Entre Solidariedade E Justificação: Uma Sociologia Das Práticas De Economia Solidária No Sul Do Brasil
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Otra Economía, 8(15):152-166, julio-diciembre 2014 © 2014 by Unisinos - doi: 10.4013/otra.2014.815.04 Entre solidariedade e justificação: uma sociologia das práticas de economia solidária no sul do Brasil Between solidarity and justification: A sociology of practice of solidarity economy in southern Brazil Jéssica Lucion1 [email protected] Resumo. A presente pesquisa se insere na proble- Abstract. The present research is inserted in the matização acerca do fenômeno da economia solidá- questioning concerning the phenomenon of the sol- ria. A partir da análise de documentos referentes ao idarity economy. From the analysis of documents Projeto Esperança/Cooesperança, que agrega diver- relating to the Esperança/Cooesperança Project, sas associações e cooperativas de economia solidá- which gathers diverse associations and coopera- ria na cidade de Santa Maria (RS), Brasil, buscou-se tives of the solidarity economy in the city of Saint identifi car as hierarquias valorativas que subjazem Maria (Rio Grande do Sul State), we seek to identify à justifi cação das associações e cooperativas de eco- the evaluative hierarchies that underlie the justifi ca- nomia solidária, bem como a retórica utilizada para tion of associations and cooperatives of the solidar- transmitir estes valores. Conclui-se com este traba- ity economy as well as the rhetoric used to transmit lho que a economia solidária possui uma justifi ca- these values. This study concludes that the solidar- ção própria que se constrói na crítica ao sistema ca- ity economy has a justifi cation of its own that builds pitalista. Neste sentido, forma princípios próprios e on a critique of the capitalist system. In this sense, se apresenta como projeto de transformação social it builds its own principles and presents itself as a pela economia. Salienta-se, no entanto, que a eco- social transformation project for the economy. It is nomia solidária está imbricada no que se chama de noted, however, that the solidarity economy is em- “hibridação da economia”: ela mescla elementos de bedded in what is called “hybridization of the econ- uma economia monetária, não monetária e redistri- omy”: it mixes elements of a monetary, non-mon- butiva, o que permite entendê-la como um conjunto etary and redistributive economy, which allows to de práticas econômicas marcadas pela pluralidade. understand it as a set of economic practices marked Desta maneira, a economia solidária não é uma eco- by plurality. In this way, the solidarity economy is nomia sem mercado, mas com um mercado baseado not an economy without market, but with a market em valores e princípios diferentes do ideário liberal. based on values and principles diff erent from lib- eral ideas. Palavras-chave: economia solidária, solidariedade, Keywords: solidarity economy, solidarity, justifi ca- justifi cação, ideologia, utopia. tion, ideology, utopia. 1 Universidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima, 1000, Cidade Universitária, Bairro Camobi, 97105-900, Santa Maria, RS, Brasil. Jéssica Lucion Introdução associações de economia solidária da cidade de Santa Maria (RS, Brasil). Nas décadas fi nais do século XX, a Améri- Para tanto, inicialmente proporemos uma ca Latina sofreu infl uência direta das decisões genealogia do conceito de solidariedade, de caráter neoliberal que trouxeram como buscando distinguir suas formulações socio- consequências a quebra e fechamento de um lógicas e ético-normativas, para, em seguida, grande número de pequenas empresas que adentrar na discussão acerca dos regimes de eram responsáveis por grande parte do traba- justifi cação, mais especifi camente, aquele que lho empregado. Houve, consequentemente, o diz respeito a uma gramática da economia so- aumento dos níveis de desemprego e exclusão lidária. Por fi m, introduzimos as questões em- social, além da ampliação do trabalho precário píricas referentes à experiência da cidade de (Pereira, 2011). Santa Maria, buscando dar conta dos elemen- Como reação ao contexto e sistema vigente, tos ideológicos e normativos presentes em seu surgiram diversos movimentos sociais e tra- discurso. balhistas que buscaram construir alternativas voltando-se para práticas econômicas onde a Uma genealogia do conceito de produção e a distribuição se orientavam para solidariedade um processo de emancipação do trabalho e re- versão do então quadro de vulnerabilidade so- A solidariedade2 enquanto conceito tem cial. Estas novas práticas produtivas defi nem seu uso desdobrado entre ser e dever ser: o pri- “as iniciativas de trabalhadores, produtores meiro deles refere-se à abordagem sociológica e consumidores de diversas atividades eco- e o segundo à ético-normativa. Pensky (2008) nômicas que passam