Joaquim Nabuco e O Abolicionismo ∗ Fernando Perlatto RESUMO: O artigo tem por objetivo analisar o contexto no qual a obra de maior destaque – O Abolicionismo – de Joaquim Nabuco foi produzida. Para tanto são extraídos trechos deste livro que demonstram aspectos característicos da sociedade da segunda metade do século XIX e como o autor se posiciona frente a eles. Além disso, pretende-se analisar a importância desta obra para o entendimento do período no qual viveu Joaquim Nabuco. PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Nabuco; abolicionismo; escravidão. ABSTRACT: The article aims at analysing the context in which the most important work of joaquim Nabuco – “O Abolicionismo” – was written. In order to do that, excerpts from the mentioned book were taken to show some aspects that characterise the society of the second half of the twentieth century and, also the author ideas towards it. Moreover, I intend to analyse the importance of this work to understand the period that Joaquim Nabuco lived. Words-Key: Joaquim Nabuco; abolition; slavery. INTRODUÇÃO Nos últimos anos houve um intenso debate envolvendo alguns dos grandes historiadores brasileiros acerca da obra de Joaquim Nabuco. Em artigos publicados na Folha de São Paulo, Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho defenderam a atualidade da obra e ressaltaram a sua grande importância para a análise sociológica brasileira. Além disso, nos textos intitulados Reler “O Abolicionismo” 1 e Saudade do escravo2, esses autores observaram que Nabuco não teria embarcado na “canoa furada” das teorias raciais vigentes no final do século XIX. Célia Maria Marinho de Azevedo, em artigo chamado Quem precisa de São Nabuco?3, critica os textos de Evaldo Cabral e José Murilo de Carvalho, enfatizando o ∗ Aluno do oitavo período do curso de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. 1 MELLO, Evaldo Cabral de (2000). Reler O Abolicionismo. Folha de S. Paulo, Caderno "Mais", 27/2, p. 18. 2 CARVALHO, José Murilo de. (2000), Saudade do Escravo. Folha de S. Paulo, Caderno "Mais", 2/4, p. 21. 3 AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Quem precisa de São Nabuco?. Estud. afro-asiát. [online]. jan./jun. 2001, vol.23, no.1 [citado 24 Dezembro 2004], p.85-97. Disponível na World Wide Web: pensamento racista presente na obra O Abolicionismo. Para ela, diversos intelectuais ao longo dos anos – inclusive na atualidade – procuraram construir e reforçar a imagem de Joaquim Nabuco como um santo. Segundo Célia Azevedo, outros pretensos heróis já desceram dos seus pedestais, ao passo que Nabuco conseguiu resistir à “ação corrosiva e maléfica do tempo”. A finalidade da autora, portanto, é “descanonizar” as imagens produzidas sobre Joaquim Nabuco e evidenciar que ele também estava sujeito aos preconceitos existentes na época. Embora tenda a me posicionar mais para o lado de Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho, creio que as visões apresentadas por estes autores e por Célia Azevedo tendem a privilegiar alguns aspectos dos textos de Nabuco em detrimento de outros, que levam a posicionamentos divergentes. Nabuco era um homem de seu tempo e, como tal, estava sujeito aos preconceitos em voga no período. Como pessoa esclarecida que era, ele teve contato com as teorias raciais, darwinistas e evolutivas, que o influenciaram na escrita de suas obras. Porém, vale ressaltar que embora o racismo científico fosse moda no Brasil em finais do século, Nabuco e outras vozes influentes – como Manuel Bonfim, Araripe Júnior, Alberto Torres e Machado de Assis – atuaram de forma dissonante a esta teoria científica tão em voga nesse período. Procurarei inserir este artigo naquilo que Robert Darton denomina como história social das idéias, que aborda as ideologias e a difusão das idéias.4 Analisarei a obra de Nabuco a partir de uma concepção da história social, investigando a influência que determinadas idéias possam ter exercido sobre ele, mas, sobretudo, atentando para o contexto no qual o autor viveu, marcado por transformações nas relações entre senhor e escravo. O Abolicionismo deve ser analisado como uma obra de seu tempo, na medida em que reflete uma série de questões vigentes no período, permitindo aos historiadores e outros estudiosos adentrarem nos meandros de uma sociedade tão complexa como a brasileira do final do século XIX. