TANTAS PERFORMANCES, OUTRAS ERÓTICAS E SUA (IN)VISIBILIDADE NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Miguel Rodrigues de Sousa Neto1

RESUMO: As eróticas e performances de gênero que destoaram/destoam daquelas moldadas pela heterossexualidade tornada compulsória têm sido historicamente subalternizadas. Compreender tal processo no Brasil contemporâneo mostra-se tarefa relevante para compreendermos a construção histórica das diferenças e os embates atuais da população formada por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.

PALAVRAS-CHAVE: Homossexualidades; LGBTfobia; Movimentos Sociais contemporâneos.

ABSTRACT: As eróticas e performances de gênero que destoaram/destoam daquelas moldadas pela heterossexualidade tornada compulsória têm sido historicamente subalternizadas. Compreender tal processo no Brasil contemporâneo mostra-se tarefa relevante para compreendermos a construção histórica das diferenças e os embates atuais da população formada por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.

KEYWORDS: Homossexualidades; LGBTfobia; Movimentos Sociais contemporâneos.

ESTRATÉGIAS E ASTÚCIAS NO MUNDO DA INVISIBILIDADE

Em 26 de abril de 1989, a revista Veja estampava em sua capa a matéria “ – uma vítima da Aids agoniza em praça pública”, trazendo a foto do rosto de Cazuza, esquálido em função do agravamento de seu estado de saúde em decorrência da presença do HIV em seu organismo. O tratamento dado pela revista ao ídolo do rock nacional que viria a falecer no início do ano seguinte foi alvo, à época, de inúmeras críticas. O que não se pode contrariar é que, na segunda metade dos anos 1980, a AIDS trouxe visibilidade aos homossexuais, levando, inclusive, que figuras célebres fossem retiradas “do armário” em razão da infecção pelo HIV. Retomaremos o tema mais adiante. O ano de 1995 foi paradigmático para os movimentos de afirmação gay e lésbico brasileiros. É daquele ano a primeira “parada” gay realizada na cidade de São Paulo, o que,

1 Docente do Curso de História do Campus de Aquidauana da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, coordenador do LabDiS – Laboratório de Estudos em Cultura & Diversidade, Política & Sexualidade. Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. 2

mesmo contando com um restrito número de participantes, configuraria um novo modelo de militância que se instalaria, qual seja, o de grandes eventos que trariam visibilidade para a comunidade LGBT. Concomitantemente, a então deputada federal eleita pelo Partido dos Trabalhadores do estado de São Paulo Marta Suplicy apresentava ao Congresso Nacional o Projeto de Lei número 1.151/95 que buscava garantir a Parceria Civil entre pessoas do mesmo sexo. A apresentação de tal projeto levou a deputada, que tinha vasta experiência na mídia, para as capas dos veículos de circulação nacional e, por conseguinte, aqueles que se beneficiariam caso o projeto de lei fosse aprovado, os homossexuais. Em algumas oportunidades políticos como Marta Suplicy compareceram às paradas e fizeram coro às reivindicações da comunidade LGBT:

Cerca de 20 mil pessoas, segundo cálculos da PM, acompanharam ontem a 3ª Parada do Orgulho GLBT (dos gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), que saiu da avenida Paulista por volta das 15h e chegou na praça da República às 18h. É quase três vezes o público que acompanhou a parada no ano passado. A passeata foi animada por sete carros alegóricos, uma bandeira de 50 metros de comprimento com as cores do arco íris, símbolo do movimento gay em todo o mundo, e centenas de balões coloridos. A parada contou com a presença da deputada federal Marta Suplicy (PT-SP), autora do projeto de lei que estabelece a união civil entre homossexuais, e do deputado estadual Paulo Teixeira (PT). Em seguida, a deputada vestiu a camisa da passeata, mandou beijos e acenou para a multidão. “Não é fácil uma passeata reunir 20, 30 mil pessoas dessa forma pacífica, civilizada. Está cheio de gente que não é gay aqui, e todo mundo convive na maior harmonia. Acho que é uma oportunidade de o público gay se mostrar com dignidade e alegria para a população”, disse. (Parada Gay, FSP, 2009)

As paradas do orgulho LGBT têm se tornado muito rapidamente eventos de grande magnitude, concentrando milhares de pessoas por todo o país. Em São Paulo, a maior parada do orgulho LGBT concentra cerca de 3,5 milhões de pessoas em suas últimas edições. Na mídia, sobretudo na televisão, o espaço também tem aumentado.

Uálber e Edilberto na novela das oito. Teletubbies pela manhã. Vera Verão na “Praça é Nossa”. E “Will & Grace” na TV paga. Ícones gays aparecem cada vez mais na programação das emissoras. Para engrossar o coro, a TV Freguesia dedicou dez minutos de seu programa semanal para o programa “Blue Space TV”, exibido no Canal Comunitário (canal 14 da Net). Segundo Robson Cerqueira, 42, produtor do TV Freguesia, o objetivo é criar um espaço para denúncias, críticas e festas da comunidade. “O programa tem shows de humor que acontecem na casa noturna de São Paulo que dá nome ao programa.” O próximo grande evento do programa será a cobertura da parada gay que acontecerá na avenida Paulista (São Paulo), no próximo dia 3

27. O programa é exibido sempre aos sábados, às 23h30. “Hoje temos dez minutos, mas o “Blue Space TV” pode passar para 25 minutos.” Apesar de educativa, a série inglesa “Teletubbies”, direcionada a crianças de 2 a 5 anos, causa polêmica. No Brasil, ninguém levantou bandeira contra o personagem Tinky Winky, mas em vários países alguns pais acusam o teletubbie roxo de ser gay e servir de má influência às crianças. Jerry Falwell, um reverendo televisivo dos EUA, criticou o personagem estar em um programa infantil e o acusou de ser um símbolo gay. Tinky Winky é roxo, tem uma antena triangular na cabeça e ainda usa uma bolsa cor-de- rosa. A cor roxa e o triângulo são símbolos da militância gay. Apesar da controvérsia, o sucesso dos bonequinhos naquele país não é abalado. A rede de lanchonetes Burger King acaba de lançar o Tubby Custard, um mingau que eles comem no desenho. (Sordili, 2009)

