 Yahati Kapulupi Athyakuma Paitxuma Kana Ayama Yatsima Etsiri Kamaikiakalu Hiãlu Yurika Nikumalu Waxamani Taxama Kuatapa Yakaxu Tupe Ptsalu Kauta Kanalakatu Itxautai Makauxukuma Tiwari Malapuwa Kulykurda Kuyupe Kakatsh Jepe Axapa Pitsalu Malapuwa Wapanu Atsupe Kurimata Kaitonti Kuiguinho Pitsalu Wayuni Ukutsuntu Ipulatu Yanukuxa Senaku Muluku Yuma Anatupeye Maipu Maiaya Kayiru Uleitawana Tseitxumalu Ariana Aipana Uruhu Tseum Paipualu Kuyarapi Itxuna Yakupelu Atapana Yaki Maitsá Yurika Paitxuma

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Casa 7 Casa 8 Casa 9 Casa 10 Casa 11 Casa 12 Anapuata Tukuiari Tropi Kawakanamu Ahula Makulaka Kurimata Mukura Makalu Kayulalu Yualu Penuan Meyeke Kayanaku Tewe Matsirapa Metsulu Yakuru Uanulatapa Kuyuitxatu Kuyêtu Wapitsewe Kaukuma Mayawari Yawaitse Amunã Kanapu Kutsarayu Túku Yuta Maine Tawapu Yahu Lino Kuyakuia Parawantxin Talatalakuma Murikapi Mataya Alua Ahi Unu Yanukú Jatapi Pulatu Kaukauxu

Cada oca é comunal, ou seja, pode abrigar em média quinze pessoas. A unidade doméstica dos povos xinguanos é geralmente composta por um ou dois núcleos familiares, sendo que o núcleo principal é liderado por um homem, considerado o dono da casa; por isso, o local onde as unidades familiares residem deve ser extenso, seguro e aconchegante. Pode haver mudanças quanto ao dono da casa, quando o sogro envelhece e o genro assume a organização e a construção da casa. A construção de uma casa xinguana é um trabalho penoso. Por isso os moradores podem solicitar à comunidade o trabalho coletivo, executado por parentes e amigos, que devem ser recompensados com dinheiro, presentes ou peixes. Todas as casas são estruturadas, construídas a partir de metades. Primeiramente constroem o lado esquerdo com a contribuição dos núcleos familiares do dono e, posteriormente, a direita é construída com a ajuda dos amigos homens. Estes grupos se revezam para buscar peixes para o mutirão. Normalmente os primos cruzados e os amigos solicitam por pagamento em dinheiro, alimentos ou aparelhos eletrônicos. Cabe ao dono combinar como vai ser o pagamento proporcional pelo serviço. Para obter segurança física, evitar o risco de as tempestades destruírem as casas, eles constroem estruturas de aproximadamente quatro varas fincadas em terreno de terra batida, cujas extremidades são amarradas na cumeeira com cipó, e as vigas são estruturadas para sustentar a camada de sapé. No topo, contam com um pequeno buraco acima da cobertura, permitindo a saída do ar quente e da fumaça. A altura é escolhida pelo dono da casa. Segundo medições de Heckenberger (2005: 257), na aldeia xinguana, o

29 comprimento das casas varia entre 11 e 35 metros, altura entre 3,4 e 7 metros, e largura entre 6 e 14 metros. As casas são cobertas de sapé, da parte mais alta da cumeeira até o chão, de modo que não conseguimos perceber a diferença entre parede e parte superior.

Fig. 4, 5 e 6 – Estrutura interna da casa

Cada casa possui duas entradas: uma em direção ao pátio, e a outra, para o fundo da casa. Os limites dos territórios da moradia são reconhecidos, mas não são rígidos a ponto de impossibilitar novas disposições espaciais. A casa não recebe reparos, e o tempo máximo de duração de uma casa é de dez anos; depois desse período, ela pode ser novamente edificada em outra área, escolhida pelo próprio dono da casa. Segundo o chefe Yahati, a construção pode levar de três a sete meses para ser concluída, dependendo do tamanho da casa e da quantidade de pessoas que ajudam na produção; sua estrutura se adapta perfeitamente às necessidades do clima tropical, mantendo-se fresca no verão e aquecida durante o inverno. Dentro de uma casa convencional xinguana, há a área da cozinha, o local destinado a depósito de alimentos e o espaço central, onde recebem as pessoas ou realizam as danças. Os moradores das casas comunais dormem em redes que são amarradas nos esteios das laterais em vigas de madeira. As casas são divididas em três partes: do lado direito, as redes da família do dono da casa, do outro lado instalam os filhos, genros e noras e os viúvos e separados e, por fim, a área próxima ao meio da casa, destinada aos visitantes, sendo um esteio para cada família nuclear. Basso (1973) afirma que idealmente uma casa

30 xinguana é dividida em dois espaços destinados a dois núcleos familiares distintos, duas metades, uma para cada família nuclear e eventuais irmãos do marido ou da esposa em cada uma delas, e esta divisão está associada a uma preferência dos homens Mehinako pela “constituição de seus grupos domésticos em parceria com algum cun hado obtido por meio da troca de irmãs” (1973:49). Em 2007 durante a minha pesquisa de campo, a aldeia Utawana possuía 12 casas, e pude encontrar apenas uma casa organizada de acordo com este padrão. Se os grupos domésticos fundados por dois cunhados foram mais regulares no passado dos Mehinako, atualmente predomina a modalidade de organização dos grupos domésticos, que enfatizam mais relações entre afins doadores e receptores.

Fig. 7 e 8 - A disposição das redes dentro da casa

As redes são penduradas nas traves, deixando o espaço central próximo das portas para a circulação. E perto das portas, o local em que tem bastante luz, as mulheres se sentam para realizar as atividades manuais. Durante a noite, as portas de madeira das casas são fechadas com trancas de madeira ou cadeados, os cachorros ficam de prontidão e latem quando escutam algum barulho; as fogueiras são acesas abaixo das redes, principalmente nas noites frias, para manter a temperatura interna morna.

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Através dos focos de fogo, é possível identificar as unidades familiares, pois cada família acende a sua própria fogueira. No interior das casas não há nenhuma parede ou divisória aparente, o único limite que pode ser variável são as paredes criadas para as reclusões dos jovens em puberdade.

Parentesco O sistema de parentesco Mehinako compartilha as diversas características dos demais grupos da região xinguana já levantadas pela etnologia, baseia-se em regras de casamento preferencial com primos cruzados bilaterais e residência uxorilocal temporária dentro de seu próprio grupo Mehinako. Contudo, as regras de parentesco se adaptam de acordo com as circunstâncias, de modo que outras formas têm prevalecido atualmente, permitindo que aquele que não encontre parceiros entre os primos cruzados também possa se casar dentro ou fora da aldeia. Isto torna possível que um Mehinako, filho do chefe, atraia sua esposa de outra aldeia para residir em sua casa paterna, quebrando a regra de uxorilocalidade. Existem casos de mulheres que foram morar na casa dos pais do marido, o que pode ocorrer quando se trata dos casamentos de filhos homens de chefes. Os casamentos de filhos de chefes e pessoas com prestígio apontam para alianças com grupos mais distantes, como o caso de uma das filhas mais bonitas do chefe Mehinako Yahati, que se casou com um importante líder Matipu. Saindo das fronteiras da aldeia, os casamentos mais regulares ocorrem com, os Wauja, Yawalapiti e Aweti, e o motivo mais ressaltado é a proximidade linguistica e espacial entre estes grupos. Por exemplo, o atual chefe da aldeia, o Yahati viveu muitos anos na aldeia Aweti, prestando serviço para o sogro. Após o falecimento dos pais da esposa, o casal e os filhos se mudaram para a aldeia Mehinako, para morar temporariamente com seus próprios pais, até a construção de sua própria casa. O homem Mehinako, após o matrimônio, deve trabalhar para prover o sustento da esposa, dos filhos e do sogro, ele movimenta a atividade de subsistência da casa. O casamento gera obrigações econômicas, o genro deve pescar o melhor peixe e fornecer a melhor caça para o seu sogro, além do que eles não podem compartilhar os mesmos

32 objetos, não podem pescar juntos, o recém-casado nunca deve pronunciar o nome do pai, mãe ou dos irmãos da esposa, ou seja, estes parentes afins devem ser sempre muito respeitados (amunapátapai) e evitados. Segundo Gordon (2006: 86 ), “ essa assimetria de gênero é que estrutura o padrão de residência uxorilocal, à medida que o controle dos pais sobre suas filhas torna- se instrumento do controle do sogro sob re o genro”. Após cumprir este período de contribuição com os afins, o casal com seus filhos constroem uma nova casa, relativamente autônoma e gradualmente autosuficiente enquanto ainda moram com os pais. Quando um novo núcleo familiar é constituído, os afins (sogro e sogra) da noiva levam a rede do noivo para a sua casa e anunciam a união para a comunidade; a partir desse momento, o casamento implica cooperação mútua e constante entre ambos, seja no âmbito da produção ou no fluxo dos alimentos ( epetei ). O casal dorme em redes contíguas, tomam banho de rio juntos todos os dias, compartilham objetos (vasilhas, armários, cobertores), alimentos e roça. “A representação básica da relação é que o casal permuta o trabalho da ca ça pelo cozimento do alimento” (Fausto, 2001: 203). É importante deixar claro que cada núcleo familiar tem suas próprias roças desde antes do matrimônio. Isto implica que após a união do casal, o marido, além de ajudar na roça dos pais de sua esposa, trabalha na roça do próprio casal e, quando necessário, ele ainda continua contribuindo na roça de seus outros parentes. Quando sua roça se torna suficiente para sustentar toda a família nuclear do casal, ele para de cooperar na roça dos pais da esposa e aplica-se exclusivamente a sua própria roça. Mas a colheita da mandioca brava, apesar de ser propriedade somente do casal, é dividida por todos da unidade doméstica em que moram. É extremamente comum que os homens alternem os afazeres cotidianos. Em muitas situações, alguns terminam de fazer uma casa, enquanto outros pescam ou fazem trabalhos manuais – algo que acontece quase todos os dias de maneira espontânea. As mulheres costumam ir todos os dias para as suas roças e trabalham no processamento da mandioca brava trazida no dia anterior. À tarde costumam ferver o mingau feito do suco venenoso da mandioca.

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A unidade doméstica dos Mehinako é geralmente composta por dois núcleos familiares extensos virilocais em cada casa, na qual moram os pais e irmãos com suas respectivas esposas. O núcleo principal é liderado por um homem considerado o dono da casa, por tê-la construído. O chefe da unidade doméstica é responsável pela organização das atividades produtivas e outras tarefas cotidianas que contam com a participação de todos os moradores da casa. Cada núcleo familiar é composto por um casal e seus filhos solteiros, normalmente ainda crianças. Além disso, cabe notar que para as relações produtivas e rituais, um grupo doméstico pode solicitar suporte para aldeias de diferentes etnias. Por exemplo, homens que realizam grandes rituais de máscaras podem convocar parentes nas outras aldeias. Na aldeia Utawana, a separação não é algo raro, quando o marido ou a esposa pertence a outro grupo étnico ou quando o casal não consegue ter filhos, normalmente a esposa joga a rede do esposo para fora da casa, um ato que pressupõe o fim da união.

Fig. 9 – Família do chefe Yahati e eu

Sistema de nominação Entre os Mehinako, há um sistema de nominação que prevê a transmissão bilateral de nomes dos avôs para os netos. Assim, é necessário que as pessoas tenham diversos nomes ao longo da vida para que possuam nomes suficientes para batizar seus futuros netos. Cada Mehinako possui pelo menos dois nomes, que pode ser herdado por linha paterna, mas também pela

34 linha do tio materno ao filho da irmã. Desta forma, os pais se referem aos filhos por um dos nomes de seus próprios pais, considerando que de acordo com as regras sociais xinguanas, existe a proibição de pronunciar os nomes de seus sogros e sogras. Os pais não podem, portanto, pronunciar os nomes dos pais das pessoas com quem se casaram. As pessoas mudam seus nomes normalmente nos eventos importantes que representam uma situação de transição, por exemplo, a cura de doenças graves, a morte de um ente querido, o nascimento de filhos e netos, a passagem para a fase adulta ou o matrimônio.

Chefes Entre os Mehinako, assim como na maioria dos xinguanos, há dois chefes: o primeiro, denominado cacique, dono da aldeia ou capitão, considerado o conhecedor da cultura, dos mitos, das músicas e da produção dos objetos, representa o grupo nas cerimônias com outras etnias, discursa na casa dos homens, aconselha as pessoas que estão precisando de ajuda e recebe os mensageiros; o segundo, denominado pajé ou yatamã, considerado o mais relacionado ao mundo dos apapayêi, das ervas medicinais e das curas, necessariamente é conhecedor do português, podendo representar a comunidade junto dos caraíbas, sendo uma espécie de “embaixador ” (Ireland, 2001), “dono dos espaços públicos” ou “aquele que toma conta do grupo” (Viveiros de Castro, 1977). Na aldeia Utawana atual, o chefe é Yahati, enquanto o pajé é Tukuyari. A chefia é um cargo transmitido hereditariamente, preferencialmente ao filho primogênito ou neto pela linhagem paterna de um chefe. No entanto, este cargo depende não apenas da hereditariedade, mas também das qualificações pessoais do herdeiro, cuja personalidade deve ser adequada para a chefia. As características do candidato a chefe devem ser de uma pessoa sábia, que fala diariamente com a comunidade, sensata, calma, de poucas e boas palavras, hábil e generosa nas trocas. Além disso, o chefe deve ser conhecedor de todos os detalhes que constituem os principais rituais, e também, preferencialmente, ser um especialista na arte das máscaras e ter sido campeão de luta corporal, huka huka. Michael Heckenberger (2001) afirma que, além das habilidades, o chefe é tratado como ancestral comum –

35 descendente direto dos heróis e fundadores e conexão destes com os homens atuais –, o que teria por efeito a fixação das distinções hierárquicas. Há a possibilidade de que este status possa ser transmitido a um não descendente do chefe – o irmão de chefe, filho do irmão do chefe e o filho não primogênito de um chefe caso este seja habilitado, mas tal escolha pode gerar descontentamento, conflitos, surgimento de facções e fragmentações dentro da aldeia por muitas gerações. Na aldeia Utawana, o chefe considerado forte é o filho primogênito de um antigo chefe coletivamente reconhecido, enquanto o pequeno chefe é herdeiro de outras maneiras. Esta não á a situação atual da chefia entre os Mehinako. A maioria está muito satisfeita com os dois chefes atuais. O cacique é filho primogênito do antigo cacique, mas seu primeiro filho não quer continuar a liderança. Sendo assim, Yahati pode escolher o filho do irmão mais novo, jovem que representa os Mehinako no contato com os brancos e está sendo preparado para assumir a chefia, visto que o filho primogênito, Makaulaka, passa a maior parte do tempo fora da aldeia, fazendo curso de pós-graduação. Ele é o professor da comunidade e prefere ficar muitos meses na cidade. O filho do irmão mais novo de Yahati é conhecedor dos instrumentos, conhece muito bem a mitologia e os rituais, tem carisma e é considerado um verdadeiro campeão de luta. Desta forma, não pode haver desconforto, tanto por parte dos descendentes do Yahati quanto dos habitantes da aldeia Utawana. De modo geral, o que vemos é que o sistema de parentesco local permite certa flexibilidade para as sucessões dos chefes, sempre acompanhadas das relações faccionais. Em 2003, um feitiço do chefe da aldeia Mehinako mais antiga foi lançado sobre uma mulher idosa, mãe do chefe da aldeia Utawana, que veio a falecer em virtude de tal ato de feitiçaria; Kulykurda disse que aos poucos a avó foi emagrecendo, até que um dia ela amanheceu morta em sua rede. Ellen Basso (1973) utiliza a palavra facção para descrever as relações desiguais de influência. Apesar de os Mehinako terem parentes e afins na aldeia antiga, que os ajudam em ocasiões variadas, também exitem casos de disputa de prestígio entre os chefes. Segundo Yahati, quando eles viviam na outra aldeia havia quatro homens considerados chefes em funções distintas, dos quais dois não foram considerados bons chefes, pois não cumpriam suas

36 obrigações. Quando um dos chefes patrocinava algum ritual de apapayêi, os outros não ajudavam, e, assim, iniciaram-se os conflitos e as acusações de feitiçaria.

Competições O futebol ocupa uma posição de centralidade nas aldeias xinguanas: trata-se do esporte mais praticado em todo o Xingu, tanto entre homens quanto entre mulheres. Praticamente todas as tardes há competição entre grupos, mesmo nos dias de chuva, e aos domingos e feriados há torneios intertribais no Posto Leonardo Vilas Boas, com juízes, técnicos, uniforme, chuteiras, bolas, intervalos com água. Assisti a um tornei que ocorreu na cidade de Gaúcha do Norte, entre grupos do Alto Xingu e caraíbas da cidade, os Mehinako ganharam a competição. Intercalaram o intervalo dos jogos com trocas de objetos e danças típicas. Estes eventos geram interação social entre os Mehinako, outros grupos indígenas e, nos torneios nas cidades, dos grupos xinguanos com não- indígenas. Joga-se futebol na mesma praça central da aldeia. O interesse por práticas esportivas que utilizam a bola tem origem antiga. Os Mehinako lembram que havia um jogo de bola denominado Yietulaga, em que utilizavam uma bola confeccionada com mangaba.

Fig. 10 - Torneio de futebol

Na luta Kapin, há um confronto físico entre dois grupos, a regra da luta é agarrar a coxa do adversário para derrubá-lo, ganhando assim a partida. Antes

37 de começar a luta, os participantes passam óleo de pequi em todo o corpo, para evitar que o adversário derrube-os com facilidade, e protegem os joelhos com fios de barbante para impedir que machuquem nas quedas. Nesta luta, nunca acontece de apenas um participante se destacar, na maioria das vezes, há inúmeros vencedores, representantes de uma mesma faixa etária. Os lutadores veteranos ensinam os mais novos. Alguns meses antes de acontecer a festa do Kuarup (Kayumai), os Mehinako treinam todas as tardes para acentuar a musculatura e para obter mais fôlego durante as competições. Nesse período, os lutadores utilizam o arranhador, um instrumento para raspar a pele do corpo, em seguida, passam uma substância feita de raiz e planta para cicatrização. Os Mehinako garantem que o apapayêi da raiz fortalece os lutadores. Os jovens adquirem prestígio na comunidade e em toda a região do Xingu quando demonstram serem bons lutadores.

Aspectos gerais da aldeia Utawana Além da praça central e da casa dos homens, existem dois lugares que são compartilhados na aldeia Utawana: a escola e a farmácia, que estão localizadas no entorno da praça central. Os professores ou agentes de saúde são de faixa etária variando de 18 a 50 anos, em sua maioria do sexo masculino. A seleção para as vagas de agentes de saúde e professores é feita pela própria comunidade. “Os chefes, os pajés e outras lideranças em geral indicam seus filhos ou parentes para serem formados na área da saúde ou educação” (Mendonça, 2005: 235). Os que são escolhidos e aceitam o cargo fazem cursos constantes de formação profissionalizante; são remunerados todos os meses para cumprir as obrigações que o cargo exige. Os membros das comunidades estão percebendo a importância de trabalhar em funções ligadas à interlocução de suas comunidades com o mundo fora da aldeia. O trabalho dos agentes de saúde colabora com os mecanismos simples de prevenção aos riscos de doenças, em geral através da conscientização da população ou fornecendo os remédios receitados pelos médicos. Eles são os responsáveis pela farmácia, trancam a porta do local com

38 cadeado, sendo, assim, os únicos que tem acesso e fornecem os remédios alopáticos aos membros da comunidade. Os agentes de saúde respeitam as curas xamanísticas; normalmente, a consulta a um xamã é o primeiro passo para identificar se a doença é de caraíba ou feitiçaria; depois do reconhecimento, o doente é direcionado pelo agente de saúde para o tratamento compatível com a doença, que pode ser de espírito, de caraíba e, em alguns casos, os dois. Kulykurda, um dos agentes de saúde da aldeia Utawana, afirmou que quando o doente não tem bens materiais ou dinheiro para pagar o xamã, ele é diretamente encaminhado para o médico do serviço público de saúde. Já na escola da aldeia, os professores são indígenas. Em geral, são capacitados por membros das secretarias de ensino através de minicursos que dizem respeito a temas diversos ou metodologias pedagógicas. O selecionado para a vaga de professor deve ser responsável pela mediação de sua comunidade com o mundo dos caraíbas. A escola está sempre localizada dentro da aldeia, próxima à entrada principal. O ensino visa valorizar o conhecimento tradicional. Eles falam a língua materna e, algumas vezes, a segunda língua da comunidade; produzem o material didático na sua própria língua; organizam e planejam o conteúdo, calendários próprios e avaliações. Alguns alunos vão à escola de bicicleta, o principal meio de transporte interno, usado para circular nos arredores da aldeia, buscar sapé, madeira e caçar macaco. O barco é a locomoção que atravessa o rio, transporta as pessoas da aldeia para um barranco onde está guardado o carro Toyota, que leva as pessoas até a cidade.

Fig 11 - Pessoas chegando em Utawana

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Os caminhos As trilhas são uma rede intricada de comunicação, que ramificam diversas trilhas para outros locais, roça de mandioca, locais específicos para defecar, pomares de pequi, rios, lagos e lagoas. Os caminhos criados pelos moradores das aldeias surgiram, provavelmente, como consequência direta dos fluxos migratórios dos grupos indígenas em busca de alimentação. Atualmente, eles ainda são utilizados para as trocas culturais e de objetos entre os povos, acesso aos postos de atendimento e às caças. Os indígenas assimilaram esses caminhos aperfeiçoando o traçado de algumas trilhas, quando permanece o interesse da comunidade em seguir determinada rota, enquanto outras não são bem cuidadas, e, aos poucos, se tornam caminhos desativados. Há três trilhas principais: a entrada que liga a aldeia ao rio, de cerca de 900 metros, o caminho para as roças e para o local de pesca.

Fig 12 e 13 - Trilhas

O caminho principal sai da casa dos homens rumo ao leste, ramificando outros inúmeros caminhos de diversos tamanhos e rumos. Normalmente, os pontos de referência em uma trilha podem ser uma árvore grande, a intersecção de duas trilhas, os rios e lagos. O leque dos rios Kuluene, Batovi, Ronuro, interligados por um emaranhado de afluentes e lagoas, forma uma confluência denominada Morená, em língua Kamayurá. A junção destes rios em apenas um ponto, passou a ser reconhecida pelos índios que habitam o Alto Xingu como o centro do mundo, o exato lugar onde segundo acreditam, ocorreu o procedimento de criação do mundo e dos primeiros seres humanos e animais. Segundo o mito contado pelos Kamayurá e descrito pelos irmãos Villas Boas (1970:49), “no

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Morená - o centro do mundo - residira Mavutsinin, o personagem que criou a mãe dos heróis gêmeos – Sol e Lua – e que distribuiu, numa das praias do lugar, os vários tipos de armas que os homens hoje utilizam e os distinguem entre si” (Villas Boas, 1970:49).

Alimentos Cabe às mulheres se encarregarem da roça e do preparo dos alimentos, “elas são ch amadas de donas da cozinha “wakula weketu ” (Gregor, 1982: 254) ”, pois elas são as responsáveis pelo processamento da mandioca. A agricultura é a base da alimentação Mehinako. Os dois principais produtos da roça são mandioca brava e o milho. Mas, incontestavelmente, a mandioca ocupa um lugar de proeminência na alimentação da comunidade. Ela é consumida sob a forma de mingau, suco da mandioca fervido, chamado de perereba, e beiju, polvilho assado em tachos.

Fig. 14 e 15 - O beiju e a perereba

Eles também cultivam pequi, mangaba, pimenta, tabaco, urucum, jenipapo, banana, feijão, ingá, macaúba, sal de aguapé, este último cultivado na outra aldeia Mehinako , denominada Uwaipiwuru; alguns itens mencionados eles cultivam nas roças, enquanto outros eles plantam em pequena quantidade na aldeia. A produção da mandioca é lenta. Devido à pouca fertilidade do solo, é necessário um ano entre o plantio e a colheita da raiz, quando as mandiocas atingem aproximadamente vinte centímetros. Depois de arrancada a mandioca, inicia-se o ciclo de preparação do beiju. Ela é descascada, ralada em raladores específicos, os pequenos

41 fragmentos de mandioca são colocados em uma panela de barro de 60 litros; depois, é prensada em esteiras com as mãos, peneirada e secada no moquém, assada em tachos, por fim, consumida como beiju. A água da mandioca é extremamente venenosa, daí as diversas lavaduras que fazem na massa. A substância lavada vai ao fogo em enormes panelas de barro, a massa é fervida até obter coloração adequada. As meninas aprendem a preparar os alimentos desde muito cedo.

Fig. 16 - Menina preparando o beiju

Este alimento típico dos xinguanos adquire uma cor levemente amarelada, consistência fofa e macia, e é recheado com sal de aguapé, pimenta, peixe, macaco ou aves. O sal de aguapé é de fundamental importância para a alimentação dos Mehinako. Ele tem um alto teor de potássio, e é extraído das ramas das plantas aquáticas de aguapé. Oliveira descreve a extração desse tipo de sal vegetal.

As mulheres colhem certa quantidade de ramas de aguapé, que são postas a secar ao sol, quando já estão murchas, as ramas são colocadas em uma fogueira e são queimadas a pouco fogo e reduzidas a cinzas, estas são colocadas em coadores (tipo balaio), feitos de cipós e embiras, onde adicionam água às cinzas retirando delas uma solução forte de cor escura, que eles chamam de decorada. Logo depois de assentar essa substância no fundo do balaio, a “decorada” é levada a uma panela de barro, onde fervem até secar toda a

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água, deixando no fundo da pa nela o “sal” já apurado, pronto para o consumo humano (Oliveira, 2010:39). Os homens participam da atividade agrícola quando escolhem o local, que pode chegar a um raio de 5 km da aldeia: esburacam, abrem as roças e realizam a coivara (queimada). Eles utilizam mecanismos como o fogo, motos serra, enxadas, pau de cavar, facões, foices, estiletes e broca. Eles limpam, criam covas e plantam as ramas de mandioca para substituir as que foram colhidas pelas mulheres. Ou seja, elas colhem e transportam a mandioca, enquanto os homens replantam e abrem as roças. Quanto mais longe estas roças forem abertas, mais as mulheres terão dificuldades para transportar a mandioca em cima da cabeça, pois a carga pode chegar a pesar até 20 quilos. As crianças vão com os pais aprender a produzir o alimento, e muitas vezes ajudam as mães, tias ou irmãs com as cargas. Normalmente existe a preocupação com a distância das roças. Os maridos que pertencem ao mesmo grupo doméstico procuram abrir suas roças com certa proximidade uma da outra, plantam em uma mesma roça ou abrem atalhos de comunicação para interligar os parentes do mesmo núcleo familiar, pois as mulheres trabalham juntas e são de fundamental importância para o abastecimento do grupo. São elas que preparam e manipulam os alimentos (arrancam as raízes, carregam, ralam, espremem as mandiocas). A localização das roças insinua que fatores de idade, residência e parentesco ajudam a determinar a escolha de um lote. “Os homens mais velhos têm suas roças situadas mais perto da aldeia que os jovens, porque o encargo de carregar as cestas de mandioca é mais pesado para as esposas mais velhas”. (Gregor, 1982: 45). Lagrou (2007: 328) afirma que a comida é uma metáfora importante na socialidade: alguém que não compartilha comida sinaliza falta ou recusa de relação social. A roça comum ou próxima é um sinal de maior frequência nas trocas materiais e de alimentos. Comensalidade significa compartilhar e distribuir os alimentos comunitariamente. Carlos Fausto (2002) pesquisou os índios Parakanã e demonstra a importância da partilha de alimentos.

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(...) a partilha da carne e a comensalidade não apenas marcam as relações entre parentes, como as produzem. Comer “com” alguém e “como” alguém é um forte vetor de identidade, assim como se abster “por” ou “com” alguém (...), conduz à identificação com este alguém. A partilha do alimento e do código culinário fabrica, portanto, pessoas da mesma espécie. Aparecida Vilaça, que fez uma análise dos Wari, afirma que “aqueles que comem juntos (ou o mesmo tipo de comida) se assemelham de maneira análoga, a forma forte de se estabelecer a diferença é pela predação: aqueles que se comem são diferentes, ou se constituem assim por meio desse ato” (Vilaça, 2006: 96). Ela ainda complementa esse parágrafo, exemplificando esta relação de comensalidade da seguinte maneira:

Os Wari costumam se referir ao tipo de dieta para se diferenciarem dos demais índios, dos brancos e das espécies animais: eles comem milho, gongo etc, os brancos comem arroz, sal, açúcar, a onça come carne crua, a queixada come determinados frutos... Do mesmo modo, quando querem dizer que um xamã deixou de ser um tipo de animal para se tornar outro (para acompanhar outro, nos termos wari), dizem que ele deixou de comer tal coisa e passou a comer outra (idem, 2006:97). Entre os xinguanos, para compartilhar alimentos com os membros da comunidade e com os parentes, sustentar a família e casar, o primeiro passo é escolher um terreno. O homem na maioria das vezes, casado, começa a derrubada e a abertura de roças durante os meses de abril até junho. A roça é posta a secar e depois queimada nos meses de agosto e setembro, esperam- se os meses de novembro, dezembro e janeiro para que a chuva assente o solo para iniciar o plantio e a colheita. O homem que não compartilha e produz os alimentos não pode casar ou ter família. Neste caso ele é insultado como preguiçoso, sem futuro, sem valor. Os Mehinako da aldeia Utawana explicam através do mito da mandioca que antigamente eles não comiam mandioca, mas os demiurgos forneceram esse alimento para eles.

Antigamente, os Mehinako não comiam o beiju, alimento extraído da mandioca, a base da alimentação deles eram os cogumelos. Um dia, o sol estava em dúvida e perguntou para a lua: - Quem é o dono da mandioca? E a lua respondeu que era o porco ( auto), porque ele gosta de comer mandioca.

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O sol curioso perguntou para a lua: - Como você sabe que o dono da mandioca é o porco? E a lua respondeu: -Eu segui as formigas que carregavam um pouco de polvilho nas costas e consegui chegar até a aldeia do porco. Para comprovar que o porco era realmente o dono do polvilho de mandioca, o sol e a lua vestiram uma roupa de tatu para os porcos não reconhecerem os dois, e, assim, entraram na aldeia do porco, observaram as mandiocas e a produção do polvilho e pediram para o porco. - Você pode nos dar uma rama de mandioca? E o porco entregou a mandioca para eles. Sendo assim, a lua e o sol ganharam uma muda e plantaram no quintal.

Os macacos No período das chuvas, a partir de novembro, o rio sobe e, em função da escassez de alimentos, os Mehinako caçam as aves consideradas comestíveis, como o mutum vermelho (iúmu), o jacu (maláhi), o macuco, o pombo (uatápa), o azulona (ôpo). O tabu alimentar da carne de macaco está relacionado à cosmologia, pois alguns animais podem ser espíritos, ou seja, podem ter apapayêi. Os Mehinako acreditam que as pessoas que comem carne de caça ficam mais violentas. Porém, outros animais também muito apreciados na dieta alimentar Mehinako, em períodos chuvosos, são o macaco prego (páhi) (Viveiros de Castro, 1977) e as tartarugas tracajá.

Fig. 17 e 18 – Tracajá e os macacos

Com a escassez dos peixes, nas estações chuvosas, os homens muitas vezes saem para as expedições de caça de macacos prego e aves (esta

45 função é sempre masculina). A caça de macacos é um evento para um grupo de homens jovens e mais velhos, cunhados, primos cruzados ou germanos do sexo masculino. Sempre o caçador convida no mínimo um acompanhante, e geralmente este sujeito receberá sua parte da caça. Ao chegarem a um lugar determinado onde os macacos costumam se alimentar e procriar, eles procuram deixar uma garrafa de água e as bicicletas em um ponto de referência escolhido na mata, normalmente mais próximo da aldeia; em seguida, eles se distanciam aproximadamente dez quilômetros para caçar os macacos. Os caçadores devem tomar alguns cuidados quando partem para a caça. Por exemplo, nunca devem ir sozinhos, devem tomar muito cuidado com o gatilho da arma e nunca falar mal ou dizer palavrões para um macaco. Os Mehinako vêem essa prática como uma atividade perigosa. Barros (1998) que pesquisou os Bakairi, relata que cada animal tem um espírito que o acompanha e se manifesta quando os caçadores cometem excessos. Uma das mais frequentes conseqüências, quando ultrapassam o permitido na hora da caça, é quando perdem o caminho de volta para a aldeia, ou seja, ficam completamente perdidos na floresta. Lima (1996), em um artigo sobre a caça dos porcos entre os Juruna, localizados no Baixo Xingu, percebe que os caçadores querem impor o seu ponto de vista aos porcos, pois querem continuar sendo predadores, e os porcos procuram fazer o mesmo, pois a aplicabilidade de ser presa ou predador é variável. Ela ainda sugere que “ser animal, sujeito ou espírito é uma condição, sendo assim (...) pode ser uma forma de consciência do outrem” (p. 26). De acordo com Luciani (2001), a perspectiva (qualidade de sujeito) é objeto de troca, ou seja, os animais e espíritos são definidos como humanos potenciais, aqueles que têm acesso a um ponto de vista. Neste caso, os porcos caçados pelos Juruna e os macacos que são caçados pelos Mehinako possuem uma perspectiva, ou seja, se vêem como sujeitos, pois querem que seu ponto de vista se sobressaia. Vilaça (1998) e Lima (1996) explicam que para impedir que um caçador possa perder o sentido, os humanos utilizam-se de meios específicos através dos quais pretendem impedir toda a possibilidade de os macacos virem a impor seu ponto de vista.

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O contexto “sobrenatural” típico no mundo ameríndio é o encontro, na floresta, entre um homem – sempre sozinho- e um ser que, visto primeiramente como um mero animal ou uma pessoa, revela-se como um espírito ou um morto, e fala com o homem. Esses encontros podem ser letais para o interlocutor, que, subjugado pela subjetividade não humana, passa para o lado dela, transformando-se em um ser da mesma espécie que o locutor: morto, espírito ou animal. Quem responde a um “tu” dito por um não humano aceita a condição de ser sua segunda pessoa, e ao assumir por sua vez a posição de eu já o fará como um não humano. A forma canônica desses encontros sobrenaturais consiste, assim, em intuir subitamente que o outro é humano, entenda-se, que ele é humano, o que desumaniza e aliena automaticamente o interlocutor, transformado em presa, isto é, em animal (Vilaça, 1998: 24). Lima (1996) ainda complementa o argumento dizendo que o maior receio dos Juruna seria essa inversão de perspectiva. Esse é o grande receio e perigo da mata. Os Mehinako afirmam que percebem a inversão do ponto de vista quando estão ficando tontos e, assim, podem perder o caminho de casa. Soube, recentemente, que os Mehinako estão criando galinhas em gaiolas e as alimentando com ração. Ao perguntar para um Mehinako por que a carne de galinha pode ser incluída na alimentação e as carnes de anta e de veado são proibidas, ele me respondeu que não tem carnes de caraíba na mata ou nos lugares onde os apapayêi habitam, assim, não é possível confundir, ou seja, nunca a carne de galinha vai ter apapayêi, enquanto as carnes de caça podem conter.

O peixe e o sangue As relações sociais entre os Mehinako parecem conduzidas sempre entre duas situações marcadas pela fartura e escassez de alimento, período de chuva e de seca, grande quantidade de peixe e macaco. Na estação seca, quando os rios baixam, a pesca preenche grande parte da dieta alimentar, sendo a principal fonte proteica dos Mehinako. Os pescadores utilizam redes, flechas, anzóis, linhas de nylon e timbó (cipó que asfixia os peixes) para capturar esse tipo de alimento. Nos meses chuvosos eles utilizam o timbó e as redes como mecanismo de pesca, nos outros períodos, utilizam arco, flecha e linhas de nylon. A pesca pode ser individual, quando utilizados o arco e a flecha, ou coletiva, quando usam o timbó. Amassam o cipó timbó na água represada para soltar a seiva despejada na

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água do rio. Os peixes ficam desalentados, desta forma conseguem ser facilmente serem capturados. Por fim, os Mehinako armam uns painéis com varinhas e os penduram para melhor transportá-los para Utawana. Os peixes capturados nas pescarias individuais são cozidos na casa da família por uma mulher. Assar o peixe pode ser função também dos homens, pois implica buscar as varas no mato e produzir um jirau. Quando um homem Mehinako traz peixes crus para a aldeia, eles serão distribuídos (já cozidos ou moqueados) aos que permaneceram na casa enquanto ele pescava. As mulheres elaboram, distribuem e servem a refeição pronta para ser consumida.

Fig. 19 e 20 – Peixe cozido e moqueado

Os peixes são cozidos com água nas grandes panelas de cerâmica, de aproximadamente 60 litros, ou assados nas grelhas. Eles são servidos aos convidados, que se sentam nos bancos de madeira distribuídos pela casa. Normalmente, os Mehinako comem o beiju recheado com pedaços de peixe, temperado com sal de aguapé e pimenta ou ainda comem sem recheio, dentro das cuias (cabaças). A distribuição do peixe acontece, nestas refeições, entre os parentes mais próximos e, algumas vezes, incluindo alguns conhecidos. Os Mehinako comem o beiju e tomam o mingau de mandioca sempre que sentem fome ou sede, pois os horários das refeições não são rigorosos ou estabelecidos.

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Os Yawalapiti, da famíla aruak, estão localizados bem próximos dos Mehinako e falam a mesma língua; eles consideram que o cará (yatakúlu) é o xamã dos peixes; o peixe cachorra, o chefe, e o jacaré, o dono desses animais. (Viveiros de Castro, 2002: 53). Os Mehinako contam nos mitos estas mesmas identificações para esses animais. Algumas espécies de peixe são motivos de restrições alimentares. Por exemplo, as crianças não poderiam comer o peixe acará (kujâma) e o mussum (uápu), pois elas podem ficar com os cabelos brancos quando envelhecerem. Outras espécies, apenas os mais velhos podem degustar, como o piau dourado (auêko); e os bebês não podem comer peixes grandes, como a pirarara e o jaú (kupáti), pois estes podem lhes fazer mal. Não é permitido às mulheres comer peixes no período menstrual. Elas devem ficar afastadas e não devem preparar ou tocar neste tipo de alimento nesta época. As mulheres menstruadas não podem conversar com pessoas do sexo oposto, não podem tomar banho no rio antes deles; não podem dormir ao lado de um homem. Essas atitudes poderiam aproximar os espíritos dos homens e provocar mal-estar. A mulher que não respeita essas regras pode ficar com o ventre saliente, “mexeriqueira” e brava. Viveiros de Castro (2002: 54,55), que estudou os índios Yawalapiti, também falantes da família aruak, explica que, para estes, os peixes têm cheiro de ahi (o mesmo cheiro de sexo, jenipapo e sangue); este tipo de substância possui “flechas” e pode causar doenças em perío dos de transformação do corpo. Por isso, as mulheres menstruadas evitam essa substância, já que o excesso de ahi (os peixes possuem grande quantidade de sangue ou cheiro de sangue) causaria coagulação da substância no ventre. Viveiros de Castro (2002: 58) ainda completa a análise sobre a restrição alimentar, afirmando que adolescentes reclusos, mulheres menstruadas, casais em resguardo do parto, e doentes, evitam o ato sexual, consumir peixe e realizar algumas atividades cotidianas (derrubar árvores, fazer trabalhos cansativos, produzir objetos, aplicar pintura corporal) nestas ocasiões. O autor

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(2002: 59) sugere, ainda, que o antônimo do peixe são os eméticos (ataya), Para Carlos Fausto (2001), os eméticos 1 são utilizados para provocar leveza. No grupo Mehinako, as cautelas visam expulsar o sangue quando as mulheres estão menstruadas, evitar o excesso desta substância dentro do corpo. Eles complementam essa expulsão de “ ahí” do ventre com as escarificações, ou seja, produzem pequenas incisões simultâneas e superficiais na pele com um sarjador (piá), isto é, um pedaço triangular de cuia, onde são embutidos dentes de peixe-cachorro próximos ao topo e fixados atrás por meio de uma massa de cera. As escarificações podem ser uma prática de fabricação do corpo (Viveiros de Castro, 1977:67), utilizadas nos períodos em que ele se transforma e amadurece; esta prática é muito usada entre os Mehinako, para diminuir o cansaço nas pernas (evitar o acúmulo do sangue na perna), evitar varizes, fortalecer o corpo e diminuir o excesso de sangue no ventre. Restrições, alimentos e atividades cotidianas são seguidas pelos pais da criança recém-nascida no couvade, ou pelos reclusos. Devem fazer parte do processo de transformação do corpo do recém-nascido ou do púbere, duas situações em que os corpos estão passando por um processo de amadurecimento; neste caso, se as restrições não forem acatadas, poderão perder a alma que se encontra frágil nestes momentos de transição.

