“Este é o meu corpo, amem-me, dêem-me

publico.pt/culturaipsilon pancada. Estou aqui para fazer ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 9719 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE E NÃO DO PÚBLICO, Nº 9719 EDIÇÃO DA INTEGRANTE PARTE FAZ SUPLEMENTO ESTE barulho”

NUNO FERREIRA SANTOS A Gorda FOTO Sexta-feira | 25 Novembro 2016 | | 25 Novembro Sexta-feira Um romance selvagem: , de Isabela Figueiredo

669ed683-eb95-4b57-a30d-1f388784267d Sumário 6: Isabela Figueiredo Filho de Paula Rego filma Fat power 15: Lisbeth Gruwez os segredos da mãe

O riso é um campo RUI GAUDENCIO de batalha filmes antigos, elementos essenciais para ser perceber como 16: Provoke a vida de Paula sempre se Uma exposição e um livro misturou com a sua obra. Haverá mostram como abanou ainda obras do próprio Nick e um espaço dedicado ao marido de as estruturas Paula Rego, o pintor Victor Willing (pai de Nick), que morreu em 21: Carlos Bica 1988. Música a três “O meu filme não é sobre a artista, é sobre a pessoa”, diz Nick. “O que acontece é que ela foi sempre Ficha Técnica artista primeiro, pessoa depois e mãe em terceiro. Eu queria Director David Dinis descobrir a pessoa por trás da

Editor Vasco Câmara Flash pintora”. Conta que a mãe “foi Design Mark Porter, sempre um grande mistério” e Simon Esterson que, quando na tal conversa há Directora de Arte Sónia Matos dois anos ela abriu uma porta para Designers Ana Carvalho o seu mundo, ele aproveitou para e Mariana Soares fazer todas as perguntas que E-mail: [email protected] guardava há muito. E, afinal, este é um filme que começou há várias décadas, mais exactamente em 1976 quando Nick pegou na velha máquina de filmar do avô que encontrara na casa da família na Ericeira. O pai de Paula - figura fundamental na vida da artista - era um realizador amador, além de ter um pequeno cinema “onde mostrava filmes do Bucha e Estica ou de Chaplin”. Durante a infância de Paula, o pai filmou muita coisa. Esses filmes, que iniciam toda esta história, foram depois continuados por Nick nos anos 70. “A coisa que a minha mãe mais gosta no mundo, até mais do que de pintura, são filmes.” Mas não é apenas de imagens antigas que é feita o documetário O filme sobre Paula tem estreia de Nick. “Passei muitos dias no prevista na BBC em Março e estúdio dela filmando-a a pintar. logo a seguir estreará em Foi uma grande emoção. Quando Portugal era pequeno, ela e o meu pai tinham um estúdio onde eu estava Há dois anos, Nick Willing sentou- proibido de entrar. Agora que sou se com a mãe, a artista portuguesa um homem com 50 e tal anos, já Paula Rego, então com 80 anos, e consegui lá entrar.” Juntámos Batida, ela começou a contar-lhe histórias. Foi, para Nick, finalmente a Manuel Fúria e “Eram histórias que eu nunca chegada ao mundo dos segredos Mayra Andrade tinha ouvido, que explicam muito da mãe. Parou todos os outros para uma conversa da minha vida e da dela, de uma projectos que tinha para se sobre lusofonia e maneira que me fez entender dedicar a este e passou todos os identidade. Pags várias das suas obras”, conta. Foi sábados a conversar com Paula. 22 e segs então que Nick, que é realizador “Ela sempre foi uma pessoa muito de cinema, lhe fez uma proposta: privada. Acha que os segredos só “Vamos fazer o filme que eu têm poder quando são mesmo sempre quis fazer”. Ela disse que segredos e usa-os para o seu sim. trabalho. Sempre foi assim.” O filme de Nick sobre Paula está Por isso, apesar de terem uma pronto há seis meses, tem estreia ligação muito forte - “a coisa mais prevista na BBC em Março (daí importante entre nós é que, que seja falado em inglês) e logo a desde que eu era pequeno, seguir estreará em Portugal. Ao desenhávamos juntos” - só agora mesmo tempo, na Casa das os segredos foram revelados. Histórias, o museu de Paula Rego “Não vou estragar a surpresa do em Cascais, inaugurará uma filme, mas percebe-se muito exposição que, segundo Catarina melhor a relação entre a história Alfaro, curadora ao lado de Nick da vida dela e as obras que fez.” Willing, será a materialização do No final, quando mostrou o filme filme, com fotografias, à mãe, “ela ficou o tempo todo documentos, cadernos com com um sorriso”. desenhos de infância, excertos de Alexandra Prado Coelho

2 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 Wong Kar-wai. Desde Bling Ring — O Gangue de Hollywood (2013) que Sofia não COLECÇÃO SANDMAN Sofia Coppola filma realizava. Ritual de Guerra, que está remake de um a ser filmado em 35 mm, é “…Eu te dou todos produzido pela Focus Features, JIRO TANIGUCHI NA PRIMEIRA PESSOA filme de Don Siegel: com quem a actriz e realizadora já trabalhara em Lost in Translation os teus amanhãs, Ritual de Guerra (Óscar de Melhor Argumento Original em 2004), e Somewhere, Leão de Ouro de Veneza em 2010. O e estas pequenas É uma escolha surpreendente, a da presidente da Focus, Peter chic e inefável Sofia Coppola: com Kujawski, afirmou que “é um prazer NEIL GAIMAN Ritual de Guerra, filma um remake voltar a fazer um filme com Sofia histórias…” de uma obra de 1971 de Don Siegel, Coppola” e que “toda a Focus se Província do Niassa, 1971 que no original se chamou The sente entusiasmada por levar Ritual Beguiled e foi peça importante na de Guerra aos cinemas no póximo 18h, no Hangar — Centro de VOLUME 8 A Estalagem no Fim do Mundo construção da persona de Clint Verão”. Investigação Artística (R. Já nas bancas com o PÚBLICO Eastwood. Está a ser rodado no Damasceno Monteiro 12, 1170-112 estado norte-americano do Lisboa). Louisiana e estreará no Verão de A sessão integra-se no Workshop Hy Bender: Após 2017. Ritual de Guerra, adaptado do Comparar Impérios, é uma livro homónimo de Thomas Na linha da frente, iniciativa do CITCOM — Cidadania, Vidas Breves, faria Cullinan, passa-se em 1864, durante Comparatismo, Crítica, sentido ter passado a Guerra da Secessão nos Estados com a Frelimo — Modernidade(s), (Pós) directamente para Unidos, quando um soldado Behind the Lines Colonialismo. Centro de Estudos As Benevolentes. unionista ferido da guerra é acolhido Comparatistas da Universidade de Mas escolheste por uma escola feminina sulista Lisboa. A apresentação do filme voltar um pouco para ser tratado. Na escola The Miss em debate será feita por Ros Gray (Goldsmith atrás e escrever Martha Farnsworth Seminary for — University of London) e após a A Estalagem no Young Ladies, na Virginia, vive-se Em 1971, Margaret Dickinson filmou projecção haverá um debate com a Fim do Mundo. numa “bolha”, isolado do mundo do lado da Frelimo, do lado da luta participação da própria Margaret Neil Gaiman: Sim. exterior, e a chegada do soldado contra o poder colonial em Dickinson — para além de Ros Gray Primeiro porque adoro provoca todo o tipo de reacções. No Moçambique, uma guerra que já -, moderado pela historiadora fazer histórias curtas filme de Siegel, o soldado era durava há dez anos. Margaret foi Maria do Carmo Piçarra. pela variedade que elas interpretado por Clint Eastwood — para a província do Niassa, que trazem. Vi A Estalagem alvo do desejo e depois da estava sob ataque das tropas no Fim do Mundo como violência das mulheres; o filme deu portuguesas numa ofensiva a última oportunidade logo sinais do masoquismo de uma destinada a acabar de uma vez por A juventude de explorar géneros persona em construção. Na versão todas com as pretensões da Frente diferentes no Sandman. de Sofia, a personagem é de Libertação de Moçambique. de Obama deu interpretada por Colin Farrell. Do Esse filme emblemático, Behind the HB: No teu script afirmas: “A história inspira-se elenco constam também Nicole Lines, feito de acção e de palavras, em muitas obras: um livro sobre os primórdios Kidman (que deverá interpretar a com entrevistas a guerrilheiros e a um filme personagem da directora da homens e mulheres que, como da Roma papal; memórias vagas de ler a Metal escola), Kirsten Dunst, que quadros da Frelimo, tiveram Hurlant e as tiras de Druillet; o carinho pelos trabalha frequentemente com a oportunidades políticas e livros do Flashman e o meu desejo em trazer realizadora, Elle Fanning, Angourie educativas que de outra maneira Lord Cluracan of Farie de volta ao Sandman”. Rice e Addison Riecke. O filme tem lhes estariam vedadas (as zonas NG: Tudo verdade. O livro a que me refiro é The Bad Popes como director de fotografia libertadas vistas como laboratório de E.R. Chamberlin, que analisa as três ou quatro ocasiões Philippe Le Sourd, nomeado para o que antecipava a nova realidade de em que o Papa era simultaneamente o Duque de Roma. Óscar de Melhor Fotografia em 2014 um país independente), vai ser A pouco mais de um mês do fim do O Conto de Cluracan acabou de forma horrível. Este ponto com O Grande Mestre, filme de exibido no dia 2 de Dezembro, às mandato de Obama, chega um ensinou-me a humilde lição de que há certas histórias biopic do Netflix, realizado por que não cabem em 24 páginas. Vikram Gandhi, sobre a juventude do primeiro afro-americano a HB: O que podes dizer sobre a primeira ocupar a Casa Branca. Concentra-se história “Um conto de duas cidades”? nos seus tempos de estudante na NG: Vem mesmo da veia H. P. Lovecraft. Contratei Alec Universidade de Columbia. O jovem Stevens porque vi uma obra de Lovecraft adaptado por ele Obama é interpretado pelo e gostei imenso. Eu estava focado em cidades naquela altura, australiano Devon Terrell. Segundo porque escrevi um texto sobre elas para o jogo Sim City 2000. comunicado do Netflix, o filme Acho que o homem sozinho e perdido resultou bem. explora a época em que o 44º A rapariga no final não devia parecer-se tanto com a Morte, presidente dos EUA “desenvolveu e foi uma pena pois traz insinuações. as bases das suas visões sobre raça, governo, e o que significa ser americano”, enfrentando o racismo HB: A minha parte favorita deste volume é, da sociedade e sentindo-o na pele no entanto, a referência à tua vida real: por ser negro e muçulmano. Apesar a dedicatória à tua filha recém-nascida, Maddy. de ter estreado no Festival NG: Estava no hospital às 03:00 e a dedicatória foi escrita Internacional de Toronto, o filme só no dia seguinte. Peguei no meu portátil e escrevi o que O filme original – The Beguiled – é uma peça importante na fixação estará disponível a 16 de Dezembro. aparece na página: “Este livro é para a Maddy, cor-de-rosa dos dados essenciais da persona de Clint Eastwood As críticas são maioritariamente e pequenina, nascida há uma hora e dez minutos, e que positivas. Não é o primeiro filme passou a maior parte desse tempo a chuchar vigorosamente sobre Obama. Já em Southside With os meus dedos, na ilusão de que eles podem ser uma fonte You, de Richard Tanne, que estreou viável de nutrição. Eu te dou todos os teus amanhãs, em Agosto, o tema era o começo da e estas pequenas histórias. Com amor, Neil Gaiman”. relação entre Barack e Michelle Obama. Ao contrário de tantos Excerto da entrevista realizada por Hy Bender em 1999 e publicada outros biopics sobre presidentes, os no livro The Sandman Companion, da DC Comics. realizadores parecem estar, no caso de Obama, mais interessados nos anos que precederam a presidência Colecção de 11 livros. PVP unitário: €11,90. Preço total: €130,90. Data início: 6 de Outubro. Data fim: 15 de Dezembro. Dia da semana: Quinta-feira. A aquisição do produto implica a compra do jornal. Limitado ao stock existente. do que nos anos de governo.

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 3 Isabela Figueiredo Fat usa a sua vida para construir outra vida. “Este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo, amem-me, dêem- me pancada, façam o que quiserem. Estou aqui para fazer power barulho.” Lê-se

A Gorda como os u, Isabela Figueiredo, por me custar desperdiçar a sua ex- em A Gorda. Diz Isabela: “Eu descre- gordos comem, saí do armário no mo- trema pureza.” vi uma luz que tenho na memória. mento em que fiz a Agora não suporto a luz, tenho de sofregamente, gastrectomia. Passei a Não é comer é ter fome fugir dela.” Quando a protagonista sem pensar no ter fat pride [orgulho Estava um lindo sol de Inverno apresenta a casa que herdou dos “E em ser gorda] no mo- quando Isabela apareceu em Caci- pais, somos logo avisados do hall mento em que deixei de ser gorda. lhas, no largo em frente ao embar- “sem claridade” e dos restantes com- amanhã. Ou como Antes de fazer a operação não acei- cadouro. Vinha com o rosto pintal- partimentos onde recebe “chapadas um febrão em que taria. Faria o que sempre fiz, que foi gado, marcas de uma operação para de luz impiedosa, quer na frente, vi- gozar com a minha gordura, com o tirar os sinais da cara. Não quer ser rada a poente, quer nas traseiras, toda a sordidez e meu corpo, com o meu aspecto. Fa- entrevistada no exterior, a luz fere- para nascente”. “A luz dói nos olhos. ria os outros rirem-se de mim. Por- lhe a vista. Avançamos por uma rua Custa-me suportá-la, mas amorna o delicadeza da vida que é que precisei de me amputar onde abundam esplanadas. Da Ca- espaço e alegra os dias.” Já perto do íntima é suada. para renascer? Não sei, é como a ter- cilhas operária restam as fachadas: fim, na iminência de rever o seu pri- ra, precisa de ser queimada para ficar mantém-se o pequeno comércio, meiro namorado, outro aviso: “Ele Este livro é um fertilizada, não sei. Depois de fazer mas de cara lavada e ao gosto turís- não sabe que os meus olhos já não a gastrectomia e de perder todo tico. Fazemos várias tentativas, mas lêem letras de jornal em papel.” cometa. Cheio de aquele peso senti que estava prepa- somos barrados: esta estalagem é só O enredo amoroso que atravessa rada para falar. Fiz a operação em para hóspedes, este bar de petiscos o livro é uma paixão de juventude humor selvagem. 2010 e em 2011 comecei a preparar- está ainda limpezas, só abre ao fim em que Maria Luísa é sujeita a um me. Queria escrever sobre solidão, da tarde. Pedimos licença para en- surtido de humilhações e vilanias a sobre dor, sobre perda. É curioso que trar num café e Isabela, depois de que só o sexo escapa. Desde ter de Rui Catalão o livro seja divertido.” se sentar, troca de lugar: a luz vinda se esconder dos amigos e familiares, Sete anos depois de se estrear da porta continua a feri-la. para não o envergonhar com a sua com Caderno de Memórias Coloniais, “Perdi a visão central num olho. gordura, até se tornar seu amante, livro em que infância, poder, desejo Tenho alguma visão periférica, mas, quando já está casado e com filhos, e violência se conjugam em peque- se fechar este olho, não te vejo. Con- até espiar-lhe a rotina doméstica, en- nos episódios, Isabela Figueiredo tudo, consigo ver algumas coisas quanto fantasia aquela vida para si. publica aos 53 anos o seu primeiro que estão à roda de ti. Se focar aque- E, no entanto, um carteiro, tão pare- romance. A protagonista de A Gorda le balcão, não vejo aquele balcão. cido com o Jude Law a ponto de só fala na primeira pessoa e tem um Contudo, consigo ver as luzes em poder ser o Jude Law, haverá de apa- nome: chama-se Maria Luísa. É uma cima. Tenho uma degenerescência recer com uma carta para que a feli- personagem tão genuína, tão inteira macular causada por descolamento cidade ainda seja possível com aque- que não duvidamos tratar-se de uma de retina. Tudo aquilo que quero ver le mesmo rapaz da Arrentela, de seu Sete anos depois de se estrear pessoa. A forma como se expõe é não vejo, só vejo aquilo que não que- nome David, que a trocou por uma com Caderno de Memórias como um pneu a deformar a cintura ro ver. Só vejo o que é periférico.” colega de escola e que entretanto fi- Coloniais, Isabela Figueiredo literária. É alguém que aparece, e Os problemas de vista, assim como cou careca. Como é possível a felici- publica aos 53 anos o seu que nos diz coisas tão cândidas e a luz e os seus efeitos em objectos e dade depois de tanta baixeza? Isabe- primeiro romance desarmantes como: “Digo a verdade superfícies, é um motivo recorrente la: “Ela tem muitas contradições NUNO FERREIRA SANTOS

4 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 NUNO FERREIRA SANTOS e a parte onírica é muito importante, fá da sala da tia, durante a transmis- visto e fui para casa deles. Pelo facto ajuda-a a viver no meio daqueles fra- são de um episódio da série juvenil de serem nossos familiares não são cassos. Eu devia à Maria Luísa a hi- Fama. Mais outro exemplo: a colega necessariamente nossos aliados, nos- pótese de um final feliz. Devia deixá- Tony, uma mitómana angolana a sos amigos, nossos protectores.” la pensar isso. Ela tem consciência quem Maria Luísa se devota como NUNO FERREIRA SANTOS de que é uma sonhadora. Deixemos uma escrava, lavando-lhe a roupa, Esplendor colonial a Maria Luísa acreditar que o David massajando-lhe o corpo, num jogo num apartamento Luís vai voltar, isso ajuda-a.” de submissão cujo fim último é apo- Maria Luísa, tal como Isabela Figuei- A Gorda fala menos de comer do derar-se do desejo que o corpo da redo, nasceu e passou a infância em que de ter fome. Aquilo de que mais amiga inspira, desejo a que o seu Moçambique. Tal como a sua auto- se alimenta nem é de comida, é do próprio corpo não pode aspirar. ra, veio para Portugal viver com fa- passado. O passado está vivo e nem A Gorda abre com a frase: “Qua- miliares que desconhecia depois da é passado, regurgita e volta ao pre- renta quilos é muito peso.” Com a independência. Tal como Isabela, sente. A vida continua, certamente, gastrectomia, quarenta quilos são frequentou um colégio interno, em mas com as vozes dos mortos a de- eliminados, mas ser gordo é também Tomar, viveu na casa de familiares ambularem pela casa, ou a entrarem ter memória de ser gordo. Maria Lu- nas Caldas, em Alcobaça e no Feijó por ela adentro e a intrometerem-se ísa começa “a ficar leve, quase a le- e finalmente fixou-se com os pais na no quotidiano. Depois da morte da vantar voo”, mas ainda pensa como Cova da Piedade, em Almada, quan- mãe, Maria Luísa está debruçada no gorda: “Sei que o mundo das pesso- do era já uma adolescente com vida balcão da cozinha, a comer melão, e as normais não é para mim. Continuo de adulta. Os pais enviaram-na para ouve uma voz que a chama. É a voz a ter o defeito, mas não se vê tanto; Portugal quando era demasiado ce- de uma mãe na rua, a chamar pela tornou-se menos grave. Há momen- do e voltaram para ela quando era filha. Não é a sua mãe, mas vai à ja- tos em que me parece ter ganhado demasiado tarde. nela na mesma: “Havia um ‘eu e tu, uma nova vida, como os que passa- “Eu não tinha opinião a dar sobre coisa única, amarga e doce, do prin- ram por experiências de quase mor- a minha vida”, diz Isabela. “Eram cípio ao final dos tempos, vem’, por te, viram o túnel para o outro lado, eles que decidiam. Optaram pela isso vou, mesmo sabendo que não é com a atraente luz branca no final, para mim.” Não é a única voz que chamando-os, mas escolheram vol- escuta: “Quando o papá morreu, dei tar. Eu também tenho escolhido, e em falar com ele estando sozinha, e mesmo que já ninguém me exclua, “O que eu queria havia necessidade de compreender excluo-me eu, à partida. Conheço que tipo de loucura era essa.” Senta- muito bem os meus limites.” escrever não tinha da à mesa do café, Isabela diz: “A A gorda entra no elevador, mira-se minha mãe era mais sensata, era a ao mesmo espelho onde já teve ver- lugar na literatura. pessoa que estruturava aquela casa, gonha de se ver reflectida e agora mas era do meu pai de quem eu gos- usufrui da sua “beleza madura”: Nos anos 90 enviei tava. Ele era o meu melhor amigo de “Por vezes considero que perdi mui- brincadeiras.” O dilema com os mor- to tempo, no passado, desgostando um original a uma tos está de regresso à vida. de mim, mas reformulo a ideia con- Li as 285 páginas de A Gorda sem cluindo que o tempo perdido é tão figura da língua interrupções, com a sensação de não verdadeiramente vivido na perdição ter feito mais nada depois de come- como o que se pensa ter ganho na portuguesa que çar. Roubou-me horas de sono e tam- possessão. E volta o sossego.” bém não me permitiu estar desperto A Gorda é sobre a experiência de me respondeu a para outra vida que não a vida de ser gorda e é também sobre deixar Maria Luísa num jogo de transparên- de ser gorda. É sobre aquilo que se dizer que aquilo cias com a vida de Isabela Figueiredo. tem e aquilo que se perde. É sobre Mesmo nos momentos em que se aquilo que se quer ter e, não poden- não prestava. Mas interrompe a leitura, fica-se a reler do, encontrar um substituto. E de- mentalmente o que já foi lido, en- pois também o substituto tem de se naquilo que lhe quanto se antecipa o regresso ao li- perder. Na segunda metade do livro, vro. Não por ser um livro, mas por Maria Luísa relata uma doença mis- enviei estava o no livro estar a Maria Luísa e com ela teriosa, de uma “qualquer morte” a sua autora, as duas numa só. Lê-se que dura uma semana, e da qual re- gérmen do que A Gorda como os gordos comem, so- gressa “esfomeada, sedenta, descom- fregamente, sem pensar no dia de posta”. Depois disso, vai parar a Al- queria escrever” amanhã. Ou como um febrão em que cobaça “no tempo dos marmelos”. toda a sordidez e delicadeza da vida A roupa que trouxe de Moçambi- íntima é suada. Ou ainda como uma que deixa de lhe servir e não há outra; porta a ser arrombada. “Quero pegar as mamas não cabem no soutien e não minha segurança e pela minha for- na nossa baixeza e torná-la em algo há dinheiro para comprar um novo; mação académica. Eu compreendi sublime. É sublime a nossa baixeza. as cuecas apertam as virilhas e dei- a decisão deles e aceitei, até porque Mas também os nossos momentos xam marcas roxas na pele. Enquanto sempre houve em mim um grande sublimes às vezes não valem nada, isso, come marmelada, com ou sem desejo de independência e de soli- são absolutamente ridículos, então pão, de preferência às escondidas: dão. Quando eles voltaram, eu tam- também quero pegar nisso e meter “Poderia dormir num colchão de mar- bém não os queria. Houve um gran- no seu devido lugar.” melada, enfiar-me num poço dela até de afastamento. Ela cresceu muito. A Gorda é um romance gordo, a vida melhorar e valer a pena acor- Tornou-se uma mulher. Aprendeu cheio de banhas, de dobras, de cor- darem-me da fome insaciável.” a viver sozinha.” pos dentro de outros corpos a ali- Isabela: “Eu comia para além da A Gorda está organizado em oito mentarem-se de outros corpos. Há fome. Havia uma necessidade grande capítulos e cada capítulo corresponde episódios que surgem como homún- de encher o estômago. A comida sos- a uma divisão da casa que partilhou culos. É disso exemplo a paixão de segava-me. O meu corpo não preci- com os pais na Cova da Piedade. Usar Maria Luísa por João Mário, um sava de comida, mas eu precisava de as divisões da casa como ponto de aventureiro que abandona o país comer. O nosso corpo tem uma lin- partida permite-lhe serpentear no deixando um endereço de Sines, guagem e pede-nos coisas. Se calhar espaço e no tempo, em ciclos de ida para onde ela lhe envia cartas todas era esse o meu remédio. Era uma fu- e volta à adolescência, à vida adulta, as semanas, construindo uma rela- ga, um alívio. Uma forma de me en- à velhice dos pais e depois da sua mor- ção de remetente sem destinatário. cher das coisas que não tinha. A mi- te. A sinalização cronológica é feita Outro exemplo: o biscateiro Luná- nha adolescência não foi fácil. Foi um através do recurso ao contexto histó- tico, um meia-leca feioso e pobreta- grande desenraizamento. Vim para rico: a mãe de Maria Luísa morre de- na, um faz-tudo muito ágil com as Portugal antes de fazer 13 anos. Quan- pois da renúncia de Bento XVI; a sua mãozinhas, que providencia o pri- do cheguei, tinha familiares a recebe- vinda para Portugal, sem os pais, meiro orgasmo a Maria Luísa no so- rem-me no aeroporto. Nunca os tinha acontece com a independência de