As personagens gays permanecem presentes nas telenovelas brasileiras. Ao que tudo indica, é quase conditio sine qua non que estejam ali. Imagino que seja um ar “moderno” transmitido por suas presenças. Os canais da rede de TV paga exibem séries com personagens majoritariamente gays ou que os apresentam cotidianamente. Os Teletubbies já deixaram a grade de programação da TV aberta, mas, sobretudo, pelo esgotamento de um formato deveras lento em um momento em que a celeridade tem-se tornado a tônica, até para as crianças. Bonecos ingênuos se mantêm com alguma dificuldade em um ou outro canal de TV pago. Percebemos, com certa clareza, que o movimento de afirmação LGBT, ou ainda, a comunidade LGBT, tem angariado visibilidade nos últimos anos. Podemos fazer alguns recuos para interpretarmos tal mudança. Volveríamos aos anos 1960/1970, mas encontraríamos ali as limitações impostas pela Ditadura Militar (instaurada a partir de 1964 e apenas encerrada vinte e um anos depois) no que concerne às liberdades de expressão e agremiação, impedindo que grupos fossem formados, bem como pela moral conservadora concernente aos grupos reacionários que, à época, encontravam-se naqueles governos ou eram por eles representados. Encontraremos alguma visibilidade na segunda metade dos anos 1980, mas mediados pelo estigma da AIDS. Nos anos 1990, deparamos com uma dada junção de elementos capaz de nos auxiliar de forma mais concreta à compreensão do processo que levará à visibilidade da comunidade gay no Brasil dos últimos vinte anos. Devemos, inicialmente, refletirmos sobre esta “visibilidade”. Em primeiro lugar, cumpre colocá-la em relação ao seu oposto, a invisibilidade. João Silvério Trevisan, prolífico escritor paulista e ativista dos direitos dos homossexuais, ao publicar, em 1976, seu primeiro livro intitulado “Testamento de Jônatas 4

deixado a David”, o compõe com a seguinte epígrafe: “Así se crearon zonas crepusculares, habitadas por semirrealidades: La poesía, la mujer, el homosexual, los proletarios, los pueblos coloniales, las razas de color. Todos esos purgatorios e infiernos en ebulición clandestina.” (p. 76). Existiria, assim entendemos, um espaço destinado aos integrantes de uma ampla marginalidade constituída como contraponto àqueles ocupantes do centro hegemônico de nossas sociedades: purgatórios e infernos que, porém, viviam em ebulição clandestina. No Brasil, essa clandestinidade compõe nossa história. Se retornarmos aos tempos da colônia, esta foi a terra destinada ao degredo. Dentre as infrações que traziam para cá portugueses nos mil e quinhentos ou seiscentos, estava a sodomia. Aqui, por vezes, esses sodomitas voltavam à nefanda prática e buscavam refúgio nos sertões, nos espaços afastados dos tentáculos do Estado. (Ver. MOTT, 1988; AMADO, 1995) Já na belle époque tupiniquim, em fins do século XIX e início do seguinte, os homossexuais buscavam o refúgio dos parques ou lugares ermos para seus encontros, bem como as rudes pensões da periferia de cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro, instados pelo perigo de serem presos e acabarem instalados em prisões ou manicômios judiciários, segundo a tradição médico legal que se consolidava a partir do jurista Viveiros de Castro. (Ver: MARTINS Jr, 2009; CASTRO, 1895) Trevisan aponta que, na segunda metade do século XIX, antes que os juristas começassem a fazê-lo, os médicos-higienistas já prescreviam uma nova ordem moral que excluía os homossexuais (TREVISAN, 2000, p. 171-175). O autor reflete sobre o amplo processo de modernização por que passa o Brasil no período, sendo que a ideia de modernidade esteve, à época, atrelada àquela, ainda incipiente, de nação. Sob esse prisma, aqueles que negavam a paternidade – o pai é o tipo idealizado de homem que delineava a família, célula mater da sociedade, sua figura mais importante, a “cabeça” do casal, aquele que exercia/detinha o pater famílias –, os celibatários, os que maculavam a família pelo seu desregramento sexual – os promíscuos – e aqueles que traíam a pátria adotando posturas efeminadas – os pederastas – eram condenados pela medicina, ciência que se queria neutra. O controle, assim, seria terapêutico (NUNES, 2005, p 67ss, p. 175). A capital nacional passa por algumas reformas em fins do século XIX, dado o crescimento intenso da população; porém, é na primeira década do século XX, que tais reformas serão levadas a cabo por Pereira Passos, com vistas a transformar a cidade em uma versão tropical das metrópoles burguesas europeias. As reformas urbanísticas ocorridas no 5