O cotidiano No cotidiano, os espaços de sociabilidade são cinco unidades comuns para ambos os sexos: casas permanentes, roças, praça, rio e campo de futebol. A caça, a pesca, o preparo das roças, a replantação das ramas de mandioca, as atividades políticas e a feitura de alguns objetos, como arco e flecha, banco, cesta, máscaras, roupas das máscaras, alua (morcego de madeira), pá de beiju, zunidor (peixe), colar de caramujo, canoa, remo e cerâmicas, são trabalhos masculinos, enquanto o plantio, colheita, preparo dos alimentos, limpeza da casa e a produção de alguns objetos, como a cerâmica, cesta de pesca, redes, colares de miçanga e uluri, ficam a cargo das mulheres.

1 As substâncias eméticas são ervas que induzem o vômito e retiram os excessos e as substâncias pesadas ou estragadas.

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Os Mehinako acordam cedo, a maioria das famílias já foi tomar banho de rio e está se preparando para trabalhar na roça ou pescar às cinco da manhã. Os horários para se banhar no rio Kurisevo são relativamente determinados na aldeia, os mais velhos são os primeiros, depois os casados e, por último, os mais jovens. Eles se comunicam através de assobios, imitando o canto de pássaros para chamar os amigos, primos, cunhados e os membros da mesma faixa etária para tomar banho. As famílias tomam mingau logo quando acordam, alguns vão para o posto indígena, outros pescam, alguns caçam e as mulheres vão para a roça. As mulheres Mehinako passam em média 2 horas por dia nas roças. Durante a fase de crescimento da mandioca são realizadas as carpidas, com os mesmos instrumentos do cultivo, e quando a mandioca atinge idade acima de um ano, são feitas as colheitas. Elas retornam a casa por volta das dez horas da manhã para preparar o beiju e o mingau, recolher lenha, fazer objetos para a venda e limpar a casa. Os homens que não saíram para pescar ou caçar e as mulheres permanecem dentro das casas até o sol se pôr. O intenso calor da tarde começa a abrandar às cinco horas, e o entardecer é o ponto mais elevado da sociabilidade tribal. As crianças brincam de pular no rio, levam e trazem os recados, carregam os irmãos mais novos no colo ou vão à escola. Quando os caçadores e pescadores chegam com a refeição noturna, as famílias ficam alvoroçadas, os jovens (mulheres e homens) jogam futebol em campos distintos, mulheres sentam na porta da frente das casas para observar o movimento da aldeia, tiram fotos digitais, conversam e penteiam os cabelos. Vão-se então banhar novamente em ordem relativamente determinada, enquanto as mulheres preparam os alimentos no terreiro do fundo das casas e alguns homens se encontram na casa dos homens para tocar flautas. Aguardam o anoitecer conversando nas portas das casas; por volta das oito horas da noite, os únicos pontos de luz que iluminam a aldeia são as lanternas individuais. Ainda assistem alguns minutos à televisão, abastecida com geradores e, aos poucos, o movimento chega ao fim.

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CAPÍTULO 2 - Os apapayêi e os objetos

As festas promovidas para os apapayêi geram um grande número de objetos. De acordo com Franchetto (1996), Basso (1985) e Barcelos Neto (2008), os apapayêi não são fantasmas, mas seriam entes sobrenaturais dotados de excessos, seres monstruosos ou superseres que habitam esta e outras ordens cósmicas, aparentam não estar presentes em nosso mundo, mas os pajés conseguem visualizá-los e eles estão em todos os lugares escuros, no fundo dos rios, embaixo da terra. Desta forma, eles não habitam uma natureza distinta da nossa. Os apapayêi são providos de pontos de vista, frustrações e desejos e, sobretudo, se relacionam com os Mehinako através de mecanismos patogênicos. Porém, pelo menos entre os Mehinako, quase sempre percebemos o uso da palavra apapayêi para generalizar as diversas espécies de espíritos: atuxuá, yakuitxatu (espírito do mato), weyekuitxumã (espírito cabeçudo), ewexu (espírito da ariranha), alua (espírito do morcego).

Fig. 21- Apapayêi morcego e o urubu rei (desenho de Kulykurda)

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Neste capítulo, mostraremos que segundo os Mehinako, os apapayêi fundam uma série de negociações e alianças com os humanos detentores dos recursos materiais. No entanto, a cosmologia Mehinako apresenta o mundo dos apapayêi como denotantes da própria natureza. O objeto aparece como um dos lados da articulação entre mito, performance, música, e ritual. Todos esses elementos funcionam como uma espécie de ponte ao mundo dos apapayêi. Abordaremos os objetos produzidos para ou durante o ritual no último capítulo, parte da tese que se complementará com esta introdução à cosmologia Mehinako. Podem ocorrer duas situações em uma aliança entre humanos e apapayêi. Na primeira, o indivíduo pode perder sua alma, a yakulapi, e, neste caso, o acordo de mutualidade deverá ser desfeito, ou seja, a morte encerra qualquer possibilidade de troca de conhecimento, alimentos cozidos e produções materiais ou musicais. A alma somente pode ser capturada pelos apapayêi, e isto pode ocorrer muitas vezes ao longo da vida. Esta relação de negociação, o processo de roubo e devolução da alma, mantém o ciclo de festas e trocas de objetos e de alimentos. Na segunda situação, a doença pode ser um mecanismo de encontro com os apapayêi, estado ideal para a negociação com os espíritos que provocam alguns sintomas patológicos. Ao adoecer, o indivíduo pode ter sido afetado pelo apapayêi ou por um feiticeiro. Apresentaremos os vários vínculos que ocorrem nos rituais cosmológicos, as relações com os objetos, as relações entre homens e mulheres e a política, ressaltando, sobretudo, questões como a necessidade de domínio do desejo, a intensificação ou a ruptura da reciprocidade entre seres humanos e entes sobrenaturais. O sistema ritual proporciona o diálogo e a partilha de elementos fundamentais na sociabilidade Mehinako. Sabe-se que não existem diferenciações particularizadas nas maneiras de interagir com seres humanos ou espíritos; nas duas realidades interligadas, eles utilizam os mesmos mecanismos de interatividade, ou seja, seres humanos e entes trocam objetos, compartilham alimentos, dançam, cantam e sentem desejos. Os Mehinako afirmam que pode ser perigoso desejar aquilo que não é possível obter,

53 recorrendo constantemente ao controle dos estímulos de seus desejos para evitar, assim, a captura da alma pelos espíritos apapayêi. A estrutura cerimonial Mehinako, e também alto xinguana, está instituída em um emaranhado de relações recíprocas entre humanos, espíritos e animais que precedem o ritual e continuam após a finalização dele.

O yerupuhu e o apapayêi Um apapayêi pode desejar os objetos produzidos para o uso cotidiano ou cobiçar os alimentos cozidos aos quais não tem acesso, pois não há esses objetos e alimentos nos mundos subterrâneos, aquáticos e nas florestas. Nos tempos primevos, o fogo e os alimentos cozidos pertenciam aos apapayêi, mas o mito do surgimento da humanidade explica que o Sol e a Lua os retiraram, mesmo pertencendo originalmente aos espíritos, e os entregaram para os humanos. A realidade transcendente ultrapassa a imaginação dos mitos e sonhos e se transforma em um universo cosmológico que se materializa nas performances, nas músicas e nos objetos, conforme relata Maria Heloisa Fenélon Costa.

Os Mehinakú acreditam que houve outra humanidade anterior à nossa, que partilharia com os animais a superfície da terra: quando Sol e Lua nascem e por sua vez dão origem aos homens, a população mais antiga habituada à escuridão e ao frio abandona o mundo; eram eles miúdos, franzinos, não conheciam o fogo e não tinham meio de defesa contra as feras, contra a onça em especial que os dizimava. Os Ierebuhi (assim os chamam os Mehinakú) eram gente desarmada, passiva: “Antigamente não tinha sol, só escuro, tem morro, tem luzinha, não tem fogo. Menino, mulher, homem, senta assim, onça pega, come”. Um mito Kuikúro registrado pelos Villas Boas, Kanassa, refere-se a esta época de escuro e ao advento do sol e do fogo (1970:95-99). Existiria a idéia de que a uma falta de ordem, uma indefinição inicial em que os vários seres vivos não tinham ainda seus papéis no Mundo claramente delimitados- sucedeu uma ordem natural e social, simultânea à emergência da atual Humanidade. As versões conhecidas do mito de origem referem-se a antepassados remotos da humanidade atual – sem relacioná-los com a gente pequena, os Ierebuhi – os quais evidenciaram em diversas ocasiões características heterogêneas de animal e vegetal, podendo assumir também aspecto antropomórfico e conduta humana; ou apresentaria tais características de modo simultâneo, sendo tal heterogeneidade uma das marcas identificadoras do Papanê. Assim (resumindo uma versão do Schultz entre os Waurá), da união da filha do Jatobá com o Morcego surge kuamuti, um

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humanóide que esculpe e anima através da pajelança figuras femininas de madeira; duas delas casar-se-ão com o chefe das onças, uma engravida nascendo então os gêmeos Sol e Lua; estes criam a humanidade através de técnicas de pajelança, surgindo ela da transformação de flechas confeccionadas pelos próprios gêmeos, de matéria-prima vegetal (Fénelon Costa, 1988:28). Os Mehinako relataram, quando os visitei em 2008, que os demiurgos Sol e Lua produziram tipos de máscaras. Enquanto Sol usou o tucum, Lua usou a abóbora para quebrar as cerâmicas com água do avô Kuamutã, foi assim que surgiram os rios. Um peixe, que era yerupuhu, denominado kukihitsumã foi o responsável pela morte de um dos gêmeos, Lua. Para resgatar o irmão, Sol matou o peixe e conseguiu retirar Lua da barriga do espírito. Só o esqueleto de Lua estava na barriga do peixe grande, mas o Sol fez pajelança, convocou inúmeros espíritos e conseguiu recuperar a alma do irmão. Sol prometeu vingança a todos os yerupuhu, quando percebeu que o irmão estava morto. No mundo viviam os yerupuhu (os espíritos), os Ierebuhi (humanos). Enquanto os yerupuhu eram os detentores de todos os recursos, os humanos, os Ierebuhi, eram seres franzinos, brancos, vulneráveis, sensíveis, que se alimentavam de fezes e bebiam urina e viviam no subsolo, ou seja, eram presas fáceis para as onças e o Kuamutui, o avô, Sol e Lua, criador de todos os seres. O demiurgo Sol conseguiu vingar a morte do irmão, trazendo a luz para o mundo dos yerupuhu. Estas criaturas não suportam a claridade, por isso tiveram que produzir máscaras de pena de , zunidores, flautas, panelas, canoas, raposas, insetos, beija-flores, onças, e, assim, metamorfosearam-se em apapayêi. Aqueles espíritos yurupuhu que não usaram máscaras protetoras do Sol conseguiram fugir para o fundo dos rios, por isso teriam uma forma semelhante aos humanos do começo dos tempos, sendo, no entanto, franzinos, com longos e finos braços. Estes seres são de extrema importância para compreender os objetos indígenas, pois, de acordo com o mito, eles não fabricaram máscaras, mas criaram as flautas do Jakuí. Segundo os Mehinako, estas flautas funcionam como máscaras. De acordo com as explicações mitológicas, as máscaras e as flautas possuem uma origem similar, as duas atuam no processo de transformação dos yurupuhu em apapayêi. Em suma, aqueles apapayêi que não estavam utilizando máscaras ou flautas estavam,

55 provavelmente, camuflando-se no subsolo, no fundo do rio e nos brejos, para não ficarem expostos à luz. No entanto, quando querem aparecer para os humanos, utilizam inúmeros tipos de máscaras e flautas como instrumentos de proteção solar e transformação. Com o surgimento da Luz, estratégia de vingança do Sol contra os apapayêi, os homens passaram a ser os detentores do fogo, água e bens materiais. Os yerupuhu, transformados em apapayêi depois da criação das máscaras e das flautas de proteção antissol, passaram a interferir na vida dos humanos, atingindo-os com flechas em partes de seus corpos, com o intuito de lhes capturar as almas. “O ser humano é uma exceção notável, não tem mamaé 2, mas apenas sombra, alma, objeto de cobiça dos mamaé e ocasionalmente por eles furtada” (Junqueira, 2005:153). Notamos que “ter máscara”, “ter flauta” parece estar em homologia com o fato de “ter apapayêi”, “ter mamaé” ou “ter apapaatai”. Ou seja, nos rituais oferecidos aos apapayêi, os homens colocam máscaras e utilizam a flauta do jakui para conseguirem atingir um nível de semelhança e proximidade com espíritos. A alma, alimentos cozidos e objetos passaram a ser materiais utilizados nas negociações entre apapayêi e humanos. No entanto, a única maneira de evitar o roubo da alma ou adquiri-la de volta é através do ritual, através de cerimônias utilizadas para seduzir os apapayêi através de suas performances, danças, objetos, máscaras, instrumentos musicais e pinturas corporais e oferecimento de peixes, mingau, pimenta e beiju. Não obstante, os seres humanos podem ter um mau encontro, por isso devem estar preparados para conviver com o imprevisível. Por vezes, quando estão andando sozinhos na mata, identificam animais que poderiam ter intencionalidade patogênica, ou seja, qualquer animal pode ter apapayêi, pode estar vestindo máscara protetora da luz. Os espíritos possuem substâncias pretas e patogênicas em seu corpo que, ao atingir um humano, podem capturar sua alma. Os apapayêi são solitários, e essa solidão pode ser repudiante para

2 Os Kamayurá chamam os apapayê de mamaé.

56 os Mehinako. Dificilmente as pessoas que andam em grupo são surpreendidas por um apapayêi. A qualidade de feio dos apapayêi está vinculada à aparência peluda, esquisita, cabeça grande, orelhas grandes, escamas, rabos, dentes grandes, cabelos enrolados, barbatanas, chifres; eles alimentam-se de excrementos ou gordura, têm comportamento instável, aparência de canoa, animais, flautas, panelas, alternadamente, e, sobretudo, podem gerar doenças. Uma característica altamente significativa dos apapayêi é a capacidade de transformação que as máscaras lhes proporcionam. Carmem Junqueira explica que entre os Kamayurá existem os espíritos bons e outros considerados maus.

(...) Mas nem todos os mamaé são de boa índole e há os que enviam doenças e tormentos às pessoas. Os mamaé bons habitam objetos cerimoniais, como as flautas jakui e o zunidor, outros pertencem às águas, ao tabaco, à mandioca, ao pequi, ou ainda à gaivota, ao beija-flor, ao bem-te-vi, ao passarinho kapaié, a vários peixes, formiga saúva, jacaré, entre outros. Alguns dos bichos que têm mamaé ruim são: macaco guariba, porco do mato, veado de porte pequeno, peixe cará (krapitã), peixe etowi, peixe puirake e o beija-flor preto com lista branca (2005:152). De acordo com as informações passadas pelos Mehinako, pudemos identificar que os espíritos possuem características opostas às dos seres humanos: não possuem alma, estão em todos os lugares, foram forçados a deixar a superfície, onde hoje vivem os humanos, para se esconder em locais escuros; sobretudo, foram obrigados a abdicar dos recursos materiais e da convivência em sociedade. Maria Ignês Cruz Mello nos explica que os apapaatai, os espíritos dos Wauja, podem aparecer de inúmeras formas e jeitos, “esta categoria corresponde tanto aos seres invisíveis e temidos, que povoam o cosmo Wauja, como aos animais do mundo físico observável” (2004: 64). Alguns pesquisadores e alguns indígenas designam os apapayêi como bichos, monstros ou animais enormes. Um índio Mehinako relata que viu uma onça na entrada da Terra Indígena do Xingu, que tentou atacá-lo; pressupõe-se, no entanto, que ela teria apapayêi.

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O índio ainda explica que as onças que não possuem apapayêi nunca iriam atacar um ser humano. Entretanto, notamos que nem todos os animais são espíritos, apenas aqueles que atacam. “Se um animal exibe uma agressividade incomum, os Wauja não duvidam em identificá-lo como um apapaatai (...) um ser muito mais próximo do polo monstro do que do polo an imal” (Barcelos Neto , 2006:19). Vejamos um caso etnográfico dessa inter-relação entre humanos e apapayêi. Numa das vezes em que estive na aldeia Utawana, após uma tarde descascando mandioca, identificamos os passos de uma raposa que andava por aquelas redondezas durante a noite. Todas as mulheres estavam apreensivas e pediram para eu tomar cuidado, pois aquela raposa poderia ter apapayêi. Elas me aconselharam com as seguintes palavras: “se uma raposa tentar entrar na sua frente, você deve simplesmente ignorá-la, em hipótese alguma pode sair correndo ou se assustar, deve apenas pensar em alguma outra coisa e não encará-la”. Ou seja, se eu não me comportasse como as mulheres me aconselharam, a raposa poderia capturar a minha alma. A estratégia de ignorá- la seria a única maneira de me proteger. Entretanto, os Mehinako explicaram que a raposa poderia usar feitiço contra mim. Nota-se que a raposa pode deixar sua condição de animal para tomar a posição de apapayêi. Vale ressaltar que as raposas, entre elas, vêem-se como humanos. O perspectivismo presente nesses tipos de circunstâncias formuladas pelos Mehinako torna-se evidente, uma vez que o animal que as mulheres Mehinako estavam evitando pode ser um apapayêi com características físicas de uma raposa. A diferença é estabelecida pelas distinções de pontos de vista, juntamente com variedade corporal. Assim, a classificação ontológica dos seres no Alto Xingu em termos humanos/não humanos não corresponde com a lógica nativa. No contexto da vida dos xinguanos, todos os seres do cosmos são detentores de uma humanidade originária (Andrade, 2007). O atributo humanidade é então compartilhado por todos os seres diferenciados entre si por pontos de vista associados às diferenças entre os corpos. Em suma, a raposa pode ter três formas ontologicamente distintas, animal, humano e espírito – animal/presa do ponto de vista das onças, humana do seu próprio

58 ponto de vista, e apapayêi do meu ponto de vista, considerando que eu poderia ter sido vítima de seu feitiço. No entanto, conforme o ponto de vista estabelecido e com a implicação de sua variação, que é a transformação dos corpos e do modo de apreensão da alteridade, uma determinada entidade pode transitar entre as dimensões animal, humana e espiritual, podendo possuir ao mesmo tempo as qualidades dessas três categorias. Na língua aruak, o elemento que distingue os animais dos apapayêi é o sufixo – kumã, que serve para fazer as diferenciações. Um macaco no mato é Kapulu, enquanto o kapulukumã é um apapayêi. Os espíritos forçam uma reciprocidade com os humanos (Barcelos Neto, 2002); eles desejam compartilhar os bens materiais que lhes foram retirados, e por esse motivo roubam e enfraquecem a alma dos seres humanos para forçar a negociação cosmológica. É importante ressaltar que estes seres ainda convivem na mesma dimensão que os seres humanos. É necessário elaborar uma visão não dicotômica da realidade para se falar do mundo dos espíritos (Piedade, 2004). Em outras palavras, eles vivem na dimensão dos humanos, no mesmo mundo, mas desejam desesperadamente partilhar alimentos e elementos materiais com os humanos, sentem falta da interação com os seres humanos. Os apapayêi urubus recebem os Mehinako no momento da morte, e aos poucos estes mortos deixam de ter alma e começam a obter apapayêi.

A doença De acordo com os Mehinako, a ação predadora do apapayêi sobre os humanos ocorre sempre através de uma substância contagiosa de cor preta e textura de cera denominada iyalawû, que, a partir do lançamento de miniaturas de flechas, atinge partes do corpo do apapayêi e o interior do corpo da pessoa, deixando-a doente. José Antônio Kelly Luciani (2001) pesquisou os Wari e explica o processo de personitude fractal, que enfatiza o encerramento de pessoas inteiras em partes de pessoas, para, assim, gerar réplicas de relações entre “Eus” e “Outros” em diferentes escalas.

Do ponto de vista de uma teoria da troca, poder-se- ia propor ser a troca simbólica ou real de partes da pessoa o que permite atravessar o divisor canônico. A passagem é mediada por uma transação: o inimigo dá sempre uma parte de si mesmo (...). Um duplo jogo de metáfora e metonímia parece estar em ação:

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de um lado, partes do outro são incorporadas, o outro é um eu metafórico; de outro, partes de outras pessoas se tornam pessoas (2001:99). Neste caso, os apapayêi atingem os inimigos com partes do seu próprio corpo, para, assim, conseguir capturar a alma dos seres humanos, ou seja, uma troca de frações corporais. Os iyalawû, partes do corpo do apapayêi, são as flechas, ou seja, sua armaria cosmológica. Cada apapayêi é especialista em atingir o corpo da presa em determinada parte; normalmente, o ahira, beija-flor grande, atinge o ouvido direito. Para os Mehinako, o iyalawû, a substância maléfica de um espírito, é incorporada pela pessoa atingida e, assim, se transforma em doença quando entra em contato com o corpo humano. Como uma pessoa consegue sobreviver com inimigos dentro do corpo? Quando o alvo é atingido com as flechas, a vítima entra em processo de adoecimento. Compreende-se, entre os Mehinako, que a alma está sendo capturada progressivamente. No pensamento xinguano, quando uma pessoa está seriamente doente, sua alma é entregue aos espíritos. O ato de adoecer está vinculado ao excesso de proteção dos apapayêi. Os espíritos não sabem que estão causando doenças, eles querem proteger em excesso e acabam enfraquecendo a alma e provocando doenças. Desta forma, a morte representa a falha no processo de cura, consequência da realização definitiva desta captura da alma. Na cosmologia Mehinako, o vínculo entre humanos e apapayêi nunca pode ser quebrado, em decorrência de os humanos aparecerem sempre como alvo de destaque, e, assim, não poderem contestar os ataques diretamente. Quando a alma está em processo de enfraquecimento, a reivindicação, a violência e a revanche são restabelecidas pela possibilidade de sedução dos apapayêi através do domínio das performances, cantos e produção de objetos. Notamos que são técnicas de domesticação através do encantamento. Assim, para atrair um espírito, recuperar a alma perdida, é preciso saber exatamente o que lhe agrada, reproduzir seu canto, criar máscaras com sua característica, oferecer beiju, peixes e pimenta e, portanto, conhecer seus costumes e demonstrar afeto, para fazer com que eles acreditem que são parentes dos Mehinako. A familiarização está baseada em elementos da comensalidade: é

60 preciso antes de qualquer coisa compartilhar o alimento, desse modo transformando-o plenamente em parente (Vilaça, 1992; Fausto, 2002). As relações cósmicas são desiguais. Por conseguinte, precisam constantemente ser niveladas. De acordo com o mito de origem, os humanos receberam, do demiurgo Sol, o fogo e a mandioca para produzir alimentos cozidos. A divisão dos recursos é assimétrica, por isso os pagamentos através das festas e da produção dos objetos devem ocorrer com muita frequência. Em suma, trata-se de ter as atitudes que o apapayê espera que os humanos tenham, devendo-lhes cuidados, dedicação e, de preferência, estabelecendo vínculos eternos com estes. O fato de cultivar a realização das festas constantes e sucessivas possibilita a proteção contra os ataques de outros espíritos. Desta forma, funda-se a união para ações cosmológicas que beneficiem o Mehinako inclusive depois da morte. A realização das festas, de acordo com as regras estabelecidas, ocorre quando o doente seduz o apapayêi e, assim, poderá pagar todos os pagamentos necessários. Isto gera um fenômeno de transformação, ou seja, aquele espírito devorador, mostruoso se converte em amigo, aquele que está próximo, protege, cuida contra o ataque de outros apapayêi intrusos. A qualidade de sujeito é reconstituída, o que ocorre imediatamente quando a alma é recuperada. Creio que, na cosmologia Mehinako, a relação entre humanos e apapayêi é de fundamental importância para justificar os eventos realizados na aldeia. Sem dúvida, o espírito se transforma e se familiariza com os Mehinako através de um reposicionamento dos próprios apapayê, que se deslocam da posição de inimigo para adquirir uma aproximação mais amigável. Assim, os humanos preferem mostrar, nos rituais, que gostam mais do espírito do que ter que ficar apreensivo quando sentem desejos ou caminham sozinhos pela mata, sofrendo o risco de terem a alma capturada a qualquer momento.

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Doenças e a feitiçaria Nesta parte do capítulo serão relatadas as doenças provocadas por um feiticeiro. Veremos que, lançado o feitiço, não é possível reverter a situação, levando o atingido à morte. Qualquer ser humano pode ser acusado de feitiçaria. Por isso os incriminados agem com simplicidade, exatamente como a maioria da comunidade, para assim não levantarem suspeitas. Quando os membros da comunidade manifestam desconfianças a todos no centro da aldeia, o pajé, yakapá, consegue identificar a origem do feitiço, como também o material utilizado para implantar o feitiço, as partes do corpo atingidas e o autor da feitiçaria. Alguns feiticeiros possuem o abdômen saliente, podem ser calvos, peludos, baixinhos, fracos, e utilizam roupas que os deixam transparentes e rápidos. Eles não seguem as regras de conduta. Estes inimigos são reconhecidos pela sua capacidade de contestar, contradizer, e os Mehinako dizem que eles sabem atrapalhar qualquer relacionamento entre pessoas que se amam de verdade, qualquer amizade entre primos ou vínculos entre pais e filhos.O feiticeiro identifica-se com aquele que faz o mal aos outros. Ele representa todas as coisas que ninguém deve ser ou fazer, ou seja, é alguém simplesmente desprezível e deve ser evitado. Não existe uma razão específica pela qual o feiticeiro pratica maldade; ele sente todos os sentimentos ruins ao mesmo tempo, sobretudo inveja e ciúmes. O procedimento para realizar uma feitiçaria é constituído por objetos ou substâncias corpóreas da pessoa que será o alvo das artimanhas, para efetuar a maldade. Segundo um Mehinako, primeiramente o feitiço é colocado em um objeto da vítima. Depois de identificado o local onde foi colocado, deve ser imediatamente inserido em água fria. Tal feitiço normalmente possui temperatura elevadíssima, e, por isso, deve-se ter muito cuidado para não queimar a mão ou deixar cair na perna neste tipo de operação. Os Mehinako relembram que quando eles moravam na antiga aldeia, um homem deixou o feitiço cair em sua perna direita, ele sentiu uma dor insuportável e teve que amputar a perna na mesma hora. O feitiço, para ser desfeito, é cozido durante horas em uma imensa panela com água, que deve ser descartada logo após o uso. Todos os suportes

62 para a realização do feitiço são extremamente perigosos, pois assim que entram em contato com a pele podem matar instantaneamente qualquer um, até mesmo um inocente. Carmem Junqueira coletou um mito de origem da feitiçaria entre os Kamayurá.

Uma mulher e seus dois filhos saíram para pescar quando viram muitos peixinhos num buraco. “Olha quanto akari (cas cudo)! Pegue aquele peixe mamãe”. Assim que pegou o peixe ela morreu Os rapazes choraram muito e voltaram à aldeia para o enterro. Depois que passaram pelo ritual do banho para acabar a tristeza, contaram ao tio Uaimiku o que havia acontecido: “Pensamos qu e era peixe, mas era um pedaço de pau e quando ela o pegou levou o choque mortal!”. No dia seguinte voltaram ao local com o tio, que examinou bem o pau preto dentro da água e con cluiu: “Acho que isso é feitiço” (moã), disse ele pensativo. Mais tarde, ele retornou ao local, trazendo muita pimenta para mastigar e quando se sentiu preparado entrou na água e tocou o pau. Levou choque, mas pôde aguentar porque havia comido muita pimenta e com jeito conseguiu tirar o pau do buraco, levando-o para a aldeia. No dia seguinte, quando foi se banhar ele viu uma moça e jogou um pedacinho do pau nela. Depois do banho, a moça foi para a roça, mas não conseguiu trabalhar devido à febre que tomou conta do seu corpo. Poucas horas depois, ela morria. A rapidez da morte espantou toda a aldeia, pois ninguém imaginava a existência do feitiço. Uiamiku quis testar uma vez mais e jogou outro pedacinho do pau num rapaz que estava em reclusão. Em alguma horas, ele também morria. O medo tomou conta de todos, que começaram a buscar uma explicação. Um deles, homem esperto e observador, pôs-se a pensar e acabou por fazer a ligação entre as três mortes. Convidou então um dos sobrinhos de Uiamiku para ir pescar e a certa altura lhe perguntou: “É verdade que seu tio pegou o feitiço que matou su a mãe?” “Sim, ele pegou”. “Ah! É por isso que nós estamos morrendo. Depois da sua mãe, morreu a mocinha, depois o rapaz que estava em reclusão, depois outro e mais outro, e ainda outro. Nós vamos matá-lo”. O tio, sabendo do perigo que corria, fugiu para aldeia do Arupati. Mas Arupati, que não gostava dele, descobriu que ele andava jogando feitiço nas pessoas e decidiu que era melhor matá-lo. Mas novamente Uiamiku é alertado por um amigo: “Arupati vai dar a festa e matar você”. “Se ele me matar – disse ele ao amigo – você jo ga isto dentro da comida dele”. A festa começou animada, com todos dançando e se divertindo. Até que, de repente, o homem veio por trás de Uiamiku, flechando-o. O amigo, depois de se banhar, foi para perto do fogo onde Arupati cozinhava, fingindo querer se esquentar. Assim que pôde, jogou o feitiço dentro da panela. Quando a festa acabou, todos foram comer com Arupati. Um a um morreram. Apenas o amigo de Uiamiku e sua família, que haviam deixado a festa e ido para a roça, viveram para relatar

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a história e ensinar as gerações seguintes a usar o feitiço. Desde então, o feitiço passa de pai para filho, deste para o neto, chagando assim até os dias atuais (Junqueira, 2005: 157- 158).

Notamos no mito que o precursor da feitiçaria transmitiu seus conhecimentos para um amigo próximo, e desde então essas técnicas estão sendo transmitidas para todas as gerações de feiticeiros. Assim, as técnicas de feitiçaria normalmente passam de pai para filho, mas também podem ser ensinadas às pessoas de confiança. Outro aspecto ressaltado no mito kamayurá relata que todas as pessoas que entram em contato com o feitiço são atingidas por ele. O corpo do feiticeiro é preparado para receber o poder de causar prejuízos às pessoas do convívio social. Conforme Barcelos Neto (2006), um feiticeiro recluso não bebe as mesmas ervas e raízes que um jovem lutador, mas sim um emético que tem os felinos como donos, e que introduzem diversos venenos de animais peçonhentos no corpo, não compartilha alimentos com os parentes próximos, e, principalmente, não patrocina festas para os espíritos. Uma vez preparado o corpo, após a reclusão diferenciada, o feiticeiro torna-se capaz de introduzir doenças, emitir intencionalidades e materializar tipos de doenças em pedaços de cabelo, unhas, roupas, urina, pente para atingir membros da comunidade. Modificam o corpo com intenção de causar o máximo de dor. O corpo do feiticeiro é o suporte para realização de intervenções no corpo de outras pessoas e, sobretudo, está associado à capacidade de causar doenças. Exatamente como os apapayêi, a propriedade patogênica que constitui arma letal sucede do próprio corpo transformado em feiticeiro. Neste caso, o corpo da vítima não suporta as dores de obter uma fração do corpo do feiticeiro dentro de si. O primeiro sintoma da entrada do corpo estranho são as dores insuportáveis nos punhos e os zunidos nos ouvidos. Nota-se que o inimigo e o Mehinako realizam uma troca corporal não recíproca, o que torna impossível a realização da cura. Os Mehinako afirmam que “d oença de feiticeiro nunca conseguiu ser curada, todos os atingidos mais cedo ou mais tarde morrem por causa do feitiço”.

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Mesmo não havendo a cura efetiva da feitiçaria, o que ainda os parentes da vítima podem fazer são as estratégias de contrafeitiço, com a intenção de confirmar se realmente o acusado é feiticeiro e aniquilá-lo de uma vez por todas, para conseguir assim interromper o ciclo das matanças. A técnica de contrafeitiço mais utilizada é o caldeirão com substâncias ou objetos do feiticeiro. Conforme relatou-me um jovem Mehinako, da aldeia Utawana:

Você acha na aldeia quem é o feiticeiro, pode ser um homem ou uma mulher. Você pega o cabelo, a roupa, qualquer coisa do feiticeiro e coloca em uma panela grande com água fervendo e espera alguns dias. Depois de uns dias o feiticeiro começa a sentir febre e dor muito forte até morrer (Ontxa, 17 anos, Utawana, 10-07-2010).

O feiticeiro sempre produz um feitiço eficiente e mortal, ao passo que os apapayêi apenas causam doenças que podem ser curadas por meio da intervenção dos xamãs e das festas. Eles ensinaram as regras de cura, para assim manter o ciclo de trocas mútuas, enquanto os feiticeiros querem simplesmente praticar a maldade porque sentem muita inveja. Nas aldeias Mehinako existem duas facções que são normalmente reconhecidas por todos. De modo geral, o grupo que se declara partidário do chefe e o grupo oposto, que está algumas vezes disposto a desmerecer as realizações do chefe. Neste contexto polarizado, em que um feiticeiro pode ser identificado, pessoas ofendidas por alguma razão se manifestam normalmente nos dois grupos. Certa vez, na aldeia Utawana, houve uma mudança repentina no tempo, o vento foi progressivamente aumentando, em poucas horas uma enorme tempestade levou o teto de quatro casas da facção do chefe. Este desastre foi definitivo para localizar a figura do último suspeito de feitiçaria apontado nas conversas cotidianas do centro da aldeia; desta forma, depois da tempestade, ele foi finalmente identificado como tal. Como também afirma Thomas Gregor,

Tempestades, invasões de formigas, depredação de porcos selvagens, ventos que destroem as casas, agressividade sexual das mulheres, doenças, mortes e outros fenômenos

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misteriosos, tudo isso pode ser atribuído a feiticeiros (Gregor, 1982:196). A maioria das suspeitas de feitiçaria é vinculada a casos de mortes. A aldeia Utawana, a comunidade mais recente da etnia Mehinako, foi fundada a partir de uma acusação de feitiçaria. O chefe foi apontado como feiticeiro pela facção oposta. Então, as pessoas aliadas, inclusive o pajé, abandonaram o território de origem e construíram uma nova aldeia para os favoráveis à política do líder. Desde então já aconteceram centenas de acusações, mas todos buscam seguir as regras de comportamento-padrão, para não levantarem grandes suspeitas. O chefe, por exemplo, um acusado em potencial, deve procurar ser sempre prudente no trato com os moradores da aldeia, para assim se proteger das acusações indevidas. O desprezo às festas, para os apapayêi, por exemplo, pode ser entendido como uma das formas de mau comportamento; não aceitar os convites para ser colaborador ou dono da festa, não concordar com a decisão da maioria ou não presentear o dono da festa pode levantar muita suspeita. Normalmente, quando alguém é acusado, identificam o histórico de atitudes malvistas desta pessoa. No entanto, “cada habitante de aldeia é motivado a ser sociável não só por causa da aceitação da comunidade, mas também pela ameaça de feitiçaria” (Gregor, 1982:201). Kulykurda, um jovem Mehinako que veio a Campinas vender objetos, deu a seguinte definição:

O feiticeiro é feio, magro, careca, usa roupa preta, não quer fazer nada, é preguiçoso, não aceita fazer festa, nunca dá presente para ninguém, fala mal de todo mundo, fica no meio da mata e sozinho, está sempre quieto, chateado, é uma pessoa muito esquisita (Kulikyrda, 20 anos, Campinas, 15-07- 2009).

Os Mehinako comentam que os cachorros domésticos estão sempre alertas a qualquer barulho, e latem quando o feiticeiro se aproxima das casas. Isso explica o aumento do índice de cachorros em todas as casas da aldeia Utawana. O último caso de morte em Utawana foi um terrível infarto repentino, considerado pela maioria da comunidade como uma doença de branco. Percebi que, ao justificarem que a doença era de branco, mas que o

66 responsável era um feiticeiro Kuikuro muito poderoso, os Mehinako quiseram dizer que os feiticeiros atualmente evoluíram com as técnicas de feitiçaria, ou seja, possuem habilidades suficientes para causar vários tipos de doença de branco, para, assim, conseguirem atrapalhar o reconhecimento do responsável pela morte. Neste caso, os médicos nunca iriam descobrir a causa da morte, o que evitaria que o feiticeiro fosse descoberto. Pudemos observar que, para os Mehinako, nunca a morte ocorre por velhice ou de maneira natural. Todos os casos de morte acontecem em decorrência da intenção de feiticeiro ou espírito.

Alma O apapayêi atinge um ser humano flechando parte do corpo com a substância Iyalawû, com o intuito de capturar a alma. Veremos que, devido à vulnerabilidade da alma, os apapayêi conseguem enfraquecê-la aos poucos. A concepção ocidental da alma não coincide com o pensamento indígena, pois os Mehinako, quando se referem ao que chamamos de alma, falam em sombra. Os primeiros sintomas identificados, quando a alma, a yakulapi é atingida, são aumento dos batimentos cardíacos, dores no punho e o rosto avermelhado, pois o sangue esquenta muito rápido. Como o apapayêi escolhe as almas mais suscetíveis ao roubo? De acordo com diversas narrativas Mehinako, normalmente os apapayêi capturam com facilidade as almas das crianças, dos idosos e de mulheres grávidas. No primeiro caso, a alma não está tão firme no corpo, enquanto no segundo e no terceiro caso, a alma encontra-se enfraquecida e vulnerável. Comumente, a circunstância que mais atrai espíritos, independentemente do tipo de pessoa, idade, gênero e situação, são os desejos que não podem ser realizados. Certa vez, a esposa do pajé cozinhou uma enorme panela de arroz; sucessivamente, enquanto o alimento esfriava, ela foi à roça buscar algumas mandiocas para o preparo do beiju. Após o árduo trabalho de colheita no sol quente, quando percorria o caminho de volta para casa, pensava na panela de arroz, pois estava muito faminta. Ao chegar à casa, quando se aproximou do fogão, ela foi surpreendida, pois as suas filhas haviam devorado o alimento.

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Neste caso, a mulher Mehinako gerou condições para atrair apapayêi, e, consequentemente, propiciou o enfraquecimento da alma, desenvolveu o estado de wiritxuki, ou seja, apesar de ter proporcionado todas as chances para seu desejo ser realizado, foi surpreendida pelo acaso, e o espírito conseguiu roubar sua alma com facilidade. Os apapayêi identificam as pessoas mais vulneráveis, aquelas que não conseguem ter autocontrole em relação aos desejos. Não basta sentir vontade, o desejo deve ser concretizado e finalizado. Quando a ação não gera a consequência desejada, ela não deve ser alimentada e, de alguma forma, deve desaparecer o mais rápido possível. O desejo não realizado está associado à inveja, à saudade e ao ciúme, sentimentos ruins que apenas os feiticeiros cultivam. A alma capturada tem o propósito de intensificar as interações. A dinâmica decorre não apenas da quantidade de roubos, mas da capacidade de essas relações entre espíritos e pessoas se expandirem em intensidade, variedade de espíritos e atualizações. Tal possibilidade, por sua vez, deriva do fato de tais relações dizerem respeito à continuidade dos bons sentimentos e do autocontrole, mantendo o fluxo de bons sentimentos entre parentes.

Os patrocinadores (kawukamunã) Logo que o yakapá revela o apapayêi que está roubando a alma do doente, uma das mulheres da casa providencia o mingau de mandioca para colocar no centro da aldeia. A pessoa adoentada é convocada pelo pajé para patrocinar uma cerimônia para o apapayêi que provocou a doença. Em seguida o kawikamunã, o dono da festa, pode escolher quais serão as pessoas que irão colaborar com a festa, normalmente aquelas pessoas que aceitaram beber o mingau no centro da aldeia. Os indivíduos que conseguem contratar o maior número de serviços da comunidade, aqueles que patrocinam rituais extensos de um espírito extremamente monstruoso, possuem as chances de ser reconhecidos com destaque entre os Mehinako. Os donos das festas devem cuidar de seus apapayêi, fornecendo alimentos cozidos no centro da aldeia e realizando sucessivas cerimônias. Na língua Mehinako, referem-se aos pais, a mesma palavra que atribuem a dono.

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Sendo assim, consideram os patrocinadores da festa os pais dos apapayêi, aqueles que cuidam.

Fig. 22 - Alimentos para o apapayêi

Notamos que o conceito de dono é utilizado em diversos contextos pelos Mehinako: dono de árvores, dono da casa dos homens, dono dos brancos, dono da aldeia, dono do remédio e dono de luta, ou melhor, todas as coisas possuem donos. Alguns donos que obtêm o apapayêi mais perigoso e temido são aqueles que possuem mais prestígio. Depois de escolhidos os colaboradores, o dono determina as funções de cada indivíduo: pescaria, produção dos objetos, flautistas. Por último, informa a data do início da festa e as etapas que serão realizadas nos próximos dias. Todas as pessoas convocadas aceitam a função de ajudante. A possibilidade de não aceitar a convocação nunca foi cogitada, pois a decisão de não colaborar poderia desagradar o apapayêi e gerar desconfianças e suspeitas de feitiçaria. Normalmente, são convocados os membros da comunidade de acordo com a proximidade de grau de parentesco: primeiramente, são convocados os parentes mais próximos, sobretudo, do núcleo familiar; em seguida, os mais distantes, e assim por diante. Os parentes colaboradores que se oferecem para fazer a festa demonstram ter enorme consideração pelo patrocinador, e uma das funções principais do colaborador é pescar para ajudar na festa.

