e O Abolicionismo

∗ Fernando Perlatto

RESUMO: O artigo tem por objetivo analisar o contexto no qual a obra de maior destaque – O Abolicionismo – de Joaquim Nabuco foi produzida. Para tanto são extraídos trechos deste livro que demonstram aspectos característicos da sociedade da segunda metade do século XIX e como o autor se posiciona frente a eles. Além disso, pretende-se analisar a importância desta obra para o entendimento do período no qual viveu Joaquim Nabuco. PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Nabuco; abolicionismo; escravidão.

ABSTRACT: The article aims at analysing the context in which the most important work of joaquim Nabuco – “O Abolicionismo” – was written. In order to do that, excerpts from the mentioned book were taken to show some aspects that characterise the society of the second half of the twentieth century and, also the author ideas towards it. Moreover, I intend to analyse the importance of this work to understand the period that Joaquim Nabuco lived. Words-Key: Joaquim Nabuco; abolition; slavery.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos houve um intenso debate envolvendo alguns dos grandes historiadores brasileiros acerca da obra de Joaquim Nabuco. Em artigos publicados na Folha de São Paulo, Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho defenderam a atualidade da obra e ressaltaram a sua grande importância para a análise sociológica brasileira. Além disso, nos textos intitulados Reler “O Abolicionismo” 1 e Saudade do escravo2, esses autores observaram que Nabuco não teria embarcado na “canoa furada” das teorias raciais vigentes no final do século XIX. Célia Maria Marinho de Azevedo, em artigo chamado Quem precisa de São Nabuco?3, critica os textos de Evaldo Cabral e José Murilo de Carvalho, enfatizando o

∗ Aluno do oitavo período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 MELLO, Evaldo Cabral de (2000). Reler O Abolicionismo. Folha de S. Paulo, Caderno "Mais", 27/2, p. 18. 2 CARVALHO, José Murilo de. (2000), Saudade do Escravo. Folha de S. Paulo, Caderno "Mais", 2/4, p. 21. 3 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Quem precisa de São Nabuco?. Estud. afro-asiát. [online]. jan./jun. 2001, vol.23, no.1 [citado 24 Dezembro 2004], p.85-97. Disponível na World Wide Web:

pensamento racista presente na obra O Abolicionismo. Para ela, diversos intelectuais ao longo dos anos – inclusive na atualidade – procuraram construir e reforçar a imagem de Joaquim Nabuco como um santo. Segundo Célia Azevedo, outros pretensos heróis já desceram dos seus pedestais, ao passo que Nabuco conseguiu resistir à “ação corrosiva e maléfica do tempo”. A finalidade da autora, portanto, é “descanonizar” as imagens produzidas sobre Joaquim Nabuco e evidenciar que ele também estava sujeito aos preconceitos existentes na época. Embora tenda a me posicionar mais para o lado de Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho, creio que as visões apresentadas por estes autores e por Célia Azevedo tendem a privilegiar alguns aspectos dos textos de Nabuco em detrimento de outros, que levam a posicionamentos divergentes. Nabuco era um homem de seu tempo e, como tal, estava sujeito aos preconceitos em voga no período. Como pessoa esclarecida que era, ele teve contato com as teorias raciais, darwinistas e evolutivas, que o influenciaram na escrita de suas obras. Porém, vale ressaltar que embora o racismo científico fosse moda no Brasil em finais do século, Nabuco e outras vozes influentes – como Manuel Bonfim, Araripe Júnior, Alberto Torres e – atuaram de forma dissonante a esta teoria científica tão em voga nesse período. Procurarei inserir este artigo naquilo que Robert Darton denomina como história social das idéias, que aborda as ideologias e a difusão das idéias.4 Analisarei a obra de Nabuco a partir de uma concepção da história social, investigando a influência que determinadas idéias possam ter exercido sobre ele, mas, sobretudo, atentando para o contexto no qual o autor viveu, marcado por transformações nas relações entre senhor e escravo. O Abolicionismo deve ser analisado como uma obra de seu tempo, na medida em que reflete uma série de questões vigentes no período, permitindo aos historiadores e outros estudiosos adentrarem nos meandros de uma sociedade tão complexa como a brasileira do final do século XIX.

http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2001000100004&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0101-546X. 4 Darton, Robert. O beijo de Lamourrete – mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 188.