6 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 O corpo é a guerra Isabela Figueiredo faz do corpo a arma, a munição e a própria guerra. Por Hugo Pinto Santos

Isabela Figueiredo abria e encerrava Caderno de com essa carne crua. Em A Gorda, a palavra obscena Memórias Coloniais com poemas de Manuel António serve para emular a rapidez rude da vida, a sua Pina. E há um poema do autor, Como Se Desenha Uma irrepetibilidade; mas é igualmente a outra palavra, a Casa, que parece um esquecimento deliberado em A deturpação do código, a revelação dos diversos planos Gorda, onde talvez fosse uma sinopse impertinente, na de compreensão: “Em 2004 acabámos por não foder. sua exactidão: “Primeiro abre-se a porta/ por dentro Isso é que foi pena, mas deves reiterá-lo sem receio, sobre a tela imatura onde previamente/ se escreveram para tua defesa. Íamos fodendo, mas tinhas hora para palavras antigas: o cão, o jardim impresente,/ a mãe regressar a casa. Controlaste-te como deve ser. Deve ser para sempre morta.// (...) Uma casa é as ruínas de uma duro viver tão preso, mas calculo que haja certo consolo casa,/ uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;/ na rotina do cativeiro. Uma pessoa habitua-se e não quer desenha-a como quem embala um remorso,/ com outra coisa.” (p. 174) Porque nem sempre é este o modo algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.” O de afirmar o corpo. Por vezes, é a exactidão quase romance de estreia de Isabela Figueiredo desenha-se científica que descreve os seus actos e gestos. A como uma casa: “Porta da Entrada”, “Quarto de obscenidade é também a voz do excesso e da superação. Solteira”, “Sala de Estar”, “Quarto dos Papás”, Da assunção tão plena quanto possível do corpo. “Cozinha”, “Sala de Jantar”, “Casa de Banho”, “Hall”. Até lá, porém, foi preciso começar por perder Cada divisória, entretanto, acarreta uma orientação camadas de si próprio. O processo traumático da perda mínima, porque de escassa capacidade de imposição, radical de peso, a que a narradora se submete, é quer temática, quer organizativa — isto é, nenhum apresentado logo nas primeiras linhas: “Quarenta daqueles segmentos domésticos ditará respostas quilos é muito peso. Foram os que perdi após a óbvias. Trata-se, tão-só, de um deflagrador, a faísca que gastrectomia: era um segundo corpo que transportava detona a viagem. Do mesmo modo, aquilo a que comigo.” (p. 19) E elas são não apenas um mecanismo poderíamos chamar ordenação do território do de (des)estruturação narrativa, nem um modo de romance não responde de forma ordeira ao apelo da lançar as bases do descrédito a que é votada uma cronologia, nem ao esquematismo do baloiço analepse- cronologia linear. São um diapasão de todo o romance, prolepse. A narração lê e relê os acontecimentos dos na medida em que estabelecem uma tonalidade e um vários passados da narradora. Volta aos mesmos padrão que A Gorda mais não fará do que refinar, mmmmq lugares e ocorrências, mesmo se de ângulos distintos. depurar, intensificar. Sem cessação, sem relaxamento. Para acertar o tom, atinar com a verdade dos factos Houve já palavras de Caderno de Memórias Coloniais revisitados, a graduação da realidade, do plausível — que anteciparam essa recusa de depor armas: “O meu A Gorda disposição já adivinhável na advertência da autora, de corpo foi uma guerra, era uma guerra, comprou todas Isabela tonalidade aristotélica: “Todas as personagens e as guerras.” Também no seu romance de estreia Isabela Figueiredo situações descritas nesta narrativa são mera ficção e Figueiredo faz do corpo o núcleo da guerra. E, mais do Caminho pura realidade.” Não se lavra duas vezes o mesmo que isso, ele é a arma, a munição e a própria guerra campo, mesmo quando se repisa tremendamente — mas também o alvo a abater e a exaltar. Ele é tanto perto. As próprias frases são reescritas, revistas, fonte de increpação quanto motivo de júbilo e prazer. glosadas ou repostas em paráfrases fiéis ou revoltadas; A narradora mede forças contra inimigos cujos no entanto, a passagem do tempo cria um indivíduo contornos são diversos. Sejam eles os ideais de beleza que revive o passado diferentemente e que reconstrói femininos mais estandardizados, ou a noção forte sucessivos presentes que são como vagas sobre um (sufocante?) de família. Daí que o cotejo seja areal que se fosse erodindo. permanente, e o saldo, penoso: “Não sabia se as A figura materna, como a casa (mas também os mulheres da minha família alguma vez tinham sentido o animais, presentes no poema de Pina), desempenham mesmo que eu, se eram assim imperfeitas.” (p. 99) papel preponderante. De tal forma que, quase no final, A Gorda manipula os géneros, cruzando as tudo se exacerba e, numa transição abrupta, corpo e potencialidades do discurso memorialístico e casa se identificam inextricavelmente: “Um corpo tão romanesco. Não será abusivo encontrar nele uma perfeito, tão imponente, como pude desamá-lo tanto?! relação natural com Caderno de Memórias Coloniais. Que silêncio! Que abandono! A casa entretém-se Pela importância da família, pelo tratamento frontal da escutando as conversas e os pensamentos gravados por questão colonial, um mesmo arco temporal, vozes diversas na atmosfera.” (p. 283) Motivo pelo qual sensivelmente. Até essa liturgia celebrada perante o se afirma: “A casa respira fundo esse desperdício doce e corpo materno. Se, no Caderno, a autora escrevia “No ácido, denso.” (p. 284) E porque já antes se registara: “A corpo da minha mãe apenas me interessava o seu peito. sala de jantar é o armazém de artérias, ADN e sinapses (...) Que delícia havia de ser ter autorização para lhe que nos ligam e atravessam.” (p. 214) A mãe da mexer”, em A Gorda, lemos: “Sempre tive a fixação das narradora, por seu turno, é objecto de algumas das suas mamas, como se as minhas não me bastassem. (...) páginas mais empenhadas e de mais avassaladora Quanto as beijaria!” “O corpo da minha mãe é o grande entrega de todo o livro — “Gosto dela. Não a suporto. mistério” (p. 224). O romance de Isabela Figueiredo é Quando morrer, não me resta mais ninguém. Nunca uma ficcionalização do registo autobiográfico. Se o mais morre. Não morras.” (p. 208) Não basta dispor autor empírico fica mais ou menos distante da narração metodicamente (e o método é, aqui, destempero, e da narradora, poderá ser questão de somenos — ou vertigem, queda) os contrários e deixar-se seduzir pelo não. Facto é que a miscigenação dos géneros possibilita enlevo da contradição. Todo este batimento binário é uma análise que é guerra sem quartel. O auto-retrato é como a sístole e a diástole do romance. Todo o seu tortura consciente do sujeito diegético e existencial — sangue parte daquele fulcro carnal e oscilante; tudo o “Tenho adolescência, o resto é a vergonha das mamas que circula no corpo romanesco é realmente do corpo volumosas, dos pneus da cintura e das coxas grossas.” que emana, e do que, com esse emaranhado de órgãos, (p. 220) Uma hipertrofia da consciência que se mescla se pode conceber como espírito. As descrições do corpo com o hiperdesenvolvimento corporal e produz próprio e alheio são do mais cru e do mais conseguido resultados de uma pungente autodepreciação cuja que a literatura portuguesa tem produzido. O que neste franqueza está patente em todo o livro, e não é livro importa não é a destreza com que se lida com o técnica, nem manobra de diversão — “Eu, mistério de impropério, o tabu, o interdito social, mas tudo o que a carne insatisfeito. Eu, tempestade sobre as quatro sua escrita consegue fazer com essas matérias-primas — estações.” (p. 177)

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 7 Moçambique; o pai morre “no ano da conder-me um bocado, mas às ve- queda” das Torres Gémeas. zes sou apanhada.” Há uma passagem em que Maria Brinquemos ao apanha: o que é Luísa se dedica a copiar as rezas da que distingue Isabela de Maria Luísa? mãe. Apesar de duvidar do seu poder, “Essa é a pergunta à qual nunca irei NUNO FERREIRA SANTOS teme que as suas correcções “possam responder. Se estivesse lá inteira, se- alterar a fórmula sagrada”. É dema- ria o caos. Quero prender o leitor, siado céptica para a fé, e, no entanto, obrigá-lo a amar-me e sirvo-me de sujeita-se aos seus estratagemas, crian- todos os estratagemas. A literatura é do a sua própria oração: “Creio em o privado e o íntimo, o autêntico, silêncio. Em tudo. Em Deus Pai Todo- mas posso construir camadas sobre Poderoso e no seu único Filho, na Vir- a autobiografia.” Montar uma narra- gem Maria, nos anjos e santos, na re- tiva, mesmo usando a experiência missão dos pecados e na Vida Eterna; autobiográfica, não deixa de ser um nos ninhos de andorinhas repovoados trabalho ficcional, e Isabela fala de na primavera, na desova dos peixes um leitor que numa sessão de apre- que galgam o rio, no canto incógnito sentação do livro elogiou a sua cora- das baleias, na cópula cega dos cães gem em revelar um episódio que, diz vadios. E também na flor hipnótica ela, não foi vivido por si: “Adorei e das acácias, no pólen das margaridas, assumi. É tudo verdade e é tudo fic- no odor vespertino do alecrim e do ção. Uso a minha vida para construir rosmaninho; no negrume bravio dos outra vida. Estou aqui, este é o meu arbustos e dos pinheiros cerrados, corpo e o meu corpo está aqui para onde se acoitam os antigos espíritos tudo, amem-me, dêem-me pancada, errantes; nos cinco pontos cardeais, façam o que quiserem. Estou aqui nos cinco elementos terrenos, na inu- para fazer barulho.” merável clarividência divina da Física Há um episódio de infância, re- e da Química e dos ansiolíticos. E aci- cordado em Caderno de Memórias ma da mentira mundana, e da male- “Enquanto vivi em Moçambique, apartamento na Cova da Piedade, Tal como a personagem do livro, Coloniais, em que Isabela esbofeteia volência gratuita, creio no amor.” não tive experiência de estar a viver mas o processo de descolonização Isabela nasceu e passou a uma mulata. A impunidade é tanto numa colónia. Havia questões huma- ainda vai no início: segue-se uma infância em Moçambique e veio mais grave por saber que ela não Humor selvagem nas e morais com as quais não con- guerra doméstica entre mãe e filha: para Portugal depois da pode devolver-lhe a agressão. Esse Antes do amor, falemos de ansiolíti- cordava, em relação à maneira como uma guerra por espaço vital, que só independência — fixar-se-ia episódio é um grande momento de cos. Quando é abandonada por Da- os negros e as mulheres eram trata- terminará com a morte dos pais e a com os pais na Cova da Piedade, literatura por concentrar a aprendi- vid, o primeiro namorado, Maria das, mas não conhecia outra realida- concentração das mobílias vindas em Almada zagem do colonialismo e do seu Luísa é proibida pelo médico de sair de. Quando vim para aqui, não vi de África numa só divisão: o quarto exercício de poder. Um outro exer- à rua, por não conseguir distinguir a Almada como subúrbio. Só se tornou Império! É uma gastrectomia imo- cício de poder é nomeado em A Gor- cor dos semáforos: “O doutor pode um subúrbio quando percebi isso biliária! Mas nem assim a casa fica da, em que Maria Luísa é visitada de escrever-me num papel quando é pelos outros. Foi quando fui estudar esvaziada do seu passado. “É tudo verdade surpresa por David, depois de ele a que se avança e quando é que se pa- para Lisboa, quando fui trabalhar Isabel Figueiredo: “Ainda me dói. ter deixado. Deixou-a, mas ainda a ra?” Os próximos dez anos são des- para o Diário de Notícias. Era uma A minha mãe e o meu pai trouxeram e é tudo ficção. deseja e força-a ter sexo até ela de- pachados em duas páginas sonâm- discriminação por não estar no sítio imensas coisas de África e eu tive de sistir: “Deseja o meu desprezível bulas e telegráficas: “O médico olhou certo. Eu não era como os outros que me desenvencilhar delas. Imagina Uso a minha vida corpo que o envergonha? Use-o, en- para mim, medicou-me e entrei num apanhavam o comboio à mesma ho- alguém que amas muito e que te diz: tão, e ponha-se a andar.” limbo de onde demorei a sair. Voltei ra que eu para ir para o Estoril. Eu ia ‘Toma, estas coisinhas são para ti, para construir “Aquilo que sou faz-se sobre todos a sentir-me relativamente acordada para a outra banda, não tinha a mes- guarda isto para sempre.’ E, quando os erros”, comenta. “Com todas as em meados dos anos 90.” ma categoria. Era um lugar impuro, essa pessoa morre, o que mais que- outra vida. Estou vilezas, não apagaria nada. A única Uma das marcas de estilo de Isa- desprezível. Quando percebi isso, res é desfazer-te daquilo. Queres coisa que apagaria: um sentimento bela Figueiredo que dá a medida do comecei a identificar-me. Esse lugar refazer tudo. O quarto Império exis- aqui, este é o meu de culpa e de inferioridade. Eu não seu sentido de humor selvagem são era como eu.” tiu mesmo. Quando a minha mãe me deveria ter ferido com o que os os paralelismos sádicos: Maria Luísa Falemos de Almada: “Acabei os morreu, meti as coisas todas dela corpo e o meu outros pensavam de mim. Mas se sofre um desgosto amoroso e no pa- estudos no Colégio Nun’Álvares, em num quarto. Não se podia entrar lá. apagasse isso nunca teria escrito.” rágrafo seguinte o seu pai sofre tam- Tomar, e não tinha para onde ir e Os móveis ficaram encostados uns corpo está aqui A Gorda é um cometa. Não um que bém um “grande desgosto com a uma prima afastada da minha mãe aos outros como sardinhas em lata, acabou de passar, mas um que esta- derrota de Cavaco Silva nas legisla- dispôs-se a receber-me em sua casa, para que eu pudesse viver no resto para tudo, va há muito tempo escondido, ainda tivas”. Outro paralelismo sádico nu- no Feijó. Os filhos dela são as pesso- da casa. Hoje em dia o quarto Impé- a fumegar e a gerar trepidação na ma só frase: “Matar-me seria um as com que me dou aqui. Quando os rio é onde fica o meu quarto!” amem-me, superfície da vida privada. Existe um grande desperdício, avaliando o in- meus pais regressaram, compraram “O que mais me custou foi o sacri- precedente? Isabela tem uma afini- vestimento já realizado.” Outro ain- a casa na Cova da Piedade. Quando fício que a minha mãe fez para trazer dêem-me dade com Adília Lopes: “Ela escreve da: “O David está com os pais na sua vim para aqui, gostei. Era um espaço aquelas coisas. As humilhações por sempre no fio da navalha. Assim co- casinha na Arrentela e a mamã pe- onde era possível viver anonimamen- que passou. Foi sangue, suor e lágri- pancada, façam mo hoje se fala do Fernando Pessoa, diu-me que descascasse os marme- te. Era muito grande, havia muita mas. Como é que se tem coragem? daqui a uns anos irá falar-se da Adília los.” E de entre dezenas e dezenas gente, uma grande mistura de cores Tem de ser. Também tive de deitar o que quiserem. Lopes. Fará parte do programa do deles, só mais um, provavelmente e eu gosto de caos, não gosto de coi- fora coisas que foram preciosas para 12.º ano, no exame nacional. Mas o mais sádico, em formato de diálo- sas arranjadinhas, fico logo a pensar mim. Se calhar, a gordura foi impor- Estou aqui para ainda é cedo.” Isabela é professora go. Na sequência de um aborto, uma quanto é que isso me vai custar.” tante para a minha construção como de Português na Escola Secundária médica com cara de menina diz: A casa da Cova da Piedade é, des- pessoa. Se calhar, foi importante pa- fazer barulho” Fernão Mendes Pinto, em Almada, o “Vista-se, enquanto eu chamo o seu de o início do romance, uma casa- ra me proteger. Se calhar, foi a minha que só torna mais divertido o efeito marido.” Maria Luísa: “Não tenho fantasma. É também uma casa obe- almofada. E, no entanto, tive de dei- de borrasca do seu trabalho na lite- marido.” Médica: “Então chamamos sa, dela transborda tudo o que os tá-la fora para viver.” ratura portuguesa. Terá sido por isso quem? Maria Luísa: “Chamem-me pais trouxeram da casa da Matola, Conto a Isabela Figueiredo que incomoda, depois ficamos a pensar, que chegou tão tarde? “O que eu que- um táxi, por favor.” em Moçambique. Há um filodendro na véspera tive um sonho em que aquilo fica a agir. Quando escrevo, ria escrever não tinha lugar na lite- As personagens de Isabela não que alastra pelas quatro paredes da também fazia uma entrevista, e que penso que estou a escavar no que ratura. Nos anos 90 enviei um origi- têm auto-estima e não parecem ter sala, um nicho de caladium, troncos a entrevistada, , usava está escondido, lá no fundo, e eu nal a uma grande figura da língua vida própria. Há uma força que as do Brasil, vasos de erva-da-fortuna uma máscara para não ser reconhe- preciso de mostrar. Sou mais autên- portuguesa que me respondeu a di- comanda e essa força são os outros. (tudo contrabandeado de Moçam- cida. “Isso é muito psicanalítico”, tica. Procuro relacionar-me comigo zer que aquilo não prestava para na- Estão submetidas a uma voz de co- bique em bolbo ou estaca, as raízes diz. Acrescenta que faz psicanálise como gostaria de me relacionar da. Se calhar não prestava mesmo. mando que irremediavelmente se “envolvidas em algodão húmido, de grupo, num grupo só de mulhe- com os outros. A psicanálise de gru- Mas naquilo que lhe enviei estava o encontra fora de cena. Vivem na pe- embrulhado em pano, depois em res: “Fazemos análise umas às ou- po é um trabalho de interacção so- gérmen do que queria escrever.” E riferia, em “ambientes em que não plástico” dentro de latas ou frascos). tras. Às vezes é muito incómodo, cial, tem que ver com estar em so- ter a fama de Madonna, a ponto de tem de se ser nada”, como explica Dão à casa a aparência tropical de porque elas me interpelam naque- ciedade, que é o que mais detesto. se ver na obrigação de sair à rua de Isabela. Uma vida não vivida, que uma estufa húmida. les sítios que prefiro não partilhar. Tenho de fazer um esforço. É uma máscara? “Agrada-me a ideia de ser só se torna vida a partir do momen- A opulência colonial da casa na Não sou totalmente honesta. Aqui- espécie de fisioterapia, obriga-me lida e de ser amada através da leitura, to em que é contada? Matola é reduzida ao exílio num lo é um bocado xamânico. Primeiro a fazer ginástica social. Tento es- mas gosto muito do anonimato.”