Rio de Janeiro preservariam alguns espaços que eram utilizados por homossexuais para seus encontros, como parques e largos. Entretanto, o policiamento e a criação de um aparato jurídico repressor (como Código Penal Brasileiro de 1890, notadamente em seus artigos 266, 282, 379 e 399) facilitaria que esses indivíduos fossem expulsos de tais lugares ou os utilizassem de maneira ainda mais discreta, tornando-se menos visíveis aos olhos do grande público. Mesmo assim, os homossexuais eram constantes alvos da polícia e das charges da imprensa, a exemplo d’O Malho (GREEN, 2000, p.65-67). A invisibilidade, destarte, cumpre uma dupla função: ela é imposta como forma de segregação pelos setores hegemônicos da sociedade, por um lado e, por outro, ela se configura como astúcia adotada pelos sujeitos homoeroticamente inclinados para que pudessem fugir, na medida do possível, da repressão policial, uma vez que, mesmo sem uma legislação que coibisse exclusivamente a prática homoerótica, o braço armado do estado se utilizava de outros subterfúgios para perseguí-los, além, claro, dos indivíduos comuns que condenavam suas práticas eróticas e seu modo de vestir, adornar-se, caminhar e falar. A invisibilidade manteve-se por toda a primeira metade do século XX, momento em que a sociedade brasileira passava por um processo de psicanalização. No que tange aos homossexuais, obras como “Homossexualismo e Endocrinologia”, de Leonídio Ribeiro, ou “Homossexualismo e Delinquência”, de Luiz Ângelo Dourado, fazendo coro às de seus predecessores tal como Viveiros de Castro e Pires de Almeida, serviam de base para a condenação por base moral de homossexuais, levando-os aos manicômios, tal como ocorrido a Febrônio Índio do Brasil, em caso bastante famoso até meados dos anos 1980, encarcerado sem julgamento por 57 anos. O sociólogo José Fábio Barbosa da Silva, em texto de especialização em Sociologia de 1960 intitulada “Homossexualismo em São Paulo: estudo de um grupo minoritário”, orientado por Florestan Fernandes, apontava para questões inerentes à visibilidade/invisibilidade:

O homossexualismo, para o grupo majoritário, é identificado não apenas com um tipo característico de relação sexual, mas também com um certo tipo de comportamento social (efeminado). Surge assim o interesse, por parte da minoria, de encobrir, da melhor maneira possível, os característicos simbólicos do homossexualismo. Dessa forma, um grande número de homossexuais tenta policiar seu comportamento social perante a maioria, de modo a conseguir sua classificação como homossexuais. Em consequência, a visibilidade dos grupos homossexuais fica reduzida ao pequeno número de indivíduos que demonstram características aparentes. (SILVA, 2005, p. 76)

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O estudo de Barbosa da Silva, realizado em fins dos anos 1950, restringia-se, pela própria posição do autor, integrante das camadas abastadas do estado de São Paulo, aos homossexuais de classe média, intelectuais e artistas. Talvez, por isso, a necessidade dos integrantes deste pequeno grupo por manter uma postura mais próxima da heterossexualidade e, assim, não serem identificados pelos heterossexuais. Aqui, uma astúcia que evitava escândalos nas camadas ricas ou médias por eles frequentadas. Trinta anos depois, a homossexualidade permanecia eivada de pejo:

O homossexualismo é, sem dúvida, uma das áreas da sexualidade humana mais marcada por preconceitos. Embora em outras épocas e em outras culturas tenha sido até mesmo exaltado, em nossos dias o homossexualismo continua a ser estigmatizado, em termos de conotação nitidamente negativa, como “aberração”, “desvio”, “pecado”, “crime” ou “doença”. (OKAWARA, 1983, p. 92)

Já em 1987, o antropólogo argentino Néstor Perlongher publicava outro trabalho sobre a homossexualidade na cidade de São Paulo. O autor apontava para uma visibilidade possível em determinadas regiões da cidade, notadamente em sua parte central, já decadente, frequentada por rapazes pobres que se prostituíam. Aqui, ainda, cumpre uma ressalva: esses indivíduos visíveis assumiam uma postura social viril, eram ou se diziam “ativos”, aqueles que penetram (ou submetem) o outro, o “passivo”, comumente associado ao feminino. Estamos diante da clássica díade “bicha/bofe”, mas dela trataremos adiante. Podemos inferir, assim, que aqueles que assumiam uma imagem efeminada, afastada do ideal de masculinidade proposto/imposto hegemonicamente, mantinham-se, como uma trampolinagem de sobrevivência, visando a livrar-se das batidas policiais ou dos escândalos sociais, menos visíveis ou invisíveis, enquanto aqueles que adotavam uma postura viril, ou seja, próxima dos padrões vigentes de masculinidade, eram vistos com mais frequência. Emanoel e Jorge, integrantes do grupo de afirmação homossexual SOMOS, de São Paulo, em mesa redonda transcrita em 1979, afirmavam:

Emanoel – Você levantou um outro aspecto da invisibilidade. Nós falamos da invisibilidade enquanto grupo social, ou seja, não é possível determinar quem constitui esse grupo ou não, já que as pessoas não têm um rótulo na testa escrito homossexual. O outro aspecto é que a homossexualidade está presente em qualquer indivíduo, como uma parte da própria sexualidade dele. A nossa questão é como um indivíduo chega a se descobrir como homossexual e é pressionado para assumir um estereótipo. (...) 7

Jorge – (...) Essa invisibilidade não vem apenas por um fator externo, mas também por um fator interno, pelo questionamento a partir da consciência da diferença entre ele e o resto do meio de onde ele provém. (AGUIAR, 1979, p. 140-141)

Os efeminados, as “bichas”, mantinham-se, ou melhor, eram mantidas na invisibilidade ou seriam punidas, seja a partir de um sentimento comum de origem religiosa que condenava a prática do “pecado nefando”, seja daquele outro introduzido no Brasil em fins do século XIX, que identificava nos homossexuais a anomalia e a degenerescência, de fundo pretensamente científico. Invisibilidade imposta pelo medo, pela culpa (pecado) e por uma dupla moralidade pela qual o passivo era aceito como um “mal necessário”. Importa-nos, enfim, que, independentemente das origens, fossem as mais arcaicas e presentes no campo popular ou mais “modernas” e inerentes às camadas abastadas é médias, até meados dos anos 1980, os indivíduos homoeroticamente inclinados foram instados a permanecer à sombra, já que, à margem, estão ainda hoje.