Atualmente, junto às indagações dirigidas aos textos ou aos discursos e às mensagens, deve-se atentar para a intertextualidade e para a contextualização.5 O historiador Quentin Skinner aponta para o risco do anacronismo no estudo de história das teorias políticas e sociais. Segundo ele, esse tipo de abordagem mostra-se “incapaz de recuperar a identidade histórica de um dado texto”. Além de conhecer o significado das “idéias” ou conceitos de determinado texto, é necessário, para o autor, conhecer quem os maneja e com quais objetivos. Isso só pode ser feito através do (re)conhecimento dos vocabulários políticos e sociais da respectiva época ou período histórico, de maneira que se possibilite situar os “textos” em seu campo específico de “ação” ou de atividade intelectual. Os usuários da linguagem não somente enunciam por escrito ou verbalmente o que desejam, mas eles debatem e respondem a outras “falas” (speech acts).6 Partindo dessa concepção de Skinner, procurarei analisar a obra O Abolicionismo e o contexto no qual ela foi produzida. Além de mostrar quem foi Joaquim Nabuco, tentarei recuperar a “identidade histórica” do livro e observar quais eram as intenções e objetivos do autor. Situarei a obra de Nabuco nos anos finais da escravidão e – com o auxílio de estudos historiográficos sobre o período – analisarei as possíveis influências que o pensamento darwinista e racista deste momento possam ter exercido sobre ele e como que o autor se posicionou diante das mudanças ocorridas no Brasil, nos anos que antecederam o abolicionismo. Procurarei destacar no artigo a análise do fluxo das idéias vigentes no país no contexto da produção de O Abolicionismo e o processo sóciopolítico em que surgem essas idéias.7 Durante muito tempo, a historiografia tendeu a ver o abolicionismo como um presente dado pela Princesa Isabel aos escravos ou enxergá-la como algo protagonizado por uma elite branca abolicionista. Estudos recentes têm demonstrado que longe de serem atores passivos no processo, os cativos atuaram de maneira ativa, negociando e resistindo, de forma a minar as bases nas quais se sustentava a escravidão. Célia Azevedo aponta para a necessidade dos novos estudiosos do processo abolicionista combinarem, de maneira

5 FALCON, Francisco. História das Idéias. In: CARDOSO, Ciro F. e Vainfas, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 95. 6 SKINNER, Quentin. “Meaning and understending in the History of Ideas”. In: History as theory, 8, 3-53, 1969. Retirado de: FALCON, Francisco, op. cit., pp. 96 e 97. 7 Esta idéia está presente em: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, pp. 35 e 36.

equilibrada, as ações dos escravos e as dos abolicionistas.8 No presente artigo, procurarei observar como que a importância do papel dos escravos para a abolição foi percebida por Joaquim Nabuco e de que forma sua obra contribuiu para a contestação do regime escravista.

1. JOAQUIM NABUCO E O RACISMO

A obra O Abolicionismo é um testemunho histórico e, como tal, devem ser buscadas as intenções do autor ao redigi-la. Porém, vale ressaltar que nenhum texto se esgota na intenção dos autores, na medida em que existem aspectos da sociedade que o autor não tem interesse em informar, além do fato de que ele “controla” o seu texto, determinando os sentidos do mesmo. O livro de Joaquim Nabuco deve ser visto como uma forma de intervenção política, na medida em que ao escrevê-lo, o autor seleciona “argumentos e conceitos de teorias estrangeiras” não de maneira aleatória, mas através de uma triagem, que estava ligada à sua cultura e prática política.9 As teorias raciais tiveram grande difusão na Europa na metade do oitocentos, chegando tardiamente no Brasil. Essas idéias foram muito bem acolhidas pela reduzida elite intelectual do país que se reunia nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa criados no século XIX. A década de 70 será marcada pela entrada do ideário positivista-evolucionista em que os modelos raciais exerceram papel de destaque. Nesse momento, também ocorreu o fortalecimento e amadurecimento de alguns centros de ensino e pesquisa nacionais – como os museus etnográficos, as faculdades de direito e medicina, os institutos históricos e geográficos.10 As elites locais consumiam a literatura racial de maneira original, adotando aquilo que lhes parecia conveniente e descartando ou adaptando o que não correspondia à realidade brasileira.11 Ainda que não considere que Joaquim Nabuco tenha aderido com tal fervor a essas teorias – assim como outros intelectuais da época, como Nina Rodrigues, Silvio Romero e

8 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op.cit., p. 34. 9 ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz & Terra, 2002, p. 39. 10 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 14-18. 11 Ibidem, p. 41.

