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Teoria De Gaia; Transdisciplinaridade

Teoria De Gaia; Transdisciplinaridade

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC – SP

HOMERO JORGE MAZZOLA

INCERTEZAS, BIFURCAÇÕES E DILEMAS NA JORNADA HUMANA

DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO

2017

HOMERO JORGE MAZZOLA

INCERTEZAS, BIFURCAÇÕES E DILEMAS NA JORNADA HUMANA

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, como exigência parcial para obtenção do título de DOUTOR em Ciências Sociais, sob a orientação do Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho.

SÃO PAULO

2017

BANCA EXAMINADORA

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AGRADECIMENTO ESPECIAL

O meu profundo agradecimento à FUNDASP, pela concessão de bolsa e licença da docência na FEA/PUCSP, o que possibilitou a conclusão de meu programa de doutorado em Ciências Sociais.

AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Prof. Dr. Edgard de Assis Carvalho. Palavras são insuficientes para expressar seu empenho em me abrir portas de novos conhecimentos e me proporcionar liberdade para a elaboração desta tese. Reitero minha gratidão por sua seriedade, sua ética, seu compromisso acadêmico inabalável e por compartilhar sua erudição, que se tornaram para mim uma referência viva e presente, a qual espero ser capaz de passar adiante como modelo a ser difundido e seguido.

Às professoras doutoras Graziela C. Vidal e Vivian Blaso, a minha gratidão pelas críticas construtivas no momento da qualificação.

Aos membros da banca, professores Edmilson Felipe da Silva, Francisco Agustin Machado Echalar, Graziela Cristina Vital, Lucia Helena Vitalli Rangel, Mauro Luiz Peron e Vivian Blaso, que juntamente com meu orientador, prof. Edgard, contribuíram para a realização de meu projeto.

Agradeço aos meus professores da pós-graduação em Ciências Sociais da PUC de São Paulo, pelos ensinamentos, compreensão e incentivo dados durante a condução deste trabalho

Meu reconhecimento à Profa. Rosana Lucille Bassinello e ao Prof. Plinio João de Souza da FEA/PUC-SP pelo apoio incondicional, cuja contribuição foi imprescindível para a conclusão de meu programa de doutorado.

Agradeço aos companheiros do Núcleo Complexus, pelo apoio e saudável camaradagem.

Á minha esposa, Regina e a meus filhos, Fabiana, Bruno e Laura meu profundo reconhecimento pela infinita compreensão quanto aos inumeráveis momentos que este trabalho nos separou.

Finalmente, homenageio os inúmeros pensadores, pesquisadores e cientistas que, ao longo de gerações, construíram o acervo cognitivo que fomentou a elaboração desta tese.

......

Imagine there's no heaven It's easy if you try No hell below us Above us only sky

Imagine all the people Living for today

Imagine there's no countries It isn't hard to do Nothing to kill or die for And no religion too

Imagine all the people Living life in peace

You may say, I'm a dreamer But I'm not the only one I hope someday you'll join us And the world will be as one

Imagine no possessions I wonder if you can No need for greed or hunger A Brotherhood of man

Imagine all the people Sharing all the world

You may say, I'm a dreamer But I'm not the only one I hope someday you'll join us And the world will live as one

......

John Lennon – Imagine

RESUMO

Construir um futuro sustentável é a grande missão da humanidade em um mundo assinalado por desigualdades sociais enraizadas e mudanças ambientais profundas. Saint-Exupéry disse: “O futuro não é um lugar para onde estamos indo, mas um lugar que estamos criando. O caminho para ele não é encontrado, mas construído e o ato de fazê-lo transforma tanto o realizador quando o destino”. O homem tem competência para iniciar sua construção, mas deverá se transformar para concretizá-lo. Com esta tese, elaborada na forma de um ensaio, exploram-se possibilidades para se construir esse futuro auspicioso, comprometido com as gerações futuras, sem desprezar as forças que defendem a continuidade do nosso modo de vida. Três questões fundamentais a embasam: de onde viemos, quem somos e para onde vamos, que na tese são abordadas na forma de jornadas humanas: passada, presente e futura. Da primeira extraem-se as lições e aprendizados da história evolutiva, imprescindíveis para se compreender o presente e planejar o futuro. A segunda jornada retrata tanto as profundas transformações que o homem produziu no planeta, adequando-o às suas necessidades e desejos, como as reações dos se posicionam contra a continuidade do sistema mundo capitalista e convidam a humanidade a metamorfosear-se em um metassistema rico em possibilidades ou sucumbir no abismo da insignificância generalizada. Na última jornada, a futura, são abordados conhecimentos sobre a complexidade do mundo e sobre a natureza psíquica humana, que alimentam discussões sobre as transformações individuais e coletivas que devem ocorrer para que se possa engendrar um futuro desejado. O homem tem diante de si incertezas, bifurcações e dilemas, que podem conduzi-lo à catástrofe ou ao bem-estar. A deterioração social e climática, perversa por si, pode ser também um bem e tirar a humanidade da passividade, conduzindo a uma mudança abrangente. Um caminho plausível é um novo contexto civilizatório embasado em uma reforma educacional holística e ecológica, e estruturado através de uma sociedade realmente global: uma Sociedade-Mundo. Há um grande desafio à frente. O que acontecerá, entretanto, só o futuro dirá.

Palavras-chave: Bifurcações; Complexidade; Ecologia Profunda; Física do Não- Equilíbrio; Pensamento Complexo; Psicologia Analítica; Sustentabilidade, Teoria de Gaia; Transdisciplinaridade.

ABSTRACT

To build a sustainable future is humanity's great mission in a world characterized by deep social inequalities and environmental changes. Saint-Exupéry said: "The future is not a place where we are going, but a place we are creating. The path to it is not found but built and the act of doing so transforms both the creator and his destiny". Man has the competence to begin its construction, however, must transform himself to make it happen. The purpose of this thesis, elaborated in the form of an essay, is to explore possibilities to build this auspicious future, committed to future generations without under valuating the forces that defend the continuity of our way of life. Three fundamental questions ground this work: where do we come from, what are we and where are we going to, that are structured in three human journeys: past, present and future. In the first we find the lessons and learnings of the evolution process, essential for understanding the present and planning the future. The second journey depicts both the human capacity to transform the planet, adapting it to its needs and desires, as the resistance of those who stand against the continuity of the capitalist world system and defy humanity to metamorphose into a meta system rich in possibilities or to sink in a generalized insignificance. On the last journey, the future, it is approached a vision of the complexity of the world and the human psychic nature, which feed discussions about the individual and collective transformations that must occur to generate a desired future. Man has before him uncertainties, bifurcations and dilemmas, which can result in catastrophe or well-being. The social and climatic deterioration, perverse by itself, can also be good, taking the humanity off passivity, leading it to an overall transformation. A plausible path is a new civilizing context grounded in holistic and ecological educational reform, and structured through a truly global society: the World-Society. There is a great challenge ahead. What will happen, however, only the future will show.

Keywords: Analytical Psychology; Bifurcations; Complex Thinking; Complexity; Deep Ecology; Gaia Theory; Non-Equilibrium Physics; Sustainability, Transdisciplinarity.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO p. 11

ATO UM - JORNADA PASSADA: TERRA, GAIA e o HOMO-SAPIENS p. 20

CENA 1 - TERRA E VIDA p. 22

CENA 2 - TEORIA DE GAIA p. 30

CENA 3 - CRÍTICAS À TEORIA p. 40

CENA 4 - GAIA E O HOMO SAPIENS p. 53

CENA 5 - PERCEPÇÕES p. 66

ATO DOIS - JORNADA PRESENTE: DOIS MUNDOS p. 76

CENA 1 - A NATUREZA HUMANA – UMA HERANÇA COMPLEXA p. 80

CENA 2 - O SISTEMA MUNDO CAPITALISTA p. 94

CENA 3 - SUSTENTABILIDADE – RESGATE OU MISTIFICAÇÃO ? p. 108

CENA 4 - A BUSCA DO BEM COMUM: RELIGIÃO, ÉTICA E ALTRUÍSMO p. 123

CENA 5 - UM MUNDO SEMI-INVISÍVEL p. 141

ATO TRÊS - JORNADA FUTURA: INCERTEZAS, BIFURCAÇÕES E DILEMAS p. 154

CENA 1 - UM FUTURO INCERTO p. 157

CENA 2 - HOMO PSIQUICO p. 175

CENA 3 – UM NOVO CONTEXTO CIVILIZATÓRIO p. 187

GLOSSÁRIO p. 202

REFERÊNCIAS p. 205 11

INTRODUÇÃO

Terra, nossa casa, nosso lar, que nos abriga e sustenta. Esfera azul em suspensão no éter imensurável, que contrasta com seus irmãos pálidos e sem vida. Aqui começa esta tese, que aborda a relação entre Gaia, a Mãe-Terra, e seus filhos. Uma tese permeada de dúvidas e incertezas, que ambiciona discorrer sobre o passado e presente dessa relação maternal e, particularmente, sobre a jornada futura da humanidade no planeta. Este trabalho se inicia com a origem do universo, prossegue através do surgimento do sistema solar e da vida no planeta, continua com a abordagem da contemporaneidade e se propõe a contextualizar um possível futuro, consubstanciado nas evidências e saberes científicos disponíveis, embora o futuro seja um tema complexo. Sua construção é feita, paulatinamente, através de conhecimentos sobre o passado e o presente, fruto de séculos de estudos e pesquisas das ciências da terra, da vida, das ciências humanas e sociais, desenvolvidos sobre as bases do legado cartesiano, que mudou radicalmente a visão de mundo, mas, determinou formas parciais de descreve-lo, embasadas em visões científicas simplificadoras e compartimentalizadas. Se por um lado o cartesianismo, o iluminismo e o positivismo, contribuíram para erigir o edifício atual do conhecimento, a Física do não-equilíbrio e estudos da complexidade trouxeram uma nova abordagem fenomenológica, que transcendeu as limitações ainda predominantes nas ciências, usando o caminho transdisciplinar. Sem essa postura metodológica, um tema de tal complexidade fica difícil de ser desenvolvido, pois prospectar o futuro homem/planeta não é tarefa de uma particular ciência, mas de várias, o que incentiva a abordagem transdisciplinar.

A transdisciplinaridade pode ser um caminho para deter o furor da fragmentação. É um domínio cognitivo que se localiza além das disciplinas e visa construir metapontos de vista sobre o homem, a terra, a vida, a natureza, o cosmo. É, igualmente, estratégia de pesquisa, caminho sem destino, não um receituário frio de procedimentos a serem operacionalizados diante de objetos inertes.

A transdisciplinaridade exige conhecimento amplo da área tronco do pesquisador; prolonga-se, porém, para além dela, a fim de construir um conhecimento complexo da cultura, mesmo sabendo que só decifrará um pequeno grão de areia dessa extensa rede

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de conversações, cujo acesso jamais será inteiramente apreendido (Carvalho, 2009, p. 126).

A abordagem transdisciplinar, uma das duas bases que sustenta essa tese, representa o “modus operandi” de uma nova ciência, complexa em sua essência, que vem se revelando como uma das alternativas possíveis na bifurcação que se desenha no processo científico, divergindo do velho paradigma ocidental, assentado sobre a neutralidade científica e a dissociação entre sujeito e objeto (Almeida, 2012). A segunda é o ensaio teórico que, sem transgredir os limites do estado da arte do conhecimento científico, permite maior liberdade propositiva sobre tema tão controverso, o futuro comum, em que o domínio dos conhecimentos é pequeno. O ensaio, sem deixar de ser científico, agrilhoa menos o pensador do que outros métodos, não desrespeita o “estado da arte” científico e agrega bases de conhecimento coadjuvantes. Einstein teve essa percepção há mais de 60 anos, ao afirmar que o templo das ciências se apresenta como um edifício de mil formas e os homens que o frequentam assim como suas motivações revelam-se bem diferentes1. Defendia que a pesquisa cientifica e o individualismo intelectual nascem juntos, mas forças econômicas, institucionais e paradigmáticas acabam por submeter a primeira aos seus caprichos, privando-a de liberdade, conduzindo-a à especialização excessiva, ao fracionamento e ao servilismo científico (Einstein, 1981).

O ensaio teórico representa um estudo profundo sobre determinado assunto, onde o autor se aprofunda no tema expondo-o de forma lógica e reflexiva. Não há necessariamente uma pesquisa formal empírica, mas sim bibliográfica e os argumentos resultantes devem ter um alto nível de interpretação e julgamento pessoal. Exige muita informação cultural e maturidade intelectual, sendo muito usado para exposição de ideias científicas e filosóficas.

...o ensaio, desde a época de Montaigne se tornou uma forma respeitável....sua razão de ser era a noção de que os pensamentos, sentimentos, incertezas, certezas e contradições de uma pessoa merecem divulgação e em seguida atenção de outras...da época de Montaigne até a atualidade, os ensaios adquiriram diversas formas e formatos,

1 Escrito por Albert Einstein e publicado originalmente em 1949, com o título How I see the World

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assim como são utilizados para diversos fins: literários, filosóficos, científicos, etc... Diferente do método tradicional da ciência, em que a forma é considerada mais importante que o conteúdo (grifo deste autor), o ensaio requer sujeitos, ensaísta e leitor, capazes de avaliarem que a compreensão da realidade também ocorre de outras formas.

O ensaio deve ser lido por sujeitos com espíritos livres de preconceitos, sem estarem dominados pelo formalismo da ciência. Aqui o leitor não encontrará a disposição formal de um estudo que segue a divisão e a lógica estabelecida pelas metodologias científicas tradicionais. No lugar do objetivo geral, dos objetivos específicos, da justificativa, da fundamentação teórica, da metodologia que define os critérios de coleta e análise de dados e da conclusão, no ensaio a orientação é dada não pela busca das respostas e afirmações verdadeiras, mas pelas perguntas que orientam os sujeitos para as reflexões mais profundas...... o ensaio necessita de leitores preparados para compreender a sua importância para a formação do conhecimento na atualidade. Basta lembrar que o empirismo, o racionalismo, o positivismo e tantos outros conhecimentos que sustentam a base da ciência tradicional de hoje surgiram por meio de vários ensaios de pensadores e intelectuais. (Meneghetti, 2011, p. 320-332)

Esta tese é dividida em três atos, denominados jornadas, que seguem a cronologia: passado, presente e futuro. Epistemologicamente é dividida em três blocos de conhecimentos: as ciências da vida e da terra; as ciências humanas e sociais; e novos conhecimentos, considerados coadjuvantes pelas chamadas ciências tradicionais, como os oferecidos pela Física do não-equilíbrio, pela complexidade, pela psicologia profunda e pela ecologia. O surgimento do universo é o marco zero desta narrativa, que prossegue descrevendo como, a partir de uma singularidade física, o “Big Bang”, surge tudo o que se conhece, a matéria, o tempo e o espaço. Bilhões de anos se passam até o nascimento do Sol, terceiro de uma terceira geração de sois, e os planetas que o cortejam. O Sol fecunda a Terra e engendra a vida, que se dissemina pelo planeta e gera Gaia, a Grande Mãe. Gaia é o sistema vivo composto de todas as espécies e do homem. Este, seguindo um caminho diferenciado,

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desenvolve um comportamento dominador e explorador, apossando-se dos recursos comuns.

O primeiro ato, intitulado: “Jornada Passada - Terra, Gaia e o Homo Sapiens”, dividido em cinco cenas, é embasado nas ciências naturais, com incursões na sociologia e antropologia, e procura descrever os conhecimentos adquiridos nos últimos séculos sobre a evolução da Terra, o surgimento de Gaia e a trilha evolutiva até o sapiens-sapiens. Seu foco é dirigido a explorar a integração entre o planeta e o sistema vivo, tendo o homem como ator central. James Lovelock e Edgar Morin são seus contribuidores. O primeiro explora o conhecimento construído pelas ciências da terra e da vida, mas é um crítico feroz das visões simplistas e fragmentadas ainda predominantes, que oferecem interpretações parciais sobre os fenômenos naturais (Lovelock, 1988). Com Morin vem as proposições sobre a transformação do homem animal ao homem cultural, se afastando do excessivo antropologismo e biologismo atuais, através de abordagens que contemplam os três princípios da complexidade: dialogia, recursividade e o princípio hologramático, oferecendo um entendimento profundo e diferenciado sobre as relações da natureza com a cultura (Morin, 1973). Nesta jornada convida-se o leitor a rever a crença antropocêntrica, substituindo-a por outra, na qual o homem se torna peça vital e estratégica para enfrentar os complexos desafios que se esboçam no horizonte próximo, levando a reflexões provocativas sobre os rumos da biosfera.

O ato dois intitulado: “Jornada Presente: Dois Mundos”, dividido em cinco cenas, dá continuidade à relação Gaia/homem focado na atualidade e no passado próximo. Procura criar um quadro representativo do mundo, como construído pelo homem, através de abordagens culturais, econômicas, científicas e sociais. Amplia- se dessa forma, o caminho transdisciplinar ao incorporar conhecimentos, complementares. Busca-se uma discussão franca e plural entre saberes, possibilitando compreender esse homem moderno e pós-moderno, olhando-o sob óticas distintas: homo culturalis, homo socialis, homo faber, homo economicus, homo tecnologicus, homo religiosus, homo ethicus, enfim homo sapiens mas também demens.

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Foi a relação entre o ambiente e os primeiros hominídeos que moldou o homem ao ser complexo e cultural que se tornou, esquecido de suas origens e desprendido da natureza, vivendo submerso em uma rotina de globalização e mercantilização. Minimizou as consequências de suas ações sobre o mundo natural, sustentadas por uma antropologia limitada que não percebeu adequadamente a complexidade da natureza humana (Morin, 1973). Suas conquistas transcenderam o homo culturalis e o homo socialis, transformando-o em homo economicus e homo tecnologicus. Criou uma estrutura global em rede, na qual o capitalismo, o sistema mundo2 dominante que alicerça a sociedade mundial, alimenta a rede de conhecimentos e desenvolvimentos tecnológicos, dita regras e costumes e condiciona a jornada futura da humanidade.

. O capitalismo desalojou sistemas econômicos concorrentes, dominou corações e mentes, se apossou dos recursos planetários, ampliou a ação exploratória do homem, aumentou a debilidade homeostática de Gaia mas também produziu amplos benefícios, o que o torna, paradoxalmente, um importante e imprescindível aliado para enfrentar a grave crise ambiental, por dispor de abundantes recursos econômicos e tecnológicos, mas que exige mudanças substanciais em seu modus operandi, sem o que dificilmente ocorrerão as mudanças que o planeta e a humanidade necessitam. Essas constatações provocam preocupações crescentes na sociedade global, que está sendo levada a repensar sua relação com a natureza, forçando-a a idealizar outras possibilidades de progresso. Surge, assim, a Sustentabilidade, modelo econômico alternativo ao capitalismo, visto por muitos como uma forma viável de se manter o crescimento econômico através de ações de desenvolvimento sustentável. O termo suscita polemica entre pensadores e há os que consideram Sustentabilidade um conceito empregado de forma tão comercial que se transformou num modismo, sem que seu conteúdo seja verdadeiramente claro ou definido.

Capitalismo tradicional e Sustentabilidade se transformaram em um sistema estelar duplo, em que um orbita em redor do outro, porém, insuficientes para atender

2 Entende-se por sistema mundo, denominação criada por Immanuel Wallerstein, o conjunto de costumes, regras, procedimentos, paradigmas, que regulam o funcionamento de sociedades durante períodos históricos (Wallerstein, 2002)

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as reais necessidades da biota. Reações surgem contra este “status quo”, alertando sobre o tempo exíguo para se efetivar as mudanças necessárias para enfrentar as incertezas do devir. Três desses movimentos reativos são destacados na tese: religião, ética e a denominada revolução do altruísmo. Compromissados com o bem comum, trazem outros pontos de vista sobre o homem contemporâneo, alargando a perspectiva transdisciplinar. Religião, um tema controverso, permeia o mundo influenciando pensamentos, comportamentos e condutas humanas através de uma pluralidade de dogmas, cânones e crenças que ora, se alienam do mundo real, ora se aliam ao poder econômico, ora defendem o mundo natural. A ética é um ato de religação consigo, com outros, com a comunidade, com a história, com a sociedade humana e com o próprio universo (Carvalho, 2009). Ser ético faz parte do processo de individuação, definido por Jung como o compromisso maior da jornada humana em que o homem busca alcançar uma singularidade profunda, tornando-se o próprio “self”3. A prática ética segue o preceito kantiano de não fazer ao próximo o que não se quer para si próprio, mas também deve ser utilitarista, produzindo um aumento de felicidade em todos os que são por ela atingidos (Singer, 2002). A revolução do altruísmo representa uma visão transdisciplinar que engloba biologia, neurociências, sociologia, filosofia, psicologia e religião, e defende que atitudes genuinamente altruístas têm poder de transformação positiva sobre cada um de nós e sobre a comunidade de vida do planeta (Ricard, 2015).

Termina-se esta segunda jornada abordando-se um tema discutido pelas ciências sociais, mas relegado a segundo plano pelas forças econômicas e políticas: a dicotomia entre uma sociedade eurocêntrica que se Invisível não é irreal; é o real que não é sente no controle de seu destino e outra, quase invisível e visto pouco conhecida. Constitui-se de povos tradicionais, Murilo Mendes – O autóctones, que conservam tradições de relacionamento e Discípulo de Emaús – p. 14 respeito com a natureza, compromissados com o cuidado da casa comum, a Terra; por indivíduos e entidades que se esforçam para aumentar a conscientização da humanidade para os graves problemas que atravessamos; e por

3 Self ou si-mesmo é o arquétipo organizador dos processos psíquicos e da unificação; atrai a si e harmoniza os demais arquétipos e suas atuações nos complexos e na consciência, une a personalidade, conferindo-lhe um senso de “unidade” e firmeza ”.

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saberes e culturas milenares de povos que aprenderam a respeitar Gaia e sua obra. Essa sociedade semi-invisível talvez represente para o futuro do planeta o que a energia escura é para o futuro do universo, a diferença entre uma eventual contração provocada pela atração gravitacional (Big Crunch) e a eterna expansão até atingir o zero absoluto, a morte eterna, sem que ainda se tenha encontrado um “caminho do meio”. Será isso um sinal para a humanidade? Com estas abordagens espera-se ampliar as discussões sobre a contemporaneidade da sociedade humana, explorando vetores que podem ter um impacto significativo sobre os rumos planetários futuros, objeto da última jornada.

A terceira e última jornada, intitulada: “Jornada Futura: Incertezas, Bifurcações e Dilemas” se constitui na parte mais desafiadora e propositiva desta tese. Conhecer o devir tem sido uma necessidade humana por milhares de anos. Iniciou-se com a leitura dos astros, prosseguiu com a consulta a divindades através de oráculos e interpretação do comportamento e vísceras de animais, e chegou à modernidade com o uso de recursos científicos. Vários métodos prospectivos matemáticos foram criados, oferecendo projeções a partir de dados históricos; ou estatísticos, elaborados sobre as percepções individuais de inumeráveis “experts” de diversas áreas de conhecimento. Para corroborar o viés do futuro “ O futuro não é um lugar como algo a ser construído e não dado, onde estamos indo, mas um convidamos a Física do não-equilíbrio. Oferece lugar que estamos criando. O caminho para ele não é uma visão inovadora e romântica do mundo, encontrado, mas construído e alijando a crença do tempo como ilusão e o futuro o ato de fazê-lo muda tanto o como certeza. Não existem mais certezas e os realizador quando o destino “ processos naturais e sociais, embora erráticos, não Antoine de Saint-Exupery são caóticos, nem totalmente indeterminados e imprevisíveis. Nesse admirável mundo novo, o distanciamento de situações de estabilidade, que predomina na natureza, é o grande responsável pela exuberância da vida, e o homem assume a função de agente planetário da transformação, o nucleador de mudanças, o contestador dos caprichos do destino, o cocriador, ao lado de Gaia, de um futuro auspicioso para a biota (Prigogine, 2011).

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O relatório Brundtland4 sedimentou as responsabilidades do homem em relação ao futuro comum: “satisfazer as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. Embora amparado por uma ampla estrutura de conhecimentos científicos, o homem se mostra impotente para conduzir as medidas corretivas ambientais e sociais necessárias. Uma nova abordagem poderá trazer esclarecimentos sobre essa relativa imobilidade humana. Incômoda ao olhar científico e marginalizada nas discussões sobre o futuro, representa a incursão em um terreno temerário, vinculado a ideologias místicas e metafísicas: o universo psíquico profundo. Representa a outra polaridade humana, quase desconhecida.

“ ... o homem contemporâneo paga o preço de uma incrível falta de introspecção. Não consegue perceber que, apesar de toda a sua racionalização e toda a sua eficiência, continua possuído por "forças" fora do seu controle. Seus deuses e demônios absolutamente não desapareceram; têm, apenas, novos nomes. E o conservam em contato íntimo com a inquietude, com apreensões vagas, com complicações psicológicas... “ (Jung, 1964, p. 82)

Todos os aspectos discutidos induzem a reflexões sobre o futuro comum do homem e do sistema vivo. É intenção desta tese incitar o leitor a pensar sobre o devir da humanidade, que se alije do ceticismo alienante de um futuro sem esperanças, como os suscitados pelos prognósticos do 5º. Relatório de Mudanças Climáticas do IPCC (Painel Internacional de Mudanças Climáticas), embora condicionados à imobilidade humana. Esta conjunção de fatos e conhecimentos sobre a biosfera, que não são recentes, serviu como inspiração para a proposição de um novo paradigma para as relações homem/natureza, o Paradigma da Ecologia Profunda, ou Paradigma Emergente. Oferece um caminho alternativo baseado em uma nova percepção da realidade, que tem profundas implicações não apenas para a ciência e para a filosofia, mas também para as atividades comerciais,

4 Relatório, elaborado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento da ONU, em 1972. Apresenta uma visão crítica do modelo de desenvolvimento adotado pelos países industrializados e reproduzido pelas nações em desenvolvimento, que aumentam os risco ambientais pelo uso excessivo dos recursos naturais sem considerar a capacidade de suporte dos ecossistemas.

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a política, a assistência à saúde, a educação e a vida cotidiana (Capra 1996). O paradigma emergente traz o compromisso de reinserir o homem em seu devido papel no processo da vida, como um elo integrado à natureza e prepará-lo para enfrentar os crescentes desafios ambientais.

Reforçam-se as ideias centrais dessa terceira jornada com a percepção de que profundas mudanças ocorrerão no planeta até o final do século, o que pode ser inferido não somente pelo conhecimento deficiente e parcial da homeostasia gaiana, como pela inércia geral em se aplicar medidas eficazes de mitigação dos impactos ambientais. A humanidade deve-se preparar para ser mais resiliente do que tem demonstrado, enfrentando a bifurcação civilizatória que está diante de si e criar condições para escolher o caminho mais auspiciosos para as gerações futuras. A educação tem papel singular nesse contexto, mas deve ser repensada.

Acredita-se que as condições de percurso doravante moldarão uma nova sociedade global. Deverá, provavelmente, atravessar períodos de dificuldades, escassez e redução populacional, que a tornarão resiliente, sábia, integrada simbioticamente com Gaia, a mãe arquetípica. Não poderá se furtar ao imprevisto, ao inacessível, ao desvio, à incerteza e à desordem, cujo enfrentamento e entendimento a tornarão não somente mais apta, como a induzirão a criar uma estrutura social melhor adaptada ao novo contexto ambiental. Está lançada a pedra fundamental desta pesquisa, que será guiada pela seguinte pergunta de partida:

A partir de perspectivas transdisciplinares das jornadas humanas: passada, presente e futura, e dos impactos ambientais de causas antropocêntricas, quais devem ser as características de um novo contexto civilizatório que contribua para a restauração planetária e a criação de um futuro verdadeiramente sustentável?

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JORNADA PASSADA:

TERRA, GAIA e o HOMO-

SAPIENS

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Inicia-se aqui a narrativa da jornada passada humana, que remonta não ao surgimento dos primeiros hominídeos, mas ao nascimento do universo, o “Fiat Lux”, que engendrou o tempo e o espaço, as partículas, átomos e moléculas, as galáxias, os sistemas solares, a vida, o conhecimento, a cultura e as próprias histórias, como esta, a história de Gaia e seus filhos.

Elaborada a partir da colaboração de narradores escolhidos criteriosamente, essa história descreve as relações entre a Mãe-Terra e sua criação, em um processo evolutivo contínuo. Nessas relações, uma particularmente é conflituosa, a do homem, último elo da cadeia evolutiva, umbilicalmente ligado a Gaia, mas apartado espiritualmente.

Com uma abordagem transdisciplinar que conversa com conhecimentos físicos, químicos, biológicos, geológicos, antropológicos e sociológicos, esta primeira parte da jornada humana narra a evolução de Gaia até o homo sapiens. Embasada nas produções científicas de James Lovelock, coautor da teoria de Gaia, e do antropólogo francês Edgar Morin, com seus estudos sobre a natureza humana, procura-se descrever os meandros da evolução do homem e as relações íntimas entre o planeta e a biota.

Escrita na forma de ensaio, a jornada passada descreve um contínuo conflito entre Gaia e o homem, que deixou de viver em simbiose com a mãe. Acredita ser independente dela, explora insensatamente seus recursos, gera desequilíbrios e instabilidades no sistema vivo, criando bifurcações em sua jornada, cuja escolha de caminhos pode representar a diferença entre uma vida sustentável e a ampliação dos desequilíbrios ambientais. O futuro é inexorável, mas o destino pode ser escrito, o que depende dos aprendizados passados e das escolhas presentes. Esta primeira jornada aborda essas possibilidades.

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TERRA E VIDA

“ deite-se de costas no chão ... abra os olhos e encare as

vastas profundezas do universo enquanto sente o grande

volume de seu planeta mãe nas costas. Sinta como ela o

prende ao seu enorme corpo enquanto o faz rodar de cabeça

para baixo pelo vasto cosmos que se estende sob você “

Stephan Harding 5

Cada ser é o resultado do processo histórico de sua vida, dos caminhos que trilhou, das experiências por que passou, das escolhas que fez e que, frequentemente, levam a resultados alheios à sua vontade, pois a vida segue processos complexos e caóticos. A história cósmica é similar, a cada passo da jornada evolutiva podem surgir desequilíbrios, originando bifurcações que geram novos caminhos, interminavelmente, em um infindável bailado evolutivo e criativo, no qual astros nascem, crescem e morrem, ininterruptamente, até o ocaso do Universo, em algum tempo futuro que foge ao senso comum.

Aqui se inicia a jornada humana no planeta Terra, acreditada por muitas gerações como o centro do universo, mas que acabou por se revelar como um pequeno planeta entre irmãos gigantes, que gira em torno de uma estrela anã amarela, na periferia de uma galáxia, a Via Láctea, que é uma entre milhões de outras no universo conhecido, dentre outros universos possíveis6. Apesar de sua insignificância cósmica é nosso lar, que nos abriga e nutre. Narrar sua história é parte imprescindível dessa pesquisa.

5 HARDING, Stephan. Terra Viva, São Paulo: Cultrix, 2008, p.72.

6 Transcrição das palavras do filósofo Mario Sergio Cortella, acessada em 20 de março de 2016, através do site: https://flaviobotana.wordpress.com/2010/01/27/e-tem-gente-que-se-acha-texto-de-mario-sergio-cortella/

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No princípio nada existia, não existia o vazio, nem o espaço, nem o tempo, nem a matéria, nem mesmo o silêncio. Foge ao senso comum, mas assim era. E de repente, entre 13,5 bilhões e 13,9 bilhões de anos atrás, a partir de uma singularidade, tudo passou a existir. Essa singularidade, conforme o conceito físico, representava um ponto com volume zero e densidade infinita, contendo toda a massa e energia que há no universo conhecido. Não há paralelos conhecidos ao nosso alcance para apoiar sua compreensão. Somente a Matemática e a Física são capazes de entende-la. Subitamente, por razões desconhecidas, este ponto se expandiu numa explosão dantesca, conhecida como o Big Bang, “a grande explosão”, berço de origem do tempo, do espaço e da matéria. Nas primeiras frações de segundos havia somente partículas elementares, os “quarks”, vagueando livremente em um mar de energia, formado pelos fótons.

Com a explosão há expansão, que provoca resfriamento e formação de nêutrons e prótons. Antes do primeiro minuto de vida o universo já atinge cerca de 1000 vezes o tamanho do sistema solar e se condensam os primeiros átomos da matéria conhecida, hidrogênio e hélio. Somente 300.000 anos após o Big Bang, o universo atinge a condição adequada de temperatura para aglutinar estes átomos e formar as primeiras nuvens de gás, berço das futuras estrelas. O diagrama7 ao lado ilustra a evolução do universo. Quando o universo atingiu um quinto de sua atual extensão, as estrelas geradas começaram a formar estruturas protogaláxicas e, ao alcançar a metade de seu tamanho presente, reações nucleares no centro das estrelas produziram a maior parte dos elementos pesados a partir dos quais planetas idênticos à Terra se formaram (Lovelock, 2013).

7 Figura disponível em http://www.prof2000.pt/users/angelof/os_primeiros_instantes.htm)

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Hipóteses científicas indicam que o surgimento do Sol e da Terra teve sua origem a partir de uma supernova, há cerca de 4,6 bilhões. Supernovas resultam de explosões termonucleares de estrelas com massa de dez ou mais vezes a do Sol, cujo resultado é a liberação de uma quantidade de energia de tal ordem, que nos dez segundos após seu início a energia liberada equivale à de todo o restante da Via Láctea.

Acredita-se que esta explosão, altamente radioativa, produziu gases e materiais pesados que se expandiram e contaminaram uma nuvem vizinha composta de hidrogênio, hélio e alguns outros gases, deflagrando um processo de condensação por forças gravitacionais, através do qual os gases formaram o Sol e os planetas maiores, como Júpiter e Saturno, e os elementos pesados sintetizados na estrela original deram origem aos planetas menores, Mercúrio, Vênus, Terra e Marte. Muitos desses elementos foram essenciais para o florescimento da vida posteriormente, como o carbono, o oxigênio, o nitrogênio, o fósforo, o enxofre e o ferro. A radioatividade originada pela explosão da supernova foi tão intensa que perdura até os dias de hoje nos seres vivos, que ainda conservam traços radioativos em seus corpos.

A Terra começou, portanto, como uma massa de gases e materiais radioativos, produzida por uma formidável explosão termonuclear. O ato final que a modelou foi a colisão com outro planeta, do tamanho de Marte, que fundiu literalmente a crosta terrestre produzindo a liberação de uma grande massa de rocha derretida e que deu origem à Lua. Esse processo de fusão fez com que os materiais mais pesados retidos no planeta, como o ferro e o níquel se deslocassem para o centro e os mais leves flutuassem formando, após seu resfriamento, a crosta terrestre (Lovelock, 2013).

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Este período inicial, denominada pelos cientistas de Hadeano, alusivamente ao deus grego Hades, irmão de Zeus e Poseidon, neto da deusa mãe Gaia e senhor dos infernos, foi um período extremamente violento para os planetas internos, Vênus, Terra e Marte, fustigados durante milhões de anos por ventos solares devastadores e bombardeados por milhões de asteroides, enquanto oceanos existentes se desfaziam várias vezes em atmosferas de vapor, alterando repetidamente a crosta.

Paulatinamente, nesse cenário de extrema violência, foi-se moldando o palco para o surgimento da vida, possível somente com a continuidade do resfriamento planetário; com a formação de uma atmosfera e com a estabilização do sistema solar, pois o bombardeio de grandes asteroides e meteoritos errantes continuava produzindo feridas nos planetas menores. Além dos corpos externos essa primitiva e quente Terra era assolada por uma atividade vulcânica muito mais ativa do que hoje (Lovelock, 2013). O período Hadeano durou cerca de um bilhão de anos, ao longo do qual o esfriamento prosseguiu e os gases gerados pelo choque dos bólidos cósmicos e pela atividade vulcânica formaram a primeira atmosfera estável, composta, provavelmente por dióxido de carbono, vapor d’água, nitrogênio, monóxido de carbono, traços de hidrogênio, mas sem a presença de oxigênio.

Embora as ciências perscrutem avidamente o passado planetário, pouco se sabe realmente a respeito da Terra nesse período. Não há registros geológicos que tragam evidências científicas dessa época, provavelmente fruto das intensas transformações em um planeta mutante. Mesmo desconhecendo-se a constituição das rochas e da própria atmosfera, deduz-se que a composição gasosa do Hadeano manteve a superfície aquecida, graças ao efeito estufa, em uma época onde o sol era

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25% menos luminoso do agora. Estima-se, também, que havia abundância de água líquida e produção de hidrogênio de tal ordem, que o surgimento de oxigênio livre era impedido.

A dinâmica planetária neste éon era governada pelas leis físicas e químicas, que impediam o surgimento da vida. Esta exigia condições particulares que somente ocorreriam cerca de um bilhão de anos depois do surgimento da Terra. Segundo Lovelock (2013, p. 79):

A Terra primitiva evoluía totalmente de acordo com as leis da Física e da Química. Gases provenientes de vulcões eram removidos por reações químicas. O dióxido de carbono, um desses gases, reagia na presença de água com a rocha basáltica, formando os carbonatos dos elementos sódio, potássio, cálcio, magnésio e ferro...... Elementos como o ferro reagiam com a água, sequestrando oxigênio e liberando hidrogênio gasoso. Este processo, varrendo as águas e a atmosfera, teria causado uma perda constante de água e se tivesse continuado, em 1 bilhão ou 2 bilhões de anos a Terra, assim como aconteceu em Marte ou Vênus, teria perdido toda sua água e se tornado um planeta morto. Isto decorre da liberação do hidrogênio a partir da dissociação da molécula da água. O hidrogênio gasoso, de baixa densidade, alcança os externos da atmosfera onde se decompõe em átomos de hidrogênio e como é leve demais para que a gravidade da Terra consiga retê-lo, escapa em direção ao espaço levado pelos ventos solares que fustigam continuamente o planeta.

Neste ponto vislumbramos os primeiros sinais de Gaia. A água na Terra possibilitou a vida, mas sem a vida a Terra agora estaria seca. A vida retinha água de duas maneiras. Primeiro, certos microrganismos ganhavam energia usando hidrogênio para produzir sulfeto de hidrogênio, retendo, assim, o hidrogênio liberado pela reação da água com as rochas basálticas. Segundo, bactérias fotossintetizadoras liberavam oxigênio livre como subproduto e na atmosfera redutora do Arqueano8 parte desse oxigênio se combinava com o hidrogênio gasoso liberado produzindo água.

8 Período geológico que está compreendido aproximadamente entre 3,85 bilhões de anos e 2,5 bilhões de anos atrás. O éon Arqueano sucede o éon Hadeano e precede o éon Proterozoico. O início do Arqueano é marcado pelas primeiras formas de vida unicelulares da Terra.

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O contínuo resfriamento e solidificação da crosta, juntamente com a formação de uma atmosfera primitiva possibilitou um clima nem muito quente, nem muito frio, e a existência de oceanos propiciou as condições ideais para o surgimento da vida ao fim do Hadeano e início do período Arqueano. Uma série de variáveis, como a massa do Sol, o tamanho da Terra, seu posicionamento no sistema solar, a vizinhança de planetas de porte similar, a presença de um planeta gigante, Júpiter, chamado apropriadamente de aspirador planetário e a existência da Lua, propiciou estabilidade orbital para a Terra, o que facilitou condições geológicas, químicas e climatológicas favoráveis aos eventos que se seguiram e que culminaram no aparecimento de uma biota de rica diversidade, que vem se mantendo há bilhões de anos.

A manifestação da vida e sua continuidade nos últimos 3,6 bilhões de anos têm provocado no meio científico uma série de discussões e controvérsias, por se tratar de um tema delicado e complexo. O próprio entendimento sobre o que é vida gera dúvidas e, embora exista um senso comum sobre o que representa, explicá-la se torna uma tarefa difícil. Do “Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa” retiramos: “Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo”. Esta definição dá voltas sem conseguir chegar ao centro do real significado. Erwin Schrodinger, prêmio Nobel da Física sugeriu que a vida é um fenômeno empírico da matéria, caracterizado por uma redução dinâmica de sua entropia interna, que se afasta de estados permanentes, nos quais não ocorrem nenhum evento observável, estados estes denominados pelos físicos como equilíbrio termodinâmico ou estado de “entropia máxima” (Schrodinger, 1997). Ambas as descrições não são muito esclarecedoras, o que atende, propositalmente, o intuito de provocar no leitor certa polêmica sobre um dos assuntos centrais dessa tese, o sistema vivo. A discussão sobre o que é vida será retomada posteriormente ao se discutir a teoria de Gaia.

Desconhecem-se detalhes de como exatamente surgiu a vida. Sabe-se, entretanto, que a vida teve seu início ao final do período Hadeano, cerca de 3,6 bilhões de anos atrás, quando o planeta era constituído por elementos exclusivamente

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inorgânicos e as condições ambientais eram aparentemente favoráveis. Há quem defenda que a vida foi trazida à Terra por asteroides e meteoritos que a bombardeavam ininterruptamente. Os criacionistas colocam Deus como seu grande artífice. Ilya Prigogine e Manfred Eigen propuseram um modelo segundo o qual produtos químicos e reações cíclicas foram combinados resultando em estruturas de uma protovida, que evoluíram até chegar à primeira célula viva (apud Lovelock, 1988). Outros defendem que a vida foi o resultado da combinação aleatória de vários elementos inorgânicos que, através de uma feliz coincidência, embora estatisticamente impossível, em um ambiente com água, atmosfera e condições climáticas favoráveis, resultou nas primeiras células vivas.

É provável que nunca se venha a conhecer esses detalhes, o que foge ao propósito desta pesquisa. É a abordagem da teoria de Gaia que serve mais diretamente ao propósito desta tese, pois com ela se começou a discutir, sob uma ótica transdisciplinar, o surgimento e evolução da vida em um contexto de condições favoráveis. O conceito de Gaia não está ligado ao surgimento da vida, mas à sua ampla proliferação pelo planeta, à sua interação com a crosta, com os oceanos e com a atmosfera, que produziram alterações consoantes com a lógica dos sistemas cibernéticos retroalimentados, levando a estados de equilíbrio pontuais, favoráveis à sua própria manutenção. Portanto, é a ação cibernética do sistema vivo na regulação das condições planetárias de sustentação da vida, que estrutura a teoria de Gaia. Tal conceito, heterodoxo em relação aos saberes científicos dominantes, nunca deixou de ser minimizado pela Geofísica, Geoquímica e Biologia, que reiteradamente procuraram rejeitar as proposições de Lovelock e sua abordagem transdisciplinar (Lovelock, 2010).

Nas ciências da terra ainda predomina a posição de que a vida surgiu como consequência de um acaso estatístico em um planeta dotado de condições climáticas favoráveis, e que sua continuidade é devida a regulações exclusivamente geoquímicas, a partir da ação de vulcões e reações químicas entre gases da atmosfera, a água da chuva, dos rios e dos mares e as rochas. Para a Geoquímica, a regulação da temperatura é resultado de um balanço entra a geração de gás carbônico

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através das atividades vulcânicas e sua remoção quando dissolvido na água de chuva, por meio de reações com rochas basálticas e granito, que resultam nos compostos hidrossolúveis bicarbonato de cálcio e ácido silícico, que se deslocam através de lençóis freáticos, atingindo os rios e, finalmente, os oceanos. Os geoquímicos se apoderam de conceitos de “feedback” cibernético negativo9 para explicar que em um planeta mais quente, há uma maior evaporação de água dos oceanos, o que aumenta a precipitação pluviométrica, resultando em aumento da velocidade de reação entre gás e rochas, reduzindo a abundância de gás carbônico, o que resulta em condições adequadas para a vida.

A Biologia tem outros olhares para justificar este complexo fenômeno. Segundo os biólogos, registros fósseis de organismos indicam que não foi a interação inorgânica planeta/vida a responsável pela manutenção da vida, mas foi a evolução biológica, conforme os preceitos darwinianos, que forjou as mudanças da superfície terrestre, moldando processos e o ambiente, através da dominação dos organismos mais bem equipados para competir. Tais posicionamentos revelam o caráter reducionista e compartimentalizado das ciências, com suas verdades particulares, que ainda rejeitam visões transdisciplinares como a proposta por Lovelock.

A teoria de Gaia, entretanto, se mostra firme e bem estruturada, maior do que visões simplistas e cartesianas a querem fazer parecer. Sua narrativa, que permeia neste trabalho, ousa mais do que simplesmente reunir saberes pontuais e parciais, A teoria de Gaia, cientificamente embasada e respeitável, representa uma visão complexa e transdisciplinar do fenômeno da vida. E, além de representar uma justa homenagem à Grande Mãe, responsável pela existência de todos os seres vivos, traz elementos preciosos que podem apoiar a humanidade a construir um futuro sustentável e auspicioso para todo o sistema vivo.

9 Feedback cibernético negativo ou retroalimentação negativa é um conceito da cibernética, a ciência dos controles, segundo o qual parte de um sinal de saída de um sistema é transferida para a entrada desse mesmo sistema e provoca uma diminuição do nível de saída, revertendo a mudança.

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TEORIA DE GAIA

“ do vazio eterno, Gaia saiu dançando e Girando sobre si

como se fosse uma esfera em rotação. Moldou as montanhas

segundo sua espinha, os vales pelos buracos de sua pele, os

morros e planícies de acordo com seus contornos. De sua

quente umidade fez nascer um fluxo de chuva que banhou e

alimentou a sua superfície e trouxe vida “

Charlene spretnak 10

Explicar o que Gaia significa, exige aprofundar-se em sua essência e seus princípios. Gaia não pode ser dissociada da vida, pois são íntimas e interdependentes. Mas o que é a vida? Apesar de intuitivo, entender o que é vida não é uma tarefa fácil e, poucos conseguem defini-la com o alcance necessário exigido por uma explicação científica. Com a vida nasceu Gaia, um sistema natural integrado, dotado de controles cibernéticos retroalimentadores, atuando continuamente para regular condições necessárias para a sustentação da biosfera o que vem ocorrendo há 3,6 bilhões de anos. Para explicar o que é Gaia criaram-se hipóteses inicialmente, que acabaram por alcançar o “status” de teoria, cujo compromisso é o de apresentar o que é Gaia para a biota e o planeta.

James Lovelock não foi o primeiro a pensar e falar sobre um organismo coletivo vivo. Se atribui ao escocês James Hutton (1726 – 1797), um dos fundadores da moderna geologia, a ideia da Terra como um superorganismo, para quem a fisiologia era a ciência mais adequada para estudá-la. Anos mais tarde o geógrafo e naturalista alemão Friedrich Wilhelm Heinrich Alexander von Humboldt (1769 – 1859) enfatizou

10 SPRETNAK, Charlene. Lost Goddesses of Early Greece: a Collection of Pre-Hellenic Myths. Boston:Beacon Press, 1992

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esta visão unitária da natureza e defendeu o clima como agente ativo corresponsável pela evolução da vida e da crosta terrestre.

Posteriormente, o cientista russo Vladimir Vernadsky (1863 – 1945) deu um impulso às ideias sistêmicas planetárias. Usou o conceito de biosfera para desenvolver uma teoria de coevolução da vida, vista como uma força geológica dotada de capacidade de movimentar a matéria em formas impossíveis para a dinâmica geológica isoladamente. Vernadsky acreditava que as bactérias, os menores seres vivos, tinham influência sobre a química e geologia do planeta e podiam alterar a crosta terrestre.

Lovelock, contudo, foi o primeiro a levantar a hipótese de uma Terra autorreguladora, com alcance que foi muito além de seus predecessores. Junto com a bióloga fez declarações ousadas, afirmando que é a vida no seu contexto mais amplo, a biosfera, que regula e mantém o clima e a composição atmosférica num nível ótimo para a vida. Estava criada a “Hipótese de Gaia”. Chocou o mundo científico, desafiando o saber convencional, para o qual, a vida era um ator coadjuvante no palco da Terra, comandada por forças aleatórias físicas, químicas e geológicas (Harding, 2008).