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POLICERELOGIOSACESSORIOSPORTUGAL POLICELIFESTYLE.COM Um festival de “agitação Luís Miguel cultural” para devolver Oliveira o público ao cinema A partir de amanhã, a terceira edição do Porto/Post/Doc mostra o que de melhor Era uma o “cinema do real” tem. Por Jorge Mourinha

NFACTOS/PEDRO GRANADEIRO vez no

um momento em que se sala é um motivo de alegria.” Brasil fala tanto dos festivais de O objectivo continua a ser fazer cinema como um crescer o público do festival - que “problema” que afecta o este ano tem um programa mercado da distribuição ambicioso com uma centena de N e exibição, é refrescante filmes, com três títulos olhar para um evento que quer ser portugueses entre os 13 escalados parte da solução. A entrar na para a competição - Eldorado XXI terceira edição, o Porto/Post/Doc, de Salomé Lamas, Ama-san de que arranca sábado (26) no Rivoli Cláudia Varejão e Tarrafal de Pedro e Passos Manuel e se prolonga até Neves. Mas esse crescimento de 3 de Dezembro, quer ser mais do público não pode ser feito de que apenas uma mostra de “qualquer maneira”, nas palavras “cinema(s) do real”: quer ser um de Dario Oliveira: “Não queremos momento de “agitação cultural”, o filme-panfleto, nem a ‘linha dura’ de “interrogação contínua” nas do documentário comprometido. palavras do director Dario E também não queremos replicar o Oliveira. “Um festival com uma Doclisboa, que para nós é o melhor programação de excelência” que e mais representativo evento do “tem de cumprir uma obrigação género; caminhamos lado a lado, muito difícil”, como diz: “fazer isto não é uma competição. A com que as pessoas venham, nossa abordagem é outra, tenham prazer, e queiram voltar. mostrando filmes que exploram Com o esvaziamento das cidades, um outro tipo de abordagem do também o público dos cinemas real, uma linguagem muito desapareceu e em particular no próxima do documentário em Porto. E fazê-lo voltar só mesmo filmes que por vezes não o são, com um festival. Perdeu-se o acompanhada por uma reflexão hábito do convívio, do estar em sobre aquilo que é urgente grupo para ver filmes. Mas isso mostrar.” não nos demove.” Uma reflexão que passa, nas Prova dessa “teimosia” é que a palavras de Oliveira, pela tal associação responsável pelo “interrogação contínua sobre certame - e que se chama também onde está o real, o espírito, a Porto/Post/Doc - mantém, desde ciência, a razão, os sentidos”: “O 2014, uma programação semanal cinema não está morto, e é no Passos Manuel sob o genérico secundário se é feito em película Há Filmes na Baixa! “É um ou com câmaras Go Pro: são trabalho complicado”, diz o meras ferramentas de criação de responsável, “mas para além dos novas linguagens dentro de uma nossos sócios, que já forma de expressão artística muito ultrapassaram a centena e que importante na cultura popular. As vêm sempre, cada vez mais temos regras do jogo mudaram, e é um um público universitário que pouco difícil definir o que vamos redescobriu o prazer das fazer nos próximos anos. Mas conversas à volta do cinema e fica vamos caminhando consoante no fim das sessões. Esgotar uma aquilo que for acontecendo.”

10 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 ryk Rocha, nascido em 1978, lho, foi um precursor do Cinema do Rio de Janeiro é directamente Ambiciosa é filho de Glauber Rocha, Novo, em filmes como Rio 40ª, em Composto por referido como um dos filmes que tentativa de porventura o mais mundial- meados dos anos 50, e nos anos 60 todos reconheceram como um mente célebre cineasta bra- assinou Vidas Secas, um “clássico” imagens de marco a indicar o caminho. Mas, “história do sileiro da sua geração, a do desse novo cinema), Paulo Cézar arquivo, retiradas tal como nas contemporâneas re- E Cinema Novo lançado no Saraceni, Ruy Guerra, Carlos Die- voluções da modernidade que cinema por ele princípio dos anos 60. Como cine- gues, Joaquim Pedro de Andrade, aconteciam na Europa (e a influên- asta, tem trabalhado a sua filiação, Leon Hirszman, Walter Lima Jr, en- aos filmes ou a cia da Nouvelle Vague e dos Cahiers próprio”, Cinema quer biológica quer simbólica, co- tre outros. A montagem segue uma é também explicitamente referida), Novo, de Eryk mo uma coisa inescapável. É dele estrutura ordenada no relato da intervenções o Cinema Novo escolhia os seus “Rocha que Voa, um filme de 2002 explosão e dissolução do movimen- antecessores - esses grandes, e se- Rocha, inaugura sobre o pai Glauber, e que na altu- to, mas isso não a impede de pro- televisivas mi-esquecidos, cineastas brasilei- ra foi mostrado em Portugal no curar associações temáticas: o fil- ros dos primórdios, anos 20 e 30, o Porto Post Festival de Cinema Luso-Brasileiro me começa, por exemplo, com de cineastas, Humberto Mauro, Mário Peixoto, Doc, sábado. Dá de Santa Maria da Feira. O Porto vários excertos, retirados a vários muito em linha com o mais moder- Post Doc permite vê-lo outra vez filmes, mostrando, genericamente, Cinema Novo dá no cinema da época mas plena- vontade de ver, (Rocha que Voa passa no Rivoli, dia gente a correr, o que instaura um mente “integrados na realidade 28, às 16h30), bem como os seus sentido de urgência que imediata- imagem e voz cultural brasileira, e de quem Eryk rever, descobrir ou outros filmes, no quadro de uma mente transmite a ideia do Cinema Rocha monta excertos dos filmes secção chamada Foco Eryk Rocha. Novo como uma inevitabilidade, o a um elenco vasto mais célebres, Ganga Bruta (Mau- redescobrir, uma E entre esses outros filmes, vale a resultado de uma acumulação de ro) ou Limite (Peixoto). serie de obras que pena destacar o mais recente, Ci- energia que tinha que desembocar Um dos cineastas mais sui generis nema Novo (que é mostrado na noi- nalguma coisa - e essa sequência do movimento, Leon Hirszman, para o espectador te do primeiro dia do festival, 26, inicial culmina com a imagem de enuncia a ambiciosa tarefa a que às 22h00, no Rivoli), ambiciosa ten- uma derrocada, como se ímpeto todos se propunham: a síntese “do português tativa de “história do cinema por criativo dos cineastas do Cinema neo-realismo, do cinema revolu- permanecem ele próprio”, centrada nos anos da Novo implicasse também algum cionário soviético e do grande es- explosão do Cinema Novo. tipo de destruição. E implicava: a pectáculo americano”. Esse foi o essencialmente Profusamente ilustrado, e intei- destruição da falsidade do cinema desígnio comum, suficiente, como ramente composto por imagens de brasileiro “oficial”. Como diz algu- alguém diz, para “unir” um grupo desconhecidas. arquivo, retiradas aos filmes ou a res Glauber, a questão era “inte- de gente de origens e personalida- intervenções televisivas dos seus grar” o cinema brasileiro “na sua des muito diversificadas. E duran- principais cineastas, Cinema Novo realidade cultural”, de que ele se te algum tempo, o esforço foi co- dá imagem e voz a um elenco vasto: tinha afastado ou ostensivamente mum e colaborativo, com convívios Glauber, claro, mas também Nelson ignorava. O Rio 40ª de Pereira dos frequentes e quase todos a traba- Pereira dos Santos (que, mais ve- Santos, filmado em 1955 nas favelas lharem nos filmes de quase to-

Cinema Novo dá imagem e voz a um elenco vasto: Glauber, Nelson Pereira dos Santos, Paulo Cézar Saraceni, Ruy Guerra, Carlos Diegues, Joaquim Pedro de Andrade

deste anúncio na bil (válidoo com a apreseapresentaçãontação deste anúncio na bilheteira do Teatro da Trindade INATEL)

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 11 dos. Alguém aponta um fim preci- so para esse tempo: o golpe de 1964 que instalou a ditadura militar e endureceu as próprias condições necessárias a um “realismo cultu- ral”. É o momento em que o Cine- Os filmes que ma Novo passa de grande experi- ência colectiva a uma experiência individual, com as idiossincrasias de cada um a tomarem a primazia. É, mais ou menos, o momento em mais ninguém faz que o filme de Eryk Rocha termina, com um atmosfera um pouco cre- puscular, como um “fim de um so- Sensory Ethnography Lab nho”. É pena - percebe-se a opção pelo enfoque num núcleo duro do Cinema Novo, mas é pena - que não um espaço, com uma quantidade nessa confluência pluridisciplinar. tenha espaço para focar as ondas O Porto/Post/Doc aponta o holofote pequeníssima de equipamento, O entusiasmo de Paravel e Castaing- de choque geradas por esses filmes que tem sido usado por algumas Taylor é palpável, mesmo por e esses cineastas no próprio cine- ao centro criativo da universidade pessoas para tentar fazer coisas escrito: “Escolhemo-la porque ma brasileiro, nessa espécie de (principalmente filmes e videos). achamos o trabalho dela “subterrâneo” do Cinema Novo de Harvard que abriu novas portas para Mas não é tão original ou produtivo sublimemente belo,” dizem. “É, que foi o chamado “cinema margi- como as pessoas de fora parecem certamente, formalmente muito nal”, o “cinema da Boca do Lixo”, o documentário. Mas quem o dirige não por vezes supor - e também tem diferente da maioria do nosso de os filmes de Rogério Sganzerla e ajudado a criar uma boa muitas maneiras: ela usa Júlio Bressane na cooperativa Bel- gosta dos holofotes. Jorge Mourinha quantidade de tralha.” entrevistas, intercala-as com planos Air, Oswaldo Candeias, a insolência Não se trata apenas de “estar a de paisagens ou de actualidades. E trash de Mojica Marins - tudo coisas fazer género”. Quando Castaing- também usa música. Mas o nosso que começaram a acontecer ainda ualquer discussão do que FOCO SENSORY Taylor acompanhou Leviathan ao trabalho também não é todo durante o espectro temporal co- é o documentário ETHNOGRAPHY LAB Indie em 2013, já revelara ao idêntico. E as suas afinidades e berto por “Cinema Novo”, que vai, contemporâneo, ou dos PÚBLICO a sua reticência em falar diferenças com o nosso trabalho grosso modo, até 1970. seus percursos em Sweetgrass / 2009, de Ilisa da produção do SEL, explicando não são para aqui chamadas, Em todo o caso, no perímetro direcção às experiências Barbash e Lucien Castaing-Taylor, que os seus integrantes (tanto porque não estávamos a pensar temático que escolheu, Cinema No- Qformais e narrativas dos quinta 1 às 16h30; Manakamana professores como alunos) não nisso quando a escolhemos. Não vo é um documento bastante com- “cinemas do real”, tem de passar / 2012, de Stephanie Spray e eram cineastas profissionais ou sabemos se, ou como, ela é uma pleto e sempre interessante, e a sua pelo trabalho que o Sensory Pacho Velez, sábado 3 às 14h30; académicos convencionais. Apenas influência ou uma companheira de judiciosa escolha do material em- Ethnography Lab (SEL) tem Leviathan / 2012, de Verena “gente que quer fazer qualquer viagem; sabemos apenas que pregue, reunindo excertos de fil- levado a cabo ao longo da última Paravel e Lucien Castaing-Taylor, coisa”, apostada em registar os estamos completamente fascinados mes muito famosos e de filmes bem década. Este laboratório ligado à sábado 3 às 19h. traços “liminais”, intangíveis da pelos seus filmes.” mais obscuros, cria uma sensação Faculdade de Antropologia da CARTA BRANCA JANA realidade, sem se sentirem O convite original da de continuidade plenamente de Universidade de Harvard, dirigido SEVCIKOVA espartilhados pelas convenções organização para esta carta branca acordo com o espirito retratado pelo britânico Lucien Castaing- tradicionais do registo documental: abria-se a dois ou três cineastas pelo filme. E mais, cumpre um ob- Taylor (n. 1966), tem levado a The Old Believers / 2001, quarta fazer “os filmes que mais ninguém europeus, mas através de um jectivo essencial: dá vontade de ideia de cinema documental e 30 às 18h30; Jakub / 1992, sexta faz”, como nos disse então concurso de circunstâncias, os ver, rever, descobrir ou redesco- etnográfico a limites 2 às 16h30; Lean a Ladder Castaing-Taylor. Leviathan responsáveis do SEL optaram por brir, todas aquelas obras, que para experimentais invulgares, através Against Heaven / 2014, domingo acompanhava uma campanha de se concentrar na documentarista o espectador português, de um mo- de filmes como People’s Park 3 às 16h30. pesca no Atlântico através dos checa, também porque “o trabalho do geral, permanecem essencial- (2012, Cohn/Sniadecki), Todas as sessões decorrem no Rivoli registos de uma série de câmaras dela é menos conhecido do que os mente desconhecidos. Manakamana (2012, Spray/Velez) fixas instaladas num barco de New outros nomes em que tínhamos ou Sweetgrass (2009, Barbash/ Bedford, filmados sem intervenção pensado”. Sevcikova - que estará Castaing-Taylor). São alguns dos humana. People’s Park era um no Porto a acompanhar o festival objectos mais fascinantes do “carta branca” seleccionada por plano único de 75 minutos filmado - tem apenas sete filmes feitos cinema de não-ficção do século Castaing-Taylor e por Véréna em tempo real numa tarde de desde 1981, muitos deles exigindo XXI, outras formas de olhar para a Paravel (n. 1971), professora domingo num parque de Chengdu, longuíssimos tempos de pesquisa e realidade que tornam inevitável o associada do centro, dedicada à na China. Manakamana alinha rodagem, e a dimensão interesse de um festival como o checa Jana Sevcikova. No entanto, viagens em tempo real num inteiramente independente da sua Porto/Post/Doc pela produção do quando abordamos a importância teleférico montanhês no Nepal. produção tem-na tornado numa centro. do trabalho do laboratório no Alguns destes projectos, que se espécie de segredo bem guardado. O SEL é, então, alvo de foco na documentário recente, Castaing- prolongaram para exposições ou “Os seus filmes são edição 2016 do certame portuense, Taylor e Paravel pensam, instalações artísticas em ambientes simultaneamente líricos e realistas inspirando o programa de debates “honestamente”, que o SEL tem museológicos, não foram de um modo que é exclusivamente sobre o “cinema sensorial” Forum “tido mais atenção do que forçosamente pensados para dela,” prosseguem Paravel e do Real (a decorrer na sexta, no merece.” Chegam até a dizer que exibição comercial - Castaing- Castaing-Taylor no e-mail. “Oscilam Leviathan, que acompanhava café-concerto do Rivoli), e exibindo “seria provavelmente mais Taylor falava até da surpresa de ver entre o transcendental e o uma campanha de pesca no três das longas produzidas no saudável que fechasse.” um filme como Leviathan ser terrestre, o sagrado e o profano, Atlântico, tornou-se no “cartão laboratório (Sweetgrass, As declarações chegam por distribuído (como foi). Trata-se, de um modo que quase não tem de visita” do laboratório Manakamana e Leviathan) e uma e-mail, em pleno processo de essencialmente, de usar as novas precedentes. Alguns dos montagem de Somniloques, o tecnologias para fazer um novo momentos de Old Believers, próximo trabalho da dupla cujo tipo de etnografia para os tempos rodado ao longo de cinco anos Leviathan, estreado em Locarno modernos - capturar em âmbar sobre emigrantes russos ortodoxos em 2012, se tornou no “cartão de momentos específicos de uma que fugiram à perseguição visita” do laboratório (e ganhou cultura, numa “amostragem” religiosa do século XVII e se inclusive o prémio de Melhor Filme pluridisciplinar na confluência da instalaram no delta do Danúbio, no Indielisboa em 2013). A arte, da etnografia, da antropologia são talvez o mais próximo que relutância em assumir o cargo de e da historiografia. chegámos de ver o espiritual “porta-voz” de uma estrutura com Será isso que explica a escolha capturado em filme. São tantas ideias quantas cabeças pelo SEL da checa Jana Sevcikova alucinatórios, e completamente envolvidas é explicada assim por (n. 1953) para a carta branca que o transfigurativos.” Mesmo que Paravel e Castaing-Taylor: “As Porto/Post/Doc lhes abriu? Afinal, Verena Paravel e Lucien pessoas parecem ter a impressão os seus filmes, que investigam as Castaing-Taylor não se sintam que o SEL é um grande centro de vidas de comunidades étnicas da confortáveis a dizê-lo, dizemo-lo produção cultural - mas na verdade Europa de Leste perdidas nas nós: podiam estar a falar de uma é minúsculo, mal financiado, não é vicissitudes geográficas da história produção do SEL. Filmes como um programa institucional. É só do século XX, funcionam também mais ninguém faz.

12 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 1 Dezembro quinta, 21:00 — M/6 Angélique Kidjo Eve

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

mecenas mecenas mecenas mecenas mecenas mecenas principal estágios gulbenkian para orquestra música de câmara concertos de domingo ciclo piano coro gulbenkian gulbenkian música gulbenkian.pt/musica Sociedade de Advogados, SP RL mmmmm História A Infância de Um Líder The Childhood de um of a Leader De Brady Corbet pequeno Com Robert Pattinson, Liam Cunningham, Stacy Martin, monstro Bérénice Bejo ó pelo nome, Brady Corbet exemplo, quando a câmara revela Chef). Apesar dos pozinhos reconhe- (como na célebre designação de talvez não desperte nenhu- Michael Myers em criança) do que civelmente históricos, como o cita- Paul Schrader) como um momento ma lembrança especial. propriamente um estudo histórico do fait divers da infância de Musso- decisivo da sua vida — menciona Mas qualquer espectador fundamentado. É o limite de um fil- lini, ou as fardas castanhas com Dreyer, menciona Bresson, mencio- atento ao cinema america- me que à força de ser alusivo se tor- braçadeiras vermelhas da sequência na a sensação de “libertação da câ-

VINCENT KESSLER / REUTERS VINCENT KESSLER S no dito independente da na apenas vago, e que pela insistên- final, Corbet não queria ficar colado mara” que encontra no cinema eu- última década já se terá, em princí- cia no inexplicado acaba por ficar à História. Não queria fazer “o ené- ropeu mais do que no americano. pio, cruzado com ele. Muito jovem, apenas com sugestões explicativas simo filme sobre Hitler ou Mussoli- Melhor será pensar que isso estava e enquanto adolescente, vimo-lo demasiado simples, como os traços ni”, queria construir “uma alego- na cabeça de Corbet mais como ele- como o garoto protagonista de Mys- de carácter inatos e a “excepciona- ria”, ou “uma leitura poética da mento para a pintura de ambientes terious Skin, de Gregg Araki, e um lidade” monstruosa. História”. E que as personagens fos- do que enquanto motivo estilístico par de anos mais tarde como um dos “Mussolini, em criança, gostava sem “suficientemente vazias” para (porque obviamente o filme nada “hooligans” do remake americano de apedrejar os padres que saiam que o espectador “projectasse ne- tem de bressoniano ou dreyeriano, que Michael Haneke fez do seu da igreja”, conta-nos Corbet, e isso las” os seus próprios “fantasmas e o que nele há-de singular vem do Funny Games. Um pouco mais velho, é a base de uma das cenas do filme, históricos”. facto de parecer um objecto de co- também o vimos, com papel desta- quando o jovem Prescott (assim se pismo compósito, um pastiche ge- cado, no Martha Marcy May Marlene chama o “líder”) faz o mesmo. A Personagem vazia nérico, que se torna curioso por No centro, um de Sean Durkin, e nos últimos anos, conversa com Corbet decorreu em O centro — mesmo quando está au- isso mesmo). Na cabeça do espec- aproximando-se do cinema euro- Janeiro, o filme foi estreado em 2015, sente, e em muitas cenas está — é o tador, fica, isso sim, a espantosa pequeno futuro peu, em pequenos papéis em filmes não havia Trump nem na cabeça do pequeno futuro lider, e esse é o exem- partitura de Scott Walker: “Parecia de Olivier Assayas, Bertrand Bonello entrevistador nem na do realizador plo perfeito de uma “personagem impossível, mas ele aceitou logo; o líder, um olhar ou Mia Hansen-Love. Com A Infância — o que talvez fosse diferente se a vazia”, e de um olhar vazio que pode problema é que passaram anos des- vazio como a de um Líder passa para o outro lado conversa acontecesse agora, até por- ser a expressão de um Mal absoluto, de que ele disse ‘sim’ e o momento das câmaras, e é uma estreia a que que há uma cena, quando Prescott a crescer e a solidificar. Tom Sweet (é em que o filme se pôde de facto fa- expressão do Mal não falta ambição: um retrato, abs- “agarra” a tutora (Stacy Martin) pe- o nome do actor) foi um achado e é zer, mas foi fiel à palavra dada — se tracto mas fundado em figuras e la mama, que muito lembra o já fa- realmente impressionante, tanto não pudesse ter a música dele a me- absoluto. Estreia acontecimentos reconhecíveis, da migerado “grab’em by the pussy”. mais que o filme lhe pede coisas que lhor opção era não ter música ne- na realização do “formação” de um ditador na Euro- Deixemos as coincidências entre- normalmente não se pedem a acto- nhuma”. A partitura de Walker faz pa dos anos 30. Não, é contudo, uma gues às coincidências, até porque res-crianças: “os pais dele são artis- meio filme, não se leva a mal que actor americano questão essencialmente política, e Corbet, conta ele, vivia com a ideia tas, portanto perceberam bem o que Corbet se “encoste” a ela em várias a ideologia é apenas levemente aflo- de um filme sobre o período “inter- estava em causa, e aceitaram facil- sequências, nem que muito do élan Brady Corbet, rada. O que interessa a Corbet é a bellum” na Europa desde o fim da mente, mediante um conjunto de de A Infância de um Líder venha da psicologia, interrogar o que é que adolescência (“devia ter uns 16 ou regras, um número fixo de horas de música: há naquelas cadências re- inspirado por faz com que uma criança cresça do- 17 anos”), quando leu um livro (de trabalho por dia, etc; mas o princípio petitivas e galvanizantes um simu- uma certa ideia tada dos atributos psicológicos de Margaret McMillan) sobre as nego- foi sempre tratá-lo como os actores lacro perfeito (e por isso, assusta- um autocrata ditatorial. É por isso ciações para o Tratado de Versalhes. adultos, deixá-lo ter uma voz”. dor) do poder hipnótico, subliminar de cinema que “A Infância de um Líder” lembra Mais tarde descobriu um conto de Sendo semi-europeu, relatando dos arsenais simbólicos e coreográ- mais um filme de terror do que uma Jean-Paul Sartre que lhe deu a pista ambientes e histórias europeias, A ficos dos totalitarismos mais céle- europeu: A ficção política, e está mais próximo narrativa que mais fortemente se- Infância de um Líder também deno- bres. É possivelmente a coisa mais Infância de um de uma daquelas fantasias com guiria para a escrita do argumento ta, estilisticamente, uma influência notável de A Infância de um Lider — monstros infantis (como o início do (deu-lhe também o título: o conto europeia. Corbet refere a descober- tornar a composição musical para Líder. “Halloween” de Carpenter, por de Sartre chama-se L’Enfance d’un ta do “cinema da transcendência” cinema “great again”. Luís Miguel Oliveira