Euclides da Cunha – ele flerta com essas idéias e as transporta para seus textos. Segundo Thomas Skidmore, o pensamento racial teve seu auge entre 1890 e 1920, quando as idéias de hierarquização de raças e a ideologia do “branqueamento” adquiriram foro de legitimidade científica.12 Para o antropólogo Roberto da Matta, foi somente no final do século XIX que as teorias raciais foram absorvidas pela elite intelectual brasileira.13 A obra O Abolicionismo foi escrita no final desse século, período no qual as idéias de Buckle, Kidd, Le Bom, Gobineau, Lapouge e vários outros darwinistas sociais – que pregavam a inferioridade negra – começavam a se estabilizar no pensamento brasileiro. Porém, vale ressaltar que Joaquim Nabuco não absorve essas teorias aleatoriamente e de forma a-crítica. Ele as lê e as interpreta a partir de sua vivência, experiência e realidade. A obra O Abolicionismo foi escrita em um período intenso e conturbado da história brasileira. A discussão sobre as influências que as idéias racistas e darwinistas possam ter exercido sobre Nabuco são de grande importância para a compreensão do seu pensamento. Mas, penso que mais importante do que julgar se ele era ou não racista, é procurar entender em que contexto se deu a produção de O Abolicionismo, bem como analisar qual a importância desta obra.

2. CONTEXTO DA PRODUÇÃO DE O ABOLICIONSIMO: RESISTÊNCIA

ESCRAVA E MOVIMENTO ABOLICIONISTA

A obra O Abolicionismo foi escrita em 1883, estando inserida, portanto, em um contexto bastante complexo e conturbado que se consubstanciaria – alguns anos mais tarde – no fim do Império e da escravidão. Conforme evidenciou Hebe M. Mattos de Castro, a extinção do tráfico de escravos em 1850, devido à Lei Eusébio de Queirós, representou uma profunda inflexão na experiência do cativeiro.14 A prisão exemplar de alguns destacados fazendeiros e a forte repressão aos capitães das embarcações convenceu a maioria dos

12 SKIDMORE, Thomas E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, pp. 12, 63. 13 DA MATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1972, p. 172. 14 CASTRO, Hebe M. Mattos de. “Laços de família e direitos no final da escravidão”. In: ALENCASTRO, L.F. de (org). História da Vida Privada no Brasil. Vol. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp. 343- 344.

grandes senhores que a lei seria dessa vez aplicada com rigor. Essas restrições levaram ao aumento do preço dos escravos e uma concentração social da propriedade de cativos. Restaram poucos e ricos senhores concentrados nas áreas de exportação, sobretudo no Sudeste. Devido a essa medida houve uma expansão do tráfico interno intra e inter provincial, fazendo regredir a pulverização da posse de escravos, até então típica do Brasil. Muitas páginas já foram gastas e ainda o serão no debate a respeito da resistência escrava. À abordagem de , em “Casa Grande e Senzala” que, de certa forma, suavizava as relações entre senhores e escravos no Brasil colonial, seguiram os estudos que procuravam enfatizar somente a rigidez e a violência do regime escravista, demonstrando o cativo somente como vítima e objeto da ação dos senhores.15 Por outro lado, alguns estudos buscaram realçar que somente através das fugas, violência contra os senhores e formação de quilombos, que os cativos negariam a escravidão. Alguns líderes dessas revoltas eram transformados em heróis e os pequenos mocambos ou revoltas rapidamente sufocadas ou até mesmo a resistência cotidiana eram considerados de menor ou de quase nenhuma importância histórica.16 Visando contestar a dicotomia destes estudos que colocavam de um lado Zumbi dos Palmares – o escravo que luta “revolucionariamente” contra o sistema – e de outro Pai João – o cativo submisso e conformado – surgiram novas abordagens, baseadas em profundas pesquisas empíricas, assim como dialogando com outros aportes teóricos e metodológicos, que visavam reexaminar e problematizar a resistência escrava em diferentes ópticas. Estes estudos apontam para o fato de que os escravos negociaram mais do que lutaram abertamente contra o sistema. Os proprietários e a sociedade como um todo, foram obrigados a reconhecer um certo espaço de autonomia para os cativos.17 Estas novas abordagens, que passaram a valorizar o escravo como um agente histórico, preocuparam-se em evidenciar que antes de chegar ao Brasil, estas pessoas possuíam uma história, uma