A (IN)VISIBILIDADE E A MILITÂNCIA

No que tange à visibilidade, colocada em relação a esta invisibilidade anterior (que em larga medida se mantém), é preciso compreendê-la. Inicialmente, cumpre ressaltar que a ideia de visibilidade para os integrantes da comunidade homossexual (mesmo que sabendo-a diversa em seu interior) aparece já nos anos 1970, nos Estados Unidos da América, onde homossexuais organizados ambicionavam romper com a estrutura vigente que os mantinha à margem; não apenas, mas encaminhando-os à violência da polícia e à exclusão de determinadas regiões das cidades e ao bel prazer dos habitantes heterossexuais em questão. Quando, em 1977, Harvey Milk, candidato ao cargo de supervisor da cidade de São Francisco (EUA) passou a receber duras críticas por ser homossexual e alvo de uma campanha de fundo religioso (“Salvem nossas crianças”, capitaneada pela cantora estadunidense Anita Bryant (BRYANT, 1978, p. 73-86)), que condenava a prática homoerótica, chamada de anormal, aberração, perigosa) resolveu pedir a todos os seus amigos e auxiliares que dissessem para seus empregadores, familiares, amigos que eram homossexuais. 8

Era preciso, naquele momento, tornar os homossexuais visíveis para que aqueles que os conhecessem, sabendo, lembrassem também que eram bons filhos, empregados, amigos, etc. A estratégia deu certo e Milk foi eleito (embora tenha sido assassinado pelo ex-colega de Câmara Dan White onze meses depois, juntamente com o prefeito Georges Moscone). João Silvério Trevisan, sobre o episódio, escreve:

Na noite do crime 30 mil pessoas caminharam em procissão por San Francisco, carregando velas acesas, enquanto tambores batiam sons fúnebres e Joan Baez se apresentava, cantando suas velhas canções de protesto. Nada disso impedirá que a qualquer momento ocorram outros assassinatos políticos, que já fazem parte do “jogo democrático” nos Estados Unidos. Para os militantes homossexuais americanos, o resultado dos crimes é politicamente imprevisível. Poderá significar mais um passo no sentido do recrudescimento da extrema-direita (já tão notório no fenômeno Anita Bryant). (...) Mas pode ser também que o assassinato de Milk provoque nos grupos homossexuais um crescimento de consciência política. (TREVISAN, 1979, p. 2)

A partir do conflito entre homossexuais e policiais ocorrido em Nova Iorque, em junho de 1969, no bar Stonewall, foram realizadas as passeatas pelos homossexuais para celebrar o orgulho de ser gay/lésbica/bissexual/travesti/transgênero, conforme assinala a imprensa brasileira:

Depois de suportar ataques violentos de policiais, sucessivas prisões ilegais e extorsões por estarem em um bar homossexual, um grupo de frequentadores se negou a pagar as propinas e reagiu violentamente, na noite de 28 de junho [de 1969], contra a polícia. Formou-se uma guerra de garrafas e cadeiras, debaixo dos gritos de “gay power” (força gay). Acuados, os policiais chamaram reforços. O Greenwich Village era um bairro de homossexuais, e mais gays juntaram-se ao protesto, que se estendeu por outras ruas. O conflito durou três dias e marcou a primeira resistência pública da história de um grupo de homossexuais. Depois da “Batalha de Stonewall”, a notícia se espalhou pelos guetos gays em todo o mundo e acabou inspirando a criação de novos grupos contra a discriminação, além da oficialização de um dia para lembrar essa data. As primeiras paradas aconteceram na década de 70, em São Francisco (EUA). Foi escolhido o domingo pela possibilidade de maior concentração de pessoas nesse dia. As primeiras paradas reuniram centenas de pessoas. Com o passar dos anos, o movimento gay foi tomando força e os protestos se estenderam a outros países. Atualmente milhões de pessoas vão às ruas em todo o mundo. (DATA RELEMBRA, FSP, 2000)

No Brasil, algumas manifestações foram realizadas nos anos 1970, como congressos, mesas redondas, conferências. Já no início dos anos 1980, a partir da fundação do Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, gays e lésbicas fizeram aparições em eventos maiores, 9

como o dia dos trabalhadores organizado pelos sindicatos paulistas em 1981. Porém, apenas em 1995, as grandes passeatas começaram a ser utilizadas como estratégia específica do movimento de afirmação homossexual no Brasil. As paradas têm se configurado como eventos de grande magnitude, reunindo políticos de projeção nacional, artistas, intelectuais, empresários, integrantes das camadas médias urbanas, populares e simpatizantes da comunidade LGBT. A primeira parada exitosa foi realizada na cidade de São Paulo em 1995, reunindo cerca de cinco mil pessoas, quantidade pequena se pensarmos nas proporções da megalópole. Rapidamente, entretanto, os números se elevaram. Encontramos alguns dados, além de importantes considerações, em artigo assinado por :

(...) A parada do orgulho gay em São Paulo reuniu 25 mil pessoas ano passado: neste ano foram 100 mil gays, lésbicas e simpatizantes. O que querem os homossexuais? Simplesmente ser tratados como seres humanos, com os mesmos direitos e deveres dos demais cidadãos. Querem cidadania! Os gays não desejam mudar a orientação sexual de ninguém, mas também não aceitam que queiram "curá-los", "convertê-los", nem ser tratados como subumanos, do mesmo modo como judeus, negros e índios lutam para que sejam respeitados na sua especificidade pluricultural. Gays, lésbicas, travestis e transexuais saem às ruas no Dia do Orgulho Gay para denunciar a conspiração do silêncio e do ostracismo que até hoje paira contra essa parcela da humanidade da qual a única diferença é amarem seus semelhantes. O movimento gay quer acelerar o carro da história para que seja logo realidade o que nossa "Constituição Cidadã" prognosticou em seu artigo 3º, parágrafos 1º e 4º: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, promovendo o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. (MOTT, 2000)