A história de Gaia está intrinsecamente ligada à da Terra, que começou a ter existência autônoma no sistema solar há 4,6 bilhões de anos. Cerca de 1 bilhão de anos se passaram para que a vida surgisse, ao final do período Hadeano, quando o planeta era dominado por forças geofísicas e geoquímicas. Tempestades colossais, atividade vulcânica intensa e bombardeio de asteroides faziam parte do primitivo cenário terrestre e favoreciam incontáveis encontros fortuitos entre elementos inorgânicos, criando associações eventuais de componentes de um futuro organismo vivo, dotadas de potenciais para iniciar conjuntamente alguma função vital primitiva, como a absorção da luz e energia solar, para então, desenvolver alguma outra ação que de outro modo seria inexplicável pelas leis da Física. São conjecturas sobre um tempo que não deixou registros, mas que são plausíveis (Lovelock, 1989).

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Paulatinamente outras formas primitivas associadas foram surgindo, favorecendo combinações de formas mais complexas, com novas propriedades e capacidades, resultando, provavelmente, em entidades dotadas de características da própria vida, capacitadas a utilizar a luz solar e a se reproduzir. E a vida surgiu, como o fogo de Prometeu roubado dos céus aos deuses e trazido à Terra. Incontáveis e mesmo inimagináveis foram os encontros entre moléculas para que a vida, acontecimento altamente improvável em um mundo essencialmente inorgânico, acontecesse.

O prêmio Nobel de Física Harold Clayton Urey (1893 – 1981), fez grandes contribuições para o entendimento dos cenários pré-vida planetários. Seus estudos apontaram para um planeta inicialmente árido, cujo processo de resfriamento, levou a um aumento de pressão da crosta sobre os materiais do núcleo, o que, aliado a alta radioatividade imperante, herança de berçário da explosão da supernova, aqueceram o interior do planeta provocando a liberação de gases e vapor d’água, vindo a formar a atmosfera e os oceanos. Em seu livro: Os Planetas: sua origem e Desenvolvimento (1952), especulava que a atmosfera primitiva seria provavelmente composta de amônia, metano e hidrogênio os quais, combinados com água e submetido à radiação ultravioleta do Sol, poderiam interagir para produzir aminoácidos, chamados vulgarmente de “bases da construção da vida”11

O quadro delineado não descreve certezas, mas probabilidades. A ciência é incapaz de afirmar como exatamente surgiram os primeiros organismos vivos, o que remete ao campo da metafísica. O fato é que a vida surgiu e se expandiu durante 3,6 bilhões de anos, ramificando-se de forma prodigiosa, produzindo milhões de espécies, entre elas o homem, “filhos de bactérias”. O surgimento da vida e sua continuidade, entretanto, lançam ainda imensas dúvidas. Como a Terra pôde manter a vida durante tempo tão extenso, enquanto Vênus e Marte, planetas irmãos, fracassaram? Este foi um dos primeiros “insights” que subsidiaram a ideia de Gaia, como futura teoria

11 Disponível em http://www.nasonline.org/publications/biographical-memoirs/memoir-pdfs/urey-harold.pdf

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científica. Gaia, entretanto, não representa o surgimento da vida, mas sim a rede de seres vivos que se espalhou pelo planeta e sua interação com a biosfera, em processos cibernéticos de realimentação e controle.

Os primórdios de Gaia representam uma verdadeira epopeia, poema consagrado a um herói ou heroína que enfrenta adversidades para preservar seus filhos, garantindo-lhes condições adequadas de sobrevivência. A preservação da vida durante este longo período, que exigiu de Gaia a manutenção de uma estreita faixa de condições ambientais, fisiológicas e químicas, provoca ainda o mundo científico. Sabe-se que a Terra passou Um sistema é um conjunto de objetos ou ideias por verdadeiras catástrofes, ligadas entre si por alguma forma de ação interinas e cósmicas, que regulatóira ou de interdependência, tais como alteraram seu núcleo e os sistemas naturais: sistema solar, sistema biosfera, mas mesmo assim nervoso, o corpo humano, a Terra e os sistemas a vida, com suas limitações humanos: comunidades, organizações, intrínsecas, se manteve. instituições, etc. As partes componentes de Mesmo sob tais condições, qualquer sistema real são numerosas e as interações entre elas complexas. Os sistemas com uma atmosfera biológicos são mais complexos que os demais, e praticamente sem oxigênio os cientistas jamais poderão ter a esperança de (redutora), rica em gás entendê-los em sua amplitude, sendo obrigados carbônico, e sob um Sol a introduzir suposições simplificadas e modelos vinte e cinco por cento abstratos de representação (reducionismo ou menos luminoso que agora, simplificação) o planeta atuou como um sistema complexo autorregulador e a vida prosseguiu (Lovelock, 1988). Embora metafórico, o uso por Lovelock do termo “sistema vivo”, que simboliza Gaia, é defensável em tal contexto.

Os pressupostos aqui abordados instigaram-no a construir, inicialmente, a hipótese de Gaia, quando desenvolvia um trabalho junto ao Jet Propulsion Center, na Califórnia, na década de 60, como integrante da equipe de cientistas da NASA encarregada do desenvolvimento de instrumentos para as primeiras missões lunares. A agência americana estava empenhada em perscrutar a existência de vida em outros

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planetas do sistema solar, sendo este um dos principais objetivos dos primeiros programas de envio de naves não tripuladas a Marte e Vênus, denominados Viking e Mariner.

A partir das análises das atmosferas dos dois planetas, através de telescópios de raios infravermelhos, Lovelock detectou composições muito parecidas em Marte e Vênus, ricas em dióxido de carbono e muito diferentes da atmosfera terrestre, o que o deixou intrigado e curioso. Utilizando conhecimentos de termodinâmica, biologia, química orgânica e inorgânica, física e geologia, deduziu que a tendência da atmosfera ao longo da evolução de um planeta sem vida era atingir um equilíbrio químico e termodinâmico, representado por composições atmosféricas similares às encontradas nos dois planetas vizinhos, ou seja, sem reações químicas. Outro fato que lhe chamou a atenção foi a temperatura relativamente estável da Terra ao longo dos últimos 75% de sua existência, cujos dados foram obtidos a partir de registros geológicos que revelaram temperaturas variando em estreita faixa de valores, compatível com as formas de vida que o planeta abrigou no decorrer desse tempo, apesar do contínuo aquecimento do Sol.

Foram essas evidências que o levaram a questionar se essas diferenças não seriam explicáveis pela existência e ação da vida sobre a biosfera terráquea, atuando ativamente na composição da atmosfera quimicamente ativa e diferenciada da Terra e que, consequentemente, teriam influenciando a temperatura planetária. Em sua obra, Lovelock deixou transparecer que imagens orbitais de nosso planeta, obtidas através das naves do programa Apollo, que o apresentavam como um planeta azul, coberto de nuvens, com vastos continentes e oceanos, contrastando visivelmente com Marte e Vênus, tiveram uma grande influência em suas percepções iniciais. Pensou a Terra como um complexo sistema cibernético, com sofisticados mecanismos de retroalimentação (feedback) para manter condições relativamente estáveis para a biota, o que o levou a criar a Hipótese de Gaia, referindo-se ao planeta como um

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sistema vivo, não no sentido vulgar como um ser individual, mas como um ser vivo composto da pluralidade dos seres vivos, inteligente, cibernético, orientado à autoestabilidade. Imprescindível notar que para Lovelock, a vida moldou as condições da biosfera gaiana, interagindo com o planeta, formando um “sistema biológico”, sem o que este não diferiria de seus vizinhos. Com estas concepções, deduziu que Marte e Vênus não poderiam abrigar formas de vida, o que foi posteriormente comprovado pelas primeiras missões espaciais americanas e russas, Viking, Mariner e Venera.

A “avant première” de suas ideias à comunidade científica aconteceu com o artigo: “Planetary Atmospheres: Compositional and other changes associated with the presence of life” (Atmosferas planetárias: alterações na composição e outras mudanças associadas com a presença de vida), publicado em 1968 no periódico: “Proceedings of the American Astronautical Society”, mas que foi ignorado pelo mundo científico. O artigo enfatizava que a composição de gases quimicamente ativos na Terra estava associada direta ou indiretamente com ações biológicas dentro de processos cibernéticos, e que a atual concentração de 21% de oxigênio na composição atmosférica representa um nível seguro para evitar incêndios em escala planetária, o que se coaduna com a ideia de um sistema autorregulador e comprometido com a vida. Destes pressupostos nasceu a hipótese de Gaia.

A base central e inovadora desta hipótese é sua estrutura sistêmica e não hierárquica, pois defende que o Gaia age como um complexo sistema cibernético, através de realimentações entre organismos vivos, atmosfera, água e crosta, produzindo como resultado um controle sobre estas variáveis e a manutenção de condições de habitabilidade no planeta, desde o surgimento da vida. Entender essa proposição exige que se discuta a noção de retroalimentação, ou feedback, conceito desenvolvido por (1894 - 1964), criador da ciência cibernética. Retroalimentação ou "feedback" é um conceito fundamental para a teoria do controle e representa uma informação produzida por um sistema12, resultado de sua performance comportamental. Um sistema consome entradas e produz saídas. O "feedback" é uma saída que se converte em uma nova entrada e isto caracteriza um

12 Nesse contexto, sistemas podem ser definidos como um conjunto de componentes que interagem entre si, percorrem fases ou etapas e tem entradas e saídas

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processo cibernético. Sistemas que seguem princípios cibernéticos têm a possibilidade de conhecer seu próprio funcionamento, de fundamental importância para o auto aprendizado e evolução (Melese, 1973). Um sistema com realimentação funciona de modo que a mudança em um de seus componentes se propaga através dos demais, na forma de um circuito, até que o componente original experimente uma nova mudança. Essas realimentações podem ser negativas ou positivas. No primeiro caso a mudança inicial é contrariada e atenuada, enquanto na realimentação positiva a mudança inicial é amplificada.

Assim procede a autorregulação de Gaia, segundo a qual a vida e o ambiente não vivo estão estritamente acoplados e respondem pelas condições de sustentabilidade, o que dificilmente seria explicado pelos conhecimentos das ciências da vida e da terra, como disciplinas isoladas. O sistema gaiano não foge aos princípios cibernéticos, podendo apresentar realimentações negativas ou positivas, cujo funcionamento esquemático pode ser visualizado ao lado.

Forte crítica das ciências clássicas recebeu esta nova abordagem, para as quais havia somente duas opções para a vida: se adaptar às condições ambientais estabelecidas, ou desaparecer, conforme as ideias darwinianas predominantes. Confiante em sua ideia e hipótese inicial, Lovelock iniciou uma cruzada para consolidar Gaia e transformá-la em teoria, o que exigiu um aprofundamento sobre a ação de organismos no ambiente e a criação e inclusão de posteriores modelos matemáticos complexos, conhecidos como “O Mundo das Margaridas”. Apesar da incansável insistência de Lovelock de que Gaia não era um ser vivo em si, como entendido pelo senso comum, mas “um ser” composto de organismos vivos que em sua totalidade agem como um sistema, a ortodoxia científica rechaçou sua proposta, pois implicava em uma visão teleológica planetária, ideia temerária associada a “um ser pensante e inteligente”, inimaginável para os evolucionistas. Entretanto, não se

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abateu e desafiou o “status quo” dominante, que via o planeta de uma forma simplista, como um depósito de recursos prontos para uso, sem consequências e impunidades.

As críticas estimularam Lovelock a construir um caminho científico firme entre sua hipótese inicial e a teoria de Gaia. Um histórico de 3,6 bilhões de anos de vida planetária lhe deu a sustentação necessária. Mostram-se relativamente incoerentes algumas ciências tradicionais, como a geologia e geoquímica, ao proporem mecanismos simples de autorregulação incompatíveis com a complexidade do sistema vivo da Terra. A biologia, por sua vez, passa a reconhecer o potencial dos sistemas complexos e apresenta fortes evidências nesse sentido, ao atestar que os organismos vivos possuem recursos de regulação de sua temperatura corporal dentro de estreitos limites, mesmo em situações externas de adversidade. Porque, então, as reações extremadas das ciências tradicionais à proposta de que o conjunto dos seres vivos possam formar um sistema, que interaja com a biosfera, ampliando seus recursos homeostáticos individuais para uma homeostasia planetária?

Nesse contexto, Lovelock, que sempre se apresentou como um cientista independente, se posicionou com uma crítica contundente, ao afirmar que há um condicionamento e submissão dos cientistas aos preceitos e objetivos de seus empregadores, assim como um hermetismo das ciências, encasteladas em seus feudos particulares de conhecimento (Lovelock, 1989). Defendeu uma abordagem transdisciplinar para os estudos da história planetária, que usou ao longo de décadas no seu trabalho de compreensão da evolução integrada entre a vida e o planeta, sem a qual não conseguiria criar sua teoria. Sem se desvincular de conhecimentos e preceitos científicos, quem permeiam toda sua obra, se tornou um crítico ardoroso, mas equânime, da ação humana sobre o planeta, intensificada nos dois últimos séculos através da industrialização e do consumismo massificado.

Lovelock pertence a uma classe particular de cientistas que entende a vida como um processo evolutivo interdependente com o planeta, e que a complexidade dos fenômenos do mundo real exige novos saberes e abordagens para seu entendimento, não se constituindo simplesmente em um vulgar “modismo científico”, mas sim em um caminho cognitivo adequado para a humanidade preparar-se

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adequadamente para o futuro. Reconhece que todas as ciências, colaboraram para o “estado da arte” científica que se alcançou, mas que algumas, como as ciências da terra, são limitadas em seu alcance e têm dificuldades em aceitar que apenas a física e a química não são suficientes para explicar como chegamos até aqui, e que foi o surgimento da vida, ao se difundir planetariamente, que possibilitou atingir-se as condições necessárias para afetar o ambiente da Terra, favorecendo a explosão de vida e evitando-se a rota em direção a uma “morte termodinâmica”, que provavelmente sucedeu com Vênus e Marte. Gaia surge como o zigoto do sistema vivo planetário que crescerá e se tornará adulta (Lovelock, 1988).

A teoria de Gaia representa a narrativa da evolução de um “sistema vivo” ao longo de bilhões de anos, sem com isso perder a sua confiabilidade científica. Alexander Romanovich Luria (1902 – 1977), estudioso da psicologia do desenvolvimento, afirmava que, apesar das narrativas terem sido classificadas frequentemente como “meras descrições” houve, nas últimas décadas, uma sensível reconsideração da narrativa como uma ferramenta científica indispensável (apud Sacks, 2013). Entretanto, toda história é passível de interpretações particulares, que acabam por produzir resultados distintos e, muitas vezes, contraditórios.

A “narrativa/teoria” de Lovelock foi criticada por outros cientistas e estudiosos, que a acusaram de teleológica ao atribuir objetivos inteligentes ao planeta Terra. Outros a consideraram mística por representar a Terra como uma “entidade” dotada de poderes visionários. Os biólogos, em sua maioria, a rejeitaram, alegando a impossibilidade de um sistema vivo de tal dimensão. Físicos e geólogos refutaram-na por discordar de uma das bases sagradas de suas ciências, que se fundamenta na vida como uma adaptação à estrutura inorgânica do planeta, exercendo mínima influência sobre a biosfera. Lovelock e colaboradores assimilaram essas críticas e, posteriormente, aprimoraram a hipótese gaiana usando modelos matemáticos que simulavam condições similares às do ambiente terrestre e do posicionamento da Terra no sistema solar. Surpreendentemente, os resultados revelaram estabilidade na temperatura do planeta e, também, a viabilidade da biodiversidade com o aumento natural da luminosidade solar. Os modelos e seus resultados permitiram inferir, também, que Gaia e sua biota funcionam como um sistema integrado, dotado de controles cibernéticos retroalimentados que regulam condições de temperatura, não

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sendo necessário, portanto, explicações “paranormais” para a teoria. Esses modelos foram denominados “Planeta das Margaridas”, pelo fato de Lovelock ter usado esta flor, com diversas variações, para simular condições planetárias similares às da Terra. Devido às dificuldades de se criar modelos matemáticos com a diversidade da biota terrestre, o Mundo das Margaridas é relativamente simples, mas razoavelmente válido para representar a evolução terrestre.

A diversidade de narrativas e discussões a respeito da evolução planetária a partir da ideia central de Gaia é ilustrativa da polarização entre as posições clássicas da ciência e uma nova maneira de se olhar o mundo. Representa o conflito entre posições científicas reducionistas e compartimentalizadas e uma nova visão do mundo complexa e transdisciplinar e que devem ser colocadas em discussão. As críticas às ideias de Lovelock e suas defesas de Gaia se enquadram nesse contexto e não podem ser desconsideradas nessa tese, pois se inserem na missão da ciência, a busca do entendimento e do conhecimento. Espera-se dessa forma, enriquecer o conteúdo desta pesquisa.

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CRÍTICAS À TEORIA

“ a insensatez manifesta-SE QUANDO TENTAMOS REDUZIR TERMOS E

questÕes metafísicos a termos e questÕes mecÂnicos…essa É a

loucura dos três Últimos sÉculos, que todos nÓs sofremos…É essa

VISÃO NEWTONIANA-LOCKEANA-CARTESIANA, PARAFRASEADA DE

VÁRIOS MODOS NA MEDICINA, BIOLOGIA, POLÍTICA, INDUSTRIA, ETC., QUE

REDUZ HOMENS A MÁQUINAS, AUTÔMATOS, FANTOCHES, BONECOS, FOLHAS

EM BRANCO, FÓRMULAS, NÚMEROS E REFLEXOS. É ISSO, EM ESPECIAL, QUE

TEM TORNADO BOA PARTE DE NOSSA LITERATURA RECENTE E ATUAL

infrutífera, ileGível, desumana e irreal “

Oliver sachs 13

A ciência representa tentativas humanas de se entender e explicar racionalmente a natureza e tem como objetivo maior formular leis que, em última instancia, permitam a atuação do homem. Representa uma das formas de conhecimento produzido no decorrer da jornada humana, que é determinada pelas necessidades materiais do homem em cada momento histórico, sobre as quais exerce influência e interferência (Andery et al., 2002).

A ciência moderna surge como evolução de uma ciência medieval na qual a fé limitava a razão e o conhecimento era um ato deliberativo da ação divina. São Tomás de Aquino (1225 – 1274, um de seus patronos, enfatizava a importância da produção do conhecimento referente à realidade, mas limitava essa importância ao dar prioridade à fé, ressaltando que alguns conhecimentos revelados, mesmo não

13 SACKS, Oliver. Tempo de Despertar. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2013. p. 259-260)

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podendo ser demonstrados, eram verdadeiros, por serem fruto da revelação divina. A ciência medieval era contemplativa e orientada para fundamentar e afirmar as verdades da fé.

Com a Renascença rompe-se este paradigma e surge a ciência moderna, que tem em Galileu seu divisor de águas. Abandona-se a fé como explicação fenomenal, substituída pela razão, sustentada pela observação e pela experimentação, constituindo-se um novo procedimento metodológico, desconhecido até então. A mudança das concepções implica em uma nova forma de se ver a realidade, um novo modo de se obter conhecimento e uma transformação epistemológica. A partir dele os métodos científicos transformaram-se continuamente, mas as bases predominantes de sustentação das ciências ainda se alicerçam sobre o que foi desenvolvido entre os séculos XVI e XIX, que continuam a determinar o caráter analítico/sintético das ciências atuais, que lhes confere um “status” mecanicista e simplificador. Conhecer essas bases e seus criadores fortalece o entendimento da estrutura reducionista ainda predominante nas ciências e ajuda a compreender as críticas que foram interpostas à teoria de Gaia, construída dentro de um novo paradigma metodológico, de cunho nitidamente sistêmico e transdisciplinar.

Rene Descartes (1596 – 1650), filósofo e matemático francês, construiu as bases da moderna ciência, criando um modelo mecânico e matemático para compreender os fenômenos, a partir de quatro preceitos metodológicos, enunciados em sua obra “O Discurso do Método”14

14 Tratado matemático e filosófico, publicado em Leiden, na Holanda, em 1637

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• Jamais acolher algo como verdadeiro a “priori”, evitando precipitações e pré- julgamentos;

• Dividir cada uma das dificuldades encontradas em tantas parcelas quanto possíveis para melhor resolvê-las;

• Sintetizar, ou seja, agrupar novamente as unidades estudadas em um todo verdadeiro;

• Enumerar todas as conclusões e princípios utilizados, a fim de manter a ordem do pensamento, tendo a certeza de que nada foi omitido.

Entendia que a razão era a forma de se conhecer a verdade, usando a dúvida como procedimento metódico, que devia se estender a todos os fenômenos, levando- o a duvidar de todas as coisas, particularmente as que são frutos dos sentidos, com exceção do próprio pensamento, cuja existência fica evidente pelo fato da dúvida ocorrer, o que o levou a concluir: cogito, ergo sum15 A ele se atribui a separação entre corpo e mente, que perdura até hoje nas ciências. Seu grande legado é o método científico analítico-sintético.

John Locke (1632 – 1704), médico e filósofo inglês, ideólogo do liberalismo, e um dos principais teóricos do contrato social16. Locke é considerado como o precursor do empirismo, doutrina segundo a qual todo conhecimento somente provém da experiência, limitando-se ao que pode ser percebido e captado do mundo externo pelos sentidos. Em oposição ao cartesianismo, postulava que o homem nasce como uma tábula rasa, uma folha em branco, e aprende pela tentativa e erro, que edifica a experiência.

15 Penso, logo existo. 16 Classe abrangente de teorias que tentam explicar os caminhos que levam as pessoas a formarem Estados e/ou manterem a ordem social. Essa noção implica em que as pessoas abrem mão de certos direitos para um governo ou outra autoridade a fim de obter as vantagens da ordem social.

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Afirmava que tudo o que conhecemos e todas as ideias que temos eram formadas no espírito e não inatas. Dividia as ideias em simples e complexas. As primeiras eram adquiridas passivamente pela mente, a partir de objetos a ela externos e não podiam ser destruídas pela mente humana. As complexas eram formadas a partir das primeiras e implicavam um trabalho ativo do espírito humano. Sua filosofia é marcada pela busca de soluções para problemas práticos, orientada à formação de conhecimento baseado na experiência, considerada por ele como essencial e único critério de verdade do conhecimento humano. Locke se afasta do racionalismo cartesiano e o nega, ao destronar a pura reflexão como critério de verdade, introduzindo em seu lugar a experiência do mundo sensível e as ideias que daí decorrem como critério e fonte de conhecimento (Andery et al., 2002).

Isaac Newton (1642 – 1727), físico e matemático inglês, postulava que Deus era um geômetra e estava na origem de todas as coisas, da matéria, do universo e do homem, e cabia a este compreendê-lo por meio do intelecto, o que o levou a desenvolver um método científico que permitia fazer proposições a partir dos fenômenos observáveis, sem interpor hipóteses, a não ser as que pudessem ser inferidas dos dados levantados. Seu método de análise e síntese diferia de Descartes, pela sua busca de causas que somente podiam ser deduzidas dos próprios fenômenos. Para Newton o universo era infinito e seu funcionamento era universal e semelhante a um relógio mecânico. Entre suas grandes contribuições para a ciência destacam-se a mecânica celeste e o cálculo diferencial.

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A ciência moderna tem em Auguste Comte (1798- 1857) um de seus maiores expoentes. Filósofo, fundador do Positivismo17, nascido a partir das ideias iluministas. Para Comte, a palavra “positivo” tem alguns significados associados, que usa em diversos temas como a história, a filosofia, a ciência e a religião. Positivo significa oposição a quimérico, mas também é usado para qualificar a oposição entre certeza e a indecisão, assim como entre o preciso e o vago, e representa uma tendência a substituir o absoluto pelo relativo.

Comte assumia que o conhecimento científico é o resultado da acumulação de dados, fruto da observação humana, mas devem ser submetidos ao raciocínio que cria hipóteses e relações entre eles, resultando na descrição das leis que regem os fenômenos. Preconizava a renúncia a tentativas de descobrir a origem primeira dos fenômenos, assim como seu destino final. Acreditava que o universo e a sociedade eram submetidos a leis invariáveis, a uma ordem imutável a que estão sujeitos os acontecimentos de todo gênero e o conhecimento era a forma de refleti-las.

Este modelo de racionalidade, sucintamente descrito a partir das ideias centrais destes pensadores europeus, se espalhou das ciências naturais para as outras áreas científicas, tornando-se hegemônico por força do eurocentrismo dominante. Converte- se a partir do século XIX em um modelo global e totalitário de racionalidade, refutando conhecimentos construídos por ciências que não se pautam pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas (Santos, 1988). A partir do século XX novas abordagens científicas, como a relatividade, a mecânica quântica, a complexidade e a teoria do caos, colocaram em xeque o modelo tradicional, criando uma bifurcação no modo de construir conhecimento, contrapondo-se ao velho paradigma ocidental que consagrou a neutralidade científica e a separação entre

17 Corrente filosófica que defende a ideia de que o conhecimento científico é a única forma de conhecimento verdadeiro e uma teoria somente é correta se ela foi comprovada através de métodos científicos válidos, não sendo consideradas crenças, superstição ou qualquer outro conhecimento que não possa ser comprovado cientificamente.

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sujeito e objeto, incentivando o desenvolvimento de uma nova “práxis” científica, complexa e transdisciplinar.

Essa guinada no modo de se praticar ciência se apoia na nova concepção da matéria e da natureza, cuja proposta se afasta radicalmente das ciências clássicas. Em vez da imutabilidade divina, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente. O prêmio Nobel, Ilya Prigogine, defensor de um novo paradigma nas ciências, traz, com as estruturas dissipativas, a teoria do Caos e o fim das certezas, um novo horizonte para as ciências e as relações homem-natureza, dando-lhes uma abrangência e beleza poética jamais imaginada pelo cartesianismo e o positivismo. No antagonismo entre a velha e a nova corrente, se fortalece uma nova abordagem entre homem e natureza, representada pelo pensamento complexo e o diálogo plural entre os saberes. Embora ainda com aceitação restrita, permitem olhar os fenômenos não somente com olhares múltiplos, mas, com a humildade necessária para aceitar a limitação cognitiva do ser humano ante a complexidade do mundo.

Esta nova abordagem é o resultado natural da evolução científica, alimentada pela curiosidade intrínseca do homem em sua busca obsessiva pela verdade. Disto resultou o conhecimento produzido pelas ciências clássicas ao longo de mais de quatro séculos, o que deve ser respeitado, mas que também deve ser adaptado à nova abordagem complexa sobre o mundo. Os novos saberes trazem um novo olhar sobre os fenômenos, mas provocam, também, uma forte resistência da velha ciência, que teima em resistir ao diferente. É com esta nova visão científica, que respeita o imprevisível, o espontâneo, o caótico, o incerto, a desordem, mas, simultaneamente, a criatividade, os fluxos da vida, a

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organização e a ordem, que se nutre esta narrativa relacional entre Gaia e o homem. A polarização dessas correntes sintetiza também as visões contraditórias entre Lovelock e seus críticos, expostas a seguir.

Como abordado anteriormente, James Lovelock, a partir de observações de planetas do sistema solar e da Terra, criou a teoria de Gaia, na qual afirma que o planeta e a vida se comportam como um sistema vivo complexo com capacidade para regular a temperatura e a composição da superfície terrestre, mantendo-o em condições adequadas para suportar todo o sistema vivo, a biota. O sistema Terra-vida se autorregula em um processo ativo, conduzido pela energia livre colocada à disposição pelo sol. Embora tendo usado o termo “sistema vivo” metaforicamente, foi criticado não apenas por esse fato, como por sua provocação ao apresentar um novo olhar sobre o funcionamento da biosfera e dos mecanismos evolutivos que produzem as relações entre esta e os seres vivos. (Lovelock, 1988).

No final dos anos 70 suas ideias sistêmicas e transdisciplinares começaram a ser percebidas e criticadas, tanto por biólogos, como por climatologistas e geoquímicos. O bioquímico W. Ford Doolittle publicou, em 1979, no periódico CoEvolution Quarterly uma crítica contundente na qual, a partir de considerações da biologia molecular, afirmava que a evolução feita através da seleção natural nunca poderia conduzir ao “altruísmo” de Gaia, produzido em escala planetária. O biólogo evolutivo Richard Dawkins, em seu livro: “The Extended Phenotype” corroborou a crítica anterior, ao afirmar que Gaia nunca poderia existir, pois não havia nenhuma maneira da vida ou da biosfera regular qualquer coisa além do fenótipo18 constituinte de seus organismos individuais (Dawkins, 1982). Gaia, segundo ele, é incompatível com a seleção natural de Darwin, pois ela parece implicar relações cooperativas por parte de organismos egoístas, quando, se ela mesma fosse um organismo, deveria

18 Conjunto de características observáveis de um organismo ou população como, por exemplo: morfologia, desenvolvimento, propriedades bioquímicas ou fisiológicas e comportamento. O fenótipo resulta da expressão dos genes do organismo, da influência de fatores ambientais e da possível interação entre os dois.

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ter evoluído a partir da seleção natural e para isso deveria ter competido e sido selecionada com outras gaias ou planetas (Lovelock, 2010). Doolittle e Dawkins defendem uma biologia na qual a vida se impôs pela seleção natural das espécies mais aptas e não como resultado de um macro “sistema vivo” com controles cibernéticos retroalimentados.

Outras críticas foram interpostas a teoria de Gaia pela bioquímica, geoquímica, biogeoquímica e climatologia que, no contexto das ciências da terra, ainda seguem preceitos cartesianos e positivistas, reducionistas e compartimentalizados, com pouca abertura para interligações com outras áreas científicas. A visão ainda predominante dessas ciências, em relação à teoria de Gaia, é que no sistema planetário não há lugar para a ação reguladora da biota, o conjunto dos seres vivos, e que a operacionalidade do sistema é simplesmente definida por propriedades químicas e físicas, sendo a vida um mero passageiro, ou, no máximo, um colaborador. Alguns cientistas da terra19 também foram críticos severos de sua obra, mas, suas críticas construtivas auxiliaram Lovelock a aperfeiçoar sua teoria, como reconheceu posteriormente.

Os refutamentos a Lovelock e à sua teoria feitos pelas ciências da vida e da terra podem ser agrupados em duas linhas. A primeira postula que o controle cibernético retroalimentado entre elementos abióticos e bióticos, que sustenta a proposta gaiana da homeostase planetária, se choca com a compreensão tradicional de sistemas biológicos e físicos e com outras evidências provenientes de estudos mais aprofundados das complexas interações que ocorrem no planeta e que envolvem sua biota (Volk, 2006 e Tyrrel, 2013). A segunda, critica sua linguagem excessivamente metafórica, que pode induzir a erros. O uso constante de “sistema vivo” ou Terra-viva e o enquadramento de Gaia como um ser vivo dotado de vontade própria e com uma missão teleológica causa estranheza e dúvidas. Este tipo de alegoria, que Lovelock usa amiúde, pode ser exemplificada na seguinte passagem: “Gaia, a Terra-viva, está velha e não é tão forte como era dois bilhões de anos atrás” (Lovelock, 2006, p. 146).

19 O climatologista Sttephen Schneider e o bioquímico H. D. Holland

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A primeira linha de contestação contra a teoria, centrada na inadequação da homeostase gaiana, tem no biólogo Tiller Volk20 um ardoroso opositor. Volk é veemente ao refutar a ideia de uma Gaia que atua para alcançar objetivos premeditados e, embora reconheça que o carbono orgânico depositado por camadas bacterianas em sedimentos oceânicos tenha efeitos sobre a temperatura planetária, considera improvável que o soterramento do carbono, como pretendido por Lovelock, seja o responsável pela regulação da temperatura terráquea (Volk, 2002). Outro argumento da teoria, relativo à emissão do gás sulfeto de dimetil pelo plâncton marinho, que aumenta a formação de nuvens e possibilita o controle do albedo planetário21, é muito criticado por biólogos, segundo os quais a emissão do gás ocorre simplesmente devido às demandas metabólicas internas de organismos específicos e não por causa de seus eventuais efeitos reguladores na temperatura global (Schneider, 2001).

Lovelock não repeliu as críticas feitas, ao contrário, reconheceu as limitações de sua hipótese usando-as posteriormente para aperfeiçoá-la e torná-la uma teoria. De forma criativa respondeu aos seus críticos através da construção de modelos matemáticos. Percebeu que devia propor algum modelo que pudesse não somente representar a metáfora de Gaia como um grande sistema vivo, mas, principalmente, dar uma resposta cientificamente embasada no controle cibernético produzido pela diversidade dos organismos vivos sobre o ambiente. Sua grande dificuldade para resolver este problema, foi reduzir a complexidade da vida e de seu contexto ambiental a um esquema simples, que pudesse explicar sua proposta e não a deturpar. O resultado foi a criação de um modelo matemático e informacional denominado “Mundo das Margaridas”, elaborado com o matemático Andrew Watson e apresentado em um artigo na revista Tellus, em 1983.

20 Tyler Volk é biólogo, professor do departamento de Biologia e Estudos Ambientais da Universidade de Nova York. 21 Albedo é um termo astronômico que representa a proporção de luz que é refletida por um planeta, sendo 1 reflexão total, cuja cor é branca, e 0 quando o planeta é negro e a absorção é total. Planetas escuros aquecem mais do que os claros, por absorverem mais luz.

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O modelo simulava a evolução da temperatura em um planeta como a Terra, orbitando uma estrela semelhante ao Sol, com duas espécies de organismos: margaridas escuras e claras. Utilizava equações conhecidas da física e da biologia, que contemplavam como a temperatura era afetada pelo efeito albedo. A variável solo era representada com uma cor meio-tom, as plantas cresciam a partir de 5ºC e começavam a morrer a partir de 40ºC. Temperaturas menores favoreciam as margaridas escuras, por absorverem mais luz e com temperaturas maiores eram as brancas as beneficiadas. Baseando-se em outras pesquisas, Lovelock considerou que no fim do Hadeano, quando se iniciou a vida, o planeta possuía temperaturas mais baixas, devido à menor atividade solar, o que favorecia o crescimento das margaridas escuras. Os resultados iniciais foram surpreendentes (ver figura abaixo), resultando em uma temperatura relativamente estável com o tempo, mesmo com um sol cada vez mais luminoso. A participação das margaridas escuras e claras varia com o aumento da luminosidade solar até um ponto limite, quando a temperatura se aproxima de um valor crítico, a partir do qual as margaridas definham e perdem seu efeito controlador. É o fim da vida planetária.

O “Mundo das Margaridas” recebeu críticas devido a sua simplicidade, embora cientificamente correto. Contudo, acabou sendo uma epifania para o desenvolvimento de uma nova linha de modelos matemáticos globais, os modelos geofisiológicos. Posteriormente, Lovelock incrementou seu modelo inicial incluindo margaridas de

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outras tonalidades, assim como coelhos, que comem margaridas e raposas, que comem coelhos. Foram também incluídas catástrofes periódicas, que ocasionavam reduções sensíveis no número de margaridas e, consequentemente no de coelhos e raposas. Surpreendentemente, mesmo assim os resultados apresentaram uma estabilidade da temperatura ao longo do tempo, evidenciando a robustez e representatividade do modelo. Estes aperfeiçoamentos não fizeram cessar as contestações contra a teoria de Gaia e Lovelock, consciente de sua contribuição científica, continuou a defende-la, mesmo reconhecendo que ela não tem obrigatoriamente todas as respostas para um tema tão complexo:

Se Gaia nos oferece ou não uma imagem verdadeira do mundo pode ser uma questão menos importante do que sua capacidade de estimular as questões corretas a respeito da química planetária, e assim abrir novas áreas férteis de pesquisa...Cada questão sugerida pela teoria de Gaia leva a previsão de um elo possível, e pesquisas subsequentes confirmaram essa previsão como correta ou abriram outras áreas de interesse. (Lovelock, 2013, p. 26).

O quadro a seguir oferece várias evidências empíricas que corroboraram a pertinência e aplicabilidade da teoria de Gaia:

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Fonte: Gaia – Cura para um Planeta Doente, James Lovelock, 2013, p. 26

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Conflitos entre ideias são inerentes ao mundo científico. Ligados a distintas escolas epistemológicas, filosofias, paradigmas e ideologias, cientistas e estudiosos defendem posições teóricas com o ardor que frequentemente se vê nas disputas políticas e esportivas. As teorias, entretanto, somente têm valor científico enquanto as proposições que abrigam tiverem o respaldo empírico, sem o qual devem ser modificadas ou abandonadas, sendo substituídas por outras mais condizentes com a fenomenologia observável. A teoria de Gaia não se furta a esta verdade científica e as críticas que provoca e respectivas argumentações em sua defesa mostram a sua vitalidade.

O grande mérito da teoria de Gaia, entretanto, não é se submeter à realidade das evidências empíricas, mas a de ter proposto uma coerente evolução do sistema vivo a partir dos seres simples unicelulares, que resultou no surgimento do homem, a obra mais complexa da criação. Por suas peculiares características biológicas, intelectuais e culturais, o homem tem um papel singular nos rumos futuros planetários, embora ainda não tenha plena consciência disso. Apoiado nas ideias de Lovelock, defende-se que o homem representa o neocórtex de Gaia, seu módulo neural inteligente e criativo.

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GAIA E O HOMO SAPIENS

“ todos presumem que o homem É o dono deste planeta; senão

o proprietário, então o rendeiro....a hipótese de gaia

implica que no estado invariável do nosso planeta, se

inclua o homem como parte...

Se somos uma parte de gaia será interessante perguntar:

Em que medida é a nossa inteligência coletiva também uma

parte de gaia? Constituímos como espécie, um sistema

nervoso e um cérebro de gaia que pode prever

conscientemente as mudanças no meio envolvente? “

James lovelock 22

O estado da arte do conhecimento cosmológico indica que somente o planeta Terra abriga vida no sistema solar. Desde seu surgimento se manteve estável, mesmo atravessando inúmeras adversidades, entre elas cinco grandes cataclismos globais, internas e externas ao planeta, após os quais houve sensível redução da biota. Gaia surge com a vida e é praticamente tão velha quanto esta. Sua infância remonta ao período Arqueano (3,7 a 2,5 bilhões de anos atrás), quando o planeta era dotado de um imenso oceano e somente um continente. Sua atmosfera era composta de nitrogênio, gás carbônico, metano e hidrogênio, sem a presença de oxigênio.

Banhada por um sol mais frio, o planeta compensou a menor incidência solar, que poderia congelá-lo, com um calor interno três vezes maior do que atualmente e com a produção de gás carbônico e metano, gases do efeito estufa, produzidos pela

22 LOVELOCK, James. Gaia – Um Novo Olhar sobre a Vida na Terra. Rio de Janeiro, 1989, p. 157-159.

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ação das bactérias metanogênicas primitivas, que se alimentavam da matéria orgânica produzida por outras bactérias primitivas, as fotossintetizadoras, facilitando condições climáticas favoráveis à vida. Gaia surge quando essas bactérias simples, condicionadas à seleção natural darwiniana, se espalham pelo planeta e passam a interagir de forma interdependente com a litosfera, a hidrosfera e atmosfera. A crosta terrestre contribuía com o gás carbônico dos vulcões, a hidrosfera sustentava a vida bacteriana através de processos bioquímicos e a atmosfera fazia não apenas a “ponte” entre os dois, através dos fluxos aéreos, mas atuava como camada isolante, abrigando gases do efeito estufa e mitigando os efeitos danosos da radiação ultravioleta solar (Lovelock, 2013).

As fotossintetizadoras desenvolveram um processo químico que produzia oxigênio, resultante da combinação de luz solar absorvida e do gás carbônico retirado da atmosfera. Apesar disso, o oxigênio era praticamente inexistente na atmosfera primitiva do Arqueano, resultado de dois mecanismos básicos: a) produção de sulfeto de hidrogênio por bactérias que obtinham energia para seu metabolismo a partir da reação entre substancias inorgânicas, hidrogênio e oxigênio; b) formação de gás carbônico pelas bactérias metanogênicas, o que alimentava reações com compostos de ferro, resultando em produtos pesados, soterrados no leito oceânico. Durante este período não houve significativas mudanças na biologia e química planetárias, com exceção em sua fase final, quando o fluxo dos removedores de oxigênio (ferro e enxofre provenientes de fonte vulcânicas e tectônicas) escassearam, acabando por determinar, de um lado, disponibilidade de oxigênio na atmosfera, e de outro, escassez de metano, levando a uma profunda transformação no padrão dos

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organismos vivos. Inicia-se o Proterozoico (2,5 a 0,55 bilhões de anos atrás), que testemunhou mudanças radicais para Gaia.

O “rito de passagem” do Arqueano para o Proterozoico foi determinado pela mudança de uma atmosfera redutora para oxidante. Enquanto o primeiro foi marcado pelos organismos unicelulares simples, os procariotas, o segundo, com o crescimento da disponibilidade de oxigênio atmosférico, protagonizou um novo organismo unicelular, o eucariota, precursor das formas de vida mais complexas. Formados através do processo conhecido como endossimbiose, os eucariotas são compostos por um núcleo separado, protegido por membrana, dentro do qual ficam os cromossomos, o DNA e os genes, e por um complemento completo de organelas, anteriormente bactérias independentes, que foram absorvidas e integradas simbioticamente a seus hospedeiros. Os organismos unicelulares eucariotas são similares à imensa maioria das células que compõem as espécies atuais: animais, plantas e fungos. (Lovelock, 2006).

A transformação de uma atmosfera redutora para oxidante determinou o domínio dos microrganismos eucariotas sobre os procariotas, que não se extinguiram, mas se adaptaram a meios com baixo oxigênio, como os solos e o interior de outras espécies vivas. A evolução dos eucariotas produziu, posteriormente, dois resultados interdependentes: o surgimento de organismos multicelulares mais complexos e o aumento progressivo da concentração de oxigênio. Acredita-se que a vida unicelular no Proterozoico não era tão vigorosa para absorver e soterrar a quantidade de carbono existente na atmosfera e sustentar um nível de oxigênio mais elevado, o que somente ocorreu posteriormente com a evolução de grandes plantas e animais.

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Durante o Proterozoico, há mais de 1 bilhão de anos, comunidades de células eucariotas cresceram juntas e os primeiros organismos multicelulares surgiram. Melhor preparados para lidar com as condições severas do ambiente terrestre, os multicelulares se especializaram em papeis particulares, adequados à vida em terra firme, desenvolvendo estratégias evolutivas avançadas, como: pele para diminuir evaporação; órgãos dos sentidos para agilizar respostas a mudanças ambientais; arcabouços esqueléticos para melhorar condições de adaptabilidade ao meio e aumentar sua sobrevivência. A ação desses organismos era autopoiética, ou seja, interagiam incessante e interativamente com o ambiente, sendo moldados por este e também o moldando (Maturana e Varela, 2001). A mesma ideia é corroborada por Lovelock (2006, p. 96):

“Todos os organismos mudam o seu ambiente por meio da química de suas vidas...A atividade incessante dos genes realmente modifica, maciça e continuamente, o ambiente material da Terra. Essas modificações os realimentam para que exerçam pressão seletiva sobre a próxima geração de organismos”.

Com o fim do Proterozoico inicia-se o período Fanerozoico (0,55 bilhão de anos atrás até a época atual), marcado pelo surgimento das plantas e animais superiores, que contribuíram para a elevação do nível do oxigênio até os 21% atuais. Por ser mais recente e pela facilidade de se obter registros fósseis, foi dividido em três eras: Paleozoico, Mesozoico e Cenozoico. Com o surgimento de espécies superiores, aumenta a necessidade de se controlar o ambiente de modo a garantir condições confortáveis à biota. Quatro ciclos de elementos fundamentais à vida - carbono, nitrogênio, enxofre e oxigênio, atuam para regular a temperatura de Gaia, através de ações biológicas, geológicas, físicas e químicas, numa dança interminável de realimentação negativa (Harding, 2008).

O ciclo de carbono se inicia com a emissão de gás carbônico através da atividade vulcânica. O gás carbônico influencia diretamente o crescimento das plantas e a produção de oxigênio. Parcialmente penetra no solo, facilitado pela ação de plantas junto às rochas superficiais, dissolvendo-se na água pluvial, reagindo com

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rochas basálticas e formando bicarbonato de cálcio, que é arrastado por correntes aquosas até o mar, onde é absorvido por microalgas marinhas que o utilizam para formar carapaças que acabam por se precipitar no leito oceânico, formando sedimentos de calcário. É um ciclo lento, com duração de cerca de 200.000 anos, o que justifica a dificuldade de Gaia em regular o excesso de gás carbônico que tem sido acrescido pelo homem à atmosfera nos últimos anos, que já ultrapassou 400 partes por milhão, considerado pelos estudiosos como perigoso para a biota.

O nitrogênio é essencial para a vida, elemento chave das proteínas e do DNA. Na natureza é escasso, existindo quase que totalmente na atmosfera. Em um mundo sem vida, mas com estrutura oceânica, o nitrogênio seria praticamente todo transferido para os oceanos em alguns milhões de anos, Condições atmosféricas combinadas com oxigênio e nitrogênio produziriam nitratos estáveis no meio aquoso. É a vida que modifica esse “status”, pela ação de microrganismos fixadores de nitrogênio, que suprem as necessidades da biota terrestre e marinha. Outras bactérias, as desnitrificadoras, usam detritos orgânicos e devolvem nitrogênio para a atmosfera.

O enxofre é um elemento químico imprescindível para todos os organismos vivos, sendo constituinte importante de muitos aminoácidos. É encontrado nos solos, que perdem quantidades substanciais desse elemento, levados ao mar na forma de íons sulfeto. Sua reposição se inicia quando as algas marinhas que o absorvem, morrem e se decompõem, gerando o gás sulfeto de dimetila, ou SDM, que tem dois papéis essenciais na estabilidade ambiental. É transportado pela brisa marinha até os continentes repondo o que foi levado aos oceanos e também age como nucleador de gotículas de água semeando nuvens e colaborando com um albedo planetário apropriado, pela reflexão da luz solar para o espaço, efetivada pela cobertura de nuvens.

Por último, o oxigênio, elemento mais abundante na crosta terrestre e vital para a maior parte biota. De elemento quase inexistente na atmosfera primitiva chegou

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atualmente a 21% de concentração. Em um planeta estéril é inexistente e na Terra sua porcentagem é o resultado do equilíbrio entre sua produção, pelas bactérias fotossintetizadoras e seu consumo, pela ação de animais e microrganismos. Em nenhum momento da história geológica da Terra há indícios de que esse nível excedeu 25%, considerado como crítico para a inflamabilidade de organismos vegetais, o que reforça a ideia, embora metafórica, de Gaia como um “sistema vivo autorregulador”.

A descrição a seguir reveste-se de caráter imaginativo, na qual procura-se expressar o que o Fanerozoico representou para a evolução gaiana. Embora irreal, apoia-se nos registros históricos e relata o que uma testemunha fictícia observaria no desenrolar deste período, se pudesse sintetizá-lo em poucas linhas:

Vejo um planeta azulado, cuja atmosfera progressivamente se enriquece de oxigênio e se empobrece de gás carbônico, que atua homeostaticamente para produzir um ambiente favorável aos seres vivos que a vão povoando. Um único continente, Pangeia, dentro de um único oceano, Pantalassa, forma a imagem planetária de fundo. Observamos o Paleozoico (542 a 251 milhões de anos atrás). Nota-se um grande crescimento e proliferação da massa vegetal e o surgimento e evolução rápida de peixes, insetos, anfíbios e repteis. É possível confirmar que todos os grandes grupos de invertebrados estão presentes, mas não ainda aves e mamíferos. Há uma intensa atividade de formação de grandes jazidas de carvão, que atenderão necessidades energéticas futuras da humanidade (Branco, 2016). Avançamos pela era Mesozoica (251 a 65 milhões de anos atrás) e vejo Pangeia se fraturar, resultado da dinâmica geológica das placas tectônicas que compõem a crosta, movidas pelo intenso fluxo magmático interno, decorrente de temperaturas e pressões elevadas no núcleo do planeta. As novas placas formadas se afastam e uma nova geografia mundial, composta de continentes e oceanos se forma. Vejo o povoamento dessas novas terras e oceanos, em cujo contexto mamíferos e aves começam a se mostrar presentes. Entretanto, são os grandes répteis que dominam o planeta, cuja primazia perdurará por cerca de 180 milhões de anos, até o início da era Cenozoica (há 65 milhões de anos até a atualidade).