15 Entre os estudos que seguiram esta perspectiva, podemos destacar as análises da chamada “Escola Paulista”, cuja umas das obras mais debatidas neste sentido foi: CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. São Paulo: Difel, 1962. 16 GOMES, Flávio dos Santos Gomes. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. UNESP, 2005, p. 26. 17 SILVA, Eduardo. Entre Zumbi e Pai João, o escravo que negocia. Em: REIS, João José e SILVA, Eduardo (orgs.). Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 14.

cultura, que influenciará decisivamente nas relações estabelecidas entre eles, seus senhores e a sociedade. Os novos estudos procuram enfatizar os aspectos multifacetados da resistência negra durante a escravidão. Os cativos reelaboraram, reorganizaram e transformaram, sempre que possível, o universo em que viviam. As variadas formas de resistência escrava evidenciam que não somente “reagiam”, mas, pelo contrário, foram agentes históricos, que enfrentaram processos de lutas, conflitos, acomodações, enfrentamentos e confrontos. As visões a respeito do que os cativos consideravam liberdade e daquilo que concebiam como escravidão devem ser buscadas no cotidiano das experiências escravas. Embora os senhores procurassem controlar sistematicamente a população escrava, os cativos buscavam modificar seus destinos, alargando seus espaços em busca de autonomia dentro da escravidão. As estratégias de resistência eram constantemente ampliadas e reinventadas.18 Esta nova concepção de resistência contribuiu de maneira decisiva para a renovação dos estudos históricos. Porém, convém ressaltar que muitos destes estudos foram alvos de críticas, como aquelas dirigidas por Jacob Gorender, que acusa estes novos trabalhos de contribuírem para reabilitar a escravidão e a visão da democracia racial, bem como da suavidade das relações entre senhores e escravos presentes na obra de Gilberto Freyre.19 Embora as críticas de Gorender sejam por vezes exageradas, acredito que seu trabalho contribui para alertar acerca de aspectos importantes. Por mais que os estudos demonstrem a possibilidade de negociação por parte dos escravos, não podemos nos esquecer de que ela foi desigual, acontecendo em um sistema marcado pela profunda disparidade de relações sociais e pela violência. Caso as relações tivessem sido tão suaves como alguns estudos desejam evidenciar, não viveríamos até hoje em um país tão marcado pela discrepância econômica e social entre brancos e negros. Além disso, concordo com Michael F. Brown, que afirma que a hegemonia teórica do conceito de “resistência” nos últimos anos conduziu muitos estudiosos a considerarem os mais simples atos como uma resistência, levando à banalização do termo.20

18 GOMES, Flávio dos santos. Op. Cit., pp. 30 – 32; 19 GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990. 20 BROWN, Michael. On resisting Resistance. Fórum. American Anthropologist. Vol. 98. No. 4. December, 1996, p. 729-734.

É fato, contudo, que a resistência cativa existiu e desempenhou papel importante para a contestação do regime escravista. Sobretudo, após 1850, quando houve uma ampliação na margem de autonomia e negociação por parte dos escravos. Os cativos nascidos no Brasil, comercializados através do tráfico interno, estabeleciam com rapidez alianças e reivindicações antes inacessíveis aos africanos. A maioria dos escravos envolvidos neste tráfico estava tendo o primeiro contato traumático com a escravidão e possuía a experiência ou informações sobre o trabalho em outras fazendas e com outros senhores, desenvolvendo noções do que era “justo” ou “injusto”. Conforme destaca Sidney Chalhoub, o volumoso tráfico interprovincial trouxe consigo escravos com o sentimento de que seus direitos haviam sido ignorados, possibilitando a eles resistirem e, até mesmo, interferirem no rumo das transações que definiriam seu destino.21 Isso só foi possível através da resistência escrava e do aprendizado gradual dos senhores de que deveriam respeitar alguns direitos dos escravos – como a aceitação dos grupos familiares nas partilhas e vendas de cativos – com o risco de haver rebeliões. A transferência constante e numerosa de cativos através do tráfico interprovincial trouxe doravante o aumento da tensão social, sobretudo nas províncias do sudeste. A proliferação dos quilombos assustava as autoridades brasileiras, na medida em que muitos deles estabeleciam relações freqüentes com outros setores da sociedade envolvente.22 O medo do haitianismo esteve presente no Brasil desde o ocorrido em São Domingos, valendo ressaltar que tal sentimento aumentou diante do avanço das fugas e assassinatos de senhores e feitores no final do século XIX. Os temores do haitianismo misturavam-se com a preocupação frente às repercussões da Revolta dos Malês ocorrida em 1835 na cidade de Salvador, bem como o medo da existência de planos de revoltas articuladas entre escravos de várias partes das Américas com a participação de abolicionistas ingleses e emissários internacionais.23