As assertivas do fundador do Grupo Gay da e estudioso do homoerotismo nas terras africanas e brasileiras nos levam para um dos principais objetivos das paradas quando de seu surgimento: a luta pela desestigmatização das práticas eróticas não hegemônicas e a possibilidade de uma existência não mais marcada pela violência e pela injúria. Isso esteve posto nos Estados Unidos da América nos anos 1960 e 1970 e se apresentava no Brasil dos anos 1990 e início da década seguinte. O silenciamento faz parte das estratégias de apagamento dos indivíduos e grupos sociais: primeiro, se impede de dizer; depois, cala os que ainda dizem; em seguida, impedem de existir. O mesmo Luiz Mott é o responsável pela organização dos dados, ainda esparsos e repletos de omissões, da violência sofrida pelos homossexuais no Brasil, por meio da 10

publicação do relatório “O crime anti-homossexual no Brasil”: “Desde sua fundação, em 1980, o Grupo Gay da Bahia vem coletando sistematicamente, informações sobre homicídios tendo gays, travestis, lésbicas e transexuais como vítimas” (MOTT, CERQUEIRA & ALMEIDA, 2002, p. 13). Isso foi feito em razão de não existirem estimativas dor organismos estatais sobre o assunto. Os autores, colhendo dados junto à imprensa, pela Internet ou por meio das cartas que lhes são enviadas com denúncias, sistematizaram informações, sobretudo das duas últimas décadas, e retrocedendo, mais modestamente, até 1963. É, talvez, em razão deste trabalho, estando em contato com o alto grau de violência sofrido cotidianamente por homossexuais no Brasil, que Mott ressalta o aspecto político das paradas de afirmação LGBT, como uma das bases para que se altere o atual estado de coisas que tanto oprime esta comunidade.

A cidade que se orgulha de ter a maior parada gay do mundo coleciona relatos que evidenciam o paradoxo de o aumento da visibilidade gay vir acompanhado da homofobia. Fui arrastada pelos cabelos em uma delegacia”, conta a transexual Marcela, 31 – que tinha ido ao local registrar queixa contra a agressão sofrida em uma rede de fast food. A travesti Deisy, 32, dia que recebeu golpes de cassetete ao se recusar a atender à ordem policial de sair da rua onde faz programa. Já João Paulo de Almeida – “uma menina”, no relato da mãe, Nilza de Almeida – teve pior sorte. Foi assassinado com três tiros, aos 21 anos, numa manhã de sábado, supostamente por um motoboy. O crime permanece sem solução há quase dois anos. “Um dia ele chegou em casa muito machucado. Disse que tinha caído de um carro, mas eu acho que bateram nele e que ele mentiu para não me fazer sofrer”, disse dona Nilza. (VILA-NOVA, FSP, 2004)

Como já tratado anteriormente, dentre todas as paradas que se originaram por todo o país, é certo que a de São Paulo tornou-se a mais famosa e que acaba por ditar temas e slogans para as demais. Em meados da primeira década dos anos 2000, ela se converteu na maior parada do orgulho de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros do mundo, reunindo cerca de três milhões e meio de participantes por edição. Para além, transformou-se no segundo evento daquela cidade que mais angaria turistas e mais movimenta a economia, perdendo apenas para a Virada Cultural (no primeiro quesito) e para o Grande Prêmio de Fórmula 1 (no segundo) (INDICADORES E PESQUISAS, FSP, 2008). Para sua realização, foi criada uma organização não-governamental responsável pela definição do tema da parada, produção de material de divulgação, busca de patrocínio e de fundos governamentais. Não apenas no Brasil as paradas do orgulho LGBT tomaram grandes proporções, convertendo-se, em alguma medida, em eventos que superam a busca por garantias no campo 11

jurídico ou o fim dos vários tipos de violência que sofrem os homossexuais. É o caso da Parada Gay de Sidney:

A surpreendente dimensão das comemorações dos 20 anos da primeira parada gay e lésbica em Sydney (Austrália) está tornando a futura sede olímpica em seríssima candidata a ganhar o título de capital gay do Hemisfério Sul. Durante todo o mês de fevereiro, mais de cem eventos de arte, música, política, festas e artes visuais devem atrair mais de 200 mil visitantes GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) para o que já se tornou o principal marco turístico australiano. (...) Para evidenciar o caráter festivo da versão local da celebração do orgulho gay, foi decidida, ainda nos anos 80, a transferência da data original no final de junho para o final do verão, coincidindo com o carnaval (o nome “mardi gras” originalmente significa terça-feira gorda e hoje funciona nos países de língua inglesa como um sinônimo da festa de momo). (...) Desde então, o “mardi gras” deixou de ser um mero aglomerado de homossexuais bem intencionados para se tornar uma organização empresarial que trabalha o ano todo, com 18 funcionários, 1.500 voluntários, administrando um orçamento anual de US$ 4 milhões. Somente a venda de ingressos para a babilônica festa de encerramento, após a movimentação da Parada do Mardi Gras deste ano, a organização deve angariar mais de US$ 1,5 milhão, sem contar os patrocínios. Essas cifras explicam em parte o apoio da iniciativa privada e órgãos públicos locais. Um estudo de 1996 indicava que o Mardi Gras gerou mais de US$ 50 milhões aos cofres da cidade em menos de 30 dias e com isso ganhou apoio até mesmo do conservador prefeito. (...) A presidente do Sydney and Gay Mardi Gras, Bev Lange, faz questão de reafirmar o sentido político original da data para os que hoje se embalam no apelo comercial e turístico da festa. “Tudo isso acontece para que tenhamos anualmente uma oportunidade para reafirmar nosso lugar na comunidade e lembrar aqueles que se expuseram sem medo, para que alcançássemos alguns avanços”, afirma Lange. (FISCHER, FSP, 2009)