14 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 poiler: AH/ HA é uma perfor- uniforme. Sem som dá mais espaço ao Mariana mance sobre o riso, mas são espectador para observar; o som e as poucos os momentos em que palavras apelam imediatamente ao ra- Duarte os cinco intérpretes se riem. cional. Mas claro que no início isso dei- Um paradoxo, à primeira vis- xou os bailarinos em pânico.” Em AH/ HA, S ta, mas que faz todo o sentido nas mãos de Lisbeth Gruwez (n.1977), Dar o salto Lisbeth Gruwez coreógrafa e bailarina belga para quem À boleia do riso, este espectáculo é um a estranheza é um modo de superação. exercício de sobrevivência social. Os baralha Esta sexta, no Teatro Municipal Campo cinco intérpretes são “cinco inadapta- Alegre, Porto, apresenta AH/HA — e o dos”, diz a coreógrafa, que se vão tor- aquilo que que se passa em palco é um grande pe- nando num grupo ao longo da perfor- daço dela própria mance. “Primeiro começa a intimidade, normalmente Foi há dez anos que decidiu des- depois há a vergonha, de seguida as pensamos sobre prender-se das amarras (e do ego) da partes que funcionam como pinturas, estrela belga das artes performativas em câmara lenta, como se estivéssemos o riso. Esta sexta, europeias, Jan Fabre, de quem era a tirar as máscaras”, descreve. Uma intérprete-fétiche, e criar a sua própria história que tem muito de Lisbeth no Teatro Campo companhia, Voetvolk, com o músico Gruwez lá dentro: AH/HA é o seu cam- Alegre, no Porto, Maarten Van Cauwenberghe. AH/HA é po de batalha. “Para mim é difícil fazer o segundo capítulo de um tríptico sobre parte de um grupo. Tenho de me esfor- a coreógrafa o corpo em êxtase, que arrancou com çar todos os dias para não cair num o solo It’s going to get worse and worse estado de desconexão. Às vezes as coi- belga mostra and worse, my friend, centrado na di- sas são tão assustadoras que queres mensão obsessiva e manipuladora do enfiar um capacete na tua cabeça”. a estranheza discurso e inspirado no “televangelista” E, para Gruwez, era profundamente como modo de ultraconservador Jimmy Swaggart (Te- assustadora a ideia de trabalhar com atro Maria Matos, 2013), e que encerrou vários intérpretes. AH/HA é a sua pri- superação. com o mais recente trabalho da coreó- meira coreografia de grupo e serviu-lhe grafa, We’re pretty fuckin’ far from okay, para desbloquear uma série de fobias, sobre o medo e os seus instintos irra- numa criação-terapia-purgação. “Eu cionais, apresentado no Festival faço uma peça porque tenho um pro- d’Avignon deste ano. blema para resolver. Para mim o AH/ “Só decidi que era um tríptico quando HA foi aprender a ultrapassar esta in- O riso é um terminei a última peça. Olhei para trás trospecção, a fazer parte de algo e a e pensei: ok, estes três trabalhos podem trabalhar com mais pessoas.” ser vistos como peças comportamentais Acabou tudo bem. AH/HA está em sobre o corpo extático”, conta. “Êxtase tour há dois anos (“já somos uma famí- campo significa estares fora de ti, um momen- lia”), o próximo trabalho de Gruwez é to em que as coisas à tua volta desapa- com dez intérpretes, sem ela no elenco, recem, quando o futuro e o passado não e este ano começou a dar workshops, estão lá. E o que tento fazer nestas três coisa que antes a deixava “em pânico”. peças é tentar controlar este ‘estar no Para dar este “salto”, a coreógrafa belga de momento’”, desenvolve, acrescentando seguiu à risca o lema da sua companhia, batalha que outro dos elos de ligação é a sua “atirar o corpo para a linha da frente” “necessidade em fazer uma dança fron- (uma variação, pelos vistos involuntá- tal”, que puxe pelo público. ria, da máxima de Pier Paolo Pasolini, Em AH/HA, performance de 2014 on- “atira o teu corpo para a luta”), num (mas teremos de entra também como intérprete, Lis- processo que incluiu matar psicologi- beth Gruwez desnaturaliza a linguagem camente o seu mentor, Jan Fabre. corporal ligada ao riso, desprograman- “Sentia-me usada, furiosa. Pensei: do o que pensamos sobre ele. Fá-lo, vou atirar o meu corpo para a linha da sobretudo, eliminando o som. Em boa frente, fazer o meu próprio trabalho”, sempre Lionel parte do espectáculo, os bailarinos mo- diz Lisbeth Gruwez, que chegou a ter vem-se como se se estivessem a rir, mas uma aventura no cinema (Lost Per- mudos. Curvam-se, abanam a cabeça, sons Area) e na música, no videoclipe põe a mão no peito, entre outros movi- de Death of a Whore, de Juliette Lewis mentos que, sem o som, podem ser (Gruwez é o esqueleto). Demorou al- Richie) interpretados de várias formas, algumas gum tempo a sacudir “aquela energia delas pouco associadas à ideia primária masculina” e a descolar-se da sua ima- de riso. Tanto parecem estar em agonia gem, nua, de Quando l’uomo principa- (evocam O Grito, de Munch, e pinturas le è una donna, solo criado por Jan Fa- de Matthias Grünewald) como a ter um bre, mas já se viu “livre disso”. Ou qua- LUC DEPREITERE LUC orgasmo, a resvalar para um ataque de se: apesar de ter um corpo de trabalho ansiedade ou a ter uma trip que não vai sólido, muitos jornalistas insistem em acabar bem. perguntar-lhe “repetidamente” pelas O desconforto no espectador vai influências de Fabre, nesse gesto muito crescendo, e só é aliviado quando os habitual e sistemicamente patriarcal bailarinos decidem rir-se — mas tão de tentar justificar o trabalho de uma maniacamente, freneticamente, gutu- mulher com o de um homem. ralmente, distorcidamente, que a es- Mas, no final do dia, Lisbeth Gruwez tranheza volta a instalar-se num ápice. é uma optimista. “Acredito no ser hu- O timing dramatúrgico é conferido pe- mano e no amor”, diz — e talvez tenha la composição musical de Maarten Van sido por isso que escolheu Hello, canção Cauwenberghe, que sublinha a preci- de Lionel Richie, para o momento final são (mas com alguma improvisação) de AH/HA. “É uma música muito pirosa da coreografia. mas que dá sentido a isto tudo. A men- Para Gruwez, todo este processo im- sagem da peça é sobre a importância de pede que o trabalho se torne unidimen- cuidarmos uns dos outros”. Um recado sional, dando-lhe “conteúdo”. “Decidi aparentemente elementar, mas que com tirar o som na maior parte da peça por- os episódios recentes, do Brexit à elei- que a certo ponto mexeu-me com os ção de Trump, parece de urgência má- nervos estar a ouvir risos constante- xima. Porque, como diz Gruwez, ”we’re mente”, confessa. “E era demasiado pretty fuckin’ far from okay”.

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 15 uando a revista Provoke co- da. Hoje são olhados como uma das Decretou o fi m meçou a ser distribuída no primeiras obras inspiradas naquela da linguagem final de 1968, Nobuyoshi revista-meteorito, que começou a Araki já trabalhava como ganhar forma na cabeça Takuma fotográfi ca e fotógrafo. Aquilo que viu Nakahira, em 1967. Qimpresso, o que leu sobre Com apenas três números (e um contestou o fotografia e sobre o papel de fotó- livro/manifesto de despedida), pu- grafos e de outros fazedores de ima- blicados entre Novembro de 1968 seu poder de gem despertaram nele um senti- e Março de 1970, a Provoke, diz representação. mento imediato: inveja. Araki, hoje Araki, “teve o efeito de uma bom- um dos nomes da fotografia japone- ba, um maremoto subterrâneo Em três números, sa mais conhecidos internacional- nascido de uma radicalidade abso- mente, percebeu que o que tinha luta”. Apesar de um alcance limi- a revista japonesa em mãos representava uma facada tado na época (não tinha a massi- Provoke propôs- na maneira como a criação fotográ- ficação como objectivo, cada fica vinha sendo enquadrada e pra- exemplar teve entre 300 e 700 có- nos novas ticada num país que absorvia as pias), as ondas de choque que pro- profundas transformações que lhe vocou nos anos imediatamente a ferramentas foram impostas no pós-gerra. Ainda seguir tornaram o Japão um caso pensou em pedir para se juntar ao muito particular (e hoje muito ad- para sentirmos grupo, mas temeu que a “pureza” mirado em todo mundo) na pro- o mundo. Uma da revista não aceitasse um fotógra- dução fotográfica, sobretudo aque- fo de “mãos sujas”, que trabalhava la que está ligada à edição e pro- exposição e um para uma grande agência de publi- dução de fotolivros. Entendido cidade, a Dentsu. Perante este dile- durante muito tempo como um livro mostram ma, o “fotógrafo compulsivo” que epifenómeno neovanguardista, em como abanou as já era Araki depressa encontrou uma relação ao qual tanto a historiogra- solução: imbuído de uma “estética fia fotográfica japonesa como os estruturas. E como, da indigência” e de um sentido de olhares exteriores se mostraram ousadia e anarquia visuais (presen- relativamente indiferentes (os pri- na fotografi a, pode tes na imagética da Provoke) criou meiros sinais de reconhecimento os seus próprios números da revista, apareceram apenas em 2001, Tate haver um antes e cujas cópias (em fotocópia) eram Modern, Londres), o exercício es- um depois dela. feitas nos escritórios da Dentsu, on- tético e teórico operado pela Pro- de também fotografou mulheres voke é agora proclamado como um semidespidas fora de horas. E assim marco na história da imagem foto- nasceram os 25 Xerox Photo gráfica universal. Classificações (1970), com uma tiragem limitada a “redutoras” colocaram-na durante (mais ou menos) 70 exemplares ca- décadas na prateleira dos fotoli- vros de contestação, no grupo das Uma revistas militantes de baixo custo ou na extensa lista de fugazes ma- nifestações de contracultura, mais ou menos condenadas ao esqueci- mento. Na tentativa de lhe dar um “an- tes” e um “depois”, que é como quem diz, fornecer um contexto alargado no tempo e estendido a várias camadas de leitura (política, estética, social, económica, psico- lógica), a exposição Provoke: betwe- en Protest and Performance. Photo- graphy in Japan 1960/1975 (espaço Le Bal, Paris, até 11 de Dezembro) propõe um percurso inédito pela produção editorial fotográfica e pelos acontecimentos que levaram ao nascimento da revista, bem co- bomba mo às manifestações artísticas avant-garde (performance, happe- ning, teatro de rua, intermedia) que que não com ela conviveram e que continu- aram após o seu desaparecimento. Resultado de uma parceria entre quatro instituições que se têm de- dicado à investigação da prática pára de fotográfica no Japão (Le Bal, Fran- rebentar

Para os ideólogos da Provoke, a Sérgio B. fotografia “militante” e “ideológica” revelou-se incapaz de contribuir para a alteração do Gomes, rumo dos acontecimentos, como a construção do aeroporto de Narita, contra a em Paris vontade do povo 16 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 AUTOR DESCONHECIDO. PROTESTO NAS IMEDIAÇÕES DO ESTALEIRO DO AEROPORTO DE NARITA, C. 1969/ COLLECTION OF THE ART INSTITUTE OF CHICAGO Com apenas três números, entre Novembro de 1968 e Março de 1970, a Provoke “teve o efeito de um maremoto subterrâneo nascido de uma radicalidade absoluta”

ça, Albertina, Áustria, Fotomuseum Winterthur, Suíça, Art Institute of Chicago, EUA), a exposição assume- se como a primeira a dar enverga- dura internacional ao estudo da Provoke, tendo convocado ao longo dos últimos três anos dezenas de artistas comissários, críticos, his- toriadores, coleccionadores, gale- ristas e museus. Depois do Le Bal, a mostra segue para Art Institute of Chicago, última paragem deste ex- tenso trabalho que tem seguimento num livro (Provoke, Steidl, 2016), onde, para além de outros mate- riais, estão reproduzidos os três números da rara revista, bem como as traduções de muitos dos textos teóricos e poéticos que também lhe deram corpo. A obra, que tenta aproximar-se do espírito gráfico das publicações originais, inclui ainda ensaios dos comissários e entrevis- tas com alguns dos artistas que par- ticiparam na revista (Daido Morya- ma, Yutaka Takanashi) ou sonha- ram participar (Nobuyoshi Araki). Efervescência Tanto a exposição como o livro en- saiam uma abordagem multidisci- plinar que estabelece novas afini- dades e novos fios condutores e que tentam situar a Provoke num campo criativo que ultrapassa o fenómeno exclusivamente fotográ- fico como foi caracterizada. O ob- jectivo passa por compreender as razões pelas quais a revista foi tão influente no panorama criativo ja- ponês (e, mais tarde, além-frontei- ras) e porque é que representou um avanço tão significativo na

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 17 NOBUYOSHI ARAKI, S/T, 1973. © ARAKI NOBUYOSHI/COLLECTION OF THE ART INSTITUTE OF CHICAGO

Para além de fotógrafos, a Provoke reuniu escritores, críticos e teóricos de arte. Na TAKI KOJI, FOTOGRAFIA DA PROVOKE 3, 1969. © YOSUKE TAKI/PRIVATE COLLECTION TAKI/PRIVATE © YOSUKE 1969. 3, PROVOKE DA FOTOGRAFIA KOJI, TAKI página da direita, Takuma Nakahira, um dos fundadores da revista

concepção do objecto fotográfico ta corda está a Provoke, nascida contribuído uma imagem fotográ- sem passar pelos movimentos con- vam imagens vagas, indistintas e e no papel do fotógrafo. Ou por ex- num contexto de profunda desilu- fica “militante”, “ideológica” e testatários dos anos 60 que, num em tormenta que a Provoke encon- plicar “a efervescência e o radica- são, depois de quase uma década “factual”. Em alternativa, a Provoke contexto de escalada da guerra dos tra um dos seus territórios de ex- lismo” de um grupo que “contestou de violentas manifestações consi- proporá registos “subjectivos”, EUA contra o Vietname, se insur- perimentação. Outro dos eixos fun- o poder de representação da foto- deradas estéreis na consumação “efémeros” e “fragmentados” na gem contra a utilização das bases damentais é o fotógrafo Shomei grafia, ultrapassou as noções de dos seus objectivos (entre outros, tentativa de transmitir algo da ex- militares no Japão (sobretudo as de Tomatsu, figura tutelar do meio, simbolismo e de abstracção visual retirada das bases militares dos periência do fotógrafo no mundo, Okinawa). O início das expropria- cuja obra centrada na rebelião, nas para chegar ao ‘fim da linguagem EUA do Japão, fim das expropria- atendendo a que a realidade é “inal- ções em Sanrizuka, em 1966, para margens da sociedade, na presença fotográfica’”. ções, travar a poluição causada pe- cançável” na sua “complexidade” construir um novo aeroporto abre americana e em séries conceptuais Numa manhã, antes da abertura la modernização). Para este falhan- e nas suas “contradições”. Na Pro- uma nova e violenta frente de ba- como Asphalt (imagens do chão, da exposição ao público, Diane ço da luta colectiva do povo terá voke a fotografia renuncia à supos- talha. Isto, para além de toda a con- marcas e objectos nele incrustados) Durfur (directora do Le Bal e co- ta capacidade de transcrição da testação relacionada com as trans- se torna um referente. Apesar de comissária) explica ao grupo de realidade e opta por uma “estética formações sociais e a imposição de nunca ter estado ligado à revista, é convidados que a abordagem aos do flutuante”, privilegia a confusão uma american way of life em terras Tomatsu quem apresenta Taki Koji corredores pode ser feita como se e o caos. Aqui, os fotógrafos devem nipónicas. A acompanhar estes mo- a Nakahira Takuma, os fundadores, estivéssemos perante uma corda Entendido durante aspirar a ser “videntes” na tentati- vimentos, cujo epicentro se pode e estes a Moryama, um dos mais esticada. Numa ponta está o com- va de captar “alguma coisa que se situar no bairro de Shinjuku, em jovens e irrequietos do grupo, que plexo caldo político e social do pós- muito tempo como situe antes da forma” (Koji Taki). Tóquio, há um batalhão de fotógra- incluía ainda o fotógrafo Yutaka guerra que começou a levantar fer- fos (estudantes, sócios de fotoclu- Takanashi e o poeta e crítico de ar- vura com mais intensidade em epifenómeno Frente de batalha bes, fotojornalistas, artistas) empe- te Takahiko Okada e o escritor 1960, com a renovação do Tratado A consciência dessas limitações (e nhados em informar, testemunhar Yoshimasu Gozo. de Cooperação Mútua e Segurança neovanguardista, a vontade de trilhar outros cami- e mobilizar. E para atingir esse fim, Na outra extremidade da corda entre o Japão e os EUA, que criou nhos na expressão fotográfica) ex- durante a década de 60 são impres- há toda uma actividade fotográfica um gigantesco movimento de con- o exercício pressa-se assim no prefácio do nú- sos cerca de 80 fotolivros, que as- ligada às acções performativas que testação que duraria mais de uma mero 1: “A imagem em si não é uma sumem também a forma de panfle- leva a que o próprio meio comece década. No lado oposto está uma estético e teórico ideia. Não pode alcançar a totalida- tos, revistas, jornais e colagens de a “tornar-se vivo”, a enfatizar o vanguarda artística consciente da de de um conceito, nem pode ser provas originais. Conscientes do processo de criação e a experiência “vocação subversiva da arte” quan- operado pela um sinal comutativo como uma pa- poder de auto-representação sub- nele envolvida. A performance veio do se trata de “contestar institui- lavra. É materialidade irreversível.” versiva e deste “teatro revolucio- à tona na arte japonesa em meados ções, métodos e esquemas tradicio- Provoke é agora Objectivo: “Captar fragmentos da nário”, os autores põem em prática dos anos 50 e começou a ganhar nais”. Um lado que mostra a dinâ- realidade que já não podem ser al- estratégias gráficas inovadoras (re- protagonismo na década seguinte, mica das práticas performativas proclamado marco cançados com as linguagens exis- lação texto/imagem, sequências coincidindo, não por acaso, com num contexto de rebelião, a “pas- tentes.” E o subtítulo da revista é cinematográficas, enquadramentos esse período particularmente tu- sagem aos actos” contra a ordem da imagem todo um manifesto: “Materiais Pro- dinâmicos), em que os materiais multuoso, que assistiu à “despoli- estabelecida através da “invasão” vocadores para o Pensamento.” baratos e perecíveis contrastam tização do quotidiano”, ao “consu- do espaço público com espectácu- fotográfica Mas vamos à primeira ponta da com a sofisticação do layout (uma mismo lobotomizado” e ao “domí- los efémeros carregados de humor corda. Para os comissários, é difícil especificidade japonesa). É neste nio do capitalismo corporativo”. A negro, crítica e ironia. No meio des- universal conceber o surgimento da Provoke território impresso em que reina- cultura avant-garde contestava es-