21 CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.75. 22 Sobre quilombos ver: GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil (séculos XVII-XIX). São Paulo: Ed. EDUSP, 2005.; REIS, João José e GOMES, Flávio dos Santos (orgs). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhias das Letras, 1996. 23 SOARES, Carlos Eugênio Líbano e GOMES, Flávio dos Santos. "Com o Pé sobre um Vulcão": Africanos Minas, Identidades e a Repressão Antiafricana no Rio de Janeiro (1830-1840). Estud. afro-asiát., 2001, vol.23, nº 2.

Joaquim Nabuco, na obra O Abolicionismo não está imune a esse temor. Era necessário fazer a abolição, antes que os cativos se revoltassem. “Quanto mais crescer a obra do abolicionismo, mais se dissiparão os receios de uma guerra civil, de insurreições e atentados”.24 Reproduzindo um discurso de seu pai no Senado, quando criticava os conservadores por não aderirem à causa abolicionista, Nabuco destaca: “(...) não quereis ter os inconvenientes econômicos por que passam as Antilhas inglesas, correis o risco de ter os horrores de São Domingos”.25 No decorrer do texto, ele enfatiza: “Quanto mais crescer a obra do abolicionismo, mais se dissiparão os receios de uma guerra servil, de insurreições e atentados”.26 Na segunda metade do século XIX houve um aumento substancial do número de alforrias, motivado muitas vezes pela perda da legitimidade da instituição escravista. Conforme destacam Hebe Mattos e Robert Slenes, a constituição da família escrava aumentava a possibilidade de alforria, que despontava como um projeto coletivo a ser conquistado.27 Nesse período, a obtenção da liberdade aparecia como uma possibilidade real. Porém, convém ressaltar que a partir da segunda metade dos anos 40, a conquista da liberdade irá se deslocado da esfera da formação do pecúlio para a órbita intrínseca da negociação entre o escravo e seu senhor, embora ainda existisse a possibilidade da compra da alforria.28 Joaquim Nabuco, entretanto, aponta para o fato de que a obtenção da liberdade através da doação “é uma esperança que todo escravo pode ter, mas que relativamente é a sorte de muito poucos”.29 Apesar de demonstrar as dificuldades da obtenção da alforria, o autor destaca que a esperança da mesma fazia parte do cotidiano dos escravos, sobretudo após a lei de 28 de setembro de 1871, que abriu dois caminhos para a conquista da liberdade, quais sejam, o do resgate forçado pelo pecúlio e o do sorteio anual.30

24 NABUCO, op. cit. , p. 20. 25 Ibidem, p. 47. 26 Idem, p. 20. 27 CASTRO, op. cit. , 360 e SLENES, Robert. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.197. 28 FLORENTINO, Manolo. Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871. Em: FLORENTINO, Manolo (org.) Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp. 344-345. 29 NABUCO, op. cit. , p. 24. 30 Idem..