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O início de seu fim é trágico e assustador. No horizonte aproxima-se um asteroide com cerca de 12 quilômetros de extensão, a mais de 20 quilômetros por segundo. Desvia-se de sua trajetória cósmica original, atraído pelo campo gravitacional da Terra, que o leva a chocar-se contra sua superfície, na península de Yucatán. A explosão é dantesca, equivalente a cinco bilhões de bombas atômicas de Hiroshima, e cria uma cratera de 200 quilômetros de largura. A onda de choque atravessa o planeta e os materiais liberados produzem chuvas ácidas e escurecimento dos céus, resultando em esfriamento global. Terremotos, “tsunamis” e grandes incêndios se seguem e a vida é profundamente afetada. É o fim dos dinossauros, que cedem lugar a outra espécie que se imporá doravante, os mamíferos.

Dois milhões de anos são necessários para Gaia se recuperar e restabelecer novamente a diversidade. Já não tem o vigor de outrora, precisa de apoio. Sessenta milhões de anos se passam e o homem desponta como uma esperança. Surge de uma ramificação dos primatas, há cerca de 3 milhões de anos. Segue um caminho diferenciado de seus primos, desenvolve consciência, inteligência e cultura. O fim desta breve narrativa, entretanto, revela um contexto diferente do que o desejado. O homem se comporta como o filho pródigo, que se apropria dos bens de seus progenitores e os abandona. Gaia, entretanto, não se entrega e continua ativa apesar das limitações de seus recursos cibernéticos. Talvez como resultado de suas limitações de regulação, assiste-se nas últimas centenas de milhares de anos a uma alternância entre períodos de glaciação e aquecimento, decorrentes do efeito Milankovich23, que leva a indagações sobre a eficácia do sistema cibernético gaiano, que pode não estar mais respondendo às exigências ambientais, o que reforça a esperança de que o homem finalmente

23 A combinação de variações na excentricidade da órbita da Terra, combinadas com a obliquidade de seu eixo de rotação e o efeito de Precessão (oscilação do eixo terrestre) causa mudanças de longo prazo na quantidade de luz do sol que atinge nosso planeta, desencadeando a entrada numa era glaciar ou interglaciar. .

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entenda qual deve ser a sua “persona” no teatro terrestre, o de colaborador e não de explorador.

Homem. Filho temporão e protagonista da história planetária. Quem é ele? Como evoluiu? Porque é importante para Gaia? O que representa para a biota? São perguntas que intrigam as ciências e enriquecem o propósito desse trabalho. Edgar Morin nos ajuda a responde-las complementando as contribuições de Lovelock. A despeito das visões antropológicas dominantes, entende que há uma inegável articulação entre o animal biológico e o ser cultural, que se constrói desde seus múltiplos nascimentos, desde as suas origens hominídeas até o devir na contemporaneidade (Morin, 1973).

Os primeiros hominídeos do gênero homo, o homo habilis, evoluem a partir de um ancestral comum dos primatas, cujos detalhes ainda são poucos conhecidos. Como as demais espécies, desenvolvem-se através de processos complexos de regeneração, reconstrução, reconstituição e autorreparação, o que lhes confere condições excepcionais evolutivas e adaptativas em sua interação com o meio. A crença simplificadora na seleção dos mais aptos cede lugar, nesse contexto, a uma visão integradora e interdependente entre hominídeos e o ecossistema, regulada pela autopoiese, a capacidade de constante autoprodução, autorregularão e interações com o meio, o que determina o seu comportamento. A etologia traz sua contribuição ao revelar que o comportamento animal não é fruto de instintos e reflexos automáticos, mas simultaneamente organizado e organizador, alimentado por noções de comunicação e interação territorial, que criam símbolos, ritos e relações sociais (Morin, 1973).

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A distinção inicial entre hominídeos e primatas ocorre, provavelmente, pela locomoção bípede e verticalização da postura e não necessariamente pelo tamanho cerebral e capacidade intelectual. É o bipedismo que ao liberar a mão, transforma-a em instrumento polivalente, contribuindo decisivamente para a evolução que conduz ao sapiens. Não é um processo linear, mas complexo onde inúmeras variáveis, agentes e fatores interagem, contribuindo para a relativamente rápida evolução humana.

A partir de então, serão as múltiplas interrelações, interações e interferências entre os fatores genéticos, ecológicos, praxistas (caça), cerebrais, sociais e depois culturais, que vão permitir conceber o processo multidimensional da hominização, o qual vai finalmente levar ao aparecimento do Homo Sapiens.

Isto já indica que a hominização não poderia ser concebida unicamente como uma evolução biológica, nem como uma evolução espiritual, nem como uma evolução sociocultural, mas sim como uma morfogênese complexa e multidimensional resultante de interferências genéticas, ecológicas, sociais e culturais (Morin, 1973, p. 54-55).

A hominização não segue uma linearização evolutiva entre os primeiros hominídeos e o sapiens. Inicia-se, provavelmente, por alguma ruptura ecológica, associada a mutações genéticas e cisões sociológicas entre castas de primatas, que obrigaram os primeiros hominídeos a abandonar a segurança das florestas e se aventurar por áreas de risco, as savanas, onde desenvolveram uma nova “práxis”, que nucleia, conecta, alimenta e é alimentada por vetores socioculturais, genéticos, cerebrais e ecossistêmicos, intimamente conectados e interdependentes. A substituição progressiva da floresta pelas savanas contribui para que os primeiros hominídeos, pequenos e fracos, tornem-se genética e anatomicamente, mais ágeis, fortes e inteligentes, suplantando concorrentes quando necessário, segundo o princípio darwiniano da seleção natural. A figura a seguir sintetiza esse quadro:

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Fonte: Edgar Morin, O Paradigma Perdido, 1973, p. 55

A rota evolutiva testemunha uma relação ecossistema/hominídeo cada vez mais intensa e complexa. O ecossistema oferece múltiplas informações que exigem raciocínio e entendimento, estimulando novos desenvolvimentos biológicos, cerebrais, cognitivos, cooperativos, tribais. A caça, desenvolvida nos últimos 500.000 anos, exerce um papel primário nesse contexto, responsável pela sobrevivência em ambientes precários de alimentação vegetal, pois não somente transforma a relação com o ambiente, mas entre homens, mulheres e crianças, alimentando novas transformações individuais e coletivas. A caça intensifica a tétrade pés-mãos-cérebro- utensílio, conduzindo ao aprimoramento técnico e, finalmente, como no mito prometeico, possibilita a utilização do fogo. O processo de cozer realimenta mudanças genéticas, favorece o desenvolvimento cerebral, altera a “práxis” e influi no ambiente e nas práticas socioculturais (Morin, 1973).

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Ideias reducionistas biologistas e antropologistas, limitadas a seus feudos cognitivos, não se sustentam mais ao tentar explicar o homem moderno à sua maneira. O sapiens é produto de uma complexa teia interrelacional de variáveis biológicas, genéticas, ambientais, sociais, culturais e psicológicas, que se alteram reciprocamente criando a “teia da vida”. Mas é a cultura, a que melhor representa a

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relação do homem com a natureza, pois é seu subproduto. Foi através da cultura que se estruturou a complexa sociedade humana, ajudando-a se manter e a se desenvolver, sem perder a identidade, evitando que se tornasse simplesmente fruto de um jogo de interações.

A cultura constitui um sistema generativo de alta complexidade, sem a qual essa alta complexidade ruiria para dar lugar a um nível organizacional mais baixo. Nesse sentido a cultura deve ser transmitida, ensinada, aprendida, quer dizer, reproduzida em cada novo indivíduo no seu período de aprendizagem, para se poder autoperpetuar e para perpetuar a alta complexidade social. (Morin, 1973, p. 75).

A multiplicação e a diáspora das sociedades humanas da África, berço da civilização, aos demais continentes, somente foi possível pela difusão e auto reprodução cultural. A cultura se torna o aparelho generativo e regenerativo da sociedade, se constituindo seu centro epigenético24 e autônomo, embora indissociável do cérebro humano, que também a necessita para sua evolução. Homem e cultura são duas faces de uma mesma complexidade fenomenológica, que vem alimentando as transformações humanas desde o primeiro hominídeo e que culmina no sapiens- sapiens.

Essas discussões sobre a evolução social e cultural se enriquecem quando complementadas pelas abordagens física, química, geológica e biológica de Lovelock, que ainda faz incursões no social e no econômico. Espécie relativamente insignificante nos primórdios de sua existência, por sua pequena população e pouca influência sobre o meio ambiente, o homem iniciou sua jornada praticando hábitos nômades, em busca de recursos e proteção. Posteriormente, com o desenvolvimento da agricultura, uma prática feminina iniciada cerca de 10.000 anos atrás, tornou-se sedentário, fixando-se ao local e dando início ao processo civilizatório, que culminaria na sociedade global. Lovelock considera que, a partir de sua fixação em comunidades,

24 A epigenética é definida como modificações do genoma que são herdadas pelas próximas gerações, mas que não alteram a sequência do DNA. Variações não-genéticas (ou epigenéticas) adquiridas durante a vida de um organismo podem frequentemente serem passadas aos seus descendentes

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o homem começa a intensificar a exploração dos recursos naturais, tornando-se para Gaia um microrganismo patogênico, um parasita.

Em seu nomadismo o homem vivia simbioticamente com Gaia. Como animal sedentário domina o planeta, tornando-se um agente infeccioso que debilita o hospedeiro. Na dinâmica de Gaia, o contínuo crescimento populacional e a exploração intensiva dos recursos planetários representam um grave risco para o “sistema vivo”. Malthus25 alertava há 200 anos que a população humana está ultrapassando as limitações do meio ambiente em sua capacidade de prover recursos, o que a levará, no final, a ser reduzida pela fome, pelas doenças, pelas guerras ou catástrofes naturais. Proféticas palavras que, confrontadas com os atuais cenários globais, ensejam profundas reflexões sobre suas perspectivas.

Lovelock reforça a ideia que, pela sua expansão e tamanho, a espécie humana se converteu em uma doença parasitária grave para o planeta, exigindo um tratamento intensivo imediato, para o que propõe a criação de uma nova ciência sistêmica, a geofisiologia, que integra as ciências da vida e da terra e é focada no entendimento de como os organismos vivos e a Terra funcionam em sua relação simbiótica. É um defensor ardoroso de Gaia e um exímio narrador de sua história. (Lovelock, 2006). Postula que a humanidade atravessará tempos cada vez mais difíceis, em cenários de profundas transformações ambientais causadas pela ação humana. Essas percepções derivam de seu trabalho científico sobre Gaia e o homem, e o levam a vaticinar projeções futuras.

25 Thomas Robert Malthus (1766-1834) economista britânico, considerado o pai da demografia por sua teoria para o controle do aumento populacional, conhecida como malthusianismo.

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Apesar de seu relativo ceticismo, nem tudo é desesperança no trabalho de Lovelock. Em sintonia com outros pensadores e correntes ambientalistas, acusa o homem de ser, concomitantemente, o maior responsável pelas mudanças climáticas e a maior esperança para restabelecer a saúde do sistema vivo. O homem deve assumir o papel de “Neocortex” de Gaia, o modulo inteligente criativo de que esta HOMEM – Neocórtex de Gaia necessita para compensar suas debilidades Fonte:http://powerpoint.crystalgraphics.c om/templates/view/10278/glowing_eart regulatórias e cibernéticas. h_head_on_a_dark_background

Basta o homem se conscientizar Eis o que falta para que se de seu papel estratégico no teatro concretize uma comunidade humana: terrestre, não mais como o caçador- a consciência de que somos filhos e cidadãos da terra-Pátria. Ainda não coletor, que interpretou ao longo de seu chegamos a reconhece-la como o lar caminho evolutivo, mas como “filho de da humanidade. Gaia”, assumindo a coautoria da A pátria terrestre não é abstrata, pois jornada que se desenha no horizonte, foi dela que saiu a humanidade. que exige responsabilidade e Todos os seres vivos têm os mesmos comprometimento com as gerações ancestrais; todos são filhos da vida e futuras que herdarão o planeta. O da Terra. futuro está em suas mãos, mas sua Edgar Morin. O Método 5 – A humanidade da humanidade – a identidade humana, passividade pode torna-lo difícil, como 2012a, p. 240 apontam as percepções de Lovelock.

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PERCEPÇÕES

“ Ninguém vai ficar imune aos impactos das mudanças

climáticas. Em todos os lugares, as pessoas estão

vulneráveis a condições climáticas e eventos meteorológicos

extremos, enquanto a adaptação e a preparação para eles

continuam baixas, o que pode resultar em consequências

Graves à medida que os impactos aumentarem “

IPCC - ONU 26

O homem se tornou o predador mais obstinado que o mundo já viu, porque a seleção natural o fez assim. Não consegue alterar sua própria natureza, esculpida durante milhares de anos de tribalismos e nacionalismos, mas seu intelecto, sua capacidade imaginativa, sua cultura e complexidade intrínseca lhe fornecem subsídios para moderar a ação daninha contra o ambiente e seu apetite por recursos naturais. Seu comportamento explorador tem resultado na diminuição progressiva da capacidade homeostática de Gaia, o que o torna uma “infectio gravis” 27 do hospedeiro planetário. Essa ação daninha se intensificou com o manuseio do fogo, usado para queimar florestas para facilitar a caça, preparar terrenos para a lavoura e cozer alimentos. É sintomático que o uso do fogo, associado ao nomadismo, caracteriza o início do processo civilizatório e também o processo da exploração abusiva da biosfera.

O que contribuiu para esse “status quo”, afastando-o de um estado de intimidade simbiótica com Gaia, que perdurou até 10.000 anos atrás? Acredita-se que parte dessa resposta se fundamenta no fato de que, embora dotado de um cérebro

26 Uma das conclusões do 5º Relatório de Avaliação (AR5) do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, de 2015 27 Infecção grave

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diferenciado, que lhe confere habilidades inexistentes nas demais espécies, o homem não é livre, não é independente e nem tão especial como se crê. Escreveu o filósofo escocês David Hume: “A vida de um homem não é mais importante para o universo do que a de uma ostra”28. Agrilhoado a estruturas e comportamentos tribais, se porta com grosseria e ignorância, incapaz de viver em harmonia com sua própria espécie e com o planeta, dominado que é pelo poder da coletividade que dirige suas ações. Outrora, em pequenos grupos, sua vida era natural e ambientalmente integrada, mas o desenvolvimento cerebral ampliou sua inteligência e trouxe-lhe novas perspectivas cognitivas. De errante nômade criou comunidades, desenvolveu ferramentas, a agricultura e aprendeu a usar o fogo. Passou de presa a caçador e alterou profundamente sua relação com o ambiente, dominou as demais espécies e tornou- se o “Senhor da Terra”. Gaia, a Mãe-Terra se tornou serva, servindo a seus desejos e necessidades.

A humanidade não representou um sério risco ambiental até o século XIX, apesar dos significativos avanços materiais e científicos alcançados. Essas ameaças se potencializaram com o crescimento exponencial da população global e o rápido desenvolvimento tecnológico e econômico presenciados no século XX. Ambos se tornaram vetores cruciais de incursões sobre o ambiente natural, nunca vistos na história humana. Paradoxalmente, o homem saciou suas necessidades do bem viver, mas à custa da pauperização dos recursos da natureza, do qual é parte intrínseca. Contribuíram equivocadamente para esta situação as ciências cartesianas, com suas crenças limitadas a um universo materialista e determinista, separando alma e corpo, levando o homem ao isolamento do “sistema vivo”. Seu mantra, que considera irrefutável, sobre o poder messiânico da tecnologia e a economia como panaceia de um mundo debilitado, acaba por obscurecer o fato que o homem ainda se comporta como um caçador-coletor, mal preparado para sobreviver em um planeta quente e inóspito, possível contexto ambiental para o final deste século. Em sua cegueira coletiva não se apercebe que sua inteligência não é um dom transcendental, mas uma habilidade que evoluiu a partir de inter-relações com Gaia, de quem depende sua

28 Excerto de David Hume retirado do livro de Oliver Sachs: Tempo de Despertar. São Paulo: Ed. Schwarcz, 2013.

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sobrevivência (Lovelock, 2010). Esta, entretanto, não é tolerante, nem frágil, exposta aos caprichos de uma humanidade alheia à sua cruzada. É forte, dura, equitativa, coerente com sua missão de manter o mundo habitável, mas impiedosa com os transgressores que a desrespeitam (Lovelock, 1988).

Enlevado pela economia capitalista neoliberal, pelos avanços científicos e tecnológicos e condicionado por uma visão simplista e compartimentalizada do mundo, o homem se colocou como o “senhor feudal” da Terra, se apossando de seus bens e dominando as espécies vivas, alterando o frágil e complexo equilíbrio do “sistema vivo”, preservado por mais de 3 bilhões de anos, colocando em risco não só a sobrevivência da humanidade tal como a conhecemos, como a de inúmeras outras espécies. Em sua ânsia de dominar a natureza, de controlar seu destino, de criar riquezas e manter sua superioridade, vem exaurindo abusivamente a herança natural comum, debilitando e enfermando Gaia (Lovelock, 2013). O sistema natural reage a despeito das mudanças ambientais testemunhadas e trabalha para manter condições de habitabilidade no planeta. Tem feio isso há bilhões de anos. Porque então o excesso de preocupação atual com o meio ambiente, que impacta não só os cidadãos, mas instituições e governos? Duas respostas são pertinentes: a primeira remete à velocidade das transformações provocadas pelo homem na biosfera, que tem produzido um nível de concentração de gases do efeito estufa na atmosfera, incompatível com a capacidade gaiana de reduzi-los em curto espaço de tempo. A segunda esclarece que Gaia se encontra no último quartil de sua existência e seus recursos homeostáticos estão debilitados. Projeções científicas indicam que, se mudanças profundas na gestão natural não forem efetivadas em curto espaço de tempo, o planeta caminhará para um novo equilíbrio ambiental, precarizando as condições de habitabilidade do planeta, afetando as espécies, sem que se possa afirmar o que acontecerá exatamente. Entre todos os problemas ambientais testemunhados, o pior é o do aquecimento global, que nucleia as demais mudanças do ambiente a que se assiste na contemporaneidade.

É nesse contexto específico de empobrecimento das condições ambientais que Lovelock coloca suas preocupações com o futuro comum do homem, das

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espécies e do meio ambiente. Sua obra é um repositório inquestionável de reconhecimento a Gaia e sua missão. Sente-se responsável por divulgar suas descobertas e apreensões sobre as ações humanas na biosfera, que vem progressivamente desestabilizando o frágil equilíbrio alcançado por uma cumplicidade entre organismos, litosfera, hidrosfera e atmosfera, que deram vida a Gaia. Consolida seu compromisso ao descrever suas percepções sobre possíveis cenários futuros, não como um “Nostradamus”, mas como o sábio que detecta “sinais de fumaça” no horizonte e alerta seus companheiros de jornada sobre a iminente necessidade de mudanças das ações humanas no planeta, antes que seja demasiado tarde.

As percepções de Lovelock sobre o futuro se fundamentam na compreensão de que sua missão, como cientista, é também propor possíveis opções à humanidade em sua jornada planetária no século XXI, condicionadas à relação homem/natureza, que não seguem processos lineares, mas aleatórios e complexos, onde ordem e desordem coexistem. Previsibilidades somente são possíveis em condições muito particulares e incertezas são a regra geral. Ao longo da trajetória perturbações ocorrem e se não forem adequadamente controladas levarão a um limite denominado “Ponto de Bifurcação”, a partir do qual se rompe a estrutura do sistema e um novo arranjo mais complexo surge, após um período de erraticidade (Prigogine e Stengers, 1992). O processo evolutivo de Gaia, altamente complexo por sua natureza, não foge a estes princípios. O diagrama acima, que sintetiza a evolução da “Pegada Humana Planetária”29 ilustra as proposições e considerações aqui discutidas e sua progressão futura indica uma bifurcação, que pode levar a uma catástrofe ecológica ou a um futuro sustentável. A trajetória que será seguida ainda é um enigma.

29 É um indicador que mede a biocapacidade do ecossistema planetário se recuperar, compensando o que é retirado para atender necessidades humanas, regenerando recursos naturais retirados e absorvendo resíduos gerados. O valore 1,0 indica uma condição de equilíbrio entre retiradas e regeneração planetária

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Parte importante do trabalho de Lovelock é analisar as ações humanas em curso para reverter as mudanças ambientais. Considera-as em sua maioria inúteis ou desnecessárias, pois foram pensadas ou construídas com visões cartesianas, sem relevar devidamente a complexidade planetária. Tem enfatizado sua visão sobre o futuro e as possibilidades para a humanidade no contexto ambiental terrestre. Embora narre grandes dificuldades que advirão, demonstra convicção que o homem, com sua criatividade e conhecimento tecnológico, pode amenizar as agruras que crê, a humanidade atravessará em curto espaço de tempo. Não está sozinho nessa tarefa. Estudos do IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Changes) por exemplo, órgão da ONU integrado por mais de 2.500 cientistas de 130 países e criado para estudar as mudanças climáticas em curso e seus efeitos sobre a biota, através de sofisticados modelos matemáticos que simulam o sistema climático global, tem produzido relatórios detalhados sobre o “status quo” ambiental e riscos futuros (IPCC, 2007 e 2014).

O 4º relatório de mudanças climáticas do IPCC, publicado em 2007, foi o primeiro da série a afirmar que a ação antropogênica era a principal responsável pelas alterações climáticas, sobretudo através da emissão de gases como o dióxido de carbono (CO2), óxido nitroso (N2O) e metano (CH4), principais agentes do efeito estufa e produzidos pela atividade industrial. O 5º. Relatório do IPCC, de 2014, reforçou essa hipótese, colocando definitivamente o homem no banco dos réus (IPCC, 2014). Suas conclusões finais enfatizam descobertas, recomendações e percepções que versam não somente sobre o atual “status” ambiental e climático, mas, sobre possibilidades futuras, que delineiam um contexto de incertezas30:

a) As mudanças climáticas são causadas primariamente por seres humanos;

b) As mudanças climáticas estão em aceleração. Indicadores como: derretimento das placas glaciais e a elevação do nível do mar estão ocorrendo mais rápido que o previsto anteriormente;

30 Informações obtidas através da fonte: http://350.org/pt/10-conclusoes-importantes-retiradas-dos-relatorios- do-ipcc/, acessada em 28 de abril 2016

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c) As mudanças climáticas estão afetando eventos meteorológicos, tais como tempestades, furacões, tornados, ciclones, levando-os a níveis extremos;

d) Todas as pessoas estão ficando cada vez mais vulneráveis a condições climáticas e eventos meteorológicos extremos, enquanto a adaptação e a preparação para eles continuam baixas, o que pode resultar em consequências graves à medida que os impactos aumentarem;

e) A mudança climática já está prejudicando a produção agrícola, fato que vai se agravar;

f) Se ações adequadas não forem tomadas, a meta de limitação de aquecimento de 2ºC, acordada pelos líderes mundiais, em breve estará fora de alcance. Se a emissão de gases do efeito estufa continuar aumentando no ritmo atual, projeta-se uma temperatura global média entre 2,6ºC e 4,8ºC mais alta até o final do século, o que representa uma grave ameaça para a biota;

g) A humanidade se encontra em uma encruzilhada crucial. Há soluções que podem reverter parcialmente este quadro, mas estão condicionadas a grandes investimentos, suporte das ciências, uso de tecnologias de ponta e à confrontação dos vetores mais críticos que respondem pelas alterações climáticas: combustíveis fósseis, crescimento populacional, desigualdade econômica e uso insensato dos recursos naturais.

Embora estes estudos sejam amparados por modelos matemática e fisicamente sofisticados, Lovelock se mostra cético com relação a seu alcance, pois são elaborados dentro do paradigma tradicional e simplificador das ciências e não incorporam pontos de vista transdisciplinares, como os que defende em sua teoria, levando a resultados diferentes e aquém do que se vem observando empiricamente. O geoquímico Wallace Broecker31 aliou-se a esse posicionamento ao afirmar, que podem ocorrer surpresas desagradáveis no efeito estufa devido a eventuais e inesperadas realimentações positivas geofísicas, que tornariam impossíveis as

31 Wallace Smith Broecker (1931 - ), oceanógrafo e químico estadunidense escreveu artigo para a revista Nature, em 1987, defendendo ponto de vista similar ao de James Lovelock.

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previsões comuns. Embora suas proposições apresentem similaridades com as do relatório do IPCC, Lovelock chega a percepções diferentes e mais abrangentes do que as inferidas pelo organismo da ONU.

Afirma que já ultrapassamos o divisor de águas que permitiria à humanidade reverter em condições seguras o aquecimento global e as mudanças climáticas. A economia industrializada, a dimensão populacional e o consumismo incontrolável construído sobre as bases do capitalismo liberal e neoliberal representam obstáculos impossíveis de serem transpostos, o que conduzirá a humanidade a um futuro turbulento. Reforça essa visão a dificuldade humana de produzir mudanças em seu “modus vivendi”, esculpido por uma cultura generalizada centrada nas benesses do sistema capitalista e a crença em sua infalibilidade. Michael Scharmer32 enfatiza essa dificuldade humana em lidar com mudanças, mesmo que o senso comum as considere imprescindíveis. Segundo Scharmer, a evolução o cérebro humano se deu através de desconexões cognitivas de evidências científicas, priorizando pequenas histórias amplificadas pela tradição oral, ou, na atualidade, pela mídia, preferindo afirmações positivas, mesmo que falsas, àquelas que tem um cunho negativo, mesmo que verdadeiras. A máquina econômica aliada à política se utiliza dessa debilidade para confundir milhões de crédulos sobre os prognósticos futuros, se apossando de seus “corações e mentes”, convencendo-os que tem os destinos planetários sob controle.

Lovelock acredita que uma recuperação planetária, que conduzisse a Terra a uma situação sustentável, poderia ser até verossímil se, mesmo com o atual nível de degradação dos ecossistemas, precarização de áreas agriculturáveis, definhamento dos recursos hídricos e o aquecimento global, a população planetária não excedesse 1 bilhão de almas. A conta, porém, já ultrapassou os 7 bilhões, devendo chegar a 9,7 bilhões em 205033. É um contingente humano excessivo para a capacidade autorregenerativa de uma Gaia já no ultimo quartil de sua existência e contra a qual

32 Michael Scharmer, psicólogo, em artigo publicado na revista Scientific American, em agosto de 2008. 33 World Population Prospects – Revision 2015 UN. Disponível em https://esa.un.org/unpd/wpp/publications/files/key_findings_wpp_2015.pdf. Acesso em maio de 2017.

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ainda conspira um sol vinte e cinco por cento mais quente de quando surgiu a Terra (Lovelock, 2006).

É nesse contexto cético que Lovelock, embasado em seus conhecimentos de cientista da vida e da terra, desenvolve suas percepções sobre o final desta história, contextualizada na segunda metade deste século. Entende que não haverá um final feliz para o homem, mas tampouco a Terra terminará como um planeta estéril, à semelhança de Vênus e Marte. Reconhece que o homem tem engendrado medidas para conter o aquecimento global, considerado o problema ambiental mais premente, mas os resultados alcançados são inócuos face ao avançado estado de degradação planetária. Energia limpa, reflorestamento, controle da emissão de gases do efeito estufa, uso de biocombustíveis, entre outros, são auspiciosos, porém, além de não suprirem as necessidades do homem por energia, não reverterão no curto espaço de tempo o aquecimento global e nem restabelecerão o sistema retroalimentador de Gaia. Reconhece que o aquecimento global é decorrente da expansão econômica das últimas décadas, fruto do sistema-mundo dominante, o capitalismo, que vem desrespeitando o meio ambiente, exaurindo perigosamente os ecossistemas, debilitando os mecanismos naturais de Gaia, colocando-a em risco.

Embora se mostre pessimista sobre o futuro, imagem que lhe atribuem seus críticos, e não renuncie às suas projeções, considera que existem ações paliativas que podem mitigar o quadro difícil que prevê. Um desses esforços é representado pela geoengenharia, área tecnológica que engloba atividades humanas deliberadas, orientadas a alterar de forma significativa o sistema gaiano. Aliada ao “estado da arte” dos conhecimentos científicos, pode ser direcionada a soluções que ajudem a recuperar a homeostasia planetária, tais como: projetos de manipulação do albedo planetário, cultivo de algas oceânicas com ferro, reflorestamento, produção de alimentos a partir de bases inorgânicas, emissão de aerossóis refletores da luz solar, sequestro e enterramento do dióxido de carbono produzido pelos combustíveis fósseis, implantação de guarda-chuvas espelhados na órbita terrestre. Embora sejam proposições especulativas ou experimentais, refletem o potencial criativo humano para reverter o difícil quadro climático. Lovelock, entretanto, é enfático ao indagar se

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o homem tem talento e conhecimento suficiente para tais proezas, pois além do alto investimento exigido por tais projetos, seu conhecimento do complexo sistema planetário não é suficiente para predizer se uma possível solução de geoengenharia não provocaria mais danos a Gaia (Lovelock, 2010). Acredita que na atual situação ambiental é altamente improvável que se detenha a marcha implacável da mudança climática e seus crescentes efeitos perversos: diminuição das regiões habitáveis, escassez de recursos alimentares, aumento do nível dos oceanos e redução da população mundial, que será obrigada a migrar para estreitas faixas habitáveis nas regiões temperadas e polares.

Medidas eficazes para mitigação dos impactos ambientais devem ser urgentes, o tempo disponível para reações é exíguo e deve ser bem utilizado. Felizmente a vida não desaparecerá, mas se adaptará. A seleção natural continuará a fazer o seu trabalho e as espécies mais aptas sobreviverão. O mesmo se passará com a humanidade. O importante é aceitar que não haverá volta ao nosso atual modo de vida. Reconhece-se os méritos do capitalismo e sua contribuição por criar uma sociedade de conhecimento, a qual será imprescindível para os tempos vindouros. Entretanto, nossa sociedade não sobreviverá tal e qual, as comunidades remanescentes deverão buscar novas perspectivas tecnológicas, econômicas, políticas, sociais e culturais. Embora a própria essência desta tese vá contra a ideia de determinismos, prognósticos científicos indicam a dificuldade de se reverter as mudanças climáticas em curso, a despeito dos apelos coerentes do IPCC e de tantos outros organismos voltados ao estudo ambiental. Corrobora este ceticismo quanto ao futuro a dificuldade que o homem moderno tem em mudar seus hábitos consumistas e seu modo de vida. A história tem mostrado que mudanças radicais somente acontecem em contextos catastrofistas ou de intensas comoções sociais. Isto se repetirá? Provavelmente e com alto custo para a humanidade e o planeta. Uma Gaia, transformada pelas mudanças ambientais e debilitada pela idade, não comportará um contingente humano tão numeroso como o atual, e não poderá prescindir do apoio do homem, que deve transcender o caçador-coletor, se transmudando no coartífice de um novo desenvolvimento em simbiose com o ambiente natural. O homem não poderá se furtar a esse papel.

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O ser humano ao longo de sua evolução mostrou resiliência às adversidades e adaptabilidade ao ambiente, que deverá repetir no futuro próximo. Caso a sociedade seja reduzida significativamente, conforme os prognósticos aqui discutidos, deverá aprender com seus erros passados, contrariando o senso comum. Deverá ser mais inteligente do que tem sido e agir em sintonia com Gaia, de forma ética e altruísta. Uma sociedade-mundo, composta de redes regionais, as sociedades modulares, mimetizadas a partir do cérebro humano, obra-prima da criação, poderia cumprir esta missão. Ao final desta tese voltaremos a este assunto, pois representa sua maior proposição. Encerro a primeira parte deste trabalho, que abordou a jornada passada da humanidade, com uma “visão” autoexplicativa sobre o possível futuro humano, segundo James Lovelock (2006, p. 159):

Enquanto isso no mundo árido e quente, sobreviventes se juntam para a jornada aos novos centros de civilização no Ártico. Eu os vejo no deserto assim que amanhece e o sol começa a lançar seus penetrantes raios através do horizonte. O ar noturno fresco e frio ainda perdura por instantes e, então, como fumaça, se dissipa e o calor abrasador assume o lugar. Seus camelos despertam e vagarosamente se colocam de pé. Os poucos membros remanescentes da tribo montam em seus animais. Eles iniciam a insuportavelmente longa e quente jornada ao próximo oásis.

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JORNADA

PRESENTE:

DOIS

MUNDOS

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Por si só a vida nunca teria existido, pois é um fenômeno sistêmico de auto- eco-organização extraordinariamente complexo, fato ignorado pela maioria da humanidade, que se mostra ignorante em relação à complexidade da teia de inter- relações do ambiente natural. Gaia é o sistema vivo da Terra, e o homem um elo. Diferenciado das demais espécies, graças ao seu potencial intelectual e cognitivo ímpar, usou os recursos naturais transformando-os e direcionando-os ao bem-estar coletivo. Assim se desenvolveu a civilização, sem se conscientizar devidamente que contraiu uma conta ambiental que deve ser paga, difícil de ser calculada e com risco de inadimplência. Discutir o contexto contemporâneo dessa relação homem e seu processo civilizatório com o planeta é o propósito desta segunda jornada que, aliada à primeira formam os pilares do que se pretende construir na terceira e última jornada, direcionada à busca, não de certezas, mas de opções possíveis e desejáveis para o devir da humanidade.

De homo habilis, que lutava pela sobrevivência em ambientes hostis o ser humano alcançou o “status” de homo cientificus, criador de ciências e tecnologias, embora ainda ligado a mitos, ritos e magia, que alimentam suas dúvidas e medos. Criou também o sistema mundo dominante, que se alimenta de uma rede educacional e tecnologias orientadas às suas próprias necessidades, e que o conduziu de forma paradoxal à inegáveis conquistas materiais, mas também à incertezas e riscos sobre seu futuro. Esta é a fotografia humana de uma contemporaneidade, polarizada entre uma dívida ambiental e social de proporções desconhecidas e um antropocentrismo por vezes irracional.

O perigo de um desastre ambiental de proporções globais é cada vez mais perceptível e realimenta nossas preocupações cotidianas. Movimentos científicos, sociais e econômicos surgem como contraponto a este ceticismo, alertando sobre a necessidade de mudanças e novos caminhos. Surge a Sustentabilidade fundamentada sobre bases filosóficas, científicas, ecológicas, sociais e econômicas, como reação ao “status quo”, trazendo novo alento aos que se preocupam com uma Gaia combalida. Entretanto, a neonata já é vítima de ataque de interesses econômicos que, conscientes de sua vulnerabilidade, a estão tomando de assalto para, transvestida com novas roupagens, manter o continuísmo econômico. Levantam-se dúvidas: Sustentabilidade representa uma trajetória alternativa viável e coerente com as necessidades presentes e futuras do planeta, ou é uma falácia?

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O problema é complexo e exige mais do que soluções lineares simplificadoras que têm norteado boa parte do conhecimento humano. Novas variáveis devem ser agregadas ao conjunto de equações para abordar a problemática ambiental e social, cuja resolução não pode ficar restrita à Sustentabilidade. São variáveis que agregam outras formas de pensamento, alijadas dos feudos científicos tradicionais, embora algumas sejam milenares. A religião nos oferece a encíclica papal “Laudato Si”, que provoca reflexões e convida a uma conscientização sobre as dificuldades presente e futuras de Gaia. A ética traz um desafio, uma ética da globalização orientada aos grandes problemas ambientais, sociais e econômicos. A revolução do altruísmo, movimento ainda embrionário, conclama o sapiens a repensar sua crença antropocêntrica e seu poder transformacional sobre a comunidade de vida do planeta, desafiando-o a interessar-se e dedicar-se ao outro, ao sistema vivo, sem a contrapartida compensatória.

Não menos importante que as temáticas anteriores, traz-se ao palco das discussões o mundo denominado por este autor de semi-invisível, que coabita espaços comuns com o mundo aparente. É constituído pelas heranças culturais dos que aprenderam a viver simbioticamente com a natureza; por pessoas, instituições, comunidades e povos que trabalham para o reequilíbrio natural e a recuperação de Gaia; pelos povos autóctones, comunidades tradicionais, organizações não governamentais e por pessoas e instituições conscientes do grande desafio que se coloca para a humanidade, imposto pelas mudanças ambientais em curso. Tem ensinamentos a apresentar, experiências a compartilhar e dificuldades de ser percebido e ouvido.

As bases cognitivas escolhidas para esta jornada podem induzir erroneamente o leitor a um julgamento de que se trata de um mero “agrupamento” de temas, o que está longe da intenção deste autor. Uma leitura atenta das discussões nesta jornada permite multiolhares sobre a complexidade do assunto pesquisado, o que é corroborado pelo pensamento de Edgar Morin, que afirmou ser incapaz de resignar- se a um saber parcelado, isolando um objeto de estudo de seu contexto, dos seus antecedentes e de sua evolução (Morin, 1995). As temáticas que compõem a jornada presente têm um caráter dialógico, com antagonismos e complementaridades. Têm um caráter de recursividade ao procurar fugir da linearidade simplista de causa e efeito, influenciam os rumos da humanidade, que também os afeta. Por fim, são

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aderentes ao fundamento hologramático de Pascal: “Não posso conceber o todo sem conceber as partes e nem estas sem conceber o todo”.

Uma metáfora musical simplifica e sintetiza o que representa esta jornada. A jornada presente desenvolve textualmente o que, musicalmente, faz a 5ª. Sinfonia de Beethoven. A sequência de temas busca a homogeneidade e continuidade textual e cognitiva, sem evitar alternância de assuntos, de forma a dar sustentação ao quadro que se procura pintar sobre a obra humana contemporânea. Os movimentos da 5ª. Sinfonia caracterizam-se pela homogeneidade orquestral, ao mesmo tempo que apresentam alternância. Seu primeiro movimento, um “alegro com brio” revela grande tensão e dramatismo, características similares do processo evolutivo da natureza humana, primeira parte desta jornada. Seu segundo movimento, um “andante com moto – piu mosso” revela solenidade, despertando emoção e beleza. É o que se procura com a discussão sobre o sistema mundo capitalista, reflexo da criatividade e capacidade humana, com seus méritos pelo progresso que propiciou e críticas pelos desdobramentos sociais e ambientais.

O terceiro movimento, “scherzo alegro” se traduz em um ato de franzir, de contrair, de encolher. É a percepção que resulta de uma análise crítica da Sustentabilidade sob a luz do pensamento complexo. O movimento, que começou promissor, hoje se retrai, assaltado pela exuberância do capitalismo, que o torna refém de seus caprichos e desejos, e se fragiliza perante uma opinião pública conscientizada. Por último, o quarto movimento, um “alegro – presto” expressa triunfo e magnificência. É o que se objetiva com a quarta e a quinta parte da jornada presente. Religião, ética e a revolução do altruísmo preconizam incessantemente a necessidade de um quarto nascimento do homem, que possa reagir ao imobilismo e padronização a que se acostumou. Este novo homem não é uma utopia, foi engendrado pelo mundo semi-invisível que reage ao “status quo”. Se tocada com virtuosismo esta sinfonia pode sensibilizar a humanidade para assumir integralmente seu compromisso com o planeta e as gerações futuras.

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A NATUREZA HUMANA – UMA HERANÇA

COMPLEXA

“ não posso compreender o todo se não conheço as partes e

não posso compreender as partes se não conheço o todo”

Pascal

O passado traz lições e conhecimentos, o futuro traz incertezas e medos, mas é o presente que, alicerçado no aprendizado passado e alimentado por esperanças, produz os germes que delinearão o futuro. O mergulho no contexto histórico da jornada planetária trouxe elementos preciosos para uma nova reflexão sobre expectativas futuras para o sistema vivo, no qual o homem tem papel paradoxal: tem o potencial de mitigar as mudanças da biosfera, mas foi responsável por abrir a “Caixa de Pandora” ambiental. Espera-se que ele desenhe opções menos traumáticas para a jornada humana, do que as que estão sendo prognosticadas pelas ciências da natureza, embora ainda se mostre ignorante na compreensão da complexidade de Gaia e do planeta.

Com nossa linguagem, nossa ciência e nossa técnica podemos prever as consequências futuras de nossos sonhos, desejos e invenções melhor do que plantas e animais, mas não muito melhor. É importante percebermos quão pouco sabemos sobre essas consequências imprevisíveis de nossas ações. Os melhores meios que estão a nossa disposição continuam sendo de tentativa e erro: tentativas que muitas vezes são perigosas e erros ainda mais perigosos - às vezes perigosos para a humanidade (Popper, 2006, p. 47)

Homem, personagem ambíguo, recurso essencial ao planeta, já alçado a neocortex de Gaia, representa o “Alfa” e o “Ômega” do processo civilizatório. Ser

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complexo, com uma dramática história evolutiva, é ainda uma incógnita para si próprio. Construiu o conhecimento de sua realidade separando a res cogitans da res extensa34, fragmentando o todo para entender as partes, reduzindo e simplificando a realidade, menosprezando a mensagem de Pascal: “não se pode compreender o todo sem conhecer as partes, e nem estas sem a compreensão do todo”.

Assumir que o homem é o principal agente causador das debilidades ambientais da atualidade, mas seu potencial reparador, se torna mandatário nesta pesquisa, o que conduz à necessidade de uma maior compreensão desse ser, intrigante e complexo. Vieses como: unidade biológica, animal cultural, homus psicologicus, homus economicus, homo faber, homus tecnologicus, são comuns nas ciências que pecam por estudá-lo sob óticas particulares, sem atentar devidamente que o homem é também homo complexus. O estudo da natureza humana, que deve passar ao largo do antropologismo e biologismo35, explorando a complexa articulação entre antropologia, biologia, história e natureza, nos aproxima de uma compreensão holística desse ser.

Explorar a natureza humana e suas implicações para o futuro planetário é pertinente a esta pesquisa e objetiva dar sustentação à sua proposta final. Orientada ao devir comum, retoma-se a diretiva de que o entendimento do presente, consubstanciado através do estudo sistêmico do passado, é imprescindível para se prospectar possibilidades e perspectivas para o futuro. Reconhece-se que o termo prospectar aqui empregado é ousado, pois o futuro é consequência de um processo relacional e “hipercomplexo"36 entre Gaia e a biosfera, ainda pouco conhecido. Entretanto, esta é razão de ser da ciência: a busca da verdade, a eliminação da ignorância, mesmo que a falibilidade humana impeça de alcançá-las em sua plenitude.

34 Termos criados por Descartes, a res cogitans representa o sujeito pensante e a res extensa a matéria. 35 Termos cunhados por Edgar Morin denotando a sua crítica a visões parciais da Antropologia e da Biologia ao estudar o ser humano segundo suas áreas de conhecimento. 36 Termo usado por Edgar Morin para designar sistemas que diminuem suas restrições ao mesmo tempo em que aumenta suas aptidões organizacionais, principalmente as transformacionais. São fracamente hierarquizados, especializados e centralizados, dominado por competências estratégicas e heurísticas, fortemente dependente da comunicação entre suas partes e submetido à desordem, ao ruído e ao erro.

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Se o entendimento do presente é então imprescindível, como descrevê-lo concisamente? Um dos postulados da Carta de Fortaleza37 auxilia essa missão:

Vivemos uma crise civilizatória de natureza ecológica, econômica, social, política e educacional, cujas incalculáveis e imprevisíveis consequências põem em risco a sobrevivência humana e a preservação da vida no planeta. Tais crises são expressões de processos complexos provocados por um paradigma civilizatório baseado na ganância, no individualismo, no paternalismo, no consumo desenfreado de recursos materiais, na depredação de bens naturais, na violência, no autoritarismo e na marginalização social (Moraes e Almeida, 2012, p. 249)

Dois aspectos se destacam nessa asserção, uma crise civilizatória de proporções ainda não totalmente conhecidas e o homem como agente transformacional e predador do ecossistema terrestre. Em um quadro de desequilíbrios e impactos ambientais preocupantes, em que Gaia se mostra deficiente para soluções de curto prazo, espera-se que o homem assuma seu papel de coconstrutor de um futuro coerente com as necessidades das gerações futuras e da biosfera. Causa perplexidade que diante de tal contexto, quadro geral preocupante e a ação humana ainda é tímida e limitada, se mostrando muito aquém das reais necessidades gaianas. Quais são os obstáculos que limitam a ação humana? Parte da resposta se sedimenta na própria natureza humana, edificada em dois milhões de anos de evolução.

Tema difícil e controverso, a natureza humana tem sido discutida através de abordagens filosóficas, biológicas, psicológicas, religiosas e antropológicas. Platão a relacionava ao governo dos sábios, o cristianismo afirma que ela tem origem divina e que o homem foi criado por Deus para assumir posição especial no universo. Marx entendia que a natureza humana é essencialmente social, pois tudo que uma pessoa faz é basicamente um ato social que pressupõe a existência de outras pessoas que se relacionam entre si. Freud definiu a natureza do homem pela psicanálise. Entendia

37 Conferência educacional patrocinada pela UNESCO em 2010, com o propósito de reunir educadores de vários países para comemorar e consolidar a obra de Edgar Morin: Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro.

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que nada que uma pessoa diz ou faz é casual ou acidental, tudo tem origem de alguma maneira na mente da pessoa. O homem é guiado inconscientemente por instintos e pulsões e seu caráter se desenvolveu ao longo de sua evolução. Parte do trabalho de Freud era direcionado a restaurar um equilíbrio harmonioso entre a mente, o indivíduo e o seu mundo. Para Jung era necessário entender melhor a natureza humana, porque o único perigo real que realmente existe é o próprio homem. Sartre, ateu convicto, negava a existência de uma natureza humana e alegava que simplesmente existimos e temos que decidir o que fazemos de nós mesmos. Para Skinner, o comportamento humano, causado quase que inteiramente por influências do meio, é a única via para chegar a uma verdadeira teoria sobre a natureza humana. Lorenz, biólogo e criador da Etologia, afirmava que o homem é um animal engendrado por outros animais, dos quais herdou padrões de comportamento semelhantes, mas dotado de um impulso inato de agressividade em relação à própria espécie. Esta seria a explicação para as guerras e comportamentos irracionais do homem. Diferentes pontos de vista sobre o homem e sua natureza apontam para uma questão crucial e de difícil resposta: quem é o homem? O pensamento complexo38 é uma nova abordagem, pretensiosa, que traz um diferente olhar para a questão (Ferreira, 2013).

Um resumo não pretensioso das ideias anteriores relaciona a natureza humana com maneiras de pensar, sentir ou agir, que os seres humanos tendem a apresentar, orientadas por padrões psíquicos conscientes e inconscientes que foram estruturados de forma sistêmica ao longo do processo evolutivo humano, desde os primeiros hominídeos, há cerca de dois e meio milhões de anos atrás. A natureza humana pode ser pensada como uma estrutura arquetípica, inconsciente, que impacta a construção do conhecimento, os comportamentos, as crenças, o relacionamento com o mundo e as estruturas social, econômica e política edificadas globalmente (Morin, 1973).

....todo ser vivo e, principalmente o ser humano, possui em seu próprio interior – a organização de seu meio. Falamos porque temos em nosso interior, a cultura, a

38 Pensamento complexo designa estruturação mental que articula distintos domínios disciplinares para estudar a realidade, que na abordagem cientifica tradicional são quebrados pelo pensamento simplificador e disjuntivo. O pensamento complexo aspira ao conhecimento multidimensional.