18 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 SHOMEI TOMATSU, EDITOR, TAKUMA NAKAHIRA, SHINJUKU, TÓQUIO, 1964. © SHOMEI TOMATSU – INTERFACE/COLLECTION OF THE ART INSTITUTE OF CHICAGO

Galeria Torreão Nascente da Cordoaria Nacional

Exposição: 12 de Novembro de 2016 – 19 de Fevereiro de 2017 te estado de coisas, a começar pe- grafia depende inteiramente de em paralelo “a experiência do mun- Horário: de terça a sexta-feira, 10h – 13h, 14h – 18h | lo movimento Gutai (que junta pin- como esse fotógrafo viveu” (Nakahi- do e a sua representação”, num sábado e domingo, 14h – 18h (encerra segundas-feiras e feriados) tura abstracta e performance), pe- ra). Depois do fim da Provoke, su- tempo de crise do “poder consti- las exposições e teatros de rua cederam-se as afinidades da foto- tuinte” (Negri) e de transformação Avenida da Índia, Edifício da Cordoaria Nacional, Lisboa criados por bailarinos butoh (regis- grafia com a cena avant-garde, al- social e urbana materializada na tados por William Klein, já em 1961, gumas delas envolvendo autores “cidade superexposta” (Virilio). O e por Takanashi e Moryama pouco de revista. resultado das três revistas, que jun- antes da Provoke) e pelas “acções Bem situada “entre o protesto e tam reflexão e propostas de diálogo directas” de grupos como Hi Red a performance”, a Provoke alimen- pela palavra e pela imagem, está Center (de Jiro Takamatsu e Genpei tou-se abundantemente destas du- muito além de “um estilo” ou de Akasegawa) e Zero Jigen (famoso as fontes de energia para repensar “um género” que costuma ser em- pela radicalização do happening brulhado no jargão da fotografia em torno da nudez e do corpo). “rude, sombria e desfocada”, ca- Pedro Chorão Grupos que não só privilegiaram o racterísticas que não mais eram do espaço público como palco, como que a tentativa de dar forma à con- adoptaram a sintaxe performativa É difícil conceber tingência e à efemeridade. Na sua como principal arma para descons- curta existência, a Provoke tenta o que diz truir e pôr em causa o poder. Os a Provoke sem “desafixar” a fotografia, torná-la fotógrafos da Provoke giraram em um ser vivo que respira e sente, torno destas acções e adoptaram a os movimentos com todas as suas fragilidades e de- a pintura sua postura perante a realidade, sejos. Essa autoconsciência da di- concebendo a fotografia como “um contestatários ficuldade de apreender o mundo e acto de percepção” uma “arte com- de transmitir a experiência, a forma portamental que produzia imagens dos 60 que, como “indexa a derrota” (Duncan como excreções” (Koichi Kuronu- Forbes) são talvez a sua maior força ma). Esta “fotografia performativa” no contexto e a razão pela qual hoje ainda con- que marcou a produção da Provoke tinuamos a olhar para ela com es- fundação carmona e costa impelia os seus autores a “mergu- de escalada EUA/ panto e admiração (e com tantos a lharem na vida” para, através do seguir os seus passos). Ou a razão Exposição: de 23 de Novembro de 2016 até 7 de Janeiro de 2017 seu corpo transformado em câma- Vietname, se pela qual alguém com o estatuto de ra, trazerem de lá o pulsar da ex- semideus da fotografia como Daido Horário: de quarta-feira a sábado, das 15h00 às 20h00 (excepto feriados) periência. Era uma prática “tumul- insurgem contra Moryama afirma não ter ainda dei- Edifício Soeiro Pereira Gomes (antigo edifício da Bolsa Nova de Lisboa), Rua Soeiro tuosa”, no sentido político do ter- xado de fazer a Provoke, apesar do Pereira Gomes, Lte 1- 6.ºD, 1600-196 Lisboa (Bairro do Rego), Lisboa mo, que não pretendia veicular a utilização das seu fim. E isto pode querer dizer conceitos ou produzir qualquer que a Provoke não foi uma revista outro sentido que não fosse “o re- bases militares de/sobre fotografia, mas uma pro- gisto mecânico de uma presença posta de relacionamento para com no mundo”. “O valor de uma foto- no Japão o fotográfico.

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 19 Cresceram com o horizonte territorial e Francisco Vidal cultural da marginal de Cascais e Pedro Batista em fundo. Começaram no punk, skate, encontram pintura surf ou hip- hop. Agora os artistas plásticos na marginal Francisco Vidal e Pedro Batista em muitas leituras. É sobre tido geracional e o “termos crescido E a estrada marginal é o horizonte enfatizada pelo título da presente ex- a marginal de Cascais. O ei- no mesmo sítio”, para explicar o onde crescemos. Queremos que a posição — a estrada marginal que liga juntam tudo xo Oeiras-Carcavelos. Um repto endereçado. fanzine acabe por reflectir tudo isso, Lisboa a Cascais — confronta-os com isso, que nunca microcosmos cultural onde “Conhecemo-nos através da pin- o punk hardcore, a cultura do skate a percepção que muita gente ainda dois homens que já foram tura há uns dez anos”, recorda Fran- e do surf, o pulsar da rua, os anos possuiu dessa localização. “Terra de esteve desligado, T adolescentes cresceram. É cisco, revelando que para além das 1990, ou seja todo esse contexto on- betos e de gente bem”, é ainda a res- sobre punk, skate, surf, do-it-your- pinturas de cada um, existirá um de crescemos e que acabou por ser posta que obtêm quando nomeiam numa exposição self. É uma exposição de pintura de elemento importante na exposição: estruturalmente marcante, fazendo- esse território, ri-se Pedro. “Mas é conjunta dois artistas que valorizam a fisica- uma fanzine de formato A3, que pos- nos chegar até aqui.” um erro”, afirma, “porque aquilo que lidade do acto de pintar. É um diá- sibilitará ao visitante aperceber-se Francisco Vidal, 38 anos, portu- nós reflectimos é uma estrutura so- na galeria logo contextual, onde mais do que do que partilham os dois artistas. guês, filho de mãe cabo-verdiana e cial mista, que junta pessoas privile- linguagens visuais comuns, há ex- Foi a pintura que os juntou, mas an- pai angolano, residindo entre Por- giadas com bolsas de menos favore- Underdogs: periências de vida semelhantes com tes dela, viriam a perceber depois, tugal e , tendo integrado a cidos. Junta-se tudo ali. Foi essa a marcas distintas na relação e inter- tinha havido uma vivência com mui- representação deste último país na atmosfera que me marcou, essa pos- Marginal. pretação do mundo. tos pontos de contacto, ao nível do 56º Bienal de Veneza em 2015, tem sibilidade de confluência e de respei- Marginal, a exposição conjunta território da adolescência e da cul- vindo a explorar vários suportes, to pela diferença. Havia muitas coisas Vítor de Francisco Vidal e Pedro Batista, tura então experimentada. Isso está incluindo a pintura, o desenho e a a borbulhar nos anos 1990 por ali. que inaugura esta sexta na galeria inscrito na sua obra, garantem, mas instalação, que coloca ao serviço de Fomos talvez a primeira geração a Belanciano lisboeta Underdogs, prolongando-se terá uma tradução mais simples e temáticas como a miscigenação cul- receber uma série de influências glo- até 23 de Dezembro, resulta de um imediata no número zero da fanzine tural, as correntes transculturais ou bais e reinterpretá-las com um espí- desafio endereçado por Pedro a Marginal. as utopias urbanas, com a história rito do-it-yourself. Isso ficou.” Francisco. “Quando a Pauline Fos- “Na nossa adolescência a fanzine a cruzar-se com a política, em obras O que permaneceu, para além sel, da Underdogs, me convidou a era algo importante”, lembra Fran- vibrantes, emotivas e delirantes, desse movimento desalinhado e fazer uma exposição aqui sugeri, cisco. “Ainda não havia internet e para onde concluem o neo-impres- multidisciplinar onde coabitavam pouco tempo depois, fazê-la com o era a possibilidade de aceder a um sionismo, uma expressividade tão punk e hip-hop, pintura e graffiti, Francisco que aceitou de imediato”, espaço crítico. Era aquela coisa meio livre como tecnicamente precisa, e cultura de rua e determinação exis- lembra Pedro, que evoca a intuição, adolescente de querer mudar o as cores vigorosas. tencial, foi também um certo espí- a empatia, os amigos comuns, o sen- mundo. Tocamo-nos nesse espaço. Já Pedro Batista, 36 anos, um en- rito adolescente de rebeldias que tusiasta do skate a viver em Lisboa, querem empregar na exposição. “O tem exposto em individuais e colec- facto da Underdogs não ser uma ga- tivas, com os seus quadros a convi- leria convencional agrada-me”, diz verem na coesão entre os limites do Francisco, “porque podemos ocu- mundo e as linhas que desenham par o espaço de forma diferente, até cada personagem retratada, sem um porque a pintura precisa disso, de conceito base presente. Por norma novas formas de ser comunicada e os seus quadros prendem-nos, com de ser activa socialmente e aqui exis- uma expressão gráfica consistente, te lugar para isso acontecer.” devolvendo-nos personagens que A energia crua e a força dinâmica parecem provir de um sonho. que guiaram o caldeirão fervilhante Quando se entra no espaço expo- onde os dois mergulharam em de- sitivo percebe-se com facilidade terminada altura das suas vidas é o quem pintou o quê. Têm uma mar- pano de fundo que, de forma subtil, ca autoral perfeitamente definida, contextualiza a sua obra. Mas depois apesar de por vezes falarem do seu existe a poética muito pessoalizada trabalho de uma maneira que se to- de cada um e isso também se senti- ca, quase como se fosse algo táctil, rá nesta estrada Marginal. uma pulsão física. “Gosto muito do trabalho do Fran- “Gosto da dimensão manual da cisco”, afirma Pedro, “porque as pintura, é classe operária”, ri-se coisas acontecem de forma despre- Francisco, “é físico e obriga a valo- ocupada no início para se irem cons- rizar a cultura do trabalho e do fa- truindo. Percebe-se essas transfor- zer. Isso é importante. Como é o mações. É uma pintura muito viva. sentido crítico ou o silêncio da pin- Adoro as composições, as cores, as tura.” “Somos os dois muito intuiti- colagens, os padrões e repetições. vos, parece-me”, acrescenta Pedro, Convoca uma relação emocional e “e isso pressente-se no processo da isso encanta-me.” Por sua vez, diz pintura, onde existe muita acção, Francisco acerca de Pedro: “ele faz reacção ou resposta, não sendo a muito retrato, é um artista de atelier, conceptualização o mais relevante existe uma ligação forte, gosto de o em muitas situações.” ver pintar, é da escola de Lisboa. É A dimensão territorial e cultural pintor como eu.” O jazz de Bica são melodias que se cantam Gonçalo Frota arlos Bica não precisa de uma característica sua, mas facil- “Wattenmeer [Frísio] é um mar com que fosse sempre complicado exteriores ao Azul. Ao sexto álbum, uma investigação pericial mente extensível a Black e Möbus -, que existe no norte da Alemanha”, vir até à Europa -, cheguei a tentar a excelência dos músicos continua nem de um teste de ADN “transformada, sem permanecer fiel explica, “em que, devido à super- vários outros bateristas”, confessa. a não emperrar cada tema, as me- para concluir acerca de um a um formato pop”. Bica já sabia que fície costeira ser muito plana, as “As músicas eram bem tocadas, lodias parecem deslizar nesta dinâ- dado essencial da sua pro- a química entre os três era algo de marés vazias são enormes, pode mas a química era diferente. E foi mica fácil, a inventividade do con- C genitura: num certo senti- muito particular quando recebeu o andar-se por quilómetros. Mas de- então que decidi que o trio toca junto mantém-se de uma soltura do, a sua música começa muitos convite para gravar o seu primeiro pois quando a maré enche aquilo é quando houver oportunidade, se- pouco acidentada e a longa relação anos antes com Scott LaFaro, con- disco. Era só disso que estava à es- perigoso.” O título, sugerido por não não toca.” do trio conduz a uma falta de ur- trabaixista do trio clássico de Bill pera para levar os outros dois con- “uma senhora alemã” que assistiu Essas experiências frustradas le- gência que retira de cena a ansie- Evans. Para Bica, LaFaro foi “o sigo para estúdio, depois de se te- à estreia do tema no Hot Clube, varam Bica a tornar-se mais exigen- dade em mostrar serviço. Do tradi- emancipador do instrumento”, rem conhecido na Alemanha. Só não cola-se à matriz musical de Bica: “a te com qualquer formação em que cional americano Long dagger - que reapresentando-o ao mundo a par- fazia ideia de que depois viria um existência de espaço, o desenvolvi- aceite participar e na valorização Bica descobriu na discografia de tir de uma inaudita natureza meló- segundo ou um terceiro, e que che- mento do tema, o crescendo de absoluta que faz do contributo de Bob Dylan - ao tema popular alen- dica. É esse mesmo movimento de gado a 2016 estaria a comemorar os emoção e, no final, uma parte ro- cada instrumentista, dizendo estra- tejano Na rama do alecrim - num libertação que o português procu- 20 anos desse registo com a edição ckeira”. Entre o impressionista e o nhar como “em algumas formações arranjo recuperado do álbum Vozes ra carregar consigo desde que adap- de um sexto álbum, More than This agressivo, diz, qualidades que, às os músicos são uma peça facilmen- do Sul, de Janita Salomé -, a busca tou como lema, há pelo menos 20 - apresentado sexta-feira na Cultur- tantas, se confundem. te substituível”. Os três estão tão pelas canções que caibam no uni- anos, a ideia de que “não se deve gest, em Lisboa, e sábado no Festival sincronizados que, ao contrário do verso de Azul mantém-se elástica e vestir a pele do instrumento que se de Jazz da Marinha Grande. Quando há que é habitual no jazz, raras vezes transportadora de uma portugali- toca” - frase frequente na sua boca, A suspeita de que os três pode- oportunidade se deixaram visitar por músicos con- dade melódica a que Bica acredita significando que o contrabaixo, a riam estar a pisar chão firme - e não Carlos Bica podia ter passado a vida vidados - Maria João e Ray Anderson não saber escapar. De fora de More bateria ou a guitarra, para exempli- a juntar mais uma paragem num à procura dos músicos certos para participaram no disco de estreia, than This ficaram uma música em ficar com a formação do seu trio apeadeiro semelhante a qualquer veicular a sua música ou até optado ajudando a apresentar o trio; depois que sentiram estar “a querer soar Azul, não devem ser donos dos mú- outro - pode muito bem ter chegado por saltitar constantemente de for- disso, só em Look What They’ve Do- a uma banda do ”, de- sicos nem apresentar-lhes um iti- quando, pouco depois da gravação mação em formação para se desa- ne to My Song o gira-disquista DJ Ill- masiado agitada e funk para a tem- nerário certinho, sem desvios nem de Azul, Jim lhe disse ”Man, I’m fiar enquanto compositor e forçar- vibe, filho do admirável pianista peramento sereno do trio, ou uma enganos. Antes de ser contrabaixis- alway singing your melodies”. Era um se a transpor portas desconhecidas. Alexander von Shlippenbach, se tentativa pouco conseguida de tri- ta, baterista ou guitarrista, Carlos sinal evidente de que no centro da Em vez disso, o trio Azul tornou-se imiscuiu na dinâmica a três. Bica diz lhar os demasiado pessoais Verdes Bica, Jim Black e Frank Möbus são música partilhada pelos três estava a principal vitrina das suas compo- sentir “o trio como um triângulo anos de Carlos Paredes. músicos. O instrumento não deve um compromisso comum com cada sições, o seu grupo mais estável e mágico”. “Eu, o meu ouvido esquer- Ao fim de 20 anos, no entanto, defini-los. Nem contê-los. canção, em que os egos ficavam de aquele que simboliza e acompanha do e o meu ouvido direito. Um tri- sem acolher quaisquer mudanças É talvez essa essência, acompa- castigo e eram trancados do lado de o seu percurso de autor e intérpre- ângulo em que é muito fácil de ou- radicais, a pele de Azul continua a nhada de uma óbvia predisposição fora. More than This existe nesse te. Bica acertou à primeira e, com vir, de comunicar. Para mim, a dife- esticar e a integrar novas paisagens. melódica conjunta, que faz do trio mesmo jogo vindo de trás, entregue a passagem dos anos, percebeu que rença entre trio e quarteto é quase A vantagem é que, tal como acon- Azul um caso singular. Desde o ini- a um lirismo distendido ou a súbitos o equilíbrio a três era uma equação como entre quarteto e big band.” tecia com o trio clássico de Bill cial Azul (1996) que o seu reportório espasmos de rock, que Bica acredi- tão sólida quanto frágil. “Ao fim de E não custa perceber ao ouvir Mo- Evans, não são necessárias revolu- se guia pela “procura da canção per- ta poder ser resumido quase na per- meia dúzia de anos, e com o Jim a re than This que não há qualquer ções quando a receita já está lá des- feita” - que Carlos Bica assume como feição pelo tema Wattenmeer. viver em Nova Iorque - o que fazia necessidade de acrescentar vozes de o início. Carlos Bica comemora os vinte anos sobre o primeiro disco do trio Azul com o novo More than This. A música a três não ganhou peso nem se encheu de rugas e continua a ser o melhor retrato do contrabaixista. mmmmm

Carlos Bica & Azul More than This Clean Feed Música de costas para a Europa, m 2013, Pedro Coquenão (Batida) actuou no Quénia, país onde nunca lhe tinha passado pela cabeça que a de sua música lhe permitisse E aterrar, e espantou-se ao perceber que havia em swahili al- guns pontos em comum, algumas palavras mastigadas do português, frente que resistiram desde que os quenia- nos viram os lusitanos pela primei- ra vez nas praias de Mombaça. “Es- sa memória ficou, tenha ela 500 para anos ou não”, reflecte o músico. O sinal, para Pedro, é o de que existe não apenas um espaço da língua, da lusofonia stricto sensu, mas também o mar um espaço emocional, feito de vi- vências, experiências e cumplicida- des que possam ter acontecido num Durante qualquer momento histórico. “O amor que pode circular é a grande duas noites, coisa”, acredita. “Infelizmente, as lógicas financeiras, as tensões que o Vodafone há cada vez mais nas fronteiras e o Mexefest volta mundo desequilibrado fazem com que viva em Joanesburgo, “rodeado à distância de um barco, nada no grande coisa, sou um pouco insigni- que esse espaço possa tornar-se ca- a agitar os dois de cimento”, poderá ser bastante meio, só peixes e baleias, sem gente ficante à luz da grandeza de Deus”, da vez mais distante.” mais natural de ouvir do que a mú- - à excepção das ilhas - a fazer músi- diz -, Fúria atribui valor àquilo que Da mesma maneira que o swahili, lados da Avenida sica do Soweto. Esse é o outro plano ca”. Manuel Fúria, que no Mexefest lhe é familiar e foi-se acercando, pou- também o afrikaans terá repassados da Liberdade, em que a noite a dois pretende tam- apresentará alguns dos temas do seu co a pouco, de uma síntese que se alguns vocábulos portugueses, dei- bém funcionar: nascido em Angola, segundo álbum com Os Náufragos traduz na assunção de uma honesti- xando um rasto da passagem portu- em Lisboa, Pedro constrói entre Lisboa e Luan- (sexta, 23h20, Garagem EPAL), con- dade individual e enquanto português guesa pela África do Sul, território da a música de Batida com um travo corda que “a nossa vocação natural que tem por rastilho os anos 80. onde fica o Cabo da Boa Esperança, com concertos angolano aberto ao mundo, mas sa- não é estarmos na cauda da Europa, “Aquilo que faço é uma continua- terra do Adamastor e onde (Durban) be que em cima de um palco Ma- mas sim na proa e pegarmos o mar ção, ou uma tentativa de continuação, Fernando Pessoa viveu nove anos da que obrigam a thambo “pode ser o que ele quiser de frente”. “Acho que é fundamental daquilo que começou nessa época, sua infância. Talvez esse pensamen- uma travessia e passar a música que lhe apetecer, a ideia da lusofonia, de haver um ter- em que há coisas de que me sinto mui- to tenha justificado, em parte, o con- Joy Division ou Pixies, que a tez mais ritório comum, com os sítios por on- to próximo, como os Heróis do Mar, vite dirigido por Batida ao sul-africa- constante. Do escura” lembrará sempre que che- de Portugal passou e onde inventou o António Variações, os Sétima Le- no Spoek Mathambo para partilha- gou de África; o homem do projecto coisas novas que hoje existem sob gião, em geral as coisas da Fundação rem o espectáculo que ambos vão cartaz fazem Batida, pelo contrário, terá de “ser outro tipo de paradigma.” Atlântica e algumas coisas dos Xutos protagonizar no Vodafone Mexefest parte Batida, muito africano” para que a sua pele Fúria fala do Brasil como “um Por- & Pontapés”, concretiza. Interessan- (sexta-feira, 00h00, sótão do Teatro clara não consiga esconder o facto tugal que resultou, em termos de cul- do-se pelo “potencial de mutação Tivoli), numa sessão dupla de DJ ins- Manuel Fúria e de ter sido largado no mundo no tura pop”. Com isso quer dizer que inevitável na tradição quando é assu- pirada por uma sala de projecção de mesmo continente. do outro lado do Atlântico foi criada mida e continuada”, confessa preferir cinema. Pedro pensou em Spoek pa- Mayra Andrade, “uma cultura pop autóctone”, algo sentir-se preso àquilo que conhece e ra o acompanhar a partir dessa ideia Tradição e identidade que diz procurar e que, entende-se o define de modo essencial a embar- de amor à solta e empenhado em que juntámos No tempo de desabrochamento dos nas suas palavras, terá tido nos Heróis car no “mundo fragmentado, meio “mostrar que grandes cidades que para uma Joy Divison ou dos Pixies, nesse pe- do Mar - que ele ouve sempre, desde atmosférico e nebuloso” que vê à sua não definiam tendências há uns anos, ríodo largo que em Portugal corres- que aos 21/22 anos compreendeu num volta. Prefere um chão concreto, sa- como Luanda, Lisboa, Joanesburgo conversa sobre pondia ao pós-25 de Abril e ao lento supetão tudo aquilo de que era feita ber onde tem os pés assentes e cantar ou Cidade do Cabo, são aquelas que e, paradoxalmente, súbito acordar a banda de Rui Pregal da Cunha e Pe- para que o vizinho, que fala a sua lín- hoje as definem e que têm uma sín- lusofonia e para o resto do mundo, vigorava no dro Ayres Magalhães - uma faúlha ini- gua e tem uma história partilhada tese muito diferente das outras - be- identidade. entender de Coquenão “a ideia de cial no que respeita à música portu- consigo, o possa perceber. “Mas não bem de Nova Iorque ou de Londres que estávamos na parte de trás da guesa. Assumindo com clareza a sua construo este discurso todo, não es- mas têm uma forma de digerir a coi- Europa e não na parte da frente de inscrição numa tradição pop/rock de crevo um manifesto e depois execu- sa totalmente distinta”. nada - estávamos nas traseiras de tu- matriz anglo-saxónica - “por defeito, to”, ressalva. “Faço as coisas como Coquenão cita a versão de Spoek Gonçalo do o que estava a acontecer”. Hoje, efeito ou virtude de fabrico, coloco- me são naturais.” Mathambo para Control dos Joy Di- acredita que “há todo um potencial me no meio dela e faz parte da minha Mayra Andrade, do outro lado da vision, algo entendido como “pouco de fazer coisas e qualquer outra ci- vontade e da maneira como vejo o mesa de café do Cinema São Jorge em expectável”, mas que para alguém Frota dade litoral, à beira do oceano, está mundo ter a noção de que não valho que nos encontramos, um dos cen- 22 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 DR Batida, Mayra Andrade, Manuel Fúria: a miscigenação como conceito estruturante