A Guerra do Paraguai, que tem seu final em 1870, traz como conseqüências a elevação política e social do Exército e o fortalecimento da campanha abolicionista. O Exército – formado por homens livres, não-proprietários, recrutados por castigo ou desemprego – era, até então, desprestigiado e, após a guerra, ele passa a ter uma posição política e social de destaque, negando-se a capturar escravos fugitivos e, como conseqüência, acaba por contribuir para a campanha abolicionista. Além de não mais desejar essa função “pequena”, membros do Exército que haviam lutado lado a lado de muitos cativos passam a se opor à instituição escravista.31 Joaquim Nabuco destaca em O Abolicionismo que o governo havia dado uma “classe social por aliada: o Exército”.32 Esta ascensão após a Guerra de setores até então excluídos da cidadania restrita abalou a estrutura hierarquizada e trouxe conseqüências diretas para a crise da escravidão e do Império, contribuindo de forma decisiva para o movimento abolicionista.33 Nabuco aponta para o fato de a que a cooperação dos escravos com o Exército constituiu-se no “enobrecimento legal e social daquela classe”.34 Em 1871 houve grande batalha no Parlamento em torno da Lei do Ventre Livre, que dava liberdade para as crianças nascidas de mãe escrava a partir daquela data, mas que previa indenização aos senhores pela criação delas até os oito anos, que podia ser paga em serviços das próprias crianças - prestados até os 21 anos –, ou em dinheiro, pelo Estado. A partir da aprovação dessa lei, as reivindicações dos escravos nascidos no Brasil passaram a estar, de certa maneira, reguladas pelo Estado monárquico. A Lei do Ventre Livre também reconhecia o direito do escravo ao pecúlio próprio e à compra de sua liberdade através do preço estabelecido pela justiça. Apesar dos avanços concretos não terem sido tão significativos, foi enorme o impacto simbólico da liberdade do ventre, tanto entre os senhores, como entre os cativos.35 Joaquim Nabuco destaca em O Abolicionismo: “imperfeita, incompleta, impolítica (sic), injusta, e até absurda, (...), essa lei foi nada menos do que o bloqueio moral da escravidão: ‘Ninguém mais nasce escravo’” (grifo do autor).36

31 SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 35. 32 NABUCO, op. cit, p. 43. 33 SALLES, Ricardo. Negros guerreiros. Nossa História. Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz, n° 13, p. 32. 34 NABUCO, op. cit, p. 43. 35 MATTOS, Hebe Maria. A face negra da Abolição. Nossa História. Rio de Janeiro: Editora Vera Cruz, n° 19, p. 19. 36 NABUCO, op. cit., p. 51.

Nos anos que se antecederam à Lei Áurea, a escravidão ia perdendo visivelmente a legitimidade frente à sociedade brasileira. Hebe Mattos destaca que houve uma “quebra da cumplicidade do conjunto da população livre com a continuidade da escravidão”.37 O movimento abolicionista ganhava força em todos os setores da sociedade, não se restringindo somente à Câmara. Na imprensa, os mulatos Francisco de Paula Brito, André Rebouças, José Ferreira de Menezes, José do Patrocínio, entre outros, fundavam jornais e produziam artigos contrários à escravidão. Em 1883, mesmo ano em que foi escrito O Abolicionismo, foi publicada a obra póstuma de , chamada Os escravos, na qual se destacava a poesia Navio Negreiro, escrita em 1868, configurando-se em uma denúncia dos horrores do tráfico. Em todos os ambientes da cidade debatia-se a questão, seja nas ruas, teatros ou salões. Pessoas de todas as concepções políticas, de todas as cores, credos e nacionalidades organizavam manifestações, boicotes e protestos contra esta instituição que já se mostrava falida. Arrecadavam-se fundos para promover alforrias. Milhares de anônimos militantes, profissionais liberais, biscateiros, libertos, escravos, capoeiras, negros, mestiços, brancos brasileiros, africanos e imigrantes participavam do processo. Os escravocratas respondiam incendiando jornais e perseguindo abolicionistas, mas o clamor pelo fim do regime já se espalhava por todo o país.38 Joaquim Nabuco aponta para o fato de que existia no país um núcleo de pessoas identificadas com o movimento abolicionista. Defendendo a criação de um partido abolicionista, ele destaca: “sob a bandeira da abolição combatem hoje liberais, conservadores e republicanos”.39 É interessante observar que logo no prefácio de O Abolicionismo Nabuco assinala a respeito da falta de apoio da escravidão em amplos setores da sociedade:

Já existe, felizmente, em nosso país uma consciência nacional – em formação, é certo – que vai introduzindo o elemento da dignidade humana em nossa legislação, e para qual a escravidão, apesar de hereditária, é uma

37 Ibidem, p. 344. 38 SOARES, Mariza de Carvalho e SALLES, Ricardo Henrique. Episódios de história afro-brasileira. Rio de Janeiro: DP&A/Fase, 2005, pp. 112 e 113. 39 NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 7.