O evento, já referido, surgido em Sidney em 1978 como comemoração do levante de Stonewall, momento em que os cerca de mil participantes foram rechaçados com extrema violência pela polícia, retornou, ainda nos anos 1980, com forte viés político como resposta à “caça às bruxas” iniciada com o evento. Vinte anos após o combate entre gays e lésbicas contra a polícia australiana, percebemos como a própria natureza do evento foi modificada. Não se trata, obviamente, de questionar ou negar o aspecto festivo da parada, hoje um evento próximo ao carnaval naquele país. Talvez, seja o aspecto econômico aquele que mais salta aos olhos e leva a questionamentos. É preciso que haja um esforço para compreendermos como um grupo de mil pessoas apanha violentamente da polícia e, poucos anos depois, congrega patrocínios, movimenta cerca de 4 milhões de dólares (em 1998). Alguns dos limites das paradas são apresentados por seus organizadores, como Pedro Almeida (São Paulo): 12

Apesar do balanço final e do número recorde, nem tudo era comemoração, ontem, na sede da Associação da Parada Gay, no centro da cidade. Se o evento do domingo se consagrava como a maior marcha gay do mundo, a constatação era de que só a visibilidade não significa conquistas políticas. “Não queremos ficar numa grande marcha, num único dia; queremos transformar essa visibilidade em avanços e direitos”, disse Pedro Almeida, da Associação GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros), que organizou a parada. (...) “É um passo ainda pequeno num país que acaba de lançar a campanha Brasil contra a homofobia, mas onde projetos pela união estável entre homossexuais não avançam”. (PARADA GAY, FSP, 2004)

A visibilidade traz alguns problemas internos à própria comunidade LGBT. Em matéria sobre a parada do orgulho de São Paulo de 2007, Paulo Sampaio, paradoxalmente, chama atenção para o fato de o ecletismo, veja só, ser visto como algo ruim para muitos participantes do evento. Sobretudo, pela presença de “gente feia”. Vejamos o preconceito por dentro do próprio movimento:

“Nunca vi tanta gente feia!”, diz o estudante bombado, descamisado e depilado Victor Prado, 19, saindo da Parada Gay. A frase foi ouvida muitas vezes pela reportagem, em diferentes grupos do evento. A maioria dos queixosos é representante da ala masculina. De acordo com os correligionários de Prado, desde a primeira edição, 11 anos atrás, a Parada do Orgulho GLBT se popularizou demais e “hoje é frequentada por pessoas que nem são gays”. O maior movimento brasileiro de defesa da diversidade sexual e das minorias, quem diria, ficou muito eclético. (...) Acontece que isso aqui é um evento aberto, não precisa pagar nada. Então, não dá para controlar a frequência", diz o professor Emanuel Via. O preconceito parece contagioso. Esquecido da essência suprapartidária da parada, o fotógrafo carioca Mauro Scur, 32, diz: “Como vocês dizem aqui em SP, só tem periferia. Lá no Rio, a gente diria suburbano”. (...) O stylist Ronaldo Gomes, 30, responde sem rodeios. “O problema é o baixo poder aquisitivo da maioria. Nem sempre aqui as pessoas são exatamente feias; às vezes são apenas maltratadas. Presta atenção nos cabelos, nas peles...”. (SAMPAIO, FSP, 2007)

O que chamamos movimento de afirmação de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros esbarra em algo que talvez hoje deveria estar fora de moda: a divisão do mundo entre ricos e pobres. A inclusão ambicionada pelos gays na faixa dos 20 e 30 anos parece ser apenas das beldades esculpidas conforme dita a moda vulgarizada pelos meios de comunicação. Diversidade, até onde? E, por outro lado, se Bev Lange ressalta o aspecto político do evento de Sidney, talvez somente seja possível porque está definitivamente integrado ao mercado (das artes, turístico, etc.). O pedágio está pago. 13

Esta é uma face possível da busca pela visibilidade. Outra, muito comentada e cada vez mais “naturalizada”, é o aparecimento de personagens ou figuras homossexuais na produção televisiva. Aqui, cumpre ressaltar a importância da televisão como principal meio de comunicação no Brasil contemporâneo, aquele que suplantou o rádio e a mídia impressa e ainda não foi superado por sua sucessora, a Internet. Como já dito anteriormente, é dos anos 1970 o aparecimento de personagens homossexuais na TV brasileira. Inicialmente, são figuras ora tímidas, ora macabras; ingênuas ou assassinas. Assim, os tipos oscilaram por muito tempo. Os programas humorísticos têm se servido dos tipos homossexuais, sobretudo do homossexual masculino, caracterizado como a “bicha” ou o “enrustido”, de longuíssima data. Bordões como “Volta pro reduto, Luana”, criado por Chico Anísio, personagens excessivas como o Lobichona de Paulo Silvino (Zorra Total), hoje encontrados raramente, uma vez que tem imperado um humor ainda mais fácil, óbvio e, por conseguinte, rasteiro. Foram-se os tempos do super herói gordo e cor-de-rosa que lutava pelos oprimidos, criado por Jô Soares, o Capitão Gay. É nos anos 1990 que outros tipos homossexuais serão oferecidos nas telas da TV. As telenovelas, tão caras à cultura brasileira contemporânea, responsáveis por angariar expressivos lucros e construir padrões de consumo, de imagem e de comportamento, sendo assistidas por milhões dentro e fora do país (tendo se transformado em produto de exportação), bem como outras criações que compõem as grades de programação , a exemplo dos reality shows, incluíram personas e personagens da subcultura gay, ou, pelo menos, o que seus realizadores compreenderam/compreendem serem tais personagens/personas. João Silvério Trevisan nos lembra que a TV é um veículo de massa por excelência, tendo sido, desde seu surgimento no Brasil, alvo de censura, seja ela policial, política ou dos setores conservadores informalmente organizados, só admitindo sugestões de atos sexuais dentro da “normalidade”. Para o autor, “apesar da acirrada vigilância de grupos conservadores, a TV também tem mergulhado – nem sempre com meias medidas – na exploração do filão homossexual”. (TREVISAN, 2000, p. 305) O autor chama a atenção para um importante elemento presente na produção televisiva nacional: a ambiguidade. Lembra dos bordões e músicas cantadas pelo ícone , como “Quem gosta mais de chupar pirulito: o homem ou a mulher?”, marchinhas como Maria Sapatão e Cabeleira do Zezé. Trevisan faz coro aos que interpretam as formas assumidas pelos homossexuais na TV um tanto comuns, todavia. Mesmo que em algumas oportunidades sejam personagens mais 14