códigos vigentes em cada disco ou em cada palco, “sem grandes invenções e sem grandes malabarismos céni- cos”, para Mayra Andrade o início da carreira foi marcado por uma “marca nítida e clara para as pessoas” que ilustrasse de onde era originária. “Sendo cabo-verdiana, vindo de um país muito pequeno, todos nascemos com essa necessidade de falar e pro- mover Cabo Verde, uma espécie tal- vez de nacionalismo”, resume. “Co- mo não temos nada, é a música e a cultura que nos une.” Estar mais pró- xima dos sons locais foi a forma de encontrar uma família à qual perten- cer e de contrariar o nomadismo dos seus primeiros anos de vida. “Disco após disco tenho vindo a libertar-me dessa necessidade de pertença a uma família, porque sinto que pertenço a várias famílias e encontro alguma be- leza nisso”, diz. Mayra Andrade tem sido confun- dida amiúde com uma proveniência tros vitais do Mexefest (a cabo-verdia- sotaque “açucarado do Brasil” (de- brasileira, “uma espécie de atalho na actua sábado no Capitólio, 22h50), finição de Batida), francês, crioulo para um europeu que oiça música alinha com Manuel Fúria neste pro- ou inglês. “Os idiomas carregam de Cabo Verde e por lhe soar tropi- cesso intuitivo. A música não tanto uma vibração própria”, argumenta cal parece-lhe o Brasil”. Reconhe- como reflexo premeditado da iden- Mayra. “É quase fisiológico. Quando cendo que essa sempre foi uma in- tidade, mas antes como motor de canto em crioulo acho que vem da- fluência forte na sua música - “a procura. “É um bocado como maqui- qui” - e aponta para o estômago. música brasileira permitiu-me criar lhar-me sem espelho”, compara. “Quando canto em crioulo é uma um alicerce, junto com a música “Acho que conheço a minha cara, coisa super enraizada, é a minha cabo-verdiana, o jazz e todas as coi- mas depois chega alguém com um infância no interior de Santiago, são sas que gostava de ouvir” -, desde espelho e surpreendo-me ‘Uau, é as batucadeiras, os fins-de-semana 2010 começou a escavar um fosso aqui que estou, foi isto que fiz?’. O que passávamos na montanha. É consciente “por perceber que bas- processo criativo acaba por mostrar- uma língua percussiva. Agora ima- tava pôr um pandeiro numa música nos, muitas vezes, em quem nos tor- gine-se se este crioulo e o francês para que ela se tornasse brasileira námos e o momento que estamos a podem soar da mesma forma.” quando tudo o que estava a aconte- viver.” No caso da cantora nascida Ao pular de um idioma para o ou- cer à volta não tinha nada que ver em Cabo Verde e cedo emigrada para tro, no entanto, Mayra está certa de com o Brasil”. “É claro que temos França (há um ano mudou-se para que não se liga a personagens, “não um tronco comum, que é África e Lisboa), foi percebendo que a intui- são Iggy Pops ou Sasha Fierces da vi- Portugal, e os brasileiros se calhar ção a encaminhou nos últimos tem- da”, garante. Liga-se simplesmente a são muito mais influenciados por pos para escrever “uma poesia muito aspectos do seu percurso, da infância Portugal do que imaginam. Esse en- mais concreta, muito mais directa, em Santiago aos anos escolares em contro até começou mais cedo em que se calhar foi inspirada pelo hip- francês, ao português de comunica- Cabo Verde. É um pouco aquela coi- hop e por cenas mais terra à terra”. ção fácil com músicos portugueses, sa do irmão mais novo que é maior “Não é só o que ouvi, é aquilo que brasileiros, africanos. Daí que, mesmo e mais forte. Nós somos mais peque- estou a tentar fazer da minha vida tendo enveredado recentemente pe- ninos e acabamos por ficar um bo- toda - tirar o excesso, simplificar a lo inglês, reconheça que é uma língua cadinho à sombra disso.” linguagem, ser mais feliz com menos, que a deixa mais longe de si e tenden- A miscigenação como conceito chatear-me menos com as coisas.” cialmente são essas (as anglófonas) as estruturante é recuperada por Ma- Essa reflexão entronca noutra, no canções que primeiro deixa cair dos nuel Fúria, defendendo que essa é papel da língua naquilo que canta, alinhamentos dos concertos. uma tendência natural de “todas as como se - e Coquenão atira também coisas portuguesas”. Mais uma vez, essa variável para cima da mesa - Brasil, o super-herói desembolsa o exemplo dos Heróis pudesse ser uma cantora diferente Se Manuel Fúria reclama o seu lugar do Mar para citar o seu encantamen- quando da língua se desprendem numa cadeia de criadores pop/rock, to com uma banda que “usava a lín- palavras em português, com ou sem em que o público sabe à partida os gua portuguesa, escrevia bem,

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 23 Paredes de Coura] sorrimos ainda “É fundamental a mais, por causa da forma como o dia Isto não é uma banda, estava a correr”. Ali mostraram que, ideia da lusofonia, num apartamento decrépito em Chicago, Max Kakacek, guitarrista, e um território Julien Ehrlich, baterista e vocalista, é um refúgio feliz descobriram algo especial. comum, com Descobriram como fazer canções Dois deprimidos juntaram country e soul, iluminaram a juntos e criar música que é country- os sítios onde rock com slide guitar de trinado música com o Verão e já não há lugar para depressão. Há George Harrison, que são canções Portugal inventou de cantautor pintalgadas de soul, uma nova banda preferida na sua vida. Por Mário Lopes que são polaroids iluminadas por coisas novas um Verão eterno e animadas por um coração jovem que bate pleno de que hoje existem correr de sala em sala, quer vida. Descobriram que tinham tomando o pulso ao que o presente criado algo que tocava fundo em sob outro tipo português tem para oferecer, quer tantos da sua geração. Os Whitney acompanhando o neo-Madchester tornaram-se um pequeno de paradigma” dos antípodas dos Jagwar Ma (sexta, fenómeno, a banda ideal para a Coliseu dos Recreios, 0h25), o banda-sonora dos dias que passam, Manuel Fúria psicadelismo vitaminado dos com as suas histórias de viagens de americanos Sunflower Bean (sexta, olhos postos na janela do comboio Estação do Rossio, 23h20), a voz que avança vagaroso, com as suas tinha óptimas canções, todo um lado grave e cheia de Howe Gelb (sexta, exaltações e desilusões amorosas, cénico e de mistura e fusão de ele- Casa do Alentejo, 23h) ou a voz da com a inquietação perante o futuro e mentos africanos e brasileiros”. Par- consciência hip hop de Talib Kweli a doce melancolia perante memórias te do apelo que Fúria sentiu nos He- (sexta, Cine-Teatro Capitólio, 21h45), passadas - o cenário criado mais róis prendia-se ainda com perceber que será seguida na mesma sala pela cativante ainda pelo filtro 70s, a atitude contra-corrente do grupo, festa da dupla Diamond D & Large versão bucólica, aplicado ao som. “terem aparecido numa altura em Whitney não é stavam deprimidos. Os Professor (22h50). Sábado A reacção que a música dos que não era suposto aparecerem, o nome de Smith Westerns, mui ouviremos a jovem Mallu Magalhães Whitney tem provocado não se serem betos e não o esconderem Max Kakacek respeitável banda indie, (Tivoli, 20h50) e a veterana Elza explica. Di-lo Max Kakacek: “O num momento em que era ainda e de Julien tinham acabado, minados Soares (Coliseu dos Recreios, 22h10), principal é sermos egoístas no mais complicado ser beto do que Ehrlich. por discussões internas. seremos embalados pela Americana processo de composição. Não hoje, e serem aparentemente de di- É o nome da E Acabara a tormenta, mas a com assinatura de Kevin Morby escrevemos para um tipo de pessoas reita num contexto de esquerda”. O banda que vida de Max Kakacek e de Julien (Estação do Rossio, 21h10) e iremos específico, escrevemos sobre nós, a fascínio cimentou em definitivo gra- os salvou Ehrlich não lhes corria bem. Uma levantar-nos para dançar o hip hop nossa vida e o que nos passa pela ças à noção de que usavam “uma tragédia nunca vem só e duas jazzy dos históricos Digable Planets cabeça”. Ainda assim, concede que espécie de conservadorismo como tragédias ficam melhor na história. (São Jorge, 23h30). Entre todos estes há por trás destas canções um atitude punk”, descobrindo-lhes Junte-se o fim da banda à incerteza nomes, porém, suspeitamos que um objectivo específico. “Parte do uma postura que Pedro Coquenão, do que fazer com o resto da vida, se destacará como novo caso de processo de trabalho é tentar fazer também um confesso apreciador do apimente-se o cenário com corações amor assolapado a palpitar no cada canção importante para grupo, propõe definir com “ser punk partidos e com o dia-a-dia em coração do público. Sim, é aos qualquer pessoa. É objectivo de ao contrário é ser punk”. apartamentos decrépitos lá para os Whitney que regressamos. qualquer artista, julgo eu, conseguir Para Coquenão, aquilo que o pró- lados de Chicago. Assim estavam Há meses, vimo-los no Vodafone ajudar quem o ouve a ultrapassar prio define como incapacidade de se Kakacek e Ehrlich há um par de Paredes de Coura. Os seis Whitney aquilo com que se depara na vida, focar artisticamente, dificuldade em anos. Não é como estão agora, como (duas guitarras, teclas, baixo, ajudar a viver os seus momentos de ser coerente, é talvez aquilo que mais teremos o privilégio de testemunhar bateria, trompete) tocaram quando transição. Afinal, todos passamos bem resume o que cria enquanto Ba- no Vodafone Mexefest, sábado, às o sol ainda brilhava alto no céu, pelo mesmo”. tida, recontextualizando a música 23h, no Teatro Tivoli, quando fizeram brindes e beberam vinho Max e Julien, deprimidos, angolana pelos seus filtros pessoais. chegarem os Whitney para iluminar pela garrafa, trocaram beijos e encontraram novo ânimo nas E lembra a música da série juvenil este Outuno quase Inverno. abraços e falaram ao público, não canções que começaram a criar Sítio do Picapau Amarelo, “aquela Whitney não é o nome deles. É o numeroso, mas conhecedor e juntos num apartamento em mistura de pessoas, bonecas de tra- nome da banda que os salvou. “É embevecido. “Serão, muito Chicago. Juntaram à sua volta mais pos, gente que vem do mato e bru- simplesmente uma palavra bonita. justamente, a nova banda preferida músicos, refugiaram-se no campo, xaria”, como algo muito português, Não interessa se é uma coisa ou uma de muita gente”, escrevemos então. em San Fernando Valley, e entre muito africano e muito brasileiro, pessoa. Soa bem e fica bonita escrita. Max Kakacek lembra-se bem. “Era a trabalho no estúdio e noites “uma feijoada que é uma loucura” e Também é isso que procuras numa nossa primeira vez em Portugal e dormidas ao relento, tiveram que parece ter correspondência na banda. Quer dizer, mais ou menos”. tivemos um dia maravilhoso. A sempre a seu lado Jonathan Rado, sua criação. Nas lojas de discos, de Quem o diz é o guitarrista Max viagem, toda a aquela luz, o rio. dos Foxygen, na posição de facto, tanto o colocam entre Bana e Kakacec, enfiado numa carrinha Ficámos logo na disposição certa. De produtor. Disseram-lhe que queriam Bonga, ao pé de Buraka Som Sistema com Ehrlich, Tracy Chouteau, qualquer modo, quando estamos que a música fosse directa e ou junto a um outro B qualquer. Diz William Miller, Josiah Marshall, em palco, estamos sempre na cristalina, distante da neblina típica que tem falhado a vida toda na ten- Malcolm Brown e Charles Glanders, melhor das disposições. Ali [em dos Foxygen ou da maquilhagem tativa de se identificar com uma tri- os restantes membros de uma banda glam dos Smith Westerns. Rado não bo, de ser reconhecido como “um onde, coisa milagrosa, “nunca há só concordou como se tornou guia dos nossos” em qualquer rua, cida- zangas, nunca há discussões”. Estão “Não escrevemos no caminho de “privilegiar a emoção de, país ou cultura. Mas, na verdade, algures na Europa, enquanto correcta, mesmo que com pequenos o miúdo que chegado a Portugal ten- continua a digressão que terminará para um tipo erros técnicos”, sobre a “perfeição”. tou domesticar e inibir o sotaque em Lisboa. Minutos antes, Kakacec Falaram de Levon Helm, o baterista angolano para se integrar, sabe que recebera do tour manager o de pessoas e vocalista da The Band, discutiram há uma tribo alargada que dispensa telemóvel com que falará ao Ípsilon. discos soul de Otis Redding e Alan até a identificação verbal. Largado no Enquanto o aparelho viaja da mão específico, Toussaint. Julien Ehrlich cantou a Nordeste brasileiro para um concerto do tour manager para o ouvido de sua voz frágil, no limite do falsete, os há um par de anos, nesse Brasil a que Kakacec ouvem-se gargalhadas. Max escrevemos sobre restantes sorriram ao vê-lo cantar chama “uma espécie de super-herói ainda está a gargalhar quando o aquelas letras de coração exposto da lusofonia”, estava em pleno cumprimentamos. A depressão ficou nós, a nossa vida sobre música que conforta e exalta, soundcheck e viu “uma criança co- lá atrás e eles já sabem o que querem que dança alegre sobre o caos. Foi o meçar a dançar e a mexer-se como se fazer com o resto da vida. Light Upon e o que nos passa resultado de todo esse processo, a música fosse dela”. De certa forma, The Lake, o magnífico álbum de Light Upon the Lake, que os trouxe a era mesmo. Às vezes, nem é preciso estreia, foi o primeiro passo da nova pela cabeça” Paredes de Coura e que os trará abrir a boca para que o parentesco se caminhada. agora a Lisboa. Não é exactamente descubra de imediato. O Vodafone Mexefest irá pôr-nos a Max Kakacek um álbum. É um refúgio feliz.

24 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 sobre as cordas, os pés trabalham intrinsecamente político desde Can I regra), o que ele tem revelado são sobre os pedais que lhes moldam o Borrow a Dollar? (1992), a sua paletes de rappers sem nada de som. No final de Oma, o sétimo dos estreia, até Be, de 2005 (e se interessante para dizer, espécie de nove temas, a música silencia-se e paramos em 2005, é apenas para gangsta rap de segunda ou terceira surge no seu lugar o ruído nocturno sublinhar a superlativa qualidade categoria (rapidamente lhe vemos reconfortante, éden de mamíferos, dos primeiros seis discos, mais valor enquanto conquista insectos e batráquios. Nesse constância rara de ver num artista, sónica, pelo seu carácter rompedor momento, é como se concretizasse sobretudo em início de carreira), e exploratório). Ao contrário do que em paisagem concreta aquilo que a todos eles álbuns definidores do alguns recém-deslumbrados têm música vai sugerindo. Tema a tema, hip-hop americano (que é o mesmo feito crer, a contaminação do rap atravessa a música um bordão que que dizer do hip-hop mundial). pelo jazz (e vice-versa) não nasceu cria chão e cenário. Sobre ele, a Homem-bandeira do conscious hip com o último álbum de Kendrick guitarra é fogacho sonoro que surge, hop, e uma das vozes negras mais Lamar (embora, curiosamente, inesperado e questionador, para respeitadas na América, sempre fez partilhe alguns dos colaboradores logo desaparecer (Slowz, por das suas letras manifestos do álbum de ), antes sendo exemplo). Aqui, partimos daquele contestatários, humanistas e, com o um processo que tantos artistas Norberto segue em frente e descobre mais, descobre melhor dedilhado que carrega em si a tempo, de inspiração têm trabalhado desde, pelo menos, sabedoria e gentileza da folk antes crescentemente religiosa (o álbum os anos 90 (Guru e os seus álbuns de, sugerido o calor tremeluzente abre com um louvor ao Criador em Jazzmatazz, sobretudo o primeiro, do wah-wah, aterrarmos numa Peace and Joy). Tal como, por serão os exemplos mais óbvios). O Pop divagação cósmica que o Kevin exemplo, os A Tribe Called Quest, se álbum possui, seguramente pelo Ayers dos Soft Machine e Jim bem que num registo distinto, dedo de Riggins, uma inegável A Norberto O’Rourke observariam com olhar Common foi fundamental para dimensão jazzística, visível não tão intrigado quanto fascinado mostrar aos miúdos que era possível apenas nos interlúdios (espécie de o que é (Charada é o título e assenta-lhe usar roupa larga e boné e frequentar pillow effect no modo como operam bem). Ali, em Anona, o bordão a hood sem ser gangsta e tudo o que transições entre as canções), mas de Norberto novamente, capturando-nos mais e isso, no rap, tradicionalmente também na vibração determinante mais para o âmago desta música, implica (a ostentação, a misoginia, a que, por vezes, um aparente O coração é o mesmo, enquanto o som se torna violência). Simultaneamente, foi pormenor como o baixo de A Bigger imenso, mas Muxama metamorfose acontecendo perante abrindo o seu rap às texturas e à Picture Called Free ou os sopros de aprofunda novos caminhos. nós e que, intuímos, surpreende- doçura da neo soul e do R&B, fusão The Day Women Took Over (ensaio, Mário Lopes nos a nós como surpreende o seu que, mais do que musical, carregava com o seu quê de simplismo e criador. A grande diferença, claro a dimensão espiritual e afrocêntrica ingenuidade, sobre um mundo Norberto Lobo está, é que Norberto aproveita a fundadora dos , utopicamente melhor se surpresa a que se conduz para colectivo americano, activo entre os comandado por mulheres), Little Muxama Three:Four Records; distri. Mbari seguir em frente e descobrir mais, finais de 90 e os inícios de 2000, de Chicago Boy ou Letter To The Free descobrir melhor. que fez parte. Muito mais tocado do (trompete de Roy Hargrove) mmmmm que samplado, o último álbum, não imprimem às canções. A coerência constituindo propriamente uma global está no modo como som e A natureza da Common inovação na sua carreira, mantém a palavra, composição e letra vão música não linha musicalmente sofisticada e oscilando em paralelo: aos mudou. A continua black-oriented, dando menos crédito momentos distendidos e floridos de liberdade na precioso à electrónica em relação aos seus Love Star (genial o trocadilho “When forma como últimos trabalhos. Common volta a we need a break / We take it”, instante entende e encara Numa América pós-Obama, reunir-se de talentosos músicos, em que é samplado o break de Sexy a música, o prazer pela descoberta, a música do homem de miúdos e graúdos, desde os Mama dos The Moments), Red Wine o gosto pelo belo que nos conquista produtores ou Unfamiliar (lindíssima canção e pelo mistério que nos atrai, está Chicago continua a ser tão (baterista de jazz que produz o boy meets girl com a estarrecedora aqui como já estava, há nove anos, ou mais relevante do que nos álbum praticamente todo), Robert voz de PJ) contrapõe-se a energia em Mudar de Bina, o álbum de Glasper e até às requintadas combativa de Home, Pyramids