verdadeira mancha de Caim que o Brasil traz na fronte.40

Enquanto nos Estados Unidos havia um movimento abolicionista bem estruturado, até meados de 1860 não havia no Brasil a “imagem de uma comunidade de sentimento abolicionista”. Célia Azevedo destaca que somente nas décadas de 1860 e 1870, houve no Brasil a criação de sociedades literárias e jornais criticando a escravidão.41 O movimento abolicionista no Brasil destacou-se por seu caráter moderado. A abolição lenta e gradual será defendida por muitos pensadores antiescravistas que embora reconhecessem a necessidade da libertação, temiam uma revolução fatal ao país. Porém, a partir da década de 1880 surgiram diversos grupos radicais abolicionistas que agiam por meios ilegais, incentivando e financiando as fugas de cativos.42 No decorrer do livro, Joaquim Nabuco enfatiza a evolução do pensamento antiescravista, dedicando capítulos específicos para abordar aspectos referentes ao movimento abolicionista e sua história no país. Ele destaca que no Brasil – ao contrário do que ocorreu em outros países – este movimento adquiriu um caráter de reforma política primordial.43 Segundo Nabuco, no país já se consolidara uma opinião pública que aderiu ao abolicionismo, com jornais e associações denunciando os horrores da escravidão, faltando unicamente vencer a batalha no Parlamento. A obra O Abolicionismo possui grandes afinidades com a corrente abolicionista de teor liberal, moderada e pragmática, que havia “ganho” a disputa contra a corrente abolicionista francesa, na Conferência contra a Escravidão, realizada em Paris, em 1867. Esta corrente francesa possuía um caráter anarquista e cobrava dos brasileiros que tivessem uma postura radical para que a escravidão acabasse de vez no país. A partir da vitória da corrente moderada contra a radical, o discurso abolicionista internacional que afirmava ser a escravidão no Brasil mais branda do que aquela praticada no sul dos Estados Unidos ganhou força total.44

40 Idem, p. XXI. 41 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, pp. 36-42. 42 SCHWARCZ, Lilia Moritz. op. cit., pp. 36-37. 43 NABUCO, op. cit. , p.14. 44 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Quem precisa de São Nabuco?. op.cit, p. 85-97.

Conforme Célia Azevedo evidencia, o movimento abolicionista brasileiro foi essencialmente secular e pragmático. Joaquim Nabuco destaca em sua obra que enquanto em outros países a propaganda abolicionista havia sido um movimento religioso, no Brasil o movimento nada deve à Igreja, que “nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação”.45 No país, “o abolicionismo é antes de tudo um movimento político”.46 Além de secular e pragmático, o movimento abolicionista do Brasil foi herdeiro de uma tradição iluminista que tendia a ver a escravidão como irracional, na medida em que levava o país ao atraso.47 A associação da escravidão como instituição contrária ao progresso da nação permeia toda a obra de Nabuco. Ancorado nas tradições iluminista e liberal, o autor procura evidenciar a todo instante como esta instituição afasta o país da civilização.

(...) dez milhões de brasileiros, que, nesse decurso de tempo, talvez cheguem a ser quatorze, continuarão a suportar os prejuízos efetivos e os lucros cessantes que a escravidão lhes impõem, e vítimas do mesmo espírito retardatário que impede o desenvolvimento do país, a elevação das diversas classes e conserva a população livre do interior em andrajos e, mais triste do que isso, indiferente à sua própria condição moral e social.48 (o grifo é meu).

Para o autor, “a escravidão pertence ao número das instituições fósseis, e só existe em nosso período social numa porção retardatária do globo”.49 Ao enumerar os motivos pelos quais a escravidão deveria ser erradicada, Joaquim Nabuco enfatiza que ela arruína economicamente o país, impossibilitando seu progresso material, bem como atrasa o crescimento do Brasil em relação a outros países, “que não a conhecem”. Além disso, ele destaca que “só com a emancipação total podem concorrer para a grande obra de uma pátria comum, forte e respeitada, os membros que atualmente se acham em conflito”, quais sejam, os escravos, os senhores, os inimigos da escravidão e os brasileiros em geral.50

45 NABUCO, op. cit., p. 13. 46 Idem, p. 14. 47 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil..., op. cit. , pp. 43-47. 48 NABUCO, op. cit, p.148. 49 Idem, p. 79. 50 Ibidem, pp. 81-82.