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linguagem, os conhecimentos de nossa sociedade…em outras palavras, o mundo exterior está em nosso interior, em diálogo permanente. (Cyrulnik e Morin, 2013, p. 17)

A natureza humana não surge com os primeiros hominídeos, é herdada dos primatas, seus antepassados. A hominização tem seu marco inicial na locomoção bípede e na postura vertical, que diferencia o hominídeo dos seus parentes próximos, constituindo-se fatores iniciais que deflagram a evolução humana através do desenvolvimento de um processo multidimensional de hominização no qual múltiplas inter-relações, interações e interferências entre fatores genéticos, ecológicos, cerebrais, sociais e culturais, ocorrem, que conduzem ao sapiens-sapiens (Morin, 1973). Hominização e cerebralização são interdependentes e associadas a uma íntima relação com o ambiente natural e com o ambiente social. A neurocientista Suzana Herculano-Houzel afirmou que algo mais contribuiu para a evolução humana, além da verticalização e o bipedismo39. Há cerca de 1,5 milhão de anos, a curva do desenvolvimento do cérebro de nossos antepassados mudou e passou a crescer rapidamente, seguindo uma história distinta das demais espécies (Houzel, 2015).

O córtex cerebral humano foi adquirindo uma proporção de neurônios em relação ao total do cérebro, muito maior do que em qualquer outra espécie animal, até a capacidade atual com cerca de 16 bilhões. Entretanto, o crescimento de tal massa neuronal cobrou um alto custo energético através da alimentação. Se os alimentos fossem consumidos in natura, o trabalho alimentar exigiria diariamente mais de 12 horas, o que não justificaria a rápida cerebralização. Foi a descoberta e uso do fogo, 1,5 milhões de anos atrás e seu uso na cocção de alimentos que acelerou esse

39 Palestra proferida no ciclo de conferências patrocinado pelo “Fronteiras do Pensamento” em 2015, na UFRGS, em Porto Alegre,

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processo. O cozimento proporcionou alimentos mais macios, facilitou a mastigação, aumentou a absorção de nutrientes, reduziu drasticamente o tempo necessário para sustentar um cérebro com tal quantidade de neurônios e propiciou mais tempo para novos aprendizados e atividades. O homem passou a ter capacidades cognitivas notáveis que, integradas a um processo complexo de interações entre a “práxis”, o sistema genético, o ecossistema e a sociedade/cultura. Estava aberta a estrada para o sapiens-sapiens.

As sociedades primatas mais avançadas, similares às que deram origem aos primeiros hominídeos, revelam uma complexidade social que se perpetua a partir da combinação dos comportamentos inatos, das inter-relações entre indivíduos e grupos, aprendizagem mimetizada espelhando-se nos mais velhos, mas que pouco se modifica com o tempo. Em contrapartida, a complexidade mais rica da sociedade hominídea exigiu a busca de uma nova estrutura informacional com regras não inatas e alheias ao jogo simples das inter-relações entre grupos e indivíduos. Necessidade de comunicações mais abrangentes, inerentes a um arranjo social complexo em expansão, aliado a mutações genéticas na caixa craniana que resultaram em melhores aptidões acústicas, conduziram a um enriquecimento do limitado repertório linguístico dos primatas, favorecendo o desenvolvimento de uma linguagem fonética mais rica, que não parou de progredir e se amplificar com as sucessivas etapas evolutivas.

Tal é a importância da linguagem para o homem, que se pode afirmar que não foi este que criou a linguagem, mas esta que o criou. A linguagem se torna mais do que um instrumento de comunicação da organização complexa da sociedade, torna- se também portadora imprescindível dos conhecimentos e “know-hows” sistêmicos das sociedades primitivas, dando sustentação a um novo e importante vetor na

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evolução: a cultura. Com uma linguagem mais abrangente inicia-se na sociedade hominídea uma nucleação cultural integrada, que passa a ser um sistema fenomênico altamente diferenciado das demais sociedades animais, tendo a cultura como seu aparelho generativo e regenerativo (Morin, 1973). Verticalização, bipedismo, polegar opositor, uso do fogo, linguagem e cultura, formam uma rede complexa de interações e “feedbacks”, que é alimentada e alimenta a progressiva cerebralização e intelectualização humana.

Um novo salto cerebral ocorre com o homem de Neanderthal, já sapiens, há 200.000 anos. Com ele uma novidade, que não consiste nem na sociedade, nem na técnica, nem na lógica e nem na cultura, mas sim na sepultura e na pintura. O estudo das sepulturas neandertalenses permite inferir que desenvolveu um conhecimento objetivo sobre o tempo e a irrupção da morte. A percepção da temporalidade e falibilidade humana leva o homem de Neanderthal a um novo ciclo evolutivo virtuoso, fundamentado na emergência de uma maior complexidade do conhecimento consciente. Pesquisas arqueológicas em suas sepulturas e pinturas revelaram não somente o despertar de uma consciência realista das transformações impingidas pela vida, mas a crença em uma vida transcendente, indicando que o imaginário ocupa a vida neandertalense e o mito se concretiza em sua visão de mundo. Pesquisas sobre seus ritos funerários, através das pinturas encontradas nas sepulturas, assinalam, também, a força da magia em seu mundo. Surge no sapiens uma consciência da morte constituída pela interação entre uma objetividade que reconhece a falibilidade e uma subjetividade que acredita em uma transcendentalidade da vida. Nasce a dualidade sujeito/objeto e com ela uma nova percepção da individualidade. Esse sapiens rejeita a morte e procura transpô-la através ritos, mitos e magias, que estarão sempre presentes não somente em seu mundo como no do sapiens-sapiens (Morin, 1973). Interessante enfatizar que em uma atualidade regida pelas ciências e tecnologias, ritos, mitos e magias ainda são

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intrínsecos da natureza humana, características de suma importância para o estudo dos rumos futuros da humanidade.

O universo se constitui em uma totalidade complexa composta de partes interconectadas e interdependentes. O homem, apesar das crenças que construiu dentro do paradigma dominante, não pode se furtar a este fato. Como um sistema aberto e autônomo, é totalmente dependente do ecossistema planetário, cuja interação delineou sua natureza, fundamentada em estruturas arquetípicas em contínua transformação, cujo término não tem prazo e nem local para acontecer (Morin, 1975). O homem é e será sempre um indivíduo inacabado assim como sua natureza, pois é um sistema complexo autorregenerativo em processo contínuo de auto-eco-exo-organização. A evolução hominizante não é metafísica e se insere em um contexto ambiental e universal de constantes destruições e construções, ordem e desordem, caos e estabilidade, equilíbrio e desequilíbrio, diante das quais a evolução de todas as espécies é compulsória.

O desenvolvimento da percepção do sujeito e do objeto, fruto de uma interação intima com o ambiente, propiciou ao sapiens uma segunda existência, espiritual, sob a forma de imagem mental, análoga, porém, distinta da imagem que é formada pelas suas habilidades empíricas. Estavam consolidadas as condições para reforçar a natureza imaginária do homo sapiens, com suas emergências mágicas, míticas, rituais e sua sensibilidade para a arte e a estética. Essas características, aliadas à natureza imaginária e imaginante do sapiens, produziram e continuam produzindo uma relação confusa entre cérebro e ambiente, uma zona de incertezas, onde dúvidas e ambiguidade predominam e se tornam cruciais para a continuidade evolutiva. Essa zona de incertezas entre cérebro e ambiente é, também, zona de incertezas entre subjetividade e objetividade, entre o imaginário e o real; alimenta a dependência sapiental de mitos e magia e é a fonte permanente de seus erros. Ritos, mitos, magia e erros continuarão a coexistir com o homem, moldando continuamente sua natureza e influenciando suas ações com a sociedade e o sistema natural.

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Quem é esse sapiens? Um ser dotado de afetividade intensa e instável, que sorri, chora, se angustia, é divertido, ébrio, violento, furioso, amante, dominado pelo imaginário, que aprendeu a aprender, temer, mas rejeita a morte. Forte e frágil, é sujeito a erros, um ser húbrico que se esforça por organizar o mundo, mas produz desordens e se sente dividido entre o real e o imaginário, o subjetivo e o objetivo, preso de ilusões e instabilidades. É, simultaneamente, sapiens, racional, brilhante, criativo, mas, igualmente, demens, capaz de manifestar paixões, cólera, afetividade, loucura. Sem isto não seria capaz de criar a poesia e sentir amor. Razão e irracionalidade formam o paradoxo existencial humano. Esta tensão gerada pelo sapiens e o demens é profícua, criativa, mas também destrutiva, o que exige o controle do lado demens e a sua capacidade homicida, irracional e estúpida.

Esse homo-sapiens-demens, pressionado por suas visões, quimeras e confusões, se lançou em uma diáspora planetária que lhe proporcionou o desenvolvimento de um pensamento empírico-lógico, um complexo desenvolvimento técnico e uma readequação de sua estrutura social, formando conjuntos sociais maiores, que culminaram posteriormente na arquissociedade e na sociedade histórica. Foram avanços que se viabilizaram devido ao salto evolutivo na passagem do hominídeo ao homo sapiens, resultado do aumento da complexidade cerebral, que produziu um cérebro hipercomplexo. Com ele restrições de convivência com o ambiente diminuíram e aptidões para sua transformação se intensificaram, favorecendo a ampliação das competências estratégicas e heurísticas, e habilidades para lidar com erros, incertezas, desordens e ruídos (Morin, 1973 e 2012a).

Complexificação cerebral, evolução social e a criação da cultura levam ao surgimento de uma arquissociedade, segundo nascimento da sociedade humana e primeiro da sociedade sapiental. Ramifica-se através de etnias, culturas, línguas,

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mitos, ajustando-se às distintas geografias e ambientes, que paulatinamente ocupa. Diversifica-se de forma exuberante em distintas sociedades, algumas voltadas à caça, outras à cultura, sociedades doces, sociedades duras, algumas devotadas aos deuses, outras aos homens, sociedades que oprimiam a mulher, sociedades “apolíneas” e sociedades “dionisíacas”. Embora caracterizas pela diversidade, as arquissociedades têm na cultura um fundamento comum. Com elas surgem as monadas sociais: a família, estrutura complexa que alimenta uma reorganização geral em todos os níveis, aumentando a complexidade social sapiental. Grupamentos arquissociais, diferentemente das sociedades hominídeas, com poucas dezenas de indivíduos, reúnem centenas e sua crescente complexidade força a delimitações de territórios, formação de alianças, troca de bens e serviços e, a prática exogâmica, fortalecendo laços e contribuindo para o aprimorando genético da espécie.

O aumento da complexidade do sapiens reside em uma nova relação entre as esferas biológicas, social e individual, que não somente se reflete na evolução da sociedade humana como trará consequências futuras. A função regenerativa da cultura se amplia, com um caráter noológico40 inexistente anteriormente, ligado a suas crenças e práticas rituais, míticas e mágicas, que sacraliza as regras de organização da sociedade. A cultura exerce duplo papel, a de coletar e transmitir saberes técnicos e cognitivos, e alimentar o culto aos antepassados, aos mortos e às tradições. Graças a essa nucleação noológica-cultural a arquissociedade revelou-se extraordinariamente estável em todos os seus núcleos, espalhados desde os trópicos até as regiões polares, sem se registrar tentativas de dominação entre eles, nem exploração por poderes centralizadores de Estado. Dotadas de aptidões manuais politécnicas que a conduziram ao pleno emprego das habilidades individuais e caracterizada pela ausência de significativas contradições internas, a arquissociedade acabou vítima de sua própria estabilidade, que a levou a um novo ciclo evolutivo com o terceiro nascimento do homem: a sociedade histórica.

40 A Noologia, ciência atribuída a Teilhard de Chardin, aborda o estudo sistemático e a organização de tudo que lida com inteligência e conhecimento. É a ciência dos fenômenos intelectuais, que estuda as imagens do pensamento, seu surgimento, sua genealogia e criação.

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A sociedade histórica se caracterizou pela expansão geográfica, sedentarização, comunitarização, desenvolvimentos inovadores na agricultura, domesticação e criação de animais, e aumento populacional das comunidades, fatores que estimularam rivalidades territoriais, incentivaram alianças, despertaram a cobiça de pilhadores e conquistadores, fomentaram a formação de ligas camponesas defensivas e a edificação de praças fortificadas para armazenagem alimentar, proteção da população e seus líderes, e segurança dos ambientes de culto e mercados. Com a sociedade histórica surgem as cidades, o palácio, o templo, o quartel e as prisões. Cria-se o Estado-cidade (Morin, 1973).

O Estado-cidade foi o nascedouro da administração, dos ofícios e da especialização no trabalho, os quais deflagram uma cadeia de mutações, que resultam em uma estrutura social heterogênea em rede, controlada por um poder central, amparado pela religião do Estado. É uma sociedade pluricelular regida por princípios hierárquicos e especialização. A hierarquia, por vezes aberta e flexível em pequenas cidades, mas inflexível nos grandes impérios, conduz à imposição de uma casta dominante sobre os demais, articulados em uma pirâmide social rígida. A complexidade social avança com a especialização do trabalho, contribuindo para a segregação em classes distintas, identificadas por diferentes modalidades de trabalhos: execução, decisão, força, inteligência, criativos e rotineiros, que vão repercutir sobre a cultura e a personalidade de cada grupo social, produzindo diferenças sensíveis na vida quotidiana (Morin, 1973). A especialização multiplica riquezas, promove troca de mercadorias, comunicações, desenvolvimentos técnicos, artes e novas formas de pensamento, levando a um ciclo virtuoso de desenvolvimento estético, filosófico e científico, mas cobra seu preço, transformando os homens multicompetentes da arquissociedade, em indivíduos de restritas habilidades e personalidades empobrecidas. É o legado herdado pelo homem moderno e que ainda faz parte de suas “práxis”. Morin (1973, p. 179) diz que “A sociedade histórica é uma nova realidade, em que o Estado, a Cidade, a Nação, o Império, o Indivíduo, a Consciência, as Classes, a Guerra, vão passar a ser os atores do novo destino da humanidade”.

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Antagonismos entre classes fustigam permanentemente a sociedade histórica e a relação entre o indivíduo e a rede organizacional torna-se instável. Multidões de desclassificados sem objetivos claros proliferam e a heterogeneidade e complexidade social aumentam. A cultura outrora homogênea torna-se polinucleada, dispersando- se em múltiplas divisões, contrariando esforços de integração a culturas dominantes. Interesses particulares de Estados e grupos provocam intrigas e cobiças que amiúde, levam a guerras e dominações culturais. A instabilidade encadeada pela evolução das sociedades históricas é gerada por fluxos endêmicos de desordens, de crises e de ubris, liberando forças demenciais que a arquissociedade soube bem controlar. No íntimo deste homem exacerba-se a contenda entre suas polaridades: racional, irracional, mítica e mágica, em cuja arena se digladiam suas várias personalidades: o sapiens, o demens, o ludens e o ridens. A evolução humana resultou em uma sociedade que usa mal estes poli-recursos cognitivos e se atrofiou em padrões paradigmáticos compartimentalizados e simplificadores de pensamento, que dificultam uma conscientização adequada de seu pertencimento ao sistema vivo e de seu papel junto a Gaia. É tempo de repensar-se.

Ao que tudo indica, a consciência moderna deixou de lado a multiplicidade- diversidade contida na interconexão de imagens e materialidades, realidades e idealidades que compõem a pluralidade das esferas da vida. Esgotadas pelo pensamento mutilante, precisa repensar-se a si própria, para que a crise dos paradigmas frutifique numa recomposição de todos os saberes planetários. Assumir esse ponto de vista como um projeto implica praticar ciência com consciência, cultivar a autoética, praticar a socioética e a antropoética (Moraes e Almeida, 2012, p. 249)

No contexto do paradigma simplificador, compartimentalizador e mutilante, criado na sociedade histórica, surgiram metassistemas econômicos, políticos e sociais: capitalismo, socialismo, anarquismo, comunismo, e com eles promessas de progresso, emancipação e igualdade. Seus resultados foram pífios e não conseguiram sobreviver, exceção feita ao capitalismo, que nascido ocidental, se impôs soberano como sistema-mundo dominante global. Criticado ao longo de sua existência, teve o mérito de persistir e se fortalecer, destronando outros candidatos. Se infiltrou em “corações e mentes” com seu “canto das sereias”, convenceu a muitos de sua

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imprescindibilidade no mundo atual, produziu avanços e riquezas inegáveis, que beneficiam a maioria da humanidade, e desafia seus críticos, que o veem como a causa maior dos graves problemas Marx e Engels entendiam o capitalismo como um sistema econômico atuais, a oferecer uma alternativa fundamentado na exploração do viável que atenda simultaneamente trabalhador pela minoria dominante, mediante o processo de extração da as necessidades de progresso, que mais-valia. corrija as distorções ambientais e Impõe-se a classe dominante, por sua sociais e que auxilie Gaia em sua astucia e habilidade em representar o missão no pouco tempo disponível seu interesse como sendo o interesse comum a todos os membros da sociedade para mudanças, que é a mensagem ou, exprimindo a coisa no plano das das ciências. Desafio difícil, que ideias, a dar aos seus pensamentos a permeia as discussões nessa tese, forma de universalidade, a representá- los como sendo os únicos razoáveis, os que tem provocado inúmeros únicos verdadeiramente válidos. pensadores e alimentado a geração de propostas, algumas simplistas, outras sofisticadas e interessantes, construídas sobre bases científicas, filosóficas, sociais e econômicas. No próximo capítulo as mais conhecidas serão abordadas.

Se a humanidade está ... o mundo moderno está em uma crise realmente no epicentro de uma crise estrutural e entrou em um período de de proporções globais, o que ainda comportamento caótico que provocará não é uma certeza, mas um uma bifurcação no sistema e a transição para um novo sistema mundo pressentimento, uma probabilidade, é cuja natureza ainda é desconhecida e, o homem, como a deusa Hécate41, o em princípio, impossível de único que possui a chave dos determinar, mas que está aberta à caminhos, que teimosamente se intervenção e criatividade humana recusa a aceitar. Este homem, fruto Immanuel Wallerstein – Globalization or the Age of Transition? A Long-Term View of the do terceiro nascimento, de Trajectory of the World System, 2000, pg. 251 pensamento reducionista, cartesiano, insular, iludido com sua racionalidade e visão antropocêntrica, deve morrer e de suas

41 Hécate, filha dos titãs Astéria - a noite estrelada e Perses - o deus da luxúria e da destruição. Ela é representada com um corpo e três cabeças e tem o poder de olhar para três direções ao mesmo tempo. Podia ver o destino, o passado que interferia no presente e que poderia prejudicar o futuro. Considerada pelos romanos como a deusa das encruzilhadas.

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cinzas, tal como a “fênix”, um quarto nascimento deve sobrevir, do homem peninsular, o “sapiens-complexus”.

O capitalismo, por sua genética e constituição, é um obstáculo ao advento desse novo homem. Não deve ser esquecido que é um sistema vivo também, que tem sobrevivido por mais de 400 anos. Se por um lado explora voluptuosamente recursos planetários, jocosamente denominados de “capital natural”42, de outro tem papel central na relação Gaia/homem. É insensato, portanto, defender a sua finitude, dever-se-ia, ao contrário, trabalhar pela sua metamorfose em um sistema mundo melhor adaptado às necessidades globais. Ilude-se quem acredita que, no atual quadro econômico, político e social, alguma proposta utópica de readequação da sociedade global às limitações ambientais possa vingar sem se utilizar de seus recursos científicos, tecnológicos e econômicos. Ele é, certamente, um dos atores que delinearão a jornada futura humana e, portanto, conhecê-lo em mais detalhes ajudará a compreender melhor as dificuldades de metamorfoseá-lo em um sistema-mundo compatível com as limitações de Gaia e comprometido holisticamente com a vida.

42 Metáfora utilizada para englobar todos os recursos naturais, como solo, água, ar, os serviços ecossistêmicos associados a eles, e tudo o que torna possível a existência humana e, diferentemente do capital, não pode ser produzido pela atividade humana.

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O SISTEMA MUNDO CAPITALISTA

" A nossa escolha não tem por que ser feita entre socialismos

que foram pervertidos e capitalismos perversos de origem,

mas entre a humanidade que o socialismo pode ser e a

inumanidade que o capitalismo sempre foi “

(José Saramago 43)

" A desigualdade econômica já se tornou uma preocupação,

mas se tornará um pesadelo nas próximas décadas e temo que

não estamos bem equipados para enfrentar o problema“

(robert k. schiller 44)

Sistema mundo capitalista é um termo derivado da teoria do sistema mundo, criada nos anos 70 por Samuel Wallerstein, para explicar o desenvolvimento do capitalismo, cujo início remonta aos primórdios do século XVI. A teoria surge de uma perspectiva multidisciplinar de mudanças históricas sociais e macroestruturais ao nível mundial, tendo como núcleo o crescimento do mercantilismo europeu e a incorporação paulatina de colônias ao seu domínio econômico. Wallerstein não aceitava fragmentações regionais e econômicas, mas apenas um único mundo articulado por um complexo sistema de trocas econômicas, caracterizado pela dicotomia entre capital e trabalho e pela acumulação de capital proveniente da competição entre agentes, em constante instabilidade produzida pelas fricções internas inerentes ao capitalismo. No século XVI, Reino Unido e França desencadearam um processo de expansão que culminou no atual sistema global de trocas econômicas, posteriormente

43 Cadernos de Lanzarote, publicado pela Cia. das Letras em 1997 44 Artigo publicado no caderno de economia e negócios do jornal O Estado de São Paulo em 30 de agosto de 2016. O autor é economista e professor de economia na Universidade de Yale, EUA.

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incorporado por quase todos os países (Wallerstein, 1996, 2002). Alvo contumaz de críticas polarizadas, o capitalismo é uma obra monumental da engenhosidade humana e ocupa um do papeis centrais na história recente de Gaia e dos seres vivos. Seu objetivo é a criação de riquezas através de processos de extração e transformação dos recursos naturais planetários, de modo a atender necessidades humanas, impulsionadas, segundo as palavras de Morin, pelo quadrimotor: ciências, tecnologia, indústria e lucro. Entretanto, a volúpia humana por riquezas acabou por desequilibrar o sistema cibernético de controle natural, gerando impactos planetários que são irradiados e afetam as dimensões social, econômica e ambiental.

O capitalismo tem sua origem na passagem do feudalismo para o renascimento, início da era moderna. Dez séculos deram suporte ao sistema feudal, estratificado socialmente entre camponeses, nobres, soldados e religiosos. Inexistiam fábricas e usinas e o trabalho, braçal, era feito por camponeses nas terras dos nobres, os senhores feudais. A estes pertencia a terça parte do feudo, sendo o restante distribuído entre os camponeses arrendatários, que viviam precariamente. Na sociedade feudal tudo o que era do senhor tinha prioridade: a aragem de suas terras, suas colheitas, a secagem dos grãos e a venda dos excedentes no mercado da aldeia (Huberman, 1986). A igreja ocupava um papel destacado, possuía prestígio espiritual, poder e riqueza que ultrapassavam o de qualquer outro poder secular. Tais funções materiais a levaram a preterir as espirituais, o que acabou por gerar focos internos de dissidência e divisões. O comércio feudal era incipiente, direcionado às necessidades básicas, mas ganhou uma nova orientação com as Cruzadas, ávidas por provisões, armas e ferramentas, que propiciaram novas riquezas e a abertura de comércio com o oriente, o que veio a favorecer, por suas localizações estratégicas, cidades como Veneza, Gênova e Pisa. Novos fluxos comerciais se disseminaram pela Europa e países do mar do Norte e mar Báltico viram algumas de suas cidades florescerem. Este “boom” econômico favoreceu uma operação praticamente não utilizada nos feudos, o uso do dinheiro como elemento de troca na aquisição de mercadorias, e com ele surgiram trocadores de dinheiro e banqueiros. Os primeiros se encarregavam da variedade de moedas em uso e os segundos bancavam empréstimos para pobres e ricos. O uso do dinheiro facilitou o intercâmbio de mercadorias e incentivou o

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comércio local e entre regiões. Nascia uma economia do dinheiro, berço do capitalismo.

Cidades e comércio fortalecidos e uso do dinheiro como meio de troca favoreceram o surgimento de novas profissões, como o açougueiro, o padeiro, o alfaiate, o sapateiro, etc. favorecendo a classe dos artesãos e com ela o desenvolvimento de indústrias voltadas ao atendimento das crescentes demandas populacionais. Esses novos vetores profissionais, comerciais e industriais, modificaram as “práxis” econômicas vigentes no feudalismo, com a prática do “preço justo” substituída pelo “preço de mercado”, fruto da oferta e procura. A nova prática estimulou o comércio, a formação de riquezas e o surgimento de corporações superiores formadas por antigos artesãos e comerciantes que prosperaram e passaram a influenciar o governo e o controle administrativo das cidades (Wallerstein, 2002). Resultou em uma nova estratificação social, com os burgueses, a nova classe rica, de um lado e o proletariado, artesãos e trabalhadores, de outro. Conflitos entre classe foram característicos dessa época, que marcou o fortalecimento de estados soberanos e o aumento da influência dos capitalistas burgueses sobre estes e a multiplicação das benesses recebidas, em contrapartida.

Esse processo de construção dos Estados não foi separado do desenvolvimento do capitalismo histórico, mas antes parte essencial da história. Os capitalistas foram bem servidos pelo estabelecimento de Estados soberanos, obtendo deles uma multiplicidade de serviços: garantir seus direitos de propriedade, obter uma renda de proteção, criar os quase-monopólios de que precisavam para ter mais lucros significantes, fazer avançar seus interesses sobre aqueles dos empresários rivais em outros países e prover ordem suficiente para garantir sua segurança. (Wallerstein, 2002, p.143)

Martinho Lutero e sua reforma protestante, que contemplava uma nova ética religiosa, mais adequada do que o catolicismo aos desejos de altos lucros econômicos da classe burguesa, representaram um importantíssimo marco na história econômica do mundo ocidental, o início da consolidação do novo sistema mundo. Com o

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capitalismo, a riqueza, outrora expressada pela posse da terra, se desloca para a posse do capital, que se auto alimenta e induz ao acumulo de mais capital. O capitalismo se fortaleceu e cresceu a partir do uso do dinheiro como meio de troca, com menores riscos que os representados pela riqueza da posse da terra, que demandava proteção contra invasores e estava sujeita às variações do meio ambiente. Engendrou, em contrapartida, uma polarização entre uma nova classe dominante e uma grande mendicidade que se alastrou pelas cidades europeias:

Os dados sobre os números de mendigos nos séculos XVI e XVII são surpreendentes. Um quarto da população de Paris na década de 1630 era constituído de mendigos, e nos distritos rurais seu número era igualmente grande. Na Inglaterra, as condições não eram melhores e a Holanda estava cheia deles. Na Suíça do século XVI, “quando não havia outra forma de se livrar dos mendigos que sitiavam suas casas ou vagavam em bandos pelas estradas e florestas, os homens de bens organizavam expedições contra estes desgraçados heimatlosen (desabrigados) - (Huberman, 1986, p.97, grifos do autor).

Contribuíram para essa pobreza generalizada não somente as guerras, fomentadas por discursos patrióticos superficiais e por interesses econômicos profundos, mas, principalmente, a descoberta nas Américas de grandes jazidas de metais preciosos, cuja transferência para a Europa produziu mais um fenômeno perverso dentro do capitalismo, a inflação dos preços dos bens, o que favoreceu os capitalistas e aumentou a pobreza, ao dificultar para as classes menos favorecidas a compra de alimentos, vestuários e outras mercadorias vitais para sua sobrevivência. Estes jogos de mercado resultaram em maior acumulo de capitais, mas produziram unilateralismos e graves tensões sociais. Traições, subornos, protecionismo, massacres e mesquinharias, praticados pelas classes privilegiadas, que conviviam com genuínas habilidades mercantis, responderam pela concentração de riquezas e o crescimento do fosso entre ricos e pobres. O preço que as novas colônias pagaram também não foi pequeno. Karl Marx sintetizou o início do novo sistema mundo ao afirmar que a aurora capitalista foi assinalada pela descoberta de ouro e prata nas Américas, que produziram não somente a escravização e sepultamento das populações nativas nas minas mas também a conquista e saque das índias Orientais

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e a transformação da África num campo para a caça comercial da mão de obra negra, muito valorizada nos mercados ocidentais (Marx, 1996).

Comércio, conquistas, pirataria, saques e exploração humana foram recursos utilizados para aumentar o capital. Também a atividade industrial se capitalizou com o uso intensivo de mão de obra trabalhadora formada a partir de antigos trabalhadores do campo, que viram no trabalho assalariado a forma de sobreviverem. Este movimento foi significativo na Inglaterra, favorecido pela falta de acesso às terras produtivas, devido à ação de latifundiários apoiados pelo governo. O resultado foi que o capitalismo inglês alcançou um “status” diferenciado dos demais países europeus. Esse processo de privação da terra aos camponeses se estendeu até o século XIX, espalhando-se para outros países da Europa. O movimento capitalista teve na Igreja Protestante um grande aliado, cujos fundamentos eram assentados sobre o direito divino à riqueza para os justos, os escolhidos, em detrimento dos fracos e incapazes (Huberman, 1986). A ética protestante, voltada à acumulação de bens e não ao gasto e consumo, que incentivava a produção, a prosperidade e a riqueza, se revelou como fator cultural fundamental para o desenvolvimento capitalista. Max Weber defendia que a teologia protestante deu ao capitalismo ocidental força e originalidade, ao incentivar seus fiéis a uma vida direcionada ao enriquecimento lícito, o que acabou por impulsionar a organização do trabalho, das atividades econômicas e da própria sociedade (Weber, 2014).

Correntes religiosas, apoio de governos, desigualdades econômicas entre nações e suporte científico, fomentaram a consolidação do novo sistema mundo. Criou riquezas e poder, mas deixou um rastro de violência, desigualdade e miséria em seu caminho. Estimulou o surgimento de desafetos e propostas de sistemas-mundo alternativos, como o socialismo de Marx que preconizava o estabelecimento de uma nova sociedade com justiça social e econômica, na qual a propriedade não seria privada, mas sim coletiva, em contraposição a um capitalismo concentrador de riquezas que favorecia grandes produtores e utilizava recursos tecnológicos para substituir um número maior de trabalhadores, fomentando uma miséria crescente.

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Acreditava que o acumulo de capital inerente ao capitalismo não tinha um limite natural, prevendo que isto o levaria a uma derrocada apocalíptica. Chegou a retratar o capitalista como assassino, responsável por muitas mortes, pois a concentração de riquezas traz consigo a pauperização, a opressão, a escravidão, a degradação e a exploração da classe trabalhadora (Marx, 1996).

Acreditou que o capitalismo desapareceria, pois, a concentração de riquezas que destruía pequenos produtores e alimentava uma miséria crescente levaria a crises devastadoras. Sua proposta socialista, em contrapartida, conduziria a uma distribuição justa da riqueza produzida, reduzindo pobreza e desigualdades. A história mostrou outro retrato. O regime socialista russo nascido em 1917, que alimentou durante 70 anos uma antinomia com o mundo ocidental e o capitalismo, naufragou por incompetência. O capitalismo se tornou hegemônico e se consolidou como sistema mundo dominante, amparado pela ideologia liberal e pelo Estado como órgão regulador e controlador da vida social e econômica. Posteriormente, nos anos 80, ganhou força a doutrina neoliberal, com sua defesa da absoluta liberdade de mercado e condenação da intervenção estatal sobre a economia. A crise global de 2008 mostrou as graves consequências de um capitalismo sem controle.

Não há intenções de pré-julgamento do capitalismo nesta pesquisa, mas sim enquadrá-lo no contexto das mudanças ambientais observadas e discutir se atende, da forma como vem sendo praticado, o compromisso da humanidade com as necessidades das gerações futuras. Alvo constante de discussões entre defensores e detratores, o capitalismo vem teimosamente sobrevivendo por mais de quatro séculos. É o grande responsável pelas conquistas e progressos sociais, científicos e

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educacionais da sociedade global. Tem ainda a seu favor o compromisso com a democracia e a liberdade individual. Seus críticos o acusam de ser permissivo às injustiças sociais que acarretam desigualdade e miséria, de fazer conchavos com governos em favor de classes privilegiadas e, principalmente, de ser o maior responsável pela crescente e continua degradação ambiental. Vilão ou herói, possui em suas entranhas as sementes que poderão mudá-lo, sem destruí-lo, fazendo-o evoluir para um sistema mundo melhor adaptado às necessidades de Gaia.

Thomas Piketty45 fez um amplo trabalho de pesquisa sobre o capitalismo atual e divulgou seus resultados, oferecendo um rico e detalhado quadro sobre o sistema mundo dominante. Sua obra reflete uma pesquisa de quinze anos direcionada ao estudo da concentração de riquezas, distribuição de renda e evolução da desigualdade, a partir do resgate de dados e informações que remontam ao século XVIII, colhidos em mais de vinte países. Piketty vê um sentido moral na economia, discordando da maioria das correntes tradicionais e tem uma visão transdisciplinar sobre seu campo de estudo ao defender que a economia deve se livrar de sua pretensão de se tornar uma ciência exata e independente, se integrando às demais ciências sociais que, embora imperfeitas, têm o potencial de colaborar para elaborar as questões corretas a serem formuladas para a humanidade em sua jornada rumo ao futuro (Piketty, 2014).

Três eixos centrais são relevantes em sua investigação. O primeiro reflete a concentração de riquezas e de renda, desde o século XVIII, acentuadas a partir da década de 80 com a disseminação de políticas neoliberais. O segundo aborda a relação entre mérito e riqueza, com dados históricos que justificam o aumento da riqueza principalmente pela herança e remuneração do capital em detrimento da riqueza produzida pelo acumulo de conhecimento e habilidades humanas. O último traz um alerta sobre os riscos para o capital natural e a história futura da humanidade, ambos acentuados pela desigualdade na distribuição das riquezas, caso o capitalismo não seja reorientado para atender os interesses coletivos, reduzindo as desigualdades

45 Economista francês contemporâneo, autor do livro "O Capital no século XXI", que o consagrou. Sua obra mostra que, nos países desenvolvidos, a taxa de acumulação de renda é maior do que as taxas de crescimento econômico, e que tal tendência é uma ameaça à democracia.

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por meio da democracia, o que demanda a construção de um Estado social adaptado ao século XXI. Piketty enfatiza que este último eixo tem destaque em sua pesquisa, alimentado pela discussão que elabora entre forças de divergência e de convergência46 que estão na raiz dos processos de acumulação e distribuição.

....os processos de acumulação e distribuição de riqueza contém em si poderosas forças que impulsionam a divergência ou, ao menos, levam a um nível de desigualdade extremamente elevado. Há, também forças de convergência, e em alguns países ou determinados momentos elas podem predominar; contudo, as forças de divergência têm sempre a capacidade de se restabelecer, como parece estar acontecendo no mundo agora, neste início do século XXI. A queda provável no crescimento econômico e no ritmo de expansão da população ao longo das próximas décadas torna esta tendência ainda mais alarmante (Piketty, 2014, p. 33).

Piketty destaca em sua obra duas consequências do capitalismo atual. A primeira reflete a explosão sem precedentes de rendas muito altas derivadas do trabalho, que tem provocado um abismo entre os rendimentos dos executivos de grandes empresas e o restante da população. A segunda está atrelada à significativa diferença entre a taxa que remunera o capital e a taxa de crescimento da renda proveniente do trabalho e da produção. Historicamente, a remuneração do capital tem sido maior que a da renda, o que acaba por produzir a concentração da primeira. Como resultado, nos países ricos o estoque de capital é cerca de seis vezes maior do que o da renda, com tendência crescente, pois o capital é remunerado entre 3 a 5% ao ano contra 1,5 a 2% de crescimento na renda do trabalho e produção. Influenciada pela corrente neoliberal, essa diferença se acentuou nos últimos 40 anos, graças ao baixo crescimento econômico mundial, à elevada taxa de poupança e ao retorno de capital aos países ricos, fruto de investimentos no exterior. O gráfico a seguir sintetiza a evolução da desigualdade nos EUA e Europa, entre os anos 1810 e 2010. Para contrabalançar esta tendência, Piketty aponta a difusão do conhecimento como a força convergente mais importante para incentivar a mobilidade social, mas que não

46 Forças de divergência são forças de cunho econômico, social, científico que operam no sentido de aumentar a desigualdade na distribuição de riqueza entre países e pessoas. Forças de convergência agem no sentido contrário.

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é natural, pois depende de políticas de educação e de instituições que as promovam. Embora aceita pela maioria dos economistas, a concepção teórica de que a desigualdade é uma consequência das diferentes aptidões e conhecimentos dos indivíduos, e que a educação formal e o mérito permitem a ascensão individual e a convergência distributiva, estudos mostram que essa visão é ilusória, ao sinalizar que as forças de divergência são mais fortes do que as de convergência e estas mais fracas do que se imagina.

A desigualdade entre a riqueza proveniente do capital, com suas grandes heranças transferidas através das gerações, e a renda produzida pela meritocracia, não é simples de ser equacionada. Crescimento econômico pode ser estimulado com investimentos em educação, novos conhecimentos e tecnologias adequadas, mas é praticamente impossível, na atual estrutura global política, social e econômica, que se atinjam níveis de 4% ou 5% ao ano para contrabalançar o crescimento da renda. Piketty assinala que o progresso econômico e tecnológico não implica em avanço democrático e da racionalidade meritocrática, pois a tecnologia não tem limites, nem moralidade, servindo ao “melhor senhor”. Reverter este quadro exigiria não só cooperação planetária, com a atuação firme de estados sociais livres e independentes que restaurassem o sentido moral que a atividade econômica mundial deve ter, como políticas coerentes com o bem-estar social e com as limitações do sistema natural. É ingenuidade pensar que o capitalismo se colocará voluntariamente a favor de mudanças que vão contra sua essência, embora tenha o potencial e recursos para a mudança. Os formadores de opinião comprometidos com Gaia devem continuar insistindo em seus objetivos de transformação, sensibilizando progressivamente

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estados, o mundo econômico, instituições e a população, para os riscos do futuro. Sua persistência, aliada ao agravamento do ambiente e a redução de recursos naturais disponíveis, poderão nuclear o processo de transformações que se crê necessárias para o sistema capitalista e um novo paradigma civilizatório. O relatório Stern47, publicado em 2006, acendeu a “luz amarela” ao alertar que os estragos potenciais a serem causados ao meio ambiente até o final deste século poderão atingir dezenas de pontos percentuais do PIB mundial por ano e que ações eficazes e imediatas devem ser tomadas (Stern, 2006). Correntes neoliberais minimizam essas conclusões alegando que as gerações futuras serão mais ricas, mais produtivas e dotadas de tecnologias superiores, capacitadas, portanto, para lidar melhor com os problemas ambientais. Piketty também enfatiza a urgência para se tratar esse problema:

...é urgente nos preocuparmos com o aumento de nosso capital educacional e evitar que nosso capital natural se degrade. Essa é uma questão muito séria e complexa, pois não basta uma canetada (ou um imposto sobre o capital) para fazer desaparecer o efeito estufa...Seria melhor apostar tudo na pesquisa de ponta, a fim de progredir rapidamente sobre as energias renováveis, ou melhor seria impor de imediato restrições significativas ao consumo de hidrocarbonetos? Sem dúvida, seria sábio poder usar uma estratégia equilibrada que se fundamentasse em todos esses instrumentos disponíveis. Mas, além do bom senso, o importante é enfatizar que ninguém até hoje conhece as respostas para esses desafios e o papel exato que o poder público desempenhará para evitar essa possível degradação do capital natural do século XXI (Piketty, 2014, p. 552-553).

A pobreza, ainda generalizada no planeta, é outra característica do mundo capitalista que intensifica os problemas ambientais. O 5º e último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas), órgão científico da ONU que estuda alterações climáticas e suas consequências, enfatizou que o aquecimento global e as consequentes mudanças climáticas põem em risco a humanidade, mas o fator pobreza potencializa os perigos que muitas vezes se convertem em tragédias na vida dos excluídos, pois a condição de pobreza diminui a capacidade de

47 Elaborado por Sir Nicholas Stern, economista britânico do Banco Mundial) é um estudo encomendado pelo governo Britânico sobre os efeitos na economia mundial das alterações climáticas por

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enfrentamento, adaptação e mitigação a estes eventos. Mudanças climáticas afetam diretamente os mais pobres porque têm impacto em seus meios de vida, na redução das safras, na destruição de suas moradias e, de forma indireta, no aumento dos preços dos alimentos e da insegurança alimentar, o que leva, em contrapartida, ao aumento da exploração de recursos naturais como condição mínima de sobrevivência, alimentando a espiral de impactos e mudanças ambientais (IPCC, 2014). O relatório prevê eventuais deslocamentos de populações, particularmente nas zonas costeiras afetadas pela elevação do nível do mar e erosão, om riscos de imigrações em massa e conflitos.

Essas discussões apontam para uma polarização entre um capitalismo neoliberal, que crê na liberdade de mercado, no potencial das tecnologias para reparar distorções e que defende a continuidade do “status quo” econômico, e correntes discordantes que consideram prudente uma evolução/transformação capitalista, compatível com as necessidades presentes e futuras da biosfera. Algumas propostas têm sido feitas com esse intuito, propondo ou evoluções/transformações comedidas ou mudanças radicais.

Edgar Morin propôs uma segunda globalização que se integre à primeira, já estabelecida. A primeira organizou a sociedade com base na economia, impôs um modelo hegemônico ocidental ao restante do planeta, foi regida por pensamentos tecnocráticos e movida pelo quadrimotor: ciência, tecnologia, indústria e a economia capitalista. É institucionalizada, organizada e regida por um pensamento homogêneo. A segunda parte da ideia de que o mundo não é mercadoria, mas uma pátria comum. Sofre dificuldades de organização, corre risco de dispersão, mas aspira por um mundo melhor em que as correntes humanistas e sociais do passado se unam aos problemas atuais para afirmar-se em uma sociedade planetária. São duas globalizações antagônicas, mas inseparáveis, pois reconhece-se que o sistema mundo atual é imprescindível para um futuro melhor, mas sozinho não será eficaz e necessita, portanto, do segundo movimento globalizante. As duas globalizações devem progredir simultaneamente, a primeira contribuindo com progressos econômicos, científicos e tecnológicos e a segunda fortalecendo-se com a expansão de uma cultura universalista alimentada por diferentes culturas e o avanço de uma consciência

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planetária. Ambas devem ser capazes de civilizar a Terra em uma “sociedade-mundo” (Morin, 2012b).

O movimento conhecido como Ecossocialismo de Michael Lowy48 é uma proposta radical para as necessidades do planeta, propondo-se a mudar drasticamente o capitalismo. Sugere mudanças nas relações sociais atuais e o enfrentamento dos problemas ambientais através de uma renovação no socialismo tradicional.

A questão ecológica é, em minha opinião, o grande desafio (grifo do autor) que, em vistas de sua renovação, o pensamento marxista deve enfrentar no limiar do século XXI. Ela exige dos marxistas uma profunda revisão crítica de sua concepção tradicional de “forças produtivas”, assim como uma ruptura radical com a ideologia do progresso e com o paradigma tecnológico da civilização industrial moderna (Lowy e Bensaid, 2000, p. 232)

O Ecossocialismo tece “ Não se trata de encontrar “soluções” para críticas às ações de mitigação certos problemas, mas outro modo de vida, dos impactos ambientais e que não será a negação abstrata da modernidade, mas sua superação, sua sociais efetivadas até agora, negação determinada, a conservação de suas pouco eficazes segundo Lowy, o melhores aquisições e sua superação rumo a que coloca em risco no médio uma forma superior da cultura – uma forma que restituiria à sociedade certas qualidades prazo a manutenção de nosso humanas destruídas pelas civilizações modo de vida. Ressalta a burguesa industrial. Isso não significa um retorno ao passado, mas um desvio pelo incompatibilidade entre a lógica passado rumo a um novo futuro...” de mercado, o lucro e as Michael Lowy. Excerto extraído do artigo “Rumo a exigências ecológicas um novo futuro”, de 05 de nov. de 2013. Disponível planetárias. Combate a em http://www.oestadonet.com.br/index.php?option=com_k2&vie “ecologização” do capitalismo, w=item&id=3215:rumo-a-um-novo-futuro&Itemid=200 considerada uma manobra continuísta de exploração econômica do sentimento crescente de preocupação da humanidade com seu planeta. Propõe uma

48 Pensador marxista brasileiro radicado na França, onde trabalha como diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique

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reorganização dos modos de produção e de consumo baseada em fatores alheios ao mundo capitalista, centrados nas necessidades reais da população e na proteção ao meio ambiente, que devem ser definidas através de processos democráticos pela própria população e não em ambientes elitistas e distanciados do mundo real. (Lowy e Bensaid, 2000).

A Economia do Estado Estacionário de Stephan Harding, se propõe como alternativa para o sistema capitalista. Defende uma economia sustentável que assegure que o fluxo de mercadorias entre países seja reduzido ou, no mínimo, se mantenha em um estado estacionário (Harding, 2008). Fundamenta-se em quatro princípios:

1) Tetos globais para uso produtivo dos recursos naturais, definidos por meios científicos que garantam ao planeta regenerar-se naturalmente; 2) Controle do mercado sobre a comercialização desses recursos máximos permitidos; 3) Limitação de quão rico um negócio ou país pode se tornar, forçando uma distribuição equitativa de riqueza entre os estados-nação, o que implica maior atenção aos países do hemisfério sul; 4) Evitar o crescimento da população global.

A Economia do Estado Estacionário se choca com os princípios neoliberais de liberdade no mercado, maximização de lucro e acumulo de capital, o que a caracteriza como uma utopia, despertando críticas. Harding propõe a valorização das comunidades locais que deveriam ser semiautônomas, interligadas em uma rede nacional de economias locais, com líderes nativos e fortes laços entre si. Os lucros gerados circulariam localmente, a produção de alimentos deveria seguir orientações orgânicas de cultivo e a produção excedente trocada com outras comunidades. Cada uma teria suas próprias escolas, serviço médico, transporte e profissionais-artesãos. A energia seria gerada localmente a partir de sistemas de produção de energia renovável. Reconhece que sua proposta é de difícil execução, o que é agravado por sua defesa de uma reorientação do desenvolvimento tecnológico para mitigar as mudanças climáticas; do desmantelamento ou reforma das corporações

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multinacionais, do FMI e do Banco Mundial; e da necessidade de uma ampla reforma mundial da educação, em moldes similares à proposta de Edgar Morin49.

Mudanças nas atuais práticas capitalistas, ou sua substituição por propostas alternativas para tornar o futuro comum mais auspicioso para as gerações futuras e o próprio sistema vivo, representam um problema extremamente complexo e de difícil resolução, pois envolve mudar o paradigma tradicional dominante, cunhado durante séculos de imposição cartesiana e positivista. A Sustentabilidade, movimento surgido há 40 anos, que integra vertentes econômicas, ecológicas e sociais, e comprometido, não com a derrocada do capitalismo, mas com sua humanização, se propõe a ser um “caminho do meio” entre o capitalismo dominante e propostas heterodoxas. Ganhou força e acumulou adeptos, mas críticos também. Entretanto, está sendo acusada de “ecologizar a economia”, colocando-se mais a favor do credo capitalista do que do planeta, o que leva a uma questão fundamental a ser debatida: a Sustentabilidade oferece um caminho seguro para resolver ou mitigar os problemas ambientais e sociais do planeta, ou é somente mais uma falácia?

49 Os Sete Saberes necessários à Educação do Futuro.

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SUSTENTABILIDADE – RESGATE OU MISTIFICAÇÃO?