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Fig. 23 - O colaborador de uma festa para um apapayêi

Com a finalização das festas, os colaboradores entregam panelas, miçangas, colares de caramujo, flechas para agradecer a realização do rito para o apapayêi. Quando o patrocinador da festa não consegue alimentar a comunidade de maneira satisfatória, não recebe bons presentes. A condição de dono não é permanente, um mesmo apapayêi pode obter inúmeros donos ao longo dos anos, ou melhor, cada festa realizada pode ter mais de um patrocinador. Identificamos casos de haver cinco donos para o mesmo apapayêi. Quando algum outro indivíduo é atingido por um apapayêi que já possui um dono, ele pode optar por manter o patrocínio, quando há algum risco de a doença voltar, ou cessar o compromisso e entregar o ritual a outra pessoa atingida. Nesse caso, ele deve fazer a declaração, em público, de que está transferindo a categoria de dono para outra pessoa, e, principalmente, deve realizar a última festa para o espírito. Os patrocinadores podem minimizar os efeitos da doença apenas com o transe, fumo do pajé e as ervas. Neste caso, quando a doença é mais leve, ele pode aguardar o apapayêi para ser realizado em situações apropriadas. No período em que realizei a última pesquisa de campo, estavam hospedados em Utawana três suíços que pagaram pela realização dos rituais,

70 situação considerada muito favorável para a realização das festas para os apapayêi aguardados. Neste caso, aquelas pessoas que optaram por poupar apapayêi para uma situação determinada, puderam realizar as festas para mostrar aos estrangeiros e receberam dinheiro para isso.

A cura Na aldeia Utawana existem dois tipos de pajé: o panalawekehe, aquele que prepara as ervas e os chás para o tratamento de doenças consideradas leves, e o yakapá, aquele que possui relação direta com os espíritos e consegue curar através dos transes, tabacos e cantos, para assim realizar a extração de feitiços (kauki). Os Mehinako explicam que a mesma substância preta que transmite doença também pode ser utilizada no processo de cura. Os pajés possuem a mesma substância que está armazenada nas flechas do apapayêi, a iyalawû, que está concentrada nas mãos e na garganta do curador. Os Mehinako ainda ressaltam que qualquer pessoa consegue enxergar essa pequena rodela preta de cera dentro da garganta de um pajé. O pajé é aquele que consegue lidar com frações de apapayêi dentro de si, sem sentir dores ou sequelas. Os efeitos de cura são ativados quando a fumaça entra em contato com a substância.

Fig. 24 - O pajé Tukuyari

Se, por um lado, é extremamente difícil para um pajé conseguir ficar resistente à substância preta iyalawû - os pajés enfrentam um treinamento intenso e rigoroso para obterem esse feitio - por outro lado, perder poderes

71 pode acontecer por motivos banais. Certo dia, um pajé perdeu seus poderes de cura porque aceitou a comida de uma mulher menstruada. As pessoas que são atingidas pela flecha dos espíritos não suportam essa pequena porção do corpo do apapayêi dentro de si. “O doente é aquele que carrega em seu corpo uma extensão de apapaatai, tornando assim uma espécie de presa: o doente é o cativo, a doença é um cativeiro” (Piedade, 2004:55). O pajé yakapá é um indivíduo escolhido por um apapayêi; neste caso, quando o espírito captura a alma, os efeitos são muito severos, há uma espécie de prolongamento da doença, os efeitos são devastadores. Quando isso ocorre, o pajé precisa se adaptar com o corpo do apapayêi dentro de si. No caso do yakapá Mehinako, que habita a aldeia Utawana, o apapayêi que tomou conta de seu corpo foi um pássaro pequeno e poderoso, considerado muito eficiente na cura de doenças, e que os próprios mehinako não souberam identificar a espécie do pássaro em português. Esse yakapá tem sido inúmeras vezes procurado por indígenas de outras aldeias no Alto Xingu para a realização das curas xamânicas, pois é considerado um dos melhores pajés da região. Após o transe, numa tentativa de recuperar a alma de uma mulher Mehinako da outra aldeia, o yakapá relatou que o feitiço (kauki) normalmente queima a mão, e por isso todos os pajés possuem uma cera preta dentro da mão para proteger contra a alta temperatura das flechas retiradas do corpo do doente. O pajé passou suavemente a mão no local afetado do corpo, onde o feitiço estava alojado, sentiu-o sob a pele, e, por último, conduziu a substância patogênica para fora do corpo da doente. Após a extração e a materialização do feitiço em suas mãos, ele soprou- o com a fumaça do tabaco, cantou algumas palavras em baixo tom e rezou até o dia amanhecer.

Eu sou o espírito do pássaro pequeno Eu estou aqui Eu sou o espírito do pássaro pequeno. Notamos que para o diagnóstico ser realmente preciso é necessário coletar informações do cotidiano da vítima baseadas em relatos dos parentes, sonhos e a identificação das dores.

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Depois de identificada a doença, inicia-se, assim, o tratamento, à base de sessões de transe com tabaco, para conseguir retirar as substâncias do apapayêi do interior do corpo adoentado. Após ter cumprido a primeira etapa de identificação e extração do feitiço, o atingido pode iniciar a segunda fase, efetuando pagamentos para o apapayêi através das realizações de festas e partilhas de alimentos no centro da aldeia. Por último, o pajé yakapá receberá do ex-doente os pagamentos por ter lhe devolvido a alma: colares de caramujo, panelas grandes, adornos, redes e, principalmente, TV, DVD, fogão, botijão de gás, bacias de alumínio. Quando as dores persistem, poucas vezes os Mehinako desconfiam da aptidão de um yakapá, principalmente quando o pajé é mais antigo e possui certo prestígio. Em alguns casos, os xamãs justificam que inúmeros apapayêi ao mesmo tempo podem roubar a alma de um doente, e os espíritos menos perigosos podem pedir auxílio para os espíritos maiores; assim, normalmente, um yakapá não consegue identificar mais de um espírito em uma única sessão de transe, podendo demorar cerca de uma semana para ele conseguir visualizar quantos apapayêi roubaram a alma da vítima. Foi o que aconteceu com uma mulher mehinako da outra aldeia, transportada em uma lona preta com varas nas pontas para a aldeia Utawana. Durante alguns dias o yakapá estava tentando realizar a cura a distância, mas não obteve êxito; por isso os familiares decidiram transportá-la para conseguir a cura do pajé. Logo que ele teve contato com a doente, percebeu que mais de um apapayêi havia roubado a alma dela, por isso ele não estava conseguindo realizar a cura a distância, e nem fazer um diagnóstico imediato, devido à quantidade de apapayêi que capturaram a alma da mulher mehinako. Essa é a justificativa mais aceita pelos Mehinako. Eles explicam que os pequenos espíritos acompanham os grandes para aprender o ofício de roubar almas, por esse motivo eles atacam em conjunto. A esposa do irmão do pajé disse que o seu filho mais novo havia ficado doente de quatro apapayêi ao mesmo tempo; ela justifica que o filho gostava de roubar alimentos nas casas das pessoas, ou seja, tinha desejos incontroláveis. Nesse caso, o garoto teve sua alma roubada por muitos apapayêi, então, o trabalho do pajé foi mais intenso, por isso o pai do garoto

73 teve que pagar o pajé com sua única TV 29 polegadas. Os Mehinako explicam que os apapayêi não devolvem a alma quando os pajés não recebem as bonificações adequadas para o tratamento. A cura não seria eficiente se tivessem pago ao pajé com algo sem valor.

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CAPÍTULO 3 - Antropologia da arte

O empirismo de Alfred Gell Alfred Gell procura demonstrar quais são os elementos que estão inseridos na capacidade do objeto em articular e produzir relações sociais. Por que essas relações sociais acontecem? Gell aborda não a comunicação, a antropologia simbólica e os significados, e sim a agência, a intenção e a transformação. A abordagem dos objetos indígenas não está centrada somente na representação ou no sistema de comunicação, mas em um sistema de ação cuja finalidade é de transformação, atração e presentificação de objetos para agradar os espíritos, com intenções estritamente práticas. “No lugar da comunicação simbólica, ponho a ênfase em agência, intenção, causação, resultado e transformação. Vejo a arte como um sistema de ação, com a intenção de mudar o mundo em vez de codificar proposições simbólicas a respeito dele” (1998 :65). A arte baseada na agência é considerada mais antropológica do que a abordagem da teoria semiótica, porque se baseia na ação ou mediação que estão inseridos aos objetos de arte na sociedade, e não interpreta o sentido dos objetos como se eles fossem apenas descrições textuais. A tradição antropológica da arte se funda então na abordagem da arte como um sistema simbólico, mas, de modo geral, a antropologia não pode simplesmente ignorar a relação entre arte e sua produção e circulação dos objetos, ou melhor, dizendo, não se pode deixar de olhar para a base institucional das produções indígenas. Os objetos da arte relacionam-se com as pessoas, ou, mais precisamente, com os agentes sociais. A teoria da Gell parte do pressuposto de que a natureza dos objetos é a fonte das relações sociais na qual ela está inserida. Porém, mesmo assim, podemos afirmar que nas sociedades indígenas em que as instituições que propiciam as circunstâncias para a produção e circulação da arte não são instituições específicas da arte ocidental, constituídas de incentivos financeiros da iniciativa pública ou privada, e que formam especialistas em arte, criam museus, cursos de graduação e pós- graduação, e sim aquelas que possuem um caráter mais amplo do que o

75 institucional, por exemplo, rituais, sistemas de trocas intertribais, curas de doenças e o sistema de nominação. Nesses termos, o objeto indígena, fetiche constituído de magia (Mauss, 2003), constitui um caso de execução social de instituição repetitiva, no qual essa operação é realizada através das continuações de rituais ou por meio de trocas comerciais e cerimoniais. É preciso questionar se um determinado objeto indígena foi na realidade produzido com a intenção de estabelecer relação com o invisível, para fins comerciais, se é usado como utensílio ou se ajusta a todos os casos. Atualmente, diversos objetos indígenas, de fato são produzidos para o mercado das grandes metrópoles. O desejo de ver os objetos das sociedades indígenas vinculados as nossas instituições de arte, nos diz mais a respeito da nossa própria maneira de lidar com a arte, de uma forma completamente sagrada, desvinculada do cotidiano e quase religiosa, do que de fato as relações sociais e cosmológicas dessas sociedades são. Lembremos, a esse respeito, as palavras de Mauss (1972 :89) de que “um objeto artístico, por definição, é um objeto reconhecido como tal por um determinado grupo”. Segundo Joanna Overing (1991) a noção de arte e estética provocaria um engessamento conceitual, não permitindo um avanço na discussão sobre realidades distintas da ocidental. A apreciação da estética das formas de arte ocidental significaria, assim, o risco da imposição do conceito sobre realidades que não podem ser aplicadas. Price (2000) acredita que cada sociedade tem uma maneira específica de lidar com sua “arte ”, e a tarefa da antropologia é definir as características destas relações existentes em cada cultura, de modo que as contribuições das sociedades não ocidentais específicas possam ser avaliadas corretamente, isto é, em relação a suas intenções culturalmente específicas. Para Alfred Gell (1998), o mais importante não é mais a estética. Observamos que de acordo com essa análise, a estética não é destacada, mas sim a análise das transformações das formas. Para as sociedades indígenas, os objetos estão vinculados ao cotidiano. É certo atribuir um generalizado anonimato aos objetos produzidos pelos indígenas, os nomes dos autores não são destacados, isto é, as confecções são sempre coletivas. Podem ser apreciados

76 objetos que pertencem aos que se destacam dentro do grupo neste tipo de ofício, e por isso possuem mais prestígio.

Os objetos vivos Afinal, como pensar os objetos indígenas antropologicamente? Como podem os objetos, coisas sem atividade, serem pensados em termos humanos, basicamente anímicos? Esse tema foi anunciado pela primeira vez por Edward Burnett Tylor em Primitive Culture (1871), que discute o animismo, do latim anima, alma e vida, ou melhor, a atribuição de vida e sensibilidade a coisas inanimadas, como elementos que definem a cultura “primitiva”. Para Tylor, o animismo é a crença de que os atributos humanos de possuir intencionalidade, subjetividade, desejo, não são características exclusivas dos seres humanos, mas também dos animais, espíritos e plantas. Seguindo a mesma concepção, recentemente o antropólogo francês Philippe Descola (1992) trouxe a tona o resgate da antiga noção de animismo, para conceber um modo de articular séries naturais e sociais. Segundo o autor (1992) tal conceito seria diferente, mas intimamente relacionado ao totemismo, e desta forma seria uma visão de mundo que concede atribuições humanas e atributos sociais aos seres naturais. Já bem distante do conceito evolucionista de Tylor, o animismo reformulado por Descola não é mais considerado uma concepção atrasada do pensamento primitivo, mas uma característica cultural marcante das sociedades indígenas. Sendo assim, o autor diferencia três modos de pensar a relação entre os domínios denominados de natureza e cultura ou da objetivação da natureza: o totemismo, animismo e naturalismo. Para Walter Porto Gonçalves (1998:23) toda sociedade, toda cultura cria uma determinada idéia de natureza. O naturalismo é uma das maneiras de análise, além do animismo e do totemismo. Na concepção de Descola, a natureza se define, na sociedade ocidental, por aquilo que se opõe a cultura. O sistema totêmico, de acordo com Lévi Strauss, demonstra a ordenação de classificação do pensamento “primitivo” absolutamente articulado com o sistema cultural de cada sociedade. As matrizes das classificações primitivas não estão analisadas em certa ordem tida como científica, como os mecanismos de classificação das disciplinas tradicionais, mas sim de acordo

77 com a existência de uma taxionomia mística entre seres humanos e a natureza. Aline Scolfaro Caetano da Silva ressalta que:

Entre o grupo social e a espécie natural que lhe serve de totem, ou entre sociedade e natureza, nenhuma identificação mística e substancial estaria envolvida: a conexão entre os dois pólos seria de ordem metafórica, mediada pelo sistema global de relações entre séries natural e social enquanto dois sistemas de descontinuidades (Silva, 2011: 2).

Não obstante, Lévi Strauss (1975) afirma que, ao analisarmos o sistema totêmico destas sociedades, não nos basta considerar cada espécie particular, mas sim identificar a função que cada sociedade lhes confere dentro de um sistema amplo. A mesma espécie de animal, por exemplo, pode ser identificada dentro de um contexto completamente distinto de acordo com a cultura local que o classifica. Silva ainda complementa afirmando que:

“O suposto totemismo encontraria seu fun damento no estabelecimento de correlações formais entre dois sistemas de diferenças: um natural e outro social. Pois, de um lado haveria a série formada pelas espécies animais e vegetais, com suas diferenças interespecíficas e naturais; de outro,e paralelamente, a série formada por grupos sociais, que apesar de diferenciadas entre si, não apareceriam marcados por qualquer diferença significativa no plano das qualidades sensíveis. Daí, a primeira série de diferenças, por seu caráter empiricamente descontínuo (...)” (Silva, 2011:9). Tais lógicas classificatórias operam de maneira descontínua , “objeto ambíguo que diz respeito, de fato, a ambos os domínios” (Lévi-Strauss, 1989: 251). Para Lévi-Strauss o sistema totêmico consideraria uma homologia entre mecanismos distintos que existam, de um lado, entre uma espécie x e uma espécie y, e, de outro, entre um grupo A e um grupo B. Pois, como ressalta Lévi-Strauss, a articulação entre espécies totêmicas e grupos sociais “não é arbitrária, e também não é uma relação de contiguidade ” (Lévi -Strauss, 1975:82). No totemismo, sistema classificatório, as espécies x ou y funcionariam como o fonema, a menor unidade sonora do plano da linguagem capaz de produzir modificações do sentido: Ele não é um signo linguístico. É dotado de uma função diacrítica, adquire significação por meio das relações contrárias com os outros elementos do mesmo sistema. No entanto, os fonemas somente podem mudar se provocar uma modificação na significação,

78 ou seja, “Se sou membro do clã urso, não posso pertencer ao da águia, pois que, como vimos, a única realidade do sistema consiste numa rede de recortes diferenciais entre termos colocados como descontínuos” (Lévi -Strauss, 1989:249). No entanto, Descola se voltará aos materiais etnográficos dos Achuar, povo Jívaro da Amazônia equatoriana – no intuito de repensar o totemismo a partir do conceito de animismo, isto é, não mais enquanto um sistema classificatório, mas como uma maneira ontológica específica de identificação entre humanos e natureza, definindo assim uma continuidade de tipo sóciocósmica, fundada na atribuição de “disposições humanas e características sociais aos seres naturais” (Descola, 1992:99). Para os Achuar, todos os animais, plantas, espíritos e, algumas vezes, até mesmo os objetos são considerados seres dotados de intenções humanas e teriam atributos sociais e, como resultado, os objetos podem ser extensões dessa dimensão. Assim, as máscaras de animais do Canadá se abrem para revelar rostos humanos em seu interior ou as máscaras gigantes dos Mehinako podem também demonstrar essa visão animista. “O modo anímico seria característico das sociedades onde o animal é foco estratégico de objetivação da natureza e de sua socialização” (Descola, 1992:115). No pensamento ameríndio animista, ocorre uma forma de continuidade entre humanidade e natureza, considerando que os elementos naturais não são analisados como signos, mas como mecanismos de relações sociais operadas pelas mesmas regras e instrumentos que definem o universo dos humanos. Sendo assim, o animismo ameríndio pode ser considerado uma concepção de natureza, contrária ao totemismo. Segundo apresentado por Descola (1996), em seu trabalho etnográfico sobre os Achuar, embora com formas corporais distintas, os animais, plantas e outros seres que tendemos considerá-los não humanos ainda se pensam como humanos, possuem uma alma humana, e muitas vezes podem se revelar como tais. Tânia Stolze Lima (2002) complementa o pensamento de Descola, afirmando que estes outros seres tendem a ver os humanos como não- humanos. Ou ainda, isso se dá devido a idéia de que a humanidade é uma questão de perspectiva, ponto de vista que pode ser roubado, perdido. No animismo não haveria como pensar as relações natureza e cultura de maneira dicotômica como: séries naturais, a espécie x e as séries culturais,

79 os seres humanos, mas ocorreria uma forma de continuidade entre cultura e natureza como: a série cultural é como a série natural. Posteriormente, Alfred Gell em seu livro Art and Agency, inaugura a teoria da agência na vida social, em que os objetos de arte podem ser considerados pessoas, pois possuem funções social e relacional no contexto em que estão inseridos. Mas, até que ponto objetos indígenas podem ser considerados sujeitos nas redes de interação, considerando serem complexidades que devem surgir em ontologias totalmente distintas? Da mesma forma, “esse aporte teórico -metodológico deveria ser lido em termos maussianos, nos quais substituiríamos “prestações” por “objetos de arte” (Gell, 1998:9). Marcel Mauss c onsiderou as prestações ou dons como extensões de pessoas por produzir formas distintas de alianças. Para Mauss as trocas incluem bens mais ou menos alienáveis, assim como bens úteis ou não. Elas podem incluir: “danças, festas, favores, alimentos e mulhere s”, em suma, qualquer “circulação de riquezas (...) de um contrato mais geral e muito mais permanente” (Mauss, 2003 :179). Ora, o argumento central do Ensaio é de que a dádiva produz a aliança, tanto as alianças matrimoniais como as políticas, nelas se postulam um entendimento da constituição da vida social por uma constante dar e receber. Para o autor, a dádiva é um ato de dar, receber e retribuir voluntário, obrigatório e social. Mauss fala em contrato para exprimir a sociabilidade criada pela dádiva. A transmissão cria um vínculo jurídico, moral, político, econômico, religioso e espiritual, um “vínculo de almas ( ...). Presentear alguma coisa a alguém é presentear alg uma coisa de si” (Mauss, 2003 :180). Na organização social “primitiva”, “os contratos fazem -se sob a forma de presentes” (Mauss, 2003 :41).

Posteriormente, na teoria das estruturas elementares do parentesco, Claude Lévi-Strauss explica a reciprocidade como algo que ultrapassa as questões econômicas. Nas sociedades analisadas pelo autor, o matrimônio acaba se tornando essencial no que diz respeito à subsistência do grupo, uma vez que a divisão sexual do trabalho possibilita manter diversas necessidades sociais. Não obstante, as relações e as trocas matrimoniais e econômicas formavam para tais povos, na visão de Lévi-Strauss, parte articulada a um sistema maior de reciprocidade. A regra, no entanto, não trata apenas a lógica

80 das relações entre os sexos, mas antes de um princípio de disposição que pressupõe a circulação de bens econômicos entre os grupos. Embora o econômico exista nas trocas, há outras funções importantes, tais como posição, simpatia, privilégios, uma diversidade de formas de se adquirir alianças e evitar as rivalidades entre os grupos. Com o quadro de trocas matrimoniais, pretende-se demonstrar os vínculos e relações sociais estabelecidas com o casamento, bem com as trocas de objetos, que são consideradas tão importantes quanto às trocas de mulheres. Nesse sentido, no caso das sociedades estudadas por Claude Lévi-Strauss, dado o aspecto de bem fundamental que possui a mulher, esta se caracteriza como um dos principais bens presentes no sistema de prestações entre os grupos. No caso de Gell (1998), as prestações e as mulheres foram substituídas por objetos, ou melhor, por objetos indígenas. Ou seja, interessaria visualizar o que esses objetos e seus diversos usos demonstram sobre as interações sociais e a produção e reprodução sobre o mundo, pois é na relação com seres que os objetos têm que ser analisados e compreendidos. Por constituir agência, os objetos são posicionados como sujeitos numa rede de trocas de objetos tangíveis e intangíveis que engendram a construção de pessoas e relações. A decoração do corpo é produzida com pinturas de base vegetal: o vermelho do urucum, o negro do jenipapo, escarificações são utilizadas. Constituindo parte da transformação do corpo, a decoração, não se restringe somente aos humanos, mas da mesma forma decoram os objetos, como remos, cerâmicas, máscaras, cuias. Os humanos e os objetos são ambos decorados, pois podem se transformar. A decoração constitui uma modificação técnica, implantando marcas sociais tanto nas pessoas como nas coisas. Lúcia Hussak van Velthem ressalta em um de seus estudos iniciais sorbe os , do Pará, que “u ma panela de barro (...) pode ser considerada um ser, que nasce, vive e morre, assim como os seres humanos, que também precisam ser fabricados e embelezados para se apresentarem de maneira correta aos membros de sua sociedade e às entidades sobrenaturais” (1998:6). Posteriorme nte, a mesma autora escreve o livro “O belo é a fera: a estética da produção e da predação Wayana” e demonstra que os Wayana são

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“fabricantes de corpos humanos, seus filhos e de outros corpos, seus objetos” (2003:135). Assim, do ponto de vista da antropologia da arte, uma máscara que se acredita atrair um espírito e um pajé que também fornece seu corpo para ter acesso aos espíritos são tratados teoricamente no mesmo nível, apesar do primeiro ser um objeto e o segundo, um ser humano. Ambos proporcionam processos de metamorfose em circunstâncias diferenciadas, o primeiro através dos rituais, o segundo pelo uso de substâncias psicoativas. Os tipos de agência atribuída aos objetos da arte são inerentemente sociais, visto que, para o autor, objetos indígenas, por exemplo, as máscaras, não podem demonstrar agência fora das festas, ou seja, quando não estão inseridos em um contexto social específico. Objetos são tidos não como agentes autônomos, fora de um contexto, mas como pacientes que dependem de um agente principal, pois estão imersos numa matriz relacional e social. Gell revela o objeto indígena enquanto elemento ativo, repleto de intencionalidades e com identidade complexa, porém absolutamente secundário - no processo de produção social. Gell (1998:12) utiliza termos específicos para fundamentar sua teoria antropológica. Ele propõe o conceito de índice para se referir aos objetos de arte que permitem interferências numa escala de relações e interações sociais, nas quais ocupam a posição de agente ou paciente dependendo das circunstâncias surgidas no contexto social. Nessas condições, Gell considera o índice um elemento instrumental da agência social. O conceito de índice, retirado da semiótica peirceana, torna-se importante porque permite compreender para qual direção o objeto está indicando, quais são as lógicas de reações, intenções, e, principalmente, qual é sua capacidade intencional e transformativa. De acordo com Gell, o índice gera necessariamente “a abdução de agência, uma operação cognitiva particular que permite uma interferência causal que interfere nas intenções e capacidades de objetos e pessoas” (Gell, 1998:13).

A tecnologia de Gell Alfred Gell propõe que a arte sempre manteve uma relação de proximidade à “tecnologia do encantamento” (Gell, 1998:46) . O objeto da arte

82 potencializa os processos técnicos, e aí consiste seu poder de sedução. Nessa direção, Marcel Mauss, tomando como base a aproximação entre arte, técnica e magia recentemente explorada por Gell (1992) com o propósito de situar os objetos como parte de uma “tecnologia do encantamento”, isto é, um conjunto de ferramentas que permitem aos humanos controlarem uns aos outros através dos objetos artísticos. Em contraste com a lógica da mercadoria, em que pessoas são coisificadas, na base relacional da dádiva, as coisas são reconhecidas como pessoas. Assim, Gell se distancia do critério de contemplação estética para chamar a atenção para a eficácia ritual de uma máscara ou um instrumento: a decoração não é simplesmente maravilhosa, mas têm potência, visa a produção de resultados eficientes para cura de doenças. Ou seja, a arte tem uma função específica nas relações com os agentes sociais que estão adoentados. A arte é dessa forma, um dos meios técnicos pelos quais os indivíduos são convencidos da necessidade de uma relativa organização social que os sobrepõe, adquirindo forma através da experiência dos objetos materiais. A tecnologia é a magia de transformar o material por intervenção humana, isto é, o poder que a técnica tem de lançar efeito sobre as pessoas, para que estes possam experimentar o real sob a forma do invisível. A criação de um objeto deve superar a simples explicação, mas ser possível a capacidade de convencer e encantar o espectador. Nota-se que a tecnologia pode ser mágica. Ou seja, “o encantamento que é imanente a todos os tipos de atividade técnica” (Gell, 1992:44 ). O objeto artístico tecnológico, porém, encontra-se num arranjo distinto dos outros objetos sociais, pois sua utilidade não está totalmente vinculada à subsistência e estabilidade material. Vejamos, desta forma, o exemplo da relação dos indivíduos com os instrumentos musicais. Estes, por sua vez, podem alterar os elementos espaciais e as circunstâncias dos acontecimentos numa relação próxima com os participantes de uma festa. Um instrumento musical é uma ferramenta, uma prótese do corpo e de suas possibilidades de se comunicar com o invisível no domínio de uma linguagem totalmente musical. Significa dizer que pintura, máscara, armadilhas, instrumento, pinturas corporais, roupas, sons e cantos são componentes que podem produzir

83 resultados eficientes no estado de saúde de um indivíduo. O autor procura ver os objetos artísticos não somente enquanto símbolos, objetos comtemplativos ou representações, mas enquanto agência, com intenções e possibilidade de transformação do agente social (Gell, 1998:6). Nesse sentido, o autor aproxima a instrumentalidade da arte, definindo os objetos indígenas pela sua capacidade de incorporar idéias e transferir significados. Isso significa que esses objetos comunicam a noção de um nexo de intencionalidades entre caçadores e presas, espíritos e humanos, mediante mecanismos materiais (Gell, 2001:184). Se os objetos são também considerados pessoas, então eles agem ou presentificam, mas não representam. De fato, como mostra Gell (1992:46), a eficácia dos objetos artísticos, em suas qualidades de elementos da “tecnologia do encantamento”, possuem capa cidades de “transubstanciação” , mesmo quando não são realmente mágicos. Desta forma, é o efeito técnico, ou seja, a maneira como os objetos são produzidos, a rede de relações, o conhecimento de sua criação, reprodução e utilização - sem deixar de ressaltar os valores que estão embutidos nos objetos artísticos - que constituem a origem da sua eficácia. Gell (1998) apontou em sua teoria antropológica que o potencial de agenciamento dos objetos artísticos aponta para a eficácia deles sobre a produção de efeitos na realidade. Trata-se, pois, de uma extensa rede de produção de relações sociais através de diversos sistemas de troca de conhecimentos e modos de utilização da arte (Gell, 1992:53). Neste sentido, não haveria porque contestar que a utilização dos objetos pode ser vista enquanto elemento da articulação de processos sociais, considerando que a arte não é somente a representação da realidade, mas um fato que articula diversos acontecimentos, transformando o real. O objeto artístico é uma tecnologia na medida em que requer processos e agencia pessoas, produzindo efeitos sobre a realidade em um determinado contexto social. Segundo ele, é importante considerar que pertence à natureza do objeto de arte interferir e relacionar com a realidade da matriz social, e, que, portanto, não possui uma natureza independente do contexto de relação (Gell, 1998:7).

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Os demiurgos e os objetos A tese de doutorado de Lúcia Hussak van Velthem denominada “Os índios Carib do Tumucumaque: etnoestética Wayana ”, defendida em 1995, foi considerada base para os estudos posteriores. Podemos ressaltar as ricas contribuições dadas pelas etnografias de Lagrou (1998) e Barcelos Neto (2004). van Valthem (2003) desenvolve toda a sua etnografia em torno dos objetos Wayana e da produção do belo – segundo o sentido atribuído pelos índios a este conceito. A partir da análise dos objetos Wayana, a autora nos permite compreender a complexidade nas relações produtivas que são construídas por meio da cosmologia. A produção, a tecnologia dos demiurgos e a corporalidade, valorizados segundo os padrões de grafismos Wayana, evidenciam a comunicação e a interação entre os seres humanos, animais e os seres invisíveis. Podemos notar, que os processos de transformação radical de humanos em seres animais antropozoomorfos, objetos inertes em seres monstruosos são relatados repetidas vezes nos mitos indígenas. Para os Wayana, a produção dos artefatos, na maioria das vezes, é resultado de processos de metamorfose, como é o caso do mito da flecha, que era um guerreiro cego que se transformou nas flechas utilizadas pelos Wayana, ou ainda aquele mito em que os trançados transformam-se em mulheres lindas, e unhas em flautas. As matérias primas utilizadas para produzir os objetos são consideradas as mesmas substâncias usadas pelos demiurgos para criar os seres humanos, alimentos e animais. Sendo assim, pessoas e objetos podem sofrer transformação, pois ambos foram feitos com utilização de substâncias tecnológicas como o arumã, a argila e a madeira que buscam certos efeitos essenciais nas festas. A tecnologia dos demiurgos pode ser considerada perigosa, e por esse motivo, deve ser constantemente controlada. Como? Para os Wayana, os objetos devem ser produzidos de acordo com as regras estabelecidas por esses demiurgos. Geralmente as orientações são dadas nos mitos. As atitudes dos demiurgos apresentam elementos de transformação, demonstrados nas tecnologias utilizadas nos tempos primevos. Na época em que os demiurgos existiram, ocorreram uma série de eventos caóticos, na maioria das vezes com finalidade predatória, como relatam os mitos. Atualmente, as orientações

85 demonstradas nos mitos apontam para o controle da obtenção de matéria prima e outras regras pré-estabelecidas. Isto quer dizer, produzir os objetos devagar, cada um deles deve ser terminado, utilizá-los de maneira adequada e comedida. Devem ser devidamente armazenados, e é necessário evitar fazer objetos em excesso e, principalmente, deve-se produzi-los em horários determinados. Por exemplo, os Wayana evitam trabalhar durante a noite, pois este tipo de atitude poderia atrair espíritos em forma de ratos. De acordo com van Velthem, o conhecimento das práticas artesanais inclui compreender os rituais e as narrativas míticas, pois todas estas habilidades estão estritamente associadas. No entanto, quaisquer alterações nas regras estabelecidas pelos demiurgos podem provocar catástrofes ou trazer muitas doenças, afetando algumas vezes toda a comunidade. Os objetos devem ser produzidos para trazer estabilidade e organização. “Os objetos são, portanto, compreendidos enquanto cópias, imagens dos elementos existentes nos tempos primevos porque os substituem, porque tomam o lugar, no presente, daquela criação do passado ” (van Velthem, 2003:94). Os Wayana insistem em dizer que nada criaram ao longo dos anos. Sendo assim eles são instrumentos que experimentam a tecnologia demiúrgicas. Os objetos proporcionam situações rituais cotidianos, apresentam as características dos demiurgos. Os artefatos são extensões dos corpos dos seres primordiais, com as mesmas características corporais, pinturas e adereços. Os objetos produzidos estão interligados ao produtor, aquele que lhes deu formas. “Como as partes do corpo, que não podem ser descritas sem pronome possessivo, as coisas e pessoas, feitas por esse mesmo corpo, devem se enquadrar na mesma concepção” (van Velthem, 2003:141). Por isso, possuir “algo” ou “alguém” está diretamente associado ao “saber fazer”. Através dos grafismos feitos nos objetos, consegue-se ver algo que não se consegue enxergar com a visão convencional. Em cada padrão gráfico se identifica uma entidade, e, ainda, muitas outras além dela. O desenho existe enquanto imagem de uma elaboração das entidades não humanas. Através da fala materializam os padrões gráficos em um suporte.

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Os caminhos e os objetos As análises de Lagrou (2007) sobre os objetos Kaxinawa têm como base conceitual a influência da percepção imaginativa em gerar ou destruir imagens sólidas e fluidas, visíveis ou invisíveis.

É na luta pelo controle da forma que se baseia a sócio-cosmo- política Kaxinawa. Porque forma, atenção e cognição são indissoluvelmente imbricadas para os Kaxinawa, as transformações sofridas pelas formas adquirem importância ontológica inestimável. Mas somente os yuxin, espíritos, estes humanos não humanos do universo Kaxinawa, possuem o poder de transformar sua forma, seu corpo ou sua roupa e é esta fluidez da sua forma o verdadeiro perigo que representam para os humanos. São seres sem corpo, porém desejosos dos corpos, seres sem forma fixa que desejam transformar e mutilar as formas sólidas dos corpos humanos (Lagrou, 2007: 29). Neste sentido, o papel do desenho (kene) se destaca por estabelecer a fixação das formas em superfícies corporais ou materiais, pois a função destas formas fixas é auxiliar na ligação entre a transição da percepção imaginativa para a imaginação perceptiva, ou melhor, as mudanças de imagens percebidas pelos olhos no estado do corpo para as imagens perceptíveis somente pelo olho mental ou “yuxin do olho ”3 (Lagrou, 2007:28). Uma velha índia, disse à Lagrou que “o desenho era a linguagem do yuxin” (Lagrou, 2007:119). A relação entre linguagem e grafismo, nos conduz para compreender que a arte kaxinawa é uma forma de comunicação não verbal.

Alguns argumentam, por exemplo, que a imaginação é oposta à percepção (...). Outros sustentam que percepção é uma forma de imaginação (como a afirmação de que a percepção visual é uma construção), enquanto outros argumentam que a imaginação é uma forma de percepção (por exemplo, que o sonho é o testemunho de outro nível de realidade). Outros ainda argumentam em ambas as direções, e dialeticamente, a favor da percepção imaginativa e da imaginação perceptiva (Schweder, 1991 apud Lagrou, 2002). Seguindo uma análise de Gregory Bateson (1977), Lagrou propõe que o desenho Kaxinawa se refere a relações, ao estar conectado. Por isso os desenhos podem ser considerados o mecanismo apropriado para estar relacionado com diversos níveis da vida Kaxinawa, ou seja, o desenho é uma

3 Segundo a autora (2007) a matéria precisa estar preenchida de yuxin, considerando que sem yuxin, todas as coisas tornam-se uma coisa vazia.

87 catografia para materializar as alucinações e perceber o invisível. Lagrou (2007) afirma que um povo materializa suas intenções nos artefatos e nas imagens. Dito isso, posso começar ressaltando os pontos principais de uma das primeiras análises a respeito dos grafismos indígenas: o estudo de Peter Gow (1989) sobre os grafismos Piro, que serviu como ponto de partida de Lagrou, em sua inserção no debate sobre a arte. Neste trabalho, Gow, ao analisar relatos sobre a escrita de um chefe Piro, estabelece uma relação entre o xamanismo e a escrita. Segundo Gow (1989), a interpretação dos Piro sobre o domínio da escrita estava vinculada ao xamanismo. O líder da aldeia afirmava ler todos os jornais que chegavam a suas mãos sem saber ler nem uma palavra. Fazia assim porque a escrita, como também os grafismos visualizados pelos xamãs em suas experiências com a ayahuasca, permitiam observar aspectos de uma comunicação não acessível a maioria da população. E, ainda, diz Gow, para além desta interpretação gráfica da escrita, colaborava a maneira como a leitura era realizada – por meio de sopros e fumaças. Desta forma, os Piro estão interessados nos desenhos e não nos significados deles. A importância do desenho ou da escrita está vinculada à “transformação operada por sua aplicação em determinada superfície de coisas ou corpos” (Gow, 1989; 25). Ele (1989) chama atenção para a função de mediação dos desenhos gráficos entre o mundo dos corpos e da imagem, do visível e do invisível. A questão que ficou no ar após a análise de Gow, é saber se os desenhos causam efeito independente do contexto e das relações ou se eles são importantes por eles mesmos. Lagrou ressalta que não é necessário desconsiderar a abordagem semiótica, pois formas e significados estão interdependentes por meio da produção de sentido no contexto interacional . O tema central que contextualiza toda a reflexão é a teoria da agência de Gell, considerando o poder das imagens materiais e corporais. No entanto, percebemos o caminho da agência, no momento que Lagrou afirma que é na fluidez da forma perceptível que se baseiam os conceitos de índice de agência, eficácia e poder.

Tipos muito diferentes de sujeitos, todos ligados, uns aos outros, numa relação unidirecional de causa e efeito, isto é, de

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agentes cujas ações produzem pacientes que, por sua vez, podem se tornar agentes, quando reagem à ação que sofreram (Lagrou, 2007:55). Nessa abordagem dos elementos kene, yuxin e dami constituem um objeto. O primeiro é um padrão gráfico e o desenho, o segundo está relacionado a imagem e a agência, e o terceiro a figura e a transformação (Lagrou, 2007). A filosofia Kaxinawa está constituída em torno da fabricação de formas sólidas e o poder de imagens flutuantes. Essas imagens aparecem de três maneiras: na forma de espíritos (yuxin) e seus donos (yuxibu), na forma de transformações de imagens (dami), e finalmente na forma de caminhos mostrados nos desenhos (kene). Assim, a autora ressalta os aspectos agentivos do desenho, o de conectar e mostrar os mecanismos para a transformação. O dono dos espíritos da jibóia (yuxibu) deu ao homem a ayahuasca, a possibilidade de ter visões, e às mulheres, o conhecimento dos desenhos. Todos os desenhos do mundo podem ser encontrados na pele da jibóia, na qual um desenho pode ser transformado em outro.