3. IMPORTÂNCIA DE O ABOLICIONISMO

Evaldo Cabral de Mello destacou que O Abolicionismo foi o melhor livro escrito sobre o Brasil no século XIX, sendo fundamental para a compreensão da formação sociocultural do povo brasileiro. Além disso, em conferência pronunciada no Itamaraty em decorrência das comemorações do sesquicentenário do nascimento de Nabuco, o historiador pernambucano considerou esta obra como “um dos textos fundadores da sociologia brasileira”, articulando uma visão totalizadora da nossa formação histórica a partir do regime servil. De fato, além de ser marcado por uma invejável erudição, em O Abolicionismo estão contidos elementos de fundamental importância para a compreensão do Império, sobretudo da segunda metade do século XIX, bem como apontamentos fundamentais referentes à constituição da população brasileira, a qual o autor distingue como descendente dos escravos. Assumidamente escrito como uma propaganda abolicionista, no livro estão contidas uma série de denúncias, sobretudo contra políticos e a Igreja católica, que ao contrário de outros países, acabou por legitimar e contribuir para a manutenção do cativeiro. Joaquim Nabuco inova ao colocar a escravidão como o aspecto central a ser resolvido. Para tanto, evidencia ser essa uma nódoa que degrada toda a nação, na medida em que está entranhada em toda a sociedade brasileira, que foi essencialmente estruturada tendo como base a escravidão. Nabuco vai mais longe e aponta como algo terrível a herança deixada pelos portugueses, trazendo consigo o atraso para o país e a visão negativa frente o trabalho. A escravidão, a princípio apareceria como algo positivo, mas com o passar dos anos ela traria prejuízos para o país, levando à bancarrota milhares de fazendeiros, que seriam empurrados para o funcionalismo público.51 Em finais do século XIX, o Brasil era representado, sobretudo pelos viajantes, como um “espetáculo de raças”, ou seja, uma nação multiétnica, que se se destacava pela sua coloração mulata. Muitos intelectuais tendiam a utilizar a mestiçagem para explicar o atraso

51 Ibidem, p. 128.

do Brasil e a inviabilidade da nação. 52 A idéia de um país degenerado pela mistura de raças terá grande força e expansão no período em que foi escrito O Abolicionismo, porém Nabuco não se mostra adepto dessa visão, embora às vezes flerte com o racismo. No capítulo denominado “Influências sociais e políticas da escravidão”, o autor já adianta a questão da mestiçagem, como característica típica do Brasil, elemento este que mais tarde será evidenciado por Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala:

A escravidão, ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, nunca desenvolveu a prevenção da cor, e nisso foi infinitamente mais hábil. O contato entre aquelas, desde a colonização primitiva dos donatários até hoje, produziram uma população mestiça.53

Apesar de todas as controvérsias existentes acerca da obra é inegável o fato de ser O Abolicionismo um marco no campo intelectual brasileiro. Através da denúncia da escravidão como principal empecilho para o desenvolvimento do Brasil e do apontamento das vantagens obtidas com o trabalho livre, Nabuco consegue evidenciar aspectos importantes da sociedade brasileira de então. Ele ultrapassa a questão do escravismo e levanta o tema da reforma agrária. O autor desenvolve a idéia de que a relação senhor/escravo era essencialmente violenta, oprimindo os cativos e colocando em perigo a sociedade inteira, pois inviabilizava o desenvolvimento da nação. Joaquim Nabuco inova e sistematiza uma série de elementos, tornando seu livro um testemunho histórico importantíssimo para aqueles que desejarem estudar a sociedade brasileira de então, que tinha como pilar de sustentação principal a escravidão. É preferível, portanto, deixar de lado a discussão sobre se Nabuco era ou não racista e procurar apreender a riqueza de informações existentes na obra, bem como o contexto no qual ela foi produzida. Concordando com Evaldo Cabral de Mello, considero O Abolicionismo uma obra atual, que deva ser lida e discutida, auxiliando-nos a compreender as mazelas sociais, causadas pelo preconceito e pelo racismo, que até os dias atuais afligem nossa sociedade.

52 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças, pp. 11-13. 53 Nabuco, op. cit, p. 123.