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2001000100004&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0101-546X. 4 Darton, Robert. O beijo de Lamourrete – mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 188. Atualmente, junto às indagações dirigidas aos textos ou aos discursos e às mensagens, deve-se atentar para a intertextualidade e para a contextualização.5 O historiador Quentin Skinner aponta para o risco do anacronismo no estudo de história das teorias políticas e sociais. Segundo ele, esse tipo de abordagem mostra-se “incapaz de recuperar a identidade histórica de um dado texto”. Além de conhecer o significado das “idéias” ou conceitos de determinado texto, é necessário, para o autor, conhecer quem os maneja e com quais objetivos. Isso só pode ser feito através do (re)conhecimento dos vocabulários políticos e sociais da respectiva época ou período histórico, de maneira que se possibilite situar os “textos” em seu campo específico de “ação” ou de atividade intelectual. Os usuários da linguagem não somente enunciam por escrito ou verbalmente o que desejam, mas eles debatem e respondem a outras “falas” (speech acts).6 Partindo dessa concepção de Skinner, procurarei analisar a obra O Abolicionismo e o contexto no qual ela foi produzida. Além de mostrar quem foi Joaquim Nabuco, tentarei recuperar a “identidade histórica” do livro e observar quais eram as intenções e objetivos do autor. Situarei a obra de Nabuco nos anos finais da escravidão e – com o auxílio de estudos historiográficos sobre o período – analisarei as possíveis influências que o pensamento darwinista e racista deste momento possam ter exercido sobre ele e como que o autor se posicionou diante das mudanças ocorridas no Brasil, nos anos que antecederam o abolicionismo. Procurarei destacar no artigo a análise do fluxo das idéias vigentes no país no contexto da produção de O Abolicionismo e o processo sóciopolítico em que surgem essas idéias.7 Durante muito tempo, a historiografia tendeu a ver o abolicionismo como um presente dado pela Princesa Isabel aos escravos ou enxergá-la como algo protagonizado por uma elite branca abolicionista. Estudos recentes têm demonstrado que longe de serem atores passivos no processo, os cativos atuaram de maneira ativa, negociando e resistindo, de forma a minar as bases nas quais se sustentava a escravidão. Célia Azevedo aponta para a necessidade dos novos estudiosos do processo abolicionista combinarem, de maneira 5 FALCON, Francisco. História das Idéias. In: CARDOSO, Ciro F. e Vainfas, Ronaldo (orgs.). Domínios da História. Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 95. 6 SKINNER, Quentin. “Meaning and understending in the History of Ideas”. In: History as theory, 8, 3-53, 1969. Retirado de: FALCON, Francisco, op. cit., pp. 96 e 97. 7 Esta idéia está presente em: AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada (século XIX). São Paulo: Annablume, 2003, pp. 35 e 36. equilibrada, as ações dos escravos e as dos abolicionistas.8 No presente artigo, procurarei observar como que a importância do papel dos escravos para a abolição foi percebida por Joaquim Nabuco e de que forma sua obra contribuiu para a contestação do regime escravista. 1. JOAQUIM NABUCO E O RACISMO A obra O Abolicionismo é um testemunho histórico e, como tal, devem ser buscadas as intenções do autor ao redigi-la. Porém, vale ressaltar que nenhum texto se esgota na intenção dos autores, na medida em que existem aspectos da sociedade que o autor não tem interesse em informar, além do fato de que ele “controla” o seu texto, determinando os sentidos do mesmo. O livro de Joaquim Nabuco deve ser visto como uma forma de intervenção política, na medida em que ao escrevê-lo, o autor seleciona “argumentos e conceitos de teorias estrangeiras” não de maneira aleatória, mas através de uma triagem, que estava ligada à sua cultura e prática política.9 As teorias raciais tiveram grande difusão na Europa na metade do oitocentos, chegando tardiamente no Brasil. Essas idéias foram muito bem acolhidas pela reduzida elite intelectual do país que se reunia nos diversos estabelecimentos científicos de ensino e pesquisa criados no século XIX. A década de 70 será marcada pela entrada do ideário positivista-evolucionista em que os modelos raciais exerceram papel de destaque. Nesse momento, também ocorreu o fortalecimento e amadurecimento de alguns centros de ensino e pesquisa nacionais – como os museus etnográficos, as faculdades de direito e medicina, os institutos históricos e geográficos.10 As elites locais consumiam a literatura racial de maneira original, adotando aquilo que lhes parecia conveniente e descartando ou adaptando o que não correspondia à realidade brasileira.11 Ainda que não considere que Joaquim Nabuco tenha aderido com tal fervor a essas teorias – assim como outros intelectuais da época, como Nina Rodrigues, Silvio Romero e 8 AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Op.cit., p. 34. 9 ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz & Terra, 2002, p. 39. 10 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 14-18. 11 Ibidem, p. 41. Euclides da Cunha – ele flerta com essas idéias e as transporta para seus textos. Segundo Thomas Skidmore, o pensamento racial teve seu auge entre 1890 e 1920, quando as idéias de hierarquização de raças e a ideologia do “branqueamento” adquiriram foro de legitimidade científica.12 Para o antropólogo Roberto da Matta, foi somente no final do século XIX que as teorias raciais foram absorvidas pela elite intelectual brasileira.13 A obra O Abolicionismo foi escrita no final desse século, período no qual as idéias de Buckle, Kidd, Le Bom, Gobineau, Lapouge e vários outros darwinistas sociais – que pregavam a inferioridade negra – começavam a se estabilizar no pensamento brasileiro.
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