Os sonhos e os objetos Aristóteles Barcelos Neto (2004) faz um registro detalhado do mundo cosmopolítico wauja, no qual os objetos estão articulados a uma rede de interação social, cuja agência está na presentificação ou personificação dos apapaatai que constituem poderes patogênicos. A proposta de Barcelos Neto (2004:17) para analisar os objetos Wauja não deixa dúvida quanto o suporte teórico, em que se destacam a idéia de arte como agenciamento presente na obra de Alfred Gell, apresentado anteriormente neste mesmo capítulo, e, ainda, o perspectivismo de Eduardo Viveiros de Castro. No mundo altamente transformacional do perspectivismo ameríndio, tal como definido por Eduardo Viveiros de Castro (1996) e Tânia Stolze Lima (1996), considera-se que a apropriação da perspectiva do outro pode ser altamente perigosa, uma vez que implica a transformação do corpo, e desta forma do mundo. Neste caso, “não é o mundo que se diferencia em razão de

89 uma representação, mas sim os pontos de vista é que variam de acordo com a modificação dos corpos ” (Viveiros de Castro, 2002:379). A humanidade não é algo que pertence somente a uma espécie, ela é considerada comum entre animais, humanos e espíritos, apontando para o fato de que todos os seres são capazes de agir ou atuar como pessoas. Isso significa afirmar que tanto o meu ponto de vista quanto o ponto de vista do tatu canastra agem da mesma maneira . Em suma, “o referencial comum a todos os seres da natureza não é o homem enquanto espécie, mas a humanidade e nquanto condição” (Descola, 2002:110). Trata-se de identificar a distinção entre a espécie humana e a condição humana. Tal idéia está associada ao fato de que a condição de sujeito não está definida, visto que ela depende da perspectiva do outro. O corpo ameríndio é identificado sempre em relação aos corpos de outros seres, desta forma, a espécie é uma vestimenta que esconde uma forma humana comum, normalmente reconhecida apenas aos olhos da própria espécie ou percebida apenas pelos pajés yakapá. Esse formato interno humanizado é a essência da alma do animal, com intencionalidades e consciência em uma base corporal humana camuflada em vestimenta animal. No entanto, variando os corpos, ou seja, as roupas, variam-se também os pontos de vista. Na teoria do perspectivismo ameríndio, as relações com animais, espíritos e demiurgos apontam para mundos diferentes, pois o corpo demonstra os poderes perceptivos, a maneira de se expressar e de agir da alteridade, e dessa forma indica o ponto de vista do outro. Ou seja, há uma relação entre minha perspectiva e a perspectiva dos animais e dos espíritos, pois nossas perspectivas apontam para mundos extremamente diferentes. De acordo com a teoria de Viveiros de Castro (2002), o tatu canastra, por exemplo, têm as mesmas obrigações que os seres humanos: cuidam dos filhos, buscam alimentos, fazem roça, produzem objetos, etc. Esses tatus se vêem como seres humanos, da mesma maneira que nós nos enxergamos. Porém, enquanto nós, seres humanos, os enxergamos como presas a serem capturados, eles nos enxergam como espíritos que podem roubar suas almas. Dizer então que os tatus e os outros animais são pessoas, é conceder aos não humanos habilidades humanas como agência, intencionalidade e consciência. Tais habilidades estão instituídas na alma. Sendo assim, é considerado sujeito todo

90 ser que tem alma e pode ter um ponto de vista. Porém, estes pontos de vista podem ter variação, ou seja, os corpos podem se transformar de acordo com a assimilação do “outro”; uma determinada espécie pode transitar entre as categorias animal, humana e espiritual, podendo também adquirir capacidades das três entidades. O que está em jogo, é a possibilidade de interferir em dimensões distintas através da obtenção do ponto de vista do outro (Viveiros de Castro, 2002). Visto que a perspectiva dos seres humanos aponta para um universo absolutamente diferente da dos tatus, por exemplo, a única maneira dos seres humanos conhecerem esse mundo distinto é assumindo o ponto de vista deles. Fica então estabelecido que a noção de ponto de vista não deve ser interpretada através da teoria do relativismo ou das interpretações dicotômicas. A respeito dos Wauja, povo alto xinguano, Barcelos Neto afirma: “as múltiplas possibilidades de ser nos empurram para uma lógica do isto e aquilo e não do isto ou aquilo” (Barcelos Neto, 2008: 86). De acordo com o dicionário Houaiss, a palavra perspectiva é composta pelo ver e pela preposição per, que significa através. Isto é, perspectiva significa ver a coisa sob determinado aspecto ou ver através. O aspecto é algo que se revela em um determinado momento que apenas se mostra em uma perspectiva. De fato, “ainda que os corpos operem da mesma forma, cada ponto de vista remete a um mundo completamente distinto” (Viveiros de Castro, 2002:377). Desta forma, há uma mudança na relação entre natureza e cultura, na qual a concepção ameríndia conserva categoria cultura pertencente a todas as entidades e faz a natureza transitar em vários campos. Só poderia ser desta forma, pois, sendo pessoa em seu próprio universo, os não humanos agem como a gente: cuidam dos filhos, fazem rituais, caçam e produzem objetos, mas as coisas que eles vêem são outras; o que vemos como carne podre, para os urubus são peixes. Por quê? Os urubus vêem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos, porque seus corpos são completamente diferentes dos nossos. Portanto, a proposta do perspectivismo ameríndio é desconsiderar a dicotomia natureza e cultura apontando para o que Viveiros de Castro (2002) denomina de multinaturalismo. Como um ser humano pode mudar de natureza? O processo de transformação envolve a possibilidade de

91 apropriar-se do ponto de vista do tatu, por exemplo, isto quer dizer, que a alma precisa apropriar-se desse corpo através dos modos de ser a agir desta espécie: morar em buracos, comer insetos, ter muitos filhos como os tatus. Em certa ocasião, a pessoa acaba aceitando comer um determinado alimento oferecido pelos animais, aparentemente apetitoso, mas, a rigor, pode ser inseto, sangue, capim. “É um tipo de mundo em que o verdadeiro conhecimento é condicionado, não pela retirada do sujeito, mas por sua apropriação de uma posição dentre as muitas ali existentes” (Lima, 2002:17). Assumir o ponto de vista do tatu, mas retornar para a perspectiva dos seres humanos, por isso, os corpos não apontam para o mesmo universo. O tema central de Aristóteles Barcelos Neto é que, através das festas, a potência de apapaatai é apreendida pelo doente, que se transforma de vítima da predação dos apapaatai em patrocinador da festa, produtor de objetos e distribuidor de alimentos. O argumento de Barcelos Neto supõe que humanos, animais e espíritos, estejam inseridos em um sistema sociocósmico, no qual as disputas e as negociações estão apontando para a predação e a produção de parentesco. Assim, “a doença é um estado que potencializa a produção artística e intelectual, pois ela é a condição primeira de transferência de estados criativos sobrenaturais para o interior da sociedade Wauja ” (Barcelos Neto, 2004:25). Os apapaatai têm a prática comum de roubar frações de alma, ato que desencadeia a doença. Um apapaatai pode desejar um objeto produzido pelos Wauja, como um colar de miçanga, por exemplo, pelos mesmos motivos que os índios o fabricam: enfeitar-se para rituais; ou, ainda, eles podem desejar um determinado tipo de alimento cozido. Os apappatai não têm acesso aos alimentos que são cozidos na fogueira como os peixes cozidos e os mingaus, pois para os espíritos, o rapto da alma “é a única forma de criar as condições de uma reciprocidade forçada com os humanos” (Barcelos Neto, 2008 :12). Seres humanos e apapaatai se relacionam constantemente através dos estados patológicos. Assim, através do roubo da alma dos humanos, os apapaatai buscam negociar os alimentos por intermédio do pajé. O fato de compartilhar alimentos e a doença pode prestar-se a significar diferentes perspectivas sobre o mesmo acontecimento: o que é doença para os humanos pode possibilitar o acesso aos alimentos dos humanos. Por um lado, aos olhos

92 dos humanos, temos um ato de predação que conduz a reconfigurar as relações através da comensalidade e da familiarização, por outro lado, na perspectiva dos espíritos, trata-se de reciprocidade. Barcelos Neto entende o ritual como uma possibilidade de familiarização dos espíritos que são convocados a compartilhar o alimento cozido. Desta forma o doente se torna o patrocinador da festa e em troca recebe a sua alma de volta. Carlos Fausto aponta que na sociedade Parakanã, a comensalidade não opera meramente um processo de produção de corpos, mas implica comer “como” e “com” alguém. É importante enfatizar que, para Fausto (2007), o compartilhamento da comida não é apenas uma característica da relação entre parentes, mas de fato produz parentesco, operando como um modo de produção de “pessoas do mesmo tipo”, num processo denomina do por ele de “familiarização”. Em seus comentários sobre o artigo de Carlos Fausto, Barcelos Neto (2008) afirma que através do processo de familiarização, o espírito pode ser convertido em agente protetor. Para que animais, espíritos e pessoas convivam juntos, é fundamental a criação cotidiana de boas relações entre elas, por meio da comensalidade. A comida possui um lugar fundamental nesse processo, uma vez que o compartilhamento eventual de alimentos cozidos possui importância na constituição dos laços sociais e da manutenção do parentesco nessas sociedades. Os homens aprendem a controlar o poder dos espíritos, compreendendo os mecanismos de predação e troca, sendo sua tarefa providenciar objetos, mingau e peixe para compartilhar com os espíritos no centro da aldeia. A reunião em torno dos alimentos tanto gratifica o corpo como permite a troca. Segundo Barcelos Neto (2001), adoecer é assim “passear” com apapaatai, através da captura de uma parte da alma. Enquanto, a cura, por sua vez, implica “trazer” apa paatai, por meio do conhecimento do xamã que possibilita a “familiarização” dos apapaatai entre os h umanos, e por último, o “fazer” apapaatai que constitui a possibilidade de fazer rituais e má scaras para agradar o espírito. Posteriormente, tais apapaatai são trazidos por parentes da vítima, que vestem os ornamentos, máscaras e utilizam os instrumentos, e, passam assim a ser reconhecidos como kawoká-mona do doente. O doente assume então a responsabilidade de patrocinar o ritual (naka owokeho), buscando alimentos,

93 produzido e armazenando os ornamentos e os objetos e compartilhando substâncias com os apapaatai. Desta forma, a doença institui uma relação com apapaatai, enquanto a cura e a comensalidade converte essa relação em familiarização. Por meio dos kawoká-mona, os parentes que ajudam na organização da festa, seguindo Barcelos Neto, os familiares tornam-se apapaatai, e, conseqüentemente, apapaatai comem comida cozidas e se tornam temporariamente parentes. De acordo com Barcelos Neto (2001), sem a identificação dos apapaatai pelo pajé e sua familiarização pelos kawoká mona, aqueles gravemente doentes tornam-se animais.

Iconografia Wauja Os padrões gráficos wauja não são representação, e sim extensões ou, ainda, o contato efetivo com os apapaatai. A relação entre os dois é de qualquer forma, extremamente perigosa, pois os entes são agentes patológicos. Na e tnografia wauja, o fato de “trazer” apapaatai quando o pajá identifica quem foram os apapaatai responsáveis pelas doenças, o que proporcionará a materialização do ritual para o agente patológico através da produção de alimentos, máscaras, instrumentos, beija-flores, morcegos, zunidores ou cantos todas as produções baseadas nos apapaatai. Neste momento, o vínculo ou a familiarização entre espíritos e humanos é estabelecido. Em suma, como ressalta Barcelos Neto (2004:81), “o nexo das relações interseriais busca a aproximação produtiva dos dois pólos via doenças graves e rituais, sendo que os meios para tal aproximação são oferecidos pelos yerupoho através da introdução de substâncias xamânicas no corpo dos humanos e do rapto de suas almas”. Cabe ainda consider ar, que de acordo com a etnografia wauja, os espíritos se humanizam e os seres humanos se tornam consideravelmente apapaatai. Por um lado, o fato de compartilhar alimentos transforma os apapaatai em seres humanos, por outro lado, os objetos, em geral, transportam os humanos para o cosmos. Os dois textos de Barcelos Neto, apontam para o sentido dos objetos wauja no contexto social, mostrando que eles transitam entre o tempo mítico e o tempo atual. As máscaras, os bancos, os grafismos já existiam nos tempos primordiais.

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CAPÍTULO 4 - Os circuitos dos objetos e dos serviços

Descrevo e analiso, a seguir, a maneira pela qual se processa a circulação e a troca dos objetos e serviços na sociedade. Estas trocas através do comércio de objetos continuam pautadas em negociações com apapayêi, reciprocidade e generosidade. Veremos que as relações baseadas em prestígio são acionadas especialmente pelas trocas assimétricas que oscilam em fluxos de doações e retribuições. Em cada processo de dádiva, a retribuição é sempre incerta. E é essa indeterminação, aquilo que não foi acordado, que cria o vínculo social e o vínculo das coisas (Mauss, 2003:232), trazendo prestígio para aquele que doa o que dispõe. Os objetos e os serviços promovem condições de destaque em graus variados de prestígio, e, assim, integram a sociedade a partir de uma perspectiva de mundo compartilhada - dar, receber e retribuir é o motor de produção e reprodução da sociedade. Ao focar a investigação na circulação dos objetos, percebe-se a fórmula maussiana, de que há mais nas trocas do que nas coisas trocadas. Primeiramente, será enfocado o espaço ritual da aldeia que está sendo construída, a casa dos homens, e, concomitantemente, com ela o trabalho coletivo, o mutirão. Em seguida, a abordagem será sobre as regras de retribuições que ocorrem entre os Mehinako e os brancos/pajés/irmãos/namorados e amantes.

O mutirão para a construção da casa dos homens Todo o espaço interno da aldeia é aberto, formando uma praça que não possui cobertura e, exatamente no centro dessa grande área, constrói-se a casa dos homens. Ela é uma estrutura cônica feita de diversas madeiras, embira e sapé. A casa dos homens tem um dono, geralmente um apapayêi. A praça é o lugar onde são realizadas as cerimônias coletivas e as mortuárias, também utilizada como espaço recreativo. Diante da casa dos homens há um banco em que os homens sentam para tomar decisões comuns, sobretudo, referentes à caça, pesca e, etc. Na maioria das vezes, as mulheres evitam utilizar a área central e circulam pelas áreas periféricas da aldeia. As mulheres

95 não têm um local específico para reuniões, como a casa dos homens. Elas passam a maior parte do tempo dentro de suas casas, entre seus parentes, mas isto não impede que saibam de tudo que acontece na casa dos homens. Ao contrário, estão sempre informadas pelas crianças e pelos próprios maridos, que podem circular pela aldeia. A casa dos homens (Kuakuhu), aparentemente, é similar às construções destinadas à moradia, porém há diferenças, entre as duas, que podem ser percebidas nas entradas e finalidades. Esta casa tem apenas uma entrada principal, comumente voltada para o nascer do sol, e outras duas entradas, menores. Além de armazenar os objetos rituais, é um local para realizar as reuniões conduzidas pelo chefe, em que os homens discutem as questões sociais, decidem as atividades coletivas, como, por exemplo, o mutirão da pescaria e da caça. Relembram também os acontecimentos do passado, discutem as alternativas para enfrentar as dificuldades econômicas e distribuem os alimentos para homens e espíritos. Normalmente, a principal função desta casa é o armazenamento das flautas sagradas, denominadas Kawoká, que ficam penduradas na sustentação central do teto, e representam o espírito Jakuí 4. Contudo, durante minha estadia, os Mehinako preferiram esconder estas flautas na mata, pois a casa dos homens estava em fase de construção. Esta mesma área, no terreno da praça, é o lugar onde cavam o sepulcro, que pode ser perfurado de duas maneiras: com uma ou duas covas. Na primeira maneira, o corpo do morto é enterrado em pé, mas a segunda opção de enterro é a mais comum: cavam-se dois buracos paralelos, perfuram um túnel prolongado para ligar as duas covas e colocar o corpo do falecido; o morto é coberto por sua rede, deitado na cova, depois colocam uma esteira sobre o rosto, e se despeja terra. A sepultura tem de “80 a 100 centímetros de diâmetro, e aproximadamente 2 metros de profundidade” (Agostinho, 1974: 46). Outra prática realizada na praça central é o treino da luta huka-huka, o esporte xinguano em que os competidores buscam derrubar o adversário. O treinamento é realizado quase diariamente, quando a festa do Kwarup está se aproximando. Esta festa acontece para homenagear os mortos que partiram

4 Trataremos sobre o ritual das flautas kawoká no capítulo 6.

96 para a aldeia celeste. No dia da competição, o dono da festa seleciona competidores da mesma faixa etária e de outro grupo étnico. Pelo fato da casa dos homens da aldeia Utawana ainda estar em fase de construção, consegui participar de todas as reuniões juntamente com os homens e observar como são realizados os mutirões para a construção da estrutura. Para construir uma casa dos homens, é preciso que seu dono produza um rito para realização.

Fig. 25, 26 e 27 - Casa dos homens em fase de construção

O mutirão é uma forma de trabalho coletivo importante para reforçar alianças políticas entre parentes próximos e aliados e pessoas de facções distintas dentro do grupo. Esta modalidade de trabalho enfatiza o prestígio social através da generosidade. Entretanto, isso não significa que não ocorram conflitos. De maneira geral, o mutirão é organizado para uma atividade coletiva para a qual a família nuclear não dispõe de membros suficientes para o trabalho, pois requer um número significativo de pessoas. Nesse caso, a construção da casa dos homens ocorreu após um grande número de pessoas ter ficado doente em função do apapayêi . Normalmente, qualquer mutirão é realizado após uma boa colheita de mandioca e na época da abundância dos peixes, pois é preciso muita comida para alimentar todas as pessoas que participam da construção e o apapayêi dono da casa dos homens. Após avaliar o melhor momento para realizar a atividade coletiva, certificar a identificação da doença de um grande número de pessoas, definem-se os participantes. A convocação acontece no centro da aldeia a partir da escolha de um grupo de homens jovens, feita pelas pessoas que estão patrocinando a construção da

97 casa dos homens porque ficaram doentes. O convite para a participação de um mutirão é irrecusável, nunca se nega ajuda ao grupo. É considerado um privilégio ser convidado para um trabalho coletivo de construção de algo para beneficiar a coletividade. O fato de negar um convite desta importância poderia gerar comentários de acusações de feitiçaria. O serviço coletivo é uma manifestação pautada na reciprocidade, generosidade e na troca dadivosa. Os patrocinadores da construção da casa dos homens adquirem uma dívida com aqueles que colaboraram com a construção. A dívida não é paga no ato da construção, isso acontecerá quando os colaboradores precisarem de ajuda no pagamento de festas para os apapayêi em suas futuras doenças. Ou seja, a reciprocidade no caso dos serviços coletivos somente pode ser retribuída através de outros serviços da mesma natureza.

Fig. 28 - Mutirão

No caso deste mutirão organizado em 2008, comentavam a necessidade de construir uma casa dos homens. O pajé havia sonhado diversas vezes que o apapayêi das colheitas estava bravo, e que iria em breve deixar algumas pessoas doentes. Logo em seguida aconteceu uma tempestade que levou a casa de uns dos chefes, e atribuíram o ocorrido ao fato de não haver uma casa dos homens no centro da aldeia até aquele momento. Meses depois, três crianças encontravam-se muito doentes, com sintomas de gripe forte: febre,

98 tosse e mal-estar. A gripe prolongou-se e desencadeou uma pneumonia grave em uma das crianças. A casa dos homens repercutia essas condições, era como se as doenças fossem consequências do adiamento prolongado da construção de algo tão importante em uma aldeia xinguana. Mas o que mais demanda esforços para os patrocinadores da construção - os pais das crianças gripadas e o chefe que teve a sua casa destruída pela tempestade - é a distribuição de alimentos e a retirada de matérias-primas. Entretanto, os patrocinadores não providenciam mingau, peixe, beiju, troncos de árvores, sapé e bambu sozinhos, mas contam com o trabalho coletivo destinado à obtenção de alimentos e matéria prima, que coloca em movimento um enorme fluxo de dons e contra dons. O trabalho de construção da casa dos homens é masculino, e com a contribuição feminina para a preparação dos alimentos. Os homens mais jovens trazem a matéria prima, e os mais velhos são os responsáveis pela construção da casa. Alguns meses após o início da construção da casa dos homens surgiram comentários ruins sobre a organização do mutirão. A quantidade de peixe, mingau e beiju para alimentar todos os colaboradores não foi suficiente. Os donos da organização do mutirão não estavam com boas relações com o grupo dos não-aliados. Essa complexa organização do mutirão envolve a movimentação adequada de interações sociais entre grupos não aliados, o que torna esta atividade uma possibilidade de aliança política, todavia, também podendo ser fonte de disputas internas e tensões sociais, pois o que está em jogo é, sobretudo, o prestígio dos patrocinadores e a cura das doenças. Nesta ocasião, após esta disputa interna, a construção da casa dos homens foi interrompida temporariamente.

Circulação dos objetos Roupas, pás de beiju, beija-flor, zunidores, colares, panelas, sabonetes, pilhas, lanternas, fósforo, bambu, penas, cadeados, pequi, aparelhos eletrônicos, bancos, sal de aguapé, cadernos, canetas, praticamente qualquer coisa pode ser trocada, exceto as roças, casas, máscaras e flautas sagradas, por estarem ligadas aos apapayêi. Esses últimos tornam-se extensões dos espíritos que se conectam com seus donos. Por isso, é necessária a realização de festas antes da comercialização das máscaras e das flautas, mas elas nunca podem ser convertidas em objetos de troca entre seres humanos; eles

99 concretizam e permitem reproduzir relações de sedução e trocas entre seres humanos e apapayêi, e, por esse motivo, não podem ser trocados por qualquer outra coisa, mesmo que seja algo extremamente valioso. Em caso de morte do dono dos objetos rituais, eles podem ser transmitidos para os parentes do núcleo familiar, ou devem ser enterrados juntamente com o falecido. Em caso de os parentes não aceitarem tais máscaras e flautas, as mesmas devem ser obrigatoriamente queimadas o mais rápido possível. Cabe ressaltar que existe uma relação de parentesco entre estes objetos e os apapayêi e o dono dos objetos rituais apontados, o que é absolutamente diferente da relação de propriedade.

Retribuição para o pajé As pessoas que possuem bens industrializados e sabem produzir objetos indígenas valiosos para presentear o pajé são consideradas privilegiadas, ou seja, dignas de respeito e admiração. Percebe-se que somente as pessoas que conseguiram acumular colares de caramujo e bons objetos industrializados, comprados nos grandes centros ou oferecidos por amigos e pesquisadores, possuem a chance única de serem curadas por um pajé e, sobretudo, podem obter a proteção de um apapayêi ao longo da vida e depois da morte. Apesar de ser um tratamento de custo elevado, obrigatório e previamente combinado, é, mesmo assim, uma troca sempre considerada vantajosa, pois é uma proteção válida para a vida toda e, principalmente, para a morte. Quanto custaria ter a alma de volta? Nada poderia pagar essas duas situações. Um Mehinako faria qualquer coisa para adquirir proteção durante a vida e perder o medo de adoecer por causa dos desejos não realizados ou poder caminhar sozinho nos pomares de pequi sem sofrer o risco de ter a alma roubada. Aqueles que não conseguem adquirir bens industrializados e não aprenderam a produzir colares de caramujo, bancos, barcos, redes e cerâmicas, quando doentes são diretamente encaminhados para um agente de saúde, e, em seguida, são direcionados para o serviço público de saúde gratuito na cidade de Gaúcha do Norte. Os serviços do pajé devem ser pagos para confirmar a eficácia do tratamento. Ouvimos alguns Mehinako dizendo “sem pagamento o tratamento não funciona”. O pajé que cura um parente, geralmente aceita objetos de pouco valor ou não cobra. Entretanto, aqueles

100 que não são parentes devem pagar caro. Os valores sofrem variações dependendo do tipo de cura. Se for necessário entrar em transe, deve-se pagar com algo valioso. Quando os Mehinako são questionados sobre a preferência de serem atendidos por um yakapá ou um médico, a primeira opção é sempre a escolhida, pois consideram que todas as doenças são causadas pelos apapayêi. Dificilmente um Mehinako consegue ser curado somente com remédios alopáticos. O yakapá é o único ser humano que consegue se comunicar diretamente com um apapayêi, pois ele é um elemento essencial para manter os ciclos das festas e das curas. Foram identificadas situações em que os Mehinako preferem utilizar as duas formas de cura: o yakapá e o médico tradicional, sendo que todas as vezes, o yakapá é consultado antes dos médicos. Existem duas atividades que devem ser pagas com objetos valiosos como dinheiro, couro de onça, enfeites de garra, bicicleta ou colar de caramujo: o trabalho do pajé e o ensino de produção de flautas. De acordo com o exemplo apontado acima, no caso da cura do pajé, aquele que não retribui com algo valioso não concede a cura. O pajé honrado não se constitui como tal sem que haja reconhecimento através da retribuição. Para que haja estímulo e continuidade, é necessário reconhecer que ambas as partes estão quites, um que concedeu a cura e o outro que retribuiu com um colar de caramujo, porque quem desafia alguém incapaz de responder, desonra-se.

Retribuições para amigos, irmãos e amantes Kulykurda disse que emprestou sua televisão 29 polegadas para o seu irmão mais velho, mas ele nunca mais devolveu. Por isso, ele estava economizando dinheiro para comprar um novo aparelho. Os irmãos não retribuem os objetos adquiridos de pessoas com este grau de parentesco. Se alguém quer algo de um irmão, ocorre de simplesmente pedir emprestado. Diversas vezes escutei Kulykurda dizer algo interessante sobre os objetos emprestados para o irmão “ele não precisa devolver ou re tribuir, pois eu ficaria ofendido ”. Dificilmente se nega um pedido de um irmão, mesmo que seja alg o tão valioso como a televisão, mas, obviamente, que aquele que emprestou algo pode sentir liberdade de pedir qualquer coisa do irmão em outras situações.

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As mulheres contam que quando vão às festas realizadas na aldeia Wauja, recebem muitos presentes das amigas. E as mulheres Wauja, quando participam de festas na aldeia Utawana, ganham os objetos retribuídos. Não se deve nunca retribuir imediatamente os objetos adquiridos, é necessário esperar a próxima festa ser realizada. Se a mulher Wauja deseja o vestido da amiga Mehinako, esta não pode simplesmente presenteá-la na mesma festa com o vestido. Como exceção, namorados e amantes realizam trocas regulares e imediatas.

Retribuição dos visitantes caraíba Em 2007, um grupo de uma Ong em São Paulo negociou com o presidente da associação um valor alto para fazer um trabalho de produção de livro e DVD com os Mehinako. Neste acordo, os empresários prometeram que depositariam uma alta quantia em dinheiro pelas filmagens, fotos e entrevistas. Então, o chefe se propôs a patrocinar um ritual para aquele espírito que o deixou doente alguns anos atrás, e assim aproveitou a oportunidade para conseguir ganhar dinheiro com o ritual. Entretanto, logo após as filmagens, o dono da festa solicitou da equipe de filmagens um pagamento individual pelo trabalho dele como patrocinador da festa. Logicamente, o presidente da Ong não aceitou a solicitação do dono da festa, que pedira uma parte da quantia depositada na conta da associação para pagar os serviços do ritual das festas. O chefe defendeu a comunidade justificando que ele já havia recebido as devidas retribuições no dia da festa. Esse caso é emblemático para analisarmos a entrada de caraíbas na economia do dom alto xinguana, sobretudo a partir dos rituais. Uma troca, diz Gregory (1982), é um acordo que envolve dois indivíduos e dois objetos. A diferença entre uma troca-dom e a troca-mercadoria é que a primeira inaugura uma relação entre pessoas, enquanto a segunda estabelece uma relação somente entre coisas. Outra característica da troca-dom é que ela estimula o aumento do número de seguidores. Segundo Gregory, seguindo Mauss e Lévi-Strauss, quem doa assume uma posição favorável, pois a troca-dom é fundada em uma relação social. Seguindo a lógica da dádiva, não seria diferente com os pesquisadores, visto que quando retornam para suas casas, levam coisas doadas, mitos, fotografias e informações que pertencem ao grupo. Na maioria das vezes, os

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Mehinako aguardam sempre os mesmos bens industrializados dos visitantes como pentes, bola, vestidos, miçangas, anzóis, cigarro, linhas para bordados, facas, isqueiros, pilhas, calcinhas, sabonete, fósforo, arroz, suco, bolacha e bonés. Considerando que moram centenas de pessoas em Utawana, é realmente dispendioso entregar todos estes itens, mas é comum escutarmos reclamações de que quantidade de produtos não foi suficiente para satisfazer todos. Os Mehinako comentam que em algumas aldeias do entorno, pesquisadores são obrigados a pagar uma quantia consideravelmente alta em dinheiro para ter acesso às informações do grupo.

Huluki interno Qualquer um pode ter objetos que deseja trocar, e realizar um huluki. Neste tipo de evento específico para trocas de objetos em geral, pessoas podem trocá-los até mesmo com desconhecidos. Este é o momento ideal para estimular relações acolhedoras, a melhor convivência e comunicação entre pessoas dentro da comunidade. Estes são encontros de troca para ambos os sexos, porém, quando uma mulher organiza um huluki, somente elas participam, e quando um homem o faz, somente pessoas do sexo masculino podem trocar objetos. Essas regras de etiqueta são ajustadas entre os agentes sociais, que contribuem para mantê-las vivas. A pessoa que organizou o huluki deve colocar um banco na porta da frente de sua casa, para o chefe pode ser sentar. Nesta cerimônia, o dono do huluki agradece os participantes do evento e os espíritos com o oferecimento de alimentos, como beiju e peixe. Quando o aglomerado de pessoas está reunido na casa, eles entregam aos poucos os objetos diretamente na mão do chefe e dizem o que gostariam de receber em troca. Feito isso, o mediador faz um som com a boca para marcar o início das trocas. O chefe então mostra o objeto em questão para todos os que estão ali reunidos, comenta em voz alta suas formas, vantagens e conteúdo, e, assim, estimula as trocas entre as pessoas, para que alguém considere logo o objeto oferecido. Por exemplo, podem ser trocados duas cuias por um colar de miçanga. Estas trocas estão relativamente determinadas como se demonstra na tabela a seguir:

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Objetos indígenas As trocas mais constantes Esteira simples Duas cuias ou colar de 8 voltas de miçanga

Remo Roupas novas, duas flechas prontas ou quatro fle chas que ainda não foram feitas

Colares de caramujo Cocar, bicicleta, duas bacias de alumínio, uma panela de barro ou uma canoa

Banco do pajé Um colar de caramujo

Cesto Colar de 60 voltas de miçanga, barbante grande para fa zer rede ou uma rede de caraíba

Pilão Colar de 60 voltas de miçanga ou uma esteira grande e uma rede de caraíba

Ralador Um colar de caramujo ou o colar de miçanga de 60 voltas

Penas de gavião e Cesta grande arara entre outras

Bola de massa de pequi Bola de massa de mandioca

A mediação de um chefe é considerada de fundamental importância para o grupo, pois o dono do huluki oferece um objeto sem ter certeza que irá conseguir trocá-lo, mas existem tentativas equivalentes para ambos os lados da negociação, tanto para aquele que oferece quanto para o que recebe. Justamente porque a troca é ritualmente marcada entre os Mehinako, há chefes responsáveis pela circulação e negociação dos objetos, homens e mulheres que ocupam posição de destaque e prestígio social na aldeia. A palavra huluki significa fazer acordos. Para os Mehinako, trata-se de um apapayêi parecido com um pássaro de nome não identificado, que também pode causar doenças. Em seguida, os participantes do huluki passam nas casas no sentido anti-horário, até completar uma volta completa na aldeia, entrando em todas as residências para oferecer objetos. Eu pude participar de um huluki interno para começar a compreender os mecanismos de troca ocorridos neste contexto.

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Enquanto os participantes passam nas casas, observam com desejo aqueles objetos que poderiam ser negociados. Quando esses objetos de cobiça não são oferecidos no huluki, julgam aqueles participantes mesquinhos. A quantidade e a qualidade dos objetos trocados determinam a imagem negativa ou positiva dos colaboradores. As pessoas estão sendo avaliadas por suas atitudes egoístas ou generosas em todos os momentos da troca. Qualquer objeto utilizado no cotidiano pode fazer parte do sistema de troca, inclusive aqueles que fazem parte das especializações materiais. Em todo Alto Xingu, a diferenciação material de cada grupo aponta para a necessidade da continuidade das especificidades materiais . Os Waujá e os Mehinako, por exemplo, receberam do Kuamutu, o avô ancestral, a capacidade oleira; são deles as panelas médias e grandes existentes nas aldeias. Os Mehinako da aldeia Uyaipiuku são os únicos responsáveis pelo processamento do sal de aguapé, encontrado na margem do rio onde eles habitam. Aqueles que em 2003 se mudaram para a aldeia Utawana não levaram o sal de aguapé para a nova aldeia, e, assim, os Mehinako da aldeia Utawana compram ou trocam o sal de aguapé dos antigos corresidentes. Os Trumai ganharam a capacidade de fazer os machados de diabásio, pois eram os únicos que tinham acesso a esta rocha. Posteriormente, estes machados foram substituídos pelos machados de metal. Os chefes Kamayurá usavam o arco escuro, feito de pau d´alho, diferente dos arcos de cor clara e tradicionais produzidos para todas as outras pessoas. Os Bakairi produziam as redes de algodão, os Nauquá (grupo extinto) forneciam as melhores cuias. Os Kalapalo e Kuikuro possuem a capacidade de produzir os colares e cintos de caramujo, um adereço muito valorizado e sinônimo de prestígio na região. (Von den Steinen, 1940:42). Um Karib, por exemplo, com um de seus colares, consegue trocá-los por uma canoa ou uma panela grande. No mito que me foi relatado por um dos líderes jovens Makaulaka, em 2010, aparecem as especializações nas trocas comerciais xinguanas:

O avô ancestral, Kuamutu, transformou as esculturas das madeiras ume, yuhemiru e mapu em mulheres. As madeiras esculpidas por Kuamutu se tornaram suas filhas: Atanumakalu, Yuhemirunexu e Mapunexu. Além destas filhas que ele produziu, havia a filha de verdade, uma garota do mato chamada Yapuxunexu. Uma das madeiras produzidas, Atanumakalu, casou-se com o chefe das onças e gerou filhos

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gêmeos: o mais velho é o Sol (Kamu), o mais novo a Lua (Kexu). Algum tempo antes dos gêmeos Sol e Lua nascerem, Atanumakau, mãe dos gêmeos, foi morta pela sogra. Na mesma hora, enquanto uma cuspiu a outra soltou gases, isso causou o falecimento da nora. Os gêmeos foram retirados da barriga e adotados por uma formiga. Para vingar a morte da mãe, eles decidiram matar a própria avó. Com o passar do tempo, já na juventude, resolveram transformar as funções dos povos que existiam na Terra Indígena do Xingu. Para isso, colocaram flechas e varetas fincadas em forma de um grande círculo. Estas pessoas foram divididas em grupos com seus líderes, e assim surgiram os grupos indígenas, as línguas diferentes. Completando o círculo, os gêmeos Sol e Lua movimentaram todos os povos para acontecer a transformação, e a partir desse momento eles se pintaram e guerrearam entre si. O pai onça quase foi morto. Após a luta, cada povo foi dividido com seu líder. Mostraram todos os objetos como enfeite de tornozelo (pitsapuku), cuia (hexuãkãi), cocar (yanakuipi), colares de caramujo (utai), arco (yukumi), lança (kamalupu), panela de cerâmica (mutu), armadilha de pegar peixe e arma de fogo. Assim ocorreu a escolha dos objetos preferidos para cada grupo: os Kamayurá e Aweti escolheram o arco preto (muyapi), utilizam matéria-prima de madeira escura chamada regionalmente como pau-d´alho e o cocar. Os Kuikuro, Kalapalo, Nafukua e Matipu optaram pelos colares de caramujo, considerados a joia do Xingu, muito procurados por todos os grupos do Alto Xingu. Os Mehinako e os Wauja escolheram os mesmos objetos, as armadilhas de pegar peixe, a rede de pesca, a cerâmica e o sal de aguapé; os Yawalapiti elegeram a lança (yukumi) para matar peixes, e, por fim, os brancos preferiram a arma de fogo e a vaca. Os transformadores não ficaram totalmente satisfeitos com as escolhas, pois gostariam que a arma de fogo e a vaca fossem escolhidas pelos indígenas, mas eles não sabiam a utilidade daqueles objetos, por isso não aceitaram os dois objetos. Além das trocas de bens, havia ainda a troca de pessoas, o que, por vezes, provocava a difusão de determinadas especialidades. Os Aweti, por exemplo, começaram a produzir cerâmicas graças aos casamentos realizados com mulheres Mehinako. Alguns etnólogos, afirma Dole (1993), sustentam que as especialidades são artificialmente criadas com a intenção de criar relações de amizade e dependência entre os povos. Entretanto, no Alto Xingu, o saber tecnológico é compartilhado por todos os grupos. As práticas de transferência do conhecimento tradicional fundam-se no mecanismo de reproduzir as semelhanças, e poucas vezes ocorrem modificações. A assimilação de técnicas materiais indígenas deriva de apropriações necessárias de cantos, músicas e objetos.

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As diversificações das especialidades se devem também à localização das matérias-primas, e dizem respeito aos meios de cada grupo para fabricá- los. Para os xinguanos, a diversidade de suas características culturais seria de responsabilidade dos demiurgos, que atribuíram as particularidades materiais a cada um. Os povos Karib, Kalapalo e Kuikuro são casos específicos de produtores dos colares e cintos de caramujo, pois na região onde eles moram é possível encontrar a matéria-prima adequada. Estes grupos ainda conseguem manter o domínio sob suas especificidades, visando tanto aos ganhos econômicos quanto a manter a continuidade das diferenças tribais, porém todas as outras etnias conhecem as técnicas de extração do sal ou produção de colares e cintos. O fato de manter o controle quase exclusivo destes produtos aumenta a procura pelos objetos. No caso dos grupos que nunca possuíram especialidades de produtos, oferecem objetos dos brancos. Na escala de valorização produtiva, os objetos industrializados são os menos trocados e procurados. As trocas são relativamente determinadas por valores préestabelecidos pelos grupos. Neste caso do huluki intertribal, o convite formal para o evento acontece pelo rádio ou pessoalmente em visitas esporádicas. Os Mehinako de Utawana normalmente aguardam as retribuições dos grupos que os visitaram nas datas anteriores. Eles realizam trocas em média com quatro grupos a cada ano, normalmente nas estações de abundância de alimentos e peixes. As trocas intertribais acontecem na praça central, onde simultaneamente ocorrem as lutas entre os grupos. Estas trocas configuram um fluxo restrito em que também podem trocar objetos valiosos, inclusive aqueles que estão associados às especializações de cada povo. O chefe anfitrião oferece dois produtos de uma vez. Preferencialmente, os primeiros objetos a serem trocados são os cintos e colares de caramujo dos Kalapalo, em seguida, as cerâmicas dos Wauja e dos Mehinako e os arcos dos Kamayurá. Em um segundo momento, trocam os objetos industrializados como bicicletas, televisões, DVDs, máquinas fotográficas, motos e espingardas. Alguns jovens visitantes gostam de exibir os produtos valiosos que trouxeram para trocar, principalmente a quantidade de colares de caramujo e as plumárias.

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A partilha dos alimentos Logo que o pajé revela o apapayêi que está adoecendo uma pessoa, a esposa ou irmã do doente providencia mingau frio e beiju e distribui no centro da aldeia. A pessoa que teve a alma roubada ou algum parente consanguíneo convoca os colaboradores (kawokámina) que deverão ajudar na organização da festa. Na organização de qualquer cerimônia, todos os serviços devem ser retribuídos, o que é sempre obrigação do dono da festa. Nestas festas ocorrem três tipos de relação de troca. A princípio, o dono do apapayêi; oferece alimentos para os colaboradores e os apapayêi, enquanto os primeiros retribuem com presentes, o segundo deve retribuir com a cura da doença. Evidentemente, quando se convidam os apapayêi para comerem juntos, implicitamente estão sendo convidando a fazer parte do que são, ou seja, convidam-nos para se familiarizarem com os Mehinako. Entretanto, o patrocinador da festa não consegue pescar ou preparar mingau e beiju sozinho, por isso ele conta com a contribuição dos colaboradores. Neste momento, ele aciona o fluxo de dons e contra-dons. Tratarei aqui do mutirão para a pescaria. Pretendo mostrar que o principal objetivo destes acordos entre patrocinador e colaboradores não é apenas de buscar a maior quantidade de peixes possível para a festa, mas a maneira como este alimento é distribuído nesta ocasião produz uma relação desigual entre colaboradores e patrocinador. A troca por dádiva é, portanto, uma questão de transmissão através da dívida. Quando a pessoa adoentada faz uma festa, precisa da ajuda de pessoas para buscar alimentos. Isso provoca uma dívida ou constrangimento ao patrocinador. O dom expressa-se na linguagem de uma intenção consciente, produzindo retribuição, instituindo um fluxo contínuo. Essa dívida não pode ser paga, pois ela é incessante. Desta forma, o dono da festa oferece alimentos aos ajudantes, e eles devem retribuir com presentes. No caso do apapayêi, ele retira a alma, a vítima oferece alimentos para o espírito retribuir com a devolução da alma. De aco rdo com Mauss (2003:212) “trata -se, no fundo, de misturas. Misturam-se as almas nas coisas, misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas, e assim as pessoas e as coisas misturadas saem cada

108 qual de sua esfera e se misturam: o que é preci samente o contrato e a troca”. Qualquer cerimônia se inicia com o oferecimento dos alimentos, pois os apapayêi consideram os humanos os responsáveis pelo fornecimento de alimentos cozidos. Os peixes aparecem nos mitos Mehinako como mais uma espécie de gente que vive em comunidade organizada em torno de um chefe dotado de prestígio e poderes xamânicos. Habitam aldeias dentro dos rios e são produtores de seus próprios alimentos. Antes de qualquer pescaria, o dono da festa deve negociar e seduzir o apapayêi do peixe, para que ele permita a morte de seus parentes. Para haver esta negociação, o organizador da festa oferece grandes panelas de mingau de pimenta a esse espírito, que são levadas até a beira do rio. Em seguida, despejam o mingau para o espírito em algumas partes do rio. Se o patrocinador da festa não saciar o desejo do espírito do peixe por mingau de pimenta, este poderá ficar furioso e provocar adoecimentos. A oferta de comida envolve ainda outras questões: “a oferta wauja de comida cozida aos apapaatai também implica uma relação de reciprocidade negociada” (Barcelos Neto, 2008:170). Partindo do princípio de que os peixes se vêem como parte da humanidade, e que precisam ser transformados em objeto de negociação, os Mehinako precisam assumir uma posição de predadores. As negociações são efetuadas de acordo com as alianças que passam por dons alimentares, “na troca por dádivas as coisas têm alma, são animadas, a própria coisa é alma, de modo que os vínculos pelas coisas têm alma, donde se conclui que apresentar uma coisa a alguém é apresentar algo de si – é preciso retribuir a outrem o que na verdade é parcela de sua natureza e substância; pois aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual ” (Mauss, 2003:200). A dádiva transmite, assim, uma substância e, sobretudo, uma essência espiritual e não apenas relações.