“ Embora intelectualmente útil, o termo sustentabilidade

parece não empolgar e mobilizar as pessoas. Por isso, começamos a falar sobre salvar a civilização ao invés de desenvolvimento sustentável porque é disso que realmente se trata. Assim, a discussão adquire um senso de urgência muito

maior quanto ao que está em jogo “

(lester brown 50)

" Desde o início do século XIX nós tiramos mais do planeta Terra

do que ela podia prover. Desenvolvimento sustentável e

energia renovável poderiam ter funcionado em épocas

anteriores, mas esperar que eles, juntamente com a otimização

do uso de energia, possam sustentar a quantidade de

habitantes hoje, nada mais é do que um sonho romântico

(james lovelock 51)

A relação entre a Terra e o homem retrata uma dicotomia histórica. De um lado Gaia, o sistema vivo planetário, que embora no último quartil de sua vida, prossegue em sua missão de manter condições de habitabilidade. De outro, um mundo profundamente transformado pela ação antropogênica. Gaia, um sistema cibernético global cujos recursos já se mostram insuficientes, tem no homem seu grande desafio.

50 Excerto de entrevista concedida à revista Ideia Sustentável em 20 de dezembro de 2008. Disponível em http://ideiasustentavel.com.br/ele-tem-um-plano-b/. Acesso em 17 de maio de 2017. 51 Excerto do livro: Revenge of Gaia, London: Penguin Books Ltd, 2006.

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A obra humana dos últimos séculos, desenvolvida sobre um paradigma que incentivou o domínio e uso da biosfera, conduziu o capitalismo ao posto de sistema mundo e inflou essa polarização. Após a última grande guerra, assistiu-se ao surgimento e crescimento de vários movimentos contrários a esse “status quo”, que perceberam as consequências preocupantes de um continuísmo descompromissado com o sistema natural. Rachel Carson foi uma das pioneiras na defesa do meio ambiente, ao divulgar o resultado de suas pesquisas sobre a poluição do ar, da água e do solo provocado pela ação agrícola e industrial52. Sustentabilidade surge no centro dessas preocupações. Propõe-se a aliar o lado profícuo do capitalismo com compromissos ambientais e sociais. A Sustentabilidade engendra o Movimento do Desenvolvimento Sustentável, seu braço operacional no mundo econômico.

Sustentabilidade e Desenvolvimento Sustentável são jargões técnicos amplamente usados pela mídia, por governos e instituições, quando o assunto diz respeito ao meio ambiente e ao futuro planetário. Sustentabilidade é um conceito de múltiplos entendimentos, mas ligado a um senso comum de cunho ecológico, orientado ao bom uso dos recursos naturais limitados da Terra. Gaia é o grande exemplo de sustentabilidade, organizou os ecossistemas terrestres, redes autopoiéticas, por bilhões de anos, garantindo sua continuidade e adequabilidade. Sustentabilidade vem sendo aplicada atualmente como um conjunto de princípios que visam estabelecer equilíbrio entre o que a natureza pode oferecer, um limite de exploração de seus recursos e a melhora das condições de habitabilidade para a biota. Transcende o nível ecológico e econômico, englobando variáveis sociais, políticas e científicas. Em suma, Sustentabilidade respalda esforços para se preservar os ecossistemas terrestres, atender às necessidades socioeconômicas presentes e futuras da humanidade e dar continuidade ao desenvolvimento econômico. O Desenvolvimento Sustentável, por sua vez, se fortaleceu e se disseminou globalmente com o relatório Brundtland, que o definiu como: “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. Para facilitar as reflexões posteriores e em

52 Através de seu livro “Primavera Silenciosa”, publicado em 1962, Rachel Carson apontou os danos ao ambiente causados pela agricultura e o desenvolvimento industrial, que deflagraram amplos debates no maio acadêmico e econômico.

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sintonia com a simbiose entre Sustentabilidade e Desenvolvimento Sustentável, este último termo será usado doravante para ambos.

Desenvolvimento Sustentável surge como uma alternativa de mitigação dos impactos ambientais, lançando-se como uma evolução das ideias econômicas liberais e do pensamento antropocêntrico. Representa um conjunto de conhecimentos e práticas que aponta para uma nova visão econômica e social em escala planetária, mas que revela uma contradição: “desenvolvimento é oriundo da economia excludente que hoje impera e sustentável vem da Ecologia que é includente” (Boff, 2002, p.55). Mudanças climáticas e impactos ambientais de um lado; resultantes do exaurimento de vários recursos naturais, da extinção de espécies, de alterações na atmosfera e oceanos, do aquecimento global e aumento da desertificação; e a busca de um contínuo crescimento econômico por governos e corporações, de outro, formam o cenário de fundo em que se dá a dicotomia entre o Capitalismo tradicional e o Desenvolvimento Sustentável. Reconhece-se os méritos do capitalismo, maior responsável pelo progresso do homem e a estrutura global criada, mas que produziu, também, disparidades sociais e econômicas, separando ricos e pobres, Norte e Sul, o que tem sido agravado pelos problemas ambientais (PNUD, 2011). Um retrato da sociedade global mostra que os 10% mais ricos detém 86% da riqueza mundial, concentrados no hemisfério norte e os 90% mais pobres ficam com os 14% restantes, fato que tende a se agravar com o crescimento populacional (Credit Suisse, 2013).

O movimento do Desenvolvimento Sustentável nasce com o propósito de mitigar impactos ambientais, melhorar a justiça social, sem perder o foco econômico. Foi idealizado a partir de três compromissos: manter o desenvolvimento e crescimento econômico, evoluir para uma sociedade mais igualitária e justa, com governos e empresas praticando responsabilidade social e respeitar os limites naturais do meio ambiente. Três metas aparentemente incompatíveis entre si, que o tornam controverso e complexo, despertando amores e ódios. Seus defensores alegam ser a única saída possível para os graves problemas atuais, mas exige comprometimento da sociedade, governos e corporações. Seus críticos o acusam de representar uma

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continuação maquiada do capitalismo, embora mostre uma “persona”53 favorável ao meio ambiente. Há outros, mais radicais, como o economista , símbolo do pensamento neoliberal e prêmio Nobel da Economia, que defende que a única responsabilidade social das empresas é utilizar seus recursos e se envolver em atividades concebidas para aumentar os lucros, beneficiando investidores. A despeito dos prós e contras, atualmente o Desenvolvimento Sustentável ocupa um papel central nas preocupações com o planeta e seu futuro. A questão central que se coloca aqui é se suas proposições representam um compromisso autêntico para mitigar as mudanças e impactos no ambiente ou se o Desenvolvimento Sustentável é uma falácia para camuflar os efeitos do capitalismo no planeta, travestindo-se de “verde”, mas com foco no lucro e no continuísmo. Por sua complexidade, é difícil encontrar respostas, mas perscrutar alguns elementos da história das duas correntes, a capitalista e a da Sustentabilidade, talvez traga novas percepções e respostas.

A revolução industrial, que deu origem ao capitalismo moderno, expandiu extraordinariamente as possibilidades de desenvolvimento material da humanidade, mas permitiu a exploração da natureza em níveis nunca presenciados. Embora o homem sempre tenha dependido da natureza, foi somente no século XIX que ganhou consistência a discussão sobre a necessidade de se evitar a destruição massiva dos recursos naturais. Karl Marx foi um dos primeiros pensadores a enfatizar o papel da natureza no desenvolvimento econômico e social. Apesar do contexto social e produtivo atual ser distinto daquele em que viveu Marx, onde os problemas ambientais não tinham a relevância atual, ele deixou evidências de sua preocupação ecológica, como atestado pelo geógrafo italiano Massimo Quaini (1982, p.136):

53 Termo usado na psicologia para designar uma face social apresentada ao mundo, uma espécie de máscara para causar uma impressão definitiva sobre outros e dissimular sua verdadeira natureza.

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“Marx....denunciou a espoliação da natureza antes do nascimento de uma moderna consciência ecológica burguesa”. Marx rejeitou toda tentativa de separar sua abordagem dialética-materialista do terreno da natureza e da ciência físico-natural, fruto provável de uma visão contextual e simplista do século XIX, não orientada ao entendimento de um ecossistema terrestre em contínua transformação e interação com a humanidade (Foster, 2005). Influenciado por Epicuro, Hegel, Darwin e o químico alemão Liebig, construiu uma visão preliminar sobre conceitos de sustentabilidade, segundo a qual os seres vivos e o meio ambiente se inter-relacionam formando uma unidade e se influenciando reciprocamente. É de Marx a seguinte reflexão citada por Foster (2005, p. 323-324):

Não nos gabemos, porém, em demasia por conta de nossas vitórias humanas sobre a natureza. Pois, para cada vitória dessas a natureza se vinga de nós. Cada vitória, é verdade, a princípio acarreta os resultados esperados, mas em segundo e terceiro lugares tem efeitos bastante diferentes, imprevistos que com demasiada frequência anulam o primeiro. O povo que, na Mesopotâmia, Grécia, Ásia menor e em outros lugares, destruiu as florestas para obter terra cultivável jamais sonhou que ao remover com as florestas os centros coletores e reservatórios de umidade estava lançando as bases para o atual estado deplorável desses países. Quando os italianos dos Alpes acabaram com as florestas de pinheiros nas encostas meridionais, tão cuidadosamente mantidas nas encostas setentrionais, nem suspeitaram que ao fazer Os seres humanos são tanto um produto isso estavam atacando as raízes da natureza quanto parte dela; se são da indústria leiteira da sua região; dotados de uma base biológica...; se são e menos ainda que assim em si o topo da natureza e de seus estavam privando de águas as produtos; e se vivem dentro da natureza nascentes das suas montanhas (por mais que estejam separados dela por na maior parte do ano, e determinadas condições sociais e possibilitando que elas jorrassem históricas da vida...), então o que há de surpreendente no fato de os seres torrentes ainda mais furiosas nas humanos compartilharem do ritmo da planícies durante a estação de natureza e de seus ciclos? chuvas.....Assim, a cada passo,

Nikolay Bukharin (Apud FOSTER, 2005) - A somos lembrados de que nós Ecologia de Marx – Materialismo e Natureza, absolutamente não governamos p. 312-313 a natureza como um conquistador governa um povo estrangeiro... mas que nós, com a carne, o sangue e o cérebro,

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pertencemos à natureza e existimos no seu meio, e que todo o nosso domínio dela consiste no fato de que nós estamos em vantagem em relação a todas as demais criaturas por podermos aprender s suas leis e aplicá-las corretamente.

As primeiras percepções da deterioração ambiental, no século XIX, fluíram para ações concretas, com a criação de áreas de reserva ambiental livres da ação predadora humana, como o Parque Nacional de Yellowstone nos EUA em 1872, iniciativa seguida por outros países como o Canadá, Nova Zelândia, África do Sul, Austrália e México. Embora tímidas a princípio, preocupações com o uso do sistema natural se expandiram e influenciaram pensadores como: William Morris, Christopher Caudwell Nikolai Bukharin, Aldo Leopold, Rachel Carson, Joseph Stiglitz, Herman Daly, Jeffrey Sachs, Buckminster Fuller, Arne Naess, Lester Brown, Paul Hawkens e E.F. Schumacher.

A partir da Segunda Guerra Mundial, com os expressivos investimentos na recuperação dos países arruinados e o consequente crescimento econômico, reações contra a exploração irracional dos recursos e suas possíveis consequências ganharam força. Rachel Carson alertou sobre os perigos do uso de pesticidas químicos, retratado no desastre ambiental da baía de Minamata e no ataque nuclear ao Japão. Lester Brown, criador do WWI (World Watch Institute) deu um grande impulso ao movimento com sua definição simples e direta: "Uma sociedade sustentável é aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas das gerações futuras". Arne Naess, ex-presidente do movimento ecológico Greenpeace, inconformado com o tratamento dado ao planeta, defendeu a necessidade de uma nova consciência ecológica e lançou o desafio de se construir um novo paradigma global, a ecologia profunda, substituindo o atual paradigma tradicional, construído ao longo de séculos de capitalismo.

Com a discussão progressiva e ampla do Desenvolvimento Sustentável, por segmentos sociais, científicos, políticos e econômicos, foram surgindo outras interpretações de sua proposta, segundo expectativas e interesses dos diversos atores envolvidos, o que provocou reflexões sobre suas três bases de sustentação: a econômica, a social e a ambiental. O que se tem verificado é que a base econômica se tornou preponderante sobre as outras duas, o que pode ser comprovado pela

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inclusão das premissas do Desenvolvimento Sustentável na agenda de países e corporações, que defendem enfaticamente a imprescindibilidade de associá-lo ao crescimento econômico, transformando em dogma a recuperação da natureza, associado ao desenvolvimento e crescimento econômico global.

A mensagem do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável, reunido no Rio de Janeiro em 1991, reforça essa constatação: “…somente a economia de mercado permitirá aos A Sustentabilidade incorporada aos negócios países um desenvolvimento está provando ser um modelo de gestão mais com bases sustentáveis sem inteligente para empresas de todos os matizes. degradar a natureza”. Paul Gestores convencionais que podem ou não Krugman54 apontou o relatório acreditar em causas ambientais e sociais estão do New Climate Economy descobrindo que os clientes e os investidores esperam encontrar a Sustentabilidade em seu Project55, fruto de estudos de cerne de negócios. Todo dia tem ficado cada uma comissão internacional de vez mais evidente que a integração da especialistas, como uma prova Sustentabilidade diz respeito, em primeiro incontestável que crescimento lugar a como responder a uma nova realidade econômico e ações para de mercado, ao invés de apenas uma injunção moral (por mais importante que seja). combater a crise ambiental são

perfeitamente compatíveis. Chris Laszlo e Nadya Zhexembayeva – Sustentabilidade Mesmo com a defesa de uma Incorporada, 2011, p. 300 coexistência profícua entre capitalismo e desenvolvimento, há uma conscientização global de que as mudanças climáticas e ambientais estão relacionadas ao modo produtivista e consumista da contemporaneidade, fato preocupante para o mundo econômico, que percebeu rapidamente as vantagens de aderir à economia verde e ao capitalismo natural, sem que isso representasse necessariamente uma conversão de fé aos preceitos fundamentais do Desenvolvimento Sustentável. Este se tornou o carro chefe da institucionalização do meio ambiente na agenda política internacional, alimentando a formulação e implementação de políticas públicas em todos os níveis,

54 Economista americano e prêmio Nobel, em editorial publicado no N.Y. Times, em setembro de 2014, intitulado: “Erros e Omissões”. Disponível no site do jornal Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/paulkrugman/2014/09/1518681-erros-e-emissoes.shtml 55 Projeto desenvolvido pela Global Commission on the Economy and Climate, iniciativa internacional para orientar países a obterem crescimento econômico, enquanto lidam mudanças climáticas. O projeto, de 2014, faz recomendações sobre as políticas que podem simultaneamente proporcionar um melhor crescimento econômico e enfrentar os riscos colocados pelas mudanças climáticas.

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nos estados nacionais, em instituições multilaterais e mesmo em políticas de caráter supranacional, reforçando uma percepção cada vez mais ampla do predomínio da economia nas práticas associadas ao Desenvolvimento Sustentável (Nobre e Amazonas, 2002).

O IPCC, uma dessas instituições, está na vanguarda da defesa do Desenvolvimento Sustentável como caminho para dar suporte ao crescimento populacional previsto para as próximas décadas, em sintonia com o comprometimento de melhorar condições sociais para a humanidade e preservar o meio ambiente. Na terceira parte de seu 5º. Relatório, publicada em 2014, o IPCC traz alertas e orientações a países, sociedades e empresas para reduzirem a emissão de gases do efeito estufa, considerado o maior problema ambiental atual. Afirma que são necessárias ações de investimento em novas tecnologias em áreas como energia, transporte, construção e uso da terra, para limitar o aquecimento a 2ºC até o final deste século, e apresenta ideias, através do “Sumário para os Formuladores de Políticas", de como mitigar o impacto das alterações do clima a partir da análise de 900 modelos econômicos, formulados por governos e pesquisadores. A figura acima, elaborada a partir deste relatório, sintetiza previsões até 2100, da temperatura planetária e do nível do mar, caso não ocorra uma mudança de trajetória. Isto inclui, segundo o IPCC, abandonar os combustíveis fósseis poluentes e utilizar fontes mais limpas, de forma a evitar um aumento de temperatura

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global acima de 2ºC antes do final do século, o que afetaria drasticamente os ecossistemas.

Trocar as fontes de energia não é uma tarefa simples. A matriz energética do planeta mostra que mais de 70% da energia consumida é derivada dos combustíveis fósseis: petróleo, carvão mineral e gás natural, principais vetores do efeito estufa, e seu consumo não mostra sinais de queda, o que inibe um verdadeiro desenvolvimento sustentável. Somente políticas públicas não são suficientes para tal mudança, exigem o engajamento das grandes corporações, o que ainda ocorre de forma tímida. Deve- se reconhecer que esforços nesse sentido têm sido feitos, como o protocolo de Kyoto56, em 1997 e o Acordo de Paris57 de 2015, mas seus resultados ainda são incipientes para as necessidades de Gaia. O IPCC propõe outros desafios, além da mudança das fontes energéticas. Sustentabilidade no mundo Convida o mundo empresarial a investir organizacional denota empresas que em novas tecnologias, que poderão são sustentáveis, ou seja, geram gerar negócios alinhados com as lucros para seus acionistas, ao mesmo limitações naturais da Terra, criando tempo em que protegem o meio expectativas de continuar o crescimento ambiente e melhoram a vida das pessoas com quem mantém interações econômico. A crença de que o (stakeholders). Desenvolvimento Sustentável é a única saída viável para a biota se tornou um Andrew W. Savitz, autor do livro: A Empresa Sustentável, 2007. mantra no mundo dos negócios.

Paul Hawken, ambientalista americano e voz respeitada quando o assunto é Sustentabilidade, defende que é viável o engajamento de governos e o mundo empresarial para solucionar os maiores problemas ambientais e sociais do planeta, sem perder o foco no crescimento econômico. As tecnologias disponíveis e em desenvolvimento têm papel central nesse esforço e possibilitarão criar riquezas através da exploração consciente e não irracional do meio ambiente. Aponta que o capitalismo, tal como praticado, não dá suporte para um desenvolvimento humano

56 Tratado internacional com metas e compromissos rígidos para redução da emissão dos gases do efeito estufa por parte dos países signatários, em número de 192, ocorrido na cidade de Kyoto, no Japão , em 1997. 57 Acordo de Paris é um tratado no âmbito das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima que rege medidas de redução de emissão dióxido de carbono a partir de 2020. O acordo foi negociado durante a COP-21 (Conferência das Partes) em Paris e foi aprovado em 12 de dezembro 2015

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sustentável e se descuida ao atribuir pouco valor ao capital mais importante que emprega: os recursos humanos e os sistemas sociais e culturais. Fundamenta suas conclusões em dezenas de descrições de exemplos reais de organizações e comunidades que produziram riquezas graças a políticas ambientais ditas “verdes”, compatíveis com o meio ambiente e com a vida (Hawken, Lovins e Lovins, 2010).

Essas diretrizes do IPCC, que também são apregoadas por outras instituições ligadas ao meio ambiente, têm estimulado a substituição dos combustíveis fósseis por fontes renováveis ou limpas, como: solar, eólica, hídrica, biomassa. A mudança da matriz energética é um dos maiores desafios da humanidade para reverter o agravamento ambiental. Entretanto, os combustíveis fósseis, além de abundantes, produzem energia barata comparada com outras fontes e deles depende parte significativa da economia global, o que torna difícil uma substituição intensiva no horizonte próximo. Essa e outras recomendações para se mitigar as mudanças ambientais induzem à necessidade de reorientações significativas nas práticas capitalistas atuais, incentivando a migração para novos modelos alternativos ou híbridos. Mudar um sistema predominante, entretanto, em pleno funcionamento e defendido por muitos, exige predisposição e significativos montantes de tempo, dinheiro, recursos materiais e humanos, cujos custos assustam governos e o mundo empresarial. Se torna mais fácil, então, praticar um discurso oportunista e se transvestir de sustentável, aproveitando a “onda verde” que se espalhou pelo planeta, do que se comprometer efetivamente. Um sinal desse oportunismo é a prática de “greenwshing”58, com estratégias ditas ambientalmente responsáveis, sem a contrapartida do compromisso ambiental. Em 2010 a organização Terrachoice

58 Greenwashing é uma ação que empresas realizam para "maquiar" os seus produtos e tentar passar a ideia de que eles são ecoeficientes, ambientalmente corretos, e que provêm de processos sustentáveis, entre outros. No Brasil o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) regulamentou greenwashing na propaganda, através do acréscimo de um parágrafo e um anexo ao artigo 36 do Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária.

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Environmental Marketing59 identificou através de relatório que certas práticas de “greenwashing” estavam presentes em cerca de 95% dos produtos de uso doméstico, vendidos nos mercados norte-americano e canadense. Sua mensagem causou preocupações e foi veementemente contestada por críticos.

Essas polarizações e pontos de vista em torno do meio ambiente provocam um grande embate entre os defensores do Desenvolvimento Sustentável, que o consideram condição “sine qua non” para a continuidade do crescimento econômico, simultaneamente com a “salvação do planeta”, muitos dos quais se aproveitam da relativa ignorância humana sobre o complexo problema ambiental, para dar prosseguimento a seus negócios, e outros que, conscientes da debilidade de Gaia e céticos à propaganda desenvolvimentista, agem para reverter o grave quadro ambiental. Cientistas, pesquisadores, ambientalistas, instituições de pesquisa, governos, parcelas da população humana e empresas preocupadas com o futuro comum, engrossam essas fileiras. A história pregou, na percepção de Ignacy Sachs, uma peça cruel, pois o Desenvolvimento Sustentável é incompatível com o jogo sem restrições das forças de mercado, cegas a quaisquer outras considerações que não sejam lucros e a eficiência cartesiana da alocação de recursos. Defende que soluções viáveis passam por uma combinação entre ciências naturais e sociais, pois as primeiras podem descrever o que é preciso para um mundo sustentável, mas compete às ciências sociais a articulação das estratégias de transição rumo a este caminho (Sachs, 2000). Desenvolvimento Sustentável, para Stephan Harding, é um

59 Terrachoice Environmental Marketing Inc. é uma agencia de marketing canadense especializada em meio ambiente, que produz serviços estratégicos de consultoria sobre posicionamento sustentável de empresas.

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paradoxismo, uma vez que desenvolvimento implica aumentar taxas de extração de matérias-primas da natureza virgem. Sustentabilidade, como adotado, é apenas crescimento econômico enfeitado com uma linguagem proposital de ofuscamento, usado por quem não está preocupado com a Terra e se importa exclusivamente com geração de lucros (Harding, 2008).

É impossível um desenvolvimento sustentável nos moldes projetados pela economia capitalista. Esta é a tese de Michel Lowy, que a justifica com dois argumentos: o colapso global caso o modo de produção e consumo dos países desenvolvidos seja estendido aos demais; e a ameaça à sobrevivência da espécie humana no curto prazo com a continuação do “progresso capitalista” e a expansão da civilização baseada na economia de mercado. Reverter o quadro ambiental é uma causa coletiva, exigindo a associação de todos os movimentos sociais emancipadores, independentemente de cor, gênero, etnia, credo e ideologia, pois um futuro diferente daquele resultante de uma tragédia previamente anunciada exige isso (Lowy e Bensaid, 2000).

Serge Latouche, com sua Teoria do Decrescimento, é mais radical. Enfatiza a incompatibilidade entre expansão econômica e Sustentabilidade, e entende como imperioso a renúncia ao crescimento enquanto paradigma ou religião.

...a festa acabou: já não há mais margens de manobra. A torta, isto é, o produto interno bruto, não pode mais crescer. Mais ainda (e nós o sabemos muito bem há longo tempo, embora nos recusemos a admiti-lo), a economia não deve crescer. A única possibilidade para escapar ao pauperismo, tanto no Norte como no Sul, é a de retornar aos elementos fundamentais do socialismo, mas sem esquecer, desta vez, a natureza: repartir o bolo de maneira equitativa.... a torta se tornou cada vez mais tóxica – as taxas de crescimento da frustração, seguindo a fórmula de Ivan Illich, excederam amplamente as da produção –, era inevitavelmente necessário modificar a receita. Inventamos, então, uma bela torta com produtos biológicos, de uma dimensão razoável para que nossos filhos e nossos netos pudessem continuar a produzi-la, e a compartilhamos equitativamente. As partes não serão talvez muito grandes para nos tornar obesos, mas a alegria estará no encontro marcado. Com outras palavras, ela nos oferece a oportunidade de construir uma sociedade ecossocialista e mais democrática. Tal é o

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programa do decrescimento, única receita para sair positiva e duradouramente da crise de civilização em que vivemos (Latouche, 2009, p. 08-10 60).

Nessa corrente de pensadores, comprometida com a disseminação de conhecimentos sobre a situação ambiental planetária e com a proposição de caminhos sustentáveis viáveis, deve-se resgatar o legado de James Lovelock. É categórico sobre a guerra que o homem deflagrou contra Gaia e convicto da imprescindibilidade da tecnologia como fonte de soluções para a crise ambiental, embora se mostre um crítico do desenvolvimento de fontes de energia limpa feito pela indústria, pois elas não têm a capacidade no curto e médio espaço de tempo de suprir a necessidade energética da humanidade, com exceção da energia nuclear, mas que reconhece ser de difícil concretização pela imagem de riscos que lhe foi atribuída por ambientalistas de todo o mundo (Lovelock, 2006). As discussões sobre o desenvolvimento sustentável e o futuro planetário, que agora fazem parte do cotidiano e tem ocupado boa parte das preocupações humanas, provocam sentimentos de ansiedade e incerteza, e atestam não somente a complexidade e pouco conhecimento deste assunto, como a dificuldade de se prover ações sistêmicas e globais de mitigação ou solução dos problemas ambientais, postergando medidas humanas efetivas de recuperação da biosfera, desfavorecendo uma Gaia idosa e enfraquecida, que se mostra ineficiente para manter as condições adequadas de suporte à vida.

Exemplos desse descaso não faltam. Os Estados Unidos, a maior economia do planeta e uma das que mais contribui para o aquecimento global, tem dado reiteradas mostras de pouco caso com a questão ambiental. Em fevereiro de 2016 a suprema corte americana bloqueou um dos principais planos do presidente Obama no combate às mudanças climáticas ao suspender a ordem regulatória que impõe limites à emissão dos gases do efeito estufa emitidos pelo setor de geração de energia elétrica. “Lobbies” do congresso americano têm sistematicamente boicotado o plano ambiental global proposto em 2015, desacreditando suas bases científicas sobre o aquecimento global, e até mesmo propondo a queima de florestas para a produção de eletricidade61. Sinais dessa relativa insensibilidade, não somente dos EUA, mas de

60 Entrevista concedida por Serge Latouche à revista do Instituto Humanitas Unisinos, ed. 295 de 01 de junho de 2009. 61 Notícias veiculadas pelo jornal A Folha de São Paulo, em 10 de fevereiro e 05 de outubro de 2016

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outros países ricos e em desenvolvimento, pode ser sintetizada na pegada ecológica planetária (ecological footprint) atual, cuja evolução pode ser observada no quadro ao lado. Já tendo ultrapassado a marca de 1,5 planetas, seu prognóstico aponta que, se não houver mudanças efetivas e urgentes, antes de 2050 serão necessários dois planetas Terra para regenerar os recursos que são retirados de Gaia, com consequências difíceis de prever.

Se as forças econômicas, frequentemente suportadas pelo Estado, predominam nas ações sobre o planeta e seus recursos, há um outro lado, entretanto, com reações que se alastram pelo orbe em defesa da Terra e de Gaia. Formam núcleos que incentivam uma conscientização planetária e convidam as pessoas a mudar sua forma de pensar sobre a própria essência da vida e sua missão na Terra. Há quem diga que assistimos ao surgimento de uma utopia global, centrada em uma consciência ecológica profunda e no respeito à vida, o que conduz a um novo paradigma econômico e social, que conflita com o paradigma capitalista tradicional (Capra, 1989). Entende-se que os dois lados, opostos por sua natureza, estão em meio a um processo dialógico, dialético, conflituoso, amplo, longo e complexo, antagonizando um capitalismo secular que resiste a mudanças e idealistas que desejam um futuro viável para a biota. É uma luta difícil, desigual, mas que deve ser travada, pois tem a seu favor prognósticos científicos que recomendam a premência de ações de ordem política, econômica, social, científica, tecnológica e ambiental, sob pena de colocar em risco a própria humanidade (Lovelock, 2006).

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Este caminho, o da mitigação dos impactos é um caminho alternativo…o caminho da mudança paradigmática. É provável que ela aconteça de qualquer forma, seja pela conscientização suave ou pela catástrofe (Milanez, 2003, p. 83).

Um novo paradigma civilizatório, portanto, é necessário e urgente. Já está em formação, incipiente ainda, mas vivo e ativo, alimentado por cérebros e movimentos conscientes da urgência de ações efetivas direcionadas ao bem comum da humanidade e demais seres vivos. Religião, a ética e a revolução do altruísmo, movimento embrionário, são aliados de respeito e se coadunam não somente com a história e o trabalho de Gaia, como embasam o propósito desta tese.

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A BUSCA DO BEM COMUM: RELIGIÃO, ÉTICA E ALTRUÍSMO

" Todas as coisas da criação são filhos do Pai e irmãos do

homem... Deus quer que ajudemos aos animais, se necessitam de

ajuda. Toda criatura em desgraça tem o mesmo direito a ser

protegida"

São Francisco de Assis

" a forma como sobreviveremos à era da globalização (se lhe

sobrevivermos) depende da forma como reagirmos eticamente

à ideia de que vivemos num sÓ mundo “

Peter singer 62

O termo religião vem de religio, que originalmente remonta ao universo romano antigo, cujo significado é próximo a algo escrupuloso ou cuidadoso, relacionado a uma espécie de cuidado ou zelo com as práticas do culto romano aos deuses. Com Cícero o termo religio recebe a denominação de relegere e reforça a ideia de se fazer corretamente a prática do culto. Posteriormente o termo religio sofreu modificações passando para o sentido de religare, que significa "religação com o divino”, que engloba necessariamente qualquer forma de aspecto místico e religioso, abrangendo seitas, mitologias e quaisquer outras doutrinas ou formas de pensamento que tenham como característica fundamental um conteúdo metafísico, o que transcende o mundo físico. Religiões fazem parte do cotidiano da humanidade há milhares de anos e na contemporaneidade suprem as deficiências morais e éticas de um contexto

62 Excerto do livro: Um Só Mundo. A Ética da Globalização. Tradução de Maria de Fátima St. Aubyn. Lisboa: Gradiva, 2004

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majoritariamente capitalista e consumista, oferecendo esperanças de um mundo melhor, mais justo e equitativo, embora nem sempre tenham cumprido esse papel.

Historicamente as religiões ocidentais cristãs foram incoerentes com sua missão primordial, tendo preterido as massas menos favorecidas em favor do Estado e dos mais abastados, privilegiando poder e riqueza. O teólogo alemão Ernst Troeltsch (1865 – 1923) considerava que as Igrejas se caracterizavam por possuir estreita ligação com o Estado, com as classes dominantes e por se integrarem ativamente ao bloco histórico da hegemonia e dominação social perpetrado pelas classes patronais, razão pela qual tentativas de ruptura com a ordem econômica e política estabelecida encontraram nessas instituições uma reação contrária63. Alguns constructos sobre a etiologia das religiões enriquecem a discussão subsequente, pois mostram como a sua origem está intrinsecamente ligada à natureza humana e à relação homem/natureza. Algumas delas, afastadas de seus propósitos de zelar pela criação divina, assumiram um mea-culpa e se lançaram ao resgate de sua missão fundamental, abraçando a causa ambiental e social planetária. É que procura fazer, por exemplo, a Igreja Católica, com sua carta encíclica “Laudato Si”, cujo enfoque é o “Cuidado da Casa Comum”.

Freud, a partir de sua teoria psicanalítica, entendia que a religião surgiu de uma necessidade de defesa contra as forças da natureza, como todas as outras realizações da civilização. Ela surge do sentimento de desamparo da criança e, posteriormente, do adulto que lhe dá continuidade. É a defesa contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto ao desamparo que ele tem de reconhecer em si, cuja reação é, exatamente, a formação da religião.

63 Conteúdo transcrito da entrevista com Leonardo Boff, intitulada “A Libertação e a Vida Planetária”. Disponível em: http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/34/artigo213718-1.asp

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Porém, as religiões estão cheias das mais gritantes contradições e discordâncias com a realidade que conhecemos, e mesmo assim têm poder, pois seu segredo reside na força de suas ideias religiosas, ilusões que representam os mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade (Freud, 2010). Carl Gustav Jung dedicou boa parte de suas obras à compreensão do fenômeno religioso e, embora não descartasse a existência de algo transcendente à vida material, entendia a religião como uma manifestação psíquica inata do inconsciente humano, cujo material é experimentado como um processo religioso. A definiu a partir do vocábulo religere, como uma acurada e conscienciosa observação do que chamou “numinoso”, uma existência ou um efeito dinâmico não causado por um ato arbitrário. Considerava a religião como “um equilíbrio entre o eu e o não-eu psíquico” onde se deveria escrupulosamente relevar a presença das forças inconscientes, cuja negligencia colocaria o homem em perigo. Entendi-a como uma das manifestações mais antigas da alma humana, encontrada desde os tempos mais remotos em cada tribo, em cada povo, conectada às raízes mais antigas do paganismo, vinculado à prática correta dos ritos, exigindo uma postura de escuta, observação e submissão por parte do ser humano ao desejo ou à vontade dos deuses, a partir da percepção de si próprio e do ambiente à sua volta, o que caracteriza a interconexão entre psique e natureza (Jung, 2011a).

As igrejas, com destaque para as ocidentais, por sua atrofia histórica na aceitação e incorporação de conhecimentos produzidos pelas ciências, são estigmatizadas como retrógradas e dogmáticas, e desafiadas constantemente a recuperar o tempo perdido e aceitar novas atribuições. Leonardo Boff, um dos idealizadores da Teologia da Libertação64, discorre sobre o papel da religião no mundo contemporâneo e propõe uma nova ótica sobre como as igrejas podem se colocar a favor de uma nova ordem rumo a um mundo mais equitativo e sustentável para todos os seres vivos65. Devem renunciar a pretensão de únicas portadoras da verdade, sentindo-se superiores e fora da sociedade, preocupando-se prioritariamente em

64 Corrente teológica cristã nascida na América Latina, depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, que parte da premissa de que o Evangelho exige a opção preferencial pelos pobres e especifica que a teologia, para concretar essa opção, deve usar também as ciências humanas e sociais. Engloba várias correntes de pensamento que interpretam os ensinamentos de Jesus Cristo em termos de uma libertação de injustas condições econômicas, políticas ou sociais. 65 Conteúdo retirado da entrevista concedida por Leonardo Boff à revista Sociologia, em maio de 2011. Fonte: http://sociologiacienciaevida.uol.com.br/ESSO/Edicoes/34/artigo213718-1.asp

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conservar seu lugar social e poder, comportando-se como autistas, pois isto as levou a um excesso de conservadorismo e patriarcalismo. Devem entender-se como instância de animação da dimensão religiosa dos seres humanos e colocar-se a serviço de causas universais, como a da dignidade humana, do respeito a cada ser vivo por seu valor intrínseco, empenhar-se pela justiça social, defender a causa dos oprimidos, zelar pela casa comum, a Terra, e alimentar o princípio da esperança que habita cada ser e anima cada sociedade, tornando-se, assim, universais. Não podem e não devem se eximir à sua responsabilidade perante o mundo, face à crise ecológica, pois difundiram acriticamente ao longo de séculos textos bíblicos onde interpretaram literalmente a atitude adâmica de superioridade e de dominação do ser humano sobre a Terra e sobre todos os seres66, legitimando a relação de depredação e de dominação da natureza, tese também defendida por Descartes e Francis Bacon.

Hoje as igrejas devem desempenhar outra função, fazer sua autocrítica e redefinir sua missão a partir do que se estipula no segundo capítulo do Gênesis: “a missão do ser humano é o de cuidador do jardim do Éden”. Tal postura representa uma guinada nos rumos históricos, significa assumir o “mea culpa” de erros passados, reconhecer a necessidade de se articular com outros saberes de uma forma ecumênica e aderir ao esforço comum de conscientizar a humanidade para a urgência de zelar pela casa comum, o planeta Terra, e sua alma, Gaia. A publicação, em 2015, da Encíclica papal “Laudato Si” é, reconhecidamente, um grande passo nesse sentido.

A “Laudado Si” do Papa Francisco (Bergoglio) é um documento ecumênico, dirigido a todos, independentemente de credos, etnias, preferencias, níveis econômicos e tecnológicos. Dotada de uma beleza poética, não se furta, porém, a mostrar-se severa com o homem, ao colocá-lo no banco dos réus por suas ações contra Gaia, ao mesmo tempo que o convida a reparar os “pecados” contra a criação. Elaborada em seis capítulos, a “Laudato Si” é um documento científico e espiritual profundo, construído de forma transdisciplinar, fundamentado em princípios científicos

66 Conteúdo da Genesis, primeiro capítulo

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semelhantes aos propostos por Edgar Morin em seu “pensamento complexo”67. Bergoglio convida a que se ouça os lamentos de uma Gaia maltratada e de uma Terra saqueada, que se unem aos “LAUDATO SI, mi signore – Louvado sejas, gemidos dos abandonados do meu Senhor”, cantava São Francisco de Assis. Nesse gracioso cântico, recordava-nos mundo, exortando todos e cada que a nossa casa comum se pode comparar um, indivíduos, famílias, ora a uma irmã, com quem partilhamos a coletividades locais, existência, ora a uma boa mãe, que nos organizações, países e acolhe nos seus braços. “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que comunidade internacional a uma nos sustenta e governa e produz variados conversão ecológica, rumo a uma frutos com flores coloridas e verduras” Ecologia Integral, cuja essência é

Cantico dele creature: Fonti rancescane in assumir a responsabilidade do Laudato Si, 2015, p. 04 compromisso com o «cuidado da casa comum». Esta é a preocupação central da encíclica, cuja publicação surpreende não somente pelo conteúdo voltado a um tema tão presente e importante para a jornada humana, como por representar um resgate de posições históricas da Igreja romana e por seu retorno à missão espiritual de cuidar do Éden esquecido e sua criação. O mérito de sua publicação se deve a um papa que se revela heterodoxo em seus pensamentos religiosos e comprometido com a humanidade (Laudato Si, 2015).

A “Laudato Si” tem uma estrutura auspiciosa, segundo o professor Edgard de Assis Carvalho. Compõe-se de 246 tópicos distribuídos em seis capítulos interligados, cuja característica não linear leva o leitor aos dilemas, contradições, aporias e utopias da contemporaneidade68. Há capítulos que explicitam o evangelho da criação, outros que investem mais nas raízes da crise generalizada dos ecossistemas, mas são os três últimos que exigem maior atenção. O capítulo 4, conceitual e teórico, lança a proposição de uma ecologia integral e expressa condições do bem viver, da justiça e da ética. Os dois capítulos finais são propositivos, investem no diálogo intercultural e

67 O Pensamento Complexo é um conjunto de princípios proposto pelo antropólogo Edgar Morin, convidando à interligação de diferentes dimensões do real, religando saberes que a ortodoxia científica rejeita, obrigando as pessoas a desenvolver uma estratégia de pensamento que não seja redutora nem totalizante, mas reflexiva.

68 Excerto da entrevista concedida à Revista do Instituto Humanitas Unisinos, em agosto de 2015. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6042&secao=469

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interdisciplinar, na colaboração entre culturas e na imprescindibilidade da religação entre espiritualidade e saberes. A mensagem é clara, a “Laudato Si” revela que o trabalho isolado ou sem articulação é inócuo para cuidar e recuperar “a casa comum”. É mandatório unir saberes, religiões e culturas, mas, também, forças políticas, sociais, econômicas e tecnológicas de todo o planeta, de uma forma dialógica-dialética. Essa união representa o alicerce e os “tijolos” dessa grande tarefa que se apresenta doravante, a recuperação planetária e a reabilitação de Gaia. Entretanto, falta o “cimento para dar pega e consistência”, sem o que a construção será instável e ruirá. A massa aglutinante precisa ser preparada e parte de seus ingredientes elementares vem da conscientização ética da necessidade de um só mundo, da prática de um altruísmo universal e do resgate do mundo semi-invisível que está à nossa volta, formado pelos saberes e culturas milenares, pelos povos tradicionais que vivem em simbiose com a natureza e pelos visionários individuais e coletivos que têm se colocado a favor de todo o sistema vivo.

Etimologicamente a palavra ética vem do grego “ethos”, que significa aquilo que pertence ao “bom costume” ou “portador de caráter”, e atribui-se a ela sujeição a princípios universais. Difere da moral, que se fundamenta na obediência a costumes e hábitos herdados, enquanto a ética é guiada pela razão, embora sua prática se revele através de ações embasadas em conceitos de moralidade. Ética representa um tema de difícil compreensão, o que se justifica pela pluralidade de conceituações que procuram defini-la, mas é centrada nas ideias de Peter Singer69, que lhe dá um caráter prático, que serão discutidas aqui as contribuições de uma ética voltada para um só mundo e sua pertinência às relações entre Gaia e o homem. Para facilitar, Singer desconstrói algumas ideias sobre ética. Ética não é um sistema de grande nobreza teórica, mas inútil na prática, nem algo inteligível somente no contexto religioso, e muito menos é composta de preceitos relativos ou subjetivos. A ideia muito difundida que a ética deve ser relativizada à sociedade em que se vive, embora verdadeira em um sentido e falso em outro, favoreceu a linha de pensamento favorável ao relativismo ético. Produziu, como resultado, ideias dominantes em cada período da história, como a dos marxistas, para quem a ética de uma sociedade é imposta pela classe

69 Peter Albert David Singer é um filósofo e professor australiano. É professor na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos. Atua na área de ética prática, tratando questões de Ética em uma perspectiva utilitarista.

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econômica que a domina. O relativismo ou subjetivismo na ética leva a juízos éticos de consequências implausíveis, como o de sociedades que condenam a escravidão, e outras que a aceitam e que não consideram antiética sua prática (Singer, 2002).

A sociedade global, por sua dimensão e heterogeneidade, aliada aos problemas ambientais que enfrenta, necessita de uma ética que transcenda interesses e correntes particulares de pensamento, uma ética da globalização, uma ética de um só mundo, uma ética para a casa comum. Afinal, é cada vez mais difícil negar a ideia que o mundo está se tornando um só, pois, amiúde, os países têm se aproximado para tratar de questões mundiais, como comércio, alterações climáticas, terrorismo, pobreza, justiça, obrigando líderes a adotar uma abordagem maior do que interesses regionais e nacionais, o que exige uma perspectiva ética globalizada, em detrimento de éticas circunscritas ao interior das fronteiras regionais (Singer, 2004).

Algumas dimensões do contexto mundial que atingiram proporções sem precedentes e têm causado preocupações constantes à governos e sociedades reforçam a ideia de uma ética global. O terrorismo, por exemplo. Condenável por sua essência e resultados, a ampliação dos movimentos terroristas levou alguns governos, alvos de ataques a instituições civis e militares, a criar alianças internacionais, direcionadas a ações de inteligência e combate a grupos extremistas. O terrorismo acabou por produzir a nucleação de negociações e acordos interpaíses, ajudando a emergir uma questão ética fundamental: até que ponto líderes políticos devem restringir suas ações para a promoção dos interesses somente de seus representados e até que ponto devem incluir preocupações com o bem-estar das pessoas em todo o mundo? Esta questão pode ser ampliada para incluir outras apreensões globais: com os seres vivos de forma geral, com o meio ambiente e com o próprio planeta. E porque não as tornar marcos nas políticas nacionais, fomentando as relações entre países, de modo a facilitar ações corajosas e conjuntas para mitigar os problemas ambientais? A seu favor lembramos que além da casa comum que habitamos, não se pode

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desconsiderar o “Efeito Borboleta”70, que enfatiza a influência reciproca entre pessoas, comunidades e países, e a necessidade de se pensar em um só mundo, independentemente de etnias, credos, preferências, classes sociais e sistemas políticos. Será uma utopia?

Singer constrói sua proposta de uma ética de um só mundo nos desafiando a repensar as dimensões sociais, políticas, econômicas e científicas de um mundo globalizado a partir de quatro vetores fundamentais; uma só atmosfera, uma só economia, uma só lei e uma só comunidade. John Locke escreveu que “a terra e tudo o que ela contém é dado ao homem para sustento e conforto do seu ser, e o que ela contém pertence à humanidade em comum”, mas se mostrou ambíguo ao defender também o direito à propriedade privada, sempre que houvesse “suficiente e de igual qualidade para os demais”71. Este pensamento liberal tem norteado desde então o uso dos recursos naturais, independentemente de quem extrai e quanto se está a extrair da natureza, porque considera-se que os recursos são suficientes e de igual qualidade para os demais. É questionável, entretanto, quando se trata da atmosfera, recurso comum e cuja capacidade para absorver os gases emitidos pelo homem já é insatisfatória, o que coloca em discussão como distribuir esse direito de utilizá-la de forma justa entre todos.

As nações ricas se apossaram desse recurso de forma desproporcional às suas parcelas populacionais, criando riquezas ao longo dos 250 anos da revolução industrial, que beneficiaram predominantemente seus cidadãos. Com o restante da população mundial repartiram a degeneração atmosférica através da emissão de gases do efeito estufa, responsáveis pelo aquecimento global. Fica a pergunta: porque deverá alguém ter direito a uma parte maior da atmosfera, para absorver as emissões que produz? Não há justiça nem ética nisso, pois se a contaminação é compartilhada, a riqueza produzida por essa desigualdade no uso atmosférico não o é (Singer, 2004).

70 Criado pelo matemático americano Edward N. Lorenz afirma que o bater de asas de uma borboleta em Tóquio pode produzir uma tormenta em Nova York, que reforça o caráter dialógico dos fenômenos, que argumenta que os sistemas comportam em si tanto ordem, como desordem, que coexistem e dialogam permanentemente. 71 Escrita pelo filósofo inglês John Locke (1632 – 1704), ideólogo do liberalismo, em sua obra: “Segundo Tratado sobre o Governo”, publicado em 1690.

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Construir uma ética de um só mundo, como uma das condições para recuperar a sustentabilidade da vida, exige o compromisso político dos governos para um controle de emissões que dê direito a uma cota-parte igual per capita, restrita à capacidade de absorção da atmosfera, monitorada por órgãos independentes e indexada à projeção atual da ONU para o crescimento demográfico por país até 2050. Embora aparente ser excessivamente punitivo para os países desenvolvidos, não o é, pois estes podem suplementar suas necessidades de emissões ao comprar direitos de países mais pobres e menos poluidores, se colocando a favor da diminuição da pobreza e desigualdade econômica mundial. Para isso a economia deve se adequar também à ética de um só mundo, migrando para “uma só economia”.