complexos, geralmente apenas o gay efeminado, a “bicha”, está presente. Lembremo-nos das citadas lésbicas vividas por Cristiane Torloni e Silva Pfeifer explodidas junto com o shopping center no meio da trama de Torre de Babel, em razão da repercussão negativa junto a um público pouco habituado a ver mulheres bonitas e independentes – que deveriam ser mães, amantes, esposas – vivendo um amor sáfico. Em outra trama, Senhora do Destino, de 2004/2005, as duas lésbicas parecem ter conquistado o público justamente por se tratar de duas jovens. Talvez, alguém que possa “regenerar”: isso é coisa da idade, vai passar. Por outro lado, não eram atrizes tão conhecidas e desejadas como Torloni e Pfeifer. Ainda em 1998, o ator Odilon Wagner perdeu contratos publicitários por viver, em Por Amor, de Manoel Carlos, o bissexual Rafael. As empresas alegaram não querer vincular sua imagem a este tipo de público e prática erótica. (TREVISAN, 2000, p. 307) Grosso modo, a televisão brasileira tem oferecido em seus folhetins e demais produtos ficcionais homossexuais masculinos que não atentam diretamente ao status quo, uma vez que a “bicha” assume, em nossa cultura e como já evidenciado, uma posição menor, aquela do submetido, do penetrado. Uma “bicha”, portanto, se assemelha à mulher e, estando submetida, pode cumprir sua função cênica: fazer rir. Sim, pois as personagens homossexuais que mais apelo popular receberam foram as histriônicas celibatárias. Fazer rir sem demonstrar muito de seu apetite ou práticas eróticas não tem incomodado aos telespectadores ou aos setores mais conservadores de nossa sociedade. Como “bobo da corte” a “bicha” pode existir. Mais um pedágio: faça-me rir. Ou me entretenha com as disputas. Essa outra faceta pôde ser vista no reality show Big Brother Brasil, sobretudo em sua décima edição realizada nos primeiros meses de 2010. Nina Lemos, em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 26 de fevereiro de 2010, afirmava:

Cenas de sexo? Bundas de mulheres gostosas? Quem se importa. O “BBB” de 2010 coroa a correção política e a orientação sexual dos participantes como o fator mais importante da trama. Nunca uma edição do programa teve tanta repercussão. Na internet e nas ruas, uma briga de torcedores fanáticos está armada. No centro do ringue, uma batalha entre heterossexuais e gays. Homofóbicos e simpatizantes. (LEMOS, FSP, 2010)

A autora apresenta os protagonistas da contenda confinados na casa/cenário luxuosa produzida pela Rede Globo de Televisão. De um lado, o lutador de jiu-jitsu Marcelo Dourado, famoso internacionalmente após afirmar que “heterossexual não pega Aids”. Em razão de tal declaração homofóbica a Globo foi alvo de inquérito realizado pela Procuradoria da 15

República em São Paulo (MICHAEL, FSP, 2010). Do outro lado, Dicesar, conhecido na noite como a drag queen Dimmy Kieer. E mais:

Dourado chegou lá. Ficou famoso internacionalmente [por sua declaração sobre o contágio pelo vírus HIV, que gerou grande repercussão]. Ele é o primeiro participante do “BBB” a alcançar (má) fama fora do país. Mas ele não conseguiu tal feito sozinho. O que está em jogo não são apenas declarações inconsequentes, mas uma luta de classes entre estereótipos: os héteros sexistas (representados por homens fortes e mulheres gostosas) e os gays (representados como fofoqueiros ou fúteis). (LEMOS, FSP, 2010)

A articulista encerra sua análise afirmando, ainda, que a TV Globo é diversa até certo ponto apenas, na medida em que oferece uma disputa entre masculino e feminino, inovando apenas no fato de que o representante do campo feminino é uma “bicha”, não uma mulher. O papel, muito parecido. Ivana Bentes enfatiza outro aspecto do reality: o componente viral do programa e as subjetividades por ele criadas:

Mais importante do que o que é dito pelos participantes da casa (...) é esse componente “viral” do programa. Durante três meses, ou pelo menos nas últimas semanas, o BBB abduz e mobiliza um contingente de telespectadores/consumidores que migra de atração em atração, paredão a paredão, num comportamento randômico, mas previsível. Daí a necessidade de “empacotar”, “glamourizar” esse cotidiano amesquinhado em “atrações” ultraeditadas e editorializadas: clipes de bundas malhadas, corpos ensaboados, músculos, festas a fantasia (sic) e figurinos escolhidos, choros copiosos, gritos, sussurros, orgias plastificadas, no meio do que realmente importa: merchandising e comercial sem fim. (BENTES, FSP, 2010)