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CAPÍTULO 5 - O comércio de objetos

Como foi visto no capítulo anterior, a generosidade e a honra, constituídas nas práticas de reciprocidade, estimulam diversas relações sociais, das quais os objetos fazem parte. Cabe ressaltar que há outro canal de troca que faz parte de uma ordem distinta, mas que congrega diversos mediadores, agenciamentos, elementos materiais e interesses. Trata-se da comercialização dos objetos indígenas. Este modelo de organização baseado na iniciativa privada surgiu em meados de 80. Geridos pelos proprietários não- índios das cidades, as lojas armazenam os objetos e funcionam como intermediadores entre a comunidade, seus objetos e o mercado. Se em 1980 existiam poucas lojas, em 2012 o número de lojas quadriplicou, mesmo que mais concentradas em dois polos, a região sudeste e a norte. Embora a lógica de mediação das lojas especializada demonstre estar atendendo interesses conjuntos, ainda existem divergências de difícil solução. Primeiramente, as lojas não conseguem pagar a quantia estabelecida pelos índios, e os valores são desproporcionais, algumas vezes substituídos por objetos dos brancos/caraíba. Em segundo lugar, os Mehinako são incentivados pelos proprietários a modificar os objetos para agradar ao gosto do consumidor. Atualmente, no mercado global, os consumidores tendem a considerar autênticos todos os objetos indígenas, tendo sido ou não alterados para agradá-los, feitos ou não por um Mehinako. No caso especifico dos Mehinako, os proprietários das lojas especializadas consideram que os objetos feitos pelos índios que moram nas aldeias da Terra Indígena do Xingu têm muito mais aceitação como autênticos do que os objetos daqueles que moram nas cidades de Gaúcha do Norte ou Canarana. Assim, este capítulo tem por objetivo traçar as relações sociais envolvidas no processo de produção, distribuição e consumo de objetos indígenas Mehinako. A partir de entrevistas realizadas em pesquisas de campo - na aldeia Utawana e em loja especializada em objetos indígenas de Campinas -, através de observações e conversas informais, construímos um panorama da trajetória dos objetos que saíram para além do seu uso nas práticas comuns e rituais, e, sobretudo, foram encaminhados às lojas especializadas. O comércio de objetos indígenas em lojas assegura de alguma

110 forma a venda de peças, considerando que a aldeia Utawana é afastada dos grandes centros urbanos. Os principais focos de comercialização encontram-se localizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Manaus e Pará. As temporadas de maior venda são durante as festas de Natal e cerimônias realizadas em todo o Brasil para comemorar o dia do índio. Os Mehinako reconhecem que alguns objetos possuem mais valor e não poderiam ser vendidos em qualquer momento ou para qualquer pessoa. Por um lado, eles estabelecem um evidente discernimento entre os objetos que não podem ser comercializados ou somente podem ser trocados por valores equivalentes, pois são considerados extensões das pessoas, como algumas máscaras, a flauta kawoká e, em alguns momentos, as pás de beiju. Por outro lado, estão aqueles objetos que são “coisificados”, por estarem apartados das pessoas que os possuem, caso dos bens trocados entre os índios, como armas, aparelhos tecnológicos, panelas, roupas, miçangas, remos, bancos, sal, ornamentos, cães e canoas. Neste caso, as peças podem ser trocadas por outras de qualquer categoria, sem que isso pressuponha precisamente compensações equivalentes. No entanto, no primeiro caso, os objetos estão submetidos aos preceitos de circulação convencional, considerando que não admite a não reciprocidade com pessoas ou espíritos. Por exemplo, as máscaras somente podem ser trocadas por um bem ou o pagamento em dinheiro com um valor relativamente equivalente e após um ritual. O dinheiro é considerado um meio que permite obter os objetos dos brancos que eles apreciam. Os Mehinako assumem que desejam os objetos industrializados, criados pelos brancos, impossíveis de serem adquiridos sem dinheiro. Por esse motivo, afirma Kulykurda, todo mundo hoje quer vender objetos para conseguir comprar os objetos de desejo. Ou seja, os objetos trocados pelos Mehinako podem ser observados em certas operações: ora relacionados ao conceito de Alfred Gell, da troca do tipo agentivo, ora na troca comercial. Segundo relatos de três informantes, alguns objetos indígenas foram inventados para o estabelecimento de uma nova categoria de troca, a partir do contato com a sociedade dos grandes centros urbanos. Eles determinaram alguns objetos como específicos para vendas. Os três tipos principais são denominados xapütü (esteiras), etene (remos), as cerâmicas, o móbile de trovão e o leão. Na

111 categoria xapütü há uma série de esteiras, com variações na forma, desenhos e cores de linha industrializada para bordados e barbante. Etene corresponde aos remos de madeira com cabos ornamentados . E, por último, identificamos uns móbiles em forma de trovão que foram criados nos últimos dez anos, exclusivos para a comercialização. Ao investigar alguns dados sobre essas peças, observou-se tratar de objetos produzidos com o intuito de servir principalmente às relações comerciais, diferenciando-se na maneira de produzir as formas e significados daqueles objetos que circulam no interior da aldeia. A observação minuciosa da produção, distribuição, formas e significados destes bens materiais permitem o entendimento da importância que a comercialização possui para essa sociedade. Desta forma, será feita uma descrição detalhada sobre esses objetos produzidos com intuito de serem vendidos.

As cerâmicas Na sociedade Mehinako, as mulheres são as responsáveis pela produção das cerâmicas, que podem ser utilizadas como panelas de cozinha, recipiente para bebida, armazenamento de grãos, cozimento de mingau e peixe. Usualmente, as mulheres fabricam dois tipos distintos de panelas: aquelas produzidas para a comercialização, ornamentadas com grafismos, frágeis e mal-feitas, e as panelas especiais, de melhor qualidade, geralmente fabricadas para pagamento aos apapayêi nos rituais ou para serem trocadas no huluki. Neste último caso, são panelas resistentes, de barro, e podem ficar pretas com o uso. Normalmente, uma panela grande pode medir cerca de 20 cm de altura e 23 cm de diâmetro. Atualmente, pude observar que algumas panelas usadas com essas finalidades são de alumínio. Quando indagadas sobre a mudança nos costumes, alegam que as panelas e as bacias de alumínio são mais leves e mais fáceis para transportar as mandiocas. Identificamos mais panelas para vender em Utawana do que para uso cotidiano. Essa produção está associada à esfera familiar e é praticada desde cedo pelas meninas antes da reclusão, sob orientação das tias, mães e avós, com finalidade comercial ou doméstica. As técnicas utilizadas para a produção das cerâmicas são transmitidas às meninas reclusas sob orientação das

112 mulheres de seu núcleo familiar. As jovens praticam a produção em objetos em miniatura. As mulheres produzem cerâmicas e assim contribuem com grande parte da renda familiar com a comercialização fora da aldeia. A estação da seca é a melhor época para a retirada do barro. Os homens, em pequenos grupos familiares, retiram a argila mais clara dos barrancos nas margens, ou a mais escura, no fundo do rio Kuluene; em seguida colocam-na, com uma pá, dentro do barco. A argila pode ser armazenada em forma de bolas dentro das panelas ou cestos, sempre colocados em lugares frescos, podendo ser umedecida sempre que necessário. Esses recipientes de armazenagem são encontrados em Utawana e podem ser trocados no huluki. A argila, em seu estado bruto, não pode ser manuseada para a produção da cerâmica, pois não tem a consistência adequada. Para deixar a cerâmica em boas condições de uso, a mulher Mehinako costuma misturar a argila com pó de casca e seiva da árvore tiaka (não identificada), pedaços de cerâmicas trituradas, cinzas, e, por fim, acrescentam água aos poucos. A etnóloga Berta Ribeiro denomina esse material orgânico de antiplásticos.

Para a confecção da cerâmica, ocorre, normalmente, a adição de materiais desengordurantes ou temperos (antiplásticos) que endurecem a argila. Encontram-se não raro, misturado aos depósitos de barros naturais (1988:30). Os antiplásticos são misturados à argila em seu estado primário, contribui para facilitar na modelagem, homogeneizando a substância e evitando o aparecimento das bolhas. As mulheres trabalham sentadas, aproveitando a claridade da porta principal. Primeiramente, formam nas mãos bolas de argila, alisam a argila durante horas com os dedos umedecidos ou conchas, para dar forma à peça; em seguida, dão polimento com uma pedra, interligando as partes modeladas. Por último, a panela recebe as alças e as bordas laterais, que são modeladas com as pontas dos dedos. No dia seguinte, estas peças são colocadas fora da casa, na sombra. Percebemos que o tempo de secagem das peças é normalmente controlado, é feita em etapas, para evitar rachaduras.

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Após a secagem, a panela é deixada no quintal da casa, na proximidade do fogo. A fogueira para a queima é compartilhada dentro do núcleo familiar pelas mulheres.

Fig. 29 e 30- Cerâmicas

Tuapi – as esteiras coloridas Em várias situações, os Mehinako assumem que produzem a maior parte das esteiras coloridas para o mercado. Certa vez, na aldeia Utawana, conversava com Kauta, filha do chefe, e a observava fazer uma tuapi para ser comercializada na próxima viagem programada de seu tio para São Paulo. Questionei, então, se os Mehinako poderiam comercializar todas as esteiras. Kauta respondeu acanhada que não, explicando-me que a esteira do pajé era um presente de apapayêi e assim não poderia de maneira alguma ser comercializada. Em outra ocasião similar, fiz o mesmo questionamento a Kulykurda – irmão de Kauta – e a resposta também foi idêntica. Cabe aqui tentar compreender o que distingue o objeto produzido para a comercialização das demais peças utilizadas no cotidiano, pois os elementos de diferenciação contribuem para compreender os critérios de inserção de objetos Mehinako no mercado. Ou melhor, percebe-se que certos objetos são destinados ao mercado e outros produtos são exclusivos dos Mehinako. Alguns critérios foram narrados em uma narrativa mítica, realizada por Kulykurda em 2007. Em um dos primeiros diálogos com ele em sua aldeia, revelei o interesse pela produção das esteiras. Nesta conversa informal, antes de relatar os processos técnicos do objeto, fui surpreendida com o mito da menina que foi levada pela anta. Kulykurda relata que o apapayêi anta é um

114 ser solitário, egoísta e possui as mesmas fraquezas dos seres humanos comuns. Um ser solitário que costuma andar sozinho pode ser visto como algo estranho e perigoso, que vai contra os princípios de segurança da sociedade Mehinako. Quando alguém é visto andando sozinho, isolado, todos consideram estranho. Logo surgem as acusações de feitiçaria. Uma mulher estava indo com outras mulheres colher mandioca na roça. Mas antes de partir, a filha pequena chorou porque a mãe não queria levá-la. O tio tentou impedir a menina de seguir a mãe, segurando a mão dela, mas não conseguiu. A mãe já estava longe de casa, mas mesmo assim a menininha a seguiu. Quando a menina já estava quase alcançando a mãe, encontrou uma anta e ficou assustada. E a anta falou: “oi menininha ”. E a menina respondeu surpresa: “oi ”. E a anta pediu: “ Coloca a sua mão no meu ânus para tirar a esteira para a sua mãe”. A menina tentou colocar a mão no ânus da an ta, mas a mão dela ficou presa.

Fig. 27- O mito da anta (desenho de Kulykurda)

Assim, a anta conseguiu levar a menininha para sua casa, para a lagoa e para todos os locais onde ela passa todos os dias. Quando as duas estavam nadando na lagoa, a anta orientou a menina: “Se você não conseguir mais respirar, aperte a minha orelha para avisar ”, e, assim, saíram da água para descansar um pouco. Também passaram por um campo de cerrado e lá a

115 criança contou que naquele local havia alguns frutos azedos chamados de hali (mangaba); a anta adorou o sabor do fruto e comeu todos eles. E disse: “docinho! Que delícia! Puyawakaki! Puyawakaki! ”. Depois que acabaram todos os frutos, a menina conseguiu convencer a anta a comer os frutos do quintal da casa do pai dela, pois ela sabia que naquela árvore de mangaba tinha uma armadilha que os pais deixavam lá. E a menina pediu para a anta subir no pé de magaba e balançar para os frutos maduros caírem, depois pediu para a anta ficar por cima do buraco. A anta não conseguiu descer da árvore, assim a menina pediu para ela pular, e ela caiu exatamente dentro do buraco. A menina tentou socorrer a anta com uma vara curta, mas não conseguiu. Pediu para entrar na casa dos pais para tentar encontrar uma vara mais longa, e a anta permitiu. A menina chegou à casa dos pais e disse - “Tem um bicho grande no seu quintal”. Os pais não acreditaram que aquela poderia ser sua filha, pois ela estava quase se transformando em anta. O pai disse à filha: - “não brinque comigo, porque eu perdi a minha filha e agora ela é filha da anta”. A mãe esquentou água para tirar os carrapatos que estavam no corpo da filha. A criança se acalmou e contou toda a história para os pais, insistindo em dizer que a anta estava na armadilha. Logo de manhã, o pai foi até a armadilha para capturar a anta. Eles chegaram ao local da armadilha e identificaram uma anta enorme. A anta disse: “quem vai comer a minha perna, a minha cabeça e a minha mão?” e todos responderam: “eu ”. Cortaram a anta em partes para todos. Desta forma, a esteira surgiu do ânus de um apapayêi anta.

Fig. 32 - Esteira colorida para a venda

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As talas das esteiras são materializadas a partir de técnicas que empregam as mãos enrolando as varetas do broto da folha de buriti (xapütü) nas pernas . No caso deste objeto, todo o saber acerca da matéria-prima, sua localização e identificação na mata, a escolha de determinada espécie em detrimento de outra, a melhor época e o modo de extraí-la, enfim, todo o conhecimento sobre o buriti foi sendo construído culturalmente. Para os Mehinako, a dificuldade para a confecção de uma esteira é medida tanto pelos preparativos necessários para que o broto de buriti possa ser trabalhado como pelas etapas requeridas para a conclusão de uma esteira. Assim, quanto mais etapas para fazer, o que inclui a preparação das fibras do broto de buriti, que são secadas e clareadas através da luz do sol durante quatro dias, as amarrações, a colocação das talas, tecer com as linhas coloridas os motivos gráficos e o acabamento, mais árdua é considerada a feitura de determinado objeto. As mulheres trabalham dentro das moradias, sentadas em bancos, no terreiro que as circunda ou próximas a uma das entradas. As mulheres Mehinako que estão continuamente tecendo esteiras, sem alternância com as tarefas ligadas à subsistência ou à produção de outros objetos, são consideradas obcecadas pelo buriti, um estado que pode provocar um desregulamento provocado por apapayêi, podendo acarretar febre, problema na bexiga, e, até mesmo, afetar seus parentes próximos.

Fig. 33 - Yatsima preparando as talas de broto de buriti

Na vida da aldeia, as esteiras tanto desempenham corriqueiras funções, como tapar o mingau de mandioca (perereba), como permitem guardar alimentos, espremer massa de mandioca ou guardar penas de animais. Os

117 pajés utilizam as esteiras lisas (kawaxaxakaka), sem cores e desenhos para guardar folhas de fumo, charuto, chocalho e o colar de frutas sagrado (akukutü). Também as usam para proteger o rosto do morto na hora do enterro, ou, ainda, cortam as franjas das meninas reclusas em cima dessa esteira, para desta forma não desencadear calvície ou ocorrer casos de feitiçaria com os fios do cabelo da moça. Os objetos que possuem muitos usos, como, no caso, a esteira, são menos apreciados do que aqueles produzidos para desempenhar uma única função, como os bancos, por exemplo. As mulheres grávidas e o pai da criança não devem cortar o talo de buriti durante a gestação, pois poderia provocar conjuntivite na criança. Os Mehinako afirmam que o talo de buriti possui um líquido que pode provocar coceira na pele e inflamação nos olhos. A mulher em resguardo também não deve trançar as esteiras com as linhas coloridas, pois essa atitude da mãe poderia provocar o fechamento da uretra da criança.

Fig. 34 - Penuãn produzindo a tuapi para a comercialização

Continuando o diálogo, Kulykurda afirma que os Mehinako aprenderam todas essa formas e desenhos das esteiras (tuapi). Apenas as esteiras chamadas de muxaka com motivos gráficos simples, cuja base é mais alongada e as linhas mais espaçadas, que possuem menos motivos gráficos e provieram de apapayêi, são as únicas esteiras consideradas genuínas, ou melhor, aquelas que devem ser utilizados pelos pajés, meninas reclusas e na face dos mortos. As muxaka não são decoradas com motivos de desenhos elaborados, mas possuem certo apreço, pois são exclusivas, não podendo ser

118 mercantilizadas. As esteiras maiores, elaboradas com diversos motivos gráficos, podem ser convertidas em mercadoria. Durante a pesquisa de campo, não consegui encontrar as muxaka para registro fotográfico. Todas as esteiras registradas na aldeia Utawana ou nas lojas especializadas possuem desenhos coloridos. Vimos também esteiras feitas das mais variadas formas e tamanhos, respeitando a demanda comercial. Observamos que dentro de Utawana, as esteiras coloridas tuapi são também usadas para agradar alguns familiares ou amigos ou para trocas com outras etnias da Terra Indígena do Xingu. Usualmente, trocam uma esteira simples por oito miçangas ou por duas cuias. Percebe-se, entretanto, que a preferência do consumidor tem alterado as formas e as variedades de motivos e cores da produção indígena Mehinako. Originalmente, não se usam cores ou alterações no tamanho e na forma das esteiras. Assim, essa predileção parece colaborar para a gradativa alteração no tamanho, forma e cores das esteiras, apesar de continuarem obedecendo a padrões técnicos.

Xepi – os bancos que transportam os pajés O Xepi é um tipo de objeto que inclui bancos de madeira. Assim como no caso das esteiras coloridas, os bancos feitos em miniatura são objetos intencionalmente criados para atender ao interesse do mercado. Makaulaka disse que aprendeu a fazer os bancos com seu pai, por volta dos sete anos de idade. Inicialmente, as crianças produziam os bancos em miniatura para aprenderem a fazer os grandes, até que perceberam que os objetos em miniatura, ou, ainda, conhecidos pelos consumidores de objetos indígenas como esculturas de animais, passaram a ser mais vendidos do que os bancos grandes e comuns.

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Fig. 35 e 36 - Homem fazendo um banco pequeno

Os bancos grandes, na maioria das vezes de tamanhos médios, com o comprimento aproximado de 25 cm, largura de cerca de 12 cm, altura aproximada de 10 cm, são elaborados a partir de madeiras moles, fáceis de esculpir, especialmente a denominada mawayakuma (espécie não identificada), encontrada sempre em mata alta. Makaulaka comenta que antes de começar a produzir os bancos com a madeira mawayakuma, os Mehinako os produziam com a madeira âmi (espécie não identificada). Como afirma Makaulaka, os antigos bancos eram esculpidos em âmi. Já os bancos atualmente são feitos de madeira mawayakuma, considerada maleável e clara, tão boa quanto a âmi. Essa distinção é marcada pelo fato da âmi possuir um dono espiritual denominado temekumã, a anta. Por essa razão, seu uso é restrito ao âmbito interno do grupo. Os Mehinako temem que o dono da madeira âmi, a anta, leve alguma criança para a mata. A árvore âmi parece estar relacionada aos apapayêi, os espíritos que têm domínio moral, mas também aparecem como os responsáveis pelo desaparecimento de crianças na aldeia. Entretanto, não foi possível identificar algo mais específico sobre essa espécie vegetal, âmi. A madeira mawayakuma, a mais utilizada para produção dos bancos, é bem clara e flexível, adequada para a produção. A confecção inicia-se com a escolha da árvore adequada e seu corte com o auxílio de facão e motosserra. A seguir, o tronco é fatiado em pedaços, de acordo com o tamanho idealizado pelos produtores. Cada pedaço é amarrado nos dois extremos e transportado por dois homens, cada um segurando em uma das extremidades. Muitas vezes

120 os Mehinako caminham por longas distâncias até a casa de um deles. A fase mais cansativa é esculpir a peça com o facão, com muito cuidado para não fragmentá-la. O polimento é realizado com lixas grandes. Todos os bancos são esculpidos em apenas um bloco de madeira com o facão, não possuem juntura nem ligações e tem uma única função de uso, a de assento. O banco é normalmente retangular com a base côncava, e as estruturas são paralelas à largura; neste caso, são esculpidos de modo que tenha o formato de um H deitado. Os motivos gráficos são feitos ao final, quando a peça encontra-se acabada. O momento seguinte é o da pintura uniforme do banco com corantes vegetais, ingá e carvão, misturados a uma resina retirada da parte interna das cascas de certas árvores (espécies não identificadas), necessária para fixar a cor. Chega então a hora de fazer os grafismos na superfície do assento. Com essa técnica são desenhados e pintados na superfície da peça detalhes como olhos, unhas, contornos. Para colocar os olhos e as unhas nos bancos, utilizam lascas de caramujo sobre a cera de abelha.

Fig. 37 - O banco de urubu bicéfalo

Muitos bancos têm formas de animais – anta, ariranha, capivara, jacaré, onça, macaco, paca, peixes, porcos, sapo, tamanduá, tracajá, tatu e urubu bicéfalo, uma verdadeira diversidade de animais que habitam as matas dos arredores da aldeia Utawana. Ao observar a superfície dos bancos, poderemos verificar grande variações de motivos gráficos, que, por vezes, são pintados

121 sobre a madeira. Identificamos, nos bancos, motivos geométricos que podem estar associados à cobra anaconda (kulupeiyaná), à casca de jabuti (ayuwé), à perna de garça (kuxumaukatu) e ao apapayêi do mato (Metsewexupi)

Fig. 38, 39, 40 e 41 – Grafismos utilizados nos bancos

Lux Vidal evidencia o grafismo como material visual que exprime a concepção da pessoa humana, a categorização social e material e outras mensagens referentes à cosmologia das sociedades indígenas. “No contexto tribal, mais que em qualquer outro, a arte funciona como um meio de comunicação. Disso emana a força, autenticidade e o valor da est ética tribal” (Vidal, 1992:17). Os grafismos e as formas dos bancos possibilitam que o produtor tenha sua marca individual dentro das opções gráficas tradicionais aceitas pelo grupo. Pesquisando sobre os Asurini do Xingu, Muller (1990:247) observa de que maneira ocorre a atuação desses produtores.

Da mesma maneira como o xamã se individualiza na identificação com seres sobrenaturais, o artista cria seu próprio desenho e o nomeia. Ou, ainda, pode-se destacar pelo esmero artístico da simetria, qualidade também individual, identificando-se com a obra. Por outro lado, além desse significado particular, esta será interpretada pelos demais membros do grupo, e os desenhos serão reconhecidos como esteticamente aceitáveis e com significado, de acordo com as

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regras formais e padronização visual dessa cultura em particular. Outra opção é a variação na coloração da madeira; assim, os bancos podem ser enterrados na lama de um rio, para adquirir a cor escura (weiki). As linhas são feitas com talos e capins de arumã colocados em argila, não para colorir, mas usados como reagente. Quando questionei Ontxã e Makaulaka sobre o banco de urubu bicéfalo, ambos me responderam tratar-se de uma ave mitológica. Eles contaram o mito do pássaro de duas cabeças (ulupukumã) o qual reproduzo, resumidamente, abaixo:

Quando nasceram os gêmeos, Sol e Lua, vivia-se um tempo de desordem e devastação dominado pela escuridão e o cheiro de podre. Naquela época as aves jogavam seus dejetos em todos os lugares, principalmente, sobre as pessoas, não havia fogo ou mandioca. Os gêmeos conseguiram então capturar o dia do dono do céu, o urubu invisível de duas cabeças, atraindo-o através de uma isca de carne podre. Este urubu é o líder dos pássaros, o responsável por ter fornecido a luz aos homens, sob a forma de adornos feitos com as penas de arara vermelha, pois o sol demiurgo veste-se com enfeites feitos das penas dessa ave. Em outro mito, os Mehinako também relataram:

O dono da dimensão celeste é o urubu bicéfalo, na qual os mortos e os apapayêi habitam . A alma do morto se solta do corpo, vagueia durante certo tempo entre os homens que ainda estão vivos para depois percorrer uma longa viagem de lutas, com aves e seres monstruosos, que, algumas vezes, conseguem arruinar terminantemente a alma. Os mortos caminham para destinos distintos dependendo da maneira que ocorreu a sua morte.

Os bancos grandes de urubu são os mais vendidos na loja Ameríndia (Campinas, citada neste trabalho). Note-se que o banco feito em miniatura convém às demandas do mercado, que busca objetos pequenos, para facilitar o transporte, utilizados como enfeites nas casas. Como afirmou Grünewald (1999:227):

Mercadorização, desta forma, não destrói necessariamente o significado dos produtos culturais, que, orientados para o turismo, adquirem novos significados para os seus produtores, quando eles tornam-se uma marca diacrítica de sua identidade étnica e cultural, um veículo de auto-representação perante o público externo. Entretanto, os antigos significados podem

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também permanecer salientes, sobre um nível diferente, para um público interno, apesar da mercadorização. No entanto, tão importante quanto a função utilitária dos bancos é a sua função ritual. Mais do que o caráter de objetos utilitários, eles pertencem ao universo dos objetos rituais. A princípio, sentar em bancos é um privilégio dos homens – as mulheres sentam nas esteiras ou até mesmo no chão, com as pernas esticadas para produzir objetos.

Fig. 42 - O banco do pajé

Na sociedade Mehinako, acrescenta-se aos bancos produzidos para o mercado, uma dimensão ritual do objeto. Eles produzem um banco específico para o pajé, o responsável pela cura, aquele que consegue se comunicar com os apapayêi. Segundo Colin MacEwan (2001), sentar em um banco é uma maneira de se sobressair, essencial para o xamã se comunicar com os poderes sobrenaturais, pois o banco simboliza uma referência. O autor (2001) afirma que, em muitas línguas indígenas, as palavras canoa, moto, bicicleta, avião ou meio de transportes, em geral, possuem a mesma raiz da palavra banco. Enquanto os primeiros são usados para deslocar pessoas, o banco é utilizado para transportar o pajé para outras dimensões do universo. Makaulaka disse que, de acordo com as narrativas míticas, a lua é que fez surgir o banco cerimonial do pajé:

A lua retirou os pêlos pubianos da esposa do sol; desta forma ele ficou revoltado com o irmão. O sol fingiu que estava doente, para seu irmão chamar os pajés que curam. A lua chamou as duas abelhas (mayapuxã e awayumapã). Quando os pajés

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abelhas chegaram à casa do sol, a lua ofereceu um banco para eles, assim as abelhas conseguiram se comunicar com os apapayêi. O banco e o fumo são importantes elementos no ritual de cura dos pajés Mehinako, utilizados não apenas na identificação das causas das doenças, mas para auxiliar na pajelança, ou seja, no transe entre o universo dos homens e dos apapayêi. Os dois pajés abelhas que a lua chamou, para curar o irmão sol, sentaram em um banco ritual e fumaram tabaco. O banco Mehinako, cujo tamanho parece variar segundo o prestígio do pajé, é cortado de uma única talha de madeira e se caracteriza por um assento côncavo e a superfície pintada com desenhos geométricos . De acordo com os Mehinako, cada vez que o pajé senta no banco cerimonial e fuma um charuto, a fumaça e o banco produzem uma estrada contínua que liga os homens aos apapayêi, completando a dicotomia que poderia existir entre os planos. Cada xamã possui um banco côncavo, utilizado por muitos anos em todas as atividades que envolvam o contato com os apapayêi. O pajé Tukuyari, por exemplo, guarda o banco côncavo que fora de seu pai. Antes de morrer ele teria falado ao filho: “o meu banco vai ficar para você”. Observamos uma ausência de bancos em forma de animais nos arredores da aldeia, ainda que os bancos cerimoniais sejam usados em contextos rituais.

Fig. 43 - Banco utilizado na aldeia Utawana

Usualmente, os bancos em forma de animais são trocados e, posteriormente, vendidos. Os Mehinako escolheram alguns objetos específicos para transformá-los em mercadoria, o banco foi um deles.

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A escolha é absolutamente criteriosa, pois tais bancos transitam entre a tradição e a mudança ou entre o ritual e o mercado, em que identificamos cerimônias para os apapayêi (serão analisados no próximo capítulo) utilizadas para articular estas relações.

Zunidores De qualquer forma, os objetos capazes de entrar no mercado, são aqueles que não possuem alma, ou seja, não atraem apapayêi e não atuam como os demais objetos. Os zunidores são exemplos categóricos da transição entre objetos que possuem alma em um determinado momento, e que perdem este status após a festa do pequi 5, para assim entrarem no mercado. Normalmente, a abertura da festa do pequi ocorre com o uso dos zunidores (matapu), e não há utilidade para este objeto fora desta cerimônia. Por ocasião de uma de minhas visitas, presenciei uma parte desta festa para as filmagens dos suiços, enquanto o chefe estava anunciando o inicio do ritual, dois homens andaram até o rio e giraram os zunidores em direção à casa dos homens. Os Mehinako afirmam que eles foram trazer os apapayêi matapu para participar da festa. Ou seja, os zunidores são apapayêi, o som e o movimento que eles emitem atraem o espírito do peixe que está dentro do rio para participar da festa na aldeia. Enquanto os zunidores eram girados em pares, os participantes falavam “kawokakola” para oferecer mingau, peixe e beiju para os apapayêi. Ao final, os homens pararam de girar os zunidores e ofereceram o alimento para o espírito do peixe retribuir com a cura da doença. Os zunidores são de diversos tamanhos, formatos e características como ilustrado nas figuras 44 a 47.

5 A festa do pequi será analisada no próximo capítulo.

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Fig. 44 e 45 – Matapu peixe cachorra (wapi) e Matapu tucunaré (siaitisapa)

Fig. 46 e 47 - Matapu pacu (iwusi) e Matapu matrinchã (puixa)

As cores aplicadas na pintura dos zunidores são de origem vegetal ou mineral: o vermelho, obtido do urucum, o preto, fornecido pelo sumo do jenipapo misturado com fuligem, o branco, da tabatinga, e, com menor frequência, o amarelo, extraído de um tipo de urucum. Sua aplicação faz-se com auxílio de gravetos ou com os dedos. O corante vermelho é extraído do urucum, pelas mulheres, o fruto do arbusto urucuzeiro ou urucueiro. Após o secamento, as sementes são retiradas dos frutos e armazenadas em cuias. A tinta extraída das sementes de urucum contém vários pigmentos coloridos, que vão do amarelo escuro ao vermelho forte. Existem dois tipos de urucum utilizados nos objetos, um de casca verde e outro de casca vermelha. O urucum também pode ser conservado sob a forma de uma bola dura que deve ser constantemente umedecida em óleo de pequi para poder se fixar nos objetos ou nos corpos. O pigmento branco usado para colorir os zunidores é de origem mineral, extraído do barro denominado

127 tabatinga. Além de sua utilidade como colorante, é muito usado nos dedos, para facilitar o deslizamento dos fios de buriti nas pernas. Para extraírem o corante preto, utilizam-se da casca de uma árvore e carvão queimado misturado com a seiva do pau de leite; estas substâncias são raladas e espremidas. O jenipapo, ao contrário do que muitos imaginam, somente é utilizado para retocar as peças, ou para fazer as pinturas corporais. Cozinham-se os frutos do jenipapeiro até ferver. Os matapus são girados sempre em pares - o homem e a mulher. Gregor (1985) afirma que os Mehinako consideram os zunidores marido e mulher. Makaulaka afirma que antigamente os zunidores eram confeccionados para assustar as mulheres. Nos dias atuais, as mulheres não podem ver os zunidores sendo girados durante a festa do pequi, pois não podem assistir aos homens atraindo o apapayêi matapu. Após o ritual do pequi, todos esses zunidores podem ser comercializados; a lógica de produção deve seguir sempre nessa ordem – objetos produzidos para o ritual, em seguida, a comercialização. É considerada estritamente proibida a venda destes objetos sem antes passar pelo ritual do pequi. Ao questionar Anapuatã sobre a utilidade dos zunidores dentro da aldeia, ele responde de maneira sucinta que os matapus atraem os peixes. Os consumidores utilizam esses objetos não para atrair peixes, como fazem os Mehinako, pois os zunidores não têm esse mesmo efeito fora do contexto do ritual. Os compradores de zunidores costumam pendurá-los nas paredes de suas casas, ou, ainda, usam como móbiles fixados em uma vareta improvisada. Em suma, a circulação dos objetos pode ser realizada nas circunstâncias de determinadas festas, cerimônias e rituais, ultrapassando muito o nível convencional, como, por exemplo, durante atividades festivas que acompanham farturas de alimentos e trocas intertribais. Posteriormente, os objetos alcançam o âmbito externo das lojas especializadas em artesanato e objetos indígenas dos grandes centros urbanos. Não é possível analisar as trocas comerciais dos objetos sem analisar a associação entre ritual, dádiva e mercadoria dentro de uma unidade doméstica.

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As redes de Kurimatá A produção, distribuição e consumo dos objetos indígenas Mehinako é de caráter doméstico, através das unidades de parentesco, e da divisão sexual do trabalho. Todos os Mehinako devem saber produzir os mesmos objetos, considerando-se a divisão sexual do trabalho; contudo, existem diferenças marcantes na qualidade das peças. Por exemplo, pode-se dizer que a família de Anapuatã - a esposa, um filho, duas filhas e um genro - produzem objetos para a venda na cidade de Campinas e São Paulo. Ele é considerado fornecedor exclusivo da loja Ameríndia em Campinas. Entretanto, os membros da família dele ainda combinam a confecção dos objetos com a agricultura e a distribuição dos produtos. Anapuatã diferencia-se dos demais membros da família, por ser o responsável pela entrega dos produtos da família nas lojas de Campinas e São Paulo. Mais que isso, enquanto a maioria das mulheres produz esteiras, sua esposa Kurimatá é especialista em produzir redes. A característica singular das suas vendas é o volume de encomendas que já produziu para comercialização. Os proprietários de lojas de objetos indígenas, interessados nas peças, passaram a identificar a família de Anapuatã como especialistas em redes. Assim, em dezembro de 2006, Anapuatã recebeu encomendas de diversas lojas para produzir 10 redes. Kurimatá não conseguiu atender aos pedidos e entregar todas as redes prontas dentro do prazo estabelecido com todos os proprietários das lojas. Para tanto, sua esposa costumava trabalhar muitas horas, não podendo abandonar as outras funções de preparo dos alimentos para a família. Ela conseguiu produzir cinco redes e, com o dinheiro conquistado pela venda das redes, Anapuatã pagou o custo da viagem e ainda comprou bens de consumo para a família, muito apreciados pelos Mehinako, como tênis Nike, relógios, celulares, I pod. Assim, Anapuatã conquista status na aldeia não somente pelo destaque e especialização de sua esposa como artesã, mas também como indivíduo que mais conseguiu adquirir bens de consumo.

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Fig. 48 - A rede de Kurimatá Quando Anapuatã era solteiro, ficava a maior parte do tempo dentro da aldeia. Seu pai era responsável pela venda dos objetos da família, pois ele ainda não tinha sua própria casa, roça, esposa e filhos. Tudo passou a mudar quando se casou com Kurimatá, a sua prima. A princípio, mantendo a regra de uxorilocalidade, ele morou na casa de seu sogro, e assim contribuiu economicamente com a família da esposa. Por diversas vezes escutamos ele falar “foi difícil ajudar a famí lia da minha esposa, mas valeu a pena”. Desta forma, a regra de presentear e contribuir economicamente com o sustento da família como uma dádiva foi um bom negócio, Kurimatá foi uma excelente pretendente, devido ao fato de produzir redes de muita qualidade. Por isso, Anapuatã costuma afirmar que a troca superou todas suas expectativas, como ele mesmo disse “valeu à pena ter casado com Curimatá”. Por essa razão, a sogra e os parentes da esposa pediam muitos favores, peixes, mandioca e presentes e objetos de caraibas durante esse tempo que Anapuatã morou com os pais da noiva. Como ele não podia falar diretamente com os sogros e cunhados, os parentes pediam os presentes a Kurimatá, que repassava os desejos dos pais e irmãos ao marido. Neste período, Anapuatã teve que provar de diversas formas que seria um ótimo marido para Kurimatá. Por isso, é comum os sogros exigirem os serviços dos genros, sendo que as exigências e os pedidos podem aumentar, quando a pretendida faz objetos de qualidade.

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O relacionamento entre Anapuatã e seus sogros era considerado bom e de muita lealdade e amizade. Ele sempre se preocupou em trazer peixes e macacos, ajudava a preparar as roças da família, comprou a televisão e o fogão da família, e sempre cumpriu todas as obrigações na rede de reciprocidade. A sogra de Anapuatã afirma que durante os serviços do genro, ela conseguiu adquirir os principais itens de bens industrializados vindos da cidade grande, contribuindo para o prestígio da família através da realização dos seus desejos, ressignificando a distribuição por via da dádiva.