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado em assembleia geral da ONU em 1966, em seu primeiro artigo afirma que: “Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente o seu estatuto político e asseguram livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. Em um mundo neoliberal soa como uma utopia, principalmente quando a ótica é econômica. Instituições globais como a Organização Mundial do Comércio (OMC), criada com a missão de facilitar, A ética de um só mundo exige que se cumpra ampliar e estabelecer as o que já foi acordado entre todos os países “regras do comércio” entre seus membros da OMC, e herdado do antigo GATT Estados membros, é (Acordo Geral de Tarifas e Comércio): amplamente criticada por se “As partes signatárias concordam em que há contrapor de forma flagrante ao necessidade de se desenvolver esforços artigo citado e já deu várias concretos no sentido de assegurar que as mostras disso. Entre as muitas partes contraentes menos desenvolvidas acusações que lhe são dirigidas garantirão uma parte do crescimento do comércio internacional proporcional às quatro se destacam quando o necessidades de seu desenvolvimento assunto é o desenvolvimento econômico” de um mundo sustentável e Alínea e do artigo XXXVI do acordo GATT, de 1994 ético: prioriza preocupações econômicas em detrimento de causas ambientais e do próprio ser humano; enfraquece a soberania nacional; não é democrática e transfere riqueza dos pobres aos ricos, opondo-se frontalmente a uma ética de um só mundo (Singer, 2004). Cabe

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à sociedade global, caso esteja comprometida com as causas ambientais e sociais, corrigir as distorções de organismos internacionais que regulam a economia global, favorecendo um desenvolvimento mais justo das economias pobres e estabelecendo requisitos mínimos aplicáveis a um mercado global livre, que enfatize questões como trabalho infantil e escravo, segurança no trabalho, proteção ambiental e ao bem-estar dos animais. Somente se alcançará tal “status” com um sistema de autoridade mundial, imune à pressão de interesses de grandes corporações e países ricos, imparcial na avalição de regimes ditatoriais que usam o poder para espoliar e vender os recursos nacionais, produzindo riquezas fruídas apenas por seus dirigentes, e que se coloque a favor de uma equidade econômica entre ricos e pobres. Exige-se uma só economia, mas que deve estar atrelada, sob pena de naufragar, a uma só lei.

As últimas três décadas testemunharam a disseminação de uma conscientização mundial sobre os problemas ambientais e sociais, que estimularam o nascimento e sedimentação de movimentos e propostas de mudança nos rumos do sistema capitalista como praticado. Essas novas forças exercem pressões sobre conceitos e ideias tradicionais de soberania nacional e geram subsídios para as transformações que se fazem prementes, incentivando a criação de uma economia mundial integrada, para a qual a ética de um Há indícios muito fortes de que a só mundo é imprescindível. Uma ética de atual taxa de extinção das um só mundo exige o repensar da soberania espécies ultrapassa em muito qualquer coisa que tenha sido do particular, em prol do bem-estar coletivo, informada por meio dos registros exige que questões ligadas à sobrevivência fósseis... Nunca antes uma única das espécies, segurança humana, ameaças espécie provocou mudanças tão de genocídio, crimes contra a humanidade, profundas nos habitats, na impactos ambientais planetários, composição e no clima do planeta.

chantagens militares e ameaças de Relatório da Royal Society of London intervenção de um país em outro, saiam do (Magurran e Dornelas, 2010) estreito limite das fronteiras nacionais e ascendam a níveis globais de avaliação e julgamento, sob o amparo de instituições neutras, idôneas, com prerrogativas para usar uma única e igualitária lei, o que requer, em contrapartida, aceitação, apoio e ação enérgica das nações (Singer, 2004). A concretização de uma só lei é difícil, assim como o são o uso democrático de uma só

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atmosfera e a migração para uma só economia, mas as circunstâncias atuais exigem a coragem de reconhecer que os paradigmas tradicionais não estão ajudando o planeta, e que novas formas de pensar e agir devem se agregar ao modo como vemos e governamos o mundo e seus recursos. Uma ética global somente poderá prevalecer quando o direito tradicional circunscrito aos limites da soberania transcenda sua miopia e evolua para o direito da comunidade global, orientado a proteger em vez de intervir. Tais mudanças requerem um executor central, posto que deveria ser ocupado pelas Nações Unidas, com o patrocínio de seus filiados. Estas discussões levam a reflexões sobre a quantidade e diversidade de variáveis que devem ser relevadas quando se procura entender como podemos construir um futuro mais auspicioso.

A globalização fomentou a ideia de uma “Aldeia Global”, termo criado pelo filósofo canadense Herbert Marshall McLuhan, com o intuito de observar que as tecnologias encurtaram distancias e transformaram o planeta em uma grande aldeia, com todos seus habitantes interligados. Diferentemente do senso comum sobre o que é uma comunidade tradicional, a aldeia global peca pela disparidade entre seus pares, estratificada em castas religiosas, culturais, políticas, econômicas e tecnológicas, o que joga dúvidas sobre a proposição. Basta observar que mais de um bilhão de pessoas vivem em condições de extrema pobreza, o que nos leva a duvidar da solidariedade entre membros dessa aldeia. Além destes, o sentimento de pertencimento a uma determinada nacionalidade ou etnia são tão fortes em algumas regiões, que dificultam a muitos perceber que fazemos parte de uma só comunidade planetária e que os problemas comuns estão por demais interligados para poder ser solucionados com soluções simplistas por um sistema de estados-nações, constituídos por cidadãos que atribuem lealdade quase que exclusiva a seus próprios países e não à ampla comunidade mundial (Singer, 2004).

Tomemos como exemplo o aquecimento global, o maior problema ambiental atual. Sua mitigação requer muito mais do que limitar emissões de gases do efeito estufa na atmosfera única e compartilhada, como acordado na 21ª Conferência do Clima (COP 21), de 2015 em Paris, mesmo porque se está tratando de um fenômeno complexo que não pode ser tratado com as ferramentas usuais, cartesianas e

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compartimentalizadas. Outro problema que exige soluções integradas é a pobreza mundial, cuja redução e mesmo eliminação é tão urgente quanto mitigar os impactos ambientais, pois estão intrinsecamente relacionados. Representam os primeiros passos para começar a construir uma só comunidade, cujo custo, entretanto, é muito menor do que os gastos militares atuais dos países mais poderosos do planeta. Os acontecimentos do século XXI têm mostrado a premência de uma só economia, uma só lei, uma só comunidade, enfim, uma só ética, que podem alterar favoravelmente, se implementadas, o futuro comum. O filósofo chinês Mozi, que viveu há 2.500 anos, preocupado com as guerras de seu tempo, nos mostrou um caminho ao colocar a seguinte questão: “Qual é o caminho para o amor universal e o benefício mútuo?”, à qual ele próprio respondeu: “É considerar os países dos outros como o nosso próprio país”72. Por trás de sua beleza poética se esconde um sentimento nobre, o altruísmo, esquecido pela maioria, em um mundo orientado ao consumismo, protecionismo e regionalismo. Matthieu Ricard73, com seu movimento por uma revolução do altruísmo, resgata esse pensamento e conclama a humanidade a engajar-se (Ricard, 2015).

A partir dos anos cinquenta iniciou-se uma nova era geológica que se convencionou chamar de Antropoceno, a era dos homens, marcada por uma deterioração acentuada no relacionamento entre Gaia e o homem. A insistência em um modelo de crescimento econômico ilimitado em um mundo de recursos limitados, a continuidade da fragmentação dos saberes, a polarização entre “incluídos e excluídos”, o aumento populacional humano em contraste com uma preocupante diminuição das espécies vivas e dos recursos naturais, a pauperização dos ecossistemas, entre outros fatores, oferecem um quadro desafiador ao homem, ainda inábil para entende-lo e enfrentá-lo adequadamente, pois insiste na utilização de métodos cartesianos e compartimentalizados para solucionar problemas complexos, o que exige a humildade de reconhecer, tal como o fez Sócrates: "[ἓν οἶδα ὅτι] οὐδὲν οἶδα" (o que sei é que nada sei). No oceano de ignorância que ainda cerca o homem

72 Citado por W.T.Chan no livro: A Source book in Chinese Philosophy, Princeton University Press: Princeton, 1963, p. 213 73 Monge budista e Ph.D. em genética molecular pelo Instituto Pasteur. Após completar sua tese de doutorado, em 1972, Ricard decidiu abandonar sua carreira científica e se concentrar na prática do Budismo Tibetano.

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a respeito de sua casa comum e seu A revolução espiritual que preconizo destino, tateando no escuro do não é uma revolução religiosa...nada conhecimento da natureza e seus tem a ver, tampouco, com qualquer processos, levantam-se vozes coisa mágica ou misteriosa. Pelo contrário, é uma reorientação radical, coerentes com mensagens de longe de nossas preocupações egoístas esperança, tais como os arautos de habituais, em benefício da outrora, a apontar caminhos na comunidade que é a nossa, de uma infinidade das bifurcações que se conduta que leva em conta ao mesmo abrem na jornada humana. Matthieu tempo que os nossos, os interesses dos outros. Ricard é certamente um deles, e

associa o altruísmo, “a preocupação Dalai Lama, do livro: Uma ética para o novo desinteressada com o bem do outro”, ao milênio – Sabedoria milenar para o mundo de hoje fio de Ariadne que permite ligar de forma harmoniosa a necessidade de crescimento econômico com a satisfação da vida, o resgate ecológico e o atendimento das carências do presente, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades.

...somos o principal agente de impacto na Terra...temos um potencial extraordinário para o bem, mas também um imenso poder para fazer o mal. Qualquer instrumento pode ser usado para construir ou destruir. Tudo depende da nossa motivação. Por isso, é ainda mais importante promover uma motivação altruísta em vez de egoísta... a humanidade ainda pode prosperar por 150 mil anos se mantivermos a mesma estabilidade climática como no Holoceno, nos últimos 10 mil anos. Mas isso depende de escolhermos uma simplicidade voluntária, crescer qualitativamente, não quantitativamente (Ricard, 201574)

As soluções para as alterações climáticas que presenciamos requerem mais do que o esforço por reduzir a emissão de gases do efeito estufa na atmosfera comum e compartilhada. Exige que o homem enfrente sua ignorância sobre a complexidade de Gaia e de si próprio, como Homo Psíquico que é. A revolução ricardiana do

74 Trecho de palestra conferida no TED Conference em fevereiro de 2015. Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/revista_oasis/171040/A-revolu%C3%A7%C3%A3o-do-altru%C3%ADsmo- Quando-a-vis%C3%A3o-do-outro-determina-os-rumos-da-nossa-vida.htm.

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altruísmo, espiritual em sua essência, porém, sem conotação religiosa, se lança em uma cruzada para resgatar o homem e recuperar a Terra. Junta-se aos demais esforços desenvolvidos por uma “inteligência coletiva”, semi-invisível e comprometida com a vida, para despertar a humanidade de sua letargia paradigmática, que confia demasiadamente no poder econômico e tecnológico como soluções únicas para os males que padece, mas que têm se mostrados inaptos para sua recuperação. Com Ricard o altruísmo transcende o indivíduo e passa a ser coletivo, imparcial, corajoso, lúcido, prudente e de uma benevolência incondicional com a totalidade dos seres, porém, suscetível de aprofundar-se a favor da individualidade, quando a compaixão se faz presente (Ricard, 2015).

A revolução do altruísmo convida à reflexão sobre a real possibilidade de realizar as coisas do mundo, aquelas que possam garantir a sobrevivência digna das gerações presentes e futuras, mas é preciso sedimentar o altruísmo. Como fazê-lo? Há não uma, mas várias respostas: proclamar que o altruísmo verdadeiro existe e pode ser cultivado dentro de cada um de nós; atrever-se a ensiná-lo nas escolas, agentes transformadores das novas gerações; ousar afirmar que a economia não pode ser mais orientada a enriquecimentos pontuais e pessoais, mas sim em benefício da coletividade planetária; contestar o Estado que se volta aos poderosos em detrimento de seus representados; desafiar a maneira como exploramos o planeta e levar a sério o destino de nossos descendentes, contestando veementemente o insight jocoso e provocativo de Grouxo Marx: “Porque eu me preocuparia com as gerações futuras? O que elas fizeram por mim? ”, e se indignando contra o pensamento infeliz do bilionário Steven Forbes: “Modificar nossos comportamentos por algo que vai acontecer daqui a cem anos é algo que eu diria, totalmente estranho”.

Os dois movimentos, a ética de um só mundo e o altruísmo possuem semelhanças. Ambos enfatizam a urgência da conscientização da interdependência de todas as coisas e a assimilação pelo homem dessa visão de mundo, de modo a transformar sua relação entre si e com o sistema natural. Esta reflexão contém elementos do pensamento complexo de Edgar Morin. Integrados, facilitariam a

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implantação de um dos objetivos ambiciosos de Ricard, uma economia global altruísta.

A economia deve estar a serviço da sociedade e não a sociedade a serviço da economia... uma economia é disfuncional quando aqueles que deram uma contribuição negativa à sociedade são os que mais se beneficiam... apropriando-se dos recursos naturais...enquanto seus atos colocaram a sociedade em dificuldade... é totalmente possível orientar de modo diferente o curso das coisas, desde que haja um mínimo de vontade popular e política. Mesmo no mundo econômico, o respeito aos valores humanos encarnados no altruísmo não é um sonho idealista, mas a expressão pragmática da melhor maneira de se atingir uma economia equitativa e uma harmonia sustentável (Ricard, 2015, p. 510).

Desenvolver uma economia altruísta, equitativa e uma harmonia sustentável exige cooperação coletiva e distribuição proporcional de responsabilidades, cabendo aos ricos as maiores, pois possuem os meios de reduzir a pobreza mundial, esse mal que persevera em meio a tanta abundância e que contribui para o aumento da degradação dos ecossistemas naturais e debilitação de Gaia. O economista e prêmio Nobel da Paz, Muhammad Yunus, criador do Grameen Bank, especializado em microcrédito para populações de baixa renda, declarou no Fórum Mundial de Davos, em 2010:

Não é necessário mudar a maneira de fazer negócios, basta mudar o objetivo almejado. Uma economia cujo objetivo seja apenas a busca do lucro é egoísta. Ela rebaixa a humanidade a uma única dimensão, a do dinheiro, o que significa ignorar nossa humanidade. E então existe a economia altruísta, cuja finalidade primeira é a de colocar-se a serviço da sociedade. É o que chamamos de “economia social”. A caridade pode ajudar de maneira momentânea e pontual, mas não tem efeito contínuo. Já a economia social pode ajudar a sociedade de forma sustentável (apud Ricard, 2015, p. 528)

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Uma economia altruísta, É imperativo e urgente que tomemos solidária e justa pode ser consciência das interações entre o homem construída com a oferta de crédito e a natureza, entre nossas economias e as grandes transformações que afetam o responsável às populações de planeta, ou seja, fundamentalmente, ao baixa renda; com a expansão do fato de pertencermos à biosfera. comércio justo, aquele que respeita Enquanto nos aproximamos dos limites as limitações e capacidade de que a Terra pode nos oferecer e suportar, devemos reconhecer que nosso bem-estar produtores; com a criação de futuro depende de nossa capacidade de bancos cooperativos, orientados a permanecermos abaixo desses limiares de atividades sociais e segurança. desenvolvimento sustentável; com Matthieu Ricard (Revolução do Altruísmo, 2015, a oferta de uma educação p. 588) transdisciplinar e compatível com as necessidades da humanidade e da biosfera; com o desenvolvimento de tecnologias e inovações a serviço do bem comum e com o incentivo à prática de uma solidariedade de massa que se alimente da generosidade intrínseca das pessoas e que seja direcionada a amparar uma Gaia debilitada, ajudando-a em sua missão pela vida (Ricard, 2015). São desafios que revelam a abrangência da revolução do altruísmo e nos remetem de volta à aventura da busca de nossa essência humana, como moradores da casa comum. Deve-se reconhecer que séculos de cartesianismo, iluminismo, capitalismo e tantos outros “ismos”, foram fundamentais para a construção da sociedade global mas também contribuíram para um darwinismo social75 preconceituoso e discriminador. Entretanto, não mais oferecem as respostas que a humanidade precisa para criar um futuro sustentável para seus descendentes. Estamos diante de uma grande bifurcação na jornada humana e a escolha errada da trajetória poderá trazer consequências indesejadas e mesmo irreversíveis no futuro.

A escolha do caminho apropriado está ligada a uma possível mudança de hábitos e práticas assimiladas durante séculos e que levaram a uma sociedade global que está longe de ser sábia. Devemos repensá-la, mas o tempo de que dispomos para

75 Pensamento sociológico do final do século XIX e começo do XX, tentava explicar a evolução da sociedade humana se baseando na teoria da evolução proposta por Charles Darwin. Preconceituoso, admitia que existiam sociedades humanas superiores a outras, e que estas deveriam "dominar" as inferiores com o objetivo de "civilizá-las" e ajudá-las no seu "desenvolvimento".

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as transformações urgentes que o planeta necessita é limitado. O desafio é imenso, pois uma sociedade humana sábia deve almejar a felicidade das pessoas; ter em conta as inúmeras necessidades presentes; garantir a qualidade de vida das gerações futuras; combater desigualdades e reverter a degradação do planeta. Deve ter como aspiração não o crescimento econômico, medido pelos frios números do PIB nacional e que está longe de representar o bem-estar individual e coletivo, mas sim a “harmonia sustentável”, termo criado por Ricard, para designar o destino das gerações futuras, que se fundamenta em um crescimento a partir de interações entre cooperação e altruísmo, de onde nascerão novos critérios de prosperidade: satisfação de vida e qualidade do meio ambiente, que se juntarão aos indicadores econômicos já largamente utilizados. Não foi por acaso que ele utilizou o termo revolução em sua obra, ciente da grandeza das mudanças que sua proposta apresenta e do difícil caminho para reverter as mazelas que o homem vem criando para a vida planetária. Será que somos capazes de construir uma tal sociedade? Mais do que isso, acreditamos que já está sendo edificada, pois movimentos em prol de Gaia, entre os quais se integra a revolução do altruísmo, já estão em curso no ambiente global, não sendo meras proposições teóricas.

Thomas Kuhn entendeu o conflito entre defensores de um conjunto de conhecimentos e práticas dominantes e outro que procura substituí-lo, pois traz novas perspectivas que explicam melhor a realidade dos fenômenos pertinentes ao objeto estudado. Usou o termo paradigma, cuja origem é a palavra grega paradeigma que significa modelo ou padrão, para designar realizações científicas que geram modelos mentais os quais, por determinado período, orientam o desenvolvimento posterior de novos conhecimentos dentro do contexto estudado. O movimento de substituição se inicia quando anomalias no paradigma dominante se multiplicam e surge uma nova proposta paradigmática. Instala-se um período de transição com discussões e divergências entre um e outro. Quando um novo paradigma repõe o antigo, ocorre aquilo que Kuhn chama de revolução científica (Kuhn, 2013). O conceito de paradigma é perfeitamente aplicável e coerente com o embate atual que se verifica entre o mundo capitalista e os defensores de uma nova visão para o uso dos recursos naturais e a construção do futuro comum. O sistema mundo dominante tem recebido amplas críticas por sua atuação e consequências que produz no meio ambiente, mas resiste

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em aceitar e encaminhar as mudanças necessárias, com a amplitude que o planeta precisa. A favor de um novo paradigma, ecológico e socialmente correto, alimentado por novos conhecimentos científicos, se coloca a esperança por um mundo melhor. Sabe que ações coletivas de mudança são possíveis e efetivas, desde que alimentadas pela transmutação do ser, elemento fundamental no processo transformador.

Na conjunção de esforços coletivos para a construção de um futuro auspicioso, há outro aliado que, embora pouco perceptível, coexiste com o sistema mundo dominante e merece atenção. Trata-se de um mundo semi-invisível, mas real, formado pelas culturas milenares construídas sobre o respeito e simbiose com a grande mãe; pelos conhecimentos que fogem à fragmentação e ilusão do antropocentrismo; pelos povos e comunidades tradicionais que não abandonaram Gaia e continuam a reverenciá-la como mãe e nutridora; pelos visionários que se mostram altruístas com seus irmãos humanos e não humanos; pelas organizações que nos desafiam a repensar a condição humana e por todos os seres cônscios de seu papel perante o planeta e Gaia. Esse mundo, alimentado pelo sentimento de pertencimento à casa comum e pela urgência de recuperar uma biosfera pauperizada e doente, se une aos demais movimentos congêneres para aumentar o potencial nucleador das reações que podem proporcionar uma Terra sustentável para as gerações futuras, se contrapondo às projeções pessimistas que, infelizmente, se desenham com a continuidade do sistema mundo atual.

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UM MUNDO SEMI-INVISÍVEL

“ como podes comprar ou vender o cÉu, o calor da terra?

Tal ideia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do resplendor da água, como então podes comprá-los ?...... De uma coisa sabemos. A terra não pertence ao homem: é o homem que pertence à terra, disso temos certeza. Todas as coisas estão interligadas, como o sangue que une uma família. Tudo está relacionado entre si. Tudo quanto agride a terra, agride os filhos da terra. Não foi o homem quem teceu a trama da vida: ele é meramente um fio da mesma. Tudo o que ele fizer à trama,

a si prÓprio fará ”

Cacique seattle 76

“ o essencial É invisível aos olhos, e sÓ se pode ver com o coração ”

saint exupéry - o pequeno príncipe

Em uma conferência proferida no final da década de 50 o filósofo austríaco Karl Popper (1902–1994) discorreu sobre crenças do Ocidente, ocasião em que observou que muitas pessoas acreditavam ser uma fraqueza ocidental não ter uma ideia unificada, sustentadora, uma crença unificada que pudesse se contrapor à religião comunista do Oriente (Popper, 2006). Popper refutou essa visão que considerou falsa e defendeu que o Ocidente devia se orgulhar do fato de não ter uma só ideia, mas muitas, boas e ruins, de não ter uma só crença, uma só religião, mas muitas, boas e ruins, o que caracterizava a força extraordinária da cultura e civilização ocidental. Uma só ideia, uma só crença, uma só religião, fariam o Ocidente capitular a um totalitarismo

76 Trecho de carta atribuída ao chefe Seattle dos índios norte-americanos dwamish, em resposta ao presidente dos EUA, Franklin Pearce, em 1855, sobre a intenção do governo americano em comprar terras indígenas de seu povo.

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destruidor: “aqueles entusiastas bem-intencionados que têm o desejo e a necessidade de unificar o Ocidente sob a liderança de uma ideia fascinante não sabem o que estão fazendo” (Popper, 2006, p. 273). A economia não se curvou a essa reflexão popperiana e o capitalismo tornou-se o credo econômico hegemônico do planeta. Contaminou crenças ocidentais e orientais e estendeu suas teias sobre o tecido social e político do orbe, alijando a segundo plano outros postulantes. A civilização ocidental recebeu de herança da cultura racional e democrática helênica o sentimento de rejeição natural à arbitrariedade, à opressão, à violência, e a reação a esse estado de coisas. É esse espírito que alimenta e mantém vivo o mundo semi-invisível que se contrapõe a um modelo global produtivista e consumista, orientado ao lucro e crescimento ilimitado em um planeta limitado. Esse mundo tem consciência de Gaia, a respeita e alia forças para que ela cumpra sua missão.

Se pensasse direito, o Papalagui (homem branco) saberia que coisa alguma que não sejamos capazes de segurar nos pertence; saberia que, no fundo, nada há que possamos segurar. E também veria que se Deus nos deu a sua grande casa é para que todos nela encontrassem lugar e alegria. E ela é bastante grande, tem para todos um lugarzinho claro, uma alegriazinha; para todos existe certamente onde ficar debaixo da palmeira, um lugar onde colocar os pés, onde parar. Como é que Deus havia de esquecer um dos seus filhos! E, no entanto, há tantos que procuram o lugarzinho que Deus lhes destinou! (Scheurmann, 1999, p. 56)

Esse mundo semi-invisível se revela como uma rede de significados com duas arquiteturas, uma mental, que interliga culturas e religiões milenares, algumas transmitidas pela tradição oral, que prezam o legado do pensamento crítico e dialógico, a livre discussão e a liberdade política; e outra, concreta, que reúne de um lado, pessoas e organizações livres e visionárias, comprometidas com o futuro comum, que percebem o homem como somente mais um componente na teia da vida,

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e de outro, povos e comunidades tradicionais, que vivem em intimidade respeitosa com a natureza, mas que são menosprezados pela grande mídia.

A Antropologia colaborou para resgatar a cultura desses povos autóctones. Engendrou uma nova corrente, a Antropologia Ecológica, com a missão de apoiar a construção de uma nova cultura ecológica coerente com as necessidades da contemporaneidade e com os esforços para o desenvolvimento de uma sociedade sustentável. Aliada à Ecologia, estimulou o diálogo entre homem e natureza, pré- requisito para a construção de uma nova cultura, ambientalmente responsável (Silva Jr., 2013). Com ela, o ambiente natural foi definitivamente incorporado na Antropologia e se amplificou o resgate da cultura dos povos nativos. Posteriormente, a ênfase da Antropologia Ecológica passou a ser o estudo de estratégias adaptativas específicas desses povos diante de eventos do meio ambiente, a partir de vetores históricos, ambientais, comportamentais e socioeconômicos. Transcendeu a visão conservadora ao exercitar o olhar a partir da perspectiva do outro, pelo exercício da alteridade, evitando posturas interpretativas eurocêntricas, tão comuns no campo antropológico tradicional, que primam por ofuscar o fato científico de que as concepções ocidentais somente representam uma possível realidade em um campo de possibilidades. O olhar antropológico enriquecido pela contribuição ecológica pode contribuir para o exercício crítico de reflexão sobre a postura ocidental de agir sobre o mundo (Silva Jr., 2013).

Essas reflexões reforçam a urgência de se conceber de uma nova cultura ecológica, coletiva, ética, altruísta, cientificamente embasada, ambientalmente correta, como condição “sine qua non” para construir uma jornada auspiciosa para a humanidade e os demais seres vivos. Precisa de sementes e um ambiente nutriente. A herança cultural e religiosa dos povos que aprenderam a viver em harmonia com Gaia é uma semente e o mundo semi-invisível o meio que a nutre. Esta cultura ecológica não deve se deixar influenciar pelo sistema mundo dominante, para não ser subjugada e distorcida. Deve produzir alterações no modo como gerenciamos o planeta, nas relações sociais vigentes e nas relações do homem com o sistema vivo (Rivera, 2010). Se conseguir vingar poderá se disseminar pelo globo e contribuirá para uma nova consciência ecológica e se converterá no embrião para a missão de

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recuperar a casa comum. O trabalho é complexo e exige cuidado, visto que uma cultura ecológica mal desenvolvida pode apontar para soluções que privilegiem a sustentabilidade ecológica, mas que, paradoxalmente, crie insustentabilidade para minorias, marginalizando pequenos produtores, camponeses, pescadores, além de alijar trabalhadores rurais de suas terras. Já se assistiu a isso anteriormente.

Essa nova cultura não é utópica, já está sendo construída. Iniciou-se com a percepção de nossa interdependência com a grande mãe e do nosso papel neural na teia da vida. É um processo de múltiplas origens, alimentado pelas heranças culturais e religiosas dos antepassados, transmitidas pela tradição oral e escrita. Essa nova cultura vai se consubstanciando como fruto de aprendizados permeados de incertezas, de ordem e desordem, de erros e acertos, de idas e vindas, que delinearam as relações entre os povos e o meio ambiente, em todas as geografias e épocas. Que tradições culturais são essas que a alimentam? Embasadas em uma relação profunda e íntima do homem com a natureza, provem dos quatro continentes. Os aborígenes australianos contribuíram com a crença que a união com a natureza era uma religião, e os nomes de seus clãs, identificados através de totens, refletiam o respeito pelos animais e plantas. Sua cultura caracterizava-se por uma íntima união com os seres vivos e a natureza, que consideravam como um ser superior. O homem deve honrar a natureza em todas as suas ações e partilhá-la com os demais seres, pois todos são indispensáveis. A Lua era um ser masculino, o Sol feminino, e sem este não era possível a vida na Terra.

Na cosmogonia dos bantos africanos tudo no universo está interligado em uma grande teia. O homem africano se reconhece como parte integrante do Universo e estabelece uma relação profunda com a Natureza através dos ritos e rituais

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específicos, nos quais a dimensão religiosa está sempre presente É através da relação homem/natureza que o africano-banto integra sua existência com o ser Supremo, Nzambi (Deus), com Bazimu (os espíritos), com Banthu (os seres humanos), com Pinhama, (os animais), com os vegetais e os minerais, para o seu equilíbrio e harmonia na Natureza e no Universo. Acredita que a estrutura de cada ser e sua organização constituem uma unidade que é parte total da unidade da natureza e consequentemente do Cosmos. Um dos sentidos profundos dos africanos é fazer da natureza um espaço de residência humana e de cultura, para viver de maneira durável, harmoniosa e em equilíbrio, centrando os seus esforços para se integrar a ela e, assim, constituir uma única experiência no Universo (Domingos, 2011).

O xintoísmo, religião criada no Japão no século VI, é formada por uma série de lendas e mitos que explicam a origem do mundo e da vida. Baseada no respeito e culto da natureza, tem a relação homem-natureza como seu ponto central. É uma crença panteísta, onde todos os elementos são Deus, que integra as substâncias, forças e leis da natureza. Cultua vários deuses (kami), cada um responsável por um elemento específico da natureza e do Cosmos. Os kamis (deuses) podem ter as mais variadas formas, desde seres humanos, animais, tempestades, pedras, rios, estrelas, etc. Os rituais xintoístas são orientados a se alcançar um equilíbrio entre o ser humano e a natureza, sua guia e parceira, que exige do primeiro a purificação do corpo e da alma. A visão xintoísta de conexão e intimidade com a natureza se opõe ao comportamento do homem ocidental, que enxerga as forças naturais como adversárias, lutando e tentando dominá-las e subjugá-las77.

Na América do Norte, os navajos, um dos mais numerosos povos indígenas locais, buscavam, através de seus ritos religiosos, a harmonia entre homens e a natureza. Cultuavam um panteão navajo, com grandes e pequenos deuses, sem hierarquia definida. Suas cerimonias e cantos eram direcionadas aos deuses, com a finalidade de persuadi-los a outorgar dádivas à humanidade, banir o mal e restaurar a

77 Conteúdo obtido a partir de: Religião-Xintoísmo, disponível em http://aikikai.org.br/site.php?pagina=Xintoismo.html. Acesso em 16/11/2016

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harmonia natural. Rejeitavam o “ Dizem que nós, navajos não temos um Deus. Não é verdade. Nós não o chamamos conceito de religião para suas assim, porque ele é desconhecido. Ele é crenças e ritos, pois o simplesmente o Poder Desconhecido. Nós o associavam com a imposição adoramos através de sua criação. Nos dogmática da religião dos sentimos insignificantes para abordá-lo em brancos e sua crença na nossas orações porque ele é incompreensível ao homem. A Natureza alimenta nossas salvação espiritual em um inspirações e assim nos aproximamos dele mundo distante do meio através do que está ao nosso redor e dentro ambiente terrestre. Entendiam da compreensão humana. Acreditamos que o universo como um todo esse grande poder desconhecido está em integrado, no qual todas as todos os lugares de sua criação. Todas as formas da criação têm o espírito inteligente coisas tinham lugar próprio e do Criador em si e não podemos deixar de único e se relacionavam entre reverenciá-las. si. Homens, animais, plantas e

Do artista e professor navajo Carl Gorman (Pierce, montanhas, eram componentes 1995, p. 30) harmônicos do todo e um princípio de reciprocidade governava as ações e pensamentos de todas as coisas vivas, da menor até a maior, da mais simples à mais complexas, e cabia ao homem a responsabilidade de manter o equilíbrio do sistema natural (Pierce, 1995).

Na religião Yanomami, povo indígena sul-americano, a palavra urihi designa tanto a terra, como a floresta. Yanomae thëpë urihipë significa “terra-floresta dos homens”. É a terra que Omama, o criador do mundo e da sociedade Yanomami, confiou a este povo, para que a povoassem e protegessem por todas as gerações com a ajuda dos xapiri, as imagens dos espíritos dos seres primitivos, que são convidados pelos xamãs a dançar, a fim de que a ordem do universo seja mantida e as pessoas sejam curadas. Acreditam que o “mundo natural” é uma ampla rede de inter-relações e trocas entre agentes, humanos ou não-humanos. Os yanomamis estão sempre interagindo com a natureza e que, portanto, não pode se manter intocável, pois dela depende a sobrevivência de seu povo. Apesar disso, têm consciência da sua dependência, não apenas física, mas sobretudo cosmológica, em relação ao meio ambiente e, ao longo de sua história foram desenvolvendo formas de manejo dos recursos naturais que, não somente têm se mostrado fundamentais para

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a preservação da cobertura florestal onde vivem, como são um legado ecológico valioso para as futuras gerações (Kopenawa e Albert, 2015). Davi Kopenawa, xamã e líder yanomami, explica o conceito de ecologia de seu povo:

Na floresta, a ecologia somos nós, os humanos. Mas são também, tanto quanto nós, os xapiri, os animais, as árvores, os rios, os peixes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo o que veio à existência na floresta, longe dos brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As palavras da ecologia são nossas antigas palavras, as que Omama (o demiurgo yanomami) deu a nossos ancestrais. Os xapiri defendem a floresta desde que ela existe. Sempre estiveram do lado de nossos antepassados, que por isso nunca a devastaram. Ela continua bem viva, não é? Os brancos, que antigamente ignoravam essas coisas, estão agora começando a entender. É por isso que alguns deles inventaram novas palavras para proteger a floresta. Agora dizem que são a gente da ecologia porque estão preocupados, porque sua terra está ficando cada vez mais quente... Somos habitantes da floresta. Nascemos no centro da ecologia e lá crescemos (Kopenawa e Albert, 2015, p. 16 78).

Nem todos os povos autóctones, entretanto, se relacionavam bem com Gaia. Os rapanui, antigos habitantes de Rapa-Nui, a ilha da Pascoa no Pacífico Sul, formaram uma sociedade grande e próspera que entrou em colapso. Estudos recentes apontam que a colonização da ilha se iniciou por volta do ano 1.200, através de um pequeno grupo de colonizadores da Polinésia. Por milhares de anos Rapa-Nui foi recoberta por uma grande floresta de palmeiras, mas uma combinação de fatores como crescimento demográfico, aumento da população de roedores trazidos pelos colonizadores e desmatamento sem controle, para atender necessidades religiosas e sociais, causaram a decadência desta civilização (Hunt e Lipo, 2007). Se bem que o definhamento deste povo não possa ser atribuído somente a fatores antropocêntricos, não se pode descartar que a ação humana teve sua parcela de responsabilidade. Embora sua civilização praticamente tenha desaparecido, deixou um importante legado sobre a imperiosidade da conscientização ecológica.

78 Excerto do prefácio do livro: A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami, feito por Eduardo Viveiros de Castro.

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Culturas milenares construídas a partir do convívio com a natureza ainda são encontradas entre os povos e comunidades tradicionais79. Atualmente, existem mais de 370 milhões de indivíduos pertencentes a estes clãs, distribuídos pelos cinco continentes e que ocupam os principais biomas do planeta. Segundo a ONG WWF (World Wild Fund for Nature) estes povos e comunidades estão entre os mais importantes administradores dos recursos naturais e são elementos cruciais para a própria missão desta ONG, que é a de construir um futuro onde as necessidades humanas se harmonizem com a natureza (WWF, 2015). Contribuem para a manutenção de alguns dos mais frágeis ecossistemas, embora sejam pressionados pelas mesmas forças que ameaçam o meio ambiente: atividade industriais de extração e desenvolvimento de infraestruturas. São descendentes dos antigos habitantes dos territórios, desenvolvem atividades ligadas à agricultura, à pesca, ao extrativismo e ao artesanato. Praticam formas de produção rural de pequena escala e intensivas em trabalho, com consumo reduzido de energia. Identificam-se estreitamente com seu território, com atitudes não-materialistas e de proteção à terra e aos recursos naturais, com os quais mantém um intercâmbio simbólico (Toledo, 2001). Reverenciam a terra e a natureza que para eles apresentam qualidades sagradas estranhas ao pensamento ocidentalizado. Consideram a natureza como a fonte primaria de vida, que nutre, mantém e ensina, e é a base de sua cultura e identidade étnica. Sentem-se intimamente ligados ao mundo natural, sentimento que inclui os demais seres, vivos e não vivos. Em sua cosmovisão cada ato de apropriação da natureza deve ser negociado com todas as coisas existentes através de trocas simbólicas. Veem-se como um elo na teia da vida participando de uma comunidade mais ampla de seres vivos regulados por um conjunto único e totalizador de regras de conduta.

O mundo semi-invisível não se restringe a esses povos e comunidades, engloba também indivíduos, cujos comportamentos, embora sejam frequentemente embasados no mesmo racionalismo e conhecimentos que alimentam o sistema mundo dominante, divergem deste por atitudes altruístas e por sua visão da Terra

79 Denominam-se povos e comunidades tradicionais grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas transmitidas pela tradição.

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como a casa comum. Suas ações, geralmente relegadas a segundo plano nas mídias e meios de divulgação, são propositivas, conscientizadoras, integradoras, responsáveis, focadas no bem-estar planetário.

Andrew Carnegie, industrial americano, foi um dos integrantes dessa causa comum. Apesar de ter angariado ao longo de sua vida uma conotação negativa como empregador, tinha um lema: “o homem que morre rico morre desonrado”, o que o levou a doar 350 milhões de dólares em vida (cerca de US$ 7 bilhões atualmente) em obras sociais e construção de milhares de bibliotecas públicas gratuitas nos Estados Unidos. Bill Gates comprometeu 95% de sua fortuna para o combate a doenças e ao analfabetismo nos países carentes. Warren Buffet, um dos homens mais ricos do planeta, anunciou sua intenção de doar €$ 28 bilhões, o que equivale a mais de 80% de sua fortuna, a organizações beneficentes. O megainvestidor George Soros, desde 1979, já doou mais de 8 bilhões de dólares a causas humanitárias em mais de 70 países da Europa, Ásia, África e América Latina, destinados à promoção dos direitos humanos, da democracia, da justiça, da educação e da saúde pública. Chuck Feeney, bilionário americano de origem irlandesa e dono da rede de lojas duty free, já doou de forma anônima mais de US$ 6,2 bilhões destinados a projetos ao redor do mundo que privilegiam educação, ciência, saúde e direitos humanos. Pierre Omidyar, fundador da E-Bay, e sua esposa criaram uma fundação, a Omidyar Network, que financia projetos de microcrédito em Bangladesh.

Bangladesh contribuiu também com o economista bengali Muhammad Yunus, ganhador do prêmio Nobel da Paz, que fundou o Grameen Bank, um banco voltado ao microcrédito para famílias pobres, com o objetivo de fomentar novos empreendimentos para a população de baixa renda. O Grameen Bank já atendeu mais de 8,5 milhões de pessoas e se tornou um modelo para outros países. O arquiteto naval Fazle Hasan Abed, nascido em Bangladesh, criou em 1971 o BRAC (Bangladesh Rural Advancement Committee), atualmente a maior ONG mundial, que já ajudou mais de 110 milhões de pessoas em 69 mil vilarejos de países carentes, oferendo microcrédito, educação, gestão de água potável, melhoria de higiene, etc. (Ricard, 2015). Estes são alguns dos inúmeros filantropos que não deixam morrer a

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esperança de que construir um mundo sustentável e justo não é uma utopia. Suas ações altruístas e visionárias se colocam a favor do bem comum, inspiram atitudes similares e colaboram para a sustentabilidade planetária.

Outros movimentos se aliam ao mundo semi-invisível. São as ONG´s (Organizações Não Governamentais), forças que isoladamente seriam pouco efetivas face a tantos desafios prementes e, por isso, atuam em rede. Sobre elas se refere o economista francês Jacques Attali, autor da obra: Uma Breve História do Futuro: “Estamos nos dirigindo para um aumento formidável de uma economia do altruísmo com as organizações não governamentais, que em minha opinião, vão dominar o mundo, um dia”80. Atuam em uma ampla gama de áreas de interesse e seu papel é relevante para o futuro planetário, o que se justifica, primeiro por incursões em campos tão distintos como direitos humanos, projetos sociais, saúde, educação e proteção ao ambiente, e porque são orientadas ao bem comum, se contrapondo às organizações que buscam o lucro com meta prioritária. São flexíveis, não burocráticas, usam a criatividade de seus recursos humanos para solucionar os problemas complexos de nossa época e aceitam maiores riscos ao divulgar suas ideias e praticar sua missão individual (Viana, 2015). Muitas tem uma missão nobre, a defesa dos direitos humanos em uma sociedade intolerante, como a Anistia Internacional, cujo foco é o reconhecimento dos direitos humanos para todos, a CDF (Children Defense Fund), organização da ONU pela defesa das crianças, a Human Rights Watch voltada a investigar e expor violações dos direitos humanos, a HRWF (Human Rights Without Frontiers), engajada na promoção da democracia e do regime de direito a nível nacional e internacional, e a NAACP (National Association for the Advancement of Colored People), que busca assegurar a qualidade política, educacional, social e econômica dos direitos das pessoas e eliminar o ódio e a discriminação racial. Incontáveis, distribuem-se pelos quatro cantos do mundo e formam uma grande rede que trabalha por uma conscientização coletiva sobre nossos problemas e a busca de soluções.

80 Entrevista concedida por Jaqcques Attali ao site 20.minutes.fr em 06 de novembro de 2006. Disponível em http://www.20minutes.fr/argument/121872-jacques-attali-raconte-soixante-prochaines-annees-breve- histoire-avenir-fayard-emergence-hyperempire-construit-autour-ordre-marchand-deshumanise-lequel- debouche-hyperconflit-issu-incapacite-pays. Acesso em 21 de novembro de 2016.

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Um segmento particular das ONGs é formado por organizações combativas e comprometidas com o meio ambiente, cujo campo de trabalho é a reversão das preocupantes projeções do quadro ambiental. Atuam através de estratégias de conscientização, educação, monitoramento e controle, e com ações coercitivas contra quem agride o ambiente natural, enfrentando muitas vezes o poder econômico e político, o que lhes têm granjeado apoio de cidadãos conscientes e antipatia de quem vê seus interesses ameaçados. São milhares ao redor do orbe, algumas mais conhecidas e reconhecidas, como o Greenpeace; World Wild Fund for Nature; Sierra Club, a mais antiga; Audubon; EarthFirst: Seashepherd; Rainforest Action Network e Mata Atlântica. Em meio a tal pluralidade, duas serão colocadas em foco, Navdania e WWI, não somente pela sua atuação diferenciada, como por desfrutarem da admiração deste autor. Servirão como exemplos da potencialidade destas organizações para o esforço coletivo de se construir um futuro auspicioso.

A ONG indiana Navdania, foi fundada pela física e ativista ambiental, Dra. Vandana Shiva. Navdania, que "Sua missão é provar que o amor pela significa “nove sementes”, Terra e pelas coisas da Terra é possível sem simbolizando a proteção da materialismo, um amor sem ganância ... diversidade cultural e biológica, é Eu imploro que você não seja corrompido uma rede de produtores pelas forças vulgares e poderosas do orgânicos e mundo, incitando-o ao acúmulo sem limites, que é vazio e sem fim. conservadores/disseminadores Aprecie o ideal da perfeição, e dedique a de sementes de plantas nativas, isso todo o seu trabalho e a sua vida. que atinge 18 estados da Índia. Embora amemos as coisas da Terra, elas Está envolvida ativamente no não podem feri-lo. É a você que cabe resgate do conhecimento e trazer o Céu à Terra e dar alma às coisas."

cultura dos povos tradicionais, na Poema de Rabindranath Tagore, transcrito da defesa do direito alimentar face à publicação da ONG Navdanya: The Young Ecologist Initiative, p. 47 globalização e às mudanças ambientais, na conscientização sobre os riscos da engenharia genética e no uso de sementes transgênicas81. As nove sementes simbolizam também um presente da

81 Transcrições do site da ONG Navdanya - http://www.navdanya.org/. Acesso em 24 de nov. 2016

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vida, pois ao se conservar sementes, se preserva a biodiversidade, se resguarda o conhecimento milenar do manejo das sementes, se protege a agricultura natural que tão bem serviu a tantas gerações e se preserva a sustentabilidade nas relações entre o homem e a natureza. Navdanya já treinou mais de 5.000 agricultores no manejo responsável do uso da terra e em práticas de agricultura orgânica sustentável. Sustenta um centro educacional, o Bija Vidyapeeth (Centro de Aprendizado de Sementes) que, assim como o Schumacher College da Inglaterra, com o qual mantém estreita parceira, foi inspirado na obra do pensador polímata bengali Rabindranath Tagore (1861–1941), ganhador do Nobel de Literatura de 1913 e chamado por Gandhi de "grande mestre". O Bija Vidyapeeth é destinado a práticas educacionais orgânicas e aprendizados sobre a natureza e seus professores são os agricultores a ela associados.

O WWI (World Watch Institute), fundado pelo ambientalista Lester R. Brown, trabalha para acelerar a transição para um mundo sustentável que atenda às necessidades humanas através de pesquisas e divulgação que inspirem ações. Sua missão central é facilitar o acesso universal à energia renovável e alimentação saudável, e limitar urgentemente o crescimento populacional. Destaca-se na promoção de uma sociedade ambientalmente sustentável, onde as necessidades humanas sejam atendidas sem ameaças à saúde da natureza. Atua em três frentes: Clima & Energia; Alimentos & Agricultura e Meio Ambiente & Sociedade e busca atingir seus objetivos através de pesquisas interdisciplinares e apolíticas, montando cenários sobre as emergentes questões globais, que são usadas por governos, universidades, empresas e ONG’s, e divulgadas através de publicações, editadas em cerca de 20 idiomas. Possui uma rede de parceiros em 25 países, suas publicações primam pela qualidade de conteúdo e transparência, resultados que a transformaram em uma referência global na educação e conscientização de governos, organizações e sociedade sobre os graves problemas ambientais e sociais82.

As discussões e reflexões dessa Jornada Presente podem suscitar um viés polarizador. O leitor menos envolvido com questões ecológicas e de sustentabilidade

82 Transcrições do site da ONG WWI - http://www.worldwatch.org. Acesso em 24 de nov. 2016

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pode ser induzido a concluir que o futuro da humanidade será decidido entre duas grandes forças: um sistema mundo capitalista e uma rede de movimentos e organizações que defendem mudanças sociais, políticas e econômicas, necessárias acreditam, para se criar um mundo verdadeiramente sustentável. Tal dedução não foge ao reducionismo que se procura combater neste trabalho, pois atribui a fenômenos de tamanha complexidade, como os que moldam o futuro da Terra, uma visão simplificadora e compartimentalizada que alimenta ainda as ciências. Essa dicotomia é um ledo engano, pois equivoca-se quem se decidir por uma das duas. Não haverá lado ganhador e se o houver, perderá a Terra. Ambas as forças deverão participar da construção de um futuro sustentável.

Ilya Prigogine pontuou bem sobre este assunto ao questionar se o futuro é dado ou está em perpétua construção, ao que ele mesmo respondeu ao afirmar que a questão do futuro está na encruzilhada do problema do tempo e do conhecimento, o que ainda não entendemos, pois a complexidade da jornada humana foge à nossa compreensão e não está ao alcance do determinismo que vem alimentando nossas crenças (Prigogine, 2011). Há mais variáveis envolvidas na jornada humana do que uma análise simplificadora pode supor, o que exige um tratamento complexo e transdisciplinar. Com este espírito, a continuidade desta tese será alimentada por novas abordagens: estudos de possíveis cenários futuros, produzidos por instituições fidedignas; os conceitos da física do não-equilíbrio orientados a processos e incertezas; a complexidade; a percepção do ser humano como “homo psíquico”, visto através do inconsciente e seus arquétipos, sobre os quais o controle egóico é limitado. Representam outros desafios nesta cruzada.

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desafios a se enfrentar nesta cruzada.

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Futuro. Eterno desconhecido, que se constrói pela tessitura de uma rede entrelaçada de desejos, ações, acontecimentos e possibilidades. Ajudar a criar o futuro é uma necessidade humana e também desafio imenso, por sua complexidade e incertezas. É disto que trata esta terceira e última parte da tese, do futuro da jornada da humanidade, com suas dúvidas e desafios.

Há um ceticismo generalizado sobre o futuro humano, alimentado por uma profusão de notícias sobre mudanças climáticas e “ O futuro é desigualdades sociais e econômicas, nem sempre construído pelas orientadas a conscientizar sobre a urgência de ações nossas decisões diárias, inconstantes efetivas para mitigar as dificuldades atuais. Nesse e mutáveis, e cada cenário de mudanças ambientais e sociais o homem tem evento influencia papel ímpar. É seu dever atender as necessidades todos os outros ” presentes sem olvidar as necessidades das próximas Alvin Tofller gerações que herdarão a Terra. Ajudar a construção de um futuro auspicioso para si e os demais seres é imprescindível, e ele tem a competência para iniciá-la, mas deve transformar-se para prossegui-la.