Bentes ainda pergunta, no mesmo artigo, onde estão os outros homossexuais, presentes em edições anteriores. As assertivas nos levam a compreender que a televisão, naturalizada que está, esconde – ou simplesmente não vemos – seu principal aspecto: o comercial. Trata-se de uma importante indústria do entretenimento que constrói, destrói, reconstrói tipos por dois vieses: seu caráter conservador, aquele que censura determinadas cenas ou propostas por entendê-las contrárias aos modelos hegemônicos que devem assim permanecer; seu caráter vendável, que edita e manipula construindo tipos mais ao gosto dos telespectadores, em função de pontos de audiência e venda de produtos – e os telespectadores, estes mesmos, em sua maioria, partilhando dos modelos hegemônicos (Ver MATOS, 2009; DURÃO, ZUIN & VAZ, 2008).

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É o telespectador-produtor de audiência, a mobilização da vida que dá “alma”, com suas participações, ao vazio das atrações e virais. Afinal, logo os brothers serão esquecidos. Ou ganharão sobrevida em pontas de novelas, festas de “presença”, programas de fofocas e comerciais de varejo. Muito mais impressionante do que as opiniões polêmicas ou risíveis dos habitantes da casa, com suas subjetividades “prêt-a-porter” – o homofóbico, a “frágil guerreira”, o macho “alfa”, a lésbica, a drag queen, o gay –, é esse democratismo frouxo, United Colors of Benetton, de uma “diversidade” não problemática – um arco-íris de vendas potenciais para todos os “nichos” de mercado. (BENTES, FSP, 2010)

Aquilo que para Lemos parece ter se convertido em uma nova “luta de classes”, não mais ricos versus pobres, mas, heterossexuais versus homossexuais, parece perder-se no esfacelamento de sentidos apontado por Ivana Bentes. Gays e lésbicas no horário nobre, no programa visto pelo maior número de pessoas no país, naquele que é o principal produto da emissora no que tange aos lucros alcançados. Dentro de um esquema que, velho, claudicante, encontra ressonância no corpo social. Para deleite de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros e, sobretudo, dos outros – aqueles que, mantendo tudo como está, enxergam ali um nicho de mercado e a satisfação daqueles que se veem, de alguma forma, representados na pequena tela. Quites. As paradas geram, quase per se, grupos voltados para sua organização. São organizações não governamentais – a sociedade civil organizada – atuando em nichos deixados de lado pelo próprio Estado. James Naylor Green relembra que:

Em 1976, João Silvério Trevisan, escritor paulista que vivera nos Estados Unidos no início da década de 1970 e estava em contato com o movimento de liberação gay da Área da Baía de São Francisco, tentou formar um grupo de discussão sobre homossexualidade entre universitários de São Paulo. (GREEN, 2000, p. 427)

Aponta, porém, para seu fracasso. Desde o levante de 28 de junho de 1969, nos Estados Unidos, viu-se surgir ali e, em seguida, pela Europa, grupos organizados que discutiam e lutavam em prol da liberação das formas não hegemônicas do erotismo. O cunho abertamente político foi a tônica naquele momento e assim se manteve até o início dos anos 1980. No Brasil, a primeira experiência citada por Green foi encerrada muito rapidamente. A explicação para isso nos é fornecida por Trevisan:

A grande pergunta que se faziam ia ser comum, daí por diante, nos grupos homossexuais da primeira fase do Movimento Homossexual: seria politicamente válido que nos reuníssemos para discutir sexualidade, coisa 17

considerada secundária no grave contexto político brasileiro? Sem uma resposta clara, qualquer movimento ficava empacado nesta questão. Como se não bastasse, 70% do grupo admitiam francamente se achar anormal por causa de sua homossexualidade. Nessas condições, não é de estranhar que o projeto tenha ruído após algumas penosas reuniões. (TREVISAN, 2000, p. 337)

Após a visita ao Brasil do jornalista Winston Leyland, criador do jornal voltado para o público homossexual norte-americano Gay Sunshine, alguns intelectuais e jornalistas resolveram experimentar a publicação de um jornal voltado para o mesmo público no país. Surgia, assim, o Lampião. Provavelmente instados pela nova aragem do jornal, em São Paulo, em 1979, fundou-se o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual. Alguns integrantes do corpo editorial do Lampião ali estavam a exemplo do próprio Trevisan. O número de grupos cresceu.

No começo da década de 1980, já havia outros grupos ativistas gueis em São Paulo, Rio de Janeiro, Niterói, Belo Horizonte, Salvador, Brasília, Recife, João Pessoa e no interior do estado de São Paulo. A experiência do Somos, por sua vez, tinha amadurecido e agora o grupo começava a trilhar caminhos um pouco mais complexos. Com o seu crescimento, surgiu a burocratização, ainda que se procurassem manter os princípios da autonomia e autogestão. (TREVISAN, 2000, p. 347)

O primeiro grupo de afirmação homossexual fundado no Brasil seria esfacelado a partir da disputa interna, sobressaindo-se duas alas distintas: os autonomistas e aqueles que imaginavam um movimento de gays e lésbicas atrelado aos partidos políticos da esquerda que se reconstruía no início dos anos 1980; mas, quanto a isso e as leis, mais adiante buscaremos outras respostas. Importa-nos, para agora, considerar que de 1979 em diante, novos grupos de afirmação LGBT surgiram, alguns encerraram suas atividades, outros se transformaram em função da epidemia soropositiva de meados dos anos 1980.

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