Os caraíba: parceiros de trocas comerciais. Estima-se que havia, em 2010, 73 indígenas Mehinako que produziam objetos para comercialização, de acordo com os dados da Associação Indígena Ahira. O último levantamento sobre o volume de vendas dos objetos foi realizado nos dois últimos anos de pesquisa de campo, 2007 e 2009, incluindo- se no cálculo a comercialização de objetos lojas especializadas dos grandes centros urbanos. O mais elevado volume de venda em uma única compra, em que o lojista levou 3 redes, 4 bancos e 7 zunidores, foi cerca de R$ 1.500,00, conseguidos em um evento realizado em Brasília. A venda acontece quase sempre em nível menor e levam objetos pequenos, principalmente nestes eventos. Diversos são os fatores que, de forma geral, compõem as formas de distribuição dos objetos Mehinako, considerando-se as vendas por consignação, e sua inserção em diversas lojas nas cidades. Em geral, neste tipo de procedimento de venda o risco é inteiramente do produtor, que disponibiliza uma quantidade significativa de objetos para o lojista, cujo acerto é realizado em data estabelecida. Para a mediação com os lojistas, foi constituída a Associação Indígena Mehinako Ahira, pelos membros da comunidade, em 17 de outubro de 2006. A partir de sua criação, os Mehinako se tornaram os administradores de suas próprias decisões, discutem questões referentes aos interesses da aldeia, inclusive aquelas ligadas à produção e comercialização dos objetos indígenas. Assim, a associação surge como um instrumento de representatividade, que visa intermediar as relações e determinar sobre quais aspectos e condições tem beneficiado efetivamente os interesses da aldeia. Mais de 30% da

131 produção de objetos das famílias Mehinako que vivem da comercialização dos objetos indígenas é vendida através da Associação Ahira. A pequena parte dos ganhos, 5%, fica com a associação, e a outra é revertida para o produtor da peça vendida. Antes das lojas especializadas em objetos indígenas e das associações, os indígenas produziam para vender em feiras livres fora da comunidade, o que os colocava em situações de marginalização social, tendo em vista a carga de preconceito a que eram submetidos, além dos recursos dificilmente alcançados, relacionados ao esforço necessário para o deslocamento e a comercialização. O início dos debates para a criação da Associação indígena ocorreu com o consentimento do cacique Yahati, que contribuiu com a fundação da associação da aldeia Uyaipiuki, a outra aldeia Mehinako. Havia um projeto para a sede da Associação Ahira ser construída no ano de 2009, com o auxílio financeiro da prefeitura de Gaúcha do Norte e de um empresário norte-americano. O objetivo primeiro da sua fundação está relacionado à necessidade de ter um lugar fixo para estocar os objetos produzidos na aldeia e criar um estabelecimento de vendas para receber os lojistas e pesquisadores. Cabe aqui ressaltar que a associação é a principal intermediadora da relação entre a comunidade indígena Mehinako e a sociedade envolvente, de “não índios”, para intermediar encomendas das lojas de objetos indígenas e visitantes. A primeira iniciativa para comercializar os objetos através da associação foi escolher dois representantes, que cumpririam as funções de coordenar, controlar, recolher de cada produtor os objetos confeccionados, com posterior repartição dos ganhos obtidos pela venda. Algumas lojas assinaram contratos de consignação com os Mehinako, utilizando a documentação da associação. Os dois Mehinako escolhidos pelos membros da comunidade para representar a Associação Indígena Ahira, Makaulaka e João Garcia, conseguiram o retorno com as vendas dos objetos por consignação, sendo que o recurso foi revertido para a compra de sal, anzol, pilhas, cigarro, café, suco e sabonete para a aldeia. Enquanto as associações de outros povos do Alto Xingu estão devolvendo projetos com os quais têm conseguido suprir uma série de necessidades, os Mehinako de Utawana têm mantido uma política de obtenção de recursos muito centrada na figura de um presidente e seus aliados pessoais. De fato, o filho primogênito do chefe Yahati

132 que até o final de 2007 desempenhava este papel, fora também o escolhido para presidir a Associação Ahira, o que em parte fez com que as atividades desta associação ficassem vinculadas às suas iniciativas. A associação passou a funcionar mais como uma espécie de conta conjunta da aldeia, cuja renda vinha exclusivamente dos contatos articulados por um presidente, o que lhe proporcionou muito prestígio, seguido de um período de fortes desconfianças, que levaram à sua saída da presidência da associação, sendo substituído pelo vice-presidente, João Garcia. Os responsáveis pela associação distribuíram os bens adquiridos entre os membros de seu grupo, até mesmo para aqueles que não haviam contribuído com os produtos deixados nas lojas, sem exigir contrapartida material imediata, orientando-se pela lógica da reciprocidade. Considerando sua generosidade, o presidente da associação procurou manter seu reconhecimento perante todos na sociedade. Este dinheiro poderia ser devolvido de diversas maneiras e tipos de serviços ao longo do ano. Por outro lado, quando os objetos são vendidos diretamente para as lojas especializadas e não possuem o contrato de consignação, as vendas têm um retorno imediato, o dinheiro é retribuído no ato da venda. Assim, alguns objetos são confeccionados e, de preferência, vendidos o mais rápido possível para atender a necessidade imediata do grupo ou daquele Mehinako que os produziu. Desse modo, a economia mercantil e a lógica da reciprocidade englobam relações de trocas entre os chefes e a comunidade. Observou-se que há uma diferenciação clara entre estas duas formas de troca. Gallois, referindo-se à economia de mercado em comunidades indígenas, ressalta que “é muito perigoso mercantilizar apenas produtos reconhecidos como indígenas, pois se corre o risco de comercializar as próprias relações sociais indígena s” (1998:177). Cabe a pontar que, entre os Mehinako, a produção da mandioca e dos objetos indígenas está diretamente vinculada à produção familiar e redes sociais guiadas pela economia da reciprocidade. Ou seja, os produtos não possuem apenas valor mercadológico, mas estabelecem também as alianças. Assim, como seria possível conciliar a economia do mercado com a economia do dom? Em novembro de 2007 iniciou-se o meu trabalho de quantificação da produção de objetos Mehinako na aldeia Utawana. Esta quantificação ocorreu

133 através da realização de visitas em cada casa nas aldeias, com o registro de todos os objetos elaborados para venda. Além disso, efetuei observações visando registrar aspectos da dinâmica, elaboração e uso de diversos itens da cultura material, vendidos regularmente ou utilizados apenas na aldeia. Para a quantificação, foram preparados registros dos materiais, agregando-se informações sobre o produtor que confeccionou a peça, o tempo aproximado de confecção, as matérias-primas utilizadas e o contexto em que o objeto é usado. Em uma posterior visita, registrei a quantidade vendida, o comprador e os novos artefatos confeccionados. A ideia inicial era realizar visitas regulares para este trabalho de quantificação, com frequência periódica. Na realidade, devido a problemas de transporte, hospedagem e recursos financeiros, tivemos oportunidade de realizar os registros três vezes; a segunda visita acabou ocorrendo somente no mês de novembro, junto com os objetos levados para serem vendidos em Campinas. Apesar dos percalços que enfrentamos para realizar este trabalho, ainda não conseguimos registrar as máscaras, roupas e flautas, por estarem quardadas dentro da mata. Como foi mencionado anteriormente, a casa dos homens estava em fase de construção, por isso não poderiam armazenar estes objetos de apapayêi dentro dela. Foi possível chegar a uma estimativa da produção dos objetos produzidos a partir dos resultados obtidos nesta aldeia, e compreender toda a trajetória para os objetos chegarem às cidades grandes. Entretanto, o fluxo da produção não é o mesmo em todos os meses, existem o fator incentivador para a produção e a diferenciação da matéria prima encontrada e adquirida por cada núcleo familiar, pois cada um tem sua especialidade mais ou menos definida. Além disso, deve- se considerar a questão do calendário das atividades festivas, conforme a época do ano e as estações recorrentes. Por exemplo, nos meses de julho e agosto a produção de objetos para o mercado é quase nula, pois estão todos se preparando para a festa do Kwarup. De acordo com as produtoras de esteiras, a melhor época para adquirir o buriti é no mês de dezembro, mês das chuvas. No primeiro mês de pesquisa de campo, em janeiro de 2008, os Mehinako produziram um total de 153 objetos, entre os quais 15 colares, 30 bancos, 23 cerâmicas, 14 cestos e 23 morcegos, 24 pás de beijus e 24

134 esteiras, enquanto na segunda visita, em julho de 2009, um mês antes do Kuarup, eles produziram apenas duas redes. Em abril de 2010, alguns representantes do povo Mehinako participaram das comemorações da Semana do Índio em Brasília, através de convite feito pela FUNAI. Nesta ocasião, foram levados alguns itens do artesanato para venda, realizada no próprio evento. As peças restantes ficaram em consignação na loja de objetos indígenas de Brasília. Neste evento, os Mehinako venderam cerca de R$ 1500,00 em peças fabricadas por duas famílias. No mês de setembro do mesmo ano, houve uma compra de objetos em algumas aldeias do Alto Xingu pelo comerciante de uma grande loja de São Paulo, que adquiriu dez peças na Aldeia Utawana. Entretanto, segundo algumas pessoas da aldeia, o comerciante não quis pagar o valor pedido pelas peças, e comentou que os valores de artesanato que constavam na tabela elaborada pela Associação da Terra Indígena do Xingu eram muito elevados. Por isso, pagou em produtos provindos das cidades, como shampoo, pentes, linhas coloridas, sabonetes, anzóis, pilhas e o restante, em dinheiro. Apesar de a compra ter sido realizada em dinheiro e em bens de consumo, o valor que o comerciante ofereceu ainda foi considerado viável, pois o produtor não precisou pagar os custos de transporte desde a aldeia até os centros de venda. Assim, o valor estipulado do objeto que será comercializado não possui nenhuma relação com o custo de produção, é o valor aleatório que é conferido ao objeto muito mais pelo julgamento que o comprador faz do que pela negociação com aquele que produz e vende objetos indígenas. O maior receio do Mehinako parece estar em comercializar o que for possível produzir, cobrando qualquer valor a fim de converter rapidamente a peça em moeda, e assim obter os bens de seu interesse, na maioria das vezes tênis, camisetas, pilhas e aparelhos tecnológicos. A urgência nas vendas deve- se, pelo menos, a dois motivos. Primeiro, pela dificuldade de encontrar espaço adequado para armazenar os objetos dentro de casa. Após a confecção das peças, elas são imediatamente colocadas nas laterais das casas e ali permanecem até a próxima viagem de alguém da família para os centros urbanos. Segundo motivo, pelo fato de deixar os objetos ao relento, em pouco tempo eles vão se danificando, deteriorando e desvanecendo a cor e o brilho, devido à exposição ao sol e vento. Assim, os objetos ficam muito ressecados

135 ou mofam e quebram com muita facilidade. Na maioria das vezes, os objetos que apresentaram tais características dificilmente foram vendidos. A partir da visita de estrangeiros europeus na aldeia Utawana, quando eu estava fazendo a pesquisa de campo, veio à tona o conceito de objetos do Paraguai. Estes objetos são considerados entre os Mehinako como feios, feitos sem perfeição, malfabricados, por isso devem ser destinados aos brancos. Normalmente, encaminham os objetos do Paraguai para as lojas especializadas que não conseguem distinguir os produtos de qualidade, ou, ainda, presenteiam os caraíbas que visitam a aldeia. Este conceito é resultante das quinquilharias baratas ou aparelhos tecnológicos chineses comprados nas grandes feiras livres dos centros urbanos, realidade que está cada vez mais inserida entre as populações Mehinako. Por exemplo, uma das marcas de caraíba mais cobiçada em Utawana é a Nike, por causa do fascínio dos patrocínios de futebol. Os Mehinako sabem que é possível comprar mercadorias da Nike não originais, nas feiras livres, ou objetos da Nike originais, com preços exorbitantes, em lojas especializadas. Normalmente, objetos considerados bemfeitos, aqueles utilizados nos rituais, devem ser vendidos para aquelas pessoas que conseguem pagar extremamente bem, para adquiri-los após um ritual, ou para aqueles que conseguem distinguir os objetos bem feitos, daqueles do Paraguai. Os Mehinako dizem que diversos objetos encomendados nas lojas são aqueles com status de Paraguai, ou seja, malfeitos. Na última vez que estive entre os Mehinako, em 2010, fui encarregada de levar para Campinas algumas mercadorias para a loja especializada em que trabalhei. Nesta ocasião, uma das recomendações do proprietário da loja era para não trazer objetos do Paraguai, ou seja, ele queria que eu trouxesse objetos considerados bonitos, sem defeitos, bem lixados, de preferência aqueles utilizados nos rituais. Normalmente, os donos das lojas especializadas compram objetos sempre da mesma família, prometem fidelidade em troca de objetos bemfeitos. Em Utawana, por sua vez, Anapuatã afirma que a qualidade de seus produtos é melhor que a dos outros Mehinako, e costuma duvidar da qualidade dos objetos de outras pessoas na aldeia, dizendo : “o artesanato dele não é bom, tem as linhas tortas, não foi bem lixado, tem muitos defeitos, isto aqui é um objeto do Paraguai aqui na aldeia”. Nas sociedades indígenas, não é

136 qualquer pessoa que é capaz de fabricar um objeto carregado de poder e significado, somente alguns indivíduos foram realmente preparados para o ofício. Há mesmo casos em que se instala uma forma de produção mais eficiente com a utilização de motosserras para produzir em série e conseguir competir com os objetos industrializados. Nesses caos, diminuem o tamanho, tiram alguns detalhes. Algumas peças são confeccionadas para venda no atacado por encomenda, pois é comum os índios irem para cidade de ônibus levando uma grande quantidade de mercadorias para vender nas lojas especializadas de São Paulo, Campinas e Rio de Janeiro. Muitas vezes, os Mehinako não conseguem obter lucro com essas viagens, gastam com as passagens e pagam taxas extras para as empresas de ônibus, quando ultrapassam o limite permitido de carga. Cabe ressaltar que os Mehinako não costumam acumular qualquer tipo de objetos. Usualmente, estes bens são trocados com outros povos da Terra Indígena do Xingu, ou ainda, com o mesmo grupo étnico que reside na aldeia Uyaipiuku. A constante troca de produtos entre os Mehinako das duas aldeias revela-se como uma característica marcante do grupo, sobretudo com respeito a trocas de produtos considerados excedentes no núcleo familiar, como sal, alimentos, roupas, redes, celulares, fósforo, sabonete e miçangas; constitui-se uma base material que aproxima os Mehinako que estão em diferentes lugares, mantendo o sentimento de união, apesar da distância territorial. Na terceira pesquisa de campo, em novembro de 2010, a produção de esteira foi significativa em relação à quantidade de cerâmica elaborada pelas mulheres, num total de 17 peças. Destas, 10 foram destinadas a uma loja em São Paulo, e 07 resultantes de produção particular. A produção de remos pintados também foi grande, com um total de 15 peças, 10 cestas, 7 zunidores, 04 pás de beiju, 1 rede e 2 braçadeiras. A produção de bancos pelos Mehinako foi muito significativa neste período, cerca de 8 peças. Com base em nossa estimativa das três visitas na aldeia Mehinako, seria possível produzir em média 7 bancos por mês, 7 cabaças pintadas, 25 peças de cerâmica e duas redes, conciliando a produção dos artefatos com os outros afazeres domésticos. Trata-se de variações significativas que ocorreram

137 de ano para ano, provavelmente confirmando o quanto esta produção pode variar, e a dificuldade de se chegar a resultados representativos e constantes. Considerando o período de novembro de 2009, a segunda visita, na qual os Mehinako produziram apenas duas redes, percebe-se que houve diferenças significativas na quantidade de itens produzidos para a venda pelo grupo. Isto se deve a vários fatores, ambientais e sociais, inclusive relações de gênero, além do incentivo à produção decorrente do desenvolvimento de projetos ou eventos. Apesar de inconstâncias estarem envolvidas na questão da quantificação da produção, o calendário climático e agrícola é um fator determinante, que influencia nas variáveis, e deve ser considerado em primeira instância. A época das chuvas no Xingu ocorre de setembro a abril, época também denominada de inverno. Em virtude da alta pluviosidade neste período, as principais atividades são o plantio da rama de mandioca e a pesca, a colheita de algumas plantas cultivadas como bananas, milho e cabaças, e, por fim, as atividades domésticas de rotina, como preparar o beiju, cuidar das crianças e realizar festas. As atividades agrícolas de abertura de roças e colheita de outras culturas são todas realizadas durante a estação seca, que ocorre de abril/maio a agosto/setembro. Para os Mehinako, povo agricultor por excelência e produtor de cerâmica, o período potencial para maior produção ocorre na época das chuvas, do final de novembro a abril. Entretanto, a produção de adornos de miçangas se dá durante o ano todo, uma vez que as mulheres sempre estão trabalhando em algum colar ou pulseira, em suas horas vagas. Além disso, na época das secas existem diversas restrições para os Mehinako, decorrentes do acesso dificultoso a algumas matérias-primas, como, por exemplo, o broto do buriti, recurso utilizado na confecção de suas esteiras. Esta planta surge em ambientes alagadiços, mais fáceis de ser coletada na época da seca. Da mesma forma, o barro adequado para a fabricação de sua cerâmica só está disponível neste período. Apesar da possibilidade de estocar o barro para uso posterior, a melhor época para a confecção da cerâmica também é durante a seca. Por conseguinte, todos os fatores mencionados acima funcionam como condições determinantes para a produção artesanal. De uma maneira geral, para os Mehinako, o período de maior produção ocorre na época das chuvas, por eles não estarem trabalhando na produção agrícola. Sendo assim, pode-se

138 considerar que a época do ano mais adequada para a produção de artefatos destinados ao comércio é após o trabalho de plantio, a partir de novembro até o mês de abril, quando se inicia novamente a derrubada para abertura de roças.

Circulação de objetos indígenas A comercialização de objetos indígenas Mehinako pode ocorrer de diversas maneiras. A principal delas é a venda direta da produção de cada família para as lojas especializadas, por intermédio da associação. O repasse ocorre através de encomendas feitas em grande ou pequena escala. A outra parte dos objetos fica armazenada nas laterais das casas, disponível para os visitantes eventuais. Em algumas ocasiões casuais, a comercialização ocorre fora da aldeia, pois os Mehinako participam esporadicamente de eventos, congressos e reuniões de populações indígenas. Normalmente, os participantes destes eventos são escolhidos pelos homens nas reuniões que acontecem dentro da casa dos homens (não se pode deixar de ressaltar a importância do papel da figura masculina como mediadora com o universo exterior). No último dia, em Utawana, acompanhei Anapuatã em uma viagem para vender mercadorias em São Paulo; tinham armazenado cestas, ornamentos, esteiras, bancos e cerâmicas para serem vendidos nas cidades. Anapuatã é um homem com antepassados muito generosos e nobres para utilizar o título de chefe de uma aldeia, mas ele não é o primogênito dos grandes chefes e, casualmente, nunca foi preparado para se tornar um chefe tradicional. Entretanto, Anapuatã apresenta o diferencial de falar bem português e ter bom relacionamento com os caraíbas, ter feito bons contatos em viagens, encontros com pessoas importantes em eventos, reuniões. Este interlocutor, também considerado um tipo de chefe secundário, dedica boa parte de sua vida a buscar e manter contatos com não índios e revertê-los em projetos valiosos para Utawana. Fazer viagens frequentes às cidades, conversar com autoridades que poderiam oferecer bons presentes, hospitalidade nas cidades e, finalmente, fazer acordos para o grupo com pessoas dispostas a comprar grandes quantidades de artesanato é o seu principal trabalho. Desde a chegada dos irmãos Villas Boas à região, chefes interlocutores desse tipo têm sido preparados constantemente para

139 desempenhar funções de mediação. Enquanto os primogênitos dos grandes chefes continuam sendo preparados por seus pais para desempenhar suas responsabilidades culturais, seus filhos mais novos são direcionados para ocupar o papel de mediadores com o mundo não indígena, o que também passou a lhes render prestígio e inserção na política local. Este papel de mediador é importantíssimo para os Mehinako, pois foi por meio de Anapuatã que fizeram a maioria das alianças que mantêm atualmente e os contatos por meio dos quais obtiveram a maior parte do dinheiro que entrou na conta de sua associação nos últimos anos. Ele é o penúltimo filho de um importante chefe Mehinako, que já não vive entre eles desde a década de 1970. E para continuar tendo prestígio como chefe mediador, Anapuatã estava com a intenção de obter, a partir dos lucros das vendas, tênis da Nike e I pod adquiridos nos comércios informais, conhecidos por vender produtos vindos da China ou do Paraguai, por isso conseguem vender mercadorias com preços mais econômicos. Não é fácil imaginar toda a cadeia comercial dos produtos indígenas, e a quantidade de intermediários que participam da trajetória entre a fabricação dos objetos pela família de Anapuatã até as lojas especializadas encontradas nos grandes centros urbanos. Por esse motivo, decidi acompanhar todo o circuito de objetos retirados da aldeia em direção aos grandes centros urbanos. Adaptamos em caixas o material de cada membro da família de Anapuatã - 5 adultos - para serem comercializados em estabelecimentos comerciais. Anapuatã não fez contato antecipado com as lojas, tanto pela dificuldade de comunicação por rádio, quanto pela ansiedade de realizar a viagem antes de dezembro, aproveitando as vendas mais aquecidas da época do Natal. Antes da partida, fizeram um acordo prévio com sogros, cunhados e irmãos de Anapuatã, sobre a cobrança de 10% do valor de cada peça vendida, para pagar as despesas da viagem. Depois de alguns acordos com os chefes dentro da aldeia, utilizamos o barco com motor da aldeia para recolher o material dos parentes de Anapuatã que moram na aldeia Uyaipiuku, localizada no caminho de saída para a cidade de Canarana. As peças nunca são marcadas com etiquetas para marcar quem são os produtores dos objetos, mas Anapuatã sabe identificar exatamente a origem de cada uma delas. Na noite antes do embarque, os objetos foram semiempacotado em caixas de papelão velhas, plástico-bolha e jornais

140 adquiridos em lixos das cidades, por falta de materiais adequados que normalmente são indisponíveis nas aldeias. Em cada caixa, organizaram as peças de acordo com o tipo de artefato. A maior dificuldade que enfrentamos foi conseguir organizar e separar as cerâmicas de acordo com os tamanhos, pois cada uma tem formatos e alturas distintas. Algumas peças foram quebradas logo no começo, no momento da embalagem dos produtos, outras foram deixadas nas aldeias por apresentarem sinais de ressecamento, descascamento e pouca qualidade. Alguns bancos de madeira mal-acabados, entregues por um dos filhos de Anapuatã, não foram selecionados para serem comercializados. O trabalho de embalar o material é bastante árduo, sobretudo, por não ter recursos de embalagens suficientes para levar todos os objetos, ocasionando danificações em muitas peças que demoraram meses para serem confeccionadas. Os bancos e as esteiras, aqueles objetos que dificilmente são deteriorados, foram embalados em jornais velhos, enquanto as cerâmicas foram embrulhadas em plástico-bolha, jornais e caixas, e outras foram mal-empacotadas por falta de material, e, consequentemente, quebradas aos poucos, ao longo da viagem. O dia do embarque deu-se em função do conserto da Toyota para transporte dos objetos disponibilizados para a venda; depois de ter ficado três dias na oficina mecânica da cidade para consertar o motor, conseguimos finalmente nos deslocar diretamente para Canarana . Chegamos após o entardecer no trecho da fronteira que finaliza a Terra Indígena do Xingu, na qual emprestamos a Toyota, mediante o pagamento do combustível e do conserto do motor. Pernoitamos em uma fazenda, onde trabalha o cunhado de Yamanipalu, e seguimos para Canarana no outro dia cedo. Em Canarana, o material foi despejado na sede da Associação das Terras Indígenas do Xingu, onde ficamos alojados. Posteriormente, seguimos viagem com muita dificuldade para embarcar a mercadoria de ônibus até Goiânia, seguindo de lá, com a transportadora Itapemirim, até São Paulo. Evidentemente, nos cobraram multa por excesso de bagagem. Ainda em Canarana, Anapuatã fez contatos por telefone com algumas pessoas conhecidas em São Paulo para conseguir hospedagem gratuita por uma semana, mas não conseguiu encontrá-los em casa ou não atenderam nos celulares.

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Saímos de Canarana no dia 29 de novembro de 2009 pela manhã, com passagem para Goiânia. Passamos a noite viajando e chegamos à rodoviária de São Paulo no dia 30 de novembro, muito fatigados. Em São Paulo, o primeiro problema enfrentado foi encontrar um local para ficarmos hospedados. Enquanto Anapuatã hospedou-se na casa da proprietária de uma loja, eu consegui uma vaga em um pequeno hotel no centro da cidade. No segundo dia, desembrulhamos o material e terminamos de montar as últimas peças que vieram desmontadas para facilitar o transporte. Organizamos as peças para a exposição na loja Ponto Solidário. O local é um espaço agradável de venda da produção artesanal de diversas Ongs, associações indígenas, cooperativas, artesãos e artistas. A proprietária da loja disponibilizou um espaço específico para os Mehinako expor alguns objetos por tempo indeterminado. Logo quando chegamos, Anapuatã recebeu uma quantia em dinheiro por alguns objetos que sua família havia deixado para as vendas por consignação, no final do ano de 2008. A princípio, organizamos uma pequena exposição; a loja Ponto Solidário, que adquiriu a maior parte das peças, e alguns clientes colecionadores separaram alguns objetos mais raros. O restante do material foi destinado a vendas avulsas, menos significativas. A dinâmica de trabalho em São Paulo era passar o dia acompanhando as vendas da loja e conversando com pessoas de todos os lugares do Brasil. Neste sentido foi uma experiência bastante significativa para Anapuatã, que pode observar como funciona este tipo de comércio em um grande centro urbano como São Paulo. Yamanipalu entrou em contato com proprietários de outras lojas como, Ameríndia, Artíndia, Iandé, que se mostraram reticentes em adquirir objetos, alegando que o estoque estava lotado. Depois ele ainda ira continuar o percurso por cidades brasileiras: Brasília, Rio de Janeiro e Salvador. O circuito era sempre o mesmo e tinha como objetivo fazer visitas sociais aos seus amigos e buscar contatos para ele e para a aldeia. Este processo começou a criar vários problemas em Utawana, principalmente com o chefe tradicional da aldeia. O antigo chefe mediador, que realizava esta mesma função de Anapuatã, obtinha relações de troca com seus contatos, que frequentemente lhe davam bons presentes, dinheiro, passagens de ônibus – o que ele retribuía com convites para passarem temporadas em

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Utawana sem o pagamento das estadias. Mas, chegando a Utawana, estes amigos normalmente ficavam hospedados na casa do chefe tradicional, que esperava receber retribuições para si, o que nem sempre acontecia. Como resultado, muitos dos presentes que estes visitantes levavam para a comunidade eram então apropriados pelo chefe tradicional que, como tal, se sentia no direito de receber presentes dos visitantes como retribuição pela hospedagem. Os não aliados começaram a criticar o chefe da aldeia e o prestígio do chefe mediador aumentava progressivamente em função dos contatos que ele havia conseguido, possibilitando a venda de uma grande quantidade de objetos da comunidade. O desentendimento entre os dois ficou insustentável, com o chefe mediador reclamando que o outro não desempenhava os devidos papéis de chefe tradicional e vice-versa. A situação atingiu o ápice quando começaram a correr rumores de feitiçaria. Depois dessa confusão, o chefe mediador continuou na antiga aldeia e o chefe tradicional fundou outra comunidade com seus aliados, desta forma convocou o seu irmão mais novo, Anapuatã, para desempenhar a função de mediador.

Valoração econômica Por ocasião de nossa visita, através de consultas telefônicas, pela internet e em algumas lojas especializadas em objetos indígenas, realizamos um levantamento de preços sobre peças Mehinako. Percebemos que existe uma grande variação na valoração de peças entre as diferentes lojas consultadas. Em geral, os preços cobrados na loja Araribá, no Pará, são mais baixos do que os praticados pelas lojas Iandé, Ameríndia e Ponto Solidário, localizadas na região Sudeste. Segundo entrevistas realizadas com pessoas destas lojas, geralmente é colocada uma margem de lucro de aproximadamente 60% sobre o valor pago aos índios nas aldeias ou nas próprias lojas. Os proprietários atribuem o aumento dos preços ao fato de viajarem de 3 a 4 meses ao ano até as aldeias indígenas em busca de peças peculiares e específicas, algumas viagens podem levar 15 dias de barco. Edson, o proprietário da loja Ameríndia, afirma que “alguns índios vão até Campinas oferecer as peças, mas, muitas vezes as viagens são necessárias para buscar objetos indígenas específicos

143 encomendados por colecionadores ou para enviá-los aos museus no exterior, onde as peças são mais valorizadas”. Alguns proprietários afirmam que as discrepâncias são ainda maiores, dependendo do tipo de artefato em questão. Por exemplo, para bancos de madeira, canoas e cerâmicas, os valores variam ainda mais. Devido à dificuldade no momento do transporte, algumas peças somente podem ser transportadas de avião. Ainda, há de se levar em consideração as diferenças na qualidade das peças, na madeira, nos detalhes dos grafismos, que são fatores decisivos na atribuição de valores. Nas lojas Araribá, Iandé, Ponto Solidário, Artíndia e Ameríndia, os preços são colocados diretamente nas etiquetas das peças, havendo a necessidade de alterar o valor dos objetos constantemente. Um banco zoomorfo Mehinako médio, que pela tabela da Associação das Terras Indígenas do Xingu é vendido a R$ 150,00, pode ser encontrado por R$ 220,00 (Iandé), 200,00 (Ameríndia), os lucros podendo chegar a cerca de 200%. No entanto, o valor pago aos índios nas aldeias e na loja da Artíndia, em Brasília, geralmente é inferior ao que consta na tabela da ATIX. Assim, vemos que enquanto o lucro da Artíndia, de Brasília, varia de aproximadamente 40% a 250%, os lucros de outras lojas, como a Iandé, é sempre maior que 90%, podendo chegar a 400%. Em relação aos programas de regulamentação dos objetos oferecidos pela Fundação Nacional dos Índios, inexistem critérios de valorização das peças de melhor qualidade adquiridas diretamente dos índios. Isto não incentiva uma melhoria nos padrões de qualidade entre diversos povos indígenas com os quais as diversas lojas negociam, ao contrário do que ocorre com compradores mais exigentes. Efetivamente, o mercado de objetos indígenas reativou o antigo mito do bom selvagem em sintonia com a natureza, e os índios xinguanos adquiriram uma grande visibilidade a partir desse estereótipo. Contrariando a imagem etnocêntrica que os apresentam como relíquias do passado, os povos indígenas souberam potencializar as nossas fantasias para concretizar a consolidação da imagem do índio ecológico. Os índios Mehinako se apropriaram dessa imagem para vender mais objetos. De qualquer forma, as respostas dos Mehinako convergem para essa

144 concepção e, desta forma, conseguem que haja um relativo distanciamento entre as questões internas e externas do grupo. Price (2000:177) ainda ressalta que os objetos indígenas atendem à estética ocidental para decorar locais considerados sofisticados, principalmente lugares que querem passar a imagem de preocupação com a questão ecológica e social. Ao realizar um apanhado sobre o que é denominada arte primitiva, a autora ressalta o quanto o Ocidente consome esses objetos para manter um controle sobre o que representa primitividade, com a intenção de contrapor com aquilo que é considerado civilizado.

Consumidores Conseguimos identificar três grupos distintos de consumidores. No primeiro caso, aqueles que buscam peças apenas para decorar e combinar com o ambiente. No segundo caso, consumidores preocupados com informações sobre a procedência, autenticidade, o significado original e a singularidade. Por último, os colecionadores. O primeiro grupo de clientes respondeu que comprariam/compram os objetos indígenas Mehinako para decorar a casa ou por combinar com a sala, ressaltando predominantemente a função decorativa do objeto. O objeto com fins decorativos é mais passível de substituição, menos raro, tem uma dimensão simbólica menor. Caso seja um produto meramente decorativo indígena, o foco passa a ser o fato de decorar o ambiente, importando menos as qualidades associadas à originalidade, singularidade, autenticidade. No segundo grupo de consumidores, a priori não buscaram informações sobre o modo de vida e a utilidade original da peça antes de chegar à loja; assim, interpretam os objetos de interesse de acordo com os argumentos do senso comum e fazem associações de imagens pré-estabelecidas. Entretanto, a venda é completamente definida pelas informações detalhadas adquiridas dos proprietários das lojas. Neste caso, o principal motivo apresentado pelo respondente foi o fato de o objeto ser diferente, ser exótico. Assim, pode-se concluir que a exclusividade tem papel essencial na preferência de objetos indígenas deste grupo. De fato, das 80 respostas apresentadas pelos respondentes para a preferência dos objetos indígenas Mehinako, apenas 7 tiveram caráter predominantemente decorativo. As outras 73 respostas

145 mostraram que os participantes escolheram sua peça preferida por motivos simbólicos, sobretudo pelo significado ou utilidade. Em 98% dos casos foram os mesmos motivos simbólicos que determinaram a rejeição pela peça. No terceiro caso de consumidores, observou-se que os colecionadores são os consumidores mais cobiçados pelos proprietários das lojas. A maioria deste tipo de frequentador das lojas é do sexo masculino e está na faixa de 40 anos. Alguns consumidores moram em outras cidades e encomendam os produtos via internet ou telefone ou ainda viajam para ir até o ponto de venda identificar os detalhes da peça. Todos os colecionadores de objetos indígenas buscam singularidade, diversidade e a série contínua. O frequentador mais assíduo da loja Ameríndia é um colecionador de remos indígenas.

Fig. 30 - Remos adquiridos pelo colecionador

Ele guarda os remos pendurados em um imenso cômodo específico para armazenamento dentro de sua casa. Em todas as solicitações ele reserva os remos realmente utilizados no cotidiano pelos Mehinako, aqueles que não são enfeitados, mas sujos, desgastados e, preferencialmente, possuem lodo. O colecionador de remos se orgulha de ter conseguido obter 135 remos de diversos grupos indígenas. Os remos indígenas não foram feitos para serem completados, e é a descontinuidade da coleção que instiga ainda mais o colecionador. Para Baudrillard, a coleção impõe uma aritmética estranha, em que cada objeto possui o mesmo valor. Ele cita um caso contado por La Bruyere que mostra a questão da importância da descontinuidade.

Tenho, diz este, uma grande mágoa que me obrigará a renunciar às gravuras pelo resto de meus dias: possuo todo

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Callot, exceto um, que, na verdade, não é uma de suas melhores obras. Ao contrário, é uma das menores, mas que me completaria Callot. Trabalho há vinte anos para recuperar esta gravura e começo a perder as esperanças de vir a possuí-la: é muito duro! (Baudrillard, 2002:99-100). O fato de o remo ser absolutamente único, de tal forma que não apresente antecedente, é fundamental para motivação pela série de remos do colecionador. No caso, o remo tem um valor muito maior somente quando se encontra aquele que nunca poderia ser encontrado em uma loja convencional, mas que certamente foi usado por um autêntico índio Mehinako. A coleção deve ser finalizada? Certamente, o colecionador nunca tem certeza de quando vai chegar ao fim da coleção.

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CAPÍTULO 6 - Objetos rituais: ativar ou desativar os poderes do apapayêi

Em 2009, Ontxa, filho de um dos chefes Mehinako que estava nos acompanhava de barco até a aldeia Utawana, estava se mudando para trabalhar em um supermercado em Canarana, e encontrava-se ansioso para conseguir contatar alguém a fim de conseguir auxílio para levar seus objetos pessoais até o local onde pretendia se estabelecer novamente. Em uma de suas conversas registradas por mim em 2009, Ontxa estava preocupado em preservar seus bens, sobretudo suas flautas e máscaras, que estavam escondidas dentro da mata, local em que as mulheres não pudessem encontrá- las, mas, também, não sabia como transportar sua televisão, bicicleta e cachorro. O destino destes objetos, como flautas e máscaras, é igualmente complicado, pois não se pode simplesmente trocar ou vender estes objetos rituais. As máscaras e as flautas rituais só podem ser transmitidas de pais para filhos, ou mesmo entre irmãos ou primos cruzados. No caso de Ontxa, ele havia herdado os objetos do apapayêi de seu irmão mais velho, falecido por causa de um feitiço não desfeito. Naquela ocasião, seu irmão havia produzido as máscaras e as flautas para conseguir a cura de uma inflamação nos ouvidos, pois os objetos são instrumentos para se ter acesso aos espíritos e é necessário garantir a manutenção deles através de cuidados, alimentações e festas. Ontxa poderia ter recusado os objetos, mas decidiu aceitá-los, pois havia feito a promessa para seu irmão que cuidaria bem de seu apapayêi. Como se sabe, estes objetos herdados devem ser constantemente bem cuidados e alimentados com mingau. Neste caso, tratava-se de cuidar e adquirir proteção do apapayêi mais furioso e poderoso de todos, de um ritual muito caro e sustentado por seu irmão durante anos. Estes objetos são extensões do apapayêi, não podem ser considerados um objeto de posse, mas de transmissão. É como se o irmão de Ontxa tivesse deixado seus filhos para ele terminar de criar. As máscaras não podem ser vendidas. Por causa de sua mudança para a cidade, ele não podia mais cuidar do apapayêi de seu irmão. Neste caso, a última opção encontrada foi queimá-las todas juntas. As máscaras e as flautas não podem ser trocadas, e se faltar um dono por causa

148 de falecimento, ou se faltar um local adequado para o armazenamento e a continuação dos cuidados e serviços prestados, tudo deve ser destruído imediatamente. A maior preocupação de Ontxa era com o serviço que deveria continuar prestando para o apapayêi, mas com a destruição dos objetos, o ciclo do ritual foi interrompido. O apapayêi continua protegendo seus donos quando há uma relação de cuidado com o oferecimento de alimentos no centro da aldeia, que, nos termos Mehinako, é chamado de pagamento. A relação com o apapayêi é fundamental para a produção e reprodução da sociabilidade da comunidade. Um grupo ou uma pessoa deve se oferecer a fazer o serviço da festa, com remuneração pelo dono do apapayêi. Ontxa disse que não ia precisar da proteção do apapayêi na cidade, pois eles somente existem nas florestas. Os objetos rituais são elementos visíveis, materiais, compondo um todo que inclui, além disso, elementos imateriais, como mecanismos apropriados para serem ativados constantemente. Sem as regras de alimentação e cuidados adequados, perdem-se os poderes. Nas festas dedicadas aos espíritos, percebe-se a possibilidade de inverter a ordem entre a dimensão humana e cosmológica, considerando que os espíritos se manifestam nos objetos. Os Mehinako afirmam que os primeiros encontros com os apapayêi são uma experiência chocante. Evitam-se os desejos que não estão ao alcance, as saídas noturnas e distantes. Costumam evitar falar de espíritos e mortos, para não sonhar com eles. Após o primeiro encontro com um apapayêi, vai-se acostumando com a onipresença deles na cotidiana Mehinako, e com a possibilidade de ser atingido por outros apapayêi. Neste capítulo, ao focar a investigação nos equipamentos rituais, procuramos entender quais são os objetos produzidos durantes as festas dedicadas aos apapayêi. Porém, a partir de uma descrição detalhada dos eventos sociais, pretendo relacioná-los com a produção de objetos e seus intercâmbios. Assim, através dos objetos rituais, procuro evidenciar a maneira como os Mehinako acionam a produção e reprodução social.

Desativando apapayêi O eclipse lunar tem um papel importante na sociedade Mehinako, para compreendermos os objetos indígenas vinculados aos apapayêi aos mitos.

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É surpreendente notar que o momento em que a lua é camuflada para dar espaço à escuridão absoluta parece ser o momento exato para a realização de sucessivos rituais, e isto justamente ocorre na escuridão, condição ideal para aparecerem os apapayêi. Há, entretanto, uma ligação entre eclipse e o retorno das circunstâncias que os Mehinako contam nos mitos do começo dos tempos, quando eles eram fraquinhos, brancos, franzinos e, assim, presas fáceis para as onças. No início, os antigos seres humanos (yupuruhu) viviam nos níveis subterrâneos. Na escuridão, os apapayêi podiam circular em total liberdade pelo mundo, devido ao fato de todos os lugares serem escuros. Considero importante ressaltar, mais uma vez, que, no mito de origem, o Sol aparece para vingar a morte do irmão, Lua. Com o eclipse, a Lua desaparece, proporcionando condições ideais para retomar o início dos tempos primevos, e os apapayêi poderem sair de suas casas subterrâneas, do fundo dos rios, sem máscaras, sem flautas. Nas noites de eclipse, os apapayêi retomam suas condições de yupuruhu. As precauções são seguidas e necessárias para não ocorrerem as trocas das posições e pontos de vista, ou seja, as regras são cumpridas para os yupuruhu não voltarem a ser os donos dos alimentos e dos objetos. Por ocasião do eclipse, as almas das últimas pessoas mortas são finalmente devoradas pelo urubu bicéfalo, momento em que elas são aniquiladas para sempre. O morto deixa de ter alma e passa a ter apapayêi. O falecido resiste até o final da luta, tentando proteger sua alma dos urubus, utilizando as armas que são colocadas nas redes pelos parentes. Por isso, neste momento, o elo estabelecido com um apapayêi durante a vida é considerado fundamental para recebimento da proteção nesse importante processo de transformação, ou seja, as pessoas que alimentaram seus apapayêi durante toda a vida podem receber sua proteção. Os homens explicam que, no momento do eclipse, Lua, demiurgo do gênero masculino, está “menstruado”. Antigamente, os homens menstruavam e as mulheres eram donas das flautas kawoká, situação que se inverteu com o tempo. Naquela época, todas as mulheres podiam fazer sexo com o homem que encontrasse a flauta. Enquanto as mulheres contaram outras versões sobre o fenômeno, a filha do pajé explicou da maneira mais convincente, re ssaltando que “na

150 realidade, a Lua se transforma em uma linda mulher no dia de eclipse, assim como no mito do pequi, contado anteriormente, em que um jacaré se transforma em um homem bonito”. Por esse motivo, os Mehinako dev em tomar todas as precauções para os filhos não nascerem gêmeos e para as coisas não se transformarem em bichos, pois nas noites em que acontece o eclipse, os apapayêi não usam máscaras de animais ou de objetos para disfarçar, eles simplesmente aparecem. De fato, as pessoas pintam suas faces com carvão ou polvilho para se protegerem do sangue que a Lua está jorrando, pois esta substância pode provocar manchas terríveis na pele. Em seguida, todos os objetos devem ser acordados, aqueles que foram feitos com linha são desfeitos, e todas as coisas que foram emprestadas não podem ser devolvidas. Os objetos são acordados com toques e as seguintes frases: “a Lua está fazendo cara feia” ou “acorde, acorde, está acontecendo o eclipse”. Nota-se que nesse caso acontece o inverso das máscaras e flautas Kawoká, os objetos devem ser desativados através do toque para não se transformarem em apapayêi. No caso anterior, Ontxa alimentava as máscaras e as flautas para continuar sendo protegido por elas. Um Mehinako disse que havia emprestado sua TV 29 polegadas para seu irmão mais velho antes de acontecer o eclipse, neste caso, aquele que emprestou teve o direito de se apropriar do objeto. Uma regra importante é que nunca se pode devolver os objetos emprestados depois de um dia de eclipse, pois os objetos poderiam também se transformar em apapayêi. A última providência é que toda a comida produzida deve ser descartada, pois, certamente, foi estragada pela Lua. As mulheres explicam que, quando elas estão menstruadas, não podem cozinhar os alimentos, trabalhar na roça ou produzir objetos tradicionais, para não estragar os alimentos ou os objetos. O pajé não pode comer os alimentos feitos por mulheres menstruadas, pois pode perder o poder de cura. Da mesma forma, a Lua, quando menstrua, não pode entrar em contato com as pessoas, com os alimentos e com os objetos. A menstruação da Lua apodrece os alimentos, mancha a pele das pessoas e estraga os objetos. Nesse momento de transformação total do cosmos, os alimentos que foram ingeridos no dia anterior também devem ser eliminados do corpo, e, para isso, provocam o vômito com a utilização de eméticos. O eclipse causa dores

151 pontuais em todas as pessoas, principalmente nas crianças pequenas, por isso, todos os adultos devem eliminar o sangue da Lua de dentro do corpo, escarificando as pernas, braços, costas e a região peitoral, e também vomitando. Enquanto isso, todas as crianças e alguns adultos são curados pelo pajé para não sentirem dores no corpo. Este é o único momento em que o pagamento pela cura não é muito exorbitante. As pessoas retribuem a cura do pajé com pequenos presentes como sabonetes, anzóis, caixas de fósforo, linhas de pesca etc. Os homens dançam e cantam para a Lua, ao mesmo tempo, os apapayêi também realizam as cerimônias. Por fim, os homens lutam no centro da aldeia. Assim, o fato de os humanos realizarem festas e compartilharem alimentos com os apapayêi aproxima a comunidade do universo cosmológico, ou seja, minimiza as diferenças existentes. Na perspectiva dos apapayêi, os humanos são provedores de acesso aos alimentos cozidos, em contrapartida, na perspectiva dos humanos, os espíritos são considerados protetores permanentes. O espírito que escolhe um humano para proteger dos outros espíritos não possui intenção de provocar danos, ou seja, de acordo com a perspectiva dos espíritos, eles não sabem que provocam algum mal aos humanos, quando capturam a alma. Os espíritos são capazes de gerar doenças nos humanos, provocando um receio constante na comunidade Mehinako, mas ensinam como tomar precauções por meio de regras de conduta estabelecidas por eles. Os moradores da aldeia Utawana explicam que os apapayêi não possuem apenas características maléficas, pois quando eles são recompensados proporcionam a cura e a proteção da alma. A reversão da doença é demonstrada na afirmação de Itsautaku, um pajé Wauja: “os apapaatai querem te ajudar, eles te adoecem para depois te ajudar” (Barcelos Neto, 2008:93). Na realida de, entre os Mehinako a alma é enfraquecida para estimular a troca de objetos e alimentos. Os espíritos controlam todas as ações humanas, principalmente os desejos, os excessos e as quebras nos códigos de conduta. Os apapayêi costumam se identificar quando demonstram insatisfação na execução das festas realizadas.