Novos conhecimentos da complexidade do mundo, nascidos na física e disseminados a outras ciências, mostram a inadequação das ciências tradicionais em resolver os problemas atuais. A compreensão do mundo como uma rede de processos interdependentes, erráticos, onde não há mais certezas e somente probabilidades, e que se afasta do determinismo e compartimentalização defendidos durante séculos, permite repensar os caminhos que a humanidade vem seguindo e prepará-la melhor para os desafios que se antepõem na jornada humana. No grave quadro social e planetário, caracterizado por profundas instabilidades, bifurcações se formam, que podem ou não levar a catástrofes. A trajetória humana futura depende muito das decisões que forem tomadas doravante e uma reforma educacional tem um papel fundamental nesse contexto.

Entretanto, a própria humanidade resiste a uma mudança de trajetória, por conta da imaturidade dos Estados-nações e da maioria da população mundial, que imersa em suas particularidades ideológicas: nacionalistas, culturais, étnicas,

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religiosas, científicas, ainda resiste em aceitar que reformas fundamentais devem ser implementadas. Essa resistência reside na psique humana, condicionada pela dualidade consciente e inconsciente, não integrada ainda pela maioria da humanidade. Essa dissociação psíquica impede o homem de se tornar inteiro, alimenta sua ilusão antropocêntrica e o mantém preso umbilicalmente a Gaia, a grande-mãe, explorando-a e exaurindo-a excessivamente, obliterando a percepção de que é apenas um fio particular na teia da vida.

Se o retrato da contemporaneidade pede urgência para reformas fundamentais que restaurem a Terra, estas constituem uma tarefa quase impossível em um mundo marcado por dicotomias entre novos e antigos conhecimentos; entre uma globalização tecnoeconômica e outra que esboça uma consciência de pertencimento a uma pátria terrestre; entre seres humanos divididos não somente entre si, mas em si mesmos. Porém, a certeza de que alguma coisa faz sentido, a que chamamos esperança, habita parte da humanidade e tem o poder de alimentar as reações nucleares que nos levarão a um novo contexto civilizatório, rumo a uma sociedade-mundo e a um futuro sustentável. Uma educação sistêmica e ecologicamente comprometida é imprescindível nessa cruzada.

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UM FUTURO INCERTO

“ um dia a Gente aprende a construir todas as nossas estradas no hoje; porque o terreno do amanhã é incerto demais para os planos, E o futuro tem o costume de cair em meio ao vão ”

Willian shakespeare

Futuro. Palavra com múltiplas orientações, que encerra mistérios e probabilidades: futuro pessoal, futuro da humanidade, futuro da Terra, futuro do universo. Não sabemos como será, mas podemos prospectá-lo. Anatole France deixou uma pista: “o futuro está oculto atrás dos homens que o fazem”. Conhecer o futuro é um desejo humano antigo e os astros tiveram um papel central. Os primeiros registros astronômicos de chineses, babilônios, assírios e egípcios, que datam de cerca de 3000 A.C., indicam que o conhecimento do futuro tinha objetivos não somente práticos, orientados a medir a passagem do tempo e prever as melhores épocas para o plantio e a colheita, como fazer previsões pessoais. Sem conhecimentos sobre as leis naturais, os homens acreditavam que os deuses do céu tinham o poder da colheita, da chuva e mesmo da vida.

Os gregos aprimoraram a arte premonitória com sua mitologia e oráculos. Moros o deus grego da sorte e do destino representava a fatalidade e ditava os acontecimentos para homens e deuses. Até mesmo o poderoso Zeus o temia. Moros era o pai das três irmãs Parcas, que determinavam o destino e eram responsáveis por fiar, tecer e cortar o fio da vida de todos os indivíduos. O desejo de conhecer a sua sorte tornou o templo de Apolo, nas montanhas de Delphos, o maior centro de peregrinação dos helênicos. Suas sacerdotisas oraculares, as pitonisas, eram consultadas sobre o destino, a família ou a pátria. Delfos tornou-se um dos lugares sagrados mais venerados da antiguidade, sendo que suas previsões e predições tiveram enorme repercussão nos destinos dos poderosos da época. Generais

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almejavam conselhos a respeito de estratégias de guerra, colonizadores procuravam orientação antes de suas expedições para a Itália, Espanha e África, e cidadãos consultavam-no sobre investimentos e problemas de saúde. As recomendações do oráculo emergem de forma notável nos mitos gregos que se perpetuaram pelos séculos. Os romanos, conquistadores da Grécia e também politeístas, continuaram as tradições adivinhatórias helênicas. Valiam-se dos augures, homens nobres a quem era reconhecida capacidade de adivinhação por meio do voo das aves, do comportamento de certos animais vivos ou das entranhas de animais sacrificados, para saber sobre acontecimentos futuros, dos mais importantes, como guerras e conquistas, aos do cotidiano das pessoas (Stuckrad, 2007).

O Renascimento testemunhou um dos mais famosos videntes do Ocidente, o alquimista e médico francês Michel de Nostredame (1503 – 1566). À sua obra mais famosa: "As Profecias", compostas de versos agrupados em quadras e organizados em centúrias, são atribuídas previsões codificadas sobre o futuro. Sua fama se disseminou pela Europa e atraiu a simpatia de poderosos, como a rainha Catarina de Médicis e o rei Henrique II de França. Ainda hoje suas obras são lidas por milhões de estudiosos. Mesmo com os avanços científicos a partir do final do século XIX, que resultaram na teoria geral da relatividade e na física quântica, que legaram uma nova visão de mundo e fizeram tremer as bases da mecânica newtoniana, o homem continuou preso a seus mitos e temores e não abandonou sua busca pelo futuro. A literatura não se furtou a esse anseio e o futuro foi abordado por escritores visionários. Júlio Verne (1828 – 1905), com sua obra, “Da Terra à Lua”, se antecipou em mais de cem anos à missão Apollo, e com “Vinte Mil Léguas Submarinas” previu o surgimento dos submarinos nucleares. No final do século XIX, H.G. Wells (1866 – 1946) antecipou o surgimento do laser em “Guerra dos Mundos”. Um artigo de Arthur C. Clarke (1917 – 2008), publicado em 1945, sugeriu o uso de satélites artificiais em torno da Terra, para uso nas telecomunicações. Em “Admirável Mundo Novo”, escrito em 1932, Aldous Huxley (1894 – 1963) descreve cenários sombrios onde recorre-se à lavagem cerebral e à manipulação genética para manter a população idiota. O livro ainda prevê a liberação sexual dos anos 60, uso de drogas químicas, clonagem e até realidade virtual. Como conseguiram prever tais coisas?

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O tempo e o futuro sempre foram materiais de construção das ciências naturais. A mecânica newtoniana, a cosmologia de Einstein e a mecânica quântica de Bohr e Heisenberg contribuíram, cada uma a seu modo, para a factibilidade de se conhecer o futuro. A primeira, através de suas funções, não impõe restrições ao futuro ou ao passado. Permite, também, determinar o futuro a partir das condições presentes, se conhecidas. A ciência relativista tratou o tempo como uma mão dupla, a ponto de Einstein ter afirmado: “A distinção entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão teimosamente persistente”. A equação de onda, fundamento central da mecânica quântica, também considera o tempo como uma via dupla, onde processos para o passado ou o futuro são matematicamente possíveis.

A economia trouxe também sua contribuição a esse cenário. O esforço para a recuperação dos países, após a Segunda Guerra Mundial, provocou um ciclo virtuoso de disseminação da educação e crescimento na economia e nos negócios, como nunca visto antes, e com isso a prospecção do futuro ganhou força, alimentando planejamentos estratégicos governamentais e empresariais. Embora seja senso comum que prever exatamente como será o futuro transcende as limitações cognitivas humanas, deve-se reconhecer que há inúmeras evidências de que tentativas sistemáticas de antever prováveis cenários futuros auxiliam a se criar no presente perspectivas adequadamente direcionadas, que ajudam governos e instituições a planejar de forma consistente suas ações. As ciências desenvolveram métodos sistematizados de prospectar o futuro, focado no curto e médio prazo: análise de tendências, que se apoia em padrões passados; construção de cenários, que se fundamenta na coleta sistemática de percepção sobre futuros alternativos possíveis; método Delphi, estruturado sobre a opinião de especialistas e pesquisadores sobre o tema futuro a ser estudado; métodos computacionais de modelagem, que incorporam diversos fatores de influência, sociais, políticos, tecnológicos e econômicos. Existem instituições globais que se dedicam a estas pesquisas, com uso dos métodos mencionados.

O Projeto Millennium, organização civil sem fins lucrativos, é atualmente uma das maiores instituições globais dedicada a estudos do futuro. Fundada em 1996 por

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iniciativa da Universidade das Nações Unidas e do Instituto Smithsoniano, se constituiu em um “think tank”83 alimentada por futuristas, acadêmicos, estrategistas de negócios e decisores políticos, que trabalham em organizações internacionais, governos, corporações, ONG´s e universidades. Um de seus estudos mais recentes, ainda não totalmente concluído, focou sobre o ambiente global do trabalho e da tecnologia em 2050. Utilizando o método Delphi, através de consulta a centenas de respondentes, o estudo revelou três possíveis cenários futuros, distintos em resultados, mas com um tema comum relevante, o impacto que novas tecnologias representarão no futuro, em cujo contexto ganha destaque a Inteligência Artificial (Millennium, 2015).

Stephen Hawkins e Bill Gates estão entre os que têm alertado o mundo sobre os perigos potenciais do crescimento da inteligência artificial além do controle humano. Um número crescente de “experts” nesta tecnologia acredita que se os sistemas sócio-políticos-econômicos não sofrerem mudanças e a aceleração tecnológica e a globalização continuar, então metade do mundo poderá não ter trabalho em 2050. Cenário preocupante que se adicionado a previsões pessimistas sobre o meio ambiente e a biosfera, poderão tornar a Terra um lugar difícil de se viver. Dos três cenários possíveis extraídos do estudo, dois contemplam contextos problemáticos, e um traz melhores perspectivas para a humanidade (Millennium, 2015). Embora deva-se enfatizar o caráter tecnicista e unilateral de tal estudo, pois não considera adequadamente a complexidade dos sistemas e processos humanos, o que o torna limitado em suas proposições, é, inegavelmente, fruto de um trabalho demorado e intenso que merece ser respeitado pelo seu propósito maior, o de alertar a sociedade sobre probabilidades futuras, reforçando o que vem sendo trabalhado nesta tese, a necessidade de olhar a jornada humana como um continuum complexo, alimentado por inumeráveis decisões individuais e coletivas.

O primeiro cenário prevê um mundo complicado, caracterizado pela aceleração da incorporação de tecnologias aos negócios, embora nem sempre usadas de forma

83 Think tank termo usado para designar instituições que produzem e difundem conhecimento sobre assuntos de interesse geral, com o objetivo de influenciar transformações sociais, políticas, econômicas ou científicas.

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ética e ambientalmente responsável, acompanhadas de decisões políticas inadequadas, com graves consequências para a ordem social e o trabalho. Os governos, de modo geral, não tiveram a habilidade de criar, nas últimas décadas, estratégias de longo prazo compatíveis com a elevada concentração de riquezas, nem incentivaram o uso democrático de novas tecnologias e menosprezaram o crescimento populacional, o que resultou em desemprego em massa, aumento do fosso entre ricos e pobres e a concentração de poder nas grandes corporações, sobrepondo-se ao controle governamental.

O segundo cenário pode ser traduzido como “Futuro Desesperador”, onde os governos se descuidaram dos impactos causados pela inteligência artificial e a explosão do desemprego na década 2030 - 2040, resultando em um legado de conflitos políticos, antinomias sociais e governos paralisados. Mais da metade da população ativa está desempregada e a ordem global se deteriorou em uma combinação de estados-nação, megacorporações, milícias locais, grandes corporações terroristas e crime organizado.

O último cenário, o mais auspicioso dos três, se aproxima do que Edgar Morin defende como a necessidade da emergência de uma nova estrutura social, a sociedade-mundo (Morin, 2011). Os seres humanos sentem-se livres, organizados em uma grande rede global favorecida não somente pela ação de governos durante as últimas décadas, que se anteciparam aos impactos da inteligência artificial e trabalharam pela implantação de sistemas universais de renda básica, retroagindo sensivelmente as tendências de concentração de riquezas, como pela ação de forças sociais, artísticas, sociedades civis e da mídia, que ajudaram a promover uma mudança cultural de uma cultura de emprego para uma economia de auto realização.

A pesquisa prospectiva do futuro não pode prescindir de uma área vital para a biosfera e o planeta, que desperta grande interesse de futuristas: o das mudanças climáticas e seus impactos globais para as gerações presentes e futuras. Um dos trabalhos ambiciosos nesse campo, é promovido pelo IPCC (Painel

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Intergovernamental de Mudanças Climáticas), órgão da ONU que congrega centenas de cientistas de dezenas de países, e que desenvolveu modelos matemáticos interdisciplinares para antever cenários planetários ambientais e sociais até o final deste século. Em seus três grupos de trabalho o IPCC tem elaborado relatórios sobre as razões das mudanças; os impactos que elas produzem; formas de mitigar seus efeitos e projeções sobre condições climáticas futuras que poderão ocorrer neste século, caso as mudanças sigam seu curso.

Cientistas como James Lovelock e Wally Broecker têm ponderado que, mesmo com modelos sofisticados, que paulatinamente vão sendo melhorados, os resultados obtidos sobre as mudanças ambientais não se coadunam com a evolução real observada, o que se justifica pela complexidade dos processos climáticos e a relativa incapacidade humana de estudar fenômenos multivariados de forma transdisciplinar, que está na base da complexidade do mundo real (Lovelock, 2006). Não se trata de impossibilidades, mas de dificuldades em se lidar com a complexidade, seja por representar algo de difícil compreensão, seja pelo condicionamento de parte das ciências ao paradigma tradicional positivista, assentado sobre o reducionismo e compartimentalização dos fenômenos naturais e sociais.

Edgar Morin, defensor de uma reforma educacional e cientifica na qual a complexidade é o núcleo, oferece-nos o pensamento complexo como uma forma de enfrentar adequadamente os problemas da atualidade. O pensamento complexo nasceu para responder às incertezas e religar as partes que teimosamente o positivismo usa para tratar tudo e todos (Morin, 2011). Outros a ele se juntam nessa cruzada. O pensamento científico que alimenta essa visão unilateral do mundo também foi desafiado pelo químico russo Ilya Prigogine, Nobel de Química em 1977. Argumentava que a ideia da certeza, que dominou as ciências por séculos, é profundamente pessimista e leva o homem a considerar o tempo como uma ilusão, tal como também o afirmou Einstein, alijando-o da vida temporal ao lhe oferecer um mundo excessivamente determinista (Morin e Prigogine, 1998). Entendia que uma ciência da certeza é uma ciência que não admite a dúvida, em um mundo que pode ser manipulado à vontade, no qual o tempo é ignorado e o homem é o centro absoluto

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do poder. Prigogine defendeu o fim das certezas, alegando que as ciências não podem ignorar o tempo e que nem tudo nos é dado. Contrariamente à visão determinista majoritária, ofereceu um “caminho do meio” para a jornada humana, entre o determinismo alienante das certezas inabaláveis e o ceticismo que leva a um mundo incontrolavelmente caótico e alheio à razão. Para Prigogine o homem tem a capacidade de escolher a direção a seguir em um universo mais complexo e flutuante do que se pode imaginar, um universo evolutivo que exige ser lido através de uma nova linguagem, a ser aprendida tanto pelas ciências físicas como pelas humanas, sem a qual seremos impotentes para entender este fantástico mundo e construir um futuro favorável.

Paradoxalmente, o tempo futuro que ocupa grande parte das preocupações humanas, deixa de ser percebido e vivido no presente. Como diz Jean Chesneaux (1998, p. 117):

“O tempo está no centro do mal-estar democrático. Privilegiando o imediato, o efêmero, as nossas sociedades colocaram tantas bombas-relógio: ecológicas, demográficas, sociais, que sabemos já que o tempo não joga nada a nosso favor. É resistindo à mudança que podemos ter esperanças de voltar a encontrar um horizonte temporal.”

Nossa sociedade privilegia cada vez mais o imediato, o instantâneo, e mesmo o efêmero, obscurecendo a grande responsabilidade que temos para com as gerações futuras, que herdarão a Terra da forma que a entregarmos. Como disse Guattari, o homem, que está cada vez mais alheio aos seus compromissos com o planeta e com si próprio, se mostra incapacitado de pensar o seu próprio tempo e carrega o futuro com um horizonte opaco, carregado de angustias e miasmas84.

84 Félix Guattari. Excerto do artigo: Pour une refondation des pratiques sociales, publicado no jornal Le Monde Diplomatique em outubro de 1992

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A cultura do imediatismo que se dissemina pelo globo leva ao esquecimento deliberado das causas passadas e as consequências futuras, reduzindo drasticamente possibilidades de se evitar no futuro a repetição de tragédias já vividas, criando um clima contínuo de tragédias anunciadas. A ditadura da urgência nos faz esquecer que os efeitos de nossa interação com o planeta, que resultam em degradações da biosfera e aquecimento global, são demasiado vagarosos para que se perceba sua letalidade para as próximas gerações. Os processos naturalmente lentos de Gaia, orientados à recuperação dos ecossistemas terrestres, não resistem ao imediatismo de nossas pressões econômicas e técnicas, criando bombas-relógio sem a competência para desativá-las. É um legado perverso que estamos construindo para os nossos descendentes, que poderá será agravado por condições políticas, sociais, econômicas e ambientais, eventualmente menos favoráveis do que as atuais. Recordemos os possíveis cenários futuros expostos pelo Projeto Millennium.

Esse choque de temporalidade que se vive aflige sobremaneira, por realimentar tantos problemas graves que a nossa cultura democrática não tem conseguido resolver (Chesneaux, 1998). Causa perplexidade a semelhança da fotografia de nossa atualidade com a ficção do livro 1984 de George Orwell, que descreve uma sociedade alheia ao passado e ao futuro, os quais não fazem sentido e nem são realidade, e onde se vive um eterno presente. Será que é esse o nosso destino, uma sociedade que também vive um eterno presente, porém sem tempo, que não vive o seu tempo, ignora aprendizados e alija de suas preocupações o futuro, cuja construção não aceita ser de sua responsabilidade? Deveríamos nos indignar contra tal estado de coisas, incompatível com estados democráticos, dos quais se deve esperar compromisso sério com o futuro comum, mesmo que o preço de tal futuro exija a revisão de suas prioridades de curto prazo, que ocupam a maior parte de seus recursos e atenção. A urgência excessiva induz a ignorar que as tensões de curto prazo podem ser as geradoras das tensões de longo prazo, consequência do “Efeito Borboleta”85. Preparar-se para o futuro exige que a democracia “habite o tempo presente” e que a humanidade transcenda as limitações das ciências tradicionais, da política e da

85 Expressão criada pelo meteorologista americano Edward Lorenz, utilizada na Teoria do Caos para fazer referência a uma das características mais marcantes dos sistemas caóticos: a dependência sensível dos resultados futuros de processos às condições iniciais.

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economia, resistindo à tirania das instantaneidades e do imediatismo. Preparar-se para o futuro exige trilhar um caminho do meio, entre o determinismo alienante e o ceticismo desesperançoso. Exige que se repense o mundo em sua complexidade e multidimensionalidade inerentes.

Ilya Prigogine foi um dos pensadores que se aliou a esta cruzada e dedicou grande parte de sua vida à criação de uma forma diferente de se olhar o mundo. Crítico da visão temporal bidirecional das ciências clássicas e de seu determinismo imperioso, ofereceu um caminho alternativo, construído sobre a irreversibilidade dos processos naturais, amparado na obra do físico Ludwig Boltzmann (1844-1906). Ele foi o pioneiro na contestação da física newtoniana sobre a equivalência entre passado e futuro, que também foi incorporada pela Relatividade e a Física Quântica. Ao aplicar o conceito de entropia86 para sistemas gasosos, Boltzmann deduziu que a segunda lei podia ser interpretada como uma tendência estatística, probabilística, e somente em situações de equilíbrio ou em sistemas estáveis as leis clássicas tinham validade, que representavam situações particulares no mundo real. A partir de seu trabalho houve um desenvolvimento espetacular da Física de não-equilíbrio e da dinâmica de sistemas instáveis associados à ideia de caos, o que levou a uma revisão da noção de tempo formulada desde Galileu. Prigogine se engajou neste campo de pesquisas e ajudou a criar novos conceitos físicos, como a auto-organização, processos caóticos, instabilidades longe do equilíbrio, bifurcações, atratores e estruturas dissipativas, caracterizadas por um tempo unidirecional e que são hoje amplamente utilizados em áreas que vão desde a Ecologia até às Ciências Sociais, passando pela Química e Biologia (Prigogine, Stengers, 1992).

86 Conceito central da segunda lei da termodinâmica que trata da irreversibilidade. Refere-se a alterações que ocorrem entre dois estados de um sistema, sem que haja possibilidade de se retornar ao estado original, que caracterizam os sistemas naturais. Na termodinâmica a irreversibilidade está associada ao aumento de entropia.

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Prigogine cortou um pouco mais o nó górdio do determinismo científico e reforçou tanto a unidirecionalidade do tempo como a visão complexa do universo e seus processos, sem resvalar para a posição piegas do ceticismo, que nos condena ao jogo do imponderável. Ofereceu um meio-termo, um caminho que representa uma abordagem romântica e provocante do surgimento da vida, resultado da irreversibilidade e instabilidade dos processos naturais, e no qual o homem é coartífice do futuro comum. Não destruiu o determinismo de Newton, nem execrou o ceticismo. Combinou-os, assentado sobre os novos desenvolvimentos da Física para reforçar uma evolução do universo na qual o homem é parte intrínseca e a complexidade é “palavra de ordem” geral, sem a qual é impossível de se fazer as leituras pertinentes. As leis naturais adquirem assim um novo entendimento, que absorve a flecha do tempo, alija as infalibilidades, mas, também, o ceticismo, passando a exprimir possibilidades e não mais certezas, opondo-se a um reinado de mais de três séculos de determinismo (Prigogine, 2011). Os novos conhecimentos, engendrados pela Física do não equilíbrio e a complexidade, contribuíram não somente para uma nova percepção do papel do homem na teia da vida e sua responsabilidade sobre a construção do futuro comum, como alimentaram as demais ciências, incentivando-as ao uso de abordagens transdisciplinares para a produção cognitiva. Novamente a Física exerceu o seu papel nutridor, como proposto por Descartes em sua “árvore do saber”.

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O estado da arte em Física revela que tudo neste universo é resultado de processos interligados em uma rede infinita de eventos, que se manifestam nas quatro dimensões conhecidas. O não equilíbrio dá uma ideia das Cada processo alimenta e potencialidades da matéria. Até aqui a matéria é alimentado por outros de era concebida como algo de inerte, de passivo. forma ininterrupta, Em certa medida é verdade quanto ao equilíbrio. Longe do equilíbrio a matéria torna-se “ativa”. caracterizando o mundo Explora, sem parar, novas possibilidades. A real que observamos. questão que deve agora ser estudada é a de saber Enquanto a Ciência como que a natureza faz para imprimir o não- Clássica privilegiava a equilíbrio à matéria. As estruturas complexas, as novas coerências que se criam longe do equilíbrio, ordem e a estabilidade, a são certamente as únicas suscetíveis de explicar a Física do não-equilíbrio e transição da não-vida para a vida da complexidade trouxe

Edgar Morin e Ilya Prigogine (O Reencantamento do uma nova percepção Mundo, 1998, p. 234) sobre processos, que afirmou serem caóticos (no qual tudo está tecido junto), mas não erráticos, não- lineares, caracterizados por ordem e desordem, imprevisibilidade de comportamento, grande sensibilidade a pequenas variações nas condições iniciais (Efeito Borboleta), onde a irreversibilidade é a “práxis” rotineira; estados de não equilíbrio, flutuações e instabilidade são constantes e situações de equilíbrio a exceção.

Associadas a essas noções, surgiram outros conceitos como bifurcações (possibilidades de trajetórias alternativas) e horizontes de previsibilidade limitada. Com a irreversibilidade e a instabilidade incorporadas ao entendimento dos processos reais, a significação das Leis da Natureza ganha um novo sentido. Não há mais certeza absoluta sobre as trajetórias futuras de cada processo, que somente podem ser expressas por probabilidades. Embora a segunda lei da Termodinâmica afirme que os sistemas tendem continuamente à desordem, ao esfriamento absoluto onde não há mais aumento de entropia, uma das grandes descobertas da Física do não-

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equilíbrio e da complexidade foi a de que existem sistemas que tendem à ordem, graças a atratores caóticos87.

Fora das regiões de equilíbrio, condição mais frequente nos processos naturais, novas situações podem surgir a qualquer momento, fruto de instabilidades inerentes aos sistemas caóticos, produzindo pontos de bifurcação, no qual o sistema poderá se ramificar em um estado inteiramente novo. Na bifurcação o comportamento do sistema depende da história anterior do sistema e das condições em que se encontra. Surge uma nova estrutura dissipativa88 cuja constituição não depende mais de uma lei universal, mas é específica do sistema. Admite-se que foi assim que surgiu a vida. Bifurcações estão associadas à indeterminação característica da teoria de Prigogine, implicando em “escolhas” (termo metafórico) que o sistema pode fazer entre vários caminhos ou estados possíveis. Qual ramificação será seguida dependerá da história do sistema, de condições externas, da presença de atratores, e nunca poderá ser prevista absolutamente, mas sim probabilisticamente, condição que Prigogine realçou ao denominar como o “Reencantamento do Mundo”, pois dá ao homem papel coadjuvante nas mudanças e não protagonista passivo de um destino pré-escrito por um autor desconhecido (Prigogine, 2011).

Ao longo da história as descobertas da Física acabaram sendo exportadas a outras ciências, incentivando-as a expandir suas bases de conhecimento em busca da verdade. Não poderia ser diferente com os avanços da Física do não equilíbrio. Prigogine avaliza este propósito:

87 Atrator é uma região (subconjunto) do espaço de fase de sistemas ou estruturas dissipativas para a qual tendem as trajetórias desenvolvidas em um processo, que partem de determinada região. É como um campo de força que exerce uma certa atração numa determinada região do espaço. Os atratores são os responsáveis pela auto-organização desses sistemas.

88 Ilhas de ordem num mar de desordem que ocorrem em processos naturais e que podem manter ou mesmo aumentar seu nível de ordem e estabilidade.

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“Acerca das estruturas dissipativas, podemos falar de auto-organização. Mesmo que conheçamos o estado inicial do sistema, o processo do qual ele é sede e as condições nos limites, não podemos prever qual dos regimes de atividade esse sistema vai escolher. O alcance dessa observação impressionou-me. Não podem as bifurcações ajudar-nos a entender a inovação e a diversificação em outras áreas do que a física ou a química? Como resistir à tentação de aplicar essas noções a problemas da esfera da biologia, da sociologia ou da economia? Demos alguns passos nesta direção e hoje muitas equipes de pesquisa em todo o mundo seguiram este caminho “ (Prigogine, 2011, p. 75-76)

Obviamente os conhecimentos oferecidos pela Física do não equilíbrio são muito mais abrangentes do que aqui abordados e continuam a ser enriquecidos continuamente. Entretanto, o que interessa particularmente neste trabalho é a apropriação das ideias centrais produzidas nas últimas décadas e o endosso de Prigogine, transferindo-as para as Ciências Sociais e direcionando-as ao processo evolutivo humano. A partir do entendimento de que tudo nesse universo é o resultado de processos concatenados a uma rede infinita de sistemas, pode-se incluir a biosfera nesse contexto, entendendo-a como uma rede de redes menores, os ecossistemas, que evoluem através de processos naturais, onde variáveis de toda ordem, eventos, interligações, polarizações, reciprocidades, ordem, caos, equilíbrios e instabilidades, interagem de forma dialógica, recursiva e hologramática, o que caracteriza os sistemas complexos.

A humanidade, também, é um sistema de alta complexidade, constituído de bilhões de “partículas humanas”, cujo processo evolutivo está sujeito aos mesmos fatores dos demais sistemas físicos; instabilidades, caos, ordem e desordem, zonas de equilíbrio e não equilíbrio. As trajetórias individuais das “partículas humanas“ são de difícil mensuração, mas a trajetória futura do conjunto é passível de previsão dentro de limitações probabilísticas, delineadas pelas condições iniciais do sistema, de sua história e do intervalo de tempo que se deseja antever. Como qualquer sistema do mundo natural a humanidade passa por perturbações que podem afastá-la da estabilidade, engendrando bifurcações, que são possibilidades de novas trajetórias. A

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existência de atratores fomenta um novo caminho a ser seguido aproximando o sistema humano do que na Física do não-equilíbrio se denomina sistema ou estrutura dissipativa, ou seja, ilhas de ordem num mar de desordem, que podem manter ou mesmo aumentar seu nível de ordem e estabilidade. De forma paradoxal, em situações de instabilidades, longe de zonas de equilíbrio, o caos que caracteriza os sistemas humanos pode ser fonte de coerência, levando ao aparecimento de novos sistemas ou estruturas sociais estáveis, desde que, como em qualquer sistema dissipativo do mundo real, sejam assistidas por atratores pertinentes. Podem surgir assim, novos sistemas humanos, diferentes do anterior. Os paradigmas cumprem esse papel atrator, podendo modificar estruturas sociais e culturais, e redefinir trajetórias evolutivas. Enfatiza-se novamente que em um mundo de irreversibilidades e de tempo unidirecional, acontecimentos futuros não podem ser mais deduzidos por leis deterministas, o que implica que aquilo que aconteceu podia não ter acontecido, e que novos acontecimentos não são resultados de certezas, mas de probabilidades. O conhecimento de variáveis que influenciam o sistema, sua história pregressa e eventuais atratores aumenta as probabilidades de se antevê-los, circunscrito a espaços de tempo limitados, o que exige, caso se deseje ampliá-los, um acompanhamento contínuo (Prigogine e Stengers, 1992).

Um olhar sobre acontecimentos marcantes nos últimos séculos corrobora essas reflexões sobre a aderência dos processos do sistema humano aos demais do mundo real. Polarização entre socialismo e capitalismo, fortalecimento dos estados- nação, fim do império otomano, eurocentrismo cultural e econômico, eclosão do nacional-socialismo, globalização, irrupção do neoliberalismo, recrudescimento dos movimentos terroristas antiocidentais, militância ecológica, explosão tecnológica, entre outros, são ”millestones” na história da humanidade que podem ser associados a estados equivalentes estudados pela Física do não-equilíbrio. Cada uma dessas situações, a seu tempo, gerou instabilidades sociais, políticas, econômicas, ambientais, períodos de incerteza e preocupações, que resultaram em novos acontecimentos, delineados pelas condições vigentes e por “atratores sociais”. A hegemonia do sistema mundo dominante, por exemplo, pode ser explicada pela existência de um atrator, a cultura capitalista, o que determinou a trajetória atual da globalização, preterindo outras possíveis trajetórias.

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Entretanto, a história vive se repetindo e o atual momento planetário testemunha conflitos dentro do sistema mundo. Marcado por profundas instabilidades, de dimensões ainda não adequadamente conhecidas, seus possíveis desdobramentos e acontecimentos futuros oferecem muitas incertezas. A relação homem/ambiente é central nesse contexto e condicionará os rumos futuros da humanidade. É uma relação dinâmica, tensa, que gera instabilidades e desenha uma bifurcação no horizonte, sujeita a fatores e condições similares aos que a Física do não- equilíbrio revelou, cujo resultado será uma trajetória ainda desconhecida. A figura ao lado ilustra graficamente esta situação. Representa o indicador ambiental global Ecological Footprint, que avalia a capacidade de Gaia restabelecer condições de habitabilidade para a biota planetária. Duas possíveis trajetórias podem ser visualizadas e ambas levam a zonas de estabilidade.

A trajetória A segue a lógica matemática das projeções futuras baseadas no histórico do fenômeno e é um dos métodos científicos mais utilizados na prospecção do futuro. Esta trajetória representa a continuidade do sistema-mundo dominante, cujo atrator e estabilizador do processo pode ser associado à ideologia capitalista. Tal opção representa a continuidade das práticas consumistas e produtivistas atuais, manter a matriz energética centrada nos combustíveis fósseis, explorar irracionalmente os recursos planetários, prosseguir com uma cultura egoísta e individualista e insistir na manutenção de um modelo educacional voltado para o lucro e a compartimentalização do conhecimento, que gera hiperespecialização. O economista americano Kenneth Boulding (1910 – 1993) afirmou ironicamente: “qualquer um que acredite que um crescimento exponencial pode durar para sempre, ou é um louco ou um economista” (apud Morin, 2013, p. 28). A opção pela trajetória A

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aumentará a deficiência homeostática de Gaia, que se agravará com o aumento populacional humano. Seremos nove bilhões de almas em 2050, vivendo em um planeta capacitado a suportar apenas a metade.

Exaurimento de recursos naturais, aquecimento global, concentração de riquezas e poder, incompetências políticas, graves tensões sociais, provavelmente serão situações comuns se essa for a opção resultante da bifurcação. Dois dos três cenários projetados pelo Projeto Millennium, abordado anteriormente, avalizam esta visão. Paradoxalmente, o filósofo francês Jean Pierre Dupuy propõe que se reconheça a inevitabilidade da catástrofe para tentar evitá-la e, embora afirme que os processos atuais conduzem ao desastre, o improvável permanece possível, como a história já comprovou tantas vezes89. A alternância voluntária para a trajetória B, desejada, mas pouco provável, é agravada pela dificuldade inerente ao ser humano de pensar a complexidade do mundo, ...não devemos mais continuar na rota do subjugado pela hegemonia do “desenvolvimento”. Precisamos mudar de conhecimento reducionista e caminho, precisamos de um novo começo. A frase de Heidegger deve ser considerada compartimentalizado que ainda um apelo: “A origem não se encontra atrás predomina e por sua ilusão de nós, ela está diante de nós”. antropocêntrica de posse e Edgar Morin (Rumo ao Abismo? Ensaio sobre o controle da Terra, que o mantém Destino da Humanidade), 2011, p. 15) alheio à vida, aos sentimentos e aos problemas prementes de sua própria espécie (Morin, 2013). Embora pareça utópica, se olhada pela ótica do paradigma reducionista, a opção pela trajetória B pode ser verossímil se Dupuy tiver razão, reconduzindo Gaia ao controle ambiental. Faz-se necessário, entretanto, um novo atrator que reorganize o processo evolutivo humano. O Desenvolvimento Sustentável, ideologia híbrida eco-social-capitalista, goza desse prestígio junto a parcelas significativas da sociedade global, que o consideram como a melhor orientação para o processo de recuperação planetária. Não comungo desse sentimento e junto-me aos que veem nele, apesar de toda a pompa com que se

89 Dupuy, Jean Pierre. Pour um catastrophisme éclaire. Quand lìmpossible est certain. Paris: Seuil, 2002

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apresenta, apenas um movimento travestido de compromisso ambiental e social, mas empenhado em proporcionar sobrevida ao capitalismo tradicional.

“ A ideia de desenvolvimento sempre implicou uma base tecnoeconômica, mensurável pelos indicadores de crescimento e os dos lucros. Ela supõe de modo implícito que desenvolvimento tecnoeconômico seja a locomotiva que naturalmente impulsiona um desenvolvimento humano...Essa visão pressupõe que o estado atual das sociedades ocidentais constitui a meta e a finalidade da história humana. O desenvolvimento “sustentável” não faz senão amenizar o desenvolvimento, por levar em consideração o contexto ecológico, mas sem questionar seus princípios.

O desenvolvimento traz certamente progressos científicos, técnicos, médicos, sociais, mas também traz destruições na biosfera, destruições culturais, novas desigualdades, novas servidões em substituição às antigas escravidões...O termo desenvolvimento estável ou sustentável pode retardar ou atenuar esse curso destruidor, mas não pode modificá-lo “ (Morin, 2011, p. 76-79)

A trajetória B se mostra mais viável para mitigar os impactos ambientais e atender o compromisso central do relatório Brundtland, mas para que seja a trajetória resultante na bifurcação é necessário encontrar ou construir um novo “atrator”, diferente do que sustenta a tendência de continuidade da trajetória A. Uma reforma ampla e abrangente da educação é um candidato em potencial. O atual sistema educacional não contém os requisitos adequados. Construído sobre bases eurocêntricas, iluministas e positivistas produz excesso de especialização, é orientado ao lucro, à padronização, é propenso a erros e ilusões, fragmenta os problemas fundamentais e globais que demandam conhecimento e abordagem transdisciplinar. Uma nova educação para o século XXI, orientada a um mundo verdadeiramente sustentável deve transformar mentes e instituições, simultaneamente. Deve ser pertinente a questões sobre o homem, a vida, a sociedade e o mundo, religando saberes atuais e milenares, favorecendo a capacidade mental de pensar problemas em sua complexidade, individuais e coletivos, sem fugir ao enfrentamento das ambiguidades, ambivalências, antagonismos e incertezas intrínsecos do mundo real.

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Deve ser autocrítico, respeitando os conhecimentos dominantes, mas incluindo os milenares, enfim, deve ser multidimensional.

A proposta feita por Edgar Morin à UNESCO em 1999, “Os sete saberes necessários à educação do futuro”, se reveste de qualidades para esse mister, mas pede uma mudança paradigmática global voltada para o homem integrado ao meio ambiente (Morin, 2000). O paradigma emergente ou da ecologia profunda traz um contexto adequado para as mudanças que são prementes. Tem ganhado força e incomodado o paradigma dominante, mas para ser autossustentável necessita de outra visão educacional, que sustente um novo contexto cultural. Educação e paradigma se complementam e seguem o princípio complexo da recursividade, simultaneamente causa e produtores daquilo que os produziu. Uma jornada dessa magnitude traz grandes desafios para a humanidade e pressupõe a criação de uma sociedade mundo, uma civilização realmente integrada e mundializada, voltada para o progresso do espírito humano, que transcenda as capacidades técnicas e matemáticas que o homem já possui em profusão. Talvez o maior dos desafios seja o próprio homem, dominado que ainda é por seus daemons interiores, prisioneiro de instintos e controlado por arquétipos de um universo inconsciente que pouco conhece, e que revelam uma faceta quase desconhecida na jornada humana: o homo psíquico. Em meio a tantos desafios e dúvidas sobre nosso futuro comum, só podemos dizer, parodiando Sócrates, que a única certeza que temos é que de nada temos certeza.

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HOMO PSIQUICO

“ ... sem a psique não existiria o mundo ou, mais precisamente,

mundo humano algum. De certo modo tudo depende da psique

humana e de suas funções. Elas merecem a nossa maior

atenção, sobretudo hoje em dia quando o bem-estar futuro

reconhecidamente não mais se decide pela ameaça de animais

ferozes, pelas catástrofes naturais ou pelo perigo de

vastas epidemias, mas, única e exclusivamente pelas

alteraçÕes psíquicas dos homens “

jung 90

Gaia e o homem são as duas figuras centrais na construção do futuro. Gaia é o arcabouço da vida planetária e o homem o agente das transformações do mundo. Este tem o compromisso e o poder de alterar os rumos planetários e construir um futuro auspicioso, pois é dirigido pela busca do prazer que estabelece a finalidade da vida, princípio que domina seu aparelho psíquico (Freud, 2014). Ser inteligente e criativo, complexo, em sua essência, aprendeu no espaço de poucos milhares de anos, movido por sua curiosidade intrínseca, a ler o mundo extrínseco, do local ao cosmos, através de distintas abordagens religiosas, filosóficas e científicas, que paulatinamente foi criando em sua trajetória. Paradoxalmente, se tornou um excelente conhecedor do mundo externo, mas não do interior, o seu mundo psíquico. Coube à ciência psicológica explorar e traduzir esse novo cosmos, a psique humana. Embasado nas palavras de Jung acima descritas, julgo irracional desenvolver reflexões sobre a criação de um futuro comum, que tem no homem seu coartífice, sem

90 JUNG, Karl Gustav. Presente e Futuro. Petrópolis: Ed. Vozes, 2011b, p. 53.

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abordar, dentro da visão transdisciplinar que aqui se defende, o estudo da psique humana.

A etimologia da palavra psicologia é de origem grega, formada por psique (alma) e logos (estudo), ou seja, significa esclarecer ao homem a sua própria psique. Não se pode definir de uma forma exata e científica o que é a psique, mas somente descrevê-la através de seus atributos:

Nossa psique faz parte da natureza e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Assim, não podemos definir nem a psique nem a natureza. Podemos, simplesmente, constatar o que acreditamos que elas sejam e descrever, da melhor maneira possível, como funcionam. (Jung, 1964, p.20)

Da mesma forma que a alma se perde, em seu substrato orgânico e material, em seu domínio interior, assim também se transmite em uma forma espiritual, cuja natureza nos é tão pouco conhecida, quanto a base orgânica dos instintos. O que eu chamaria de psique em sentido próprio se estenderia até aquele limite em que as funções podem ser influenciadas por uma vontade. (Jung, 2009, § 380, grifo deste autor)

A psique é a essência do homem e, apesar de ser seu mais importante instrumento de relacionamento com o mundo, recebe pouca atenção, sendo frequentemente tratada com desconfiança e desprezo pela própria ciência psicológica, que ainda não entendeu adequadamente a proporção gigantesca de sua missão, nem a complicação de seu tema central, que é a própria psique (Jung, 2009). Não se constitui em uma estrutura homogênea, mas sim de unidades hereditárias frouxamente ligadas entre si, que têm, por isso mesmo, acentuada tendência a se desagregar. Pode ser visualizada como uma estrutura

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esférica formada de quatro camadas concêntricas, na qual a camada mais profunda representa o inconsciente coletivo91, passando pelo inconsciente pessoal92, em seguida pela esfera endopsíquica e, finalmente, a camada superficial que representa a esfera ectopsíquica. As duas primeiras formam o inconsciente e as duas últimas formam o consciente humano, representando, inconsciente e consciente, as polaridades da psique. É essa dualidade, estudada por Carl Gustav Jung (1875 – 1961), criador da psicologia analítica, que alimentará as discussões doravante. Jung sempre deixou claro que a psique é uma estrutura anfíbia que habita dois mundos polarizados. O primeiro, consciente, está circunscrito no eixo espaço e tempo, representado pelo corpo físico e pela racionalidade. O segundo, inconsciente, não está contido em nada, mas pertence a tudo, é atemporal e representado pelo espírito e pelos aspectos numinosos93 da existência.

Jung se dedicou ao entendimento da psique e seu papel na evolução humana, que se consubstanciam no processo de individuação, versão psicológica da busca do Santo Graal. Individuação, não significa perfeição, mas sim plenitude através do reconhecimento dos conteúdos do inconsciente e sua integração à consciência, contribuindo para uma vida harmoniosa e com sentido, o que exige um trabalho educativo de autoconhecimento e a busca e união com o sagrado94. Cabe ao ego95 esta tarefa, orientada a contribuir com a realização existencial, dando sentido e significado à vida. Individuação é também um processo teleológico e representa a capacidade que todo indivíduo tem, através de ações de diferenciação, separação e integração, de sair da uniformidade rasa e alienante da normose coletiva para a busca simultânea de profundidade e expansão evolutiva. Individuação não é uma meta, mas

91 O inconsciente coletivo é a camada mais profunda da psique. É um reservatório de imagens latentes, chamadas de arquétipos ou imagens primordiais, que cada pessoa herda de seus ancestrais. Contém sentimentos, pensamentos e lembranças compartilhadas por toda a humanidade. 92 Camada mais superficial de conteúdos que se acha contígua ao consciente. Composto de conteúdos pessoais reprimidos ou esquecidos, componentes da personalidade humana individual e também por sombras e complexos, núcleos afetivos que podem tomar de assalto a consciência, retirando temporariamente o controle do ego. 93 Instância ou efeito dinâmicos não causados por um ato arbitrário da vontade, que arrebata e controla o sujeito humano, e que encerra um significado ainda não revelado. 94 Sagrado é um vocábulo que significa separado, exprimindo o que é apartado do homem. Na perspectiva junguiana representa o inconsciente. 95 Parte constituinte da mente humana, composto por tudo aquilo que vemos, convivemos e percebemos. É a junção de lembranças, sentimentos e ideias que posicionam nosso comportamento e nos tornam conscientes, e que é muito mais do que o simples “eu”.

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processo, com polaridades, tensões e conflitos, que resulta em descobertas e ampliação da consciência. Jung entendia que há uma predisposição biológica e psíquica para a individuação, mas não há compulsoriedade, pois representa uma escolha individual (Jung, 2011c). A individuação tem como referência o arquétipo da “Imago Dei”, a imagem de Deus dentro de cada um, e conduz a um contínuo desenvolvimento psicológico em uma trajetória espiral ascendente focada em uma consciência celestial de unidade, estado de coautoria com a divindade. Individuação é a integração do ego e do self, ou si-mesmo96, um processo lento, mas que resulta em amadurecimento da personalidade e no surgimento de um indivíduo único e integral (Magaldi, 2009).

O caminho da individuação exige consciência e personalidade bem desenvolvidas, exige autoconhecimento e integração do inconsciente e da consciência. Admite-se que apenas uma pequena parte da humanidade se encontra neste processo, pois a grande maioria é subjugada pelas tendências à dissociação consciente/inconsciente característica da psique humana. A partir da formação da consciência, a dissociação psíquica acompanhou o homem e produziu espíritos, deuses e religiões, frutos da reação ao seu mundo psíquico inconsciente e desconhecido, com seus arquétipos e instintos. Freud afirmava que o ser humano é dotado de diversas disposições instintuais e que nele se acham tendências destrutivas, antissociais e anticulturais, fortes o bastante para determinar sua conduta na sociedade humana (Freud, 2010). Cabe à consciência individual trabalhar essa polarização psíquica e reduzir os seus efeitos perversos.

“A humanidade experimentou inúmeras vezes, tanto individualmente quanto como coletividade, que a consciência individual significa separação e inimizade. No indivíduo, o tempo de dissociação é tempo de doença, o mesmo acontecendo na vida dos povos. Não podemos negar que a nossa época é um tempo de dissociação e doença. As condições políticas e sociais, a fragmentação religiosa e filosófica, a arte e psicologia modernas, tudo dá a entender a mesma coisa... Se formos honestos, temos que

96 Self ou si-mesmo é o principal arquétipo do inconsciente coletivo. É o ordenador dos processos psíquicos. O Self é o arquétipo da ordem, da organização e da unificação; atrai a si e harmoniza os demais arquétipos e suas atuações nos complexos e na consciência, une a personalidade, conferindo-lhe um senso de “unidade” e firmeza”

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reconhecer que ninguém mais se sente totalmente bem no mundo atual; aliás, o mal- estar vai aumentando... Com a tomada da consciência, o germe da doença da dissociação plantou-se no espírito da humanidade, sendo o maior bem e o maior mal ao nosso tempo” (Jung, 2011c, p.151)

Vivemos uma época de dessacralização generalizada e de culto excessivo ao racionalismo. Nossos avanços científicos ampliam o conhecimento do mundo exterior, mas pouco esclarecem sobre o complexo “ Um dos principais fatores da massificação é o racionalismo mundo inconsciente, ainda pouco cientifico. Este deita por terra compreendido pela maioria. Um pensamento os fundamentos e a dignidade do filósofo Blaise Pascal, expresso no século da vida individual ao retirar do homem a sua individualidade, XVII, traz um “insight” esclarecedor sobre transformando-o em unidade essa questão: “O conhecimento é como uma social e num número abstrato esfera; quanto maior for o seu volume, maior da estatística ” será o seu contato com o desconhecido”. Não Karl G. Jung (Presente e Futuro) percebemos devidamente que tais atitudes 2011b, p. 18) preterem a busca de sabedoria espiritual, essencial para o reconhecimento de nossa posição na teia da vida; ampliam a massificação da humanidade; e alimentam o reducionismo e compartimentalização de nossos conhecimentos, que se mostram inadequados para enfrentar os graves problemas atuais. Como disseram Jung e Wilhelm (1986, p. 41): “ O homem perdeu o temor de Deus e pensa que tudo pode ser julgado de acordo com medidas humanas. Esta hybris, que corresponde a uma estreiteza de consciência, é o caminho mais curto para o asilo de loucos ”.