Discos anos 90. Francisco Noronha estreia de Norberto Lobo. Mas vozes de , Bilal, BJ the (assanhado sample de Ol’ Dirty Norberto Lobo, guitarrista de Common Chicago Kid, , Syd Bastard no refrão) e, claro, Black excepção, como sabemos, músico ou PJ (a faixa com , a America Again. Esta última, canção Black America Again que faz da sua música reflexo da ARTium, Def Jam mais banal dessas vozes, é, impossível de desligar do vida e do lugar em que esta o simplesmente, um erro de casting). movimento Black Lives Matter (o encontra quando a música é mmmmm Só o facto de não ceder à nome de Trayvon Martin, uma das registada, nunca poderia ser criador “trappização” que o hip hop tem vítimas, surge logo no segundo imutável. Comprova-o a sua Editado apenas sofrido nos últimos anos já diz verso), é uma call to action perante discografia, tanto no trabalho quatro dias antes muito do bom gosto e da identidade o ressurgimento do racismo assinado a solo, como no que foi das eleições artística do homem de Chicago, institucionalizado (daí o “again” e a registado, por exemplo, nos americanas, o 11º sendo este, nesse sentido, um actualidade da canção hoje como Norman ou com João Lobo. álbum de álbum de alguma forma démodé, o nos anos 60, com Stevie Wonder a Muxama, o seu novo álbum, o sexto Common, um dos que só é positivo — não é que apelar a uma re-escrita da “black em nome próprio, prossegue essa mais prolíficos e importantes vejamos o trap como um mal em si, american story”), ao mesmo tempo caminhada, num momento em que rappers vivos, tem no seu título todo mas o certo é que, salvo algumas que Common se auto-questiona possíveis referências que lhe um statement político que dispensa excepções (que só confirmam a criticamente sobre o que é isso, apontávamos a início, de John Fahey explicações (e na sua capa um afinal, de ser livre (“Who freed me: a Carlos Paredes, para referir os artwork lindíssimo). Não surge, Lincoln or Cadillac? / Drinkin’ or mais citados, há muito deram lugar porém, de modo oportunista nem battle raps? Or is it Godspeed that we a música que ocupa um lugar único é tentativa de apanhar, por moda travel at?”), tema revisitado em — a Norberto o que é de Norberto. ou conveniência comercial — Letter To The Free (“Shot me with Muxama prossegue na rota de extraordinário como, actualmente, your ray-gun / And now you want to Fornalha, álbum de 2014 em que se alguns dos artistas da pop mais trump me”, rima de engenhoso tornou claro aquilo que nos ia descerebrada se arvoram em sentido duplo, com Reagan e Trump dizendo em entrevistas e que criadores de música “política” —, a na berlinda). Common pode já não testemunhávamos nos concertos: onda de contestação que tem ser o rapper com o hype de outrora, que a guitarra, o seu instrumento, cavalgado a América a pretexto das pois o tempo passa e há novos era veículo criativo primordial, mas desigualdades sociais, do racismo “Commons” para serem idolatrados nunca fonte única da sua música. (incontáveis negros desarmados pelos públicos mais jovens (o facto Muxama tem-na no centro, mas é mortos a tiro pela polícia nos de ser Alright, de Lamar, a música aquilo que vemos desenvolver-se últimos anos) e, obviamente, das “oficial” do Black Lives Matter através dela e à sua volta que faz, eleições que colocaram um cretino prova-o à saciedade), mas a sua hoje, a música de Norberto Lobo. neo-fascista como Trump no poder. música, soulful e mobilizadora, Os dedos dedilham e arrastam-se Common foi sempre um artista continua a ser preciosa de ouvir.

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 25 pela personagem, embarcamos Inauguram numa viagem de lucidez, alucinação e fabricação de imagens que servem Mergulhar ao escritor para questionar a vida, o amor e as relações de poder. É o na pintura próprio Lowry que numa entrevista (citada no Guardian) dizia que o seu de Canoilas livro, escrito durante oito anos, era uma profecia, um aviso político, um O gosto de Canoilas por uma criptograma, um escrito na parede. ideia de pintura imersiva Uma viagem intensa em que a que tem de ser percorrida e consciência da proximidade da descoberta pelo espectador. morte e a experiência da finitude são elementos que, sem ser Nuno Crespo anunciados, se impõem como o fundo sobre o qual se desenrola Debaixo do Vulcão toda a acção. Os Stones e os blues na sua forma mais descarnada e áspera Esta brevíssima apresentação Hugo Canoilas não evidencia os conteúdos da Curadoria: Emília Tavares exposição de Canoilas, mas serve último disco de estúdio que mmmmm para mostrar o modo como há uma O lugar onde editaram foi A Bigger Bang de 2005 mesma atmosfera e um mesmo — e enquanto, rezam as crónicas, a Museu Nacional de Arte Contemporênea do mecanismo metafórico e alegórico. foram felizes relação entre os dois membros mais Chiado. Até 26 de Março de 2017 Canoilas não interroga o sentido da icónicos nunca pareceu ter sido tão Abriu hoje ao público a segunda vida, mas o mundo da arte, as suas Um manifesto de paixão dos serena. De fora, dir-se-ia mais um edição do MNAC/SONAE Art Cycles. convenções, cânones e sistemas de Stones pelo blues, que nunca projecto talhado para Richards, mas Um programa bienal que dá a um poder. Esta camada crítica não é deixou de ser o guia de tudo parece que Jagger esteve artista português a oportunidade um enunciado ou uma premissa, é empenhado na tarefa e isso sente-se de criar durante um ano um uma consequência alojada na o que foram construindo ouvindo o resultado final — não só projecto novo para as galerias do própria obra. Um exemplo: ao longo dos anos. do ponto de vista vocal, mas até na Museu do Chiado. Desta vez a Canoilas convoca uma pluralidade Vítor Belanciano forma como a presença da sua escolha recaiu sobre Hugo Canoilas de mãos, cabeças e vozes, com as harmónica se faz sentir. (n. Lisboa, 1977) que através de um quais desfaz a ideia de autoria — Rolling Stones O disco foi registado em há um conjunto de quatro vídeos, uma muito importante num tempo em ano em Londres, nos British Grove pintura e uma banda sonora nos faz que a atenção se deslocou das Blue & Lonesome Polydor, distri. Universal Studios de Mark Knofler, tendo o imergir num universo intenso em obras para as mitologias criadas à quarteto gravado com três dos que se cruzam questões da pintura, volta da persona artística —, não mmmqm músicos que os costumam do cinema, da autoria e da maneira porque se trate de uma obra acompanhar ao vivo e um convidado como os artistas podem ser colectiva — a autoria é Segundo o senso em dois temas, Eric Clapton, que socialmente interventivos sem se inquestionável — mas para nos comum nunca se surgiu quase por acaso, já que transformarem em instrumentos confrontar com uma obra múltipla regressa a um trabalhava no estúdio do lado. Ao de propaganda. composta de muitas camadas e lugar onde se foi que parece as gravações decorreram Há muitas referências neste colaborações. feliz. Na música de forma tão natural que o grupo projecto de Canoilas onde se Àquela multiplicidade popular, nunca se chegou a interrogar se o cruzam pintura, literatura, cinema, conceptual e criativa, junta-se a principalmente quando se que sairia dali seria um álbum. E filosofia, mas o elemento central — heterogeneidade dos elementos mencionam grupos de sucesso com esse descomprometimento talvez que dá título à exposição — é o pictóricos e formais com que longa carreira, esse epíteto popular tenha sido o segredo de uma obra romance de Malcolm Lowry Under Canoilas constrói a peça, que é uma é muitas vezes posto em causa. Por onde se sente o deleite dos músicos the Vulcano (1947). Um livro cujos 12 pintura, mas que se apresenta norma esse tipo de projectos ou a tocar. Apenas a tocar. capítulos contam as derradeiras liberta da sua condição objectual e acaba por procurar inspiração fora Em Blue and lonesome a batida é últimas 12h da vida de um ex-cônsul colocada num lugar muito amplo da sua órbita interna — buscando, arrastada, a guitarra lânguida, com a britânico no México. Horas essas de do qual fazem parte imagens em por exemplo, que produtores vindos voz quase padecida de Jagger intensa embriaguez em que se é movimento, textos, sons, vozes, de fora possam trazer para o interior amenizada pela harmónica, Exposições conduzido através de um tempo corpos. Entrar nesta exposição é do grupo novo alimento sónico — ou enquanto numa outra balada, All of — muito longo: o cônsul diz serem entrar numa enorme pintura e cada tentam retornar às origens míticas. your love, a voz é mais elástica. I as horas mais longas da sua vida elemento dela — isolado e O que faz algum sentido, porque já gotta go é uma das mais cadenciadas, — que culmina no seu assassinato. destacado nas diferentes salas do passou tempo suficiente para com a secção rítmica esquelética, Levados pelo absinto consumido museu — é como se fosse um poderem voltar a um local que conduzindo o ritmo com o mínimo, sabem não ser novo, mas que vão enquanto a harmónica deambula abordar como se o fosse, tal a pelo espaço, e Little rain começa distância transitória convocada. apenas com voz e guitarra, entrando Deverá ter sido esse o efeito que depois o ritmo marcado e despido de levou os Rolling Stones a retornarem artifícios. O álbum varia entre aos blues na sua forma mais compassos galopantes, como em Just descarnada e áspera, como o haviam like i treat you, e variações rítmicas feito a meio dos anos 1960. quase dormentes, com as guitarras E a opção revela-se acertada. No agudas e a voz em destaque, como total são 12 canções originalmente em I can’t quit you baby. tocadas por nomes como Little Produzido por Don Was e pelo Walter, Jimmy Reed, Willie Dixon, próprio grupo, a abordagem Eddie Taylor ou Howlin’ Wolf, que os privilegia sempre uma certa pureza, Stones reinterpretam em estúdio num manifesto de paixão dos Stones como se fosse ao vivo, sem qualquer pelo blues, que na verdade nunca tipo de efeitos posteriores. E essa deixou de ser o guia de tudo o que vibração iniciática (o disco foi foram construindo ao longo dos registado em apenas três dias), ou anos. O membro mais velho do esse prazer recuperado de estar em grupo, Keith Richards, do alto dos grupo, acabam por passar para o seus 75 anos, já veio afirmar que no lado de cá. próximo ano deverá haver mais O desafio proposto É o primeiro álbum sem originais concertos e é bem provável que é questionar a convenção de Jagger-Richards, mas isso acaba venham a trabalhar no tal álbum de do formato e materialização por não ser relevante, quando não originais. Mas se tal não acontecer da pintura se tem álbum novo há dez anos — o haverá sempre os blues.

26 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 detalhe: umas vezes são vozes que agradável e ligeira descarga simulado”), Rick Deckard, vestido dizem um texto num monitor negro, eléctrica do seu “orgão de estado de com a sua protecção de chumbo, sai outras são actores que num filme espírito” (uma máquina que dava para a rua onde o pó radioactivo contam uma história, outras são para programar diferentes continuava anos depois a sons ou pormenores de uma maneiras de sentir a realidade) e sai transtornar diariamente as mentes paisagem, retratos de rostos. É como da cama dizendo à mulher que e as “propriedades genéticas” se o artista quisesse explorar o modo devia reajustar o seu aparelho para daqueles que não conseguiram como se constrói uma pintura e nos sentir desejos de se levantar. Ele é emigrar para a colónia em Marte, e desse a ver que a pintura não é um caçador de recompensas que que ainda sobreviviam. “O ar definida pelo domínio de um meio trabalha para o Departamento da matinal, cheio de partículas — tinta sobre uma superfície —, nem Polícia de São Francisco apanhando radioactivas, e com o sol cinzento e por uma estilo — abstracção, andróides desertores pelas ruas da enevoado, espalhava-se à sua volta, figuração, realismo, expressionismo, cidade. Depois de uma guerra infestando o seu nariz; etc. —, mas por uma certa mundial nuclear, um verdadeiro involuntariamente, inspirou a organização da visualidade e tempo apocalipse, a Terra é ainda habitada infecção da morte.” A principal do mundo. por alguns humanos (poucos, os tarefa de Deckard é localizar (e O gosto de Canoilas por esta ideia que não emigraram para as colónias “retirar”, que significa eliminar) de pintura imersiva — não se trata de em Marte, levando como seis andróides, os Nexus-6, que têm uma obra de arte total — que tem de compensação um andróide para os um cérebro altamente sofisticado e ser percorrida e descoberta pelo ajudar na nova vida), por andróides que chegaram à Terra vindos de espectador, já era conhecido desde a de aparência humana (que uma colónia. Se o conseguir a sua sua exposição nas galerias do Palácio entretanto tinham desertado de recompensa será enorme. Aos Nacional da Ajuda onde, em 2005, Marte fugindo ao regime de poucos, a realidade revela o seu construiu o espaço como se de uma escravatura) e por animais lado irreal, Deckard mergulha em enorme pintura se tratasse eléctricos que são tratados como enganos e esconde-se em envolvendo pessoas, arquitectura, verdadeiros (esses estão quase subterfúgios; a vida como uma movimento, performance. Desta vez extintos devido às poeiras sucessão rápida de tragédias irreais. a novidade não é só a utilização da radioactivas). “É certo que alguns Philip K. Dick continua a ser a imagem em movimento, mas a dos animais deles consistiam referência e o mestre das histórias maneira como o pintor — e Canoilas também, indubitavelmente, em perturbadoras de sociedades onde é um pintor — usa a técnica simulacros de circuitos eléctricos; é a tecnologia atingiu o nível da cinematográfica da montagem para certo que ele nunca se meteu nesse paranóia, e este romance é a sua construir a obra. O desafio proposto assunto mais so que eles, os seus expressão mais conseguida. — primeiro a si mesmo e, depois, ao vizinhos, se tinham intrometido no espectador — é questionar a verdadeiro funcionamento do seu convenção do formato e carneiro. Nada podia ser mais materialização da pintura. Esta é indelicado. Dizer ‘Os seus carneiros Quando já se uma pintura que se prolonga do são genuínos?’ seria uma falta de interior do filme — o cenário da educação pior do que perguntar se perdeu o nome quase totalidade do filme é uma Philip K. Dick continua a ser o mestre das histórias perturbadoras os dentes, cabelos ou orgãos A memória doente de uma pintura monumental feita pelo de sociedades onde a tecnologia atingiu o nível da paranóia internos de um cidadão provariam artista com 3,75m de altura por em teste ser autênticos.” actriz em fim de vida. Na voz 100m de comprimento — até ao seu Os poucos humanos que ficaram fragmentada dessa mulher exterior e sobre chão, tecto, Ficção têm como sonho possuir um animal ressoa a voz de um país. paredes, envolvendo e tocando o verdadeiro, que surge quase como o Isabel Lucas corpo do espectador. Pode dizer-se derradeiro sinal de status social que o uso que Canoilas faz do filme A realidade elevado. Cuidar de um animal vivo Para Aquela Que Está Sentada não significa o abandono do campo implica empatia e responsabilidade No Escuro à Minha Espera da pintura, nem tão pouco a moral, características que distingue é um embuste António Lobo Antunes exploração de uma ideia de pintura- os humanos dos andróides — na D. Quixote filmada. Trata-se da utilização da O romance que inspirou aparência são iguais, para os ferramenta cinematográfica como o fime Blade Runner. distinguir utiliza-se um teste de mmmmm elemento síntese que coloca a ‘empatia’. Esta aparente confusão pintura em contacto com outro tipo Uma história sobre a entre real e irreal, verdadeiro e “Eu não tenho de formulações e tecnologias natureza da realidade falso, uma espécie de ansiedade de personagens”, (modos de fazer), tomando-a como e a angústia identitária. uma qualquer angústia identitária, afirmou António experiência de multiplicidade e José Riço Direitinho parece ser central no romance de Lobo Antunes heterogeneidade. Philip K. Dick. Há em Será que os numa entrevista Será que os Andróides Sonham Andróides Sonham com Ovelhas a este jornal, em com Ovelhas Eléctricas? Eléctricas? uma luta prolongada que 2014, quando aponta para a vitória do falso, pois o publicou Philip K. Dick humano deteriora-se e desaparece, Caminho Como (trad. de Raquel Martins) Relógio D’Água só o falso continua a existir. Os uma Casa em Chamas, um romance andróides foram sendo centrado num prédio de Lisboa e mmmmm melhorados, podendo até comover- nos seus habitantes. Podia-se se ou seduzir sexualmente; os acrescentar que também não tem O norte- humanos tornaram-se tão enredos, ou que os livros têm cada americano Philip dependentes das máquinas que se vez menos aquilo a que se K. Dick (1928- confundem com elas. Para reforçar convenciona chamar uma acção, 1982) é um dos esta ideia, há o “mercerismo”, uma com princípio meio e fim. São mais notáveis doutrina religiosa que aos poucos se antes deambulações acerca do que Livros autores de ficção vai revelando um embuste, que é a vida, íntima e de um colectivo, científica. E o seu confunde mais do que alivia, que contadas a partir de uma voz primeiro título de instala a dúvida sobre a realidade e interior, quase sempre errática, que nos que conduz à ideia de que esta que recorre a outras vozes lembramos, na grande maioria das pouco mais é do que uma fraude há convocadas pela memória nas suas vezes, é Será que os Andróides muito tempo instalada e de onde falhas ou momentos iluminados, e Sonham com Ovelhas Eléctricas?, não há possibilidade de fuga. A vida que preenchem um vazio que vai publicado em 1968, e de que Ridley como um pesadelo de enganos. ganhado sentido(s). Não há início Scott fez uma livre adaptação Depois de cuidar do seu carneiro ou epilogo. Há um percurso que o cinematográfica, Blade Runner eléctrico (que na aparência não se leitor apanha num dado ponto e (estreou em 1982). distingue dos verdadeiros) na segue, tantas vezes tacteando, até Rick Deckard, a personagem pastagem do terraço coberto (“onde ele se extinguir. O livro é o que fica principal, acorda com uma mastigava num contentamento entre esses dois momentos.