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O resguardo e os objetos Um dos momentos em que os objetos não podem ser ativados é o do resguardo. O doente em tratamento, o enlutado, o recluso e a mulher menstruada devem manter resguardo para evitar a vulnerabilidade em seus próprios corpos e para manter um estado corporal estável. No período que se segue ao parto até a mulher voltar à normalidade, a fase da couvade ou período puerperal, os pais fazem resguardo para impedir as sequelas nos próprios corpos e nos dos filhos. Os pais, filhos e irmãos do falecido, os enlutados, fazem resguardo para evitar serem atraídos pelo parente morto e, assim, os mais próximos conseguem conter a degradação do próprio corpo. Em todas as situações, as pessoas que estão fazendo resguardo reestruturam o próprio corpo ou o corpo de outrem e buscam neutralizar os líquidos corporais. As secreções corporais estão presentes nos seres vivos, identificadas no esperma, sangue menstrual, suor, vômitos, fezes, urina, entre outros. Por exemplo, o sangue, o sêmen, o suor não devem ser excedidos ou reduzidos, eles são os responsáveis por manter a vida e dar forma ao corpo. As práticas de resguardo demonstram as distintas fases da vida, nas circunstâncias liminares de menstruação, doença, reclusão e morte, indicando a ausência de um estado completamente humano. A pessoa em resguardo está em uma fase de transformação, no estado de situação liminar e sensível, por isso está exposta aos insultos dos apapayêi. A noção tupi guarani de resguardo costuma ser traduzida como atitude de abstinência (Viveiros de Castro, 1986:466). Nos momentos críticos, a sociedade e os espíritos podem intervir nas fases limiares de transformação dos indivíduos. Quando os Mehinako estão em resguardo e, portanto, vulneráveis, os parentes e as pessoas da comunidade podem ser atingidas pelos apapayêi, que são atraídos pelo cheiro de sangue menstrual, alimentam-se com sêmen ou buscam a alma das pessoas mais frágeis, como a das crianças. Assim, os Mehinako devem evitar aquelas pessoas que não seguem o resguardo com precisão. Os apapayêi usualmente provocam os homens que estão com substâncias instáveis, através dos furtos das almas vulneráveis ou tentando adoecer seus parentes.

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No caso Mehinako, os apapayêi são os seres que perderam a forma humana para uma forma de animal, monstros, objetos ou espíritos. Os corpos devem permanecer no polo humano e se afastar do polo animal ou espírito. O corpo considerado humano é aquele que, entre outras coisas, segue padrões de conduta humana e se alimentam como humanos diferentemente das atitudes dos apapayêi. O momento que se segue ao nascimento é particularmente marcado pela neutralização do sangue e do sêmen. Segundo Peter Gow (1997), que pesquisou os Piro, eles são submetidos a restrições específicas para conseguir adquirir a forma do corpo humano, afastando-se da forma corporal dos animais. As características humanas não são adquiridas somente quando se nasce de pais humanos. As regras morais estabelecem o que não se deve fazer para regularizar o fluxo sanguíneo corporal, tais como ter atividades sexuais após o nascimento de um filho, realizar tarefas domésticas, cortar madeiras, apertar parafusos, colocar fogo na roça, costurar, cozinhar, fumar, beber perereba (mingau de mandioca), comer peixe ou carne de macaco etc.

Fig. 50 – Menina reclusa

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A confecção material constitui uma atividade repleta de significados para os Mehinako, por isso as habilidades técnicas e as restrições da produção no momento do resguardo representam uma questão de mudança do estado de uma pessoa. Nesse universo, os objetos articulam as relações entre os humanos e não humanos. As restrições que dizem respeito à manutenção do próprio corpo e do corpo do recém-nascido são as seguintes, durante o período pós-parto: tanto o marido quanto a mulher ficam impedidos de cortar o talo de buriti, ação que provocaria conjuntivite no recém-nascido. O líquido presente nos olhos da criança é o mesmo líquido contido no talo de buriti. Outra restrição a que estão submetidas as mulheres é quanto à produção de esteiras. Se as esteiras forem produzidas durante esse período, o recém-nascido pode ter dificuldade para urinar. O fato de trançar os fios da esteira provoca obstrução no canal da uretra do bebê. Ficam também impedidos os homens de derrubar madeira para a produção de qualquer objeto, pois o recém-nascido poderia morrer asfixiado com o odor amargo da madeira. De mesmo modo, os homens que cortam a madeira Atakumã, cujo dono é o espírito Atuxuá, provocam a perda da consciência e confusão na criança: normalmente elas se perdem no mato e não conseguem voltar para casa. Makaulaka explica que ele provocou a perda de consciência de sua filha mais velha.

A minha filha ficou perdida quando cortei a árvore da madeira Atakumã, tivemos que cortar a casca da árvore e fazer fumaça para a menina inalar e parar de ficar confusa. A madeira da árvore Kawuxupehi também pode provocar outros sintomas, causando coceira no recém-nascido, decorrente de um líquido natural na árvore. Para os Mehinako, os pais também não devem lixar objetos durante o resguardo, pois o feto correria o risco de ser abortado, sendo que o ato de lixar deixa o sangue do bebê muito quente. As flechas não podem ser utilizadas ou produzidas nessa fase, já que poderiam machucar o umbigo do recém-nascido. Outra restrição muito seguida na aldeia Utawana é o impedimento de manipular e serrar os caramujos para a produção de colares, pois o pó pode

155 causar hemorragia ou parto precoce. Os Mehinako explicam que o aroma da serragem é muito forte e o ato de serrar esquenta o caramujo. Uma restrição muito frequente na aldeia Utawana tem como alvo os espíritos. Se os pais cavarem buracos durante o resguardo, podem despertar os apapayêi que habitam o mundo subterrâneo, principalmente um apapayêi específico, com características de “bebê grande”, denominado Neunê Ku mã. Durante o período pós-parto, tanto o marido quanto a mulher ficam impedidos de coçar a própria pele com as mãos ou de pentear os cabelos de seus filhos. Para se coçar eles devem utilizar algum suporte, caso contrário a pele pode produzir manchas, e os cabelos dos filhos podem cair, fio a fio, no chão. Segundo meus interlocutores, o processo de deterioração precoce do corpo, como fica claro com as evidências acima, é causado pela não observância das restrições que recaem sobre os pais. César Mehinako, então pai de duas crianças já crescidas, explicou: “a alma da criança está junto com a gente neste período, se o pai faz qualquer esforço, como cortar pau ou cipó, pegar peso, cavar buraco, caçar ou pegar mel no mato. Também não deve usar qualquer tipo de objeto cortante, como facas ou outras ferramentas, fazer qualquer uma dessas coisas poderia fazer mal à criança”. Durante o resguardo, o marido fica dentro de casa, uma semana sem trabalhar, andando dentro de casa ou deitado na rede; se quiser, pode dar uma volta na aldeia. Não pode ir para o trabalho porque, se o fizer, a criança ficará doente. Já a mulher não pode sair da rede; a sogra, a irmã ou a mãe faz a comida. Contou-me João Mehinako que seu filho ficou cego de um olho porque não fez o resguardo de maneira correta, quando o filho ainda estava na barriga da mãe. Disse-me que ele fez o resguardo alimentício, mas, saiu de casa sem necessidade. A seriedade dos pais no seguimento das restrições e as influências externas, nesta fase, contribuem para determinar os limites do corpo, as características internas, físicas e psicológicas do recém-nascido: há uma relação entre a produção dos objetos e o processo de formação do corpo do recém-nascido. Os pais podem prejudicar os filhos quando criam os objetos. A antropologia tem se orientado a perguntar: as atitudes desses pais seriam as

156 mesmas se eles fossem de outras sociedades? Como esses pais passaram a imaginar que os objetos podem prejudicar seus filhos e a eles mesmos? A existência de matérias-primas para a produção de artefatos e a interferência desses materiais nos corpos dos envolvidos precisa ser explicitada em primeiro lugar, antes de qualquer análise. Bruno Latour (2002), em “Reflexões sobre o culto moderno dos deuses fe(i)tiches ”, faz uma análise sobre uma característica muito peculiar da sociedade ocidental: denunciamos o aspecto mágico dos objetos de outras culturas como se isso fosse prova de sua ineficácia religiosa e, ao mesmo tempo, nos valemos de objetos com funções religiosas semelhantes àqueles que imaginamos desconstruir como ingênuos e produtos de mentes primitivas. Devemos pensar os objetos indígenas não como matéria estática, fragmentada das pessoas que as produzem e utilizam, mas como objetos que possuem intenções quando envolvidos em ações humanas. A tecnologia contida na matéria-prima deve ser controlada, como observado por Overing (2006: 33) para os Piaroa, que têm que purgar os agentes tóxicos e poderosos contidos em tudo que detém poder transformador. Para os Mehinako, no que diz respeito à confecção dos objetos, uma das principais formas de controle é evitar as matérias-primas durante o resguardo. O corpo do recém-nascido é concebido aqui como um recipiente de muitas influências e estímulos. Neste sentido, não haveria por que negar que os objetos indígenas articulam os processos sociais e agem sobre o cotidiano, no sentido de transformá-lo. Os objetos podem ter diferentes propriedades, sendo que o resguardo nos auxilia a repensar a relação entre objetos e humanos. Os pais alteram o corpo do próprio filho ao produzir objetos, pois as substâncias da criança ainda estão vinculadas ao corpo dos pais. Tanto o corpo quanto os objetos são instrumentos que articulam significações sociais e cosmológicas. Para resumir as regras que são determinadas para a produção dos objetos no momento do resguardo pós-parto, utilizaremos a tabela seguir:

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A produção dos objetos As consequências ocorridas quando os nos momentos de resguardos não são seguidos como resguardo deveriam

Derrubar árvores A criança morre asfixiada com o odor amargo da madeira

Cortar madeiras A criança perde a consciência

Cortar a madeira O líquido da árvore provoca coceira na criança Kawuxupehi

Lixar objetos Pode causar aborto espontâneo, pois esquenta o sangue da criança

A produção de flechas Machuca o umbigo da criança

Serrar caramujos Causa hemorragia e parto precoce

Flautas Kawoká Entre os Mehinako, as flautas kawoká são de fato entes monstruosos e perigosos, denominados jakui, considerados um dos apapayêi mais temidos do Alto Xingu. A alma capturada por um jakui recebe doenças piores do que outros espíritos, por ele ser o maior deles, considerado o mais monstruoso e único.

Fig. 51 - Flautas Kawoká Extraído do livro: (PINAGE, P; D´ALESSIO, V. 2000. Mehinako: message from Amazon, São Paulo: Dialeto Latin American Documentary)

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Quando um pajé diagnostica o rapto da alma, dificilmente estas flechas usadas pelo Jakui serão retiradas do corpo com a pajelança, e, por qualquer motivo, a doença pode voltar para o corpo. Assim, os donos das festas precisam fazer a melhor festa de todas para conseguir seduzir um jakui, e devem agradar o espírito por toda a vida. No entanto, os espíritos jakui são aliados poderosos. Existem muitos casos de Mehinako que foram atingidos por jakui e nunca mais ficaram doentes de qualquer outro espírito. Normalmente, os apapayêi mais velhos e maiores ensinam as técnicas de capturar almas aos espíritos mais novos e menores, mas o espírito jakui é uma exceção, ele exige exclusividade absoluta, ou seja, não aceita a interferência de outros espíritos. Na aldeia Utawana, apenas duas mulheres e três homens são donos da festa do espírito jakui, eles nunca foram atingidos por outros espíritos. Por isso, preferem patrocinar a festa do mesmo espírito durante muitos anos a ficar constantemente apreensivos com a possibilidade de serem atingidos na alma por outros espíritos menores. A compreensão dos aspectos cosmológicos e dos mitos, inter- relacionados aos seres humanos e às dimensões que frequentam, propicia um entendimento mais claro da produção material Mehinako. De acordo com a mitologia xinguana, as flautas monstruosas eram propriedades das mulheres, tendo sido readquiridas pelos homens. Em todas as aldeias que possuem as flautas, as mulheres são privadas de vê-las. Gregor (1985) explica, em um mito Mehinako, que os zunidores eram instrumentos utilizados pelos homens para recuperar as flautas sagradas. Os homens giraram os zunidores, que emitiam um som assustador para as mulheres, e foi assim que elas devolveram as flautas para os homens. Quando perguntamos a um Mehinako o motivo pelo qual as flautas não são mais das mulheres, eles explicaram a propriedade masculina através de um mito sobre o casamento por interesse, realizado por Sol.

A flauta kawoká era de uma mulher, mas o Sol queria muito essas flautas para ele, porque ele achava que a flauta combinava mais com os homens do que com as mulheres. Para conseguir adquirir esse instrumento, o Sol teve que casar por interesse com essa mulher, dona da flauta. Depois que o Sol conseguiu adquirir a flauta, ele resolveu separar da mulher para conseguir roubar a flauta para os homens.

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Relatamos anteriormente, no mito de origem, que os yupuhu eram os antigos apapayêi que não toleram a luz do sol, e assim produziram máscaras para se proteger da claridade. Quando os yupuhu colocam suas máscaras são denominados apapayêi. Alguns yupuhu não foram avisados que o demiurgo Sol viria para vingar a morte de seu irmão Lua, e por isso ficaram escondidos no nível subterrâneo. Ali, produziram as flautas kawoká, que funcionam exatamente como as máscaras, ou seja, estes apapayêi que utilizam as flautas kawoká como proteção do sol são chamados de jakui. Na aldeia Utawana há, no momento presente, cinco donos de flautas kawoká, duas mulheres e três homens. O complexo de instrumentos é composto por flautas kawoká, flautas kuluta, zunidores e flauta de cabaça. As flautas sagradas kawoká não podem ser vistas pelas mulheres, pois são os instrumentos principais do sistema; as flautas menores, denominadas kuluta, são produzidas para venda, e também para o aprendizado coletivo; os zunidores são produzidos para evocar os apapayêi matapu e a flauta de cabaça é simplesmente um instrumento. As flautas kawoká atraem o apapayêi Jakuí, por isso nunca foram vendidas, pois as mulheres caraíbas também não podem vê-las. O aprendizado musical entre os Mehinako ocorre normalmente de pai para filho ou de avô para neto, através de observação permanente ao longo dos anos, ou, ainda, os especialistas podem ensinar tudo que sabem se forem pagos para isso ou ainda podem transmitir seu ofício para uma pessoa do seu núcleo familiar, sem cobrar remunerações. Os chefes e os homens mais velhos contam mitos sobre a flauta Kawoká, para estimular a transmissão do conhecimento para os mais novos, para os rituais nunca acabarem. Normalmente os ensinamentos ocorrem na casa dos homens ou nas clareiras no interior das florestas, locais a que as mulheres não têm acesso. Os Mehinako ressaltam que eles nunca ensinam como produzir ou tocar flautas. Os meninos que normalmente se interessam pelo ofício simplesmente observam os parentes mais velhos. O primeiro índio que aprendeu a tocar as flautas observou como tocar as músicas com uma raposa. Eles explicam no mito que:

Uma menina e um menino choravam muito porque sua mãe havia ido para roça e não tinha levado o casal de irmão com

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ela. Como eles choravam muito foram atraídos por uma raposa que tocava flauta, ficaram praticamente hipnotizados quando escutaram o som dessa flauta mágica e foram seguindo o som até chegarem na casa da raposa. Quando os meninos cresceram na casa da raposa, ela tentou fazer com que a menina engravidasse dela, mas não conseguiu. Sendo assim, a raposa expulsou as crianças de casa. Depois de muitos anos de convivência com a raposa eles aprenderam a tocar flauta e voltaram para casa tocando a flauta kawoká, e desta maneira ensinaram para as outras pessoas. Algumas vezes, por algum motivo, como doença em família ou desejo de prestígio, esse conhecimento musical é transmitido para homens adultos que não aprenderam quando eram crianças. Neste caso, ocorrem os ensinamentos intensivos, desde que o interessado no aprendizado remunere o flautista. A mãe de um Mehinako ficou gravemente doente de um apapayêi jakui, e não havia ninguém da família com conhecimento para tocar a flauta kawoká. Então, o filho da mulher doente pediu ajuda para um especialista e o remunerou com uma bicicleta nova. Na maioria das vezes pagam os flautistas com colares de caramujo, bicicletas e televisão. Normalmente, as pessoas que sabem estas técnicas são muito admiradas pela sociedade; os especialistas são muito requisitados, porque o interesse pelas flautas começa a aparecer na fase adulta, quando todos buscam prestígio na sociedade. Nos dias atuais, poucas crianças e adolescentes estão se interessando pelos ensinamentos das flautas kawoká, mas o interesse começa aparecer na fase adulta, quando alguém da família é atingido por algum espírito ou quando querem se destacar na sociedade. Mesmo as mulheres, proibidas de ver os zunidores e as flautas kawoká, podem se tornar donas das flautas ou patrocinar uma festa com a ajuda dos homens da família. Cada agrupamento de flauta principal - kawoká e flautas menores - pertence a um único dono, aquele que teve a alma roubada por um monstruoso apapayei kawoká. A partir do momento em que o doente começa a sentir dores fortes, o pajé diagnostica o apapayêi que estava provocando a doença e tenta amenizar as dores por meio de fumaça. Ele provoca a expulsão de uma espécie de feitiço de apapayêi do corpo do doente, que estava tentando se apropriar da alma do atingido.

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Os parentes mais próximos do doente são escolhidos para realizar as festas, e, neste momento, são escolhidos os homens e mulheres mais habilidosos para o ofício, ou seja, para a produção de flautas e máscaras. O agrupamento de flautas kawoká, kuluta e pan é providenciado para a execução da festa. Os parentes tocam em todas as casas até chegar à casa do doente. Como vimos, os objetos indígenas proporcionam interação e produzem acontecimentos no universo em que estão situados. Os objetos são, portanto, compreendidos num mecanismo de visualização ou materialização do universo cosmológico. Cada objeto contém elementos ou ações que existiram nos tempos mitológicos, quando os apapayêi eram os donos dos alimentos cozidos, do fogo, da água e de todos os espaços. O primeiro contato que tive com o ritual das flautas kawoká ocorreu no dia 08 de janeiro de 2009; estávamos em um grupo de pesquisadores de diversas áreas. Consegui identificar o comportamento das mulheres neste ritual. Os meus dois companheiros de viagem, Edson Luis, arqueólogo, e David Falter, piloto, observaram o universo masculino e contribuíram para algumas informações desta tese. Conseguimos participar de um dia de festa. No entanto, o seu término estava previsto para os próximos oito dias seguintes. Os meus amigos foram convidados a participar da festa por um dos homens que sabia onde estavam escondidas as flautas. Normalmente, um homem é escolhido para ser o responsável pela produção das flautas e pela realização da festa para aquelas mulheres que são donas de kawoká. O homem escolhido para ser responsável pela festa de uma mulher afirmou que sonhou inúmeras vezes com o apapayêi kawoká, que o ensinou a produzi-las e a compor algumas músicas do ritual. Por isso, ele sempre é o escolhido para ser o mestre da aldeia neste difícil ofício. Normalmente, as flautas sagradas são guardadas na casa dos homens, que as mulheres não podem frequentar, mas, como em Utawana este local ainda está em fase de construção, os Mehinako optaram por guardá-las embrulhadas em esconderijos secretos na mata alta, os quais apenas os donos das flautas homens conseguem identificar e reconhecer.

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As mulheres e a flauta Kawoká Segundo contaram os Mehinako, os espíritos jakui chegam à aldeia normalmente durante o anoitecer. Isso ocorre para as mulheres não serem surpreendidas com as flautas, pois, normalmente, nesse horário as mulheres pararam as atividades e estão dentro de casa. As mulheres são privadas de ver, tocar ou ouvir estes instrumentos, tanto durante sua produção quanto nos momentos em que as flautas estão escondidas na mata. No dia em que ocorreu o ritual das flautas na aldeia Utawana, todas as mulheres já sabiam que a festa iria acontecer, mas, por algum motivo, elas não me avisaram. Eu estava no pátio da aldeia entregando alguns presentes para alguns líderes, quando o chefe alertou aflito que eu deveria entrar rapidamente em alguma casa. O chefe da aldeia repetiu inúmeras vezes a s frases “Jakui, entra para casa”, “Jakui, entra rápido!”. Quando entrei na casa, todas as mulheres e as meninas estavam deitadas em suas redes de portas fechadas, aguardando a escuridão da noite. Nesta situação, me explicaram o que estava acontecendo. Elas ressaltaram que as meninas menores, que ainda não entendiam sobre as flautas, deveriam ser protegidas, ou seja, deveriam ser vigiadas, para evitar que elas saíssem de casa, pois se elas por acaso vissem aquelas flautas, certamente seriam pegas pelos espíritos, quando atingissem a idade adulta. Durante todo o período da produção, execução, proteção e conservação das flautas, as mulheres devem manter-se enclausuradas dentro de suas casas com as portas fechadas, e somente quando as flautas estiverem escondidas na mata alta elas poderão sair para os fundos das casas ou para o pátio da aldeia. Normalmente elas são avisadas quando o ritual será realizado. Um dos únicos casos de punição que aconteceram na aldeia dos Mehinako foi quando encontraram as flautas nos esconderijos, quando ainda moravam na antiga aldeia. A punição para a violação à norma de proibição é o estupro coletivo. Os Mehinako explicam que quem estupra as mulheres não são os homens, mas o espírito jakui. Ou seja, as mulheres podem deixar esse espírito enfurecido. Talvez por isso ele seja considerado o mais temido de todos. As flautas são extensões do espírito. Trata-se de mulheres que funcionam como instrumentos

163 de alteração do humor do espírito. As flautas Kawoká demonstram diversos aspectos da cosmologia, socialidade nativa e a noção de que a flauta é uma parte do apapayêi. Se, por um lado, o Jakui pode capturar partes da alma humana, por outro, os humanos podem produzir partes de um apapayêi. A realização das festas demonstra a condição humana na disparidade cósmica. Observa-se que a beleza da música, as máscaras, os cantos, as comidas agradam o apapayêi, entretanto, as mulheres podem enfurecê-lo.

O ritual das máscaras Os Mehinako explicaram de maneira detalhada o ritual das máscaras que é realizado na aldeia Utawana. Iniciam o ritual às 4:30h da manhã, um dia depois da confecção dos objetos. O dono da festa ou um dos colaboradores anuncia o início do ritual no centro da aldeia. Os colaboradores vestem o casal de máscaras atuxuá no interior da casa. Uma vez vestidos, o atuxuá macho segue primeiro dançando para o pátio central, em seguida, sucede o atuxuá fêmea.

Fig. 52- Atuxuá (desenho de Kulykurda)

O casal de atuxuá possui seis itens:

1. Atuxua (máscara) 4. Pihi (saia) 2. Watanati (flauta) 5. Nutái (corda para amarrar a cintura) 3. Pukutiwi (protetor da cabeça) 6. O desenho do peixe cachorra, espírito que mora junto com o espírito do jatobá

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Ao chegar à praça central, os atuxuá percorrem uma volta circular em todo o pátio no sentido anti-horário. Dois colaboradores com panelas cheias de mingau e peixes caminham atrás dos atuxuá, em seguida colocam os alimentos no centro da aldeia e retornam para suas casas. O casal, macho e fêmea enfileirado nesta ordem, realiza o mesmo caminho de volta para a casa. Enquanto eles retornam, os Kuahãhalu saem da casa e fazem a mesma dança circular.

Fig. 53 – Kuahãhalu (desenho de Kukykurda)

Este objeto ritual contém 4 partes: 1) máscara grande, 2) flecha, 3) calça e 4) mangas. Pouco antes dos Kuahãhalu seguir para a casa do colaborador, os atuxuá chegam à casa dos homens, repetem a dança circular e acompanham os huahãhalu até a casa de seu dono. Antes mesmo de o atuxuá voltar para a casa dos homens, o casal Xapukuyawá, o espírito do mato, sai da casa dançando de forma simultânea. Ambos recebem mingau de pimenta do dono da festa.

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Fig. 54 - O casal Xapukuyawá (desenho de Kulykurda)

Este objeto é composto de: 1) máscara macho, 2) calça e pênis, 3) mangas, 4) máscara fêmea, 5) calça e vagina, 6) mangas. Em seguida vem o awexu, o espírito da ariranha, que, ao chegar na casa dos homens, dança demonstrando satisfação, e todos os apapayêi retornam para a casa dos homens.

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Fig. 55 - Ewexu (desenho de Kulykurda)

Esta peça tem duas partes: 1) a máscara de ariranha, 2) a saia. À medida que cada casal de apapayêi ou os apapayêi unitários vão até a residência de seu dono, a sucessão de apapaatai aumenta aos poucos. Por último, vem o kapulukumã, o espírito do macaco.

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Fig. 56- Kapulukumã (desenho de Kulykurda)

Esta peça tem duas partes: 1) a máscara, 2) a saia. O casal de Atuxuá é o único apapayêi que acompanha os movimentos de entradas e saídas de todos os outros.

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Às 12 horas, todos os apapayêi se alimentam. À medida que são trazidos para a casa dos homens, evidenciam o ápice do ritual. Ao fim da grande festa, os colaboradores retornam para suas respectivas casas, trazendo presentes para os donos dos apapayêi. A quantidade de colaboradores para este ritual é elevada, pois é necessário que um casal de cada casa auxilie um dono de apapayêi. Assim, cada apapayêi precisa produzir, além de suas máscaras, pelo menos mais um objeto para presentear o dono da festa.

A festa do pequi Certa vez, ao longo da festa do pequi entre os Mehinako, um raio queimou o rádio de comunicação da aldeia com a cidade. À noite, o pajé Mehinako entrou em transe e teve visões em que o apapayêi ahira (beija-flor) estaria demonstrando insatisfação com o comportamento do dono da festa. Ele conseguiu visualizar o espírito ahira furioso pelo fato de não terem oferecido a pimenta durante a festa. O pajé explicou que o espírito do beija-flor gosta muito da pimenta cozida. Os espíritos falaram para o pajé avisar seu pessoal para providenciar a pimenta, pois o ahira podia acabar roubando a alma de alguém. Em suma, os humanos devem controlar seus desejos, e, ao mesmo tempo, devem satisfazer os desejos dos apapayêi. Os Mehinako contam que duas irmãs foram ao pomar de pequi colher alguns frutos, quando a irmã mais velha sentiu uma enorme fisgada na barriga. Assustadas e desconfiadas com a possibilidade de terem sido atingidas pelas flechas do ahira (beija-flor pequeno), retornaram para a casa sem os pequis. O yakapá explica que o Sol fez o ahira se tornar o dono do pequi. Ele é um bicho espírito muito poderoso, pois atira suas flechas no ouvido, peito e, posteriormente, na barriga. A irmã mais velha sonhou durante uma semana com a festa do pequi sendo realizada na aldeia, durante a qual ela estava situada no centro da festa, enquanto muitos homens dançavam a sua volta. Quando a atingida pelas flechas do beija-flor estava praticamente desacordada, a família decidiu solicitar a ajuda do pajé. Conforme previsto, o yakapá identificou que um enorme beija-flor havia provocado a doença, porque o bicho gostaria que a moça fizesse uma festa para ele. Depois de diagnosticada, a doente se tornou a dona da festa do beija-flor. Mesmo depois da intervenção

169 do pajé, a mulher continuou bem debilitada. Neste caso, uma pessoa da família se propõe a fazer a festa, e, neste caso, foi o marido que se responsabilizou. As mulheres da casa providenciaram o mingau de pequi para levar até o centro da aldeia, enquanto os homens produziram uma escultura dos ahira, alimentando-os com mingau de pimenta. Os Mehinako disseram que os ahira gostam muito de pimenta e mingau de pequi.

Fig. 57 - O espírito do pequi

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Como vimos no terceiro capítulo, a noção de apapayêi se aproxima da idéia de superseres dotados de excessos, que interfere no cotidiano dos Mehinako. Nota-se que quando pedimos para Kulykurda desenhar o apapayêi Ahira, ele fez o desenho de um objeto ahira juntamente com um do beija-flor em cima de uma árvore. Nos mitos, os apapayêi aparecem como seres humanos, animais, vegetais e objetos. A seguir, exponho como são realizadas as festas do pequi e como os objetos estão inseridos neste contexto lúdico de movimento, transformações, encontros e retribuições.

A produção de objetos na festa do pequi (Mapulawache) Realiza-se a festa do pequi visando promover a fertilidade humana e animal por meio da ingestão do fruto que contribui para aumentar o número de reproduções. Maria Heloisa Fénelon Costa (1988) ressalta que os Mehinako representam a festa do pequi nos desenhos espontâneos, em que identificam animais juntamente com seus filhotes, filhos na barriga, tracajás grandes acompanhados de tracajás menores, onça maior e onça menor, ou seja, os Mehinako associam a festa do pequi com a fertilidade. Esta festa ocorre no início da fase das chuvas, normalmente entre setembro e novembro. O pequi parece ser um excelente fruto para comer, fazer mingau, comercializar, extrair o óleo, e, principalmente, para elaborar mitos e ritos. A festa para armazenar pequi é exclusiva do grupo residente, da qual não participam outras etnias xinguanas. Considero de extrema importância a descrição dessa festa, para assim compreender a relação entre seres do mundo sobrenatural com os humanos, e destes com os objetos produzidos no momento do evento ou reaproveitados no ano seguinte. O ritual envolve concomitantemente também a diferença entre os gêneros, pois homens e mulheres participam de brincadeiras em que se provocam, falam mal um do outro, lutam, sentem ciúmes; e, desta forma, o momento da festa pode ser uma oportunidade para controlar o fluxo dos desejos. Ela também tem o propósito de curar as doenças das pessoas que tiveram contato com um apapayêi.

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A festa do pequi é muito celebrada por ocorrer nos últimos meses de abundância alimentar, pois os meses seguintes são de intenso enfrentamento da escassez de alimentos; por isso, é considerada a festa do período de fertilidade. As pessoas costumam estocar polvilho para esse período crítico e compram arroz na cidade. Os Mehinako explicam, através de um mito, o surgimento do pequi, transcrito aqui na versão colhida por Maria Ignez Cruz Mello, entre os Wauja:

Todas as manhãs as duas irmãs, esposas do chefe, iam para a roça. Elas estavam insatisfeitas porque o marido tinha 5 mulheres e não dava a devida atenção para elas, por isso resolveram arrumar outro namorado. Quando chegavam à beira do rio falavam alto: - “Jacaré, j acaré v em transar com a gente”. O Jacaré saiu do fundo das águas, tirou sua roupa de jacaré, atrás da roupa havia um homem lindo. Primeiro, ele transava com a irmã mais velha, depois com a mais nova. Um dia o chefe foi caçar e se deparou com uma cutia. O animal disse a ele: - Vou contar uma coisa para você, as suas duas esposas irmãs não estão se comportando muito bem, ao invés de irem para a roça, elas estão transando com o jacaré todas as manhãs na beira do rio. A cutia mostrou o local em que estava acontecendo traição. O chefe da aldeia chegou ao local pela manhã e, conforme previsto, encontrou o jacaré transando com sua esposa mais velha. Ele aguardou acabar a última transa com a mais nova e flechou o jacaré no peito, em seguida bateu muito forte nas duas mulheres. As esposas choraram muito. Elas enterraram o jacaré no mesmo local da morte. Quando chegaram à aldeia, expulsaram o marido de casa, jogaram a rede dele no pátio central. No outro dia, as mulheres estavam com saudade do jacaré e foram visitar a sepultura e encontraram um lindo pequizeiro avermelhado brotando muito rápido; provaram o fruto, produziram os zunidores matapu e fizeram os cantos, ou seja elas fizeram o mapulawache. O sol reclamou que o pequi não tinha cheiro, por isso, as duas irmãs esposas do chefe passaram o pequi na vagina e jogaram fora. O marido se abrigou em outra casa. O Sol estava preocupado com o chefe que foi expulso e decidiu pintá-lo para ele ficar bonito. O Sol também ensinou ao chefe como fazer os objetos em formato de vagina (nupe nupe) para mostrar às esposas e tentar tê-las de volta. A pintura no corpo e os objetos em formato de vagina funcionaram muito bem, as mulheres voltaram a gostar do chefe e pediram para ele voltar para casa (Mello, 1999: 78).

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É por esse motivo que antes de plantarem os pés de pequi, os homens desenham com uma vareta, em seguida cavam um buraco no formato de um enorme jacaré na terra, colocam as sementes e espetam os objetos Ahira entre as árvores, e, enquanto estão espalhando as sementes, repetem de maneira cantada inúmeras vezes a frase “jacaré, vem transar comigo”. Os homens fingem que são mulheres, para atrair os jacarés. Os objetos ahira espetados entre as árvores devem ser trocados todos os anos para o apapayêi ajudar com colheitas abundantes de pequi.

Fig. 58 - Objeto Ahira colocado entre as árvores

Os Mehinako explicam que algumas vezes arranham as árvores que não crescem suficientemente, outras vezes desenham um pequeno jacaré com uma faca no pé de pequi. O fruto é cultivado por Akain Vekeneh, uma divindade, o dono de todos os pequizeiros. Na véspera da festa, presenciei o seguinte na aldeia Utawana: muitos homens seguiram a caminho da mata alta para realizar a produção dos objetos. Cortaram as árvores de madeira resistente para fazer os zunidores (matapu), os beija-flores pequenos (ahira), beija-flores grandes (yaupe), raposas

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(awayulu) e morcegos (alua) e para o cozimento do pequi. Essas madeiras denominadas yuluta, waxu, tupu e úya, na língua aruak, são semelhantes à madeira de jatobá e aroeira. Encheram a carreta de um trator, e logo que souberam de sua chegada, os donos da festa começaram a levar panelas de mingau de pequi para o centro e distribuíram entre todos. Cada homem cortava o tronco com facão em três pedaços, entalhava suas partes dos troncos, dando-lhes forma de animais ou zunidores; depois de cortados, os objetos foram armazenados na mata juntamente com as flautas kawoká. Enquanto os zunidores (matapu) não estão totalmente prontos, as mulheres devem permanecer afastadas do centro da aldeia, pois elas não podem olhar para os zunidores grandes, que estão em fase de produção, ou quando estão sendo utilizados na festa do pequi; o contato com os instrumentos poderia provocar doenças graves ou morte súbita. O evento se divide em três etapas de início, meio e fim, que podem levar 5 dias para completar um único ciclo. Pode haver uma etapa ou um ciclo por dia, os intervalos entre as etapas ou os ciclos são extremamente variados, em alguns casos ocorrem intervalos de 3 a 4 dias, sendo que os donos das festas decidem as etapas e os intervalos em uma reunião, na casa dos homens. Simultaneamente, enquanto as mulheres colhem, descascam e preparam o pequi e o mingau, dois homens mensageiros convocam o dono da festa. Eles circulam pelas árvores de pequi tocando uma flauta denominada watanate (flautas de-pã), aproximando-se, aos poucos, até o centro da aldeia (wenekutaku). A festa que presenciei se iniciou no dia 15 de outubro de 2009, quando o chefe foi ao centro da aldeia (wenekutaku) fazer o primeiro pronunciamento formal para convocar os espíritos apapayêi e as pessoas. O chefe pronunciou em voz alta e com frases pautadas e cantadas o seguinte refrão na língua aruak, para a realização da convocação, enquanto os dois mensageiros sentaram em bancos em formato de animais defronte a casa dos homens:

Ooos animaaais vieeeram. E o que os animais estão dizeeendo? Ano que vem vai dar muito mais pequi. Muito booom! Muito booom!

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A partir do momento que o chefe anunciou o início da festa, os mensageiros pararam de tocar a flauta Watanape, enquanto todos os outros homens começaram a tocá-las ao mesmo tempo. Neste momento, o dono do pequi estabeleceu um diálogo entre apapayêi e seres humanos, e assim, conseguiram evocar vários animais espíritos durante a festa. Os donos do ritual decidiram o momento de parar e tocar as flautas. Os Mehinako bateram os pés no chão alternadamente e balançaram o corpo para os lados, entraram de casa em casa e, em seguida, distribuíram alimentos no centro da aldeia, para os espíritos, e presentes para o patrocinador da festa. Todos gritam:

Uuu, aqui você vai armar sua rede! Mukurã, aqui está o seu cesto. Dentro do cesto tem vários tipos de peixe. Ao amanhecer continuaram a festa do pequi; nesse momento, eles demonstraram a etapa do yupé, o tamanduá. Os homens saíram de suas casas pela porta principal até o pomar de pequi, localizado a 200 metros do centro da aldeia; lá amarraram em sequência ramos de folhas dos pequizeiros, produzindo um enorme galho no sentido horizontal; posteriormente, prenderam bem firme o início dos galhos com fio de buriti, simulando uma espécie de bico do tamanduá. O grupo inteiro, aproximadamente 20 homens, carregou o imenso galho para dentro das casas, uma a uma. Em cada casa aconteciam as mesmas atitudes: quando colocavam o suposto nariz e a cabeça do tamanduá na porta de entrada, as mulheres batiam na parte frontal do animal com uma vareta; assim, as pancadas contribuíam para impedir que os homens colocassem a face do animal dentro do mingau. Depois os galhos foram deixados entre as árvores de pequi. Ao entardecer realizaram a etapa da festa para a raposa, awayulu: os homens começaram a sair do pomar de pequi com crianças em cima das costas dos mais velhos, simulando que as crianças eram os filhotes das raposas. Esta é considerada a festa da fertilidade. O grupo de homens com os meninos nas costas invadiu as casas, ficando logo à porta, onde as mulheres haviam deixado alguns frutos de pequi ao chão. Formou-se uma roda de homens com os pequis no centro, arremessavam os frutos ao chão e as crianças arrebentavam e disputavam os frutos.

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Em seguida realizaram a festa do tatu, ukalu. Nesta brincadeira, um grupo de homens se aproxima até o centro da aldeia com um bastão, que representa a unha do tatu; entram em cada casa e, dançando, cavam com enxadas buracos dentro das casas. Neste momento são interrompidos pelas mulheres, com insultos, tapas e arranhões, enquanto eles gritam “alukaka”. Essa é uma das brincadeiras mais importantes do ciclo da festa do pequi, porque os grandes lutadores caçam o tatu canastra (malula), arrancam-lhes as unhas, retiram a gordura do corpo do animal e produzem uma substância denominada malulauãna. Durante cinco meses, uma vez por semana, a gordura é despejada em todo o corpo arranhado para fortalecê-lo para as lutas. O bom lutador sonha com o tatu inúmeras vezes antes da grande disputa. No outro dia pela manhã realiza-se a festa do grilo, o kiriri. Esta brincadeira consiste em um grupo de homens adultos que são atados com uma corda, formando uma cadeia de homens amarrados e se movimentando para frente e para trás, ao mesmo tempo em que as mulheres os insultam sem pudores. A função delas é soltar os homens da corrente humana, um a um, começando pelo primeiro da ponta. Para isso, podem fazer de tudo, jogar água suja, arranhar, dar tapas, e sempre os homens acabavam se soltando, no que eram atingidos ainda mais pelos ataques femininos, até escaparem. Os homens cantam as seguintes palavras para as mulheres:

Eu queria ser um armador de rede para ouvir minha mãe fazer barulho. Traz o mingau do pequi para os espíritos donos do pequi. Para finalizar esse episódio oferecem mingau e peixe com beiju no centro da aldeia. Ao mesmo tempo realizam a brincadeira do marimbondo, atapuja. Neste momento, os homens mais jovens se pintam de preto (jenipapo) e agarram as mulheres para sujá-las com a tinta. A festa do porco, autu, somente acontece nos dias de chuva; os homens mergulham na lama e sujam as redes e os objetos das mulheres. Quando a brincadeira do porco não é realizada por falta de chuva, os Mehinako fazem a brincadeira do escorpião, hupã. Os homens acumulam água na boca e despejam nas fogueiras que as mulheres utilizam para cozinhar.