A partir dessas reflexões preliminares podemos começar a tecer algumas considerações sobre aspectos de natureza psicológica, que podem influenciar as transformações necessárias para cocriar um futuro que atenda às necessidades, nossas e das futuras gerações. Jung nos oferece alguns elementos adicionais sobre a complexa relação entre o homem e Gaia, que envolve a formação da consciência, o desenvolvimento da personalidade e ligações com conteúdos inconscientes

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arquetípicos. O homem nasce com uma complicada predisposição psíquica que é tudo menos uma tabula rasa, ou uma mente vazia.

“... a psique humana contém inúmeras coisas que nunca foram adquiridas, porque a mente humana não nasceu como uma tabula rasa, nem cada homem possui um cérebro inteiramente novo e único. Ele nasce com um cérebro que é o resultado do desenvolvimento de uma série interminavelmente longa de ancestrais. Este cérebro é produzido em cada embrião, com toda a sua perfeição diferenciada, e quando começar a funcionar, produzirá infalivelmente os mesmos resultados que já foram produzidos inúmeras vezes antes na série dos ancestrais. Toda a anatomia do homem é um sistema herdado, idêntico à constituição ancestral, que funcionará exatamente da mesma maneira como anteriormente. Consequentemente, a possibilidade de que se produza algo de novo e essencialmente diferente do antigo é extremamente reduzida“ (Jung, 2009, p. 317-318)

Na criança, a consciência começa a emergir das profundezas da psique inconsciente, dando seus primeiros sinais aos seis meses de vida. Formam-se no início como que ilhas isoladas, que se reúnem gradualmente em um continente para formar uma consciência coerente, o que se dá através de um processo gradativo de desenvolvimento espiritual, através de ampliações da consciência. Consciência, primeiro, significa estar ciente, ter a percepção de que agora eu existo, e é o surgimento de uma consciência coerente o que possibilita o relacionamento psíquico com os demais indivíduos. Com a consciência começa a se formar a personalidade individual. Jung defendeu que o desenvolvimento da personalidade depende da liberação de conteúdos arquetípicos do inconsciente da criança que, entretanto, precisam ser ativados, o que somente ocorre através de relações humanas. É como se fossemos um computador com vários softwares instalados, mas inoperantes, que precisam ser ativados, o que acaba por potencializar a capacidade total do equipamento. É o relacionamento com os pais que dá início a ativação das imagens arquetípicas, que delinearão a personalidade futura do indivíduo. Sem relacionamento humano a personalidade humana não se desenvolve, as fases subsequentes de desenvolvimento arquetípico não acontecem e a criança pode permanecer em um nível animal (Edinger, 2004). Uma imagem arquetípica que não é personalizada

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através de uma relação humana pode criar um buraco na psique da criança, produzindo perturbações psíquicas que afetarão sua personalidade futura. No centro de todo esse processo está o ego, o centro da consciência, sem o qual não há desenvolvimento da personalidade, mas que deve ser estruturado a partir da vivência da criança com seus conteúdos arquetípicos.

A formação do sistema ego-consciência se consolida por volta dos 21 anos de idade e passa por fases distintas. A primeira é caracterizada pela relação da criança com o arquétipo materno, que se estende até por volta de sete anos. Nesta fase começa a amadurecer o cérebro límbico, das emoções. Dos sete aos 14 anos a criança passa a viver o arquétipo paterno, quando se consolida o amadurecimento do cérebro límbico e o florescimento do neocortex, a área mais desenvolvida do cérebro humano. A partir dos 14 anos inicia-se o período da alteridade. É a fase da busca de verdades objetivas, que se guia pela razão, pela riqueza e pelas ciências. Dos 45 anos em diante começa a ficar mais evidente o processo de individuação, a busca transcendente do “ser inteiro”, que está potencialmente presente em todos os seres humanos (Magaldi, 2009).

O desenvolvimento psíquico não é linear nem necessariamente sequencial. Pode-se pular etapas ou simplesmente estagnar em algumas delas, criando desequilíbrios psicológicos. De todas as fases evolutivas, a relação arquetípica com a mãe é a mais crítica e determinará como serão as seguintes. Com o passar do tempo o homem cresce e se desliga naturalmente da mãe biológica, mas pode continuar vivendo inconscientemente o arquétipo materno, substituindo a mãe natural por outras imagens tais como a empresa, o estado, e a própria Terra. A desvinculação plena somente ocorre quando o homem se inicia no processo de individuação e deixa de vivenciar os arquétipos que lhe acompanharam desde a infância. Acredita-se que apenas uma pequena parcela da humanidade se encontra na fase da individuação, enquanto a maioria se acha ainda presa a fases anteriores de desenvolvimento da personalidade. É paradoxal que se viva em uma era de riqueza econômica, científica e tecnológica, mas de pobreza psíquica, caracterizada pela dissociação

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consciente/inconsciente e por vínculos “ O homem contemporâneo não fortes com a figura materna, seja na consegue perceber que, apesar de figura da “Mãe-Estado”, seja na própria toda sua racionalização e toda a sua eficiência, continua possuído “Mãe-Terra”. É perceptível que boa parte por 'forças' além do seu controle. da humanidade se comporta perante Seus deuses e demônios Gaia como crianças de colo que sugam absolutamente não desaparecem; tem apenas novos nomes. E copiosamente o leite materno. Crê este conservam-no em contato íntimo autor, que esta faceta do homo psíquico com a inquietude, apreensões vagas, complicações psicológicas, é uma das causas mais relevantes do uma insaciável necessidade de atual quadro planetário de pauperização pílulas, álcool, fumo, alimento e, dos recursos naturais e da falta de acima de tudo com uma enorme coleção, de neuroses...” soluções efetivas para recuperar a Terra e criar um futuro auspicioso. Freud Karl G. Jung (O Homem e seus Símbolos) 1964, p. 82 também abordou esse assunto:

“ Nas ultimas gerações a humanidade fez progressos extraordinários nas ciências naturais e em sua aplicação técnica, consolidando o domínio sobre a natureza de um modo antes inimaginável...Os homens estão orgulhosos dessas realizações e têm direito a isso. Mas eles parecem ter notado que esta recém-adquirida disposição de espaço e de tempo, esta submissão das forças naturais, concretização de um anseio milenar, não elevou o grau de satisfação prazerosa que esperam da vida, não os fez se sentirem mais felizes ” (Freud, 2014, p. 45-46):

A dissociação psíquica, como colocada por Jung, se revela um grande desafio ao homem, pois alimenta sua ilusão antropocêntrica e dificulta-lhe tornar-se um “homem inteiro” e integrar-se ao mundo como um elo da vida. Ao longo de sua história buscou, de forma inconsciente, caminhos alternativos compensatórios para sua deficiência. As religiões cumpriram esse papel ao preservar seu equilíbrio psíquico, preservando-o de ataques de fatores incontroláveis do inconsciente, através das divindades, dos dogmas e do Deus exterior, ao preço, entretanto, de sua liberdade individual (Jung, 2011a). As igrejas, com a promessa de cuidar da saúde da alma, produziram uma ampla ação massificadora sem atentar devidamente para o fato que o indivíduo na massificação sofre uma degradação moral e espiritual. Esqueceram-se

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de que sua verdadeira missão devia ser a de possibilitar ao homem singular o renascimento espiritual, retirando-o da massa inconsciente e cega, conscientizando- o de que a “salvação do mundo” depende de sua própria alma, de sua saúde psíquica, ou seja, de se tornar inteiro. Com o crescimento do culto à racionalidade ocidental, enfraqueceram-se as religiões, a ponto de Nietzsche ter dito que Deus estava morto, mas não se eliminaram os demônios internos. “ O sentido e a finalidade da Os vários “ismos” que como ondas se vida individual (a única vida real) não repousam mais sobre disseminaram nos últimos séculos: capitalismo, o desenvolvimento individual, socialismo, fascismo, nacional-socialismo, mas sobre uma razão de Estado, imposta de fora para comunismo, neoliberalismo, entre outros, dentro do homem, ou seja, na postularam-se como substitutos do objetivação de um conceito inconsciente humano, ao oferecer “divindades abstrato cuja tendência é colocar-se como a única de estado”, mas exigindo, em contrapartida, instancia da vida. ” submissão incondicional à fé do estado,

Karl G. Jung (Presente e Futuro) massificando o homem e restringindo sua 2011b, p. 17 liberdade. A massificação do estado subjuga o homem e não colabora para a integração de sua psique, sob cuja responsabilidade está, em última análise, toda a obra humana (Jung, 2011b).

Tal é o atual “status” da humanidade, ao sabor de forças inconscientes que tem grande poder sobre o rumo dos acontecimentos, independentemente da vontade consciente e racional. Somos excessivamente simplistas na interpretação dos eventos do mundo, pois o que realmente aconteceu e acontece é vivido por todos, mas compreendido por poucos. Guerras, dinastias, revoluções sociais, conquistas e religiões são sintomas superficiais da atividade psíquica secreta do indivíduo que ele próprio desconhece. Essencial é apenas a vida subjetiva do homem. Só ela é responsável pela história, somente nela acontecem as grandes transformações e todo o futuro dela depende (Jung, 2011b). Com esta abordagem defende-se a imprescindibilidade do conhecimento da natureza psíquica dual do homem e de sua integração, como condição sine qua non para a restauração da Terra e construção de um futuro auspicioso. Este é um movimento de espiritualização de duas dimensões: uma vai “para dentro”, integrando as duas partições psíquicas que levam ao “homem inteiro” e a outra vai “para fora”, abraçando o mundo e os seres humanos nossos

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companheiros (Capra e Luisi, 2014). Em um contexto de mudanças climáticas preocupantes e riscos para a jornada humana, tornou-se um grande desafio ao homem reconhecer sua polaridade psíquica e diminuir esta dissociação, para que avance no desenvolvimento de sua personalidade, deixando de vivenciar o arquétipo materno e caminhar em direção à totalidade, em íntima união com a teia da vida.

Essa transição, espiritual por sua natureza, é lenta e quase imperceptível, sem que processos racionais intensivos de reflexão possam acelerá-la. Dificilmente ocorre durante uma existência sem a transformação do indivíduo. O atraso moral que acompanha a humanidade se mostra inadequado diante do desenvolvimento científico, técnico e social que se alcançou, e muito do que está em jogo para o futuro da jornada humana depende da qualidade psíquica do homem (Jung, 2011c). É a com a educação que se pode recuperar o atraso psíquico e conduzir o homem ao caminho da individuação. É a educação psíquica e não a educação tradicional, que é direcionada a interesses de grupos econômicos e políticos, que propôs Jung para desenvolver o novo homem, que deve começar pela criança e continuar no adulto. Uma educação orientada à formação do adulto pleno deve seguir as linhas naturais do desenvolvimento da personalidade, sem ater-se a prescrições que se mostram deficientes. Deve colaborar para a emersão da consciência a partir do inconsciente, como uma nova ilha aflora sobre a superfície do mar. A educação e formação apropriada das crianças auxilia esse processo e a escola deve ser o seu meio natural (Jung, 1981).

O que se propõe é uma reforma educacional, que integre outros saberes que não fazem parte da educação massificada. É necessário ir além dos conteúdos padronizados e oferecer à criança conhecimentos que a conscientizem de sua natureza dual e da sua posição na ampla rede da vida e do universo. Há um desafio intrínseco nessa proposta, que foi abordado por Morin e Jung e frequentemente negligenciado na educação moderna: a educação do educador. Ninguém está com a sua educação terminada ao deixar a escola, ainda que tenha concluído o ensino superior. A personalidade do professor tem papel fundamental na educação da

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criança e cabe a ele completar a educação dada pelos pais, ajudando-a a desprender- se, até certo ponto, do ambiente da casa paterna. Se o professor também apresenta um desenvolvimento parcial de “ A formação do docente deverá ocorrer ao sua personalidade, não longo de sua vida profissional e a partir conseguirá colaborar do reconhecimento da pluralidade cultural, da multiplicidade de vozes e adequadamente para a formação olhares, privilegiando processos autoeco- de um adulto inteiro. O método organizadores e emergentes, geradores de educacional apropriado ao adulto processos auto-heterorreflexivos e explicativos da realidade. Devem ser consiste em fornecer-lhe os evitados processos de fragmentação, conhecimentos psicológicos que dominação cultural, autoritarismo, homogeneização e linearização dos possibilitem educar a si próprio e tempos humanos, promovendo ações ser o portador ativo de sua cultura. permanentes para uma educação A educação do educador não deve responsável e consciente” jamais estacionar, pois de outro Maria Candida Moraes e Maria da Conceição de modo começará a corrigir nas Almeida (Org). Os Sete Saberes Necessários à Educação do Presente – Por uma Educação crianças os defeitos que não Transformadora. Rio de Janeiro: Walk Editora, 2012, p. 251. corrigiu em si mesmo. Nota-se que uma educação voltada ao desenvolvimento pleno da personalidade não é uma tarefa fácil, depende de pais e professores, que nem sempre atingiram maturidade psíquica. Aqui reside uma situação perigosa, pois, ao mesmo tempo que a criança precisa desenvolver-se para poder ser educada, sua personalidade deve primeiramente desabrochar antes de ser submetida à educação, o que resulta em imprevisibilidade, pois não se sabe em que sentido se desenvolverá a personalidade em formação, uma vez que é dependente de progenitores e professores (Jung, 1981).

Com essas reflexões procuramos enfatizar que o desenvolvimento psicológico parcial da humanidade tem um papel relevante no quadro atual de incertezas planetárias e que transcender o “status quo” psíquico não é uma tarefa fácil e nem rápida. Sem uma revolução espiritual, nem o conhecimento científico, nem as tecnologias disponíveis e nem os recursos econômicos serão eficazes na restauração planetária. Se por um lado a natureza psíquica se junta a outras variáveis discutidas anteriormente e aumenta as incertezas sobre a jornada humana, por outro, a abordagem desses assuntos traz esclarecimentos sobre vetores que influenciam a

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construção do futuro e que devem ser enfrentados corajosamente, pois é o destino da humanidade que está em jogo. Ante tantos obstáculos não deve haver desalento, ao contrário, abre-se uma oportunidade inédita para o homem: evoluir para um novo metassistema, rico em possibilidades, dentro de um novo contexto social, científico e econômico. Nossa proposta é que seja guiado por um novo paradigma civilizatório, a ecologia profunda. O outro caminho pode ser a submissão a um estado de insignificância generalizada (Morin, 2011).

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UM NOVO CONTEXTO CIVILIZATÓRIO

“ Imersa no caos a humanidade tem diante de si uma

oportunidade inédita: metamorfosear-se em um

metassistema rico em possibilidades ou sucumbir no abismo da

insignificância generalizada. Por toda parte, forças de

desintegração e de regeneração se confrontam

intensamente, e esse embate não parece dar sinais efetivos

de superação “

Edgar morin 97

“ o tipo de esperança sobre a qual muitas vezes penso... eu a

COMPREENDO COMO UM ESTADO DE ESPÍRITO E NÃO COMO UM ESTADO

DO MUNDO. OU TEMOS ESPERANÇA DENTRO DE NÓS OU NÃO TEMOS; É

UMA DIMENSÃO DA ALMA, E NÃO DEPENDE ESSENCIALMENTE DE

ALGUMA OBSERVAÇÃO PARTICULAR DO MUNDO...Esperança não é a

convicção de que alguma coisa vai dar certo, mas a certeza

de que alguma coisa faz sentido, independentemente do que

virá acontecer com ela “

Václav havel 98

Tendo abordado o início do universo, o aparecimento do sistema solar, o surgimento e evolução da vida até o advento do sapiens na primeira jornada (jornada

97 MORIN, Edgar. Rumo ao Abismo? Ensaio sobre o Destino da Humanidade. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil, 2011. 98 HAVEL, Václav. Disturbing the Peace. London: Faber & Faber, 1990

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passada); a natureza humana e a obra globalizada e contemporânea do homem na segunda jornada (jornada presente), e feito incursões sobre dois temas considerados críticos para a construção do futuro: a física do não equilíbrio e a psicologia profunda na terceira jornada (jornada futura), todas dentro de um arcabouço sistêmico e transdisciplinar, nesta última parte se discutirá a proposição que, para se alcançar um desenvolvimento realmente sustentável, satisfazendo as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades, é necessário que se construa um novo contexto social e cultural, ou seja, um contexto civilizatório coerente com esse objetivo. Tal contexto é viável, pois acreditamos que a humanidade reúne as capacidades e recursos para recuperar o planeta e recolocar Gaia no controle do ecossistema terráqueo. Trata-se de um processo com muitas variáveis a serem consideradas, inúmeros desafios que se antepõem na sua trajetória e com ferrenhos opositores que não desejam a mudança do “status quo” político e econômico global.

Uma mudança com essa extensão, que afetará toda a humanidade parece a um primeiro olhar radical e utópica. Entende-se que não é uma tarefa nada simples mudar um sistema que se tornou hegemônico ao longo de mais de 400 anos, mas em defesa da mudança pode-se argumentar que nunca o homem se defrontou com um quadro de impactos ambientais e sociais como os testemunhados na atualidade. Vivemos um período de profunda instabilidade no processo civilizatório, que geram bifurcações e novas trajetórias possíveis, que não necessariamente significam uma melhoria das condições atuais. Infelizmente, isso é o que apontam indicadores de algumas das instituições mais sérias dedicadas ao estudo de tendências globais, como o IPCC e o WWI, que têm alertado sobre a deterioração progressiva da biosfera, seus reflexos na sociedade planetária, e vice-versa.

Como se chegou a esse “status quo” climático e ambiental? Esta foi uma das abordagens desta tese, onde se procurou desenhar forças de aumento e de mitigação dos impactos ambientais, oferecendo elementos reflexivos para a argumentação em torno da proposta final. O homem com suas múltiplas personas: ludens, culturalis, socialis, faber, economicus, tecnologicus, religiosus, ethicus, enfim, sapiens e

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demens, é o personagem central desse contexto. Resgatar de forma resumida a trajetória evolutiva que culminou no sapiens-sapiens e sua obra, favorecerão as discussões posteriores. Tudo começou com:

• O Big Bang, singularidade a partir de um ponto infinitamente pequeno e mas- sivo, que originou há mais de 13 bilhões de anos o universo conhecido, o tempo e a matéria. Com seu progressivo resfriamento e a ação das quatro forças universais: forte, fraca, eletromagnética e gravitacional, formaram-se átomos e moléculas, que geraram nuvens de gases e poeira, as quais, atra- vés de interações entre matéria e energia, faces da mesma moeda, deram origem a galáxias, sistemas solares e todos os corpos cósmicos; • Nos confins da via Láctea, galáxia espiralada, forma-se a partir da explosão de uma estrela gigante, o sol, estrela anã amarela e sua corte de planetas menores e maiores. Entre eles, a Terra, terceira na sequência planetária, cuja posição privilegiada lhe permitiu engendrar a vida; • A vida, fenômeno complexo, surge há cerca de 3,6 bilhões de anos, em um organismo primevo unicelular, fruto de um intenso processo de combina- ções e recombinações entre elemen- tos químicos disponíveis no ambiente terráqueo. Com a vida e sua dissemi- nação pelo orbe surge Gaia, a mãe- Terra, metáfora para o sistema vivo planetário dotado de recursos ciber- néticos orientados à estabilização de condições ambientais de suporte vi- tal. Gaia é um grande ecossistema autopoiético que se recria continuamente dentro de uma fronteira autocriada, trocando energia com o restante do universo; • Com um estreito acoplamento entre a atmosfera e a vida na Terra, Gaia evo- luiu e a vida foi se manifestando em formas superiores e complexas. Um acidente cósmico findou o reinado dos grandes dinossauros e colocou os mamíferos no centro do cenário terrestre. Abria-se a porta para os mamífe- ros superiores, os primatas;

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• Há cerca de 6 milhões de anos surge um novo ramo na árvore genealógica dos primatas, que levaria aos hominídeos e aos chimpanzés e bonobos. Re- gistros dos primeiros hominídeos, o homo habilis, são datados de cerca de 2 milhões de anos atrás. Quatrocentos mil anos depois surge o homo erec- tus, que evoluiu, entre 400 mil e 250 mil anos atrás, para o homo sapiens, espécie a que nós seres humanos modernos pertencemos; • A transição completa para o homo sapiens se consolida na Europa por volta de 35 mil anos atrás, e a partir desse momento esta espécie humana é a única sobrevivente. O despertar de uma autoconsciência e centenas de mi- lhares de anos de relações com o ambiente natural e com sua própria espé- cie transformaram o homem de um ser frágil na espécie dominante. Desen- volveu a cultura, a arte, os mitos, as religiões, as ciências e transformou de tal forma o mundo, que passou a crer-se independente e acima da natureza, além de seu proprietário; • Quatrocentos anos atrás começou a erigir uma estrutura econômica, nascida ocidental, e que se tornou hegemônica: o capitalismo, que vem orientando as esferas política, científica, educacional, tecnológica e produtivista, deter- minando os destinos planetários; • Sua ânsia de conhecimento e crescimento o levou a gerar graves impactos sociais e ambientais. Busca caminhos para mitigá-los e o Desenvolvimento Sustentável é sua grande aposta, mas desperta desconfianças e incertezas. Grupos dissidentes ganham força e propõem mudanças nas práticas econô- micas, produtivistas e consumistas, pois não acreditam que nem o Capita- lismo e nem o Desenvolvimento Sustentável como vem sendo praticado con- sigam recuperar a Terra. Nesse embate de forças, o que se desenha é uma crise civilizatória global que acena com um futuro incerto. Estamos diante de uma grande bifurcação no processo da jornada humana e a decisão sobre que futuro queremos é nossa. Quais são as possíveis opções?

Um mapa conceitual elaborado por Fritjof Capra, baseado no Plano B 4.099 de Lester Brow, que pode ser visualizado na página 192, permite entrever a interligação

99 Proposta de Lester Brown, fundador do Worldwatch Institute (WWI) para “salvar a civilização”. Baseia-se em quatro metas interdependentes: estabilizar o clima, estabilizar a população, eliminar a pobreza e restaurar os

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entre os problemas globais da atualidade e um possível futuro complicado para a sociedade global, caso se continue com a prática de políticas de crescimento ilimitado em um planeta finito, que desprezam o custo social e ambiental de suas ações (Capra e Luisi, 2014).

Três modos de crescimento observados na atualidade provocam sérios impactos no ambiente natural e aumentam os riscos para o bem-estar da humanidade: econômico, corporativo e populacional. Os dois primeiros atrelados ao capitalismo global e respaldados por visões neoliberais promovem o consumo excessivo e uma economia intensiva em energia, no uso de recursos naturais e desatenta ao desperdício, gerando resíduos, poluição e esgotamento dos recursos planetários. O crescimento populacional age como uma realimentação cibernética positiva, pois provoca diminuição de áreas agriculturáveis, redução dos suprimentos de água e aumento de pobreza devido à concentração de riquezas produzida pelo capitalismo. O resultado é um esgotamento ainda maior dos recursos e aumento da pobreza. Consumo excessivo, desperdício e aumento populacional combinam-se para exercer maiores pressões sobre a natureza e seus recursos piorando o quadro global já conhecido: desmatamento, redução da água doce disponível, pesca predatória, desertificação, com consequências sérias para a segurança alimentar. Deste modo aumentam a destruição de “habitats”, extinguem novas espécies e degeneram ecossistemas fundamentais para os seres vivos, incluído o homem.

suportes da natureza, como água, solo e ar. Brown se apoia em um repertório de experiências mundiais bem- sucedidas que podem ser replicadas no esforço coletivo (Brown, 2009).

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Fonte: A Visão Sistêmica da Vida – Fritjof Capra e Pier Luigi Luisi, 2014, p. 450

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Todas essas consequências aliadas ao uso intensivo de combustíveis fósseis criam um ciclo de realimentações positivas, que aumentam a temperatura global, afetam a agricultura, ampliam o derretimento das geleiras, elevam o nível dos oceanos, com possíveis deslocamentos das populações que vivem à beira-mar. Todos esses eventos apontam para ameaças crescentes à segurança alimentar do mundo, aumento da quantidade de refugiados climáticos e um número crescente de Estados assolados pela ampliação da violência, desintegração da lei e da ordem pública, e pelo crescimento de conflitos civis. Pode ser o começo da fragmentação da civilização, tal como a conhecemos (Capra e Luisi, 2014).

Esse é o grande dilema da humanidade, continuar sua trajetória de séculos, ou mudá-la. Para Morin, o prosseguimento do atual caminho é altamente provável, o que deduz pela observação da continuidade dos processos em curso, que poderá resultar em uma catástrofe (Morin, 2013). Visto por esse prisma a globalização constitui a pior coisa que aconteceu à humanidade, mas, igualmente, a melhor coisa. Ambiguidade que se explica porque a globalização é dual.

A primeira é movida pelo pensamento tecnocrático, cego a tudo que foge ao cálculo, sem outra finalidade que o próprio desenvolvimento tecnoeconômico. A segunda, irrigada pelas ricas correntes emancipadoras do passado – humanismo, democracia, socialismo -, carrega a aspiração a um mundo melhor...Vê-se então que há duas globalizações em uma; uma, principalmente técnica e econômica, baseada no lucro; outra, na qual se esboça uma consciência de pertença a uma pátria terrestre, que prepara uma cidadania planetária. Essa consciência está em gestação através dos movimentos que preparam, em meio à confusão, uma internacional cidadã. (Morin, 2012b, p. 234-235)

A globalização, portanto, traz simultaneamente o potencial intrínseco de manutenção do status quo desenvolvimentista tecnocrático e o de fazer emergir um novo mundo. Carrega consigo perigos e oportunidades extraordinárias; a probabilidade de uma catástrofe planetária, mas também a improvável, mas possível esperança (Morin, 2013). Esta não pode esmorecer, pois está atrelada à convicção da certeza de que alguma coisa faz sentido e é parte inerente de nossa natureza espiritual. Temos diante de nós um dilema: sucumbir na insignificância generalizada

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ou transformarmo-nos em um metassistema rico em possibilidades. A primeira opção não exige esforços, basta dar continuidade ao atual modus operandi; a segundo se alimenta de esperanças, mas exige que reformas corajosas sejam feitas, e para isso, deve aproveitar-se dos recursos das duas globalizações. Que reformas devem ser conduzidas? Várias são necessárias, mas devem primar pela mudança psíquica e espiritual do homem, de forma a conscientizá-lo de seu papel na teia da vida. Entre todas, uma é fundamental, a da educação, que deve ser concomitante com uma reforma de civilização e de uma reforma social, que dependem de uma reforma política e de uma reforma de pensamento.

Devemos estar conscientes, também, do limite das reformas. O Homo não é apenas sapiens, faber, economicus, mas também demens, mitologicus, ludens. Não se poderá jamais eliminar a propensão delirante do Homo demens, não se poderá jamais racionalizar a existência...Não se poderá jamais realizar a utopia da harmonia permanente da felicidade garantida.

O que se pode esperar não é mais o melhor dos mundos, mas um mundo melhor. Somente a progressão das vias reformadoras regeneraria suficientemente o mundo humano para se convergir para a Via que conduzirá à metamorfose. Pois a metamorfose é a única coisa que poderá melhorar o mundo. (Morin, 2013, p. 381)

O agravamento da crise planetária tende a nos tornar impassivos ante tantas reformas, mas deve-se considerar que o tempo para reverter o grave quadro contextual é limitado. Devemos socorrer-nos de Shakespeare: “a consciência nos transforma em covardes, mas uma consciência elevada deve nos dar a coragem para começar”. Reavivar nossas esperanças é um começo, que pode se apoiar em alguns princípios (Morin, 2013):

• A história várias vezes mostrou que o surgimento do inesperado e o apare- cimento do improvável são plausíveis e podem mudar o rumo dos aconteci- mentos; • Há na essência humana um potencial criativo e inovador que tem produzido grandes movimentos de transformação em toda parte, embora tenham co- meçado de forma modesta e marginal;

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• As crises alimentadas por forças regressivas ou de desintegração produzem também forças geradoras de possibilidades transformadoras; • Onde cresce o perigo e a desesperança cresce também a esperança; • A aspiração intrínseca da humanidade pela harmonia, que se expressa nas utopias, nas ideologias de libertação e nas aspirações da juventude.

Reformas e esperanças devem atingir a massa crítica mínima para produzir reações nucleares que se autoalimentarão, disseminando-as pelo orbe, sem o que a jornada humana poderá testemunhar uma catástrofe. Cabe à segunda globalização, onde coexistem liberdade, fraternidade, igualdade e solidariedade humana, esta tarefa. Como já abordado, a segunda globalização é alimentada por contracorrentes ou movimentos, que se contrapõem às correntes ligadas ao capitalismo. As contracorrentes contra o consumismo excessivo; por uma só ética; pelo altruísmo amplo e irrestrito; a contracorrente ecológica em prol da restauração da Terra; a contracorrente do resgate da cultura ecológica dos povos autóctones, em reação à homogeneização do mundo; a contracorrente pela conscientização sobre a complexidade da realidade e pela necessidade de abordagem sistêmica para os problemas atuais e a contracorrente pela integração psíquica e elevação espiritual do homem, entre outras, devem conjugar-se de forma transdisciplinar para ampliar as probabilidades de se produzir a metamorfose de que necessitam a humanidade e o planeta (Morin, 2012b).

A mudança ocorrerá pela persistência dos que têm consciência das instabilidades planetárias e dos riscos que a continuidade de nosso atual modo de vida traz. É preciso engajar-se com ardor em todas “ Não duvidemos jamais as vias reformadoras com os recursos disponíveis. que um pequeno grupo de Esta segunda globalização não é utópica, se indivíduos conscientes e manifesta através de várias sementes já engajados possa mudar o espalhadas pelo globo como: ONG`s; movimentos mundo. Foi exatamente dessa forma que isso sociais; Think Tanks; centros educacionais; sempre aconteceu “ instituições religiosas; empresas que optaram pelo Margareth Mead compromisso com a sustentabilidade atual e futura; pensadores comprometidos com a vida, que irradiam conhecimentos

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convidando a humanidade a abandonar posições alienantes. Fomentam um novo paradigma civilizatório, condição sine qua non para um mundo sustentável.

Na bifurcação que se desenha neste momento para a humanidade, continuar na mesma trajetória não se mostra a opção mais inteligente. Redirecionar-se para outra que permita um futuro mais auspicioso depende de atratores apropriados para estabilizar uma nova trajetória no processo da jornada humana. Uma reforma educacional global e radical se mostra o atrator mais apropriado. Exige que se repense a educação de nosso século, o que não é uma tarefa fácil, pois, atualmente, a educação é direcionada para atender o sistema econômico vigente e alterá-la significa mudar o paradigma tradicional. Um novo sistema de educação deveria ter como premissas básicas algumas questões. O que é o homem? O que é a vida? O que é a sociedade? O que é o mundo?

Um novo sistema de educação fundado na religação e, por isso, radicalmente diferente do atual, deveria substituí-lo. Esse sistema deveria favorecer a capacidade da mente para pensar os problemas individuais e coletivos em sua complexidade, Ele sensibilizaria para as ambiguidades, as ambivalências, e ensinaria a associar os termos antagônicos para apreender uma complexidade (Morin, 2013, p. 193)

Uma reforma educacional deveria resgatar os problemas vitais, fundamentais e globais obscurecidos pela compartimentalização e reducionismo da educação corrente. Seu maior compromisso deveria ser o de mostrar aos jovens, sem esquecer dos adultos, um novo caminho cujo material de construção é a visão sistêmica da vida e do universo. Tal sistema educacional deveria primar por oferecer saberes que não são devidamente abordados na educação vigente:

• O conhecimento da era planetária, do homem, da compreensão humana e das incertezas e complexidade da realidade; • A educação da condição humana, traduzida pelo relacionamento entre indi- víduo-sociedade-espécie, que fomente a prática de um altruísmo irrestrito, que resgate culturas milenares de convívio harmônico com Gaia, que privi- legie a integração psíquica rumo à alteridade, ao processo de individuação,

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e à conscientização de nosso pertencimento à teia da vida que une todos os seres; • Orientada à sustentabilidade, centrada na compreensão dos princípios bási- cos da ecologia e de viver em conformidade com eles; no estudo dos ecos- sistemas, comunidades sustentáveis por natureza, e sua interação com o homem; • Uma ética do gênero humano, integradora, uma ética de um só mundo, que transcenda a atual fragmentação ética.

Uma tal mudança educacional demanda uma outra estrutura de pensamento e crenças, que se afaste do paradigma tradicional ou dominante, que sustenta nosso sistema mundo. Exige uma visão de mundo holística que o reconheça como uma totalidade integrada e não um ajuntamento de partes. Exige um novo paradigma, que possibilite reconhecer a interdependência fundamental de tudo e todos, e nossa dependência da natureza: o paradigma “da ecologia profunda”100. A ecologia profunda é de natureza espiritual, reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida (Capra e Luisi, 2014).

...a percepção ecológica profunda é percepção espiritual. Quando o conceito do espírito humano é compreendido como o modo de consciência no qual o indivíduo vivencia o sentido de pertencer, de estar conectado, ao cosmos como um todo, fica evidente que a percepção ecológica é espiritual em sua essência mais profunda. (Capra e Luisi, 2014, p. 37)

Uma educação repensada e uma nova visão de mundo, a da ecologia profunda, criam um processo recursivo, ou seja, cada um é produto e produtor do outro, alimentando-se mutuamente e alimentando a reação nuclear que pode levar a humanidade a uma trajetória de sustentabilidade e compromisso com as gerações futuras. Mudança da educação e uma nova visão de mundo representam o embrião de um novo e urgente contexto civilizatório, que dará suporte a uma nova sociedade global, defendida por Edgar Morin, a sociedade-mundo. Sua proposição parte do

100 Termo cunhado pelo filósofo norueguês na década de 1970 para designar uma visão ecológica que não separa os seres humanos, nem qualquer outra coisa, do seu ambiente natural.

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pressuposto que, talvez, já tenhamos ultrapassado os limites para além dos quais nenhum dos problemas vitais da humanidade possam ser mais resolvidos pelas nossas sociedades, com a continuidade de nossa história atual. Morin questiona se os seres humanos continuarão a ser arrastados por uma história, tornada mundial, de despotismos, guerras, regressões e avanços que ameaçam cada vez mais a humanidade. A sociedade-mundo pode ser o antídoto contra os descontroles dos Estados, com suas forças regressivas, totalitarismos e uso inadequado dos recursos tecnoeconômicos de que dispõem. Pode ser a solução para resgatar a Terra e colocar Gaia novamente no controle da biosfera. A sociedade-mundo representa uma comunidade global de destino para toda a humanidade e possui atributos para tornar- se um metassistema rico em possibilidades, se a humanidade aproveitar a oportunidade que tem diante de si (Morin, 2012b).

A sociedade-mundo somente poderá ser engendrada pela segunda globalização, mas não poderá prescindir da primeira, com seus recursos, capacidades e tecnologias. Sua consolidação, reforça Morin, está atrelada a uma política mundial para a consagração do processo de uma sociedade-mundo confederativa, com políticas de combate às injustiças e desigualdades. A sociedade-mundo deve desconstruir a ilusão comportada no termo “desenvolvimento”, que disfarça e adia a necessidade de mudanças fundamentais, ao impor uma visão unilateral do contexto ecológico. O Desenvolvimento Sustentável, nascido no ocidente, ignora as qualidades de “vida, o sofrimento, a alegria, o amor”. Só considera aquilo que é mensurável pelos indicadores de crescimento de renda monetária. Para esse fim, faz-se necessário a adesão da maioria a um civismo planetário, envolvendo, democraticamente, as nações. Entretanto, a própria humanidade é um obstáculo para essa metamorfose, por conta da imaturidade dos Estados-nações e da maioria da população mundial, que imersa em suas particularidades ideológicas: nacionalistas, culturais, étnicas, religiosas, científicas, ainda resiste em aceitar as reformas fundamentais.

Essas reflexões reforçam a sensação de que a humanidade se defronta com uma bifurcação vital em seu caminho, tal como Hércules, que ao decidir-se sobre o que faria de sua vida, foi provocado por Kakia – a volúpia, que o convidou a seguir um caminho mais fácil e agradável, com alegria e ociosidade, e por Aretê – a virtude, que lhe acenou com uma vida de atribulações, repleta de privações e perigos. Diante das

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duas vias que se nos apresentam, temos que decidir entre a que nos mantém na ilusão do bem-estar, amparada no progresso tecnocientífico, ou exortar os espíritos para que se lancem a um novo caminho, árduo, que exige uma nova compreensão do mundo, mas que acena com o retorno para um caminho sustentável.

Ao finalizar esta tese, este autor mais uma vez reforça sua visão preocupante sobre o futuro da humanidade, não construída com devaneios ou ceticismo sobre o potencial criativo humano, mas assentada sobre pensamentos de autores que contribuíram com seus conhecimentos para a elaboração deste trabalho, e sobre indicadores ecológicos das mais sérias instituições de pesquisa ambiental. É plausível antever que o nível de degeneração do planeta aumente, agravando o quadro social global, com reflexos políticos, econômicos e demográficos. Não se pode afastar a hipótese de redução de terras agriculturáveis, disponibilidade de água e alimentos, que podem provocar migrações em massa, conflitos e instabilidade nos países mais pobres, deteriorando ainda mais o contexto atual. A continuidade da crise ambiental poderá provocar redução populacional e aumento da pobreza nas próximas décadas, com deslocamentos intensivos de populações para países mais desenvolvidos ou com recursos naturais preservados, diminuindo as regiões habitáveis do planeta. Esta é a visão do futuro de James Lovelock (2006). Pode representar o corte do nó górdio do sistema mundo dominante e acelerar a formação de uma sociedade-mundo como aqui preconizada. A crise, palavra que vem do sânscrito “kir”, que significa purificar e limpar, traz a oportunidade de se depurar do cerne o que não tem valor e construir uma nova ordem.

A transição para uma sociedade global será uma tarefa árdua, mas não impossível. Conhecimentos recentes sobre a complexidade dos sistemas naturais e sociais possibilitaram a compreensão de que perturbações desencadeiam processos de retroalimentação e bifurcações, que podem levar a uma nova ordem e, eventualmente, a um novo patamar de estabilidade, ou de colapso. Atratores fazem a diferença. A sociedade-mundo representa essa nova ordem com estabilidade, mas condicionada a uma reforma da educação, seu atrator. A tarefa não termina com sua criação, pois em um mundo debilitado pelos impactos ambientais e em transição para um novo paradigma a sociedade-mundo deve se fortalecer e crescer, disseminando- se amplamente, caso contrário será breve. Uma sociedade-mundo que seja

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engendrada de forma inteligente deverá, fisiologicamente, se inspirar nos ecossistemas naturais, evoluindo para uma rede de redes. Por bilhões de anos os ecossistemas progrediram tornando-se interdependentes e sustentáveis, formando redes de redes sustentáveis. Os resíduos produzidos por um ecossistema (outputs) são entradas para outros (inputs), formando ciclos de alimentação que não poluem e nem desequilibram a biosfera, o maior ecossistema terrestre. Foi assim que Gaia funcionou desde que a vida surgiu e se multiplicou pelo planeta. Uma sociedade- mundo comprometida com a sustentabilidade da Terra deve “biomimetizar” esses princípios gaianos.

...não precisamos inventar comunidades sustentáveis a partir do zero, mas podemos modelá-las de acordo com os ecossistemas da natureza...uma comunidade humana sustentável é planejada de tal maneira que seus modos de vida, negócios, estruturas físicas e tecnologias não interferem na capacidade inerente da natureza para sustentar a vida...desenvolvem seus padrões de vida ao longo do tempo em interação contínua com outros seres vivos, humanos e não humanos. Desse modo, a sustentabilidade não significa que as coisas não mudam. Pelo contrário, ela é um processo dinâmico de coevolução em vez de um estado estático. (Capra e Luisi, 2014, p. 435)

Em um mundo com redução de áreas habitáveis a sociedade-mundo deve ser fortalecida como uma somatória de redes regionais, compostas de comunidades sustentáveis, que deverão funcionar como “ Biomimetismo do grego “bios” (vida) e “mimesis” (imitação), ecossistemas locais integrados e representa uma nova ciência interdependentes. Para otimizar a criada com o propósito de resolver performance dessa nova ordem global, problemas humanos a partir do advoga-se que cada rede regional seja aprendizado com organismos vivos e comunidades ecológicas, que ao biomimetizada a partir da obra-prima da longo de bilhões de anos se evolução, o cérebro humano. Com cerca tornaram eficiente e de 86 bilhões de neurônios, o cérebro tem ecologicamente sustentáveis “ estrutura modular, ou seja, conjuntos neuronais formando módulos, com especializações e não especializações. Alterações em zonas especializadas podem ser compensadas por deslocamento e reconstrução das funções para uma zona ou módulo não especializado. Os módulos funcionam

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interdependentemente, com uma dinâmica de inter-retroalimentações e uma superposição inimaginável de associações e implicações, onde milhões de comunicações sinápticas acontecem por segundo. Apesar de formar uma grande rede neuronal, o cérebro não tem um centro de comando, é democrático, e cada módulo possui relativa autonomia. É simultaneamente acêntrico e policêntrico, é anárquico e hierárquico, é especializado e não especializado. Foi esse órgão hipercomplexo que viabilizou nossa civilização, nossa cultura, enfim, tudo o que somos (Morin, 2012a). Porque não o utilizar como modelo?

As redes regionais deveriam evoluir para sociedades modulares sustentáveis, compostas de módulos comunitários, as comunidades locais, policompetentes, ecoeficientes, especializadas, relativamente autônomas, mas interdependentes, interagindo entre si através de inter-retroalimentações e com hierarquias móveis entre si. Uma sociedade modular deveria ser guiada pela igualdade, liberdade, fraternidade, altruísmo, ética e racionalidade, e respeitaria todas as formas de vida, formando uma grande teia da vida integrada homeostaticamente ao planeta, uma sociedade-mundo. Enfim, uma sociedade em simbiose com Gaia, comprometida com a vida e melhor preparada para os complexos desafios que certamente se seguirão pelos próximos séculos. O homem deixaria de ser o parasita infeccioso do planeta, para assumir o seu verdadeiro papel no teatro terrestre, o de escultor de uma nova sociedade, ecologicamente comprometida, fundamentada na colaboração irrestrita e no benefício mútuo. Esta é a visão e proposta desse autor, para o qual ter esperança é ter a certeza de que alguma coisa faz sentido, e ele a tem. Será possível alcançar tal contexto? Está em nossas mãos, mas nada está definido. Somente o futuro trará a resposta final.

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GLOSSÁRIO

ATMOSFERA – Camada gasosa sobre a superfície planetária que abriga gases que mantêm a vida, estabelece o clima planetário e protege contra a radiação ultravioleta do Sol.

BIOSFERA – Biosfera significa esfera da vida. Representa as condições ambientais em que se processa a vida animal e vegetal da Terra. É a camada do globo terrestre habitada pelos seres vivos. Contém o solo, o ar, a água, a luz, o calor e os alimentos, que fornecem condições necessárias para o desenvolvimento da vida. A biosfera é mantida por elementos encontrados na atmosfera, na litosfera e na hidrosfera. Essas camadas, formadas por elementos sólidos, líquidos, gasosos e biológicos, constituem as quatro camadas da Terra, e a modificação de uma delas provoca alteração nas demais e no conjunto.

BIOTA – É o conjunto de seres vivos que habitam um determinado ambiente ecológico, em estreita correspondência com as características físicas, químicas e biológicas desse ambiente.

COMPLEXIDADE – É a qualidade de ser complexus, tecido junto. Há complexidade quando elementos diferentes são inseparáveis constitutivos do todo (como o econômico, o político, o sociológico, o psicológico, o afetivo e o mitológico) e há um tecido interdependente, interativo e interretroativo entre o objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o todo, o todo e as partes, as partes entre si. Por isso, a complexidade é a união entre a unidade e a multiplicidade.

ENDOSSIMBIOSE – Do grego endo=interior e biosis=que vive, o temo designa organismos que vivem no interior de outros, realizando uma relação simbiótica. Criada pela bióloga Lynn Margulis, endossimbiose significa, portanto, vida em parceria.

ENERGIA ESCURA – É uma forma hipotética de energia distribuída por todo espaço e tende a acelerar a expansão do Universo. Ela pode ser considerada

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tanto como um novo aspecto da gravitação, uma gravidade repulsiva, uma força que age em larga escala em oposição à gravidade. Tal efeito hipotético é frequentemente utilizado, por diversas teorias atuais que tentam explicar as observações que apontam para um universo em expansão acelerada.

EUCARIOTAS – As células eucariotas, também conhecidas como células eucariontes, apresentam duas partes bem distintas, o citoplasma e o núcleo, entre as quais as moléculas transitam nos dois sentidos. São maiores que as células procariontes e de estrutura muito mais complexa. Nesse tipo de célula encontramos um núcleo bastante individualizado e organelas que não são encontradas nos procariontes. A riqueza em membranas das células eucariontes é a sua característica mais importante.

HIDROSFERA – Palavra de origem grega: hidro + esfera = esfera da água. Compreende todos os rios, lagos, lagoas e mares e todas as águas subterrâneas, bem como as águas marinhas e salobras, águas glaciais e lençóis de gelo, vapor de água, as quais correspondem a 71% de toda a superfície terrestre. É uma das partes integrantes da biosfera e contém todos os organismos vivos que habitam na água ou dependem dela e também todos os “habitats” aquáticos.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL – Ramo da ciência da computação que se propõe a elaborar dispositivos que simulem a capacidade humana de raciocinar, perceber, tomar decisões e resolver problemas, enfim, a capacidade de ser inteligente e independente, o que torna este assunto extremamente controverso pelos eventuais riscos para a humanidade a ele associados.

LITOSFERA – Camada sólida mais externa da Terra. Composta de minerais cobre toda a superfície terrestre, desde o topo do Monte Everest até as profundezas das Fossas Marianas. Nas regiões continentais, é constituída principalmente de rochas graníticas, ricas em alumínio e silício. Já nas áreas oceânicas predominam as rochas basálticas. Sua estrutura vem-se alterando através dos tempos, seja pela ação da erosão ou pela atuação dos chamados agentes internos: falhas e dobramentos que

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conduzem à formação de montanhas ou vulcanismos. Sofre também ação de microrganismos através do processo de intemperismo.

MÉTODO DELPHI – Técnica com uso de recursos matemáticos e estatísticos para estimar a probabilidade e o impacto de acontecimentos futuros e incertos. Elaborado a partir da consulta a peritos, que auxiliam na identificação de riscos e suposições e premissas associados a esses acontecimentos. Cada perito apresenta, individualmente, suas estimativas e premissas para um facilitador, que analisa os dados e emite um relatório de síntese.

PARADIGMA – Termo cunhado por Thomas Kuhn em sua obra: A Estrutura das Revoluções Científicas, designa modelos, representações e interpretações de mundo, universalmente reconhecidas, que fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade científica. O seu alcance foi ampliado e é usado para designar padrões mentais de pensamento que orientam atitudes e comportamentos de comunidades e sociedades.

PROCARIOTAS – As células procarióticas, também conhecidas como células procariontes, são aquelas que possuem uma organização muito simples. Estas células são desprovidas de mitocôndrias, não apresentam membrana plasmática nem parede celular, e nelas o material do núcleo celular fica espalhado pelo citoplasma.

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