a se organizar segundo sinaliza a existência de duas concepções bási- princípios de cooperação, autonomia e gestão cas de solidariedade na tradição sociológica. democrática” (Silva e Oliveira, 2011, p. 99), A primeira refere-se à noção de intersubjetivi- nascem de necessidades reais, orientam-se dade; indivíduos ligam-se entre si pelo reco- para solução dos problemas sociais concretos nhecimento que possuem uns com os outros, e buscam relações de trabalho e convivência por laços de semelhança, sendo a diferencia- mais igualitárias através da solidariedade. Tais ção social menos aparente. Está-se falando de iniciativas serão, a partir da década de 1990, uma forma de pertencimento a um grupo so- referenciadas como “economia solidária”. cial e do compartilhamento de uma identidade Considera-se que o engajamento na eco- coletiva3. Considerando que as sociedades se nomia solidária pressupõe que os indivíduos tornaram, a partir do advento da industrializa- estejam disponíveis a um novo tipo de relacio- ção, cada vez mais segmentadas e diferencia- namento com a economia, a política e o meio das, a segunda concepção buscaria dar conta ambiente, pois a mesma se apresenta como o de explicar como as sociedades modernas con- projeto de uma nova sociedade, um outro mun- seguem manter-se integradas sem o recurso do possível; assim, a economia solidária “não tradicional de um vínculo social, qual seja, a pode ser entendida sem a consideração das solidariedade por reconhecimento, pertenci- ideologias que, justifi cando-o e conferindo- mento a um grupo4. Neste sentido, remete-se lhe sentido, contribuem para suscitar a boa à imagem de indivíduos diferentes, aparente- vontade daqueles sobre os quais ele repou- mente dissociados, que estão ligados por laços sa, para obter seu engajamento” (Boltanski e de interdependência. Chiapello, 2009, p. 43). O presente trabalho se Durkheim (1999 [1893]) compreende a so- insere na discussão da justifi cação dos grupos lidariedade como uma ferramenta para res- sociais, mais especifi camente, aquela que sub- taurar a harmonia e a integração social nas jaz às iniciativas econômico-solidárias, toman- sociedades modernas através da divisão do do como objeto o discurso das cooperativas e trabalho, considerada por ele como uma forma 2 Pensky (2008) remete a origem do termo “solidariedade” ao direito romano: a obligatio in solidum fazia referência a uma obrigação solidária, uma espécie de responsabilidade geral de uns com os outros. Neste contexto, a solidariedade era empregada, por exemplo, quando um homem pagava suas dívidas e estendia esta responsabilidade para a dívida de terceiros sem, necessariamente, receber algo em troca. Stjerno (2004) também faz alusão a esta solidariedade “obrigatória” entre membros de um grupo, uma corresponsabilidade, referente aos trabalhadores franceses do século XVI. 3 Exemplificações podem ser encontradas em Mauss (2003 [1925]) e Sahlins (1983). 4 A exemplificação destas formas de solidariedade pode ser encontrada em Durkheim (1999 [1893]). Otra Economía, vol. 8, n. 15, julio-diciembre 2014 153 Entre solidariedade e justificação: uma sociologia das práticas de economia solidária no sul do Brasil de incremento da união social. Ao contrário à realidade francesa, mais especifi camente à de Durkheim, alguns autores, no entanto, en- noção de fraternité5, ideal da Revolução Fran- tendem o advento das sociedades modernas, cesa que orientava a busca de uma socieda- e da divisão do trabalho, como o declínio da de livre e igualitária. De acordo com Stjerno solidariedade. Assim se estabelece uma dico- (2004), a preocupação dos fi lósofos franceses tomia entre comunidade e sociedade. Tönnies, era combinar a ideia dos direitos e liberdades por exemplo, considera a comunidade como a individuais com a de uma comunidade coesa forma legítima de convivência, ao contrário da socialmente. Em 1804, o termo foi adicionado sociedade, que seria artifi cial. Assim, a convi- ao Código Civil francês, e somente em meados vência comunitária é genuína, ao contrário da do século XVIII é que o conceito ganha, então, estabelecida em sociedade, que é temporária e cunho político: durante a Revolução de 1789, aparente (Bayertz , 1999). os jacobinos utilizam a fraternité como concei- Em Weber, encontra-se um aspecto dife- to-chave para unirem-se na luta por liberdade rente acerca da solidariedade: ao contrário de e igualdade (Stjerno, 2004). Durkheim, para Weber a solidariedade, além Laville (2008) faz menção à solidariedade de integrar, também exclui (Stjerno, 2004). fi lantrópica. Esta diz respeito a indivíduos Assim, a relação do “eu e nós” pressupõe a altruístas que, voluntariamente, agem em be- existência da solidariedade, o que, por sua nefício de outros. A ideia é oriunda do século vez, pressupõe a existência de “eles”, aqueles XIX, quando a caridade se apresentava como excluídos dessa