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 27 TOM MAELSA/AFP Como este, o 27º romance de em véspera de fim, perspectiva musical — e uma espécie de António Lobo Antunes. Para única ao contrário do que dormência onde todas as Aquela que Está Sentada no Escuro acontece, por exemplo, no associações são permitidas. Serve à Minha Espera acompanha um monumental romance anterior, Da tão bem ao actual Lobo Antunes período que se adivinha derradeiro Natureza do Deuses (2015), onde em que explora mais uma vez os da memória doente, alterada e vez de uma voz interior existem limites dessa semi-consciência muito fragmentada, de uma várias que se cruzam e revelam o onde parece situar-se ao escrever, mulher de 78 anos, ex-actriz com tal colectivo tão comum em Lobo e onde está a tal mão que o guia, uma carreira mediana que passou Antunes: um país na sua história, como costuma repetir nas a infância em Faro e se mudou com personagens tipo e modos de entrevistas. para Lisboa porque queria o verbalizar; e sempre a linguagem, Antunes escreve sempre contra trabalhar no teatro. O nome da mesmo quando já resta só silêncio, Antunes, já se sublinhou em doença nunca é revelado, mas é a a dizer mais do que qualquer outra relação ao romance anterior. Há doença que determina a forma e o coisa sobre o que se é, o que se um livro e a comparação inevitável conteúdo. “e que doença senhor pensa, e sente e faz. com os anteriores. Ele falha doutor, nem sequer sou velha, aos Sexo, outro por exemplo, de que quando não se supera? Da setenta e oito anos ninguém é se sabe porque há um crucifixo que Natureza dos Deuses foi um livro velho ainda, qual velha, sou uma abana no espaldar da cama. Ela grande de Antunes. Ele sabe disso. actriz a descansar durante esta nunca amou. A não ser o pai, que Neste seguinte, confirma que peça para, como diz o director do além de filhinha lhe chamava continua a perseguir a perfeição e A força de Babylone provém da sua capacidade de transfigurar o teatro, entrar na próxima num cotomiça. “… uma tarde encontrei a retratar um modo de ser morno e cinzento quotidiano das personagens papel à minha medida…” o meu marido e simpatizámos, ao português — seja lá isso o que for, É esta a voz, a voz que segundo ou terceiro encontro nem que seja só uma maneira de profissionalmente decora outras levou-me para casa dele, sentia-se dizer — como nenhum outro Elisabeth, a narradora, uma difusas que surgem sem aviso, que vozes até esquecer a sua, a que o sozinho, coitado conforme eu me escritor em português o faz. engenheira de 62 anos, e o seu nos rodeiam, nos afundam num leitor tem acesso privilegiado. sentia sozinha, passado tempos Também por isso é injusto dizer marido decidem organizar uma abismo de melancolia, uma Frágil, mas o único meio para se casámos e pronto, umas palavras, que não arrisca, que se limita a ir festa para uma dezena dos seus agitação de saudade tão aguda situar num livro que se passa todos uns papéis, o foguete de um com a tal voz única que parece amigos. Falta-lhes tudo: copos, como fugaz, e que se desvanecem ele no espaço mais privado de uma carimbo a estalar no fim, sem sempre a mesma, ainda que seja cadeiras, entram em pânico. Ela sem que alguma vez os consigamos mulher cuja identidade se vai estrelinhas, só tinta…” múltipla. Este não será o seu tem uma ideia: pedir ajuda aos explicar ou exprimir. Uma imagem, revelando em espasmos à medida A doença avança e o tempo e os melhor romance, mas é mais um vizinhos do andar de cima, um um objecto, uma palavra ou um que essa identidade também se espaços encadeiam-se numa grande romance e se nem todos os casal estranho, bizarro, tanto a cheiro que desencadeiam esses dilui. Ela é “Dona Celeste”, vertigem de sentidos. As pessoas leitores estão para Antunes, os que nível da aparência como acessos de infinita tristeza: “Não “filhinha”, “miúda”, mulher do tio, de uma vida cruzam-se nas suas estão sabem nunca sair a perder. intelectualmente. Yasmina Reza consegui lutar contra a sensação “minha senhora”. Depende do falas e sabemos de tudo por isso, transporta o leitor de um casal de abandono e a escuridão que se tempo cronológico ou do pelo modo de dizer que confere para o outro, remexe na intimidade abatem quando um lapso de tempo interlocutor. Se quem a chama ou identidade e que Lobo Antunes Ficção das suas vidas e dos seus estados se completa e se fecha. Já não há se lhe dirige é o médico, o pai, a conhece e como ninguém nas suas de alma, expõe as suas manias e os Manoscrivi [os vizinhos] por cima mãe, o sobrinho do marido, a nuances: a língua portuguesa nas Uma Babilónia seus pormenores físicos um pouco de nós. Os Manoscrivi eram a senhora de idade que vai lá a casa suas múltiplas manifestações, ridículos, pinta retratos de um ordem familiar das coisas. Sei bem dar-lhe comida, mudar-lhe a fralda, apropriações de classe ou género, morna realismo cruel dos convidados da quanto isso pode parecer risível ou um dos dois maridos que lhe urbanas ou rurais. E diz-se que festa, traça os percursos das suas face ao que acontece pelo mundo. suplica afecto. Ela nunca gostou continua cada vez mais próximo Os júris do prémio Renaudot vidas, tece os laços afectivos e as Mas o que desapareceu convosco é mesmo de nenhum. Com um da música, pelo modo como tudo tinham-nos habituado a falhas que os unem, separam, uma coisa visível, na qual não se casou-se por interesse, era familiar soa, do que propriamente da perturbam, cimentam as pensa, é a vida evidente e óbvia.” do director do teatro, e o outro literatura. Sem condescendência celebrar obras bem mais existências desta comunidade de (extracto de “Babilónia”) porque sim. “… de há tempos para para com o leitor que se quiser o marcantes, polémicas e típicos franceses dos subúrbios. Os Babylone transborda também de cá, começo agora a notar, acompanha, se estiver para esse surpreendentes, até mesmo destinos deles entrecruzam-se, passagens ácidas e divertidas, escapam-me episódios, pessoas, exercício de concentração mais virtuosas. criando uma espécie de desordem escritas numa linguagem familiar e até o meu nome palavra…” E a profunda, onde a biografia do e confusão: a morte da mãe da por vezes a roçar a grosseria e a memória recente a perder para a escritor aparece muito menos do Jan Le Bris de Kerne narradora, a falhada adopção do vulgaridade, passagens de alguma memória remota num jogo literário que nos livros iniciais, mas a Babylone filho da vizinha por parte do seu forma conseguem funcionar. O que se ajusta ao modo de escrita de metáfora permanece crucial. marido, a abortada carreira de livro fala-nos da cobardia, desses Yasmina Reza Lobo Antunes, cada vez mais Entra-se num livro de Lobo Edition Flammarion cantora da dita vizinha, a irmã que ataques de loucura que perpassam próximo do que parece ser a deriva Antunes e reconhece-se o lugar descobre muito tardiamente a pelos seres mais banais, da procura da mente, ele que se diz na onde se está mesmo sem ver a sua mmmmm sexualidade sado-masoquista… infrutífera da amizade ou do literatura uma espécie de assinatura. Neste não é diferente. Mas esta aparente confusão aconchego quente do amor. O mediador ou tradutor de vozes. Há uma toada, ora harmoniosa ora Yasmina Reza acaba por se esclarecer, tomar uma romance lê-se facilmente, a Esta mulher, como o homem obsessiva, disruptiva, tantas vezes. ficou famosa em direcção definida, um caminho história é fluida, mas as tentativas doente, internado num hospital É uma memória a desfazer-se num todo o mundo mais limpo: o caminho do drama. de dar espessura aos protagonistas em Sôbolos Rios Que Vão (2010) é livro divido num prólogo e três devido às suas Ao sair da festa de Elisabeth, o acabam por colidir com a sua tudo o que temos, numa solidão andamentos — terminologia peças de teatro, estranho vizinho, ligeiramente mediocridade e a banalidade do

NUNO FERREIRA SANTOS nomeadamente alcoolizado, estrangula a sua cenário. As vidas pequenas, as Arte (que recebeu mulher, e depois, a meio da noite, vistas curtas e um assassínio, que os prémios Tony vai tocar à porta de Elisabeth, afinal acaba por não passar de um e Molière). E a pedindo-lhe que o ajude a drama bastante comum. partir de agora ficará ainda mais transportar o cadáver. Inicia-se Os júris do prémio Renaudot conhecida, pois o seu romance então todo um novo exercício de tinham-nos habituado a celebrar Babylone acabou de receber o estilo, oscilando entre a frieza das obras bem mais marcantes, prémio Renaudot. A autora de 57 descrições quase clínicas da cena polémicas e surpreendentes, até anos, extremamente discreta e do crime e do corpo, e a ebulição mesmo mais virtuosas. Alguns recatada, evitando ser entrevistada das tristes paixões que levam livros foram, de forma inesperada, ou fotografada, tinha sido notada aquelas pessoas a dar por si às retirados da lista final de em 2007, aquando da edição de cinco da manhã nas sórdidas nomeados, como se a coroação da Madrugada, Tarde ou Noite, em que escadas do prédio, com um obra de Yasmina Reza fosse uma narrava a campanha eleitoral de cadáver dentro de uma mala. verdadeira surpresa. De qualquer Nicolas Sarkozy que tinha Segue-se o inquérito da polícia e as forma, é uma obra a ler, pela sua acompanhado ao longo de um ano. consequências que provoca nas eficácia e pelas suas fulgurantes A força do romance Babylone personagens, até no gato e nas introspecções. E deve-se notar, provém da sua capacidade de plantas do vizinho. porque é caso raro: os prémios transfigurar o morno e cinzento Yasmina Reza exprime com Goncourt e Renaudot foram este Lobo Antunes que explora mais uma vez os limites quotidiano das personagens nitidez aquilo que todos nós ano entregues a quatro mulheres dessa semi-consciência onde parece situar-se ao escrever vitrificadas numa mediocridade sentimos quando estamos sentados nas categorias de romance e absolutamente houllebecquiana. na nossa cadeira: as impressões ensaio.

28 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 Estação Meteorológica António Guerreiro A história gosta ANTÓNIO de se citar

m tópico assoma com frequência no debate OLE público europeu, quando se trata de caracterizar a “atmosfera” da nossa época e enumerar os elementos concretos que a determinam: os anos 30 do século passado U estão de volta e é com eles que o nosso tempo Luanda coincide. Há certamente razões plausíveis e analogias verosímeis que levam a citar e convocar esse passado que nos é oferecido em herança diferida e actualizada. Mas nem por isso devemos esquecer a crítica a esse lugar-comum que consiste em ver o presente através da Los Angeles chave esquemática da concordância de tempos. Na sua versão extrema e sofisticada, esta ideia corresponde à concepção de que a história é constituída por uma sequência de ciclos sujeitos à lei do “eterno retorno”. No Lisboa final da primeira Grande Guerra, Oswald Spengler, no seu diagnóstico (estavam na moda as metáforas médicas) do “declínio do Ocidente”, estabeleceu uma equivalência entre Pedro o Grande e Carlos Magno, como se fossem contemporâneos, na medida em que os situava em pontos homólogos dos ciclos percorridos pelas respectivas civilizações. E Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, escreveu uma frase que não se tornou inócua, apesar de tão repetida: “Hegel observa algures que todos os grandes acontecimentos e personagens históricos ocorrem por assim dizer duas vezes. Ele esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia e a segunda vez como farsa”.

Mas, afinal, em que pontos incide este discurso das , 1998, Coleção do artista equivalências do nosso tempo com os anos de 1930? Incide na crise financeira de onde ainda não saímos, no desemprego, nas regressões anti-democráticas e

autoritárias, no clima nacionalista e xenófobo, no Sem título (I) ressurgimento da extrema-direita. Para citarmos o eloquente título de um livro de 2014, dos sociólogos Luc Boltanski e Arnaud Esquerre estamos na via Vers l’extrème, a caminhar para o extremo. Uma série de António Ole, António palavras têm surgido para designar o espaço político onde nos encontramos. Mas em quase todas elas o que há de novo é um prefixo: neo-conservadorismo, pós- democracia, pós-fascismo, neo-fascismo. Dizer que as democracias liberais entraram numa fase “pós- democrática” não é o mesmo que estar às portas do fascismo, como aconteceu nos anos 30. Há uma 17.09. | 09.01. categoria historiográfica que dá sentido e unidade à 16 17 política e à ideologia nacionalista e imperial da Alemanha na época da República de Weimar. Essa categoria é a “revolução conservadora”, mas não é facilmente transferível para o nosso tempo e vem Coleção Moderna complicar um pouco as analogias e concordâncias de tempos. Esse conservadorismo não se apresentava como uma defesa da ordem estabelecida, não se tratava de um simples apelo à conservação do que existia. Ele reclamava-se como “revolucionário” porque lutava Saiba mais em activamente pelo restabelecimento de valores e instituições. Um dos arautos da “revolução conservadora” (da qual se afastará, com a ascensão de gulbenkian.pt Hitler ao poder) é o Thomas Mann das Considerações de um Impolítico, apologista da entrada da Alemanha na Primeira Guerra e furioso defensor da Kultur alemã contra a Zivilisation cosmopolita e iluminista. A “revolução conservadora”, na qual podemos integrar figuras tão importantes como Carl Schmitt e Ernst

Jünger, teve uma densidade ideológica e cultural que não FUNDAÇÃO MECENAS encontra semelhança no neo-conservadorismo actual, CALOUSTE GULBENKIAN DA EXPOSIÇÃO: de carácter pragmático e, por conseguinte, muito menos ideologizado. E isto, que parece um pormenor, é o R. Dr. Nicolau Bettencourt suficiente para produzir uma atmosfera epocal diferente. PARCEIROS 1050-078 Lisboa : As imprecações contra o “politicamente correcto” e o INSTITUCIONAIS multiculturalismo são versões pindéricas de uma cultura de extrema-direita.

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 29 rante o posterior Para o Inferno, mas Apanhado como sempre no cineasta alemão é sufi cientemente idiossincrático para na rede justifi car a visão. Para este lançamento em cine- Mesmo quando Herzog ma, o fi lme é antecedido por aque- não está no seu melhor, há la que é a melhor curta de Gabriel sempre qualquer coisa de Abrantes, divertidíssimo exercício de desconstrução e reconstrução do idiossincrático que justifica a impulso artístico e crítico à volta de visão. Jorge Mourinha uma escultura de Constantin Bran- cusi, A Brief History of Princess X. Há Eis o Admirável Mundo em algo de comum com Herzog na ico- Rede noclastia de que a curta faz prova; mas estes brevíssimos e incisivos se- Lo and Behold – Reveries of the te minutos provam como o prolífi co Connected World artista plástico tornado cineasta, é Documentário de Werner Herzog capaz do melhor, bastando-lhe para mmmmm isso eliminar toda a ganga pesadona e o traço grosso redundante do seu A Brief History of Princess X humor piadético e rasca, ejectar a necessidade de explicar à exaustão Curta-metragem de Gabriel a sua abordagem, reduzir o gague à Abrantes duração exacta e imprimir-lhe ligei- mmmmm reza e velocidade.

Animais Nocturnos será certamente sincero, mas não é por isso que o rei deixa de ir nu A premissa é, por si só, todo um pro- grama – Werner Herzog, o explora- Passar o exame dor dos recantos mais estranhos do Uma galerista de sucesso (Amy mundo e da mente humana, atira-se da escola Estreiam Adams), prisioneira de uma “gaiola à internet, traça o percurso que a romena dourada” por casamento com um levou de simples ferramenta de tra- O rei vai nu “senhor do mundo” à beira da balho de cientistas a infraestrutura Não é o fim do mundo, falência, recebe pelo correio um essencial do mundo contemporâ- ninguém morre, mas é Tom Ford comete todos os manuscrito escrito pelo ex-marido neo, olha para as suas grandezas e ( Jake Gyllenhaal), que lho dedicou; misérias. Apesar de ter sido co-pro- assim - os compromissos erros que seriam de esperar o livro, sobre um homem normal duzido por uma empresa da nova morais minam o quotidiano. de um primeiro filme. Só que numa viagem de carro com a economia, Eis o Admirável Mundo Exame passa o tempo todo que Animais Nocturnos é o mulher e a filha é atacado por um em Rede não podia estar mais longe a sussurrar-nos isso na sua segundo. Jorge Mourinha gangue de arruaceiros, torna-se da ideia de “conteúdo patrocinado” aos poucos num roman à clef sobre - Herzog está a perseguir as mesmas quietude. Ao serviço da tese, sujeita as personagens... ao Animais Nocturnos o seu casamento. Mas desta trama questões de sempre sobre o que faz urdida pelo romancista Austin mover a mente humana, daquela Nocturnal Animals exame. Vasco Câmara Wright, Ford faz um enorme e maneira tão transviada a que nos ha- De Tom Ford Com Amy Adams, Jake Gyllenhaal, frágil soufflé, prestes a esboroar-se bituou; basta ver aquela projecção Exame ao primeiro toque, incapaz de se futurista de monges Hare Krishna Michael Shannon Baccalauréat sustentar sozinho assim que sai do agarrados ao telemóvel numa futura De Cristian Mungiu mmmmm forno. É pena que assim seja, Terra despovoada que partiu para Com Adrian Titieni, Maria-Victoria porque o estilista continua a ter colonizar as estrelas, ou o modo co- Dragus, Rares Andrici É possível um estilista de moda jeito com os actores (e aqui tem um mo uma família de luto que sofreu dar um bom cineasta? A pergunta leque de luxo, do qual se destacam bullying online após a morte da fi lha mmmmm parece ter o seu quê de o eternamente grande Michael é fi lmado quase como um congresso preconceituoso, mas a verdade é Shannon e Laura Linney, cujos de bruxas. Mas – talvez devido à sua Na edição de Cannes em que que Tom Ford provou pequenos papéis secundários estrutura em capítulos, ou ao mo- Exame/Baccalauréat, de Cristian liminarmente que sim, com Um quase exigem só por si a visão do do como, tal como um link, o fi lme Mungiu, foi exibido em concurso – Homem Singular (2009), um dos filme). Mas o seu empenho não está sempre a saltar entre temas e concorrendo com outro romeno de mais devastadores melodramas desfaz a sensação de termos aqui aberturas - Eis o Admirável Mundo nomeada, Cristi Puiu, que ali dos últimos anos e o papel da um embrulho que enche o olho em Rede é menos um discurso con- apresentou Sierranevada – houve carreira de Colin Firth. Quem não com o seu requinte para revelar sistente, Herzogiano, e mais uma ainda outro, Bogdan Mirica, que tiver visto essa obra-prima – assim que a caixa no seu interior não tem colecção de vinhetas, de variações apresentou na secção Un Certain mesmo, com todas as letras e absolutamente nada lá dentro. sobre um tema, que nunca mergu- Regard Dogs, uma primeira longa. cinco estrelas – olhará para Animais Nocturnos será certamente lham a fundo e fi cam ali pela rama. Mirica começou por se distinguir Animais Nocturnos e verá apenas… sincero, mas não é por isso que o Não é um Herzog de primeira água por atirar farpas ao “chatíssimo”, um estilista de moda armado em rei deixa de ir nu. como Into the Abyss, empalidece pe- como ele disse, cinema art house Cinema cineasta, um filme cheio de estilo do seu país. Sabemos, então, a a mascarar a ausência de quem se dirigia... Sobre a diatribe, substância, uma indulgência é preciso descontar diletante que talvez devesse ter ressabiamentos, invejas, picardia ficado por casa. Que o mesmo é geracional e coisas desse tipo, mas dizer que Tom Ford, ao segundo Mirica estaria a extravasar um filme, caiu nas armadilhas e sentimento de saturação que, na equívocos todos que fintou com verdade, os filmes de Mugiu e de uma pirueta na estreia, como se Puiu não evitam ou não Um Homem Singular não tivesse contornam. Aliás, quer um quer existido. É algo de tanto mais outro sublinham, sublinham inexplicável quanto se percebe famílias presas nos seus labirintos, que este é, outra vez, um filme mas encerram-se eles próprios nos extremamente pessoal para o seu seus procedimentos, dominando autor, que injecta nesta história de forma irrepreensível, causando em formato de “boneca russa” até espantos vários com isso, os muito de si próprio, das suas sinais de uma “escola”. Quer dizer, raízes no Texas ao modo como colocam-se do lado da moral, vida e arte se confundem e Menos discurso consistente, mais colecção de vinhetas convictos dos valores e do gesto de interligam. denúncia, e passam a enumerar os

30 | ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 esconde num cinema onde se AS ESTRELAS Jorge Luís M. Vasco projecta o filme de Carpenter) não é DO PÚBLICO Mourinha Oliveira Câmara o mais hábil dos cineastas, e quase se desiste de Blood Father na primeira sequência, cheia de vilões esterotipados e violência American Honey mmmmm – mmmmm histericamente “realista”. A partir Animais Nocturnos mmmmm mmmmm mmmmm do momento em que Gibson entra em cena, com a sua panache A Brief History of Princess X mmmmm – – sempre subestimada, o filme Elle mmmmm mmmmm mmmmm começa a ter outra respiração, e é Eis o Admirável Mundo em Rede mmmmm mmmmm – quase só por ele e pela química que estabelece com Moriarty (mais a Exame – – mmmmm ajuda de uns quantos bons diálogos) Gimme Danger – mmmmm – que Blood Father vai resvalando A Infância de um Líder – mmmmm mmmmm para a comédia familiar sui generis, Sujeitar as personagens a um Exame de uma forma que, a julgar pelo Monstros Fantásticos mmmmm – – gore de certas cenas, talvez não O Protector – mmmmm – fosse exactamente a primeira ideia. sinais de traição, dos apesar dos esforços, de um pai em Há outro atributo interessante, o a Mau mmmmm Medíocre mmmmm Razoável mmmmm Bom mmmmm Muito Bom mmmmm Excelente compromissos do quotidiano, das conseguir que a filha ganhe uma passeio por aquela América perdida cumplicidades. Acabando os filmes bolsa que a leve a terminar os na fronteira mexicana, exactamente como começam: estudos no estrangeiro. Vai-se Mad Mel de fazer a entrada no clube dos empobrecida e ressentida (sim, há como se nada se tivesse mexido, desmembrando porque, de forma heróis de acção sexagenários. É um uma cena com emigrantes, e Blood Father - O Protector não permitindo às personagens imperceptível, há fronteiras que ex-alcóolico e ex-presidiário, a viver alusões ao “roubo de empregos”), De Jean-François Richet escaparem à teia que urdiram para vão sendo violadas, compromissos Com Mel Gibson, Erin Moriarty, numa caravana nos confins do que nas duas últimas semanas eles, não criando um horizonte de morais que vão minando. Não é o William H. Macy, Michael Parks deserto do Novo México, a quem muita gente descobriu que existia. fuga (algo que o recentemente fim do mundo, ninguém morre, um dia a filha (Erin Moriarty), que Mas, nessa parte, quem “rouba” estreado Tesouro, de Corneliu mas é assim - o filme passa o mmmmm julgava desaparecida, vem pedir alguma coisa é o veterano Michael Porumboiu, tentava, e isso tempo todo a sussurrar-nos isso na socorro, porque o gang de Parks, suavemente viscoso na pele distinguia-o, abrindo hipóteses de sua autoritária quietude, como se traficantes de droga com quem se de um vendedor de memorabilia lenda, de fábula, para as examinasse. Essa quietude começa meteu se virou contra ela e quer nazi. Um punhado de actores personagens acreditarem, a denunciar-se, começa a ser vingança. A partir daí, Blood Father inspirados, meia-dúzia de diálogos rompendo dessa forma a antecipada e esperada, por isso a é uma variação sobre o motivo do bem escritos, um ritmo que de vez claustrofobia). experiência é menos ameaçadora par em fuga, com o ingrediente raro em quando emperra mas no geral No novo filme de Mungiu (um do que poderia ser. Tudo quieto na de o par ser composto por um pai e se mantém em bom andamento: vencedor da Palma de Ouro de frente da chamada Nova Vaga por uma filha adolescente. O nada disto resgata Blood Father de Cannes, recorde-se, com 4 Meses, 3 Romena, instalada na francês Richet, que conhecemos de uma menoridade quase congénita Semanas e 2 Dias, em 2007) há demonstração. Ao serviço de uma Mel Gibson ficou de fora do último um péssimo remake do Assalto à 13ª mas torna-o bem mais suportável uma família que se vai tese, sujeita as personagens ao Mad Max, mas esta é a sua ocasião Esquadra (e volta a aqui a citá-lo, há do que muitos casos desmembrando com os esforços, e exame. de percorrer a “estrada da fúria”, e uma cena em que a miúda se equivalentes.L.M.O.

2 de Dezembro - 21H30 | Coliseu de Lisboa 7 de Dezembro - 21H30 | Coliseu do Porto RUI MASSENA ENSEMBLE

ípsilon | Sexta-feira 25 Novembro 2016 | 31 669ed683-eb95-4b57-a30d-1f388784267d