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O ritual da lagartinha, alukaká, nem sempre é realizado. Os homens normalmente se esquecem de realizar essa dinâmica, por isso as plantações ficam infestadas delas. Na brincadeira, os homens seguram uma corda de aproximadamente dez metros. As mulheres abraçam os homens pelas costas, para conseguirem agredir, arranhar, dar tapas e jogar areia nos homens. Eles são induzidos a soltar as cordas. Os homens passam resina, urucum e óleo de pequi nos cabelos, para evitar que as substâncias depositadas fiquem grudadas. No último dia de festa, logo pela manhã, acontece a brincadeira do morcego, o mais importante polinizador do pequi. Durante a noite, as árvores de pequi ficam totalmente cobertas de morcegos. O apapayêi aluakumã, o morcego grande, tem muitas namoradas e gosta muito das mulheres, por isso ele é considerado o dissipador da fertilidade. Fenelón Costa (1988:45) coletou um mito Mehinako, em 1970, que dizia:

O Morcego arranca a “buceta” de uma mulher para com o seu sangue colorir aves diversas. Ele também come o fruto do pequizeiro, alimento considerado promotor da fertilidade. Os Mehinako ressaltam que quando um homem é apelidado de morcego, pressupõe-se que ele tenha inúmeras namoradas ou esposas. Por isso, quando um jovem rapaz está interessado em namorar uma mulher, ele pendura um morcego feito de madeira em cima da rede dela. A pretendida pode retribuir o morcego de madeira com beiju, quando também está interessada no rapaz.

Fig. 59 - Alua, o morcego

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O ritual do morcego inicia-se com um grupo de jovens que formam um círculo em torno do tronco central da casa. Cantam e batem os pés no chão, intercalando os movimentos e, ao mesmo tempo, movem o corpo para os lados. Acabada a cantoria, alguns homens fazem buracos nas paredes de palha e escalam as paredes da casa até o ponto mais elevado das madeiras que a sustentam. Simulam um morcego, dependuram-se então de cabeça para baixo, sustentando as pernas no tronco. Durante a festa repetem os mesmos movimentos em todas as casas da aldeia. As mulheres tentam de todas as maneiras expulsar os homens que imitam os morcegos no interior da casa, e algumas fazem fogueiras, com pimenta, embaixo do local, ou jogam barro e pedras para eles caírem das paredes. O penúltimo ritual é o do peixe zunidor, o Matapu. Ele é um instrumento sagrado cujo processo de produção as mulheres não podem ver, pois podem ter morte súbita ou ficarem gravemente doentes. Este é um apapayêi dono dos rios, lugar onde eles habitam. Esse objeto é uma pequena prancha de madeira presa a uma pequena corda de barbante e, quando girado, produz um barulho de vento que evoca o apapayêi Matapu. Os zunidores são de diversas dimensões, formatos e grafismos. As pinturas e as cores, feitas com óleo de pequi, urucum, carvão e jenipapo, distinguem os objetos em classificações de nomes de peixes: walaku (piau), alapayakumã (bicuda), yuetsiniri (voadeira), puitxa (matrixã). Estes objetos são apenas utilizados para atrair o apapayêi Matapu na festa do pequi, eles não possuem alguma outra função. O chefe convoca os homens para a organização da festa na casa dos homens e diz em alto tom, com frases cantadas:

Arruai! Vamos levantar mais uma vez o nosso Matapu. Ahirakumã vem ouvir o que vamos falar. Hoje é dia de festa, o pequi está caindo para dar mais fruto o ano que vem. Ahirakumã vem ver seus presentes. Neste caso, o dono da festa era o pajé da aldeia. Ele explicou que seu filho ficou muito doente, devido ao excesso de zunidores produzidos para a venda. Por esse motivo, seu filho continua patrocinando a festa do Matapu, para, desta forma, evitar outras doenças piores. O apapayêi Matapu é um espírito experiente, mais velho; por isso, ele ensina os apapayêi menores com

178 a captura das almas. Normalmente as pessoas que ficaram doentes de Matapu devem patrocinar festas sucessivas para o espírito por cerca de dez anos, pois, assim, conseguem evitar que espíritos menores roubem também suas almas. Quando o filho do pajé vier a falecer, o apapayei Matapu estará esperando por ele na aldeia dos mortos. As festas constantes contribuem para o aumento da proteção no momento da morte ou afastar outros apapayêi do convívio. De acordo com o pensamento cosmológico Mehinako, os donos do zunidor matapu que adoeceram realizaram uma grande festa e conseguiram, assim, ser curados, e precisam constantemente retribuir a cura aos apapayêi com alimentos e zunidores, todas as vezes que a grande festa do pequi é realizada. Pelo que consegui compreender, estas retribuições são denominadas kawokala, a comida para o apapayêi, que é a comida cozida dos humanos. Os alimentos são providenciados pelos homens, que se organizam no centro da aldeia para o dia da pesca e a produção dos zunidores.

Fig. 60 - Matapu, o peixe zunidor

Segundo Thomas Gregor (1985), no mito do zunidor, os homens assustam as mulheres para recuperar a flauta Kawoká, pois nos tempos primevos a flauta sagrada pertencia às mulheres, mas os homens utilizaram o zunidor para assustar as mulheres. Depois de terem tomado a flauta sagrada

179 das mulheres, os homens proibiram-nas de ver os dois instrumentos. Os zunidores e as flautas passaram a ser objetos exclusivos dos homens. A troca de gênero também aparece nos mitos de origem em que, antigamente, apenas os homens menstruavam. Essa troca de gênero aparece nos dias de eclipse, quando os gêmeos homens Sol e Lua estão menstruados; eles ainda são os resquícios dos tempos primevos. A menstruação feminina apareceu a partir do momento em que os homens jogaram sangue menstrual nas mulheres; por isso, nos dias em que acontece o eclipse, as mulheres e os homens precisam se proteger com carvão, para não serem atingidos com o sangue de menstruação dos gêmeos, o que poderia provocar, nelas, manchas de pele, ou nascimento de filhos gêmeos e, nos homens, o risco de menstruar novamente. Como, em dias de eclipse, os demiurgos Sol e Lua jogam sangue de menstruação em todas as pessoas, sem exceção, a proteção é necessária e eficaz. A festa do pequi enfatiza enormemente a questão das relações e disputas entre homens e mulheres, pois nos tempos dos mitos, as mulheres ocupavam lugares na sociedade completamente diferentes dos dias atuais. Hoje, as mulheres aceitam tranquilamente a troca dos gêneros contadas nos mitos, por isso, definitivamente são dois homens que giram os zunidores ao mesmo tempo, objetos que aparecem nas danças como um casal de peixes apapayêi. Após a convocação dos espíritos através dos zunidores, quando as placas de madeira param de rodar, as mulheres entregam peixes assados, mingau e beiju ao dono da festa, para que ele possa levá-los ao centro da aldeia. Aí, os homens chamam as mulheres cantando a seguinte frase: “vocês podem apostar corrida comigo, suas feiosas”. Logo em seguida, os homens cantam músicas, cujas frases insultam os namorados das mulheres. Juntam-se em fila um grupo de homens de um lado e um de mulheres do outro. Do grupo masculino sai um homem que corre de braços levantados, simulando asas de pássaros; distante alguns metros das mulheres, correm em direção ao grupo feminino. Deste grupo, uma mulher corre na mesma direção

180 do homem, em uma espécie de competição de velocidade, mas a qualquer momento uma mulher pode correr em direção dele para dar uns safanões. Alguns homens apanham das mulheres no final da festa. No final da festa, os zunidores produzidos são entregues ao dono da festa, o filho do pajé, e são guardados dentro da casa do responsável, para serem utilizados depois de lixados, com as pinturas renovadas, na próxima festa do pequi. Por fim, o ritual do beija-flor, mapulawaxe, marca a conclusão da festa do pequi através do tema do ahira (beija-flor pequeno), ou seja, o principal dono da festa do pequi. Por isso pode ser considerado a etapa mais importante de toda a festa.

Fig. 61 - Ahira, o beija-flor

Percebemos que esta etapa é uma das poucas que conta com a participação dos velhos. O último episódio da grande festa do pequi leva quase 4 dias, e é composto de um grande número de cantos, danças, alimentos no centro da aldeia, mingau e trocas de presentes. Os homens reúnem-se na casa dos homens para a convocação dos participantes e as instruções do chefe. Os participantes utilizam brincos de

181 pena e colocam as folhas de pequi nas braçadeiras. Em seguida, a refeição é oferecida aos apapayêi, no centro da aldeia. Depois que começam a festa, homens, mulheres e crianças reúnem-se no interior da casa do dono da festa, formando duas filas e dançando em volta do tronco central da casa. Após realizarem as danças no interior de todas as casas, a comitiva encerra o primeiro ciclo no pátio central. Ao amanhecer, começa o segundo ciclo do encerramento da festa, os homens jovens e os velhos caminham para a mata alta e produzem os pássaros de madeira e as raposas estancados em uma vareta, criando uma espécie de escultura. No terceiro e último episódio do dia, a grande dança circular com homens e mulheres é realizada no interior das casas, e desta vez os homens levam os passarinhos e raposas nas mãos. Por fim, os homens alimentam as esculturas de madeira com mingau de pequi e pimenta.

Objetos da festa do pequi O dono da festa recebe todos os pássaros e raposas produzidos na festa; por último, os ahiras, beija-flores pequenos, são fincados no pomar de pequi, enquanto os yaupes (beija-flores grandes) são guardados na casa do patrocinador. Os Mehinako explicam que às vezes se esquecem de realizar todas as etapas da festa e, quando isso ocorre, os apapayêi ficam muito bravos e realizam ações que implicam vinganças. Para evitar as tragédias coletivas que podem ocorrer como as mudanças repentinas no clima, incêndios ou a devastação de pragas nas plantações de mandioca, seduzem os espíritos colocando os bicos das esculturas de beija-flores nos potes de pimenta, pressupondo que estão alimentando-os. Nesse panorama etnográfico alimentar os espíritos é, portanto, manter a relação de troca entre os apapayêi e os homens. De certa forma, os Mehinako conseguem amansar os apapayêi quando compartilham os alimentos no pátio central da aldeia. Conforme afirma Aristóteles Barcelos Neto (2008, 2002), a fabricação dos zunidores matapu e dos pássaros beija-flores ahira ou as raposas awayulu e os morcegos alua de madeira constitui a criação da possibilidade de uma manifestação visível dos apapayêi, proporcionando a materialização dos

182 espíritos durante as festas. Girar os zunidores, matapu, de fato, causa a impressão de ser a voz dos apapayêi perigosos que não podem ser vistos, mas podem ser ouvidos. No zunido que todos podem ouvir está subentendido que os espíritos estão compartilhando os cantos, as danças e, sobretudo, os alimentos cozidos com os Mehinako. Os objetos podem dar vida a algo misterioso, desconhecido e escondido, e, ao mesmo tempo, contribuírem com a retribuição aos patrocinadores das festas. Os objetos devem ser produzidos com responsabilidade. Relatei o caso do filho do pajé que ficou doente por ter produzido matapu em excesso. Isto seria um exemplo. As doenças e os desejos são controlados com as festas e a oferta de alimentos, mantendo, desta forma, os processos de trocas entre apapayêi e homens. De acordo com o mito da festa do pequi, relatado no início deste item, as mulheres, que foram as responsáveis pelo surgimento do pequi, produziam os objetos que são utilizados na festa. Parece que em todas as etapas da festa, os homens quiseram afirmar a sua superioridade, principalmente nos momentos em que insultam as mulheres e demonstram a regra de que as mulheres não podem olhar a produção dos zunidores matapu.

O pilão no ritual de yamurikumã No final da tarde do dia 21 de julho de 2010, dois dias após a chegada de três pesquisadores da Suíça, algumas mulheres articulavam fazer uma festa sucinta de yamurikumã para os pesquisadores filmarem, considerando que o ciclo completo das festas das mulheres poderia levar até três meses consecutivos. Muitas mulheres se reuniram no centro da aldeia, uma delas convidou os três principais chefes para solicitar a pescaria com timbó. A chefe das mulheres, esposa do pajé, comunicava-se com os convocados com um discurso espaçado e cantado. Normalmente, as mulheres com poder de liderança para coordenar as festas de yamurikumã são aquelas que usam uma tatuagem no braço com três listras pretas, paralelas e horizontais. Somente são

183 escolhidas aquelas mulheres que são filhas ou esposas dos chefes e seguiram as regras estabelecidas pela sociedade xinguana. Os homens que compartilhavam a reunião no centro da aldeia com as mulheres, por sua vez, respondiam o canto e assumiam o acordo de pescar para as mulheres, para a comunidade e para yamurikumã. No outro dia, ao amanhecer, um grupo de homens escolhidos pelos três chefes saiu para pescaria. Neste mesmo dia, as mulheres prepararam o beiju e o mingau perereba, feito de mandioca. No final da tarde, as mulheres se enfeitaram para a aglomeração no pátio da aldeia, lá cantaram as músicas de yamurikumã. Algumas seguravam a filha no braço, outras seguravam a mão de suas filhas pequenas, mas todas estavam ornamentadas com colares de miçanga coloridos, pintura de faixa vermelha na testa, pinturas de jenipapo nas pernas, colares de caramujo, cordões coloridos amarrados nas pernas e cinto. Uma das mulheres não gostou de ver um visitante de Gaúcha do Norte observando a dança; ele saiu correndo quando ela ameaçou derrubá-lo no chão, mas, mesmo tentando fugir, ela conseguiu atirar terra sobre ele. Esse tipo de insinuação continuou acontecendo ao longo da festa com diversos homens. O visitante correu, mas retornou para o seu lugar, e todas riram bastante. No dia desta festa, as mulheres podem morder, arranhar, beliscar, atacar, jogar terra, dar murros, ou, até mesmo, abusar sexualmente de um homem. Mais uma vez, por volta das onze e trinta da noite, algumas mulheres que dançaram à tarde voltaram para o centro da aldeia, enquanto todos estavam dormindo. Por volta das seis da manhã, ainda estava escuro, estávamos indo nos banhar no rio, quando percebi que quase todas as mulheres já estavam aglomeradas no centro da aldeia para dançar com o passo do pé direito. Nesta dança, as mulheres da frente avançavam mais que o restante do grupo, enquanto as outras mulheres permaneciam atrás com o passo do pé direito. Algumas vezes retrocediam em marcha à ré, e as mulheres que estavam atrás se posicionavam para a frente do grupo, em um ciclo contínuo. Esta dança de yamurikumã não é realizada de maneira circular. É a única dança em que as

184 mulheres andam no centro da aldeia em linha reta e retornam no sentido oposto. Outro tipo de dança era intercalada com a dança descrita acima, também bastante comum na festa de yamurikumã: as mulheres colocam sua mão esquerda sobre o ombro de outra mulher e movimentavam de um lado para o outro o colar de miçanga com o braço direito, entrando em todas as casas no sentido anti-horário. Mesmo ao longo do dia, quando o sol estava absolutamente forte, as mulheres continuaram as danças no centro da aldeia. Por volta das três horas da tarde, os homens chegaram trazendo muitos peixes, pendurados em varetas. Voltaram para a aldeia um pouco antes de as mulheres terem entrado nas casas para preparação do beiju e do mingau. Um dos convocados para a pescaria, o chefe desta expedição pesqueira fez um som com a boca e solicitou todas as mulheres para o pátio central e distribuiu os peixes para as que estavam ali reunidas. Ao entardecer, as mulheres colocaram os alimentos no centro da aldeia para compartilhar com os espíritos. Após o oferecimento dos alimentos, o pajé entrou em transe e teve uma visão na qual conversou com yamurikumã. Segundo disse, o espírito estaria insatisfeito com a conduta dos homens que eram donos da festa. O pajé Tukuyari afirmou que yamurikumã estava muito aborrecido porque gostaria de ter pilões novos. Um dos donos da festa, de aproximadamente 30 anos, afirma que há cinco anos, desde quando ele se tornou o dono da festa, utilizam os mesmos pilões velhos. Um dos donos da festa de yamurikumã explicou que ficou doente porque urinou nas plantações de mandioca, por isso sentiu uma dor insuportável no órgão genital. Os homens donos da festa de yamurikumã e os convocados para a pescaria foram buscar madeira para a produção dos pilões. Estes objetos são feitos com as madeiras duras denominadas tiaka, canela, pialapanã, waxú, em aruak, palavras que os Mehinako não souberam traduzir para o português. Quando as toras de madeiras chegaram da mata, as mulheres produziram aproximadamente cinco pilões para dar continuidade à festa e agradar o apapayêi.Os três donos masculinos da festa foram convocados para o centro da aldeia e aumentaram o buraco semiaberto, quando colocaram fogo no interior dos pilões durante os 3 dias seguintes para o buraco ficar grande e

185 largo. Os Mehinako explicam que as crianças não podem sentar no buraco do pilão, pois podem ficar comilonas. Para manter o fogo aceso por um período mais extenso e aumentar o buraco do pilão, eles protegeram a borda com massa de mandioca. O pilão é posteriormente lixado. Somente são pintados os pilões que são destinados à venda.

Fig. 62 - Ana, o pilão

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Os Mehinako contam que o casal de estrelas Amairi eram os donos do pilão, mas acidentalmente eles deixaram o objeto cair no chão. Uma dessas estrelas fez um buraco no pilão de madeira para sua esposa conseguir socar massa de mandioca no interior do objeto. O Amairi é um casal de estrelas que aparece no céu. É este casal que faz provocar o frio de fevereiro. Quando um homem consegue ver o Amairi, as estrelas contribuem para o pescador ter uma excelente pescaria. Às cinco horas da tarde o Amairi aparece, e, neste momento, qualquer um pode pedir para ter boa pescaria. Pudemos perceber que a produção destes pilões apenas ocorre quando acontecem os rituais, por isso raramente eles são produzidos. Desta forma, a relação de reciprocidade entre espíritos e donos da festa, ou seja, os ex-doentes, acontece com o processo de oferendas e retribuição. Os objetos e os alimentos são oferecidos para as almas serem devolvidas ou para aqueles que não querem ter suas almas roubadas, que mantém o ciclo de retribuições. Além das festas, os pilões são utilizados para socar carne de macaco e das aves mutum e jacu, além de fazer polvilho. Antes de acabar a festa, as mulheres entregaram para os donos da festa, cerâmicas, colares, arco e flecha, sabonete, fósforo, anzol, etc. Por último, elas iniciaram a luta kapi e finalizaram com o banho de rio.

O ritual de kukuho: o dono da mandioca Considero uma das etapas mais importantes da festa do kukuho a das pás de beiju e dos desenterradores de mandioca, estes produzidos pelos homens, apesar de serem entregues às mulheres, por fazer parte do universo delas. Duas semanas depois do ritual de yamurikumã, participei desse ritual de kukuho, naquele momento produzido para as filmagens dos suíços que estavam hospedados em Utawana. Os Mehinako aproveitaram a ocasião para curar uma mulher que estava doente havia quatro semanas. O apapayêi kukuro já tinha 5 donos e acabava de adquirir mais um patrocinador, naquela ocasião. A mandioca é constantemente manipulada pelas mulheres, e assim, a maioria dos donos do kukuho são mulheres. Na aldeia Utawana existe apenas um caso de um homem que foi atingido pelo kukuho, ele não quis dizer o motivo. Os primeiros

187 sintomas são as tonturas, depois as dores de cabeça, em seguida as dores no corpo, por último, desmaio. As músicas que são cantadas neste ritual são suplicações por cura para a ave maritaca, dona da festa. O kukuho é uma lagarta verde que aparece na folha da mandioca e pode devastar toda a plantação, ou seja, é considerado um apapayêi desagradável e temível. A mulher estava doente porque havia comido um pedaço do beiju enquanto sua mãe estava preparando o alimento, atitude que os Mehinako chamam de wiritxuki. Neste caso, a alma ficou enfraquecida e, assim, ela foi atingida pelo apapayêi kuikuro quando estava indo para a roça. Após uma semana sentindo as dores no corpo, o pajé identificou a causa como sendo doença de kukuho. Mesmo depois do transe e da cura através do tabaco, as dores não haviam passado. O dono convocou as pessoas no centro da aldeia para auxiliar e ajudar com os preparativos da festa, e eles produziram as pás de beiju (kuté), os desenterradores de mandioca (tunuyai) e os morcegos de madeira (alua) durante três dias consecutivos, todas as manhãs até às dez horas. No primeiro dia, os auxiliares convocados pela dona da festa foram à mata alta buscar a madeira yuluta para a produção das pás de beiju (kuté). No segundo dia, produziram os desenterradores de mandioca (tunuyai) e no terceiro e último dia, produziram os morcegos (alua). O dono da festa ofereceu perereba, mingau de mandioca (mukurae) e peixe cozido no centro da aldeia durante os três dias de trabalho. Todas as tardes as mulheres dançaram com as mãos esquerdas sobre os ombros dos homens em sentido anti-horário, no pátio da aldeia. Quando as mulheres oferecem a perereba no centro da aldeia para os homens, recebem as retribuições como as pás de beiju e os desenterradores de mandioca (tunuyai).

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Fig. 63 e 64 - Desenterrador de mandioca (tunuyai) e pá de beiju (kuté)

No quarto dia de festa, eles fazem as pinturas nas pás de beiju (kuté) e no desenterrador de mandioca (tunuyai). Enquanto os homens fazem os desenhos nos objetos, as mulheres dançam de casa em casa no sentido anti- horário e cantam e lamentam sobre a vida. As mulheres oferecem pirão de peixe e perereba no centro da aldeia para retribuir os presentes. A última coreografia ocorreu às quatro da tarde, quando todos foram em direção à casa da dona do kukuho e entregaram as pás de beiju (kuté) para a doente. A maior parte da produção dos objetos foi entregue para a patrocinadora da festa do kukuro, enquanto a outra parte, a minoria, foi distribuída para as mulheres. Na última coreografia, homens e mulheres dançaram com varas e os objetos pendurados no pescoço. Por fim, o dono da festa levou os últimos alimentos para o centro da aldeia. No final desta festa acontece a cerimônia de nominação. Nesta ocasião trocam os nomes das pessoas que tinham o nome do avô ou da avó, e também escolhem os nomes em português. Trocam os objetos adquiridos na cerimônia do kukuho e realizam sucessivas danças diversas. Estes objetos somente podem ser vendidos após a realização desta festa do kukuho.

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Objetos que prolongam os apapayêi Os apapayêi existem em si próprios e iminentes em objetos. Os espíritos sabem quando as máscaras são confeccionadas. É necessário alimentar a flauta kawoká, o beija-flor ahira e as máscaras com mingau de pimenta, pois cuidar adequadamente destes objetos que prolongam os apapayêi é de fundamental importância para manter o espírito contente. Alfred Gell se encarrega de trazer para a discussão da antropologia a noção de objetos com potencial de agenciamento. Os objetos possuem uma eficácia sobre as relações humanas, interagindo, dadas as circunstâncias do resguardo e das doenças, como se fossem também humanos. Por constituir um índice de agência, os objetos são posicionados como sujeitos numa rede de trocas materiais e imateriais que envolvem a produção de pessoas e relações. Gell diz se basear na teoria semiótica de Charles Sanders Peirce e adiciona que, para esse autor, o índice é uma interferência nas intenções de outra pessoa ou espírito. Agência existe em qualquer circunstância em que existe intencionalidade. Nesse sentido, afirma Gell (1998), os objetos possuem ambiguidade, pois são objetos, mas estão voltados para os sujeitos. Para Peirce, o objeto não é o concreto, mas o mediador, que pode não ser material. Os objetos indígenas rituais descritos acima não são apenas elementos artísticos ou representações, são considerados pelo autor (1998) como tecnologias, pois produzem efeitos na realidade em que estão inseridos. Como por exemplo, as flechas kawoká não podem ser vistas por mulheres, pois pode deixar o apapayêi furioso; todos os objetos cotidianos devem ser tocados nos dias em que acontece o eclipse, para impedir que os mesmos se transformem em espíritos, as mácaras não podem ser trocadas ou vendidas, em caso de falecimento do dono. A tecnologia encontra-se inserida em todos esses exemplos, o que inclui a totalidade de conhecimentos de regras conjuntas para a criação e a produção dos objetos. A tecnologia insere-se na continuidade de todas as outras relações sociais de um contexto, e inclui, neste sentido, os conhecimentos, a invenção, as privações e os modos de operação e utilização. A tecnologia media uma série de ações sociais, que somente tornam-se possíveis através dela. Os objetos Mehinako são também tecnológicos, porém, estão numa posição diferente dos outros objetos sociais, pois seu uso não é somente

190 utilitário. Uma flauta Kawoká, do espírito Jakuí, é uma continuação do corpo e de suas possibilidades de se comunicar com os apapayêi. Manipular objetos durante o resguardo pode provocar graves doenças ao recém-nascido ou aos pais, por isso os objetos são poderosos. Corpo e objeto se relacionam e se misturam. Evidentemente, há uma espécie de magia em toda tecnologia, ela é fruto de uma intenção, que os Mehinako possuem, de alterar a realidade. Normalmente, para alterar o estado de doente para saudável ou evitar que o apapayêi apareça ou fique bravo. Os objetos, num primeiro momento, são recipientes das substâncias, para depois se tornarem objetos, de fato, poderosos. No entanto, Gell deixa bem claro que os objetos possuem agência, quer dizer, possuem capacidade de capturar o receptor por meio da percepção, mas, para isso, é preciso compartilhar no mesmo contexto para, desta forma, haver sentido e intenção. É necessário interpretar o contexto da produção dos objetos para entender os seus significados.

A teoria de Gell sobre agência, por outro lado, não exclui absolutamente a emoção como um dos efeitos possíveis da agência dos índices de arte, mas ele está mais interessado em entender cognitivamente o poder da forma e dos objetos de agirem em relações sociais do que em explorar a imaginação humana (Lagrou, 2007: 58).

Segundo Félix Guattari (1992), há objetos que atuam como dispositivos materiais, que interferem e modificam a dinâmica do homem com o meio. Para esclarecer tal questão, Gell (1998) classifica estes objetos, especificamente voltados para a produção de efeitos psicológicos, em outros seres humanos, no campo do que denomina d e “tecnologia de encantamento”. O ato de encantar está relacionado aos objetos e técnicas em situações específicas, voltadas para o domínio de produção de sentidos, servindo para encantar as outras pessoas e fazer os envolvidos perceberem que a realidade social age num sentido favorável aos interesses sociais daquele que encanta (Gell, 1988). Trata-se do conjunto de “armas psicológicas” que permite aos humanos transpor o domínio mitológico da tecnologia dos demiurgos para o da materialidade.

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Procura-se associar a ação mobilizadora dos objetos às ações benéficas para o corpo e para as doenças desencadeadas por apapayêi. O doente e seus familiares são aqueles que desejam recuperar a alma e, consequentemente, a saúde do enfermo. A possibilidade de recuperar o ânimo está nas mãos dos manipuladores dos objetos e dos rituais. Os objetos estão aptos a receber determinados poderes, por especialistas, por meio dos rituais apropriados que põem em ação, orientam, controlam e manipulam a realidade. Alfred Gell (1998) aproxima os objetos das pessoas, compreendendo que os objetos devem ser tratados como pessoas, dotados de consciência, intenções. O autor desconstrói a noção estática que se tem sobre os objetos, trazendo para o debate a agência que eles possuem. Tanto as redes de significados como a agência parecem ser fundamentais, e mesmo complementares, para compreender os objetos. Dessa forma, os Mehinako produzem uma flecha que durante o resguardo pode machucar o umbigo da criança recém-nascida. Ou seja, a flecha carrega muito mais do que aparência, representação ou imagem, possui agência e substância contidas nela. Isso significa que essas flechas comunicam a noção de nexo de intencionalidades entre pais e filhos, mediante formas materiais. Uma flecha feita especialmente para caçar, por exemplo, poderia representar algum apapayêi, mas existe uma relação complexa entre intencionalidades postas na relação dos pais com os corpos dos filhos. A agência da flecha produzida no momento do resguardo manifesta-se por meio da capacidade de machucar o umbigo da criança recém-nascida. No entanto, Gell esclarece que o objeto precisa estar inserido em um contexto específico para ter eficácia. A flecha somente machuca o umbigo da criança quando os pais estão em resguardo. O fato de estes objetos serem transformadores exige cuidados através de práticas de restrição alimentar e cuidados na produção dos objetos. Deste modo, uma flecha poderá operar uma multiplicidade de sentidos, servir de diferentes funções ou, mesmo, tornar visível diversos aspectos de uma mesma coisa. A flecha poderia ser utilizada para caçar ou atrair espíritos, dependendo do contexto em que é utilizada; quando não utilizada na circunstância ideal, poderia machucar o umbigo. Um mesmo objeto opera em

192 situação paradoxal, possui propriedades algumas vezes utilitárias, outras vezes, simbólicas. No estudo de Peter Gow (1989) sobre os desenhos abstratos Piro, observa-se que os indígenas estão interessados nos poderes que os grafismos provocam e não nos que eles poderiam significar. “A importância do desenho estaria relacionada à transformação operada por sua aplicação em determinada superfície de coisas ou corpos” (Gow, 1989: 25). Interessado pela relação entre desenho e corpo humano, o autor ressalta a função mediadora do desenho entre os mundos dos corpos e das imagens, do visível e do invisível. Estes objetos são, na verdade, receptáculos do universo imaterial. Els Lagrou analisa a concepção dos Kaxinawa sobre os objetos, iniciando com informações obtidas com uma velha índia Kaxinawa, que “o desenho era a linguagem dos yuxin” (2007: 119). A autora compreende que os objetos são formas de comunicação não verbal, constituída de uma relação com a alteridade. Assim, de acordo com a noção Kaxinawa, o desenho é o caminho para se relacionar. É necessário dominar as técnicas de produção dos objetos para conseguir dominar o apapayêi. Cada ser humano tem relação com apapayêis ao longo da vida e, ao morrer, recebe proteção desses espíritos. Um caso bem comum dos objetos que possuem agência e tecnologia são os objetos rituais e as pinturas corporais, pois, os xamãs utilizam estes mecanismos para expandir suas percepções da realidade, eles conseguem perceber o invisível. O uso de objetos tecnológicos pelos xamãs está associado aos estímulos de suas potencialidades. Alfred Gell ainda ressalta:

Creio que essa evocação de intencionalidades complexas é o que serve para definir as obras de arte, e que, adequadamente emolduradas, as armadilhas para animais poderiam evocar intuições complexas a respeito do ser, da alteridade, do relacionamento (2001: 184). O ato de lixar, derrubar, serrar a madeira, não tocar nos objetos nos momentos de eclipse ou não cuidar das máscaras com alimentos pode ser poderoso, capaz de gerar diversas reações. Os objetos têm poder de afetar as pessoas emocionalmente. Segundo Gell, o “papel cognitivo das ideias mágicas” produz as técnicas, sendo a inovação tecnológica a realização de efeitos nos corpos.

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Para o autor, a tecnologia do encantamento é uma tecnologia ideal que se inicia na técnica convencional e cotidiana, mas a supera, indicando o caminho das modificações corporais. As máscaras, em um ritual, demonstram mecanismos não visuais, como movimentos, barulhos, ritmo, instrumentos, que são necessários para alcançar outros patamares dimensionais. O conceito de máscara ritual xinguana extrapola a área da face, correspondendo, às vezes, a um objeto que envolve todo o crânio, e, até mesmo, o corpo como um todo, cobrindo os braços, o tórax e as pernas com uma espécie de vestimenta feita de fibra ou palha. Normalmente, confeccionam o casal de máscaras com os dois filhos. Assim como as flautas, as máscaras são obras de especialistas, detentores de saber técnico e ritual, membros da parceria em que os mais velhos ensinam os mais jovens que estão interessados. Na maioria das vezes, o interesse é despertado quando alguém da família está doente. Para execução de determinadas peças são necessários, além de conhecimento técnico, sensibilidade e completo domínio dos procedimentos, que vão de precauções, compartilhamento de alimentos no centro da aldeia, estado de abstinência, não somente relativas à confecção, como também ao uso das máscaras carregadas de poder, cujo contato, destituído das precauções, seria perigoso. Os Mehinako, em sua maioria, manifestam atenção especial ao aparato cerimonial, em que a atividade de produção manifesta-se integrada, configurada, em especial, nas festas, em que a exuberância de casais de máscaras, roupas complementares e instrumentos são demonstrados no centro da aldeia para agradar os apapayêi. Em determinadas situações do cotidiano, a confecção em demasia das máscaras pode provocar doenças. Os seres humanos não devem produzir em excesso, deve-se concluir uma máscara hoje para se dedicar a um instrumento amanhã. Um comportamento desregulado e obsessivo atrai apapayêi, provocando sequelas à saúde.

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Considerações finais

Nas considerações finais, procuro demonstrar de que maneira o circuito de circulação dos objetos interfere na produção social e material dos Mehinako. Ou melhor, quais são os objetos utilizados como dádiva, quais são aqueles que são produzidos para logo ser inseridos no mercado, e, por último, objetos que somente podem ser usados nos rituais e por isso, são armazenados em locais privativos. Busco esclarecer a preocupação com a diplomacia e as regras, destacando, entre elas, a retribuição adequada para cada situação, que privilegia a constante circulação de coisas e a reprodução social. Nota-se que a motivação para as trocas são o vínculo e a comunicação entre as pessoas, e não os objetos em si. Qualquer um pode querer trocar objetos e organizar um huluki. Em todo o Alto Xingu, as especializações de cada grupo apontam para a continuidade das particularidades, e, apesar de cada etnia xinguana saber fazer os objetos produzidos pelos grupos, não há intenção de alcançar a autossuficiência. Para os xinguanos, as especializações são desiguais, alguns produtos valem mais do que outros, mas de acordo com os Mehinako, foram atribuídas a partir da determinação dos demiurgos Sol e Lua. O chefe faz o acordo do objeto em questão para todos os que estão ali reunidos, comenta em voz alta suas características e, assim, estimula as trocas entre as pessoas. Por exemplo, pode ser trocado um remo por quatro flechas. Godbout refere-se a um “estado positivo e um negativo da dívida. No estado positivo, cada um considera que deve muito aos outros” (2002:74) , portanto no negativo a pessoa que adquiriu o objeto considera que o outro deve para ele. Ou seja, o lado positivo é do credor, e o negativo, do devedor. Segundo Lanna (2001), na dádiva, o doador não se alia ao objeto, e, sim, adquire prestígio e crédito ao fazer uma doação pública. Contudo, apesar das diferenças, pa ra Gregory a intenção é “garantir algo que permaneça o vínculo, por isso é necessário garantir a dívida com a retribuição um pouco maior que a doação, é isso que impede que os negociadores nunca estejam quites” (1982:53). No caso de trocas com irmãos, Kulykurda emprestou sua televisão 29 polegadas para seu irmão mais velho, mas ele nunca mais devolveu. Feito

195 isso, deve-se considerar a análise de Gregory (1986) sobre a negatividade da reciprocidade, que depende da distância de parentesco, e, no caráter doméstico, a reciprocidade pode ser sempre negativa ou forçada. Contudo, percebeu-se que, no caso do mutirão, trabalho coletivo, a troca pode gerar tensões políticas ou alianças. Os patrocinadores da construção da casa dos homens adquirem uma dívida com os colaboradores da construção. A dívida não é acertada no ato da construção, isso acontecerá quando os colaboradores precisarem de ajuda no pagamento de futuras festas. A dádiva, diferente da mercadoria, operaria num sistema similar de valoração, apesar de não serem simétricos. Tal sistema envolve a distinção de dádivas em mais de um fluxo de circulação diferente. Vale dizer que Gregory identifica transações de serviços coletivos ou objetos semelhantes por semelhantes, como porcos por porcos ou trabalhos coletivos por trabalhos coletivos. Para além dos rituais de troca, tais acordos podem ser baseados na cosmologia, pois a ideia de huluki baseia-se no mundo dos apapayêi. O huluki é o apapayêi do pássaro grande que gosta de trocar e fazer parcerias. Depois de a alma ser atingida por huluki, é solicitado o pajé, cujo instrumento de cura é o tabaco. A fumaça soprada no corpo do enfermo propociona a cura, e em seguida o pajé identifica a causa da doença. Os Mehinako procuram atrair o espírito e fazer com que ele se torne seu aliado. Oferecem o ritual em forma de alimento, máscaras, zunidores, pás de beiju, flautas, em troca da cura de doenças ocasionais. Ao observar o espaço ritual, foi possível perceber que os objetos somente podem ser comercializados após a realização das cerimônias específicas ou, ainda, nunca devem ser distribuídos. Por exemplo, as flautas Kawoká e as máscaras atuxuá, kuahãhalu, ewexu e kapukukumã não podem ser trocadas ou vendidas, somente são transmitidas de pais para filhos ou entre irmãos e primos cruzados. No caso destes parentes não aceitarem os objetos, a última opção seria queimá-los. Os Mehinako afirmam que mesmo após a morte do dono das máscaras e flautas, os apapayêi continuam protegendo seus parentes, quando há a relação de amparo, com o oferecimento de festas e alimentos no pátio da aldeia

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Na concepção Mehinako o objeto mantém-se ligado a quem o fez. Os objetos produzidos para os rituais continuam limitados aos circuitos internos, intermediando as comunicações entre si. Ampliando a perspectiva, a análise se direcionou para a compreensão dos objetos a serem utilizados para ativar ou desativar os apapayêi. No primeiro caso, como foi explicado acima, as máscaras e as flautas são produzidas para ativar e atrair os apapayêi. No segundo caso, como afirmam Kulykurda e Makaulaka, no momento do eclipse lunar, a Lua, demiurgo do sexo masculino, está menstruado. Assim, diversos tipos de apapayêi poderiam sair do fundo dos rios e de suas aldeias subterrâneas para roubar a alma dos Mehinako. Por esse motivo, os Mehinako devem tomar algumas precauções, e a principal e a mais notável delas seria despertar todos os objetos com toques e falas apropriadas para desativar os espíritos. Gell (1998:12) propõe o conceito de índice para se referir a objetos que permitem interferências numa escala de relações e interações sociais, nas quais, ocupam a posição de agente ou paciente, dependendo das circunstâncias surgidas no contexto social. Para o autor, os objetos, quando não estão inseridos em um contexto social, neste caso no momento da elclipse lunar, não precisariam ser tocados para desativar apapayêi. Nestas circunstâncias, todos os objetos da aldeia são tidos como agentes pacientes ou secundários que dependem de um agente principal, pois estão se relacionando em um universo social. Por fim, o comércio de objetos indígenas é também outra maneira peculiar de interação social para os Mehinako. Sua importância não se restringe ao âmbito mercantil, mas é uma forma de se relacionar com os caraíbas. Estes objetos são produzidos com elementos da identidade Mehinako carregados de grafismos, pinturas e tecnologia, mas mesmo assim são criados para serem comercializados o mais rápido possível. A relação com os lojistas, consumidores de objetos indígenas, museus, expositores e colecionadores através das trocas mercantis, fez surgir um prestigioso personagem social, o chefe mediador. Aquele homem escolhido pela comunidade, fala bem a língua portuguesa, possui bons contatos, faz viagens frequentes às cidades, conversa com autoridades e faz bons acordos para o grupo. Chefes mediadores estão

197 sendo preparados na aldeia Utawana para desempenhar funções de interlocução com os brancos. O interesse nas trocas mercantis está relacionado com a intenção em obter objetos comprados nas cidades, principalmente aqueles tecnológicos. Esses objetos industrializados são absorvidos e trocados no huluki, atribuindo valores distintos daqueles produzidos internamente. Os objetos produzidos pelos grupos xinguanos possuem mais valor no circuito de troca interno do que as roupas e os aparelhos eletrônicos. Portanto, há os objetos de apapayêi que nunca circulam, como as máscaras e flautas kawoká; os objetos de apapayêi rituais, que circulam após os rituais, como as pás de beiju e os zunidores e, por fim, aqueles objetos feitos para circular nas lojas especializadas dos brancos ou dentro da aldeia, os objetos industrializados e os utensílios, cerâmicas, bancos etc. Pode-se concluir também que há distinções visuais entre aqueles objetos que são produzidos para serem circulados dentro de Utawana, daqueles que são produzidos para serem consumidos fora da comunidade. Os utensílios, os bancos, remos e as máscaras, criadas para serem utilizadas dentro da aldeia, não são pintados com cores fortes, não exageram nos grafismos. Por outro lado, a produção dos objetos para o mercado é caracterizada por serem extremamente coloridas e simétricas. Todos os circuitos de trocas que aproximam os grupos xinguanos, os caraíbas, lojistas e apapayêi, entretanto, são importantes no processo de produção e articulação social.

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Referências Bibliográficas

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